NOTAS SOBRE METODOLOGIA HISTÓRICA E TEORIA SOCIAL EM JOÃO BERNARDO

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R R R e e e v v v i i i s s s t t t a a a C C C h h h r r r ô ô ô n n n i i i d d d a a a s s s Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d e G o i á s I S S N: 1 9 8 4 – 2 6 6 X Abril de 2011. Ano III, Número 09. Dossiê Temático: “Marxismo: Teoria e Historiografia” [1ª Parte] Imagem de Capa: Quarto Stato, Joseph Pelizza de Volpedo (1896 – 1902).

Transcript of NOTAS SOBRE METODOLOGIA HISTÓRICA E TEORIA SOCIAL EM JOÃO BERNARDO

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Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas

U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d e G o i á s II SS SS NN:: 11 99 88 44 –– 22 66 66 XX

Abril de 2011. Ano III, Número 09.

Dossiê Temático:

“Marxismo: Teoria e Historiografia” [1ª Parte]

Imagem de Capa: Quarto Stato, Joseph Pelizza de Volpedo (1896 – 1902).

Revista Chrônidas

ABRIL DE 2011

Universidade Federal de Goiás Reitor Edward Madureira Brasil Vice-Reitor Eriberto Francisco Bevilaqua Marin Faculdade de História Diretor Leandro Mendes Rocha Coordenador do Curso de História Heloísa Selma Fernandes Capel Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Maria Amélia Garcia de Alencar Revista Chrônidas Editor Sênior Marlon Salomon Editores Juniores Ivan Vieira Neto Carolina Soares Sousa

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Ano III, N. 09 / abril de 2011

Sumário

Dossiê

Marxismo: Teoria e Historiografia [1ª Parte]

Apresentação João Alberto da Costa Pinto e David Maciel..............................................................................6 Ignácio Rangel e a Questão Agrária no Brasil Arissane Dâmaso Fernandes.....................................................................................................11 As contribuições de Ignácio Rangel para o pensamento agrário brasileiro Antônio Gonçalves Rocha Júnior.............................................................................................26 Interpretações sobre Estado e capitalismo no Brasil: a originalidade da obra de Ruy Mauro Marini Mariana de Oliveira Lopes Barbosa..........................................................................................54 A classe em movimento: apontamentos teóricos para um estudo histórico das classes sociais Matheus Nascimento Germano.................................................................................................70 Notas sobre Metodologia Histórica e Teoria Social em João Bernardo Rodrigo Oliveira de Araújo.......................................................................................................82 Os Estados Unidos e o desenvolvimento do Corporativismo no Séc. XX: uma análise sobre o poder das grandes corporações e a hegemonia dos gestores Alexandre de Paula Meirelles...................................................................................................95 Os gestores na organização da indústria aeronáutica no Brasil (1927-1969) André Luiz dos Santos Vargas................................................................................................110 Sindicalismo e Leninismo: um debate acerca dos sindicatos apresentado no jornal Combate (Portugal, 1974-1978) Tales dos Santos Pinto............................................................................................................129

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Apresentação

Marxismo: Teoria e Historiografia

[1ª Parte]

É com muita satisfação que apresentamos a primeira parte do Dossiê

Marxismo, Teoria e Historiografia, que compõe a edição de mais um número da Revista Chrônidas em sua exitosa trajetória editorial.

O Dossiê está organizado em oito artigos, todos perpassados por questões teóricas ou indagações historiográficas relacionadas ao campo plural da

tradição do marxismo. No seu conjunto, o Dossiê apresenta fecundos exemplos

de como na atual conjuntura acadêmica o processo de investigação historiográfica muito tem a acrescentar de significativo dialogando com o

universo teórico marxista. Neste conjunto de artigos alguns explicitam

vivamente o diálogo e a análise de algumas importantes obras da tradição marxista brasileira, e outros o exercício heurístico de premissas marxistas na

investigação historiográfica. O conjunto de textos do Dossiê é resultado de pesquisas já concluídas ou em conclusão de investigadores vinculados ao

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.

O artigo de Arissane Dâmaso Fernandes apresenta reflexão sobre a questão agrária em Ignácio Rangel, tema fundamental ao conjunto da obra desse importante pensador marxista brasileiro, como também um tema

essencial da historiografia marxista nacional. As reflexões apresentadas pela autora são resultado do seu doutorado em História defendido em maio de 2011.

A obra de Ignácio Rangel também foi objeto da investigação da

dissertação de mestrado de António Gonçalves Rocha Júnior, defendida em dezembro de 2010. Se o artigo de Arissane Dâmaso apresenta um quadro sintético da questão agrária em Rangel, o artigo de António Gonçalves

desenvolve uma pormenorizada reflexão sobre a dualidade estrutural do

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capitalismo brasileiro e os consequentes problemas sobre a questão da renda da terra. Importa ressalvar a originalidade e o esforço historiográfico de ambos os autores diante de um clássico do marxismo brasileiro, sempre percebido e laudado como um dos mestres do pensamento econômico nacional, mas ainda muito pouco trabalhado pela historiografia brasileira.

Na sequência temos o artigo de Mariana de Oliveira Lopes Barbosa dedicado à obra de Rui Mauro Marini, marxista brasileiro, autor de um conjunto de textos teórico-políticos de fundamental importância e de grande atualidade pelos temas que indagou como a questão do Brasil potência

imperialista, aspecto esse que demarca a reflexão de Marini como uma das referências mais originais e fundamentais do marxismo latino-americano. A

emblemática particularidade das teses de Marini fica muito bem percebida no

artigo através da exposição comparativa que a autora apresenta de outros clássicos marxistas brasileiros coetâneos à obra do autor destacado. O artigo é

parte das proposições que Mariana Barbosa vem desenvolvendo com muita

maturidade na sua dissertação de mestrado.

No artigo do mestrando Matheus Nascimento Germano apresentam-se

sugestivas indagações sobre um tema clássico à tradição marxista: a questão das classes sociais no capitalismo. Retomando o quadro do marxismo britânico,

especialmente a historiografia de Edward Palmer Thompson, o autor defenderá

a centralidade da história na análise do estatuto ontológico das classes no capitalismo, a obrigatória construção analítica do fazer-se histórico das classes

sociais, procedimento que deveria ser óbvio em todas as perspectivas marxistas,

mas que, ao contrário, muitas vezes demarcam-se por procedimentos positivistas reiteradores de catilinárias canônicas que indagam a historicidade

sob análise com o inferno retórico das citações talmudicas dos escritos de Marx. O artigo de Matheus Germano é uma importante contribuição no resgate do universo conceitual thompsoniano.

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Rodrigo Oliveira de Araújo apresenta no seu artigo uma interessante reflexão sobre o método na obra de João Bernardo, pensador marxista português de significativa importância para a investigação historiográfica das classes sociais no capitalismo, autor de um programa teórico que em muito se assemelha às perspectivas heurísticas do método apresentadas pelo projeto historiográfico thompsoniano. A questão das classes sociais na formação do capitalismo brasileiro é o que motiva a investigação que Rodrigo Araújo desenvolve atualmente no seu mestrado sobre os empresários e os gestores nas décadas de 1930 e 1940.

Adotando as perspectivas metodológicas do marxismo de João Bernardo, Alexandre de Paula Meirelles apresenta-nos uma reflexão sobre a obra de um

dos mais importantes ideológos da tecnocracia norte-americana: Adolf

Augustus Berle Jr., autor de uma vasta obra sobre assuntos da política internacional dos EUA para a América Latina e Brasil em particular (Berle Jr.

foi embaixador dos EUA no Brasil em 1945 e diretamente envolvido com a

conjuntura política que levou à deposição de Vargas no mesmo ano). O artigo é parte da dissertação mestrado que Alexandre Meirelles também desenvolve no

PPG em História da UFG e que tem como epicentro investigativo a constituição ideológica da tecnocracia como classe dominante capitalista.

O artigo do mestrando André Luiz dos Santos Vargas também está

escudado no marxismo de João Bernado e desenvolve uma detalhada análise historiográfica das origens institucionais do programa da indústria aeronáutica

brasileira (num recorte de 1927 a 1969), especialmente quando da fundação do

Instituto Tecnológico da Aeronaútica (ITA) e organização da EMBRAER. O autor apresenta-nos modelarmente como o argumento do marxismo

bernardiano é um substantivo instrumento teórico-conceitual para a investigação das condições gerais de organização histórico-institucional do capitalismo brasileiro, principalemente no que se refere à ação institucional de

controle produtivo por parte dos Gestores.

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O Dossiê é encerrado com o artigo do mestrando Tales dos Santos Pinto que nos apresenta em detalhada e exemplar análise de fontes, com base no jornal português COMBATE (fundado em 1974 e com circulação até 1978), uma meticulosa construção historiográfica sobre os debates teóricos e políticos (leninistas, anarquistas, comunistas autogestionários, entre outros) referentes às práticas sindicais nos primeiros meses da Revolução dos Cravos em Portugal (1974-1978).

Parabenizamos todos os jovens autores pelos resultados aqui apresentados de pesquisas já concluídas e/ou em conclusão. Exemplos muito

significativos da qualidade da investigação historiográfica que vem sendo desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da

Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, qualidade essa

melhor percebida e divulgada graças à exitosa prática editorial da Revista

Chrônidas, e é em nome dela e dos autores apresentados que convidamos todos

a uma ótima leitura.

Goiânia, 23 de abril de 2011.

Prof. Dr. João Alberto da Costa Pinto. Prof. Dr. David Maciel.

Dossiê

“Marxismo: Teoria e Historiografia”

[1ª Parte]

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IGNÁCIO RANGEL E A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL

Dra. Arissane Dâmaso Fernandes Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás

[email protected]

Resumo

Ignácio de Mourão Rangel foi um economista maranhense que ocupou importantes cargos no aparelho de Estado. Dentre eles, destaca-se a Assessoria Econômica do presidente Vargas e o Departamento de Economia do BNDES, cargos ocupados nos anos 1950. Para além de sua carreira pública, Rangel desenvolveu a teoria da dualidade básica na qual ele apresentou não somente a sua leitura da história econômica do Brasil, mas formas de efetivamente intervir nessa realidade. Nessa teoria, a questão agrária ocupa posição central e neste artigo ela será apresentada justamente como um demonstrativo do intelectual e do “homem de Estado” que foi Ignácio Rangel. O objetivo das considerações que se seguem é retomar as discussões apresentadas por Rangel sobre a questão agrária brasileira destacando, sobretudo, as alterações que essas análises tiveram entre os anos 1950 e 1980, bem como sua intenção de propor medidas para intervir nessa realidade. Palavras-chave: Ignácio Rangel, agricultura, industrialização, dualidade.

Abstract:

Ignacio de Mourão Rangel was one economist who held important positions in the state

apparatus. Among these positions, in 1950, Rangel was Economic Advisor to the

President Vargas and head of the Economics Department of BNDES. In addition to his

public career, Rangel has developed the basic theory of duality in which he presented

not only his read the economic history of Brazil, but ways to effectively intervene in

that reality. In this theory, the land question is central and, in this article, it will be

resume as a demonstration of the intellectual and "statesman" who was Ignacio Rangel.

The intention of the following considerations is resume the discussions presented by

Rangel on the agrarian question in Brazil highlighting, in particular, the changes that

discussions, between 1950 and 1980 as well as its intention to propose measures to

intervene in that reality.

Key-words: Ignacio Rangel, agriculture, industrialization, duality.

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Introdução:

As análises acerca da problemática agrária estão no centro da teoria rangeliana, a

qual associava o latifúndio (“não-capitalista”) ao feudalismo. Já no seu primeiro livro

(O Desenvolvimento Econômico no Brasil -1954), Rangel apresentou a argumentação

que constituiria a base do seu raciocínio acerca da questão agrária brasileira. Segundo

ele:

Considerando que na estrutura da economia que precede a

industrialização quase toda a população está na “agricultura”, é

preciso estudar detidamente a organização desse setor. Em outras

palavras, se o problema da “agricultura” não foi entendido1

, tampouco

será possível compreender o problema da “indústria”, ou manufatura,

nem o papel que os serviços desempenham. Falando de modo sucinto,

a “manufatura” e os serviços são novas formas de aplicação de parte

do tempo de trabalho da população que antes estava na “agricultura”

(RANGEL, 2005a: 89).

Já nesse primeiro livro, Rangel destacou o eixo que conduziria todas as suas

discussões posteriores em torno da temática agrária: a ocupação de grande parte do

tempo de trabalho dos camponeses2 em atividades “não necessariamente agrícolas”3

1 -Para Rangel (2005a:151,152): “todas as teorias correntes entre nós sobre a agricultura ignoram inteiramente, ou apenas lhes prestam uma atenção superficial, as atividades não agrícolas de população agrícola”.

.

Mas deve-se ressaltar que, ao longo dos anos, essa análise (referente à “produção

de produtos não agrícolas pela agricultura”), adquiriria novas feições. Essas

modificações, para além de demonstrarem a dinâmica ou a trajetória que a teoria

rangeliana assumiria nas décadas seguintes, demonstram mudanças importantes pelas

quais a agricultura brasileira estava passando, e que incidiam na reestruturação das

discussões em torno da consolidação de um “projeto de reforma agrária viável”.

Essencialmente, a teoria rangeliana (nos anos 1950) afirmava a necessidade de

“organizar” o setor agrícola a fim de que ele não desempenhasse funções que caberiam

2 - O termo “camponês” é utilizado por Rangel em sentido genérico, se referindo aos trabalhadores rurais, ou pequenos produtores agrícolas. 3 - Como a construção de moradias e a produção de alguns bens de consumo, como vestuário e alimentos artesanalmente manufaturados.

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ao setor industrial. Para Rangel (2005a:158), a estrutura do setor agrícola, ou o

“complexo das mil atividades”, era um “imenso oceano de força de trabalho à espera de

melhor ocupação” e nele, o trabalho era “fantasticamente improdutivo”.

Na sua concepção4, o setor agrícola teria duas características essenciais: ela seria

uma “unidade combinada” de produção e consumo, a qual deveria estar separada, numa

economia “desenvolvida”; tal unidade seria “combinada”5 pois não se ocuparia “apenas

de um bem específico”, mas de muitos e, por esse motivo, ela seria uma unidade

complexa, um “complexo rural”6. Nele, o camponês se empenharia não só na produção

de matérias-primas, como também da elaboração de vários produtos finais (como

“semimanufaturas”, moinhos, a casa da sua família, roupas, etc.)7.

Sendo assim, o que a teoria rangeliana defendia, era a necessidade de

transferência de fatores (mão-de-obra e capital) do setor agrícola para o urbano-

industrial (indústria e serviços)8, situação que poderia ter sido impulsionada por uma

reforma agrária. Dessa maneira, na proposição de Rangel (2005a, p.99): “o problema

central da industrialização pode ser pensado como o do rompimento do ‘complexo

rural’”9

4 - Rangel, 2005a:99.

. A essência de toda essa argumentação pode ser resumida nas seguintes

palavras de Rangel:

5 - Como Rangel (2005a:95) explicou, a utilização do termo “unidade combinada” teve, como referencial teórico, a obra The Structure of American Economy, de Leontiev, para o qual a unidade agrícola seria “a combinação, na mesma unidade, das funções produção (que, em sua sistematização corresponde à ‘unidade de negócios’) e consumo (que corresponde à ‘família’ou household)”. 6- Em “Introdução ao Desenvolvimento Econômico Brasileiro (1955)”, Rangel chamaria esse “complexo rural” de “complexo de mil atividades”, onde a agricultura seria somente uma, das múltiplas atividades desse complexo. (Rangel, 2005a:157-158). 7- É importante enfatizar que essa idéia (de que nas economias pouco desenvolvidas, a agricultura desempenha funções da indústria) foi retomada, segundo o próprio Rangel (2005a:99 e 218) demonstrou, das obras de Lênin e nos estudos do economista ucraniano Simeon Kuznets (seu livro “Long Term Changes in the National Income of the USA, since 1870” – como foi explicado por Rangel (2005a:218 – nota 7)7. Em uma das passagens extraídas da obra de Lênin, especificamente do livro “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, pode-se ler o seguinte: “A população de um país de economia mercantil debilmente desenvolvida (ou não desenvolvida de todo) é quase exclusivamente agrícola. Todavia, não se deve deduzir daí que ela se ocupa só da agricultura. Significa apenas que a população ocupada na agricultura transforma, ela mesma, os produtos da terra, sendo quase inexistentes o intercâmbio e a divisão do trabalho” (Citação apresentada por Rangel, 2005a:99).

8 - Além disso, é inegável que havia um interesse em inserir esses trabalhadores rurais em um mercado de consumo de produtos industrializados. 9- No seu empenho em “promover a indústria nacional”, Rangel foi além, e definiu que o complexo rural teria lançado bases no setor urbano. Tratava-se dos denominados “serviços domésticos não remunerados” (como, por exemplo, o conserto de roupas feito pela dona-de-casa) que, assim como as atividades não agrícolas desenvolvidas pela economia natural (agricultura), competiam com a economia de mercado no que se referia ao uso de fatores (mão-de-obra e capital). Segundo a definição de Rangel (2005a:220): “os ‘serviços domésticos’ são, na verdade, uma forma decadente da economia natural, tal como ela se

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[...] quase todo o labor não agrícola da população agrícola é trabalho

de elaboração de produtos primários, para adaptá-los ao consumo; ora,

essa elaboração é também a função das indústrias urbanas, de modo

que podemos afirmar que o desenvolvimento econômico resulta

essencialmente do desligamento do complexo rural de uma atividade

após outra: em vez da camponesa elaborando o algodão para convertê-

lo em pano, com a ajuda de primitivos instrumentos manuais de

madeira, teremos a operária fazendo a exatamente a mesma coisa, só

que muito melhor e com imensa economia de tempo, em fábricas

modernas, comandando o equipamento semi-automático, tendendo

para a total automatização. Este é o sentido último do

desenvolvimento (RANGEL, 2005a:158).

Tomando esses pressupostos como base de sua análise sobre a questão agrária,

nos anos 1950, Rangel defendeu a abertura desse “complexo rural”10

apresenta no complexo rural, como se esse complexo se houvesse reconstituído nas condições urbanas. Em outros termos, temos novamente a economia natural, sob uma nova roupagem, competindo com a economia de mercado pelo uso de fatores”. Em suma, a tese defendida por Rangel (2005a:122) era a de que: “a expansão da economia de mercado se faz com recursos sacados do setor agrícola e dos ‘serviços domésticos”.

visando um

“aumento da produtividade social”. Em outras palavras, essa desagregação se daria em

prol de um “bem comum”, coletivo (RANGEL, 2005a:161).

Na prática, esse processo significava a legitimação do intervencionismo estatal no

setor agrícola. Como foi pontuado por Rangel (2005a:109): uma vez que “o complexo

rural não se quebra espontaneamente, pelo simples fato de que a sociedade tem

aplicações mais produtivas para os fatores usados na produção natural. Há que induzi-lo

ou mesmo compeli-lo a alterar sua estrutura”.

10 - De acordo com Rangel (2005a:115- 116): “as medidas tendentes a romper o complexo rural podem ser classificadas em dois grupos: (a) as que oferecem um incentivo positivo para a incorporação, à economia de mercado, dos fatores usados pelo complexo, o que implica oferecer ao próprio complexo uma participação no produto adicional obtido pelo novo uso dos fatores liberados; (b) as que buscam forçar a abertura do complexo a partir de dentro, provocando uma deterioração da produtividade dos fatores usados em suas atividades manufatureiras”. As medidas do primeiro tipo, cujo exemplo típico seria os Estados Unidos, não significavam uma destruição das bases materiais da produção camponesa, mas em uma capitalização dessas bases. Já as medidas do segundo tipo, seriam o enclosure (“cercamento” ou, simplificadamente, retirar a terra dos camponeses, como ocorreu na Inglaterra), o estabelecimento de um imposto direto (em dinheiro) cobrado dos camponeses (os quais seriam obrigados a desenvolver atividades não-agrícolas e intensificar a produção agrícola para assegurar o pagamento desse imposto, como no caso do Japão) e a organização da atividade agrícola em bases capitalistas por parte dos próprios latifundiários, como no caso da Alemanha. A teoria rangeliana demonstrou-se defensora das medidas do primeiro tipo: a liberação dos fatores (capital e mão-de-obra) que teriam um “novo uso”, sob bases capitalistas.

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Mas esse processo de “abertura do complexo rural”, como Rangel (2005a:118)

destacou, apenas na sua primeira obra (“O Desenvolvimento Econômico no Brasil” -

1954), não seria tão simples, como teoricamente se poderia supor. Retomando as

palavras do próprio autor: “a abertura do complexo não é uma operação momentânea,

mas sim um largo processo, com altos e baixos e problemas sempre novos. Sua história

está muito longe de ser idílica. Ao contrário, está cheia de violência”.

De maneira geral, o que Rangel estava argumentando é que a expansão da

indústria incidia na necessidade de reorganizar as atividades desenvolvidas no setor

agrícola, ou seja, seria necessário realizar mudanças estruturais11 nesse setor, já que a

industrialização (e os serviços emergidos com ela, como o transporte e o comércio)

resultaria em uma “reorganização” da forma como os trabalhadores rurais vinham

aplicando seu tempo de trabalho12

. Seguindo esse raciocínio, Rangel (2005a:118)

afirmou que: “a abertura do complexo rural gera um fluxo de fatores de produção

(trabalho e capital) do setor agrícola à manufatura e aos serviços, sob, principalmente, a

forma homogênea de mão-de-obra”.

A questão agrária na teoria rangeliana:

O posicionamento de Rangel sobre a questão agrária brasileira passou por

importantes alterações entre os anos 1950 e 1980. Num primeiro momento (anos 1950),

conforme foi demonstrado, ele enfatizava a necessidade de abertura do complexo rural,

e a conseqüente simplificação (especialização) da unidade produtiva, enquanto o

problema central da industrialização brasileira. Isso porque a desagregação do complexo

rural (das atividades não agrícolas desenvolvidas pela agricultura) significaria a criação

de novos mercados, já que a indústria passaria a desempenhar o papel antes realizado

pelos camponeses em suas atividades não agrícolas. A esse respeito Rangel (2005

a:185) afirmou: 11 -Para Rangel (2005a:p.107) os “problemas do desenvolvimento” seriam inseparáveis das mudanças estruturais, como ele afirmou: “não há desenvolvimento sem essas mudanças”. E, por fim: a “mudança estrutural básica” seria a “transferência de fatores do setor agrícola para o resto da economia”, ou seja, a dissolução do complexo rural. 12- Em suma, essa “reorganização” do tempo de trabalho dos camponeses incidia na necessidade de “reeducar” essa mão-de-obra. Como o próprio Rangel (2005a:122) destacou: “nesse processo, ao mesmo tempo em que os recursos se transferem de uma economia a outra, altera-se a forma como eles são aplicados. Para ser usada em novas condições, a mão-de-obra deve ser reeducada, enquanto o capital ou acervo de bens duráveis, ao mesmo tempo, cresce e muda de forma”, com as novas condições tecnológicas da produção.

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[...] o modo específico como a agricultura se ajusta às condições

criadas pela industrialização é abandonando essas atividades

elaboradoras [desempenhadas pelos próprios camponeses], para

comprar produtos elaborados na cidade, agora que o aumento das

compras de bens agrícolas por ela resulta na criação de renda

monetária adicional para o camponês. Em conseqüência, sobra tempo,

isto é, fator trabalho para aplicar na produção de bens agrícolas13

.

A partir desse ponto de vista, desenvolvimento significava a transferência da

produção industrial da agricultura (ou a por ele denominada de “produção de bens não

agrícolas pela agricultura”) para as fábricas, deixando à agricultura somente o papel que

lhe caberia: a produção de bens primários. Nesse sentido, é que ele definiu a questão

agrária no país em 1960:

A reforma agrária, ou melhor, as reformas agrárias (porque podem ser

concebidas tantas reformas quantos sejam os problemas a resolver e

suas circunstâncias), é precisamente o meio de aumentar ou diminir a

produtividade do trabalho nas atividades secundárias e terciárias do

complexo rural, comparativamente à produtividade do trabalho

aplicado nas atividades propriamente agrícolas do complexo rural

(RANGEL, 2005b:40- grifos incluídos pela autora).

É importante reparar que dependendo da conjuntura (e tomando como base a

teoria da dualidade essa conjuntura seria definida pelas fases A (expansão) ou B

(retração) dos ciclos longos), a produtividade nas atividades secundárias e terciárias do

setor agrícola deveriam ser aumentadas ou diminuídas. Para Rangel (2005b:41), naquele

contexto, o setor agrícola tendia a “comportar-se na prática como o grande regulador do

mercado de trabalho da economia”, retendo ou “expulsando” mão-de-obra do campo

conforme as necessidades do setor urbano-industrial.

Nota-se que existe uma nítida diferença entre essas colocações e as apresentadas

nos anos anteriores. Se nos anos 1950 a ênfase da teoria rangeliana sobre a questão

agrária estava em “defender” o espaço a ser ocupado pela indústria nacional crescente

13 - Grifo do original.

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frente às atividades não agrícolas desenvolvidas no complexo rural; no início dos anos

1960, essa mesma teoria se ocupou de questões referentes ao “excedente de mão-de-

obra, que o sistema econômico [...], com suas presentes relações de produção ou

econômicas, não está em condições de absorver”14. Mas o fim continuava o mesmo:

priorizar o desenvolvimento industrial.

De acordo com ele, esse era um dos elementos que compunha a crise agrária dos

anos 1960: um excedente de mão-de-obra (essencialmente nordestina) liberada do setor

agrícola o qual os demais setores da economia não estavam sendo capazes de absorver.

Por outro lado, uma vez que a agricultura brasileira (como todos os “institutos

brasileiros”) também seria uma dualidade15, haveria um excedente de produção no “lado

moderno” (Sul do país)16.

A análise de Rangel, pautada no modelo da dualidade, via a formação desse

excedente populacional (base da crise agrária nos anos 1960) como a “forma típica

como uma determinada estrutura social, o feudalismo, entra em crise”. Isso porque, a

economia feudal, com sua “notória estagnação tecnológica”, teria no crescimento

populacional a “sua forma dominante de crescimento”. Dessa maneira, a crise do

feudalismo e, consequentemente, o desenvolvimento do capitalismo no campo, “põe em

evidência a superpopulação”17

14 - Rangel, 2005b:23.

.

Sendo assim, o problema do que fazer com os trabalhadores rurais reemergia, mas

com novas roupagens. Se nos anos 1950, Rangel se demonstrou preocupado em teorizar

maneiras de “especializar” a mão-de-obra desses trabalhadores na produção de bens

15- Segundo Rangel (2005b:33): “[...] a agricultura brasileira não e um edifício homogeneamente arcaico. Por um lado, o latifúndio que surgiu da primitiva fazenda de escravos [na Segunda Dualidade], embora caracterizado, a princípio, do ponto de vista interno, por relações de tipo nitidamente feudal, isto é, arcaico, para as presentes condições gerais da economia do país, teve sempre, e tem, cada vez mais, um lado moderno visto que, em suas relações com o resto da economia, comporta-se como uma empresa comercial, submetida às normas jurídicas correspondentes”. 16- Rangel, 2005b:41. 17 - Rangel (2005b: 61- 62) denominou esses problemas (integrantes da crise agrária - a qual também seria, nessa mesma análise, composta pela atuação dos já citados “oligopsônios-oligopólios” e da especulação da terra gerada, agravada pela inflação brasileira) de próprios ou propriamente agrários e de impróprios. Os primeiros seriam problemas de “excesso”, referentes à superprodução e à superpopulação, enquanto os últimos seriam problemas de escassez, de alguns bens agrícolas e de mão-de-obra. Ainda segundo essa análise, do ponto de vista político, os problemas impróprios poderiam ser resolvidos mediante um “consenso” (por uma legislação que poderia ser “facilmente inserida no corpo do direito brasileiro”), enquanto os próprios afetariam a coalizão de poder que vigorava até aquele momento (entre latifundiários “conservadores” e capitalistas). Daí, Rangel afirmou que a solução para a crise agrária naquele momento deveria ser iniciada pelos problemas impróprios da agricultura, os quais estariam “mais fáceis de resolver”.

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agrícolas (e não semimanufaturas e outros bens que caberiam à indústria produzir), uma

década depois, seu esforço de teorização recaía sobre o que fazer com o excedente de

mão-de-obra liberado com a propalada “abertura do complexo rural” o qual não estava

sendo “satisfatoriamente” absorvido pelo restante da economia. Mas um ponto que

permaneceu desde as análises feitas por Rangel nos anos 1950, foi a sua percepção de

reforma agrária “revolucionária”. Já naquele período, a teoria rangeliana demonstrava

uma interpretação (sobre a questão agrária) distinta da defendida pelo PCB (Partido

Comunista Brasileiro).

Segundo Rangel (2005a:187)18, “enquanto a reforma agrária russa, polaca ou

chinesa foi e tinha que ser prévia e revolucionária, no Brasil ela pode ser simultânea e

gradual”. Considerando que, para a teoria rangeliana, cada dualidade representava uma

“revolução brasileira”19, para Rangel, essa reforma agrária prévia não teria sido seria

possível, inclusive naquele contexto, dada a influência que o feudalismo (presente no

lado interno do pólo interno da 3ª dualidade) ainda possuía na sociedade brasileira.

Dessa maneira, para a teoria rangeliana, a reforma agrária (ou as “reformas

agrárias”) seria realizada “gradualmente” no decorrer de cada uma das dualidades

brasileiras20, cuja evolução resultaria no completo fim do feudalismo, até chegar ao

estabelecimento do socialismo.

Nesse sentido, é interessante perceber que o projeto político-ideológico proposto

por Rangel não contrariava, diretamente, os interesses dos latifundiários já que o fim do

“atraso” no campo (associado ao feudalismo) seria uma “imposição evolutiva” das

forças produtivas e, além disso, com a expansão do capitalismo para o setor agrícola,

haveria uma aproximação entre os interesses dos latifundiários capitalistas e os

industriais21

18 - Grifos do original.

.

Entretanto, era necessário buscar saídas viáveis aos problemas que estariam

“maduros para solução” (para utilizar uma terminologia presente na teoria rangeliana),

19 - Rangel, 2005b:697. 20- Especificamente sobre uma “reforma agrária revolucionária” no Brasil, como os comunistas apregoavam, Rangel (2005a:187) afirmou: “Não é e nem pode ser revolucionária [a reforma agrária no país] […] porque o modo específico como o camponês reage, no Brasil, quando as condições de vida se tornam insuportáveis para ele, no campo, não é a insurreição para tomar a terra ao latifundiário, mas o êxodo rural. Este é o seu protesto específico”. 21- Não se pode passar sem registrar os créditos ao prof. Dr. David Maciel (UFG) o qual, em uma de suas argüições, levou a autora à compreensão de que as proposições teóricas de Rangel, acerca da questão agrária (essencialmente no pós-1960), continham a intenção de criar um projeto de unidade entre as classes “progressistas” (semelhante à política de “unificação nacional” proposta pelos comunistas a partir de 1945), mas, nesse caso, entre os industriais e os latifundiários capitalistas.

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19

Rangel, nos bastidores do Estado, teria proposto um “esquema estratégico geral” para

“pôr em movimento a estrutura agrária através das relações externas da agricultura”22

(RANGEL, 2005b:34).

Nesse sentido, a primeira medida proposta por ele (dentro de um programa

apresentado em 1958)23 foi a “criação de um pequeno lote” para o trabalhador

assalariado da “moderna fazenda capitalista”24. Esses lotes deveriam ser constituídos

em terra pública (ou de propriedade do trabalhador) e a cargo da iniciativa do Estado, já

que se essas terras fossem do empresário agrícola, seriam refeitos os laços de

dependência pessoal, característicos do regime feudal.

Rangel acreditava que essa medida resultaria na criação de um semiproletariado

agrícola (o qual “asseguraria uma oferta regular de mão-de-obra grande agricultura

capitalista”) e, além disso, o trabalhador rural teria um “complemento de salário, sob a

forma da casa própria e da pequena produção para autoconsumo”, que ele poderia

realizar nesse lote25

22- Relembrando que a agricultura brasileira, vista sob a perspectiva da dualidade, conforme Rangel (2005b:33) demonstrou, não era um “edifício homogeneamente arcaico”, mas que combinava as relações feudais de produção, do lado interno, e relações capitalistas, do lado externo (relações essas, que prevaleciam no pólo externo da terceira dualidade, período em que essas questões foram levantas). Sendo assim, quando Rangel se referiu às relações externas da agricultura, ele estava fazendo menção às relações capitalistas. submetida às normas jurídicas correspondentes”. Sendo assim, compreende-se que quando Rangel afirmou que colocaria “em movimento a estrutura agrária através das relações externas [capitalistas] da agricultura, ele estava se referindo a mudanças que incidiriam sobre o preço (especulativo) da terra a qual, nas suas relações internas (feudais) era tida como sinônimo de poder, significado este que, conforme Rangel, deveria mudar com o completo estabelecimento das relações capitalistas de produção as quais diferentemente do feudalismo, não necessitavam de enormes quantidades de terra para realizar uma produção elevada, dado o aumento de produtividade alcançado com as inovações tecnológicas no campo.

.

23- Uma nota explicativa contida na republicação do livro “A Questão Agrária Brasileira” (Rangel, 2005b:36) informou que Ignácio Rangel foi assessor do Ministro da Viação e Obras Públicas, o militar Lúcio Meira, em 1958. Naquele ano, Rangel teria proposto ao governo (e obtido) a criação da Coper (Comissão de Povoamento dos Eixos Rodoviários). Essas medidas, específicas sobre a questão agrária (essencialmente de áreas “recém – tornadas acessíveis ela abertura de algumas rodovias”) teriam sido apresentadas em um estudo, realizado por Rangel (sob o título “Povoamento dos eixos rodoviários”), para aquele órgão e teriam sido, como a citada nota explicativa informou, encampadas pela Sudene, no Maranhão. 24 - Em 1986, no artigo “A questão da terra”, Rangel (2005b:148) reiterou a necessidade de recriar condições de auto-consumo que amenizariam, ou reverteriam em parte, o êxodo rural. Voltou a propor, então, o oferecimento de um lote (“um grande quintal”) para que a família bóia-fria estabelecesse e produzisse para próprio consumo. Na ótica de Rangel, era justamente pelo caráter sazonal da atividade agrícola que esse trabalhador teria tempo para se dedicar à essa produção. 25 - É fundamental registrar que essas discussões fizeram parte de uma deliberação da Superintendência para a Reforma Agrária (SUPRA), criada em 1962, cujo grupo de trabalho (daquele ano), contou com a participação de Ignácio Rangel, segundo afirmações do próprio autor, e estabelecia um projeto que defendia a distribuição de “pequenas unidades de subsistência” aos trabalhadores rurais. De acordo com Rangel (2005a:741), essas discussões resultaram em um anteprojeto de lei que, em 17 de janeiro de 1962, teria sido enviado ao então presidente do Conselho de Ministros, Tancredo Neves. No capítulo XI – “Dos trabalhadores rurais”, ainda de acordo com Rangel, haveria o seguinte artigo: “Art.39. Em casos

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20

A segunda medida proposta foi a “democratização” das formas de comércio dos

produtos agrícolas, permitindo um contato direto entre produtor e consumidor, anulando

a atuação dos intermediários os quais, atuando através dos denominados “oligopsônios-

oligopólios de bens agrícolas”26, estariam fixando “arbitrariamente os preços e

condições de comercialização para o produtor” e impõe “preços extorsivos” ao

consumidor. De acordo com Rangel (2005b:35), a base dessa medida estaria, portanto,

em uma “eficaz política de preços mínimos ao produtor agrícola” (a qual incluiria uma

reorganização do crédito agrícola, a revisão da política fiscal e a expansão da rede de

silos e armazéns).

Por fim, a terceira medida proposta por Rangel para “por em movimento a

estrutura agrária brasileira”, refere-se ao papel do Estado nesse processo. Nessa

perspectiva, a ação estatal não deveria agir, no que se refere à mudança da estrutura

agrária, mediante o “comprometimento de fundos públicos na compra da terra”, mas,

dispondo de suas próprias terras ou “induzindo o proprietário rural a fazê-lo” (através da

intervenção do Estado na questão do preço da terra)27

excepcionais e nas regiões de predominância da monocultura, em que ocorrer ocupação estacional de mão-de-obra, a Superintendência para a Reforma Agrária (Supra) poderá criar, organizar, controlar e distribuir, entre os trabalhadores rurais, pequenas unidades de subsistência, próxima das plantações e independentes da propriedade”.

.

Quanto à solução para as questões referentes ao excedente populacional, ao final

dos anos 1950, Rangel (2005b:29-30) defendeu a emigração de camponeses nordestinos

para o Maranhão e Goiás como solução viável naquele momento, já que “nessas novas

províncias está nascendo um Brasil completamente novo, que não é nem nordestino

[“arcaico”] nem sulista [“moderno”], mas que é nordestino e sulista ao mesmo tempo”.

Em suma: Rangel (2005b:69) defendeu a idéia de que, naquele contexto, uma mudança

26 - Conforme esclarece o autor (2005a:623): “Oligopsônio: privilégio de compra exercido por alguns; oligopólio: privilégio de venda exercido por alguns ou por poucos”. Essa prática é considerada por Rangel uma das anomalias responsáveis pela inflação brasileira, segundo se observa mais detalhadamente na obra: “A inflação brasileira” (1963). 27 - De acordo com Rangel (2005b:36), se o Estado interviesse como comprador de terra nesse processo, ele inibiria um “movimento já iniciado” de queda da taxa de valorização da terra e estaria “embaraçando a mudança de estrutura”. Segundo a argumentação de Rangel, a pecuária comercial (que substituiu o latifúndio agrícola primitivo, sendo, portanto a primeira forma de organização capitalista da agricultura), elevou a produtividade do trabalho, mas deprimiu a produtividade da terra, resultando em uma elevação da renda da terra, já que ele havia se tornado escassa. Mais com a incorporação de novas áreas, propiciada por novas tecnologias agrícolas, houve um aumento da oferta de terras e uma diminuição da demanda, “donde se infere que há uma tendência a queda de preço da terra”. Entretanto, dada a inflação brasileira, o “título fundiário” acabou se tornando um “meio de defesa da poupança contra a erosão inflacionária”, o que manteve a demanda (e a tendência de alta de preço da terra. Sendo assim: “se o Estado satisfaz certa parcela da demanda agrícola de terra, simultaneamente resolve o problema da absorção de parte da superpopulação rural e encaminha a solução do problema agrário geral, via preço da terra”.

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21

da estrutura agrária deveria começar pelas “áreas de nova colonização”.

Nos anos 1980, a crise agrária, detectada por Rangel duas décadas antes, teria

passado por uma “transformação radical”, convertendo-se em um fenômeno urbano e

“não mais basicamente rural” (como nos anos 1960), ela teria se tornado uma “crise de

suburbanização”28. Naquele contexto Rangel (2005b:105) destacou que: “a verdade é

que a mão-de-obra (população) se urbaniza, não porque a cidade dela careça para algum

emprego útil, mas simplesmente porque a economia camponesa de autoconsumo, em

que estava inserida, desagregou-se”.

A diferença essencial dessa “nova crise agrária” estaria no fato de que nas décadas

anteriores a crise agrária se intensificava nos momentos de recessão econômica (fases B

dos ciclos longos e curtos), amenizando-se nas fases A (de expansão), já nos anos 1980,

a crise permanecia mesmo nas fases de prosperidade econômica, por isso Rangel

enfatizou que ela havia se tornado crônica.

Chama a atenção a diferença do tratamento dado por Rangel para a questão do

tempo de trabalho do camponês entre os anos 1950 – 198029

28 - Essa idéia foi apresentada por Rangel (2005a:576), em uma nota explicativa acrescentada, no ano de 1978, à terceira edição de “A inflação brasileira”.

. Se, em princípio, a

preocupação de Rangel estava no fato de que a produção realizada pelo complexo rural

ocupava parte do papel a ser desempenhado pela indústria, atravancando seu

desenvolvimento; três décadas depois (e já a partir dos anos 1960) a questão se invertia:

agora, era a “não-ocupação completa” do tempo de trabalho do camponês que o afligia.

O que ocorreu é que a tão apregoada “dissolução do complexo rural”, e a

penetração do capitalismo no campo, resultaram em problemas urbanos indesejáveis,

que a teoria rangeliana, ou qualquer outra, estaria muito longe de poder resolver. Mas

aqueles argumentos em defesa do fim da “produção de bens não agrícolas por parte da

agricultura”, se considerados dentro de um debate que, entre os anos 1950 e 1960,

discutiu a necessidade de “reorganização” do setor agrícola em prol do crescimento

industrial, podem ser considerados frutíferos, uma vez que os fins que eles defendiam

foram alcançados.

29- Deve-se destacar, nesse sentido, um aspecto comum à teoria rangeliana em todo esse período (1950 -1980): a prioridade era a continuidade do processo de “desenvolvimento” econômico. Esse posicionamento poder ser visto, por exemplo, no artigo “A questão da terra”, publicado em 1986, no qual Rangel (2005b:153) enfatizou: “trata-se de resolver esse problema [dos efeitos desencadeados pelas mudanças nas bases da economia natural, sobretudo a marginalidade e criminalidade] devolvendo ao camponês as condições para a produção natural, mas fazê-lo de tal modo que isso não implique fazer a produção agrícola para o mercado retroceder às velhas condições econômicas e tecnológicas”.

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22

A teoria rangeliana e o debate sobre a funcionalidade da agricultura brasileira:

O debate em torno da funcionalidade da agricultura brasileira foi retomado por

Gonçalves Neto (1997:51-114) o qual esclareceu que as discussões sobre o setor

agrícola brasileiro, realizadas entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, foram

polarizadas em dois grupos: os que defendiam a “funcionalidade” da agricultura na

economia nacional e os que viam a agricultura como “entrave” ao desenvolvimento

econômico do país.

O primeiro grupo defendia a idéia de que a “capitalização” do campo resolveria a

questão do atendimento da demanda do setor urbano-industrial por produtos agrícolas;

já o segundo grupo, apontava a reforma agrária como fundamental para uma

reorganização do setor e, a partir dela, um aumento efetivo de produção (e

produtividade) para atender à referida demanda urbano-industrial, papel que o latifúndio

seria incapaz de desempenhar.

Gonçalves Neto (1997:66) incluiu Rangel no primeiro grupo. Mas o que se

observa na teoria rangeliana, é que embora ela defendesse uma “capitalização” do

campo (a partir da “abertura do complexo rural”), ela não deixava de defender também

a necessidade de uma reforma agrária. O que ocorre é que, a partir de uma leitura

dualista da realidade brasileira, Rangel afirmava que essa reforma agrária (ou “quantas

fossem necessárias”) ainda aconteceria, mas seria resultante de um processo lento e

gradual, como resultado do avanço das forças produtivas. Sendo assim, se numa

primeira leitura a teoria rangeliana (em relação ao referido debate sobre a questão

agrária) pode ser inserida no grupo que defendia a “funcionalidade” da agricultura (ou

seja, de que o setor agrícola seria capaz de desempenhar as funções que lhe eram

“requeridas” pelo setor urbano-industrial, bastando, para isso, sua “capitalização”), por

outro lado, percebe-se que essa teoria não excluía a defesa de uma reforma agrária, o

que a inseriria no grupo dos que consideravam a agricultura como um “entrave” ao

desenvolvimento econômico do país. Nesse sentido, a teoria de Rangel ocupou, de fato,

uma posição singular.

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23

Considerações Finais:

A teoria proposta por Ignácio Rangel constitui uma leitura histórica do processo

de crescimento econômico brasileiro e não se encerra numa demonstração da

historicidade dos fatos que apresentou, mas ela é, essencialmente, uma tentativa de

compreender a dinâmica da economia do país, com a finalidade visível de nela intervir.

Em linhas gerais, as análises apresentadas por Rangel teorizavam medidas que

pudessem impulsionar o desenvolvimento econômico do país, desfazendo os “pontos de

estrangulamento” que fossem apresentados no decorrer desse processo.

Considerando essa intenção ficam nítidas as leituras apresentadas por Rangel

acerca da questão agrária brasileira. Em um “modelo de Estado” no qual a

industrialização ocupa o papel primordial, as medidas propostas para o setor agrícola

foram sempre no intuito de sustentar o crescimento industrial do país. A reboque do

setor urbano-industrial, a agricultura brasileira foi pensada pela teoria rangeliana no

sentido de buscar soluções que impulsionassem (ou ao menos não obstacularizassem) a

indústria nacional.

Nessa teoria, Rangel definiu os “papéis sociais” para os diferentes grupos sociais

(os trabalhadores rurais e urbanos, os industriais, os intelectuais) e para o próprio

Estado, visando a manutenção do tão propalado crescimento econômico. Na abordagem

de Rangel, diferente da comunista, a classe trabalhadora estaria muito longe de ser o

personagem central na condução do Estado socialista o qual, aliás, não nasceria de uma

revolução dos trabalhadores, que tomariam o controle decisório, mas de revoluções

graduais, resultantes da dinâmica das dualidades brasileiras.

Essencialmente, a teoria rangeliana representa o esforço de elaboração de um

projeto que defendia os interesses de uma classe, a burguesia, à qual caberia a condução

(direta ou indireta) das ações políticas.

Em suma, esse “modelo de governo” proposto por Rangel não previa um

confronto de classes, mas uma associação entre burguesia e latifundiários capitalistas, já

que na teoria rangeliana da dualidade, o “atraso” a que o setor agrícola estaria

submetido (e todos os “entraves” ou “pontos de estrangulamento” gerados por ele) teria

um fim gradual e evolutivo, mediante o desenvolvimento das forças produtivas. Nessa

análise, a sociedade brasileira deveria cooperar com o desenvolvimento do país o qual

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24

priorizou o setor urbano-industrial em detrimento do agrícola.

***

BIBLIOGRAFIA

GONÇALVES NETO, Wenceslau. Estado e agricultura no Brasil: política agrícola e

modernização econômica brasileira 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997.

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25

_______________ “Introdução ao Desenvolvimento Econômico Brasileiro (1955)”, In:

Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 2º vol.pp.129-202.

________________ “O desenvolvimento econômico no Brasil (1954)”. In: Obras

Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 1º vol, pp.39-126.

________________ “Textos sobre a Questão Agrária (1955-1989)”. In: Obras

Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 2º vol, pp.15-162.

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AS CONTRIBUIÇÕES DE IGNÁCIO RANGEL PARA O PENSAMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO

Ms. Antônio Gonçalves Rocha Júnior

Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás

Resumo

Este artigo discute sobre o pensamento agrário do economista brasileiro Ignácio Rangel. Ele formulou uma original explicação, formulando a teoria da renda Quarta e da importância da questão financeira na compreensão dos problemas agrários. Ignácio Rangel formulou algumas questões que merecem ser discutidas hoje. O objetivo do artigo é apresentar as contribuições do economista para o entendimento da questão agrária brasileira. Palavras-chave: Título.

THE CONTRIBUTIONS OF IGNÁCIO RANGEL TO BRAZILIAN AGRARIAN THOUGHT

Abstract

This article to discuss about the agrarian thinking of the Brazilian economist Ignácio Rangel. He formulated an original explanation formulating the theory of Fourth Income and of the importance of financial issue in understanding of the agrarian problems, Ignácio Rangel formulated some issues that deserve to be discussed today. The purpose of the article is to introduce the economist's contributions to the understanding of Brazilian agrarian issue. Keywords: Title.

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1. Introdução

Ignácio Rangel foi um importante economista brasileiro e que foi pouco

analisado pelos historiadores. Desenvolveu uma importante teoria que explica o

movimento da economia e da sociedade brasileira. Nessa tentativa de uma explicação

totalizante da economia ele apresentou teses inovadoras para o entendimento da

estrutura agrária brasileira.

Ele foi influenciado inicialmente pelo marxismo, recebido do PCB. Mas ele

rompeu suas relações institucionais com o Partido Comunista na metade da década de

1940, dando início a uma nova etapa em seu pensamento. Depois desse afastamento do

comunismo brasileiro ele se aproximou do pensamento nacional-desenvolvimentista no

início da década de 1950, quando conheceu Rômulo de Almeida. Esse foi o período em

que passou a participar da burocracia estatal, assumindo destacados cargos em vários

governos, mas trabalhando centralmente no BNDE. A partir desse momento ele

desenvolveu uma original produção teórica, utilizando-se livremente dos conceitos do

marxismo, do keynesianismo e de outras correntes econômicas, formulando uma nova

interpretação sobre os problemas agrários brasileiros.

Em 1952 ele passou em um concurso no BNDE e iniciou o trabalho na

instituição. Foi em sua atividade profissional que passou a entender a economia

brasileira de forma profunda, por dentro de um dos principais órgãos que visava

solucionar o problema do crédito interno, do financiamento de projetos econômicos, ou

seja, de resolver alguns gargalos criados diante do crescimento da economia nacional.

Logo em seguida, em 1953, escreveu o seu principal livro, A Dualidade Básica da

Economia Brasileira, dando início a construção de uma síntese de sua nova concepção

de mundo e uma nova visão sobre a estrutura agrária brasileira. Durante todo esse

período, na década de 50, ele teorizou sobre o processo de industrialização em vigência

no país, interpretando o sentido do desenvolvimento econômico e histórico, em que

analisou o papel da agricultura e de como foi possível ocorrer uma industrialização sem

o desencadeamento de uma prévia e necessária reforma agrária. Nos anos 60, com o

afloramento da crise econômica ele passou a estudar sobre a teoria das crises

capitalistas, compreendendo o caso particular da crise brasileira (definindo-a como uma

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28

crise de realização)1

Mas essa síntese de que a industrialização e o capitalismo poderiam se

desenvolver sem uma prévia e necessária reforma agrária foi fruto de um processo de

amadurecimento intelectual, motivado por um sentimento de que era necessário

encontrar um caminho alternativo diante da correlação de forças desfavoráveis para

aqueles que pretendiam modificar a estrutura agrária brasileira. O seu pensamento

agrário foi se formando com base no rompimento de suas idéias propugnadas nos anos

30, no calor dos acontecimentos insurgentes do levante de 35, quando os comunistas

tentaram tomar o poder no Brasil. Rangel nos lembrou por reiteradas vezes durante a

sua vida, que durante a década de 30 defendia que a Revolução Agrária seria uma

necessidade fundamental para o desenvolvimento do capitalismo nacional brasileiro,

mudando nos anos 50 de posicionamento e não reconhecendo esses impedimentos ao

desenvolvimento do capitalismo no Brasil, conforme defendia a maioria do pensamento

marxista e desenvolvimentista brasileiro do período. Em um texto de 1980

, principalmente a sua manifestação através da inflação, entendendo

o papel da estrutura agrária nesse processo de crise. A partir dos anos 70, com os

conceitos fundamentais de sua teoria já elaborados nas décadas anteriores, passa

analisar os novos problemas surgidos na sociedade brasileira, cabendo apenas

complementar pontos ainda não suficientemente abordados do núcleo de seu

pensamento formulado na década de 50 e 60. Toda essa produção realizada durante

desde a década de 50 até a década de 90 era um claro debate com o pensamento agrário

formulado pelos comunistas brasileiros.

2

em que

discutiu a relação entre a questão nacional, a industrialização e a questão agrária, nos

demonstrou que o seu pensamento e o dos marxistas brasileiros dos anos 30 possuíam

esse mesmo sentido. Assim:

Com efeito, muitas das precondições para a industrialização – isto é, para a implantação do capitalismo industrial ou maduro – estavam criadas [no Brasil dos anos 30]. A Depressão Mundial imprimia a essa tendência um vigoroso impulso. Faltavam, entretanto, certas “condições institucionais”, como hoje diríamos, “reformas de base”,

1 Para Ignácio Rangel a crise brasileira possui as suas particularidades, é influenciada pelos movimentos

da economia mundial, mas possui uma dinâmica própria. Da mesma forma ele interpretava o problema da inflação, que não é um fenômeno econômico que se manifesta da mesma forma em todos os países e em todos os casos, sendo necessário analisar as especificidades de cada país e de cada caso.

2 RANGEL, Ignácio. Revisitando a “Questão Nacional”. Revista Encontros com a Civilização Brasileira, V. 27, setembro de 1980.

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como teríamos dito há quatros lustros, ou “revoluções” como dizíamos nós, os protomarxistas brasileiros da década de 1930, notadamente, a “revolução agrária” e a “revolução antimperialista”. É que estávamos persuadidos, como o sociólogo italiano Enrico Ferri, que, na vida real, só os revolucionários praticam reformas; que os reformistas conservam o status quo; e que os conservadores recuam. Que se possa caracterizar um quadro inverso deste, com reacionários – e não apenas conservadores – praticando reformas e promovendo “revoluções”, isso não o sabíamos ainda. (Rangel, 1980, pág. 115).

Essa concepção sobre o papel da estrutura agrária e sobre o processo

revolucionário nas regiões coloniais e semicoloniais foi consesual durante um longo

período no movimento comunista internacional. Essa concepção foi difundida no

pensamento social latinoamericano pela Internacional Comunista3, que exerceu enorme

influência sobre alguns intelectuais. Esse pensamento foi a base da construção do

pensamento agrário do PCB, que é onde se localiza a base teórica da construção do

pensamento agrário do economista maranhense. Posteriormente ele se insurgiu contra

esse entendimento da questão agrária brasileira e demonstrou um caminho alternativo

para essa compreensão difundida pelo PCB e pela Internacional Comunista. Em um

texto de 19884

ele reafirmou essa mesma questão:

Contrariamente ao que nós, revolucionários brasileiros dos anos 1930, julgávamos, a industrialização do Brasil seria possível, mesmo sem reforma agrária – no sentido da distribuição dos latifúndios em pequenas propriedades familiares. A via prussiana ou junker, mutatis mutandis, que substitui o latifúndio feudal pelo latifúndio capitalista, não apenas possibilitava a industrialização do país como permitia imprimir a essa industrialização um impulso extraordinário e energético. (Rangel, 2005, pág. 1988).

É dessa forma que Rangel definiu o seu pensamento agrário, como uma

contraposição ao pensamento agrário pecebista dos anos 30. Quando Bielschowsky

(2008) afirma que a leitura de suas obras completas nos dá a impressão de um debate

com o pensamento comunista brasileiro, podemos afirmar a mesma questão sobre o seu

pensamento agrário do autor, que também é um debate com o marxismo brasileiro. Ele

desenvolveu a partir dos anos 50 um pensamento crítico a essa visão pecebista sobre a

3 Principalmente o VI Congresso que instituiu a bolchevização de todos os Partidos Comunistas. As

definições políticas da Internacional, como o caráter das revoluções nas colônias e semicolonias, deveriam ser adotado por todos os membros da Internacional Comunista.

4 Texto publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 16 de novembro de 1988. RANGEL, Ignácio. Fim de Linha (Obras Reunidas). Editora Contraponto: São Paulo, 2005.

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30

estrutura agrária. Algumas de suas contribuições serão objeto de discussão do presente

artigo.

1. A Teoria da Dualidade/Ciclos.

Diferentemente da visão do PCB, a questão agrária era vista como uma

questão muito mais política do quê econômica em Ignácio Rangel. Ela dizia respeito ao

modelo de desenvolvimento do capitalismo a ser implementado no país. Ele concordava

que para se ter um país com uma menor taxa de exploração, ou seja, de menor taxa de

extração da mais-valia, era preciso ocorrer uma necessária reforma da estrutura agrária.

Mas mesmo se não ocorresse essa reforma, a estrutura concentrada não necessariamente

seria um impeditivo para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Na verdade, a

única diferença no processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, era que a

mudança da estrutura agrária possibilitaria uma maior distribuição de renda, enquanto o

desenvolvimento do capitalismo sem reforma agrária, que era o caso adotado no Brasil,

possibilitava a burguesia industrial a obtenção de uma das maiores taxas de exploração

do mundo5

O regime “democrático” instalado no país durante o pós-guerra perseguiu o

PCB e combateu os movimentos populares. Essa situação de repressão geral fez com

que Ignácio Rangel se tornasse cético sobre as condições da aliança operário-camponesa

conseguir realizar as transformações “necessárias” para o país. Passou a acreditar que as

forças populares não tinham condições de realizar tal tarefa. Enquanto essa tarefa não

era capaz de ser respondida pelas forças populares, a estrutura agrária continuava a

responder aos estímulos do desenvolvimento do capitalismo, se diversificando,

aumentando a produtividade, inserindo novas tecnologias, mas interagindo através de

um lado moderno e um lado arcaico, em unidade de contrários, já que o próprio

processo de industrialização se fazia nos marcos do “latifúndio feudal”, aumentando as

desigualdades sociais através da elevada taxa de exploração global do sistema.

.

5 Francisco de Oliveira critica o desdobramento político dessa análise de Rangel. Para Oliveira, Rangel

defenderá que o Estado Populista foi redistributivista, já que esse tentará através de inúmeras medidas, sendo a mais característica a dos subsídios do transporte dos operários urbanos, evitou que a taxa de exploração se limitasse ao nível da substência, apesar da elevada taxa de exploração do sistema. Para Oliveira o Estado Populista não foi responsável por nenhuma medida redistributivista, fazendo na verdade uma política de compressão salarial, fazendo com que a taxa de exploração do Brasil fosse uma das mais altas do mundo. Para ele, as medidas de subsídio do transporte, na verdade significava uma contrapartida do Estado para os empresários, que não precisariam assim, custear essas despesas.

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31

Por isso, quando ele defendia que o capitalismo podia se desenvolver sem

uma reforma agrária, ele não estava justificando e nem pregando que a reforma agrária

não seria necessária e benéfica para os trabalhadores e para a economia nacional.

Afirmava apenas que ela mudaria a forma em que ocorreria esse desenvolvimento do

capitalismo e permitiria uma distribuição da renda nacional entre as classes sociais.

Claro que Rangel considerava necessário reformar a forma de posse da propriedade da

terra e defendeu inúmeras particularidades de como devia ser essa reforma agrária. Ela

não deveria ser geral e irrestrita, tinha que seguir certos padrões para que pudesse

permitir a continuidade do desenvolvimento capitalista, pois ele acreditava que até

mesmo uma reforma da estrutura agrária que não estivesse de acordo com a marcha de

desenvolvimento do capitalismo nacional poderia ser um fator de retardamento do

desenvolvimento das forças produtivas. Ele defendia que o modelo de reforma agrária

defendido pelo PCB e pela maioria da esquerda brasileira, podia ter um efeito inverso

ao de sua propaganda, servindo, se fosse mal estruturado e seguisse um modelo baseado

na desapropriação generalizada dos latifundiários capitalistas e feudais, a interrupção

desse processo de desenvolvimento e a consequente estagnação econômica do país.

A tese de Rangel é muito importante, pois ela rompe com o padrão de

explicação até então proposto pelo movimento comunista brasileiro, baseado nos

programas pecebistas. Ele passou a defender uma via alternativa de mudanças no campo

em relação ao programa agrário da maioria da esquerda. Como não existia um

movimento popular forte suficientemente para realizar as reformas necessárias, e isso

foi ficando mais evidente para ele com a derrota do movimento popular no primeiro de

abril de 1964, era necessário encontrar um meio que pudesse forçar as mudanças dentro

do quadro possível nesse momento, fazendo com que o desenvolvimento econômico

nacional continuasse. Implicava achar uma solução que não necessariamente estivesse

fundada na intervenção da luta de classes e das forças populares. A única solução que

ele encontrou estava baseada no aprofundamento das relações capitalistas no país.

Rangel passou a defender que o problema agrário era eminentemente um problema

financeiro, a ser resolvido com o desenvolvimento do mercado de terras, através do

fortalecimento de um sistema financeiro nacional, que seria a única condição para

quebrar o monopólio feudal da terra, através da flutuação do preço da terra6

6 O fortalecimento do mercado de terras permitiria uma flutuação do preço da terra, que ao mesmo

tempo em determinados momentos podia aumentar, em outros podia cair, fazendo com que inúmeras

. Ele

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32

concluía:

A ruptura formal da velha estrutura agrária é, assim, mera possibilidade que não chega a constituir-se em probablidade, porque depende da efetivação desse refluxo do êxodo rural, e é natural que os ex-camponeses e atuais operários ofereçam resistência, aí onde estão, nas cidades, isto é, na defesa das posições da indústria nacional e no apoio às medidas tendentes à expansão desta. A posição atual das forças políticas fundamentais aponta, portanto, noutro sentido, isto é, no sentido da mudança da política externa, como de fato está ocorrendo, e como era natural e lógico que ocorresse (Rangel, 2005, pág. 50 e pág. 51).

Para chegar às conclusões acima esboçadas, Rangel passou por um longo

percurso de pesquisas e estudos. Para ele, a sua grande contribuição para a compreensão

da realidade nacional era a teoria da Dualidade Básica da Economia Brasileira. Por isso,

a evolução do seu pensamento agrário só pode ser entendida através do núcleo

fundamental (dualidade/ciclos) de sua teoria. Vejamos como ocorreu a evolução de suas

idéias agrárias. Na maioria dos seus estudos a agricultura é um tema recorrente e

importante, por isso a análise resumida de alguns conceitos centrais do seu pensamento

agrário serão analisadas daqui em diante.

A base do pensamento de Ignacio Rangel é o conceito de Dualidade Básica

da Economia Brasileira. Ele defendia que o conceito de Dualidade Básica era essencial

para o entendimento científico das leis que regiam o movimento histórico sociedade

brasileira. Rangel chegava ao ponto de afirmar que sem a sua plena compreensão e

manuseio seria impossível compreender a peculiaridade da economia e da sociedade

brasileira.

Ele também dava o mesmo grau de importância ao conceito de ciclos

econômicos, pois o movimento da dualidade básica dependia dos seus desdobramentos.

Pois a cada ciclo um dos pólos da dualidade tende a se modificar, transformando as

classes, o Estado, a economia, a sociedade e a cultura brasileira. Afirmou que existiam

duas formas de ciclos econômicos no Brasil, os ciclos econômicos médios ou

juglarianos brasileiros, que estavam relacionados a causas endógenas, durando cerca de

dez em dez anos, e os ciclos de Kondratieff ou ciclos longos, que representam o

movimento da economia mundial.

pessoas pudessem ter acesso a terra através da compra no mercado, o que quebraria o monopólio legal e institucional, liberando as terras do país para a lei da oferta e da procura.

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No ano de 1953 ele escreveu a sua tese sobre a dualidade básica, mas

publicou com o apoio do Iseb apenas em 1957. A dualidade básica era a peculiaridade

da formação social do Brasil. Porém, a lei da dualidade, como todas as outras leis,

possuia uma historicidade, sendo possível falar dela apenas em determinado lugar e em

determinado tempo histórico. Esse é um importante ponto para ser compreendido em

Rangel, pois ele defendia que a validade da interpretação de uma lei econômica podia

variar de sociedade para sociedade, sendo necessário analisar a sua peculiaridade, o seu

“bom senso”. Rangel lembrava o “bom senso” defendido pelo Barão de Mauá. A tese da

dualidade era uma busca de interpretar o Brasil pelo Brasil, de formular uma nova tese

sobre a ótica do pensamneto científico nacional. O livro A Dualidade Básica da Economia Brasileira,

publicado em 1957, foi o introdutor dessas novas idéias, já sintetisadas em 1953.

A Dualidade Básica significava o movimento dos modos de produção

fundamentais existentes no interior e no exterior da formação social brasileira. Esse

modo de produção particular ao caso brasileiro, o modo de produção dualista, só

poderia ser compreendido tomando enquanto análise a distinção dos seus pólos e dos

seus lados. Essa seria a chave para a explicação de toda a economia nacional e da

história brasileira, da coalizão de classes que administra o Estado, entre outros assuntos

centrais na definição das características desse modo de produção.

Resumindo: o conceito de dualidade básica formulada por Rangel para

facilitar a exposição, entende-se que a dualidade básica signifcava um modo de

produção particular existente no Brasil, que possuia dois pólos e dois lados distintos e

complementares. Existia um pólo avançado e um pólo atrasado na economia,

representando um pólo capitalista e um outro pólo pré-capitalista. Cada um desses pólos

possuía um lado interno e outro externo. Cada um desses pólos e desses lados eram a

representação de um modo fundamental de produção, que estavam em uma relação de

unidade de contrários. Portanto, existiam várias economias em relações contraditórias

que davam origem a um único modo de produção, chamado por ele, de modo de

produção dualista, que organizado dois a dois, estabelecia uma relação central entre o

lado interno e o externo em cada um dos pólos, conforme o modelo abaixo:

Esquema Geral da Dualidade Básica

• Pólo Interno: (Lado Interno/ Lado Externo)

• Pácto de Poder: (Sócio Maior e Sócio Menor)

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• Pólo Externo: (Lado Interno/ Lado Externo)

Na tentativa de fundamentação empírica para a sua teoria Rangel iniciará

uma nova periodização e interpretação da história do Brasil. Ele defendia que desde o

início do processo de colonização o Brasil foi se formando enquanto uma dualidade,

pois as sociedades primitivas ameríndias se deparavam com o capitalismo comercial

europeu. Essa nova formação social que surgia não eliminava a sociedade primitiva

ameríndia e nem conseguia impor completamente os seus traços capitalistas. Mas essa

foi uma dualidade inicial, que não era contada na sua peridiozação da história nacional.

A primeira dualidade ocorreu durante o período colonial. O pólo principal era o

escravismo, que tinha um lado interno e um externo, e o pólo secundário era o

capitalismo mercantil, que tinha um lado interno e um lado externo. As classes

dominantes principais em cada um dos pólos formava a dualidade que administrava o

Estado, sendo os sócios maiores os senhores-barões de escravos e os sócios menores a

burguesia mercantil. Na segunda dualidade (1870 a 1920) o pólo principal era o

feudalismo, que tinha um lado interno e um lado externo, e o pólo secundário era o

capitalismo mercantil, que possuía um lado interno e um lado externo. Os sócios dessa

dualidade eram a burguesia mercantil e os fazendeiros-latifundiários. Na terceira

dualidade (1920 a 1973) o pólo principal era o capitalismo mercantil, possuindo um

lado interno e um lado externo, e o pólo secundário era o capitalismo industrial, que

possuía um lado interno e um lado externo. Os sócios dessa segunda dualidade eram os

latifundiários como sócios maiores e a burguesia industrial como sócia menor. A partir

de 1973 ele acrediva que o Brasil passava a ingressar na quarta dualidade. O pólo

principal era o capitalismo industrial, com um lado interno e um lado externo, e o pólo

secundário era o capitalismo financeiro, com um lado interno e um lado externo. A

coalizão que administra o Estado durante essa dualidade, seriam os capitalistas

industriais com os capitalistas financeiros, sendo os sócios maiores e os sócios menores

respectivamente. Mas até o ano de 1981 o Brasil ainda não tinha passado para a quarta

dualidade. Mas as suas bases já estavam lançadas.

A teoria da dualidade rangeliana defendia que existia no interior da

economia brasileira a interação de um modo de produções, um antigo em processo de

superação, e de outro moderno, que representava o elemento novo, existindo um “lado a

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lado e agindo umas sobre as outras, todas as formas que a história clássica registra” (Rangel, 2005, p. 291),

desde o período colonial aos nossos dias, através de uma sucessão e interação entre os

modos de produção fundamentais existentes no interior da economia brasileira. Na sua

visão, enquanto a história universal e européia havia levado milênios para avançar do

comunismo primitivo ao escravismo, a economia brasileira levou apenas alguns séculos

para realizar a tarefa semelhante, através da gradual aproximação dos pólos da

dualidade. Enquanto a transição na história universal do escravismo para o feudalismo

durou vários séculos, no Brasil durou apenas alguns séculos. Da mesma forma se dava a

transição do feudalismo para o capitalismo no Brasil e do capitalismo industrial para o

capitalismo financeiro, que representava um processo muito mais curto do que o

ocorrido na história universal da humanidade. A sua teoria da história não era possível

defendia que nenhuma formação social podia criar um modo de produção independente

dos modos de produção fundamentais (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo,

capitalismo e socialismo). A formação social poderia retroceder de um modo a outro,

mas todas seguiam o esquema de evolução seguindo a sucessão dos modos de produção

fundamentais. Assim, a evolução histórica do Brasil seguia essa mesma ordem da

história universal, de acordo com os seus pólos interno e externo, cada um com os seus

lados internos e externos. Rangel afirmava:

Admitindo que a substituição de uma estrutura socioeconômica por outra não seja arbitrária, mas resulte, essencialmente, do desenvolvimento das forças produtivas, obrigadas a quebrar o invólucro no interior do qual se desenvolveram até determinado momento, a caracterização da economia brasileira como dualidade comporta importante corolário, a saber: que o aspecto interno e o externo podem envelhecer em momentos diferentes ou, noutros termos, que a substituição de uma estrutura por outra não se processará obrigatoriamente no campo interno e no externo ao mesmo tempo (Rangel, 2005, p. 302)

Por não ser arbitrária e nem mecânica é que ele defende que a sucessão dos

modos de produção ocorrem de acordo com o ciclo econômico. Aqui ele aponta para a

importância da teoria dos ciclos econômicos na história nacional, sendo o economista

pioneiro nesse tipo de abordagem da economia brasileira.

Dividia os ciclos em ciclos curtos e nos ciclos longos. O Ciclos curtos

durariam poucos anos ou uma década enquanto os ciclo longo vivia vários ciclos curtos.

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Segundo a teoria de Kondratieff existiam duas fases no ciclo longo, uma ascencional e

uma descencional. Cada uma delas possui uma fase a e b. Rangel é influenciado pela

visão Schumpeteriana dos ciclos econômicos, pois o ciclo deve ser visto através da

variação nos termos de intercâmbio e são consequência de processos de mudança de

tecnologia presente dentro do capitalismo. Assim, a cada movimento dos ciclos longos

levava a mudanças na Dualidade Básica. A teoria dos ciclos econômicos

complementava a teoria da Dualidade Básica.

Da mesma forma que ele defendia a existência da Dualidade Básica na

economia, também defendia a existência dessa lei no que ele denominava pelo conceito

de institutos, ou seja, as instituições existentes no interior da economia nacional

(trabalho, capital, latifúndio, a indústria). Ele defende que existe uma relação no interior

da economia, onde cada um dos institutos que compõem a formação social brasileira

deviam ser estudados como uma dualidade. Portanto, a dualidade não se limitava ao

conjunto da economia nacional, ela se expressava nos institutos.

Cada um desses institutos deviam ser definidos pelas leis que os regiam

internamente e externamente. Por exemplo, o latifúndio era um misto feudal-

capitalista. Em suas relações no interior estavam presentes as relações feudais,

de parceria, entre outras. Por outro lado, na sua relação com o setor resto do mundo,

esse latifúndio agiria como uma moderna empresa capitalista. O latifúndio

possuía duas contabilidades sociais, que interferiam na formação de seus preços

e na sua própria dinâmica com a economia nacional. Como defendia que a

economia funcionava através de dois ramos evolutivos no processo de

desenvolvimento hitórico, ou seja, as fases do ciclo longo, impunha os rítimos

de mudanças e interações entre os lados e pólos dos institutos.

4. A Questão Agrária em Ignácio Rangel.

O pensamento agrário de Rangel produzido durante a década de 50

demonstra uma posição conflitante com a linha política formulada pelo PCB e por Celso

Furtado, produzindo, com isso, uma nova forma de encarar o problema agrário durante

essa década, extremamente peculiar a ele mesmo, pois não foi adotada por nenhum

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grupo político7

Mesmo após o seu rompimento com o Partido Comunista, inova em sua

dissertação de 1954, ao utilizar conceitos marxistas em uma análise cepalina. Tomando

como base, segundo ele, o estudo de Lenin, O Desenvolvimento do Capitalismo na

Rússia

do Brasil durante o período e nem mesmo nas políticas estatais para a

agricultura. Mas o aspecto central desse período é o de domonstrar que a agricultura e o

latifúndio arcaico não representam um entrave para a acumulação de capital e para o

desenvolvimento da industrialização no país.

8

Na sua aproximação com o Iseb e os seus economistas, influencia Gilberto

Paim

, passa a estudar a dissolução do antigo modelo agrícola pelo desenvolvimento

do mercado interno e o aumento da divisão social do trabalho, que permite a

diversificação e desestruturação desse antigo modelo agrário. Sobre a sua reflexão da

particularidade brasileira, demonstrava como todo esse processo de industrialização

levava a mudanças no complexo rural, sendo a principal, o aumento da produtividade do

trabalho, através da introdução de máquinas e o fim do desperdício de tempo de

trabalho da família e das técnicas habituais e rudimentares do campesinato. Porém, a

idéia chave desse processo, que refletia como um sinal da crise brasileira, seria a quebra

do mecanismo natural de equilíbrio da sociedade brasileira, que estava localizado no

complexo rural, levando a graves problemas estruturais no país, o que caracterizava o

processo desigual de desenvolvimento.

9

Na busca de um caminho alternativo de resolução paulatina dos problemas

agrários, Rangel defendia a necessidade da intervenção do Estado e das forças

, que era também membro do instituto. Paim escreve em 1957 o livro

Industrialização e Economia Natural. Ignácio Rangel apresentava o prefácio do livro,

reconhencendo que a produção dessa obra foi influenciada pelas hipóteses apresentadas

em seus trabalhos, que o livro era fruto dos estudos que tinha realizado na sua

dissertação elaborada no Chile. Paim analisava nessa sobre obra o reflexo das mudanças

ocorridas na agricultura diante da crise no mercado externo, que encontrava respostas

através da substituição no seu próprio interior, que sofria modificações e pressões para a

sua transformação.

7 Armem Momogian afirma que a Ação Popular introduziu determinados conceitos rangelianos em seu

programa político, porém, de forma implícita, pois não existe nenhuma referência formal ao autor em seus documentos ou declarações, nem mesmo existindo relação formal entre Rangel e a organização política.

8 LENIN, V. O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. 9 PAIM, Gilberto. Industrialização e Economia Natural.

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progressistas, no sentido de fortalecer o desenvolvimento das forças produtivas no

campo com uma reforma agrária que estivesse integrada na economia capitalista do

país. Por isso, Rangel não acreditava que bastava uma simples desapropriação de

qualquer propriedade, que antes de tudo seria necessário que essa pequena propriedade

estivesse integrada ao mercado capitalista. Toda essa perspectiva o distanciava do

debate com a esquerda e o aproximava da polarização com os desenvolvimentistas.

Rangel estava na contramão do pensamento agrário da esquerda comunista

do período, dos desenvolvimentistas e das políticas governamentais para o setor

agrícola. Pelo amadurecimento de suas críticas aos comunistas em anos anteriores, ele

conseguiu visualizar novas problemáticas que não estavam presentes no enfoque dos

revolucionários. Mas ao mesmo tempo ele se deparava com as teorias econômicas em

voga no país, que não davam respostas satisfatórias sobre o problema agrário. Da

mesma forma era a sua análise das políticas governamentais para o setor agrícola, que

muitas vezes andava na contramão das necessidades para o desenvolvimento econômico

do país. A sua produção dos anos 1960 representava uma polêmica com a esquerda

comunista, com os economistas desenvolvimentistas e com as políticas governamentais

adotadas pelo Estado.

A obra mais importante do campo monetário da década de 60, A Inflação

Brasileira, possuía esse pano de fundo. É justamente essa independência intelectual que

permitiu que ele vizualizasse questões até então não estudadas pelo pensamento agrário

brasileiro, como o mecanismo de formação do preço da terra no Brasil e o sistema de

financiamento e investimentos na agricultura, entre outras questões. Todos os autores

que discutiram a questão agrária e que estavam ligados ao PCB ou ao pensamento de

esquerda pensavam na questão agrária como um entrave estrutural ao desenvolvimento

do capitalismo no Brasil. Os que eram contrários a esse tese apenas caracterizavam a

economia brasileira desde o período colonial como capitalista e apresentavam essa tese

como solução para o problema.

Mas Rangel partia de uma visão divergente de todos esses autores,

corrigindo-os em muitos aspectos e levantando novas problemáticas. Não enxergava

que a agricultura tradicional representava um entrave para o desenvolvimento do

capitalismo no Brasil. Percebia que dentro dos marcos do pacto de poder que existia no

interior do Estado brasileiro, a concentração da terra não representava um impedimento

para o desenvolvimento do capitalismo, pois a problemática econômica central desse

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período era outra. Assim afirmava:

Não existe, com efeito, nenhuma barreira, nenhum nec plus ultra, entre as formas arcaicas e as modernas de produção. A dualidade básica do direito brasileiro resulta, de fato, numa estrutura complacente, capaz de mudar, desde que se cumpram as condições ambientais para isso. Ora, essas condições externas para a mudança efetiva das relações de produção manifestam-se essencialmente através dos mercados: de mão-de-obra, de produtos agrícolas e de terra. Com o tempo, adquirirão importância outras circunstâncias, a começar pelas do mercado de bens de produção para a agricultura (Rangel, 2005, pág. 33 e pág. 34).

Para ele a economia ia se adaptando através da mudanças das relações de

produção manifestada nos mercados de mão de obra, terras e produtos agrícolas. Por

exemplo, ele apresentava como uma das características de manutenção do arcaísmo em

setores agrícolas, o fato de a comercialização dos produtos agrícolas ser realizada por

monopólios e oligopólios que “impõe preços extorsivos ao consumidor”. Assim como

também ele não concordava que o Estado comprasse terras com fundos públicos,

conforme pode ser visto nas propostas de alguns governadores preocupados com o

avanço das reivindicações e pressões populares em torno da bandeira da reforma agrária

e acenavam nesse sentido no pré-64. Ele acreditava que a política do governo deveria

caminhar em um sentido inverso, a de suprir de terras o mercado, que levaria

consequentemente a redução do preço da terra. Ele defendia que “simultaneamente

aumenta a oferta e diminui a demanda, donde se infere que há uma tendência a queda do

preço da terra” (Rangel, 2005, pág. 36).

Considerava como a principal problemática que a economia brasileira se

deparava no período era a questão dos recursos ociosos, a qual colocava como ponto

essencial de resolução a alocação de recursos e inversões através do mercado financeiro,

pois a dinâmica de crescimento econômico do Brasil, através dos ciclos de Juglar,

implicava na alocação de recursos para áreas virgens de investimento. Dessa forma foi

cada vez mais se aproximando de uma compreesão financeira do problema da terra no

Brasil.

Com o aprofundamento da crise econômica no país nos anos 60, conseguiu

enxergar inúmeras questões referente a dinâmica da acumulação de capitais no país e

sobre o papel da estrutura agrária nesse processo. Foi nesse período que adentrou nas

questões monetárias e financeiras referentes a economia nacional e ao desenvolvimento

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do capitalismo brasileiro. Ele escreveu no ano de 1963 dois importantes livros, A

Questão Agrária Brasileira e a Inflação Brasileira, em que aprofundava sobre as

questões acima mencionadas, dando todo um refinamento a sua teoria econômica

elaborada nas décadas anteriores.

Essas duas obras causaram polêmicas, tanto nos meios de esquerda como

nos meios nacionalistas. Como ele se considerava um homem de esquerda, ou seja, uma

pessoa comprometida com as reformas necessárias para a sociedade brasileira, ele via

que a reforma agrária era algo essencial para a sociedade, que só poderia trazer

resultados benéficos para o desenvolvimento econômico nacional. Porém, não existiam

condições políticas e sociais para o desencadeamento de uma revolução agrária no país

que democratizasse o acesso a terra. Muito ao contrário, a industrialização sem reforma

agrária, baseada na coalizão entre o latifúndio feudal e a burguesia industrial, tinha

baseado a acumulação de capital a condição de nulle terre sans seigneur, que era uma

lei básica do feudalismo preservada pelo desenvolvimento do capitalismo. No objetivo

de encontrar um caminho alternativo é que ele formulou essas duas obras, que tinham

como base a perspectiva dos recursos ociosos presentes na economia diante do processo

de crise na acumulação capitalista nacional e a estruturação de um mercado de terras

como condição de democratização do acesso à terra, via redução do preço da terra.

Entendendo os efeitos da crise agrária brasileira sobre a industrialização do

país, ou seja, a desestruturação do latifúndio feudal durante o processo de

industrialização, agravada pelo início da fase B do ciclo de Kondratieff, que tinha como

resultado a expulsão de um grande contingente populacional do campo para as cidades,

formando o exército industrial de reserva.

Ele demonstrou de forma pioneira que a questão agrária brasileira não era

uma questão limitada ao âmbito rural, ela também devia ser entendida com os seus

aspectos urbanos. Por isso ele definiu os problemas propriamente agrários dos

problemas impropriamente agrários. Os problemas agrários possuíam um caráter urbano

e por isso era necessário distinguí-los. Os problemas impróprios, ou seja, de excassez

sazonal de mão de obra em determinados setores agrícolas e excassez de produtos

agrícolas, seriam problemas que poderiam ser resolvidos sem uma mudança na estrutura

agrária. Ele acreditava que seria necessário para todos aqueles que propugnavam

mudanças na estrutura agrária brasileira o ataque aos problemas impróprios para

somente posteriormente resolver os problemas próprios.

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No seu famoso livro, A Inflação Brasileira, Ignácio Rangel apresentou uma

inovadora teoria inflacionária, discordando das definições dos estruturalistas e dos

monetaristas. Para ele, a inflação representava uma defesa natural da economia para

preservar as distorções estrururais existentes no interior da economia. Assim, no Brasil

ocorria uma distorção na equação de trocas durante o processo de circulação. Por isso, o

papel da estrutura agrária concentrada, através dos seus monopólios e oligopólios no

processo de circulação, levava a uma série de fatores inflacionários em toda a economia,

durante o processo de emissão de moedas. O processo inflacionário estava ligado a

dinâmica da própria industrialização. Com isso, a sociedade brasileira se deparava com

problemas crônicos que gerava o problema inflacionário que tinha como um dos seus

aspectos centrais as anomalias na estrutura agrária e na comercialização dos produtos

agrícolas, que levava a uma deformação no mecanismo de formação de preços, o que

era a base do processo inflacionário.

Rangel era o pioneiro, apesar de não ser reconhecido devidamente, de uma

série de autores que pensavam na funcionalidade da agricultura, ou seja, que mesmo que

a agricultura fosse atrasada, ela cumpria um papel no desenvolvimento do capitalismo

brasileiro, portanto, a estrutura arcaica não era antagônica ao processo de

industrialização. Os autores que mais se destacam nesse tipo de abordagem foram

Delfim Netto, Ruy Miller Paiva e Barros de Castro.

O pensamento agrário brasileiro de esquerda sofreu grandes mudanças a

partir do final da década de 50. Muitos defendiam a viabilidade do processo de reforma

agrária, que estaria em curso no país e essa seria a principal mudança para a efetivação

de uma economia capitalista nacional, e que a reforma agrária criaria as condições

necessárias para a revolução socialista. As formulações das várias correntes

desenvolvimentistas também não davam respostas para suas indagações. Assim como as

políticas governamentais apenas reforçavam o monopólio da propriedade da terra. É

dessa forma que Rangel formulou um caminho alternativo a esse pensamento

tradicional de esquerda e dos desenvolvimentistas clássicos e da política estatal vigente,

pois não acreditava que existiam condições objetivas para a realização de tais

transformações pela via de uma Revolução Agrária e via que o Estado aplicava uma

política errônea para o setor, apesar das mudanças estarem sendo processadas pelo

próprio movimento dinâmico da economia brasileira.

Rangel ficou um longo tempo de sua vida distante, de certa forma, da análise

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da agricultura brasileira. Somente no final da década de 70, depois da sua

aposentadoria, que se dá em 1976, é que ele voltou ao debate agrário. Produziu a partir

desse período uma série de apresentações em seminários e produção de artigos

científicos em que adentrará com maior profundidade na discussão sobre o “perverso”

mecanismo de formação do preço da terra e criando um novo conceito teórico

denominado de quarta renda10

Ele escreveu no ano de 1977 um artigo intitulado Recapitulando a Questão

Agrária Brasileira, em que iniciou o debate sobre a mudança de curso que ocorria na

agricultura brasileira, através de seus aspectos financeiros. Rangel passou a enxergar a

possibilidade de grandes mudanças na estrutura agrária através do próprio

desenvolvimento do capitalismo rural. Ele afirmava que mesmo sem a ocorrência de

uma prévia reforma agrária, o Brasil havia atravessado um processo de

desenvolvimento do capitalismo no campo, expresso através da mecanização da

produção. Esse caráter capitalista da agricultura levaria a uma mudança econômica

fundamental, que seria a modificação da própria mentalidade econômica, devido a

rentabilidade do investimento, do empresário capitalista com a terra. A terra não seria

vista por esses proprietários rurais, segundo Rangel, apenas pelo aspecto especulativo e

rentista. O empresário capitalista enxergaria o problema da terra excedente como parte

de seu negócio, dentro da contabilidade da empresa capitalista. A tendência seria

considerarem esse investimento em investimento improdutivo, podendo com isso,

colocar essas terras a disposição no mercado de terras, possibilitando com isso uma

nova forma de acesso a propriedade da terra.

, que representava uma inovação na compreensão do

problema agrário no Brasil e uma contribuição para a ciência econômica, com uma nova

categoria econômica. É nesse período que finalmente aprofundou a abordagem sobre a

questão agrária como uma problemática financeira.

Seguindo esse raciocínio, no ano de 1978, participou de um seminário na

Unicamp sobre a questão agrária, em que escreveu um artigo intitulado Estrutura

Agrária, Sociedade e Estado, em que aprofundará mais sobre as questões relativas a

renda da terra e ao preço da terra, investigando essa hipótese de ocorrer modificações

sem necessariamente o país atravessar por uma revolução, era possível encontrar um

caminho alternativo. É assim que iria cada vez mais encontrando como caminho

alternativo essa nova mentalidade capitalista engendrada pelo desenvolvimento das 10 Os debates nos anos 60 sobre a renda envolvendo Samir Amin e Kostas Vergopoulos.

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forças produtivas e que impunham reformas necessárias para estimular o crescimento

econômico. Nesse artigo de 1978 reforçou o seu clamor que vêm da década anterior, da

necessidade de reformas no sistema financeiro nacional, no sentido de permitir criar as

condição de investimentos intersetoriais na economia, aproveitando da poupança criada

nos setores com capacidade ociosa, para se criar um novo ciclo de crescimento

econômico.

Essa problemática também estava relacionada com a questão agrária, já que

o complexo rural era o grande gerador de mão-de-obra para o setor capitalista, sendo

responsável pela formação do exército industrial de reserva. Como o Estado brasileiro

era uma manifestação da dualidade básica existente na economia brasileira, era

controlado por uma coalizão de classes composta pelo latifúndio feudal e a burguesia

industrial, permitiu que engendrasse uma industrialização sem reforma agrária. Mesmo

assim, o desenvolvimento do capitalismo ocorreu sem essa superação do monopólio

feudal da terra, mas que ia sofrendo modificações de acordo com o desenvolvimento

das forças produtivas, mas que não afetaram o controle de todas as terras do país,

inclusive as improdutivas.

Dessa forma ele chegou a idéia básica que representava esse caminho

alternativo, que tinha como base o seguinte raciocínio: o problema agrário era um

problema financeiro e o seu cerne residia na questão do elevado preço da terra no país.

Portanto, cabia esclarecer os mecanismos de determinação do preço da terra, como uma

medida de entender a base real da modificação da esturura agrária, que seria o

barateamento do preço da terra, levando o acesso para milhares de pessoas que estão

excluídas de sua posse. Com isso defendia que a renda territorial e o lucro eram a base

para a formação do preço da terra no Brasil. Portanto, de acordo com o movimento da

renda, que estava diretamente ligada a taxa de lucro do capital e a fase do ciclo

econômico, o preço da terra poderia tanto aumentar como diminuir, podendo com isso,

quebrar o monopólio feudal da terra, produzindo a necessária reforma da propriedade da

terra.

No ano de 1979 ele escreveu um artigo na revista Encontros com a

Civilização Brasileira, intitulado Questão Agrária e Agricultura. , em que continuava a

aprofundar sobre esse caminho alternativo para as mudanças na estrutura agrária, que o

próprio processo de desenvolvimento do capitalismo rural, com a nova classe burguesa

rural, seria possível ocorrer tais transformações. É com isso que chegará ao conceito de

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quarta renda. O ponto que mais interessa nesse artigo é sobre “a nova fácies da questão

agrária”, que segundo Rangel “seria absurdo continuarmos a pensar em agricutura

como aquela atividade caracterizada pela tecnologia mais primitiva de todos os setores

do sistema econômico”, muito ao contrário, ele acreditava que a grande empresa rural é

quem deveria dirigir o processo de mudanças no campo. Com isso, o preço da terra era

a problemática central da questão agrária, pois com o desenvolvimento da

industrialização, uma vastidão de terras foram incorporadas, devido as estradas, ao

desenvolvimento do comércio, o monopólio da terra foi “sendo posto em questão”. Com

isso, nos explicava sobre o “perverso mecanismo de formação do preço da terra” no

Brasil. A terra devia assegurar determinada renda equivalente a quantidade de capital

que assegure o lucro. Portanto, o preço da terra seria uma função da renda oferecida

pela terra, que estava diretamente ligada a taxa de lucro dos setores centrais da

economia, e teria a perspectiva de valorização da terra, criando a quarta renda. Portanto,

nas condições brasileiras, em que apenas parte da terra era utilizada para a produção, a

tendência seria a queda do preço da terra. Por isso, acreditava que a questão agrária se

resumia a uma questão financeira.

No ano de 1980 ele escreveu novamente na revista Encontros com a

Civilização Brasileira um artigo intitulado Revisitando a Questão Nacional, em que

continuava a sua análise sobre os aspectos da questão agrária na Revolução

Democrático Burguesa e o papel da necessidade da reestruturação do capital financeiro

e do mercado financeiro nacional, sendo essa uma reforma de base necessária, que teria

consequências tanto para a questão nacional de investimentos nos ramos industriais

retardatários, como na agricultura, sendo a sua problemática uma questão financeira.

Dessa forma, um problema que deveria ter sido resolvido no início da industrialização

passava a encontrar a sua solução apenas nesse momento.

Ele voltaria a escrever sobre a questão agrária apenas no ano de 1985 em um

artigo publicado na Folha de São Paulo. No seu texto intitulado Problemas da Reforma

Agrária iria abordar sobre a política agrícola brasileira durante o regime militar. Para

ele, o estatuto da terra e a política do governo militar em comprar terras para fins de

reforma agrária fizeram ampliar ainda mais o monopólio da terra. Para Rangel o

Estatuto da Terra era digno continuador da lei de terras de 1850. Sobre a política de

compra de terras e não de supridor levava a uma valorização do preço da terra,

aumentando ainda mais a sua concentração.

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O debate de Rangel nos anos 70 e 80 se converte cada vez mais em

encontrar uma alternativa para a reforma agrária que não necessariamente passaria pelo

conflito de classes, mas pela reestruturação de um mercado de terras, que através dos

mecanismos cíclicos levaria a uma modificação no preço da terra, podendo com isso

levar ao acesso da terra a milhões de pessoas que se encontram excluídas desse

processo.

É por isso que a partir da década de 60 ele via a necessidade do

fortalecimento desse mercado embrionário de títulos imobiliários. Seria ele a chave para

o entendimento do problema agrário brasileiro a partir de então. Pois, da mesma forma

que o preço da terra possuia a possibilidade de se elevar, também possuia a

possibilidade a de reduzir, sendo esse processo de formação do preço da terra parte de

um movimento cíclico da economia brasileira. Na época de crise do mercado externo

existia uma tendência de queda do preço da terra. Mas quando aqueciam os negócios no

mercado internacional, o preço da terra tendia a se elevar. Porém, existia uma

singularidade no caso brasileiro, que seria a existência de ambundantes terras devolutas,

que dependendo da política econômica empregada pelo Estado, havia possibilidade de

pressionar a longo prazo para a queda do preço da terra. A chave de todo esse processo

seria o estímulo gerado pelo fortalecimento do mercado de compra e venda de terras,

fazendo com que a terra excedente fosse comercializada, reduzindo o caráter

especulativo e monetário embutido no preço da terra. Portanto, essa seria uma medida

que levaria a uma “lei áurea da terra” no Brasil, ou seja, a possibilidade de posse da

terra para milhares de pessoas. Por isso que a questão agrária para Ignácio Rangel

estava diretamente ligada ao desenvolvimento do mercado financeiro nacional,

principalmente o vinculado a negociação de títulos imobiliários. A questão agrária se

tornava uma questão financeira.

Rangel defendia que a política estatal11

11 É por isso que ele desenvolverá inúmeros estudos sobre a programação econômica em que

demonstrava a viabilidade do Estado intervir no sentido de permitir o pleno desenvolvimento econômico e florescimento do capitalismo no Brasil.

durante esse processo deveria se

pautar na criação de estímulo para o fortalecimento de um mercado de terras e não a de

estimular a manutenção do monopólio da propriedade da terra e muito menos estimular

os oligopsônio-oligopólios da comercialização dos produtos agrícolas. Assim, a política

do governo firmada pelos militares através do Estatuto da Terra, em que priorizava a

compra por parte do Estado de terras em conflito para fins de reforma agrária, era

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criticada por Ignácio Rangel, pois esse tipo de política fundiária seria um fator de

elevação artificial do preço da terra, indo na contramão dos mecanismos automáticos do

mercado que poderiam levar a um novo tipo de modelo agrícola, fortalecendo ainda

mais o sistema latifundiário feudal na coalizão de classes do pacto de poder presente no

Estado brasileiro, que representa a dualidade.

Para responder a todos os pensadores agrários e a política fundiária estatal, o

que o colocava em uma situação de relativa independência, é que ele iria buscar

resposta na teoria da renda fundiária, entendendo a peculiaridade da renda da terra no

Brasil e da formação do preço da terra.

Ele não ultrapassou os marcos tradicionais do III volume de O Capital. Ele

analisou a teoria da renda da terra na peculiaridade da realidade brasileira. Distinguia a

Renda Diferencial I e a Renda Diferencial II no interior da economia nacional. Também

definia a Renda Absoluta. É na contramão de maioria dos autores agrários é que ele iria

inovar com o conceito de Quarta Renda, do qual chegou devido aos estudos financeiros

e monetários realizados nos anos anteriores, que fez com que ele desembocasse no

estudo da renda, do preço da terra, o que o levou a aprofundar em vários pontos sobre a

questão agrária brasileira. Ele iniciou esse debate nos anos 60, conforme demonstramos

anteriormente, mas foi nos ano 70 em que mais discutiu essas questões, sem ao tudo,

formular uma teoria definitiva sobre o assunto.

Rangel definia o conceito de Quarta Renda no ano de 1978 no texto

Estrutura Agrária, Sociedade e Estado. Ele abordava nesse texto que nas fases

ascenssionais dos ciclos existia a tendência de elevação do preço da terra e nas fases

recessivas existia a tendência de redução do preço da terra. Assim, nas fases B ou

recessivas surgia o fenômeno da expectativa de elevação da renda da terra, que levava a

uma elevação no preço da terra. Rangel afirmava que “esse fenômeno, isto é, a

expectativa de elevação do preço da terra, seja estudado sob o nome de quarta renda”

(Rangel, 2005, pág. 94). Segundo Rangel essa quarta Renda comportava como se fosse

uma renda territorial. Assim, as terras urbanas e as terras que não estavam sendo

utilizadas produziam a Quarta Renda. Portanto, o problema agrário consistia na

“reversão das expectativas”, que “traria implícita uma verdadeira e profunda reforma

agrária” (Rangel, 2005, pág. 95).

É dessa forma que Rangel iria inovar a teoria da renda da terra com o

conceito de Quarta Renda, que significava a expectativa de valorização futura das terras

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urbanas, rurais e as não utilizadas. Ele compreendia que a terra se tornava uma reserva

de valor e um ativo que correspondia a determinadas expectativas na hora dos

investimentos dos capitais. Assim, devido a taxa de juros negativas, a inflação, a

expectativa de pouco crescimento em outros setores da economia, levava a uma

expectativa futura de valorização da terra, que seria um caráter especulativo ou que

servia para a manutenção de taxa de lucro de determinados setores contra a erosão

causada pela crise econômica.

Esse conceito era de muita importância para o problema agrário brasileiro,

pois significava desaconselhar qualquer tipo de compra de terras por parte do Estado,

que agiria no sentido de elevar ainda mais o preço da terra. Portanto, qualquer medida

de parcelamento da terra que não estivesse ligada a reestruturação do sistema financeiro

nacional serviria apenas para manter o monopólio ainda mais forte da propriedade da

terra.

Ele qualificava o mecanismo de formação do preço da terra como

“perverso”, já que “não se forma uma classe de pequenos produtores agrícolas”. O

mecanismo do preço da terra sempre serviu como mecanismo para evitar o acesso a

terra. Mesmo com a grande quantidade de terras disponíveis com o processo de

unificação do mercado nacional e incorporação econômica de novas regiões, o preço da

terra não tendia a cair. Assim nos afirmava:

Ora, nas condições brasileiras, caracterizadas pela utilização de apenas pequena parcela da disponibilidade total de terras, a renda territorial, a todos ou a qualquer desses títulos, deveria ser muito baixa e, o que é mais, considerado que sua oferta cresce energicamente, à medida que novas terras vão tornando acessíveis, habitáveis e agricultáveis, seria de esperar que seu preço tendesse a cair. Se, ao contrário, concomitantemente com esse processo de aumento de oferta de terra, o preço se eleva, como está acontecendo, a causa deve ser buscada alhures, isto é, do lado da demanda (Rangel, 2005, pág. 111 e pág. 112).

Ele falava que a causa deve ser buscada na demanda, mas excluia a demanda

agrícola e predial, pois as duas tendiam a declinar. É dessa forma, na rejeição de que o

aumento do preço da terra seja causada pela demanda agrícola e predial, é que ele

entendia que a Quarta Renda possuia uma outra causa que levava a valorização e o

aumento do preço da terra no Brasil. Assim nos afirmava:

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De plano, porém, podemos excluir, seja a demanda agrícola, seja a demanda predial. A demanda agrícola tende a declinar, como resposta às inovações agronômicas, no sentido de elevar a produtividade por unidade de área. Quanto à demanda predial, também tende a declinar, em função das novas técnicas de construção e os outros fatores que influe sobre a densidade da ocupação do solo residencial. Deve, portanto, haver uma outra demanda de terra, responsável por uma quarta renda, causadora última da “valorização” da terra, tanto rural, como urbana (Rangel, 2005, pág. 112).

Essa expectativa de valorização, ou seja, a especulação em terras agrícolas,

urbanas e não utilizadas, aumentava o preço da terra e faria com que essa se

comportasse como se uma renda fosse, possibilitando ganhos para o capital empregado

em terras. Vemos que a expectativa de valorização das terras permitia ganhos ao capital

empregado em terras. Rangel nos chama a atenção para essa questão importante, que

mesmo com a crise instalada em outros setores, a terra podia continuar valorizando, o

que seria explicado pela Quarta Renda. É assim, através desses mecanismos

especulativos que o preço da terra no Brasil continuava elevado. Assim nos afirmava:

Entretanto, produzido esse movimento de elevação do preço, a expectativa de subsequente elevação, vale dizer, o diferencial esperado do preço da terra de um ano para outro, passará a comportar-se como se ele próprio fosse uma renda: a quarta renda antes referida. A partir daí, o movimento ascensional do preço da terra poderá manter-se, mesmo que os outros itens (os regulares) da renda declinem, mesmo que a taxa de lucro do sistema econômico deixe de cair, e mesmo que volte a elevar-se, em certa medida. Em todo caso, cessada a causa primeira, o movimento tenderá tabém a interromper-se. Bublata cusa, tllitur effectus, diziam os romanos (Rangel, 2005, pág. 112).

Mas ao mesmo tempo em que Rangel definia essa característica

expectacional ele demonstrava a base para a aquisição desse tipo de renda da terra, que

era uma função da taxa de lucro do sistema econômico, que encontrava uma forma de

compensação no investimento em terras. Defendia que o primeiro mercado financeiro

surgido no Brasil foi o mercado imobiliário, pois a terra representava uma forma de

poupança, inclusive, segundo ele, a própria base da poupança na década de 1970 estava

baseada nos ativos imobiliários. Ele nos esclarecia que a Quarta Renda seria uma

expressão dessas características especulativas, que convertia o título imobiliário em

mobiliário:

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A quarta renda converte o título imobiliário em título mobiliário, no sentido de que torna o preço da terra agudamente sensível às variações dos mercados onde encontra expressão a taxa de lucro do sistema econômico. Não é exagero dizer que o primeiro mercado de valores a se estruturar no Brasil nos quadros do processo de industrialização, foi, precisamente, o mercado de papéis imobiliários. A escritura de promessa de compra e venda circulava com uma intensidade de que não gozavam nem ações nem obrigações. Mesmo agora (década de 1970) quando já existe uma bolsa de valores estruturada, seu papel não se compara com o do sistema de poupança, todo ele estruturado sobre ativos imobiliários (Rangel, 2005, pág. 112 e pág. 113).

Era dessa forma, pela definição da característica expectacional de

valorização futura da terra que ele veria o movimento de elevação e redução do preço da

terra. Através do conceito de Quarta Renda ele percebia que a face urbana e rural

estavam interligadas, não sendo possível pensar em modificações da estrutura agrária

brasileira que não passassem pela resolução de problemas não propriamente agrários,

como é o caso da estruturação do mercado de terras. Ele defendia que “a superação da

questão agrária, portanto, está pendente de fatos aparentemente tão distantes dos

problemas rurais e agrícolas como a reestruturação do aparelho financeiro, para o fim

especial de ativar novas áreas do sistema econômico nacional” (Rangel, 2005, pág.

114). Assim a estruturação desse sistema financeiro seria a chave para as mudanças na

estrutura agrária brasileira. Por isso é que ele conclui que “com efeito, que a chave de

todo o problema é o preço da terra e que este, nas presentes condições, não é uma

questão agrícola, mas financeira” (Rangel, 2005, pág. 114).

Vimos que Ignácio Rangel desenvolveu o conceito de Quarta Renda no final

da década de 1970 para explicar o perverso mecanismo de preços da terra no Brasil, que

mesmo com o ingresso de uma grande quantidade de terras devido a incorporação de

novas regiões a agricultura, existia um caráter especulativo, que levava a uma

expectativa de valorização da terra, que era responsável por elevar o seu preço. Assim, a

questão agrária se tornava um processo eminentemente financeiro. Seria necessário

estabelecer um mecanismo de intermediação financeira, baseado no fortalecimento do

capital financeiro nacional, que permitiria a alocação de recursos nas áreas de

antiociosidade da economia. É dessa forma, que ele defendia que qualquer iniciativa do

Estado em comprar terras para fazer reforma agrária serviria de estímulo para a

elevação do preço da terra, mantendo a concentração fundiária. No final da década de

1980 ele passou a perceber o grave problema urbano expresso nas grandes metrópoles,

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como o Rio de Janeiro, que tinha um elevado grau de banditismo social e de

desemprego urbano. Por isso ele defendia que ainda existia a necessidade de possibilitar

o acesso a terra para milhares de camponeses, através de terras públicas e devolutas, que

mesmo não podendo competir com a agricultura capitalista, permitiria com que

aumentasse a oferta de alimentos e desagudizaria a crise agrária, expressa na escassez

de mão de obra agrícola e na ambundância da mão de obra urbana. Claro que o Estado

deveria atuar no sentido de desestruturar os oligopsônios/monopsônios de

comercialização dos produtos agrícolas, incentivando o monopólio estatal na

distribuição e na garantia de preços mínimos, revisitando as suas teses do ano de 1962.

Portanto, se tornava ainda uma questão chave do problema agrário no final da década de

80 o acesso a terra do campesinato. Campesinato esse que ele vê se modificando,

tornando-se cada vez mais um semiproletariado, pelo menos em algumas partes do ano,

que seria o caso do bóia-fria e do volante. Esse tempo ocioso esperdiçado poderia ser

reaproveitado através da implementação de uma reforma agrária em terras públicas ou

devolutas. Mesmo com os problemas da baixa capacidade de incorporação de capital,

esse tipo de agricultura para o autoconsumo, que aumentaria a oferta de produtos

agrícolas, seria viável e necessária.

Para uma síntese de sua produção agrária no final da década de 1970 ao final

da década de 1980 podemos afirmar que ele estava em busca de um caminho alternativo

a revolução agrária e a concentração de terras. Ele acreditava que as forças progressistas

e populares não tinham força política para o desencadeamento das mudanças

necessárias, assim como a manutenção desse modelo agrícola estava levando o país a

uma profunda crise social, que poderia levar a instabilidade social. Ele procurava

respostas nos mecanismos do mercado, ou seja, no bojo do desenvolvimento da própria

economia nacional. Apesar de criticar os utópicos, pois acreditava que as suas propostas

eram viáveis de serem aplicadas, a política fundiária adotada na década de 1980 e 1990

levaram a uma concentração ainda maior da propriedade da terra12

12 Foi justamente esse ponto que B. P. Reydon (1992) demonstrou que o desenvolvimento do mercado de

terras não havia levado a uma reforma agrária e que ao contrário havia aumentado a concentração da terra.

.

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3. Conclusão.

A contribuição de Ignácio Rangel para o debate agrário brasileiro é de

grande originalidade. Conseguiu produzir aportes teóricos para o entendimento da renda

da terra no Brasil e para o pensamento agrário brasileiro. O pensamento de Ignácio

Rangel representou uma enorme contribuição para os estudos agrários brasileiros.

Ele permitiu a superação da tradicional visão predominante no Brasil, de que

existia uma opoisição entre o atrasado e o moderno. Procurou apresentar uma história

do desenvolvimento econômico nacional e com isso formulou a teoria Dualidade/Ciclos

econômicos. Como não acreditava na força do movimento popular para superar o

modelo agrário era preciso radicalizar o desenvolvimento capitalista, que as próprias

leis de mercado se encarregariam de resolver o problema agrário. Bastava a quebra dos

mecanismos que mantinham a agricultura feudal, quebrando o monopólio da terra

através do desenvolvimento do mercado financeiro e do mercado de terras.

Hoje em dia o pensamento de Ignácio Rangel pode ser criticado de várias

formas. O mercado de terras se desenvolveu mas não conseguiu quebrar o monopólio da

terra, permanecendo a concentração fundiária brasileira. Da mesma forma que os

movimentos populares no campo, que se tornaram uma força política importante na

atual sociedade brasileira.

Esse prognóstico de Rangel de que o desenvolvimento do financeirização da

terra, através do desenvolvimento do mercado de terras, levaria a uma reforma agrária, é

altamente questionável em nossos dias. Vemos, que por um lado, a concentração de

terras no Brasil não se alterou nem mesmo com a estruturação de um mercado de terras,

assim como também não é possível falar que o preço da terra teve oscilações que

permitissem com que as massas rurais e urbanas pudessem ter acesso a ela. Mesmo

assim, a sua análise foi pioneira e esclarecedora sobre o mecanismo de formação do

preço da terra, dando contribuições para o pensamento agrário nacional e para a própria

teoria econômica mundial.

Mas mesmo que a sua teoria não consiga dar conta de explicar todas as

modificações ocorridas na realidade agrária nacional, ela não deve ser desprezada. O

conceito de Quarta Renda é a prova disso. Apesar das várias críticas que podem ser

levantadas na adoção do conceito, ela permite entender o mecanismo financeiro

produzido na renda, que explica parte da concentração fundiária brasileira. Hoje,

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nenhum estudo agrário pode fugir das questões formuladas pelo autor maranhense.

É por isso que Ignácio Rangel é um dos autores fundamentais na discussão

da questão agrária brasileira e não pode ser desprezado por qualquer estudioso que

pretenda pesquisar sobre a estrutura agrária brasileira.

***

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INTERPRETAÇÕES SOBRE ESTADO E CAPITALISMO NO BRASIL: A ORIGINALIDADE DA OBRA DE RUY MAURO MARINI

Mestranda Mariana de Oliveira Lopes Barbosa

Universidade Federal de Goiás [email protected]

Resumo

Pouco conhecido até mesmo em seu próprio país, Ruy Mauro Marini apresenta reflexões e formulações peculiares a respeito de diversas questões sociológicas, historiográficas e políticas do mundo e, particularmente, do Brasil. É sobre essas formulações que este artigo pretende dizer, não deixando de tentar realizar um aparato geral de toda a sua vida e obra e em análise comparativa com demais autores contemporâneos a este e, por fim, as críticas que Marini recebeu, sem deixar de salientar suas importantes contribuições. Este artigo é, portanto, claramente, uma tentativa de resgatar a importância deste autor e a atualidade de suas formulações. Palavras-chave: Estado; Capitalismo; Ruy Mauro Marini; Dialética da Dependência.

INTERPRETATIONS OVER THE STATE AND CAPITALISM IN BRAZIL:

THE ORIGINALITY OF RUY MAURO MARINI’S WORK

Abstract

Little known even in his own country, Ruy Mauro Marini presents unique reflections and formulations of diverse sociological issues, historiographical and political world, and particularly in Brasil. It is on these formulations that this article intends to say, whilst attempting a general apparatus of his life and work and comparative analysis with other contemporary authors in this and, finally, that Marini received criticism, but emphasizes their important contribuitions. This article is therefore clearly an attempt to restore the importance and timeliness of the author of his formulations. Keywords: State; Capitalism; Ruy Mauro Marini; Dialectics of Dependence.

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O presente artigo pretende, de forma inicial, dar notícias sobre diversos – e, a

nosso ver, principais – autores que interpretaram a realidade brasileira tendo como

parâmetros formulações que dissessem respeito sobre as relações institucionais ou não

entre Estado e capitalismo no país, não perdendo de vista, a noção da totalidade ao qual

este esteve sempre inserido na dinâmica política e econômica mundial.

Dentre estes autores, pretende-se destacar a originalidade da obra de Ruy Mauro

Marini, suas contribuições e posteriores críticas. Destaca-se exclusivamente este autor,

devido ao diferencial (que será abordado adiante) de suas formulações e também por

sua pouca difusão até mesmo no Brasil. O caso de Marini se torna mais peculiar ainda

do que de outros autores que utilizaremos, visto que sua obra foi e ainda é muito mais

conhecida e respeitada fora do país – principalmente na América Latina - do que aqui

dentro. Muito também, por sua própria trajetória política e intelectual que se deu, na

maior parte de sua vida, no México, onde foi exilado pela ditadura militar em 1965.

Para que possamos entender o diferencial de sua obra, é preciso, antes de tudo,

que façamos um breve retrospecto de alguns dos principais autores contemporâneos a

ele que escreveram sobre o mesmo tema. São eles: Caio Prado Jr., Nelson Werneck

Sodré, Jacob Gorender, Francisco de Oliveira e Florestan Fernandes. A escolha destes

se deu, como um recorte temático de que todos partiram da crítica às teses do PCB para

aprofundarem suas interpretações na tentativa de superá-las.

Interpretações

A obra “A Revolução Brasileira” de Caio Prado Jr., é de 1966, ou seja,

elaborada na primeira fase pós-golpe militar no Brasil. Esta primeira fase caracteriza-se

por uma posição mais moderada do militares. Á primeira vista, o golpe parecia ser uma

intervenção temporária (posição esta, defendida principalmente pelo grupo castellista).

Até mesmo alguns políticos civis que apoiaram o golpe, tinham essa idéia, de que após

esta breve intervenção, seria dada continuidade ao governo de Jânio Quadros.

Caio Prado Jr. afirma que o golpe de 1964 foi uma derrota histórica dos

trabalhadores, especialmente para o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e em sua obra,

tenta provar as conseqüências que suas teses tiveram na realidade brasileira.

No contexto da escrita desta obra, o marxismo começava a se difundir no Brasil,

começando, inicialmente, nas universidades com uma perspectiva tendendo ao liberal-

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democrático. Logo, surgiram algumas subdivisões quanto a formulações e militância:

Trotiskistas, esquerda católica e a POLOC.

A crítica fundamental de Caio Prado é que a tese etapista do PCB foi um erro

teórico que desencadeou em um erro prático. Os principais erros apontados quanto à

metodologia do partido são: apriorismo (se prender a leis), dogmatismo, legalismo e

positivismo (por não ser dialético).

O golpe militar de 1964 tinha, segundo o autor, uma missão bem definida: caçar

os subversivos e devolver o poder aos liberais. A maior parte da burguesia industrial

brasileira apoiou o golpe. Porém, como sabemos, a ditadura feita, inicialmente, para

durar um ano e meio, durou 21 anos.

Voltando à questão da crítica do autor às teses do PCB, temos que a questão

feudal que o partido dizia sobre a realidade brasileira, não se aplicava, pois, pode-se

aplicar o termo feudalismo somente ao ocorrido na Europa, pois, naquela realidade, o

camponês tinha seus meios de produção e subsistência, portanto, o senhor feudal o

submetia em termos jurídicos e políticos apenas, muito diferente da realidade do

camponês brasileiro.

Outro grande erro tático do PCB que veio de seu erro teórico, segundo Caio

Prado, foi a sua opção de ação cupulista, ou seja, que não se focou em articulações e

mobilizações de massa e sim nas de cúpulas justamente em um período em que havia

uma efervescência de movimentos sociais, principalmente no campo no Brasil. Situação

esta que, como veremos adiante, Jacob Gorender chegou a definir como pré-

revolucionária.

Um exemplo que podemos dar do que Caio Prado dizia dos erros teóricos que

levaram aos práticos, por exemplo, é na luta por reforma agrária que o PCB pautava.

Não daria certo taticamente naquele contexto, pois, como vimos, o partido visava um

camponês no modelo europeu, logo, a tática, obviamente, não foi acertada para a

realidade brasileira.

Sem dúvida alguma, esta obra de Caio Prado está entre as mais destacadas sobre

a interpretação do capitalismo brasileiro, porém, seus limites devem ser ressaltados

como, por exemplo, o fato dele afirmar que o Brasil não precisaria de uma revolução

capitalista de caráter burguês (como o PCB insistia na tese da aliança nacional etapista

com a burguesia), pois o Brasil sempre foi capitalista. Esta afirmação está incorreta do

ponto de vista da metodologia marxista, pois o capitalismo não se define pela circulação

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de mercadorias, como os circulacionistas como Adam Smith afirmam, sendo esta a

influência liberal em seu pensamento. Para Marx, a simples circulação de mercadorias é

acumulação primitiva de capital. O capitalismo se define por parâmetros muito mais

complexos do que apenas a circulação de mercadorias. Estes parâmetros são, por

exemplo, a separação do trabalhador dos meios de produção, a apropriação privada dos

meios de produção pela burguesia, a alienação do trabalhador à mercadoria por não

mais possuir os frutos de seu trabalho, entre outros. Portanto, para definir se o Brasil foi

sempre capitalista e por isso não precisaria de uma revolução burguesa, todos estes

aspectos deveriam ter sido analisados na obra de Caio Prado.

Outro importante autor que ousou interpretar a realidade do capitalismo

brasileiro foi Nelson Werneck Sodré em sua mais famosa obra, Formação Histórica do

Brasil publicada em 1962.

A tese fundamental da obra de Sodré (1964) é: a revolução brasileira está em

curso (na época em que o livro foi escrito) nos moldes da democracia nacionalista

burguesa desde o segundo Governo Vargas. Uma grande inovação na análise de Sodré é

a forma de tentar encarar o imperialismo de forma dialética, ou seja, ele, ao mesmo

tempo em que traz fluxos modernizadores, também é um entrave, por isso, esta

revolução burguesa que está em curso é resultado do próprio imperialismo, mas este,

por sua vez, apresenta um entrave a ela, sendo necessário, portanto, uma aliança

democrático-popular para desentravar o avanço do capitalismo brasileiro, tendo como

base para esta aliança, a economia de mercado (SODRÉ, 1964).

A revolução, neste caso, é vista de forma ampla, ou seja, um processo à longo

prazo.

Para Sodré (1964), há, no Brasil, uma unidade entre o latifúndio agroexportador

e o imperialismo, que acaba criando um dualismo ao se pensar uma economia voltada

para fora e uma voltada para dentro. Contrapondo aos que afirmavam que o

imperialismo seria bom para o país por trazer tecnologias, o autor argumenta que o

avanço da indústria com o imperialismo é uma farsa, pois este só investia em setores

que não eram, de fato, estratégicos para o Brasil internamente (SODRÉ, 1964). Por isso,

esse desenvolvimento trazido pelos investimentos imperialistas era artificial.

O autor foi o primeiro no Brasil a utilizar o conceito de via prussiana de Lenin

para explicar como uma fração da sociedade e da economia se modernizou e outras

preservaram a concentração de terra e/ou baixos salários. Para Werneck, no período

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colonial brasileiro, haveria uma predominância do modelo feudal com alguns pontos de

escravismo. No período pós-escravidão, ainda havia a predominância do feudalismo

com regiões de semi-feudalismo.

Em sua obra também é desenvolvido um conceito: o de povo, porém este não é

um conceito sociologicamente aceito. Para ele, “povo” vai da burguesia nacional (da

grande burguesia industrial voltada para o mercado interno até o grande latifundiário

voltado para o mercado interno) ao proletariado (SODRÉ, 1964).

Em suas formulações, Nelson Werneck Sodré tentou, claramente, “aperfeiçoar”

as teses do PCB. Ele também defende a aliança do “povo” em torno de uma aliança

nacional e democrática numa tentativa de impedir o triunfo do imperialismo no país.

Mesmo tentando aperfeiçoar e tornar mais sofisticada (inclusive comprovando

empiricamente) as teses do PCB, o autor não se afasta muito dela, principalmente por

também falar de feudalismo no Brasil, sem enxergar que a subserviência do servo ao

senhor feudal é bem diferente da dominação ideológica paternalista existente aqui,

como vimos anteriormente.

Metodologicamente, a obra de Sodré (1964), que tenta ser dialética, acaba, no

fundo, sendo dualista ao se falar de forma polarizada entre nação e imperialismo. O

autor não faz a crítica de que nem todos os setores da burguesia nacional da “nação”

poderiam ser chamados, de fato, de “nacionais”, por conta de uma série de relações e

interesses que revelavam o contrário desta afirmação. Não é considerada, também, que

as relações imperialistas iniciais no Brasil eram feitas muito mais nas relações de

distribuição (como nas casas bancárias e etc.) do que na de produção.

Nelson Werneck Sodré continuou produzindo academicamente até a década de

90 e, em síntese de suas obras, considerou que o capitalismo brasileiro esteve

consolidado desde 1964, porém, de forma conservadora, e não na forma de revolução

burguesa que ele havia esboçado.

O livro “A burguesia brasileira” de Jacob Gorender, ao contrário dos já

analisados até agora neste artigo, não foi publicado na mesma época dos demais, e sim

já em 1981, porém, inserimos esta obra na análise das principais interpretações sobre

revolução burguesa no Brasil, pelo autor, claramente, debater com a obra primeiramente

citada de Caio Prado Jr. e com as teses do PCB.

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Gorender tem uma tentativa de afirmar o desenvolvimento brasileiro através da

burguesia brasileira. Sua tese principal é a do modelo “escravista colonial”, onde

defende um modelo nem escravista e nem feudal.

O autor travou este debate não só academicamente, mas, também, em sua prática

política. Em 1967 ele e mais um grupo de militantes saem do PCB e fundam o PCBR,

justamente por fazerem este tipo de debate internamente dentro do partido. Ele chegou a

ser preso e boa parte deste grupo foi morta. Em 1977, este mesmo grupo (dos militantes

do PCBR) decide integrar o recém fundado Partido dos Trabalhadores por enxergarem

que este poderia ser um partido revolucionário. Por este motivo, considera-se também

que esta obra específica de Gorender - A Burguesia Brasileira - é também uma defesa

das teses do PT que afirmavam, ao contrário do PCB, que a burguesia não é

democrática. O PT já surgiu em contraposição a essa política de alianças pretendida

pelo PCB.

Jacob Gorender defende que o capitalismo brasileiro não se deve a um influxo

externo e sim que houve uma acumulação primária de capital durante o escravismo

colonial, que deu origem de forma incipiente às primeiras fábricas, conseqüentemente, à

pequena burguesia e proletariado (GORENDER, 1983).

O autor considera que se tem a definição do que é capitalismo quando há a

polarização entre capital e trabalho, onde a indústria torna-se a protagonista da mais-

valia.

Para ele, a abolição da escravidão foi a única revolução social - no sentido de

que foi a única que realmente mudou as relações sociais – brasileira e, juntamente com a

Independência e com a Constituição de 1891 foram os processos que impulsionaram a

ascensão do capitalismo no Brasil (GORENDER, 1983).

Para tentar provar sua tese de que a burguesia é conservadora, o autor cita que

ela não se engajou nas lutas abolicionistas.

Outro exemplo dado por Gorender é da burguesia de São Paulo: o estado foi,

obviamente, beneficiado pela economia cafeicultora, mas não pelos donos do café e sim

pelos intermediários deste processo, como a economia financeira, bancária e o comércio

que acaba desviando parte destes benefícios para a indústria (GORENDER, 1983).

Portanto, a burguesia paulista não tem uma origem heróica de imigrantes ou nobre

como era comumente defendido. Ela tem, sim, uma origem no comércio importador, no

comércio interno e na pequena indústria destes “intermediários” do café. Ele defende

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ainda que a Revolução de 30 não tinha uma perspectiva industrialista e que ela não foi

uma revolução, e sim, apenas uma reposição de forças no bloco no poder

(GORENDER, 1983).

Para ele, a burguesia brasileira tem um caráter ambíguo e mantém uma relação

instrumental em relação ao imperialismo e também ao estatismo. Ela os critica e os

apóia quando quer. Deste ponto de vista, portanto, não se pode enxergar um

nacionalismo na burguesia brasileira. Até mesmo em relação ao capital externo, existem

contradições, mas existe muito mais cooperação entre um e outro.

Finalmente, o autor defende que a burguesia brasileira não é revolucionária por

que nunca houve uma revolução burguesa no Brasil. Porém, apesar da imensa

contribuição e enriquecimento trazidos pela obra de Jacob Gorender a este debate, deve-

se ressaltar, no entanto, que o autor analisa a burguesia brasileira como classe, porém,

não enxerga as contradições interburguesas, como, por exemplo, é feito por Sodré,

como vimos anteriormente (GORENDER, 1983).

Já na obra de Francisco de Oliveira “A economia brasileira: crítica a razão

dualista”, publicada originalmente em 1973, é esboçado uma importante crítica na

matriz do pensamento sobre o Estado e capitalismo em seu contexto. A tradição

intelectual até então, concebia que um dos entraves para o desenvolvimento do país era

a presença do atraso, que atuava pelo latifúndio e formas de super-exploração do

trabalho, onde a alternativa era intensificar a modernização do desenvolvimento

capitalista, fazendo amadurecer as condições materiais para a sua superação, mas, para

Francisco de Oliveira, o atraso era funcional para o desenvolvimento da “modernidade”

capitalista, pois era a sua presença que mantinha a super-exploração do trabalhador,

garantiria uma rígida concentração de renda, perpetuando tais características oriundas

da particularidade do desenvolvimento capitalista (OLIVEIRA, 2003). Tal

argumentação foi uma dura crítica ao economicismo das análises teóricas sobre o

desenvolvimento social brasileiro, onde a tradição intelectual criticava as mazelas da

população latino-americana, atrelado a uma abordagem teórica voltada ao mercado e a

economia.

Essa seria a crítica ao caráter das análises dualistas da realidade brasileira, de um

lado às proposições teóricas dentro do campo do marxismo, por outro às abordagens

reformistas da CEPAL, que, segundo Francisco de Oliveira, reduzia a dinâmica social

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das lutas de classes ao caráter economicista, onde essas eram vistas como meras

expressões por demandas materiais (OLIVEIRA, 2003).

Partindo para a análise de Florestan Fernandes em “A Revolução Burguesa no

Brasil” podemos dizer que, nessa obra, o autor defende a tese de que houve, sim, uma

revolução burguesa no Brasil, mas de forma peculiar, devido aos aspectos particulares

que condicionam o desenvolvimento histórico brasileiro (FERNANDES, 1987). Tais

aspectos fizeram com que o processo de revolução burguesa no Brasil não contasse com

uma participação popular (como nos casos clássicos), como também nunca houvesse

uma mobilização das classes subalternas contra as classes tradicionais.

A repercussão desse modelo de revolução burguesa foi a atualização do antigo

sob o novo, pois além de não haver uma mobilização popular contra as classes

tradicionais, não houve também uma ruptura com a dependência externa

(FERNANDES, 1987). A conseqüência foi uma revolução burguesa típica que excluiu

as demandas das classes populares e não as reconheceu como sujeitos políticos.

Dessa forma, as estruturas sociais, políticas e econômicas se enrijecem em um

clico vicioso, onde o passado sempre cobra o seu preço e o capitalismo se expressa em

um padrão estrutural de preservação da ordem oligárquica, de formas pré-capitalistas de

exploração do trabalho e por um desenvolvimento desigual da forças produtivas.

Esses elementos, provenientes da dinâmica periférica do capitalismo brasileiro,

condicionaram o Estado sob a forma autocrática, irradiando uma onda de contra

revolução prolongada no intuito de passivizar às demandas populares, não permitindo a

sua participação nas mudanças sociais (FERNANDES, 1987).

Segundo Florestan (1987), o Estado brasileiro é autocrático desde a

Independência, que, para manter tais características, necessitam articular várias formas

sincréticas de dominação, sendo fascista na repressão aos trabalhadores; democrático

entre as frações infra-burguesas; oligárquico na manutenção das formas tradicionais de

dominação.

Para o autor, a transformação capitalista sob a égide do Estado autocrático,

semeia uma profunda concentração de renda, uma super-exploração do trabalho e a

submissão ao imperialismo (FERNANDES, 1987). As mudanças sociais são dissipadas

pela conciliação com o passado, pois a burguesia na periferia se encontra dependente

externamente e não garante hegemonia interna, por não conceber as demandas das

camadas populares, por isso o Estado aparece como o dínamo do poder burguês.

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A trajetória de luta de Ruy Mauro Marini

Antes que possamos começar a falar da obra de Marini, especificamente, da

Teoria da Dependência, obra a qual vamos nos ater mais neste estudo e, também, sua

mais famosa obra, cabe-nos fazer um breve levantamento de sua própria trajetória de

vida, que sempre foi marcada por elaborações teóricas, mas, também, por uma

incansável prática militante.

Ruy Mauro Marini é natural de Barbacena, Minas Gerais. Foi para o Rio de

Janeiro, inicialmente, no intuito de estudar Medicina, plano este que foi abortado, tendo

ele começado a estudar Direito em 1953 na UFRJ, porém, nunca concluiu este curso

também. Começa, então, a estudar Administração Pública na Escola Brasileira de

Administração Pública e de Empresas. Nesse período, Marini já era funcionário público

e começa a participar do movimento estudantil, quando ingressa na organização política

Política Operária (POLOP) (STEDILE, 2005).

Sobre a POLOP, cabe-nos uma atenção maior para entender qual era esta

organização inicial que Marini não só se envolveu, mas ajudou a fundar (juntamente

com Theotonio dos Santos, Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira e Paul Singer, com

a diferença de que ele e Theotonio tinham vindo da Mocidade Trabalhista e os outros

dois do PSB), ainda na juventude.

A Política Operária (POLOP) foi uma organização que surgiu contrária à linha

do Partido Comunista Brasileiro e que deu origem a várias outras organizações como a

COLINA (Comando de Libertação Nacional), a VPR (Vanguarda Popular

Revolucionária), o POC (Partido Operário Comunista), o Coletivo Marxista, o MEP

(Movimento de Emancipação do Proletariado), entre outras. Porém, a própria POLOP

tem origens em outro movimento, o Partido Socialista Brasileiro (PSB), que formou a

Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM-POLOP) em 1961, a

partir da fusão com círculos de estudantes vindos da Mocidade Trabalhista de Minas

Gerais, da Liga Socialista de São Paulo, alguns trotskistas e com alguns dissidentes

do PCB do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Em 1964, depois do golpe, a POLOP começa a tentar se articular e organizar

com táticas de guerrilha no Vale do Rio Doce, porém, antes mesmo que esta articulação

fosse colocada em prática, foi descoberta pelo Centro de Informações da Marinha.

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Contudo, um grupo de dissidentes da POLOP, que formariam o MNR (Movimento

Nacional Revolucionário), consegue colocar este plano em prática em uma guerrilha

intitulada Guerrilha do Caparaó em 1967.

Depois deste marco, a POLOP começou a se desarticular e perder unidade,

dando origem a vários outros grupos já citados anteriormente. Seus antigos militantes

chegaram a publicar, durante algum tempo (mesmo exilados) em conjunto com a Ação

Popular Socialista e o MR-8, uma revista de debates teóricos, chamada Brasil Socialista.

A carreira acadêmica de Ruy Mauro Marini, pode-se dizer, começa a partir de

1962 na UnB onde fez Mestrado e depois já se tornou professor daquela instituição. Lá

organiza, novamente com Theotonio dos Santos e Vania Bambirra entre outros, um

grupo de estudos de O Capital de Marx, que pretendia analisar a América Latina com

base no marxismo, o que se tornou, mais tarde, a base para sua maior formulação: a

da Dialética da Dependência. Este grupo acabou apontando para uma visão crítica e

alternativa às visões da CEPAL e do PCB sobre o processo de desenvolvimento

brasileiro, retomando o pensamento do imperialismo de Lenin, e de desenvolvimento

desigual e combinado de Trotski (STEDILE, 2005).

Com o golpe, Ruy Mauro exilou-se no México em 1965 após ser preso e

torturado no CENIMAR (na ocasião da tentativa de guerrilha do Vale do Rio Doce,

como vimos anteriormente), e, em 1968, transfere-se para o Chile onde foi professor da

Universidade do Chile até 1973 e lá atuou no Movimento de Esquerda Revolucionária

(grupo também de luta armada), posteriormente, passa pelo Panamá, Alemanha e

retorna ao México em 1974, para lecionar na Universidade Nacional Autônoma do

México (UNAM), onde ficou boa parte de sua vida e onde foi produzida a maior parte

de sua obra, e onde atualmente há um centro de estudos dedicado a ele.

Ruy Mauro Marini só retorna ao Brasil na década de 80, especificamente, em

1985, porém, sempre ainda lecionando ocasionalmente na UNAM. De 1984 a 1986,

participa da Universidade das Nações Unidas1 1985, tenta em , sem sucesso, a criação de

um centro de estudos sobre desenvolvimento na UERJ e vira professor da FESP-RJ.

Em 1986 volta a UnB.

1 Órgão ligado a ONU, criado em 1973. Diferentemente da maioria das universidades, a UNU não aceita estudantes nem outorga títulos. Ao invés disso, tem uma série de centros de pesquisa por todo o mundo, aonde os pesquisadores ou estudantes de outras universidades podem ir e realizar pesquisas. Está especialmente orientada a pesquisadores e estudantes de países em desenvolvimento. Tem uma sede principal em Tóquio e duas sedes alternadas em Nova York e Paris.

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Morreu de câncer em 1997, aos 65 anos, no Rio de Janeiro. Até o fim de sua

vida, continuou ainda atuando politicamente, porém, de forma mais discreta, no PDT.

A originalidade da obra de Ruy Mauro Marini

Do ponto de vista de Ruy Mauro Marini, as análises sobre a realidade brasileira

até então, quando foi escrito Dialética da Dependência, não eram dialéticas, por isso sua

tentativa de fazer esta análise seguindo fielmente este pressuposto metodológico.

Refletindo especificamente sobre o golpe militar, o autor afirma que este foi

dado por demandas internas, como resultado da demanda estrutural do capitalismo

brasileiro e não por um erro tático da esquerda. Para ele, naquele dado momento

histórico, o Brasil estava diante de duas alternativas: ou o fascismo ou o socialismo

(MARINI, 2000).

Sua tentativa era de analisar o golpe a partir da configuração econômica da

sociedade e como essa configuração afetou a correlação de forças da mesma. Neste

sentido, afirma que o golpe repõe o compromisso contraditório de indústria, agricultura

e imperialismo e as recoloca em novas bases (MARINI, 2000).

A tese é de que, internamente, deve-se super explorar o trabalhador e realizar

exportações, pois aqui não teria mercado consumidor, por isso a necessidade do Brasil

de se tornar sub-imperialista. Mas, como o autor adverte:

“O conceito de sub imperialismo emerge da definição desses graus intermediários e aponta para a especificação de como incide na economia dependente da lei segundo a qual o aumento da produtividade do trabalho (e, em conseqüência, da produtividade do capital) produz um aumento da super exploração.” (MARINI, 2000, p.164)

No que diz respeito ao método utilizado pelo autor, ressaltamos o uso do método

da correlação de forças para periodização, onde são divididos em sua análise: de 1922 a

1937 (do Tenentismo ao Estado Novo, onde, segundo ele, havia um equilíbrio instável

entre as classes), depois do Estado Novo à Posse de Vargas e deste até o Golpe Militar.

Para ele, em 1937, houve o chamado “estado de compromisso” que estabeleceu

uma complementabilidade contraditória entre indústria e agricultura criada

politicamente pelo Estado, que hora favorecia mais a um e hora mais a outro, inclusive

aos trabalhadores, com a criação de leis sociais que hipertrofiaram o Estado, porém

gerando alguma ascensão social à classe trabalhadora (MARINI, 2000).

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O que unificava a indústria e a agricultura neste contexto, além das ações do

Estado, era a super-exploração dos trabalhadores, vigente nos dois modelos. Isto é o que

torna o capitalismo brasileiro uma particularidade.

Em 1953 e 1954, com as tentativas do Governo de aprofundar o

intervencionismo e o nacionalismo, há um choque entre o bloco no poder e o Estado.

Essa crise só é solucionada de 1954 a 1960 com Café Filho e Juscelino Kubistchek que

buscam superar estas contradições através da abertura econômica (MARINI, 2000).

Já em 1961, Jânio Quadros implementa em seu governo arrochos salariais,

liberalismo econômico e reformas estruturais no campo (como o Estatuto da Terra) que

buscam estimular a transformação de fazendas em verdadeiros empreendimentos

capitalistas, o que, mais uma vez, gera uma crise semelhante a de 1954 (MARINI,

2000).

Em 1963 e 1964 há uma tentativa de reedição da aliança entre burguesia e

trabalhadores. O governo de João Goulart é marcado por arrochos salariais, mas

também por uma guinada à esquerda, quando é abandonado o Plano Trienal e dão início

às reformas de base de seu governo.

Após fazer essa análise detalhada periodizando através da correlação de forças,

Marini conclui que há uma inviabilidade da possibilidade de uma revolução burguesa na

periferia. O capitalismo, especificamente no Brasil, se desenvolveu sem desarticular as

formas tradicionais de desenvolvimento social vigentes no passado. Desta forma,

afirma, categoricamente, que o único caminho para o Brasil é uma revolução socialista e

não burguesa (MARINI, 2000).

O sentido que pode ser atribuído para sua “Dialética da Dependência”

(MARINI, 2000) é, principalmente uma crítica incisiva ao dualismo que ele enxergava

nas análises deste período até então.

A dialética da dependência é, então, um articulado sistema que permite o

aumento da mais valia e do lucro do sistema capitalista e super exploração dos

trabalhadores na periferia, ou seja, há contradições permanentes que garantem ao

mesmo tempo os lucros e a super exploração (MARINI, 2000). A dependência

realmente empurra a periferia ao desenvolvimento, porém, este, por sua vez, por mais

que ocorra, não supera o nível de subdesenvolvimento. Assim o problema que a teoria

marxista enfrenta ao analisar o capitalismo dependente deve ter noção que:

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“(...) as condições criadas pela super exploração do trabalho na economia capitalista dependente tendem a obstruir seu transito na produção de mais valia absoluta à de mais valia relativa enquanto forma dominante nas relações entre o capital e o trabalho. A projeção desproporcional que assume no sistema dependente a mais valia extraordinária é um resultado disto e corresponde à expansão do exercito industrial de reserva e ao estrangulamento relativo da capacidade de realização da produção. Mais que meros acidentes no curso do desenvolvimento dependente ou elementos de ordem transitória, estes fenômenos são manifestações da maneira particular como incide na economia dependente a lei geral da acumulação de capital. Em ultima instância, é de novo a super exploração do trabalho que temos que nos referir para analisá-los.” (MARINI, 2000, p. 165)

Este texto de Marini acaba sendo, de certa forma, uma espécie de resposta a

autores como, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e sua teoria da dependência

que, ao contrário de Marini, nega que a dependência implicava necessariamente

em estagnação econômica e subdesenvolvimento e de que a ruptura socialista seria a

única via possível a América Latina.

Contribuições e críticas à Marini

Como todo bom autor que ousa escrever sobre a realidade de seu tempo, com

seus pressupostos teóricos e metodológicos que lhe são, até então, acessíveis,

obviamente, Marini não foge à regra e, à obra dele, podem ser apontadas algumas

críticas, porém, estas não podem tirar o mérito de sua obra e, assim como todos os

outros autores deste estudo, teve valorosa contribuição ao pensamento histórico e

sociológico crítico na interpretação da realidade brasileira, porém, alguns limites devem

ser levantados para que as possíveis próximas interpretações futuras não incorram em

mesmos erros.

A primeira questão que se pode levantar em relação a esta obra específica de

Marini é que ao falar sobre o mercado interno, parece-nos que o autor subestimou as

potencialidades do mercado interno como mercado consumidor, afirmando, como

vimos, que aqui não teria um e, por isso, o Brasil teria que exportar. A subestimação

quanto à potência consumidora deste mercado se dá principalmente em relação às

classes médias e altas que, essas sim, sempre tiveram este potencial.

Ao mencionar as tensões ocorridas entre indústria e agricultura, o autor não nos

informa, por exemplo, que os investimentos à segunda sempre foram presentes e, mais

do que isso, eram programados na exata demanda que servisse à indústria. Vários

planos de governo, inclusive, foram lançados desde a década de 30 no sentido de

impulsionar a agricultura, só que de outro tipo. Além daquela voltada para a exportação,

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também aquela voltada para atender demandas internas da indústria e também de

mantimentos para a população. Ainda podemos ressaltar que muitos desses

investimentos fizeram com que a agricultura tradicional se modernizasse dando origem

ao agronegócio, extremamente rentável ao desenvolvimento capitalista.

Podemos ressaltar também em sua avaliação conjuntural ao afirmar que a

sociedade caminhava para ou o socialismo ou o fascismo que esta afirmação não se

confirmou ao longo do tempo. A sociedade acabou caminhando para nenhum desses

modelos e sim para uma autocracia burguesa através da construção de uma hegemonia

burguesa junto aos trabalhadores (FERNANDES, 2006).

Em seu livro “Brasil e o capital-imperialismo”, Virginia Fontes (2010) retoma o

debate com Marini sobre o sub-imperialismo e afirma: “Em que pesem divergências e a necessária atualização da questão, o trabalho de Marini segue tendo um papel matricial. Reafirmando as características da superexploração e da pequenez do mercado interno (...)” (FONTES, 2010, p. 358)

E ainda: “Ruy Mauro Marini foi o primeiro – e praticamente único autor – a insistir precocemente no papel imperialista desempenhado pelo Brasil. Apesar de seus trabalhos, o imperialismo segue considerado pelo senso comum no Brasil como algo externo, de fora para dentro, malgrado a crescente transnacionalização de empresas brasileiras.” (FONTES, 2010, p. 351)

Porém, apesar deste grande reconhecimento das obras de Marini para a

compreensão de conceitos como superexploração e nas suas atuais formulações sobre o

imperialismo Virginia Fontes também alerta: “Extremamente sugestiva, essa tese incorre, entretanto, em algumas dificuldades: a lei do valor se define a partir das condições reais e concretas da existência da população, correlacionada ao tempo socialmente necessário para a reprodução do conjunto dos trabalhadores, nas condições históricas e sociais dadas. Se há um truncamento estrutural, este não se limita à periferias, mas precisa ser explicado por circunstâncias internacionais complexas. Assim, situações eventuais (embora dramáticas) de rebaixamento de valor da força de trabalho não configuram necessariamente uma exceção periférica, mas podem expressar o processo desigual e combinado de expropriação do povo do campo.” (FONTES, 2010, p. 352)

Neste sentido, delimitamos aqui o papel fundamental da obra de Marini na

compreensão até mesmo do atual estágio do capitalismo brasileiro, como ressaltado por

Virginia Fontes.

Seus conceitos de superexploração e sub-imperialismo são importantíssimos nas

interpretações da realidade brasileira e se tornam diferenciais no contexto de outras,

como explicitado neste estudo. Além, é claro, de sua originalidade ao ser um dos

primeiros a usar estes termos no Brasil.

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Por outro lado também, sua lamentável peculiaridade deve-se ao fato que, ao

contrário dos demais autores que citamos, a obra de Marini é pouco reconhecida no

Brasil. Talvez seja necessário pensar se uma obra de enorme envergadura como essa

não mereça ser lida, estudada e respeitada junto à academia. Se, hoje, podemos como

Virginia Fontes, olhar para a obra de Marini e ver nela contribuições ímpares à

interpretação da realidade brasileira. Este artigo foi, portanto, claramente, uma tentativa

de resgatar a importância deste autor e a atualidade de suas formulações.

***

BIBLIOGRAFIA

BOTTOMORE, Tom (editor). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro,

Jorge Zahar Ed. 2001, p. 42-44.

FERNANDES, Florestan. “A concretização da Revolução Burguesa”; “Natureza e

etapas do desenvolvimento capitalista” e “O modelo autocrático-burguês de

transformação capitalista”. In: A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação

sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, p. 203-366.

FONTES, Virgínia. “Capital-imperialismo brasileiro – controvérsias e novos dilemas”.

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A CLASSE EM MOVIMENTO: APONTAMENTOS TEÓRICOS PARA UM ESTUDO HISTÓRICO DAS CLASSES SOCIAIS

Mestrando Matheus Nascimento Germano

Universidade Federal de Goiás Bolsista CAPES

[email protected]

Resumo

Este estudo é fruto de um esforço para analisar o conteúdo histórico da abordagem do conceito de classe, tão esvaziado pelas ciências humanas. Não enquadraremos o conceito de classe em uma estrutura hierárquica (que as define por critérios econômicos, de renda ou ocupação), mas como um conceito que se define a partir de um processo histórico distinto, pautado por relações sociais específicas. Nesse sentido, vemos que as relações de produção alocam as pessoas em situações de classe, mas são os antagonismos gerados pela relação dialética entre produtores e apropriadores, que moldam a sua consciência como classe, colocando-as em movimento histórico. Assim, abordaremos a classe não apenas como um reflexo mecânico dos modos de produção, pois ela é, sobretudo, uma relação social inserida em um processo histórico que é condicionado pelo antagonismo entre forças produtivas e luta de classes.

Palavras-chave: Formação de Classe; Consciência de Classe; Experiência; Falsa Consciência.

THE CLASS MOVEMENT: THEORETICAL NOTES FOR A HISTORICAL STUDY OF SOCIAL CLASSES

Abstract

This study is the result of an effort to analyze the content of the historical approach to the concept of class, so drained by the human sciences. Not fit the concept of class in a hierarchical structure (wich defines by economical criteria, like income or occupation), but as a concept that is defined from a specific historical process, guided by a specific social relations. In this sense, we see that the relations of production allocate people in class situations, but are the antagonisms generated by the dialectical relationship between producers and appropriators, wich shape his consciousness as a class, placing them in a historical movement. Thus, the class will cover not only as a mechanical reflection of modes of production, because it is primarily a social relationship embedded in a historical process that is conditioned by the antagonism between the productive forces and class struggle.

Keywords: Class Formation; Class Consciousness; Experience; False Consciousness.

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Introdução

No presente artigo pretendemos defender a centralidade da história nos estudos

das classes sociais, devido à grande presença de definições estruturais presentes na

sociologia, economia e até mesmo na história. O conceito restrito de classe, ao qual nos

esforçaremos em combater, remete a uma concepção de que ela é um reflexo direto dos

meios de produção, como um elemento passivo aos imperativos do modo de produção

capitalista.

Os reflexos negativos que tal concepção promove são: não situa a classe como

portadora de seres históricos e ativos; a exacerbada preocupação teórica em conceituar a

classe, acaba por obscurecer o próprio movimento histórico de seu fazer-se o que

redimensiona as relações sociais e de produção; ao se preocupar com o local estrutural

que a classe ocupa, se esquece o processo que a condiciona na negação e revolta com as

relações de apropriação, reduzindo assim, a ação humana em estatísticas de ocupação,

renda e posição no mercado de trabalho.

Para ir além da idéia de classe como um local estrutural na sociedade capitalista

– o que se faz necessário não somente a sua crítica, mas uma proposta que paute a

formação da classe como um processo histórico – apontaremos uma proposição

metodológica, que a trate não somente como um reflexo direto dos meios de produção,

mas tratar as relações de produção como o primeiro passo na formação da classe,

gerando situações de classe.

As situações de classe expressa que a sua formação e de sua consciência é

construída a partir dos antagonismos e conflitos vividos coletivamente (pelas suas

experiências) ao serem inseridos nos meios de produção. Essa afirmação exalta o

conteúdo histórico e dialético da concepção de classe, demonstrando que ela não

aparece somente a partir de um constructo teórico ou de estatísticas que demonstram

seus rendimentos e ocupações, mas, sobretudo, a partir de um processo histórico que

condiciona relações sociais específicas.

Nesse sentido, primeiramente vamos conceituar e criticar a perspectiva que trata

a classe meramente como um local estrutural, para após delimitarmos a concepção que

adotaremos, identificando a formação da classe como relação e processo. Trataremos, a

seguir, de como as distorções que a concepção estrutural de classe gera na abordagem

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sobre formação de sua consciência; para então concluirmos com a sugestão

metodológica do uso do conceito de experiência para efetivar o uso histórico do

conceito de classe.

Críticas a definição estrutural de classe

Esboçaremos agora duas formas de pensar a classe: como um local estrutural ou

como uma relação social. A forma que defenderemos é a classe como relação social, ou

seja, remete ao sentido sócio-histórico de formação de uma classe, não somente como

algo linear ou reflexo direto dos meios de produção, mas a ação histórica dos indivíduos

no antagonismo entre forças produtivas e luta de classes (WOOD, 2010, pp. 73-98;

THOMPSON, 2004, pp. 9-14). Em outras palavras, pela relação entre apropriadores da

mais-valia (burguesia) e produtores diretos (trabalhadores).

A classe como local estrutural, como o próprio nome diz, a identifica somente

como um dado passivo aos meios de produção, definida de forma economicista, pois é

determinada exclusivamente a partir da ocupação, renda e outros critérios de caráter

econômico. Nessa perspectiva, a classe é entendida em uma posição hierarquizada,

definida por distribuição de renda, ativos e ganhos, esquecendo o foco que seria o

antagonismo gerado pela extração da mais-valia e não somente uma comparação entre

indivíduos situados em uma hierarquia estrutural (WOOD, 2010, pp. 73-98).

Podemos citar dois expoentes da forma de pensar a classe como um local

estrutural em suas críticas a concepção de classe de E. P. Thompson (sob o qual este

artigo está embasado teoricamente e metodologicamente), sendo eles: Cohen (1978) e

Anderson (1980). Ambos sustentam seu argumento de que a classe pode ser sim

definida a partir de sua referência com as relações de produção e que a perspectiva de

Thompson (2004; 1978) dissolvia a primazia das determinações objetivas e as estruturas

em “experiências” subjetivas, sendo criticado duramente por ambos por ser subjetivista

e voluntarista. Segundo tais autores, ele: (...) era culpado de dissolver estruturas “objetivas” na “experiência” subjetiva, de identificar classe com consciência de classe, (...) embora alguns o censurassem por ver classe onde não havia consciência de classe, e outros o acusassem de ver classe por toda parte, completa e “em prontidão”, em todas manifestações de cultura popular (WOOD, 2010, p. 74).

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Mas, a força do argumento de Thompson é que a sua concepção identifica

operações de classe na ausência de uma formação nítida de uma consciência de classe e: (...) os que adotam o tipo de definição estrutural que os seus críticos parecem ter em mente não têm meios de demonstrar a eficácia da classe na ausência de formações conscientes de classes claramente visíveis, nem de oferecer uma resposta efetiva à alegação de que classe é nada mais que um constructo teórico, ideologicamente motivado e imposto sobre a evidência histórica (WOOD, 2010, p. 75).

Levar em conta que as classes não são diretamente formadas pelas forças

produtivas, não significa afirmar que elas (as forças produtivas) não tenham um papel

decisivo à sua formação – como erroneamente afirmavam os críticos de Thompson –

mas significa afirmar que as relações de produção distribuem as pessoas em uma

situação de classe, sendo essa situação o elemento que gera os antagonismos essenciais

que pautam os conflitos de interesses entre as classes que, por sua vez, criam condições

materiais para a luta de classes (WOOD, 2010, pp. 73-98).

Devemos enfatizar que ao concebermos que há um movimento de “autofazer-se”

das classes sociais na história é, ao mesmo tempo, afirmar que existe a ação humana

como processo ativo aos condicionamentos materiais. A classe não somente surge “tal

como o sol na hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se”

(THOMPSON, 2004, p. 9).

Neste estudo, reiteradamente defenderemos a noção de que: Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas (THOMPSON, 2004, p. 9).

Esse entendimento de classe acompanha consigo a noção de relação histórica,

que é algo muito dinâmico para ser fechado e dissecado em uma estrutura para então

analisá-la. Ela se manifesta a partir das relações sociais, que são mediadas pelo processo

histórico do período em que estão inseridas (THOMPSON, 2004, pp. 9-14). Em suma: A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente (THOMPSON, 2004, p. 10).

Não trataremos a classe como uma coisa ou como algo estático, submisso a um

constructo teórico. Nosso maior esforço é trazer a centralidade da história para o estudo

da formação (ou fazer-se) das classes sociais nos mais diversos tempos históricos, no

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sentido de explicar a processualidade histórica que é condicionada pelas classes sociais.

Se: (...) detemos a história de um determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas idéias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição (THOMPSON, 2004, p. 11 e 12).

A classe como relação e processo

Se anteriormente abordamos as duas idéias de classe (como um local estrutural

ou relação social) e após criticar a premissa linear de classe, se faz necessário apontar

qual concepção que nos apoiamos na concepção da classe como relação (social) e

processo (histórico).

Partimos da premissa de que a formação da classe e a sua consciência se

desenvolvem a partir do processo de luta de classes, da forma como as pessoas vivem e

trabalham em suas específicas situação de classe. Assim, as relações de produção, de

apropriação e de exploração existem como condições objetivas (materializadas em

situações de classe), mas que também são vividas conflituosamente por grupos

humanos, que é o elemento central na formação de uma classe (WOOD, 2010, pp. 73-

98).

As “determinações objetivas não se impõem sobre matéria-prima vazia e

passiva, mas sobre seres históricos ativos e conscientes” (WOOD, 2010, p. 76). Dessa

forma: A classe se delineia seguindo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do ‘conjunto de suas relações sociais com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural (...) afinal, nenhum modelo pode dar-nos aquilo que deveria ser a “verdadeira” formação de classe em um certo “estágio” do processo (THOMPSON, 2010, p. 277).

É dessa forma que inverte a “equação” da localização estrutural de classe, pois

ao conceber que ela é um reflexo direto das forças produtivas é o mesmo que afirmar

que as determinações objetivas decaem em uma matéria-prima vazia (o homem). Tal

perspectiva nega o homem como sujeito histórico e também a própria história,

dissipando a luta de classes no processo de apropriação da mais-valia na produção.

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Logo, ao defendermos o conteúdo histórico da classe, vemos que as situações de

classe (entendidas como determinações objetivas) são apenas o início da formação da

classe e não o final, sendo a experiência e a luta de classes o elemento definidor na

formação de uma classe social (THOMPSON, 1981, pp. 180-201).

Thompson (1981) se coloca no projeto de resgatar o sentido histórico da classe,

mas também contribuir contra o esvaziamento do conteúdo crítico na análise de

formação das classes sociais. Quando reforça a importância da experiência – dando

mais ênfase nessa perspectiva do que a definição estrutural da concepção marxista

vulgar e que reverbera na ciência burguesa – Thompson leva a sua análise para além das

determinações objetivas (meios de produção), para um terreno que narra o processo

histórico de formação da classe trabalhadora, que envolvem suas práticas, suas

organizações de luta e o processo de negação à sua alocação em situações de classe

(THOMPSON, 2004, pp. 9-14).

Ao se utilizar de uma definição estrutural de classe, o historiador está negando a

ação do homem, suas experiências e trajetórias coletivas de luta e resistência, as

instituições de classe que são criadas pela ação da classe, isso contribui diretamente para

o processo de esvaziamento histórico das classes subalternas.

Não podemos generalizar a definição estrutural de classe para explicar a sua

formação, pois é função dos historiadores demonstrarem como a sociedade se molda em

formas de classe, tendo em mente de como ela condiciona dialeticamente as relações

sociais e os processos históricos. Ao utilizar do conceito de classe como relação e

processo, enfatizamos que as: (...) relações objetivas com os meios de produção são significativas porque estabelecem antagonismos e geram conflitos e lutas; que esses conflitos e lutas formam a experiência social em “formas de classe”, mesmo quando não se expressam como consciência de classe ou em formações claramente visíveis; e que ao longo do tempo discernimos como essas relações impõem sua lógica e seu padrão sobre os processos reais. Concepções de classe puramente “estruturais” não exigem que procuremos as formas que a classe realmente impõe a sua lógica, pois as classes, por definição, simplesmente existem (WOOD, 2010, p. 78).

Em contraposição: Argumentar que uma definição puramente estrutural é necessária para resgatar a aplicabilidade universal de “classe” é sugerir que, na ausência de sua consciência, classes existam “apenas” como “relações objetivas com os meios de produção”, sem conseqüências práticas para a dinâmica do processo social. Assim, portanto, talvez não seja Thompson, mas seus críticos, quem efetivamente reduz a classe a consciência de classe. Thompson, pelo contrário, parece argumentar que as “relações objetivas de produção” sempre

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são importantes, sejam ou não expressas por uma consciência de classe bem definida – embora sejam importantes de formas diferentes em diferentes contextos históricos e produzam formações de classe somente como resultado dos processos históricos (WOOD, 2010, p. 78-79).

Para aprofundar em uma concepção mais abrangente de classe – que leve em

conta as determinações objetivas, como também a experiência de conflitos e lutas contra

a exploração – adotaremos a concepção de classe como relação e processo. “Classe como relação” gera na verdade duas relações: a que existe entre as classes e a que existe entre membros da mesma classe. A importância da ênfase na relação entre as classes como essencial para a definição de classe é por si só evidente quando considerada contra o pano de fundo das teorias da “estratificação” que – focalizando distribuição de renda, grupos ocupacionais, status ou qualquer outro critério – dizem respeito a diferenças, desigualdades e hierarquias e não a relações (WOOD, 2010, p. 87).

Os critérios de localização da classe como uma relação direta dos meios de

produção apenas aborda os elementos superficiais que as compõe. Tais elementos como

as diferenças de ocupações e renda não são capazes de explicar as relações sociais de

exploração e a reação a ela. As diferenças de classe, assim concebidas, tornam-se

irrelevantes, pois afirmam o esvaziamento humano na formação da classe, reduzindo-o

a mera estatística inserida passivamente aos meios de produção.

A condição necessária de definição de classe passa pela identificação das

relações de exploração e o antagonismo gerado, mas também pela relação interna de

seus membros (WOOD, 2010, pp. 73-98), o que nos leva a conceber as relações de

produção como relações entre as pessoas, que se aglutinam na produção (colocando-as

em uma situação de classe) e como conseqüência o antagonismo gerado devido à

apropriação do trabalho dos produtores diretos.

Essa divisão entre produtores diretos e apropriadores da mais-valia e os conflitos

gerados nessa relação, são importantes para a definição da classe, mas as pessoas que se

reúnem em uma classe nem sempre estão ligadas pelas relações de produção ou

apropriação. “Classe” não se refere apenas aos trabalhadores combinados numa unidade de produção, ou contrários a um explorador comum numa unidade de apropriação. Classe implica uma ligação que se estende além do processo imediato de produção e do nexo imediato da extração, uma ligação que engloba todas as unidades particulares de produção e de apropriação. As ligações e oposições contidas no processo de produção são a base da classe; mas a relação entre pessoas que ocupam posições semelhantes nas relações de produção não é dada diretamente pelo processo de produção e de apropriação (WOOD, 2010, p. 89).

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As distorções de classe: o problema da “falsa consciência”

Marx não nos deixou um esboço sistemático de como ele conceberia a formação

das classes sociais, segundo Hobsbawm (2008) há dois sentidos em Marx que podemos

mapear. O primeiro pode: (...) significar aqueles amplos conjuntos humanos que podem ser reunidos sob uma classificação segundo um critério objetivo – por manterem relações similares com os meios de produção –, e, mais especificamente, os agrupamentos de exploradores e explorados que, por razões puramente econômicas, são encontrados em todas as sociedades humanas que ultrapassem a fase primitiva comunal e, como argumentaria Marx, até o triunfo da revolução proletária (HOBSBAWM, 2008, p. 34).

Essa concepção é presente em uma famosa citação do Manifesto do Partido

Comunista: “A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de

lutas de classe” (MARX & ENGELS, 2007, p. 45). Não que essa visão limite a visão de

Marx sobre a classe, mas essa distinção feita por Hobsbawm (2008) nos permite ver um

sentido amplo de classe ao incorporar (inseparavelmente) o elemento da consciência de

classe em sua formação (HOBSBAWM, 2008, pp. 33-53). Marx: (...) introduz um elemento subjetivo no conceito de classe – a saber, a consciência de classe. (...) Uma classe, em sua acepção plena, só vem a existir no momento histórico em que as classes começam a adquirir consciência de si próprias como tal (HOBSBAWM, 2008, p. 34).

A principal obra de Marx que aborda a formação da consciência de classe é “O

Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte (1978). Esse livro é uma obra de História

Contemporânea que não deixa de ter reflexões fundamentais para o entendimento do

autor acerca da consciência de classe. Há uma célebre passagem que demonstra essa

preocupação em abordar a consciência de classe inseparavelmente da própria formação

da classe. Os: (...) pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes, mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo mau sistema de comunicações na França e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que intercâmbio com a sociedade. (...) A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas constituem um saco de batatas. Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam uma das outras, e opõe o seu modo de

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vida, os seus interesses e a sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe (MARX, 1978, p. 115).

Fazendo algumas ressalvas à força de expressão usada por Marx, que pode

parecer inadequada, ao compará-los a batatas, vemos que ele concebe a classe não

somente pelas condições materiais que estão submetidas, mas também a sua forma de

organização social, que partem através de suas práticas, não somente aos imperativos

dos meios de produção (MARX, 1978, pp. 110-126).

Quando a teoria se sobrepõe ao fenômeno histórico, a classe se estabelece de

forma abstrata e não materialmente dada no cotidiano das relações sociais. Dessa forma

modelos ou estruturas são teorizados pressupondo-se que neles se verifiquem definições

objetivas de classe, como, por exemplo, a da expressão de relações diversas de produção

(THOMPSON, 2010, p. 270).

Da mesma forma que se extrai estatisticamente a definição de classe, o mesmo é

dado na definição teórica de sua consciência. A consciência de classe deve

corresponder, segundo essa visão de classe como local estrutural, diretamente à sua

ocupação nos meios de produção, totalmente a deriva e passivamente condicionada

pelas estruturas (THOMPSON, 2010, pp. 269-281).

Dentro do marxismo, esse tratamento estático a formação da classe e de sua

consciência se manifestou no leninismo, se tornando: (...) uma boa justificativa para uma política de “substitutivos”, como aquele que uma “vanguarda” que saberia mais que a própria classe quais seriam tanto o interesse verdadeiro quanto a consciência mais conveniente a essa mesma classe (THOMPSON, 2010, p. 272).

Ou mais estatisticamente elaborado em Althusser, onde temos a classe: (...) de novo como uma categoria profundamente estática, uma categoria que encontra a própria definição apenas em uma totalidade estrutural estática. Malgrado esta sofisticação teórica, malgrado o fato de essa teoria refutar o processo histórico empírico real da formação da classe, os resultados são muito próximos dos da versão economicista vulgar (THOMPSON, 2010, p. 272).

A maior carga negativa que essas perspectivas trazem a uma abordagem

marxista sobre as classes sociais é a noção de “falsa consciência”, que remonta a uma

versão abstrata, positivista e economicista na formação na consciência de classe,

focando seu arsenal teórico mais às questões de dominação ideológica e a mistificação

da consciência. “Na história, nenhuma formação de classe específica é mais autêntica ou

mais real que outra. As classes se definem de acordo com o modo como tal formação

acontece efetivamente”. (THOMPSON, 2010, p. 278).

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Deve-se deixar claro que a formação da classe e de sua consciência é algo

inseparável, as: (...) classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de certo modo (por meio das relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de classe (THOMPSON, 2010, p. 274).

A classe e a consciência de classe são os elementos finais de um processo

histórico real. Assim, a luta de classes é o primeiro passo na sua formação e não o

último na relação direta com os meios de produção.

Em suma, o conceito de “falsa consciência” remetido a uma classe é uma

construção teórica absurda (ou descabida da realidade), pois afirma que a formação da

consciência de classe está imersa em um mar de mistificação, que não é capaz de nem

sequer reconhecer seus interesses, por estarem totalmente dominadas pelos aparelhos

ideológicos de dominação do Estado.

A classe não pode existir sem ter consciência de si mesma, enquadrando ou não

dentro de uma estrutura delineada a partir de um constructo teórico, ela se encontra no

processo histórico de se autofazer-se a partir das experiências vividas ao serem inseridas

aos meios de produção. O que nos parece é que quando a formação de uma consciência

de classe contraria a estrutura teórica de um argumento, ela logo é tida como uma falsa

consciência de si.

O termo ausente: experiência (a guisa de conclusão)

No decorrer do artigo, elaboramos uma proposta teórica pautado na história para

abordar as classes sociais. Apontamos e criticamos a perspectiva de analisar a formação

de classe como algo preso ás estruturas determinantes, por negar a história e a própria

ação do homem como elemento mediador dos processos históricos.

No esforço de negar tal perspectiva restrita de classe, visamos inverter a equação

formação de classe = meios de produção, não no sentido de negar as pressões das

determinações objetivas na formação da classe, mas de ressaltar que existe algo além da

forma mecânica esboçada em tratar a classe como um mero reflexo dos meios de

produção. Esse “algo além” é a ação do homem, que a partir da luta de classes forma a

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sua consciência e se reconhece materialmente e culturalmente em uma classe. A luta de

classes é o elemento que nos mostra a reação aos antagonismos ao serem inseridos nos

meios de produção.

O termo experiência vem para nos servir como ferramenta, pois atua como um

mediador entre o ser social e a consciência social, o meio em que o ser social determina

a consciência. Em outras palavras, seria a experiência sobre a pressão determinante dos

meios de produção, “a experiência da determinação” (WOOD, 2010, p. 89).

Marx ao remeter ao conceito de “ser social”, ele não o concebe apenas como

algo submetido ao modo de produção (como uma estrutura objetiva e impessoal), mas

de como as pessoas vivem as suas relação de produção (THOMPSON, 1981, pp. 180-

201).

A proposição metodológica que o conceito de experiência promove é uma

ligação com o conceito do ser social, pois esse conceito leva em conta que as “estruturas

objetivas” transformam a vida das pessoas, mas é tarefa do historiador evidenciar a

reação das pessoas as estruturas, levando em conta que: (...) as pressões determinantes dos processos estruturados são sentidas e manipuladas pelas pessoas. O peso da mensagem teórica contida no conceito de “experiência” é, entre outras coisas, que a operação das pressões determinantes é uma questão histórica, portanto empírica e imediata. Não pode haver uma ruptura entre o teórico e o empírico (...) (WOOD, 2010, p. 90).

Para então olharmos o conceito de modo de produção, além de um constructo

teórico estruturado, temos que analisá-lo como ele se materializa em um processo

histórico, que é a mediação entre ação humana em reação as determinação objetivas. Na

experiência: Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro desse termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (...) e em seguida (...) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (THOMPSON, 1981, p. 182).

Nesse sentido, vemos que toda essa proposta de analisar a classe em movimento

é um esforço de analisá-la como um processo histórico e que para efetivar essa

perspectiva para além das visões estruturalistas, se faz importante o uso do conceito de

experiência (THOMPSON, 1981, pp. 180-201). A mediação que a experiência promove

– entre a formação da classe e os meios de produção – exalta o papel da classe como

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força motriz do movimento histórico. Assim, concluindo nas palavras de Ellen Wood

(2010), vemos que as: (...) relações de classe são o princípio do movimento dentro do modo de produção. A história de um modo de produção é a história do desenvolvimento de suas relações de classe e, em particular, da transformação destas em relação de produção. As classes se desenvolvem no interior de um modo de produção no processo de união em torno das relações de produção e à medida que se alteram a composição, a coesão e a organização das formações de classe resultantes. O modo de produção chega à crise quando o desenvolvimento das relações de classe em seu interior transforma as próprias relações de produção. Descrever o movimento histórico, portanto, significa exatamente negar que a relação entre classes e as relações de produção seja fixa (WOOD, 2010, p. 92).

***

BIBLIOGRAFIA

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Revista Chrônidas

Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas

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NOTAS SOBRE METODOLOGIA HISTÓRICA E TEORIA SOCIAL

EM JOÃO BERNARDO

Mestrando Rodrigo Oliveira de Araújo

Universidade Federal de Goiás

[email protected]

Resumo

O conflito de classes é o centro absoluto da obra de João Bernardo. Partindo deste

pressuposto o autor desenvolve um coerente arcabouço teórico-metodológico com a

finalidade de analisar a História. Verifica em suas análises um amplo processo de

espacialização de práticas sociais, viabilizadas pelos centros de conflito. Porém com

espacializações independentes, que são determinadas pela interpenetração de práticas

distintas, desenvolve-se um modelo de análise sociológico multi-determinado e pluri-

centrado, conectado ao seu centro de conflito, tendo na práxis o conceito que lhe

viabiliza.

Palavras-chave: Marxismo; História; Sociologia; João Bernardo.

NOTES ON HISTORY METHODOLOGY AND SOCIAL THEORY

IN JOÃO BERNARDO’S WORKS

Abstract

The class conflict is the absolute center of the work of João Bernardo. Based on this

assumption the author develops a coherent theoretical and methodological framework

for the purpose of analyzing history. Checks in their analysis a plentiful process of

spatialization of social practices, enabled by the centers of conflict. But with

independent specializations, which are determined by the interpenetration of different

practices, it develops a sociological model to analyze multi-determined, multi-centered,

connected to the center of conflict with the concept in praxis it enables.

Keywords: Marxism; History; Sociology; João Bernardo.

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I – Introdução

O objetivo do presente artigo é dar nota de alguns aspectos da obra de João

Bernardo que contribuem para o desenvolvimento da pesquisa em História. Seria

impossível nos limites deste artigo perscrutar todos os aspectos concernentes ao tema,

devido a sua vastidão e a complexidade. O que se foca, portanto, são alguns aspectos

metodológicos compreendidos como fundamentais. Porém, como o autor concebe a

história enquanto construção coletiva, portanto social, faz-se necessário penetrar no

âmbito de sua compreensão teórica da estruturação das possíveis interpenetrações entre

prática e ideologia.

II - Considerações Metodológicas sobre a História

O modelo teórico-metodológico de João Bernardo concebido para a análise

histórica não é fechado, e pode (e deve) ser ampliado, detalhado e reorganizado a partir

da análise de dada historiografia. Não pode ser considerado um modelo marxista

ortodoxo, engessado em um a priori teleológico, tal como foi moda os entre marxistas

durante o século XX (HOBSBAWM, 1999: 159). Para o autor a teleologia não é um

risco na medida em que não prevê um futuro no passado. Porém compreende que o

inverso é inevitável, e se analisa o passado sempre à luz do futuro.

Sempre concebe o que se entende por presente como projeções do passado em

direção ao futuro, nunca na forma quadros estáticos, mas sempre em processos. Para a

confecção da História, porém, o ponto de partida é a seleção de fatos, mas não se tratam

de fatos que por si mesmo já tenham algum sentido, mas antes, da relação contraditória

entre alguns eventos específicos. Assim a contradição é o principal aspecto a ser

explorado na análise histórica (BERNARDO, 2006: 193).

Considera que as contradições são fatos da própria existência humana, que se

considerados os fatos de forma isolada ou de um ponto de vista individual, podem não

aparecer enquanto contradições. Para sua visualização há a necessidade de articulação

entre si. Para que isto seja possível, tanto teórica, quando metodologicamente, é

necessário inicialmente que se compreenda a coexistência de múltiplas temporalidades,

não somente a existência de várias durações, mas precisamente a existência de durações

que se articulam em relações contraditórias, compreendidas a partir dos ciclos de mais-

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valia relativa e mais-valia absoluta1

Contudo, o historiador tem uma vantagem sobre os agentes que realizam a

História: ele dispõe da visão posterior de acontecimentos já realizados. Nisto considera

que o pesquisador não pode se furtar à classificação e à articulação, com o fim de

elucidar o que sucedeu – o que muitas vezes pode não ficar claro àqueles que viveram

determinada situação. De outro lado, para compreender o que sucedeu, evidentemente, é

indispensável compreender também porque que tais trajetórias foram realizadas, algo

que se torna claro a partir do confronto com o ponto de vista dos sujeitos. Deste modo, o

historiador sempre tem duas perspectivas a considerar em seus estudos: o a piori dos

agentes, em seu percurso próprio, e o a posteriori do estudioso, a observar e classificar.

. Somente partindo destas noções seria possível

perceber que os processos coexistem e se chocam na dinâmica dos conflitos em torno do

processo de exploração.

A contraditoriedade e a simultaneidade dos diversos tempos e situações de

exploração e resistência, articulados, dão ao processo histórico um caráter de estrutura.

Nesta relação contraditória entre contradições percebe-se que a dinâmica histórica se dá

sempre entre estruturas que pretendem se conservar chocando-se com outras que

pretendem transformar o que está posto.

Do ponto de vista dos agentes, a História sempre ocorre entre os que têm algo e

aqueles que querem algo. E é na relação conflituosa entre aqueles que controlam o

tempo alheio e aqueles que têm o tempo por outros controlado (BERNARDO, 2005),

que se factibiliza o modelo e faz emergir do processo histórico o sentido dialético entre

conservação e mudança. No entanto, como estruturas sociais são hierarquizadas, torna-

se necessário ter claro que toda a história se remete sempre a um modo de produção.

Continuando as considerações sobre o método, para se evitar a generalização de

pontos de vistas específicos, ou ao contrário, para evitar tratar como específico algo que

é comum, torna-se indispensável proceder à comparação no método de pesquisa. Este

procedimento é o que possibilita a explicitação dos nexos causais. Para realizar este

intento é necessário ter uma hipótese científica a priori, entretanto esta hipótese será

vislumbrada a partir da pesquisa histórica, sendo por esta reorientada. A historiografia,

1 Os conceitos de mais-valia absoluta e mais-valia relativa podem ser vistos no clássico MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Dos capítulos V ao XVI e também na revisão de BERNARDO, J. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991 (especialmente nos capítulos I e II). Porém, neste artigo haverá somente alusão ao assunto, já que não é o seu foco.

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neste sentido, torna-se o aspecto delimitador das possibilidades de pesquisa, fornecendo

os fatos constitutivos e balizadores da análise.

Do que concluímos que a historiografia é o objeto principal da história. Mas não

se trata de simplesmente assimilar os eventos. Trata-se antes, através do contraste entre

as tendências da História, fazer emergir o que se presentificou em um futuro, ou seja, a

partir da análise das tendências deve-se buscar o que se tornou real no futuro. Ter em

conta o que se tornou real em um futuro – já passado para o historiador, porém futuro

para os acontecimentos analisados – é indispensável para se orientar a projeção do

passado de forma coerente e com isso captar as linhas de tendência de forma precisa.

Para orientar esta operação se torna necessário o uso de conceitos, que adquirem a dupla

função de otimizar verificação do passado sobre um futuro que se aproxima e de

reanalisar o passado a luz de um futuro desejado.

Com este objetivo o autor estrutura alguns conceitos fundamentais para a análise

da história. O primeiro deles é o conceito de Classe dos Gestores, ou simplesmente

gestores, que ocuparia juntamente com a Classe Burguesa, ou simplesmente burguesia,

o espectro das classes capitalistas. Os gestores se diferenciam da burguesia na medida

em que não são necessariamente os proprietários dos meios de produção e promovem a

extração de mais-valia de forma coletiva. Recebem proventos por serem organizadores

das relações entre, de um lado, as diversas Unidades Produtivas Particulares (UPP)

(local de atuação por excelência da burguesia) por meio das Condições Gerais de

Produção (CGP) (local de atuação dos gestores), e de outro, de processos tecnológicos

avançados de exploração da força de trabalho.

As UPP são assim caracterizadas porque os processos que realizam em seu

interior são utilizados por um número pequeno de outros processos de produção, não

tendo funções fundamentais e centrais no aumento da produtividade no sistema

econômico (BERNARDO, 2009: 213). Por outro lado, as CGP comporiam parte do

sistema produtivo, cujos efeitos de seus processos se estenderiam por várias das cadeias

produtivas interligadas, cujos efeitos de seus processos são assim de amplo alcance.

Deste modo um aumento de produtividade em uma atividade de CGP repercute sobre a

média da produtividade de diversos outros processos a ele integrados (BERNARDO,

2009: 212).

Outro par de conceitos imprescindíveis são os de Estado Restrito e Estado

Amplo. O desenvolvimento de ambos corresponde historicamente às articulações

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possíveis entre CGP e UPP. Por Estado Restrito compreende o clássico aparelho estatal,

espaço de relacionamento entre capitalistas. Quando há somente um polo de

acumulação de capital numa sociedade, isto corresponde a uma situação de ditadura

entre os capitalistas. Quando há, porém, vários polos de acumulação, existe uma

situação de democracia interna aos capitalistas. Nos estágios iniciais de organização do

capitalismo, devido a dispersão das diversas UPP, o Estado Restrito se torna o

organizador prioritário das CGP, devido à centralização do planejamento econômico que

realiza. Já o Estado Amplo é o local onde se realiza a extração de mais-valia, são as

empresas, locais de domínio absoluto dos capitalistas. Seus parâmetros são os limites

entre a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa. Sua história corresponde aos ciclos

de extração de mais-valia. Ambos os conceitos demarcam o que João Bernardo

compreende como Estado.

Na medida em que as CGP vão se consolidando enquanto fatores de integração

econômica e o capitalismo se tornam transnacionalizado, algumas empresas extrapolam

sua cadeia produtiva sobre os Estados nacionais. Dada a importância crescente na

organização das CGP em nível global, o Estado Amplo tendencialmente se impõe sobre

o Estado Restrito, no que concerne à organização do capitalismo. O marco inicial do

processo de preponderância do Estado Amplo sobre o Estado Restrito se dá com a

emergência dos corporativismos, onde se assiste a criação de condições para o

fortalecimento do Estado Amplo (BERNARDO, 2009: 226).

Sistematicamente a historiografia confundiu conceitualmente os gestores com a

chamada classe média. Esta confusão se deve em partes a um erro analítico, pois a

classificação entre classe baixa, média e alta – que deita raízes na concepção weberiana

de classes – se faz a partir do nível de renda e consumo dos agentes; enquanto a

concepção marxista abstrai o nível de renda e se foca na posição ocupada pelos agentes

no processo produtivo. Os gestores recebem proventos, pró-labore, dividendos, etc, que

são frutos da organização do tempo de trabalho alheio, por isso não podem ser

considerados trabalhadores de classe média. Por outro lado, por não serem

necessariamente proprietários – muito embora, em momentos específicos assumirem

esta condição jurídica -, podem eventualmente receber algo que se assemelhe a um

salário, com a distinção básica de disporem do tempo de trabalho alheio sob seu

controle.

Por outro lado, o local em que exercem o seu controle direto, o espaço das CGP,

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são lugares de conexão entre as diversas UPP, onde há a criação das condições objetivas

de integração. Porém estas condições infraestruturais não podem ser concebidas

somente no nível de infraestrutura material, pois para a produtividade de um

trabalhador, por exemplo, toda a educação e modos aprendidos durante toda a sua

formação são fundamentais para a posterior adequação ao processo produtivo, na

medida em que o prepara para a realização de um trabalho cada vez mais produtivo.

Dentre as CGP destaca: a) condições gerais da produção e da reprodução da

força de trabalho, onde se enquadram o ensino, as condições para a existência das

famílias, as infraestruturas sanitárias e hospitalares, o urbanismo, etc; b) condições

gerais da realização social da exploração, que seriam os meios para que o processo de

trabalho ocorra enquanto processo de produção de mais-valia, entrando novamente o

urbanismo e somando as instituições repressivas; c) condições gerais da operatividade

do processo de trabalho, centros de pesquisa teórica e aplicada, formas de captação,

veiculação e armazenamento de informações, que tem o objetivo de manter o controle

sobre a força de trabalho, afastando-o do domínio sobre dos processos da produção; d)

condições gerais da operacionalidade das unidades de produção, que são as

infraestruturas materiais gerais; e) condições gerais da operatividade do mercado, os

transportes para bens de consumo não imediato e as instalações de armazenagem, que

servem para a articulação entre produtores e consumidores; f) condições gerais da

realização social do mercado, publicidade e propaganda, que estimulam estilos de vida

que correspondem a leques de bens a serem consumidos (BERNARDO, 2009: 213).

Estes são ramos de atuação inimagináveis para o antigo burguês que se especializa

sempre sobre o controle de um único tipo de atividade e dele subtrai sua existência.

Frisando um ponto: uso destes conceitos não corresponde a anacronismos,

implica antes em assumir que a história, enquanto memória coletiva, existe sempre em

dois de vista pontos diferentes; o primeiro é o ponto de vista do historiador no futuro; o

outro é o ponto dos fatos no passado. Ao não ter clareza deste fato, ora os historiadores

recaem ora teleologia dos séculos XIX e XX ou na descrição sem pretensão explicativa

dos literatos e cronistas, operando uma análise classificada por Bakhtin de “objetivismo

abstrato” (BAKHTIN, 1994: 36).

Somente comparando as várias possibilidades de resolução de um dado conflito

no passado, e provando a materialidade das possibilidades derrotadas, é que se pode

compreender a real dimensão do que veio a ser. A articulação entre ambos os tempos

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ocorre na medida em que o passado se projeta sobre o futuro enquanto ruptura do que

existe, passando a história a ser prática sobre o presente, abandonando seu caráter

meramente ideológico.

Neste sentido João Bernardo entende que a historia se torna científica quando

consegue provar o que não foi para orientar aquilo que será. Com o objetivo de

compreender as estruturas gerais de configuração do universo social, focaliza-se outro

aspecto da obra do autor.

III - Sobre a Dialéctica da Prática e da Ideologia

João Bernardo em Dialéctica da Prática e da Ideologia (1991) concebe um

modelo sociológico pluri-centrado e multi-determinado, composto de múltiplas

temporalidades, onde os momentos ocorrem tanto em diacronias como em sincronias.

No aspecto sincrônico evidencia-se a possibilidade de desenvolvimento de fatos

relacionados; sobre o aspecto diacrônico se evidenciam os conflitos. Com a finalidade

de ser o mais conciso possível, João Bernardo descarna sua obra de qualquer exemplo

histórico e se prende somente às estruturas consideradas em suas formas abstratas. Os

exemplos deste modelo, no entanto, podem ser apreendidos pelo conjunto de sua ampla

produção bibliográfica, que, contudo, não serão objetivo de reflexão neste artigo.

Deste modo esta obra se converte em um estudo de caráter teórico, que encontra

sua validade na medida em que sua configuração é perceptível pela analise histórica da

realidade social. Parte de uma epistemologia de ruptura com a própria filosofia,

entendendo a prática social como aspecto fundador do modelo. Contudo a forma

expositiva adotada pode gerar controvérsia por não conter exemplos, ficando assim sua

exposição circunscrita ao universo estrutural abstrato, justificado pelo objetivo de

máxima clareza e concisão. Porém, adverte o próprio autor, não se trata de um modelo

metafísico, pois as estruturas ali descritas correspondem a longos anos de pesquisa

empírica, especialmente sobre as reflexões do desenvolvimento dos conflitos da

Revolução Portuguesa de 1974-1975 (PINTO, 2006).

Aliás, o conflito prático é o centro absoluto de toda a produção do autor. E o

conflito que se objetiva a partir de sua obra é o da luta de classes, núcleo onde partem

todas as estruturas de apreciação social subsequente. Assim todos os conflitos existentes

dentro de um mesmo nexo causal determinam as ações dos sujeitos. Porém,

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internamente a estas múltiplas determinações, concebe um ponto de peso maior, que é a

dinâmica interna ao modo de produção. Cabe ressalvar que a determinação compreende

uma articulação causal e não simplesmente uma mera reflexão mecânica. Assim, se o

capitalismo tem como fato básico a exploração de mais-valia, seria justo para um

pesquisador que se baseia na tradição marxista partir deste ponto básico de

determinação.

Porém, não se trata de descobrir uma determinação última, à moda dos marxistas

estruturalistas2

Neste sentido, o modo de produção não é entendido de modo estático, como

forma cristalizada no tempo, e sim enquanto conjunto de relações sociais que se

realizam em espaços e tempos determinados. Partindo desta definição é possível

perceber que tudo o que normalmente se considera como “subjetivo” contribui de forma

objetiva para a organização do processo produtivo, na medida em que concorre para a

orientação da ação dos agentes.

, e sim compreender um modelo multi-determinado, entretanto,

estruturado de forma hierarquizada. À primeira vista pode parecer sutil a diferença, mas

na prática significa dizer que o que ocorre em torno dos conflitos de classe determina o

próprio conflito, mas, sem o próprio conflito, que se configura como núcleo primeiro,

emanador das determinações, não se pode conceber o significado dos demais processos.

Logo, este centro – o conflito em torno do processo produtivo – vai ser sempre o

referencial maior de toda a leitura posterior, toda e qualquer relação social será sempre

considerada enquanto relação institucionalizada. Isto significa dizer que o axioma deste

corpo teórico é a existência do conflito em torno da produção, verificável através da

prática de extração de mais-valia. Os axiomas constituem o centro de todas as teorias

científicas (KUHN, 1987: 13-40) e não seria diferente com este modelo. Na apreciação

historiográfica, parte o autor do princípio que, por um lado, se opõem

fundamentalmente as práticas de exploração do trabalho e, por outro, práticas de

resistência e solidariedade entre trabalhadores.

Consoante à espacialização dos conflitos, o autor descreve a formação de

estruturas chamadas cones de práticas. Por cones de práticas compreende-se o espectro

de determinação alcançado por cada prática, que partindo do centro de conflito,

potencialmente se projetariam indefinidamente no tempo e no espaço, sobre instituições 2 É interessante verificar o tipo de crítica anedótica que faz THOMPSON, E. P. A Miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.

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distintas. Cada cone de prática corresponde a uma influência determinante sobre os

diversos espaços sociais que submete. Digo potencialmente porque a extensão de sua

determinação é balizada pelo choque com as práticas sociais que lhe são opostas. À

medida em estas instituições estão submetidas ao domínio de cada cone de prática, são

por este remodeladas e ganham o sentido especificador da prática social a que esta

submetida. Neste sentido, o cone de prática, por ter como vértice o conflito entre classes

na produção, só se torna definível em função da oposição ao cone da prática que lhe é

oposta.

Desta forma o limite das possibilidades de submissão das instituições ao

espectro de uma prática é delimitado pela situação da luta de classes. Isto impõe

perceber, por um lado, o cone de práticas capitalistas e, por outro, o cone de práticas dos

trabalhadores. Em termos analíticos, os cones correspondem à espacialização das

relações sociais. Dentro de cada cone existe também a formação de outros cones

menores e subordinados ao cone principal, que significam a especificação de cada

prática social, ou seja, a forma dominante que assumirá cada prática social. Dentro do

espectro de práticas capitalistas, devido aos conflitos existentes entre as diferentes

formas de conceber a exploração, existem projetos de dominação distintos, que, em

disputa entre si, estabelecem a forma dominante que assumirão as relações sociais de

dominação.

Em sentido contrário, a condição de explorados e as formas sob as quais se

desenvolvem esta condição, determinam vários outros cones subordinados, existentes

sob a influência das práticas contrárias à exploração. Somente considerando as múltiplas

determinações da condição de existência explorada é que podemos ver surgirem, sob o

domínio de um mesmo cone práticas, distintos projetos de resistência.

As diversas formas assumidas por estas relações sociais correspondem às várias

outras determinações a que estão submetidas internamente em cada campo de práticas.

O significado das práticas de cada cone é percebido em suas relações com o centro,

assim é que se podem definir se são práticas de dominação ou de libertação. Deste

modo, no desvelamento das relações sociais com centro de conflito é que se estruturará

a análise de toda a historiografia existente sobre determinado assunto e, como o centro

estruturante não se trata de uma abstração teórica, sendo fruto da análise histórica da

luta de classes, não pode ser considerado teleológico ou a prioristico. Trata-se, ao

contrário, de perceber até onde se projeta a dominação de cada prática social, que são

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espaço-temporalmente verificáveis.

Para viabilizar e operacionalizar a análise, do ponto de vista metodológico, João

Bernardo nega qualquer realidade às ações individuais e as situa em um plano

meramente ideológico. Isto não significa desconsiderar a realidade material do corpo,

concebido enquanto trajetória. Porém, cada trajetória é determinada pela existência nas

várias instituições onde se situa. Já o que se entende por indivíduo seria a fusão

ideológica desta existência plural. Ao sublinhar o caráter meramente ideológico do

indivíduo, dá-se relevo ao fato que o autor concebe a própria ideologia como não

determinante da prática, situando-a em uma esfera distinta, chamada por ele de esfera

da ideologia. Esta esfera seria totalmente determinada pelas práticas sociais

institucionalizadas.

Mas a concepção desta esfera não significa dizer que o trabalho intelectual de

criação de representações sobre o mundo não tenha uma função prática. Significa dizer

que enquanto ideologias só contribuem para a prática na medida em que se conectam a

práticas previamente existentes, tendo a função de efetuar a coesão entre práticas

dispersas por diferentes instituições. Se não há prática que a engendre, a ideologia se

transforma em simples encenação. Cabe sublinhar que mesmo uma ideologia sem

representação é fruto de uma prática anterior, porém como prática marginalizada, não se

vê realizada no centro das instituições sociais, sendo antes determinada pelo espaço de

determinação de um cone qualquer.

Neste ponto, outro aspecto pertinente a ser visualizado, é a possibilidade de uma

ideologia se prestar a representar uma prática distinta daquela que lhe deu origem. Esta

situação é característica de momentos onde existe uma derrota no plano social,

ocasionando desorganização do movimento contestatório, associado à cooptação de seu

sistema ideológico. Há assim há a sobrevida mutilada de uma dada ideologia, distinta da

prática social que lhe deu origem.

Entretanto, mesmo nesta situação, há uma transformação de aspectos essenciais

da ideologia original, conservando aspectos que tornam possível, em um exame

superficial, associá-la à ideologia original, ocasionando uma situação de verdadeira

ofuscação. Os marxismos de extração nacionalistas poderiam ser afigurados neste rol,

onde se dá relevo à luta vertical entre as nações em detrimento da solidariedade

horizontal entre membros de uma mesma classe social.

Para estruturar a compreensão que todas as relações sociais são

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institucionalizadas, convertendo as próprias instituições em sujeitos históricos, João

Bernardo entende ser possível dividir todo o real existente em três esferas distintas, a

esfera da natureza, a esfera das instituições e a já mencionada esfera da ideologia.

Como a ação produtiva nunca incide diretamente sobre a natureza, sendo sempre

mediata pela ação social, percebe que a natureza está separada em uma esfera própria, a

esfera da natureza. Nesta relação, a natureza sempre é objeto e nunca sujeito da ação

social institucionalizada. Por ouro lado, os sujeitos, que sempre agem dentro das

instituições a que estão circunscritos, se enquadram no que chama de esfera das

instituições, sendo esta esfera de caráter totalmente coletivo, espaço de onde emanam as

práticas. Em outro âmbito, a partir das contradições resultantes dos choques entre as

várias práticas, se construiriam de forma determinada no interior das instituições os

elementos componentes da esfera da ideologia.

É necessário novamente, a esta altura, não confundir determinação e reflexão

mecanicista. A distinção entre esfera das instituições e esfera da ideologia encontra

correspondente no que Bergson teorizou a respeito das diferentes memórias de imagens

e memórias de ação. As memórias de imagens sempre seriam estáticas e

corresponderiam às representações sobre o mundo; já as memórias de ação

corresponderiam a ações passadas que se projetariam, através do corpo, com o objetivo

de continuação sobre o futuro (BERGSON, 2006: 209-262). Neste sentido a reflexão

seria a tradução da memória da prática para a memória de imagens, criando, desta

forma, os elementos componentes da esfera da ideologia.

Neste sentido não há uma simples reflexão mecânica, na medida em que

tradução não significa simples transposição, pois existiriam entre as duas formas de

memórias, descritas por Bergson diferenças qualitativas significativas, posto que a

memória de imagens somente se articula com outras imagens, ao passo que a memória

da prática somente se articula com outras práticas. Assim é pelo exercício constante que

se criam novas práticas, ao passo que sem prática prévia as imagens se tornam

completamente incompreensíveis.

IV – Considerações Finais

Aproveitando o aporte de Bergson, a respeito da memória de ação, podemos

vislumbrar alguns elementos da própria noção histórica de João Bernardo. Para o autor a

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história é sempre projeção de práticas passadas sobre o futuro, mesmo que por vezes

sendo interrompidas, podem ser recuperada pela memória. Neste sentido a própria

memória, e a função intelectual que encerra, poderia ser reavaliada, mas não é este o

objetivo desta conclusão.

O que resta nos perguntar é: por que assumir uma postura tão radicalmente anti-

humanista, negando qualquer existência real ao indivíduo? A explicação desta posição

assumida se fundamentaria em reflexões sobre o refluxo dos movimentos operários após

as derrotas, em especial reflexões sobre o movimento Revolucionário português de

1974-1975, o qual o autor participou ativamente (PINTO, 2004). Sobre este processo,

relata que foi possível ver a rápida ascensão de práticas autogestionárias de organização

da produção por parte dos trabalhadores, a partir da condição de abandono geral que os

capitalistas fizeram de suas próprias unidades produtivas. Assim, os trabalhadores,

determinados pelas condições, assumiram o processo de gestão das empresas partindo

de práticas de solidariedade recíproca, desenvolvendo, de forma paralela, uma ideologia

classista própria, correspondente a esta situação de preponderância de práticas sociais de

emancipação.

Porém, com a rápida recuperação dos capitalistas portugueses, em momento

exatamente posterior, houve a crescente incorporação de alguns elementos

corporificados pelas práticas de autogestão ao cotidiano produtivo das empresas. Estas

puderam assim modernizar suas técnicas de controle social do processo produtivo, e as

ideologias que se sustentavam em práticas autogestionárias rapidamente foram

modificadas e transformadas, perdendo o sentido libertador e adquirindo a sádica

conotação de justificativa do processo de exploração, que a partir de então passou a ser

corrente.

Importantes militantes, antes ferrenhos opositores ao capitalismo, passaram a

compor quadro da nova burocracia estatal portuguesa. A classe trabalhadora, antes ativa

e combativa, transformada em mero apêndice do processo de produção. É desta

experiência que extrai grande parte de suas reflexões. Assim é necessário ter em conta

que seu modelo só pode ser compreendido enquanto a tradução, em termos acadêmicos,

de uma prática simultaneamente material e social. Estes são os pontos de partida de uma

reflexão que se propõe contributiva à transformação do tecido social, que tem, acerca

desta tradução, no conceito de práxis o seu fundamento.

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OS ESTADOS UNIDOS E O DESENVOLVIMENTO DO CORPORATIVISMO NO SÉC. XX: UMA ANÁLISE SOBRE O PODER DAS GRANDES CORPORAÇÕES

E A HEGEMONIA DOS GESTORES

Mestrando Alexandre de Paula Meirelles Universidade Federal de Goiás [email protected]

Resumo

O artigo propõe uma análise da obra de Adolf Augustus Berle Jr., especialmente os estudos que o pensador norte-americano elaborou sobre as formas de organização corporativista do capitalismo estadunidense surgidas historicamente a partir da década de 1930, no modelo das empresas de sociedade anônima. A análise da obra de Berle Jr. estará aqui mediada pelo marxismo de João Bernardo, enfatizando-se a questão dos Gestores como classe dominante capitalista. Palavras-chave: Corporativismo; Adolf Berle Jr.; Gestores; João Bernardo; EUA.

THE UNITED STATES AND THE DEVELOPMENT OF CORPORATISM IN THE 20TH CENTURY: AN ANALYSIS OVER THE POWER OF

GREAT CORPORATIONS AND THE MANAGERS’ HEGEMONY Abstract The article proposes an analysis of Adolf Augustus Berle Jr.’s work, especially studies that the American thinker elaborated concerning the forms of corporate organization of American capitalism that emerged historically from the 1930s, the joint-stock companies model. The analysis of Berle Jr.’s work will be here mediated by João Bernardo’s Marxism, emphasizing the issue of managers as capitalist ruling class. Key-words: Corporatism; Adolf Berle Jr.; Managers; João Bernardo; EUA.

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Por mais que existam inúmeros esforços de analises de várias categorias

cientificas, o capitalismo tem até hoje sido objeto de debate nos diversificados temas da

contemporaneidade, excluí-lo ou omiti-lo acaba não sendo uma alternativa perspicaz

para algumas categorias de ciências, principalmente as humanas como Sociologia,

Antropologia e claro a História, que são áreas de conhecimento que atendem a um

maior número de contingente de leitores, que buscam nelas uma maior apreensão de

sentido que a realidade apresentada apenas por números e tabelas.

O tema do corporativismo nos sugere uma maneira diferente de pensar o

capitalismo do que as formas mais tradicionais compreendidas até agora dentro das

analises mais clássicas sugeridas pelos estudiosos que seguiram a linha de pensamento

de Karl Marx, que é a maior referencia nos estudos sobre o tema. Isso porque

observamos que as Grandes Corporações Modernas1

do século XX têm um

comportamento diferente da empresa analisada por Karl Marx que pensou a empresa de

uma única maneira, como nos explica João Bernardo em seu livro Economia dos

Conflitos Sociais (2009):

No modelo econômico empregado por Karl Marx existe uma única empresa, reprodutível quando necessário numa multiplicidade de outras absolutamente similares, de modo que nesta operação de decalque não há lugar para se conceber qualquer relação estruturada entre empresas reciprocamente diferenciadas. É porque assimilou assim as unidades produtivas que Marx pôde particularizá-las e não as apresentar, portanto, num sistema integrado. (BERNARDO, 2009: 211).

O corporativismo não foi abordado de uma forma mais concisa por Marx em

suas obras além do que alguns teóricos que o usam como referência, mais

especificamente de matriz leninista e gramsciana acabam por ignorar propositalmente a

questão corporativista, ou colocar de lado uma importante categoria que falaremos

adiante, os Gestores, os motivos podem ser vários, mas ao que me concebe o principal

deles é a militância política na qual eles acabam analisando o próprio Marx de maneira

errônea a meu ver deixando a verdade de lado por motivos estritamente fundamentados

em pretensões políticas. Não será este o nosso caso, por isso justifica-se aqui o uso da

1 Refiro-me aqui as grandes empresas que funcionam sob o sistema de sociedades anônimas, no transcorrer deste trabalho apresentaremos de modo sucinto uma descrição sobre o funcionamento destas empresas.

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obra2

O modelo proposto por João Bernardo leva em conta as categorias marxistas,

porém apresenta criticas e novas perspectivas à leitura do materialismo histórico e a

disposição da mais valia no capitalismo. Diferentemente de Marx, destaca

fervorosamente a questão da integração econômica com o caso do corporativismo, onde

essa integração pressupõe a diferenciação recíproca dos processos produtivos, com a

integração se realizando de forma hierarquizada, onde em uma posição dominante estão

os processos de produção que têm o maior número de efeitos tecnológicos em cadeia e o

vasto leque consequente desses processos, isso porque o seu produto final (output) serve

de produto inicial (input) a um maior numero de outros processos. As inovações

tecnológicas se propagam por toda a economia e os custos da reorganização da

fabricação são muitíssimos menores do que seriam se o aumento geral da produtividade

fosse devido à soma da reorganização de cada uma das unidades produtivas

particularmente consideradas. A esses processos fundamentais necessários a integração

das unidades econômicas no nível da própria atividade produtora, João Bernardo dá o

nome de Condições Gerais de Produção (GCP).

de João Bernardo, que nos orientará para encontrar e analisar as categorias desta

forma de capitalismo que não está evidente nas obras militantes.

As CGP não se limitam apenas ao que se denomina de infra-estrutura, mas

abarca todo o campo tecnológico, as relações sociais de produção se articulam com a

realização material. As unidades que não desempenham qualquer função de CGP são

denominadas por João Bernardo como Unidades de Produção Particularizadas (UPP),

seus produtos finais servem de produtos iniciais a um numero reduzido de outros

processos e não desempenham funções básicas nem centrais na propagação dos

aumentos da produtividade. Em qualquer forma de seus estágios históricos e formas, o

capitalismo exige a integração/diversificação, que resulta na integração de CGP e UPP.

Não ocorreu nenhuma evolução de uma fase “mítica” de livre-concorrência, em que

todas as unidades produtivas funcionassem numa completa particularização recíproca

para uma fase de integração. A integração é característica histórica do capitalismo desde

o seu início, pois é ela que faz com que os mecanismos de mais-valia relativa se

processem e sejam responsáveis pelo desenvolvimento do modo de produção.

Encontramos também nas análises de João Bernardo uma orientação a respeito

de como se relaciona o ESTADO3

2 In: Economia dos Conflitos Sociais (2009)

com esta questão da integração econômica e seu

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comportamento nessa fase contemporânea do capitalismo, na relação do mesmo com as

Grandes Corporações, formando uma nova conjectura de poder, que interfere

diretamente a sua relação com a sociedade. Sob o ponto de vista dos trabalhadores na

forma de Estado assim compreendida também é necessária incluir as empresas, isto é, as

empresas como expressão de poder. No interior das empresas, os capitalistas são

responsáveis pela ordem e a legislação, acabando por formar uma nova forma de poder.

“Governante, legislador, polícia, juiz e carrasco – esta é a multiplicidade de funções do

capitalista no interior da empresa”. (BERNARDO, 2009: 218), Esta nova forma de

poder que vai além das três formas clássicas, João Bernardo dá o nome de Estado

Amplo4

A articulação entre as duas formas de Estado apresentadas resulta na

integralidade da estrutura política que é estreitada pela extorsão mais-valia relativa,

sendo que nestas condições a coesão entre os dois é mínima, e o contrário vale para o

afastamento entre as duas formas de Estado. Uma economia que tem por base a mais-

valia relativa permite articular a democracia nas relações internas dos capitalistas com

uma concessão maior da política trabalhista, onde estes encontram inter-relacionados

numa teia muito forte que resulta da rápida concentração do capital. Essa articulação ao

longo do tempo permitiu que o Estado Restrito aos poucos perdesse espaço nas funções

para os Estado Amplo, porque a superestrutura política evoluiu para reforçar o Estado

Amplo que aos poucos assume as funções centralizadoras enfraquecendo as instituições

do Estado Restrito. Assim as empresas passaram a manifestar as características de um

“aparelho no poder”, passando a ter funções de coordenação e centralização da

economia, tais características são observadas no sistema corporativista monopolista que

claramente mostra a concentração de poder como comprovaremos adiante no exemplo

estadunidense a partir da década de 1930.

. A mais-valia absoluta e relativa que definem os parâmetros de organização

desse Estado Amplo, os ciclos da mais-valia relativa definem a sua história e a diferença

entre os sistemas de organização do mesmo. O sistema de poderes classicamente

definido é chamado por João Bernardo de Estado Restrito, que é a acumulação de

capital sob uma forma centralizada que depende do processo de constituição das classes

capitalistas.

3 Sistema político que vigora principalmente nos países do ocidente. 4 Conceito usado por João Bernardo, para ele, o Estado Amplo é constituído pelos mecanismos de produção da mais valia, aqueles processos que assegurem os capitalistas a reprodução da exploração. A obra do mesmo autor referida aqui está contida de exemplos do comportamento do Estado Amplo e Restrito ao longo do tempo e dos lugares, nos atentaremos aqui neste trabalho apenas a alguns exemplos.

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Destacamos aqui um fator importante que também orientará este trabalho que é a

classe dos Gestores, uma tendência unanime para os teóricos do corporativismo, e chave

para a compreensão de todas as categorias que já abordamos sob a luz da obra de João

Bernardo. As principais obras de orientação leninista e gramsciana não costumam dar

muita ênfase a esta questão, para uns os Gestores não passam de braços aliados da

Burguesia, porém aqui destacaremos e comprovaremos que no Capitalismo consolidado

pelos norte-americanos no século XX, os Gestores se consolidam como a classe

capitalista que sobressai perante as demais inclusive sobre a Burguesia, deixando claro

seu antagonismo com a classe dos trabalhadores.

Para chegarmos a esse entendimento é preciso fazer uma analise comparativa em

relação aos meios de produção para distinguirmos e fundamentarmos as duas classes

perante a organização do mercado. A primeira diferenciação que apontamos relaciona-

se com o funcionamento das unidades econômicas, com o burguês ligado as unidades

particularizadas, já os Gestores agem em função do funcionamento das unidades

empresariais em caráter global. Ambas são classes capitalistas que se apropriam da

mais-valia, controlam e organizam os processos de trabalho, estão do mesmo lado

quando o quesito é a exploração e logicamente as duas são antagônicas a classe dos

trabalhadores.

Mesmo antagônicas aos trabalhadores a burguesia e a classe dos gestores se

opõem pelas diferentes funções que desempenham no modo de produção e pela

ideologia que a meu ver está ligada a diferente origem histórica de cada uma destas

classes. Atuando dentro das unidades particularizadas, os burgueses fazem essa

particularização se reproduzir, diferentemente dos gestores que organizam a reprodução

do capitalismo de uma forma a integrar as unidades econômicas decorrentes de um

funcionamento econômico global. Essa integração ocorre tanto no nível da organização

da força de trabalho quanto no mercado de trabalho, onde os gestores dirigem inclusive

os sindicatos burocratizados. Expliquemos também que esta distinção entre gestores e

burguesia não é necessariamente a distinção entre as categorias de Estado nem entre

CGP e UPP:

A divisão entre as esferas de ação da burguesia e dos gestores não corresponde à distinção entre as UPP e as CGP, nem à distinção entre Estado A e Estado R. É certo que as UPP foram inicialmente o campo privilegiado da classe burguesa, porque se caracterizam por um mais reduzido âmbito de integração econômica, já que seu output serve de input a um limitado número de processos produtivos. Por isso é nas

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UPP que mais tardia e mais atenuadamente os efeitos da crescente concentração começaram a fazer-se sentir. (BERNARDO, 2009: 270)

A organização dos processos de trabalho de forma particularizada deu ao

capitalismo a sua característica inicial e também colocou os burgueses na hegemonia da

organização do processo produtivo, mas não era por isso que a classe dos gestores

estava afastada destes processos, porque a particularização não implica um isolamento

total. Os gestores geralmente se encontravam na burocracia do Estado Restrito, quando

este executava funções centralizadoras e as unidades particularizadas constituíam o

Estado Amplo, fazendo com que a burguesia detivesse o destaque no campo

empresarial. Na medida em que se acentua a integração econômica, o Estado Amplo

passa a assumir cada vez mais um caráter coordenador, passando a ser um espaço de

predomínio dos Gestores, deixando a burguesia em segundo plano como veremos no

caso estadunidense.

Pelo modo como executam o seu trabalho nas empresas, os gestores são

considerados por muitos similarmente aos trabalhadores, porém não podemos confundi-

los, pois os mesmos se apropriam da mais-valia ganham boas bonificações em seus

vencimentos, ocupando um lugar na mais-valia apropriada, se colocando em um lugar

especifico na organização econômica e na vida dos trabalhadores. A sua remuneração

não obedece aos mecanismos “que regem os inputs da força de trabalho”

(BERNARDO. 2009: 273). Dispõem de bens de luxo, títulos e ações, e aposentadoria de

montante elevado.

A origem histórica das duas classes acabou não resultando em uma convergência

nem em uma fusão, formando-se em instituições de concentração de poder os gestores

mostraram-se com um projeto distinto da burguesia, o que os tornou divergentes e se

justificou uma luta de classes entre os mesmos, assim podemos afirmar que os gestores

por processo final acabam não sendo um “braço aliado” da burguesia e sim uma classe

que concorreu e se tornou hegemônica na medida em que a concentração e a integração

passaram a se tornar características mais vigentes que o ultrapassado “livre-mercado”

dentro do capitalismo.

Temos no corporativismo moderno de sociedades anônimas uma espécie de

apogeu que coroa a classe dos gestores como dominante de acordo com globalidade dos

processos do capitalismo. O funcionamento deste modelo empresarial atende a todas as

características dessa globalidade, os gestores, gerentes ou managers se sobressaem por

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se mostrarem essenciais neste modelo que exige funções de coordenação cada vez mais

amplas.

Constatemos então essas prerrogativas no caso dos Estados Unidos, nação que se

destacou por dar espaço ao modelo monopolista de sociedades anônimas como uma

espécie de resposta ao modelo comunista da URSS, tal modelo passou a fazer parte de

um discurso ideológico de inúmeros intelectuais estadunidenses inclusive como

provocações de cunho diplomático por conta da rivalidade que se estabeleceu entre as

duas nações no século XX.

Para entrar no caso estadunidense entendamos primeiramente como funcionam

essas sociedades anônimas, conhecidas também como empresa de capital aberto, como

o nome diz, a participação nestas empresas é aberta, geralmente uma empresa quando

começa a aumentar a sua produção acaba por abrir para o sistema de ações, deixando de

ser particularizadas na medida em que o mercado cada vez mais se concentra. É o corpo

majoritário quem indica a administração, a relação de mais-valia continua e a captação

de recursos fica ainda maior com as ações que vende, porém é obrigada a gerar lucros

aos acionistas. Destacamos aqui os fundos de pensão que são empresas que se

especializaram em comprar ações de outras empresas para gerar lucro. A figura do

burguês não existe, porque na medida em que ele abriu sua própria empresa para o

capital aberto ele se inseriu na integração econômica e seu poder passa a diminuir com a

entrada dos acionistas até ele mesmo se tornar um mero acionista e ficar apenas

participando dos lucros deixando a gerencia a cargo de especialistas.

O exemplo das empresas norte-americanas a partir da década de 1930

Centramos a nossa analise na obra de um intelectual norte-americano, Adolf

Augustus Berle Junior.5

As Grandes Corporações nos Estados Unidos até a metade do Século XX

ganharam tanta importância que não bastavam mais fazer analises apenas no campo da

economia, ganhando um grande status jurídico, são analisadas também como

Berle Jr. foi um dos principais teóricos que procurou justificar

o corporativismo não só na sua fase embrionária como abriu espaço para a questão se

institucionalizar e ampliou este debate nas universidades dos Estados Unidos.

5 Especialmente estes dois livros: A moderna Sociedade Anônima e a Propriedade Privada (1984); A República Econômica Americana (1968).

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instituições semi-políticas devido à função tamanha que já exerciam dentro da

sociedade estadunidense.

Em nível de capitalismo as realizações econômicas permanecem insuperáveis, o

modelo corporativista segundo a linha de pensamento dos autores principalmente de

Berle a muito já havia superado as idéias de Adam Smith de livre-mercado, pois

segundo o próprio Berle é um sistema que atendia as necessidades coletivas daquele

tempo. Notificam que após a Segunda Guerra Mundial, o mundo passa por uma

revolução, no qual a base dela é muito mais técnica do que social, que frisava uma

mudança fundamental, a aplicação de novos métodos de produção a vida cotidiana de

centenas de milhões de pessoas, em termos marxistas, podemos dizer já em meados do

século XX se identificava a importância da mais-valia no seu caráter relativo para o

progresso do capitalismo, previa-se uma revolução de caráter tecnológico, ou seja, a

empresa ia ser cada vez mais de crucial valor e atuação dentro da sociedade, tais termos

presumem o avanço não só do mecanismo meramente comercial, mas sim uma

instituição social.

Poder, Concentração e Administração.

São destacados pelos teóricos dois feitos de maior relevo obtidos pela Grande

Corporação do século vinte, a concentração em si própria do poder econômico e o

incremento da capacidade de produção e distribuição. Em 1954, 135 grandes empresas

são detentoras de 45 por cento do acervo industrial dos Estados Unidos, o que

representava a maior concentração de bens de produção registrada até o presente

momento. As grandes empresas são notificadas como importantes fatores de poder, no

período já representavam 70 por cento da indústria estadunidense. Essa formação recebe

de Berle o nome de “concentrate”. O direito americano e a própria economia a priori

impediu o monopólio, mas ambos toleraram e estimularam um sistema no qual cada

ramo da indústria se estabelecesse no domínio de poucas empresas. Mais da metade da

indústria era então operada pelo “concentrate”.

Também é necessário destacar que o impacto exercido por muitas empresas

como a General Motors, ultrapassa seus limites patrimoniais. A existência de pequenos

empresários como os donos de garagens (concessionárias) e redes de serviços

autorizados, como destaca o próprio João Bernardo, tem contratos firmados com as

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principais fábricas de automóveis, e são obrigados a trabalhar nas normas e preços

estabelecidos cujos carros prestam serviços ou vendem. Um exemplo parecido é o do

“dono” de um posto de gasolina. É constatado que a capacidade da Grande Corporação

quanto a decidir e dirigir operações ultrapassa o valor da própria propriedade em si,

assim entendemos a amplitude da dependência do sistema capitalista estadunidense das

operações a um numero reduzido de grandes empresas. Nessa questão já notamos

também a burguesia já não trabalha como hegemônica sendo apenas uma “associada”

das Grandes Corporações.

Na comparação da questão da propriedade são feitas duas atribuições. A

propriedade é um instrumento que faculta a realização, a produção e a evolução, de

outro lado temos as perspectivas de absorção entretenimento e consumo. Um pequeno

negócio que pertence a uma pessoa ou uma família reúne essas duas séries de atributos

no mesmo lugar. O proprietário se vale da sua propriedade para produzir, criar e

progredir, ou seja, utilizava-a como capital. Dependia dela para seu abastecimento e

prazer, estas séries de atributos se entrelaçavam. Por fim essa propriedade representava

culturalmente um modo de vida. Com as Grandes Corporações, conseguiu-se separar

estas séries de atributos que caracterizam a propriedade, como destaca João Bernardo,

uma nova concepção, a produção e distribuição tinham atingido por imposição das

circunstancias dimensões tão gigantescas que é inviável uma propriedade ser

pertencente á apenas um individuo:

Quando um indivíduo inverte capital numa grande empresa, na realidade ele delega à gerencia da mesma plenos poderes para a utilização desse capital na promoção de atividades de criação,e m produção e desenvolvimento, e abre mão de qualquer controle obre o produto resultante, em si. Retém apenas o direito relativo na participação dos lucros, geralmente sob a forma de dinheiro, e o direito pleno de poder vender a sua cota de participação. E um recipiendário quase inteiramente inativo. Assiste-lhe o direito de dispor de seus dividendos, ou de vender as suas ações por dinheiro, a fim de atender-lhe as suas necessidades de consumo ou aos seus desejos de entretenimento. (BERLE, 1954: 30)

Na ótica de Berle Jr., todo indivíduo disporia de um emprego sob a direção dos

gerentes destas empresas, além dos seus salários receberiam os dividendos provenientes

de seus investimentos. Dentro de uma empresa, a “diretoria” dispõe do conjunto de

possibilidades resultantes do patrimônio constituído, dele se utilizando para as

finalidades criadoras e produtivas. A concentração destas funções “criadoras” nas mãos

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dos diretores (Gestores) produz o fenômeno denominado poder que consubstancia a

capacidade de induzir alguém ou exigir de alguém uma atividade específica em

determinado setor.

É consensual para os teóricos do capitalismo corporativo que os Gestores são de

fundamental importância para dar seguimento ao modelo de “concentrate”, já se

comprovavam os primeiros resultados, e já se discorria sobre as suas vantagens, a

diretoria de uma empresa qualquer dispunha de poder para dirigir as atividades dos seus

funcionários e empregados. Por extensão isto inclui o poder de escolher ou não um

empregado e isso acaba determinando ou influenciando os padrões de salários de seus

concorrentes e controlando inclusive os sindicatos trabalhistas.

A “diretoria” dispõe de poderes para decidir se empreenderá ou manterá suas

operações e de que forma deseja fazê-las, adquiriram também o papel de escolher nos

Estados Unidos quais mercados iriam suprir, não existindo na lei, um dispositivo pelo

qual poderia obrigá-las a abastecer um mercado que não desejavam servir. É função dos

gestores fomentar e estimular o progresso técnico dentro do campo de suas atividades, e

o ritmo desse desenvolvimento também está ligada a função dos mesmos.

Acha-se dentro do poder destes gestores determinação do montante e do ritmo

em que é movimentado o capital das empresas, em 1954 a diretoria da General Motors

destinou importância superior a um bilhão de dólares para a inversão de bens de capital

para novos empreendimentos, sendo um dos motivos que justificaram essa decisão o de

perceber que agindo dessa forma a tendência para o retrocesso que se revelava seria

contrabalanceada , evitando dessa maneira um eventual período de depressão. Este é o

resultado de uma economia planificada dentro da qual as decisões podem ser tomadas a

luz de sua provável repercussão sobre a coletividade inteira.

Discutia-se também nos Estados Unidos a questão das administrações das

empresas estarem limitadas as normas e pela opinião pública, predominantemente no

que eles chamavam de mercado de capitais, e que essa administração teria de se

conformar com as normas de procedimento que dela esperavam os aplicadores de

capital a quem recorriam. Antigamente os empresários recorriam ao mercado de capitais

para adquirir fundos para ampliar seu parque industrial, ou aumentar seu campo de

comércio, tendo que submeter seu empreendimento ao julgamento dos investidores ou

dos bancos. Tal fato limitava o seu poder, fez até com que representantes de banco

participassem cada vez mais das reuniões de um conselho diretor de uma empresa, além

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disso, havia a necessidade de levar em conta a opinião dominante do mundo financeiro,

que influenciava quem dispunha de dinheiro para o investimento. Esse “julgamento de

mercado” teoricamente era capaz de exercer função controladora, caso recusasse a

fornecer capital poderia sustar uma expansão excessiva, poderia favorecer

empreendimentos de maior utilidade para o país entre demais fatores.

Para os teóricos na metade do século XX esse “julgamento de mercado” já não

detinha a mesma força, na verdade era quase nula. Durante um período de oito anos

(1946 a 1953) um total acumulado de 150 bilhões de dólares foram gastos nos Estados

Unidos em despesas capitalizáveis, na modernização e ampliação de instalações de

equipamento. Setenta e quatro por cento dos 150 bilhões procederam de fontes internas,

receitas acumuladas e não distribuídas na forma de dividendos (aproximadamente 99

bilhões) de longe a maior parcela dos 150 bilhões de dólares incluíam-se neste total,

lucros retidos e reservas acumuladas destinadas a depreciações, exaustão e esgotamento

de capitais investidos e resgate de dívidas contraídas. Dos 51 bilhões restantes, 36 por

cento do total foram obtidos através de empréstimos normais na forma de créditos

bancários. Dezoito bilhões, 12 por cento do total, foram obtidos através da emissão de

debêntures ou obrigações diversas. Seis por cento, nove bilhões foram realizados pela

emissão de ações, somente aqui é chegado ao investimento de capital de risco , mesmo

assim essa parte do montante encontrava-se afastada do possível fator de risco, sendo

representadas por ações preferenciais.

Não é mais o “julgamento de mercado” que decide a diretriz que oferece mais

possibilidades, mas sim os administradores das empresas, estas sim determinam

inclusive a aplicação dos capitais sujeitos as risco, observamos neste movimento dentro

da linha de pensamento de João Bernardo, como essas Grandes Corporações ganham

poder, ampliam o poder do Estado Amplo, porque já são elas mesmas as formadoras do

próprio capital. A inovação nestas empresas está também por conta do investimento em

novas tecnologias, desenvolvendo a mais-valia relativa, essa formação de capital

também contribuiu para a criação dos laboratórios de pesquisa, investimento que seria

negado pelos reguladores do “julgamento de mercado”. O sucesso destas inovações está

claramente na planificação feita pelos Gestores dentro destas empresas, que colocam-

nas em uma posição favorável para que elas possam realizar estes investimentos, dando

a condição de persistir nas pesquisas até chegarem em uma conclusão, aos poucos as

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empresas estadunidenses se libertaram do “julgamento de mercado” isso obviamente

resulta em mais poder para estas empresas.

Concorrência e Monopólio e a importância dos Gestores.

A concorrência é um fato inegável, concorriam entre si a General Motors,

General Eletric, Westinghouse e a Ford, como existiam artigos e serviços fornecidos por

outras indústrias como alternativas equivalentes, a concorrência no “concentrate”

produziu resultados completamente diversos dos teorizados por Adam Smith, isso

porque quando milhares de negociantes menores (burgueses donos de pequenos

empreendimentos) oferecem suas mercadorias a seus inúmeros fregueses, a

concorrência tem um significado. Outro significado tem a concorrência entre gigantes

como as Grandes Corporações. O resultado de uma luta entre grandes empresas é a

eliminação de um dos conjuntos, a aceitação de uma situação em que a esfera de cada

um é respeitada, pelo menos de algumas formas. O primeiro efeito é a eliminação de

muitos, principalmente das unidades menores.

Nos Estados Unidos, a concorrência de empresas foi diversa da concorrência de

pequenas empresas. A concorrência dentro de uma concentração industrial é uma luta

que visava equilibrar a oferta e a procura, do que a obtenção de freguesia através da

competição de preços, a concorrência interna numa indústria em estado de

concentração, resultou no estabelecimento de um preço base e a concorrência se

processou dentro de limites muito mais estreitos que os aceitos pela economia de livre-

mercado. Não que isso fosse o ideal, apesar de que poucos setores de concentração

desejaram um regime de concorrência desenfreada o que interessou a priori foi a

perpetuação de uma atividade estável, a um custo previsível, sob condições previsíveis.

Concluímos que em um esquema de concorrência entre gigantes o resultado acaba

sendo o estabelecimento de uma planificação, o que significa o aumento da importância

dos Gestores, conseqüentemente o aumento do poder desses monopólios formados.

Os Gestores são de suma importância para o desenvolvimento desta nova forma

de capitalismo, pois são os únicos capazes de impulsionar o desenvolvimento da mais-

valia no seu caráter relativo. Diferente dos “burgueses”, seu valor é reconhecido pela

exigência tecnicista que as Grandes Empresas necessitam, pois são “responsáveis pela

readequação do critério dos lucros” (BERNARDO, 2009:286), e apenas eles possuem

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tal conhecimento técnico capaz de realizar essa planificação, necessária para controlar

essa nova forma de capital que é coletiva de caráter associado.

Até a metade século XX, o discurso dos teóricos estadunidenses já reconhecia tal

valor até mesmo por conta da experiência e transformação industrial que de certa forma

foi pioneira ao ponto de ser reconhecida socialmente, principalmente por conta da

guerra fria que fazia com que freqüentemente, a economia de livre-mercado e

principalmente o modelo leninista fossem de uso comparativo em estudos teóricos e

propagandas sobre o modelo estadunidense. Nesse sentido os defensores deste modelo

consideram a Grande Empresa nos Estados Unidos uma instituição de serventia e não de

tirania. Tal fato é explicado quando entendemos que essas Grandes Empresas vão

assumindo as funções do Estado R, na medida em que atendem as necessidades da

população com seus serviços, adquirem cada vez mais poder.

Após o termino da Segunda Guerra Mundial, a indústria subestimou as

necessidades de aço dos Estados Unidos, diante de tal fato, o Presidente Truman em seu

discurso inaugural de 1949 sugeriu a possibilidade do próprio governo do país

empreender as instalações adicionais necessárias, porém as companhias de aço

aumentaram elas mesmas em mais de vinte por cento estes adicionais, dentro dos cinco

anos que se seguiram. O mesmo aconteceu quando se resolveu instalar eletricidade no

campo que até a década de 30, embora pensasse que não era possível atender este

mercado, o planejamento fez com que as empresas facilmente passassem a ocupar o

mesmo, e as fazendas que dispunham de energia pularam de trinta para noventa por

cento, tal fato aconteceu porque as empresas resolveram ocupar este setor antes que o

governo estimulasse outra forma. Tais serviços dificilmente teriam a mesma eficácia

fossem fornecidos por pequenas empresas de cunho burguês, e a necessidade coletiva

acabava por ser abastecida e controlada pelas Grandes Empresas, deixando a

coletividade a mercê das mesmas. A recorrência ao Estado acaba acontecendo apenas

em tempos de crise, assim as empresas tornam-se instituições também políticas, e seus

diretores (Gestores) acabam com responsabilidades como se ocupassem cargos

públicos. Citando João Bernardo, podemos compreender melhor esse papel dos

Gestores:

[...] Quanto mais a economia se desenvolve e se integra, mais se consolidam os gestores, que nessa integração fundamentam precisamente a sua existência. É a classe capitalista que, contemporânea da gênese deste modo de produção, expande-se e

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reforça-se como crescimento econômico, confundindo-se com ele o seu eixo de evolução. Este papel histórico dos gestores permite-nos reinterpretar a luz da situação contemporânea, os mecanismos do funcionamento das fases fundamentais deste modo de produção. (BERNARDO, 2009: 287).

A tendência das Grandes Corporações consolidou e direcionaram as bases

políticas e econômicas dos Estados Unidos, a potencialidade em reunir capital disperso

e a venda de ações deixou os Gestores e as Grandes Empresas em uma posição

privilegiada, uma amplitude política que um “projeto” burguês possivelmente não teria

atingido tais dimensões.

Nosso trabalho aqui procurou apresentar um quadro geral sobre a economia

estadunidense da metade do século XX fornecendo pontos de investigação sabendo que

uma pesquisa de caráter mais especifica irá dialogar com a nossa idéia e possivelmente

dar mais respostas com estudos de caso e recortes mais precisos. Os estadunidenses nos

proporcionaram repensar a economia, principalmente repensar também uma

reformulação ou adaptação dos conceitos clássicos marxistas. A consolidação do

modelo corporativista estadunidense até o meio do século XX inaugura uma nova fase

na história dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo, apresentadas de várias

formas pela historiográfica principalmente marxista leninista que não levaram em conta

ou não deram importância ao corporativismo, não identificaram que o modelo

capitalista que se estabeleceu tinha um caráter globalizante, que procurou se reproduzir

não só nos limites territoriais, mas a integração econômica após a Segunda Guerra

Mundial expandiu o limite e o poder das Grandes Corporações Modernas, o que nos

leva a pensar ou repensar algumas idéias de ordem política.

Observamos neste trabalho que essas empresas adquiriram funções,

responsabilidades enormes dentro da estrutura econômica e política estadunidense, e seu

poder ultrapassou o próprio poder do Estado, os Gerentes, Managers, Diretores das

empresas passaram a ser mais importantes socialmente do que os burocratas do Estado

Restrito, o que nos faz apontar um questionamento em pleno momento de conclusão

deste trabalho: muitas das obras leninistas colocam os Estados Unidos como

imperialistas, mas o movimento de integração não seria um veículo que reproduz a

soberania das próprias empresas ao invés da soberania nacional? As empresas que

adquiriram o caráter transnacional como a General Motors seriam usadas como política

externa do Governo?

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Observando o que aconteceu internamente nos Estados Unidos, com as empresas

assumindo cada vez mais o poder, esse caráter imperialista estadunidense parece não

proceder das formas com que é apresentado, temos os órgãos do Estado no seu sentido

clássico sendo usados pelas Grandes Corporações, aumentando muito mais a influencias

destas no seu caráter transnacional do que de fato o “imperialismo”. Tal ponto de vista

poderá ser colocado em cheque na medida em que um estudo sobre política de

diplomacia estadunidense se tornar objeto de pesquisa e assim observar no discurso de

seus enviados internacionais qual instituição é defendida e a sua visão de mundo a

respeito da política econômica que vigora nos países em que realizam seus trabalhos.

Seriam os diplomatas defensores do Estado ou das Grandes Corporações? Constatados

tais fatos, a validade de nossas hipóteses poderá se valida para uma nova concepção de

caráter combativo considerando novos pontos de antagonismo com a classe dos

trabalhadores e desconsiderando antigos, como a questão burguesa no poder, usada

pelos leninistas como discurso que não passa de sua fase ideológica visando ganhar

espaço político sem oferecer mudanças consideráveis na estrutura social do capital.

***

BIBLIOGRAFIA BERNARDO, João. Economia dos conflitos sociais (2ª. Edição). São Paulo: Expressão Popular, 2009. BERNARDO, João. Estado: a silenciosa multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras Editora, 1998. BERLE, Adolf A.. A Revolução Capitalista do Século XX. Rio de Janeiro: Editora Ipanema, 1954. BERLE, Adolf A.. A República Econômica Americana. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1968. BERLE,Adolf A. e MEANS,Gardiner C.. A moderna Sociedade Anônima e a Propriedade Privada. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

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OS GESTORES NA ORGANIZAÇÃO DA INDÚSTRIA AERONÁUTICA NO BRASIL (1927-1969)

Mestrando André Luiz dos Santos Vargas

Universidade Federal de Goiás Bolsista CAPES

[email protected]

Resumo

Os engenheiros militares como gestores enquanto classe social capitalista e os caminhos percorridos da pesquisa em ciências aeronáuticas à fundação da Embraer. A atuação dessas personagens no desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Palavras-chave: Brasil; Gestores; Indústria Aeronáutica.

THE MANAGERS IN THE ORGANIZATION OF BRAZILIAN AVIATION INDUSTRY

(1927-1969)

Abstract

The military engineers as managers as a capitalist social class and the course of aeronautical researches until the foundation of Embraer. The function of these characters in the Brazilian capitalist development.

Keywords: Brazil; Managers; Aviation Industry.

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O desenvolvimento do capitalismo brasileiro não pode ser compreendido sem

considerarmos o papel de técnicos e engenheiros militares no processo de integração

nacional dos pólos produtivos. Foi durante o Estado Novo que militares tomaram maior

fôlego no sentido de defender a industrialização para se desenvolver a economia

nacional. Temos como exemplo o projeto desenvolvimentista vindo do Exército neste

período, com o Círculo de Técnicos Militares (CTM), liderado pelo Major Edmundo

Macedo Soares. O CTM trazia a premissa de que as Forças Armadas deveriam se tornar

instituições a serviço do desenvolvimento industrial sob os ditames da defesa nacional

(AVELAR, 2007: 109), ou como afirma Botelho (1999: 139): “O projeto

industrializante do Estado Novo foi acompanhado por um esforço de modernização

técnica das Forças Armadas”.

O capitalismo como modo de produção é um sistema econômico

necessariamente integrado e “pelos mecanismos da mais-valia relativa nos apercebemos

que o capitalismo é uma relação social globalizada” (BERNARDO, 1991: 155).

Pressupõe-se, portanto, uma integração em todos os níveis dos processos produtivos em

recíproca diferenciação e tomando como fundamento para realização a sua

hierarquização: os outputs dos setores dominantes servem de inputs aos demais:

“É a partir daí que as inovações melhor se propagam a toda a economia, de maneira que os cursos da reorganização da fabricação são muitíssimo menores do que seriam se o aumento geral da produtividade se tivesse devido à soma das reorganizações de cada uma das unidades produtivas particularmente consideradas. A estes processos fundamentais, necessários à integração das unidades econômicas no nível da própria atividade produtora, chamo Condições Gerais de Produção (CGP). Não deve entender-se aqui produção num sentido meramente técnico, mas em toda a sua amplitude social. As CGP não se limitam ao que geralmente se denomina ‘infra-estruturas’, mas cobrem todo o campo da tecnologia, que defino como aquele em que as relações sociais de produção se articulam com a sua realização material. As técnicas são esta realização estritamente material e na tecnologia concebe-se a articulação das técnicas com a sociedade” (BERNARDO, 1991: 158)

Pensando por esse caminho, que me é bastante plausível, o pensamento

industrialista e desenvolvimentista dos militares pautado na integração é o de

configuração de CGP em um país que, segundo pensavam, deveria superar o estigma de

uma economia agroexportadora e importadora de bens industrializados para estimular a

preponderância da urbanização e industrialização emergentes. Havia o

descontentamento de certos setores das armas em relação ao estado de desenvolvimento

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do país, que apresentava insuficiências do setor industrial e falta de investimentos

requeridos – com exceção de Roberto Simonsen. (AVELAR, 2007: 111):

“o setor que poderia ser caracterizado como burguês-industrial constituía uma faixa quantitativamente reduzida e incapaz de [palavras de Macedo Soares:] ‘apresentar qualquer projeto industrialista como alternativa a um sistema cujo eixo central era formado pelos interesses cafeeiros’” (AVELAR, 2007: 111)

Por essa citação nos se indica uma insuficiência de certo setor social ligado à

indústria de se realizar uma integração. Se temos um conceito que define os processos

indispensáveis de integração do capitalismo (CGP), temos também o que define as

unidades que não realizam essa função integradora: são as Unidades de Produção

Particularizada (UPP):

“Àquelas unidades que não desempenham qualquer função de CGP, denomino Unidades de Produção Particularizadas (UPP). Considero-as particularizadas porque, servindo o seu output de input a um número reduzido de outros processos, não desempenham funções básicas nem centrais na propagação dos aumentos de produtividade. Enquanto as CGP iniciam a generalidade das remodelações tecnológicas e dão aos seus efeitos o âmbito mais vasto possível, cada UPP limita-se a veicular tais efeitos ao longo da linha de produção em que diretamente se insere, e dessa apenas” (BERNARDO, 1991: 158)

Este setor denominado como burguês-industrial, portanto, apresenta uma

incapacidade intrínseca de integrar os pólos produtivos, surgindo dessa necessidade, e

no contexto tratado, o engenheiro militar como um intelectual planificador das CGP,

responsável pela integração com outras CGP e com as UPP: “A integração caracteriza o

capitalismo desde o início, pois sem ela não se processariam os mecanismos da mais-

valia relativa, responsáveis pelo próprio desenvolvimento do modo de produção”

(BERNARDO, 1991: 158). E a isso considera-se variações dependendo da época e das

regiões.

O Major Edmundo Macedo Soares, do Exército, é um bom exemplo do

engenheiro militar envolvido nesse tipo de projeto tendo o capitalismo industrial como

orientação e a montagem das CGP como caminho. O projeto do CTM, como exemplo,

trazia como ideias basilares:

a) Industrialização integral;

b) Planejamento do Estado (antiliberalismo e antimercado);

c) Expansão planejada dos setores econômicos;

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d) “o Estado deve ordenar também a execução da expansão captando e orientando

recursos financeiros e promovendo investimentos diretos naqueles setores em

que a iniciativa provada seja insuficiente” (AVELAR, 2007: 118).

Destaco e peço atenção ao item d, o qual expressa muito bem em síntese uma

estratégia fundamental para o projeto de militares como os do CTM: o de que a criação

desse pensamento industrialista não deveria ser de esforço somente estatal ou somente

provado, mas em relação entre si tendo o Estado (enquanto unidade administrativa

pública nas esferas municipal, estadual e sobretudo federal, no que posteriormente

denominarei como Estado Restrito) como guia preparando a médio e longo prazo o

controle produtivo das CGP para a esfera privada (o que chamarei de Estado Amplo)

gradualmente até a preponderância desta no capitalismo brasileiro. É dessa relação

corporativa entre os poderes públicos e privados que teremos uma boa base

interpretativa dos caminhos da aeronáutica e da produção em série de aeronaves no

Brasil.

Esta relação corporativista das duas esferas é o cerne do pensamento

desenvolvimentista de intelectuais militares como os do CTM e posteriormente da Força

Aérea Brasileira. O intelectual em destaque é o engenheiro militar que pensa a

integração da economia ao se analisar a geopolítica e a situação industrial no país,

definindo como essenciais CGP a educação – pela formação de técnicos e engenheiros

(sendo estes dirigentes), pesquisa, desenvolvimento tecnológico e infraestrutura.

Sempre sob a ótica do duplo desenvolvimento militar e industrial, em um esquema no

qual o desenvolvimento técnico-científico (pesquisa e tecnologia) fomenta a indústria de

material bélico, que por sua vez fomenta com conhecimentos a indústria civil e ainda dá

azo da urgência de soberania nacional.

O autor Alexandre Avelar (2007), porém, define o militar-engenheiro como “o

intelectual orgânico de um projeto econômico-social abraçado por uma elite burguesa

industrial em vias de se consolidar como uma das frações mais expressivas de classe

dominante” (AVELAR, 2007: 115). Ora, mais que isso, parece-me que o pensamento de

João Bernardo preenche algumas lacunas explicativas a essa questão. Os engenheiros

me são mais que apenas intelectuais orgânicos a serviço da burguesia: são intelectuais

como organizadores de um processo de integração capitalista; são portanto gestores

enquanto classe capitalista:

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“O sistema de integração hierarquizada de processos produtivos, com a superestrutura política que lhe corresponde, pressupõe que no interior do grupo social dos capitalistas se distingam a particularização e a integração (...) Defino a burguesia em função do funcionamento de cada unidade econômica enquanto unidade particularizada. Defino gestores em função do funcionamento das unidades econômicas enquanto unidades em relação com o processo global. Ambas são classes capitalistas porque se apropriam da mais-valia e controlam e organizam os processos de trabalho. Encontram-se, assim, do mesmo lado na exploração, em comum antagonismo com a classe dos trabalhadores. As classes sociais não são possíveis de definições substantivas, mas apenas relacionais1

Assim, essas duas classes capitalistas diferenciam-se entre si por quatro pontos

fundamentais: as funções que desempenham no modo de produção; suas superestruturas

jurídicas e ideológicas correspondentes; suas diferentes origens históricas; e seus

diferentes desenvolvimentos históricos. As esferas de ação da burguesia e dos gestores

não devem ser correspondidas em uma definição simplificada entre UPP e CGP ou entre

Estado Amplo (constituído pelos mecanismos da produção de mais-valia; pelos

processos que asseguram aos capitalistas a reprodução da exploração) e Estado Restrito

(em sentido reduzido, ao sistema de poderes classicamente definido – judiciário,

executivo e legislativo). Define-se, entretanto, ao caráter ideológico de cada uma: o

privatista ou a particularização com a burguesia e a integração com os gestores

” (BERNARDO, 1991: 202)

2

Na terminologia de João Bernardo “a organização dos processos de trabalho e

dos demais aspectos da vida econômica não é sinônimo de gestão. A gestão caracteriza

.

1 Quanto a esse aspecto de definição relacional para as classes e a afirmação do próprio João Bernardo de que “cada classe se define no confronto com as restantes” (1991: 203), é interessante relembrarmos o clássico prefácio do clássico “A Formação da Classe Operária Inglesa”, de E.P. Thompson: “Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas” (1997: 9). É uma relação histórica, fluída, não tendo como oferecer um exemplar puro de classe; não há como ter duas – ou três – classes distintas e a seguir pô-las em relação recíproca: “A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas relações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma” (THOMPSON, 1997: 10). 2 Não há capitalismo desenvolvido se não houver integração, portanto não devendo haver isolamento. Mesmo as UPP tendo sido campos de predominância burguesa, seu âmbito obrigatoriamente relacional com outros processos produtivos são campos de experiência de gestores.

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aqui apenas a organização de atividades em função de seu caráter integrado”

(BERNARDO, 1991: 203). Os engenheiros militares como intelectuais são, portanto,

gestores pelo seu estatuto de integração e planificação do mercado, tendo como

característica também a apropriação coletiva de mais-valia. Atuantes, nesse contexto,

nas CGP. Mais plausível a mim que a afirmação de que são intelectuais orgânicos a

serviço ideológico de uma burguesia industrial como fração expressiva de classe

dominante. O papel integrador dos gestores pode orientar e atender a interesses da

burguesia industrial, assim sendo, essa não se classifica como classe dominante por sua

incapacidade de integração definida por seu estatuto jurídico e ideológico de classe

privatista. Os gestores, sejam do Estado A (“das empresas privadas”), sejam do Estado

R – como é o caso dos engenheiros militares, estes sim se consolidam como classe

dominante em um quadro de integração global da produção, secundarizando a burguesia

enquanto classe capitalista – ambas, lembrando, assim definidas “do mesmo lado” em

antagonismo com a classe dos trabalhadores, produtores diretos de mais-valia.

Por esse caminho dos engenheiros militares como intelectuais e intelectuais

como organizadores de processos integradores do capitalismo – os gestores – que cito o

exemplo do Major Edmundo Macedo Soares do CTM, do Exército Brasileiro, e sigo

para os processos de formação da Força Aérea Brasileira, do Ministério da Aeronáutica

e a atuação de engenheiros aeronáuticos militares em centros de pesquisa e tecnologia

com seus projetos de se montar uma consolidada indústria aeronáutica no Brasil sob os

mesmos ditames da soberania e defesa nacional.

Necessidade de pesquisa e tecnologia para produção

A produção de aeronaves no Brasil já existia desde antes da fundação da

Embraer e desde antes da década de 1930. O que não havia era a condição de essas

empresas integrarem-se fortemente na economia nacional ao nível de poder competir

com os produtos estrangeiros, de qualidade superior e fabricados sob preceitos técnicos

não atingidos pelos fabricantes brasileiros.

A aviação militar também existia desde antes de 1941, ano de criação da Força

Aérea Brasileira como corporação autônoma das Forças Armadas. Havia já a aviação

naval, da Marinha do Brasil, desde 1916 com a Escola de Aviação Naval por decreto do

então presidente da República Venceslau Brás. Só podia integrá-la quem fosse pelo

menos primeiro-tenente. Tinha influência estadunidense, com a presença da Missão

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Naval Americana no Brasil entre 1922 e 1931 orientando a organização administrativa,

a instrução técnica e o treinamento do pessoal. (FORJAZ, 2005: 283)

Em 1927 foi criada a aviação no Exército Brasileiro, na qual os poucos cadetes

que optaram por essa área eram treinados no Campo dos Afonsos (RJ). A organização

da aviação no EB era similar à francesa, pois nesse caso a influência era da Missão

Militar Francesa de Aviação, chefiada pelo Cel. Etienne Magrin que foi o primeiro

diretor de ensino da Escola de Aviação Militar. A lei que criou a aviação militar previu

o controle dessa arma por um oficial-general do Exército. (FORJAZ, 2005: 282). A

aviação militar estava dividida entre Marinha e Exército, sem autonomia administrativa,

operacional ou técnica. Essa autonomia foi sendo conquistada depois da Revolução de

1930 com o major-aviador Plínio Paulino de Oliveira, então comandante da Escola de

Aviação Militar. O passo decisivo, porém, seria com a criação do Ministério da

Aeronáutica em um novo contexto geopolítico, estratégico e tecnológico da Segunda

Guerra Mundial, e com influências europeias e americanas quanto à soberania aérea

militar. (FORJAZ, 2005: 283; 284)

No ano citado de 1927, o Cap. Guedes Muniz, da aviação do Exército, começou

a frequentar a Escola Superior de Aeronáutica, na França. Conheceu empresas como

Cardon, Farman e Potez, todas de produção aeronáutica, e sobre elas:

“De volta para o Brasil, em 1931, declarou que a ‘felicidade daquela gente estava baseada na sua industrialização. Não eram simplesmente produtores ou consumidores de alimentos e outras matérias-primas’. Portanto, Muniz estava convencido da necessidade de dotar o Brasil de uma indústria aeronáutica moderna, não apenas por considerações militares, mas como vetor de modernização do país. A fabricação de aeronaves também teria reflexos positivos em outras indústrias de componentes” (História da Embraer: p. 9)

Em 1935 Muniz liderou, pela Companhia Nacional de Navegação Aérea

(CNNA), a construção de protótipos do avião M-7, em Campos dos Afonsos. Essa ideia

de desenvolvimento industrial nacional liderado por militares e puxado pela indústria de

materiais bélicos que produziria tecnologia não era exclusivo de Muniz, mas exprimia a

visão de mundo de grande parte das Forças Armadas, como vimos.

Em 1934, ano de criação da USP, realizou-se em São Paulo o I Congresso

Nacional de Aeronáutica. Duas visões concorrentes se delinearam a respeito da

pesquisa, ensino e desenvolvimento tecnológico para a criação de uma indústria

aeronáutica no Brasil para sustentar uma industrialização mais integral no país. Uma

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delas era ligada à Marinha, pelo capitão-de-fragata Raymundo Aboim, formado na

primeira turma de aviação naval em 1919 e primeiro latino-americano a ter pós-

graduação em Engenharia Aeronáutica pelo Imperial College da Inglaterra em 1925: era

basicamente a ideia de mandar pessoal para se treinar no exterior e voltar com

conhecimento tecnológico capacitado para a direção da indústria no país. A outra visão,

vitoriosa, era de Antônio Guedes Muniz, já como tenente-coronel3

“Ao mesmo tempo, a evolução tecnológica da indústria aeronáutica e de armamentos tornava a aviação um instrumento cada vez mais importante na defesa nacional, principalmente num país de dimensões continentais e totalmente carente de infra-estrutura de transportes e comunicações. Mas não se deve deixar de ter em conta também o papel hegemônico das Forças Armadas na sustentação do regime varguista e na implementação de um projeto estratégico de desenvolvimento nacional baseado na industrialização e na construção de um forte sistema de defesa nacional (...) Não só as Forças Armadas eram mal equipadas, como faltava infra-estrutura de transportes, comunicações e energia, fundamental para a defesa nacional e para a industrialização do país” (FORJAZ, 2005: 284)

formado em 1930

pelo ENSA em Paris. Sua ideia consistia em criar de imediato um órgão central

governamental para coordenar a implantação de uma fábrica de aviões no Brasil, com a

construção de modernos laboratórios e a compra de modernas máquinas. Nesse

decorrer, a criação do Ministério estava em curso e, contrariamente à visão de Aboim

em especializar a aeronáutica nos cursos de engenharia politécnica, crious-e o curso de

Engenharia Aeronáutica na Escola Técnica do Exército (ETE), em 1939. (BOTELHO,

1999: 141; 142)

Aqui retomo a proposta dos engenheiros militares planejando Condições Gerais

de Produção pelos desenvolvimentos de técnicas e tecnologia na indústria militar de

aviação que seriam inputs a outros ciclos produtivos da indústria nacional integrada.

Pensam a integração econômica mais geral e centralizada, como gestores e não como

burgueses ou porta-vozes da burguesia industrial. E a “soberania nacional” como ensejo

desse projeto de interesses industrialistas constitui outra questão a esse tema.

João Bernardo discorda de Karl Marx em O Capital, mas sobretudo de alguns

marxistas ortodoxos, por incluir a produção de armamentos no chamado Setor III, ao

3 Tenente-Coronel e Capitão-de-Fragata são patentes equivalentes em questão de hierarquia, cada uma em sua respectiva arma, do Exército (e posteriormente também da Força Aérea) e da Marinha, respectivamente.

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lado de artigos de luxo consumidos exclusivamente por capitalistas. Seria afirmar que

seu output não regressa enquanto input aos ciclos produtivos, contudo:

“É certo que a parte mais considerável do armamento, tanto em termos de custo quanto de volume, apresenta-se formalmente destinada aos conflitos exteriores, e não aos confrontos internos e à fiscalização de classe. Porém, em primeiro lugar, a manutenção de um estado permanente de conflito potencial entre grupos ou nações ou, talvez mais exatamente, na atual fase de integração supranacional, o convencimento público de que essa ameaça bélica existiria realmente constitui uma forma de, em cada país, as classes se agruparem em torno de uma pretensa defesa nacional” (BERNARDO, 1991: 185)4

E continua:

“Em segundo lugar, quanto maiores e mais sofisticadas são as encomendas de material de guerra, tanto mais estreitas se tornam as relações do aparelho militar com as empresas e, portanto, tanto mais se reforça a função social das forças armadas, aumentando por aí o seu papel no enquadramento repressivo. Isto contribui para explicar que, historicamente, tivessem sido um dos primeiros órgão dos Estado R a relacionar-se com o Estado A, destacando-se e autonomizando-se nesse processo. As forças armadas foram uma instituição decisiva no imediato pré-corporativismo e na evolução corporativa” (BERNARDO, 1991: 186)

O corporativismo como forma prática de organização política, assinalado pelo

processo histórico de gradual preponderância do Estado A em articulação com o Estado

R. Pontuam-se três elementos básicos nessa articulação: os aparelhos tradicionais de

poder que compõem o Estado R; as associações de capitalistas ou empresas em que

prepondera o capital; e instituições que se encarregam diretamente da organização da

força de trabalho, sejam as administrações de empresas ou os sindicatos burocratizados.

Era o modelo que vigorava no período aqui assinalado, seja o Estado Novo varguista ou

o posterior desenvolvimentismo populista. Marcam-se os gestores como classe

dominante na coordenação dos processos produtivos nacionais em uma situação de uma

pretensa harmonia social ou tentativa de abafamento da luta de classes, como

demonstrado na citação de Bernardo sobre a importância da defesa nacional para os

interesses de acumulação e reprodução ampliada de capital.

É nesse sentido que penso a preocupação em se estabelecer uma consistente

indústria aeronáutica – inicialmente considerada como produtora de armamentos por

4 “Como desde cedo preveniu o primeiro e o maior de todos os revolucionários modernos, o lucidíssimo Marat, o implacável Amigo do Povo, a preocupação com a guerra exterior leva, no interior de cada país ao esquecimento das clivagens entre as classes” Id., 1991, p.185.

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produzir materiais de uso militar – e a necessária base de pesquisa tecnológica com

institutos de ensino superior militar.

***

Na Segunda Guerra, Alemanha e Estados Unidos disputavam a adesão brasileira

para fortalecer seu poderio militar no Atlântico Sul, com elites dirigentes do Estado

Novo e das Forças Armadas divididas em facções germanófilas e americanófilas

(FORJAZ, 2005: 284). Getúlio Vargas optou pelos EUA em troca de financiamento

para a construção da Usina de Volta Redonda. Isto implica em forte aproximação entre

os dois países, com os EUA fortemente influenciando militar e economicamente o

Brasil, podendo inclusive montar bases militares em território brasileiro. Foi com essa

adesão e aproximação que o Gal. Eurico Gaspar Dutra alertou quanto ao perigo da

soberania nacional, com os “mares, o céu e os campos de nossa terra” cedidos aos

aliados armados (FORJAZ, 2005: 284):

“Em setembro, após o retorno dos oficiais norte-americanos de sua viagem de reconhecimento do nordeste brasileiro, Dutra escreve a Vargas considerando ‘injustificável’ e ‘inconcebível’ a presença de tropas dos EUA no Brasil, o que, segundo o ministro, ‘anularia nossa soberania na região [convertendo-a] em mero território de ocupação estrangeira’. Em seu diário, Vargas anota: ‘os americanos querem nos arrastar à guerra na Europa sob pretexto de defesa da América’”. (LEITE apud SVARTMAN, 2008: 87)

Exigiu-se com isso a criação de uma força armada que asseguraria as fronteiras e

o espaço aéreo do país de dimensões continentais. Getúlio Vargas assinou o decreto

2.961 em 20 de janeiro de 1941 criando o Ministério da Aeronáutica (Maer),

“estabelecendo a fusão das aviações do Exército e da Marinha numa só corporação,

denominadas Forças Aéreas Nacionais, subordinadas ao novo Ministério e que teria seu

nome mudado para Força Aérea Brasileira pelo Decreto-lei 3.302, de maio de 1941”

(FORJAZ, 2005: 285). No ano anterior já vinha acontecendo o programa de

aproximação entre Estados Unidos e América Latina na aeronáutica, com o envio de

brasileiros para estudar em Standford. (BOTELHO, 1999: 142). Vargas cria o MAer

como comando único e centralizador do espaço aéreo nacional, sendo seu primeiro

ministro o gaúcho sr. Joaquim Salgado Filho numa interessante manobra de Vargas ao

escolher um civil e assim não criando conflitos entre dirigentes do Exército e da

Marinha.

Na doutrina político-militar do novo ministério temos os princípios de:

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• Comando único;

• Integração dos órgãos dispersos em três ministérios com atividades correlatas;

• Integração de infraestrutura aeronáutica para uso comum, civil e militar, com

grande economia de meios;

• Lançamento das bases para implantação definitiva da indústria aeronáutica

brasileira;

• Institucionalização da pesquisa, com vistas ao desenvolvimento tecnológico.

(FORJAZ, 2005: 286)

“Vê-se (...) que o grupo de militares que liderou a criação da Força Aérea Brasileira e do Ministério da Aeronáutica tinha como objetivos, já no início dos anos 1940, a constituição de uma indústria aeronáutica nacional e o domínio da tecnologia necessária para isso” (FORJAZ, 2005: 286)

Era interesse aparelhar a FAB com treinamentos dos quadros e material de

instrução. Em junho de 1941 foi firmado com os Estado Unidos um acordo conhecido

como Lend and Lease Act, prevendo fornecimento de aviões de treinamento à FAB e

cursos no Estado-maior dos EUA. Em contrapartida, o governo brasileiro daria

permissão para se instalarem bases militares no Brasil – sendo a maior delas com 60 mil

homens). (FORJAZ, 2005: 286)

Com o cenário produtivo do Brasil de economia predominantemente agrária e

dependendo de importações de vários produtos industrializados, as lideranças da

Aeronáutica sabiam das impossibilidades de se montar uma indústria aeronáutica

naquele estágio de desenvolvimento da economia. Optam por desenvolver

primeiramente condições necessárias para seu desenvolvimento no futuro, com uma

escola de engenharia aeronáutica e um centro de pesquisa sobre tecnologia aeronáutica:

“frutos que se estenderiam, a médio prazo, ao parque industrial brasileiro e às atividades

da aviação civil” (FORJAZ, 2005: 287). São claras definições de CGP, presentes nesse

pensamento e na doutrina de fundação do MAer. Era necessário principalmente o

investimento em “recursos humanos”, especializando técnicos e engenheiros em

mecânica, eletrônica e infraestrutura aeronáuticas; em suma, o investimento em

tecnologia.

Vargas fecha o curso de Engenharia Aeronáutica na ETE, nomeando em 1942 o

tenente-coronel engenheiro Casimiro Montenegro Filho, vindo da aviação do Exército e

um dos criadores do Correio Aéreo Militar e com ligação com industriais paulistas. A

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vontade de Casimiro Montenegro era a de montar uma escola de engenharia aeronáutica

de alto nível no Brasil. Estabelece contatos com o físico Richard Harbert Smith, chefe

do Departamento de Aerodinâmica do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT).

Entre 1945 e 1946, com a conferência “Brasil, futura potência aérea”, o professor

americano elabora um plano que seria chamado “Plano Smith”, com argumentos pró-

Casimiro. (BOTELHO, 1999: 144) Em 1948 vem ao brasil uma comissão do MIT, à

época no IME (Instituto Militar de Engenharia, do Exército) enquanto o campus do

CTA em São José dos Campos não ficava pronto. A intenção era a de se montar o tripé

educação, pesquisa tecnológica e indústria com a formação de técnicos especializados

em engenharia aeronáutica no Brasil.

Liderando uma equipe de idealizadores5

A criação formal do ITA pelo decreto 27.695 de 16 de janeiro de 1950

contemplava os princípios do tripé. Em 1953 ficava pronto o instituto no qual o ITA

fazia parte: o CTA (Centro Técnico Aeroespacial). Inspirado no modelo de ensino

americano da Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia), o instituto agora em um

campus, destacava-se pela excelência em comparação com o tradicional ensino superior

brasileiro. (FORJAZ, 2005: 291). O campus contava com institutos de pesquisa

especializada nas áreas, como por exemplo o Instituto da Aeronáutica e do Espaço

(IAE), Instituto de Estudos Avançados (IEAv), o Instituto de Fomento e Coordenação

Industrial (IFI) e, claro, o ITA.

do que seria o CTA (Centro Técnico

Aeroespacial) está Casimiro, em defesa da pesquisa tecnológica na área. Em 1950 cria-

se o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) como oportunidade de se desenvolver

as idealizações dos engenheiros militares construindo laboratórios e constituindo uma

educação superior de alto nível para pesquisa tecnológica. O prof. Smith se demite do

MIT e passa a ser o primeiro reitor do ITA: “Sem defender uma instituição estatista,

Smith aludia à necessidade de um balanceamento sadio entre as escolas e seus

laboratórios, de um lado, e uma forte indústria civil e sistema de linhas aéreas, de outro”

(BOTELHO, 1999: 144).

Com isso pensamos a produção tecnológica militar e a futura produção de

armamentos (as aeronaves) inseridas num ciclo de reprodução do capital:

5 Cito entre eles Aldo Vieira da Costa, George Morais e Oswaldo Nascimento Leal.

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“quanto mais sofisticado for o material bélico encomendado, tanto mais sustentará uma investigação teórica e aplicada, com as conseqüentes repercussões sobre os demais ramos de produção (...) E, quanto mais operacionais forem as forças militares, tanto maiores serão as suas capacidades de recepção, comunicação e armazenamento de informações e de deslocação de pessoas e material, o que as leva a desempenhar um papel nas CGP de tipo c, d e e. Além disso, a disciplina militar constitui uma forma extrema de disciplina de empresa e até da ordem social em geral e o desenvolvimento tecnológico das forças armadas implica, com freqüência, que se ministre um suplemento de formação de jovens recrutas que terão a seu cargo material sofisticado, participando assim o aparelho militar nas CGP de tipo a que visam à instrução de novas gerações de força de trabalho6

” (BERNARDO, 1991: 186)

Criação da Embraer

O estabelecimento do CTA e dos seus institutos, sendo o ITA o principal, foi

fundamental para começar a dar certo o projeto dos engenheiros militares, como o de

transferir tecnologia do meio militar às indústrias eletrônicas nacionais. Em 1961 foi

inaugurado no ITA o curso de pós-graduação, no modelo estadunidense, capacitando

melhor seus “recursos humanos”, ou seja, formando engenheiros e cientistas

especializados nessa área, como gestores enquanto classe social atribuído ao intelectual

que planifica e leva adiante a reprodução ampliada de capital. Notam-se já a partir

década de 1960 mudanças geográficas na região de São José dos Campos, com o ITA e

o CTA instalados como pólo de tecnologia no país: atraiu indústrias, universidades

particulares, escolas técnicas – para formação de mão-de-obra especializada – e o INPE

(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) do Ministério de Ciência e Tecnologia7

6 A essas tipologias de CGP, João Bernardo descreve-as: a) Condições Gerais de Produção e da reprodução da força de trabalho; b) CGP da realização social da exploração; c) CGP da operatividade do processo de trabalho; d) CGP da operacionalidade das unidades de produção; e) CGP da operatividade do mercado; e f) CGP da realização social do mercado. Todas com suas características específicas mas antes de tudo são CGP: condições necessárias ao funcionamento integrado do capitalismo, assegurando um de seus pilares que é o afastamento do trabalhador da organização e controle da produção, produzindo diretamente a mais-valia usurpada pelos capitalistas.

.

7 Vendo o mapa atual do campus do CTA percebemos uma clara configuração espacial logística para produção, com a relação estreita física entre ensino, pesquisa, tecnologia e produção industrial, em esquema de CGP: o ITA, o setor de saúde do CTA, Clube dos Cabos e Taifeiros, Batalhão de Infantaria, residências do CTA, o hotel de trânsito, o rancho e os cassinos de suboficiais e sargentos entre outras instalações. Mais perto do lago temos o paiol, o IAE, o IFI e o DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial). À frente do lago, constituindo grande parte do complexo, vemos a relação íntima entre Estado A e Estado R demonstradas fisicamente: a imensa pista do aeroporto e o prédio da Embraer S.A., a Avibras S.A., a Mectron – Engenharia, Indústria e Comércio S.A. e a SK10 do Brasil Ltda. Mais afastados e também cercados de conjuntos e bairros residenciais, temos a Petrobras REVAP, a ECOVAP Engenharia Ltda., as vilas Industrial e Projeto Industrial e uma General Motors. Tudo isso alimentado com a linha de transmissão de energia-centro, que marca a divisa do campus com a parte central da cidade.

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A Embraer foi uma dessas empresas instaladas nas cercanias do CTA. Não

apenas isso como ela surgiu como realização dos antigos projetos dos idealizadores

engenheiros da FAB em se desenvolver a indústria aeronáutica no país com capacidade

de competir com produtos estrangeiros. As empresas até então existentes como a Neiva,

Aeromot, Avitec, Conal, Avibrás e Aerotec não produziam produtos com qualidade e

em escala para competir com os estrangeiros, dependendo muito da demanda

governamental:

“A atuação dos empreendimentos dava-se de maneira desordenada e, muitas vezes, conflitante. A produção de aeronaves militares atendia a interesses específicos e não se encaixava dentro de uma política central (...) Não podendo contar com economias de escala, grande parte das iniciativas não foi comercialmente bem-sucedida” (História da Embraer, p.10)

Faltava o pensamento integrador de gestores direcionados ao setor aeronáutico,

ou nas palavras do criador da Embraer:

“O número de empresas produzindo material aeronáutico no país estava crescendo, mostrando que a visão do brigadeiro Casimiro Montenegro filho, ao criar o ITA, tinha sentido e estava frutificando. No entanto, no nosso caso, o que tínhamos na cabeça era algo diferente. Queríamos produzir um aparelho que pudesse ser vendido no Brasil, exportado para diferentes países e, isso, sabíamos claramente, apenas ocorreria para uma aeronave que preenchesse competitivamente (em performance, em confiabilidade, em preço, em assistência técnica e em muitas outras características comuns ao mercado aeronáutico) uma necessidade da demanda nacional ou internacional” (SILVA, 2002: 212)

Era o objetivo de Ozires Silva, um engenheiro “iteano”, a produção seriada,

coordenada e integrada de aviões, com o suporte do governo. O modelo fundador foi o

avião Bandeirante, cujo primeiro protótipo voou em 1968 no CTA. Em 1969 procurou-

se iniciar a busca de “soluções possíveis para assentar as bases e conseguir o

lançamento de produção seriada do Bandeirante” (SILVA, 2002: 209). Para produzir em

série e entrar competindo no mercado seria necessária uma empresa industrial e a

pergunta dos integrantes do círculo de Ozires era se deveria criar uma nova ou usar

alguma já existente.

A construção dos segundo e terceiro protótipos continuaram nas oficinas do

CTA enquanto em suas memórias Ozires conta que um grande auxiliar do projeto do

Bandeirante desde 1965, o engenheiro aeronáutico francês Max Holste, não entendia

muito bem a ambição de se produzir em série e entrar no mercado competindo com os

produtos (SILVA, 2002: 212). Entretanto o panorama financeiro do mercado

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aeronáutico mundial mostrava um cenário de tecnologias em desenvolvimento, o que

causava um aumento dos preços de produção a um nível que os produtores brasileiros

não conseguiam bancar. Necessitava-se de um incentivo integrador, ou de CGP que

permitissem a empreitada, tendo nisso o Estado R como primeiro parceiro no

investimento. Nas palavras revoltadas de Holste: ”O Governo brasileiro não está

presente nem por um momento e, sem ele, isto eu sei pela minha experiência, este país

jamais colocará um avião de produção no ar” (SILVA, 2002: 215).

Não havia tempo de desenvolver uma cultura técnica no setor, sendo necessário

fabricar aviões no “estado da arte mundial”:

“Se não procurássemos fazer alguns ‘curtos-circuitos’ chegaríamos ao mercado dos compradores de aviões num futuro muito remoto, provavelmente em produtos ultrapassados e inaceitáveis em face do que a concorrência oferecia” (SILVA, 2002: 216)

Não só havia esse problema da técnica, mas de infraestrutura ou, como Ozires

diz, de “cultura”. Max Holste saíra do projeto mas deixou um legado instrutivo aos

jovens engenheiros brasileiros. O ITA oferecia excelente formação na área de

engenharia, mas faltava ao Brasil a infraestrutura e a preparação de técnicos e

especialistas na área, ou seja, insuficiência de mão-de-obra qualificada que inclusive

caracterizava os que trabalhavam na empresa de Holste:

“Nos entanto, ficou-nos claro o choque de cultura; não a cultura medida em termos de nível de instrução ou de educação escolar, mas aquela caracterizada pelo que poderíamos chamar capital social do país, constituído por um complexo aglomerado de instituições, abrangendo repartições públicas, empresas, escolas, organizações de classe, igreja, sindicatos, mídia e assim por diante, tudo em função de virtudes e comportamentos moldados pela sociedade circundante” (SILVA, 2002: 216)

Ressalto que a publicidade e a reiteração de uma visão de mundo ou mentalidade

em forma de ideologia também se constituem como Condições Gerais de Produção

indispensáveis no capitalismo.

Fatos de importância extrema foram os voos-teste dos protótipos do Bandeirante.

Um deles da Base Aérea de Brasília, no qual voou com passageiro o presidente da

República Arthur da Costa e Silva, em maio de 1969 a convite do então Ministro da

Aeronáutica, major-brigadeiro Márcio de Sousa Melo8

8 De 31 de agosto de 1969 a 30 de outubro do mesmo ano fez parte da junta militar governativa, com o general e Ministro do Exército Alberto da Lira Tavares e o almirante e Ministro da Marinha Augusto Rademaker, de transição entre os governos Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici.

, grande entusiasta do projeto da

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indústria aeronáutica. Esse contato com o ministro e com o presidente marcou um maior

apoio do governo para o projeto de construção aeronáutica como indústria no Brasil.

Fabricar aviões já se fazia no Brasil. O desafio para esses gestores seria criar

uma fábrica ou empresa autossuficiente em nível mundial. Era desejo deles fabricar os

aviões no CTA e conseguir aprovação técnica para que pudessem ter não só permissão

para voar a serviços logísticos da FAB, mas ter homologação para operar em tráfego

aéreo comercial. Mas isso contava com custos muito altos, sobretudo para se substituir

importações pela produção nacional. As estratégias se direcionariam ao desafio de se

chegar às metas de uma produção seriada.

Daí surge a ideia de se fabricar um avião agrícola, como forma de se angariar

mais investimentos, mas inicialmente capitalizada pela União para a formação de uma

empresa. (SILVA, 2002: 234). Acharam na Constituição algo que os dava vantagem:

“A legislação fixava o mecanismo pelo qual poderia ser estabelecida uma ‘Sociedade de Economia Mista’, sob a forma de uma entidade de direito privado e moldada segundo a Lei das Sociedades Anônimas, porém controlada pelo Poder Público” (SILVA, 2002: 234)

Uma relação entre Estado R e Estado A, no qual o primeiro capitaliza e

gradualmente cede espaço ao segundo, típico do esquema corporativista que também se

assinalou na Ditadura Militar. Nesse regime o Estado R dava condições de

desenvolvimento ao Estado A preparando CGP necessárias à intensificação de

produtividade sob forma de mais-valia relativa, um estágio superior do capitalismo em

comparação aos entraves para a reprodução ampliada do capital da mais-valia absoluta

de maneira generalizada.

“É fácil perceber que esperávamos obter apoio do Governo Federal para um programa industrial de construção aeronáutica; assim, a produção de uma apreciável quantidade de aviões viabilizaria economicamente o empreendimento e, ao mesmo tempo, daria uma grande contribuição ao reequipamento da Força Aérea” (SILVA, 2002: 236)

A ideia em se criar a Embraer obteve importante apoio do Ministro da Fazenda

Antônio Delfim Netto, em 26 de junho de 1969. Inicialmente foi reticente pois seriam

grandes despesas retiradas do Tesouro Nacional para serem repassadas extra-

orçamentariamente nas dotações anuais do MAer. Mas concordou, colocando confiança

neste seguimento industrial e soltando um audível “É possível que esta ‘merda’

funcione mesmo!” (SILVA, 2002: 238).

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No mesmo período a FAB adquiria já supersônicos e estabeleceria um complexo

de defesa aérea, com o ministro Márcio de Sousa Melo à frente. Nascia o CINDACTA

(Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo), essencial na

segurança e agilidade logística no país, sendo CGP que integravam todo o país nos

processos produtivos pela rapidez de helicópteros e aviões – “asas rotativas” e “asas

fixas”.

Com essa trilha aberta tornava-se necessário materializar a empresa, ou seja,

entende-la do ponto de vista legal e gerencial (SILVA, 2002: 240). Precisavam de

estratégias, local e conhecimentos administrativos que conseguiriam com o consultor

jurídico do CTA, o advogado Francisco Pimentel, futuro consultor financeiro da

empresa. Depois de vários encontros e reuniões com homens de governo, no começo de

agosto de 1969 houve a reunião com Delfim Netto em que acordaram a capitalização da

Embraer. Surgiu aí pela primeira vez esse nome da empresa: Empresa Brasileira de

Aeronáutica (Embraer). O acordo previa auxílio de capitalização à empresa, com

incentivo fiscal atrelado ao imposto sobre a renda: autorizava às empresas do país a

“deduzirem em cada exercício fiscal 1% do seu imposto de renda se, no período,

aplicassem igual quantia na formação do capital da EMBRAER, compondo suas ações”

(SILVA, 2002: 242).

Após pousar em São José dos Campos, em voo vindo de São Paulo (Congonhas)

– e anteriormente Campo Grande – com o Bandeirante, Ozires foi recebido no hangar

do CTA com festa: uma banda marcial, funcionários, gente do ITA e do CTA com uma

enorme faixa em que dizia: “Foi criada a EMBRAER!”. Estavam presentes o reitor do

ITA, o Cel. Fernando Martins Costa, o diretor do IPD e o Brig. Paulo Victor. Este

último cuidou de procurar um terreno para a empresa, com o engenheiro Rosendo

Mourão, chefe do Setor de Construção Civil do CTA. E foi ali na área do Centro onde

decidiram estabelecer a empresa. (SILVA, 2002: 243)

É bem visível nessa situação da criação da Embraer as relações entre Estado A e

Estado R em um quadro corporativista no qual o Estado R tem preponderância mas vai

gradualmente deixando poderes de decisão produtiva ao Estado A, chegando aos nossos

dias em que a Embraer é uma sociedade anônima supranacional, campo de atuação de

gestores em seu controle e organização, os quais se apropriam coletivamente de mais-

valia pela compra de ações. Caracteriza-se um quadro de neocorporativismo onde o

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Estado R é indispensável – a despeito dos defensores da ideia de existência de uma

livre-concorrência e “Estado mínimo” entre grandes corporações. Esse estágio lógico do

capitalismo brasileiro corresponde a práticas corporativistas encabeçadas por gestores,

como os engenheiros militares, consolidando-se historicamente como classe dominante.

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BIBLIOGRAFIA

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FORJAZ, Maria Cecília Spina. As origens da Embraer. In.: Tempo Social. Vol.17, nº1,

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Marinha do Brasil: http://www.mar.mil.br/

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SINDICALISMO E LENINISMO: UM DEBATE ACERCA DOS SINDICATOS APRESENTADO NO JORNAL COMBATE (PORTUGAL, 1974-1978)

Mestrando Tales dos Santos Pinto Universidade Federal de Goiás

Bolsista CAPES [email protected]

Resumo

A queda do regime fascista salazarista, em 25 de abril de 1975, iniciou um grande processo de lutas sociais em Portugal, no qual a principal característica foi a criação de organizações de forma autônoma pelos trabalhadores. Dentre essas organizações temos o Sindicado dos Trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa, cujos trabalhadores participaram de um debate organizado pelo jornal operário Combate. O objetivo do artigo é apresentar os principais pontos relatados pelos trabalhadores relacionados ao papel que o sindicato teria na revolução, de que maneira as concepções leninistas sobre a organização revolucionária aparecem no debate e qual o tratamento dado a elas pelos participantes.

Palavras-chave: Sindicatos; Leninismo; Jornal Combate; Portugal.

TRADE UNIONS AND LENINISM: A DEBATE ABOUT THESE ASSOCIATIONS FEATURED BY JOURNAL COMBATE (PORTUGAL, 1974-1978)

Abstract

The fall of the fascist regime of Salazar, in April 25 1975, began a great process of social struggles in Portugal, in which the main feature was the creation of organizations autonomously by workers. Among these organizations have the Syndicated workers' Mayor of Lisbon, whose workers participated in a debate organized by the workers’ newspaper Combate. The goal of the article is to present the key points reported by workers related to the role that the Union would have in the revolution, that way the Leninist conceptions about the revolutionary organization appear in the debate and which the treatment given to them by the participants. Keywords: Trade Unions; Leninism; Journal Combate; Portugal.

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O processo revolucionário desencadeado com o golpe militar realizado pelo

Movimento das Forças Armadas, em 25 de Abril de 1974, colocou aos trabalhadores

portugueses uma vasta gama de possibilidades de reconstrução de toda a vida social

após quase cinqüenta anos do regime fascista de Antônio Salazar. As ações práticas

dessa reconstrução realizadas pela classe trabalhadora levaram o país a vivenciar uma

grande vaga de greves “selvagens” e de ocupações de fábricas, moradias e terras em

todo o território nacional português. Aliado a essas ações surgiram, ligados ao

movimento operário, também uma grande quantidade de jornais, e tanto maior essa

quantidade se for levado em consideração a forte repressão do fascismo à liberdade de

expressão operária.

Dentre esses jornais encontra-se o Combate, publicado entre 1974 e 1978, e que

tinha por objetivo “ser um agente ativo na ligação entre si das várias lutas particulares,

divulgando essas lutas e nomeadamente as experiências organizativas delas resultantes.”

(COMBATE, 1975:18) Em um desses relatos de experiências organizativas encontra-se

uma mesa-redonda realizada pelo coletivo do jornal, após um pedido de auxílio de uma

lista de candidatura ao Sindicato dos Trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa,

com o intuito de expor um debate sobre sindicalismo e revolução, e também a tentativa

de organização sindical nos órgãos da função pública. Eles nos servirão de ponto de

partida para entender os interesses que estavam permeando o processo de construção

sindical dos trabalhadores dessa categoria, bem como os demais debates sobre o futuro

da vida produtiva e social de todos os trabalhadores portugueses.

O foco da exposição será as concepções leninistas sobre as formas de

organização operária e o posicionamento dos trabalhadores frente elas. Para tanto será

apresentado dois casos de construção sindical, em departamentos distintos da

administração pública portuguesa, onde são encontradas duas formas de organização

diferentes em decorrência da participação dos trabalhadores nas mesmas.

Cabe ressaltar que a referência à localização dos debates nos números do jornal

está apresentada de forma distinta das demais referências bibliográficas, devido à

confusão que poderá surgir por serem encontrados vários números no mesmo ano.

Portanto, as referências ao jornal virão com o nome do mesmo, seguido de seu número e

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a página onde se encontra o que foi referido. A referência bibliográfica completa virá ao

final do artigo.

***

De acordo com um trabalhador da Câmara Municipal de Lisboa (CML), eles

estavam a um ano lutando pela construção de um sindicado e também contra a

concepção de que o sindicato seria formado como que por um milagre. Para tanto

formaram uma comissão “ad-hoc”, uma Assembléia de Delegados e posteriormente um

Secretariado, com o intuito de desenvolver “os seus esforços no sentido de estabelecer e

implantar a organização a partir dos locais de trabalho para dinamizar o processo

sindical.” (COMBATE, 20: 2) A finalidade desses três órgãos eram preparar os

trabalhadores para as eleições do Sindicato dos Trabalhadores da CML.

Tendo a CML 11.237 trabalhadores distribuídos em 252 locais de trabalho,

inicialmente a formação da comissão e da Assembléia de Delegados ocorreu adotando

um critério misto de eleição, onde os delegados eram eleitos por local de trabalho e

também por profissão (que se contava no número de 151). Dessa eleição se formou a

Assembléia, que no momento de realização da mesa-redonda contava com 280

delegados. Porém seu funcionamento se mostrou extremamente difícil, levando-os a

formar um órgão de coordenação da atividade pró-sindical, o Secretariado.

Inicialmente o Secretariado era designado pela Assembléia e os trabalhadores

chegaram à conclusão de que esse processo de funcionamento não era o mais correto. O

processo de eleição de delegados foi conturbado, devido principalmente à falta de

discussões sindicais. Apresentava-se constantemente à Assembléia, em alguns

momentos, delegados (na maior parte das vezes chefes ou encarregados) que se diziam

representantes de determinado departamento e que posteriormente eram desmascarados

pelos próprios trabalhadores deste mesmo departamento, substituindo-se assim

progressivamente os delegados e mostrando a busca por um controle da base sobre seus

representantes.

Devido a essas tentativas de passar por sobre as decisões de base, estavam a

propor no momento de realização da mesa-redonda, uma forma de criação de um órgão

coordenador com seus membros eleitos e controlados por delegados também eleitos

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pelas bases, de acordo com o critério misto: de cada vinte trabalhadores e para cada

profissão um delegado. Dessa forma a Assembléia de Delegados contaria com

quinhentos indivíduos. (COMBATE, 21: 2)

A alteração na forma de composição da Assembléia durante esse um ano de ação

sindical mostra as dificuldades encontradas pelos trabalhadores em seu processo de luta.

Eles buscavam de certa forma simplificar o processo de eleição dos representantes e

criar formas de controle sobre eles, facilitando a participação direta da base dos

trabalhadores. Os motivos apresentados para essa dificuldade eram a falta de

experiência sindical anterior dos trabalhadores e dos altos índices de analfabetismo

entre os trabalhadores da CML. Resultado de quase cinqüenta anos de salazarismo, que

com sua estrutura corporativa e repressiva impedia a participação direta dos

trabalhadores nos sindicatos, e sendo os trabalhadores da Função Pública “classificados

historicamente como clientela do fascismo”, a situação foi descrita da seguinte maneira

por um trabalhador da CML:

“A massa dos trabalhadores da CML é uma massa perfeitamente amorfa e com uma grande taxa de analfabetismo. Nalguns locais de trabalho essa taxa cifra-se nos noventa e tal por cento. Por exemplo: num local de trabalho de 120 trabalhadores há 84 que não sabem escrever. Assinam o recibo do vencimento pondo uma cruz. Isto é muito importante.” (COMBATE, 20: 2)

Daí o trabalhador afirmar que o “saldo das realizações concretas não tenha sido

muito positivo” já que a atuação até aquele momento havia sido “principalmente

dirigida a uma elevação do nível de consciência dos trabalhadores do CML.”

(COMBATE, 21: 7)

Apesar das dificuldades enfrentadas (além das referidas, temos a falta de

quadros sindicais necessários na organização, um sistema de troca de informação e os

diferentes horários de trabalhos), o Secretariado conseguiu desempenhar algumas

funções satisfatoriamente. Na época da realização da mesa-redonda ele estava em fase

de extinção após cumprir sua meta, a realização e organização do processo eleitoral e

dos trabalhadores nos locais de trabalho.

A Assembléia de Delegados também conseguiu criar uma rotina regular de

funcionamento a cada quinzena (em algumas situações duas vezes por semana) e

divulgar o trabalho a ser realizado com antecedência, permitindo aos delegados uma

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consulta efetiva às bases. Uma realização concreta citada foi a convocação de uma

manifestação contra um decreto de saneamento em menos de 48 horas, contando com

quatro mil trabalhadores. (COMBATE, 21: 7)

O balanço após um ano de ação pró-sindicato, apresentado pelo trabalhador da

CML, é que “a organização na CML partiu de um grupo restrito de pessoas e houve que

dinamizar a atividade em todos os serviços, através de reuniões intensivas junto desses

trabalhadores. Essa foi a atividade principal que até agora foi desenvolvida.”

(COMBATE, 21: 7) Afirmava ainda que havia condições objetivas de desenvolver uma

luta conseqüente e de forma correta. O que faltava era conseguir conjugar a atuação da

CML com as demais câmaras do país, ao menos no nível de troca de impressões,

discussões de problemas e encontro regulares de delegados.

Do processo de constituição sindical da Função Pública (situação que não se

restringe aos trabalhadores dos órgãos estatais), surgiu uma questão de grande

importância apresentada pelos trabalhadores: a diferença na composição social nos

vários órgãos de trabalho, consoante se fala em estado, em departamentos ou Câmaras

Municipais. É citado o caso da CML, da especificidade de sua composição social, pois

vai desde “técnicos e burocratas até trabalhadores de tipo rural, como por exemplo, os

jardineiros que são cerca de 2000! até operários fabris, metalo-mecânicos, até nos

trabalhadores da central leiteira e do centro de ovos.” (COMBATE, 21: 7) Outro

trabalhador afirma que essa diferenciação “tem muita importância e tem muitas

consequências no campo de luta que estamos a travar. (...) Em que medida é que isso se

pode refletir diferenciadamente no terreno do Estado ou das Câmaras Municipais?”

(COMBATE, 20: 7)

A diferença pode ser encontrada na organização sindical do Laboratório

Nacional de Engenharia Civil (LNEC) exposta por outro trabalhador, da DGCI

(contribuições e impostos). Para ele o caso do LNEC põe uma interrogação sobre o

sindicalismo da função pública, devido à forma de organização escolhida conduzir a um

processo de formação de cúpulas no sindicato. Significando isso na prática a formação

de uma direção sindical que comanda a organização abstraindo a vontade e a palavra

dos trabalhadores. Portanto, implanta-se uma organização sindical sem levar em conta

as realidades do desenvolvimento organizativo do movimento sindical. É fundamental

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que a organização se desenvolva a volta dos departamentos da função pública, onde os

trabalhadores estão colocados, pois aí se organizam no local de trabalho.

“Abstrair dessa realidade parece, efetivamente, um jogo de pura feitiçaria sindical que naturalmente proporciona a utilização dessa feitiçaria na manipulação dos trabalhadores por parte dos órgãos que se instalam à custa dessa mesma feitiçaria.” (COMBATE, 21: 7)

Dessa forma a “feitiçaria” impede a participação ativa dos trabalhadores no

processo de constituição do sindicato e no controle sobre a direção e nas decisões que

esta toma.

De acordo com o que os trabalhadores expuseram é possível perceber dois

processos distintos de construção sindical. Enquanto que na CML o desenvolvimento

foi no sentido de uma participação cada vez maior dos trabalhadores na construção de

seu órgão representativo, buscando um controle cada vez mais amplo a partir de uma

organização nos locais de trabalho, no LNEC o processo é inverso. Efetua-se um

afastamento dos dirigentes em relação à base, querendo comandar o sindicato abstraindo

e tirando dos trabalhadores a expressão de suas vontades e palavras.

Os dois processos de constituição sindical expressam duas práticas diferentes

dentro dos movimentos dos trabalhadores ao longo do capitalismo. As questões

colocadas são: como estes trabalhadores inserem a situação que estão vivendo no

processo histórico do capitalismo europeu? E quais suas concepções de transformação

da sociedade durante o período revolucionário que estão vivendo? As respostas a essas

questões têm as concepções organizativas leninistas como parâmetro de sua resolução

na prática.

De acordo com uma trabalhadora do DGCI o papel desempenhado pelos

sindicatos foi se alterando ao longo da história do capitalismo. Eles surgem no auge de

seu desenvolvimento e se tornam o principal organismo de luta dos trabalhadores nesse

período. Posteriormente, logo após o surgimento dos sindicatos, apareceram os partidos

políticos que em alguns locais se tornaram a vanguarda do movimento operário, levando

os sindicatos a serem subsidiários na luta, proporcionando inclusive a utilização desses

pelos próprios partidos. (COMBATE, 20: 2)

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Esse processo em que o sindicato deixa de ser uma vanguarda é também exposto

por Anton Pannekoek. Ele afirma que no início da expansão do capitalismo, “o operário

isolado via-se então reduzido à impotência; era por isso que ele devia unir-se aos seus

camaradas para lutar e poder negociar com o capitalista a duração do dia de trabalho e o

preço da sua força de trabalho.” Entretanto, após a classe operária travar duras lutas

contra os patrões e com isso conquistar leis que fixavam as suas condições de trabalho,

a classe exploradora percebeu que para restabelecer as condições de trabalho era

necessário admitir a existência dos sindicatos, pois eles eram imprescindíveis “para

canalizar as revoltas operárias afim de prevenir qualquer risco de explosões súbitas e

brutais.” (s/d: 5)

Concomitante a esse processo surgem os partidos políticos representantes das

classes sociais, com especificidades de acordo com os locais onde surgiam. De uma

forma geral, seus objetivos de luta se mostraram mais amplos no início, pois lutavam

para obter direitos políticos, direitos sindicais, liberdade de expressão e reunião além do

sufrágio universal e instituições mais democráticas. Para fazerem sua propaganda e

rivalizar com os demais partidos era necessário elaborar princípios gerais e uma teoria

com perspectivas de futuro. Na Europa ocidental a principal influência na formação dos

partidos políticos social-democratas1

O que importa mostrar nesse ponto é que a predominância das ideias social-

democratas junto à classe operária levou os partidos políticos a exercerem influência

direta sobre os sindicatos, e isso se deu principalmente durante o período da II

Internacional. O caso do partido social-democrata alemão é clássico nesse processo de

, com pretensões de realização da revolução

comunista, foi a teoria desenvolvida por Karl Marx e Frederich Engels. No caso

específico da Inglaterra, o partido representante dos operários, o Trabalhista, foi

formado pelos sindicatos e professavam intenções análogas aos social-democratas,

entretanto de forma mais vaga. (PANNEKOEK, s/d, p. 6)

1Até a Revolução Russa de 1917 os partidos operários marxistas eram denominados social-democratas. Posteriormente à revolução, para se diferenciarem dos partidos marxistas reformistas, os partidos marxistas revolucionários passaram a se utilizar da denominação de partido comunista.

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apropriação das organizações sindicais e é nele que Lênin irá se espelhar para expor sua

concepção de organização política revolucionária2

Ainda de acordo com a trabalhadora do DGCI, os motivos que fizeram com que

os partidos de raízes leninistas advogassem a tomada dos sindicatos, eram que estes

deveriam ser elementos subsidiários na luta política desencadeadas pelos partidos, que

constituíam a vanguarda revolucionária do operariado.

.

Na obra de 1902 – Que Fazer?, Lênin (1979: 128 a 132), em uma das polêmicas

travadas contra as correntes da social-democracia russa sobre as formas de organização

do partido revolucionário, afirmava que a luta sindical levaria à restrição da ação

operária aos aspectos econômicos da vida social, não colocando em causa a

transformação total da sociedade. Essa função era exclusiva dos partidos políticos, já

que em sua concepção os militantes políticos eram os únicos que poderiam ser educados

para se ocuparem de todos os aspectos da vida social. Suas relações com todas as

classes da sociedade proporcionavam aos militantes do partido uma visão global, de

conjunto da sociedade, que faltava às organizações meramente sindicais. Daí a

necessidade de subordinar as organizações sindicais em favor do partido. Assim a

vanguarda da luta operária caberia unicamente ao partido social-democrata.

Para a trabalhadora do DGCI, a partir de certa altura da luta contra o capitalismo

a situação mudou.

“Acontece que quando estes partidos deixam de constituir a vanguarda do proletariado, os próprios sindicatos também não continuaram a ser instrumentos de luta revolucionária. Eles não regressaram ao período revolucionário, mas estagnaram na sua luta pura e simplesmente reivindicativa.” (COMBATE, 20: 2)

Em uma intervenção visando aprofundar o entendimento do papel que os

sindicatos passaram a cumprir a partir de determinado momento do desenvolvimento

capitalista, um trabalhador do DGC afirma que se o sindicato nasceu como organização

autônoma de defesa dos interesses dos trabalhadores, degenerou e neste momento “no

meio de produção capitalista, quer privado, quer de Estado, aparece fundamentalmente

como um instrumento de contenção dos trabalhadores e de diálogo.” Assim estaria o 2Os motivos para esse exemplo devem-se ao tamanho do partido, a profissionalização de sua organização, a relação estabelecida entre os dirigentes e as massas, a inserção junto aos sindicatos e a participação parlamentar.

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sindicato contendo as lutas dos trabalhadores e sendo o mediador entre o Estado e as

massas trabalhadoras. (COMBATE, 20: 2)

Cornelius Castoriadis em seu texto sobre a Fenomenologia da Consciência

Proletária3

O objetivo de totalidade expresso no momento da revolta contra o capitalista,

que é na consciência do operário uma transformação da sociedade para satisfazer esse

seu anseio de superação de sua alienação, é perdido com a derrota dessa revolta. A

derrota leva a criação destas mediações que acabam satisfazendo partes dessa totalidade,

na diminuição de sua alienação, na diminuição do nível de exploração quando da

aceitação da reivindicação pelos capitalistas.

, escrito em 1948, expõe sua explicação sobre o processo de degenerescência

das lutas revolucionárias do proletariado que desembocam na formação das burocracias,

um dos motivos pelo qual os sindicatos deixam de exercer uma função revolucionária.

O surgimento da burocracia tem por base um processo interno ao próprio movimento

operário. A burocratização seria decorrente da passagem do momento imediato de luta

contra o capitalista, expresso na revolta, para o momento de criação das mediações com

o objetivo de conseguir verem realizadas suas reivindicações.

A conquista de algumas reivindicações proporciona uma estabilidade nas

instâncias mediadoras, que vão sendo reconhecidas como canais privilegiados de

encaminhamento das lutas. Entretanto, a totalidade transformadora presente na revolta

é substituída pela particularidade da reivindicação. Ao mesmo tempo esse processo do

imediato ao mediato, com a derrota da revolta, cria uma divisão da própria classe

operária. Os trabalhadores para conseguirem verem satisfeitas suas reivindicações

delegam sua ação de luta para um estrato da classe que se especializa na negociação

destas reivindicações com os capitalistas, criando as condições para a constituição da

burocracia operária.

Assim a burocracia se distancia da classe e se torna corpo separado da própria

classe. A consequência dessa separação na prática da negociação das reivindicações é o

3O autor afirma posteriormente que o texto se centrava por demais no aspecto político, sendo refutadas algumas de suas colocações. O texto se encontra inserido no livro referido na bibliografia, onde a introdução tem a explicação detalhada do motivo dessa refutação e também do abandono das posições trotskistas e do próprio marxismo.

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aparecimento da consciência burocrática, que se manifesta dentro do que Castoriadis

afirma ser a substituição do universal pelo particular, da substituição da tentativa de

transformação da sociedade pela aceitação da satisfação de algumas reivindicações.

Parte do proletariado, a burocracia, coloca seus objetivos e interesses (as reivindicações

pontuais) como de toda a classe, quando nada mais é que interesses de uma parte do

proletariado que se tornou burocracia. Essa seria a constituição do reformismo sindical e

de sua limitação à “luta pura e simplesmente reivindicativa”, acima exposta pela

trabalhadora. (CASTORIADIS, 1979: 101 – 115)

A manifestação histórica dessa estagnação reivindicativa é exposta por um dos

membros do Combate, participante da mesa-redonda. Para ele nos países de capitalismo

de Estado, na esfera soviética,

“os sindicatos tem uma função de modo nenhum defensor dos direitos dos trabalhadores, mas sim de reguladora, planificadora e de executora da política decidida na cúpula, isto é, de quem está encarregado de extrair a mais-valia dos trabalhadores. Nos países de capitalismo privado o sindicato tem uma função fundamental para que todo o sistema funcione, que é uma função reguladora e de almofada no conflito capital/trabalho.” (COMBATE, 21: 2)

Pannekoek exprime assim essa situação dos sindicatos:

“Encarregados de negociar e tratar com os patrões, estes homens tornaram-se especialistas habituados a adular e a fazer parte das coisas. Eles decidem tudo, em definitivo, tanto do uso dos fundos como do conteúdo da imprensa; face a esses novos patrões, os sindicalizados de base perderam quase toda a autoridade. Esta transformação das organizações operárias em instrumentos de poder sobre os seus membros não é caso único na história, longe disso; quando as organizações crescem em excesso as massas já não podem fazer ouvir aí a sua voz.” (s/d: 6)

O membro do Combate cita o exemplo de alguns sindicatos na França,

Alemanha e nos EUA onde há comprometimento junto aos capitalistas de não se

deflagrarem greves por um período específico de anos e de abafar qualquer tentativa

espontânea de luta, proporcionando aos patrões trabalharem com uma previsibilidade de

lucro durante esse período. Afirma ainda que tal situação seja decorrente da organização

interna dos sindicatos, com controle por parte das cúpulas, devido à hierarquização e

divisão dos trabalhadores. (COMBATE, 21: 2)

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No caso do sindicalismo da função pública portuguesa, a hierarquização, a

divisão da classe e a formação das cúpulas poderiam estar ligadas ao reacionarismo dos

trabalhadores do setor público.

De acordo com a trabalhadora do DGCI, o trabalhador da função pública é um

“trabalhador especial, um administrativo e não é somente no funcionalismo que os

administrativos têm tendências reacionárias, não-revolucionárias ou tendências de

contenção revolucionária.” (COMBATE, 20: 7) Para ela isso está relacionado ao

processo de racionalização da produção e do avanço tecnológico, com o aumento dos

estratos técnicos e administrativos, o que seria mais claro nos países industrializados.

Esses estratos, nas esferas públicas ou empresariais, vivem da distribuição da mais-valia

produzida o que os levam a não participarem ativamente das ações sindicais, já que a

ação sindical é uma luta pela diminuição da exploração a que estão sujeitos os

trabalhadores.

A consequência é que esses trabalhadores

“não são operários trabalhadores no sentido de classe social-econômica, no sentido econômico do termo. Eles são pessoas que estão mais próximas do comando da empresa, (...) identificando-se com os interesses da empresa; muitas vezes colaboram nas decisões da direção da empresa.” (COMBATE, 20: 7)

E no caso do funcionalismo, sendo o Estado um Estado capitalista, a

administração pública é um instrumento de domínio da classe burguesa sobre a classe

operária, e há uma identificação do funcionalismo com essa razão de ser do Estado, essa

razão de ser que é ser instrumento de exploração da classe operária.

Essa divisão pode ser entendida dentro de uma perspectiva que vê o

desenvolvimento do capitalismo no século XX proporcionar uma alteração na

constituição das classes sociais, que passa de sua caracterização a partir da propriedade

ou não dos meios de produção para uma onde o predominante seja a divisão entre

dirigentes e executantes no processo de produção, decorrente da concentração das forças

produtivas e do processo de burocratização de toda a vida social. (CASTORIADIS,

1979: 16) O foco da análise se deslocada da propriedade dos meios de produção para as

relações sociais de produção onde se permite perceber a reprodução do sistema de

exploração da mais-valia tanto nos países da esfera soviética quando no capitalismo da

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esfera estadunidense, superando dessa forma as relações jurídicas de propriedade. E

vemos também um aprofundamento dessa interpretação no próprio coletivo do

Combate, que desenvolve essa análise de classe tendo como princípio o controle sobre

os meios de produção e sobre os tempos de produção ao mesmo tempo em que mantém

os trabalhadores afastados dos mesmos.

“Por um lado existe a classe que gere, que decide, que detém os conhecimentos; por outro, a que tudo produz, que executa, mas que não detém o poder de decisão, que não tem sequer o direito de saber para quem e por que produz. (...) A classe que detém o poder pode ser uma burguesia privada (que detém todos os meios de produção), mas podem também ser os quadros, os gestores, no capitalismo de Estado. Quando toda ou a maior parte da riqueza passa para as mãos do Estado são os seus gestores que se transformam em exploradores. São eles que decidem, em proveito próprio, toda a vida econômica e social. É entre eles que vai ser dividida a mais-valia extorquida aos produtores.” (COMBATE, 25: 3)

Essa abordagem da composição social no capitalismo leva a afirmação da

existência de três classes sociais no capitalismo: os burgueses, os gestores e os

trabalhadores, sendo as duas primeiras classes exploradoras, e a terceira a classe

explorada no processo produtivo capitalista4

Depreende-se dessas exposições dois aspectos importantes sobre a constituição

sindical e seu caráter revolucionário ou não. O primeiro é referente às consequências da

falta de uma participação ativa na ação sindical; o segundo é sobre os campos sociais de

luta que se constituem nessa ação sindical.

. Essa proposta de análise social tem grande

importância para entendermos toda a problemática organizativa enfrentada pelos

trabalhadores da função pública.

Para um trabalhador do DGCI a falta de participação ativa dos trabalhadores nas

comissões, controlando as direções sindicais, facilita a transformação de alguns

trabalhadores em profissionais do sindicato, em técnicos da luta sindical, que não erram

em suas decisões, transformando esses erros em verdades e esses profissionais em

mitos, em condutores da luta sindical.

4No artigo foi escolhida a utilização da definição da relação de classes a partir de um editorial do jornal Combate, pois o interesse ao se fazer a leitura tanto para dissertação quanto à feitura do artigo era perceber o desenvolvimento de seus conceitos ao longo das lutas operárias portuguesas. Entretanto, a elaboração teórica detalhada dessa relação pode ser encontrada ao longo da obra de João Bernardo, um dos colaboradores do jornal, principalmente em Economia dos Conflitos Sociais (1991).

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“E isso constitui a bola de neve que transforma a estabilidade e a instalação das comissões e dos delegados das direções em organizações do estado-maior, de cúpula; de organizações que tenham tudo para não serem desalojados da sua posição. Eles deixam de ser trabalhadores para passarem a ser dirigentes. E nesse sentido são profissionais e não podem errar, porque um profissional é um técnico e não pode errar, e está sempre certo e procura evitar que os trabalhadores controlem sua atividade, e procura evitar que os seus erros sejam descobertos.” (COMBATE, 21: 2)

Esse é o processo de burocratização que atrás vimos Castoriadis se referir como

processo de degeneração interna do movimento operário, de formação de uma camada

de dirigentes, de uma classe burocrática. Ou, no caso da interpretação do Combate, a

formação dos gestores da força de trabalho. Da fala do trabalhador, referente a

necessidade do dirigente não poder errar, depreende-se ainda uma consequência do que

Lênin (1979) propunha em sua organização revolucionária. Para o dirigente russo

somente o partido detinha a verdadeira consciência revolucionária que a inculcaria nas

massas operárias. Na interpretação do grupo Socialismo ou Barbárie, o partido

bolchevique

“necessariamente formado na clandestinidade czarista como um rígido aparelho de quadros, selecionando a vanguarda dos operários e intelectuais (...) educara os seus militantes tanto na idéia duma disciplina rigorosa, como no sentimento de ter razão para com e contra todos.” (CASTORIADIS, 1979: 145)

E isso leva também a questionar a formação desses dirigentes, desses

profissionais, desses técnicos sindicais. Voltando ao que foi exposto sobre o processo de

burocratização das organizações operárias é no processo de educação dos profissionais

políticos e sindicais que está uma das origens das cúpulas, que são colocadas pelos

trabalhadores participantes da mesa-redonda como um dos principais problemas a serem

enfrentados pelos funcionários públicos após a queda do salazarismo.

Para tentar entender essa perspectiva de formação das cúpulas é necessário expor

as ideias principais da concepção leninista de revolução e de organização

revolucionária, retomando aqui o Que Fazer?. Para Lênin a luta essencialmente

sindicalista, econômica, não poderia ultrapassar os limites do próprio capitalismo, pois

tal tipo de luta se limita à relação dos operários com os patrões, não incluindo uma

relação com as demais classes da sociedade. Um relacionamento com todas as classes

sociais somente seria possível com uma organização política. Seria ela que buscaria

informações sobre todas as ações do Estado e com um trabalho articulado dessas

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informações poderiam apresentar ao conjunto da classe suas reivindicações econômicas

inseridas dentro de um aspecto mais amplo da vida global da sociedade. A inserção das

reivindicações operárias nesse conjunto global, político, era a única forma de

proporcionar um horizonte verdadeiramente revolucionário ao operariado, pois somente

com essa visão se teria uma perspectiva de tomada do poder político.

Entretanto o operariado não conseguiria chegar a essa consciência revolucionária

sozinho, espontaneamente, pois que a luta sindical, partindo do local de trabalho, contra

os patrões se limitaria ao aspecto econômico de sua vida social. O máximo de

consciência que conseguiriam seria uma consciência trade-unionista, sindicalista. Essa

consciência é ainda caracterizada por Lênin como uma consciência burguesa dentro da

classe operária que não colocava como necessário à construção do socialismo a tomada

do poder político. A única forma dos operários adquirirem uma consciência

verdadeiramente revolucionária, socialista, era através do partido social-democrata.

Provava a história que as idéias socialistas provieram dos intelectuais pertencentes às

classes possuidoras e não dos próprios operários. Seriam os intelectuais capazes de

desenvolverem essas idéias por não estarem ligados ao processo de produção de

mercadorias e isso lhes proporcionaria tempo para se dedicar a esse tipo de atividade

intelectual. Dessa forma, o único caminho para que os operários adquirissem uma

consciência revolucionária de classe seria através de uma organização externa à própria

classe, através do partido social-democrata.

A elaboração teórica do socialismo seria um trabalho a ser desenvolvido pelos

militantes do partido. Esses deveriam ser profissionalizados, se tornarem especialistas

da revolução e afastados de seus trabalhos. Ao partido político caberia a função de

educar, de ensinar, de formar os revolucionários profissionais. Posteriormente, aos

militantes já formados caberia a função de educar e formar a classe operária sobre seu

papel de classe revolucionária, sobre seu papel na luta política.

A ação partidária visava conquistar a direção de movimentos espontâneos

surgidos da luta contra os patrões com o objetivo da tomada do poder político. Para

Lênin, o culto do espontaneísmo, assim como o limite trade-unionista da luta

meramente econômica não possibilitaria uma revolução socialista. Era necessário o

partido para direcionar as lutas econômicas surgidas espontaneamente no sentido da

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tomada do poder político, único caminho verdadeiramente revolucionário. (1979: 79 a

214)

A classe operária somente poderia adquirir uma consciência revolucionária

externamente a si própria, através de uma organização não forjada na luta concreta de

seu cotidiano, que a educaria sem uma ação prática, participativa, sem uma experiência

concreta. Tal papel pedagógico que caberia ao partido manteria, dessa forma, as classes

trabalhadoras alheias à construção de sua própria consciência de classe revolucionária.

Podando assim uma participação direta das massas no processo revolucionário, através

da mediação partidária e de seus dirigentes e militantes, estava aberto o caminho à

burocratização, à formação das cúpulas sindicais e de consolidação de classes sociais.

O outro ponto de influência das organizações leninistas era na formação do

campo social das lutas sindicais, que no momento vivenciado em Portugal poderia ser

revolucionário. Para a trabalhadora do DGCI a luta sindical tem importância, por

continuar a ser um ponto aglutinador da vontade dos trabalhadores em luta contra o

capitalismo e pela necessidade de destruir a herança sindical corporativista do

salazarismo. “Não se destruirá toda a estrutura sindicalista do fascismo se todo o

processo sindicalista não for posto em causa, para o identificar com uma perspectiva

revolucionária.” (COMBATE, 20: 2)

A reconstrução sindical colocaria as tendências de cada classe abertas, pois as

obrigariam a expor a via que imprimiriam à luta, identificando-se assim duas correntes,

a do reformismo e a do anti-reformismo.

Para a trabalhadora do DGCI os cinqüenta anos de fascismo proporcionaram à

massa do funcionalismo público uma aproximação com o aparelho repressivo do Estado

fascista e de se organizarem hierarquicamente em cúpulas sindicais. Essa situação

afastou uma parte dos trabalhadores da consciência de classe revolucionária do

proletariado. Entretanto, a situação posterior ao 25 de Abril ocasionou algumas

alterações devido a baixa remuneração, falta de condições mínimas de trabalho e de

precariedade de condições sociais, resultando numa situação em que uma grande

camada de funcionários se identificassem com os interesses da classe operária, se

aproximassem da posição da classe operária. E cita o caso da CML onde grande parte

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dos trabalhadores são trabalhadores manuais, e onde as tendências reformistas não se

posicionaram nem predominaram nas organizações sindicais, ao contrário de outros

órgãos, como LNEC, onde a predominância de quadros técnicos, administradores, de

classes intermediárias mais os identificam com os interesses da burguesia do que com

os interesses da classe trabalhadora. É esse o campo de luta social que está aberto no

sindicalismo da função pública (e não só nele) onde confluem classes sociais distintas

em disputa para a realização de seus interesses. Como foi dito pelos trabalhadores há

uma nítida divisão de interesses de classe que se manifestam na organização sindical.

(COMBATE, 20: 7)

E a ligação do reformismo com o Partido Comunista Português (PCP) e seu

braço sindical, a Intersindical, é clara para esses trabalhadores. De acordo com um

trabalhador da CML a situação se coloca da seguinte maneira:

“a tendência reformista largamente apoiada pela Intersindical e pelo dito Partido Comunista Português é pela hierarquia; a tendência anti-reformista é neste momento defendida por meia-dúzia de indivíduos cujo leque de opções partidárias é bastante largo. Os indivíduos que defendem a linha reformista não estão interessados na discussão generalizada dos problemas, (...) esses indivíduos sem o menor aval dos trabalhadores formaram-se em comissões pró-unidade, funcionando com uma salinha junto da Intersindical.” (COMBATE, 20: 7)

A forma encontrada pelos não-reformistas para lutar contra essa linha reformista

do leninismo ortodoxo, do PCP, foi incentivar a participação ativa dos trabalhadores e a

busca do controle sobre as comissões e direções.

Para o trabalhador do DGCI o controle sobre os órgãos da luta operária necessita

de algumas premissas como a revogabilidade dos delegados e das comissões sindicais.

Esse princípio democrático seria uma das garantias da participação autentica e

permanente, mantendo o controle sobre os órgãos de execução. Somente assim poderia

ser desenvolvido o sentido de responsabilidade dos delegados com as massas, das

massas com os delegados e das massas perante si próprias, caso contrário ocorreria a

instalação instável dos órgãos de execução dos delegados, das comissões e das direções.

A instabilidade é identificada como caminho para a burocratização. (COMBATE, 20: 2)

A participação ativa ainda incide sobre a consciência dos trabalhadores. Para a

trabalhadora do DGCI:

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“Hoje já é quase um lugar comum dizer-se que a consciência política ou revolucionária se adquire na prática da luta revolucionária, mas adquire-se na prática da luta revolucionária à volta de objetivos concretos de luta. O operariado, os trabalhadores, só adquirem consciência política quando através de uma luta reivindicativa, inclusivamente, de uma luta pela conquista de direitos dos trabalhadores enfrentam o poder político do capitalismo. Assim a luta sindical será a forma de luta dos trabalhadores à volta das suas necessidades concretas, à volta de seus direitos concretos de trabalhadores no interior da sociedade capitalista e que pode permitir o desenvolvimento de sua consciência política.”(COMBATE, 20: 7).

Levanta-se aqui uma possível crítica aos postulados leninistas do limite

sindicalista da consciência dos trabalhadores, caso esta se desenvolva autonomamente e

espontaneamente. Como foi dito a consciência política somente é adquirida com a luta

prática em torno de reivindicações concretas, a partir das quais se edificam as

organizações e se desenvolvem suas formas organizativas igualitárias e participativas.

De uma luta reivindicativa de salários, por exemplo, pode o trabalhador perceber os

aspectos políticos em jogo, desenvolvendo sua consciência política. O aprendizado, a

educação operária com vistas à sua emancipação da situação de classe explorada pelo

capital se faz praticamente, na experiência cotidiana de participação direta nas

organizações autonomamente criadas pela própria classe.

Pode-se avançar aqui na afirmação de que essa educação é tão mais profunda

quanto se leva em consideração que são as próprias formas organizativas criadas na luta

que servirão de base para a organização da produção na nova sociedade (Castoriadis,

1979: 14). Sendo as formas organizativas pautadas na igualdade, na participação direta e

na revogabilidade temos as sementes do desenvolvimento de novas relações de

produção, relações de produção comunistas. Dessa educação prática e da organização da

produção em novos moldes, pode o operariado adquirir sua consciência revolucionária

de classe e as criar as possibilidades de sua ação política. De acordo com o ponto

número 10 do Combate,

“A luta prática desenvolvida pelos trabalhadores chega no seu próprio processo (espontâneo) a formas antagônicas com o modo de produção capitalista.” (...) “Os trabalhadores, diretamente sujeitos à exploração capitalista, respondem espontaneamente a essa exploração com reivindicações de caráter econômico, que em si não põem em causa o modo de produção capitalista. Mas as formas organizativas desenvolvidas para atingirem aqueles objetivos iniciais entram em completo antagonismo com a organização do trabalho no capitalismo e com as formas gerais de relacionação na sociedade, ou seja, as relações mútuas entre os trabalhadores na prática comum de luta.” (COMBATE, 06: 1)

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Mas esse não é o posicionamento da trabalhadora do DGCI, para ela o

desenvolvimento da luta em torno de necessidades concretas está inserido “no interior

da sociedade capitalista.” Esse posicionamento expressa uma concepção revolucionária

de que a luta sindical não pode se desenvolver e resultar em uma organização socialista

da sociedade. Para ela:

“O sindicato só por si não é o instrumento de luta política por excelência, das classes trabalhadoras. Esse instrumento terá de ser, pois, uma organização política, onde a luta política seja efetivamente o aspecto fundamental. (...) o Sindicato nas mãos dos trabalhadores é a organização através da qual os trabalhadores lutam contra o capitalismo, mas no interior das relações de produção capitalista.” (COMBATE, 20: 2)

A perspectiva da necessidade de tomada ou não do poder político para se realizar

a revolução socialista é o que também permeia uma troca de argumentos entre dois

outros debatedores.

Um trabalhador do DCG acredita que as diferenças entre as várias organizações

do movimento operário não é nem de ideologia nem de prática, mas de semântica. Para

ele, concretamente abaixo da palavra sindicato estão realidades completamente

distintas. E pode ser chamada do que for, o que importa é que seja uma organização

autônoma da classe operária.

“Como arrancar com essa organização autônoma? Através das organizações autônomas da classe, por unidades de trabalho, habitação (células) e unidades de produção, etc. As próprias condições subjetivas e objetivas da luta que irá se desenrolando, irão obrigar à junção das comissões eleitas nos diversos espaços de luta, portanto à sua globalização numa estrutura mais lata.” (COMBATE, 21: 2)

Expõe ele, dessa forma, uma visão de integração dos órgãos operários em uma

perspectiva de união das várias comissões de trabalhadores a partir dos locais de

trabalho como resultado da ação espontânea e autônoma da classe. E essa ação deve ser

contra qualquer estrutura burocratizada ou “super-partes” de trabalhadores que não seja

controlada cotidianamente e totalmente pelos trabalhadores. “O poder dos

trabalhadores, na base, deve estar formalizado ao nível de plenário de empresa, do

plenário da unidade de produção, do plenário do bairro – são as assembléias dos

trabalhadores.” (COMBATE, 21: 2)

Por outro lado, para o trabalhador do DGCI a luta em volta do sindicato é sim

uma luta pela destruição do capitalismo e pela construção do socialismo, como uma

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necessidade dos trabalhadores. E ela deve ser constante contra o capital também depois

da tomada do poder pelo proletariado, devendo continuar para evitar que a burguesia

burocrática ou tecnocrática tome o lugar do operariado no poder, faça a contenção do

processo revolucionário e transforme a construção do socialismo em capitalismo de

estado. A divergência é sobre a multiplicação das células a partir da base,

“consubstanciando essa organização autônoma do proletariado.” Para ele a explicação é

simplista. E questiona como essa concepção (que reluta em rotular de anarco-

sindicalista, mas o faz) pode responder à necessidade de conquista do poder político

pelo proletariado?

“Não sei até que ponto esta organização (...) é uma organização que deve funcionar paralelamente à organização política, ou como organização de substituição integral e global nas mãos do proletariado para a conquista do poder político que é fundamentalmente o promover a construção do socialismo e do comunismo.” (COMBATE, 21: 2)

O debate pode ser melhor entendido a partir de algumas considerações

levantadas por José Artur Castro Neves (1976), em seu estudo Contribuição para a

Percepção da Cultura (Política) em Portugal5

Entretanto, o movimento histórico mostrou que tal adesão resultou também em

uma ambiguidade que levou, no caso russo, à degeneração da luta revolucionária.

Contemporaneamente a ambiguidade já não era mais permitida e a substituição do

. A concepção leninista de utilização dos

órgãos autônomos da classe operária pode ser divida em dois períodos historicamente

definidos. Um período pré-revolucionário, antes da tomada do poder em outubro de

1917, onde eles têm um caráter subversivo da ordem capitalista devendo ao partido

aderir a eles (“Todo poder aos soviets”). E outro posterior, quando da organização do

novo poder soviético houve um enfraquecimento desses órgãos de poder operário,

resultando na transformação da gestão operária em gestão por um só indivíduo e a

subordinação dos comitês de fábrica aos sindicatos dominados pelos bolcheviques. O

primeiro período teria uma conotação histórica positiva, pois há uma adesão do partido

aos movimentos autônomos com vistas à subversão da ordem capitalista estabelecida.

5 O estudo é baseado em um grupo político português, em torno do jornal 1º de Maio, e no projeto político da equipe econômica do 4º Governo Provisório, e tem por objetivo analisar as duas concepções e os dois projetos de intervenção política e social deles. Devido ao fato do estudo fugir um pouco ao limite do proposto nesse artigo, sua contribuição será no sentido de mostrar como estava sendo pensada a relação das organizações políticas de cunho leninista com os órgãos autônomos de luta criados espontaneamente pela classe operária portuguesa.

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capitalismo privado pelo capitalismo burocrático, colocou elementos novos na

reformulação do leninismo. Esses elementos provieram principalmente da experiência

chinesa com o maoísmo e da nova articulação do PC chinês com os movimentos

autônomos no processo revolucionário daquele país, alargando o tempo de ação das

massas para além da tomada do poder, dando uma maior estabilidade à ligação do

partido com os órgãos autônomos dos operários.

Uma das propostas do grupo 1º de Maio era a constituição do verdadeiro partido

marxista-leninista, necessário para a tomada do poder, cuja ação consistiria na

unificação das lutas revolucionárias das massas, unificando os organismos locais e

regionais, criados autonomamente pela classe operária, em âmbito nacional. O partido

centralizaria a nova vanguarda operária, transformando-a em vanguarda partidária.

Manter-se-ia o cunho leninista no que respeita ao ponto de vista jacobino da tomada do

poder, e superaria esse mesmo leninismo ao respeitar a organização autônoma da classe

enquanto classe independente. Entretanto, a cisão leninista e maoísta de aceitar a

autonomia da classe (reconhecimento da revogabilidade, democracia direta, etc.), mas

não a soberania da classe, seria mantida.

Para o coletivo do Combate a perspectiva da necessidade da tomada do poder

por um órgão estritamente político manteria a cisão do político e do econômico, uma

das causas das transformações das revoluções operárias em reprodução do capitalismo.

“Quando o motor de uma revolução não são as massas trabalhadoras auto-organizadas, mas uma instância política que escapa ao controlo dos trabalhadores (...) a sociedade que se constrói não é a comunista, mas uma forma de capitalismo de Estado. As formas de extorsão da mais-valia e de sua distribuição serão diferentes, mas continuará a exploração e a opressão sob novas formas!” (COMBATE, 24: 3)

Os posicionamentos acima expostos evidenciam alguns dos debates que estavam

a serem feitos entre a classe trabalhadora portuguesa, e seus posicionamentos frente às

várias formas de organização da luta que estavam sendo propostas e construídas. As

concepções organizativas leninistas eram parâmetros desses debates e em alguns casos

percebem-se tentativas de avançar essas posições no sentido de apoio às ações

autônomas dos trabalhadores por parte de organizações políticas, ou de superação

dessas concepções ao rechaçarem a direção política dos partidos.

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O último destaque a ser dado refere-se à formação das comissões de

trabalhadores fora da função pública. Para o membro do Combate, a função sindical das

comissões acabou por ultrapassar os sindicatos, e a ultrapassagem se deu através de uma

maior democracia de base, com as assembléias gerais nos locais de trabalho. Essas

comissões foram resultados de uma ação de base, que as fizeram necessárias, e que no

decurso da luta colocou como necessário que essas comissões se associassem com

outras comissões. Mesmo que em alguns casos elas se burocratizaram e se

transformaram em sindicatos paralelos, em outros elas avançaram no sentido de colocar

em causa a estrutura sindical, tentando acabar com a hierarquização, ampliando a

participação e alargando a iniciativa de todos os trabalhadores. Essa situação levou à

discussão sobre o reformismo ou o anti-reformismo nos sindicatos e importância desses

posicionamentos para construí-los. E também se o objetivo da luta era a tomada do

poder ou se era o desenvolvimento da luta autônoma a partir da ação participativa da

base dos trabalhadores. O debate e a prática de organização colocavam a necessidade de

saber se estavam agindo no sentido da construção de uma nova sociedade ou se estavam

a serviço de tendências políticas para a reprodução do capitalismo ou do socialismo

entre aspas, do capitalismo de estado. (COMBATE, 21: 2)

Tal balanço pode servir também para refletir sobre a construção sindical na

função pública portuguesa, como foi exposto aqui através dos trabalhadores público.

Dessa forma a classe operária vai identificando seus inimigos e quais os caminhos para

evitar o processo de estruturação hierarquizada no sindicato da função pública.

“A luta a travar contra todas estas tendências cupulistas terá essencialmente de apoiar-se naqueles sectores da administração pública onde houver uma predominância de extratos profissionais menos favorecidos. E será através destes extratos que esperamos encontrar o setor mais ativista contra as tendências cupulistas.” (COMBATE, 20: 7)

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BIBLIOGRAFIA

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PANNEKOEK, Anton. Sobre a organização dos trabalhadores. Lisboa: Contra a Corrente, s/d.

Fontes Jornal Combate, números 6 (13/09/1974), 20 (28/03/1975), 21 (11/04/1975), 24 (30/05/1975) e 25 (17/06/1975).

A coleção completa do jornal, em formato PDF, pode ser encontrada em:

http://www.marxists.org/portugues/tematica/combate/. Acessado em 11/08/2011.

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