Militares na Asturia meridional: os testemunhos epigráficos do Nordeste Transmontano

17
B R I G A N T I A REVISTA DE CULTURA PUBLICAÇÃO ANUAL Director Ana Maria Afonso Conselho Científico Telmo Verdelho Francisco José Terroso Cepeda Ernesto Rodrigues António Rodrigues Mourinho Hirondino Fernandes Conselho de Redacção Francisco Mário da Rocha Isaura do Espírito Santo Carlos Prada de Oliveira Élia Maria Mofreita Correia Editor e Proprietário Assembleia Distrital Administrador Assembleia Distrital Redacção e Administração Assembleia Distrital de Bragança BRIGANTIA – REVISTA DE CULTURA Rua Abílio Beça n.º 75/77 5300-011 BRAGANÇA Telefone: 273 324 092 Fax: 273 324 580 [email protected] [email protected] Execução gráfica G. C. – GRÁFICA DE COIMBRA, LDA. Palheira – Assafarge Telef. 239802450 – Fax 239802459 3040 COIMBRA Depósito legal n.º 24080/88 S U M Á R I O BRIGANTIA BRAGANÇA VOL. XXXII 2012-2013 P. 1-470 Nota de Abertura .............................................................................. III-IV Piedade Popular e Inculturação da Fé o Santuário de Santo Antão da Barca ......................................................................................... 1-4 Por José Manuel Cordeiro Pontes da Beira Alta e de Trás-os-Montes..................................... 5-50 Por Luís Alexandre Rodrigues Militares na Astúria Meridional: Os Testemunhos Epigráficos do Nordeste Transmontano ......................................................... 51-66 Por Armando Redentor Os Cogumelos na Génese das Culturas: Noroeste Ibérico.......... 67-90 Por Marisa Castro Conversas de Mesa – Cibos de Gana, Falas e Enguiços ............. 91-178 Por António Monteiro ALHEIRA(S) DE MIRANDELA .......................................................... 91-112 Tabafeias e vilões... larotas e azedos CUSCOS DE VINHAIS..................................................................... 112-128 Cinderela da gastronomia transmontana COMERES CEDIÇOS E DE SUSWTIMENTO ...................................... 128-133 Uma carambina alustrada A PROPÓSITO DE URTIGAS............................................................ 133-147 Usanças, préstimos e crendices RABOS DE POLVO DAS BRUXAS..................................................... 148-157 Comer enxota-diabos ou manjar erótico? VEGETAIS RELEGADOS................................................................. 158-171 À espera de outros tempos DOÇURAS E DELICADEZAS DE SABOR AMENDOADO....................... 171-178 Dos pasteleiros cistercienses às doceiras moncorvenses Os Edifícios Escolares do Ensino Primário no Distrito de Bragança, 1820-1910 ....................................................................................... 179-222 Por Isabel Baptista Instrumentos Musicais em Desuso na Terra de Miranda ............. 223-232 Por António Rodrigues Mourinho Pauliteiros e Paloteo – Seus Contextos Festivos em Zamora e Bragança..................................................................................... 233-252 Por António A. Pinelo Tiza Ourivesaria Religiosa de Proveniência Espanhola na Diocese de Bragança- Miranda................................................................... 253-290 Por Fernando Pereira Carrazeda de Ansiães como Produtor de Vinho do Porto: Memórias e Identidades Conjunturais em Espaço de Fronteira. Um Estudo de Caso Alargado na Região Demarcada do Douro (I República)................................................................................... 291-316 Por Maria Otília Pereira Lage As Cédulas – “Moeda Troco” no Arquivo Distrital de Bragança ... 317-322 Por Fernando Silva Carvalho A Iconografia nos Registos Paroquiais do Arquivo Distrital de Bragança................................................................................... 323-348 Por Élia Correia Escola Socializadora do Século XXI ............................................... 349-354 Por Cristina de Macedo Pinto A Igreja da Cumieira enquanto Pertença do Padroado da Universidade de Coimbra........................................................ 355-376 Por Armando Palavras Uma Fábrica de Sabão em Bragança ............................................. 377-382 Por Fernando Silva Carvalho A Acessibilidade Museológica – O Caso do Museu do Abade de Baçal ......................................................................................... 383-404 Por Cláudia Martins A Importância dos Sistemas de Informação nos Museus: O Caso do Museu do Abade de Baçal ...................................................... 405-418 Por Ana Maria Afonso Cartas do Dr. João Pessanha Vaz das Neves................................ 419-464 Por Fernando Azevedo Moreira Bibliografia do Distrito de Bragança, opulentíssimo monumento e doação faustosa de Hirondino Fernandes.................................. 465-470 Por Telmo Verdelho

Transcript of Militares na Asturia meridional: os testemunhos epigráficos do Nordeste Transmontano

I

B R I G A N T I AREVISTA DE CULTURA

PUBLICAÇÃO ANUAL

Director

Ana Maria Afonso

•Conselho Científico

Telmo VerdelhoFrancisco José Terroso Cepeda

Ernesto RodriguesAntónio Rodrigues Mourinho

Hirondino Fernandes

•Conselho de Redacção

Francisco Mário da RochaIsaura do Espírito SantoCarlos Prada de Oliveira

Élia Maria Mofreita Correia

•Editor e Proprietário

Assembleia Distrital

•Administrador

Assembleia Distrital

•Redacção e Administração

Assembleia Distrital de Bragança

•BRIGANTIA – REVISTA DE CULTURA

Rua Abílio Beça n.º 75/775300-011 BRAGANÇATelefone: 273 324 092

Fax: 273 324 580

[email protected]@gmail.com

•Execução gráfica

G. C. – GRÁFICA DE COIMBRA, LDA.Palheira – Assafarge

Telef. 239802450 – Fax 2398024593040 COIMBRA

Depósito legal n.º 24080/88

S U M Á R I O

BRIGANTIA BRAGANÇA VOL. XXXII

2012-2013P. 1-470

Nota de Abertura .............................................................................. III-IVPiedade Popular e Inculturação da Fé o Santuário de Santo Antão da Barca ......................................................................................... 1-4 Por José Manuel Cordeiro Pontes da Beira Alta e de Trás-os-Montes ..................................... 5-50 Por Luís Alexandre Rodrigues Militares na Astúria Meridional: Os Testemunhos Epigráficos do Nordeste Transmontano ......................................................... 51-66 Por Armando Redentor Os Cogumelos na Génese das Culturas: Noroeste Ibérico .......... 67-90 Por Marisa Castro Conversas de Mesa – Cibos de Gana, Falas e Enguiços ............. 91-178 Por António Monteiro ALHEIRA(S) DE MIRANDELA .......................................................... 91-112 Tabafeias e vilões... larotas e azedos CUSCOS DE VINHAIS ..................................................................... 112-128 Cinderela da gastronomia transmontana COMERES CEDIÇOS E DE SUSWTIMENTO ...................................... 128-133 Uma carambina alustrada A PROPÓSITO DE URTIGAS............................................................ 133-147 Usanças, préstimos e crendices RABOS DE POLVO DAS BRUXAS ..................................................... 148-157 Comer enxota-diabos ou manjar erótico? VEGETAIS RELEGADOS ................................................................. 158-171 À espera de outros tempos DOÇURAS E DELICADEZAS DE SABOR AMENDOADO ....................... 171-178 Dos pasteleiros cistercienses às doceiras moncorvensesOs Edifícios Escolares do Ensino Primário no Distrito de Bragança, 1820-1910 ....................................................................................... 179-222 Por Isabel Baptista Instrumentos Musicais em Desuso na Terra de Miranda ............. 223-232 Por António Rodrigues Mourinho Pauliteiros e Paloteo – Seus Contextos Festivos em Zamora e Bragança ..................................................................................... 233-252 Por António A. Pinelo Tiza Ourivesaria Religiosa de Proveniência Espanhola na Diocese de Bragança- Miranda ................................................................... 253-290 Por Fernando Pereira Carrazeda de Ansiães como Produtor de Vinho do Porto: Memórias e Identidades Conjunturais em Espaço de Fronteira. Um Estudo de Caso Alargado na Região Demarcada do Douro (I República) ................................................................................... 291-316 Por Maria Otília Pereira Lage As Cédulas – “Moeda Troco” no Arquivo Distrital de Bragança ... 317-322 Por Fernando Silva Carvalho A Iconografia nos Registos Paroquiais do Arquivo Distrital de Bragança ................................................................................... 323-348 Por Élia Correia Escola Socializadora do Século XXI ............................................... 349-354 Por Cristina de Macedo Pinto A Igreja da Cumieira enquanto Pertença do Padroado da Universidade de Coimbra ........................................................ 355-376 Por Armando Palavras Uma Fábrica de Sabão em Bragança ............................................. 377-382 Por Fernando Silva Carvalho A Acessibilidade Museológica – O Caso do Museu do Abade de Baçal ......................................................................................... 383-404 Por Cláudia Martins A Importância dos Sistemas de Informação nos Museus: O Caso do Museu do Abade de Baçal ...................................................... 405-418 Por Ana Maria AfonsoCartas do Dr. João Pessanha Vaz das Neves ................................ 419-464 Por Fernando Azevedo Moreira Bibliografia do Distrito de Bragança, opulentíssimo monumentoe doação faustosa de Hirondino Fernandes .................................. 465-470 Por Telmo Verdelho

51

MILITARES NA ASTURIA MERIDIONAL: OS TESTEMUNHOS EPIGRÁFICOS DO NORDESTE TRANSMONTANO

ArmAndo redentor*

1.

O território correspondente ao Nordeste Transmontano esteve, durante a Antiguidade, integrado no convento jurídico com sede em Asturica Augusta, exceptuando-se possivel-mente a sua extremidade austral. Esta circunscrição referente à Hispania Citerior tinha, no espaço transmontano, as suas terras mais meridionais, limitando a nascente e sul com os Lusitanos e a poente com os Calaicos brácaros.

Situava-se nesta faixa territorial do conuentus Asturum a etnia dos Zoelas, cujo conhecimento nos chega tanto pelas fontes literárias antigas como pelas epigráficas, e que sabemos ter vindo a configurar um espaço político-administrativo autónomo enquanto ciuitas (DAP, s. u. Zoelas).

A primeira referência declarada aos Ástures no contexto das guerras do Noroeste surge apenas em 29 a. C., ano em que T. Statilius Taurus empreende a guerra contra Vaceus, Cântabros e Ástures (Dio, LI, 20, 5). A partir de 27 a. C., desenrolam-se os episódios das designadas guerras cântabro-ástures, nas quais se chega a empenhar directamente o impe-rador Augusto. Os acontecimentos mais destacados da conquista das terras ástures ter-se-ão sucedido nos dois anos seguintes, sendo a queda do simbólico Mons Medullius, a traição dos Brigaecini e a conquista de Lancia os mais glosados pelas fontes antigas (Flor., II, 33, 50-58; Oros., Adu. Pag., 6, 21, 6-10; Dio, LIII, 25, 8).

A míngua de dados sobre estes episódios de guerra não permite descortinar os passos relativos ao domínio dos Zoelas ou ao comportamento destes durante os afrontamentos com Roma. Todavia, os acontecimentos bélicos com maior proximidade ao seu território parecem situar-se no ano 25 a. C., pelo que não será despiciendo pensar que tenha sido por volta desta data que ocorreu a integração desta franja da Astúria meridional na ordem romana (Redentor 2002, p. 28-29). Os dados arqueológicos disponíveis também não per-mitem compor cenário com enfoque mais pormenorizado.

Escavações realizadas, na primeira década deste século, em Bragança poderão apontar para a existência, na depressão drenada pelo rio Fervença, de uma presença militar limitada no tempo, centrada na época júlio-claudiana, equacionável à luz do registo arqueológico da praça Camões, para o qual não se tem rejeitado a hipótese de se associar a um acampamento (Lima & Menéndez 2004, p. 21; García 2004, p. 77-87). No entanto, uma efectiva presença

* Investigador doutorado do Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património (CEAACP), Universidade de Coimbra. Correio electrónico: [email protected]

armandoredentor
Typewritten Text

52

militar nesta fase teria objectivos seguramente distintos dos que se podem conceber para as décadas imediatamente anteriores à viragem da Era, decerto coincidentes com o acom-panhamento do esforço de integração administrativa e de dinamização territorial.

As fontes epigráficas da região também não nos brindam com qualquer documento que possa ser directamente associado às manobras militares da conquista ou aos corpos do exército que nela participaram. Aliás, a epigrafia referente a militares é regionalmente escassa para todo o período romano (fig. 1). Contamos apenas com três inscrições nas quais há referência a indivíduos que enfileiraram nos exércitos imperiais, plausivelmente todos eles naturais da região, e nenhuma delas com cronologia que se aproxime da fase da conquista territorial.

Não obstante, as problemáticas associadas a cada uma das epígrafes, em grande parte decorrentes da utilização de abreviaturas na composição dos textos gravados, acabam por marcar este pequeno lote documental que passamos a apresentar.

2.

A epígrafe mais antiga corresponde a uma placa granítica (dimensões, em cm: [48,5] x 70,5 x 23) procedente de um povoado fortificado sobranceiro ao canhão do rio Douro: o castro de São João das Arribas, em Aldeia Nova, no concelho de Miranda do Douro (Lopo 1987, p. 107; Lemos 1993, IIa, p. 202-206, n.º 300) (figs. 2, 3 e 4).

'AE' MILIO · B 'AL''AE' SO · SIGINI

FERO (!) 'AL' AE · SAB 'IN' I 'AN' 'AE' · COGN

ATIO · DE · CENS

Aemilio Bal/aeso sigini/fero (!) alae Sa/binianae. Cogn/atio De(---) cens(uit).

[EE VIII 128 + EE IX p. 110; Alves 1934, p. 32-33, n.º 2; Pereira 1978; Le Roux 1982, p. 224, n.º 184; Santos 1988, p. 210, n.º 1; Le Roux 1995, p. 88-89; AquaeFlauiae2, 215]

A placa, com rebordo moldurado, actualmente inexistente no lado inferior, foi dedicada a Aemilius Balaesus, porta-estandarte (signifer) de uma unidade auxiliar de cavalaria, no texto apenas identificada como ala Sabiniana, designação de uso corrente que remete para a ala I Pannoniorum Sabiniana.

A informação referente a esta unidade militar não é abundante. Tem-se equacionado a sua criação em época tiberiana, presumindo-se que o seu nome possa ter sido recebido do prefeito Nymphidius Sabinus (Radman-Livaja 2012, p. 168), mas a documentação epigrá-fica que se lhe associa é bem mais expressiva na centúria seguinte, reconhecendo-se que, a partir de Adriano, esteve estacionada na Britannia (Spaul 1994, p. 189-190). Tratando-se de uma unidade quingenaria (Jarrett 1994, p. 43; Waldock 1998, p. 113), com um total de 512 homens a cavalo, Aemilius Balaesus foi porta-estandarte numa da suas 16 turmae de 32 militares (30 cavaleiros sob o comando de um decurio e de um duplicarius) (Webster 19983, p. 145-148; Roth 1998, p. 335-339).

53

Embora sem outros argumentos, não deixa de ser admissível que a ala em questão tivesse tido passagem pelos territórios hispânicos (Le Roux 1982, p. 224; Cuff 2010, p. 256, n. 42).

Possivelmente, o recrutamento deste indivíduo terá acontecido na época flaviana, admitindo uma datação para a inscrição de finais da primeira centúria (Le Roux 1982, p. 224) ou primeiros anos da seguinte.

A natureza da epígrafe é plausivelmente funerária, pelo que Aemilius Balaesus terá recebido sepultura no seio da comunidade indígena da qual seria originário. É precisamente a referência expressa à entidade dedicante da homenagem fúnebre que tem suscitado alguma controvérsia científica, tendo vindo a acumular-se diversas propostas assentes no carácter algo sibilino do final do texto: cogn/atio de cen/[turia] (EE VIII 128; Le Roux 1982, p. 224; Santos 1988, p. 210); cogn/atio de cen(turia) (Schülten 1943, p. 61); cogn/atio de gen/[te uel tilitate] (Le Roux & Tranoy 1983, p. 114-115); ou, aceitando por coeva a letra gravada sobre a moldura do lado direito, cognatio de(dicauit) cens(uit) (Pereira 1978); cogn/atio de(dit) cens(uit) (Pereira 1993); cogn/atio de(dicauit) gen(tili) s(uo) (AquaeFlauiae2 215)...

Depois da descoberta da tessera de hospitalidade de Montealegre de Campos (AE 1985, 581 = AE 1987, 614 = AE 1988, 764 = AE 1991, 1047 = AE 1992, 1032 = AE 1993, 1037 = AE 1994, 1005), tem-se gerado consenso relativamente à interpretação da cognatio como unidade organizativa de carácter familiar alargado, de parentesco real, sanguíneo e não fictício, habitualmente indicada através de genitivos de plural (Pereira 1993, p. 415-418; González 1993, p. 157-158), pelo que o mais provável é que, na inscrição em apreço, se siga ao termo cognatio exactamente um desses nomes, tendo por radical a sequência Decen[---] (Le Roux 1995, p. 88-89) ou, talvez mais correctamente, apenas De(---) seguida de cens(suit), garantindo-se a coerência de toda a interpontuação associada ao texto. O verbo censĕō, ēs, ēre, sŭī, sum, apesar de na documentação epigráfica ter uso quase exclusivo em inscrições com chancela oficial, apontando frequentemente decisões institucionais de diversa ordem, não deixa de se confirmar em registo estritamente privado, mesmo funerário (u. g. CIL XI 8003). Será, ainda, de referir que a admissão de uma formulação cogn/atio de(dicandum) cens(uit), já aventada como solução preferível a um inusitado desdobramento cogn/atio de(dicauit) cens(uit) (cf. Le Roux & Tranoy 1983, p. 114, n. 25), carece de apoio epigráfico.

Valerá a pena também chamar a atenção para o facto de não serem altos os níveis de literacia no ambiente em que se levanta a inscrição, algo bem perceptível na inexactidão quanto à norma gráfica da palavra que designa o posto do militar homenageado, pois insculpiu-se siginifero por signifero, quiçá por contaminação a partir do termo imaginifer, que denomina aquele que entre as tropas conduz a imagem do imperador (cf. DAGR, s. u. Signa Militaria).

Todavia, o nome deste militar far-nos-á pensar nos caminhos da evolução da ono-mástica pessoal a que, desde os inícios da integração das comunidades indígenas na esfera romana, se vai assistindo, a par de uma cada vez maior integração jurídica, sabendo-se que a carreira militar foi exactamente um dos expedientes importantes ao nível das naturaliza-ções dos indígenas, isto é, da sua passagem do estatuto de estrangeiros (peregini) para o de cidadãos romanos (ciues), aspecto que também transparece no carácter misto dos nomes que enverga, repousando no cognome a ligação expressa à origem vernácula.

54

3.

Neste aspecto, apesar de integralmente latina, também a onomástica de Domitius Peregrinus, outro militar com origem nas terras marginais ao canhão do Douro, se nos afigura interessante, se atentarmos no cognome que enverga, embora se esteja em face de indivíduo com estatuto de cidadão romano seguramente anterior ao seu recrutamento, atendendo a que esse perfil jurídico se constitui como requisito necessário para o ingresso num corpo legionário.

Este veterano da legio VII Gemina Pia Felix é-nos documentado por um imponente altar votivo (dimensões, em cm: [131] x 52 x 25,5) (fig. 5) encontrado em reaproveita-mento na igreja paroquial de Saldanha (Mourinho 1972), um pequeno aglomerado rural mogadourense do qual procede um conjunto epigráfico romano de índole funerária bastante significativo (Lemos 1993, IIb, p. 296-301, n.ºs 399-402).

I · O · M · DDOMITIVS

PEREGRINVSVET · LEG · VII

GE · P · FV · S · L · M

I(oui) O(ptimo) M(aximo) D(epulsori?) / Domitius / Peregrinus / uet(eranus) leg(ionis) VII / Ge(minae) P(iae) F(elicis) / u(otum) s(oluit) l(ibens) m(erito)

[AE 1974, 393 bis = AE 1987, 606; Le Roux 1982, p. 228, n.º 200; RAP 370; Andrés 2005, p. 480, n.º 69]

Com origem na VII Galbiana, criada por Galba, a VII Gemina Felix representa o resultado de uma refundação empreendida por Vespasiano, por fusão com outro corpo legionário, possivelmente a I Germanica. Por volta de 75, regressada dos Agri Decumates, acantona-se na Hispania como única unidade legionária permanente do território penin-sular, tendo por base a actual cidade de León (Legio) até finais do Império, embora dela tenham saído destacamentos expedicionários que marcaram presença na Germania, Dacia, Britannia e Africa (Le Roux 1982, p. 151-153; Palao 2006, p. 43-91).

Não surpreende, pois, o alistamento nesta unidade legionária de um jovem da região, decerto filho de família com ascendente e influência, dado o seu estatuto jurídico num meio social no qual a população continuaria a ser maioritariamente peregrina na transição da segunda para a terceira centúrias. Aliás, o recrutamento nas províncias hispânicas para as unidades legionárias estacionadas nesta ponta ocidental do Império foi fulcral dos sécu-los I ao III, apesar de os incrementos com outras origens completarem as necessidades, detectando-se, pois, algumas nuances geográficas nesta diacronia (Le Roux 1982, p. 254-264; Palao 2006, p. 105-133).

Plausivelmente, a entrada de Domitius Peregrinus para as fileiras do exército terá ainda acontecido na ponta final do século II e, se privação de saúde não o tolheu para o serviço, terá completado um quarto de século nessa vida, altura em que, por certo, regressa ao território do qual era originário. Os critérios cronológicos aplicáveis à datação do altar apontam para a sua inserção já nas primeiras décadas do século III (Le Roux 1982, p. 228),

55

resultando importante, neste particular, a indicação do sobrenome Pia na nomenclatura do corpo legionário, pois esse incremento apenas lhe sobrevém sob Septímio Severo, como consequência da posição neutral, ou inclusive favorável à causa deste imperador, no conflito que o opôs a Clódio Albino (Palao 2006, p. 87).

Este suporte destaca-se no panorama da epigrafia regional pela qualidade da sua execução, facilitada pelo uso do mármore, rocha que, não sendo abundante na região, teve aí alguma procura para os fins em causa, nomeadamente, para a execução de monumentos funerários esteleformes, explorando-se, juntamente com calcários, na área de São Pedro da Silva (jazidas de Santo Adrião) (Lemos 1993, IIb, p. 132 e 363). Aliás, o altar em questão ajuda a conformar um tipo próprio, cujas características são identificáveis não só localmente, mas também na região bragançana e, inclusive, em Astorga (Asturica Augusta). Para além de uma morfologia particular, em que se salienta a relação assimétrica entre a largura e a magra espessura, tem, como imagem de marca, a ornamentação insculpida, composta por rodas de raios curvos nas faces dos puluilli e por motivos vegetais ramiformes na cornija/fastigium. Estes são, por certo, representações de ramos de teixo. Neste altar, apresentam a extremidade em triângulo, colocados sobre uma base semicircular, com a seguinte disposi-ção: na vertical, dois por baixo de cada um dos puluilli e um ao centro, subido e alinhado com o eixo do fastigium, e em posição oblíqua, acompanhando os lados rampantes deste remate triangular, mais dois, intercalados com os anteriores. A ornamentação ramiforme exibida constitui uma característica decorativa própria a que não atribuímos significado religioso concreto, pois aparece em altares com distintas invocações e inclusive em monumentos funerários, ainda que não neguemos a possibilidade de serem motivos de forte simbolismo cultural, possivelmente comum a diferentes povos, sobretudo cântabros, ástures e calaicos (Redentor 2002, p. 227; Francisco & González 2004, p. 195; Encarnação 2008, p. 119-120).

Não nos serve, pois, esta particularidade decorativa na tarefa de deslindar a orientação do voto cumprido, quando o texto epigráfico reduz a siglas este particular.

Sem sombra de dúvida, é Júpiter o ente divino visado, qualificado de Óptimo e Máximo, mas não há entendimento total quanto à invocação concreta que se nos oculta, desafiante, sob a sigla que se segue a I. O. M., pois tanto o epíteto Depulsor como Dolichenus servem a uma interpretação mais imediatista, considerando que ambos os cultos colheram estima entre os exércitos imperiais e que a história da VII Gemina, nomeadamente ao longo do século II, não inviabiliza que militares nela enfileirados tenham tido oportunidade de contacto com eles.

Será, ainda, de referir que resulta pouco convincente a ideia de fazer corresponder a sigla em causa ao praenomen do dedicante, quer tendo em conta a ordinatio, quer a cronologia do altar, coincidente com uma altura em que se torna frequente a identificação duonominal dos cidadãos romanos.

Em face da ausência de outros testemunhos epigráficos referentes a Iupiter Dolichenus na Hispânia, boa parte dos investigadores tem defendido tratar-se de consagração a I. O. M. Depulsor (Mourinho 1972; Tranoy 1981, p. 315; Le Roux 1982, p. 228, n.º 200; Sánchez & Salas 1984, p. 89, n.º 6; RAP 370; Sagredo San Eustáquio & Jiménez de Furundarena 1996, p. 304, n.º 2; Palao 2006, p. 413). E nem a descoberta mais recente de uma mão de bronze referente a escultura de Dolichenus em Riotinto (Huelva) será argumento absoluto para inibir essa posição, pois é bem possível que o elemento escultórico possa ter chegado por via de comerciantes relacionados com as minas (Perea 1995). Todavia, a interpretação como testemunho de culto a I. O. M. Dolichenus não tem deixado de também concitar opiniões favoráveis (Marco 1987, p. 146-147, n.º 1; Perea 1995, p. 226, n. 42; Andrés

56

2005, p. 480, n.º 69; Collar 2011, p. 219), a par de posições mais reservadas centradas na insuficiência de argumentação para decidir entre as duas hipóteses (Mangas 1996, p. 486-487; Hainzman 2004, p. 231).

A área de distribuição do culto de Dolichenus fora do seu fulcro sírio originário, centrado na Comagena, corresponde essencialmente às regiões provinciais coincidentes com as fronteiras imperiais oriental e setentrional, da Moesia Inferior à Britannia, havendo ainda alguns testemunhos no Norte de África, sendo certo que o seu culto encontrou grande aceitação nos meios militares (Collar 2011).

O culto a Iupiter Depulsor esteve, por seu lado, centrado na parte sul da província do Noricum e no Sudoeste da Pannonia, com particular incidência na região de Poetouio, embora se conheçam dedicatórias em diversos pontos da parte ocidental do Império, algumas delas, porém, dedicadas por gentes do Noricum (Pflaum 1953; Šašel Kos, 2008a, p. 692). Plausivelmente, trata-se de interpretatio de uma divindade suprema do contexto territorial nórico, com a atribuição de arredar o mal, estendendo a sua acção tanto a contextos militares, como cívicos e domésticos (Šašel Kos, 1995; 2008a, p. 691-692; 2008b, p. 291; Hainzman 2004), ainda que a sua dimensão provincial tenha também já sido justificada pela presença militar romana, responsável por rápida e intencional introdução da divindade em reacção às Guerras Marcomânicas (Kolendo 1989).

Sem possibilidade de assumirmos peremptoriedade na opção interpretativa acima seguida, e que é coincidente com a que mais aceitação tem granjeado, há, todavia, alguns dados que não deixam de a assistir.

Desde logo, pode ser referida a coincidência entre a datação do altar mogadourense e a concentração cronológica das dedicatórias conhecidas – cerca de 40 – entre a segunda metade do século II e a primeira do III (Šašel Kos 2008a, p. 692). Não obstante, o mesmo se poderá apontar relativamente aos testemunhos do culto a Iupiter Dolichenus (Collar 2011, p. 217), pelo que a questão cronológica não resultará decisiva.

Olhando outras inscrições de militares, relacionados com as unidades acantonadas na Hispania, que cultuam estas divindades, seria de apontar uma inscrição africana de Seger-mes (Henchir Harat, Tunísia), dedicada a Depulsor por um M. Fabius Mettianus, que foi comandante da ala II Flauia (AE 1935, 35)1, a qual poderia deixar-nos alerta relativamente à possibilidade de esse culto ter tido algum eco no corpo auxiliar próximo da legio VII Gemina (cf. Hernández 1999, p. 114-115). Mas, também Iupiter Dolichenus recebe veneração em Aquae Balissae (Daruvar, Croácia), na Pannonia Superior, de Q. Carmeus Iulianus, que ser-viu como centurio na legio VII Gemina (CIL III 3998)2. E se, neste caso, estaremos perante um centurião já fora do activo, de regresso à sua pátria e à sua família, o que se perspectiva por via indirecta, ao não existir coincidência entre o aposento hispano da legião e o lugar de realização da dedicatória (Palao 2006, p. 251), a situação documentada pela inscrição dedi-cada a Iupiter Depulsor por um oficial equestre poderá ser idêntica, sendo ele plausivelmente originário de Segermes, onde terá desempenhado o cargo de flamen perpetuus (Jarrett 1958, 1, p. 181, n.º 72), não sendo seguro que a última militia tivesse sido desempenhada aquando da estância africana da ala II Flauia, durante a qual se aquartelou em Lambaesis (Roldán

1 Ioui Depulsori / M(arcus) Fabius M(arci) f(ilius) Papir(ia) Mettianus fl(amen) p(erpetuus) praef(ectus) coh(ortis) III Bracar(augustanorum) / trib(unus) leg(ionis) XXX V(lpiae) V(ictricis) praef(ectus) eq(uitum) alae Flauiae II H(ispanorum) c(iuium) R(omanorum) uoto dedic(auit) / cum Lartidia uxore et Optata filia.

2 I(oui) O(ptimo) M(aximo) Dol(icheno) / pro salute Impp(eratorum) L(uci) Sept(imi) / Severi et M(arci) Aur(eli) Antonini / [A]ugg(ustorum) [3] Q(uintus) Car/meus Iulianus (centurio) leg(ionis) VII / Gem(inae) cum Iul(ia) Att(i)cilla et / Carmaeis Secundo et Atti/cilliano fili(i)s u(otum) s(oluit) l(ibens) m(erito).

c

57

1974, p. 213; Jímenez de Furundarena 1998, p. 210). Todavia, será de referir que ambos os cultos têm comprovação nesta cidade africana, na qual Iupiter Dolichenus contou com um templo dedicado, em 125, pelo legatus pro praetore Sextus Iulius Maior, senador de Nysa, cidade cária da província da Asia (Speidel 1978, p. 66; Collar 2011, p. 221).

Mais interessante será o contraponto que se poderá fazer em termos de equivalên-cia entre o culto a Iupiter Depulsor e as dedicatórias com incidência lusitana a Iupiter Repulsor(ius), o que tem vindo a ser apontado por diversos autores (Pflaum 1953; Sánchez & Salas 1984; Hainzmann 2004).

Referimos, por último, que, se não existe testemunho epigráfico evidente do culto a Iupiter Dolichenus (Mangas 1996) – ainda que a sua comprovação na Hispânia não esteja em causa (Perea 1995) –, o culto a Iupiter Depulsor até poderá contar com outros registos. Desde logo, no contexto do Noroeste peninsular, em concreto na parte sudoeste do território conventual brácaro. Não nos referimos à inscrição de Dume dedicada por uma [Fi]rmia [P]usinna (CIL II 2414 + RAP 337), pois neste caso parece-nos mais acertado tratar-se de consagração a Iupiter Repulsor (Redentor 2011, 2, p. 74-75, n.º 92), mas a um altar bas-tante mutilado procedente da freguesia vimaranense de Serzedelo (RAP 328 + Redentor 2011, 2, p. 70-71, n.º 86) para o qual já sugerimos a possibilidade de ter sido dedicado por [V]lp(ius) (?) E[uh]elpistus a [I.]O.[M.] [De]p[uls(ori)] (Redentor 2011, 1, p. 306-307). Será, ainda, de mencionar a possibilidade de a consagração Ioui Depesor[i] (!), com registo numa ara da cacerenha Salvatierra de Santiago (HEp 4, 247), documentar em território lusitano a invocação de Depulsor sob grafia deformada, numa posição geográfica não concordante com a distribuição dos testemunhos de Iupiter Repulsor(ius), mas próxima, coincidente com os de Iupiter Solutorius, que estão, neste sector do interior provincial associado à bacia média do Tejo, posicionados mais a nascente (Beltrán 2001-2002).

4.

É precisamente para o corpo auxiliar de cavalaria acima referido que remete o terceiro monumento epigráfico que conserva referência a um militar. Tem origem, não na região mirandesa, mas na bragançana, embora patenteie uma evidente ligação com aquela ao tratar-se de uma estela funerária (dimensões, em cm: [82] x 39 x 8) (fig. 6) do designado tipo Picote (Tranoy 1981, p. 349-350; Navarro 1998), cuja produção, em mármore de Santo Adrião, se vinculará a uma oficina localizável no planalto mirandês.

D M[C]ALPVRNIOREBVRRINO

EQVITI · AL · II · FLC · S · T · T · L

D(is) M(anibus) / [C]alpurnio / Reburrino / equiti al(ae) II Fl(auiae) / C(- – -) s(it) t(ibi) t(erra) l(euis)

[EE IX, 277; HAE 1867; Le Roux 1982, p. 146-147, 239, n.º 234; Jiménez de Furunda-rena 1998, p. 223-224, n.º 2 = HEp 8, 1998, 583; Hernández 1999, p. 79-81, n.º 63 e p.

187-188; Pitillas 2002, p. 31, n.º 5; ERRB 39]

58

A estela funerária em questão, incompleta, foi encontrada em reaproveitamento na parede de uma casa de Babe, aquando da sua demolição, tendo-se considerado, nessa altura, ser oriunda do Sagrado (Lopo 1987, p. 39-40). Este arqueossítio terá correspondido a um povoado aberto, junto ao qual se estende o traçado da via romana que estabelecia a ligação entre Aquae Flauiae e Asturica Augusta (uia XVII do Itinerário de Antonino), podendo no local ter funcionado uma statio (Lemos 1993, IIa, p. 42-44, n.º 12). Já foi sugerido, em função deste documento, que aí estivesse estado sediado um pequeno destacamento militar (Lemos 1993, Ib, p. 295), mas não há evidência arqueológica que sustente tal hipótese.

Apesar de incompleta no topo e na base, a estela funerária preserva íntegro o epitáfio, bem como o par de elementos decorativos que se lhe associa e que remete para a actividade militar do defunto, inseridos em campos rectangulares de cantos reentrantes, definidos por simples linha incisa. Na parte superior conserva vestígios da característica peanha de lados côncavos, bem como dos emblemas angulosos que a flanqueiam, a qual, no esquema recor-rente das estelas do tipo Picote, dá suporte à roda de raios curvos, aqui totalmente perdida. Três vãos rebaixados compõem o registo inferior e lembram a representação de arcaria presente noutras estelas, mas, neste caso, o habitual desenho dos arcos surge transfigurado na forma de empunhadura de espada.

O par de elementos presente no campo subjacente ao do epitáfio, gravado num estilo algo naïf, dando nota do estatuto militar do defunto, aparece onde noutros casos de estelas do tipo Picote é frequente representarem-se zoomorfos (Redentor 2003).

Na metade esquerda do quadro, gravou-se uma lança (lancea) e, com maior desta-que, uma espada (spatha). Ambas as armas têm representação desproporcionada. A lança, figurada na vertical, não passa de uma associação de três traços, um mais comprido e dois outros na sua extremidade superior, diminutos e oblíquos, formando vértice, simbolizando a ponta metálica no topo da haste. Em face do desenho da espada, transmite claramente o propósito de figuração miniaturada. Todavia, também as proporções da espada se mostram desadequadas, nomeadamente entre o punho de desenho arredondado e a lâmina chata terminada em ponta. As duas armas são características do armamento convencional dos cavaleiros auxiliares (Fields 2006, p. 15-16; Bishop & Coulston 20062, p. 76-78 e 82), categoria a que pertenceu Calpurnius Reburrinus.

Este ingressou na ala II Flauia Hispanorum ciuium Romanorum, unidade quingenaria (Jiménez de Furundarena 1998, p. 211) sediada no acampamento militar de Petauonium (Rosinos de Vidriales), localizado precisamente em terras ástures augustanas, mas a nordeste do rincão conventual meridional de que estamos a tratar, já em terras zamoranas (Carretero & Romero 1996; Hernández 1999, p. 108-115).

A ala terá sido criada na época flaviana e esteve na dependência da legio VII Gemina (Vigil 1961; Roldán 1974, p. 212-214; Le Roux 1982, p. 145; Jiménez de Furundarena 1998, 204-211). Como acima já referimos, teve uma passagem fugaz pelo Norte de África em mea-dos do século II, participando na campanha de Antonino Pio contra os Mauri, regressando novamente à Hispânia, o mais tardar no imperialato de Cómodo (Roldán 1974, p. 213).

O texto do epitáfio é bastante simples e tem como particularidade não referir a idade do defunto, nem tão-pouco o tempo de serviço, sendo esta(s) referência(s) numérica(s) substituída(s) pela alusão ao estatuto de militar. Há, todavia, na sequência do nome da ala, uma inicial, colocada já no começo da última linha do texto, antes da fórmula de encerra-mento S. T. T. L., cuja interpretação é bastante delicada, embora evidente a sua existência. Sendo de descartar como numeral ou sigla de forma verbal pela estrutura do próprio texto, será ainda pouco verosímil como inusitada abreviatura para a menção ciuium Romanorum, mas talvez possa associar-se a um título que a ala tenha assumido transitoriamente, como

59

vem a acontecer mais tarde com os sobrenomes imperiais Galliana Volusiana alusivos a Treboniano Galo e Volusiano (cf. AE 1976, 288).

Olhando à cronologia da inscrição, do final do século II ou do início do III, tendo em conta vários critérios, entre os quais a presença da dedicatória aos Manes e da fórmula final S. T. T. L., a onomástica e a inserção tipológica do suporte no grupo das estelas tipo Picote, e considerando a hipótese de que a dita sigla pudesse igualmente remeter para um sobrenome imperial, adoptado como manifestação de lealdade a determinado imperador, o conflito entre Septímio Severo e Clódio Albino seria contexto favorável para essa ocorrência, pela instabilidade que acarretou entre 195 e 197. Todavia, tem sido entendida como sinal de lealdade da ala II Flauia à causa severiana a estátua que este corpo auxiliar faz erigir a Caracala em 197, em Petauonium (AE 1967, 237), possivelmente em conjunto com outra levantada a seu pai (Le Roux 1982, p. 245-246), afigurando-se talvez curta de mais a mar-gem para especular sobre se o acto não terá representado antes uma atitude reconciliatória (cf. Jiménez de Furundarena 1998, p. 210) e, concomitantemente, sobre se esta unidade de cavalaria teria chegado a arvorar o sobrenome de Clodiana decalcado da nomenclatura do opositor de Septímio Severo, o qual, inclusive, terá tido a adesão do governador da Hispania citerior, L. Nouius Rufus (Alföldy 1969, p. 42-43).

A vinculação familiar do militar Reburrinus aos Calpurnii que se encontram documen-tados mais a nascente, nas imediações das arribas do Douro, nomeadamente nas localidades alistanas de Pino del Oro (CIL II 2614) e de Villalcampo (HAE 891), é perspectivável, tornando mais simples entender que o seu epitáfio tenha sido lavrado sobre uma estela produzida em oficina relacionada com o planalto mirandês (Navarro 1998, p. 186-187).

As três inscrições apresentadas são consideravelmente tardias em relação ao contexto de guerra de conquista da região e ajudam, sobretudo, a documentar a relação da sociedade provincial com as unidades militares, levantando, além do mais, problemáticas interpreta-tivas e históricas de relevo, conforme deixámos exposto.

Terá também ficado patente ao longo dos parágrafos anteriores que não foi nossa exigência resolver as questões em aberto, deixando apenas breves achegas aos assuntos que se têm revelado menos consensuais e cuja solução estará em boa parte dependente do progresso da investigação sobre as matérias em causa, para o qual substancialmente poderão contribuir novos achados epigráficos.

Mesmo a terminar este excurso, há ainda que chamar a atenção para a importância que militares e veteranos, aqui representados por Aemilius Balaesus, Calpurnius Reburrinus e Domitius Peregrinus, terão tido no processo de aproximação da população autóctone à superestrutura romana, na esfera ideológica, logo política, cultural e religiosa, mas também às novas materialidades e hábitos quotidianos. O processo comunicacional que as inscrições encerram é igualmente espelho disso.

BIBLIOGRAFIA:

AE = L’Année Épigraphique. Paris: CNRS; Université de Paris I.Alföldy, Géza (1969) – Fasti Hispanienses: Senatorische Reichsbeamte und Offiziere in den Spa-

nischen Provinzen des römischen Reiches von Augustus bis Diokletian. Weisbaden: Steiner.Alves, Francisco Manuel (1934) – Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança. Porto:

Tip. da Emprêsa Guedes, 1934. Vol. 9: arqueologia, etnografia e arte.

60

Andrés HurtAdo, Gloria (2005) – Una aproximación a la religión del ejército romano imperial: Hispania. Logroño: Universidad de La Rioja, Servicio de Publicaciones (Biblioteca de inves-tigación; 44).

AquaeFlauiae2 = rodríguez Colmenero, Antonio (1997) – Aquae Flauiae. Chaves: Câmara Municipal. Vol. 1: Fontes epigráficas da Gallaecia meridional interior.

Beltrán lloris, Francisco (2001-2002) – Iuppiter Repulsor(ius) y Iuppiter Solutorius: dos cultos provinciales de la Lusitania interior. Veleia. Vitoria. 18-19, p. 117-128.

BisHop, Mike C.; Coulston, Jonathan C. N. (2006) – Roman Military Equipment from the Punic Wars to the Fall of Rome. Second edition. Oxford: Oxbow Books.

CArretero vAquero, Santiago; romero CArniCero, María Victoria (1996) – Los campamentos roma-nos de Petauonium (Rosinos de Vidriales, Zamora). Zamora: Fundación Rei Afonso Henriques.

CIL = Corpus Inscriptionum Latinarum, consilio et autoritate Academiae litterarum regiae Borus-sicae editum. Berolini, 1863-.

CollAr, Anna (2011) – Military networks and the cult of Jupiter Dolichenus. In: Winter, E., ed. – Von Kummuh nach Telouch: Historische und archäologische Untersuchungen in Kommagene. Dolichener und Kommagenische Forschungen IV (Asia Minor Studien; Band 64). Bonn: Dr. Rudolf Habelt GMBH, p. 217-246.

Cuff, David (2010) – The auxilia in Roman Britain and the Two Germanies from Augustus to Cara-calla: Family, Religion and “Romanization”. Toronto: University (Ph. D. thesis, Department of Classics, University of Toronto).

DAGR = dAremBerg, Charles; sAglio, Edmond (1873-1919) – Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines. Paris: Librairie Hachette et Cie.

DAP = AlArCão, Jorge; BArroCA, Mário, coord. (2012) – Dicionário de Arqueologia Portuguesa. Porto: Figueirinhas.

EE VIII = HüBner, Emil (1899) – Additamenta noua ad corporis uolumen II. Ephemeris Epigraphica. Berlin. 8, p. 351-528.

EE IX = HüBner, Emil (1903) – Additamenta noua ad corporis uolumen II. Ephemeris Epigraphica. Berlin. 9, p. 12-185.

enCArnAção, José d’ (2008) – Eburobriga, “cidade” do teixo. Eburobriga. Fundão. 5, p. 109-120ERRB = redentor 2002.fields, Nic (2006) – Roman Auxiliary Cavalryman: AD 14-193. Oxford: Osprey.frAnCisCo mArtín, Julián de; gonzález Herrero, Marta (2004) – Taxus bacata. Conimbriga. Coim-

bra. 43, p. 191-198.gArCíA menéndez, Maria (2004) – Praça Camões: um sítio arqueológico romano na cidade de Bra-

gança. In: limA, António; Argüello menéndez, Jorge, cood. – Bragança: um olhar sobre a História. [Bragança]: Sociedade Polis de Bragança, p. 77-87

gonzález rodríguez, María Cruz (1993) – Reflexiones sobre las unidades organizativas indígenas del área indoeuropea. In: gonzález, María Cruz; sAntos, Juan, eds. – Revisiones de Historia Antigua, 1: las estructuras sociales indígenas del Norte de la Península Ibérica. Vitoria: Ins-tituto de Ciencias de la Universidad del País Vasco, Servicio Editorial (Veleia. Anejos. Serie Acta), p. 139-166.

HAinzmAnn, Manfred (2004) – Jupiter Depulsor: Die norischen Befunde. In: rusCu, Ligia; CiongrAdi, Carmen; ArdevAn, Radu; romAn, Cristian; Găzdac, Cristian, ed. – Orbis Antiqvvs: studia in honorem Ioannis Pisonis, Cluj-Napoca: Nereamia Napocae Press (Bibliotheca Musei Napo-censis; 21), p. 224-234.

HAE = Hispania Antiqua Epigraphica: suplemento anual de Archivo Español de Arqueología. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas.

HEp = Hispania Epigraphica. Madrid: Archivo Epigráfico de Hispania, Universidad Complutense.Hernández guerrA, Liborio (1999) – Epigrafía romana de unidades militares relacionadas con Peta-

vonium (Rosinos de Vidriales, Zamora): estudio social, religioso y prosopográfico. Valladolid: Universidad, Centro Buendía (Centro Buendía; 65).

61

JArrett, Michael Grierson (1958) – A study of the municipal aristocracies of the Roman Empire in the west, with special reference to North Africa. Durham: University (Doctoral thesis, Durham University).

JArrett, Michael Grierson (1994) – Non-legionary troops in Roman Britain: Part One, The Units. Britannia. London. 25, p. 35-77.

Jiménez de furundArenA, Agustín (1998) – Historia y prosografía de ala II Flauia Hispanorum ciuium Romanorum. Hispania Antiqua. Valladolid. 22, , p. 203-232.

Kolendo, Jerzy (1989) – Le culte de Jupiter Depulsor et les incursions des Barbares. In: Aufstieg und Niedergang der Romischen Welt. 2: Principat. Band 18 (2. Teilband): Religion (Heidentum: Die religiosen Verhaltnisse in den Provinzen [Forts.]). Berlin; New York: De Gruyter.

lemos, Francisco S. (1993) – O povoamento romano de Trás-os-Montes Oriental. Braga: [s. n.] (Tese de doutoramento, Universidade do Minho, 1993).

le roux, Patrick (1982) – L’armée romaine et l’organisation des provinces ibériques d’Auguste a l’invasion de 409. Paris: De Boccard (Publications du Centre Pierre Paris; 8. Collection de la Maison des pays ibériques; 9).

le roux, Patrick (1995) – Romains d’Espagne: cités et politique dans les provinces, IIe siècle av. J.-C. – IIIe siècle ap. J.-C. Paris: Armand Colin.

le roux, Patrick; trAnoy, Alain (1983) – , le mot et la chose: contribution au debat historiogra-phique. Archivo Español de Arqueología. Madrid. 56:147-148, p. 109-121.

limA, António; Argüello menéndez, Jorge (2004) – Bragança antes de Bragança. In: limA, António; Argüello menéndez, Jorge, cood. – Bragança: um olhar sobre a História. [Bragança]: Socie-dade Polis de Bragança, p. 17-27.

lopo, Albino (1987) – Apontamentos arqueológicos. Braga: Instituto Português do Património Cultural.mAngAs mAnJArrés, Julio (1996) – Cultos minorasiáticos en el noroeste de la Hispania romana.

Complutum. Madrid. Extra 6:1, p. 483-490.mArCo simón, Francisco (1987) – El culto a Jupiter Dolichenus en el norte de Hispania. Veleia.

Vitoria. 4, p. 145-158.mourinHo, António Maria (1972) – Ara a Júpiter Depulsori dedicada por um veterano da Legio VII

Gemina. Revista da Faculdade de Letras: História. Porto. 3, p. 327-331.nAvArro CABAllero, Milagros (1998) – Las estelas en brecha de Santo Adrião: observaciones

tipológico-cronológicas. Boletín del Seminario de Estudios de Arte y Arqueología. Valladolid. 64, p. 175-206.

pAlAo viCente, Juan José (2006) – Legio VII Gemina (Pia) Felix: estudio de una legión romana. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca (Acta Salmanticensia. Estudios históricos & geográficos; 136).

pereA yéBenes, Sabino (1995) – Las manos de Jupiter Dolicheno: un nuevo ejemplar en Riotinto (Huelva). Hispania Antiqua. Valladolid. 19, p. 217 231.

pereirA menAut, Gerardo (1978) – Caeleo Cadroiolonis F. Cilenus, Berisamo et alii: centuria or castellum?. A discussion. Hispania Antiqua. Valladolid. 8, p. 271-280.

pereirA menAut, Gerardo (1993) – Cognatio Magilancum: una forma de organización indígena de la Hispania indoeuropea. In: untermAnn, Jürgen; villAr, Francisco, ed. – Lengua y cultura en la Hispania prerromana. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca (Acta Salmanticensia, Estudios Filologicos; 251), p. 411-24.

pflAum, Hans-Georg (1953) – Jupiter Depulsor. In: Mélanges Isidore Levy. Bruxelles: Editions de l’Institut (Annuaire de l’Institut de Philologie et d’Histoire Orientales et Slaves de l’Université Libre de Bruxelles. Bruxelles. 13), p. 445-460.

pitillAs sAlAñer, Eduardo (2002) – Soldados procedentes del noroeste de Hispania con el cognomen Reburrus-Reburrinus. Hispania antiqua. Valladolid. 26, p. 25-34.

RAP = gArCiA, José Manuel (1991) – Religiões antigas de Portugal: aditamentos e observações às Religiões da Lusitânia de J. Leite de Vasconcelos: fontes epigráficas. [Lisboa]: Imprensa Nacional-Casa da Moeda (Temas portugueses).

c

c

62

redentor, Armando (2002) – Epigrafia romana da região de Bragança. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia (Trabalhos de Arqueologia; 24).

redentor, Armando (2003) – Representações zoomórficas na epigrafia funerária transmontano--zamorana ocidental da época romana. In: Livro de Actas: I Congresso Internacional de Arqueologia Iconográfica e Simbólica (Meda e Vale do Côa, 20-25 Abril 2002). [s. l.]: Liga de Amigos de Conimbriga, D. L. 2003. p. 163-199.

redentor, Armando (2011) – A cultura epigráfica no conuentus Bracaraugustanus (pars occidentalis): percursos pela sociedade brácara da época romana. Coimbra: Faculdade de Letras (tese de Doutoramento apresentada à FLUC).

roldán Hervás, José Manuel (1974) – Hispania y el ejército romano: contribución a la historia social de la España Antigua. Salamanca: Universidad (Estudios históricos y geográficos; 25).

rotH, Jonathan P. (1998) – The Logistics of the Roman Army at War (264 B.C.-A.D. 235). Leiden; Boston; Köln: Brill (Columbia Studies in the Classical Tradition; 23).

sAgredo sAn eustAquio, Luis; Jiménez de furundArenA, Agustín (1996) – La religión practicada por los militares del ejército romano de Hispania durante el Alto Imperio romano (ss. I-II). Espacio, Tiempo y Forma, Serie II: Historia Antigua. Madrid. 9, p. 289-319.

sánCHez sAlor, Eustaquio; sAlAs mArtín, José (1984) – El culto a Juppiter Repulsor en la Península Ibérica según las inscripciones. Norba. Cáceres. 5, p. 81-89.

sAntos yAnguAs, Narciso (1988) – El ejército y la romanización de Galicia: conquista y anexión del Noroeste de la Península Ibérica. Oviedo: Universidad.

ŠAŠel Kos, Marjeta (2008a) – Divinities, priests and dedicators at Emona. In: CAldelli, Maria Leti-zia; gregori, Gian Luca; orlAndi, Silvia, eds. – Epigrafia 2006: Atti della XVIe recontre sur l’épigraphie in onore di Silvio Panciera con altri contributi di colleghi, allievi e collaboratori, 2, Roma: Quazar, p. 687-710.

ŠAŠel Kos, Marjeta (2008b) – Celtic divinities from Celeia and its territory: who were the dedicators? In: sArtori, Antonio, ed. – Dedicanti e Cultores nelle religioni celtiche. Milano: Cisalpino (Quaderni di Acme; 104), p. 275-303.

sCHülten, Adolf (1943) – Los Cántabros y Astures y su guerra con Roma. Madrid: Espasa-Calpe.sCHülten, Adolf et alii, ed. (1922-1987) – Fontes Hispaniae Antiquae. Barcelona: Universidad. 9

fascículos.spAul, John (1994) – Ala2: The Auxiliary Cavalry Units of the Pre-Diocletianic Imperial Roman

Army. Andover.speidel, Michael (1978) – The Religion of Iuppiter Dolichenus in the Roman army. Leiden: Brill.trAnoy, Alain (1981) – La Galice romaine: recherches sur le Nord-Ouest de la Péninsule Ibérique

dans l’Antiquité. Paris: De Boccard. (Publications du Centre Pierre Paris; 7. Collection de la Maison des pays ibériques; 7).

vigil, Marcelo (1961) – Ala II Flavia Hispanorum civium Romanorum. Archivo Español de Arque-ología. Madrid. 34, p. 104-113.

WAldoCK, Shirley Ann (1998) – A re-examination of the evidence for parade-grounds at auxiliary forts in Roman Britain. Durham: University (M. A. Thesis).

WeBster, Graham (1998) – The Roman Imperial Army of the First and Second Centuries A.D. Third edition. Norman: University of Oklahoma Press.

63

1. Distribuição das inscrições de militares no Nordeste Transmontano: 1, Aldeia Nova; 2, Saldanha; 3, Babe.

64

2. Castro de São João das Arribas (Aldeia Nova, Miranda do Douro), onde apareceu a placa dedicada a Aemilius Balaesus, reaproveitada numa das esquinas da capela aí edificada

3. Placa de Aemilius Balaesus (Aldeia Nova, Miranda do Douro)

65

4. Réplica (inexacta) da placa de Aemilius Balaesus patente no Castro de São João das Arribas, realizada com base em desenho publicado pelo Abade de Baçal (Alves 1934, p. 32, n.º 2).

5. Altar dedicado por Domitius Peregrinus (Saldanha, Mogadouro)

66

6. Estela de Calpurnius Reburrinus (Babe, Bragança)