Arquitetura e Narrativa: Um estudo analítico do Museu do Homem do Nordeste

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1 Arquitetura e Narrativa: Um estudo analítico do Museu do Homem do Nordeste (MUHNE) Eixo temático II As perspectivas didáticas e comunicativas na Museografia Lívia Morais Nóbrega 1 ; Luiz Manuel do Eirado Amorim 2 1 Arquiteta e Urbanista, Mestranda em Desenvolvimento Urbano do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Avenida dos Reitores, s/n, Cidade Universitária, Recife/PE. 50741-530. Fone: (81) 21268311 Fax: (81) 21268772. E-mail: [email protected] 2 Arquiteto e Urbanista, PhD pela University College London, professor associado do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Avenida dos Reitores, s/n, Cidade Universitária, Recife/PE. 50741-530. Fone: (81) 2126 8311 Fax: (81) 2126 8772. E-mail: [email protected]

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Arquitetura e Narrativa: Um estudo analítico do Museu do Homem do Nordeste (MUHNE)

Eixo temático II As perspectivas didáticas e comunicativas na Museografia

Lívia Morais Nóbrega1; Luiz Manuel do Eirado Amorim2

1Arquiteta e Urbanista, Mestranda em Desenvolvimento Urbano do Programa de Pós-Graduação em

Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Avenida dos Reitores, s/n, Cidade Universitária, Recife/PE. 50741-530. Fone: (81) 21268311

Fax: (81) 21268772. E-mail: [email protected]

2Arquiteto e Urbanista, PhD pela University College London, professor associado do Programa de

Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Avenida dos Reitores, s/n, Cidade Universitária, Recife/PE. 50741-530. Fone: (81) 2126 8311

Fax: (81) 2126 8772. E-mail: [email protected]

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Arquitetura e Narrativa: Um estudo analítico do Museu do Homem do Nordeste (MUHNE)

RESUMO

O Museu do Homem do Nordeste (MUHNE), antigo Museu do Açúcar, foi o primeiro edifício

construído em Pernambuco especificamente para este fim, em 1963. Em 1979, o MUHNE é

fundado a partir da junção do acervo proveniente de três outros museus (Açúcar,

Antropologia e Arte Popular). Sua vasta e heterogênea coleção, e a maneira como esta foi

apresentada em diferentes exposições de longa duração (1979 e 2008), despertam para o

entendimento interação entre as mudanças nas propriedades espaciais de um leiaute de

exposição e as narrativas curatoriais e mensagens de exposição pretendidas. O caso do

MUHNE fornece subsídios para a análise da interação entre a arquitetura e as estratégias de

desenho das narrativas curatoriais e como estas constituem a dimensão espacial das

galerias do museu.

Palavras-chave: arquitetura, narrativa, Museu do Homem do Nordeste

ABSTRACT

The Museu do Homem do Nordeste (MUHNE), ancient Museu do Açucar, was the first

museum to be built in Pernambuco, Brasil, specifically for this purpose, in 1963. In 1979, the

MUHNE is founded based on the junction of the collection of other three museums (Sugar,

Antropologie and Folk Art). Its vaste and heterogeneous collection, and the way as this was

presented in different expositions of long duration (1979 and 2008), rise for the understanding

and interaction between the changes in the space properties of the lay-out of an exhibition

and the exhibition narratives and messages of the achieved expositions. The case of

MUHNE, provides subsidies for the analysis of the interaction between architecture and the

drawing strategies of exhibition narratives and as these constitute the space dimension for

the galleries of the museum

Keywords: architecture, narrative, Museu do Homem do Nordeste

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Arquitetura e Narrativa: Um estudo analítico do Museu do Homem do Nordeste (MUHNE)

1. MUSEU, ARQUITETURA E NARRATIVA

A capacidade dos museus, de transmitir valores e signos dos tempos de determinadas

culturas (MONTANER, 2003), pode ser entendida a partir da lógica social do espaço, cuja

ordenação diz respeito também a ordenação das relações entre pessoas e torna capaz o

reconhecimento da existência e da forma de uma sociedade. (HILLIER & HANSON, 1984)

No caso dos museus, locais de reunião, classificação e exposição do conhecimento, artístico

ou científico, essa ordenação espacial está intrinsecamente ligada à narrativa proposta.

Na arquitetura, a narrativa são formas de estruturação do espaço a fim de alcançar efeitos

específicos na percepção do usuário. Do ponto dos museus, isto está relacionado com a

emergência de uma cultura organizacional (PENN, MARTINEZ, 2007) e com o sentido de

exploração da relação entre estrutura conceitual e experiência sensorial e com o domínio

destas relações abstratas para a formação do conteúdo cultural. (PSARRA, 2009)

A construção dos museus se baseia em usos e circulações que se enquadrem na

classificação proposta para uma coleção. As formas que estes edifícios assumem funcionam

como instrumentos didáticos que falam por si próprios, unificando o recipiente (edifício) e o

conteúdo (exposição). (MARKUS, 1993) Neste sentido, o leiaute pode ser entendido como

parte da enunciação e transmissão de conhecimentos. (PEPPONIS, HEDIN, 1982)

O Museu do Homem do Nordeste (MUHNE), construído em 1963, ainda como Museu do

Açúcar, e fundado sob este nome em 1979, a partir da reunião do acervo de três museus (de

Antropologia, de Arte Popular e do Açúcar), constitui um interessante estudo de caso para o

entendimento de como o projeto museográfico constitui a transmissão do conhecimento e

altera a estrutura espacial do edifício, em função da construção de uma narrativa.

O estudo das alterações espaciais e dos leiautes do edifício Gil Maranhão, sede do MUHNE,

referentes aos anos de 1963, 1979 e 2008, busca entender como estas mudanças podem

fornecer pistas concretas sobre a interação entre projeto arquitetônico e intenções

curatoriais. O estudo será realizado a partir do cruzamento dos dados (textos) sobre as

intenções museográficas de cada exposição com os dados (plantas) espaciais obtidos

através dos procedimentos analíticos, fornecendo evidências tangíveis sobre o processo e

reforçando sua relevância metodológica.

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2. OS IDEAIS MUSEOLÓGICOS E O MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE A abordagem culturalmente antropológica vem abrindo outra perspectiva de

valorização de objetos humanos dignos de tal conservação. Inclusive a

representada por aqueles Museus do Homem de que o de Paris é a expressão

máxima. Mas também por museus antropoculturais, ou antropossocioculturais,

que se façam caracterizar também por seus condicionamentos ecológicos ou

recionais, sem se fecharem a confrontos transregionais do seu material assim

especificamente condicionado. (FREYRE, 2000)

A fusão dos museus que deram origem ao Museu do Homem do Nordeste (MUHNE) foi

desenvolvida sob a orientação do antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre, com base na

noção de Museu do Homem, desenvolvida em outros museus ao redor do mundo. Suas

idéias museológicas nortearam a concepção do MUHNE e a ordenação da coleção de mais

de 15 mil peças de origem indígena, portuguesa e africana na formação da sociedade

nordestina brasileira, preservando e difundindo o seu patrimônio material e imaterial.

De cunho histórico-antropológico, a preocupação científica de Freyre também tem influência

na forma como este conhecimento é documentado e difundido. Sua maior intenção era

tornar possível a compreensão da formação histórico-social e dos modos de vida e aspectos

culturais dos grupos étnico-sociais que compõem a região Nordeste do Brasil. No caso deste

estudo, para a arquitetura, o interesse reside em compreender a difusão, no sentido da

apresentação do conhecimento, através da disposição da narrativa curatorial no espaço.

Uma breve revisão da história espacial do museu e de duas exposições permanentes a

serem estudadas torna possível o entendimento de questões relativas à concepção do

projeto do edifício e das estratégias curatoriais das exposições selecionadas.

2.1. O EDIFÍCIO GIL MARANHÃO Concluído em 1963 para sediar o Museu do Açúcar, o edifício Gil Maranhão é um projeto do

arquiteto Carlos Antônio Falcão Corrêa Lima. Primeiro equipamento do estado construído

especificamente para abrigar o programa de museu, o edifício foi planejado para o abrigo de

exposições no piso térreo e de usos complementares no piso superior. O acervo do Instituto

do Açúcar e do Álcool foi integrado, em 1979 ao Museu do Homem do Nordeste (MUHNE),

sob a orientação de Gilberto Freyre, juntamente com a fusão dos acervos provenientes do

museu de Antropologia e Arte Popular.

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A localização no bairro de Casa Forte, distante do centro e de condições atmosféricas

adversas que podem interferir na conservação das obras, demonstra uma preocupação

típica do século XX. Os blocos retangulares que compõem a planta estão dispostos ao redor

de um jardim, encerrando um circuito de salas de exposição, auditório e livraria, no térreo, e

biblioteca, iconografia e administração, no piso superior (Figura 01). (MACHADO, 2009)

Figura 1. Projeto original do edifício Gil Maranhão. a. Planta baixa 1º piso. b. Planta baixa 2º piso. Fonte: http://www.fundaj.gov.br/geral/didoc/jpah-depamafundaj.pdf. Acesso em 23 ago 2010.

Os espaços de exposição do térreo, foco deste estudo, dividiam-se em: a. um hall de entrada

e distribuição; b. 02 galerias diretamente ligadas ao hall; c. 02 galerias mais estreitas e

alongadas no final do percurso. Esta flexibilidade espacial permite uma maior liberdade de

montagem das exposições. A ausência de divisórias entre o hall de entrada e as primeiras

salas de exposição, bem como a dupla comunicação entre as galerias estreitas, possibilitam

escolhas de construção da narrativa ao usuário devido às diversas alternativas de percursos.

Sobre a linguagem formal e plástica do edifício, a construção foi concebida em sintonia com

os postulados modernistas, marcada pela planta livre, uso de pilotis, lajes planas, aberturas

dispostas livremente nas fachadas e pela autonomia entre estrutura, vedação e fenestração.

Um painel do artista plástico Francisco Brennand marca a entrada do edifício. (Figura 02)

Figura 2. Edifício-sede do Museu do Homem do Nordeste. Fonte: http://www.flickr.com/photos/museudohomemdonordeste/. Acesso em 23 ago 2010.

2.2. A EXPOSIÇÃO DE LONGA DURAÇÃO DE 1979

Ao visitante comum, busca proporcionar uma viagem pela história

socioeconômica e pela cultura do Nordeste brasileiro, notadamente nas

regiões mais próximas do que se convencionou denominar de Civilização do

Açúcar. (MONTENEGRO, p. 22, 2000)

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A exposição de longa duração que inaugura o MUHNE, montada por Antônio Montenegro, foi

baseada na abordagem gilbertiana de cunho histórico-social. Ao invés de um enfoque

cronológico, a exposição se baseia no conceito de tempo tríbio, também de Freyre:

O passado está no presente influenciando, estando, portanto, também no

futuro. É assim que a realidade se apresenta em nosso país, principalmente

no Nordeste: o novo e o atual convivem, em harmonia ou conflito, com o

velho e o ultrapassado. (FREYRE apud MONTENEGRO, p. 22, 2000)

A abordagem propicia ao usuário a sua própria construção da narrativa, como, por exemplo,

ao enfatizar aspectos ocorridos há décadas em detrimento de outros bem mais recentes.

Neste sentido, o museu “pode, sob esta ótica, ser visitado em qualquer sentido, abordado

em qualquer ponto, sem que se perca, com isso, a sua força e a sua integridade”.

(MONTENEGRO, p. 22, 2000) No piso térreo localizavam-se os temas: (1) Primeiros

habitantes; (2) Brasil holandês; (3) Colonização: o açúcar; (4) Oh de casa!; (5) Arquitetura.

No piso superior, os espaços eram destinados ao legado, seja ele: (1) Artes e ofícios; (2)

Artes e ofícios – cerâmica; (3) Religiosidades; (4) Festas; (5) Carnaval. (Figura 03)

Figura 3. Projeto do edifício Gil Maranhão em 1979. a. Planta baixa 1º piso. b. Planta baixa 2º piso.

Fonte: Museu do Homem do Nordeste [catálogo]. Banco Safra: São Paulo, 2000.

Para efeitos de análise e comparação, neste trabalho só será abordada a parte expositiva do

piso térreo, composto por 750m² de circuito expositivo, pois no presente momento somente o

térreo encontra-se em funcionamento, permitindo comparar os diferentes estágios do

edifício. Apesar da abordagem não-linear, no sentido da apresentação cronológica, a

exposição busca a clareza e a legibilidade, sendo a narrativa constituída pelos eixos: (1)

Primeiros habitantes – destaque para os habitantes mais antigos (os índios) da região; (2)

Brasil holandês e Colonização: o açúcar – ênfase na vida colonial nordestina através destas

duas vertentes (o período de dominação holandesa e o mundo luso-afro-brasileiro); (3 e 4)

Oh de casa! e Arquitetura – intimidade doméstica nordestina e das formas típicas da

arquitetura regional. O último eixo, Legado, no piso superior, trata das manifestações

artísticas e religiosas, num somatório da herança cultural dos eixos anteriores. (Figura 04)

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Figura 4. Salão térreo do edifício Gil Maranhão em 1979. a. Planta baixa da estrutura física do edifício. b. Disposição da narrativa curatorial (1. primeiros habitantes; 2. colonização, o açúcar; 3.

oh de casa!; 4. arquitetura).

A diversidade de percursos do projeto executado é mantida. O hall de entrada continua

dando acesso a duas galerias em simultâneo. Ainda com relação à estrutura espacial

anterior (1963), o espaço, de modo geral, manteve sua configuração, com apenas o

acréscimo de uma barreira que divide uma das galerias mais alongadas ao meio, com

conexão entre elas, e direciona o percurso na parte final da exposição. (Figura 05)

Figura 5. Exposição de longa duração inaugurada em 1979. a. Primeiros habitantes (índios). b. Arquitetura. c. Legado Fonte: http://www.fundaj.gov.br/docs/indoc.html. Acesso em 24 ago 2010.

2.3. A EXPOSIÇÃO DE LONGA DURAÇÃO DE 2008

Inaugurada em 2008, após vários anos fechado para reforma, a exposição Nordeste:

Territórios Plurais, Culturais e Direitos Coletivos, reproduz a visão antropológica de Freyre. A

reforma foi motivada por uma série de danos na estrutura física do edifício, o que levou a

reformulação total de algumas partes, como a cobertura e os sistemas infra-estruturais.

O projeto museográfico, de autoria de Janete Costa, também passou por uma renovação,

explorando novos recursos museográficos e tecnológicos para a apresentação do conteúdo.

A intenção do projeto é mantida em sintonia com a proposta do museu de transmitir uma

síntese da cultura e da história do homem do NE através de objetos do trabalho humano.

A abordagem não-linear dos temas é apresentada sob três aspectos: (a) histórico-sociais –

relativos às formas de propriedade dos bens, relações sociais de trabalho e de poder, o

trabalho, técnicas, produção e produtos, circulação e consumo; (b) étnico-culturais – usos e

costumes, modos de vida, religiosidade, sociabilidade, manifestações culturais e festivas,

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artes, arquitetura, artesanato, cultura, ciências e tecnologia); (c) étnico-históricos – dados

históricos e antropológicos. Estes aspectos foram identificados na exposição traduzidos

através de 7 temas que conformam os espaços das galerias: (1) Chegada/panorama geral

da exposição; (2) Localização geográfica; (3) Influências externas e presenças anteriores; (4)

Vida colonial: negros; (5) Vida colonial: brancos; (6) Religiosidade; (7) Sertão. (Figura 06)

Figura 6. Salão do piso térreo do edifício Gil Maranhão em 2008. a. Planta baixa da estrutura física do

edifício. b. Disposição da narrativa curatorial no espaço (1. chegada; 2. localização geográfica; 3. influências externas/ anteriores; 4. colonização - brancos; 5. colonização - brancos; 6. religiosidade

popular; 7; o homem do sertão.)

A narrativa proposta opta novamente pela abordagem não-linear, dando continuidade à visão

de Freyre. Embora os temas propostos coincidam em muitos pontos com a ordem

cronológica de desenvolvimento da cultura do homem do nordeste, a exposição se articula

através de temas relacionados aos hábitos, ritos e costumes.

Os primeiros espaços (1, 2, e 3) são dedicados à formação do Nordeste, no sentido histórico,

geográfico e étnico. A seguir (4 e 5), encontra-se o período da colonização da região, relativo

à presença dos negros (africanos) e brancos (portugueses). As galerias a seguir (6 e 7) são

dedicadas à formação de aspectos culturais próprios da região, resultantes do somatório das

influências anteriores. A temática 6, Religiosidade, trata do sincretismo, espécie de ápice em

relação aos temas anteriores. A última galeria (7), que mostra o homem do sertão, através

de objetos, peças de vestuário, painéis e textos, curiosamente é a mais longínqua e última

do percurso, como sugere a própria palavra, afastado, isolado, distante, ermo. (Figura 07)

Figura 7. Exposição Nordeste: Territórios Plurais, Culturais e Direitos Coletivos. a/b. Influências

externas e presenças anteriores/Localização geográfica. c. Religiosidade. d. O Sertão. Fotos: Lívia Nóbrega, 2010.

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3. UM EDIFÍCIO, DOIS LEIAUTES, ALGUMAS LEITURAS

Para compreender a relação entre propriedades configuracionais do espaço e ordenação do

conhecimento é preciso descrever e analisar a estrutura espacial para registrar o grau de

transformação da estrutura inicial (1963) e dos pressupostos que motivaram sua concepção,

em relação ao leiaute de duas exposições que a sucedem (1979 e 2000). Deste modo, a

edificação é descrita segundo os eixos temáticos identificados nos rótulos atribuídos a cada

espaço e segundo as unidades elementares relevantes – espaços convexos (HILLIER,

HANSON, 1984) e campos de visão (BENEDICKT, 1979; TURNER et al 2001).

A planta baixa, fonte primária do estudo, é entendida como um conjunto de barreiras e

permeabilidades para o movimento e a visão. O exame dos rótulos indica qual e onde cada

tema será exposto. A associação entre rótulos relaciona indiretamente os conteúdos

apresentados. Para efeitos de análise, serão considerados os espaços convexos.1

Para o caso proposto, foram identificadas duas propriedades espaciais pertinentes ao estudo

de suas propriedades espaciais: acessibilidade e visibilidade. A acessibilidade diz respeito às

possibilidades de movimento no espaço. Do ponto de vista dos museus, torna-se possível

identificar a existência (ou não) de diferentes possibilidades de construção da narrativa. A

visibilidade está relacionada à possibilidade de mútua visibilidade ou co-ciência entre coisas

e usuários, aspecto que, do ponto de vista da organização do conhecimento, atua como um

facilitador ou não para a construção da narrativa proposta pelo curador por parte do usuário.

A observação das transformações dos aspectos da estrutura espacial nos três momentos

selecionados - o projeto executado, a exposição de longa duração de 1979 e a exposição de

longa duração de 2008 - será investigada através da descrição destes momentos a partir dos

procedimentos analíticos (de acessibilidade e visibilidade) a serem descritos.

3.1. ANÁLISE A PARTIR DA ACESSIBILIDADE

A permeabilidade existente entre espaços convexos adjacentes – acessibilidade – é

descrita pela rede de conexões estabelecidas por estes. Para descrever as propriedades

desta rede será introduzida a idéia de profundidade topológica, mensurada pelo número de

espaços existentes na passagem de um a outro (espaços adjacentes estão a um nível de

distância entre si e a intermediação de outros espaços define a profundidade destes). A

representação desta rede constitui um grafo de nós (espaços convexos, representados por

círculos) e conexões (linhas), e permite quantificar diferentes propriedades espaciais. 1 Espaços que dão suporte a sensação de inclusão. Entende-se como sensação de inclusão, do ponto de vista espacial, a porção de espaço que possibilita a co-presença e a co-ciência entre pessoas e coisas, numa relação direta de visibilidade e acessibilidade.

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Este grafo pode ser justificado tomando como ponto de partida qualquer um de seus

espaços, de modo a revelar o quão raso ou profundo é este espaço com relação ao sistema.

Para este estudo, os grafos foram justificados a partir do início do percurso, ou seja, da

entrada do edifício. O estudo destas conexões permite identificar sistemas seqüenciais (onde

um espaço dá acesso a apenas outro) ou não (espaços que dão acesso a mais de um

espaço), oferecendo alternativas de movimento (no grafo, anéis). As descrições e análises

realizadas referem-se ao quadro comparativo dos resultados presentes na Figura 08.

3.1.1 O projeto executado (1963)

O projeto estava de acordo com a continuidade espacial proposta pela arquitetura moderna,

com seus mecanismos de composição arquitetônica que favorecem a transparência e a

fluidez. Não se observam separações categóricas, os espaços são amplos e permitem

escolha de movimento, como observado no anel composto pelos pontos 1, 2, 4 e 5. O acervo

deste período, composto por peças relacionadas à expressão cultural da dita Civilização do

Açúcar (MONTENEGRO, 2000), era bastante homogêneo e a diversidade de percursos não

significava um prejuízo para a percepção da mensagem da exposição.

3.1.2 A exposição de longa duração de 1979

Esta exposição marca a fundação do MUHNE. O aumento do acervo e da diversidade de

conteúdos diz respeito às primeiras alterações configuracionais das galerias. Em relação ao

projeto executado são identificadas algumas mudanças e continuidades na estrutura

espacial. Pode-se observar o início de uma fragmentação, com a introdução de portas entre

o hall de entrada e as salas de exposição adjacentes. A principal alteração física da estrutura

foi a introdução de uma barreira que divide em dois uma das galerias do final do percurso

(representada pelos pontos 5 e 7), fazendo com que haja a criação de uma nova galeria e

um aumento do número de espaços convexos (de 5 para 6). A introdução desta nova

barreira não constitui uma obrigatoriedade de percurso e aumenta as possibilidades de

movimento no circuito expositivo, devido à existência de uma conexão (porta) entre os dois

espaços. Os níveis de profundidade são mantidos (03), contudo, um novo anel de circulação

é criado, possibilitando mais uma escolha de movimento, em consonância com a visão

gilbertiana de abordagem não-linear de exposição do conteúdo.

3.1.3 A exposição de longa duração de 2008

O longo período que separa estas exposições foi marcado por uma série de mudanças,

conceituais e tecnológicas, na forma de apresentação do conhecimento do ponto de vista da

disciplina da museologia. A introdução de novos recursos museográficos de iluminação,

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audiovisuais e sonoros, bem como de diferentes suportes para a apresentação das peças,

confere uma maior complexidade à forma com que a ordenação das peças é concebida. A

análise desse estágio será realizada em dois momentos: (1) do ponto de vista das alterações

da estrutura física do edifício – no caso, a demolição de paredes existentes; (2) do ponto de

vista da introdução de novas barreiras que constituem o leiaute da exposição.

(1) A estrutura física do edifício se mantém praticamente intacta. Uma nova permeabilidade é

introduzida ao ser derrubado um trecho de parede que separava duas das galerias, onde

atualmente se encontra a estação das Religiosidades, integrando estes dois espaços.

Entretanto, uma nova barreira é introduzida com o fechamento da porta que integrava as

duas galerias menores. Esta ação separa as galerias onde se encontram expostas as

temáticas Religiosidade e Sertão, ficando este último isolado do restante do percurso. Estas

alterações fazem com que o grafo volte a ter apenas um anel, reduzindo as possibilidades de

escolha de percurso do visitante. Contudo, a profundidade é aumentada em um nível, pois

as alterações tornaram o percurso mais longo com a criação de um espaço mais profundo.

(2) A introdução do leiaute na análise da configuração espacial do edifício relativa à

exposição mais recente (2008) interfere profundamente nas propriedades de acessibilidade

da estrutura espacial. O percurso agora se apresenta de forma seqüencial, com a presença

de apenas um anel de circulação existente na estação sobre a Vida colonial e a presença

dos negros, onde o visitante circula ao redor de uma divisória localizada no centro do

ambiente. Este direcionamento do percurso também altera a configuração dos espaços no

sentido da profundidade, sendo esta a mudança mais perceptível com relação aos anos

anteriores. A fragmentação e o direcionamento do percurso com a introdução de barreiras

(septos, totens e até mesmo as próprias peças, que em alguns momentos bloqueiam o

acesso e a visão) faz com que o número de espaços convexos, que ate então não havia

ultrapassado a ordem de 6, aumente para 15. O aumento das subdivisões espaciais e o

limitado número de conexões entre elas fazem com que o grau de profundidade também

aumente consideravelmente, passando de 03 para 08 níveis.

Planta baixa Mapa convexo Grafo justificado 1963

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1979

2008

2008 (com

leiaute)

Figura 8. Quadro comparativo dos resultados das análises de acessibilidade. Planta baixa, mapa

convexo e grafo justificado dos diferentes estágios das galerias do piso térreo do MUHNE. 3.1. ANÁLISE A PARTIR DA VISIBILIDADE

A visibilidade é outra propriedade espacial a ser considerada nas análises. Para

compreender os diferentes estágios do espaço (1963, 1979 e 2008), a partir da visibilidade, a

representação destes será feita através de isovistas, de acordo com o modelo de Michael

Benedikt (1979), que se baseia na descrição da variação dos campo de visão em diferentes

posições no espaço e no somatório de todas as posições possíveis em um espaço convexo.

A alteração da fragmentação convexa do edifício ao longo dos três períodos analisados

também interfere nas propriedades de visibilidade do sistema espacial. Em geral, as áreas

das isovistas diminuem em 2008, como conseqüência da inserção de barreiras (divisórias)

previstas no projeto museográfico. Estas diferenças podem são mais claras em algumas

galerias, principalmente nos espaços de transição entre um eixo temático e outro. Algumas

situações merecem ser destacadas e estão resumidas no quadro síntese da Figura 13.

No hall de entrada, que originalmente era adjacente a duas salas de exposição, pode-se

perceber uma drástica diminuição desta área de visibilidade com relação ao projeto de 1979

e ao projeto de 2008, se considerado apenas do ponto de vista da estrutura física

pertencente originalmente ao edifício. Ao introduzir-se o leiaute, esta área de visibilidade é

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ampliada e direcionada para o que atualmente é a chegada do usuário à exposição,

possibilitando a visão do texto curatorial, do vídeo síntese da exposição e dos primeiros

textos e mapas sobre a localização territorial do Nordeste.

A partir da galeria 01, a área de visibilidade se mantém aproximadamente a mesma ao longo

dos anos. Entretanto, no caso de 2008 é possível visualizar um momento posterior da

exposição, cuja mudança na configuração espacial marca um momento de transição da

narrativa exposta entre a estação sobre as Influencias externas e presenças anteriores para

a Vida colonial (escravidão no Brasil). (Figura 09)

Figura 9. Transição entre o estágio sobre as Influências externas e presenças anteriores para a Vida colonial

(escravidão no Brasil). Fotos: Lívia Nóbrega, 2010.

Na galeria 02, o projeto original apresenta a maior área de visibilidade e a exposição atual,

área esta que vai sendo reduzida ao longo dos anos. No caso de 2008 (com leiaute), o

projeto além de reduzir esta área fragmenta o espaço em duas partes com a introdução de

peças e de uma divisória central, onde estão localizadas peças referentes à cultura folclórica

e musical negra (bumba-meu-boi, batuques e caboclo de lança), e ponto onde está se situa o

único anel de circulação, possibilidade de escolha de percurso, do projeto. (Figura 10)

Figura 10. Anel de circulação da estação Vida colonial – negros. Fotos: Lívia Nóbrega, 2010.

Novamente, na galeria 03, pode-se perceber uma redução da área de visibilidade ao longo

dos três casos, em consonância com o aumento do número de espaços convexos e do nível

de profundidade. No caso de 2008, este marca o momento do início da estação

Religiosidade. A permeabilidade existente entre as galerias 03 e 04 permite com que o

usuário, da galeria anterior (Maracatus) possa antever o momento seguinte (Orixás), devido

à ausência de barreiras neste trecho, reforçando a transição entre as estações. (Figura 11)

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Figura 11. Galerias sobre a Religiosidade. Fotos: Lívia Nóbrega, 2010.

Por fim, a última galeria analisada apresenta modificações não no que diz respeito à área de

visibilidade, mas à profundidade do alcance da visão. As alterações na estrutura espacial do

projeto museográfico de 2008 fazem com que o visitante, a partir da sala dos Orixás, consiga

ver parte das salas do Maracatu e da Vida colonial (brancos e negros), facilitando a

construção da narrativa a partir da retomada do conteúdo apresentado anteriormente.

1963 1979 2008 2008 (com leiaute) Hall

Galeria

01

Galeria

02

Galeria

03

Galeria

04

Figura 12. Quadro comparativo das análises de visibilidade. Isovistas dos diferentes estágios das galerias do

piso térreo do MUHNE.

A análise suporta a conclusão de que a história espacial do Museu do Homem do Nordeste é

caracterizada por uma continuidade dos leiautes nos anos de 1963 e 1979 e por uma ruptura

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em 2008, que demonstram ênfases curatoriais distintas. Em comparação com o leiaute

original (1963) as continuidades presentes no leiaute de 1979 são: o número de espaços

convexos (praticamente inalterado, aumentando de 05 para 06), os níveis de profundidade

espacial (03), a possibilidade de escolha de percursos (que varia de 01 para 02 anéis de

circulação), a baixa imposição de percursos e a manutenção das áreas de visibilidade,

devido às poucas mudanças na estrutura física do edifício. Já a exposição de 2008, ao

introduzir uma série de barreiras, aumenta o número de espaços convexos, os níveis de

profundidade, e conseqüentemente, reduz as áreas de visibilidade.

Estas mudanças espaciais refletem uma ligeira uma mudança na filosofia curatorial entre

1979 e 2008 no sentido da transmissão da mensagem. A visão não-linear de apresentação

do conteúdo é mantida, contudo, a imposição mais rigorosa do percurso reforça os

momentos de transição entre as estações, sugere uma uniformidade de percepção entre os

visitantes e, assim, enfatiza a inteligibilidade da narrativa proposta.

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