Na terceira pessoa: ensaio autobiográfico

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1 Na terceira pessoa: ensaio autobiográfico Ricardo André Frantz, 2014 Revisto e ampliado em 2017 A quem interessar possa, uma notícia sobre minha trajetória no mundo da arte e da cultura. Reuni algumas fontes e textos, preenchi as lacunas que eles deixaram, tentei ser objetivo. Nada é invenção, senão quando a memória pregou peças, mas devo dizer que minha juventude é muito "mal documentada" pela memória. Alguns críticos já falaram sobre meu trabalho, mas nenhum fez uma análise em retrospecto, e por isso o texto servirá para quem quiser saber mais sobre mim e minha produção e ter uma visão de conjunto. Então aí está, pesquisando e entrevistando a mim mesmo, um sumário escrito na terceira pessoa como um exercício de distanciamento, e com um pouco de humor, que ninguém é de ferro... Ricardo Frantz em 2009, quando ele ainda cabia nas suas roupas.

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Na terceira pessoa: ensaio autobiográfico

Ricardo André Frantz, 2014 Revisto e ampliado em 2017

A quem interessar possa, uma notícia sobre minha trajetória no mundo da arte e da cultura.

Reuni algumas fontes e textos,

preenchi as lacunas que eles deixaram, tentei ser objetivo. Nada é invenção, senão quando a memória pregou peças,

mas devo dizer que minha juventude é muito "mal documentada" pela memória.

Alguns críticos já falaram sobre meu trabalho, mas nenhum fez uma análise em retrospecto, e por isso o texto servirá para quem quiser saber mais sobre mim e minha produção e ter uma visão de conjunto.

Então aí está, pesquisando e entrevistando a mim mesmo,

um sumário escrito na terceira pessoa como um exercício de distanciamento, e com um pouco de humor, que ninguém é de ferro...

Ricardo Frantz em 2009, quando ele ainda cabia nas suas roupas.

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Ricardo André Frantz (Caxias do Sul, 10 de fevereiro de 1964) é um artista plástico, museólogo, músico, tradutor, curador, pesquisador independente e enciclopedista brasileiro. Formou-se pela UFRGS em 1990 com especialização em pintura, e desde então tem realizado dezenas de exposições coletivas e individuais no seu estado e algumas no centro do país, em diversas técnicas e formatos, passando por várias fases com características distintas. Ingressou por concurso no serviço público estadual e trabalhou principalmente no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, elaborando e executando vários projetos importantes à testa dos núcleos de Acervo e de Exposições, além de curadorias com o acervo da casa. Traduziu títulos sobre temas teosóficos, incluindo obras célebres. Colaborador voluntário da enciclopédia virtual Wikipédia, sob o username Tetraktys escreveu artigos sobre temas históricos e culturais, muitos deles destacados por votação e traduzidos para outras línguas. Já publicou ensaios sobre arte e museologia em revistas e independentemente. Foi integrante da banda de rock alternativo Aristóteles de Ananias Jr., que ganhou projeção estadual e nacional, e é compositor autodidata.

ÍNDICE RESUMO BIOGRÁFICO.............................................................. 4

CARREIRA INSTITUCIONAL........................................................ 9

ARTES VISUAIS A pré-história................................................................... 15 Profissionalização na Pintura............................................ 16 Desenhos......................................................................... 65 Fim de um ciclo................................................................ 88 Fotografia........................................................................ 94 Retorno à Pintura............................................................. 114

PRODUÇÃO ESCRITA................................................................. 128

MÚSICA Trabalho solo................................................................... 146 A Aristóteles de Ananias Jr............................................... 152 NA PRIMEIRA PESSOA............................................................... 160 APÊNDICE Outras imagens............................................................... 166 Imprensa......................................................................... 207 Documentos.................................................................... 247

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RESUMO BIOGRÁFICO

Ricardo André Frantz nasceu em Caxias do Sul em 10 de fevereiro de 1964, filho de Murillo Moacyr Frantz e Elisabeth Ana Longhi Frantz, de famílias antigas e tradicionais da cidade, que vêm se destacando desde a sua fundação em 1875. Seus ancestrais diretos participaram da criação e direção da primeira associação civil da colônia, a Sociedade Igreja São Romédio, que fundou a primeira igreja; ajudaram a construir a primeira Matriz e depois a atual Catedral; deram aulas na primeira escola pública; integraram a primeira Junta de Governo quando a colônia foi transformada em município, fizeram parte do primeiro Conselho Municipal, e participaram da fundação e direção do Diretório local do Partido Republicano Riograndense, da Associação dos Comerciantes, que por muitos anos conduziu a economia caxiense (antecessora da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços), e da Sociedade Príncipe de Nápoles, a principal associação de mútuo socorro. Parentes próximos também estiveram entre os fundadores dos principais clubes sociais (Recreio da Juventude e Clube Juvenil), dos primeiros times de futebol (E. C. Ideal e E. C. Juventude), da Associação Damas de Caridade, fundadora do Hospital Pompeia, o principal hospital regional, e da Sociedade Vinícola Riograndense, que veio a ser o maior produtor de vinho do Brasil. Depois um grande número de outros parentes se destacou nas áreas da política, indústria, comércio, sociedade, religião, beneficência, educação e cultura. Muitos foram ou são professores, administradores e diretores de escolas e instituições culturais. 1 Seu pai foi fundador, editor e diretor de revistas estudantis,2 articulista no jornal Pioneiro e um dos fundadores da Academia Caxiense de Letras;3 depois fez sólida carreira no Banco do Brasil4 e hoje é empresário. Tem sido um ativo membro do Rotary Cinquentenário,5 6 que chegou a presidir duas vezes,7 participou da diretoria da Festa da Uva,8 do Recreio da Juventude9 e do Clube Juvenil,10 recebendo várias distinções públicas pelos serviços prestados à comunidade, entre elas a Medalha Monumento Nacional ao Imigrante, a principal comenda outorgada pela Municipalidade.

1 Frantz, Ricardo André. Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História, vols. I, II e III.

Academia.edu, 2015 2 Irmão Gabriel. “Apresentando”. In: Avant Première, 1962; I (1)

3 Academia Caxiense de Letras. Membros fundadores.

4 Câmara de Vereadores de Caxias do Sul. Ata da 501ª Sessão Ordinária da XIV Legislatura, 22/10/2008

5 Câmara de Vereadores de Caxias do Sul. Ata da 263ª Sessão Ordinária, 18/05/1995

6 “Rotary Cinquentenário 35 Anos”. Folha de Hoje, 07/05/1993

7 Rotary Club Caxias do Sul – Cinquentenário. Galeria dos Presidentes.

8 “Comissão de Festas e da Rainha inicia promoção da Festa da Uva-81”. Pioneiro, 31/05/1980

9 Informativo Social do Recreio da Juventude, 1976; (6).

10 “Sociedade”. Gazeta de Caxias, 18-24/05/2005

O irmão e os pais de Ricardo Frantz (os três primeiros à esquerda, agachados em primeiro plano) e a família de sua mãe nos anos 80. Ricardo está bem à direita, de camisa azul clara, sentado no chão com uma criança no colo.

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A dedicação de sua mãe às artes como professora e grande agitadora cultural foi uma influência determinante na escolha de seus rumos futuros. Foi ela também presidente da Juventude Estudantil Católica,11 apreciada cronista do jornal Pioneiro,12 13 uma das fundadoras da Academia Caxiense de Letras,14 diretora do Colégio Imigrante, projetando-o estadualmente por sua pedagogia avançada,15 por oito anos diretora do Departamento Cultural do Clube Juvenil, organizando um grande projeto de resgate de sua memória,16 17 e presidiu o Núcleo de Artes Visuais de Caxias do Sul, de relevante atuação regional.18 Tem um irmão, Marcelo, especialista em Informática e empresário, pioneiro na cidade da mídia eletrônica out-door.19 Frantz Ver nota 20 recebeu as primeiras letras no Colégio José Penna de Moraes, onde sua habilidade no desenho começou a ser notada. A partir da 5ª série estudou no Colégio do Carmo, um dos mais reputados colégios privados da cidade, onde concluiu sua educação básica e recebeu um prêmio em um salão de arte estudantil. Enquanto isso, com 15 anos iniciou estudos de violino com Gabriella Coletti, membro da Orquestra Sinfônica local. No entanto, só acompanharia dois anos do treinamento, já dividido entre Caxias e Porto Alegre, para onde se transferiu em 1981 a fim de cursar Biologia na UFRGS. Ingressou na Escola de Música da OSPA para se aperfeiçoar no violino, mas abandonou o curso seis meses depois. Permaneceu na Biologia por dois anos, mas a abandonou em favor da Medicina, que iniciou na PUCRS, cursando quatro anos. Enquanto isso, matriculou-se no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, cursando Desenho e Gravura. Em 1987 deixou a Medicina e fez vestibular para as Artes, obtendo em 1990 o bacharelado no Instituto de Artes da UFRGS (IA) com ênfase em Pintura, com trabalho de conclusão orientado por Renato Heuser. Seu trabalho de pintura logo foi apreciado fora da academia, sendo convidado para exposições coletivas e realizando individuais.

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Longhi, Elisabeth Ana. “A JEC em Ação”. Pioneiro, 19/09/1959 12

Editorial. “A delicadeza de nossa colaboradora Elisabeth”. Pioneiro, xx/03/1961 13

Santos, Leonir. “Academia Caxiense de Letras (V)”. Jornal do Comércio, 03/06/1996 14

Adami, João Spadari. Dicionário dos Intelectuais Caxienses, Editora São Miguel, 1960 15

“Integração entre a Escola e a Comunidade: A fórmula para Imigrante ser colégio-modelo”. Pioneiro, 16/08/1977 16

Frantz, Elisabeth Ana Longhi. “Retrospectiva Cultural / 100 Anos”. In: Juvenews, 2006; XIII (3) 17

“Centro de Cultura recebe 3º ato de exposição cultural”. Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Caxias do Sul, 11/05/2006 18

“Núcleo de Artes Visuais promove a cultura regional”. Jornal do Comércio, 21/09/1995 19

“Mídia eletrônica chega a Caxias”. Gazeta de Caxias, 02-08/05/1998 20

“Frantz” é o nome pelo qual também é mais conhecido o artista plástico Antônio Augusto Frantz Soares, seu primo distante, mas neste ensaio “Frantz” remeterá sempre a Ricardo André.

Memórias da faculdade: Adolfo Bittencourt, Ricardo Frantz, Sandra Colla, Carina Oleksiuk e Renato Heuser.

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Em 1992 passou a fazer parte da equipe de restauro do Salão Nobre do Solar dos Câmara em Porto Alegre, a mais antiga edificação habitacional da cidade ainda em uso, patrimônio tombado pelo IPHAE. A equipe foi dirigida pela restauradora Denise Lampert.21 Após seis meses de trabalho, teve de deixá-lo para assumir um cargo no funcionalismo público, sendo aprovado em concurso da Secretaria Estadual da Cultura na função de Técnico em Assuntos Culturais. A partir de então suas atividades se dividiriam entre as funções técnicas oficiais e a carreira individual nas artes. Destinado ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), passou a auxiliar no gerenciamento das exposições, e depois, trabalhando no Núcleo de Acervo, recebeu das museólogas Ruth Bernardes e Flávia Bento, ao longo de vários anos, treinamento específico em Museologia, Patrimônio Histórico, Conservação de Bens Culturais e metodologias de pesquisa histórica e sistematização documental. Foi coordenador dos dois setores por vários anos, realizando um trabalho elogiado pelas direções e por pesquisadores. Foi fundamental nesta fase sua associação com a banda de rock alternativo Aristóteles de Ananias Jr. como violinista, figurinista, cenógrafo, cantor e co-roteirista de videoclips e filmes em vídeo, que perdurou até 1996. A banda lhe deu novos referenciais estéticos, emprestava grande importância à visualidade em cenários e figurinos especiais e apresentações performáticas, e ganhou notoriedade local e nacional por sua proposta radical, irônica e questionadora, sendo incluída em várias listas de melhores bandas do rock sulino.22 23 24 25 26

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Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul [Ruas, Tabajara; Nardi Filho, Hélio & Achutti, Luiz Eduardo]. Solar dos Câmara. Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1993, p. 89 22

Faria, Arthur de. Um Século de Música no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CEEE, 2001, s/pp 23

Mendes, Marcelo. "Grandes histórias do rock 2002/2003: cap. 3". Overmundo, 01/06/2006 24

Egs, Eduardo. "Três lados para cada história". Overmundo, 17/04/2006 25

Spuldar, Rafael. "Entrevista com Frank Jorge". MúsicaTri.com, consulta em 20/02/2013 26

Avila, Alisson; Bastos, Cristiano & Müller, Eduardo. Gauleses Irredutíveis: causos e atitudes do rock gaúcho. Sagra-Luzzatto, 2001. 2ª edição revisada (e-book, 2012)

Memórias da faculdade: Ubiratã Braga, Laura Fróes, Ricardo Frantz, Paulo Gomes, Tuca Stangherlin, Marilice Corona, Nelson Wilbert e

Gelson Radaelli. Abaixo, Ricardo Frantz, Chico Machado e Marcelo Birck em show da Aristóteles de Ananias Jr.

O Salão Nobre do Solar dos Câmara

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A partir de então adotaria em seu trabalho solo uma estética iconoclasta, revisando e discutindo a tradição artística erudita do ocidente em associação com referências da arte popular, da cultura de massa e da música, realizando exposições individuais performáticas e instalações com mídias diversificadas, além de fazer parte de várias coletivas e salões no estado e fora dele, com uma obra que foi apontada como inovadora e inquietante.27 28 29 Deve ser assinalada nesta época sua parceria com Chico Machado na realização de inúmeras pinturas a quatro mãos, muitas em grandes formatos, que apareceram em algumas exposições. Em 2002 montou Memorabilia no Centro de Cultura Dr. Henrique Ordovás, em Caxias do Sul, uma individual que fez um balanço de sua carreira até então e assinalou um momento de mudança de interesses e prioridades. Com o aumento de suas responsabilidades no MARGS, já ocupando cargos de coordenação e fazendo intensivos estudos de museologia, história e teoria da arte, a carreira artística pessoal entrou em um ritmo menos intenso. Mesmo assim, continuou a produzir e a expor, passando a trabalhar exclusivamente com fotografia e explorando suas relações com a pintura e outras mídias. Também neste período iniciou sua produção em composição musical de forma autodidata, produzindo através de meios computadorizados mais de trezentas peças de pequenas e grandes proporções, que vão de miniaturas instrumentais e canções polifônicas a uma missa e suítes, usando referenciais antigos e modernos. Ao mesmo tempo passou a se dedicar à escrita, produzindo ensaios sobre arte e história, além de colaborar com a enciclopédia virtual Wikipédia escrevendo centenas de artigos sobre os mesmos temas. No mesmo período traduziu muitas obras teosóficas para a Sociedade Teosófica do Canadá e a Igreja Católica Liberal do Brasil. Permaneceria concentrado na fotografia até 2011, quando demitiu-se do serviço público e retomou à pintura, realizando em pouco tempo uma série de obras em grandes dimensões em um estilo fotorrealista, que tiveram boa receptividade no circuito e foram expostas em várias mostras. Em março de 2014 realizou uma individual na Galeria Municipal de Arte de Caxias do Sul, Terra, onde reuniu dez pinturas recentes em grandes dimensões, 30 considerada pelo autor como uma das principais em sua carreira. Depois desta mostra interrompeu suas atividades artísticas para iniciar uma pesquisa sobre a história de sua família, que exigiria mais de dois anos de trabalho. Em 2016 participou da repintura do muro da Avenida Mauá de Porto Alegre.31 Tem obras em coleções particulares em Porto Alegre, Caxias do Sul e Rio de Janeiro, no Acervo Municipal de Arte da Prefeitura de Caxias do Sul e no acervo da Galeria de Arte da UNICAMP. Tem verbete no Dicionário de Artes Plásticas do Rio Grande do Sul, de Renato Rosa e Décio Presser.32 Sua produção anterior ao ano de 2002 é muito mal documentada. Uma grande quantidade de obras deste período foi destruída, perdeu-se ou se estragou. Muitas outras estão em paradeiro ignorado, distribuídas entre amigos e conhecidos que o artista perdeu de vista.

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Paviani, Jayme. “Inquietude do artista, serenidade da arte”. Pioneiro, 01/06/1996 28

Gomes, Paulo. “Jovem Pintura Figurativa”. In: MACRS [Gomes, Paulo (curador)]. Jovem Pintura Figurativa. Porto Alegre, 1994 29

Peixoto, Nelson Brissac. “Ricardo Frantz”. In: Governo do Estado de São Paulo / Companhia Antarctica Paulista / Folha de São Paulo. Antarctica Artes com a Folha [Mammi, Lorenzo et al. (curadores)]. Cosac Naify, 1998 30

Garziera, Thiago. “Terra”. Pioneiro, 08/03/2014. 31

“Trinta artistas pintam simultaneamente o muro da Mauá”. Zero Hora, 02/04/2016 32

Rosa & Presser, op. cit.

O artista documentando a instalação que apresentou na coletiva Antarctica Artes com a Folha, em São Paulo.

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A fronteira final, 2011, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm. A partir de uma foto da NASA publicada no Wikimedia Commons com uma licença PD-USGov-NASA

Abaixo, Epifania, 2011, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm. A partir de uma foto de Holger Krisp publicada no Wikimedia Commons com uma licença self|cc-by-3.0

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CARREIRA INSTITUCIONAL

Atuando no MARGS desde 1992, chegou a ocupar a função de coordenador de setor em cinco gestões sucessivas, primeiro do Núcleo de Exposições, quando eram diretores Romanita Disconzi e Paulo César Brasil do Amaral, e depois do Núcleo de Acervo, na gestão de Fábio Coutinho, na segunda de Amaral e na de Cézar Prestes, numa fase em que o museu se reerguia de profunda crise, renovava seus conceitos e critérios e por fim conquistou notoriedade nacional pelos serviços qualificados que passou a oferecer.33 34 Como coordenador das Exposições gerenciava praticamente todas as mostras da casa e os intercâmbios institucionais. Na chefia do Núcleo de Acervo elaborou e executou, com sua equipe, a segunda etapa do Projeto Informatização do Banco de Dados, dando continuidade a um projeto fundamental para uma atualização das atividades do Acervo, iniciado por Acácia Hagen e dedicado a sistematizar e digitalizar a base documental em papel dispersa desde a fundação do museu e criar um banco de imagens de alta qualidade de toda a coleção, até então extremamente pobre em imagens.35 Estabeleceu novos critérios de sistematização e armazenagem das obras na Reserva Técnica e supervisionou a reforma de seus equipamentos. Organizou a criação de uma Reserva Técnica auxiliar. Em nome do MARGS deu assessoria técnica a várias instituições, com destaque para a que deu ao Acervo Municipal de Arte da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul (AMARP), estabelecendo parâmetros técnicos para a criação de sua primeira Reserva Técnica e a reorganização de seu banco de dados, além de dar treinamento básico em conceitos e procedimentos de conservação preventiva à equipe de lá.36 Por este trabalho Frantz foi elogiado em discurso do Secretário da Cultura em evento no Museu Municipal em parceria com a Associação Moúsai, e novamente sua contribuição foi lembrada na inauguração do espaço.37

38 Estruturou, participou da comissão técnica e curatorial e gerenciou o Projeto Aquisição – Os Precursores, que adquiriu um lote de quase cem novas obras para cobrir as lacunas mais urgentes da coleção de pioneiros da arte gaúcha, no primeiro e até agora único projeto que teve tal objetivo, selecionando pessoalmente, junto com o diretor do MARGS, Fábio Coutinho, as obras disponíveis no mercado a partir da lista de artistas prioritários estabelecida pelas pesquisadoras e professoras da UFRGS Ana Albani de Carvalho e Marilene Pieta. Entre outras raridades, o projeto obteve um registro único de Pedro Weingärtner do seu tempo de estudante na Academia Julian de Paris, e que é um dos pouquíssimos testemunhos em pintura a sobreviver da famosa escola que atraía discípulos de todo o mundo.39 40

33

MARGS. “Histórico: Anos 90”. 34

Amaral, Paulo C. Brasil do. “Novos tempos, sede nova”. In: MARGS. MARGS 50 Anos: Memória do Museu: Lembranças e envolvimento profissional: Anos 90, 2004 35

Frantz (2007-2014), op. cit. 36

“Reestruturação do AMARP”. Secretaria da Cultura, Prefeitura de Caxias do Sul 37

“Caxias do Sul inaugura nova sede do AMARP”. Olá Serra Gaúcha, 27/11/2010 38

“AMARP completa 10 anos nesta quarta-feira”. Departamento de Comunicação, Prefeitura de Caxias do Sul, 07/05/2014 39

Frantz (2007), op. cit. 40

MARGS. Projeto Aquisição de Acervo para o MARGS – Os Precursores, 2000

Obra adquirida pelo Projeto Aquisição – Os Precursores. A Banhista, de Antonio Caringi.

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Participou da curadoria e organização do Projeto Itinerâncias, que depois de muitos anos de inatividade retomou a tradição de se enviar para cidades do interior do estado recortes do acervo do MARGS, sendo realizadas quatro importantes mostras (Caxias do Sul, Passo Fundo, Santa Maria e Pelotas) que tiveram excelente receptividade.41 Realizou a curadoria de grande número de exposições com a coleção do MARGS, como Caminhos da Cerâmica no Rio Grande do Sul, Escultura no Rio Grande do Sul, 1978: o MARGS em nova sede, Arte Naïf no Acervo do MARGS e uma série de outras, mas destacam-se a mostra de longa duração Acervo Permanente (2000-2009), com uma seleção das peças principais do acervo, organizada de maneira a reconstituir o percurso histórico das artes locais, atendendo a antigo desejo da população, sobretudo dos escolares e professores da rede pública, iniciativa que foi elogiada por Armindo Trevisan pela sua utilidade educativa,42 43 e Acervo do MARGS – Evolução Histórica (2007), que fez um pioneiro mapeamento da evolução do acervo desde suas origens, ocupando todo o primeiro piso do museu.44 Participou da comissão editorial e curatorial de um grande catálogo sobre o acervo, integrante da série Museus Brasileiros, publicada pelo Banco Safra. Também foi o principal responsável pela curadoria da grande seleção de obras que o museu apresentou ao público virtualmente em seu website entre 2000 e 2011. Participou de juris de salões e de comissões de seleção de novas doações, deu preparo a monitores de exposição e estagiários, deu palestras sobre a coleção, patrimônio e conservação de acervos ao público em geral e em visitas guiadas, além de auxiliar inúmeros pesquisadores em seu trabalho. Trabalhando por um breve período no Instituto Estadual de Música, coordenou o Projeto 6:30 em Pauta, realizado no Museu Júlio de Castilhos e dedicado à música de câmara brasileira e internacional, prestigiando os intérpretes locais, e participou da administração do Projeto MUSISOM, dedicado à MPB e ao Nativismo. Em 2011 demitiu-se do serviço público, num período de grande crise institucional, tendo entrado uma direção que estabeleceu como prática o assédio moral, o desrespeito sistemático a todas as normas museológicas internacionais e à legislação brasileira, fazendo uma divulgação pública de sua atividade recheada de mentiras e erros. Um panorama desta catastrófica e espúria gestão, que acabou por fazê-lo perder o emprego e a saúde, foi descrito no artigo-denúncia Como anda o MARGS? : dúvidas e esclarecimentos.

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“O melhor do MARGS na Serra”. Pioneiro, 20/10/1999 42

Coutinho, Fábio Borgatti. “Projeto Curadorias de Acervo”. In: MARGS [Pieta, Marilene Burtet (curadora)]. Curadorias de Acervo: Anos 60/70, 2000. Catálogo de exposição. 43

Trevisan, Armindo. “A atualidade de um Museu”. In: MARGS. MARGS. Tomo Editorial, 2000, pp. 31-40 44

Frantz (2007), op. cit.

Detalhe da exposição Acervo do MARGS – Evolução Histórica

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Capa do catálogo do Projeto Itinerâncias, uma das principais iniciativas da gestão de Fábio Coutinho, no qual Frantz colaborou na organização e na curadoria.

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Capa do catálogo da exposição Acervo do MARGS – Evolução Histórica, uma das principais mostras da gestão de Cézar Prestes, e abaixo detalhe do miolo com texto da

curadoria apresentando a coleção.

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ARTES VISUAIS A pré-história Ricardo Frantz começou suas experiências com arte ainda na infância, desenhando bastante. Na adolescência foi influenciado por Vasco Prado, e produziu algumas xilogravuras e desenhos com um estilo decalcado no do mestre. Quando estudava Medicina, matriculou-se nos cursos de Desenho e Gravura do Atelier Livre de Porto Alegre entre 1986 e 1987. Nunca se ambientou satisfatoriamente na gravura, considerava as técnicas com ácidos morosas demais, e preferiu a ponta seca, usando matrizes de acetato, mas o desenho, com seu imediatismo, foi o território onde deixou mais trabalhos. Uma oficina realizada em 1986 com Carlos Pasquetti foi um grande incentivo. Também explorou bastante a técnica da aquarela. Não havia nenhuma direção definida em suas intenções, foi uma fase de “teste de campo”, mais como um hobby, uma vez que até então seus planos de futuro ainda estavam centrados na Medicina. Suas principais influências gráficas neste momento vinham de Paul Klee, Joan Miró e Alexander Calder, que havia conhecido através de sua prima Thaís Panceri e seu marido Eduardo Augusto Nunes, que desenvolviam carreiras artísticas e o introduziram em seu círculo de amigos, onde se incluíam Maristela Salvatori e Maria Lúcia Cattani. Foi uma fase de crescente interesse pela Arte.

Dois desenhos a pastel oleoso, sem título, 1986.

Sem título, xilogravura, início da década de 80.

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Profissionalização na Pintura Quando o pretenso futuro médico percebeu que seria na verdade um fracasso de profissional, os planos se voltaram para a Arte, fazendo vestibular na UFRGS e ingressando no curso em 1987. As aulas de modelo vivo lhe deram um razoável domínio do corpo humano, mas só tardiamente fez uso desta habilidade em sua produção criativa, e desenhos numa linha que vinha desenvolvendo desde o Atelier Livre continuaram ocupando suas principais atenções no início do curso, mas a grande maioria foi destruída e o que sobrevive tem escasso valor artístico. A exposição Arte de Berlin, trazida pelo MARGS em 1987, onde a pintura tinha grande representação, foi o primeiro “choque de beleza” que recebeu na capital gaúcha. No fim dos anos 80 a pintura em todo o mundo experimentava um ressurgimento fulgurante depois de um período de grande descrédito e descaracterização. O Rio Grande do Sul sentia o mesmo impacto, que transformava o cenário estético local, e o Instituto de Artes da UFRGS (IA) era um grande centro irradiador de influência. A influência dos berlinenses não se revelaria de imediato. Frantz começou usando a tela e os meios tradicionais para pintar em linguagem abstrata, mas passou por várias vertentes do abstracionismo. Seus ídolos na época eram muito divergentes: Klee, Mantegna e a arte ítalo-bizantina, com particular interesse por iluminuras e mosaicos, e o que gravitava em torno desses polos.

Portal, acrílico sobre tela, 220x180 cm, 1988.

Sem título, pastel oleoso, 1986. Ao lado, Totem, nanquim, 1986.

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As primeiras composições são formais, duras, empregando um geometrismo bastante rigoroso e forte ênfase na técnica de veladura. Para o autor elas guardam hoje um interesse principalmente histórico, mas foram importantes por serem os primeiros experimentos em grandes formatos. Na metade do curso já estava começando a incorporar elementos figurativos com forte carga simbólica e emblemática, muitas vezes de origem religiosa. Quebrariam definitivamente a sua antiga formalidade a descoberta da obra de De Kooning e Anselm Kiefer, e o contato com Renato Heuser, professor de Frantz nas etapas mais avançadas do curso e seu futuro orientador do projeto de graduação. Ele tinha fortes ligações com a escola de pintura abstrata de Berlin, onde estudara, e que estava em alta internacionalmente.45 46 Renato exercia grande influência sobre a nova geração por sua personalidade carismática e sua abordagem original e libertária da docência. Mais distantes, embora em rápida aproximação, permaneciam Duchamp e os conceituais. Ao longo do curso ocorreriam experimentos em uma larga gama de linguagens diferenciadas, sofrendo influências massivas de escolas radicalmente distintas em rápida sucessão, mas a abstração informal acabaria prevalecendo pouco antes de iniciar seu projeto de graduação.

45

Cattani, Icleia Borsa. "Identidade Cultural e Relações de Poder: A Arte Contemporânea no Rio Grande do Sul, Brasil (1980-1990)". In Bulhões, Maria Amélia (org.). Artes Plásticas no Rio Grande do Sul: Pesquisas Recentes. Porto Alegre: EDIUFRGS, 1995. pp. 170-89 46

Brittes, Blanca. "Breve Olhar sobre os Anos Oitenta". In Gomes, Paulo (org.) Artes Plásticas no Rio Grande do Sul: Uma Panorâmica. Porto Alegre: Lahtu Sensu, 2007. pp. 136-155

Madonna in maestà, acrílica sobre tela, 220x180cm, 1988. Ao lado, Ressurreição, acrílica sobre tela, 180x120cm, 1988.

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Sem título, acrílico sobre tela, 200x160cm, 1988-89. Ao lado, Alento, acrílica sobre tela, 180x120 cm, 1989.

Fogo branco, acrílica sobre tela, 180x120 cm, 1989. Ao lado, sem título, acrílica sobre tela, 180x120 cm, 1989.

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Sem título, 1989, acrílica sobre tela, 220 x 180 cm.

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Sem título, 1989, acrílica sobre tela, 220 x 180 cm.

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Sem título, 1989, acrílica sobre tela, 220 x 180 cm.

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No último ano, 1990, passou para o suporte papel, arranjando grandes painéis em colagem de pequenos fragmentos de folhas de jornal coladas sobre papel kraft, e tinta por cima de tudo. Em geral preparava suas cores com pigmentos em pó, os "clássicos" pós-xadrez, e uma base incolor, em geral o "inesquecível" Liquibase. Seu trabalho de conclusão apresentou esses painéis colados e pintados, um deles tão grande que, segundo refere, "precisava dobrar a esquina da sala de pintura do IA, e para que as pessoas pudessem passar teve de ser aberta uma passagem no meio da pintura. Todos deviam me odiar". Mas ali fez alguns de seus melhores e mais influentes amigos, e as aulas com Renato eram um perene (e grato) imprevisto. Pouco prezava as aulas de História da Arte, "nas quais regularmente dormia, assim como nas teóricas”, e "daria um dedo para fugir de quase todas as que não fossem atelier". Na época lia muita Teosofia, Filosofia Clássica e Religião Comparada, mas de fato pouquíssima Teoria da Arte, e suas fontes de informação eram essencialmente visuais e sonoras. Leu alguns teóricos como Arnold Hauser, Aracy Amaral e Jorge Coli, embora não seja capaz de fazer uma citação de memória. Afirma que guarda mais conceitos e contextos gerais do que especificidades, as quais diz viver esquecendo. "Fora o atelier, o bar do IA e o bar do lado do IA eram os pontos de encontro mais regulares. Talvez isso explique a amnésia", diz o artista, piscando um olho.

Ilha fortaleza, acrílica sobre papel, 3 x 2,5m, 1990.

23

Ativação, acrílica sobre papel, 230x230cm, 1990

Glória, 1990, acrílica sobre papel, 3,4 x 2,5 m

24

Seu trabalho textual de conclusão de curso, sintomaticamente, “foi um improviso poético de quatro páginas feito na manhã da defesa e encadernado meia hora antes da apresentação”, que hoje lhe parece um absurdo. Diz que foi "incrível que tenha sido aceito, nem lembro se na época era obrigatório, não lembro de uma palavra do que eu disse ou do que disseram, mas as pinturas fizeram boa figura". O texto apresentado merece ter alguns trechos mais significativos reproduzidos pelo seu valor como documento das ideias e motivações que o conduziam nesta época:

Nós não temos nenhuma Arte porque fazemos todas as coisas o melhor que podemos.

Sabedoria balinesa

I “A proposta deste projeto de graduação não é na verdade uma proposta. Não pretendo com estes trabalhos defender nenhuma tese, nem desenvolver qualquer tipo de pesquisa formal. Apresento simplesmente o aspecto plástico de um modo de ser.

II

“Não concebo meu trabalho como uma atividade autônoma, apartada do resto da minha vida, mas como parte indistinguível dela. É tão importante quanto comer, dormir, ler o jornal, andar pela rua, ouvir música, e tão prosaico quanto essas coisas todas e todas as outras que faço. É natural, pois, que nele se revelem os sinais de todas essas vivências cotidianas, de todas as minhas ideias e atitudes, crenças e imposturas, de minhas banalidades e erudições, de minhas coerências e de meus disparates. E realizo essa grande (con)fusão movido fundamentalmente por duas forças: o simples prazer de realizá-las, e o sentimento de gratidão a Deus pela vida, pelas coisas, pelo prazer. Meu trabalho é essencialmente autobiográfico.

III

Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol,

E a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas

Alberto Caeiro

IV “Manipulo os materiais ludicamente, e vivo o próprio ato de pintar de um modo descompromissado. Rasgar o papel, incorporar a sujeira ambiental no trabalho, permitir-me ao descuido e ao desleixo, aceitar a ocorrência do acaso (na brusca descontinuidade pictórica, ou na imprevista continuidade, decorrentes da colagem em sobreposição de fragmentos de papel pré-pintados) e mesmo provocá-lo, ou, ao contrário, estabelecer elos entre os elementos incongruentes através de sobrepinturas, cortar áreas da superfície para recolocá-las em outros lugares, em outras posições, num verdadeiro jogo de recorte-e-monte, todas essas manobras, enfim, são fruto de uma atitude essencialmente não-séria frente ao trabalho, que se mantém mesmo quando o abordo de maneira convencional. [...]

25

“Nem mesmo a questão tamanho/proporções do trabalho segue normas estabelecidas a priori. Aumento-o ou diminuo-o de acordo com as exigências de seu próprio crescimento, de seu desenvolvimento interno, que pode assim acontecer de um modo mais orgânico, mais imprevisível, mais vivo e espontâneo. [...] Deixo que as coisas apenas aconteçam, não procuro forçá-las. Meu objetivo não é alcançar o ideal abstrato (por definição, inalcançável), mas aceito o que se passa no momento em que trabalho, sem lutar contra o fluxo dos acontecimentos, mesmo que o resultado seja a incompletude, ou o sobrecarregamento, e mesmo se é isso o que ocorre, não se tratam de defeitos, nem tampouco de qualidades, mas de meras características. Terão sido fiéis ao momento e a mim mesmo naquele momento, e estarão bem sendo exatamente como são. Desaparecendo o conflito, o drama, desaparece a dor.

[...] VI

“Meu repertório iconográfico é bastante eclético. Já fiz uso de elementos barrocos, renascentistas e contemporâneos em meus trabalhos, e na verdade posso detectar a presença latente de toda a tradição artística ocidental, ainda que minhas fontes mais diretas sejam os mosaicos e ícones bizantinos e as iluminuras medievais, tratados plasticamente a partir dos ensinamentos de Van Goigh e De Kooning. Referências igualmente fortes, mas indiretas, são também a obra de Klee e de J. S. Bach. [...] E, além disso, a palavra escrita, via de regra citações de textos sacros ou litúrgicos. “Todos esses elementos variados, os emprego, no nível do significado, de maneira análoga à própria construção matérica do trabalho, isto é, como uma colagem. [...] Apesar de a apreensão racional integral de meu trabalho exigir do observador um background cultural específico, não considero nem minimamente prejudicado aquele que diante dessas pinturas apenas fruí-las com seus olhos e coração. [...] Dizer é o que importa, dizer é que é a realidade concreta e palpável, insubstituível, plenamente vivenciável, que vence todos os argumentos. Quem compreende na verdade se lembra, e lembrar é não ver. VII “Não sei aonde isso me levará, nem quero saber. Nem é importante que me leve a qualquer lugar. Progresso, melhoramento, são palavras que carecem de sentido para mim. Não quero ser nada além do que sou, nem fazer outra coisa. Certamente haverei de me modificar com o tempo, mas não serei melhor – serei apenas diferente”.

A terra é feita de céu. A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu. Tudo é verdade e caminho.

Fernando Pessoa.47

47

Frantz, Ricardo André. Trabalho de Graduação em Pintura. Orientador: Renato Heuser. Banca de Avaliação: Yeddo Titze, Mara Pasquetti, Nilza Haertel. UFRGS, 1990

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Seu trabalho nesta época começou a chamar a atenção da crítica. O primeiro a escrever sobre ele foi seu antigo professor Yeddo Titze, no catálogo da exposição coletiva Eppur si muove..., montada no MARGS em 1991, dentro do Projeto João Fahrion do Instituto Estadual de Artes Visuais (IEAVI), dedicado a artistas emergentes, com trabalhos seus e de Andrea Costa e Patrícia Bohrer:

“Andrea, Ricardo e Patrícia procuram expressões próprias dentro dos credenciamentos tidos como válidos em nossos dias. E neste momento podemos julgá-los pelo que nos apresentam, haja visto que são jovens e batalhadores, e que a persistência é o elo comum que os une, pois visam a realização de uma pintura plena e consciente dentro da necessidade de expressão de cada um. [...] Ricardo usa suportes não tradicionais para exprimir uma temática que recria raízes tradicionais, onde a nova realidade é sua meta e objetivo. [...] Acreditamos e confiamos na Geração 90, pois sem dúvida eles são frutos dos conflitos deste fim de século, mas com o mérito de não sucumbirem à voracidade negativa do cotidiano, aliás muito pelo contrário, como nos prova a presente mostra, pois conseguem extrair do caos subsídios que, uma vez reciclados, tornam-se a essência de um novo mundo onde deverá existir, sempre, um lugar que permita ao homem a possibilidade de externar sua grandeza e poder de renovação”.48

Trabalhos que fizeram parte do seu projeto de graduação e outros deles derivados foram expostos nas suas duas primeiras individuais, realizadas ambas em Caxias do Sul, a primeira em 1991, na galeria do Clube Juvenil, a convite do Núcleo de Artes Visuais da cidade,49 e a segunda em 1992, na Galeria de Arte Municipal da Casa de Cultura Percy Vargas de Abreu e Lima, intitulada Speculações, abrindo as comemorações dos 10 anos de atividades deste centro cultural, e contando com a presença de personalidades como Hermes Zanetti, secretário de Educação e Cultura do Município, o crítico Tadeu Chiarelli, Odir Frizzo, representando a Câmara de Vereadores, José Albano Wolkmer, diretor do MARGS, e a diretoria do Núcleo de Artes Visuais de Caxias do Sul.50

48

Titze, Yeddo. “Apresentação”. In: IEAVI. Eppur si muove... Pinturas, 1991. Catálogo da exposição. 49

“Pulsação visual celebra vida em obras de Frantz”. Pioneiro, 19/11/1991 50

“Ricardo Frantz na Casa de Cultura”. Pellegrino, jul/1992

Vista parcial da exposição individual na Galeria de Arte do Clube Juvenil em 1991. Todas essas obras foram parte do seu projeto de graduação.

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Essas obras lhe valeram ainda uma Menção Honrosa no III Salão Latino-Americano de Artes Plásticas de Santa Maria em 1992,51 a inclusão entre os destaques culturais do ano de 1992 no balanço do jornalista João Pulita de Caxias do Sul,52 o ingresso no 10º Salão de Artes Plósticas Câmara Municipal de Porto Alegre, e o convite para participar no mesmo ano de duas grandes coletivas. A primeira, Novas Atitudes, realizada pelo IEAVI no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS) em Porto Alegre, reuniu os destaques ao longo dos eventos organizados nos três anos anteriores no âmbito do Projeto João Fahrion, selecionado nomes cuja produção representava a abertura de novos caminhos para a arte gaúcha.53 A outra foi Arte de Três Polos, organizada pelo MACRS. A mostra fez um mapeamento da produção relevante nos três principais centros de cultura do Rio Grande do Sul, através do trabalho de curadorias regionais: em Caxias do Sul (curadora Julietta Rigotto Eberle), Pelotas (curadores Aldyr Garcia Schlee e Bernadete Lovatel Matias) e Santa Maria (curador Núcleo de Artistas da UFSM), e apresentou os resultados em quatro exposições: três nos polos regionais (Caxias: Galeria de Arte da Universidade de Caxias do Sul; Pelotas: Museu Leopoldo Gotuzzo; Santa Maria: Sala Cláudio Carriconde e Anfiteatro do Centro de Artes e Letras da UFSM) e uma na capital do estado (MACRS).54 55

51

“Ricardo Frantz”. Pioneiro, 17/06/1992 52

Pulita, João. “As caras que pintaram 1992”. Pioneiro, 09/01/1993 53

Veiga, Clarissa Berry. “Mostra Novas Atitudes reúne destaques dos últimos três anos”. Zero Hora, 21/01/1992 54

“Artistas de três polos começam a expor amanhã”. Pioneiro, 10/09/1992 55

“A arte de Três Polos chega a Porto Alegre”. Pioneiro, 26/11/1992

Orbe, acrílica e spray sobre papel, 170 x 170 cm, 1992. A obra participou do 10º Salão de Artes da Câmara Municipal de Porto Alegre, 1992.

28

Julieta Eberle justificou sua seleção:

O trágico não reside nesta angústia ou nesta própria tristeza, nem numa nostalgia da unidade perdida. O trágico consiste apenas na multiplicidade, na diversidade da afirmação como tal. O que define o trágico é a alegria do múltiplo, a alegria plural.

Deleuze, Nietzsche e a Filosofia. “Minha intenção ao reunir os trabalhos de Diana Domingues, Iolanda Gollo, Ricardo Frantz e Vera Martini não é de misturar diferentes categorias para uma apresentação de tendências na produção artística de Caxias do Sul. O que esta curadoria procura mostrar é o interesse desses artistas em desafiar e questionar vários pressupostos da vida, da linguagem, da natureza da arte e da sua relação com o espectador.

“A alegria plural, a afirmação da multiplicidade, a que Deleuze se refere, esta vontade agregadora do artista ao incorporar a vida na arte, são dados desestabilizadores na avaliação estética, mas fundamentais para a compreensão da arte contemporânea. Quando se manifestam, fortalecem o artista e seu execício, no contaponto, confundem aqueles que ainda não entenderam que o público também passou a ter um novo papel no processo de apreciação e circulação do objeto artístico.

“A história da arte, e mais especificamente o século XX, são marcados por tentativas de repensar a relação da arte com a vida, inventando novas formas para cada problema ou cada experiência que se está tratando. Isso é corajoso de se fazer e penso que Diana, Iolanda, Ricardo e Vera o fazem com

Sol submerso, acrílica sobre papel, 250 x 320 cm, 1991-92.

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competência e sensibilidade. Neste momento, meu desejo é abrir um diálogo com a produção destes artistas e que eles possam ampliar as referências de mundo que estão dentro de cada um de nós”.56

Entre 1992 e 1993 sua obra sofreu mudanças radicais. O cenário da pintura estava fervilhante, procedimentos mais tradicionais voltavam a aparecer, reintegrando a pintura como uma categoria específica, mas, como entende Ana Albani de Carvalho,

"Mais do que uma negação ou ruptura com as propostas mais radicais – como as levadas a cabo durante os anos 1970 em Porto Alegre por artistas vinculados à arte postal, à performance e, especialmente, a grupos como o Nervo Óptico e o Espaço N.O. – as novas gerações de artistas surgidas durante os anos 1980 e 90 são devedoras de seus questionamentos, atitudes e visualidade. Assim, tanto a pintura como o desenho dos anos 1980 incorporavam o questionamento do suporte, materiais e técnicas, a ênfase no gesto que poderia ser estendido até o limite da bidimensionalidade, a indagação quanto ao lugar da imagem no debate cultural contemporâneo".57

Neste mesmo período observou-se um crescente interesse internacional pelos artistas iniciantes, interesse que contribuiu para a abertura de um novo mercado. O sistema de artes local era dinamizado pela atividade de galerias como a Arte & Fato e a Tina Presser, e por projetos institucionais como os mantidos pelo IEAVI para artistas emergentes. Foi a época em que surgiam o MACRS e se consolidavam outros espaços importantes, como a Usina do Gasômetro e a Casa de Cultura Mario Quintana.58 59 Começava a se destacar também toda uma grande nova geração de artistas, dedicados às mais diversas abordagens do fazer artístico e da pintura em particular, podendo citar-se, por exemplo, Ubiratã Braga, Nelson Wilbert, Teresa Poester, Tatiana Pinto, Marilice Corona, Chico Machado, Paula Mastroberti, Elton Manganelli, Eduardo Vieira da Cunha, Hô Monteiro, René Ruduit, Eduardo Haesbaert, Adriano Rojas, Eduardo Miotto, Gelson Radaelli, Antônio Augusto Frantz Soares e Cynthia Vasconcellos.60 Carvalho apontou os três principais centros de interesse deste grupo, do qual Frantz faz parte:

"A significativa preponderância dos aspectos referentes à gênese da obra, sendo que muitos trabalhos contemporâneos remetem à problematização da própria noção de obra, subvertendo seus paradigmas fundadores; "Expansões, migrações e/ou contaminações entre categorias e procedimentos, por exemplo: do plano para o espaço, isto é, do desenho ou da pintura para o objeto e para a instalação; "Não-permanência da obra, sua mutabilidade, noção geralmente acompanhada da noção de 'montagem' e não equivalente à noção de 'efêmero' ou 'desmaterializado', usual nos anos 70: em contraponto à ideia da efemeridade, a mutabilidade ou não-permanência se revela nas múltiplas possibilidades de apresentação, montagem, remontagem, rearticulação ou 'reaproveitamento' de um mesmo trabalho".61

56

Eberle, Julieta Rigotto. “Apresentação”. In: Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Arte de Três Polos. Catálogo de exposição, 1992 57

Carvalho, Ana Albani de. Arte Contemporânea no Acervo do MARGS: uma abordagem da produção artística realizada no RS durante os anos 1980 e 90. Catálogo da exposição Curadorias de Acervo: anos 1980/90. MARGS, 2000 58

Carvalho (2000), op. cit. 59

Machado, Ana Méri Zavadil. Reatando os Nós: Arte & Fato Galeria, Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul - MAC/RS e Torreão: espaços de legitimação em Porto Alegre (1985-1997). Dissertação de Mestrado. UFSM, 2011. 60

Instituto Estadual de Artes Visuais [Carvalho, Ana Albani de (curadora)]. Projeto João Fahrion: 10 Anos. Catálogo de exposição, 1999. 61

Carvalho, Ana Albani de. "Anos Noventa: Comentários sobre o Circuito e a Produção Artística em Porto Alegre no Final do Milênio". In: Gomes, Paulo (org.) Artes Plásticas no Rio Grande do Sul: Uma Panorâmica. Lahtu Sensu, 2007, pp. 155-179

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Entre 1992 e 2002 Frantz vivenciou esse contexto de múltiplos direcionamentos, em que a experimentação era a tônica e o debate era intenso e frequentemente recheado de controvérsias. Foi profundamente marcado também pelo contato com os integrantes da banda Aristóteles de Ananias Jr., que conhecera no Instituto de Artes da UFRGS, em particular Marcelo Birck e Chico Machado, que lhe apresentaram um vasto novo campo de possibilidades para experimentações, sendo introduzido por eles também no Dada e em McLuhan, nas áreas de figurino, cenografia, canto, produção de vídeo e edição de imagem e som, participando de projetos paralelos da banda, como a criação de dois filmes em vídeo e alguns videoclips que tiveram circulação na MTV e aplauso local, e a produção de sua fita demo e seu CD. Teve um grande conselheiro em fotografia na pessoa de Mauro Bruschi, outro colega do IA, e Chico o jogou para dento do mundo do teatro; na época ele estava casado com Ciça Reckziegel, outra versada neste campo. Entreteve com eles muitas tertúlias enriquecedoras, e com Chico fez muitas pinturas a 4 mãos, que apareceram em exposições. Outras fortes influências individuais nesta fase foram Duchamp, Sigmar Polke e os pops norte-americanos como Liechtenstein, Jasper Johns e Rauschemberg, mas Basquiat, Warhol ou Pollock não lhe diziam quase nada. Como resultado desse somatório de referenciais contrastantes, até o ano de 2002 seu trabalho foi marcado pelo ecletismo, hibridismo e pela iconoclastia. Pesquisou inúmeras maneiras de criação, representação e apresentação dos seus trabalhos, com um marcado interesse pelo estudo da arte marginal e da cultura de massa, reciclando ícones e referências populares e imagens de quarta ou quinta geração, relacionando-os muitas vezes ao universo da cultura erudita em um contraponto que por vezes adquiria um caráter explosivo e desestruturador.62 63 Em função dessas novas pesquisas, em 1993 foi selecionado por Paulo Gomes, professor da UFRGS, pesquisador e curador, para participar da exposição Jovem Pintura Figurativa, realizada no MACRS em 1994, que fez um resumo dos usos da figuração entre os artistas da nova geração do estado. O curador assim apresentou a mostra:

“[...] Toda escolha tem um caráter eminentemente pessoal, logo, a escolha desses artistas se fez levando em consideração, principalmente, o fato de todos eles trazerem algo de pessoal para a figuração gaúcha, seja na representação, na proposta subjacente a esta representação ou nos seus próprios projetos individuais.

“O que aparentemente é o tema principal da exposição, na realidade é seu assunto principal. Onde na maioria dos trabalhos aparece a figuração, esta na realidade encobre a motivação principal dos artistas, que é pintar a própria pintura. Neste ponto estamos coerentes com o pensamento artístico contemporâneo, que escolheu como ideal o real, em detrimento do transcendental. Essa pintura

62

Gomes, op. cit. 63

Peixoto, op. cit.

Auto-retrato como escriba egípcio, acrílica e fita adesiva sobre tela, 1993, 70 x 50 cm

31

trata do que mais interessa a esses jovens, que é a própria arte. Como assunto, a figuração tem diversos tratamentos e enfoques, que demonstram que a arte de hoje não tem unidade de ação, sendo feita de aventuras, de projetos individuais. [...]

“O primeiro dado comum a muitos dos artistas da exposição é o Citacionismo. A preocupação com a memória cultural de nossa civilização é explicitada através de citações literais de períodos da história da arte, através de referências à história da pintura e do uso indistinto da colagem. Toda essa gama de usos de citações enriquece o objeto pictórico, carregando-o de significados semânticos e sintáticos. A citação não é só da cultura erudita dos museus e livros de arte, mas também da cultura popular e da cultura marginal dos pintores de rua e dos bazares de miudezas. Esse recurso à cultura de todas as esferas indica um caminho de incertezas. [...] “Outra característica é o uso da colagem. Esse recurso é utilizado como referência direta à imagem colada, em substituição à própria pintura ou ainda como elemento desorientador do discurso. Dentro da colagem poderíamos incluir o uso de imagens de segunda geração. Esta é recorrente na maior parte dos artistas e por isso mais significativa. Esse uso em detrimento da imagem colhida ao vivo denota uma preocupação secundária com a figura. Retornamos aqui à questão da temática. Esta imagem colhida de fotografias, ilustrações ou da memória, são espectros de figuras as quais os artistas tentam insuflar energia necessária para recolocá-la novamente em circulação. Isso remete imediatamente à questão do mundo de reproduções, de imagens prontas e esvaziadas de significado. A questão do significado das figuras transcende o limite deste texto, pois, na realidade, esses artistas estão tentando recuperar para essas figuras um significado além da própria imagem, mesmo que esses significados não sejam explicitados. [...]

“A ironia é de uso generalizado, seja na utilização de figuras de segunda geração, nas citações e na própria atitude dos artistas. Com a exceção que confirma a regra, a postura dos artistas é irônica por princípio, uma sem-cerimônia que se apropria de bens culturais e os repete sem historicizá-los, diluindo-os no nada/tudo da não-cultura. A tradição e pervertida, sendo colocada sem o devido comentário histórico. Consequentemente, essa tradição

Cartão postal, c. 1993, acrílica sobre eucatex, 60 x 60 cm. Abaixo, Auto-retrato interrompido, 1994, interferência com

tinta e letra-set sobre estampa popular, 30x40 cm.

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histórica passa ao público como ‘o Novo’. Este falso ‘Novo’, por sua própria natureza de repetição, força o passo para o Novo. Essa ironia parece ser o único caminho possível nesse nosso país eternamente em processo contraditório e eternamente à margem da civilização. [...] “.64

Enfocando o trabalho pessoal de Frantz, ele disse:

“Ricardo Frantz está tentando recuperar a memória cultural marginalizada da arte. O caráter de pastiche de sua obra atual, feita de ícones de mau gosto, procedimentos fáceis e a ênfase na pintura de gênero, denota o esforço em recuperar o lixo cultural, a produção dos pintores de rua, dos naïfs, dos objetos kitsch. Ao lado desta tentativa de recuperação da dignidade perdida das manifestações culturais marginalizadas, Ricardo Frantz percorre um caminho de autoconhecimento através da sua arte, onde o elemento religioso compartilha do mesmo espaço da citação culta, da inscrição em latim, da referência ao gosto pessoal. A narrativa de sua pintura deve ser compreendida como uma linguagem de aparências, onde o que está explicitado não é necessariamente e o que significa, mas o que pode vir a significar”.65

A preocupação com a linguagem não se dirigia apenas à concepção interna das peças, mas também à ressignificação da forma de sua apresentação e de sua articulação em grupos, avultando em suas mostras questões relativas aos conceitos de instalação, assemblage, colecionismo, arte povera e bad art, site specific work e work in progress. Essa tendência explodiu em duas exposições individuais, uma em Porto Alegre, Pinturas Grandes e Pinturas Pequenas (Espaço Institucional do IEAVI, 1994), e outra em Caxias do Sul, O que quer dizer? (Galeria Municipal de Arte, 1996). Pinturas Grandes e Pinturas Pequenas apresentou ao público um ambiente imersivo, densamente povoado por obras de arte espalhadas caoticamente pelo chão, pelas paredes e até o teto, misturadas a mobília e outros objetos, apresentando “uma arte que não permite cobranças, puramente inconstante, provocadora, acintosamente questionadora”, como a descreveu o jornal Correio do Povo em crítica não assinada.66 No encerramento da mostra foi promovida uma performance dadaísta em formato de show de calouros, contando com a banda Aristóteles e outros músicos e participação do público, intitulada Chinelizemo a Vernica. O artista recebeu seus convidados trajado com uma peruca descabelada, óculos escuros retrô, uma toalha velha que já havia sido pano de chão à guisa de poncho, uma gravata em cores berrantes, ceroulas e pantufas, um figurino que seguia o estilo das apresentações trash da Aristóteles. A divulgação do evento enviada para a mídia pelo artista em colaboração com a Aristóteles dizia:

“Um evento indefinido de características polemológicas, promovendo a reunião octaedrística de hirudíneos gnatobdélicos em celebração hiperbarossinonímica, no encerramento da exposição do benemérito das artes e célebre pintor performático Ricardo Frantz. Os presentes não trajados de acordo com o rigor que a cerimônia exige serão retirados do recinto. Ricardo Frantz comanda seu show de calouros futurista, com guerra de torcidas e tralha japonesa de 2ª linha. Participação da banda Aristóteles de Ananias Jr., Orquestra de Câmara, Mesa e Banho, e intervenções voluntárias de Alexandre Ograndi, Chico Machado, Diego From Ovos e Munir Müsli”.

64

Gomes, op. cit. 65

Gomes, op. cit. 66

“Para romper valores estanques”. Correio do Povo, 07/07/1994

33

Show de calouros comandado por Ricardo Frantz em sua individual Pinturas Grandes e Pinturas Pequenas.

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Na mesma linha, a exposição O que quer dizer? causou polêmica em Caxias do Sul, ainda acostumada com modos tradicionais de exposição, pelo ineditismo e radicalidade da proposta. O professor da UCS, pesquisador e crítico de arte Jayme Paviani a analisou da seguinte maneira:

"A exposição do artista plástico Ricardo Frantz, na Galeria da Casa de Cultura, provoca o público. Causa estranheza. Não são apenas as obras, mas também o modo de expô-las que chama a atenção. Alguns espectadores se sentem agredidos. Nada de novo. A segunda metade do século XIX e o século XX são marcados pelo conflito entre a arte e o gosto do público. Independente da definição de critérios para julgar o valor artístico de uma obra, o gosto estético só pode ser formado na base do princípio da sociabilidade e da intersubjetividade. As relações do indivíduo com os valores do grupo social determinam, em grande parte, padrões estéticos considerados válidos, apenas válidos, não necessariamente verdadeiros. "Ricardo Frantz busca uma linguagem individual, tarefa que exige dedicação. A perfeição expressiva não supõe apenas o abandono de práticas e conceitos dominantes. Requer também uma nova linguagem, espontânea ou construída, mas sempre adequada à função de expressar. Como acontece com os poetas, escrever versos sem métrica exige maior domínio do ritmo. Ser espontâneo, primitivo ou assumir o 'traço' popular, para o homem culto é uma impossibilidade que só o artista procura superar. Ricardo Frantz aceita decididamente correr esse risco. Tenta dizer a realidade como se fosse pela primeira vez, como fazem os artistas criadores. “Tal afoiteza provoca conseqüências nos resultados da própria obra e nas reações do público. Para os que lidam com arte, entre tantas obras expostas, é natural que algumas se destaquem pelas soluções formais. Parece que o próprio artista tem uma certa estranheza diante da obra, pois o título da exposição, em forma de pergunta 'O que quer dizer?', traduz esse sentimento. Tal atitude não é defeito, mas virtude. Ao perguntar 'o que quer dizer', referindo-se aos seus trabalhos, passa ao público as suas dúvidas. Não pretende definir sua arte. Quer saber se ela diz e, principalmente, o que quer dizer. Porém, o querer

[Re]Nata, 1995, acrílica sobre tela, 70 x 50 cm, releitura de uma obra infantil assinada “Nata” adquirida em uma feira de

quinquilharias.

Detalhe da exposição O que quer dizer?

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dizer depende, antes de tudo, da própria obra, ponte entre o artista e o espectador. A obra está aí. Posta a público. Diz por si. Impossível traduzir exatamente a 'fala' pictórica em palavras.

"O artista parece inconformado com os modos institucionalizados de expor a obra ao público. Por isso, Ricardo Frantz intervém nos aspectos sociais da exposição e procura devolver às obras algo do estado de atelier. No mundo do atelier, as obras encontram-se justapostas, espontaneamente. Estão num ordenamento 'caótico' anterior ao convencional da galeria. A exposição não pode desvirtuar o que há de genuíno, de espontâneo, de vivido, de gênese na obra. A própria moldura é adjetiva. Ela não faz parte do quadro. Por isso, para evitar as interferências externas, o artista procura anular os artifícios (falas da arte) da exposição através de novas interferências, talvez provocantes, mas que pretendem libertar o sentido da obra. O artista usa o recurso da encenação, do mise en scéne, para expor seus trabalhos. Poderia até colocar as obras de arte empilhadas em cima de uma mesa para cada espectador manusear e olhar como quiser. Já que é necessário o placo, a parede, a sala, ele tira proveito do modo de expor as obras para completar a linguagem da própria obra. Cabe ao espectador distinguir, comparar, selecionar as obras. Distinguir as obras mais bem realizadas em relação às menos elaboradas. “O querer dizer nem sempre é o 'poder dizer'. Ricardo Frantz sabe disso muito bem. Prova disso é a atmosfera de inquietude de seus quadros, mas de uma inquietude serena, sem falsos dramas, presente nos jogos dos movimentos e das cores. Perspectivas, enquadramentos, ângulos, planos estão dominados pela primazia do movimento que define a composição. A cores apresentam-se livres. Deste modo, a inquietude, que tende a ser grave no homem, na obra de arte adquire serenidade. O artista luta para dizer seus sentimentos ao mundo. O que permanece no quadro são rastros. Signos, figuras de Jesus, da Virgem, símbolos antigos e populares testemunhando um mundo mítico e religioso entre paisagens ou cenas de vida”.67

67

Paviani, op. cit.

Inacabar-te-ei, c. 1995, acrílica sobre tela, 50 x 70 cm. Ao lado, Loneliness, c. 1995, acrílica sobre eucatex, 30 x 45 cm. A obra também pode ser apresentada invertida, como uma paisagem tradicional.

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Obrigado e boa noite, camisa estampada velha e suja esticada em bastidor de tela, 1996, 50 x 40 cm. A estampa deriva de uma ilustração popular sobre a qual o autor adicionou interferências

em tinta acrílica e letra-set.

O ilusionista, c. 1995, interferências variadas sobre estampa do Sagrado Coração de Maria, 20x30 cm.

De profundis, acrílica sobre estampa popular e objeto industrial de cerâmica, 1994.

Paisagem, acrílica e pincel sobre tela, 1992, 50 x 40 cm.

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Sem título, acrílica sobre tecido, 1996, 40 x 50 cm.

No trespassing, c. 1993, estampa popular inteiramente repintada e modificada com o acréscimo de uma girafa e uma donzela com uma cerca a separá-los. A peça foi então xerocada e a reprodução foi montada como pôster, similar à

montagem da imagem original.

A rocha, c. 1994, acrílica sobre eucatex e flores de plástico, 50x60 cm (obra destruída).

Ave Maria, c. 1993, acrílica em interferência sobre estampa popular. A peça alterada foi então xerocada e a reprodução foi montada como pôster, similar

à montagem da imagem original.

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Essa produção foi mostrada em São Paulo na coletiva Projeto Antarctica Artes com a Folha (Ibirapuera, 1996), uma mega-exposição que realizou um mapeamento da produção de artistas emergentes em todo o território nacional. O projeto contou com a participação de cinco importantes curadores: Tadeu Jungle, Stella Teixeira de Barros, Lisete Lagnado, Lorenzo Mammi e Nelson Brissac Peixoto, auxiliados por cinco assistentes, que visitaram cerca de 1.300 ateliês, selecionando 62 artistas. O júri de premiação foi formado por três outros especialistas: o prestigiado Paulo Herkenhoff e os norte-americanos Dan Cameron e Lisa Phillips.68 69 70 Antarctica teve ampla repercussão e foi considerada uma mostra de alto nível:

“Quem for ao Parque Ibirapuera para ver o Projeto Antarctica Artes com A Folha estará visitando uma mostra de nível equivalente às que acontecem no Primeiro Mundo. Assim pensa a norte-americana Lisa Phillips, curadora do Whitney Museum of American Art, de Nova York. ‘Não vejo muita diferença. Eles trabalham com os materiais que têm à mão, mas isso também acontece nos EUA’, afirma. ‘Essa parece ser a característica dos artistas jovens em todo o mundo’. Também norte-americano, Don Cameron, curador-sênior do The New Museum of Contemporary Art em Nova York, enfatiza a importância do âmbito nacional do evento. ‘Muitos países tentam fazer isso, mas não conseguem, devido à forte diferença feita entre periferia e centro. O alto nível dos trabalhos desta mostra revela que esta oposição está superada’.”71

Peixoto, falando sobre a instalação que Frantz apresentou, pensa que sua obra se caracteriza pela busca de um efeito de ambiguidade no uso de um espaço que parece banal, “mas cuja desorganização nos faz atentar para o significado de cada um daqueles objetos comuns ali colocados".72

68

“Exposição começa no dia 29”. Especial Antarctica Artes com a Folha. Folha de São Paulo, 22/09/1996 69

“Artistas e obras são prioridades”. Especial Antarctica Artes com a Folha. Folha de São Paulo, 22/09/1996 70

“Mostra opta por multiplicidade”. Especial Antarctica Artes com a Folha. Folha de São Paulo, 22/09/1996 71

Perpetuo, Irineu Franco. “Mostra equivale às do Primeiro Mundo”. Folha de São Paulo, 30/09/1996 72

Peixoto, Nelson Brissac. “Ricardo Frantz”. In: Governo do Estado de São Paulo / Companhia Antarctica Paulista / Folha de São Paulo. Antarctica Artes com a Folha [Mammi, Lorenzo et al. (curadores)]. Cosac Naify, 1998

Instalação Fragmento/Movimento na coletiva Antarctica Artes com a Folha

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O próprio artista assim se referiu a ela:

“A instalação que apresentei na coletiva Antarctica Artes com a Folha procurou transportar para o ambiente de galeria o ambiente do atelier. Reuni uma quantidade de pinturas em pequenas dimensões, minhas ou de outras pessoas, todas de amadores anônimos que encontrei em uma feira de quinquilharias baratas, junto com mobília, caixas, livros e outros objetos. Era o ambiente em que eu produzia, e sua configuração, embora reproduzida artificialmente, não se afastou da verdade espontânea. Na verdade, ambas realidades em meu trabalho estavam muito próximas. O caos aparente se trata antes de uma organização especial, nascida muito do acaso mas também de um senso de composição dirigida e de equilíbrio dinâmico de formas e volumes. O próprio processo de fazer se torna um ato estético acabado e significante, materializando um grande movimento coreográfico no espaço em que se impregnam as superfícies de materiais diversificados. As peças podem ser compreendidas em separado, mas sua inclusão no conjunto em um arranjo inesperado lhes minimiza a importância individual e as tornam fragmentos de um grande arabesco abstrato”.

O artista lembra que seria injusto atribuir somente à influência da banda e do ambiente porto-alegrense, bem como da contemporaneidade erudita, embora imensa e decisiva, as rupturas radicais que ele instaurou em suas exposições “caóticas” e o tipo de abordagem do material de origem popular que usou nelas. Diz que algo remete às suas origens. O ambiente que viveu em sua infância tinha duas metades bastante distintas. Uma, do lado do seu pai, tinha gostos artísticos refinados, mas no lado de sua mãe o cenário era mais popular. Em particular a casa de sua bisavó Emma, mãe de sua avó materna, o fascinava a cada vez que a visitava, e tinha muito da aparente desorganização que ele imprimiu às montagens. Era, segundo narrou,

“Um casarão de madeira de italianos pobres, povoado de inúmeros objetos decorativos baratos, basicamente quinquilharias, bibelôs de gesso, caixinhas, mesinhas cobertas por pesadas toalhas de crochê ou de tecido estampado com grandes babados e franjas e grandes arranjos de flores de plástico por cima, estampas desalinhadas nas paredes retratando santos, flores e paisagens singelas, formando uma cena visualmente saturada tipicamente kitsch, uma opção estética muito bem caracterizada, apesar de sua espontaneidade. Mais do que isso, como refere Abraham Moles, o

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kitsch é um modo de ser. Era, de fato, e eu tenho um pouco essa veia. Herdei vários daqueles objetos, inclusive mobília, que hoje decoram minha casa. Alguns apareceram em exposições”.

Depois das explosivas exposições anteriores, foi na coletiva Remetente (Espaço Cultural Ulbra, Porto Alegre, 1998) que esta abordagem encontrou um amplo espaço para manifestação e um inesperado equilíbrio por entre os escombros da herança cultural erudita do ocidente conhecida através de reproduções de quinta geração e depois da passagem por inúmeros escolhos e distorções. Sintomaticamente, o título da instalação foi Simplégades, as mitológicas rochas móveis que esmagavam os navios que passavam pelo seu estreito, e pelas quais, graças ao favor dos deuses, passaram sãos e salvos os Argonautas em busca do Velocino de Ouro. O artista fala da obra:

“A instalação nasceu a partir das características da sala e deu-lhe um dinamismo adicional, ocupando as superfícies de várias maneiras e criando novas relações de volumes e planos com interferências visuais diversas. Para compor a obra utilizei muitas pinturas figurativas em pequenos formatos que vinha fazendo há alguns anos, organizando-as em grupos narrativos, à maneira de pequenas histórias em quadrinhos. Às vezes esses grupos assumiam eles mesmos um caráter de mini-instalação, incorporando outros tipos de objetos, como luminárias, mobília, fotografias e desenhos. Também fez parte do processo criativo a intervenção direta nas paredes na forma de desenhos a pincel, inscrição de palavras e poemas em caligrafia e aplicação de um recorte eletrônico de vinil adesivo reproduzindo em grande formato um desenho que eu fizera há muitos anos, uma figura mitológica de fauno priápico em formas clássicas. Desta maneira, fui estruturando ‘capítulos’ da história dos viajantes célebres, não literalmente, não seguindo o roteiro estabelecido pela tradição literária, mas fazendo dele apenas ponto de partida e pretexto, criando minha própria viagem entre os mitos e passando eu mesmo às vezes ao papel de personagem, ou às vezes sendo mais um cronista ou comentarista, aproveitando a heterogênea iconografia acumulada nas pinturas, muitas vezes marcada pelo simbolismo e pelo imaginário mitológico, e que por isso oferecia um material altamente sugestivo da atmosfera fantástica da narrativa original. [...] Simplégades foi importante em meu trabalho por constituir uma oportunidade de estabelecer uma ordem mais ou menos inteligível, embora não desprovida de paradoxos e discursos paralelos, em um material que eu vinha produzindo, acumulando e expondo caoticamente. A forma de apresentação em pequenas sub-narrativas espalhadas pela sala foi um fator decisivo na articulação da obra como um percurso”.

A mostra, organizada por um coletivo independente, foi saudada como inovadora por empregar um sistema de rede de convites entre os próprios artistas, que chamavam outros a participar, que por sua vez chamavam outros. Sua rede foi Fabiana Rossarola > Frantz > Chico Machado. Sua obra parece alinhar-se à impressão que a crítica de arte Angélica de Moraes teve da proposta geral:

“O Projeto Remetente produziu uma mostra estimulante, um ótimo percurso de confrontos, cruzamentos e afinidades de linguagens sintonizadas com as questões da contemporaneidade. Este aspecto multifacetado e poroso também é uma de suas principais qualidades. [...] Essa exposição só foi possível porque houve uma troca de olhares e uma imantação. Admirações mútuas abriram espaço para que alteridades e semelhanças fossem compartilhadas e amplificadas em algo bem maior do que a soma de cada uma das partes”.73

73

Moraes, Angélica de. “Troca de Olhares”. In: Bernardes, Maria Helena (org.). Remetente: catálogo. FUMPROARTE, 1998, p. 9. Catálogo da exposição.

41

Peça de abertura da instalação Simplégades, exposição Remetente. Duas placas de pedra e obra em técnica mista. Abaixo, vista de um dos recantos da sala.

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Detalhes da instalação Simplégades, exposição Remetente. Acima, desenho em vinil adesivo.

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Ana Zavadil Machado, em sua dissertação de Mestrado, diz que Remetente destacou-se porque os artistas...

“[...] almejavam espaços diferenciados para instalarem suas obras e um diálogo direto, sem curadorias, entre público e obras, isto é, buscavam um espaço que pudesse ser manipulado e aproveitado de acordo com as proposições artísticas. Esses artistas já haviam passado pelo circuito oficial e sabiam das carências para exporem obras contemporâneas, como as instalações e obras de caráter urbano, e ainda usar o local como parte integrante do trabalho. [...] “Eram artistas atuantes de maneira significativa naquela década, os quais trouxeram modos de apresentar a arte fora do circuito oficial e tinham o desejo de criar novos espaços legitimadores mais comprometidos com a arte contemporânea”.74

Agnaldo Farias teceu algumas objeções ao formato curatorial escolhido, duvidando que ele teria capacidade de formar uma associação forte entre as linhas da rede num grande conjunto coerente, mas mesmo assim admirou a ideia incomum, e acrescentou que a exposição se validava em outros pontos positivos, como as possibilidades de aproximações insuspeitas e o afastamento de problemas típicos de curadorias que focam em aspectos geracionais, regionalismos e outras categorizações extra-estéticas. É de assinalar que o crítico considerou o trabalho de Frantz pouco consistente:

"Não consigo perceber a conexão entre o processo de coisificação que Fabiana Rossarola faz de suas imagens pessoais com o elenco multivariado de trabalhos de Ricardo Frantz. Aliás, enquanto Fabiana caminha explorando em profundidade, Ricardo abre o espectro de sua pintura servindo-se sem nenhuma convicção de estilos variados, sugerindo-nos mais ingenuidade do que uma posição estética. De resto, fica no ar o motivo que o levou a convidar Chico Machado, cujos trabalhos pertencem a outra vertente. São muito amigos? Chico não poderia ficar de fora?".75

74

Machado, op. cit., p. 35 75

Farias, Agnaldo. “Correio Elegante”. In: Bernardes, Maria Helena (org.). Remetente: catálogo. FUMPROARTE, 1998, pp. 10-13. Catálogo da exposição.

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Outros estudiosos analisaram Remetente de maneira favorável, entre eles Karin Stempel,76 Cláudia Paim77 e Ricardo Mitidieri.78 Em geral os críticos ressaltam o caráter colaborativo e independente e a criação de um espaço alternativo para a arte contemporânea, não considerando a conexão direta entre suas estéticas uma necessidade ou um aspecto relevante no contexto da proposta. Stempel, por exemplo, fez interessantes observações sobre o papel do curador na contemporaneidade e suas relações com a proposta de Remetente:

“Um artista não inteiramente desconhecido prognosticou que o último estilo desse século será o curadorismo. A práxis usual no atual cenário artístico sugere que alguns argumentos confirmam essa afirmação. Os curadores transformaram-se visivelmente em estrelas do mundo artístico, às quais os artistas e as artistas por vezes somente prestam assistência, ajudando a dar corpo a teses pré-concebidas ou a ilustrar teorias. A visão do curador determina não só crescentemente os parâmetros da percepção da arte – do ‘museu de obsessões’ de um Harald Szeemann até a ‘antropofagia’ de um Paulo E. Herkenhoff, passando pelos ‘imateriais’ de um Jean-François Lyotard – mas ela também determina o que ou quem ainda adquire visibilidade. [...]

“Já se escreveu muito sobre a responsabilidade e a ética do curador, mas no fundo a seguinte questão está em pauta: o trabalho do curador consiste no estabelecimento ou na confirmação de estruturas hierárquicas que declaram, como medida da percepção e avaliação, categorias e critérios de arte que de nenhum modo se refletem nela, mas tangenciam-na, na melhor das hipóteses? Ou será que o trabalho do curador consiste em liberar a fricção entre a lógica das formas e a lógica da linguagem e transformá-la em um diálogo fecundo para ambos os lados?

“Não pode mais estar na ordem do dia estender tapetes verbais sempre novos sobre velhos campos visuais. Muito menos ainda, estender velhos tapetes verbais sobre novos campos visuais. O que está na ordem do dia é confrontar, em um esforço conjunto, sempre de novo, o trabalho da imagem com o trabalho do conceito – na tentativa sem termo de uma aproximação infinita de dois processos paralelos.

76

Stempel, Karin. [ensaio sem título]. In: Bernardes, Maria Helena (org.). Remetente: catálogo. FUMPROARTE, 1998, pp. 14-15. Catálogo da exposição. 77

Paim, Claudia Teixeira. Espaços de Arte, Espaços da Arte: perguntas e respostas de iniciativas coletivas de artistas em Porto Alegre, anos 90. Dissertação de Mestrado. UFRGS, 2004, pp. 108-128 78

Mitidieri, Ricardo. “Remetente: a diversidade da arte contemporânea”. In: Bernardes, Maria Helena (org.). Remetente: catálogo. FUMPROARTE, 1998, pp. 16-17. Catálogo da exposição.

Duas peças apresentadas em Remetente: acima, Belerofonte e seu amigo Pégaso, acrílica sobre tela, 50 x 70 cm, e abaixo, Fome (Ciclope), nanquim sobre cartão amarelo recortado, c. 60 x 40 cm

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“O projeto Remetente, que abrange o trabalho de dezoito artistas que se encontraram por meio de convites recíprocos sem a intermediação de um curador, formula – inicialmente sem nenhuma pretensão teórica explícita – uma rede definida basicamente pelas proximidades recíprocas dos /das participantes. O reconhecimento de formulações de problemas na obra do ou da colega, a similaridade de caminhos e tentativas de soluções, mas também o simples interesse e fascínio diante da obra do e da colega formam um novo nexo flutuante que se realiza além de estilos e direções, escalas e grupos – transcendendo gerações e independentemente do lugar, pois como não existe um centro, tampouco existe uma fronteira. “O que se apresenta aqui de forma inteiramente não-dogmática não é apenas a tentativa de articular-se além de barreiras, diferenças e distinções artificialmente estabelecidas. O projeto Remetente é simultaneamente o enfoque de uma nova forma de comunicação com base em realidades que se subtraem à fixação por palavras. Salta à vista que isso não tem nada a ver com animosidade contra a teoria – muito pelo contrário, importa pisar, além do campo arado e cultivado pela teoria, em terra nova e dar ao espaço o que se corporifica e realiza além das palavras na obra de arte, como ‘suave empírio’.

“Está mais do que na hora que a teoria (re)descubra esse terreno depois do deserto gélido das abstrações”.

Já Paim afirmou:

“Não devemos cogitar no fechamento de círculos por unidades de linguagem ou uso de suportes comuns, pois já apontamos para a grande diversidade dos trabalhos apresentados. Podemos pensar que as inter-relações encontradas entre os participantes, deram-se unicamente por afinidades pessoais e foram se ampliando e respondendo a múltiplas questões que eles foram elencando para eleger os destinatários dos convites. Desta maneira, propiciaram uma relação rica onde cada um contribuía com sua própria experiência e pensamento. [...] “Esta exposição também aqueceu as trocas com outros artistas da cidade e com o público mais amplo. Foram realizados encontros abertos com os artistas e com críticos especialmente chamados. [...] O debate com esses críticos que atuavam em outros centros, como ressaltamos, re-propunha para a crítica de arte a função de promotora de discussão e troca. [...] “A repercussão do Remetente junto a outros artistas da cidade foi importante. Apontava para esta outra possibilidade de realização de um espaço de exibição, afirmando-o na sua realização. [...] O Remetente repercutiu inclusive fora do estado, talvez mais como uma iniciativa coletiva de artistas do que como uma exposição.

“Então, reforçamos que tanto a exposição Plano B como Remetente abriram outras perspectivas de ação para os artistas que desempenharam papeis de agenciadores culturais e também, como artistas -curadores ao convocar outros artistas para participarem. As duas exposições foram o resultado de iniciativas coletivas de artistas que as idealizaram e realizaram. Nelas encontramos uma trama de relações aberta e rica, não apenas entre os participantes, mas com os trabalhos e as formas de apresentação dos mesmos que incluíam uma outra aproximação com o público e buscavam outra dinâmica para a relação com a crítica (sobretudo no Remetente, onde houve um chamado à participação de críticos em um momento específico) e propunham outros caminhos de inserção no sistema das artes”.79

79

Paim, op. cit. pp. 125-127

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Malabarista, acrílica sobre tela e colagem de repintura sobre estampa popular, 50 x 70 cm, 1996. Ao lado, Omenoscabo,

acrílica sobre tela, 30 x 40 cm, 1996.

Cândido, acrílica sobre duratex e moldura decorada, 1996, 30 x 40 cm. Ao lado, Rock star, acrílica sobre tela, 1997, 50 x 65 cm.

47

48

Uma outra faceta de sua produção nesta fase são as colagens, que revelam a mesma abordagem empregada nas pinturas, entrelaçando uma variedade de referenciais em composições irreverentes e heteróclitas, muitas vezes intervindo com elementos pictóricos e gráficos.

Da série Carmem, papel recortado, decalcomanias, caneta, tinta e grafite, 1996. À esquerda, Abismo, colagens de stills de filmes de terror sobre tela colada sobre tela e pluma de avestruz, c. 1999.

Rock star, materiais diversos, 1996. Eco, colagem com reproduções de obras de Magritte, 1995.

49

Suas colagens fotográficas, porém, são de caráter principalmente abstrato, explorando relações de planos e espaços fragmentados e reverberantes. O motivo básico dessas fotografias era o próprio ambiente da sua casa-atelier, que tem uma espacialidade bastante dinâmica principalmente pela presença de uma conspícua escadaria que une os pisos superior e inferior, e naquela época as paredes geralmente estavam em perpétuo processo de redecoração com as obras novas que iam sendo produzidas em outras técnicas. Elas aparecem nas fotografias acrescentando elementos que, junto com os cortes e superposições, contribuem para alterar a percepção do espaço e a leitura dos significados. Algumas foram reunidas em pequenos álbuns, formando livros de artista, outras foram reunidas em assemblages com outros objetos.

Recanto, colagem fotográfica sobre papel mostrando o ambiente do atelier, c. 1997. Abaixo, assemblage em processo de construção no atelier, com colagens fotográficas e outros objetos, c. 1996.

50

O bobo, c. 1996, 30 x 40 cm

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Retrato do artista, colagem fotográfica, c. 1998-1999.

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Estas colagens muitas vezes eram realizadas permitindo que os planos se sobrepusessem sem uma adesão completa dos seus componentes, permanecendo partes que poderiam ser levantadas para que as camadas subjacentes fossem visualizáveis. Ao mesmo tempo essas camadas criavam uma topografia sutil nas peças, relevos e desníveis mínimos em relação ao plano uniforme que reafirmavam o seu caráter de objeto e não de mera imagem de contemplação. Daí para transformar essas colagens em obras verdadeiramente tridimensionais foi um salto pequeno, bastando incorporar dobras e encaixes.

Pausa, colagem fotográfica, c. 1999.

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As colagens foram um dos focos da individual Annedoto, realizada em 1998 na galeria de arte da Universidade de Caxias do Sul, que teve um arranjo minimalista, com amplos espaços entre as peças, todas de pequenas dimensões, incluindo objetos, desenhos, colagens e pequenas instalações. “Annedoto” é uma palavra de duplo significado. Em italiano é o mesmo que “anedota”, uma história destinada a entreter, divertir ou iludir, frequentemente mentirosa ou exagerada, mas também é o título de uma linhagem de seres míticos que aparecem em lendas da Babilônia desempenhado o papel de civilizadores. Diz o Dicionário Teosófico de Blavastky:

“Musarus Oannes, o Annedoto, conhecido nas lendas caldeias transmitidas por Berose e outros escritores antigos com o nome de Dag ou Dagon, o ‘homem-peixe’. Oannes apresentou-se aos primitivos babilônios como reformador e instrutor. Ao surgir do Mar da Eritreia, trouxe-lhes a civilização, as letras e as ciências, as leis, a astronomia e a religião, e ensinou-lhes a agricultura, a geometria e as artes em geral. Houve Annedotos que chegaram depois dele, em número de cinco [...], todos eles idênticos a Oannes no que diz respeito à forma como ensinavam, mas Musarus Oannes foi o primeiro a aparecer, durante o reinado de Ammenon, o terceiro dos dez reis antediluvianos, cuja dinastia terminou com Xisuthrus, o Noé caldeu. ‘Oannes era um animal dotado de razão, cujo corpo era o de um peixe, mas tinha uma cabeça humana debaixo da cabeça de peixe, com pés debaixo da cauda, parecidos com os humanos, e cuja voz e linguagem eram articulados e humanos’ (Polyhistor e Apolodoro). Isso fornece a chave da alegoria. Designa Oannes como um homem e sacerdote, um iniciado. Layard demonstrou há muito tempo que a cabeça de peixe era simplesmente um toucado ou adorno de cabeça, a mitra com forma de cabeça de peixe que levam os sacerdotes e deuses, uma forma muito pouco modificada que ainda hoje é vista na cabeça dos grandes lamas e dos bispos da Igreja de Roma. [...] A cauda do peixe é simplesmente um grande manto estendido, assim como está pintado em algumas tabuletas assírias, cuja forma vemos reproduzida na áurea veste sacerdotal que usa o clero grego durante as cerimônias religiosas. [...] Por este motivo o ocultismo inclui Oannes e os demais Annedotos no grupo dos antigos adeptos que eram chamados ‘dragões aquáticos’ ou ‘marinhos’, isto é, Nagas. A água representa sua origem humana (posto que é um símbolo da Terra e da matéria e também da purificação), em oposição aos ‘Nagas do fogo’, os seres imateriais, espirituais, ou seja, os Boddhisattvas celestes ou Dhyânis planetários, também considerados instrutores da humanidade”.

Vista da exposição Annedoto, 1998.

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O texto apresentado na abertura da exposição revela as intenções do artista: “Os trabalhos que desenvolvo no momento são fruto de uma pesquisa formal que se estende já por mais de 6 anos. Fundamentam-se conceitualmente e se realizam como objetos no emprego simultâneo de uma variada gama de materiais, estilemas, técnicas e procedimentos, de modo des-hierarquizado. “A sua apresentação é basicamente frontal, reminiscente de minha formação acadêmica como pintor. Contudo, tenho especial interesse em certa topografia física originada, na bidimensionalidade predominante, pelas colagens de papéis, adesivos, fotos e outros materiais. Tal topografia lhes confere, creio, um certo charme tosco, e reitera, ao evitar ilusionismos facilmente induzidos por uma superfície sem acidentes, sua presença física como objetos.Um aspecto essencial é que parte principal da matéria-prima constituinte destes trabalhos é registro de outras obras, e às vezes é essas próprias outras obras, em rearranjos. Ou seus restos e fragmentos. De qualquer modo, sempre se trata de material de cunho afetivo. São em sua maioria reelaborações em torno de situações ou memórias de um tempo passado. Mesmo os ready-made, impuros, que produzo, são objetos de certa forma memorialistas. “O uso da reprodução de um outro objeto (foto, xerox, imagens de segunda ou terceira geração) é um expediente de distanciamento e de espelhamento, de multiplicação, ao mesmo tempo que é uma revitalização, porque existente como objeto novo, diferente daquele evento ou objeto artístico anterior, ainda que nesta revitalização o objeto original seja frequentemente desnaturado e sua leitura desviada. Tomando

como fulcro esta dialética entre o visível e o invisível, o original e a cópia, o processo e o produto, é possível ampliar o campo da percepção e da crítica de valor. Ficando patente, na sua rusticidade intencional, a estrutura física subjacente a todo objeto, as possibilidades de intercâmbios, mutações, reverberações e aproximações entre todas as coisas materiais produzem formas nunca definitivas, mas fluentes e abertas a novas organizações. Tudo pode vir a ser e/ou significar outra coisa. Torna-se natural, e mesmo orgânico, o trânsito entre as várias técnicas, e uma simples colagem pode ser o motor de partida para uma instalação que abranja uma sala inteira. Diz Dane Rudhyar:

Quando um vasto grupo de homens consegue construir uma cultura dotada de fortes instituições que se expressam em símbolos e obras significativas no campo da arte ou da literatura, um tal esforço de muitas gerações raramente se perde de uma vez por todas. De uma forma ou de outra, registros destas culturas resistem ou são misteriosamente preservados, pela simples razão de que esses registros revelam o lugar e a função dessa cultura particular ao longo do processo de desdobramento das potencialidades inerentes ao HOMEM arquetípico (...) O Símbolo (...) nos diz, todavia, que a preservação REAL dos registros em questão jamais é perfeita ou integral. Apenas fragmentos permanecem, mas fragmentos significativos o bastante para revelarem a forma arquetípica essencial.

Obras expostas em Annedoto: acima, pequena assemblage sem título com uma multiplicidade de

objetos. Abaixo, Monumento, pequena colagem fotográfica apoiada em placas de acrílico sobre uma

Bíblia.

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“Opero em uma modalidade bastante autobiográfica de expressão. Assumidamente um homo culturalis, meu ser sendo constituído de símbolos e formas culturais vivos, além das formas naturais, vejo meu trabalho como a recuperação da própria trajetória percorrida em meio à minha cultura original, terceiromundista, pobre e marginal, sem nostalgias, porém com afeto. Porém urge reavaliar sempre, urge achar novas soluções para problemas que essencialmente circulam em torno de um centro comum: o eu em meio ao todo. A questão que permanece é: como viver a história hoje, como transformar-me, atualizar-me, sem deixar de ser eu mesmo, com todo o meu passado e com o passado de minha cultura, ainda tão vivo? “Autofagia e regeneração. Em meio à eterna mutação das formas, ao seu desvanecimento material, ao seu escape contínuo por entre os dedos da memória, talvez meu trabalho espelhe uma busca de um senso de firmeza e permanência, um chão sob meus pés, mesmo quando a nova afirmação, conscientemente cultural e pretendendo uma inserção artística, soe como uma deliberada reação às maneiras convencionais de estruturação formal, ou ao modo tradicionalmente considerado como virtuosístico ou bem-acabado de uma obra se fazer visível”.

Uma das instalações apresentadas em Annedoto, uma mesa de escritório com uma rosa de plástico por cima, a colagem Abismo e reproduções em xerox colorido de colagens do autor.

Obra exposta em Annedoto: Tirésias, dois antigos pratos de vidro superpostos, o superior contendo

dois tomates perfurados por penas de pavão.

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A forte aproximação com a arte popular inevitavelmente levou o artista a se interessar pela arte infantil e a arte naif, por sua ausência de planejamento e escassa preocupação com uma técnica sofisticada. Realizou uma grande série de pinturas de pequenas dimensões que se apropriam descarada e intencionalmente do típico estilo desses dois universos. No entanto, elas poucas vezes têm títulos e exploram não tanto a sua iconografia, que está presente como um elemento circunstancial, mas antes a sua pura técnica de pintar, tão livre e tão rica em soluções plásticas e compositivas, e com um cromatismo não raras vezes exuberante. Porém, nem sempre a apropriação foi fiel aos modelos, surgindo peças com temáticas transcendentes ou alegóricas, ou com uma técnica não imitativa, mas derivativa.

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Não está mais aqui, ressuscitou, acrílica sobre tela, 50 x 70 cm, 1999. Ao lado, Paraíso perdido, acrílica sobre tela, 50 x 70 cm, 2000.

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Monumento, acrílica sobre tela, c. 1998, 30 x 40 cm. Ao lado, sem título, acrílica sobre tela, 1998, 50 x 70 cm.

Passus, acrílica sobre tela, c. 1996, 30 x 40 cm. Ao lado, Orfeu, acrílica sobre tela, c. 1996, 40 x 50 cm.

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No ano de 1999 foi convidado a participar da importante coletiva Projeto João Fahrion 10 Anos, organizada pelo Instituto Estadual de Artes Visuais, que fez um retrospecto dos momentos mais marcantes em sua trajetória dedicada à promoção de talentos iniciantes. Ao longo desses 10 anos por ali passaram muitos nomes que hoje estão em evidência, como Jorge Menna Barreto, Nelson Wilbert, Marilice Corona, Chico Machado, André Severo e vários outros.80 Disse a curadora da mostra, Ana Albani de Carvalho:

“[...] Com este exemplo de continuidade, a Galeria João Fahrion apresentou, entre sua primeira edição e a última, concluída em 1998, a produção de mais de cem jovens artistas. Entre estes, muitos confirmaram a aposta inicial, mantendo uma produção sistemática, configurada enquanto pesquisa no âmbito da arte contemporânea. Outros, dirigiram-se para atividades na área do ensino, pesquisa e administração cultural. Poucos parecem ter abandonado em definitivo as atividades ligadas ao campo artístico. Considerando a relativa proximidade no tempo, ainda assim, este panorama aponta para a importância e, poderíamos dizer, para a eficácia desta iniciativa cultural.

“Assim, a presente exposição representa uma oportunidade para conferir parte significativa da produção realizada por artistas que sedimentaram suas trajetórias profissionais no decorrer deste período. O critério estabelecido para a presente seleção considerou a constância da produção, manifesta através da regularidade com que o artista participa de exposições individuais e/ou coletivas, de iniciativa privada ou institucional, enfatizando-se a visibilidade obtida através dos espaços e dos processos seletivos consagrados pelo campo artístico em Porto Alegre. Além da regularidade, enfatiza-se os artistas cuja produção evidencie o desenvolvimento de uma pesquisa constante, sistemática e vinculada à contemporaneidade artística. [...]

“Por fim seria tentador buscar palavras-chave que tentassem articular em torno de algum denominador comum os diversos discursos singulares que compõem esta mostra: a presença do bidimensional, a noção de imagem, a não concessão ao emocional X uma lógica outra, a ênfase na apresentação em detrimento da representação, um pouco de ironia, jogos de linguagem.

“( Mas resistirei ao meu desejo através de uma única palavra, uma palavra armadilha: contemporâneo. O segredo sobre como ser contemporâneo e que Deus nos livre de não o ser talvez resida na frase de Calvino: não dar a forma por definitiva e, sim, estar em constante disponibilidade para encontrá-la, não contentar-se com a resposta apaziguadora e preferir, isto sim, a indagação constante. )”.

Para a exposição Frantz concebeu uma instalação de parede apenas com desenhos recortados em vinil adesivo, aproveitando a espacialidade da área que lhe foi destinada, onde havia uma porta e uma janela que davam para o exterior do prédio, e que eram abertas em períodos variáveis pelos responsáveis pela galeria, alterando consideravelmente a incidência luminosa nesta área. O lado esquerdo do espaço, em determinada hora do dia, podia receber insolação direta, enquanto o direito ficava sempre na sombra, independentemente da abertura ou não da porta e janela. No lado esquerdo, então, foram aplicados três desenhos de formas mais ou menos geométricas semelhantes a banquetas, mas de acabado tosco, que pareciam se desprender do chão e se dirigir para a luz, e no lado sombrio foi aplicada uma grande figura de fauno priápico, de traços requintados, em atitude que parecia dar a entender que era quem abria ou fechava as aberturas.

80

IEAVI [Carvalho, Ana Albani de (curadora)]. Projeto João Fahrion: 10 Anos, 1999. Catálogo da exposição.

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Instalação na coletiva Projeto João Fahrion 10 Anos.

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Entre 1992 e 2002 o artista participaria de vários outros eventos. Entre eles, devem ser destacados: O 10º Salão da Câmara Municipal de Porto Alegre (1992), evento organizado em parceria entre a Câmara e a Associação Chico Lisboa e montado no MACRS, que já se tornara tradicional na cidade e um dos mais importantes do estado.81 No mesmo ano realizou em conjunto com Rita Brugger, conhecida artista caxiense, um painel cobrindo toda uma parede do Centro Educacional de Deficientes Visuais de Caxias do Sul. Em 1993 participou de uma exposição de cunho didático promovida pelo Colégio Nossa Senhora do Carmo de Caxias, comemorativa dos seus 85 anos, que reuniu alguns dos principais artistas da região para mostrarem suas obras e realizarem um debate com os alunos da 1ª série do 2º grau, na primeira iniciativa deste tipo organizada pelo educandário.82 83 Em 1994 doou uma obra para um leilão beneficente em Caxias do Sul promovido pela delegação regional da Anistia Internacional – Seção Brasileira, pelo que recebeu um Certificado de Louvor.84 A América que nós Fizemos (1995), coletiva organizada pelo Núcleo de Artes Visuais de Caxias do Sul em parceria com a Festa Nacional da Uva, e montada nos Pavilhões da Festa da Uva,85 sendo considerada um sucesso pelo público local e pela direção da Festa, que concedeu um diploma especial aos participantes em agradecimento pela colaboração “inestimável” para o êxito do evento.86 Em 1996 foi selecionado para a coletiva ArteSul 96, uma grande panorâmica da arte desenvolvida no Rio Grande do Sul no período 1994/96, com curadoria de José Luiz do Amaral e montada em dois espaços de Porto Alegre, o MARGS e a Casa de Cultura Mario Quintana.87 Para esta exposição criou uma instalação, intitulada Batismo, com objetos usados, uma mesa de escritório sem as suas gavetas, algumas pinturas, plantas, lençóis, um pinguim de geladeira repintado com purpurina e luzes de pinheirinho de Natal, organizando esses materiais numa composição que fazia alusão mas pervertia as representações tradicionais do Batismo de Cristo. Sobre o conjunto, com letras coloridas de papel recortado, daquelas que se usam em festas infantis, foi escrita a famosa frase bíblica, com um pequeno acréscimo irreverente ao final: Este é meu Filho muito amado, sobre o qual depositei toda a Minha complacência, né?

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Prestes, Eleonora. “O Salão da Câmara revela qualidade da arte gaúcha”. Zero Hora, 03/09/1992 82

“Carmo reúne artistas com adolescentes”. Pioneiro, 27/05/1993 83

“As artes plásticas chegam à escola”. Folha de Hoje, 28/05/1993 84

Anistia Internacional – Seção Brasileira. Certificado de Louvor, 30/12/1994 85

NAVI. A América que nós fizemos. Catalogo da exposição, 1995 86

“A visão da América pelos artistas do NAVI”. In: Festa da Uva. Os melhores Momentos da Festa da Uva 1996. 87

“Exposição quer mapear a produção do Rio Grande”. Zero Hora, 12/12/1996

Detalhe da instalação Batismo em ArteSul 96.

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Instalação Batismo em ArteSul 96

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No mesmo ano de 1996 participou da coletiva NAVI 8 Anos, organizada pelo Núcleo de Artes Visuais e a Câmara Municipal de Caxias do Sul, apresentando as obras no espaço da Câmara e depois na galeria de arte da UCS.88 89 Em 1997 fez parte de duas importantes coletivas em Porto Alegre, o VIII Salão de Pintura Cidade de Porto Alegre, realizado no Espaço Cultural Edel Trade Center, e o 17º Salão do Jovem Artista, na sede da Fundação Bienal de Artes Visuais do MERCOSUL.90 Chico, Frantz e Fabiana Rossarola, que formaram uma das redes de Remetente, seriam convidados pelo curador e professor Geraldo Porto para apresentar seus trabalhos em 1999 na Galeria de Arte da UNICAMP, em Campinas.91 2001 foi o ano da coletiva Divergências, apresentada na Galeria Iberê Camargo da Usina do Gasômetro,92 usando uma grande ampliação de um desenho da série mitológica em recorte de vinil adesivo e mais duas telas de pequenas dimensões, e em 2002 participou da coletiva Sobre Tela, organizada pela Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes da UFRGS, depois levada para a Galeria de Arte da FEEVALE, em Novo Hamburgo. Nesta época adotou por um breve período o nome artístico Josemar.

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“Navi comemora oitavo aniversário”. Pioneiro, 26/11/1996 89

“Navi apresenta coletiva na UCS”. Pioneiro, 15/04/1997 90

Pereira, Marisa. “Dois caxienses maduros para criar”. Pioneiro, 03/09/1997 91

Instituto de Artes / UNICAMP. Chico Machado, Fabiana Rossarola, Ricardo Longhi Frantz. Folder da exposição. Galeria de Arte da UNICAMP, 1999 92

“Mosaico artístico em Divergências”. Correio do Povo, 15/02/2001

Passagem, instalação na coletiva Divergências, 2001.

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Além da colaboração na banda Aristóteles, por muitos anos Frantz manteve uma parceria artística com Chico Machado, realizando uma série de pinturas e desenhos a quatro mãos. O caráter dessa produção era lúdico e descompromissado, não raro humorístico, e as sessões de trabalho aconteciam sempre em clima de festa. Apesar de não estabelecerem propósitos definidos para essa colaboração além do prazer da convivência e da prática de arte, algumas obras foram mostradas em exposições. Em 1998 uma peça tridimensional foi aceita no I Salão de Arte Cidade de Porto Alegre, montado na Usina do Gasômetro. Essa parceria rendeu no mesmo ano uma exposição exclusiva no Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre, intitulada CarneOsso, com pinturas sobre recortes de madeira compensada, algumas delas tridimensionais e com partes móveis.93 Segundo o texto de apresentação escrito pelos artistas, ”nesta associação a atividade pictórica é encarada como um jogo, com fortes paralelos com o teatro e a música (especialmente o jazz), onde interferências mútuas nas áreas e motivos trabalhados por cada um estimulam o surgimento de novas ideias, sempre sujeitas a novas interferências. [...] Os vários planos pictóricos e as ‘cenas’ representadas em escalas díspares se interpenetram continuamente originando tempos distintos que enriquecem, num olhar posterior, o impacto primeiro do conjunto”. Mostraria obras realizadas com Chico também no II Salão de Arte Cidade de Porto Alegre, organizado no ano de 2000, e na coletiva Bahz[Art], organizada por Vera Chaves Barcellos na Galeria Obra Aberta, no mesmo ano. Algumas dessas pinturas acabaram na capa e contracapa do CD da banda Chumbo Grosso.

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“Artistas gaúchos se confrontam na tela”. Jornal do Comércio, 28/07/1998

Obra a 4 mãos apresentada na exposição CarneOsso.

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Desenhos Neste período trabalhou muito com desenhos em pequenas dimensões, mas nunca fez uma mostra exclusiva com eles, não receberam análises críticas e para o artista “a vasta maioria é desprezível. Botei muita coisa fora e falta botar mais”, mas sobrevive boa quantidade. Merece um destaque a sua Série Mitológica, por várias razões. É toda ela composta de obras figurativas, realizadas com caneta nanquim sobre papel tamanho ofício. A maior parte dos desenhos surgiu em dois ciclos criativos, um no verão de 1998-1999, e outro, mais disperso, entre 2002 e 2005. O primeiro é mais formal, as composições são mais rígidas, e o segundo é mais livre e desenvolto, com uma temática mais variada. O que ambos os grupos têm em comum é o grafismo limpo e a segurança na construção da figura, que recebe um tratamento sofisticado, uma abordagem que não tem paralelos em sua produção pictórica. No entanto, as figuras frequentemente são distorcidas ou fortemente escorçadas. Como diz o título da série, as figuras são inspiradas principalmente na mitologia grega, mas fazem uma leitura divergente do cânone iconográfico. As composições guardam muito da atmosfera fantástica dos mitos da antiguidade e, às vezes, expõem sua violência e erotismo, aspectos que também raramente são encontrados em suas pinturas. Uma temática recorrente nesses desenhos é a dialética corpo/espírito, bem/mal, humanidade/animalidade, realidade/ilusão. Alguns desenhos desta série foram impressos sobre lâminas de acetato transparente, possibilitando criar superposições entre eles e com outras imagens ou textos, ou foram impressos em xerox que depois recebeu outras intervenções. Muitos apareceram avulsamente em algumas exposições, com destaque para as coletivas Remetente e Divergências, em que dois exemplares foram ampliados em grandes formatos e impressos em recorte de vinil adesivo para instalação direta na parede.

Dois desenhos da Série Mitológica impressos em acetato e superpostos a outras intervenções. Na página seguinte, outro exemplo.

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Ciclo, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Mater coelestis, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

Evolving (Prometeu), c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Peso em excesso, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Annedoto, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Episcopus, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

O Libertador, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Conflito, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Eros ou O ilusionista, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Nêmesis, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

71 Boleiro, c. 2003-2005, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, O ilusionista, c. 2003-2005, caneta nanquim sobre papel.

Hierofante, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Prometeu, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Asceta, c. 2002-2005, caneta nanquim sobre papel.

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Amantes, c. 2003-2005, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, A sacerdotisa (invocação), c. 2003-2005, caneta nanquim sobre papel.

Ganesha, c. 2003-2005, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Benevolência, c. 2003-2005, caneta nanquim sobre papel.

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Outra série, a que o artista chama de Pop, também tem, segundo ele, bons momentos, explorando o imaginário popular, o kitsch, o humor e a cultura de massa. Uma terceira e maior seção em sua produção nesta área é diversificada, trazendo paisagens, objetos, arquiteturas, abstrações e figuras humanas ou fantásticas, também trabalhando o grafismo em linhas limpas. Grande parte não passa de pequeninas intervenções gráficas, buscando extrair o máximo do mínimo na captura de formas essenciais, com uma influência da arte zen e da caligrafia.

Oculum Dei, 1996, caneta esferográfica sobre recorte de santinho popular colado sobre papel milimetrado.

Caput inversus, 1994, lápis e caneta feltro sobre papel milimetrado.

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Jeannie, 1997, grafite e lápis de cor sobre papel milimetrado. Ao lado, Mergulhador, 1998, grafite e caneta feltro sobre papel

milimetrado .

Salto, c. 1998, nanquim sobre papel. Ao lado, Carmen, 1998, grafite, colagem e joaninha sobre papel quadriculado.

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Um outro aspecto da sua produção gráfica são os fanzines, aos quais se dedicou durante seu período com a banda Aristóteles. Produziu basicamente dois títulos, Lovizol e O Punhetinha, que tiveram várias edições cada e foram distribuídos em várias cidades do Brasil. Traziam um conteúdo totalmente nonsense, predominantemente humorístico, muitas vezes escatológico ou pornográfico, mas também com algumas filosofanças baratas, através de textos, imagens avulsas e historietas em quadrinhos com tratamento trash – a bem dizer, podre mesmo – e recebiam colaborações. Infelizmente todas as cópias foram distribuídas e os originais se perderam. Sobreviveram alguns exemplares, contudo, na coleção de Flavio Barreto, que gentilmente os escaneou, bem como alguns textos avulsos encontrados na caótica papelada do autor, dos quais se mostram alguns exemplos a seguir. As publicações tiveram alguma repercussão no meio fanzineiro e o autor foi verbetado na EncicloZines – A primeira enciclopédia de fanzineiros, uma publicação online de Joás Dias de Lima (Jodil), que já saiu do ar e hoje só é acessível no cache.

RICARDO FRANTZ (Ricardo André Frantz) Caxias do Sul-RS, 10/2/1964. É formado em Artes Plásticas, funcionário público e músico. Começou a se interessar por intermédio de um amigo, editor, que, segundo ele, lhe deu o primeiro “empurrão”. Desde então, já publicou algumas dezenas de edições do Lovisol, e algumas de derivações, como O Punhetinha e outros (sem nomes), entre 1995 e 1997. Criou, basicamente, tudo; desde o texto até os desenhos e a concepção geral. Todos contêm muito material de colaboradores de outros fanzineiros, principalmente de Daniel Barbosa (Alagoinhas-BA), de Zloty Zinações Artísticas, Flávio Barreto (SP), editor de Amadeu, bastante conhecido dos aficionados, e Marcel Pauluk (Curitiba-PR), editor de Papakapika. Criou algumas personagens instáveis, nascidas das colaborações com o Amadeu, de Daniel Barbosa. “As Criaturas de Vênus”, ”Elesbão” e “Dona Coisa”, no entanto, foram as mais duradouras, prometendo retornos esporádicos. Os zineiros que mais o influenciaram foram: Marcelo Birck, também músico, líder da banda aqui de POA Graforréia Xilarmônica, de sua cidade, Poá-RS, com quem tocaria violino, já na sua outra banda. Sua opinião sobre publicar em revistas é: “Nunca publiquei em revista. Acho que revista mata o zine”. Acha que um bom zine deve ser “uma coisa meio porca, mas cheia de tesão, e, por isso, incompreensivelmente luminosa e bela”, não importando os assuntos... A diferença é como a intensidade resulta nos vários planos e a forma. Segundo ele, criar é, de certa forma, brincar. “O melhor zine é o original, único, porque aí se sente o toque da mão do artista; tem muito tato envolvido”, afirma, categoricamente.

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Também se inclui nas artes gráficas sua primeira experiência com arte de rua, na forma de um cartaz produzido para o Projeto Muffuletta+Arte, curado por Alexandre Navarro Moreia, e distribuído em Porto Alegre em 2001. O texto que criou para a apresentação segue abaixo. “O cartaz elaborado para o Projeto Muffuletta+Arte pretende estimular a reflexão sobre a violência, um tema de grande importância na sociedade de hoje em especial em ambiente urbano, mostrando as palavras PAZ e AMOR perfuradas por tiros contra um fundo vermelho vivo. Partindo do pressuposto de que um cartaz exposto em via pública vai atingir um público heterogêneo e provavelmente sem formação em arte, o objetivo principal foi privilegiar a compreensibilidade da mensagem. Desta maneira, a composição é extremamente simples, fazendo uso de um lettering claro e legível à distância, pontilhado de sinais gráficos representando orifícios de bala, evitando intencionalmente uma formalização complexa e esotérica que poderia confundir a leitura atraindo excessivamente a atenção para si em detrimento da mensagem proposta. A cor vermelha é tradicionalmente associada ao sangue, às paixões arrebatadas e mesmo à violência, e enfatiza o caráter dramático da situação apresentada”.

Fotos de Alexandre Navarro Moreira

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Fim de um ciclo Esta etapa encerrou com a fase que o autor chama mística. A figuração é onipresente e as composições praticamente abandonam a anarquia e a ironia que vinham sendo cultivadas até então para se organizarem em arranjos narrativos essencialmente religiosos ou mitológicos, uma temática que vinha crescentemente pontuando sua produção nos últimos anos. A seriedade dos temas é acompanhada por um crescente enxugamento formal e uma técnica mais controlada.

Mensageiro, 1999, acrílica sobre tela, 40 x 50 cm Face, 1999, acrílica sobre tela, 40 x 60 cm

Encarnação (auto-retrato), 1999, acrílica sobre tela, 30 x 40 cm

Totem, 1999, acrílica sobre tela, 50 x 70 cm

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Trindade, 1999, acrílica sobre tela, 50 x 70 cm

Stella matutina, 1999, acrílica sobre duratex, 40 x 40 cm Nisi dominus, 1999, acrílica sobre duratex, 40 x 40 cm

Sperent in Te omnes, 1999, acrílica sobre tela, 40 x 60 cm

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No ano de 2002 realizou uma individual no Centro Cultural Dr. Henrique Ordovás Filho, em Caxias do Sul, intitulada Memorabilia, onde fez um balanço do que havia produzido desde 1992. Assim descreveu a proposta:

“A ideia em Memorabilia foi recuperar uma parte de minha história e minha prática artística, analisá-la e reorganizá-la, e fazer uma espécie de balanço. Havia uma sensação de ciclo fechando, e eu precisava ter isso visualizado plasticamente. Utilizei principalmente uma vasta documentação fotográfica que eu vinha acumulando há anos, e que registrava meu processo de criação, o ambiente do meu atelier, imagens de obras acabadas e das exposições que realizei, onde se incluíam fotos de familiares e amigos. Também recorri a um acervo de imagens alheias encontradas em revistas e livros de arte, e que eu coletava como inspiração também há anos.

“A exposição resultou em quatro obras criadas especificamente para o local. Coração concentrou as memórias afetivas, agrupando as fotos de parentes e amigos no formato de um coração, coberto por um véu de plástico transparente decorado com estrelas e sóis. Memória agrupou o material ligado ao processo criativo e imagens de atelier e exposições. Com ele construí uma forma de casa em sua configuração mais sólida e sumária - telhado, porta e janela - apontando para o fazer como uma história, uma construção, uma crítica e um lugar de habitar e ser. Mundo das Ideias, por sua vez, foi elaborado apenas com um spray dourado aplicado em círculos na parede, abaixo tendo um pedestal de ferro pintando de preto. Refere-se ao processo ideativo, o ato de criar em sua primeira manifestação, e aos lampejos da memória, e sua materialidade rarefeita e formas geométricas sugerem a abstração do intelecto e a concentração no essencial. O pedestal negro é a matéria. A última obra se chamou Descendência, um desenho a grafite feito diretamente na parede com a forma de árvore. Sobre ele, foram aplicadas inúmeras imagens de segunda e terceira geração de obras de Duchamp, Magritte e outros artistas das vanguardas modernistas, junto com desenhos em papel e fotografias de outros trabalhos de minha autoria, como se fossem folhas da árvore.

Duas obras de Memorabilia: acima, Memória, fotos e plástico decorado; abaixo, detalhe de Coração, fotos de família debaixo de um véu de plástico decorado.

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“Sobre o tronco foram aplicados fragmentos de um retrato de Duchamp. Quis fazer um comentário bem-humorado a respeito de minhas principais filiações estéticas durante aquele período, em que entre minhas preocupações centrais estava trabalhar a questão do meio como mensagem proposta por MacLuhan e a questão da ruptura como ilustrada pela obra de Duchamp. Entre essas obras incluí um espelho com colagens de imagens de anjos medievais, e um poema que falava dos ciclos criativos”.

O poema segue abaixo: No fim o mundo anda E a gente se vira. Eu pensei que havia Perdido a pureza do Amor Primordial Mas ainda a sinto dentro de mim. É sempre a primeira vez, ela sempre se repete em presença, Ainda que não em aspecto. Ainda bem. Pensei ter maculado A visão divina com ambição e esquecimento: Pensei conhecer o que é a Beleza Infinita. Mas o reinado da noite é temporário E o Amor se renova se deixado livre. Cumpro o meu trabalho pois o Amor precisa de mim E eu amo o Amor e o quero rever. A alma é fiel, Embora eu não.

Descendência, colagens e desenhos sobre desenho parietal em grafite. Ao lado, Mundo das Ideias, spray dourado e pedestal de ferro negro.

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Fotografia A partir de 2002, dando por esgotadas as pesquisas anteriores, e sentindo a necessidade de reorganizar seu universo particular e re-observar o mundo exterior, passou a se dedicar exclusivamente à fotografia. Sofreu nesta época forte impacto de seus estudos sobre o academismo e a história da arte antiga, e, atuando em um museu, ressaltaram a seus olhos os aspectos da arte como instrumento educativo. A abordagem, agora, era radicalmente distinta: em vez de se concentrar no processo de criação, na linguagem formal e na contestação de paradigmas como objetivos principais do trabalho, os temas e a comunicabilidade acessível passaram a ganhar um papel destacado e definidor. Mesmo assim, segundo Frantz, a heterogeneidade dos procedimentos da fase anterior influenciou no tratamento dado às fotografias, rejeitando critérios tradicionais de perfeição técnica, e explorando texturas, granulações, desfoques e outros recursos tipicamente fotográficos, mas que acabavam por desvirtuar a "pureza" da fotografia para se aproximar de efeitos próprios à pintura ou ao desenho, e remetendo outra vez, indiretamente, à bad art e ao kitsch. Isso não deixava de ser uma forma de experimentalismo mais brando e, por isso, mais acessível ao grande público, uma conciliação ora entendida como necessária para que a arte cumprisse mais facilmente uma função social, estabelecendo um diálogo mais equilibrado com o público. Preocupava-o o fato de que muitas de suas propostas anteriores haviam esbarrado na perplexidade e na incompreensão do público leigo, anulando a possibilidade de criar um verdadeiro diálogo entre artista e observador e, sobretudo, não desejava confinar sua produção ao reduzido círculo dos iniciados nos arcanos de uma arte excessivamente esotérica. Tipificam esta fase as obras mostradas na exposição individual Paisagens (Galeria Municipal de Caxias do Sul, 2006), mostra que lhe valeu um Voto de Congratulações da Câmara Municipal de Caxias do Sul, aprovado por unanimidade. 94

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Câmara Municipal de Caxias do Sul. Voto de Congratulações VG-1310/2006, 07/12/2006

Detalhe da exposição Paisagens

Vale do Quilombo ao amanhecer, Gramado, fotografia, 2006

Amém, fotografia, 2005

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O texto de abertura da mostra dá indicações de suas intenções:

“Estas imagens não são fotografias meramente descritivas nem tecnicamente puras, são antes o resultado de uma interpretação da Natureza, vista com olhos de pintor, e valendo-me dos modernos meios de manipulação de imagem disponibilizados por programas de computador como o Photoshop. Do retrato do natural restou apenas o desenho da paisagem, as formas, pois em todas as imagens alterei substancialmente as cores, os contrastes, as texturas, a luz e outros detalhes, no intuito de acrescentar atmosferas especiais e com isso suscitar leituras que uma reportagem mais crua das cenas talvez não pudesse proporcionar. “Meu equipamento é simples, uma câmera de 6 MP, produzindo imagens que usualmente não poderiam ser ampliadas além de 40 cm em média, e estes grandes formatos logicamente desvirtuam muito do que se poderia esperar em termos de impecabilidade técnica num sentido mais estrito. Porém minha formação como pintor naturalmente me levou a abordar este outro meio expressivo com outros olhos, e onde um purista poderia tomar, por exemplo, o excesso de grão ou o foco impreciso como deficiências, e tendo lá suas razões, eu os vejo funcionarem como texturas e veladuras pictóricas. “Em suma, o que fiz foi trabalhar com os limites de meus recursos instrumentais tentando tirar partido deles para que servissem à minha proposta atual, que é a de tentar elaborar um paisagismo híbrido, ao mesmo tempo descritivo e intimista, realista e simbólico, moderno e antigo, fotográfico e pictórico, sempre fazendo referência e uma homenagem à grande tradição de pintura de paisagem que ao longo do tempo foi, e ainda é, um dos campos mais férteis e bem sucedidos da manifestação artística, e que nesta fase de meu trabalho tem sido a fonte preponderante de inspiração”.

Mar, fotografia. Para a mostra Paisagens esta foto foi ampliada na dimensão de 3 x 6,2 metros e colada diretamente na parede.

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Até 2011 transitou por várias temáticas, desde a dita paisagem, trabalhada em um viés que se poderia qualificar como romântico, induzindo leituras específicas, até o registro quase jornalístico do cotidiano das ruas das cidades, numa abordagem que seguia o "princípio da não-intervenção", mas produzindo também algumas montagens humorísticas, algumas séries minimalistas centradas na geometria das construções urbanas, e outras, como Poéticas da Tecnologia e Interregno, em que privilegiava o acaso e a exploração heterodoxa de recursos tecnológicos padronizados e as próprias limitações da tecnologia.

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Uma série fotográfica que merece uma atenção especial é Poéticas da Tecnologia, que desenvolveu de maneira intermitente de 2010 a 2014, dividida em subséries. Poéticas explora diferentes efeitos plásticos e suas possibilidades expressivas obtidos com o acaso e com recursos fotográficos automáticos ou semi-automáticos. No grupo intitulado Storyboards, por exemplo, o motivo principal são avenidas e cruzamentos com intenso tráfico de veículos. Em Ruas o foco é os transeuntes da cidade.

O procedimento que as une é a tomada da foto usando o ajuste “fotografia panorâmica” de uma câmera digital amadora. A imagem gerada tem uma grande largura mas pequena altura, predominando amplamente o sentido horizontal. Esse formato panorâmico por si transmite ao observador uma sensação de amplitude, de ambiente aberto, como é o desses locais em foco. Por outro lado, a fotografia com este ajuste pressupõe um objeto imóvel, como uma paisagem, por exemplo, para que se possa conseguir uma imagem contínua e sem falhas. Contudo, a captura de objetos móveis com este ajuste adquire interesse pela fragmentação e outras anomalias que provoca na imagem, incluindo distorções e gerando maior granulação, oferecendo resultados plásticos que, pela regulagem automática da câmera, têm muito do acaso e imprevisto, mas também podem ser manipulados deliberadamente em alguma medida, através da velocidade com que se move a câmera, regulando previamente contrastes, prevendo, pela prática da observação, o comportamento dos objetos e de seu movimento, e mesmo usando da intuição e do improviso na captura. Pode-se inclusive introduzir um novo elemento de dinamismo através da captura com o fotógrafo em movimento. Basta estar dentro de um automóvel. O resultado é diferente do outro processo, antes descrito. A imagem resulta com uma fragmentação mais nervosa, quase ondulante.

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O recurso tecnológico escolhido se revela útil como maneira de fixar e transmitir a atmosfera de agitação que caracteriza esses locais, com múltiplos objetos em movimento por toda parte - o formigueiro de pessoas e automóveis em alta velocidade – que se embaralham e entram e saem de nosso campo visual em questão de segundos, deixando apenas um rastro fugaz em nossas retinas e memórias. Registrando uma dinâmica fragmentada, a imagem final remete às histórias em quadrinhos, aos roteiros de cinema e vídeo, com seu desenrolar dramático tipicamente congelado em quadros separados. Ao mesmo tempo, o cenário de fundo, a paisagem urbana imóvel, é capturada quase sem quebras de continuidade, fazendo um imprevisto contraste com os outros elementos da composição e reintegrando visualmente a unidade do tempo e do movimento.

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As mais de mil fotografias que disponibilizou para uso livre e gratuito através do banco de mídias Wikimedia Commons 95 vêm sendo usadas em centenas de artigos e publicações acadêmicas impressos e online, sites institucionais, blogs, jornais, revistas e outros meios, incluindo os artigos da Wikipédia, da qual é colaborador voluntário, que têm uma vasta visitação internacional. Algumas foram aproveitadas pelos editores da Encyclopedia Britannica online para a ilustração de seus verbetes, entre eles “Mount Parnassus”,96 “Blessed Innocent XI97” e “Antinoüs”,98 e outras apareceram em capas de livros, como os diálogos Simpósio e Parmênides, de Platão (ambos pela Akasha Classics, 2009), e Three Ladies of Siena: The Wartime Journals of the Chigi-Zondadari Family 1943-1944, de Elizabeth Cartwright-Hignett (Iford Publications, 2012). Uma de suas fotos ilustrou uma tiragem especial de selos dos Correios do Brasil, comemorando o centenário do prédio histórico do Memorial do Rio Grande do Sul, antiga sede dos Correios e Telégrafos do estado. O selo tem circulação nacional. Duas de suas fotos (Hércules Capitolino e Cristo della Minerva) foram incluídas na galeria Nus Masculinos Famosos apresentada pelo site de notícias BOL/UOL.99 Fez extensa documentação fotográfica dos prédios históricos de Porto Alegre, boa parte dela disponibilizada para uso livre no Wikimedia Commons.

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Wikimedia Commons. Category:Photographs by Ricardo André Frantz 96

"Mount Parnassus". In: Encyclopædia Britannica Online, 04/20/2010 97

"Blessed Innocent XI". In: Encyclopædia Britannica Online, 21/03/2012 98

"Antinoüs". In: Encyclopædia Britannica Online, 12/12/2010 99

“Nus masculinos famosos”. BOL Fotos, 27/11/2015

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Também neste período experimentou com softwares para criação de fractais. As pesquisas não foram aprofundadas porque considerou cansativa a redundância intrínseca da fórmula, mas alguns resultados plásticos não deixam de ser interessantes.

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Com as facilidades da foto digital, sua produção se multiplicou numericamente em ordens de grandeza, mas são pequena fração as obras ou séries que realmente lhe satisfazem. Na verdade não havia muito tempo para pensar na produção própria, estando mergulhado em atividades no MARGS que exigiam muito tempo e esforço. O trabalho do museu exigia também constante pesquisa histórica sobre a arte gaúcha, brasileira e europeia, e foi preciso fazer um mergulho no academismo, nos clássicos e nos barrocos. Viajou duas vezes à Europa e viu o Hermes Logios, o Apolo Belvedere, o Perseu de Canova, o Diadúmeno de Policleto, o Rapto das Sabinas de Giambologna e o Deus do Cabo Artemísion, e se apaixonou “perdidamente” por toda aquela estatuária tradicional que já amava dos livros, e quando viu ao vivo no próprio MARGS A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles, uma grande exposição de acadêmicos do Museu Nacional de Belas Artes também no MARGS, e descobriu a revista 19&20, recebeu outro dos seus “choques de beleza”: "Me joguei de barriga", como disse. Com o fruto de seus estudos produziu ensaios e dezenas de artigos sobre estas áreas para a Wikipédia, vários destacados em votação da comunidade de editores.

Diadúmeno de Policleto, fotografia, 2007

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Suas fotografias participaram de várias exposições coletivas, entre elas Lugares de Passagem (2003), montada na Galeria Municipal de Arte de Caxias do Sul, e a exposição marcando a instalação do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul em sua pretendida nova sede nos armazéns do Cais do Porto (2004). Em 2006 foi selecionado no mapeamento que o Núcleo de Artes Visuais de Caxias fez da produção relevante na região, com apoio da Prefeitura, que resultou no lançamento do website Balcão de Arte, onde eram apresentadas informações sobre os artistas.100 Participou da Bienal B (2007), grande evento independente paralelo à Bienal do MERCOSUL, espalhado por 40 espaços da capital e curado por Gaby Benedict, mostrando fotos em grandes formatos da série Paisagens na seção montada na Fotogaleria Virgilio Calegari da Casa de Cultura Mario Quintana. Olhares II 2010 sobre a Memória de Caxias do Sul foi apresentada no Museu Municipal de Caxias do Sul com organização da Associação Moúsai e Prefeitura Municipal, enfocando o patrimônio histórico da cidade. No mesmo ano participou de 2010: Tempo Revisitado, que marcou a inauguração da Galeria de Arte e Reserva Técnica do Acervo Municipal de Artes Plásticas de Caxias do Sul, cujo projeto técnico fora orientado pelo próprio Frantz,101 e em 2012 fez parte de Distensões do Real, mostra que inaugurou as atividades do Espaço Cultural da FEEVALE, em Novo Hamburgo, reunindo “28 artistas contemporâneos com reconhecida trajetória no campo da arte e que utilizam a fotografia em seus processos de trabalho”.102 A curadoria esteve a cargo de Clóvis Martins Costa, que assim definiu a proposta:

“A exposição terá como escopo [...] a percepção da fotografia enquanto dispositivo para o alargamento/distensão da realidade, tornando visível ‘alguma coisa do mundo, alguma coisa que não é, necessariamente, da ordem do visível’ (ROUILLÈ, 2009). Partindo dos trabalhos apresentados, poderemos verificar a relação das poéticas de cada um no que toca a esta qualidade da imagem fotográfica”.

Para esta exposição Frantz apresentou uma de suas fotografias da série Poéticas da Tecnologia, mostrada abaixo.

100

“Balcão de Arte”. Pioneiro, 29/08/2006 101

“Inaugurada nova sede do AMARP e Galeria de Artes”. Assessoria de Imprensa da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, 14/12/2010 102

“Espaço Cultural Feevale promove conversa com artistas”. Notícias Feevale, 11/10/2012

Fotos na Bienal B de 2007

113

Uma fotografia também foi o ponto de partida para uma obra apresentada em 2013 na coletiva Modos de Ser e Estar no Mundo, montada na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes da UFRGS. A exposição foi um desafio, pois destinava-se também a deficientes visuais, como foi justificado pelos curadores Cláudia Zanatta, Patrícia Bohrer e Rodrigo Núñes no texto de apresentação:

"Deficiência, eficiência? A palavra arte não aparece aí. Quem delimita os limites? O que é um ser humano completo? É um ser perfeito como o proposto na idealização grega? Um ser produtivo como o estipulado pela sociedade do consumo? O que é ser eficiente e deficiente na Universidade? E o que a arte e um espaço museológico têm a ver com isso? "Foi a partir destas indagações (e inquietações) que surgiu a proposta da exposição Modos de Ser e Estar no Mundo, na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes da UFRGS. Neste evento, artistas que trabalham com diferentes linguagens e conceitos propõem experiências que tocam aspectos emocionais, espirituais e intelectuais para enfatizar a riqueza, a diversidade, as limitações e os não-limites que nos caracterizam como seres humanos. "Carregando o desafio de ser instalada em um prédio antigo, que apresenta muitas dificuldades para os ajustes necessários de acessibilidade, a exposição objetiva também provocar reflexões sobre as possibilidades de adaptação deste espaço ao acesso universal. Trata-se de um desafio tanto para os artistas que estão produzindo as obras especialmente para a ocasião quanto para a Universidade que trabalha para possibilitar a participação de todas as pessoas em nossos espaços. "Em um esforço conjunto, Instituto de Artes, Pró-Reitoria de Extensão, Departamento de Difusão Cultural e Programa Incluir da UFRGS desenvolvem um projeto-piloto de exposições para que começemos a tratar as questões da acessibilidade e das diversidades na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo com a seriedade e respeito que elas merecem. "A acessibilidade possível, por ocasião da exposição, será limitada, sem acesso a cadeirantes. Contaremos com intérprete de libras para surdos e mediadores especializados para pessoas com deficiência visual, desde que com agenciamento prévio. Sinta-se convidado, com seu modo de ser e de estar no mundo, a participar desta iniciativa”.103

A obra de Frantz foi um arquivo de áudio relacionado a uma fotografia:

“A obra apresentada na exposição, intitulada Para não esquecer que os vândalos continuam no poder, nasceu a partir de uma fotografia que bati em Porto Alegre, em uma das várias manifestações públicas que tomaram o Brasil em 2013, em protesto contra as condições opressivas em que vive a população e reivindicando mudanças, entre as quais estava, proeminentemente, o maior respeito pelas minorias. Escolhi esta imagem em função da proposta inclusiva da exposição.

“Uma multidão está na frente do Palácio Piratini, sede do governo estadual, e grita continuamente várias palavras de ordem. Por cima de todos paira uma enorme faixa com os dizeres Os vândalos estão no poder, o que me surpreendeu naquele dia como uma descrição brilhantemente sucinta e precisa da situação que o país vive hoje, assolado pela incúria administrativa, pelos retrocessos na área do meio ambiente, saúde, educação, pela ineficiência do sistema jurídico, por um congresso nacional composto majoritariamente de criminosos, fanáticos, lobbystas de grandes negócios ou meras caricaturas incompetentes, e sobretudo pela corrupção sistêmica que suga vastos recursos públicos e depreda instituições e serviços vitais, vandalizando com a vida de todos, causando a morte de milhares todos os anos e fazendo uns poucos se tornarem muito, muito ricos.

103

“Últimos dias para conferir exposição Modos de Ser e Estar no Mundo". UFRGS Notícias, 21/11/2013

114

“Para atender ao desafio da curadoria da exposição de tornar as obras de arte acessíveis a portadores de necessidades especiais, procurei descobrir, na ausência da imagem, qual seria, para alguém que não vê ou não esteve lá, a melhor tradução desse mar visual efervescente de vida e consciência cívica que tomou nossas ruas. Meus meios usuais de expressão são a foto e a pintura, e nesta tentativa de tradução percebi o quanto minha própria concepção de mundo é dominada pela visualidade, e como a própria linguagem corrente também é. Apenas descrever como é a foto, ou como foi aquele movimento, me pareceu tão insuficiente! Eu precisaria ser um poeta para dar vida à narrativa, mas não sou poeta, sou um artista visual. Lembrei, então, que eu havia feito alguns registros sonoros na mesma oportunidade. Geralmente faço isso, mas não costumo guardar esses registros por muito tempo, não trabalho com gravações de áudio e foi por puro acaso que conservei estas. Nada melhor, para recriar ou traduzir a fotografia, do que o som daquele preciso momento que ela captura em formas, esperando otimista que o ouvinte construa o que lhe faltar para que alguma corda em seu interior vibre em sintonia, vivificando a mensagem e lembrando-lhe de sua atualidade.

“Minha obra, enfim, tem muito pouco de meu: é o som cru capturado na ocasião em que a foto escolhida foi obtida, com pequenos ajustes técnicos que não sacrificam sua autenticidade. Mas se fazer arte é em essência transmitir uma mensagem, creio que meu recado ficou dado. Embora eu também seja compositor, imaginei que manipular o registro sonoro a ponto de torná-lo uma peça de música seria adocicar a pungência do lamento nacional. As interferências pessoais se resumem principalmente a cortes, para evitar as longas repetições de um mesmo bordão e mostrar condensadamente um pouco da variedade das reivindicações que se ouviam, evitando tornar a experiência, no contexto de uma exposição de arte, entediante. O resultado é uma breve mas vibrante imersão em um momento que ficou na memória do país, mas cujos anseios que expressou não podem ser novamente esquecidos enquanto a situação não mudar”.

Link para o arquivo sonoro

115

Retorno à pintura Em 2011, sem abandonar a foto, voltou a trabalhar com a pintura com renovado interesse, e em poucos meses passou de um estilo gestual e expressionista, ocasionalmente usando fotos como base (série História da Paisagem), chegando ao fotorrealismo (série Intensificações), onde a origem fotográfica da imagem é um elemento importante para a significação da pintura, mais uma vez integrando referências oriundas de campos artísticos distintos.

História da Paisagem: Agreste, acrílica sobre tela, 300x145cm, 2011. Abaixo, História da Paisagem: Maresia, acrílica sobre tela, 300x145cm, 2011

116

História da Paisagem: Oásis, 2011, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm. Abaixo, História da Paisagem: Torres del Paine, 2011, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm.

117

Intensificações: Tempus fugit, 2011-12, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm. A partir de uma foto de Super Bomba publicada no Wikimedia Commons com uma licença cc-by-sa-2.0

As obras da série Intensificações receberam a aprovação de pares destacados da cena gaúcha, como Renato Heuser, Marion Velasco, Nelson Wilbert,104 Marilice Conora, 105 Leandro Selister,106 e Hô Monteiro,107 108 entre vários outros, resultando em duas exposições individuais, uma em Porto Alegre (Eternos-efêmeros, Fundação Ecarta, 2012), com curadoria de Chico Machado, que recebeu considerável cobertura 109 110 111 112 113 114 115 e lhe valeu uma indicação ao Prêmio Açorianos,116 e outra em Caxias do Sul (Terra, Galeria Municipal de Arte, 2014).117 Chico Machado assim resumiu a nova proposta do artista:

“Para realizar as pinturas exibidas nesta exposição, Ricardo André Frantz partiu da apropriação de fotografias alheias encontradas em um banco de imagens de uso livre. Ajustando digitalmente alguns parâmetros da imagem, esta imagem é então transposta para a tela através de um dispositivo ótico projetivo. Uma vez afixado o contorno de uma imagem realista projetada sobre a tela, o artista tratou de interpretá-la através da pintura, de encontrar um tratamento pictórico adequado para cada área das figuras e dos cenários presentes em cada quadro. Da distribuição generosa das massas coloridas e do requinte dos detalhes pictóricos surgem imagens impactantes, que saltam aos olhos portando temáticas afáveis, agradáveis mesmo, reiterações de lugares-comuns, de uma ‘banalidade carregada de afetos’, conforme dito pelo artista. Efêmeros momentos de deleite eternizados pela monumentalidade do tamanho das suas pinturas. Efêmeros também são os gestos, eternos também

104

Heuser, Renato; Wilbert, Nelson; Selister, Leandro; Velasco, Marion. Comentários no Facebook sobre a exposição Terra, 2014 105

Corona, Marilice. Comentários no Facebook sobre a exposição Eternos-efêmeros, 2012 106

Selister, Leandro. Comentário no Facebook sobre a pintura Fragmentos, 31/07/2013 107

Monteiro, Hô. Comentário no Facebook sobre a pintura Interior, 07/04/2013 108

Monteiro, Hô. Comentário no Facebook sobre a pintura Repouso, 09/05/2013 109

Lerina, Roger. “Telas de Ricardo André Frantz serão expostas na Fundação Ecarta”. Zero Hora, 12/08/2012 110

Frantz, Ricardo André & Machado, Chico (curador). Eternos-efêmeros. Fundação Ecarta, 2012. Catálogo da exposição. 111

“Sugestão da Redação: Eternos-efêmeros”. Jornal do Comércio, 11/08/2011 112

‘Programação Ecarta – agosto”. Jornal Extra Classe, 2012; (273):27 113

“Abertura de exposições e bate-papo”. Instituto de Pesquisa em Memória Social, 15/09/2012 114

“Galerias com novas mostras”. Correio do Povo, 11/08/2012 115

Fialkov, Dóris. “Eternos-efêmeros de Ricardo André Frantz”. Banco Cultural, 2012

116 “Prêmio Açorianos de Artes Plásticas será entregue nesta terça”. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2012

117 Programa Armazém. “Exposição Terra”. UCSTV, 06/03/2014

118

podem ser as marcas deixadas por eles, preservadas sobre a superfície do tecido. Desafiado pela escala de grande formato de suas telas, Ricardo buscou um modo de pintar que atendesse tanto ao interesse das imagens como ao interesse da pintura propriamente dita, estabelecendo um jogo entre o olhar aproximado que vê as manchas e o olhar afastado que vê as imagens. Procurando, segundo suas próprias palavras, ‘até aonde pode ir a liberdade do gesto’ mantendo o interesse da obra ‘por sua plasticidade pura, sem que se perca no processo a eficiência da ilusão representativa’”.118

O artista também apresentou um texto, que complementa a visão do curador: “Hoje, talvez mais do que nunca, nada se faz sozinho. Intensificações é uma série de pinturas em grandes formatos realizadas a partir de imagens obtidas em um banco de mídias de uso livre, cujos autores muitas vezes só se identificam por apelidos. Ao apropriar-me de imagens alheias quis enfatizar o caráter coletivo - e infinitas vezes anônimo - do processo de construção da cultura. Este procedimento não é novo em meu trabalho. Em meus primeiros anos me apropriei intensivamente de material oriundo da cultura visual popular e erudita, buscando para ele novas articulações e significados em rearranjos iconoclastas e antropofágicos. Aqui, porém, a apropriação tem um sentido diferente: não busca, como antes, contestar e hibridizar tudo num grande mix geral, mas sim selecionar componentes particulares do oceano de imagens contemporâneo e enfatizá-los. “Mais do que uma simples apropriação, as pinturas que derivam dessas fotografias constituem uma verdadeira re-criação da imagem original, que é transformada na pintura de vários modos, seja pela eleição de uma paleta de cores diferente, seja pela alteração, supressão ou acréscimo de elementos da composição, seja pela magnificação da sua escala e pela própria materialização da imagem através de tinta e gesto, o que lhe confere um caráter novo e único, irreproduzível, intensificando a imagem original de maneiras novas, e criando tensões interessantes entre o ilusionismo fotográfico e a materialidade visível das pinceladas. “Conceitos, processos, técnicas, significados, formam-se lentamente ao longo de séculos, pela contribuição pontual de milhões de pessoas, e o aparecimento de ‘soluções para os problemas artísticos é sempre provisório, efêmero. Pois muitas vezes o que se encontra na busca não é a resposta desejada, mas sim uma nova pergunta, uma re-verberação, um pequeno reflexo estilhaçado do todo que nos foge, ou o vislumbre de uma nova mutação. “A cultura, assim, como a vida, é uma rede de interdependências. Que seria de Picasso se não fosse Policleto? E o que seria de ambos sem o pão de cada dia em seu prato? O pão feito pelo humilde padeiro que acorda às cinco da manhã, trabalhando sobre o suado suor do camponês, que colheu da terra, a troco de esmola, o sustento para as multidões que não conhece e estão longe. Podemos remontar nessa cadeia à origem do mundo e a todas as coisas presentes, e a todos os seres vivos. Cada elo nessa cadeia é precioso e frágil, assim como são frágeis o material de que são feitas estas pinturas e os momentos/sujeitos que elas retratam. Por isso a temática afável. Por extensão, amorosa. Por natureza, bela. “Ora, o que é assim bom e gostoso, natural que desejemos preservar, e, como seres culturais, até decantar em arte e transformar em símbolo e monumento. E não por outra razão do que pelo seu conteúdo de bondade, como promessa de felicidade. Mais uma razão para que as imagens originais fossem alheias, e não representassem um universo que me fosse exclusivo, embora todas elas remetam a importantes episódios em minha vida e a série seja, deste ponto de vista, também alegórica e memorialista. Mas, antes, foram escolhidas deliberada e especificamente imagens que

118

Machado, Chico (curador). Eternos-efêmeros. Fundação Ecarta, 2012. Catálogo da exposição

119

também pudessem se confundir com a experiência comum de todos, com as utopias que todos acalentam, com a bondade que todos já experimentamos e desejamos que se repita. “Essa bondade só pode se manifestar em plenitude se a rede de interdependências da vida se mantém intacta. Não podemos tê-la se nos matamos uns aos outros e se destruímos nosso planeta. Se fazemos isso nossa ‘civilização’ e nossa ‘cultura’ não passam de um engodo monstruoso que um dia vai engolir a nós próprios. Todos somos responsáveis pelo futuro, mas criamos para nós a possibilidade real da perda permanente da bondade que amamos. Essas pinturas então podem ser, também, para ajudar que lembremos”.

O artista e o curador Chico Machado na abertura de Eternos-efêmeros. Abaixo, o convite da mostra.

120

Intensificações: Iniciação, 2011, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm. A partir de uma foto de Angelique800326 publicada no Wikimedia Commons com uma licença self|cc-by-sa-3.0|GFDL

Intensificações: Ilusionismo, 2011, acrílica sobre tela, 300x145cm, a partir de uma foto de Patrick Coin publicada com licença cc-

by-sa-2.5

121

Outras peças apareceram em uma coletiva no MACRS em 2013, Pintura: modos de usar, organizada por Marilice Corona, comemorando os três anos da gestão de André Venzon.119 120 A exposição foi indicada para o Prêmio Açorianos de 2014 na categoria Melhor Coletiva,121 mas perdeu na escolha final para outra concorrente. O texto da organizadora salientou a diversidade de soluções da pintura contemporânea:

“A partir dos anos 70, o fim da hegemonia da pintura como categoria artística, paralelamente ao surgimento das mais diversas manifestações em arte, trouxe para o campo da pintura um sentimento de crise e, ao mesmo tempo, uma inteira liberdade de investigação e trânsito pela sua longa história. A pintura, ao libertar-se dos dogmas tanto extrínsecos quanto intrínsecos a ela, encontra um campo amplo e fértil de possibilidades a serem exploradas. Pode ser discutida a partir de seu poder representacional, da materialidade, da expressão, de seu suporte, das relações com os novos meios de produção de imagem e outros mais que poderiam ser elencados. É um meio entre tantos outros de dar forma e visibilidade às ideias. Pintura: modos de usar reúne no MACRS oito pintores que buscam maneiras distintas de problematizar e usar a linguagem. Diferentemente de uma bula, os modos aqui pretendem apontar a diversidade como condição para a pintura contemporânea”.122

119

“MACRS encerra programação 2013 com um balanço das suas ações e as exposições”. Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul, 02/12/2013 120

“MAC/RS encerra 2013 com duas novas exposições”. Correio do Povo, 11/12/2013 121

“Prêmio Açorianos de Artes Plásticas anuncia artistas e exposições indicados”. Zero Hora, 24/03/2014 122

Corona, Marilice. Pintura: modos de usar. Convite de exposição, MACRS, 2013

Vistas da montagem de Pintura: modos de usar.

122

Intensificações: Idealismo, acrílica sobre tela, 2012, 300 x 145 cm, a partir de uma foto de Sander van der Molen publicada com uma licença Self|GFDL|Cc-by-sa-3.0-migrated|Cc-by-2.5

Intensificações: A Revolução cotidiana (Marca das Vadias, Porto Alegre, 2013), 2013, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm. A partir de foto do autor.

123

Seu trabalho recente em pintura foi destacado pelo artista, professor e crítico Gustavot Diaz em artigo na revista virtual Filosofia do Design, incluindo-o entre os artistas que estão difundindo o novo realismo no Brasil. 123 Diaz provavelmente é o mais ativo proponente no estado da revalorização do realismo, e tem escrito uma série de artigos analisando os méritos e os riscos de uma estética que já foi dominante e ao longo do século XX enfrentou duradoura campanha de descrédito por parte das vanguardas, criando uma pesada carga de preconceito que ainda hoje exerce grande influência. Alguns trechos tirados de vários artigos, que abordam alguns de seus pontos centrais, são úteis para contextualizar o movimento e situar o trabalho recente de Frantz:

“[...] O compromisso entre ‘arte’ e ‘realidade visível’ é meramente formal; aquela é uma criação relativamente autônoma e legítima em seu próprio campo. Quando perde, no entanto, sua função criadora deixando de instaurar outros ‘mundos no mundo’ e passa a comprometer-se com a manifestação visível (aparência) das coisas, renuncia a seu poder de invenção. Fora preciso que os impressionistas e Cézanne, muitos anos depois, voltassem a quebrar esse pacto entre imagem e coisa, revelando a ‘verdade’ de sua própria percepção. “Por esse motivo, paradoxalmente, ‘o realismo é surreal’, como disse Georgia O’Keeffe. Mas o realismo possui a virtude de vertebrar os regimes de visualidade: aí reside sua maior potência; seu ‘poder de palavra’. Renunciando à imaginação, o artista adquire o domínio de apontar sua mira com maior precisão para onde deseja e colocar em causa as questões do domínio publico. O inverso é seu ‘poder de silêncio’. A imagística de um período pode ser minada em seu próprio campo; mas entre a palavra e o silêncio instaura-se uma crise – a banalização. [...] “A crítica da Academia em geral diz o contrário: ‘copiar’ fotografias é estéril, a imagem em si mesma é uma narrativa já superada pelo pós-estruturalismo, etc. etc.. Mas só os cegos para a realidade imediata da imagem são capazes de ver que o coração do Hiper-realismo atual é o conceito. Este funciona como um re-encantamento das imagens no terreno que lhes é próprio: o discurso visual, a retórica plástica figurativa. Criar a ilusão efetiva de ‘realidade’, remontando as coordenadas da percepção nos dá ciência de que a realidade é uma união de peças: é um contorno específico o que dá sentido (portanto editável) ao mundo. O que o Hiper-realismo faz é aprofundar-se na aparência, expondo o Real: aquele vácuo entre ser e nada. A obra é assim o ‘outro do meu sujeito’. [...] “O Hiper-realismo não apresenta – segundo a fácil explicação adotada pela Academia – uma reprodução textual da realidade fenomênica ou uma réplica mimética e imediata do plano simbólico das imagens. O Hiper-realismo (e o realismo em geral) no fundo se baseia em fatos que de tão reais são inverossímeis”. 124 “Se, como diz Alberto Caeiro, nascemos com o ‘pasmo essencial’ das coisas, não mantemos, contudo, esse olhar poetizante no decurso da vida. Depois de ‘conhecermos’ uma coisa, a representação elaborada desta coisa se torna um clichê – algo invisível. Que dizer, passamos a dispor de um estereótipo que serve funcionalmente à percepção, poupando-a do difícil trabalho de criar uma nova elaboração; vemos algo semelhante àquilo que já conhecíamos e apenas ‘reconhecemos’ nesse algo novo aquela primeira elaboração criada, substituindo o novo objeto pela velha representação. Este é um resumo simplista do processo de cognição, mas deste modo é mais fácil explicar o que pretendo. Particularmente gosto muito de clichês, de banalidades, de ditos vazios. Eles normalmente ‘ocultam’ grandes revelações. Quer dizer, ‘ocultam’ justamente aquilo que dizem e que deixaram de dizer uma vez que já disseram. Isso não é um jogo de palavras: quando quero definir uma coisa, busco uma fórmula; assim paro de pensar na coisa e passo a referir-me somente à própria forma.

123

Diaz, Gustavot. “O desenho da arte em Porto Alegre: Inicia-se o Hiper-realismo Contemporâneo no Brasil (III)”. Filosofia do Design, 28/09/2015 124

Diaz (2015), op. cit.

124

“No desenho é assim porque na visão é assim. O mundo social que construímos para nós é essencialmente tecnocrata: tecnicista, mecanicista, academizante e prosaico – todas as coisas são reduzidas a uma única dimensão: a dimensão da utilidade, do valor de uso ou de troca. Tudo o mais é desconsiderado e se passa no ponto cego de nossa visão. Inclusive a Estética (a não ser quando esta pode se ser convertida em lucro, quando se torna funcional e seu aspecto estético comodamente útil – como na arte mercadológica, ou no design de ‘projeto’). Somente nestes casos a Estética de um objeto é considerada. Como resultado, não vemos o mundo; vemos representações deformadas, imbuídas de intencionalidades, próteses de nossa inteligência. Por isso, desenhar é ‘desver’.” 125

“No cenário artístico de Porto Alegre temos uma incessante aparição de novos (e bons) desenhistas e pintores. Enquanto nos demais países do mundo o número de artistas figurativos cresce vertiginosamente, no Brasil – onde chafurdamos sob a falsa crença acadêmica de que a figuração realista e a própria ‘representação’ morreram – o aparecimento de bons desenhos e pinturas deve ser festejado”. 126 “A figuração realista tem se desenvolvido de modo surpreendente em Porto Alegre, destacando-se na produção nacional, mesmo se comparada a São Paulo – ainda bastião de resistência da tradição pictórica e escultórica. [...] Esse artista [Ricardo Frantz], que conhecemos recentemente, já possui um amplo portfólio, transitando entre diferentes categorias da arte e produzindo desde 1988. Tem se dedicado mais à pintura, para a qual seu trabalho parece ser levado, tendendo a uma representação cada vez mais densa, e hiper-realista da forma”.127

O trabalho recente também se caracteriza pela sua preocupação educativa, procurando estabelecer pontes acessíveis para o público leigo, que possam estimular seu interesse por questões desafiadoras da contemporaneidade, como os temas sociais e ambientais, desejando que a arte não se limite só à estética.128 Isso ficou explicitado plenamente na sua exposição individual Terra, montada na Galeria Municipal de Arte de Caxias do Sul em 2014, que teve boa cobertura midiática, com matéria de capa do caderno cultural do jornal Pioneiro, o principal da serra gaúcha, e em outros veículos locais.129 130 131 O texto de apresentação é revelador de suas intenções:

Terra

“Nosso chão, nosso sustento, e o palco da vida em perpétua transformação. A Terra é um relicário único de vida no universo conhecido. Por isso é preciosa, insubstituível. Mas essa vida é também frágil, e não estamos fazendo muito para preservá-la. Nossas florestas desaparecem em ritmo acelerado, os rios e o ar estão sendo poluídos, estamos modificando o clima radicalmente, o solo está sendo degradado e esterilizado, os recursos naturais estão se esgotando, e a humanidade ainda vive como se a Terra fosse inesgotável e como se não houvesse amanhã. Até mesmo as lutas sociais conquistarão resultados fracos, efêmeros e ilusórios se a questão ambiental e a sustentabilidade não antigamente a natureza podia ser explorada sem maiores preocupações, pois eram relativamente poucas as pessoas a viver no mundo, gerando impactos limitados e reversíveis, a explosão demográfica contemporânea torna o antigo modelo um caminho certo para a catástrofe global.

125

Diaz, Gustavot. “Desenhar é desver (A visão: objeto difícil do desenho)”. Filosofia do Design, 01/03/2016 126

Diaz, Gustavot. “A Arte do desenho em Porto Alegre”. Filosofia do Design, 26/09/2016 127

Diaz (2015), op. cit. 128

Frantz, Ricardo André. “Terra (2014): registro de uma exposição e de um processo”. Academia.edu., 2014 129

Guaresi, Lucas. “Entrevista com Ricardo Frantz”. Programa Armazém, UCS TV, 07/03/2014 130

Sartori, Tríssia. “Panorama da Vida”. Pioneiro, 08/03/2014 131

Garziera, Thiago. “Terra”. Pioneiro, 08/03/2014.

125

“Hoje, segundo informam os cientistas, cerca de 60% dos recursos naturais estão esgotados ou em vias de rápido esgotamento, e mesmo assim desperdiçamos cerca de 30% de tudo o que tiramos da natureza. O que será do mundo em meados do século, quando teremos dois bilhões de pessoas a mais para dar casa, comida, água, educação e todo o resto necessário para que sua vida seja desejável de viver? O que será de todos se o clima estiver alterado a ponto de comprometer a produção de alimentos, aumentando ao mesmo tempo a ocorrência de desastres naturais, se dar sustento e abrigo para todos já é tão difícil agora, quando mais de 800 milhões de pessoas passam fome crônica e vivem em condições sub-humanas? Se nada for feito, e rápido, para revertermos esse quadro, calcula-se que em 2100 o clima estará tão alterado que 70% de todas as espécies vivas atualmente serão extintas. Isso significará, sem a menor dúvida, o colapso total dos ecossistemas e dos sistemas produtivos humanos, e será o fim da civilização como hoje a conhecemos.

“Os elementos do mundo natural há milênios têm sido transformados em arte, em símbolo e monumento. E não por outra razão do que pelos seus significados de bondade, como promessas de felicidade e testemunhos de sua importância para o homem. Mas essa bondade só pode se manifestar em plenitude se a rede de interdependências da vida é preservada, pois nesta Terra em que vivemos, tudo está intimamente interligado. Não podemos tê-la se destruímos nosso planeta. Mas as mudanças necessárias e inadiáveis encontram impedimentos em todas as frentes, seja por desconhecimento, seja por preconceitos e hábitos arraigados, por egoísmo, ou por interesses econômicos e políticos imediatistas. “Apesar de sua importância e influência, em última análise não são os governos e instituições os responsáveis pelo nosso futuro – somos nós: são as escolhas, grandes e pequenas, que fazemos diariamente. Mas criamos para nós mesmos a possibilidade real da perda permanente das bondades que amamos e das quais dependemos para viver. Essas pinturas são para ajudar a lembrar o que está em jogo”.

Intensificações: Banho de sol, 2012, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm. A partir de uma foto de Carey James Balboa liberada em domínio público no Wikimedia Commons

126

Terra (interior), 2013, acrílica sobre tela, 150 x 200 cm. A partir de foto do autor.

Instante, 2013, acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, a partir de foto do autor.

127

Em 2016 ocorreu sua mais recente participação em evento de grande repercussão, sendo convidado pelo curador André Venzon para integrar o grupo que realizou a nova pintura do muro da Avenida Mauá, construído para evitar as enchentes mas que acabou por separar a cidade do seu rio de estimação, o Guaíba. O projeto, intitulado Arte no Muro: a cidade e as pessoas, foi promovido pelo Santander Cultural como parte das comemorações dos seus 15 anos, e também foi integrado às comemorações dos 224 anos de Porto Alegre.132 133 Apesar do que o muro representa de separação e obstáculo ao pleno desfrute da paisagem e ambiente ribeirinhos pelos locais, ele virou tradicional espaço para manifestação artística em grande escala, tendo mais de 450 metros de comprimento e sendo há muitos anos periodicamente coberto de novas pinturas. Como disse o crítico de arte Vitor Mesquita na apresentação do projeto:

“[...] Para além da concretude que estamos anestesiados a conviver, será que a arte pode tornar o muro mais próximo das pessoas quando alguma coisa é comunicada pela imagem que falta? A intervenção neste território vertical da Avenida Mauá revela novos modos de percepção que a arte tem como prefácio, não apenas como dimensão estética de cada coletividade, mas porque torna possível o lugar como tempo de relação e de imaginário. “É na direção dessa visibilidade urbana que o projeto Arte no Muro procura reflexões sobre essa pausa geográfica entre a cidade, as pessoas e a linha do horizonte. A cidade é, antes de tudo, muito mais criativa pelo seu uso do que por sua posse. Uma topografia sem espaços precisa do exercício subjetivo para ampliar a sua relação com as pessoas. [...]”134

Atendendo à proposta da curadoria, Frantz concebeu uma imagem que relacionasse diretamente os porto-alegrenses com o rio Guaíba, um dos cartões-postais da cidade, mas numa abordagem crítica, mostrando um panorama do rio sendo carregado de poluição, produto de uma sociedade que ainda não se conscientizou suficientemente para a problemática ecológica. Por infelicidade, o dia marcado para a pintura foi extremamente quente, Frantz sofreu uma insolação e veio a passar muito mal, o que o impediu de transportar adequadamente seu projeto para o muro, deixando-o com um acabamento tosco e improvisado. Porém, para o espaço em questão, um dos mais movimentados do Centro Histórico, onde transita muita gente o dia todo, mas principalmente de carro ou ônibus, sem tempo de parada para contemplação, a ideia geral se torna mais importante que o detalhe precioso, e neste sentido o artista acredita que sua mensagem foi transmitida.

132

“Trinta artistas pintam simultaneamente o muro da Mauá”. Zero Hora, 02/04/2016 133

Lerina, Roger. “Arte no Muro”. Zero Hora, 16/03/2016 134

Mesquita, Vitor. “A linha do horizonte nunca é a mesma para o olhar do passageiro”. In: Santander Cultural. Projeto Arte no Muro, 2016. Folder do projeto.

Projeto para o muro da Mauá.

128

PRODUÇÃO ESCRITA

Ao mesmo tempo em que trabalhava no MARGS, envolvido em pesquisas sobre história da arte, aproveitou o resultado de seus estudos iniciando sua produção escrita, começando em 2007, sob o username Tetraktys, uma frutífera colaboração com a Wikipédia, enciclopédia virtual que tem vasta visitação em todos os países lusófonos, sendo o conjunto do projeto internacional e multilíngue Wikipedia, segundo o indexador Alexa, o sexto portal da internet mais acessado em todo o mundo. Para esta enciclopédia criou ou reescreveu completamente centenas de artigos sobre temas ecológicos, históricos e culturais, mais de 80 deles de grande extensão e eleitos em votação interna como Artigo Destacado, aparecendo por três dias em sua “capa” (a página principal), como por exemplo Academismo no Brasil, Aleijadinho, Ambientalismo, Apolo, Aquecimento global, Atena, Barroco no Brasil, Declínio contempor neo da biodiversidade mundial, Desmatamento, Escultura do Classicismo grego, Escultura do Renascimento italiano, Escultura gótica, Fídias, Francisco de Assis, Georg Friedrich Händel, Hildegarda de Bingen, História de Brasília, História de Caxias do Sul, Impactos do aquecimento global no Brasil, João Fahrion, ohann Sebastian Bach, osé utzenberger , Kitsch, Luís de Camões, Maneirismo no Brasil, Michelangelo, Missões jesuíticas na América, Pedro Américo, Pedro Weingärtner, Pintura do Romantismo brasileiro, Policleto, Povos indígenas do Brasil, Questão religiosa, Terras indígenas e Wolfgang Amadeus Mozart. 135 O indexador Wikipedia Article Traffic Statistics revelou que apenas o conjunto dos artigos que destacou até o mês de março de 2013 foi consultado somente naquele mês por 722.436 pessoas. Extrapolando esses dados para todo um ano, o número ultrapassa 8,5 milhões de consultas. Embora oficialmente os artigos da Wikipédia sejam produto de um coletivo anônimo, não sendo assinados, a análise dos seus históricos no momento do destacamento evidencia a sua autoria integral, mas às vezes com a contribuição de outros em pequenos trechos. Depois do destacamento, diversos receberam colaborações novas por outros editores, já que neste projeto a edição permanece aberta ad infinitum, mas para quase todos seu trabalho individual ainda é parte largamente preponderante no conjunto. O autor considera este trabalho na Wikipédia a sua principal contribuição à sociedade. Escreveu outros artigos substanciais que nunca propôs para destacamento, como Barroco, Arquitetura colonial italiana no Rio Grande do Sul, Pintura europeia (da Antiguidade à Idade Média), Pintura no Rio Grande do Sul, Museu de Arte do Rio Grande do Sul e Arquitetura do Brasil, e deu contribuição majoritária para outros artigos importantes, como Desmatamento no Brasil. Alguns dos artigos em que deu contribuição total ou principal foram sínteses pioneiras na internet, muitos ainda são a melhor fonte em português acessível ao grande público, copiados inúmeras vezes por outros websites, e outros foram traduzidos por outras pessoas para outras línguas do projeto Wikipedia, sendo às vezes também destacados nessas línguas. Em tese de Doutorado que estudou o tratamento dado na Wikipédia em português aos assuntos científicos, focada no tema do aquecimento global e correlatos, como o ambientalismo e o declínio contemporâneo da biodiversidade, Bernardo Esteves Gonçalves da Costa dedicou longos trechos para enfatizar a importância das suas contribuições. Analisando a evolução histórica do artigo Aquecimento global na Wiki lusófona, ele disse:

“Tetraktys criou uma estrutura inteiramente nova, inaugurando seções, reformulando e reordenando as já existentes. [...] A nova estrutura tem ar mais ordenado e enciclopédico e oferece uma visão abrangente da questão. Não há seção ou parágrafo do texto em que ele não tenha feito intervenções substanciais. [...] As intervenções de Tetraktys trouxeram novos aliados para o artigo e reforçaram a voz de muitos daqueles que já haviam sido alistados. Pela primeira vez, ele contou a história da criação do IPCC e esclareceu de onde vinha sua autoridade. É ele quem trouxe para o

135

Wikipédia. Tetraktys – Página de usuário: Principais contribuições.

129

artigo o Quinto Relatório de Avaliação e explicou a origem da segurança de suas conclusões. O efeito estufa se tornou mais nítido, e a elevação do nível dos mares ganhou corpo – o trecho dedicado ao item tinha dois parágrafos, e passou a ocupar duas páginas. Tetraktys dificultou a vida dos céticos ao acrescentar novas alegações que refutavam seus argumentos – foi ele quem, antecipando objeções, apresentou uma espécie de guia para discutir com aqueles que não acreditam no aquecimento global antrópico (adaptado do blog Skeptical Science). Foi também ele quem incorporou ao artigo as dezenas de figuras que trouxeram para o texto uma profusão de móveis imutáveis que fazem falar o dióxido de carbono e os demais gases-estufa, as colunas de gelo e anéis de árvores, os satélites e as estações de medição terrestres, os modelos climáticos e seus algoritmos. Agora o aquecimento global antrópico é reforçado também por 18 fotos, sete mapas, seis gráficos, três fotos de satélite e uma animação – e pela profusão de atores mudos a quem essas figuras dão voz. O artigo Aquecimento global foi atulhado de referências, figuras, colunas, gráficos e outros reforços, num movimento muito parecido com o que se opera na literatura científica, que se desdobra em muitas camadas defensivas para resistir às objeções. Conforme descreveu Latour (1987, p. 49), ‘desacreditar significará não só lutar corajosamente contra uma grande massa de referências, como também desemaranhar infindáveis laços que amarram instrumentos, figuras e textos uns aos outros’. Da mesma forma, contestar o consenso da ciência na Wikipédia lusófona se tornou tarefa hercúlea após as intervenções de Tetraktys. [...] Vistas em conjunto, as intervenções do sexto e último ciclo de edições aqui considerado, feitas por Tetraktys em sua maioria, tornaram o artigo mais sólido, consistente e alinhado com a visão consensual da ciência. [...] “Tetraktys responde por 348 das 400 edições feitas entre 01/01/13 e 20/09/14, ou 87% do total – padrão muito parecido com o observado nos artigos destacados. Portanto, na amostra relativamente pequena de artigos que investigamos, a qualidade do artigo pareceu depender do envolvimento de um usuário dedicado. A Wikipédia lusófona mostrou-se demasiadamente Tetraktys-dependente para contar com artigos conectados e densos sobre o aquecimento global. O que seria desses verbetes se esse usuário não existisse? O que acontecerá com eles quando Tetraktys deixar de ter interesse e disponibilidade para editá-los? São questões que não temos como responder senão com especulações”.136

Ele analisou também outros artigos que o autor criou ou reformulou majoritariamente:

“O artigo Impactos do aquecimento global no Brasil foi criado em 13/09/13, período em que Tetraktys estava no meio da intensa reformulação que promovia no artigo Aquecimento global – foi muito provavelmente com as informações levantadas na pesquisa para editar o artigo principal que ele decidiu contribuir com outros artigos sobre o tema. Até agosto de 2014, esse verbete havia sido editado 280 vezes, 92,5% das quais pelo próprio Tetraktys. A versão de 18/06/14 mostrava um artigo conectado a uma rede tão densa de aliados quanto a que embasava Aquecimento global: eram nada menos que 26 figuras e 240 referências. Assim como fez no verbete principal, Tetraktys não deu margem à controvérsia no artigo Impactos do aquecimento global no Brasil. Ali a mudança do clima foi apresentada desde o início como um fato científico cujos efeitos já se fazem sentir no Brasil. [...] “Esse artigo se distingue dos demais por discutir o aquecimento global a partir da perspectiva brasileira e do conhecimento produzido localmente. Há toda uma grande seção – ‘Ciência nacional’ – dedicada ao trabalho de pesquisadores brasileiros que investigam várias dimensões do problema. Ali é descrito todo o aparato institucional criado em torno da ciência do clima nacional, com vários nós da rede alistados para dar mais nitidez às projeções dos pesquisadores para o futuro do clima no país. Estão citados no artigo o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, a Rede Clima, o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) e o primeiro modelo climático brasileiro, entre outros pilares dessa extensa malha

136

Costa, Bernardo Esteves Gonçalves da. As controvérsias da ciência na Wikipédia em português: o caso do aquecimento global. Tese de Doutorado. UFRJ, 2014

130

institucional na qual se inserem vários cientistas nominalmente citados no artigo. [...] Há seções inteiras baseadas nos resultados de trabalhos de pesquisadores brasileiros, como o primeiro relatório do PBMC e estudos que projetaram os impactos do aquecimento global sobre a produção agrícola brasileira e os custos da mudança do clima para a economia nacional. [...] Impactos do aquecimento global no Brasil veio, portanto, juntar sua voz e a das referências por ele mobilizadas para reforçar a narrativa da mudança climática antrópica na Wikipédia lusófona, finalmente apresentada ali a partir de uma perspectiva brasileira ausente ou latente na maior parte em Aquecimento global e no resto da amostra”.137 “A tensão entre a gravidade do diagnóstico de ameaça ao planeta traçado pela ciência e a dificuldade dos pesquisadores de convencer a sociedade a agir em resposta a ela esteve no centro de Ambientalismo, outro artigo destacado por Tetraktys. Ele não criou o artigo, mas foi o grande responsável pelo texto que se lia em agosto de 2014. Quando começou a editá-lo, em abril de 2012, o verbete já existia havia quase seis anos, mas permanecia um mero esboço – resumia-se a cinco parágrafos e 2,7 KB, com apenas uma foto e sem uma única referência sequer. Depois das intervenções de Tetraktys – 225 em cerca de 20 meses –, o movimento ambientalista ganhou história, nuances e substância. [...] Ao final das intervenções de Tetraktys, tínhamos um artigo robusto de 111 KB, com 31 figuras e 193 referências, que apresentava o ambientalismo de forma bem mais nítida. [...] Com sua intervenção, o artigo Ambientalismo virou um novo espaço que afirmava os efeitos da ação humana sobre o globo e conclamava as sociedades à ação. Se ali havia espaço para menção às contestações ao consenso, era apenas para contrapô-las à força dos argumentos que o sustentavam. [...]

“No artigo Declínio contemporâneo da biodiversidade mundial, por fim, a extinção de espécies em ritmo acelerado que se verifica desde o final do século XIX foi enquadrada no âmbito dos efeitos danosos da ação humana sobre o meio ambiente, com a mudança do clima encabeçando a lista de causas às quais o fenômeno era atribuído. Com a delimitação do declínio da biodiversidade, o destino de inúmeras espécies animais e vegetais passava a estar atrelado ao futuro do clima do planeta – e, por conseguinte, à composição da atmosfera, às negociações diplomáticas, aos modelos computacionais e à infinidade de atores emaranhados na rede do aquecimento global antrópico. O artigo criado por Tetraktys reforçou essa cadeia:

Quando o clima muda, especialmente na velocidade em que isso está ocorrendo, muitas espécies não conseguem se adaptar a tempo para enfrentar a mudança, entram em declínio e se extinguem, uma ameaça que se torna mais aguda quando essas espécies são raras, vulneráveis ou vivem em ambientes isolados [...] (WIKIPÉDIA-PT, “Declínio contemporâneo da biodiversidade mundial”, 25/06/14)

“Mais uma vez, a rede de aliados mobilizados no artigo criado por Tetraktys saltava aos olhos: eram 19 figuras e 152 referências sustentando a ameaça antrópica que pairava sobre as demais espécies vivas do planeta. Quando submeteu aos colegas a proposta de tornar o artigo destacado, Tetraktys apresentou-o como ‘mais uma fatia do indigesto bolo ambiental contemporâneo’, e seu trabalho novamente recebeu comentários elogiosos dos colegas. [...] “O padrão de dependência das contribuições individuais é significativamente diferente daquele constatado na Wikipédia em inglês, na qual os artigos destacados se sobressaem pelo alto número de editores envolvidos em sua construção (WILKINSON; HUBERMAN, 2007). Se na Wikipédia em inglês muitos cozinheiros melhoram o guisado, na amostra de artigos que investigamos os grandes guisados foram todos obras de um chef solitário”.138

137

Costa, op. cit. 138

Costa, op. cit.

131

Bernardo Esteves voltou a enfocar o trabalho de Ricardo em dois outros trabalhos: num artigo da revista Piauí de novembro de 2016, que é reproduzido na próxima página, e em artigo escrito em parceria com o pesquisador Henrique Cukiermann e apresentado no mesmo ano no I Congresso Científico Brasileiro da Wikipédia, o primeiro evento acadêmico do país a estudar com exclusividade o papel da Wikipédia na difusão do conhecimento científico. Eles resumiram as conclusões da tese de doutorado de Esteves e acrescentaram dados sobre a evolução dos artigos Aquecimento global e correlatos desde a última análise, e disseram:

“Tetraktys reestruturou em parte o artigo, reordenando, expandindo e criando seções. Aumentou o número de figuras – que passou de 35 para 51 – atualizou referências e o conteúdo de forma a refletir os acontecimentos recentes sobre o tema, com destaque para a aprovação do Acordo de Paris em dezembro de 2015. Uma contribuição significativa foi a atualização da seção sobre adaptação e mitigação, onde persistiam informações defasadas, agora eliminadas. ]...] O número de referências saltou de 369 para 481 no período considerado. Com tal rede de fontes referendando o conteúdo do artigo, ficou ainda mais custoso contestá-lo. [...] Notamos também que a atualização dos artigos sobre aquecimento global na Wikipédia em português continua dependente das intervenções de um único usuário, Tetraktys, o principal responsável pelas melhorias que observamos nesse estudo”.139

139

Esteves, Bernardo & Cukiermann, Henrique L. “Revisitando artigos sobre aquecvimento global na Wikipédia em português”. In: I Congresso Científico Brasileiro da Wikipédia. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 13-14/10/2016

132

Revista Piauí, 2016 (122):11

133

O projeto tem encontrado recepção controversa pelo seu sistema de edição aberta a todos, mas crescentemente vem ganhando reconhecimento de instâncias acadêmicas e oficiais pelos seus pontos positivos. Desde que faz parte da Wikipédia, o projeto e sua comunidade de editores foram recipientes de três grandes distinções internacionais. Em agosto de 2008 foi o Prêmio Quadriga,140 concedido pela organização berlinense Werkstatt Deutschland, que representa o Dia da Unificação Alemã. Diz sua filosofia:

“O Quadriga é dedicado a todos cuja coragem derruba muros e a todos cujo engajamento cria pontes. O Quadriga honra [anualmente] quatro pessoas e projetos cujos pensamentos e ações são baseados em valores. Valores que conduzam a visão, coragem e responsabilidade. O Quadriga honra modelos. Modelos para a Alemanha e modelos da Alemanha. Combinando uma orientação para os valores e a distinção de ideias inovadoras e benéficas para o futuro, o Quadriga destaca sua autenticidade e relevância pública”.141

A Comissão Organizadora assim justificou a premiação:

“Reconhecemos a Wikipédia este ano por sua ‘missão de iluminar’. A Wikipédia torna real o antigo sonho da humanidade: reunir todo o conhecimento do mundo em um só lugar. Colaboração, participação e contribuição voluntária estão nas bases da eficiência da Wikipédia. A visão do fundador Jimmy Wales: ‘Cada mulher e cada homem se torna um autor, em qualquer lugar, a qualquer hora, simplesmente clicando no botão ‘editar’. Não há barreiras e o acesso livre é o segredo desta rede que agora tem 262 línguas e mais de 10 milhões de artigos’.”142

Em 2015, quando comemorou seu 14º aniversário, o projeto e seus editores foram agraciados com mais duas premiações. Em janeiro, o Prêmio Erasmo da Fundação Erasmiana dos Países Baixos, dedicado a pessoas e instituições que deram excepcional contribuição à cultura, à sociedade e às ciências sociais. A Comissão de Premiação assinalou os motivos da outorga:

“A Wikipédia recebe o Prêmio porque tem promovido a disseminação do conhecimento através de uma enciclopédia abrangente e universalmente acessível. Para conseguir isso, os fundadores da Wikipédia conceberam uma plataforma nova e democrática. O Prêmio reconhece especificamente a Wikipédia como uma comunidade – um projeto compartilhado que envolve dezenas de milhares de voluntários em todo o mundo, que ajudam a dar forma a esta iniciativa. [...]

140

Die Quadriga. Awardee overview 2003 - 2009 141

Die Quadriga. We Honour Values. 142

Walsh, Jay. “Wikipedia to receive German national honor: the Quadriga Award”. Wikimedia Blog, 21/08/2008

O Prêmio Quadriga, com o nome da Wikipédia gravado na base.

134

“Por distribuir conhecimento em lugares onde ele antes era inacessível, a Wikipédia desempenha também um papel importante em países onde a neutralidade e a informação livre não são garantidos. Com seu alcance mundial e seu impacto social, a Wikipédia faz justiça à ideia de um mundo unido mas diversificado. É uma obra de referência digital acessível em várias línguas e em desenvolvimento permanente. Através do seu caráter aberto, a Wikipédia salienta que as fontes do conhecimento não são neutras e devem sempre ser analisadas criticamente. Com sua atenção central ao texto, às fontes e à expansão do conhecimento, a Wikipédia reflete as ideias de Erasmo, o cidadão do mundo que batiza o Prêmio”.143

Em junho o projeto recebeu o Prêmio Princesa de Astúrias de Cooperação Internacional, concedido pelo Governo da Espanha.144 O Prêmio é concedido a “pessoa, instituição, grupo de pessoas ou de instituições, cujo trabalho com outro ou outros em matérias como saúde pública, universalidade da educação, proteção ao meio ambiente e desenvolvimento econômico, entre outras, constitua uma contribuição relevante em nível internacional”.145 A Comissão de Jurados declarou:

“O Juri valorizou o importante exemplo de cooperação internacional, democrática, aberta e participativa, onde colaboram desinteressadamente milhares de pessoas de todas as nacionalidades, que conseguiu colocar ao alcance do mundo o conhecimento universal em uma linha similar à do espírito enciclopedista do século XVIII”.

Jimmy Wales, co-fundador da Wikipédia, assim disse na ocasião:

“A cooperação é precisamente a essência da Wikipédia. É uma imensa honra que o Prêmio Princesa de Astúrias a tenha reconhecido. Espero que isso inspire mais pessoas a se envolver na missão de compartilhar com o mundo a soma de todo o conhecimento”.

143

Praemium Erasmianum Foundation. Erasmus Prize 2015 for Wikipedia. 144

Fundación Princesa de Asturias. Wikipedia: Premio Princesa de Asturias de Cooperación Internacional 2015 145

Fundación Princesa de Asturias. Premios Princesa de Asturias: Regulamento 2015

O Prêmio Princesa de Astúrias de Cooperação Internacional. Foto Televisa.

A insígnia do Prêmio Erasmo. Foto da Fundação Erasmiana.

135

Os artigos que destacou, junto com todos os outros artigos destacados da Wikipédia em português e de todas as outras línguas do projeto, serão incluídos em uma cápsula do tempo que será depositada na Lua através do lançamento de um veículo espacial construído pelo grupo Part Time Cientists para o projeto Google Lunar XPRIZE.146 Os Part Time Cientists são financiados pela empresa Audi e o projeto Lunar XPRIZE será a primeira iniciativa privada de tentar chegar à Lua e realizar experimentos. Karsten Becker, membro do grupo de cientistas, justificou a decisão com algum humor:

“Acredito que a Wikipédia coletou a parte mais importante do conhecimento humano de uma forma muito bem estruturada. Isso funciona como um documento da era contemporânea. Levar uma cópia do conhecimento humano conosco significa eternizar um momento. Se formos olhar para a Wikipédia daqui a 10, 50 ou 100 anos ela parecerá totalmente diferente. Acreditamos que é uma boa ideia armazenar um back-up descentralizado que ninguém possa modificar facilmente. E é claro que o deixaremos lá para que os alienígenas que vierem tenham algo interessante para ler”.147

146

Coldewey, Devin. “To the Moon! Lunar XPRIZE team looks to send Wikipedia into space aboard homemade rover”. The Crunch, 21/04/2016 147

“Designing a Wikipedia Moon-based time capsule via committee”. Wikipediocracy, 21/04/2016

Modelo do rover lunar que levará o material da Wikipédia para a Lua. Foto Part Time Cientists.

136

Enquanto isso, passava a se dedicar à tradução para o português de artigos e livros sobre temas teosóficos para a Sociedade Teosófica do Canadá (STC) e a Igreja Católica Liberal do Brasil (ICLB), destinados à divulgação online (vários já tinham tradução impressa), tendo traduzido mais de 40 títulos, entre artigos e livros, incluindo obras célebres de Helena Blavatsky, Charles Leadbeater e Annie Besant e outros líderes do movimento teosófico inicial. A STC mantinha uma seção para bibliografia em português, mas anos mais tarde o site foi reformado e a seção foi eliminada, perdendo-se todo o trabalho. Vários títulos, que haviam sido aproveitados pela ICLB, pela Loja Esotérica Virtual ou pirateados, ainda são encontráveis,148 e outros ele disponibilizou em sua página em Wikidot. Traduziu as legendas de vários vídeos de divulgação científica publicados pelo ESO (European Southern Observatory) e pelo Observatório Espacial Hubble.149 Também começava a escrever ensaios e pesquisas em história e arte e publicá-los independentemente ou em revistas. Entre eles podem ser citados “Para que serve o Renascimento?” (2012), uma visão sobre a relevância do Renascimento para o mundo de hoje, publicado como matéria de capa na revista Leituras da História nº 57, com edição impressa e online; “A antiga Igreja Matriz de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre: síntese histórica e social – questões estéticas e autorais – legado” (2014), uma síntese inédita sobre a antiga Matriz de Porto Alegre; “Os retratos oficiais da Beneficência Portuguesa de Porto Alegre: uma coleção a resgatar” (2014), ambos publicados no repositório aberto de pesquisas Academia.edu., e “Acervo do MARGS – Evolução Histórica” (2007), para a edição-piloto da Revista do MARGS, apresentando sinteticamente resultados parciais da pesquisa documental do acervo da instituição e documentando uma exposição panorâmica associada, que centrou-se nas políticas de aquisição desde a fundação do museu. Este artigo foi muito ampliado em outro estudo publicado em Academia.edu, intitulado “Antigualhas do Acervo: A formação e evolução física e documental do Acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS): memórias e políticas, 1954-2014” (2014), que fez uma retrospectiva da trajetória do museu sob a óptica do Acervo. Em meados de 2014 iniciou uma pesquisa sobre a história e genealogia de sua família, um projeto que acalentava há muitos anos, e que se revelou muito mais vasto do que o previsto inicialmente, exigindo mais de dois anos de trabalho intensivo e a total paralisação de sua produção artística. O resultado, Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História, é uma verdadeira enciclopédia sobre sua família, abrangendo o período desde sua chegada ao Brasil no século XIX até a contemporaneidade, contemplando também as principais famílias aparentadas. A edição impressa do trabalho tem seis volumes e mais de 2.200 páginas, fazendo uso de mais de 7 mil fontes de bibliografia histórica, teses acadêmicas, levantamentos arquivísticos, manuscritos, testemunhos orais e imprensa. Além disso, uma grande seção estuda a trajetória dos seus troncos ancestrais na Europa antes da imigração para o Brasil, descobrindo uma rica história que era desconhecida pelos caxienses, e que o conduziu retrospectivamente até a Idade Média. Uma versão online em três volumes foi disponibilizada para o público nos links abaixo.

Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História - Volume I: o lado Paterno

Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História - Volume II: o lado Materno

Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História - Volume III: o passado na Europa

148

Alguns [1][2][3][4][5][6][7]. A pesquisa Google “tradução”+”Ricardo Frantz” levantará outros 149

Alguns [1][2]

137

138

Poesia

Entre o fim da década de 1990 e 2012 produziu três pequenas coletâneas de poemas, reunidas em Cadernos de Poesia (2016). Divide-se em três volumes: o primeiro é lírico, inspirado na face luminosa e inocente do amor e da paixão. São todas peças breves, muitas delas não passam de epigramas. O Caderno 2, produzido depois do outro, tem uma atmosfera diferente, centrando-se nas dores da desilusão. Já o terceiro caderno, intitulado Ondas de Torres, foi produzido em uma única noite de verão em 2011, numa varanda voltada para o mar na praia de Torres. Subdivide-se em nove sequências, precedidas de um prólogo. De todos os cadernos, parece o melhor, com peças de formas mais livres e conteúdo mais franco e direto, com um tom mais estoico e por vezes humorístico. Os Cadernos de Poesia podem ser acessados neste link, e quatro exemplos seguem abaixo.

Depois da guerra sagrada, depois de toda a Beleza perdida o Sol se levanta sobre a ruína. Eu choro, pois minha terra adorada foi devastada. Mas Amor vai buscar no céu a forma cara e faz surgir do nada o primeiro marco da nova era: e o grande teatro renasce, maravilhoso, intacto, purificado.

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acerto de contas cansei de esperar. não sou mais aquela. subi ao último céu. pareceu que não tinha nada... ninguém...

um deserto. no inferno, que tava atulhado de gente, ninguém sabia nada. mirei para dentro de mim, como mandam os sábios, mas só consegui enxergar um enigma. na terra, quando inquiri, só me olharam como se eu fora louco.

139

voltei para casa. respirei fundo, olhei ao redor... muitos sons, muitos silêncios, as coisas ali paradas, só ali, sem fazer nada, só vivendo... perguntei ao grampeador, ao maço de cigarros, ao cacho de bananas, à lata de sardinhas e ao pendrive, às moedas esparramadas na mesa, às plantas do jardim suspenso onde vivo, e ninguém respondeu. que saco. acho que deus não existe. porém... eu me lembro... há muito tempo, talvez noutra vida, ter sido feliz, plenamente, ter estado numa região onde só se pode ser feliz e não é possível ser doutro modo, ali tinha um lugar feito pra mim. me pertencia, era autêntico e legítimo, e sem fim. depois... não sei como... esqueci onde é. agora parece que há só o caos... arre! já vem de novo o capeta pedindo casa, comida e carinho, só pra depois sair por aí matando gente adoidado. toma no rabo, criatura! arrodeia e goza! há há há! o pior é que não há para onde fugir. quisera ter asas, ao menos...

140

minha mãe, a poetisa da casa, às vezes diz – queria ser um passarinho... mas, sinceramente, pensar em comer minhoca viva todo dia, aranhas e larvas, não me agrada... talvez, se eu não fosse carnívoro, e me nutrisse de néctar e mel, alguns grãos e sementes, frutas, e o orvalho e a chuva de beber, talvez fosse bom... como esta cambacica que ora se pendura de pernas pra cima nas flor da sacada. mas eu teria o entendimento??? sei não... uóóóóó..... a sirene da ambulância é o lamento dos desesperados o sabiá no muro assobia aflautado e tudo continua igual a d’antes. mas tudo mudou. fazer o quê?! a realidade é uma coisa crua não há sossego em parte alguma, e até no dormir, sonhamos. eita que até a poesia tem sabor amargo. cala-te, musa vil! arreda para lá!! mas não adianta, e ela quer mais, sempre mais, e mais, e mais, e não cessa de gerar o mundo. depois reclama que não dá nada certo, que todos sofrem, que a vida seja isso tudo, aponta-me o dedo em riste, acusa-me de mau, e culpa-me de tudo por eu não gostar de servir de repórter a tanta bobagem. em vez de ela cantar sem cessar o paraíso que lembro existir sabe lá onde... é uma puta. foda-se.

141

pelo menos o sol agora, nesta tardinha morna, úmida e inconsequente, me puxa os cabelos com graça, com garbo e majestade, afasta as nuvens d’água e mostra o seu peito faiscante, o seu torso nu de apolo clássico,

me faz olhá-lo bem, apetecendo-lhe seduzir-me, enquanto ele se espraia na paisagem como um paxá, opulento de tudo, impossivelmente mais satisfatório, e diz:

– ô minha nega vem cá, pula aqui, deixa eu entrar em ti, quero te amar !

só se eu fosse tola diria não

– mas aconselhai, virtudes, ciência, profecia! sem embargo, não será engano? que faço?

ninguém diz um ai ... agora a chuva cai parece que justifica tudo e o arvoredo saracoteia ao vento estupidamente feliz

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Quem caminha sobre a água não pode parar o passo não pode o pé demorar Onde os pés tocam n’água naqueles halos vejo as faces do Amado a me chamar Quero vê-lo, aquela beleza me tenta mas o vento me leva presto para o Sol Atrás semeei um rastro uma cópia de estrelas mas não para meu proveito porque o Sol é desprendimento porque olhar para trás é vedado porque viver é passar

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Para este jardim pretensamente Limpo, claro, organizado, Chamado sabedoria humana, Onde tudo se separa e classifica, E onde cada vida livre é sujeita a controle, Sou tal qual erva daninha Que surge não se sabe donde, Instaura o caos no gramado E cresce mais rápido que as flores. meu Nome ninguém conhece, nem meu Vero Semblante, Que, conforme o vento sopra, muda: Ora d'aspe venenosa, Ora semelha o da ovelha mansa, Um rio que flui, em remanso Em cachoeira, Uma estrela distante, Um grão de poeira sobre o asfalto; E se ontem pareceu um mar revolto Surge amanhã com'um'alta montanha calma. Palavra não diz o que é Chama Asa Mistério

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Sequência IV (de Ondas de Torres)

motto:

como matéria simples busca a forma - Luís de Camões

hoje estou cá aboletado novamente numa cadeira à vista do mar, conversando com as bananeiras que se elevam à minha sacada

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acima, o cruzeiro do sul alfa centauri e várias outras amigas nesta noite amena-amável no negro da madruga a três quateirões uma coruja está piando decerto caçando seus ratos ou passando uma cantada na vizinha mais perto, poucas casas adiante, a homarada empolga uma festa entre conversa fiada e risadas que ouço daqui e os clássicos grunhidos UHUUU, AÊÊÊ rsrsrs adoro esses homens ontem, então, espetáculo! um time de salva-vidas deleitando-se num vôlei de praia depois do expediente com direito a banho de mar sob uma lua linda cheia e serena e um ar de mar de amar a vida… todos beldades & heróis de verdade - como não amá-los? lá embaixo a homarada continua o gritedo e agora avulta um HAHAHAHAAAA ritmado gutural e arcaico, fantástico: a marca da homarada reunida! e lá vem mais um BÁ ! segue-o outro AHAHA ! o riso ecoa, o BÁÁÁÁÁ se prolonga, em coro modulado, ascendente, triunfal: a legião se encontra e se reconhece: são um só coração – e a galáxia, o que diz? nada. são tantas as coisas e o homem plantado em meio ao abismo do mundo especial em todos os termos exceção em todo o cosmo conhecido um legítimo milagre. e dá vontade de chorar de tristeza, tanta solidão

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os machos continuam sua festa. alguém relata uma façanha e o BÁÁÁ se renova sonoro e em círculos e círculos dentro de círculos que transbordam para o infinito

da Terra, nosso camarote sideral contempla-se um cosmo sem fim belo, majestoso sim, mas deserto ai, mas que pena! se houver outra gente nesta galáxia ou fora dela de qualquer maneira estará muito longe pra nós. para todos os efeitos, somos só nós com nós. únicos…

(interlúdio)

– ahaaaam…. – a que se deve o pigarro, maestro? – disse o coro de discípulos, maroto – cá pra nós, esses home, esse cosmo, essa vida, essa morte, esse sempre aqui-agora, tudo perfeitamente inútil. o mestre revirou os olhos como se fora um louco e cagou todos eles a pau por dizerem tanta besteira. e correram-se todos de lá em horrenda algaravia em debandada maluca um gritaredo medonho que foi parar além de dois dias. e depois tudo se esfuiu em nubes, como dizem os polacos.

(fim do interlúdio)

– oh de casa! oh de casa! a turma lá de baixo volta à conversa a vida te toma de novo, te leva e te estupra bem, na verdade ninguém prometeu que ia ser fácil. restam os sonhos onde tudo dá certo. os pés se agitam, felizes como focas batendo palmas. as bananeiras só riem e dizem amém.

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o resto é silêncio a festa acabou, ao que parece, só a grilaiada se ouve e as rãs um que outro eco, de longe, a lembrar os humanos um carro que passa… o chamado de um nome… a raça a dormir

(interlúdio)

o mestre volta do banheiro e proclama: – tudo é natureza! – lá vem o sábio, o mestre! tragam-lhe a escarradeira! – grita a turma em coro, rindo-se às bragas do triste quixote

(fim do interlúdio)

senhora dos navegantes, rogai por nós! eu que já quis partir pras estrelas tanta merda já tive de ver e de ouvir, porém, lembrei: onde mais se ouvirá em todo cosmo inumano o AHAHÁ da homarada reunida que agora redesperta e fala que a festa inda não acabou? ai, ai… enquanto houver homem, estará bem. vou ficar. aguentar o tranco. o depois, pouco importa – que a terra exploda em chamas que o cosmo esvazie de luz – estarei co'a homarada, dormirei com eles o sono final, como matéria simples

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MÚSICA (ao modo de ghost-entrevista)

Nota do editor: Sua obra musical é grande mas desconhecida do público e da critica. Na ausência de referências, solicitamos ao compositor uma entrevista, onde ele falou sobre sua carreira nas artes em geral e sua música em particular, de onde foram retiradas as informações para esta e outras seções. Trechos entre aspas são suas palavras. Advirta-se que sua linguagem às vezes é um pouco chula. Procuramos não corrigir seus erros de linguagem ou dissimular seus óbvios exageros e parcialidades.

Seus estudos formais de música foram muito incompletos. Só teve dois anos de aulas de violino com Gabriella Coletti, violinista da Orquestra Sinfônica de Caxias do Sul, que lhe transmitiu os primeiros graus da técnica e firmou-lhe a leitura e a escrita. Em seguida fez alguns meses de estudos adicionais de violino na Escola de Música da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, mas pouco aproveitou, pois o curso iniciava do zero. Por outro lado, tinha verdadeira paixão por música erudita e ouviu incontáveis gravações de tudo o que se fez no ocidente entre os séculos X ao XIX, incluindo também pesquisas esporádicas em música do Oriente e África. Foi fortemente influenciado pela polifonia - de fato ela até hoje domina sua obra - especialmente da Ars Nova, da Ars Subtilior, o Machaut da Notre Dame e “até as cuecas do Binchois”, Dunstable, a Missa Tournai e a Missa Barcelona versão Pro Cantione Antiqua, pelas canções de amigo portuguesas, e pela polifonia da Renascença. Do Barroco italiano "fico com o 'Álbum Branco' do Corelli - os concertos grossos versão chinelo Mestres da Música da Abril Cultural, de comprar nas bancas de jornal, errado mas divino e aquele para sempre amém - e dou o resto, até Vivaldi", mas "ouvia praticamente tudo em que puseram a mão o Nikolaus Harnoncourt ("eu queria casar com ele e virar condessa da música"), William Christie ("fazia ola nos coros de Rameau"), Christopher Hogwood ("eu queria ser amante dele e virar as páginas da partitura sentado no seu colo enquanto ele regia ao cravo a Emma Kirkby no Exultate Jubilate"), Trevor Pinnock, Andrew Parrott, Emma Kirkby (“no words can describe an angel”), e o Reinhard Goebel, "que dá até medo de ouvir. Teve uma época que eu só ouvia Barroco e queria ser o Haendel, só mais magro. Se não desse, Mozart. Hoje já pouco os ouço".

Primeira página do 6º movimento da suíte 6 Peças para Piccolo, Harpa e VIbrafone

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Estudou muitos dos corais de Bach e os hinos luteranos, ouviu quase todas as óperas de Haendel e Mozart, do Bach filho (o CPE) “sapateou” de inveja de tudo o que ouviu, ouviu o Orfeu do Gluck versão Tafelmusik e “queria que o governo brasileiro comprasse a orquestra”; perdeu o disco e passou uma semana sem dormir "de puro dó", diz Frantz, mas isso deve ser exagero, de Haydn ouviu As Sete Palavras versão quarteto Juilliard com voz ("dez mil vezes") e muitos quartetos e se maravilhou com tanta clareza ("mas dormi em todas as sinfonias que ouvi, até na Surpresa"), de Beethoven "só os últimos quartetos, a Nona, a Missa Solene e o Cristo nas Oliveiras. O resto envelheceu demais, mas não conheço muito. Muito chato". Ouviu o Concerto para violino de Mendelssohn ("Quantas? Até estragar o bolachão chinelo versão Abril Cultural. Já comprei dois iguais no sebo na hora de trocar o gasto... Um de reserva. E já aproveitei pra comprar outro do Corelli. Já tava gastando. O Messias do Haendel versão Abril-Richter gastou e não achei pra trocar", explica. "Errado mas divino, igual ao do Corelli. Nem o Harnoncourt me salvou dessa", acrescenta) e queria ir "se aconchegar aos pés de Brahms, depois de um dia de luta contra Wagner, num chalé num subúrbio arborizado de uma Viena branca, com a lareira acesa, ouvindo numa vitrola enferrujada o seu Quinteto para clarinete e cordas, tipo Peter Pan encontra Papai Noel". Seu aprendizado da música viva, contudo, foi com a banda Aristóteles de Ananias Jr, e nos quesitos estéticos, principalmente com Marcelo Birck, líder da banda, compositor de praticamente todas as músicas e parceiro constante de longuíssimas prosas, que o inundou de novas fontes da vanguarda recente erudita, da música popular dos anos 60 para cá e de conceituação teórica, deu-lhe jogo de cintura, e o fez conhecer o que significa uma apresentação de palco, o calor da resposta do público e o processo de produção de shows e discos. Diz Frantz:

“Os ensaios e gravações da banda eram verdadeiros saraus, onde a discussão intelectual cheia de citações eruditas acontecia a cada instante, entremeada à prática musical criativa, muitas risadas e piadas chulas ou nonsense, em ambientes sempre caracterizados pela sujeira e desorganização. O humor, o improviso e o tosco eram rotina e faziam parte da estética. Nossos figurinos e cenários eram feitos de lixo”.

Show do lançamento oficial da banda Aristóteles de Ananias Jr. na Casa de Cultura Mario Quintana em 1991. Aparecem na foto Alexandre Birck (bateria), Marcelo Birck (guitarra e vocal), Luciano Zanatta (sax) e Ricardo

Frantz (violino). Chico Machado fazia parte como baixista mas o fotógrafo não o enquadrou.

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Sua técnica ao violino, já sem lições, aproveitou a prática intensiva dos ensaios mas não evoluiu ("acho até que regrediu"), mas era suficiente para os propósitos da banda, e permitiu até uma apresentação camerística no Theatro São Pedro, o mais prestigiado da cidade, tocando com outro músico um difícil (para ele) dueto erudito de Birck. Houve algumas falhas e realmente o recital não foi um grande sucesso, para seu vexame. Mas era nos shows onde a música adquiria uma dimensão ardente e vital, e...

"[...] onde os erros viravam acertos. Nos shows, o público oscilava entre a perplexidade, o rechaço e a adoração. Era empolgante, e tínhamos a consciência de estar fundando uma estética nova e válida, o que depois a critica acabou reconhecendo múltiplas vezes. Nunca fomos populares no sentido de ter grande público, era diferente demais, quebrado demais, a harmonia era maluca, não tinha melodias cantáveis, queríamos mesmo chocar e abalar a tradição, mas marcamos uma presença forte, até pelo rechaço. Pessoas chegavam a ficar indignadas, mas tinha um pequeno fã clube fiel. Esteticamente, foi uma grande novidade, com uma proposta difícil mas densa e consistente. A Aristóteles fez história”.

O trabalho com a banda foi um crescimento acelerado e de enorme amplitude em muitas das coisas que fazem um músico além da simples técnica, deram-lhe significativa notoriedade em uma área que não estava em seus planos de carreira e chegaram a despertar-lhe uma veia de compositor que não sabia existir, embora desde pequeno desejasse ser pianista clássico, profissão que cogitava seriamente ao lado da de... garçom. De fato, "apossara-se" muitas vezes do piano de suas primas Alice e Lúcia Baratto, no tempo em que estudava biologia e medicina, passando tardes inteiras tentando fazer sons coerentes e aborrecendo suas primas, mas desistiu quando sua avó falou que piano era “coisa de menina”. "Coitada", suspira o artista, que é gay... “Só saí do armário bem mais tarde. O garçom ficou só no sonho; talvez fosse”, como disse, "só

Show no bar Porto de Ellis. Da esquerda para a direita Ricardo Frantz, Chico Machado, Diego Silveira, Marcelo Birck e Luciano Zanatta.

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fetiche". Com Alice teve noções de flauta doce, e por alguns meses estudou em uma turma da lendária Isolde Frank, chegando a apresentar-se uma ou duas vezes (sua memória, diz, "vai ficando cheia de brancos para aqueles tempos") com sua Orquestra de Flautas. Arriscou também entrar em um coral, mas não conseguia segurar a afinação e percorria todas as tessituras misturando as partes em confusão, e o projeto não durou dois meses. Tampouco aprendeu a compor formalmente, simplesmente começou, de modo autodidata, em 2002, vários anos depois de desligar-se da banda, embora a vontade já se tivesse manifestado desde lá. Fizera, de fato, alguns ensaios esparsos naquele tempo, e Birck havia em certo período dado algumas aulas de contraponto para o pessoal da banda, mas "previsivelmente, ninguém tava mesmo a fim daquilo", e por razões variadas a semente não floresceu senão mais tarde. Naturalmente, passaram alguns anos antes de adquirir proficiência. Sua produção "madura" se caracteriza por uma eclética síntese daquelas referências muito antigas, que havia acumulado desde a adolescência, e outras muito recentes, estas naturalmente via Aristóteles, mas também de audições paralelas de muito da música erudita do século XX, admirando compositores como Schoenberg (Noite transfigurada, Sinfonia de câmara, quartetos), Berg (Concerto para violino), Webern, Berio, Varèse, Nono, Cage, Stockhausen (Cântico da juventude, Gruppen), Maderna “e mais uns holandeses meio desconhecidos dos quais não lembro mais o nome”. Mas jamais compreendeu a harmonia tonal. Ou melhor, “compreendia, mas não sabia reproduzir, nunca soube". Sua "harmonia" é mais modal e pontilhista, mas de fato é difícil enquadrá-la em estilos, e sua própria incompetência com o sistema tonal e as progressões harmônicas tradicionais o obrigou a encontrar outras formas desenvolver um verdadeiro discurso sonoro, trabalhando com massas, timbres estruturais e "zonas tonais" e não com escalas, com forte domínio de um contraponto quebrado de vozes muito independentes e muitas vezes descontínuas, que produzem árduos choques dissonantes e consonâncias inesperadas e heterodoxas, criando uma atmosfera ao mesmo moderna e arcaizante. A voz superior muitas vezes se destaca pelo seu desenvolvimento retórico, tendo sido profundamente influenciado pelo melodismo vocal de Haendel e Mozart e pela oratória barroca, mas no geral todas recebem material substancioso. Sua polifonia revela, de fato, uma tendência de se desenvolver como correntes melódicas sempre em variação à maneira de um discurso em prosa, mas faz bom uso de clímaces como forma de estruturar o discurso, e compara sua melodia a um rio que corre sempre diferente. Alega ter recebido grande inspiração de observar o voo de bandos de pássaros e outros movimentos naturais coordenados. O formato das peças varia muito, passando de pequenas canções polifônicas a duas e três vozes a suítes em vários movimentos, um oratório e uma missa polifônica completa para coro, solistas, orquestra e órgão. As peças menores, de longe as mais numerosas - considera-se de fato um miniaturista - são frequentemente bipartidas com ritornellos nas duas partes e uma pequena coda (AABBC), embora formatos AABbC e AaBbC sejam também comuns. Este formato básico, porém, ao longo dos anos foi cada vez mais frequentemente alterado e tornado mais livre e imprevisível, aparecendo peças com várias seções contrastantes, de estrutura fluente e contínua e sem quaisquer repetições. Tem marcada preferência por composições a três vozes com instrumentos pizzicati como a harpa, guitarra, baixo acústico, ou de percussão melódica como o vibrafone,

Marcelo, Luciano e Ricardo, apresentação no programa Radar da TVE.

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talvez o mais empregado de todos os instrumentos, além de usar muitos timbres sintéticos como crystal, atmosphere e outros que o seu programa favorito de composição, o Encore (para midi), oferece. Nunca usa a percussão propriamente dita (tambores, pratos, etc), e entre os sopros seus favoritos são, nesta ordem, a flauta, o clarinete, o piccolo e o sax soprano, para os quais compôs partes, às vezes muito exigentes, em peças que o artista põe entre as melhores de sua produção, como Glory-Seraphin, Seis peças para piccolo, harpa e vibrafone, Cityscape, Incognitus, Canção da inocência perdida e reencontrada, Jingle happy bells, Dança dos silfos, Vergine tutto amore, os Duettinos para flauta e violão de sete cordas, Divertimento para flauta, harpa e vibrafone, Divertimento para Justin e La Joyeuse, uma de suas favoritas, assim como os Quatro Divertimentos para Clarinete e Harpa (1), (2), (3), (4). Usa cordas muito raramente, mas prefere a viola da gamba quando sim, o que surpreende, dada a sua formação violinística. Nunca dominou o piano, e para o violino escreveu apenas duas peças que o agradam: o Trio à toa e o Divertimento para violino e vibrafone. Na sua "grande" missa, a Missa Albanus, sua composição mais ambiciosa, para coro a 3, solistas, orquestra de câmara, órgão e base gravada, vê momentos de alto valor, com alguns dos trechos mais pungentes e grandiosos que escreveu, entre eles Et expecto ressurrectionem mortuorum, Gloria-Laudamus te, Sanctus, Osanna in excelsis, Et expecto vitam venturi-Amen, e Gratias agimus tibi (também em versão para órgão solo), mas o conjunto lhe parece muito irregular, com seções bem fracas. Não se sente à vontade compondo para a voz humana, a qual confessou nunca ter dominado, e atribui grande parte do fracasso da missa a essa deficiência, mas pensa que se tivesse tido cantores à sua disposição poderia tê-la sanado. Outra obra de grande envergadura é o seu oratório de câmara Fioretti di San Francesco, para solos, coro, orquestra de câmara e base gravada, sobre a vida de São Francisco de Assis, concluído em 2014 depois de vários anos de trabalho, com vários hiatos. Em verdade, a esmagadora maioria de sua produção é instrumental. Na sua apreciação, é nas pequenas canções polifônicas instrumentais que seu talento é mais puramente expresso e suas pesquisas em harmonia e ritmo deram seus resultados mais ricos, destacando, por exemplo, a Chanson I Chromatique, Chanson III Vou-m'eu fremoso pera'l-Rei, Chanson VI Ma bouche rit trois foix, Chanson cassée, Serendipity, Luna mendax, Le Malheurex, Argument II, Sidus praeclarum, Whereabouts, Cry for short, Quartet, A escada de Jacó, Non chegou madr' o meu amigo, Dramma piccolo, Corpo doirado, Whereabouts, Broken dreams, Triste plaisir, Melhores tempos virão, Hec dies quam fecisti ou O beata Virgine. Entre suas suítes coloca entre as melhores a Suíte sobre temas de Pravin Menon (Allemande, Riverenza e Toccata) e Tabvla Mvsica (Riverenza alle Muse, Allemande, Marcha, Scherzo e Speditus [Farewell]), ambas para grupo de câmara. Outras peças que o compositor considera dignas de nota, em variados formatos, são o Prelúdio para harpa, Fantasia V para violas da gamba, A Solis ortu cardine, Perenitas, Céleste flamme, Transform, Expeditus, Orphée, Just a

Primeira página da seção “Et expecto ressurrectionem mortuorum”, do Credo da Missa Albanus.

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thought, Aqueeeeela choradinha... (fugatto), StereoTrio, Allemande, Abertura Sylvia, Giga para 5 instrumentos, ascia ch’io pianga, Peregrinatio, Preludio para Harpa III, Medieval games III - Isorhythmic song I, Medieval games VI - Isorhythmic song III, Omnis spiritus laudet Dominum, Alas putcha!, A la fiesta a medianoche, Marcha de Santa Cecília, Mortality, a série de Doze Ballate para Harpa, Quatuor Rising Sun, Sophie, Meu príncipe meu tesouro (um arranjo de uma canção que sua avó Leda alegava ter inventado e lhe cantava sempre), Fugatto courant, Fugatto Giga, Saltarello, Chorale & Intrata "I come from the High Heaven", Balletto e Desserenata, a melhor dentre suas pouquíssimas tentativas na linguagem erudita contemporânea mais “mainstream”. Outras nesta mesma linguagem, que lhe parecem aceitáveis, são Battaglia para cordas, e a humorística Cena de opereta para circo de pulgas. Sua produção completa está em sua página em SoundClick, e uma seleta está em SoundCloud. Muitas peças têm mais de uma versão oficial, e outras são recorrentemente revisadas. Muitas não são executáveis em instrumentos reais, exigindo tessituras impossíveis. Cerca de metade de sua obra divulgada ao público (mais de 360 peças autônomas finalizadas, algumas agrupadas em suítes, versões alternativas e outros arranjos, fora as cerca de duas centenas de estudos não publicados em vários estágios de acabamento, “aguardando, talvez eternamente, revisão”), tem qualidade que Frantz considera apenas regular, especialmente as mais antigas, e diz que não haveria grande perda e nem sofreria grande trauma se tivesse de selecionar apenas cem dentre todas, o que deixaria a substância do seu legado ainda perfeitamente compreensível. Surpreendentemente, o compositor, que além de todas as suas deficiências técnicas jamais ouviu uma melodia mentalmente e compõe "tão 'surdamente' como se escrevesse um relatório técnico de geologia, visualizando e movimentando formas fractais e geométricas complexas mas não ouvindo nada como 'antecipação' ou 'elaboração sonoro-mental' da composição", considera suas obras de música o melhor de sua contribuição às artes, superando até sua obra em pintura, e entendendo nela a única especialidade em que foi realmente original e pessoal até o âmago. Para ele, o diálogo que estabeleceu entre tradição e vanguarda na música é uma contribuição original e interessante, e exatamente por isso diz se espantar com a nula repercussão crítica; pensa que devem tê-lo apenas como um compositor naïf, uma simples curiosidade, mas diz também aceitar o fato com resignação. Pensa que sua música só pode ser compreendida contra os referenciais básicos da polifonia Ars Nova e Ars Subtilior, do contraponto, do fugatto e do melodismo barrocos, e da Aristóteles de Ananias Jr., e entende que poucos tenham "todas essas chaves ao mesmo tempo para abrir a fechadura complexa" de sua "caixinha de música". No entanto, considerando a composição antes um hobby, embora o diletíssimo, do que algo para se profissionalizar, não tem se empenhado em sua promoção, e sua maior conquista neste setor foi publicar uma peça por uma editora inglesa, Spherical Records, a suíte para piano, violão, clarinete e harpa Ourania, em cinco movimentos, a convite da editora, que pagou todos os custos. Mas Frantz ri de sua condição dizendo: "Eles não fizeram um segundo convite". Ao mesmo tempo, muitas de suas peças foram destacadas entre as 50 ou as 100 melhores de seu gênero no website SoundClick (username Lovizol*Mvsik), onde deposita sua produção completa e que tem vasta visitação, mas o significado exato desses galardões em termos de número de acessos individuais é obscuro, as estatísticas do site são inconsistentes, e eles podem ser bem baixos.

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A Aristóteles de Ananias Jr. Em vista da sua importância para o cenário do rock gaúcho e para a evolução de Frantz como compositor independente, transcreve-se aqui o artigo sobre a banda que Frantz criou para a Wikipédia. Trajetória A banda foi criada em 1988 por Marcelo Birck (vocal, guitarra e compositor), fazendo seu primeiro show no Bar Ocidente no mesmo ano. Surgida como um projeto paralelo à Graforréia Xilarmônica (da qual faziam parte Marcelo e Alexandre), tinha uma proposta informal de diversão ao mesmo tempo em que se aproveitavam espaços favoráveis a investigações sonoras. A princípio o projeto não possuía nenhuma intenção de continuidade, e os músicos eram convidados de acordo com as circunstâncias.150 Com tal proposta, foram realizadas apresentações esporádicas e com diversas formações, que incluíram Alexandre "Ograndi" Birck (bateria), Carlos Eduardo Miranda (teclado), Chico Machado (baixo e vocal) e Luciano Zanatta (saxofone alto).151 152 O nome da banda surgiu por acaso. De acordo com Birck, ele estava lendo e assistindo TV ao mesmo tempo, quando ouviu o apresentador citar "Aristóteles" na TV, leu no jornal o nome "Ananias", e ouviu alguém gritar "Júnior" na rua.153 Em 1991 a formação definiu-se com Marcelo, Alexandre, Luciano, Chico e Ricardo Frantz, que já havia participado de shows do grupo tocando violino. A partir daí a proposta tornou-se mais definida, com repertório fixo, ensaios e shows regulares, mas continuava a ser a experimental, com Ricardo e Chico trazendo novos referenciais para a concepção visual dos cenários e figurinos e Chico Machado colaborando também na criação de letras e músicas e enfatizando o aspecto cênico em performances.154 Neste ano se realizou um show marcante, intitulado Mim Notauro, Você Jane, apresentado em quatro dias (20 a 23 de junho) na Sala Carlos Carvalho da Casa de Cultura Mário Quintana, e que significou o lançamento "oficial" da banda na cena gaúcha, mesmo já tendo antes realizado muitas apresentações. Até então atuando basicamente no underground, a proposta incomum despertou antecipadamente a curiosidade da imprensa, que publicou várias matérias na ocasião, dando grande visibilidade à banda.155 156 157 158 Após várias aparições em bares da cidade, Alexandre deixou a banda, sendo substituído por Diego Silveira na bateria.

150

Pedrazzi, Iria. "No palco, as competentes escalas exóticas". Zero Hora, 20/04/1991 151

"Aristóteles de Ananias Jr. (1993)". Caverna do Jurássico, 1993. Repostagem 03/06/2013 152

Gomes, Marco Pinho. "Iconoclastas experimentalistas com grande senso de humor". Correio do Povo, 28/11/1993 153

"De Atahualpa y us Panqui a Tarcísio Meira's Band: a origem curiosa dos nomes de bandas gaúchas". Zero Hora, 11/07/2013 154

Gomes, op. cit. 155

Pedrazzi, op. cit. 156

"Radar a mil". Pioneiro, 02/09/1993 157

"Pop erudito". Zero Hora, 20/06/1991

153

Em 1992 a banda gravou o programa Talentos do Sul, dividindo o palco do bar Porto de Elis com Os Replicantes, show veiculado no mesmo ano pela RBS TV.159 O show marcou a saída de Chico Machado do grupo. Em 1993, mesmo sem um baixista fixo, decidiram registrar o repertório em estúdio. Para esta gravação, Marcelo assumiu o baixo (além da guitarra e vocais), e em duas sessões começou a surgir o que viria a ser a fita demo do grupo. Durante o ano, novas composições foram gravadas, com Pedro Porto no baixo (também integrante da Ultramen), mais a participação especial de Arthur de Faria (vocais) e Carlo Pianta (baixo).160 A fita demo foi lançada em 28 de setembro de 1993, num show no bar Garagem Hermética. Com 20 faixas, inclui entre outras "Fúlvio Silas II", "Canibalismo Odara", "Grenal do Amor", "Bico de Pato" e "Saudades do Alegrete". Nesta ocasião, consolidou-se a formação pela qual a banda ficou mais conhecida: Marcelo Birck, Ricardo Frantz, Pedro Porto, Luciano Zanatta e Diego Silveira.161 162 163 Na época, a movimentação em torno de produções independentes estava no auge, e a proposta inusitada chamou a atenção de vários veículos de comunicação do país.164 165 166 167 Destacam-se em 1993 também a participação no festival Rock 40 Anos promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, 168 e no festival Fora das Média, idealizado por Arthur de Faria.169 Em 1994 foram realizados vários shows no interior do estado (Pelotas, Santa Maria, Caxias do Sul, Livramento, São Lourenço e Passo Fundo) através do grande projeto Circuito de Rock, promovido pela RBS TV, que movimentou mais de 300 bandas gaúchas e deixou um registro em CDs.170 Em 1995 participam da coletânea Segunda sem Ley, (parceria do selo Banguela Records com a Rádio 107.1), com produção de Egisto 2,171 e a composição "Grenal do Amor" batizou um evento esportivo promovido pela Rádio 107.1, no qual músicos de várias tendências disputavam um Grenal (clássico do futebol gaúcho), evento que chamou a atenção da mídia pelo seu humor, recebendo espaço em várias matérias.172 173 174

158

"Pop erudito". Zero Hora, 20/06/1991 159

"Oxigenada - um grau a mais". Pioneiro, 30/09/1992 160

Gomes, op. cit. 161

Essinger, Silvio. "Graforréia Xilarmônica: os desconhecidos pioneiros". CliqueMusic UOL, 02/04/2001 162

Gomes, op. cit. 163

Pulita, João. "Ideias clássicas e premiações merecidas". Pioneiro, 29/10/1993 164

Ratner, Rogério. "O rock gaúcho dos anos 90 e 2000". Overmundo, 28/12/2009a 165

Mendes, Marcelo. "Grandes histórias do rock 2002/2003: cap. 3". Overmundo, 01/06/2006 166

Alexandre, Ricardo. "Nos passos do Aristóteles". O Estado de São Paulo, 09/07/1994 167

Gomes, op. cit. 168

“40 anos de rock dá festa no Araújo”. Correio do Povo, 14/08/1993 169

Santos, Luiz Paulo. “O rock esquisito ganha um festival”. Zero Hora, 02/10/1993 170

"Velhos nomes e novas ideias". Zero Hora, 29/12/1994 171

Segunda sem Ley. CD. Banguela Records/Warner, 1995 172

"Gre-nal do Amor". Zero Hora, 17/05/1995 173

"Vareio dos músicos colorados no Gre-Nal do Amor". Zero Hora, 13/06/1995 174

Ferla, Marcelo. "Tudo pronto para o Gre-Nal do Amor". Zero Hora, 09/06/1995

De cima para baixo, Marcelo Birck, Chico Machado e Luciano Zanatta.

154

Com a colaboração de Munir Klamt, a faixa Bico de Pato, virou um videoclip criado a partir da reciclagem de antigos filmes super-8, tendo sido veiculado com alguma regularidade pela MTV Brasil no verão de 1996.175 Dois outros clips foram apresentados na MTV: "Freeway" e "Canibalismo Odara". Ainda em 1996 saiu o seu primeiro e único álbum, intitulado Aristhóteles de Ananias Jr., pela Grenal Records, selo independente de Marcelo Birck.176 Registrado em um período de transição da técnica de gravação analógica para a digital, as sessões de gravação basearam-se na experimentação de possibilidades. Se a princípio as condições técnicas não se mostraram muito favoráveis à proposta, o contato com Thomas Dreher, técnico de masterização do CD, foi fundamental para que o grupo pudesse, através dos meios computadorizados, vislumbrar novas possibilidades de manipulação e transformação do material sonoro. Desta forma a masterização, em geral um procedimento primariamente técnico, acabou se revelando um verdadeiro laboratório de pós-produção criativa.177 178 No mesmo ano a banda participou da gravação ao vivo do CD comemorativo da 150ª apresentação do Projeto Unimúsica da UFRGS,179 e foi realizado um show com o repertório do CD no Programa Radar, exibido pela TV Educativa de Porto Alegre, mas para os seus membros já ficava claro que a banda se aproximava de seu fim. Com novos objetivos e desafios se apresentando para cada um, a dissolução do grupo foi um processo natural. 180 Em 1997, com a formação Marcelo Birck na guitarra e voz, Alexandre Birck na bateria, Thomas Dreher na guitarra e Lawrence David no baixo, ocorreu a última aparição do grupo em palcos, no festival Made in China, que teve lugar no Auditório Araújo Viana. Obra A banda surgiu em um momento de grande efervescência no cenário da música popular brasileira, quando o rock se consolidava em larga escala em todo o país desde os anos 80 e nos anos 90 continuava em uma trilha ascendente, ainda que neste último período enfrentasse crescentes dificuldades de mercado.181 182 Segundo Rogério Ratner,

"Em que pese o acesso ao mainstream tenha ficado cada vez mais restrito e difícil, dentro de uma estratégia das grandes gravadoras de concentrar seus investimentos em artistas/bandas do gênero que garantissem retorno garantido, havendo uma diminuição significativa na aposta em novos trabalhos, o certo é que isto não refreou o surgimento de uma infinidade de novas formações, em diversos estilos e trazendo inúmeras referências. [...] Algumas destas tendências, é bem verdade, já

175

Mendes, op. cit. 176

"Gaúchos a mil". Zero Hora, 16/07/1995 177

Essinger, op. cit. 178

Mendes, op. cit. 179

Unimúsica 150. CD. Projeto Unimúsica, UFRGS, 1996 180

Mendes, op. cit. 181

Ratner (2009a), op. cit. 182

Ratner, Rogério. "O rock gaúcho dos anos 80". Overmundo, 08/06/2009b

Alexandre Birck e Diego Silveira. A foto superior é de Luís Geraldo Melo.

155

pontificavam nos anos 80, mas foram, sem dúvida, aprofundadas nos anos 90, inclusive com a consolidação de nichos próprios".183

O Rio Grande do Sul não foi exceção, com a movimentação roqueira iniciando na capital, Porto Alegre, particularmente em torno do bairro Bom Fim, uma espécie de reduto da contracultura, onde funcionam até hoje um bar que se tornou icônico, o Ocidente (onde a Aristóteles se apresentou pela primeira vez), e o Auditório Araújo Viana, da Prefeitura Municipal, que deram espaço para shows memoráveis,184 "congregando bandas e artistas com já larga folha de serviços prestados à música urbana e ao rock do RS com novos nomes que iam surgindo", como disse Ratner, embora a produção local só tenha ganhado notoriedade no centro do Brasil relativamente tarde.185 Esta expansão foi facilitada pela criação de vários selos independentes no estado, que deram uma certa autonomia aos músicos locais, e pela passagem da tecnologia analógica para a digital, que reduziu a dependência dos músicos em relação às grandes gravadoras, tendo como resultado uma explosão do mercado independente.186

Suas apresentações se caracterizavam por um estilo performático, com cenários e figurinos inusitados criados pela banda, empregando materiais descartáveis e remetendo ao imaginário psicodélico, sempre com forte tendência ao non-sense e a referências extra-musicais. A sonoridade da banda pode ser definida como tendo uma base derivada do rock da década de 1960, sobre a qual são adicionados elementos de outras práticas musicais, como contraponto, atonalismo, ruidismo, incluindo alguns de outras matrizes pop e eventualmente regionalismos, além de empregar o acaso, descontinuidades, desconstrução, politexturas e improviso.187 188 189 Como relatou Marcelo Mendes em matéria escrita para o site Overmundo, esta combinação incomum de influências causou sensação, mas também desencadeou forte rejeição entre os acostumados com o rock tradicional: "O ápice dessa 'queimação de filme' foi o lançamento do disco da Aristóteles que, segundo ele (Marcelo Birck), teria sido um fim de carreira, tamanho o impacto: 'as pessoas ouviam o disco ou viam o show e tomavam aquilo como ofensa pessoal' ". Mendes pensa que para um entendimento da proposta da banda seria necessário abrir espaço "para uma nova sensibilidade, afeita não a algo 'verdadeiro' de antemão, mas às potências do falso – no que diz respeito àquilo que ainda pode vir a ser (rock ou outra coisa

qualquer) 'real', ou seja, uma verdade a ser criada, uma estética a ser estabelecida, uma sensibilidade a ser desenvolvida".190

183

Ratner (2009a), op. cit. 184

Keske, Humberto Ivan Grazzi; Lehnen, Lidiani. "Na Trilha Sonora dos pampas: a batida pesada do rock 'n' roll a la gaúcho". In: Caderno Imagem - revista eletrônica, 2012; 11(03) 185

Ratner (2009b), op. cit. 186

Ratner (2009a), op. cit. 187

Faria, Arthur de. Um Século de Música no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CEEE, 2001, s/pp. 188

Mendes, op. cit. 189

Egs, Eduardo. "Três lados para cada história". Overmundo, 17/04/2006 190

Mendes, op. cit.

Capas da demo tape e do CD.

156

Para o crítico da Zero Hora Luiz Paulo Santos, "classificar a banda de demente é pouco. A começar pelos trajes tropical-psicodélico de seus integrantes, a AAJR promove a anarquia total em palco. O grupo é ótimo, um dos melhores dos últimos anos, junto com a Graforréia Xilarmônica".191 Marcelo Ferla, também escrevendo para a Zero Hora, comentando a participação da banda no Projeto Unimúsica da UFRGS, disse que "o Aristóteles foi o melhor da noite. Da entrada triunfal à produção de roupas, dos discursos anti-Parreira aos arranjos disformes, o grupo ganhou a plateia. O coquetel de hinos bregas, ska, funk e até heavy é empolgante, e a sacada de tocar — em versão hardcore, mixada ao tema de Banana Split — o jingle das Casas Pernambucanas é digna de aplauso. Vitória retumbante do rock gaúcho".192 Marcos Pinho Gomes, do Correio do Povo, a qualificou como "uma das bandas mais malucas e originais do pop gaúcho",193 e Ricardo Alexandre, em matéria para O Estado de São Paulo, comentou:

"Dois discos sempre exerceram particular fascínio sobre mim: A Saucerful Of Secrets, do Pink Floyd, e o 'álbum branco' dos Beatles. De repente, uma demo tape vinda dos cafundós do Rio Grande do Sul me despertou a mesma sensação. Os responsáveis: Aristóteles de Ananias Jr. Já na primeira música, Canibalismo Odara (que mereceu até um clip que deve estrear em breve), você percebe que as coisas não vão bem na cabeça dos caras: guitarras e vozes invertidas, letras incompreensíveis e andamento torto. [...] O resto, meu chapa, é coisa de doido varrido. [...] Eles apresentam três fatores que fazem a diferença: bom-humor, produção em cima e uma noção (mesmo que vaga) do que é pop music".194

Nas palavras de Eduardo Egs, escrevendo em 2006 para o Overmundo, “usando colagens de trechos de músicas, sobreposição de vozes e muito, mas muito atonalismo, o Aristhóteles causou impacto na cena porto-alegrense. O trabalho da banda foi reunido em um CD lançado em 1996 pelo Grenal Records, selo do próprio Birck. Hoje, passados dez anos, ainda impressiona ouvir as experiências sonoras desse registro".195 Para o músico, compositor e professor da Unisinos Frank Jorge, a Aristóteles foi "tão rock and roll como Arrigo Barnabé foi rock and roll pra música brasileira. Só que, lógico, rock não se tratando daquela coisa de três acordes, mas em termos de postura".196 Os pesquisadores Humberto Keske e Lidiani Lehnen, citando várias bandas gaúchas que surgiram na época, como Tequila Baby, Júpiter Maçã, a Aristóteles e outras, consideram que foi "inegável a influência das bandas do momento de explosão do rock gaúcho para o que se produziu [no Brasil] nos anos 90".197 Arthur de Faria, músico, compositor e pesquisador gaúcho, em sua publicação Um Século de Música no Rio Grande do Sul, disse que a banda "produziu uma fita demo excepcional e um CD quase inaudível de tão desconstruído", e definiu a proposta como "a experiência musical mais radical feita em música popular nestas terras".198 Hermano Vianna também enfatizou o caráter investigativo do trabalho, dizendo que a banda era "herdeira de uma tradição de música experimental brasileira".199

191

Santos, Luiz Paulo. "Há vida no rock gaúcho". Zero Hora, 19/10/1993 192

Ferla, Marcelo Câmara. "Golaço do rock gaúcho". Zero Hora, 02/071994 193

Gomes, Marco Pinho. "A maluquice do Aristóteles em K-7". Correio do Povo, 28/09/1993 194

Alexandre, Ricardo. "Nos passos do Aristóteles". O Estado de São Paulo, 09/07/1994 195

Egs, op. cit. 196

Spuldar, Rafael. "Entrevista com Frank Jorge". MúsicaTri, consulta em 20/02/2013 197

Keske & Lehnen, op. cit. 198

Faria, op. cit. 199

"Navegador fala de ídolos virtuais e a nova onda da cultura pop no Japão". Globo News, 17/02/2014

Pedro Porto e Ricardo Frantz

157

A banda foi citada no livro Gauleses Irredutíveis: causos e atitudes do rock gaúcho, lançado em 2001 e considerado um registro fundamental da história do rock no estado, e teve seu CD incluído na lista, anexa ao livro, dos 100 melhores discos do rock gaúcho. "Pagode Acebolado" fez parte da coletânea Gauleses Irredutíveis Merecem Aplauso, publicada pela revista Aplauso em comemoração aos 10 anos do lançamento do livro.200 201 202 A demo e o CD da banda foram incluídos na "Discoteca básica do rock sulista (anos 80, 90 & 00)" elaborada por Fernando Rosa e Flávio Sillas Jr., respectivamente editor e colaborador da revista Senhor F.203 Na opinião do músico Edu K, a canção "Bico de Pato" deveria estar entre as cinco músicas que melhor traduzem a alma gaúcha.204 De fato, ela se tornou uma das mais conhecidas da banda, e seu videoclip se tornou popular na MTV.205 Ela também foi incluída numa coletânea de raridades lançada em 2010 pelo selo independente Midsummer Madness do Rio de Janeiro. O autor da compilação, Gabriel Thomaz, disse que "essa fita (a fita demo) circulou bastante em São Paulo e a gente estava sempre ouvindo essa música por vários lugares".206 O blog Caverna do Jurássico, dedicado a preservar a memória do rock local, colocou a demo da banda na sua lista das "Demos Clássicas do Rock Gaúcho".207 O trabalho também foi elogiado por Glerm Soares, pesquisador e músico experimental (ex-Boi Mamão e outras, atualmente dirigindo o coletivo Orquestra Organismo), ao elaborar sua lista Top Ten para o Mondo Bacana, incluiu o disco da Aristóteles e disse: "Marcelo Birck é poderoso. Fico de cara quando não levam o cara a sério por preconceito ao seu lado escrachado. O cara inventou uma estética totalmente própria, misturando jovem guarda com atonalismo e tosqueira. As letras são um caso à parte, fuzzy-logic total, como diria Timothy Leary".208 A banda foi um padrão de referência para outros músicos e grupos, influindo notadamente sobre o trabalho da banda Repolho, de Chapecó,209 e das bandas porto-alegrenses Chumbo Grosso e Relógios de Frederico,210 servindo, como disse Bruno Eduardo, do Rock Press, como um exemplo de arte livre e sem paradigmas que ajudou a renovar a cena do rock.211 Sua produção, além do disco e da fita demo, inclui também dois filmes trash, realizados com a colaboração de Munir Klamt: Projeto Espacial B (1995), lançado pela produtora Vortex em evento no centro cultural Usina do Gasômetro em 9 de novembro de 1995, como parte do Projeto Usina Video Rock;212 e A Morte Veio de Marte (1996), além de diversos videoclips ("Canibalismo Odara", "Bico de Pato", "Freeway", "Saudades do Alegrete") e trabalhos em vídeo de características abstratas.

200

Avila, Alisson; Bastos, Cristiano & Müller, Eduardo. Gauleses Irredutíveis: causos e atitudes do rock gaúcho. Sagra-Luzzatto, 2001. 2ª edição revisada (e-book, 2012) 201

"Rock gaúcho: coletânea tripla resgata raridades". Whiplash, 24/02/11 202

"Música no RS e no Brasil". Página oficial da 58ª Feira do Livro de Porto Alegre 203

Rosa, Fernando & Sillas Jr., Flávio. "A presença do 'rock gaúcho' na cena independente nacional". Senhor F, s/d 204

"As músicas que melhor traduzem a alma gaúcha". Zero Hora, 17/08/2000 205

Mendes, op. cit. 206

Thomaz, Gabriel. "Um resgate histórico". Programa de Rock, 01/07/2010 207

"Aristóteles de Ananias Jr. (1993)". Caverna do Jurássico, 1993. Repostagem 03/06/2013 208

"Top Ten - Glerm". Mondo Bacana, 15/04/2008 209

Mendes, op. cit. 210

Pinto, Angela. "Entrevista com Arthur de Faria". Música Tri, acesso em 16/02/2013 211

Eduardo, Bruno. "Graforréia Xilarmônica: entrevista com Marcelo Birck". Rock Press, 08/03/2013 212

Ferla, Marcelo. "O presente da Vortex (I)". Zero Hora, 09/11/1995

158

Marcelo Birck e Chico Machado, fotos de Luís Geraldo Melo.

Show Mim Notauro, Você Jane na Casa de Cultura Mario Quintana, foto de Luís Geraldo Melo.

159

Luciano Zanatta e Ricardo Frantz. Show Mim Notauro, Você Jane na Casa de Cultura Mario Quintana. Abaixo, Marcelo Birck e Alexandre Birck. Fotos de Luís Geraldo Melo.

160

NA PRIMEIRA PESSOA

Como conclusão, segue abaixo um grande trecho da ghost-auto-entrevista, onde o artista faz um balanço de sua vida e seu trabalho:

“Não sei muito bem o que fiz e faço. Já pensei muito sobre isso tentando dar um sentido lógico a essa peregrinação tão caleidoscópica, e as respostas foram sempre contraditórias e/ou provisórias. Além disso, a vida sempre me levou mais do que eu a pude conduzir. Sempre estive submetido a fortes pressões e muitas vezes tive de tirar água de pedra, não exatamente por escolha, mas porque eu estava ali naquele momento e tinha que responder de alguma forma, e com condições raras vezes próximas das ideais. Tive de sambar muito. Na verdade, isso me possibilitou acumular uma amplitude de experiências que talvez poucas pessoas possua. Para entender o meu trabalho, infelizmente tem que conhecer o meu contexto público e a minha vida privada, embora eu não goste de falar de mim mesmo, realmente. Gosto de fazer arte e isso já é se expor bastante, e a sociedade pode ser bem cruel. Mas vamos lá. “Nasci em uma família católica de grande tradição e prestígio na zona de colonização italiana. A maior parte dos meus troncos ancestrais tinha origens nobres ou patrícias, alguns deles foram muito ricos e poderosos entre a Idade Média e a Idade Moderna, em alguns casos com uma história documentada de mil anos ou mais. Porém, os ramos que originaram os caxienses em sua maioria acabaram empobrecendo e chegaram ao Brasil em situação difícil. Não obstante, estavam entre os fundadores da cidade e cedo conseguiram notável progresso, chegando a enriquecer e a assumir importantes posições na política, no comércio, na religião, na indústria e na sociedade, mas como ocorrera na Europa, depois o dinheiro se foi novamente, por várias razões, mas o prestígio ficou.

Minha bisavó Maria Sartori, aquela para a qual o homem sentado no chão aponta, no tempo de seu primeiro casamento, quando era a baronesa von Schlabendorff.

161

“Meus pais, Murillo Frantz e Elisabeth Longhi, um bancário e uma professora, trabalharam duro e recuperaram parte do antigo lustro aristocrático deste ramo empobrecido da família, construindo um pequeno palacete decorado com obras de arte e antiguidades e circulando nas altas rodas, destacando-se também por atividades benemerentes e culturais. Meus tios fizeram carreiras semelhantes. Cresci vendo a família nas crônicas sociais. Muitos da família fizeram coisas relevantes na comunidade, dando grande valor ao trabalho e a valores tradicionais, gente de muito bem. “E família numerosa. Tenho oito tios e muitos primos. Todos calorosos, dramáticos, passionais, divertidos, barulhentos e tão irredutíveis quanto Asterix e Obelix. Todos maravilhosos e muito unidos, e tive uma infância de finanças meio curtas na família mas na maior parte dos aspectos estupenda. Porém, do lado do meu pai vinha uma herança alemã de altas exigências morais, com avô exegeta da Bíblia, místico e Integralista. Não que as do lado italiano fossem baixas, eram ultra-religiosos, mas eram mais flexíveis. De todos os lados, racismo e preconceitos típicos de toda aquela sociedade, cuja herança católica, estratificada e colonial ainda era forte. Na colônia de europeus tradicionalistas, ser negro, judeu, desempregado, bêbado, desquitado, veado, etc, ou mesmo ser apenas brasileiro, luso ou – horror – índio, nos anos 60 ainda era uma desgraça catastrófica, e famílias ‘nobres’ ficavam longe dessa população. Caxias foi fascista antes da II Guerra, e toda a segunda geração de colonos italianos adorava Mussolini, que chegou a escrever pessoalmente um texto para uma publicação comemorativa da Festa da Uva, tipo ‘unindo espíritos iguais mas distantes no espaço’. Já viu... “Mas o fato fundamental é que sou gay. No contexto onde nasci isso exige algo semelhante a abrir as águas do Mar Vermelho para poder passar, mas tímido e inseguro como eu era, não dei escândalo e sobrevivi com muita dissimulação, vivendo uma segunda vida oculta e isolada. Um entorno amorosíssimo, mas ao mesmo tempo tudo muito quadrado, muita tradição, muito o que vão dizer, muito pecado, muita culpa, etc. Isso determinou toda uma constelação de conflito, um conflito que permanecia latente, jamais expresso, mas que mesmo assim causava grandes efeitos. Minha avó dizia que eu tinha mãos de padre e vivia contando histórias de santos. Quando pequeno eu só desenhava fadas, bichinhos, castelos e princesas, e brincava com bonecas.

Minha crisma, celebrada pelo bispo dom Paulo Moretto, apadrinhado por meu tio Mauro Frantz.

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E sexo, claro, era assunto tabu. Não era um problema deles, no meio onde eu vivia era igual em todas as famílias. Meus pais me ensinaram como se fazem e como nascem as crianças, mas não se discutia sexualidade, e desde pequeno eu sabia que eu tinha uma bomba nas mãos rsrs. Estudei num colégio super tradicional de irmãos lassalistas a partir da 5ª série. Depois da primeira aula de educação sexual, dada no gabinete do diretor a portas fechadas, quando ele mandou eu me tocar, ‘cientificamente’, segundo disse, para eu constatar que os dois testículos dos homens têm tamanhos diferentes, eu entrei em pânico e ergui um muralhão (outro) em meu redor. Não sei se ele estava querendo se aproveitar, agora até acho que não, quereria decerto me educar de verdade. Mas sem qualquer aviso, foi outro choque. E eu já era grandinho... “Eu não queria me desligar da família, que eu adoro, o pior de tudo era a sensação de estar mentindo o tempo inteiro, ter de inventar coisas, e saber que quando a bomba explodisse ia causar um grande estrago, como de fato causou quando explodiu, mas tive de me esconder até encontrar a turma de loucos do IA, da banda e das tribos urbanas cosmopolitas que conheci através deles. Eu não tenho a consciência de ter ‘fugido’ ao ir estudar em Porto Alegre, por anos eu voltei para Caxias todo fim de semana, mas talvez o destino providencial entendesse que se eu ficasse para sempre em Caxias eu definharia até morrer. Meus amigos da arte gostaram de mim com todos os meus karmas e nóias, me rasgaram a roupa, me viraram do avesso e eu gostei. Foi uma catarse e uma redescoberta de mim. Daí fiquei mais forte. Virei músico de rock de vanguarda e compositor. Carreguei bandeira em protestos de rua e nas marchas gay. Fumei maconha, bebi todas e tive visões místicas, onde falei pessoalmente com anjos e deuses da Grécia antiga, parte do meu populoso time de arquétipos pessoais. Me embrenhei em astrologia e psicologia, nessa lama toda do inconsciente. Li a Doutrina Secreta da Blavatsky e a maior parte da produção teosófica inicial, mais muitos filósofos da Grécia, budismo e hinduísmo. Me converti temporariamente a todos esses credos. Adoro ciência

Família paterna de Frantz, que está à direita, ajoelhado no chão.

163

e astronomia. Virei fã de Star Trek The Next Generation, a utopia da civilização. Ainda tento ser católico, mas já xinguei Jesus de tudo e ultimamente estamos de mal. Já fui PT de passeata, passei pro PV, mas hoje não tenho partido. Fortunatti? Lula não sabia? Congresso? Código Florestal? Copa? Belo Monte & etc? Aquecimento global? Dilma de novo? Socorro! Deus só pode estar de férias. Desencantei. Agora faço cyberativismo político e ecológico. “Era para eu ser biólogo, segundo o projeto original. Fui estudar biologia porque na infância vivia no quintal da minha avó mais entre as plantas e bichos do que entre as pessoas, que eram como amigos pessoais, já que eu sempre fui pouco popular no colégio, o perfeito nerd que só andava com nerds (e nenhum gay!), que para botar abaixo sua reputação e sua auto-estima irrecuperavelmente uma vez teve a infelicidade de se cagar nas calças em público no colégio e ter de pegar ônibus cagado para chegar em casa. Passei inúmeros outros vexames públicos e bullying por minha timidez e meu aspecto de garça magra, pernalta e desengonçada que não pegava nenhuma menina. Na verdade é a primeira vez que eu revelo isso. Foi foda, mas já passou. Mas minhas notas eram boas. Eu adquiri uma ampla cultura geral na adolescência, era um leitor insaciável, e a Enciclopédia Barsa era meu livro de cabeceira. Mas na matemática sempre fui um estúpido, sempre passei raspando ou de recuperação e não sei como passei no vestibular. Fui para a medicina simplesmente porque não conseguia passar numa cadeira obrigatória de cálculo da biologia, mas lá mergulhei na dor das pessoas e na vida dos pobres, e isso foi um crescimento extraordinário, e foi onde conheci o primeiro amor, um perfeito príncipe perfeitamente inacessível. Frustrado, rendeu anos de depressão, mas foi um impacto divino. “Daí caí nas artes, incapaz de segurar o tranco na medicina, vendo o príncipe todo o dia e não podendo nem dar umas beijocas rsrs. Mas na verdade a medicina não era minha vocação. Me apaixonei mais duzentas vezes e, idealista, sempre pelo impossível, passei pelo Inferno cristão e pelo Hades mítico. Nem análise ajudou, decerto é malformação cerebral congênita. Mas os deuses às vezes me favoreciam. Passei num concurso público para a Cultura que fiquei sabendo de última hora, sem ter estudado uma linha, sem saber bulhufas de toda uma seção da prova e sem ser possuidor de título nenhum, e passei em 14º lugar por minha boa formação geral. Pelo menos o nerd ali mandou ver rsrs. Atuei no MARGS, que para mim foi uma fantástica experiência, penetrando fundo em patrimônio histórico, museologia, educação e história da arte, e tendo uma chance de servir a comunidade deixando um bom trabalho técnico, elogiado pelos diretores e outros profissionais gabaritados. Sou ativista do patrimônio. E para completar acabei virando enciclopedista e ensaísta, também sem procurar. De repente, eu estava ali, no meio de um de meus tufões costumeiros, muitas vezes levado para outras partes de sopetão pela força de gigantes, e sempre fazendo várias coisas ao mesmo tempo. E eu desenhava desde pequeno. Isso é parte de mim. Se eu tinha alguns recursos e podia dar algo de volta pelo que eu ia aprendendo, plim, as obras apareciam, e apareceram em várias áreas. “Reclamar contra essa riqueza de possibilidades, deixar de explorar as chances que apareceram? Só se eu fosse louco e mal-agradecido. Mas é fato que o fato de eu ter crescido me escondendo me tornou um diplomata e um camaleão por excelência. Precisei fazer dessa necessidade, virtude. Acho que até consegui surfar bem em todos esses maremotos em que me meti, eu que sou um cara da paz e da domesticidade, e acabei dando algumas contribuições pessoais valiosas, o que me dá muita satisfação. Porra, eu tenho uma produção vasta em artes visuais, com centenas de pinturas e milhares de fotografias, fiz dezenas de exposições sempre em espaços institucionais de prestígio, como funcionário público participei do reerguimento de um museu e contribuí para sua projeção nacional, e só os artigos que escrevi para a Wikipédia que foram destacados têm mais de oito milhões de leitores por ano! Isso não é pouca coisa. Mas não teria feito nada sem muita ajuda, estímulo e inspiração em vários níveis, especialmente da família, que apesar dos nossos inevitáveis conflitos de pensamento, me dá muita força em tudo. De fato, arte é apenas uma parte

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relativamente pequena de minha vida e de meus interesses, embora importante. Não obstante, eu me considero artista antes do que qualquer coisa. Quero passar alguma mensagem nesta linguagem. “Mas na verdade eu detesto a rotina e a monotonia. Se eu morasse no hemisfério norte, com aquelas florestas só de pinheiros, ou num deserto, eu adoeceria de tédio. Passei grande parte da infância fuçando no quintal de um chalezinho bucólico onde viviam os pais de minha mãe, um terreno rico em bichos e plantas diversificadas, onde sempre havia novidades. Vivo mudando a decoração da minha casa, que tem antiguidades raras misturadas a roupas largadas e lixo pelos cantos. Moro em um atelier, isso nunca fica organizado. Sou muito viajante. Percorri muitos territórios diferentes, conheci pessoas de todos os tipos, passei por muitos tipos de paisagens estéticas, respondendo a estímulos multifacetados de dentro e de fora, do passado, do presente e do futuro também. Tudo quase ao mesmo tempo. E quase o tempo todo. “Nunca vou deixar de ser um filho-família com passado ‘nobre’, que adora os acadêmicos, pois isso é parte do que sou, e até gosto demais deste meu lado, assim como dos outros, pois ele tem altos pontos positivos, mas também sou uma pessoa que vive hoje, que adora a diferença e a procura, que se fosse governo iria instituir o nudismo em larga escala, prefere a informalidade e a franqueza em todas as situações, vive de pé no chão, às vezes passa uma semana sem banho e ainda fala com as lesmas, formigas, plantas e passarinhos do seu jardim, que já virou seu trabalho de pernas para o ar buscando novos sentidos e já se meteu até com o lixo humano da sociedade, aprendendo muito e fazendo amigos. Eu não poderia deixar senão um rastro de mil formas e feições. Não há como eu ser consistente no sentido exigido por Agnaldo Farias, embora ele tenha analisado as evidências de uma maneira válida. Mas ele não relacionou a obra a um contexto nem procurou descobrir suas especificidades. Até agora Paulo Gomes e Jayme Paviani, dos que deixaram opinião publicada, captaram melhor o meu contexto, minhas possibilidades e meus resultados. Minha ‘inconsistência’ pode até retirar um pouco da força das obras individuais em geral, nem nego isso, pois o esforço sempre esteve sempre muito disperso em mil frentes que exigiam atenção, mas pelo menos o registro que deixei é honesto. Não posso deixar de ser o que sou, nem posso me isolar do mundo e dos variados meios em que vivi e deixar de lhes responder em uma linguagem que lhes fosse inteligível. Aprendi muitas linguagens estéticas. Por que eu não poderia usá-las livremente, conforme a necessidade? Além disso, o que seja uma obra de arte ‘acabada’ ou ‘perfeita’ é coisa extremamente controversa entre a crítica, os padrões se alargaram imensamente nos últimos cem anos, ainda mais em tempos mais recentes, em que se dá tanto valor ao processo de criação e à criação de significados em torno deste mesmo processo e não exclusivamente da obra final.

Formas sem nexo, nanquim sobre papel, 2002

165

“Não explico essas coisas como uma desculpa ou um desejo de impor aceitação, mas como uma informação potencialmente útil, para quem quiser saber de onde vim, já que, afinal, por bem ou por mal eu estou na vitrine, e o artista tem que dizer a que veio e se preocupar com a boa informação das pessoas a quem ele se dirige. Faço isso por um senso de profissionalismo. Minha experiência como museólogo e pesquisador me provou sem margem para dúvidas a importância do bom conhecimento dos contextos e influências para a compreensão da obra de arte, e o quão importante o estudo da arte pode ser para a mudança da sociedade, e não apenas para o conhecimento da arte em si. Pode ser uma utopia e uma pretensão, mas eu produzo arte para tornar o mundo melhor. Quando eu destruía a tradição, queria dissolver cristalizações que eu entendia como nocivas e fazer as pessoas repensarem conceitos que recebiam prontos, apontando suas contradições. Agora que eu resgato aspectos tradicionais, mais ‘domínio público’, o faço porque quero dizer claramente certas coisas que considero importantes e ter uma certeza razoável de que a mensagem vai ser claramente entendida, mas ainda com o objetivo de transformar, chamando uma atenção que estava adormecida e buscando uma resposta prática. São abordagens diferentes, mas o propósito de fazer algo que seja útil, que motive ou encante as pessoas, ou as acorde para alguma questão, se mantém. “Além dos aspectos formais e estéticos, hoje sou muito utilitarista sobre a função da arte. Acho que ela tem que devolver à sociedade de alguma maneira o seu alto custo de produção e circulação. Em uma conversa o Chico Machado me perguntou por que, afinal, eu fazia arte. Eu comecei esse retrospecto dizendo que não sabia bem. Mas de fato, é por isso. Para fazer a coisa mudar para melhor. Não que isso signifique mudar grandes coisas. Se uma pessoa ficar um pouco mais feliz ou tiver uma boa ideia por ver uma obra minha, já vai ser suficiente. O que não sei bem é se eu estou conseguindo. As respostas que eu tenho recebido são divergentes. Mas, com todo o respeito que a crítica merece, eu não vou esperar por ela para me dizer como devo fazer o meu trabalho, a não ser que ela tenha muito bons argumentos. Se eu reconheço um bom argumento, em geral mudo de ideia. Eu já mudei de ideia muitas vezes. Meu trabalho prova isso. Mas não se pode obrigar o amor, nem impor um consenso artificial, e tampouco se pode explicar logicamente a essência e o sentido de uma vida, da qual não podemos pretender ter controle absoluto ou sequer satisfatório”.

Perguntado qual seria sua declaração final à humanidade, o artista só deu de ombros e bufou um “Afe...” É uma pessoa estranha. Algumas de suas alegações parecem inverossímeis. Mas na opinião do editor suas pinturas são bonitas.

166

APÊNDICE Outras imagens Adolescência

Atelier Livre

167

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Estudos na graduação

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172

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175

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Pinturas e objetos 1992-2002

177

Paisagem residual, c. 1996, acrílica sobre poster publicitário, 30 x 45 cm. Abaixo, Gemini, acrílica sobre tela e ready-

made, c. 1994, 70 x 40 cm.

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179

180

181

182

183

184

Pinturas 2011-2014

Guarita, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

Ideias simples, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

185

Amanhecer em Utopia, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

Serrana, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

Infinito, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

186

Inclinação romântica, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm, 2011

Deserto, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm, 2011

Paisagem bêbada de amor, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

187

Nevado, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

Maná, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

Caminho para o mar, acrílica sobre tela, 300 x 150 cm, 2011

188

Estudo para Pé-de-vento, acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, 2012

Estudo para uma arara, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2011

189

Fragmento, acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, 2012

Repouso, acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, 2012

190

Sinfonia (Porto Alegre, Praça da Matriz, 2013), acrílica sobre tela, 270 x 150 cm, 2013-2014

Fresta de liberdade, acrílica sobre tela, 83x150cm, 2013

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Fotografias

Repouso, acrílica sobre tela, 300 x 145 cm, 2012 - a partir de uma foto de Brocken Inaglory/Jjron GFDL|Cc-by-sa-3.0,2.5,2.0,1.0

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Desenhos

O ilusionista, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Capricornus, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

Nolens volens, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Eros, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Virgo, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Tirésias, c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Alfa e ômega (eternidade), c. 1998-99, caneta nanquim sobre papel.

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Hubris, c. 2002-2005, caneta nanquim sobre papel.

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Guia (Prometeu), c. 1998-2005, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, A roda d’água, c. 2002-2005, caneta nanquim sobre papel.

Ad Parnassum, c. 2002-2005, caneta nanquim sobre papel. Ao lado, Corredor, c. 2002-2005, caneta nanquim sobre papel.

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IMPRENSA

Reprodução de algumas matérias mais importantes

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DOCUMENTOS

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A todos que me deram coisas para dar

MUITO OBRIGADO! (este ensaio deveria ter sido escrito na primeira pessoa do plural)

Website oficial (artes visuais)

http://ricardoandrefrantz.webnode.com.br/

Página em Academia.edu (ensaios) https://independent.academia.edu/RicardoAndr%C3%A9Frantz

SoundClick (todas as músicas)

http://www.soundclick.com/bands/default.cfm?bandID=544908

SoundCloud (músicas selecionadas) https://soundcloud.com/ricardo-andre-frantz

Curriculum vitae completo

https://independent.academia.edu/RicardoAndr%C3%A9Frantz/CurriculumVitae

Para conhecer a história de minha família:

Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História - Volume I: o lado Paterno

Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História - Volume II: o lado Materno

Crônica das famílias Longhi e Frantz e sua parentela em Caxias do Sul, Brasil: Estórias e História - Volume III: o passado na Europa