Dois paus na fogueira: Movimento LGBT e identidade homoerótica em João Pessoa

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1 Dois paus na fogueira: Movimento LGBT e identidade homoerótica em João Pessoa 1 Thiago Oliveira 2 UFPB Resumo O presente artigo relata as ações desenvolvidas pelo projeto “Olhares sobre a Diversidade”, realizado no segundo semestre de 2011 no âmbito de cont ribuir com as pesquisas então em desenvolvimento sobre o movimento LGBT e a construção de identidades coletivas homoeróticas. A metodologia empregada envolveu observação participante, pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas e em profundidade junto aos grupos que compõem o movimento LGBT na cidade de João Pessoa: Movimento do Espírito Lilás (MEL), Grupo de Mulheres Lésbicas Maria Quitéria, e a Associação de Travestis e Transexuais da Paraíba (ASTRAPA). Percorremos aqui alguns espaços e iniciativas observados durante a pesquisa de campo para apresentar trânsitos e deslocamentos discursivos em torno da perspectiva e significados atribuídos pelo MEL à homossexualidade, tendo em vista este ser o grupo mais antigo em atuação no segmento no estado. Com base analítica no construtivismo social nos interrogamos como essas práticas se relacionam a demandas políticas e segmentárias dentro do movimento homossexual na Paraíba. Palavras-chave: Movimento LGBT; Identidades Políticas; Homossexualidade Introdução “Sei que alegre, ma no tropo” Chico Buarque O presente trabalho emergiu de uma parceria conjunta entre Universidade e movimentos sociais, especialmente os grupos de militância em prol da cidadania de LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Com o objetivo de registrar a memória viva do movimento LGBT na Paraíba, o projeto foi desenvolvido 1 Trabalho apresentado durante a 28º Reunião Brasileira de Antropologia, realizada na PUC-SP, entre 02 e 05 de julho de 2012. 2 Bolsista de Iniciação Científica UFPB/CNPq. E-Mail: [email protected]

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Dois paus na fogueira:

Movimento LGBT e identidade homoerótica em João Pessoa1

Thiago Oliveira2

UFPB

Resumo

O presente artigo relata as ações desenvolvidas pelo projeto “Olhares sobre a

Diversidade”, realizado no segundo semestre de 2011 no âmbito de contribuir com as

pesquisas então em desenvolvimento sobre o movimento LGBT e a construção de

identidades coletivas homoeróticas. A metodologia empregada envolveu observação

participante, pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas e em profundidade

junto aos grupos que compõem o movimento LGBT na cidade de João Pessoa:

Movimento do Espírito Lilás (MEL), Grupo de Mulheres Lésbicas Maria Quitéria, e a

Associação de Travestis e Transexuais da Paraíba (ASTRAPA). Percorremos aqui

alguns espaços e iniciativas observados durante a pesquisa de campo para apresentar

trânsitos e deslocamentos discursivos em torno da perspectiva e significados atribuídos

pelo MEL à homossexualidade, tendo em vista este ser o grupo mais antigo em atuação

no segmento no estado. Com base analítica no construtivismo social nos interrogamos

como essas práticas se relacionam a demandas políticas e segmentárias dentro do

movimento homossexual na Paraíba.

Palavras-chave: Movimento LGBT; Identidades Políticas; Homossexualidade

Introdução

“Sei que alegre, ma no tropo”

Chico Buarque

O presente trabalho emergiu de uma parceria conjunta entre Universidade e

movimentos sociais, especialmente os grupos de militância em prol da cidadania de

LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Com o objetivo de

registrar a memória viva do movimento LGBT na Paraíba, o projeto foi desenvolvido

1 Trabalho apresentado durante a 28º Reunião Brasileira de Antropologia, realizada na PUC-SP, entre 02

e 05 de julho de 2012. 2 Bolsista de Iniciação Científica UFPB/CNPq. E-Mail: [email protected]

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entre junho e dezembro de 2011 com o envolvimento de uma professora antropóloga e

dois alunos de graduação, além de outros professores e profissionais técnicos que

contribuíram com as atividades segundo interesses e níveis de comprometimento

diversos.

Em seu início, a pesquisa envolveu os grupos mais antigos e atuantes na política

LGBT no estado, estando todos sediados na capital, João Pessoa. Os grupos que

compuseram a pesquisa foram o Movimento do Espírito Lilás (MEL), o Grupo de

Mulheres Lésbicas Maria Quitéria, e a Associação Paraibana de Travestis e Transexuais

(ASTRAPA).

A pesquisa envolveu métodos predominantemente qualitativos, organizados

segundo pretensões sócio antropológicas. Entre os instrumentos utilizados para coleta

de dados contamos com o método clássico de observação participante, entrevistas

semiestruturadas, conversas informais e pesquisa documental. Além disso, a

participação em eventos promovidos pelo movimento também foi um procedimento

usado pra entender a dinâmica das relações ali estabelecidas.

Nos primeiros meses os esforços seguiram no sentido de nos inteirarmos da

dinâmica funcional da organização e seus membros. O critério para seleção dos

informantes deu-se mediante apontamento dos militantes mais conhecidos ou mais

representativos entre os pares na instituição. Sendo assim, as primeiras entrevistas

foram realizadas com o militante Luciano Bezerra, e em seguida com militantes da já

referida ASTRAPA: Malu Morenah, Gel Laverna e Fernanda Benvenutty.

A apresentação aqui realizada é organizada em dois momentos: (i) uma

apresentação do processo histórico de constituição do panorama sobre o qual nos

debruçamos, e (ii) uma problematização sobre os significados atribuídos pelo

movimento para a homossexualidade, analisando especialmente as falas e atitudes

performadas pelos entrevistados e outros representantes durante a pesquisa de campo.

Entrar no campo: interstícios de uma memória afetiva

Em junho de 2011 iniciamos nosso trabalho de investigação e reconhecimento

do movimento LGBT na Paraíba. Nosso primeiro parceiro no projeto foi o Movimento

do Espírito Lilás – MEL, grupo em atuação no estado há quase 20 anos. Antes mesmo

de cogitar a possibilidade, em uma experiência particular, ainda adolescente, lembro de

ter visitado o espaço que o grupo ocupava na época. O elegante edifício Bananeiras,

3

localizado na rua Duque de Caxias, uma das principais ruas do centro de João Pessoa,

na época sediava um escritório onde a lógica aparente aos seus frequentadores era a

ordem, organização e higiene de um grupo sério e absolutamente compromissado com

seu projeto: garantir a cidadania e dignidade de homossexuais de todo o estado.

Uma sala muito ampla tinha as paredes preenchidas por cartazes de tamanhos

variados expondo corpos diversos em situações e pautas variadas: prevenção a AIDS,

combate à violência contra mulher e homossexuais, respeito às travestis e outras pautas

que reafirmavam a posição do grupo. Oito mesas grandes preenchiam a sala e

conectavam os pontos que garantiriam um mundo melhor, ao menos ali. Além dessa

primeira experiência com o movimento LGBT, nos anos seguintes participei de outras

atividades promovidas pelo movimento, a exemplo de seminários e duas paradas, entre

2005 e 2009, a primeira chama de Parada do Orgulho Gay, e a segunda Parada pela

Diversidade Sexual da Paraíba, nome que vem sendo adotado até hoje.

Seis anos após essa primeira experiência com o movimento LGBT, ao iniciar o

projeto, minhas ilusões sobre o movimento permaneciam. Qual não foi meu choque ao

chegar à atual sede do movimento, ainda na rua Duque de Caxias, todavia, mais ao fim,

próximo a centro velho da cidade. Um corredor escuro onde as paredes, ornadas com

concreto e vidrilhos confundem dor e brilho, conduziam a dois vãos de escada que nos

levaria a pequena sala do segundo andar. Ao chegarmos, duas mesas de plástico

pequenas compunham a sala de reuniões. Lado à porta e frente à mesa: uma televisão,

um sofá velho em couro e um computador desconjuntado despejado à lateral esquerda,

próximo a uma janela que quando aberta mostrava uma vista do centro da cidade

comprometida pelas plantas que subiam pela parede lateral e adentravam. Algumas

pilhas de cadeiras plásticas ornavam o ar de passado e esquecimento. Dos muitos

cartazes e bandeiras a ilustrar a antiga sede de minhas memórias afetivas, encontro

agora uma estante onde se empilham pastas com contas e comprovantes de pagamentos;

alguns poucos relatórios e pedaços de projetos compõem a cena.

Orgulhoso, o então vice-presidente do grupo, Renam Palmeira, nos mostra

álbuns e pequenas caixas preenchidas com fotografias. Ali a história do grupo mais

antigo do estado, lembranças de um passado com algumas glórias, muitas perdas;

lembranças de um passado sem memória. Começava ali nossa busca à história do

movimento LGBT na Paraíba.

4

Além do vermelho e preto: bibas, sapas e monas na Paraíba

No final da década de 1980, acompanhando o período de democratização e

abertura política no Brasil, o movimento de homossexuais, inclusive de estudantes

universitários, começou a se fortalecer em João Pessoa e deu origem a dois grupos:

“Nós Também”, composto por docentes e discentes universitários e o “Beira de

Esquina”3, homossexuais masculinos oriundos das classes populares. Posteriormente,

em 1992, surgiu a partir da fusão e posterior dissolução desses dois grupos o

Movimento do Espírito Lilás (MEL), com o objetivo de atuar na prevenção das

DSTs/AIDS e na defesa dos direitos humanos de homossexuais na Paraíba.

“A violência contra homossexuais tem sido a preocupação central do

MEL, haja vista a presença da homofobia na Paraíba. Nesse sentido, o

MEL tem mobilizado a opinião pública através dos meios de

comunicação de massa, das entidades e das organizações de direitos

humanos e dos movimentos sociais e populares no sentido de

denunciar e anunciar a proteção e a defesa da pessoa violentada e, ao

mesmo tempo, contribuir para a construção de uma consciência que

respeite a diversidade de qualquer natureza” (VIEIRA, 2008, p. 158).

.

A partir da mobilização do MEL, travestis e transexuais demonstraram a

necessidade de dar um foco maior a esse público, e assim nasceu a ASTRAPA

(Associação das Travestis e Transexuais da Paraíba), em 2002, que tem como objetivo

“articular, mobilizar, propor e monitorar políticas públicas de superação e

enfrentamento à discriminação e à violência homofóbica e fortalecer a autoestima e

promover a cidadania plena de travestis e transexuais” (www.astrapa.blogspot.com).

Nesse mesmo ano, também a partir do MEL, foi formado também o “Grupo de

Mulheres Lésbicas Maria Quitéria”, com o propósito de combater a homofobia,

contribuir nas políticas públicas para a diversidade sexual e fortalecer a autoestima, a

saúde, a cidadania e os direitos humanos de mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais

femininas. O nome do grupo surgiu em homenagem a uma mulher nordestina que, no

século XVIII, lutou pela independência do Brasil e que recebeu a alcunha de “mulher-

soldado”. Sob a coordenação das três organizações LGBT em João Pessoa, em 2002, foi

realizada a 1ª Parada Gay em João Pessoa.

Ainda no final de 2002, mais uma organização foi inaugurada, o “Gayrreiros do

Vale do Paraíba”, na cidade de Itabaiana, interior do estado, também com o intuito de

3 Não há um consenso sobre o período de atuação desses dois primeiros grupos. Trevisan (2004) em

revista à história dos grupos homossexuais aponta que após a desintegração do Somos, em 1983.

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Figura 1: Grupos e Organizações LGBT atuando na Paraíba

Cajazeiras

Associação do

Orgulho LGBT de

Cajazeiras

Campina Grande Associação dos Homossexuais de Campina

Grande (AHCG)

Ação pelo Respeito à Cidadania e Diversidade

Sexual (ARCIDES)

Centro Informativo de Prevenção,

Mobilização e Aconselhamento aos

Profissionais do Sexo (CIPIMAC)

Itabaiana Gueyrreiros do Vale do Paraíba

João Pessoa e região

metropolitana Movimento do Espírito Lilás (MEL)

Grupo de Mulheres Maria Quitéria

Associação das Travestis e

Transexuais da Paraíba

(ASTRAPA)

- municípios com grupos de

atuação, porém sem nome ou

estrutura. (Catolé do Rocha,

Guarabira, Mari, Sapé e Mamanguape)

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atuar no atendimento e na prevenção ao HIV/AIDS para todo o público LGBT da região

por meio de ações educativas, campanhas, oficinas, palestras, eventos artístico-culturais,

etc.

Em 2004, foi fundada a Associação de Homossexuais de Campina Grande

(AHCG),

“com a missão de lutar pela consolidação da cidadania LGBT na

cidade de Campina Grande e compartimentos da Serra da Borborema.

Tem participação efetiva no Fórum ONG/AIDS-PB e na formação de

redes regionais e nacionais que discutem temáticas relacionadas à

vivência dos homossexuais, a conquista da cidadania e qualidade de

vida” (www.ahcgonline.blogspot.com).

Em Campina Grande, há outra associação que atende travestis e homossexuais

profissionais do sexo, a CIPIMAC (Centro Informativo de Prevenção, Mobilização e

Aconselhamento aos Profissionais do Sexo). Em 2011 surgiu mais um grupo de atuação

e combate à violência contra o público LGBT, dando especial apoio à travestis e

transexuais, a ARCIDES – Ação pelo Respeito à Cidadania e Diversidade Sexual

(www.arcidescg.blogspot.com). No sertão da Paraíba, a única entidade da sociedade

civil organizada é a Associação do Orgulho LGBT de Cajazeiras. Há outras regiões

também que têm realizado mobilizações contra a homofobia como Mari, Guarabira,

Mamanguape e Baía da Traição.

Assim como em sua formação e processo de desenvolvimento durante a década

de 1990, ainda hoje o cenário de militância LGBT na Paraíba se organiza sobre

formatos variados, sejam ONGs, movimentos sociais, associações ou iniciativas

individuais. Todavia, não só de grupos constituídos é formado o movimento LGBT no

estado; espalhados pelo brejo, sertão e região da zona da mata, observa-se a existência

de frentes de atuação, quase sempre centralizadas na figura de um ou dois indivíduos e

que estabelecem uma relação com os demais grupos organizados, especialmente os

sediados no litoral e com maior tempo de atuação, estrutura e colaboradores (ver Figura

1). Entre os municípios que desenvolvem essa dinâmica, vem se desenvolvendo ações

conjuntas e eventos diversos especialmente nos municípios de Guarabira, na região do

brejo, e de Catolé do Rocha, no sertão, próximo à divisa com Rio Grande do Norte.

Como observa França (2006), um elemento particular do movimento LGBT é

sua constituição histórica pautada na elaboração de sujeitos marcados por práticas,

posturas e hábitos de consumo compartilhados, muitas vezes lidos como característicos

e inatos à homossexualidade, contribuindo assim para a caracterização da

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homossexualidade como uma categoria essencializada. Na contramão dessa abordagem,

desde Frederick Barth, as identidades tem sido pensadas como construções, não como

objetos estáveis e imutáveis. Barth (1998), entende as identidades como processos de

marcação e distinção em relação ao outro. Esse processo é social e relacional, situado no

tempo e espaço em que determinadas relações se estabelecem e se elaboram num

esforço de diferenciação que tem por fim criar barreiras, fronteiras.

Todavia essa leitura das ciências sociais, a investida tomada pelos movimentos

sociais mais proficientes das três últimas décadas (os movimentos homossexual,

feminista e negro), vários estudos apontam para a associação a categorias

essencializadas, autoatribuída, e muitas vezes esvaziadas. Assim, nas últimas décadas se

produziu no movimento feminista clássico uma política de visibilidade que reconhecia o

sujeito “mulher” como uma categoria estável, autoatribuída em relação ao sexo

anatômico; ao movimento negro o surgimento da negritude e da ideia de ser negro como

estável, tendo como item norteador a cor da pele. Interessante observar como esses

marcadores sociais (gênero e raça) são os mais difíceis de desvencilhar-se pois, como

observa Mariza Corrêa,

Além de terem em comum o fato de serem marcadores biologizados,

naturalizados, historicamente, raça e sexo circulam como marcadores sociais,

como cor e gênero, independentemente da definição de sexo ou de raça do

corpo que os sustenta. (CORRÊA: 2000, p.28).

O que chama a atenção, e é explícito no posicionamento tanto de Corrêa como

nas teorias pós-feministas é o esvaziamento de sentido, a essencialização de categorias

em si bastante problemáticas. Como coloca Butler , “gender is always a doing, though

not a doing by a subjective might be said to preexist the deed4” (1990, p25).

Problematizando a questão, Regina Facchini se posiciona:

O que talvez ocorra é que movimentos como o feminista, o negro e o

homossexual tenham maior tendência em fundamentar essa igualdade

[esse elemento aglutinador para os indivíduos dentro do grupo] num

atributo essencial e a obscurecer o caráter construído da aliança

política voltada para um determinado fim. (Facchini: 2009, p28-29)

Todavia, o elemento aglutinador do movimento homossexual, diferente do negro

e do feminista, reside muitas vezes num caráter subjetivo, ou que não está no nível

observável, tampouco é uniforme a ponto de identificar como único e reproduzido em

todos os pares. É uma categoria que se pulveriza e se apresenta de formas distintas.

4 O gênero é sempre um fazendo, uma construção em continuo, ainda que não por um sujeito que se possa

dizer preexistente ao feito.

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Destarte, aquém daquilo que aglutina, é preciso buscar elementos visíveis para

estabelecer a coletividade da identidade: a violência, a subalternização e

marginalização, a aids.

O grande crescimento do movimento LGBT no Brasil está inevitavelmente

vinculado à pandemia da aids. Para a homossexualidade, desde meados da década de

1980, quando começam a surgir no Brasil os primeiros casos públicos da epidemia, a

aids tem sido a maior inimiga e simultaneamente a melhor amiga dos homossexuais. O

ethos homossexual então vinculado ou reduzido aos guetos de prostituição,

sociabilidade marginal e trocas sexuais “no armário” tomam as páginas dos noticiários e

jornais. O que se vê então é uma perigosa associação entre homossexualidade e aids,

que todavia, como esclarece García (2009, p540-541), foi o maior motor de promoção

da visibilidade e luta pela cidadania dos homossexuais no Brasil e em outras regiões do

mundo.

O que se desenvolveu em seguida foi a criação de redes de solidariedade e

cooperação entre Estado e organizações LGBTs caracterizadas por trocas simultâneas:

se por um lado o Estado deveria reconhecer a legitimidade da homossexualidade,

concretizando os homossexuais como sujeitos de direito, por outro lado, caberia ao

movimento homossexual contribui para a limpeza da sociedade, por meio do controle da

epidemia da qual eles eram portadores. A homossexualidade assim passa a ser vista

como uma arma biológica, e o homossexual como um potencial agente ativador. A

solução então encontrada são as parcerias na busca de um higienismo quase paranoico

que se desenvolve até os dias atuais.

A homossexualição da aids somada à des-homossexualização da

atenção sanitária teve como corolário histórico um efeito social

imprevisto: a visibilização e “homossexualização” de muitos homens

que teriam sexo com outros homens. Nos grupos populacionais

dizimados pela epidemia, conformou-se uma “comunidade no

desastre” que fortaleceu a identidade homossexual: aquela construção

identitárias que havia surgido no século XIX como um tipo patológico

que condensava e consagrava científica e objetivamente uma

estigmatização de séculos, ao final do século XX foi ressignificada

como uma bandeira útil para que alguns cidadãos reclamassem

respeito aos seus direitos civis – incluindo o direito à saúde. (...) Na

década de 1980 na Argentina e em outros países da América Latina, a

identidade homossexual e a questão gay emergiram com seus

primeiros e humildes êxitos políticos. (García: 2009, p544 – grifos do

autor)5

5 Apesar da mobilização crescente na década de 1980 na Argentina, como aborda o autor, as leituras mais

elaboradas da questão no Brasil apontam a década de 1980 como um período de inércia e dissolução de

muitos grupos. De maneira geral, além da Bahia, Rio de Janeiro e Distrito Federal, é a partir dos anos

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Os convênios e parcerias então entre movimento homossexual e Estado tem por

finalidade a cooperação em torno do combate à aids. É justamente em torno da aids que

começam a se estruturar as primeiras manobras políticas de visibilização de uma

identidade coletiva gay. Se por um lado a homossexualidade lhes é associada e é tomada

como bandeira de luta e reconhecimento de direitos civis, por outro lado o movimento

atua como agente sanitário, de controle e vigilância, estabelecendo para si uma ideia de

homossexual como aquele que sabe se prevenir. Com o apoio do Ministério da Saúde e

das secretarias municipais e estaduais, desde 1984 as parcerias vêm se estabelecendo,

sendo a primeira parceria estabelecida no estado de São Paulo. Tais parcerias via de

regra se estabelecem pelo fornecimento de recursos para atividades diversas que

envolvem desde a distribuição de material informativo, preservativos até a criação de

equipamentos públicos de controle e cuidado de soropositivos. Na mídia também,

aquém do reconhecimento da homossexualidade em outros departamentos estatais, a

saúde vem dando especial atenção, uma atenção estratégica diríamos, à

homossexualidade, como se pode ver nos cartazes elaborados para campanhas nacionais

de combate a aids realizadas em parceria entre o Governo Federal e grupos locais.

1990 que o movimento homossexual toma grandes proporções e estabelece seus vínculos e parcerias

iniciais como o Estado. Ver Facchini: 2005; 2009; e França, 2006..

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Figuras 2, 3, 4 e 5 – Cartazes e material de divulgação de campanhas nacionais de controle da

aids realizadas em parceria com grupos LGBT pelo Brasil - campanhas de 2011, 2007, 2007 e

2011 respectivamente. Fonte: Ministério da Saúde. Disponíveis em <http://www.aids.gov.br/>

e <http://www.aids.gov.br/mediacenter/> último acesso em 23.05.2012

Entendidos e Assumidos: movimento e identidades possíveis

Em um estudo publicado em 1998, o sociólogo americano Joshua Gamson

elaborando um panorama das pesquisas sobre movimentos sociais nos Estados Unidos

na década de 1990 observa como tais grupos vêm se estabelecendo em torno de

identidades coletivas. Em um esforço de visualizar como essas identidades são

elaboradas e ativadas pelos grupos, Gamson observa que, no interior dos movimentos, e

aqui cabe uma especial atenção ao movimento LGBT, as identidades coletivas elas não

apenas são requisitos necessários a identificação desses grupos, como são um também

um fim em si, de tal forma, o sujeito político homossexual no Brasil tem se elaborado

em torno de uma identidade coletiva que tem como base a homossexualidade, categoria

que não apenas é o elemento comum entre os pares, mas também o objetivo em si.

Desta forma estabelece-se uma tensão entre ser gay e estar gay.

Como sujeito político, o movimento LGBT em geral não tem arriscado em

propostas fluidas de identidade, reconhecendo assim para si uma ideia de

homossexualidade que poderíamos dizer preexistente aos pares. Simultâneo, a

configuração de tal identidade vem se alterando e atualizando segundo às demandas

políticas e sociais dos contextos locais em que estão envolvidas. Esse princípio coloca

em xeque não apenas a dimensão da homossexualidade como fator biológico, natural.

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reclamado por exemplo por transexuais que buscam na patologização de seu estado um

recurso para que o Estado intervenha e lhes ofereça meios de adequação do corpo às

exigências do sexo almejado. A busca está, neste caso, em ter um corpo coerente, como

coloca Butler (2003, p31) com o desejo e com o gênero, de modo que, supõe-se haver

coerência quando temos: mulheres performatizadas com sexo anatômico

correspondente e que mantém seus desejos por homens heterossexuais. Implanta-se

assim um modelo de rigidez sobre corpos fluídos e desejos vaporizados.

Tendo o desejo, a orientação sexual como componente aglutinador dentro do

movimento sexual, é possível reconhecer todavia a existência de dispositivos

reguladores, de modo que, não cabe dentro da política os elementos poéticos, ou seja, a

política não poderá, nem irá abarcar todas as manifestações performatizadas pela

relação sexo-gênero-desejo.

“A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se

torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam

“existir” – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e

aquelas em que as práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo”

nem do “gênero”. Nesse contexto, “decorrer” seria uma relação

política de direito instituído pelas leis culturais que estabelecem e

regulam a forma e o significado da sexualidade” (BUTLER, 2003, p.

39).

De tal forma, é preciso reconhecer que nem todas as categorias identitárias que

se pode reconhecer, ou abarcar dentro do que seria o homossexual, estão presentes ou

são passíveis de representar dentro da política de militância. Em geral, nas margens da

política aparecem as relações incoerentes, não eróticas e não higiênicas, como por

exemplo drag queens, transformistas, crossdressing, boylovers6, BDSM e outras

identidades eróticas com base em práticas sexuais que vem despontando com o processo

de massificação e publicitação da intimidade exposto do Anthony Giddens (1998).

Em João Pessoa, os grupos que compõem o panorama LGBT estão vinculadas a

possibilidades identitárias já conhecidas, ou reconhecíveis na gramática dos gêneros:

gays, lésbicas, travestis e transexuais. Aquém da limitação que estas categorias impõem,

e as que simultaneamente são excluídas pela adoção destas, vislumbra-se no interior de

cada uma destas identidades sexuais, uma miríade de outras possibilidades. Como

6 Consoante Oliveira (2009), os boylovers constituem-se como identidades eróticas de orientação hetero

ou homossexual que tem por base o desejo em menores. Todavia, diferente do pedófilo, o boylover

demonstra o reconhecimento das limitações sociais do seu desejo, e estabelece-se como um conflito entre

o poder e o querer. Conflitos semelhantes podem ser observados na emergência de outras possibilidades

identitárias, a exemplo dos crossdressing, que transitam com um gênero em vestimentas relacionadas ao

seu oposto, e ao BDSM, que tem seu conflito estabelecido entre o prazer e a dor, a violência e a paixão, a

confiança e a violação do corpo alheio.

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exemplo, podemos ver dentro do universo da homossexualidade masculina uma grande

variedade de categorias classificatórias, tais como milicos, lolitos, ursos, leathers,

barbies e outras nomenclaturas que denunciam desvios nas cadeias de coerência

exigidas pelos dispositivos de vigilância da homossexualidade (Foucault, 1978).

Na busca pelos deslocamentos e trânsitos na elaboração de tais identidades,

durante o segundo semestre de 2011 pudemos analisar uma série de materiais, que

apesar de reduzidos e das péssimas condições, pode oferecer elementos importantes ao

debate sobre as identidades coletivas e os movimentos sociais, “dado que o processo de

construção de identidades coletivas seja crucial para a interpretação de todas as forma

de ação coletiva” (Facchini: 2009, p33).

Fluxos Enunciativos

A análise aqui realizada toma por princípio falas de militantes colhidas em

conversas e entrevistas, as observações feitas durante o período de campo e também

material informativo, cartazes e outros recursos escritos coletados em pesquisa

documental. Na averiguação dos documentos pudemos observar algumas grandes

correntes ou bandeiras temáticas que se vinculam às pautas reivindicadas e em certam

medida aos processos de fabricação das identidades coletiva que pretendemos

historicizar aqui. Estas correntes, apesar do fluxo das demandas temporais, muitas vezes

co-ocorrem e são atualizadas também na dimensão do espaço social e político. São elas:

Aids

“Cartilhismo”

Violência

Direitos Civis

- AIDS

Como dito linhas acima, a aids ocupa um lugar central não apenas para a

visibilidade da homossexualidade, mas também para o estabelecimento e expansão do

movimento LGBT pelo Brasil. As relações perigosas entre a “peste rosa” e a

impossibilidade do Estado em lidar com uma crise emergente estimulou o

estabelecimento de alianças e o reconhecimento de políticas públicas de saúde que

propiciaram o surgimento de uma onda higienista a limpar o gueto gay. O prazer

perigoso do coito é colocado como um alvo a ser derrubado em detrimento do sexo com

13

preservativo e aos medicamentos para aqueles já infectados. Todavia a intensa

massificação das relações entre Estado e grupo LGBT esta não foi a única orientação

adotada pelo movimento LGBT no Brasil. Ao esforço coletivo de contenção coletiva da

aids somava-se ainda o combate à violência e a busca pelo reconhecimento dos direitos

civis da população homossexual.

Na Paraíba, o MEL tem sua fundação fortemente vinculada à crise da aids. Em

oposição à atuação dos grupos que lhe foram anteriores, o Nós Também e o Beira de

Esquina, marcados por uma proposta de intervenção relacionadas à arte e à cultura,

também caracterizado pela liberação sexual e o jogo político com o jocoso, o processo

de fundação do MEL ancora suas primeiras ações públicas vinculadas ao combate ao

homossexualismo, à repressão policial, mas é efetivamente com os projetos financiados

pelo Ministério da Saúde e secretarias estadual e municipal que o grupo toma

visibilidade e consegue articular ações com melhores resultados.

Observamos nas falas dos líderes e representantes do movimento que

presenciaram ou participaram desses movimentos uma forte preocupação higienista, de

modo a construir um perfil responsável do movimento LGBT, consciente das regras de

conduta e etiquetas sexuais para evitar o contágio ou infecção pelo vírus. A participação

de categorias ou grupos associados à práticas de risco é reduzida ou negada, bem como

ações para “conversão” destes que são armas em potencial não só para a sociedade, já

que são portadores de um poder de morte, como também para o movimento, ao

estabelecer e reforçar a associação homossexual-aids.

São desenvolvidas ações efetivas de controle da peste por meio de campanhas

educativas em “pontos de pegação”, espaços habituais de trocas eróticas entre “homens

de verdade”, travestis, e bichas com distribuição de preservativos, mais recentemente

lubrificantes, e material educativo. As ações de sensibilização associam-se a outras

estratégias, tais como a inserção do tema nas escolas por meio de palestras e

intervenções, a visibilidade política em atos públicos, a inserção em unidades locais

como associações de bairro e parcerias com outros movimentos sociais, a exemplo do

estudantil, e partidos políticos de esquerda7. Em geral, estas parcerias está relacionada a

participação de militantes em outros movimentos sociais e partidos antes de ingressarem

na militância LGBT. Outra marca desse processo é a formação de “agentes

multiplicadores”, estratégia adotada com fins a formação de profissionais capacitados

7 Com relação a estes dois últimos a atuação de frentes LGBT ou de segmentos dentro dos movimentos e

partidos de militância LGBT é bastante reduzida, não apenas nos períodos iniciais, como atualmente.

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para informar sobre doenças sexualmente transmissíveis, a aids e as formas de contágio,

convivência com a doença para os infectados e distribuição de material preventivo.

Todas as iniciativas desenvolvidas nesse aspecto entre os anos de 1992, quando da

fundação do grupo, até 2006, pelo menos, foram financiadas pelo Estado,

principalmente pelo Ministério da Saúde, entre 1999 e 2005.

- Cartilhismo

O que chamamos aqui de cartilhismo refere-se a uma iniciativa constante

informação à sociedade de construções identitárias dentro do movimento homossexual

em torno dos atores que o compõe. Em geral a ação é materializada pela presença de

glosas explicativas, listas de termos e glossários que definem sujeitos como:

homossexual, lésbica, travesti, transgênero, bissexual, simpatizante, entre outros.

Torna-se interessante uma análise mais detalhada da forma como esse material e

a sua divulgação a um público amplo exercem-se como um esforço de evidenciar as

distinções existentes dentro do movimento, informando ao público e em certa medida,

aos próprios sujeitos envolvidos, formas e modelos classificatórios. Mais uma vez,

retomamos aqui a ideia de Butler (2003, p33), de que, para que algumas categorias

possam existir, é preciso que outras não existam, e isso pode ser observado não apenas

pela forma restrita em que as categorias são definidas em relação à coerência

estabelecida ou manifestada nas relações entre corpo-gênero-desejo, quanto pela

ausência de outras categorias que não performatizam formas socialmente aceitas como

coerente, seja sob uma visão heteronormativa, seja pelo prisma político dos militantes.

Outro elemento passível de análise e que se mostra bastante curioso é a retirada

da categoria simpatizante das possibilidades identitárias abarcadas pelo movimento

LGBT, aproximadamente por volta de 1998. Aqui, a ideia de simpatizante como um

aliado é cambiada por um dualismo entre GLT e GLS. Esse dualismo, na nossa óptica

complementar, advém da impossibilidade de categorias flexíveis. Assim, temos um

circuito político e um circuito mercadológico, que apesar das relações ativas que

estabelecem e contribuem para o apagamento da ideia de gueto em favor de um

mercado especializado e segmentado (França, 2006). O posicionamento essencialista de

SER GAY a que se relaciona o movimento LGBT não pode assim conceber formas

paradoxais como aquele que simpatiza com a causa e se reconhece como simpatizante.

Seria a politica LGBT exercida unicamente por gays, lésbicas, bissexuais, travestis e

transgêneros? As relações que se estabelecem eventualmente se caracterizam em geral

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como parcerias hierárquicas, onde o solicitador (movimento) parece ter causas maiores

e mais nobres que o fornecedor (mercado), nessa complexa economia política. Todavia,

essas conexões ativas, como são chamadas por Facchini, não são nosso objeto aqui, e

assim, não nos deteremos mais.

Outra categoria inserida como ponto de discussão, todavia em veículos

direcionados não ao público, mas à formação de agentes multiplicadores é a ideia de

HSH e MSM, ou seja, homem que faz sexo com homens, e mulher que faz sexo com

mulheres, em oposição às categorias gay e lésbica. Essas construções que rompem com

a gramática dos gêneros só chegam ao público por meio da promoção de políticas

públicas, apesar do longo tempo em que vem sendo utilizadas no discurso científico e

político. Caberia talvez questionar quais fatores estão envolvidos na (não) promoção e

visibilidade destas categorias incoerentes e desafiadoras à rigidez imposta pela politica

atual e tradicional LGBT.

- Violência

Elemento presente e discutido desde o período de formação dos primeiros

grupos LGBT no Brasil, as estratégias identitárias relacionadas à violência em geral tem

se configurado e apresentado pela vitimização dos homossexuais em torno das pautas

históricas. Dessa forma, na década de 1980, o homossexual é apresentado como vítima

da aids e do extermínio permitido pelo Estado nos primeiros anos da epidemia (Butler,

1992; Sontag, 1996) para em seguida ser vítima da violência simbólica e material da

violência, o que se observa pela imensa produção de relatórios de crimes homofóbicos,

algo até então inédito até o surgimento do Grupo Gay da Bahia (GGB). Com o passar

dos anos acontece o desenvolvimento de variações categóricas no enquadramento da

homofobia, passando-se então a segmentar a violência em detrimento das categorias

subjacentes à política. Surge assim, no esquema do politicamente correto, o emprego de

termos de lesbofobia e transforbia, para empregar a violência contra lésbicas e

transgêneros (travestis e transexuais) respectivamente.

Na Paraíba, desde 2003, relatórios e tentativas de levantamento de crimes

homofóbicos vem sendo realizados pelo MEL, em conjunto com outras organizações.

Todavia, o processo tem entraves nos métodos de coletas de dados, em geral tomado a

partir da mídia impressa, que nem sempre publica a orientação sexual da vítima. Aqui

também, a orientação sexual é tida como razão constante para os assassinatos,

desconsiderando-se quase sempre a possibilidade de outras motivações para os crimes.

16

Nos últimos seis anos, a Paraíba apresentou importantes avanços em relação às

políticas públicas para toda comunidade LGBT. Fruto de um convênio entre a Secretaria

Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e a ASTRAPA, foi criado,

em 2005, o Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à

Homofobia de João Pessoa, que oferece serviços e atendimentos na área de direito,

assistência social e psicologia. Desativado entre 2008 e 2011 devido ao reduzido

orçamento, o Centro voltou a funcionar em meados de 2011. Nesse mesmo ano, a

prefeitura municipal lançou a Lei 10.501/2005, que institui o dia 28 de julho como Dia

Municipal da Diversidade Sexual.

Em 2008, foi realizada em João Pessoa, assim como em diferentes capitais do

país, a 1ª Conferência Municipal de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e

Transexuais, em preparação para a 1ª Conferência Nacional LGBT. Desta conferência

foi construído o Primeiro Plano Nacional de Cidadania e Direitos Humanos LGBT. Em

julho de 2009, outra conquista foi realizada com a inauguração da 1ª Delegacia

Especializada de Crimes Homofóbicos de João Pessoa. Essa delegacia deveria

contribuir para notificar, denunciar e investigar os crimes contra homossexuais que

ocorrem na capital e, posteriormente, realizar um esforço de multiplicação para outras

delegacias em diferentes cidades do estado. Atualmente, grande parte dos crimes não

são notificados e mesmo os homicídios não são devidamente investigados e qualificados

como homofóbicos. Mesmo com a criação da delegacia especializada, a estrutura de

funcionamento desta não difere das demais, e a falta de uma estrutura de atendimento

adequado e preparação de agentes públicos para lidar com questões de violência

envolvendo principalmente travestis é uma queixa recorrente.

Estudos da Rede de Informação Tecnológica Latino Americana (RITLA) e do

Instituto Sangari, em parceria com o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde,

apontam para um crescimento assustador de mortes violentas na região metropolitana da

capital paraibana. Essas pesquisas chamam atenção, pois muitos desses assassinatos são

de jovens gays e travestis que vivem em situação de extrema vulnerabilidade econômica

e social. A discriminação sofrida pelos LGBTs ocorre em diferentes esferas sociais,

entre elas a família, a igreja e a escola. Conforme a pesquisa “Juventude e Sexualidade”,

publicada pela UNESCO em 2004, na qual foram entrevistados 3.099 educadores/as,

60% não sabem como abordar a questão da homossexualidade em sala de aula e 27%

dos estudantes não gostariam de ter um colega homossexual. Esses fatos não ocorrem

apenas porque os professores não desejam trabalhar esta temática, mas porque não

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obtiveram conhecimento adequado durante sua formação. A pesquisa mostra que a falta

de informações pode ser prejudicial para os/as alunos/as homossexuais que estão na

escola, provocando até mesmo sua evasão do ambiente escolar. Os/as jovens LGBT,

quando no processo de descoberta de sua sexualidade, acabam na maioria das vezes

sendo expulsos de seus lares, faltando-lhes um acompanhamento social, tanto para si

próprio como para a família. Para modificar esta realidade de segregação, discriminação

e exclusão social com a população LGBT da Paraíba, torna-se necessário o esforço de

diferentes setores do poder público e da sociedade civil no enfrentamento e combate às

práticas homofóbicas, na perspectiva de garantir o direito à livre orientação sexual e de

gênero e inserir as pessoas homossexuais e vítimas de violência nas políticas públicas e

programas governamentais existentes.

Em resposta a essa grave situação, a Secretaria de Desenvolvimento Humano do

Estado da Paraíba (SEDH/PB) publicou a Portaria nº 041/2009 que estabelece o uso do

nome social das travestis e transexuais nas unidades de atendimento da SEDH. Na

Paraíba, a SEDH/PB foi instituição pioneira nessa iniciativa, cuja normativa foi

assinada em de 11 de setembro de 2009, durante o Seminário Cidadania e Direitos

Humanos de LGBT, na Escola de Serviço Público do Estado da Paraíba (ESPEP), com

a participação de 150 servidores/as públicos estadual das mais diversas áreas, desde

educação, saúde, assistência social, segurança pública e administração penitenciária.

Seguindo o avanço da legislação estadual, a Prefeitura Municipal de João Pessoa

também instituiu documento semelhante do uso do nome social, estendendo sua

amplitude para as Secretarias de Desenvolvimento Social, Educação e Saúde, a partir da

Portaria nº 384/2010, de 23 de fevereiro de 2010, atendendo inclusive as travestis

matriculadas na Rede Pública de Ensino. O nome social está cada vez mais se tornando

realidade no Brasil. Há no Senado Federal o Projeto de Lei da Câmara nº 72/2007 que

possibilitará a substituição do prenome de pessoas transexuais, mas ainda não foi ao

plenário, paralelamente por intermédio da mobilização e da articulação do movimento

LGBT em vários Estados da Federação há normativas que estabelecem o uso do nome

social das travestis e transexuais. Segundo a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,

Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), hoje no Brasil há 11 estados e 8

municípios que regulamentaram a adoção do nome social nas escolas, contando ainda

com mais 4 Estados que dispõem de documentos específicos nas secretarias de

assistência social e saúde. Entretanto, a adoção do nome social tem sido um desafio para

estudantes travestis e transsexuais que tentam retornar para as escolas, especialmente no

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interior do estado, pois os/as profissionais da educação ainda tem como referência as

identidades de gênero convencionais, e heteronormativas, e muitas vezes não facilitam

uma adaptação dessas estudantes no ambiente escolar, de modo a reforçar a homofobia.

É preciso salientar ainda que, segundo a Associação das Travestis e Transexuais da

Paraíba (ASTRAPA), há um grande número de travestis que são analfabetas.

Observa-se durante os 20 anos de atuação do MEL em João Pessoa e região um

contínuo de tratamento em relação à violência, que se desenvolve da violência concreta

e material, no início e vai incorporando outras formas de manifestação, a exemplo da

violência simbólica e da negligência em relação a direitos civis básicos que se

apresentam de forma proeminente nos últimos anos.

- Direitos Civis

Pauta mais presente no movimento LGBT nos 5 últimos anos, a problemática

tem circulado em torno da construção ou afirmação da equiparação jurídica de direitos a

casais hetero e homossexuais. Entre os debates mais recorrentes, observamos os

esforços na tentativa de legitimar por vias jurídicas os mecanismos de construção de

parentesco, a exemplo da adoção por casais (ou não) homossexuais, da

homoparentalidade e do casamento civil. Ainda na esfera jurídica, alguns ganhos vem se

concretizando nos últimos anos, a exemplo da possibilidade de inserir parceiros ou

parceiras como dependentes em planos de saúde, na debitação do imposto de renda, ou

em alguns casos, como herdeiro, mesmo que neste último ainda seja necessário uma

intensa disputa jurídica, tendo em vista a inexistência dos aparatos legais que

reconhecessem a conjugalidade entre parceiros do mesmo sexo apontados linhas acima.

Apesar da realidade já presente em muitas famílias e cidades, onde casais

homossexuais exercem suas atividades livremente como família, tenham filhos ou não,

e sejam quais forem os métodos empregados para a inserção destas crianças nos meios

familiares, está parece ser uma questão bem mais complexa e problemática, tendo em

vista o conservadorismo das instâncias jurídicas de base, e mais ainda do

posicionamento de uma parcela sensível da população, fortemente influenciada por

outros dispositivos reguladores como a religião e a mídia. O que cabe aqui é questionar

quais as propostas identitárias estabelecidas por estas frentes de luta. Estaríamos

atravessando um período de mudança caracterizado pela troca de um modelo

segregacionista de categorização para um modelo igualitário?

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Considerações Finais

A atuação dos movimentos sociais na promoção da igualdade social e de justiça

é um aspecto que ainda precisa ser melhor estudado de modo a estabelecer um jogo de

reconhecimentos e alteridade nas relações de poder. Em relação o movimento LGBT, o

excepcional desenvolvimento deste em relação ao declínio de outros movimentos

relacionados a segmentos outros, tais como os movimentos negro e feminista,

caracterizam um fenômeno peculiar sobre o qual abordagens localizadas com fins a

reconhecer a atuação destes grupos nas realidades locais pode ser um investimento

potencial e importante. Semelhante, a busca pela compreensão dos significados

atribuídos e dos simbolismos encenados por estes grupos parece ser um campo fértil e

ainda pouco explorado nas ciências sociais.

Dada a falta de material para análise, realidade encontrada também em outros

casos, como o goiano abordado por Braz; Avelar; Jesus (2011) este paper buscou

apenas fazer algumas considerações sobre o andamento da pesquisa e suscitar questões

para a continuidade da atividade. Entendemos também a dupla limitação dessa ideia;

por mais fundo que queiramos chegar na questão, a busca antropológica pela totalidade

imaginada do tema é barrada pelas impossibilidades naturais à pesquisa, como relata

Geertz “não cheguei nem perto do fundo da questão. Aliás, não cheguei ao fundo de

nenhuma questão sobre a qual tenha escrito”, pois, como diz em seguida, “a análise

cultural é intrinsecamente incompleta, e pior, quanto mais profunda, mais incompleta”.

Então que seja essa incompletude responsável uma meta.

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