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JOGO DE CARTAS: a correspondência de escritores como fonte de pesquisas INTRODUÇÃO No campo dos estudos literários brasileiros, o uso da correspondência de escritores como fonte de pesquisa, notadamente as cartas, está em desenvolvimento. Em universidades no país, dissertações de mestrado e teses de doutorado são escritas tendo como fonte as cartas, o que resulta em uma bibliografia crescente a este respeito. Ao nosso ver, neste campo do conhecimento, as cartas tem a função de mostrar que a produção do texto literário é, assim como a própria carta, uma partilha, como a definiu Philippe Lejeune i . É uma partilha não somente porque uma carta pertence a dois sujeitos, mas porque envolve sempre vários correspondentes indiretos, no momento mesmo de sua produção, tanto da produção da carta como do texto literário. A partir das propostas de Hans Robert Jauss, sempre se pensou em um outro sujeito ligado à escrita: o leitor. Somente aos poucos, com os trabalhos de historiadores como Roger Chartier e Robert Darnton, que lidam com a literatura e a leitura, se começou a pensar nos chamados sujeitos intermediários da literatura, aos quais parece que podemos ligar os correspondentes de cartas, em especial quando um deles é também escritor de literatura de ficção. Na primeira parte deste texto, apresentaremos alguns procedimentos e observações no tratamento da correspondência de escritores como fonte de pesquisa na área dos estudos literários. Serviu-nos de base a correspondência dos escritores Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que constitui um importante conjunto epistolográfico nacional. Todos os exemplos citados foram retirados da edição organizada pelo Professor Doutor Marcos Antonio de Moraes ii . Os leitores podem acrescentar aos procedimentos aqui apresentados outros tantos que, certamente, surgirão à medida que se detiverem em conjuntos epistolográficos específicos escolhidos como fontes de pesquisa. Em um segundo momento, serão abordadas as cartas dos escritores João Antônio, Lewis Carroll e da poetisa Ana Cristina Cesar, agora, sob uma perspectiva do trabalho com o texto epistolar em si.

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JOGO DE CARTAS: a correspondência de escritores como fonte de pesquisas

INTRODUÇÃO

No campo dos estudos literários brasileiros, o uso dacorrespondência de escritores como fonte de pesquisa,notadamente as cartas, está em desenvolvimento. Emuniversidades no país, dissertações de mestrado e teses dedoutorado são escritas tendo como fonte as cartas, o queresulta em uma bibliografia crescente a este respeito. Aonosso ver, neste campo do conhecimento, as cartas tem a funçãode mostrar que a produção do texto literário é, assim como aprópria carta, uma partilha, como a definiu Philippe Lejeunei.

É uma partilha não somente porque uma carta pertence adois sujeitos, mas porque envolve sempre várioscorrespondentes indiretos, no momento mesmo de sua produção,tanto da produção da carta como do texto literário. A partirdas propostas de Hans Robert Jauss, sempre se pensou em umoutro sujeito ligado à escrita: o leitor. Somente aos poucos,com os trabalhos de historiadores como Roger Chartier e RobertDarnton, que lidam com a literatura e a leitura, se começou apensar nos chamados sujeitos intermediários da literatura, aosquais parece que podemos ligar os correspondentes de cartas,em especial quando um deles é também escritor de literatura deficção.

Na primeira parte deste texto, apresentaremos algunsprocedimentos e observações no tratamento da correspondênciade escritores como fonte de pesquisa na área dos estudosliterários. Serviu-nos de base a correspondência dosescritores Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que constituium importante conjunto epistolográfico nacional. Todos osexemplos citados foram retirados da edição organizada peloProfessor Doutor Marcos Antonio de Moraesii. Os leitores podemacrescentar aos procedimentos aqui apresentados outros tantosque, certamente, surgirão à medida que se detiverem emconjuntos epistolográficos específicos escolhidos como fontesde pesquisa.

Em um segundo momento, serão abordadas as cartas dosescritores João Antônio, Lewis Carroll e da poetisa AnaCristina Cesar, agora, sob uma perspectiva do trabalho com otexto epistolar em si.

1. ALGUNS PROCEDIMENTOS NO TRATAMENTO DA CORRESPONDÊNCIA DEESCRITORES COMO FONTE DE PESQUISA NA ÁREA DOS ESTUDOSLITERÁRIOS

1.1 A origem

No tratamento das cartas como fonte de pesquisa, é sempreimportante buscar conhecer como se deu o início da trocaepistolar, ou seja, o processo de troca de informação mediadopor cartas ou demais formas de correspondência, que podem sercartões-postais, telegramas, bilhetes. Nos dias atuais, opesquisador não deve descuidar da possibilidade de pesquisaros diversos recursos disponíveis na internet.

Este processo pode se dar por motivos profissionais,artísticos, políticos, etc. ou mesmo por afinidades íntimas.No caso aqui analisado, a correspondência de Mário de Andradee Manuel Bandeira, teve início antes da Semana de Arte Modernade 1922. A este respeito afirmou Marcos Antônio de Moraes,pesquisador da epistolografia do escritor paulista:

Os protagonistas desta correspondência, o escritorpaulista Mário de Andrade (1893 – 1945) e o poetapernambucano Manuel Bandeira (1886 – 1968)encontraram-se em 1921, no Rio de Janeiro, em casado poeta Ronald de Carvalho, na Rua Humaitá, 64.Nesse momento, Mário tinha se deslocado para aantiga capital da República a fim de divulgar opoema ‘Cenas de crianças’ e os versos de Paulicéiadesvairada, ainda em manuscrito. Tencionavaarregimentar adeptos modernistas entre osescritores cariocas. ‘Exigiu’, então, a presença deBandeira, cujos poemas de Carnaval descobriuatravés de Guilherme de Almeida em ‘uma nuncaesquecida tarde de domingo’, numa viagem de táxi.Mário queria conhecê-lo ‘fisicamente’, não por‘curiosidade’. ‘Foi para um reconhecimento’, diria emcarta de 1923, explicando-se: ‘Emprego a palavracom a sutileza dos poetas japoneses nos seushaicais. Com todas as significações e associaçõesque ela desperta. E daí em diante essereconhecimento não cessou de aumentar, florir,frutificar’.(Carta de MB, 22 maio 1923).iii

Neste sentido, Moraes afirma ainda: “A troca de cartascomeça por iniciativa de Bandeira, em maio de 1922, depois daSemana de Arte Moderna, quando oferece a Mário de Andrade umexemplar de Carnaval, editado em 1919.” E continua opesquisador: “A partir daí as páginas dessas cartastestemunham a história da amizade entre duas figuras de proado modernismo brasileiro.”iv

Diante destas afirmações, vemos que a correspondência deMário de Andrade e Manuel Bandeira está ligada pelo interesseliterário, notadamente o estabelecimento de novos parâmetrosestéticos na literatura brasileira que foi identificado comomodernismo. Assim, as cartas, além de possibilitarem umconhecimento dos assuntos referentes a esta estética e suaimplantação no Brasil, possibilita-nos conhecer os bastidoresdesta implantação. Dizemos bastidores porque, devido aodireito de privacidade, os autores e correspondentes podiamtratar abertamente de conflitos e demais circunstâncias quevivenciaram no período. Além disso, as cartas constituem umaespécie de memória da época que acreditamos ser necessárioconhecer no âmbito dos estudos literários.

1.2 Os correspondentes

Além de conhecer a origem da correspondência, cabe aopesquisador buscar descortinar os sujeitos envolvidos nela.Eles podem ser definidos em dois grupos: 1. Os envolvidosdiretamente – são os missivistas ou aqueles que se carteiam eno cartear-se assumem os papéis de remetente e destinatário.2. Os envolvidos indiretamente – são aqueles citados ao longodo conjunto das cartas e que podem variar conforme o períodoou o assunto tratado pelos missivistas.

Conhecer estes sujeitos permite ao pesquisador traçar umquadro mais amplo das relações estabelecidas entre eles e,desse modo, perceber a carta como parte de uma rede decontatos. No caso específico abordado por nós, os envolvidosdiretamente no conjunto de cartas que analisamos nestaprimeira parte são os escritores Mário de Andrade e ManuelBandeira. Os envolvidos indiretamente no conjuntoepistolográfico é imenso. Dele não fazem parte somenteescritores, como também, músicos, artistas plásticos e demaissujeitos que, de algum modo, participam do dia-a-dia de Máriode Andrade e Manuel Bandeira.

Estes dois nomes apontam para nós situações espaciais etemporais que devem ser conhecidas, como, por exemplo, aorigem dos escritores, a filiação estética, as suas relaçõescom outros escritores, etc. Não nos deteremos, aqui, emtraçar estes dados, uma vez que eles podem ser encontrados emdiversos livros. O que nos interessa neste procedimento ébuscar conhecer como estas informações também aparecem nascartas, uma vez que, a princípio, elas fazem parte de umcircuito privado, permitindo, assim, aos autores aapresentação destas informações ao seu modo. Este fatoestabelece uma outra ponte possível: a da carta com biografiaou autobiografia, uma vez que o circuito privado, pessoal eíntimo da carta permite aos autores falarem de si mesmosresguardados pelo direito à privacidade.

Segundo Marcos Antônio de Moraes, “A correspondência deescritores abre-se, normalmente, para três fecundos campos depesquisa”v um deles seria justamente o das “expressõestestemunhais”. A este respeito afirmou Moraes:

Pode-se, inicialmente, recuperar nas missivas aexpressão testemunhal. Ações, confidências,julgamentos e impressões espalhados pelacorrespondência de um escritor evidenciam umapsicologia singular que, eventualmente, desdobra-sena criação literária. É, assim, território fértilpara estudos biográficos, biografias intelectuais eperfis, dirigidos a ampla (e diversificada) gama deleitores. Entretanto, na (auto)biografia desenhadano tecido epistolar pululam contradições. A cartaatualiza-se invariavelmente como persona e discursonarcísico; a “verdade” que enuncia – a do sujeitoem determinada ocasião, movido por estratégias desedução – é datada e cambiante.vi

Assim, as cartas permitem aos seus leitores conhecer um“retrato de autor”, que fontes mais usuais não permitiriamconhecer. Este retrato é um compósito formado ao longo dacarteação. Não se trata somente de um retrato momentâneo, masde um conjunto de imagens que formariam uma espécie de retratomaior ou uma imagem de conjunto que não é o autor, mas umautor entre tantos quantos forem possíveis de ser registradospor ele, à medida que este sujeito varia conforme o seucorrespondente. Ainda que uma mesma carta seja enviada paramais de um correspondente, sempre haverá pequenas modificações

a fazer e é neste refazer da carta primeira que um novoretrato de autor se mostra.

O período:

O levantamento do período da correspondência permite aopesquisador um conhecimento do conjunto epistolar específicosubmetido à variante tempo. É importante observar se háinterrupções no período e procurar identificar os motivos, quepodem ser das mais diversas ordens. Em alguns casos estãoligados à vida pessoal dos correspondentes, motivados porviagens, trabalho, doenças, etc. Em outros são motivados pelascircunstâncias históricas e sociais, como, por exemplo, acensura ou até mesmo a prisão dos correspondentes, etc.

No caso da correspondência de Mário de Andrade e ManuelBandeira, o período compreende os anos de 1922 a 1944. O fimda correspondência se deu somente com a morte do escritorpaulista, não tendo aquela sofrido interrupções duranteperíodo referido. Em alguns anos, o número de cartas variouconforme as circunstâncias, sobretudo pessoais, doscorrespondentes. A carta aparece, desse modo, vinculada adiversos contextos: histórico, sociais, cultural, econômico epessoal.

A materialidade:

O pesquisador deve considerar também como de capitalimportância no trato da correspondência como fonte, amaterialidade das cartas, isto é, a própria corporalidade doobjeto que reconhecemos como carta ou outro tipo material decorrespondência. Desde o tamanho das cartas, o tipo de papelempregado, o tipo de envelope, a tinta. Todos estes elementosda materialidade das cartas dizem respeito às circunstânciasde sua produção e também às circunstâncias de vida doscorrespondentes. Trata-se de uma dimensão que não deve serdesconsiderada. Ela requer que o pesquisador esteja atento adetalhes e lhe impõe um trabalho de descrição importante, sejadas cartas seja das condições em que ele as “achou”. Estetrabalho descritivo constitui o que chamamos de inventáriodescritivo da correspondência, que ajuda ao pesquisador aconhecer melhor o conjunto epistolográfico pesquisado.

Neste inventário não podem faltar o registro das dimensõesdas cartas, ou melhor, a medida de cada folha utilizada para aescrita, bem como a presença de furos de grampeador, marcas deobjetos, de digitais, etc. Este registro é depositário de umconjunto de elementos que foram observados durante a leitura eo manuseio das cartas, que deve ser feito com cuidado e usandoos materiais exigidos por cada instituto ou arquivo ondeestejam depositadas as cartas. Aconselhamos, tanto para apreservação das cartas como para a preservação da saúde dopesquisador, o uso de luvas, de máscaras e touca para oscabelos, evitando que sejam contraídas infecções orais ecutâneas no manuseio do material.

Voltando à materialidade das cartas, no caso aquianalisado, encontramos em carta de Manuel Bandeira, com datade 13 de novembro de 1926, a seguinte afirmação a respeito dotipo de papel que o poeta utilizara para escrevê-la. Lemos:“Imagine que o meu bloco acabou e eu estou sem papel em casa.Por isso lancei mão do papel em que veio embrulhado o meu pão!É que não quero demorar resposta à sua carta de ontem”vii.

A respeito da tinta, encontramos em carta Manuel Bandeirade 3 de setembro de 1927 o seguinte: “Puxa! Que fita vocêarranjou pra sua máquina, suja a gente todo!”viii. Mário deAndrade não deixou por menos, respondendo ao colega em cartade 4 de outubro de 1927: “cuidado que a fita da máquinacontinua a mesma e suja a mão da gente. Imagine que atualmenteestou devendo seis contos e tanto!...”ix

Fatos supostamente simples como estes, porém merecedoresda observação dos correspondentes, levam o pesquisador decartas a dois caminhos: o primeiro seria o dos materiais deescrita, tanto do ponto de vista das condições materiais deprodução da literatura, como da existência de uma tecnologiada escrita. O segundo seria o das condições em que vivia oescritor. Observar estes fatos e suas recorrências nos levam acompreender como a literatura brasileira foi escrita, uma vezque as condições de produção das cartas eram as mesmas daliteratura.

O pesquisador deve considerar também o tipo de cartaquanto a escrita, que pode ser dividida em, no mínimo, trêscategorias: a primeira, a carta manuscrita, grafada com canetatinteiro ou esferográfica; a segunda, a carta datiloscrita,produzida, portanto a partir de uma máquina de escrever.Destas duas categorias, surge uma terceira, híbrida, pois

compreende aquelas cartas escritas à mão e à máquina, o quenormalmente indica mais de um momento de produção da missiva.Neste caso, há uma particularidade envolvendo acorrespondência de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que dizrespeito à máquina de escrever usada por Mário. A esterespeito lemos:

Manuel do coração, Comunico que comprei uma máquina. Se você estivesseaqui era um abraço pela certa, tanto que estoucontente. Já se sabe: pelo processo amável dasprestações. Engraçado, por enquanto me sinto todoatrapalhado de escrever diretamente nela. A idéiafoge com o barulhinho, me assusto, perdi o contatocom a idéia. Isso: perdi o contato com ela. Nãoapalpo ela. Mas isso passa logo, tenho a certeza eagora é que você vai receber cartas bonitas de mim.Afinal: Deus é mesmo muito bom pra mim. Porque essahistória de ‘compro-não-compro: compro’ me deu umacomoção e um interesse pra estes dias todos. Porisso não pude pensar muito nesse escandalinhoPrudente-Ronald. Senão ele muito me havia decontrariar, tenho a certeza. E agora já sabe:quinze minutos que seja de descanso, estou nafrente da Manuela batendo tipo sem parar. Manuela éo nome da máquina, por causa de você. Inventeiagorinha mesmo isso. Não refleti nem nada: ficouManuela. Assim a homenagem saiu bem do coração.x

Ao que Manuel Bandeira responde em carta de 6 de maio de1925: “Meus parabéns pela máquina! Eu também estou pra receberuma, marca Érika, último modelo. Retribuindo a homenagem, vouchamá-la... como mesmo? Mariana ou Maroquinhas? Você é opadrinho, escolha.”xi. Mário de Andrade voltou ao assunto, emcarta de 11 de maio de 1925, em que lemos:

Vou aproveitar meiorinha pra ver se converso umpouco com você. Quanto ao nome da sua máquina-de-escrever, nesse caso o diminutivo fica mal. Façaque nem eu, arranje um nome grandão, Mariona, porexemplo, Tenho um fraco pela palavra Mariona. Nãosei se é por causa da criada de minha tia que, cápra nós, vale bem a pena. Porém, refletindo bem, meparece que não é. Eu bem sei dessa historiadaorgulhosa de que o homem domina a maquinaria,

criaturas dele. Minha impressão é diversa. Sem tero preconceito moderno da máquina, vejo bem tudo oque ela organiza a vida do homem e o transforma.Eu, que lido muito pouco com máquinas, me sintodominado por elas. A minha máquina-de-escrever medomina, é mais grande, é mais forte do que eu. Porisso que botei Manuela e não Manuelina ouportugamente Manuelinha. Ela me dá a sensação deque tenho junto de mim uma grande mulher bondosa,ticianesca de tão grande que é, porémticianescamente boa também. Me serve, me ajuda, mefacilita sempre, cuidadosa de mim, com umapaciência! Você nem imagina a paciência que ela temcomigo. O mais engraçado é que, embora de vez emquando ela tenha seus engasgamentos, não tenho aromântica impressão dum capricho feminino ou deoutras coisas proustianamente assim, não. Quandoela se engasga, boto a culpa na fatalidade, nadeficiência dos homens que não sabem ainda criarmáquinas infalíveis. Minha máquina é só boa pramim.xii

Tratar dos objetos de escrita faz com que a pensemos comouma atividade histórica, mediada pelos objetos quepossibilitam a sua produção. Pela leitura dos excertos,podemos concluir que, a princípio, Mário de Andrade nãoescrevia à máquina, talvez à caneta, que permitia um contatomais íntimo com a superfície do papel, como que fixando deforma manuscrita suas idéias. Não nos parece por acaso,portanto, que MA diga que perdia as idéias ao escreverdiretamente na sua Manuela. O ato de nomear a máquina é,possivelmente, uma outra forma de diminuir o estranhamentoprovocado pelo fato de lidar com ela. Estes exemplos deixamclaro, portanto, que, muitas vezes, os autores trazem para assuas cartas e também para as suas obras a relação queestabelecem com os seus objetos de escrita.

Os anexos:

Assim como hoje temos o hábito de anexar arquivos nos e-mails que escrevemos e enviamos, o mesmo se dava com ascartas. Não raro, juntamente com as cartas, eram enviadasfotografia, artigos recortados de jornais e revistas, livros,etc.

Nas cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira há sempreum pedido pra um envie uma foto ao outro, o que podesignificar uma necessidade de ver o correspondente, ainda queambos se conhecessem, pois já haviam se encontrado no Rio deJaneiro. Assim, além de se lerem precisavam se ver – algo que,aliás, muito usual nos ambientes de redes de relacionamentocomo o orkut e o facebook, isso para usarmos um exemplo dos diasde hoje. Além da necessidade pessoal dos correspondentes, afotografia e, mais especificamente o retrato, era também usadopara divulgar a obra dos autores.

Como afirmamos anteriormente, juntamente com as cartaseram enviados livros, o que podemos constatar numa carta de 25de maio de 1922:

Mando-lhe alguns exemplares do Carnaval a seremdistribuídos aí entre pessoas de mau gosto e boainteligência, capazes de sentir que aquelas rimasbonitas são pura ironia e o “Debussy” – laboriosa evoluptuosa manipulação de alquimia subjetiva, comincalculável arsenal de subentendidosimponderáveis. Vai um exemplar com o meu nome e aminha admiração afetuosa para você.xiii

Divulgação e afeto fazem parte do tratamento que oscorrespondentes se dão na constituição de uma “rede decomunicação”, para usarmos aqui uma expressão bem em voga nosdias de hoje. Por meio das cartas e seus anexos, notadamenteos livros enviados, os correspondentes iam divulgado as suasobras em outros estados e cidades, alcançando, desse modo,leitores em outras praças do país. Estes envios de livros epedidos de distribuição entre os leitores conhecidos de um doscorrespondentes se multiplica ao longo da correspondência deMário de Andrade e Manuel Bandeira. No período que analisamos,ou seja, de 1922 a 1930, Mário e Manuel atuam comodivulgadores, um da obra do outro, nas duas mais importantescidades do país: Rio de Janeiro e São Paulo.

À medida que a amizade e a intimidade entre eles vão-seestreitando, os pedidos de divulgação se ampliam. Quanto maissão amigos, mais divulgavam a obra um do outro. É importantepara o pesquisador buscar conhecer essa dimensão da trocaepistolar entre autores, uma vez que isto permite enxergar asua evolução. No caso de Mário e Bandeira, por exemplo, ascartas que, a princípio, eram bastante formais vão dando

braços à amizade fraterna e à troca de confidências intimas.Um bom modo de perceber esta evolução é conhecer a forma comose tratavam, o que veremos a seguir.

As formas de tratamento:

A princípio, o tratamento dos correspondentes é bemformal. Na primeira carta de Manuel para Mário, o colegapaulista é chamado somente de “Mario de Andrade” e a carta foiassinada com um “Manuel”. O tratamento é direto, simples eobjetivo, o que se repete na resposta a esta primeira carta doescritor pernambucano. Somente na carta de outubro de 1922,Mário de Andrade diz “Querido Manuel” e Manuel manteve-se umtanto formal chamando o seu correspondente de “Meu caroMário”, em carta de 8 de outubro de 1922. E assim se mantémpor muito tempo. Em carta de novembro de 1924, aparece umanovidade na forma de tratamento: um “Marioscumque”, que oprofessor Marcos Antônio de Moraes, explicou da seguinteforma:

Cumque’, advérbio latino que se liga a pronomesrelativos, podendo ser traduzidos por ‘em todos oscasos’, ‘em qualquer circunstância’. ‘Marioscumque’trata-se possivelmente de forma lúdica paraeliminar os preâmbulos epistolares com sentidopróximo a ‘Mário, como quer que estejas’. Em outraperspectiva, esse neologismo e ‘Mariusque’, tambémusado nesta correspondência, podem ser apenasbrincadeiras calcadas no Latim. xiv

Em carta de 31 de maio de 1925 aparece um “Manuel dear”.Em um PS de missiva datada de 10 de outubro de 1925, ManuelBandeira diz: “Manuel dear é estupendo.” E, em outra datada deS. João de 1925, aparece um “Manelucho”.

Em carta de 4 de outubro de 1925 aparece: “Manueluchodear” Em 19 de agosto de 1925 aparece um “Mario trabalhador” eem carta do mesmo ano aparece um “Mário ocupadíssimo”. Em 9 desetembro de 1925, Manuel Bandeira assina-se como Maneco. E em7 de outubro de 1925 apareceu, pela primeira vez, um Manu emcarta de Mário de Andrade.

Em 18 de abril de 1925 apareceu “Manuel do coração”. Emcarta de 27 de agosto de 1926 aparece um “Mano Manu”. Naprimeira carta de 1927, Manuel Bandeira chama Mário de Andrade

de Marião: “Bons anos, Marião.”, que se repete na carta de 5de março do mesmo ano.

O que queremos mostrar com estes fatos, é que a amizadeentre os correspondentes foi evoluindo para a intimidade. Oformalismo inicial foi sendo, aos poucos, quebrado. Essaintimidade pode ser também constatada no trato de algunsassuntos pessoais, como, por exemplo, as finanças, os amores eas doenças. Vejamos um exemplo em missiva de Mário de Andradecom data de 10 de outubro de 1926:

Manu,estou escrevendo pra você e esta é a primeira cartade verdade que escrevo depois de creio que já ummês. Neste momento de agora estou me sentindo bemdisposto porém por enquanto inda levo em geral umavida sem vontade cheia de dores, de sustos esobretudo de irritações. Tive péssima idéia defazer a minha operação com injeção raquidiana e adiaba não é que me esculhambou duma vez com osistema nervoso! Esculhambou! Passo as noites quasenão dormindo nada e os dias inquietos cansado e sempossibilidade nenhuma pro menor trabalhointelectual. Dou umas aulas completamente bestasque é dinheiro roubado das alunas, porém careçorefazer as minhas finanças completamentedesnorteadas. Creio que sem menos de dois meses nãoreprincipio a vida financeira normal, uma merda!Quanto à vida de mim inteirinho, creio mesmo que só

i “La lettre, par définition, est un partage”. LEJEUNE, Philippe. Pour l’autobiographie: chroniques. Paris: Seuil, 1998. p. 98.ii MORAES, Marcos Antonio de. (Org.). Correspondência de Mário de Andrade e ManuelBandeira. 2. ed. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidadede São Paulo, 2001.iii Idem, p. 13 – 14.iv Idem, p. 14.v MORAES, Marcos Antonio de. “Edição da correspondência reunida de Mário de Andrade: históricos e alguns pressupostos.” In: Patrimônio e Memória. Unesp, FCLAs, CEDAP, v.4, n. 2, p. 1 – 14 – jun. 2009. p. 2.viIdem, p. 2 – 3. vii Idem, p. 326.viii Idem, p. 354.ix Idem.x Idem, p. 200 – 201.xi Idem, 204.xii Idem, 210.xiii Idem, p. 60.xiv Idem, p. 153

com as férias e uns quarenta dias de fazenda é queme retomarei inteiramente do deserto vizinho damorte em que vim parar. Afinal a minha operação nãofoi de morte, foram umas filhas-da... dehemorróidas que careci tirar da noite pro diaporque não agüentava mais viver sem gosto.xv

A evolução da amizade e da confiança mútua não significaque a amizade não seja, em alguns momentos, posta em dúvida. Opesquisador, assim como deve observar a materialidade dascartas, deve observar também a sentimentalidade que os seusautores registraram nelas. A carta é uma teia de elementosmateriais e sentimentais a que devemos estar atento, podendoutilizá-las como fonte de hipóteses, problematizações e teses.Acreditamos também que é importante produzir um inventário dossentimentos, relacionando com as variantes tempo e espaço, oque são significa somente tempo e espaço físico, mas,sobretudo, tempo e espaços como instâncias sociais.

Não deixam de estar registrados nas cartas, as dores, osódios, as incertezas, os sentimentos de inveja, de desprezo,etc. Não cabe, no entanto, uma abordagem judicativa dopesquisador ao se deparar com estes registros. Há sempre quese pensar e se buscar uma ética no tratamento da fonte, emespecial no tratamento da carta como fonte. E pensar em éticae mais ainda em utilizá-la é sempre um desafio para opesquisador, sobretudo, se o seu conjunto epistolográficoenvolve polêmicas pessoais ou sociais.

O pacto de privacidade:

As cartas estão submetidas a tratamento especial, no quediz respeito ao seu acesso como fonte de pesquisa. Mesmo as deautores, foram escritas para circular em um sistema privado eíntimo relativo somente aos correspondentes. Trata-se do pactode privacidade que deve ser mantido entre as partes envolvidasdiretamente na carteação.

Tanto o pacto de privacidade como o direito à privacidadegarantiram que nas cartas os escritores fizessem afirmaçõesque jamais fariam em público. Por isso, a entrada de umterceiro, seja ele um pesquisador ou um leitor fora destecircuito íntimo, leva a carta para o espaço público, domíniono qual as intimidades serão expostas.xv Idem, p. 313

Ao dedicar-se à pesquisa com cartas, o pesquisador deveprocurar informar-se das condições de acesso a elas, o quevaria de instituto para instituto, de arquivo para arquivoonde as cartas estejam depositadas em um determinado fundo deescritor.

Há, sobretudo quando se trata de cartas depositadas eminstitutos ou arquivos públicos uma batalha entre o direito àprivacidade e o direito à informação. O direito à privacidadeé guardado por lei, no entanto, o fato do Estado prover aguarda e a manutenção em bom estado de conservação do acervocausa estranhamento diante do fato de algumas famílias ouherdeiros de escritores manterem alguma gerência sobre elas,impossibilitando que trechos de cartas sejam publicados,inviabilizando projetos de pesquisa e publicação de obras.

Este é um fato bastante delicado que, pouco a pouco, vaisendo discutido por membros da comunidade acadêmica, sobretudoquando as cartas estão depositadas em universidade e demaisinstituições públicas.

Quando ainda estão nas mãos de seus proprietáriosoriginais, estes também podem, nas próprias cartas, queixarem-se da quebra do pacto de privacidade no conteúdo das mesmas.Foi o que constatamos em duas missivas no conjunto dacorrespondência de Mário de Andrade e de Manuel Bandeira.

A primeira ocorrência se deu em 3 de maio de 1926, deMário para Manuel, em que lemos: “O que você não tem direito éde revelar estas coisas a ninguém nem às pessoas de que setrata.”xvi. A segunda, em uma de Manuel para Mário, respostadaquela, em que lemos: “Recebi a sua carta de 3, acerca daqual guardarei a inteira reserva que me pede.”xvii

A violação das cartas por terceiros:

Além da quebra do pacto de privacidade entre oscorrespondentes, o pesquisador deve buscar saber se houve noconjunto de cartas pesquisado a violação por parte deterceiros. Esta violação pode ser motivo da escrita de umacarta ou tratada como um dos assuntos entre os carteadores,como observamos em missiva de Manuel Bandeira, datada de 12 deagosto de 1926:

xvi Idem, p. 291xvii Idem, p. 292.

Agora um pedacinho de história antiga. Lembra-se deuma carta que você me escreveu quando publiquei umartiguinho mexendo com vocês? Alegando desconhecero meu endereço certo, você remeteu a carta porintermédio do Guilherme [de Almeida]. Este aoentregá-la declarou frisantemente não a ter lido,no que não acreditei e que não dei importância.Pois bem, anteontem encontrei uma pessoa a quem oGuilherme leu a carta! E a leitura não foi só paraele – foi para um grupo!!Sem comentário...xviii

A privacidade, ou a quebra da privacidade, bem como aviolação da correspondência também fazem parte deste jogo decartas que é a troca epistolar. São, enfim, elementos quesempre devem ser analisados e que devem colaborar na leiturade um conjunto epistolográfico. Até aqui, destacamos aqueleselementos materiais e sentimentais ligados à pesquisa arespeito das cartas que consideramos como importantes. Apartir de agora, a leitura proposta segue outro viés, uma vezque lida com o texto buscando, em sua construção, elementosque se ligam ao próprio fazer literário dos autores.

2 CARTAS LITERÁRIAS

Nesta segunda parte do trabalho, analisaremos acorrespondência de três escritores cujas produções literáriasdiferem bastante entre si, mas que, contudo, no que dizrespeito à escrita de cartas, apresentam traços semelhantes,especialmente quanto ao tratamento estilístico dado ao textoepistolar. Trata-se de João Antônio, Ana Cristina Cesar eLewis Carroll.

O que teriam em comum autores tão diferentes, distanciadospelo tempo e/ou por seus projetos literários, em certa medida,antagônicos? Para além de debates mais aprofundados sobre aobra de cada um deles, o modo de pensar a carta e a funçãodesempenhada por ela em suas obras poderia ser uma primeiraresposta.

A carta, portanto – que é, em primeira instância, umobjeto que busca a aproximação de sujeitos distanciados –

xviii Idem, p. 303 – 304.

surge, aqui, mais uma vez, como minimizadora de distâncias,possibilitando o diálogo entre autores-obras afastados porcircunstâncias diversas.

Neste tópico, a carta será apresentada em seu aspectotextual. Faremos, portanto, análises voltadas para a questãodo “estilo epistolar” de cada um dos autores, procurandomostrar possíveis aproximações.

2.1 João Antônio: escritor de realidades

Em primeiro lugar, trataremos de parte da correspondênciado escritor João Antônio (1937-1996), cuja obra misturalirismo à preocupação com as realidades brasileiras.Interessado em levar para a literatura o indivíduo simples,muitas vezes colocado à margem, o autor acabou sendoidentificado como intérprete da marginalidade, sobretudodaquelas oriundas das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,as duas metrópoles onde João Antônio viveu grande parte davida.

Esta associação direta entre o nome do autor e o estratosocial preponderante em sua obra, fez com que outros aspectosde sua produção artística fossem deixados de lado. Contudo,após a morte do escritor, que ocasionaria a cessão de seuacervo literário para pesquisa – sob a guarda do CEDAP/UNESP-Assis – houve um redirecionamento crítico, possibilitado pelocontato direto dos pesquisadores, por meio do Acervo, com asvárias faces da produção joãoantoniana. Em tese defendida noano de 2006, por exemplo, a pesquisadora Jane C. Pereiraxix, umadas primeiras a trabalhar com a fortuna crítica do contista,busca demonstrar o lirismo presente naquele que é consideradoum dos livros mais importantes de João Antônio: Malagueta, Perus eBacanaço.

Esta guinada na crítica fez com que fosse possível, porexemplo, pensar a correspondência de João Antônio sob diversosprismas, levando em conta os aspectos materiais, que dizemrespeito ao tratamento físico que o autor e seuscorrespondentes deram às cartas, mas também pensar estascartas inseridas em um projeto literário mais amplo.

É nesta perspectiva de diálogo com os pesquisadores doAcervo João Antônio que apresentaremos aqui alguns dos

xix PEREIRA, Jane Christina. A poesia de Malagueta, Perus e Bacanaço. Tese (doutorado) Assis: UNESP, 2006.

procedimentos de trabalho com a carta, sendo que, neste caso,temos não apenas as missivas publicadas, conforme os exemplosdados nos tópicos anteriores, mas também parte delas inéditas,o que, portanto, amplifica a responsabilidade do pesquisador,uma vez que estão em cena documentos originais.

Antes de entrar no aspecto da literariedade da carta, valea pena pensar um pouco sobre a questão do trabalho com estedocumento em seu “estado bruto”. Em primeiro lugar, há aquestão legal. Para que seja desenvolvida qualquer pesquisacom cartas, é preciso que o(s) correspondente(s) esteja(m) deacordo. Por conta disso, abordaremos aqui apenas uma, dasmuitas correspondências inéditas de João Antônio. Trata-se daColeção Jácomo Mandatto, manancial de documentos que recebeu onome do seu doadorxx.

São muitos os aspectos materiais que chamam a atençãonesta correspondência. Para começar, há algumas curiosidadesem relação ao tipo de papel utilizado pelos autores, assimcomo no caso de Mário e Manuel, abordado acima. Conforme podeser observado em outras áreas de seu Acervo, João Antôniotinha o costume de usar maços de cigarro vazios para fazerblocos de papel, onde catalogava termos novos da gíria oulistava frases curiosas que tinha ouvido em suas andanças. Eneste sentido, também as cartas dão conta de procedimentosemelhante. Em muitas delas, o escritor faz uso dos maços decigarro para acrescentar bilhetes, que, em geral, eram coladosàs cartas à guisa de apêndice.

A escolha deste suporte representa mais do que uma simplespropensão do escritor à reciclagem ou reaproveitamento depapel. Dado o imaginário em torno do seu nome, a inserçãodeste tipo de material, seja nas cartas, seja em várias outraspartes do seu arquivo pessoal, indicam uma postura deafirmação de valores, certamente ligados à boêmia e à tensãoentre “norma e conduta”xxi.

Além dos maços de cigarro colocados como apêndice,encontramos na Coleção Jácomo Mandatto cartas escritas empapéis velhos, que em geral trazem alguma explicação do autor.João Antônio, em dados momentos, diz ao amigo que estas cartasxx Maiores informações ver: SILVA, Telma Maciel da. Posta-restante: um estudo sobre a correspondência do escritor João Antônio. Tese (Doutorado). Assis: UNESP, 2009.xxi Sobre esta tensão entre “norma e conduta” na obra de João Antônio ver MARTIN, Vima Lia. Literatura e marginalidade: Um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. São Paulo: Alameda, 2008.

simbolizam, de certa maneira, o seu gosto pelas coisasantigas.

Há, ainda, momentos em que a carta vem escrita em papelvegetal ou de seda, tornando-se ainda mais vulnerável aotempo. Por que motivo um escritor obcecado pela manutenção desua memória pessoal escreveria neste tipo de papel? Certamenteesta é uma questão que não tem resposta, ou pelo menos não temapenas uma resposta. Como isso acontece, nas cartas aMandatto, somente no começo da carreira, pode-se pensar quenaquele momento o escritor ainda não estava tão preocupado coma posteridade. É possível, ainda, associar esta atitude aoconteúdo da carta, como no caso em que a missiva viria a serpublicada como conto. Portanto, um conteúdo nobre mereceriapapel também nobre. É claro que ficamos apenas no terreno dashipóteses, mas, seja uma coisa ou outra, o suporte materialdas cartas acabam por dizer muito de seus autores eacrescentam significado ao conteúdo de suas correspondências.

No que diz respeito aos temas tratados por João Antônio eJácomo Mandatto, uma troca epistolar que alcança mais de trêsdécadas, certamente oferecerá uma variada gama de temas. Destaforma, não nos será possível aqui – e nem é este o objetivo dotrabalho ora apresentado – passar por todos eles. Por isso,faremos algumas indicações de possibilidades de leitura, tendoem vista a natureza do corpus e a sua extensão.

Conforme anunciamos neste tópico, o tema a ser tratadoadiante é a aproximação possível entre carta e literatura.Nesse sentido, é também abundante o número de exemplospropiciados por esta correspondência – entre Mandatto e JoãoAntônio – bem como pelas de Ana C. (mais especificamenteaquela publicada sobre o título de Correspondência incompleta), e ade Lewis Carroll (cuja coletânea se intitula Carta às suasamiguinhas).

Em João Antônio, salta aos olhos a consciência daposteridade, que vem acompanhada por uma espécie de obsessãopor qualquer elemento relacionado à sua obra. Esta consciênciade que suas coisas serão importantes depois de sua morte é,segundo nosso ponto de vista, essencial para o modo como foise formando esta troca epistolar com Jácomo Mandatto. É ela,portanto, quem faz das cartas um objeto precioso, designando-as a uma função mais nobre do que a simples troca deinformações de um dia-a-dia que o tempo descolorirá, como nacanção de Toquinho.

Nestas cartas, o escritor tratou de pintar as emoções e odia-a-dia com cores fortes – vibrantes e resistentes ao tempo– do trabalho rigoroso com a linguagem. Ainda que os fatostenham sido descoloridos, as palavras se mantiveram pulsantes,como organismos vivos que são.

Desta forma, as cartas trocadas entre os amigos se tornamdocumentos ambíguos; de uma natureza privada, como é o feitiode (quase) todas as cartas, mas também públicos, como é danatureza de toda a Literatura. Esta escrita literária de quetemos falado aqui se apresenta de várias formas, em muitasdelas, é possível enxergar um diálogo entre esta práticadiscursiva e a obra ficcional de João Antônio.

Um bom exemplo disso é a maneira como alguns temasaparecem na correspondência. Nesse sentido, a morte é umaquestão que surgirá constantemente nas cartas, ora motivadapor fatos, ora por leituras que tratam do assunto, provocandolongos diálogos e discussões. Em geral, nestes momentos, alinguagem muda, adaptando-se à densidade do mote.

Vale citar um trecho em que há um trabalho apurado com alinguagem, apesar de parecer apenas transposição direta dafala das ruas. Trata-se de carta enviada por João Antônio emjulho de 1981. Nela, o escritor pede que o amigo cuide de suacorrespondência após sua morte: “Se eu pifar de uma hora paraa outra e me apagar, bater com as dez e for conduzido àchácara dos pés juntos, você sabe: fica incumbido de organizara minha correspondência e publicar, se interessar”.

Aqui, o tema é posto, aparentemente, de forma objetiva.Não fosse a enumeração de ditos populares acerca da morte –“Se eu pifar de uma hora para a outra e me apagar, bater comas dez e for conduzido à chácara dos pés juntos” (grifos meus)–, o pedido apareceria seco. Tal enumeração de eufemismosremete-nos ao poema “Consoada”, de Manuel Bandeira, em que “aindesejada das gentes” nunca é nomeada, como se o fato deocultar seu nome fosse capaz de evitar a sua vinda. Assim, oprocedimento de João Antônio, além de dar maior dinamismo àfrase, por meio do ritmo acelerado, deixa a constatação acercada morte um tanto mais “leve”, “palatável”, tornando o assuntoquase um chiste. Somado a tudo isso, está ainda o fator damemória, uma vez que, ao fazer uso de termos do imagináriopopular, o autor, de certo modo, os mantém vivos e lhesempresta certo frescor.

Do mesmo modo, assuntos relacionados à vida sexual doscorrespondentes oferecem alterações na narrativa das missivas.Nestes momentos, eles empregam um tom performático, que beiraa anedota. Vejamos uma carta do ano de 1977:

Não economizei dinheiro, nem esperma. Dei duas entradas em sanatório, remexi muitosempregos e até o momento não peguei cadeia. Trepeio que pude, bebi outro tanto, viajei um pouco(minha grana sempre foi curta) sempre a trabalho.Casado e pai, descasado, casado de novo, hoje tenhouma bandeira: “Mulher, mulheres”. O resto sãomulheres.

Há, nesse parágrafo, um matiz bastante literário. Como emtodos os seus textos auto-referenciais, o autor “contavantagens” às avessas, associando “vitórias” e “derrotas” deum modo que lembra, mais uma vez, qualquer uma de suaspersonagens retiradas do submundo. Assim, dez anos sãocolocados dentro de um trecho diminuto e dão conta dasvivências mais importantes do autor naquele período.

Estes são apenas alguns dos exemplos das possibilidades detrato com a linguagem que as cartas de João Antônio a Mandattooferecem. A carta é, para o autor, mais um suporte no qual sepode fazer literatura. Neste sentido, a produção do contistade Malagueta, Perus e Bacanaço dialoga com a da poetisa carioca AnaCristina César, conforme veremos adiante.

2.2. Ana Cristina César: as várias faces de umacorrespondência

Em uma carta de meados de 1977, direcionada a Maria

Cecília Londres, Ana Cristina Cesar fala sobre sua busca pelasobras completas de Lima Barreto, esgotadas à época, eaconselha a sua correspondente a procurar uma das poucaspessoas que certamente teriam “todos os livros” do autor deTriste fim de Policarpo Quaresma: “Você tem que entrar em contato com omaior fã do Lima no Brasil, que é o (chato) João Antônio”xxii.

xxii FREITAS FILHO, Armando, HOLANDA, Heloísa Buarque de (orgs). Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1999. (p.152)

Em outra missiva datada de abril deste mesmo ano, agoraenviada a Maria Clara Alvim, é possível encontrar outrareferência ao contista paulistano. Desta vez, não se trata deuma citação direta, como no caso anterior, mas de uma críticaao projeto Malditos Escritores!, cuja direção naquele momento cabiaa João Antônio: “Já tenho idéia de escrever sobre os Malditosescritores! e sua relação com a ideologia romântica-nacionalista-localista, sobre a qual fiz um trabalho legal para onivelamento”xxiii.

Estes dois pequenos exemplos já dão a dimensão de como asconcepções artísticas de Ana C. e João Antônio são distintas.Contemporâneos, ambos vivenciaram a produção literáriavisceralmente, mas cada qual buscando bases distintas parasuas obras. Pode-se dizer ainda que ambos experimentaram a“marginalidade”; ela, vista como parte da geração do“desbunde”, dos poetas de “mimeógrafo”; ele, por seu turno,tido como freqüentador do baixo-meretrício e das rodas desinuca, orgulhando-se sempre de ter trazido a arraia miúdapara as altas literaturas.

Contudo, se é difícil encontrar em suas obras e projetosliterários alguma pedra de toque, no que concerne àepistolografia, são muitas as semelhanças. No prefácio dolivro Correspondência incompleta, de onde foram tirados os exemploscitados, Armando Freitas Filho fala sobre a prática epistolarde Ana Cristina:

Em certas cartas e cartões temos a sensação de que,se suprimíssemos o destinatário e o remetente,estaríamos lendo alguns de seus poemas, se nãoacabados, pelo menos ensaiados, que mais tardevamos encontrar em seus livros, como emCorrespondência completa, de 1979, constituído por umacarta única.xxiv

Esta é uma afirmativa possível também em relação àcorrespondência de João Antônio com Jacomo Mandatto. Ascartas, portanto, se tornam um elemento de aproximação entreos dois autores. Além deste aspecto mais formal, há ainda otemário: ambos tratam, em parte significativa de suasmissivas, de suas relações com a literatura e, paralelamente aisso, da constituição de suas obras.

xxiii Idem, p. 27.xxiv Idem, p.09.

Há, obviamente, uma mudança de tom de um para outro, masno que têm de essencial, as cartas dos dois são reveladoras desemelhanças. Como vimos, João Antônio utiliza elementos daobra, nas cartas; procedimento igualmente usado por Ana C.Talvez, na poetisa, tais práticas sejam levadas muito mais afundo, dada a complexidade da dialética sinceridade xfingimento proposta por sua obra ficcional, ela própria feitaa partir de textos da chamada escrita de si, de que é exemploa(s) narrativa(s) de “Luvas de pelica”, isso para ficarapenas em um conjunto de textos emblemático.

Nas cartas “verdadeiras”, ou seja, nestas que compõem olivro Correspondência incompleta, ela fala mais de uma vez daambigüidade que enxerga na prática epistolar. Neste sentido, oexcerto a seguir – trecho de uma missiva enviada a Ana CândidaPerez – é bastante curioso, uma vez que a autora discute aescrita de cartas, deixando claro que está fazendo literatura.Vejamos:

Você grila de receber cartas datilografadas? Euacho legal porque bato rápido e não tenho muitotempo de pensar, sai quase como um papo. É claroque estou sabendo da pouquíssima falta de inocênciade uma carta. Mas os papos também não sãoinocentes. Meu Deus, o que eu estou falando! Temtambém o lado tátil: é gostoso baterdespreocupadamente, os dedos tocando, batendo,stroking. O que me inspirou sentar a esta hora e teescrever do meio deste calor foi um pensamentosúbito: (aqui eu finalmente engasguei e parou otictac ritmado)dou um espaço para lembrar o tempo

o pensamento de que cada próxima relação ficaenriquecida pela anterior, fica mais livre.

(não estou conseguindo desenvolver. É engraçadocomo os engasgos, por escrito, ficam mais grilantese patentes do que num papo.)xxv

Ana Cristina César mescla neste estudo sobre a sua escrita

epistolar uma série de expedientes de seu trabalho poético. Oque era uma carta prosaica se transforma em poema, pra depoisse transformar em estudo e novamente voltar ao poema, sem,contudo, deixar de ser uma carta. Em texto breve sobre suaxxv Idem, p.238-39

correspondência com a poetisa, Heloisa Buarque de Holanda(1999) afirma que uma das grandes questões sobre a sua obra éa do interlocutor:

Não será à toa que a questão que sua escrita aindahoje levanta é a questão do interlocutor, de seudestinatário. Para quem Ana escrevia? Ou para sermais correta: quem escrevia, quando Ana C.escrevia? Uma pergunta que se conseguiu manter emaberto através de toda a sua obra. Essa, sua grandeexpertise.xxvi

A obsessão de Ana C. pelas cartas ultrapassa, portanto, olimite de sua correspondência, fazendo com que também seustextos ficcionais busquem o diálogo com um destinatáriomaterializado na figura de um leitor de cartas ou de diárioíntimo. Em A teus pés, o eu lírico de um poema sem títuloconfessa: “A intimidade era teatro”, e um pouco adiante,lamenta: “As cartas, quando chegavam, certos silêncios, nuncamais”.

Além destes momentos em que a carta é o tema da própriacarta ou do poema, há ainda muitos outros em que o tom poéticoda obra impregna a correspondência. Uma missiva dos primeirosdias de 1980, escrita para Heloísa Buarque de Holanda, é umbom exemplo de como a escritora misturava elementosbiográficos a traços constitutivos de sua poesia.

Helô, querida,O turismo está me deixando anônima. O natal, comsuas maldições, passou, enfim. Sonhei que o Marcosme trocava pela Carolina e eu espumava de raiva eperda e tal. Descubro a malignidade de certasfreiras, horror. Acabo a década em Florença com otal Giovani, que não pode furar outra vez. Leio olivro de Gabeira nas noites de convento. É lindo,triste, cheio de japoneses, aqui na pedra fria naPraça de São Pedro.xxvii

Aqui, uma viagem a Florença é narrada de maneira sumária,com frases curtas que trazem informações diversas sobre asimpressões da poetisa (ou do eu lírico). A estrutura é a mesmade seus textos curtos de “Cenas de Abril”, que traz poemasxxvi Idem, p. 300.xxvii Idem, p. 85.

disfarçados de diário. Impressões de leituras são adensadaspela atmosfera da cidade. No último período os adjetivoscondensam ainda mais toda a “experiência” descrita ao longo dopequeno parágrafo e o texto termina com palavras, cujarepetição das letras “p”, “d” e “r”, parecem mimetizar adureza poética da paisagem.

Sempre “fiel aos acontecimentos biográficos”, conformeanuncia no segundo poema de A teus pés, Ana C. construiu uma obraque brinca (a sério) com os gêneros da escrita íntima.Contudo, há uma ambivalência no texto, sempre deixando clara apresença de uma teatralidade, construída pelo labor com apalavra. Ao leitor, correspondente acidental ou espião dasfolhas de um diário alheio, resta a sensação ambígua deproximidade e afastamento, como os dois lados de uma moeda, oupara usar uma imagem da própria escritora, os dois lados de umcartão postal:

Cartões postais escolhidos dedo a dedo.No verso: atenção, estás falando para mim, sou eu que estou aqui, deste lado, como ummarinheiro na ponta escura do cais.xxviii

2.3 Lewis Carroll: cartas-brinquedo

Outro caso paradigmático de produção epistolar é oescritor inglês Charles Dogson, a quem conhecemos sob opseudônimo de Lewis Carroll. O autor de Alice no país das maravilhas,um dos livros mais vendidos em todo o mundo, cultivou ocostume de escrever cartas às suas fãs. No mesmo estilo nonsensede sua mais famosa obra, as cartas, ora assinadas por Carrollora por Dogson, “podem ser lidas como episódios soltos,independentes, de suas obras principais”, conforme palavras deCarlito Azevedo colocadas na orelha da edição brasileira,intitulada Cartas às suas amiguinhas.

E ler a compilação das cartas de Carroll é realmentefazer uma viagem por seu estilo literário. Em algumas delas,inclusive, ele brinca com a questão da sua dupla assinatura.Vejamos um exemplo:

xxviii CÉSAR, Ana Cristina. A teus pés. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, sd. (p.51)

Tenho um recado que um de meus amigos mandou paravocê. Trata-se de Mr. Lewis Carroll, que é umescritor meio esquisito, um pouco inclinado aescrever histórias sem pé nem cabeça. Ele me disseque você um dia lhe havia pedido para escreveroutro livro parecido com o que ele havia escrito ecujo nome esqueci. Acho que havia nisso um pouco de“malícia”.[...]Nesse instante suas lágrimas começaram a cair sobremim como chuva (esqueci de dizer que ele me falavada janela do último andar de sua casa), e eu jáestava todo ensopado quando gritei:- Pare com isso imediatamente ou não darei nenhumrecado!xxix

Interessa notar, entretanto, que cada uma das cartasconstantes no volume apresenta características do gêneroepistolar, não sendo somente um texto literário enviado pelocorreio. Além do diálogo com um interlocutor, encontraremosainda em todas elas um cabeçalho, com data e local de envio,seguido de uma saudação à destinatária. Dessa forma, temos,sim, um texto literário que dialoga com a produção ficcionaldo autor, mas temos também uma carta, direcionada a alguémespecífico.

No texto que abre a edição brasileira de Cartas às suasamiguinhas, o tradutor Newton Paulo Teixeira dos Santos fazalguns comentários sobre a importância destas cartas paraCarroll: “Não creio que ele fizesse questão de que fossemrespondidas; ele escrevia cartas como quem dava presentes noNatal, nos aniversários ou sem razão específica. Era um jogoliterário e lúdico com o qual ele se satisfazia”xxx.

Neste “jogo literário” que o autor estabelecia com suascorrespondentes, tal como vimos nos casos de João Antônio eAna Cristina Cesar, há uma retomada incessante de elementos daobra ficcional. Assim, as “amiguinhas” se tornam espectadorase, ao mesmo tempo, participantes de novos episódios, autônomose aparentemente despretensiosos, da produção do autor.

A carta, para o escritor de Alice no país das maravilhas, adquireainda mais ambiguidade. De diálogo epistolar, alcança o statusde produto literário; e, de obra de arte, passa também a umaxxix CARROLL. Lewis. Cartas às suas amiguinhas. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997.(p.25)xxx Idem, p. 11.

função lúdica, tornando-se “brinquedo” sério, como os“parangolés”, do nosso Hélio Oiticica.

Algumas das cartas-brinquedo, recebidas de presente deNatal, de aniversário etc, conforme as palavras do tradutor,também discutem a questão da performance da escrita, mesmo queelas próprias, em seu projeto inicial, já sejam a expressãoprimeira desta performance. Vejamos um trecho:

Da próxima vez não seja tão apressada em acreditarnos outros, e eu vou lhe dizer por que: se você seesforça para acreditar em tudo que lhe contam, vocêvai cansar os músculos do seu espírito e vai ficartão enfraquecida, que não será mais capaz deacreditar nas verdades mais elementares. Não faznem uma semana, um de meus amigos fez um esforçopara acreditar na história de Jack-o-Matador-de-Gigantes. Conseguiu, mas perdeu tanta energia que,quando eu lhe disse que estava chovendo (o que eraverdade), ele foi absolutamente incapaz deacreditar, e saiu para a rua sem chapéu nem guarda-chuva. Em conseqüência, seus cabelos ficaraminteiramente molhados e seu topete levou mais dedois dias para recuperar a forma. (N.B. – receioque parte dessa história não seja verdadeira).xxxi

Ainda que de maneira nonsense, o diálogo que Carrollestabelece nas cartas com as suas amiguinhas é quase sempre nafunção de adulto conselheiro. Ele assume a posição de tio e/ouamigo mais velho, cujas palavras ganham um matiz, muitasvezes, solene. Entretanto, os conselhos do escritor quasenunca obedecem ao padrão esperado de diálogo entre uma criançae um adulto, acompanhando, portanto, o caráter fantástico desua obra. Vejamos mais um exemplo:

Minha querida Agnes,Como você é preguiçosa! O quê? Devo dividir osbeijos comigo mesmo? Na verdade seria muito difícilfazer semelhante coisa! Mas vou dizer comoproceder. Primeiro pegue os beijos e – isso me fazlembrar uma coisa curiosa que me aconteceu ontem àsquatro e meia da tarde. Três visitas bateram emminha porta, pedindo para entrar. Quando abri, quemvocê pensa que eram? Você nunca vai adivinhar. Eramtrês gatos! Não é engraçado? Mas eles tinham uma

xxxi Idem.

cara tão zangada e desagradável que peguei o objetomais próximo (por acaso era um rolo de pastel) eesmaguei os três como se fossem panquecas! Se você,minha querida, um dia bater em minha porta, juro que vou esmagarsua cabeça. Vai ser engraçado, não acha?Com todo afeto doLewis Carrollxxxii (grifos do autor)

O exemplo anterior traz uma carta na íntegra. Asexpressões de afeto que iniciam e terminam o texto contrastamcom o conteúdo expresso no que poderíamos chamar de miolo dacarta. Aqui, há uma ameaça à interlocutora, o que se dá pormeio da narração de uma história grotesca, mas que é contadaem um tom de extrema normalidade. Aliás, este tipo deinterlocução é bastante comum nesta coletânea; em um dadomomento, Carroll se desculpa pela ausência de uma carta (queera justamente aquela que enviava) dizendo-se avesso àcrianças:

[...] tenho horror a crianças. Não sei porque, maseu as detesto – tanto quanto alguém pode detestarpoltronas ou pudins de ameixas. Você também nãoacredita nisso, não é verdade? [...]Espero que você fique muito triste por não receberuma carta de seu amigo dedicadoxxxiii.

Esta correspondência, portanto, demonstra, em seu aspecto

radical, as várias faces que a escrita de cartas podealcançar. Produzida no século XIX, e portanto, ainda nãoinserida na discussão sobre o hibridismo, ela nos oferece umexemplo incontestável de que a carta pode, sim, serliteratura.

xxxii Idem, p. 107.xxxiii Idem, 101-102.