Linguagem do sebastianismo E Messianismo em Bandarra e Fernando Pessoa

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LINGUAGEM DO SEBASTIANISMO E MESSIANISMO EM BANDARRA E FERNANDO PESSOA Rui Dias Guimarães Centro de Estudos em Letras – CEL Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - Portugal [email protected] A religião é a única poesia verdadeira (Teixeira de Pascoaes) RESUMO O rei português D. João III (1502-1557) teve nove filhos, e em 1554 morrera o último deles, deixando a princesa viúva, grávida de nove meses. Por volta de 1530 começaram a circular as Profecias de Bandarra que aludiam ao rei Desejado. Dezoito dias após a morte do Príncipe seu pai, nascera D. Sebastião (1554-1578). Foi aclamado rei com três anos e meio de idade. Mas foi sol de pouca dura. Com vinte e quatro anos, o jovem rei D. Sebastião morrera na batalha de Alcácer Quibir, em 1578. As Profecias de Bandarra, escritas por Gonçalo Annes Bandarra (1500- 1556) sapateiro de Trancoso, assentam em profecias bíblicas do Antigo Testamento. Foram editadas pela primeira vez em Paris, em 1603, após a morte de D. Sebastião, já com a perda da independência para Espanha. Nascera o sebastianismo como mito messiânico, o de um rei Desejado. Restaurada a independência de Portugal em 1640, volta a surgir uma edição em 1644, publicada em Nantes. Edições com ligeiras alterações que se sucederam até ao séc. XVIII. A linguagem da comunicação profética visa passar uma intenção (Journet, N. : 1991, 57) num texto com um tipo de construção própria (Van Dijk, T. A.: 1978, 142) em que a macroestrutura é o conteúdo do texto (idem, ibidem), no discurso humano (Todorof, T.: 62),

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LINGUAGEM DO SEBASTIANISMO E MESSIANISMO EM

BANDARRA E FERNANDO PESSOA

Rui Dias GuimarãesCentro de Estudos em Letras – CEL

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - Portugal

[email protected]

A religião é a única poesia verdadeira

(Teixeira de Pascoaes)

RESUMO

O rei português D. João III (1502-1557) teve nove filhos, e em

1554 morrera o último deles, deixando a princesa viúva, grávida de

nove meses. Por volta de 1530 começaram a circular as Profecias de Bandarra

que aludiam ao rei Desejado. Dezoito dias após a morte do Príncipe seu

pai, nascera D. Sebastião (1554-1578). Foi aclamado rei com três anos

e meio de idade. Mas foi sol de pouca dura. Com vinte e quatro anos, o

jovem rei D. Sebastião morrera na batalha de Alcácer Quibir, em 1578.

As Profecias de Bandarra, escritas por Gonçalo Annes Bandarra (1500-

1556) sapateiro de Trancoso, assentam em profecias bíblicas do Antigo

Testamento. Foram editadas pela primeira vez em Paris, em 1603, após a

morte de D. Sebastião, já com a perda da independência para Espanha.

Nascera o sebastianismo como mito messiânico, o de um rei Desejado.

Restaurada a independência de Portugal em 1640, volta a surgir uma

edição em 1644, publicada em Nantes. Edições com ligeiras alterações

que se sucederam até ao séc. XVIII.

A linguagem da comunicação profética visa passar uma intenção

(Journet, N. : 1991, 57) num texto com um tipo de construção própria

(Van Dijk, T. A.: 1978, 142) em que a macroestrutura é o conteúdo do

texto (idem, ibidem), no discurso humano (Todorof, T.: 62),

caracterizando o género profético, numa dimensão escatológica voltada

para o futuro (Ricoeur, G.: 534), na união entre escatologia e

profetismo (Le Goff, J.:1984: 428) no escháton ou acontecimento final

(Haddad: 1981:5). Os símbolos e o método alegórico são profusamente

utilizados (Elíade, M. : 1954, 10-11) e a definição do homem como

animal simbólico (Coseriu, E.: 1985, 71) quando a mente explora um

símbolo, é conduzida para algo que está fora do alcance da nossa razão

(Jung: 1964, 20-21) que o eleva para o transcendente. Alguns símbolos

das Profecias de Bandarra foram colhidos na Bíblia, Antigo Testamento, com

a construção de uma linguagem simbólica de alegorias. Fernando Pessoa

considera Bandarra um autor colectivo e tomou a liberdade de criar um

Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra mantido inédito no espólio e,

juntamente em Mensagem, emerge o mito universal do sebastianismo

messiânico com o mito do Quinto Império e o símbolo da pomba nos

poemas místicos Gládio e Além-Deus.

PALAVRAS-CHAVE: Filologia, símbolo, signo e lesisigno, linguagem da

comunicação profética, sebastianismo, messianismo, Bandarra, Fernando

Pessoa.

THE LANGUAGE OF SEBASTIANISM AND MESSIANISM IN BANDARRA AND FERNANDO PESSOA

ABSTRACTThe Portuguese King D. João III (1502-1557) had nine sons, the last ofwhom died in 1554, leaving a widowed princess who was then nine monthspregnant. Around 1530, the Profecias de Bandarra, which alluded to theDesired king, was gaining currency. Eighteen days after the death ofhis father (the Prince), D. Sebastião (1500-1578) was born. He wasacclaimed king at the age of three and a half, but he did not lastlong. At twenty-four, the young D. Sebastião died in the battle ofAlcácer-Quibir, in 1578.The Profecias de Bandarra, written by Gonçalo Annes Bandarra (1500-1536), ashoemaker from Trancoso, was based on the Biblical prophesies of theOld Testament. It was first edited in Paris in 1603, after the deathof D. Sebastião, at a time when Portugal had already lost her

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Independence to Spain. Sebastianism had been born with a messianicmyth, that of the Desired king.With the restoration of Portuguese independence in 1640, there wasanother edition in 1644, published in Nantes. There was a successionof slightly altered editions up to the 18th century.The language of prophetic communication aims at conveying an intention(Journet, N.: 1991, 57) in a text sui generis (Van Dijk. T. A.: 1978,142) in which the macro-structure is the content of the text (idem,ibidem). Symbols and the allegorical method are profusely utilized(Eliade, M.: 1954, 10-11) and the definition of man as symbolic animal(Coseriu E.: 1985) when the mind explores a symbol, leads to somethingwhich is beyond the reach of our reason (Jung: 1964, 20-21) whichraises it to the transcendental.The prophetic vein is part of the poetic vein of Portuguese literatureand culture. Some of the symbols of Profecias de Bandarra were drawn fromthe Old Testament the Bible, and incorporated through the constructionof the symbolic language of allegories.Fernando Pessoa considers Bandarra as a collective author and took theliberty to create a Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra which has remainedunpublished. Four centuries after its debut, Profecias de Bandarracontinues to exude prophetic and messianic life and, alongsideMensagem, to explore messianic Sebastianism linked to the myth of theFifth Empire. Fernando Pessoa thus takes up the mystique and symbol ofthe dove in Gládio and Além-Deus.

Key Words: Philology, symbols, language of prophetic communication,sebastianism, messianism, Bandarra, Fernando Pessoa

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TÌTULO: LINGUAGEM DO SEBASTIANISMO E MESSIANISMO EM BANDARRA E

FERNANDO PESSOA

ÍNDICE

Resumo/abstract……………………………………………………………………………………….1

1. Introdução…………………………………………………………………………………………4

2. A Linguagem da Comunicação Profética e o género

profético…………………………………………………………………………………………...5

2. 1. As Profecias de Bandarra………………………………………………………………………8

3. 2. Linguagem, estrutura, aspectos semânticos e

significado…………………………………….10

4. Sebastianismo como mito universal em Fernando Pessoa……..

………………………………..14

5. Conclusão……………………………………………….……………………………………….19

Referências bibliográficas.……………………………………………………………………………21

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1. INTRODUÇÃO

Portugal elegeu para seu grande herói nacional, um

poeta – Luís de Camões. Poeta, navegador, soldado. Outros

povos elegeram outro tipo de heróis. Na literatura e

cultura portuguesa fundem-se, por vezes, poesia e profecia.

A poesia da profecia e a profecia da poesia.

Portugal, considerado, por alguns, o mais antigo país

da Europa com as fronteiras definidas, é um país ibérico.

Foi espaço de diversas migrações de povos e de invasões,

começando por referir os celtas, por volta do séc. V a.C. e

a origem dos celtiberos, os romanos no séc. III a.C., a

diáspora judaica após a destruição de Jerusalém em 70 d. C

e os imigrantes judeus com maior ou menor fixação de

semitas, e outras posteriormente, as invasões dos suevos e

visigodos e, por fim, a invasão árabe.

Ao caldeamento histórico-cultural não ficou,

certamente, alheio, o povo português e diversas marcas

culturais ficaram profundamente gravadas, desde as

linguísticas, simbólicas, míticas e místicas; como fôrma de

vários registos que deu formas ou expressões exteriores,

fez nascer o fervoroso cristianismo de santos-guerreiros de

cariz celta, o cristianismo popular português também de

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raiz celta, origens bíblicas do Antigo e do Novo

Testamento, expressões de sentimentos bíblicos como o

messianismo judaico-cristão, aspectos de arturianismo,

expressões de sentimentos bíblicos medievais, como o

joaquimismo do abade Joaquim da Fiori, que assenta no

milenarismo apocalíptico, ou do espanhol Santo Isidoro,

arcebispo de Sevilha, profecias que já falam no encoberto.

Na cultura portuguesa desenvolveu-se o mito do

sebastianismo e do encoberto de contornos messiânicos, com

uma expressão linguística de léxico simbólico, e formas que

pretendemos estudar, de Bandarra (1500-1556) a Fernando

Pessoa (1888-1935).

A data do achamento do Brasil pelos portugueses foi em

1500. O rei D. João III teve nove filhos. Em 1554 morrera o

último deles, o Príncipe D. João que deixara a princesa

grávida de nove meses com o Desejado no ventre. E o Desejado

nasceu, dezoito dias após a morte do Príncipe seu pai.

Nasceu o neto varão do rei D. João III, D. Sebastião.

A esperança em D. Sebastião, o Desejado, desvaneceu-se na

batalha de Alcácer Quibir, em 1578, com a morte do jovem

rei de vinte e quatro anos e a perda da independência para

Espanha. A partir das anteriores Profecias de Bandarra nasce

uma nova dimensão, o sebastianismo messiânico, após a morte de

D. Sebastião.

Morreu D. Sebastião e nasceu um mito, o sebastianismo.

A sua vida mítica talvez o torne o rei mais imortal de

Portugal.

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A natureza do problema que pretendemos observar e

formalizar prende-se com o messianismo nas Profecias de

Bandarra que começaram a circular por volta de 1530, antes

do nascimento de D. Sebastião, em cópias quase panfletárias

e que depois conheceram diversas edições, algumas com

alterações segundo os interesses políticos e religiosos,

até ao messianismo sebastianista, quatro séculos depois, em

Mensagem de 1935 de Fernando Pessoa, ou mesmo num

documento mantido inédito no espólio pessoano, pouco

conhecido, que intitulou Terceiro Corpo das Profecias de Gonçalo

Annes Bandarra e também em poemas profundamente místicos como

Gládio e Além-Deus.

Como trabalho prévio, consideramos as diferentes

edições das Profecias de Bandarra e as influências exercidas

pela Bíblia, sobretudo as profecias do Antigo Testamento

(edição dos Franciscanos Lisboa/Fátima e aspectos do Codex

Sinaiticus). Quanto às Profecias de Bandarra, fixamo-nos na edição

do Porto de 1886 e no aumento acrescentado por Fernando

Pessoa.

É também nosso propósito observar os textos numa

perspectiva imanente e isenta, o léxico e linguagem

simbólica no discurso profético, não deixando de emitir

algumas considerações e estabelecer relações intertextuais,

transtextuais ou simbólicas.

2. A LINGUAGEM DA COMUNICAÇÃO PROFÉTICA E O GÉNERO

PROFÉTICO.

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Importa tecer umas breves considerações teórico-

metodológicas sobre a linguagem da comunicação profética e,

desde já, relacionar a linguagem profética com o discurso e

o género. Segundo Todorov, os géneros literários têm origem

no «discurso humano» (Totorov: 1981, 62).

Na teoria do signo linguístico, Pierce concebe signo

segundo o que representa ou refere, comunica e cria outro

signo como interpretante do primeiro, não em todos os

aspectos mas só com referência a uma ideia específica, grau

de proximidade e relações do que representa ou evoca.

Concebe um tipo de signo que designa por lesisigno,

com força comunicativa e que engloba o símbolo. O lesisigno,

«el signo representa una ley, un hábito de tipo general (terceiridade). A

brancura representando pureza» (Pierce: 1978:228).

Pierce define símbolo, «como un signo que es determinado por

su objeto dinámico solamennte en el sentido de que así será interpretrado. Por

lo tanto, depende de una convención, de un hábito, o de una disposición

natural de su interpretante (el campo del cual el interpretante es una

determinación). Todo Símbolo es necesariamente un lesisigno; seria inexacto

llamar Símbolo a la réplica de un lesisigno.» (Pierce: Idem, ibidem).

Este conceito é interessante para relacionar a linguagem

alegórica, o discurso e a comunicação simbólica.

Contudo, o símbolo intervém em mitos numa linguagem

alegórica e universal. Para Mircea Eliade, «segundo os estóicos,

os mitos revelam visões filosóficas sobre a natureza profunda das coisas, ou

contêm lições de moral. Os múltiplos nomes dos deuses designam uma só

divindade, e todas as religiões exprimem a mesma verdade fundamental: só

varia a terminologia. O alegorismo estóico permite a tradução, numa

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linguagem universal e facilmente compreensível, de qualquer tradição antiga

ou exótica. O seu sucesso foi considerável, e o método alegórico

frequentemente utilizado desde então» (Eliade: 1954, 10-11).

As Profecias de Bandarra estão repletas de símbolos ou de

lesisignos na acepção de Pierce, e parte da sua estrutura

simbólica está organizada em sonhos. Como afirma Jung,

«uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além

do seu significado manifesto imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um

aspecto “inconsciente”, mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de

todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la.

Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do

alcance da nossa razão»…«o homem também produz símbolos, inconsciente e

espontaneamente, na forma de sonhos.» (Jung: 1964, 20-21).

Considerando o símbolo como um tipo de signo, o

lesisigno, ele encerra também uma força comunicativa na

acepção de Pierce, e segundo o conceito de discurso e de

género de Todorov, modeliza e caracteriza o género

profético que assume particular importância para o estudo

da linguagem da comunicação profética.

Segundo esta articulação, afirma Luís Carmelo: «Daí que

possamos operacionalmente pensar uma noção de género a partir de um

conjunto de lesisignos, mais ou menos estáveis, que condicionam a

interpretação de formas arquétipas e reconhecíveis de actos de fala, no seio de

uma dada comunidade. Nessa medida, é possível caracterizar o género

profético como uma amálgama de discursos discursivos, modalizados durante

séculos nas suas dominantes expressivas e de conteúdo» (Carmelo, L.:

1993, 2).

9

Mais que debruçadas sobre a língua em si mesma, as

novas ciências da linguagem chamam a sua atenção mais ao

uso e à intenção que nós fazemos dela, incluindo a

linguagem simbólica. Para elas, «signifier c´est s´appuyer sur une

situation, et comuniquer, c´est faire passer une intention» (Journet, N.:

1991, 57) daí considerarmos pertinentes as especificidades

intrínsecas à linguagem da intenção da comunicação

profética.

Segundo as diferentes tipologias textuais, diferentes

são as intenções de comunicação, incluindo a linguagem do

discurso do género profético: «Estes diferentes tipos de textos se

diferencian todos entre si, no solo por sus diferentes funciones comunicativas y,

por ello también, por sus funciones sociales, sino que además poseen

diferentes tipos de construcción.» (Van Dijk, T. A.: 1978, 142).

A linguagem da comunicação profética, como um conjunto

de símbolos ou lesisignos caracterizadores do género

profético inclui, por um lado, a parénese como exortação do

domínio da moral, a condenação e denúncia de injustiças e

de crueldades e prescrição de deveres; por outro.

Os diferentes tipos de textos estão ligados à sua

específica função comunicativa social, implicando a sua

própria construção, criando diferentes tipos de estruturas,

super-estruturas e estruturas globais que caracterizam o

tipo de texto, como é o caso da profecia, «para decirlo

metaforicante: una superstructuta es un tipo de forma del texto, cuyo objecto,

el tema, es decir: la macroestructura es el contenido del texto. Se debe

comunicar, pues, el mismo sucesso en diferentes “formas textuales” según el

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contexto comunicativo» (Idem, ibidem). Surgem tipos textuais de

comunicação profética.

A comunicação profética abre visões de futuro no

sonho, no onírico, no sagrado, no divino, uma projecção

escatológica na narração apocalíptica ou mesmo póstuma das

almas e uma visão de futuro. A escatologia, ao abrir a

visão da profecia, transgride a narrativa mas abre visões

de futuro, como afirma Jacques Le Goff, «escatologia e

profetismo uniram-se muitas vezes, estabelecendo uma relação entre a

primeira fase do fim dos tempos e a história presente e imediatamente futura»

(Le Goff, J.: 1984: 428). É o que se pode observar nas

Profecias de Bandarra.

As relações entre escatologia e profetismo tornam-se

possíveis, porque a linguagem é uma actividade simbólica e

o homem um animal simbólico, (Coseriu, E.: 1985, 71).

Estes dois aspectos, aliados a parábolas, alegorias e

metáforas, mais simples e de entendimento popular e também

aos simbolismos e enigmas, com encaixes históricos à espera

de revelação, mais ocultos; de cariz mais culto e erudito,

hermético e evocativo, constituem a base da linguagem da

comunicação profética.

De entre as diferentes profecias e simbologias,

interessa-nos particularmente focar as Profecias do Bandarra

que em muitos aspectos cruciais se articulam com o mito do

sebastianismo e o messianismo.

2.1. AS PROFECIAS DO BANDARRA.

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Gonçalo Annes de Bandarra (1500-1556) foi um poeta

popular de Trancoso, cidade portuguesa do distrito da

Guarda, na sub-região da Beira Interior Norte, onde nasceu

e morreu. Era sapateiro de profissão.

Na época, Trancoso era uma comunidade com um peso

acentuado de cristãos-novos. As suas trovas, de cariz

profético e messiânico, foram proibidas pela Inquisição,

acusado de judaísmo, mas continuaram a circular

manuscritas.

Bandarra foi julgado pela Inquisição em 1541, devido à

publicação das Profecias que circulavam manuscritas. Podemos,

portanto, situá-las nas décadas de 1520-1540.

Para além das suas raízes profundas, o medievismo

também se terá reflectido nas profecias de Bandarra,

sobretudo o milenarismo e o profetismo no advento da Idade

do Espírito Santo, universal e de directa inspiração

divina, do italiano Joaquim da Fiori (1132-1202) abade

cistercense; e do castelhano Santo Isidoro (560-636) bispo

visigodo de Sevilha cujas profecias terão sido passadas a

verso por Fr. Pedro Frias e que referem a figura do

Encoberto, «un rey que non se descubre» (Azevedo, J.

L.:1984, p. 18) ou do alquimista fransciscano francês Jean

de Roquetaillade (séc. XIV) mais conhecido em Portugal por

João de Rocacelsa cujas coplas incluem alegorias de

pastores, vacas, etc e também a figura do Encoberto (Idem,

pp. 20-21).

As Profecias de Bandarra são contemporâneas e, de certo

modo, coetâneas, da Utopia (1516) de Thomas More (1478-1534)

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- que foi executado por Henrique VIII nesse ano de 1534 e

depois canonizado santo pela Igreja Católica - e também

podem ser consideradas contemporâneas e coetâneas de Os

Lusíadas (1556) de Luís de Camões (1524-1580), provavelmente

concluídos em 1556 e publicados pela primeira vez em 1572.

Após terem circulado manuscritas, foram editadas

postumamente em 1603, em Paris, por D. João de Castro,

Vice-Rei da Índia um dos mais importantes homens de ciência

do século XVI, com o título Paráfrase e Concordância de Algumas

Profecias de Bandarra.

As Trovas foram bem recebidas pelos nacionalistas

portugueses que ansiavam por se libertarem do domínio

espanhol. Viram nestas profecias o regresso do Rei D.

Sebastião. As profecias, difundindo-se nas camadas cultas e

populares, vieram a iniciar o mito do sebastianismo.

Em 1644, quatro anos após a Restauração da

Independência de Portugal, sai uma segunda edição mais

completa, publicada em Nantes, com o título Trovas do Bandarra

apuradas e impressas por ordem de um grande senhor de Portugal, oferecidas

aos verdadeiros portugueses devotos do Encoberto.

Esta edição de Nantes tem o patrocínio de D. Vasco

Luís da Gama, Embaixador de Portugal em Paris, sendo

considerada o modelo das posteriores edições. Voltam a ser

proibidas pela Inquisição em 1661 e pela Real Mesa Censória

em 1768.

Sai nova edição em 1802, em Nantes, patrocinada pelo

Marquês de Nisa. Em 1809 conheceram uma reimpressão, em

13

Barcelona e Londres. Portugal outra vez invadido, agora

pelos franceses. Outra crise.

Em 1815, dois anos antes da Revolução Liberal iniciada

no Porto, conheceram uma nova edição com o título Trovas

Inéditas de Bandarra. Surge uma outra edição entre 1822-1823,

com o título Verdade e Complemento das Profecias, quando surgiu a

primeira Constituição Portuguesa. A obra que serve de base

ao nosso estudo parte da edição do Porto de 1866.

Contudo, Fernando Pessoa, no século XX, sem data

assinalada, acrescenta-lhe uma parte de sua autoria,

intitulada Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra. Este aspecto,

ainda não muito divulgado, está incluído no espólio e foi

descoberto nos inéditos.

2.2. LINGUAGEM, ESTRUTURA, ASPECTOS SEMÂNTICOS E

SIGNIFICADO.

Em breves traços gerais, as Profecias de Bandarra, Sapateiro

de Trancoso, constam de trovas no total de 159 estrofes

heteromórficas que vão de um a dezasseis versos, sendo a

sua maioria quadras e quintilhas, conferindo-lhe um cunho

popular.

São introduzidas por uma dedicatória a D. João de

Portugal, bispo da Guarda. Apresentam uma estrutura com uma

introdução inicial e uma divisão em três sonhos. Essa

introdução: «Sente Bandarra/As maldades do mundo/E particularmente/As

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de Portugal» apresenta uma identificação com os profetas

bíblicos.

É uma característica dos profetas criticar os males do

mundo e as injustiças, por isso foram perseguidos, e ter

uma visão redentora e de esperança para a humanidade,

através de visões ou sonhos, numa dimensão escatológica.

A introdução inclui onze estrofes, todas quadras. É a

visão da sociedade e do clero, fortemente crítica, com

recurso a um léxico próprio das artes dos cortumes, as

«alcaçarias» e sapataria.

Comparações onde denuncia o uso de simonias e adoração

do dinheiro, o tráfico de coisas sagradas, a existência de

maus noviços na ordem episcopal, as injustiças «sem haver

chefe que mande», uma visão crítica e apocalíptica.

Inspiram-se na Bíblia, no Antigo Testamento, sobretudo

nos profetas Daniel, Isaías e Jeremias, a retoma da

tradição apocalíptica messiânica judaico-cristã.

Pode entender-se como mensagem de subtexto a linha de

força do sebastianismo e da Restauração Portuguesa, dado

estar Portugal sob o domínio castelhano.

Nas suas linhas gerais, o sonho primeiro inclui

visões, mesmo a «Semente d´El-Rei Fernando», uma grande

sementeira genética e de linhagem, que poderá ser entendida

como D. João IV, que viria a ser o rei da Restauração da

Independência em 1640.

O sonho desenrola-se em sucessivas alegorias pastoris,

alusões bíblicas, à vinda messiânica do rei de Jerusalém

(estrofe 20), implicitamente aliada a D. Sebastião, as

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alegorias dos pastores, das ovelhas e dos lobos e a alusão

ao Pastor Mor (estrofe 22), uma analogia bíblica com o

Genesis onde Deus é chamado de Pastor Mor.

Sucede-se a profecia da vinda do Grande Pastor

(estrofe 25), alusão à conversão dos judeus ou aos filhos

dos judeus que D. Manuel ordenou que retirassem aos pais e

fossem educados por católicos (estrofe 33), as diferentes

personagens, figuras do sonho, são pastores. Celebra-se uma

grande festa e um bailado pastoril que termina com um

jantar.

Da estrofe 60 à 66 aludem as Profecias aos grandes

inimigos reais e, de certo modo, transcendentes, com

símbolos ou lesisignos dentro das alegorias num discurso

característico do género profético, dos pastores e dos

lobos, inimigos aliados de Castela, simbolizados na sua

expressão máxima pelo «grão Porco selvagem» (estrofe 66) que

pretendia iniciar a batalha. Este símbolo ou lesisigno, na

época, evocava a impureza,

É também uma referência aos conflitos no oriente, nas

Índias, onde os grandes inimigos dos portugueses eram os

turcos e os egípcios que rivalizavam no comércio, «Nenhum

porco roncará/Nenhum lobo uivará/ Senão por vosso querer/», afirmam as

Profecias, encerrando-se o sonho primeiro e o diálogo entre

as personagens.

Com o subtítulo «Prognostica o autor os males de Portugal, canta

suas glórias com a aclamação do na Encoberto», entra em cena o

narrador e uma figura nova, o Encoberto.

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A exaltação de Portugal, do seu poder ultramarino e de

um império universal, com a vinda de um Rei superior

(estrofes 68-71) adensa o mistério do Encoberto.

A ideia do rei desejado, o rei «da justiça e da grandeza»,

«o Rei das passagens/Do Mar, e sua riqueza/» (estrofe 7) cruza-se com

os Livros Proféticos da Bíblia, Antigo Testamento, neste

caso a leitura do profeta Isaías, da «Glória da nova Jerusalém»

em que as riquezas viriam para o povo de Deus (Isaías,

60:5) e a vertente da Restauração da Independência de

Portugal. Pode-se, indirectamente, identificar D. Sebastião

(estrofe 72) e a legitimidade da Restauração e da ascensão

ao trono da Dinastia de Bragança, como viria a acontecer.

Inclui outro símbolo, o Leão: «Já o Leão é experto/Mui

alerto./Já acordou, anda caminho./Tirará cedo do ninho/O porco, e é mui

certo./Fugirá para o deserto, Do Leão e seu bramido,/Demonstra que vai

ferido/Desse bom Rei Encoberto./» (estrofe 75).

O Leão é um símbolo da tribo judaica dos reis

davídicos. No entanto, nestas Profecias, obrigará todos os

povos a um Império Universal Cristão ou judaico-cristão ou

a um Império do Espírito Santo, à conversão universal

(estrofes 75 a 81).

Bandarra introduz duas personagens novas, os judeus

Fraim e Dão que anunciam as profecias do Encoberto

(estrofes 82 - 86) e novamente com ligações bíblicas: «O Rei

novo é alevantado,/ já dá brado;/ já assoma a sua bandeira/Contra a Grifa

parideira,» estrofe 87).

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A «Grifa parideira» é um símbolo bíblico parecido com

um leão com asas de águia que, de certo modo, representa o

1º império da Babilónia (Daniel, 7: 4).

Cruza esta estrofe messiânica com a estrofe seguinte

que faz alusão à Restauração e a conjura dos quarenta

fidalgos «Saia, saia esse infante/Bem andante/, seu nome é D. João,/». É,

claramente, D. João IV, Duque de Bragança.

Nas estrofes seguintes, apresenta os turcos como os

grandes inimigos dos portugueses no séc. XVI. Com um

aspecto judaico-cristão, defende os cristãos-novos e o Rei

português: «As chagas do Redentor,/E salvador/são as armas do nosso

Rei/».

No «Sonho Segundo» anuncia a paz mundial e a vitória

do símbolo do «Leão» contra a «Grifa parideira».

No discurso do género profético, com a «amálgama dos

registos discursivos modalizados durante séculos» cruza

novamente o discurso bíblico messiânico com o discurso

político da Restauração da Independência, como uma profecia

e apresenta o Rei D. João IV como semente do Rei D.

Fernando (estrofes 94-100).

Legitima a Restauração e o Rei D. João IV: «Porque é Rei

de Direito;/Deus o fez todo perfeito/Dotado de perfeição./» (estrofe 101),

numa alusão velada ao milagre de Ourique em que D. Afonso

Henriques teve unção divina, logo extensiva a todos os

futuros reis de Portugal.

A profecia da conversão universal, da paz universal e

do Quinto Império, com o fim das heresias e fantasias, em

que o «Leão» vence o «porco selvagem» nas Profecias de Bandarra,

18

tem uma ligação messiânica ao mito sebastianista do

Desejado.

E pergunta Bandarra: «Com que prova o sapateiro/fazer isto

verdadeiro?/». Responde que esse conhecimento se obtém, «se

lerdes as Profecias/De Daniel e Jeremias/Por Esdras o podeis ver./» (estrofes

107-108). Alusão explícita aos grandes profetas bíblicos do

Antigo Testamento.

O «Sonho Terceiro» contém uma linguagem directa e

inclui 55 estrofes, na maioria quadras. É de cariz

profundamente judaica e messiânica. Sonha «que os mortos

ressuscitavam»…«e tornavam a renascer» (estrofes 109-110), vinham

de «trás os rios escondidos»…«fora daquela prisão» (estrofe 111).

Apresenta o retorno das tribos de Israel (das

estrofes112-117) : «Vi a Tribo de Deão/Com os dentes

arreganhados;/Sonhava, que eram saídos/Fora daquela prisão./» (estrofe

112) apresentando uma sequência de tribos renascidas e

retornadas.

Um velho perguntou a Bandarra se ela era hebreu, e

respondeu: «senhor, não sou dessa gente,/Nem conheço esses tais./»

(estrofe 119).

Negou ser cristão-novo e afirmou ser português: «Mas

segundo os sinais/Vós sois do povo cerrado,/Que dizem estar ajuntado/Nessas

partes orientais./» (estrofe 120).

E continuaram as perguntas: «Dizei-me, nobre barão,/Pergunto,

se sois contente,/Dizer-me vossa semente/Se é da casa de Abraão?» (estrofe

123). E respondeu: «Que eu sam dessa geração/Saí da tribo de

Levi,/Sacerdote como Heli,/O meu nome é Arão./».

19

É uma alusão directa ao messianismo do Antigo

Testamento, o facto de o rei ser descendente da casa de

Abraão, que saiu da tribo de Levi. Uma alusão à casa de

David e aos Levitas.

Entretanto o narrador acorda do seu terceiro sonho e

foi ver as Escrituras, onde encontrou tudo escrito.

Na última parte, «Resposta do Bandarra a algumas perguntas que

lhe fizeram,/e da resposta delas se conhecem quais foram./», afirma que

se baseia nas profecias «De Daniel e Jeremias,/ nas quais agora

entramos./.» (estrofe 131) «E um só Deus será conhecido». (estrofe

132).

A narrativa do género profético prossegue com as

amálgamas de registos discursivos e transgressão narrativa

escatológica. É no livro do profeta Daniel que se

interpreta o sonho do rei da Babilónia onde aparecem os

cinco tempos ou impérios da humanidade, até ao surgimento

do Quinto Império que será posteriormente desenvolvido por

Fernando Pessoa (Daniel, 7: 26 e 7: 27).

Alerta para os perigos da Inquisição: «Convosco falo estas

cousas,/Como com um grande letrado,/As umas são perigosas,/E as outras

perigosas,/E as outras duvidosas/Ainda não hão começado.» (estrofe

133).

Antes de retomar o tema do retorno das tribos de

Israel (estrofe 135), apresenta o tema das eras, dos tempos

e do Império Universal: «Antes destas cousas serem/Desta era que

dizemos,/Muitas grandes cousas veremos,/Quais não viram os que

viveram,/Nem vimos nem ouviremos.» (estrofe 134).

20

Em seguida, nas Profecias apresentam uma projecção

escatológica, vem a alusão à tragédia do fim dos tempos,

aspectos de milenarismo e apocalipse (estrofe 136-141) com

uma alusão a Isaías: «Dizem, que nos últimos dias,/Que aquestas cousas

serão,/A vinte e quatro acharão/este dito de Isaías/» (estrofe 139) «Não

deve a terra tremer/Mas fundir-se sem tardança,/Pois os que têm a

governança/Os não querem defender./» (estrofe 141).

Profetiza, em seguida, a vinda de um Rei humano que

vencerá o monstro: «Vejo um grande Rei humano/Alevantar sua

bandeira,/Vejo como por peneira/A Grifa morrer no cano./» (estrofe 145)

ajudado por outros: «Este guardará a Lei/De todas as

heresias,/Derrubará as fantasias/Dos que guardam, o que não sei./»

(estrofe 151) que poderá ser interpretado como uma era nova

ou a era do Quinto Império.

Termina Bandarra, afirmando basear-se nas profecias de

Daniel e Jeremias, profetas do Antigo Testamento: «Tudo

quanto aqui se diz,/Olhem bem as profecias/De Daniel e Jeremias,/Ponderem-

nas de raiz./» (estrofe 158).

Em nosso entender, no discurso da narrativa profética,

transgredido pela intercalação escatológica, quatro

registos discursivos interligados são relevantes e se

entrelaçam ou amalgamam, neste terceiro sonho das Profecias de

Bandarra:

- o discurso de aspectos messiânicos judaico-cristãos de

inspiração bíblica;

- o discurso do mito do sebastianismo relacionado com a

Restauração da Independência de Portugal e um império

global transoceânico;

21

- o discurso de aspectos milenaristas e escatológicos

relacionados com o fim dos tempos, de inspiração bíblica;

- o discurso de aspectos proféticos e messiânicos

relacionados com novas eras ou o Quinto Império, de

inspiração bíblica.

3. SEBASTIANISMO COMO MITO UNIVERSAL EM FERNANDO PESSOA

Iremos, neste capítulo, observar como o sebastianismo

e o messianismo se manifestaram em Fernando Pessoa, tendo

por base três documentos pessoanos: O Terceiro Corpo das

Profecias de Gonçalo Annes Bandarra; ou seja, um inédito do

espólio de Pessoa, ainda pouco conhecido, cujo autor

referiremos por Pessoa-Bandarra, alguns aspectos de

Mensagem e os poemas místicos Gládio e Além-Deus.

É sabida a ligação, no século XVII, do Padre António

Vieira às Profecias de Bandarra e à ideia de Quinto Império, à

consolidação da Restauração da Independência de Portugal e

do Império, em 1640, à primeira globalização

intercontinental e transoceânica.

As Profecias foram inicialmente manuscritas no século

XVI, sofreram algumas alterações no século XVII na edição

de Nantes, abriram-se mais ao mito do sebastianismo, e eis

que Fernando Pessoa, já no século XX, lhe acrescenta uma

parte, com o título Terceiro Corpo das Profecias de Gonçalo Annes

Bandarra.

22

A estrutura do Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra,

redigido por Pessoa, consta de uma apresentação em prosa

seguida de uma introdução de sete quadras e seis sonhos. A

estrutura em sonhos, à semelhança de Gonçalo Bandarra e das

profecias bíblicas, como as do profeta Daniel, são, na

totalidade, 34 quadras.

Afirma Pessoa-Bandarra na introdução assinada com o

seu nome próprio:

«Neste terceiro corpo das suas Trovas aplica-se o Bandarra a desvendar

misteriosamente grandes movimentos das nações, culminâncias da

civilização. De todos os corpos de que se compõem as profecias de

Bandarra, é este o mais ordenadamente disposto, em seus seis sonhos e a

introdução que os abre.

É de notar que nos outros corpos das trovas, Bandarra se ocupa de factos

nítidos, precisos, concretos, sempre, é claro, de importância para o país,

não sempre porém os de mais importância, porque há movimentos

aparentemente obscuros em as nações que, por vezes, têm uma

importância maior que os factos que todos vêem e estão, por assim dizer,

nas alturas humanas.

Fernando

Pessoa».

Se observarmos com atenção, Pessoa, ao afirmar que

«Neste terceiro corpo das suas Trovas aplica-se o Bandarra a desvendar

misteriosamente grandes movimentos das nações, culminâncias da civilização»

o sebastianismo é um mito universal.

Trata-se de uma linguagem densamente simbólica e

hermética ou mesmo esotérica. A alusão ao mito do Quinto

23

Império evidencia-se logo na primeira quadra: «Em vós que

haveis de ser quinto/Depois de morto o segundo,/Minhas profecias fundo/Com

estas letras que aqui pinto./» (estrofe 1). Observam-se semelhanças

com a mesma passagem nas Trovas de Bandarra, baseando-se na

profecia bíblica de Daniel, já citada (Daniel, 7: 26 e 7:

27).

O enigma persiste em saber qual seria o segundo

império. Afirma: «Não conto sapatarias/Que noutros tempos sonhei/O

que agora contarei/São mais altas profecias./» (estrofe 4).

Numa dimensão escatológica, a nova empresa seria agora

a criação de uma nova era, o Quinto Império, como afirma:

«Faço trovas mui inteiras,/Versos muito bem medidos/Que hão-de vir a ser

cumpridos/Lá nas eras derradeiras./» (estrofe 6).

No entanto Pessoa-Bandarra, se assim considerarmos uma

nova espécie de heterónimo, fundamenta-se em bases

bíblicas: «Eu componho, mas não ponho/As letrinhas no papel,/Que o

devoto Gabriel/vai riscando, quanto eu sonho./» (estrofe 7).

No sonho primeiro existe uma alusão ao rio Tejo e a

uma grande figura heróica mas também uma crítica a sectores

da igreja ao «Presbítero maior» (estrofe 10).

Regista-se, a seguir, a alusão ao Rei Desejado que virá

de uma ilha encoberta (estrofes 11-15): «Este sonho que sonhei/É

verdade muito certa/Que lá da ilha encoberta/Vos há-de vir este Rei./».

O sonhos terceiro, quarto e quinto desenvolvem-se

dentro de um simbolismo muito denso e de profecias muito

herméticas e esotéricas, onde se detecta o mito do

sebastianismo místico, messiânico e universalista.

24

A civilização ibérica tornou-se transoceânica: «Quando

o sonho é verdadeiro/Dá-se uma luz muito clara;/Sonho agora, que uma

vara/Vai dando luz a um outeiro/» (estrofe 32) «Esse outeiro é Portugal E

a vara castelhana/Da minha pobre choupana/vejo esta vara Real».

Pessoa-Bandarra termina com uma quadra alusiva ao mito

do Quinto Império: «Dará fruto em tudo santo/Ninguém ousará negá-

lo/O choro será regalo/E será gostoso o pranto./» (estrofe 34).

São vários e de diversa ordem os símbolos em Mensagem

e os campos simbólicos. Como o objecto do nosso estudo é o

sebastianismo e messianismo de Bandarra a Pessoa, iremos

focar só este aspecto.

Em Mensagem, o sebastianismo aflora logo no poema XI,

«A Última Nau», «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,/ E erguendo, como um

nome, alto o pendão/ Do Império,/ Foi-se a última nau, ao sol aziago/ Erma, e

entre choros de ânsia e de pressago/ Mistério»…prosseguindo…«Deus

guarda o corpo e a forma do futuro, / Mas sua luz projecta-o, sonho escuro/ E

breve/»…Detectamos os sebastianismo interligado ao

messianismo, «Não sei a hora, mas sei que há hora, / Demore-a Deus,

chame-lhe a alma embora/ Mistério/» (Pessoa:1935, 71).

D. Sebastião é a quinta quina do brasão de Mensagem:

«Louco, sim, louco, porque quis grandeza/Qual a Sorte a não dá./Não coube

em mim minha certeza;/Por isso onde o areal está/Ficou meu ser que houve,

não o que há.//«Minha loucura outros que a tomem/Com o que nela ia./Sem a

loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/Cadáver adiado que

procria?/». (Pessoa: 1934, 42).

Na terceira parte de Mensagem, intitulada «O

Encoberto», «D. Sebastião», «O Quinto Império», «O

25

Desejado», «As Ilhas Afortunadas», são símbolos

correlacionados.

Pessoa coloca como primeiro símbolo o poema D.

Sebastião: «Sperai! Caí no areal e na hora adversa/Que Deus concede aos

seus/Para o intervalo em que esteja a alma imersa/Em sonhos que são

Deus.//Que importa o areal e a morte e a desventura/Se com Deus me

guardei?/».(Pessoa: 1935, 81). Termina com o sebastianismo no

discurso profético e messiânico: «/É O que eu me sonhei que eterno

dura, /É esse que regressarei./». (Pessoa: idem, ibidem).

O segundo símbolo de Mensagem é o Quinto Império no

poema homónimo. Os quatro tempos que passaram foram a

Grécia, Roma, Cristandade, Europa. Passados estes quatro

tempos «a terra será teatro» do Quinto Império (Pessoa:

1934, 83). Eis, novamente, mais uma afinidade bíblica com a

profecia de Daniel, já citada (Daniel, 7: 26 e 7: 27).

Trata-se da simbólica da articulação do mito do

sebastianismo de «O Desejado» com o mito do «Quinto

Império».

Desejado: «Onde é que entre sombras e dizeres, / Jazas, remoto,

sente-te sonhado, / E ergue-te do fundo de não-seres/ Para teu novo fado!//

Vem Galaaz com pátria, erguer de novo, / Mas já no auge da suprema prova, /

A alma penitente do teu povo/ a Eucaristia Nova. // Mestre da Paz, ergue teu

gládio ungido, / Excalibur do fim, em jeito tal/ Que sua luz no mundo dividido/

Revele o Santo Gral/» (Pessoa: 1935, 84).

São evidentes as influências bíblicas e de um Desejado

universal de vários registos, mesmo o arturianismo de raiz

celta.

26

O quarto símbolo de Mensagem são «As Ilhas Afortunadas».

Trata-se da alusão ao Quinto Império como uma ilha onde

mora o Rei esperando. Já Camões, nos Lusíadas, referira a

Ilha dos Amores e pode ser já um indício do mito do Quinto

Império. Também a personagem principal e narrador de Utopia,

de 1516, que conta a Thomas More a existência dessa ilha

misteriosa, a ilha da utopia, da tolerância religiosa é um

navegador português, «o mui sábio Rafael Hitlodeu» (More, T.: op.

cit.,7).

As «ilhas afortunadas» ou as «ilhas dos amores»

reenviam para um espaço-tempo mítico como uma espécie de

uma ilha remota e profunda no subconsciente ou na alma

universal humana que aflorará messiânica numa nova era, a

era do Quinto Império e do Espírito Santo. Eis o carácter

mais interessante do mito universal do sebastianismo.

Também, em meados do séc. XVII, o Padre António Vieira

apresentara a ideia do Quinto Império (Borges: 1995, 27).

O quinto e último símbolo «O Encoberto» é o título do

poema homónimo de temática rosicruciana. Termina com a

seguinte quadra: «Que símbolo final/Mostra o sol já desperto?/Na Cruz

morta e Fatal/A Rosa do Encoberto/».

Antes de concluir Mensagem com «os tempos», cinco

tempos, apresenta três avisos: O Bandarra, António Vieira e

o terceiro sem título. Seria ele próprio?

Escreve o seguinte sobre o Bandarra:/«sonhava anónimo e

disperso,/O Império por Deus mesmo visto,/Confuso como o Universo/E plebeu

como Jesus Cristo.//«Não foi nem santo nem herói,/Mas Deus sagrou com Seu

sinal/Este, cujo coração foi/Não português mas Portugal./».

27

Contudo, é nos poemas Gládio e Além-Deus que Pessoa

manifesta um profundo ardor místico com algum paralelismo

em São João da Cruz, na «Chama de amor viva», em que «A

chama de amor viva é um tratado de amor que intenta explicar os momentos

superiores da união da alma com Deus» (Garcia Palacios: 1990)

renovada por dentro do seu ser por um «amor intenso e pelo

conhecimento de Deus» (Ruiz Salvador: 1962) um amor intenso na

fusão mística da alma com Deus, quando Pessoa afirma:

«Cheio de Deus, não temo o que virá» (Pessoa: 1917b, 18).

Gládio e Além-Deus encontram-se como provas de página do

que seria o Orpheu 3 (Pessoa: 1917b: 188). O poema Gládio,

com o título «D. Fernando, Infante de Portugal», incluiu-o,

Pessoa, em Mensagem.

É no poema «Braço sem corpo Brandindo um Gládio», que

não chegou a ser publicado em vida, que Pessoa apresenta a

Pomba, como símbolo do Espírito Santo relacionado com o

mito do Quinto Império.

A Pomba, que Pessoa inclui no poema, é também um

símbolo ou lesisigno com raízes bíblicas do Antigo

Testamento. Moisés soltou uma pomba da Arca para saber se o

dilúvio terminara e havia vida na terra. A pomba regressou

«trazendo no bico um ramo verde de oliveira» (Génesis, 8:

10, 11, 12).

É o símbolo ou lesisigno com força de comunicação, da

comunicação com Deus e a vida, do Espírito Santo, da Paz, o

símbolo do espírito do Quinto Império, já em expansão por

todo o mundo e que, em nosso entender, melhor se ajusta ao

28

mito universal do sebastianismo, quando este encerra o

Espírito Santo e o mito do Quinto Império.

No poema citado de Fernando Pessoa, pode ler-se a dado

momento:

Deus é um grande intervalo,

Mas entre quê e quê ?...

Entre o que digo e o que calo

Existo? Quem é que me vê?

Erro-me…E o pombal elevado

Está em torno da pomba, ou de lado?»

4. CONCLUSÃO

A análise do léxico e da linguagem simbólica e dos

recursos estilísticos específicos evidenciam a relação

profunda entre língua e cultura, e a criação de uma

linguagem de comunicação profética. A par da linguagem

poética existiu uma linguagem de características proféticas

na literatura e cultura portuguesas. O mito do

sebastianismo, com a sua linguagem de comunicação

profética, foi o que mais se notabilizou.

Tendo em atenção os símbolos ou lesisignos com força

comunicativa, as alegorias, a narração do discurso com

marcas escatológicas é possível caracterizar o género

profético como uma amálgama de registos de discursos

modalizados ao longo dos séculos, e observar a linguagem da

comunicação profética.

29

Nesta fôrma ou arquétipo de vários registos, que

caldeou ao longo dos tempos a cultura e o povo do pequeno

país ibérico chamado Portugal, com léxico simbólico de

diversas matrizes incluindo a bíblica, com o messianismo e

mitos, reuniram nele as condições da alma universal humana

para o surgimento da forma ou expressão do mito do

sebastianismo, do medievismo do Desejado, do arturianismo de

raiz celta.

Circunstâncias históricas de profunda crise, assentes

numa remota base ibérica, onde fervilhou um caldeamento

cultural dos iberos e celtas, dos romanos pagãos e

cristãos, dos semitas aos arianos, dos judeus aos árabes,

que se manifesta na língua e cultura, contribuíram para a

expressão assumida pelo mito do sebastianismo.

Através do léxico e da linguagem simbólica da

comunicação profética, as origens das Profecias de Bandarra, o

sapateiro de Trancoso, nascido na data do achamento do

Brasil em 1500, aludiram fervorosa e ardentemente ao

Desejado, antes de D. Sebastião ter nascido, porque era

desejado um neto do rei D. João III.

As originais Profecias de Bandarra têm raízes em profecias

bíblicas do Antigo Testamento, sobretudo nos profetas

Isaías, Daniel e Jeremias. Entre vários, evidenciam-se

símbolos davídicos como o Leão e outros nefastos, entre

estes, a Grifa parideira. Características da linguagem e da

comunicação simbólica e dos tempos.

Após a morte do jovem rei D. Sebastião, em Alcácer

Quibir, nasceu o mito português transoceânico da primeira

30

globalização, o sebastianismo messiânico, que foi emergindo

como um mito universal.

A audácia criativa e o génio universal de Fernando

Pessoa ao serviço da humanidade, considera Bandarra um

profeta, mas um profeta colectivo. Ele próprio Pessoa cria

e acrescenta uma Terceira Parte às Profecias de Bandarra, parte

mantida inédita no espólio. Retoma o sebastianismo e o

messianismo e o mito do Quinto Império, mais claramente em

Mensagem e a figura do Encoberto já presente nas Profecias

de Bandarra.

Na linguagem mística da comunicação profética e

messiânica portuguesa, germinada na lusofonia, e mais ainda

na segunda globalização de agora, com raízes remotas e

frutos a partir de António Vieira, no poema Além-Deus junta-

lhe Pessoa um novo símbolo, a Pomba.

A Pomba, símbolo da Paz, do Espírito Santo em sintonia

com mito do Quinto Império, símbolo retomado por Pessoa das

raízes bíblicas (Génesis, 8: 10, 11, 12). A luz de Deus dos

Universos. A Pomba que leva em seu voo de asas sagradas um

novo espírito do homem na conquista da irenologia, tão

necessária a este chão de barro.

………………………………………

«Se eu morrer muito novo, oiçam isto:

Nunca fui senão uma criança que brincava.

Fui gentil como o sol e a água.

De uma religião universal

Que só os homens não têm.».

…………………………………………….

31

(Fer

nando Pessoa, Poemas Inconjuntos.)

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