MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua eficácia. In:...

22
Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 93 Valerio de Oliveira Mazzuoli 1. Introdução A promulgação da Constituição brasi- leira de 1988 foi, sem dúvida, um marco sig- nificativo para o início do processo de rede- mocratização do Estado brasileiro e de ins- titucionalização dos direitos humanos no país. Mas se é certo que a promulgação do texto constitucional significou a abertura do nosso sistema jurídico para essa chamada nova ordem estabelecida a partir de então, também não é menos certo que todo esse processo desenvolveu-se concomitantemen- te à cada vez mais intensa ratificação, pelo Brasil, de inúmeros tratados internacionais globais e regionais protetivos dos direitos da pessoa humana, os quais perfazem uma imensa gama de normas diretamente apli- cáveis pelo Judiciário e que agregam vários novos direitos e garantias àqueles já cons- tantes do nosso ordenamento jurídico inter- no. O novo § 3 o do art. 5 o da Constituição e sua eficácia Valerio de Oliveira Mazzuoli é Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direi- to da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor Honorário da Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Universidade de Huánuco (Peru). Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no Instituto de En- sino Jurídico Professor Luiz Flávio Gomes (IELF), em São Paulo, e de Direito Constitucio- nal Internacional nos cursos de Especialização da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR). Sumário 1. Introdução. 2. A situação constitucional atual na América Latina. 3. As incongruências do novo § 3 o do art. 5 o da Constituição de 1988. 4. Em que momento do processo de celebração de tratados tem lugar o novo § 3 o do art. 5 o da Constituição? 5. Hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos independente- mente da entrada em vigor da Emenda n o 45/ 2004. 6. Aplicação imediata dos tratados de di- reitos humanos independentemente da regra do novo § 3 o do art. 5 o da Constituição. 7. Con- clusão.

Transcript of MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua eficácia. In:...

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 93

Valerio de Oliveira Mazzuoli

1. IntroduçãoA promulgação da Constituição brasi-

leira de 1988 foi, sem dúvida, um marco sig-nificativo para o início do processo de rede-mocratização do Estado brasileiro e de ins-titucionalização dos direitos humanos nopaís. Mas se é certo que a promulgação dotexto constitucional significou a abertura donosso sistema jurídico para essa chamadanova ordem estabelecida a partir de então,também não é menos certo que todo esseprocesso desenvolveu-se concomitantemen-te à cada vez mais intensa ratificação, peloBrasil, de inúmeros tratados internacionaisglobais e regionais protetivos dos direitosda pessoa humana, os quais perfazem umaimensa gama de normas diretamente apli-cáveis pelo Judiciário e que agregam váriosnovos direitos e garantias àqueles já cons-tantes do nosso ordenamento jurídico inter-no.

O novo § 3o do art. 5o da Constituição e suaeficácia

Valerio de Oliveira Mazzuoli é Mestre emDireito Internacional pela Faculdade de Direi-to da Universidade Estadual Paulista (UNESP).Professor Honorário da Faculdade de Direito eCiências Políticas da Universidade de Huánuco(Peru). Professor de Direito InternacionalPúblico e Direitos Humanos no Instituto de En-sino Jurídico Professor Luiz Flávio Gomes(IELF), em São Paulo, e de Direito Constitucio-nal Internacional nos cursos de Especializaçãoda Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).

Sumário1. Introdução. 2. A situação constitucional

atual na América Latina. 3. As incongruênciasdo novo § 3o do art. 5o da Constituição de 1988.4. Em que momento do processo de celebraçãode tratados tem lugar o novo § 3o do art. 5o daConstituição? 5. Hierarquia constitucional dostratados de direitos humanos independente-mente da entrada em vigor da Emenda no 45/2004. 6. Aplicação imediata dos tratados de di-reitos humanos independentemente da regrado novo § 3o do art. 5o da Constituição. 7. Con-clusão.

Revista de Informação Legislativa94

Atualmente, no Brasil, já se encontramratificados e em pleno vigor praticamentetodos os tratados internacionais significati-vos sobre direitos humanos pertencentes aosistema global, de que são exemplos a Con-venção para a Prevenção e a Repressão doCrime de Genocídio (1948), a ConvençãoRelativa ao Estatuto dos Refugiados (1951),o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados(1966), o Pacto Internacional sobre DireitosCivis e Políticos (1966), o Protocolo Faculta-tivo Relativo ao Pacto Internacional sobreDireitos Civis e Políticos (1966), o Pacto In-ternacional dos Direitos Econômicos, Soci-ais e Culturais (1966), a Convenção Interna-cional sobre a Eliminação de Todas as For-mas de Discriminação Racial (1965), a Con-venção sobre a Eliminação de Todas as For-mas de Discriminação Contra a Mulher(1979), o Protocolo Facultativo à Convençãosobre a Eliminação de Todas as Formas deDiscriminação Contra a Mulher (1999), aConvenção Contra a Tortura e Outros Tra-tamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ouDegradantes (1984), a Convenção sobre osDireitos da Criança (1989) e ainda o Estatu-to de Roma do Tribunal Penal Internacio-nal (1998).

No que tange ao sistema interamericanode direitos humanos, o Brasil também já éparte de praticamente todos os tratados exis-tentes, como a Convenção Americana sobreDireitos Humanos (1969), o Protocolo Adi-cional à Convenção Americana sobre Direi-tos Humanos em Matéria de Direitos Eco-nômicos, Sociais e Culturais (1988), o Proto-colo à Convenção Americana sobre DireitosHumanos Referente à Abolição da Pena deMorte (1990), a Convenção Interamericanapara Prevenir e Punir a Tortura (1985), aConvenção Interamericana para Prevenir,Punir e Erradicar a Violência contra a Mu-lher (1994), a Convenção Interamericanasobre Tráfico Internacional de Menores(1994) e a Convenção Interamericana paraa Eliminação de Todas as Formas de Discri-minação Contra as Pessoas Portadoras deDeficiência (1999).

A Constituição de 1988, dentro dessecontexto internacional marcadamente hu-manizante e protetivo, erigiu a dignidadeda pessoa humana (art. 1 o, inc. III) e a preva-lência dos direitos humanos (art. 4o, inc. II)a princípios fundamentais da RepúblicaFederativa do Brasil. Este último passou aser, inclusive, princípio pelo qual o Brasildeve-se reger no cenário internacional. ACarta de 1988, dessa forma, instituiu no paísnovos princípios jurídicos que conferemsuporte axiológico a todo o sistema norma-tivo brasileiro e que devem ser sempre leva-dos em conta quando se trata de interpretarquaisquer normas do ordenamento jurídicopátrio.

Dentro dessa mesma trilha, que come-çou a ser demarcada desde a Segunda Guer-ra Mundial, em decorrência dos horrores eatrocidades cometidos pela Alemanha Na-zista no período sombrio do Holocausto, aConstituição brasileira de 1988 deu um pas-so extraordinário rumo a abertura do nossosistema jurídico ao sistema internacional deproteção dos direitos humanos, quando, no§ 2o do seu art. 5 o, deixou bem estatuído que:

“Os direitos e garantias expressosnesta Constituição não excluem ou-tros decorrentes do regime e dos prin-cípios por ela adotados, ou dos trata-dos internacionais em que a RepúblicaFederativa do Brasil seja parte”. (grifonosso)

Com base nesse dispositivo, que segue atendência do constitucionalismo contempo-râneo, sempre defendemos que os tratadosinternacionais de direitos humanos ratifi-cados pelo Brasil têm índole e nível consti-tucionais, além de aplicação imediata, nãopodendo ser revogados por lei ordináriaposterior. E a nossa interpretação semprefoi a seguinte: se a Constituição estabeleceque os direitos e garantias nela elencados“não excluem” outros provenientes dos tra-tados internacionais em que a RepúblicaFederativa do Brasil seja parte, é porque elaprópria está a autorizar que esses direitos egarantias internacionais constantes dos tra-

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 95

tados internacionais de direitos humanosratificados pelo Brasil “se incluem” no nos-so ordenamento jurídico interno, passandoa ser considerados como se escritos na Cons-tituição estivessem. É dizer, se os direitos egarantias expressos no texto constitucional“não excluem” outros provenientes dos tra-tados internacionais em que o Brasil sejaparte, é porque, pela lógica, na medida emque tais instrumentos passam a asseguraroutros direitos e garantias, a Constituição“os inclui” no seu catálogo de direitos pro-tegidos, ampliando o seu “bloco de consti-tucionalidade” 1.

Da análise do § 2o do art. 5o da Cartabrasileira de 1988, percebe-se que três sãoas vertentes, no texto constitucional brasi-leiro, dos direitos e garantias individuais:a) direitos e garantias expressos na Consti-tuição, a exemplo dos elencados nos inci-sos I ao LXXVIII do seu art. 5o, bem comooutros fora do rol de direitos mas dentro daConstituição, como a garantia da anteriori-dade tributária, prevista no art. 150, III, b, doTexto Magno; b) direitos e garantias implíci-tos, subentendidos nas regras de garantias,bem como os decorrentes do regime e dosprincípios pela Constituição adotados, e c)direitos e garantias inscritos nos tratados in-ternacionais em que a República Federativado Brasil seja parte2.

A Carta de 1988, com a disposição do §2o do seu art. 5o, de forma inédita, passou areconhecer claramente, no que tange ao seusistema de direitos e garantias, uma duplafonte normativa: a) aquela advinda do direitointerno (direitos expressos e implícitos naConstituição, estes últimos decorrentes doregime e dos princípios por ela adotados), e;b) aquela outra advinda do direito interna-cional (decorrente dos tratados internacionaisde direitos humanos em que a RepúblicaFederativa do Brasil seja parte). De formaexpressa, a Carta de 1988 atribuiu aos trata-dos internacionais de proteção dos direitoshumanos devidamente ratificados pelo Es-tado brasileiro a condição de fonte do siste-ma constitucional de proteção de direitos. É

dizer, tais tratados passaram a ser fonte dosistema constitucional de proteção de direi-tos no mesmo plano de eficácia e igualdadedaqueles direitos, expressa ou implicitamen-te, consagrados pelo texto constitucional, oque justifica o status de norma constitucio-nal que detêm tais instrumentos internacio-nais no ordenamento jurídico brasileiro. Eessa dualidade de fontes que alimenta a com-pletude do sistema significa que, em casode conflito, deve o intérprete optar preferen-cialmente pela fonte que proporciona a nor-ma mais favorável à pessoa protegida, pois oque se visa é a otimização e a maximizaçãodos sistemas (interno e internacional) deproteção dos direitos e garantias individu-ais3.

Para nós, cláusula aberta do § 2o do art.5o da Carta da 1988 sempre admitiu o in-gresso dos tratados internacionais de pro-teção dos direitos humanos no mesmo grauhierárquico das normas constitucionais, enão em outro âmbito de hierarquia normati-va. Portanto, segundo sempre defendemos,o fato de esses direitos se encontrarem emtratados internacionais jamais impediu asua caracterização como direitos de statusconstitucional4.

Ainda em sede doutrinária, também nãofaltaram vozes que, dando um passo maisalém do nosso, defenderam cientificamenteo status supraconstitucional dos tratados deproteção dos direitos humanos, levando-seem conta toda a principiologia internacio-nal marcada pela força expansiva dos di-reitos humanos e pela sua caracterizaçãocomo normas de jus cogens internacional5.

Em sede jurisprudencial, entretanto, amatéria nunca foi pacífica em nosso país,tendo o Supremo Tribunal Federal tido aoportunidade de, em mais de uma ocasião,analisar o assunto, não tendo chegado auma solução uniforme e tampouco satisfa-tória6.

Em virtude das controvérsias doutriná-rias e jurisprudenciais existentes até entãono Brasil, e com o intuito de pôr fim às dis-cussões relativas à hierarquia dos tratados

Revista de Informação Legislativa96

internacionais de direitos humanos no or-denamento jurídico pátrio, acrescentou-seum parágrafo subseqüente ao § 2o do art. 5o

da Constituição, por meio da recente Emen-da Constitucional no 45, de 8 de dezembrode 2004, proveniente da PEC 29/2000 rela-tiva à “Reforma do Judiciário”, com a se-guinte redação:

“§ 3o Os tratados e convenções in-ternacionais sobre direitos humanosque forem aprovados, em cada Casado Congresso Nacional, em dois tur-nos, por três quintos dos votos dosrespectivos membros, serão equiva-lentes às emendas constitucionais”.

A redação do dispositivo, como se per-cebe, é materialmente semelhante à do art.60, § 2o da Constituição, segundo o qual todaproposta de emenda à Constituição “serádiscutida e votada em cada Casa do Con-gresso Nacional em dois turnos, conside-rando-se aprovada se obtiver, em ambos, trêsquintos dos votos dos respectivos mem-bros”. A semelhança dos dispositivos estáligada ao fato de que, antes da entrada emvigor da Emenda no 45/2004, os tratadosinternacionais de direitos humanos, antesde serem ratificados pelo Presidente da Re-pública, eram exclusivamente aprovados(por meio de Decreto Legislativo) por maio-ria simples, nos termos do art. 49, inc. I, daConstituição, o que gerava inúmeras con-trovérsias jurisprudenciais (a nosso ver in-fundadas) sobre a aparente hierarquia in-fraconstitucional (nível de normas ordinári-as) desses instrumentos internacionais nonosso direito interno.

A inspiração do legislador constitucio-nal brasileiro talvez tenha sido o art. 79, §§1o e 2o da Lei Fundamental alemã, que prevêque os tratados internacionais, sobretudo osrelativos à paz (com a observação de que aLei Fundamental alemã não se refere expres-samente aos tratados “sobre direitos huma-nos” como faz agora o texto constitucionalbrasileiro), podem complementar a Constitui-ção, uma vez que esta seja emendada porlei, aprovada por dois terços dos membros

do Parlamento Federal e dois terços dos vo-tos do Conselho Federal, nestes termos:

“Artigo 79 [Emendas à Lei Funda-mental]

1. A Lei Fundamental só poderáser emendada por uma lei que altereou complemente expressamente o seutexto. Em matéria de tratados interna-cionais que tenham por objeto regulara paz, prepará-la ou abolir um regimede ocupação, ou que objetivem promo-ver a defesa da República Federal daAlemanha, será suficiente, para escla-recer que as disposições da Lei Fun-damental não se opõem à conclusão eà entrada em vigor de tais tratados,complementar, e tão-somente isso, o tex-to da Lei Fundamental.

2. Essas leis precisam ser aprova-das por dois terços dos membros doParlamento Federal e dois terços dosvotos do Conselho Federal” 7. (grifonosso).

A alteração do texto constitucional bra-sileiro, sob o pretexto de acabar com as dis-cussões referentes às contendas doutrinári-as e jurisprudenciais relativas ao status hie-rárquico dos tratados internacionais de di-reitos humanos no ordenamento jurídicobrasileiro, veio causar, como veremos nodecorrer deste estudo, graves problemas in-terpretativos relativos à integração, eficáciae aplicabilidade destes tratados no nossodireito interno, sendo que o primeiro e maisestúpido deles foi o de ter feito tábula rasade uma interpretação do § 2o do art. 5o daConstituição, que já estava sedimentada nadoutrina humanista mais abalizada, bemcomo na jurisprudência de vários tribunaisde diversos Estados brasileiros8.

Na medida em que a nova alteraçãoconstitucional prevê que os tratados e con-venções internacionais sobre direitos huma-nos somente equivalerão às emendas cons-titucionais uma vez que sejam aprovados,em cada Casa do Congresso Nacional, emdois turnos, por três quintos dos votos dosseus respectivos membros, fica a questão de

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 97

saber se o novo § 3o do art. 5o da Constitui-ção, acrescentado pela Emenda n o 45/2004,prejudica ou não o entendimento que já vi-nha sendo seguido em relação ao § 2o domesmo art. 5o da Carta de 1988, no sentidode terem os tratados de direitos humanosstatus de norma constitucional.

Antes de estudarmos todas as facetas donovo § 3o do art. 5o da Constituição, misterverificar como se encontra a situação dostratados de direitos humanos nas Consti-tuições latino-americanas. Esse panoramacomparado auxiliará na contextualizaçãodo problema e ajudará o intérprete na suaresolução.

2. A situação constitucionalatual na América Latina

Vários países latino-americanos têmconcedido status normativo constitucionalaos tratados de proteção dos direitos huma-nos, sendo crescente a preocupação dosmesmos em se deixar bem assentado, emnível constitucional, a questão da hierarquianormativa de tais instrumentos internacio-nais protetivos dos direitos da pessoa hu-mana9.

Abstraindo-se a Constituição brasileirade 1988, pode-se verificar várias Constitui-ções de países latino-americanos que, se-guindo a tendência mundial de integraçãodos direitos humanos ao direito interno,passaram a incorporar em seus respectivostextos regras bastante nítidas sobre a hie-rarquia desses instrumentos nos seus orde-namentos internos. Nesse sentido, a Cons-tituição peruana anterior, de 1979, estabele-cia no seu art. 101 que “os tratados interna-cionais, celebrados pelo Peru com outrosEstados, formam parte do direito nacional”,e que, “em caso de conflito entre o tratado ea lei, prevalece o primeiro”10. No art. 105, amesma Carta determinava que os preceitoscontidos nos tratados de direitos humanostêm hierarquia constitucional, não podendo sermodificados senão pelo procedimento paraa reforma da própria Constituição, o que,

infelizmente, não mais se encontra na atualConstituição do Peru de 1993, “a qual selimita a determinar (4a disposição final etransitória) que os direitos constitucional-mente reconhecidos se interpretam de con-formidade com a Declaração Universal deDireitos Humanos e com os tratados de di-reitos humanos ratificados pelo Peru”11.

A Constituição da Guatemala tambématribui aos tratados internacionais de direi-tos humanos condição especial (art. 46), di-ferindo, contudo, da Carta peruana de 1979,na medida em que esta dava a ditos trata-dos a hierarquia de norma materialmenteconstitucional, enquanto aquela atribuía aestes preeminência sobre a legislação ordi-nária, bem como sobre o restante do direitointerno. A Constituição da Nicarágua, porsua vez, integra à sua enumeração constitu-cional de direitos, para fins de proteção, osdireitos consagrados nos seguintes instru-mentos: Declaração Universal dos DireitosHumanos, Declaração Americana dos Di-reitos e Deveres do Homem, Pacto Interna-cional dos Direitos Econômicos, Sociais eCulturais, Pacto Internacional dos DireitosCivis e Políticos e Convenção Americanasobre Direitos Humanos.

A Constituição do Chile, reformada em1989, passou a dispor, no seu art. 5o, inc. II,que: “É dever dos órgãos do Estado respei-tar e promover tais direitos garantidos poresta Constituição, assim como pelos trata-dos internacionais ratificados pelo Chile e quese encontrem vigentes”. Nessa mesma linha,encontra-se a Constituição da Colômbia de1991, reformada em 1997, cujo art. 93 trazdisposição no sentido de que os tratados in-ternacionais de proteção dos direitos huma-nos devidamente ratificados pela Colômbiatêm prevalência na ordem interna, e que osdireitos humanos constitucionalmente as-segurados serão interpretados de conformi-dade com os tratados de direitos humanosratificados pela Colômbia. Acrescenta ain-da o seu art. 94 que a “enunciação dos direi-tos e garantias contidos na Constituição eem convênios internacionais vigentes, não

Revista de Informação Legislativa98

deve ser entendida como negando outrosque, sendo inerentes à pessoa humana, nãofigurem expressamente neles”12. E ainda,segundo o art. 164 da Carta colombiana, “oCongresso dará prioridade ao trâmite de pro-jetos de lei aprobatórios dos tratados sobredireitos humanos que sejam submetidos àsua consideração pelo governo”.

Seguindo essa nova tendência das Cons-tituições latino-americanas, a ConstituiçãoArgentina, reformada em 1994, estabeleceem seu artigo 75, inc. 22, que determinadostratados e instrumentos internacionais deproteção de direitos humanos nele enume-rados têm hierarquia constitucional, só poden-do ser denunciados mediante prévia apro-vação de dois terços dos membros do PoderLegislativo. A Carta Magna Argentina indi-ca que têm essa hierarquia os seguintes ins-trumentos: a) Declaração Americana dosDireitos e Deveres do Homem; b) Declara-ção Universal dos Direitos Humanos; c)Convenção Americana sobre Direitos Hu-manos; d) Pacto Internacional dos DireitosCivis e Políticos; e) Protocolo Facultativo aoPacto Internacional dos Direitos Civis e Po-líticos; f) Convenção para a Prevenção e Re-pressão do Crime de Genocídio; g) Conven-ção Internacional sobre a Eliminação de to-das as Formas de Discriminação Racial; h)Convenção sobre a Eliminação de todas asFormas de Discriminação contra a Mulher;i) Convenção contra a Tortura e outros Tra-tamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ouDegradantes, e a j) Convenção sobre os Di-reitos da Criança.

A reforma constitucional argentina de1994 foi grandemente influenciada por umainovadora jurisprudência que começava ase formar, reconhecendo a primazia dos tra-tados internacionais de proteção dos direi-tos humanos sobre a legislação interna (exa-tamente o que o poder reformador brasileirodeveria ter feito, seguindo a doutrina maisespecializada, mas que infelizmente nãofez). A Carta Argentina frisa ainda que taisdireitos são “complementares” aos direitose garantias nela reconhecidos13.

Segundo Cançado Trindade (1996, p. 21-22), uma outra técnica seguida pelas recen-tes reformas constitucionais latino-america-nas “tem consistido em dispor sobre a pro-cedência do recurso de amparo para a salva-guarda dos direitos consagrados nos trata-dos de direitos humanos (Constituição daCosta Rica, reformada em 1989, artigo 48;além da Constituição da Argentina, artigo43); outras Constituições optam por referir-se à normativa internacional em relação aum determinado direito, para o qual ‘a fon-te internacional adquire hierarquia consti-tucional’ (Constituições do Equador, artigos43 e 17; de El Salvador, artigo 28; deHonduras, artigo 119, 2)”. E continua: “AsConstituições latino-americanas supracita-das reconhecem assim a relevância da pro-teção internacional dos direitos humanos edispensam atenção e tratamento especiaisà matéria. Ao reconhecerem que sua enu-meração de direitos não é exaustiva ou su-pressiva de outros, descartam desse modo oprincípio de interpretação das leis inclusiounius est exclusio alterius. É alentador que asconquistas do direito internacional em fa-vor da proteção do ser humano venham aprojetar-se no direito constitucional, enri-quecendo-o, e demonstrando que a buscade proteção cada vez mais eficaz da pessoahumana encontra guarida nas raízes dopensamento tanto internacionalista quantoconstitucionalista. (…) A tendência consti-tucional contemporânea de dispensar umtratamento especial aos tratados de direitoshumanos é, pois, sintomática de uma esca-la de valores na qual o ser humano passa aocupar posição central”.

Entretanto, a Constituição latino-ameri-cana que mais evoluiu em termos de prote-ção dos direitos humanos foi a recente Car-ta venezuelana de 1999, verdadeiro “mode-lo” de constitucionalismo democrático eprotetor de direitos e que deveria ser segui-do pelo legislador constitucional brasileiro(e que, lamentavelmente, também não foi).De fato, a Constituição da Venezuela dis-põe agora, em seu art. 23, que os tratados,

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 99

pactos e convenções internacionais relati-vos a direitos humanos, subscritos e ratifi-cados pela Venezuela, “têm hierarquia cons-titucional e prevalecem na ordem interna, namedida em que contenham normas sobreseu gozo e exercício mais favoráveis às esta-belecidas por esta Constituição e pela Leida República, e são de aplicação imediata edireta pelos tribunais e demais órgãos doPoder Público” (grifo nosso). Trata-se daconsagração, em sede constitucional, dasregras que vários internacionalistas vêmdefendendo há vários anos, tendo em vistaque dá aos tratados de direitos humanos hie-rarquia constitucional e incorporação automática,além, é claro, de erigir expressamente o prin-cípio da primazia da norma mais favorável a prin-cípio hermenêutico constitucional.

Tais textos constitucionais latino-ame-ricanos são, portanto, reflexo do constitucio-nalismo que vem-se desenvolvendo em to-dos os países democráticos do mundo. OBrasil, como se verá, ficou atrasado em rela-ção aos demais países da América Latina,em relação à eficácia interna dos tratadosinternacionais de proteção dos direitos hu-manos, não obstante ter tido a oportunida-de de rever alguns dos conceitos equivoca-dos que a jurisprudência atual veio sedi-mentando através dos tempos, quando pro-mulgou a Emenda Constitucional no 45/2004, que não incorporou sequer os avan-ços doutrinários que há tempos vêm sendodesenvolvido no país, tendo preferido se-guir o que diz a jurisprudência do SupremoTribunal Federal em relação ao tema.

3. As incongruências do novo § 3o doart. 5o da Constituição de 1988

Sempre entendemos inevitável a mudan-ça do texto constitucional brasileiro, a fimde se eliminar as controvérsias a respeitodo grau hierárquico conferido pela Consti-tuição de 1988 aos tratados internacionaisde proteção dos direitos humanos. Entendí-amos ser premente, mais do que nunca, in-cluir em nossa Carta Magna não um dispo-

sitivo hierarquizando os tratados de direi-tos humanos, mas sim um dispositivo quereforçasse o significado do § 2o do art. 5o,dando-lhe interpretação autêntica. Por essemotivo, também havíamos proposto, comoalteração constitucional, a introdução demais um parágrafo no art. 5o da Carta de1988, mas não para contrariar o espírito in-clusivo que o § 2o já tem. A redação que pro-pusemos, publicada em nosso livro Direitoshumanos, Constituição e os tratados internacio-nais, foi a seguinte:

“§ 3o Os tratados internacionaisreferidos pelo parágrafo anterior, umavez ratificados, incorporam-se auto-maticamente na ordem interna brasi-leira com hierarquia constitucional,prevalecendo, no que forem suas dis-posições mais benéficas ao ser huma-no, às normas estabelecidas por estaConstituição”14.

Como se vê, a redação que queríamos, jáhá algum tempo, para um terceiro parágra-fo ao rol dos direitos e garantias fundamen-tais, não invalida a interpretação doutriná-ria relativa aos §§ 1o e 2o do art. 5o da Cartade 1988, que tratam, conjugadamente, dahierarquia constitucional e da aplicaçãoimediata dos tratados internacionais de pro-teção dos direitos humanos no ordenamen-to brasileiro. Nesse caso, a inserção de umterceiro parágrafo ao rol dos direitos e ga-rantias fundamentais do art. 5o da Consti-tuição valeria tão-somente como interpreta-ção autêntica do parágrafo anterior, ou seja,do § 2o do elenco constitucional dos direitose garantias.

Essa proposta que fizemos, inspirada nolegislador constitucional venezuelano de1999, teria a vantagem de evitar os gravesinconvenientes sofridos pela atual doutri-na, no que tange à interpretação do efetivograu hierárquico conferido pela Constitui-ção aos tratados de proteção dos direitoshumanos. Afastaria, ademais, as controvér-sias até então existentes em nossos tribu-nais superiores, notadamente no SupremoTribunal Federal, relativamente ao assunto.

Revista de Informação Legislativa100

Uma tal mudança, a nosso ver, era o míni-mo que poderia ter sido feito pelo legisladorconstitucional brasileiro, retirando a Cons-tituição do atraso de muitos anos em rela-ção às demais Constituições dos países lati-no-americanos e do resto do mundo, no quediz respeito à eficácia interna das normasinternacionais de proteção dos direitoshumanos.

A Emenda Constitucional no 45, entre-tanto, não seguiu essa orientação, e estabe-leceu, no § 3 o do art. 5 o da Carta de 1988, queos tratados e convenções internacionais so-bre direitos humanos serão equivalentes àsemendas constitucionais, uma vez aprova-dos, em cada Casa do Congresso Nacional,em dois turnos, por três quintos dos votosdos seus respectivos membros (que é exata-mente o quorum para a aprovação de umaemenda constitucional).

Essa alteração do texto constitucional,que pretendeu pôr termo ao debate quantoao status dos tratados internacionais de di-reitos humanos no direito brasileiro, é umexemplo claro de falta de compreensão e deinteresse do nosso legislador, no que tangeà normatividade internacional de direitoshumanos. Além de demonstrar total desco-nhecimento do direito internacional públi-co, notadamente das regras basilares daConvenção de Viena sobre o Direito dos Tra-tados, em especial as de jus cogens, traz ovelho e arraigado ranço da já ultrapassadanoção de soberania absoluta. Com o textoproposto, as convenções internacionais dedireitos humanos equivaleriam, em grauhierárquico, às emendas constitucionais,desde que aprovadas pela maioria qualifi-cada que estabelece.

A redação do dispositivo induz à con-clusão de que apenas as convenções assimaprovadas teriam valor hierárquico de nor-ma constitucional, o que traz a possibilida-de de alguns tratados, relativamente a essamatéria, serem aprovados sem esse quorum,passando a ter (aparentemente) valor denorma infraconstitucional, ou seja, de meralei ordinária. Como o texto proposto, ambí-

guo que é, não define quais tratados deve-rão ser assim aprovados, poderá ocorrer quedeterminados instrumentos internacionaisde proteção dos direitos humanos, aprova-dos por processo legislativo não qualifica-do, acabem por subordinar-se à legislaçãoordinária, quando de sua efetiva aplicaçãoprática pelos juízes e tribunais nacionais(que poderão preterir o tratado a fim de apli-car a legislação “mais recente”), o que certa-mente acarretaria a responsabilidade inter-nacional do Estado brasileiro15.

Surgiria ainda o problema de saber se ostratados de direitos humanos ratificadosanteriormente à entrada em vigor da Emen-da no 45, a exemplo da Convenção America-na sobre Direitos Humanos, do Pacto Inter-nacional dos Direitos Civis e Políticos, doPacto Internacional dos Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais e tantos outros, per-deriam o status de norma constitucional queaparentemente detinham em virtude do § 2 o

do art. 5o da Constituição, caso agora nãoaprovados pelo quorum do § 3o do mesmoart. 5o.

Como se dessume da leitura do novo § 3 o

do art. 5o do Texto Magno, basta que os tra-tados e convenções internacionais sobre di-reitos humanos sejam aprovados pela maio-ria qualificada ali prevista, para que pos-sam equivaler às emendas constitucionais.Não há, no citado dispositivo, qualquermenção ou ressalva dos compromissos as-sumidos anteriormente pelo Brasil e, assimsendo, poderá ser interpretado no sentidode que, não obstante um tratado de direitoshumanos tenha sido ratificado há váriosanos, pode o Congresso Nacional novamen-te aprová-lo, mas agora pelo quorum do § 3 o,para que esse tratado mude de status. Masde qual status mudaria o tratado? Certamentedaquele que o nosso Pretório Excelso sem-pre entendeu que têm os tratados de direi-tos humanos – o status de lei ordinária –,para passar a deter o status de norma consti-tucional. O Congresso Nacional teria, assim,o poder de, a seu alvedrio e a seu talante,decidir qual a hierarquia normativa que

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 101

devem ter determinados tratados de direi-tos humanos em detrimento de outros, vio-lando a completude material do bloco deconstitucionalidade.

O nosso poder reformador, ao conceberesse § 3o, parece não ter percebido que ele,além de subverter a ordem do processo cons-titucional de celebração de tratados, uma vezque não ressalva (como deveria fazer) a fasedo referendum congressual do art. 49, inc. I,da Constituição (que diz competir exclusi-vamente ao Congresso Nacional “resolverdefinitivamente sobre tratados, acordos ouatos internacionais que acarretem encargosou compromissos gravosos ao patrimônionacional”), também rompe a harmonia dosistema de integração dos tratados de direi-tos humanos no Brasil, uma vez que cria“categorias” jurídicas entre os próprios ins-trumentos internacionais de direitos huma-nos ratificados pelo governo, dando trata-mento diferente para normas internacionaisque têm o mesmo fundamento de validade,ou seja, hierarquizando diferentemente tra-tados que têm o mesmo conteúdo ético, qualseja, a proteção internacional dos direitoshumanos.

Por tudo isso, pode-se inferir que o re-cém criado § 3o do art. 5o da Constituiçãoseria mais condizente com a atual realida-de das demais Constituições latino-ameri-canas, bem como de diversas outras Consti-tuições do mundo, se determinasse expres-samente que todos os tratados de direitoshumanos pelo Brasil ratificados têm hierar-quia constitucional, aplicação imediata, eainda prevalência sobre as normas consti-tucionais no caso de serem suas disposiçõesmais benéficas ao ser humano.

Isso faria com que se evitassem futurosproblemas de interpretação constitucional,bem como contribuiria para afastar de vez oarraigado equívoco que assola boa parte dosconstitucionalistas brasileiros, no que dizrespeito à normatividade internacional dedireitos humanos e sua proteção.

Na verdade, tal fato não seria necessáriose fosse aplicável no Brasil o princípio de

que a jurisprudência seria a lei escrita, atu-alizada e lida com olhos das necessidadesprementes de uma sociedade. Apesar de jáexistirem os “princípios” do art. 4 o da Cons-tituição, a nosso ver, para a Excelsa Cortenada valem, mesmo que tenham sido colo-cados pelo legislador constituinte em nossotexto constitucional.

Como o novo § 3o do art. 5 o da Constitui-ção já está em vigor (e, aparentemente, nãose vislumbra uma reforma breve de seu tex-to), cabe à doutrina interpretá-lo segundoos princípios constitucionais garantidoresda dignidade da pessoa humana e da pre-valência dos direitos humanos. Mas antesde se verificar qual a interpretação mais con-dizente do novo § 3o do art. 5o da Constitui-ção, uma questão que tem que ser obrigato-riamente colocada (embora não tenhamosvisto ninguém fazê-lo até agora) diz respei-to ao momento em que deve-se manifestar oCongresso Nacional quando pretenderaprovar um tratado de direitos humanos nostermos do § 3o do art. 5o da Constituição,bem como se esta manifestação congressualpoderia suprimir a fase constante do art. 49,inc. I, da Constituição, que trata do poderdo Parlamento em decidir definitivamentesobre os tratados internacionais (quaisquerque sejam) assinados pelo Presidente daRepública.

4. Em que momento do processo decelebração de tratados tem lugar o novo

§ 3o do art. 5o da Constituição?

A Constituição de 1988 cuida do proces-so de celebração de tratados em tão-somen-te dois de seus dispositivos (arts. 84, inc.VIII, e 49, inc. I), que assim dispõem:

“Art. 84. Compete privativamenteao Presidente da República:

(…)VIII – celebrar tratados, convenções

e atos internacionais, sujeitos a refe-rendo do Congresso Nacional; (…)”

“Art. 49. É da competência exclu-siva do Congresso Nacional:

Revista de Informação Legislativa102

I – resolver definitivamente sobretratados, acordos ou atos internacio-nais que acarretem encargos ou com-promissos gravosos ao patrimônionacional; (…)”.

Como se percebe pela leitura dos artigostranscritos, a vontade do Executivo, mani-festada pelo Presidente da República, nãose aperfeiçoará enquanto a decisão do Con-gresso Nacional sobre a viabilidade de seaderir àquelas normas internacionais nãofor manifestada, no que se consagra, assim,a colaboração entre o Executivo e o Legisla-tivo no processo de conclusão de tratadosinternacionais16.

Esse procedimento estabelecido pelaConstituição vale para todos os tratados econvenções internacionais de que o Brasilpretende ser parte, sejam eles tratados co-muns ou de direitos humanos. Nem se digaque a referência aos “encargos ou compro-missos gravosos ao patrimônio nacional”exclui da apreciação parlamentar os trata-dos de direitos humanos, uma vez que o art.84, inc. VIII, da Constituição é claro em sub-meter todos os tratados internacionais assi-nados pelo Presidente da República ao refe-rendo do Parlamento, como já pacificado namelhor doutrina17.

Assim, uma primeira interpretação quepoderia ser feita é no sentido de que a com-petência do Congresso Nacional para refe-rendar os tratados internacionais assinadospelo Executivo, autorizando este último aratificação do acordo, constante do art. 49,inc. I, da Constituição, não fica suprimida,em absoluto, pela regra do novo § 3o do art.5o da Carta de 1988, posto que a participa-ção do Parlamento no processo de celebraçãode tratados internacionais no Brasil é umasó: aquela que aprova ou não o seu conteú-do, e mais nenhuma outra. Não há que seconfundir o referendo dos tratados interna-cionais, de que cuida o art. 49, inc. I, da Cons-tituição, materializado por meio de um De-creto Legislativo (aprovado por maioria sim-ples) promulgado pelo Presidente do Sena-do Federal, com a segunda eventual mani-

festação do Congresso para fins de preten-samente decidir sobre qual status hierárqui-co deve ter certo tratado internacional dedireitos humanos no ordenamento jurídicobrasileiro, de que cuida agora o novo § 3 o doart. 5o da Constituição.

A segunda interpretação que poderia serdada é no sentido de que o § 3o do art. 5o daCarta de 1988 excepcionou a regra do art.49, inc. I, da Constituição e, dessa forma,poderia, no caso da celebração de um trata-do de direitos humanos, fazer as vezes desteúltimo dispositivo constitucional. Mas casoseja esse o entendimento adotado, deve-sefazer a observação de que o referido § 3o foimal colocado no fim do rol dos direitos egarantias fundamentais do art. 5o da Cons-tituição, uma vez que seria mais preciso in-cluí-lo como uma segunda parte do próprioart. 49, inc. I. Será difícil entender como cor-reta essa segunda interpretação, sob penade o processo de celebração de tratados fi-car com a ordem desvirtuada, uma vez queo § 3o do art. 5 o não diz que cabe ao Congres-so Nacional decidir sobre os tratados assi-nados pelo Chefe do Executivo, como faz oart. 49, inc. I, deixando entender que a apro-vação ali constante serve tão-somente paraequiparar os tratados de direitos humanosàs emendas constitucionais, o que poderiaser feito após o tratado já estar ratificadopelo Presidente da República e depois deeste já se encontrar em vigor internacional.

Perceba-se que o § 3o do art. 5 o não obrigao Poder Legislativo aprovar eventual trata-do de direitos humanos pelo quorum quali-ficado que estabelece. O que o parágrafo fazé tão-somente autorizar o Congresso Nacio-nal a dar, quando lhe convier e a seu alve-drio e a seu talante, a “equivalência de emen-da” aos tratados de direitos humanos ratifi-cados pelo Brasil. Isso significa que tais ins-trumentos internacionais poderão continu-ar sendo aprovados por maioria simples noCongresso Nacional (segundo a regra doart. 49, inc. I, da Constituição), deixando-separa um momento futuro (depois da ratifi-cação) a decisão do povo brasileiro em atri-

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 103

buir a equivalência de emenda a tais trata-dos internacionais.

Assim, o iter procedimental de celebra-ção dos tratados de direitos humanos, nostermos da nova sistemática introduzidapelo § 3o do art. 5o da Constituição, poderia,em princípio, dar-se de duas formas, eleitasà livre escolha do Poder Legislativo, quaissejam:

1a) Depois de assinados pelo Executivo,os tratados de direitos humanos seriamaprovados pelo Congresso nos termos doart. 49, inc. I, da Constituição (maioria sim-ples) e, uma vez ratificados, promulgados epublicados no Diário Oficial da União, pode-riam, mais tarde, quando o nosso ParlamentoFederal decidisse por bem atribuir-lhes aequivalência de emenda constitucional, se-rem novamente apreciados pelo Congresso,para serem dessa vez aprovados pelo quorumqualificado do § 3o do art. 5o, ou;

2a) Depois de assinados pelo Executivo,tais tratados já seriam imediatamente apro-vados (seguindo-se o rito das propostas deemenda constitucional) por três quintos dosvotos dos membros de cada uma das Casasdo Congresso Nacional em dois turnos, su-primindo-se, em face do critério da especia-lidade, a fase do art. 49, inc. I, da Constitui-ção, autorizando-se a futura ratificação doacordo já com a aprovação necessária paraque o tratado, uma vez ratificado pelo Presi-dente da República e já se encontrando emvigor internacional, ingresse no nosso or-denamento jurídico interno equivalendo auma emenda constitucional, dispensando-se, portanto, segunda manifestação congres-sual após o tratado já se encontrar concluí-do e produzindo seus efeitos.

Perceba-se que essa segunda hipótese éperigosa e pode ser mal interpretada lendo-se friamente o § 3o do art. 5o, que, à primeiravista, leva o intérprete a entender que a par-tir da aprovação congressual, pelo quorumque ali se estabelece, os tratados de direitoshumanos já passam a equivaler às emen-das constitucionais, o que não é verdade,posto que, para que um tratado entre em vi-

gor, é imprescindível a sua futura ratificaçãopelo Presidente da República e, ainda, quejá tenha a potencialidade para produzir efei-tos na órbita interna, não se concebendo queum tratado de direitos humanos passe a terefeitos de emenda constitucional – e, conse-qüentemente, passe a ter o poder de refor-mar a Constituição – antes de ratificado e,muito menos, antes de ter entrado em vigorinternacionalmente. Essa falsa idéia surgeda leitura desavisada do texto do referidoparágrafo, segundo o qual os tratados e con-venções internacionais “sobre direitos hu-manos que forem aprovados, em cada Casado Congresso Nacional, em dois turnos, portrês quintos dos votos dos respectivos mem-bros, serão equivalentes às emendas constitucio-nais”. A colocação que se pode fazer é se-guinte: uma vez aprovado eventual tratadode direitos humanos, logo depois de suaassinatura, nos termos do § 3o do art. 5o daConstituição (suprimindo-se, portanto, afase do art. 49, inc. I), já seria ele equivalente auma emenda constitucional? É óbvio quenão. Jamais uma convenção internacional,aprovada nesse momento do iter procedi-mental de celebração de tratados poderá,desde já, ter o efeito que pretende atribuir-lhe o § 3o em exame, a menos que se queirasubverter a ordem constitucional por com-pleto, pois é impossível que um tratado te-nha efeitos internos antes de ratificado eantes de começar a vigorar internacional-mente.

Como se já não bastasse esse fato cons-tatado, pode-se agregar ainda um outro: umtratado, mesmo já ratificado, poderá jamaisentrar em vigor dependendo de determina-das circunstâncias, como por exemplo noscasos dos tratados condicionais ou a termo,em que se estabelece um número mínimo deratificações para a sua entrada em vigorinternacional. Imagine-se, então, que o Bra-sil aprove determinado instrumento inter-nacional de direitos humanos, pelo quorumdo § 3o do art. 5o, na fase que seria, em prin-cípio, do art. 49, inc. I, da Constituição, eque o ratifique, promulgue o seu texto e o

Revista de Informação Legislativa104

publique no Diário Oficial da União. Esse tra-tado já pode ser aplicado no Brasil? A res-posta somente poderá ser dada verifican-do-se o que dispõe o próprio tratado. To-mando-se como exemplo o Estatuto de Romado Tribunal Penal Internacional de 1998, lê-se no seu art. 126, § 1o, que o “presente Esta-tuto entrará em vigor no primeiro dia do mêsseguinte ao termo de um período de 60 diasapós a data do depósito do sexagésimo ins-trumento de ratificação, de aceitação, deaprovação ou de adesão junto do Secretá-rio-Geral da Organização das Nações Uni-das”. Assim, mesmo que o Brasil tenha sidoo primeiro país a ratificar dito tratado, casoainda não tivessem sido depositados os ses-senta instrumentos de ratificação exigidospara sua entrada em vigor internacional,não haveria que se falar que o seu texto jáequivale a uma emenda constitucional emnosso país, uma vez que não se concebe (porabsurda que é essa hipótese) que algo quesequer existe juridicamente (e que pode levaranos para vir a existir) já tenha valor internoem nosso ordenamento jurídico, inclusive compoder de reformar a Constituição.

Essas colocações já bastam para, cienti-ficamente, rechaçar a aplicação do § 3o doart. 5o em supressão da fase do art. 49, inc. I,da Constituição, podendo-se concluir que oúnico momento do processo de celebraçãode tratados em que poderá ter lugar o referi-do § 3o será depois de ratificado o acordo edepois de o mesmo já se encontrar em vigorinternacional. Ou seja, caso o CongressoNacional decida integrar formalmente o tra-tado à Constituição, para além do seu statusmaterialmente constitucional, deverá aguar-dar a ratificação do acordo e o seu início devigência internacional. Mas caso assim nãoentenda o Congresso Nacional, a nossa opi-nião é a de que se deve então deixar expres-so no instrumento congressual aprobatóriodo tratado que o mesmo apenas terá o efeitoque prevê o § 3o do art. 5o depois de ter sidoo instrumento ratificado e depois de o mes-mo se encontrar em vigor, a fim de que seevite uma subversão completa da ordem

constitucional e dos princípios gerais doDireito dos Tratados universalmente reco-nhecidos.

Como se vê, esse tipo de procedimentode aparência dúplice agora estabelecidopelo texto constitucional não é salutar nemao princípio da segurança jurídica, que devereger todas as relações sociais, nem aos prin-cípios que regem as relações internacionaisdo Brasil. Seria muito melhor ter a jurispru-dência se posicionado a favor da índoleconstitucional e da aplicação imediata dostratados de direitos humanos, nos termosdo § 2o do art. 5o da Constituição, do quecriar um terceiro parágrafo que só traz inse-gurança às relações sociais e, ademais, criadistinção entre instrumentos internacionaisque têm o mesmo fundamento ético.

Ademais, deixar à livre escolha do Po-der Legislativo atribuir aos tratados de di-reitos humanos equivalência às emendasconstitucionais é permitir que se trate demaneira diferente instrumentos com igualconteúdo principiológico, podendo ocorrerde se atribuir equivalência de emenda cons-titucional a um Protocolo de um tratado dedireitos humanos (que é suplementar ao tra-tado principal) e deixar sem esse efeito o seurespectivo Tratado-quadro. Admitir uma talinterpretação seria consagrar um verdadei-ro paradoxo no sistema, correspondente àtotal inversão de valores e princípios den-tro do nosso ordenamento jurídico. Daí oporquê de se entender que o novo § 3 o do art.5o da Constituição não pode, de qualquermaneira, prejudicar o entendimento que vi-nha sendo seguido por boa parte da doutri-na brasileira em relação ao § 2o do mesmoart. 5o da Constituição, como veremos notópico subseqüente deste estudo.

5. Hierarquia constitucional dostratados de direitos humanos

independentemente da entrada em vigorda emenda no 45/2004

Transita-se, agora, à quinta parte desteestudo, em que buscaremos interpretar o §

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 105

3o do art. 5 o da Constituição conjugadamen-te com o § 2 o do mesmo dispositivo, uma vezque ambos os parágrafos encontram-se den-tro de um mesmo contexto jurídico, devendoassim ser interpretados.

Neste estudo, defendemos que os trata-dos internacionais de proteção dos direitoshumanos ratificados pelo Brasil já têm statusde norma constitucional, em virtude do dis-posto no § 2o do art. 5o da Constituição, se-gundo o qual os direitos e garantias expres-sos no texto constitucional “não excluemoutros decorrentes do regime e dos princí-pios por ela adotados, ou dos tratados in-ternacionais em que a República Federativado Brasil seja parte”, pois na medida em quea Constituição não exclui os direitos huma-nos provenientes de tratados, é porque elaprópria os inclui no seu catálogo de direitosprotegidos, ampliando o seu “bloco de cons-titucionalidade” e atribuindo-lhes hierar-quia de norma constitucional, como já as-sentamos no início deste trabalho. Portan-to, já se exclui, desde logo, o entendimentode que os tratados de direitos humanos nãoaprovados pela maioria qualificada do § 3o

do art. 5o equivaleriam hierarquicamente àlei ordinária federal, uma vez que os mes-mos teriam sido aprovados apenas pormaioria simples (nos termos do art. 49, inc.I, da Constituição) e não pelo quorum quelhes impõe o referido parágrafo. O que sedeve entender é que o quorum que tal pará-grafo estabelece serve tão-somente para atri-buir eficácia formal a esses tratados no nos-so ordenamento jurídico interno, e não paraatribuir-lhes a índole e o nível materialmenteconstitucionais que eles já têm em virtudedo § 2o do art. 5o da Constituição.

Sem pretender invocar o art. 27 da Con-venção de Viena sobre o Direito dos Trata-dos, de 1969, segundo o qual uma parte “nãopode invocar as disposições do seu direitointerno para justificar o inadimplemento deum tratado” (dispositivo esse que atribuinível supraconstitucional a quaisquer trata-dos ratificados pelo Estado), poder-se-ia,num primeiro momento, fazer o seguinte

raciocínio: como o § 2o do art. 5o da Consti-tuição já atribui índole e nível constitucio-nais para todos os tratados internacionaisde direitos humanos ratificados pelo Brasilantes da entrada em vigor da Emenda no 45,isso significa que apenas aqueles instrumen-tos internacionais de direitos humanos dosquais o Brasil passará a ser parte depois daentrada em vigor da referida emenda é quenecessitarão ser aprovados em cada Casado Congresso Nacional, em dois turnos, portrês quintos dos votos dos seus respectivosmembros, para serem equivalentes às emen-das constitucionais. Dessa forma, atribuir-se-ia apenas efeito ex nunc à disposição do §3o do art. 5o da Constituição.

O raciocínio faz chegar à conclusão deque o § 3o do art. 5o não pode abranger situ-ações pretéritas (como as normas constitu-cionais em geral também não podem), nãopodendo ter jamais efeito ex tunc, e, portan-to, poderá somente ser aplicado aos trata-dos internacionais de direitos humanos ra-tificados posteriormente à data de sua en-trada em vigor (8 de dezembro de 2004).

O § 3o do art. 5 o, contudo, não faz nenhu-ma ressalva quanto aos compromissos as-sumidos pelo Brasil anteriormente, em sedede direitos humanos, bem como em nenhummomento induz ao entendimento de queestará regendo situações pretéritas. O queaparentemente ele faz é tão-somente permi-tir que o Congresso Nacional, a qualquermomento (antes de sua ratificação ou mes-mo depois desta), atribua aos tratados dedireitos humanos o caráter de emenda cons-titucional. Em tese, nada obsta que o referi-do § 3o seja também aplicado em relação aostratados ratificados anteriormente à entra-da em vigor da Emenda n o 45, o que faz comque a tese acima desenvolvida perca vali-dade.

O que aqui se defende é que o novo § 3o

do art. 5o da Constituição em nada influi no“status de norma constitucional” que os tra-tados de direitos humanos ratificados peloEstado brasileiro já detêm no nosso ordena-mento jurídico, em virtude da regra do § 2o

Revista de Informação Legislativa106

do mesmo art. 5o. Defende-se, neste estudo,que os dois referidos parágrafos do art. 5o

da Constituição cuidam de coisas simila-res, mas diferentes. Quais coisas diferentes?Então para que serviria a regra insculpidano § 3o do art. 5o da Carta de 1988, senãopara atribuir status de norma constitucionalaos tratados de direitos humanos?

A diferença entre o § 2o, in fine, e o § 3o,ambos do art. 5o da Constituição, é bastantesutil: nos termos da parte final do § 2o doart. 5o, os “tratados internacionais [de direi-tos humanos] em que a República Federati-va do Brasil seja parte” são, a contrario sensu,incluídos pela Constituição, passando con-seqüentemente a deter o “status de normaconstitucional” e a ampliar o rol dos direi-tos e garantias fundamentais (“bloco deconstitucionalidade”); já nos termos do § 3o

do mesmo art. 5o da Constituição, uma vezaprovados tais tratados de direitos huma-nos pelo quorum qualificado ali estabeleci-do, esses instrumentos internacionais, umavez ratificados pelo Brasil, passam a ser“equivalentes às emendas constitucionais”.

Mas, há diferença em dizer que os trata-dos de direitos humanos têm “status de nor-ma constitucional” e dizer que eles são “ equi-valentes às emendas constitucionais”? Per-ceba-se que o § 3o do art. 5o não diz que ostratados de direitos humanos, uma vez apro-vados pela maioria qualificada que prevê,serão “equivalentes às normas constitucio-nais”, preferindo ter dito que serão “equiva-lentes às emendas constitucionais”. Portanto,qual a diferença entre os dois parágrafos?

No nosso entender, a diferença existe, enela está fundada a única e exclusiva ser-ventia do imperfeito § 3o do art. 5o da Cons-tituição, fruto da Emenda Constitucional n o

45/2004. Falar que um tratado tem “statusde norma constitucional” é o mesmo quedizer que ele integra o bloco de constitucio-nalidade material (e não formal) da nossaCarta Magna, o que é menos amplo que di-zer que ele é “ equivalente a uma emenda cons-titucional”, o que significa que esse mesmotratado já integra formalmente (além de

materialmente) o texto constitucional. Per-ceba-se que, neste último caso, o tratado as-sim aprovado será, além de materialmenteconstitucional, também formalmente cons-titucional. Assim, fazendo-se uma interpre-tação sistemática do texto constitucional emvigor, à luz dos princípios constitucionais einternacionais de garantismo jurídico e deproteção à dignidade humana, chega-se àseguinte conclusão: o que o texto constituci-onal reformado quis dizer é que esses trata-dos de direitos humanos ratificados peloBrasil, que já têm status de norma constituci-onal, nos termos do § 2o do art. 5o, poderãoainda ser formalmente constitucionais (ouseja, ser equivalentes às emendas constitucio-nais), desde que, a qualquer momento, de-pois de sua entrada em vigor, sejam aprova-dos pelo quorum do § 3o do mesmo art. 5o daConstituição.

Mas, quais são esses efeitos mais amplosem se atribuir a esses tratados equivalênciade emenda para além do seu status de normaconstitucional? São dois os efeitos:

1) eles passarão a reformar a Constitui-ção, o que não é possível tendo apenas ostatus de norma constitucional;

2) eles não poderão ser denunciados, nemmesmo com Projeto de Denúncia elaboradopelo Congresso Nacional, podendo ser oPresidente da República responsabilizadoem caso de descumprimento dessa regra (oque não é possível fazer tendo os tratadosapenas status de norma constitucional).

Os números 1 e 2 acima merecem ser de-talhadamente explicados, a fim de se de-monstrar que § 3o do art. 5o não prejudica oentendimento de que os tratados de direitoshumanos ratificados pelo Brasil já têm statusde norma constitucional, nos termos do § 2 o

do mesmo art. 5o da Constituição.A primeira conseqüência de se atribuir

equivalência de emenda constitucional a umtratado de direitos humanos, exposta nonúmero 1 acima, é a de que eles passarão areformar a Constituição, o que não é possí-vel quando se tem apenas o status de normaconstitucional. Ou seja, uma vez aprovado

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 107

certo tratado pelo quorum previsto pelo § 3o,opera-se a imediata reforma do texto consti-tucional conflitante, o que não ocorre pelasistemática do § 2o do art. 5o, pelo qual ostratados de direitos humanos (que têm nívelde normas constitucionais, sem contudoserem equivalentes às emendas constitucio-nais) serão aplicados atendendo ao princí-pio da primazia da norma mais favorável ao serhumano (expressamente consagrado pelo art.4o, inc. II, da Carta de 1988, segundo o qualo Brasil deve-se reger nas suas relações in-ternacionais pelo princípio da “prevalên-cia dos direitos humanos”).

Essa diferença entre status e equivalênciajá tinha sido por nós estudada em trabalhoanterior, no qual escrevemos: “E isto signi-fica, na inteligência do art. 5o, § 2o da Cons-tituição Federal, que o status do produto nor-mativo convencional, no que tange à prote-ção dos direitos humanos, não pode ser ou-tro que não o de verdadeira norma material-mente constitucional. Diz-se ‘materialmen-te constitucional’, tendo em vista não inte-grarem os tratados, formalmente, a CartaPolítica, o que demandaria um procedimen-to de emenda à Constituição, previsto no art.60, § 2o, o qual prevê que tal proposta ‘serádiscutida e votada em cada Casa do Con-gresso Nacional, em dois turnos, conside-rando-se aprovada se obtiver, em ambos, trêsquintos dos votos dos respectivos mem-bros’”18.

Assim, nunca entendemos que os trata-dos de direitos humanos ratificadospelo Brasil integram formalmente a Consti-tuição. O que sempre defendemos é que elestêm status de norma constitucional (o que éabsolutamente normal em quase todas asdemocracias modernas). Mas agora, umavez aprovados pelo quorum que estabelece o§ 3o do art. 5o da Constituição, os tratadosde direitos humanos ratificados integrarãoformalmente a Constituição, uma vez que se-rão equivalentes às emendas constitucio-nais. Contudo, frise-se que essa integraçãoformal dos tratados de direitos humanos noordenamento brasileiro não abala a integra-

ção material que esses mesmos instrumen-tos já apresentam desde a sua ratificação eentrada em vigor no Brasil.

Dizer que um tratado equivale a umaemenda constitucional significa dizer queele tem a mesma potencialidade jurídica queuma emenda. E o que faz uma emenda? Umaemenda reforma a Constituição, para melhorou para pior. Portanto, o detalhe que pode-rá passar despercebido de todos (e até ago-ra também não vimos ninguém cogitá-lo) éque atribuir equivalência de emenda aos trata-dos internacionais de direitos humanos, àsvezes, pode ser perigoso, bastando imagi-nar o caso em que a nossa Constituição émais benéfica em determinada matéria que otratado ratificado. Nesse caso, seria muitomais salutar, inclusive para a maior com-pletude do nosso sistema jurídico, se se ad-mitisse o “status de norma constitucional”desse tratado, nos termos do § 2o do art. 5o –e , nesse caso, não haveria que se falar emreforma da Constituição, sendo o problemaresolvido aplicando-se o princípio da prima-zia da norma mais favorável ao ser humano –,do que atribuir-lhe uma equivalência deemenda constitucional, o que poderia fazercom que o intérprete aplicasse o tratado emdetrimento da norma constitucional maisbenéfica.

Poderia objetar-se que a Constituição, noart. 60, § 4o, inc. IV, proíbe qualquer propos-ta de emenda tendente a abolir os direitos egarantias individuais e, assim sendo, os tra-tados de direitos humanos (aprovados pormaioria qualificada) conflitantes com aConstituição seriam inconstitucionais. Se-ria imenso o trabalho em se verificar, nasvárias comissões do Congresso Nacionalresponsáveis pela análise preliminar dacompatibilidade do tratado com o direitobrasileiro vigente, quais dispositivos de cadatratado poderiam eventualmente conflitarcom a Constituição. Às vezes, certo disposi-tivo de determinado tratado não abole ne-nhum direito ou garantia individual previs-to no texto constitucional, mas traz tal direi-to ou tal garantia de forma menos protetora,

Revista de Informação Legislativa108

como é o caso, por exemplo, da prisão civildo devedor de alimentos que, segundo aConstituição brasileira de 1988 (art. 5o, inc.LXVII), somente pode ter lugar quando oinadimplemento da obrigação alimentar forvoluntário e inescusável. Atente-se bem: a Car-ta de 1988 somente permite seja preso o de-vedor de alimentos se for ele responsávelpelo inadimplemento “voluntário e inescu-sável” da obrigação alimentar. Não é, pois,qualquer obrigação alimentar inadimplidaque deve gerar a prisão do devedor. Oinadimplemento pode ser voluntário mas es-cusável, no que não se haveria falar em pri-são nessa hipótese. Pois bem. Essa redaçãoatribuída pela nossa Constituição em rela-ção à prisão civil por dívida alimentar dife-re da redação dada pela Convenção Ameri-cana sobre Direitos Humanos (Pacto de SanJosé da Costa Rica), que, depois de estabele-cer a regra genérica de que “ninguém deveser detido por dívidas”, acrescenta que “esteprincípio não limita os mandados de auto-ridade judiciária competente expedidos emvirtude de inadimplemento de obrigaçãoalimentar” (art. 7, no 7). Como se percebe, oPacto de San José permite que sejam expedi-dos mandados de prisão pela autoridadecompetente, em virtude de inadimplementode obrigação alimentar. Não diz mais nada:basta o simples inadimplemento da obriga-ção para que seja autorizada a prisão dodevedor. Nesse caso, é a nossa Constituiçãomais benéfica que o Pacto, pois contém umaadjetivação restringente não encontrada notexto deste último e, por isso, seria prejudi-cial ao nosso sistema de direitos e garantiasreformá-la em benefício da aplicação do tra-tado19.

Aplicando-se o princípio da primazia danorma mais favorável nada disso ocorre, pois,atribuindo-se aos tratados de direitos hu-manos ratificados pelo Brasil o status denorma constitucional, não se pretende re-formar a Constituição, mais sim aplicar, emcaso de conflito entre o tratado e o texto cons-titucional, a norma que, no caso, mais pro-teja os direitos da pessoa humana, posição

essa que tem em Cançado Trindade o seumaior expoente20.

A segunda conseqüência em se atribuiraos tratados de direitos humanos equiva-lência às emendas constitucionais, expostano número 2 visto acima, significa que taistratados não poderão ser denunciados nemmesmo com Projeto de Denúncia elaboradopelo Congresso Nacional, podendo o Presi-dente da República ser responsabilizadocaso o denuncie (o que não ocorria à égideem que o § 2o do art. 5o encerrava sozinho orol dos direitos e garantias fundamentaisdo texto constitucional brasileiro). Assimsendo, mesmo que um tratado de direitoshumanos preveja expressamente a sua de-núncia, essa não poderá ser realizada peloPresidente da República unilateralmente(como é a prática brasileira atual em maté-ria de denúncia de tratados internacio-nais)21, e nem sequer por meio de Projeto deDenúncia elaborado pelo Congresso Naci-onal, uma vez que tais tratados equivalemàs emendas constitucionais, que são (emmatéria de direitos humanos) cláusulas pé-treas do texto constitucional.

Há que se enfatizar que vários tratadosde proteção dos direitos humanos prevêemexpressamente a possibilidade de sua de-núncia. Contudo, trazem eles disposiçõesno sentido de que, eventual denúncia porparte dos Estados-partes não terá o efeito deos desligar das obrigações contidas no res-pectivo tratado, no que diz respeito a qual-quer ato que, podendo constituir violaçãodessas obrigações, houver sido cometido poreles anteriormente à data na qual a denún-cia produziu seu efeito22.

A impossibilidade de denúncia dos tra-tados de direitos humanos já tinha sido pornós defendida anteriormente, com base nostatus de norma constitucional dos tratadosde direitos humanos, que passariam a sertambém cláusulas pétreas constitucionais.Sob esse ponto de vista, a denúncia dos tra-tados de direitos humanos é tecnicamentepossível (sem a possibilidade de se respon-sabilizar o Presidente da República nesse

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 109

caso), mas totalmente ineficaz sob o aspectoprático, uma vez que os efeitos do tratadodenunciado continuam a operar dentro donosso ordenamento jurídico, pelo fato de elesserem cláusulas pétreas do texto constituci-onal.

No que tange aos tratados de direitoshumanos aprovados pelo quorum do § 3 o doart. 5o da Constituição, esse panorama muda,não se admitindo sequer a interpretação deque a denúncia desses tratados seria possí-vel mas ineficaz, pois agora ela será impossí-vel do ponto de vista técnico, existindo apossibilidade de responsabilização do Pre-sidente da República caso venha pretenderoperá-la.

Quais os motivos da impossibilidadetécnica de tal denúncia? De acordo com o §3o do art. 5o, uma vez aprovados os tratadosde direitos humanos, em cada Casa do Con-gresso Nacional, em dois turnos, por trêsquintos dos votos dos respectivos membros,serão eles “equivalentes às emendas consti-tucionais”. Passando a ser equivalentes àsemendas constitucionais, isso significa quenão poderão esses tratados ser denuncia-dos mesmo com base em Projeto de Denún-cia encaminhado pelo Presidente da Repú-blica ao Congresso Nacional. Caso o Presi-dente entenda por bem denunciar o tratadoe realmente o denuncie (perceba-se que oDireito Internacional aceita a denúncia feitapelo Presidente, não se importando se, deacordo com o seu direito interno, está eleautorizado ou não a denunciar o acordo),poderá ser responsabilizado por violar dis-posição expressa da Constituição, o que nãoocorria à égide em que o § 2 o do art. 5 o encer-rava sozinho o rol dos direitos e garantiasfundamentais. Assim sendo, mesmo que umtratado de direitos humanos preveja expres-samente sua denúncia, essa não poderá serrealizada pelo Presidente da República uni-lateralmente (como autoriza a prática brasi-leira atual em matéria de denúncia de trata-dos internacionais), e nem sequer por meiode Projeto de Denúncia elaborado pelo Con-gresso Nacional, uma vez que tais tratados

equivalem às emendas constitucionais. Issoimpede, aliás, a interpretação que se poderáfazer, no sentido de que seria possível a de-núncia do tratado caso o Congresso apro-vasse tal Projeto pela mesma maioria quali-ficada com que aprovou o acordo.

No Brasil, apesar de forte divergênciadoutrinária, a prática brasileira em relaçãoà matéria tem sido no sentido de que a con-jugação de vontades dos Poderes Executivoe Legislativo é obrigatória somente em rela-ção à ratificação dos tratados internacionais.Pela prática brasileira a respeito, a denúnciade tratados, infelizmente, ainda continuasendo ato exclusivo do Chefe do Poder Exe-cutivo, tão-somente. Sem embargo dessa prá-tica, sempre estivemos com Pontes de Mi-randa (1987, p. 109), para quem, “aprovartratado, convenção ou acordo, permitindoque o Poder Executivo o denuncie, sem con-sulta, nem aprovação, é subversivo dos prin-cípios constitucionais”. Do mesmo modoque o Presidente da República necessita daaprovação do Congresso Nacional, dandoa ele permissão para ratificar o acordo, omais correto, consoante as normas consti-tucionais em vigor, seria que idêntico pro-cedimento parlamentar fosse aplicado emrelação à denúncia.

Esse, aliás, o sistema adotado pelaConstituição espanhola de 1978, que sub-mete eventual denúncia de tratados sobredireitos humanos fundamentais ao requisi-to da prévia autorização ou aprovação doLegislativo (arts. 96, no 2 e 94, no 1 “c”). Omesmo se diga em relação às Constituiçõesda Suécia (art. 4o, com as emendas de 1976-1977), da Dinamarca de 1953 (art. 19, no 1),da Holanda de 1983 (art. 91, no 1), além daConstituição da República Argentina que,a partir da reforma de 1994, passou a exigirque os tratados internacionais de proteçãodos direitos humanos sejam denunciadospelo Executivo mediante a prévia aprova-ção de dois terços dos membros de cadaCâmara. A Constituição do Paraguai, porsua vez, determina que os tratados interna-cionais relativos a direitos humanos “não

Revista de Informação Legislativa110

poderão ser denunciados senão pelos pro-cedimentos que vigem para a emenda destaConstituição” (art. 142).

Entretanto, nos termos da nova sistemá-tica constitucional brasileira, aprovado umtratado de direitos humanos nos termos do§ 3o do art. 5o da Constituição, nem sequerpor meio de Projeto de Denúncia votado como mesmo quorum exigido para a conclusãodo tratado (votação nas duas Casas do Con-gresso Nacional, em dois turnos, por trêsquintos dos votos dos seus respectivos mem-bros) será possível o país desengajar-se des-se seu compromisso, quer no âmbito inter-no, quer no plano internacional.

Agora, portanto, será preciso distinguirse o tratado que se pretende denunciar equi-vale uma emenda constitucional (ou seja, seé material e formalmente constitucional, nostermos do art. 5o, § 3o) ou se apenas detémstatus de norma constitucional (é dizer, se éapenas materialmente constitucional, em vir-tude do art. 5o, § 2o). Caso o tratado de direi-tos humanos se enquadre apenas nesta úl-tima hipótese, com o ato da denúncia, o Es-tado brasileiro passa a não mais ter respon-sabilidade em responder pelo descumpri-mento do tratado tão-somente no âmbitointernacional e não no âmbito interno. Ou seja,nada impede que, tecnicamente, denuncie-se um tratado de direitos humanos que temapenas status de norma constitucional, poisinternamente nada muda, uma vez que elesjá se encontram petrificados no nosso siste-ma de direitos e garantias, importando taldenúncia apenas em livrar o Estado brasi-leiro de responder pelo cumprimento do tra-tado no âmbito internacional. Mas, caso otratado de direitos humanos tenha sido apro-vado nos termos do § 3o do art. 5o, o Brasilnão pode mais desengajar-se do tratado querno plano internacional, quer no plano in-terno (o que não ocorre quando o tratadodetém apenas status de norma constitucio-nal), podendo o Presidente da República serresponsabilizado caso o denuncie (deven-do tal denúncia ser declarada ineficaz). As-sim, repita-se, quer nos termos do § 2o, quer

nos termos do § 3o do art. 5o, os tratados dedireitos humanos são insuscetíveis de de-núncia por serem cláusulas pétreas consti-tucionais. O que difere é que, uma vez apro-vado o tratado pelo quorum do § 3o, sua de-núncia acarreta a responsabilidade do de-nunciante, o que não ocorre na sistemáticado § 2o do art. 5o.

Portanto, a afirmação antes correntemen-te utilizada, no sentido de que anteriormen-te à entrada em vigor da Emenda no 45 exis-tia um paradoxo, na medida em que os tra-tados de direitos humanos eram aprovadospor maioria simples, o que autorizava o Pre-sidente da República, a qualquer momento,denunciar o tratado, desobrigando o paísao cumprimento daquilo que assumiu nocenário internacional desde o momento daratificação do acordo23, não será mais váli-da a partir do momento em que o tratadoque pretende ser denunciado passe a equi-valer a uma emenda constitucional.

6. Aplicação imediata dos tratadosde direitos humanos

independentemente da regra donovo § 3o do art. 5o da ConstituiçãoPor fim, registre-se ainda que, além de o

novo § 3o do art. 5o da Constituição não pre-judicar o status constitucional que os trata-dos internacionais de direitos humanos emvigor no Brasil já têm de acordo com o § 2o

desse mesmo artigo, ele também não preju-dica a aplicação imediata dos tratados dedireitos humanos já ratificados ou que vie-rem a ser ratificados pelo nosso país no fu-turo. Isso porque a regra que garante aplica-ção imediata às normas definidoras dos di-reitos e garantias fundamentais, insculpi-da no § 1o do art. 5o da Constituição (verbis:“As normas definidoras dos direitos e ga-rantias fundamentais têm aplicação imedi-ata.”), nem remotamente induz a pensar queos tratados de direitos humanos só terão talaplicabilidade imediata (pois eles tambémsão normas definidoras dos direitos e garanti-as fundamentais) depois de aprovados pelo

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 111

Congresso Nacional pelo quorum estabele-cido no § 3 o do art. 5 o. Pelo contrário: a Cons-tituição é expressa em dizer que as “normasdefinidoras dos direitos e garantias funda-mentais” têm aplicação imediata, mas nãodiz quais são ou quais deverão ser essasnormas. A Constituição não especifica seelas devem provir do direito interno ou dodireito internacional (por exemplo, dos tra-tados internacionais de direitos humanos),mas apenas diz que todas elas têm aplica-ção imediata, independentemente de seremou não aprovadas por maioria simples ouqualificada.

Isso tudo somado significa que os trata-dos internacionais de proteção dos direitoshumanos ratificados pelo Brasil podem serimediatamente aplicados pelo Poder Judi-ciário, independentemente de promulgaçãoe publicação no Diário Oficial da União e in-dependentemente de serem aprovados deacordo com a regra no novo § 3 o do art. 5 o daCarta de 1988. Tais tratados, de forma idên-tica à que se defendia antes da reforma, con-tinuam dispensando a edição de decreto deexecução presidencial para que irradiemseus efeitos tanto no plano interno como noplano internacional, uma vez que têm apli-cação imediata no ordenamento jurídicobrasileiro24.

7. Conclusão

Ao fim e ao cabo desta exposição teórica,a conclusão mais plausível a que se podechegar em relação à interpretação do novo §3o do art. 5o da Constituição é a de que essanova disposição constitucional não anulaa interpretação segundo a qual os tratadosinternacionais de proteção dos direitos hu-manos ratificados pelo Brasil já têm statusde norma (materialmente) constitucional emdecorrência da norma expressa no § 2o domesmo art. 5o da Carta Magna de 1988. Ouseja, todos os tratados internacionais de di-reitos humanos em que a República Federa-tiva do Brasil é parte têm índole e nível ma-terialmente constitucionais na exegese do §

2o do art. 5o da Constituição de 1988, masapenas terão os efeitos de equivalência àsemendas constitucionais (ou seja, somenteintegrarão formalmente a Constituição, comtodos os consectários que lhe são inerentes)se aprovados, em cada Casa do CongressoNacional, em dois turnos, por três quintosdos votos dos seus respectivos membros,nos termos do novo § 3o do art. 5o do textoconstitucional brasileiro.

Dessa forma, dizer que os tratados inter-nacionais de direitos humanos ratificadospelo Brasil têm índole e nível de normas cons-titucionais, em virtude do § 2o do art. 5o, daConstituição, não é o mesmo que dizer queeles “equivalem” às emendas constitucio-nais, o que tem um sentido e uma conotaçãomuito mais ampla (por-se tratar de integra-ção formal à Constituição) e, portanto, so-mente será possível com sua aprovação peloquorum estabelecido pelo § 3o do art. 5o, daCarta de 1988. Nesse caso, os tratados dedireitos humanos ratificados pelo Brasil se-rão, além de materialmente constitucionais,também formalmente constitucionais, o queimpede definitivamente a sua denúncia porato do Poder Executivo.

Além de o novo § 3o do art. 5o da Consti-tuição não prejudicar o status constitucio-nal que os tratados internacionais de direi-tos humanos em vigor no Brasil já têm deacordo com o § 2o desse mesmo artigo, eletambém não prejudica a aplicação imediatados tratados de direitos humanos já ratifi-cados ou que vierem a ser ratificados pelonosso país no futuro, consoante a regra do §1o do art. 5o da Constituição, que nem remo-tamente autoriza uma interpretação diver-sa.

A nossa vontade é a de que esse § 3 o, queapenas trouxe imperfeições ao sistema e quecertamente prestará um desserviço à inter-pretação constitucional mais lúcida envol-vendo os tratados de direitos humanos dosquais o Brasil é parte, seja reformado pornova emenda constitucional, que venha con-ter a redação que já propusemos em estudosanteriores, à semelhança da Constituição da

Revista de Informação Legislativa112

Venezuela de 1999, no sentido de apenastrazer uma interpretação autêntica ao § 2o

do art. 5o da Carta de 1988, dizendo que “ostratados internacionais referidos pelo pará-grafo anterior, uma vez ratificados, incor-poram-se automaticamente na ordem inter-na brasileira com hierarquia constitucional,prevalecendo, no que forem suas disposi-ções mais benéficas ao ser humano, às nor-mas estabelecidas por esta Constituição”.

Por ora, como não está à vista uma novareforma constitucional, o que se pode espe-rar, caso os nossos tribunais não entendamda maneira como cremos estar correta ecomo deixamos expresso neste estudo, é quea sociedade civil impulsione um forte movi-mento no Congresso Nacional para a apro-vação em bloco, pela maioria qualificadarequerida pelo § 3o do art. 5o da Constitui-ção, de todos os tratados internacionais dedireitos humanos já ratificados pelo Brasil.

Notas1 São inúmeros os outros argumentos em favor

da índole e do nível constitucionais dos tratados dedireitos humanos no nosso ordenamento jurídicointerno, que preferimos não tratar neste estudo, porjá terem sido detalhadamente estudados em váriosoutros trabalhos sobre o tema, os quais se recomen-da a prévia leitura para a melhor compreensão des-te texto. São eles: (MAZZUOLI, 2000a, p. 179-200;2000b, p. 231-250; 2002a, p. 233-252; 2002b, p.109-176; 2004, p. 357-395). Nesse exato sentido,defendendo o status constitucional e a aplicaçãoimediata dos tratados de direitos humanos, pelainterpretação do § 2 o do art. 5 o da CF, vide também:Trindade (1996a, p. 210 et seq.); e Piovesan, (2002,p. 75-98); em que, pioneiramente, defendeu-se comclareza a hierarquia constitucional e a aplicaçãoimediata desses tratados no direito interno brasilei-ro); e ainda Piovesan (2003, p. 44-48). Tambémdefenderam esta tese, en passant, Silva, (2000, p.195-196); Magalhães, (2000, p. 64 et seq.); e Vello-so, (2004, p. 39).

2 Cf. VELLOSO, 2004, p. 38-39.3 Cf. MAZZUOLI, 1969, p. 359-360; CAMPOS,

1995, p. 282.4 Cf. ARNOLD, 2002, p. 22.5 No Brasil, a tese da supraconstitucionalidade

dos tratados internacionais de direitos humanos émuito bem defendida pelo Prof. Celso D. de Albu-

querque Mello, que se diz “ainda mais radical nosentido de que a norma internacional prevalece so-bre a norma constitucional, mesmo naquele casoem que uma norma constitucional posterior tenterevogar uma norma internacional constitucionali-zada”, tese esta que “está consagrada na jurispru-dência e tratado internacional europeu de que sedeve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano,seja ela interna ou internacional”. Cf. “O § 2 o do art.5o da Constituição Federal”, Torres, (2001, p. 25).

6 Vide, sobre a posição majoritária do STF atéentão – segundo a qual os tratados internacionaisratificados pelo Estado (inclusos os de direitos hu-manos) têm nível de lei ordinária –, o julgamentodo HC 72.131-RJ, de 22.11.1995, que teve comorelator o Min. Celso de Mello, tendo sido vencidosos votos dos Ministros Marco Aurélio, Carlos Ve-lloso e Sepúlveda Pertence. Em relação à posiçãominoritária do STF, destacam-se os votos dos Mi-nistros Carlos Velloso, em favor do status constitu-cional dos tratados de direitos humanos (v. H C82.424-2/RS, relativo ao famoso “caso Ellwanger”,e ainda seu artigo “Os tratados na jurisprudênciado Supremo Tribunal Federal”, já cit., p. 39), e Se-púlveda Pertence, que, apesar de não admitir a hi-erarquia constitucional desses tratados, passou aaceitar, entretanto, o status de norma supralegaldesses instrumentos, tendo assim se manifestan-do: “Se assim é, à primeira vista, parificar às leisordinárias os tratados a que alude o art. 5o, § 2o, daConstituição, seria esvaziar de muito do seu senti-do útil a inovação, que, malgrado os termos equí-vocos do seu enunciado, traduziu uma aberturasignificativa ao movimento de internacionalizaçãodos direitos humanos. Ainda sem certezas sufici-entemente amadurecidas, tendo assim (…) a acei-tar a outorga de força supra-legal às convenções dedireitos humanos, de modo a dar aplicação diretaàs suas normas – até, se necessário, contra a leiordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, acomplementem, especificando ou ampliando os di-reitos e garantias dela constantes” (v. RHC 79.785-RJ. In: Informativo do STF, no 187, de 29.03.2000).

7 Para detalhes, vide Von Simson; Schwarze,(1996, p. 33 et seq.).

8 Em sede jurisprudencial, vale destacar umdos votos precursores em relação ao tema no país,do então Juiz Antonio Carlos Malheiros, proferidono julgamento do Habeas Corpus no 637.569-3, da 8 a

Câmara do 1o Tribunal de Alçada Civil do Estadode São Paulo, em que ficou bem colocado que “osprincípios emanados dos tratados internacionais, aque o Brasil tenha ratificado, eqüivalem-se às pró-prias normas constitucionais”. No mesmo sentido,vide o voto proferido na Apelação no 483.605-0/1do 2o Tribunal de Alçada Civil do Estado de SãoPaulo, 5a Câm., rel. Juiz Dyrceu Cintra, julg. em23.04.97 (voto no 781).

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 113

9 Cf., para um estudo mais amplo do tema,Buergenthal, (1997, p. 216-217); e Fix-Zamudio,(2004, p. 141-180). Aliás, como destaca Fix-Zamu-dio (2004, p. 175): “En los ordenamientos constitu-cionales latinoamericanos se observa una evolucióndirigida a otorgar jerarquía superior, así sea conciertas limitaciones, a las normas de derecho inter-nacional, particularmente las de carácter convenci-onal, sobre los preceptos de nivel interno, inspirán-dose de alguna manera la evolución que se observaen los países de Europa continental con posteriori-dad a la Segunda Guerra Mundial”.

10 Cf. FIX-ZAMUDIO, 1991, p. 173.11 Cf. TRINDADE, 1996, p. 19.12 Estas disposições já são suficientes, segundo

Sandra Morelli Rico, para atribuir um caráter “su-pranacional” aos tratados internacionais em maté-ria de direitos humanos, tendo essa interpretaçãosido reconhecida inclusive pela Corte Constitucio-nal colombiana. Cf. RICO, 2002, p. 208-209.

13 Como leciona Bidart Campos (1995, p. 277-278), o termo “complementares” inserido no inciso22 do art. 75 da Carta Magna argentina reformada,não significa que aqueles instrumentos por ela elen-cados têm hierarquia inferior à Constituição, emuito menos que eles têm mero caráter secundárioou acessório; “complementário” não quer dizer “su-pletório”. “Complementário”, para Bidart Campos,quer dizer que “algo” deve agregar-se a outro “algo”para que este esteja completo. De sorte que aquelesinstrumentos internacionais com hierarquia constitucio-nal conferem completude ao sistema de direitos da Consti-tuição gerando uma dupla fonte: a interna e a inter-nacional, para que só assim o sistema argentino dedireitos esteja abastecido. Do contrário, segundoele (e com absoluta razão, a nosso ver), o textoconstitucional não estará completo. Cf. também,Fix-Zamudio, (2002, p. 524-528).

14 Cf. MAZZUOLI, 2002a, p. 348.15 Nesse sentido, assim já se referia Barral, 1999,

p. 03-04.16 Para um estudo detalhado do processo cons-

titucional de celebração de tratados no Brasil, videMazzuoli, (2004, p. 265-336).

17 Vide, a propósito, Cachapuz de Medeiros(1995, p. 395-398).

18 Cf. MAZZUOLI, 2002a, p. 241.19 Para um estudo detalhado da matéria, vide

Mazzuoli (2002b, p. 160-162).20 Cf., por tudo, Trindade (1997, p. 401-402);

Piovesan (2002, p. 115-120); e Mazzuoli (2002a, p.272-295).

21 Para um estudo do procedimento e das teori-as relativas à denúncia de tratados, vide Mazzuoli(2004, p. 188-198).

22 Cf. nesse sentido, art. 21 da Convenção sobrea Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-

ção Racial (1965); art. 12 do Protocolo Facultativorelativo ao Pacto Internacional dos Direitos civis ePolíticos (1966); art. 78, no 2 da Convenção Ameri-cana sobre Direitos Humanos (1969); art. 31, no 2da Convenção contra a Tortura e outros Tratamen-tos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes(1984); e art. 52 da Convenção sobre os Direitos daCriança (1989).

23 Sobre este assunto, assim lecionava OscarVilhena Vieira (2004, p. 204-205) antes da reformaconstitucional de 2004: “O problema [do § 2o doart. 5o da Constituição, antes da existência do novo§ 3o], no entanto, é que o quorum exigido para aincorporação destes tratados é o de maioria sim-ples, criando assim uma situação paradoxal, ondea Constituição passaria a ser efetivamente emen-dada pelo quorum ordinário. Mais do que isto, oconteúdo dessas emendas se transformaria auto-maticamente em cláusula pétrea. O paradoxo é ain-da mais grave, na medida em que o Presidente daRepública pode, a qualquer momento, denunciar otratado, desengajando a União das obrigações pre-viamente contraídas durante o processo de ratifi-cação. Em última ratio o Presidente estaria autori-zado a desobrigar o Estado do cumprimento dealgo que foi transformado em cláusula pétrea”. Econtinuava: “Com a nova redação, este problemaficou solucionado (parcialmente), tanto do pontode vista político quanto jurídico. Politicamente, nãomais estaremos alterando nossa Constituição pormaioria simples do parlamento. Da perspectivajurídica, estabeleceu-se claramente a posição hie-rárquica daqueles tratados de direitos humanos quehouverem sido aprovados por maioria de três quin-tos das duas casas do Congresso”.

24 Cf. MAZZUOLI, 2002a, p. 253-259; e ainda2004, p. 370-375.

Bibliografia

ARNOLD, Rainer. El derecho constitucional euro-peo a fines del siglo XX: desarrollo y perspectivas.In: MANCHEGO, José F. Palomino; GARBONELL,José Carlos Remotti (Coords.). Derechos humanos yconstitución en Iberoamérica: libro-homenaje a Ger-mán J. Bidart Campos. Lima: Instituto Iberoameri-cano de Derecho Constitucional, 2002.

BARRAL, Welber. Reforma do judiciário e direitointernacional. Informativo Jurídico do INCIJUR, [S.l.], n. 4, nov. 1999.

BUERGENTHAL, Thomas. Modern constitutionsand human rights treaties. Columbia Journal of Trans-national Law, New York, n. 36, 1997.

Revista de Informação Legislativa114

CAMPOS, German J. Bidart. Tratado elemental dederecho constitucional argentino. Buenos Aires: EdiarSociedad Anónima, 1995.

FIX-ZAMUDIO, Héctor. El derecho internacionalde los derechos humanos en las constituciones lati-noamericanas y en la Corte Internamericana deDerechos Humanos. Revista Latinoamericana de De-recho, México, a. 1, n. 1, enero./jun. 2004.

______. La protección procesal de los derechos hu-manos en la reforma constitucional argentina deagosto de 1994. In: MANCHEGO, José F. Palomi-no; GARBONELL, José Carlos Remotti (Coords.).Derechos humanos y constitución en iberoamérica: libro-homenaje a Germán J. Bidart Campos. Lima: Insti-tuto Iberoamericano de Derecho Constitucional,2002.

______. Proteccion juridica de los derechos humanos.México: Comision Nacional de Derechos Humanos,1991.

MAGALHÃES, José Carlos de. O Supremo TribunalFederal e o direito internacional: uma análise crítica.Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A incorporaçãodos tratados internacionais de proteção dos direi-tos humanos no ordenamento brasileiro. Revista deInformação Legislativa, Brasília, a. 37, n. 147, p. 179-200, jul./set. 2000a.

______. Direitos humanos, constituição e os tratadosinternacionais: estudo analítico da situação e aplica-ção do tratado na ordem jurídica brasileira. SãoPaulo: Juarez de Oliveira, 2002a.

______. Hierarquia constitucional e incorporaçãoautomática dos tratados internacionais de prote-ção dos direitos humanos no ordenamento brasilei-ro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37, n.148, p. 231-250, out./dez. 2000b.

______. Prisão civil por dívida e o pacto de San José daCosta Rica: especial enfoque para os contratos dealienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro:Forense, 2002b.

______. Tratados internacionais: com comentários àConvenção de Viena de 1969. 2. ed. São Paulo: Ju-arez de Oliveira, 2004.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito cons-titucional internacional. 5. ed. São Paulo: Max Limo-nad, 2002.

______. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo:Max Limonad, 2003.

RICO, Sandra Morelli. Reconocimiento y efectivi-dad de la carta de derechos contenida en la consti-tución colombiana de 1991. In: MANCHEGO, JoséF. Palomino; GARBONELL, José Carlos Remotti(Coords.). Derechos humanos y constitución en iberoa-mérica: libro-homenaje a Germán J. Bidart Campos.Lima: Instituto Iberoamericano de Derecho Consti-tucional, 2002.

SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poderpopular: estudos sobre a Constituição. São Paulo:Malheiros, 2000.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A intera-ção entre o direito internacional e o direito interno naproteção dos direitos humanos: a incorporação dasnormas internacionais de proteção dos direitos hu-manos no direito brasileiro. 2. ed. Costa Rica; Brasí-lia: IIDH, 1996a.

______. Direito internacional e direito interno: suainteração na proteção dos direitos humanos. In:SÃO PAULO (Estado). Procuradoria Geral do Es-tado. Instrumentos internacionais de proteção dos direi-tos humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Pro-curadoria Geral do Estado, 1996b.

______. Tratado de direito internacional dos direitoshumanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.v. 1.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Os tratados najurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Re-vista de Informação Legislativa, Brasília, a. 41, n. 162,abr./jun. 2004.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Que reforma?. EstudosAvançados, São Paulo, v. 18, n. 51, maio/ago.2004.

VON SIMSON, Werner; SCHWARZE, Jorge.Integración europea y ley fundamental: mastriquey sus consecuencias para el derecho constitucionalalemán”. In: BENDA, Ernst et al. Manual de derechoconstitucional. Madri: Marcial Pons Ediciones, 1996.