Reprodução e Produção Reflexiva: números de um Brasil menos fecundo
João Rodrigues Pinto Canivete “Eu já era mais ou menos ...
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Transcript of João Rodrigues Pinto Canivete “Eu já era mais ou menos ...
Aos meus filhos Henrique e Laisa, ternura que aquece
a minha inspiração.
À minha esposa Leila, pelo amor incondicional.
Alguma vez você sentiu que o seu destino é tão
grandioso, tão maior que o dos outros homens, tão
independente dos teus atos que chega a assustar, ao
mesmo tempo que te dá uma intensa sensação de
prazer? Alguma vez? E depois os teus gestos se
repetem e no seu cotidiano você passa a acreditar
nesse destino até o dia em que tudo fica amargamente
claro e você descobre que nada estava escrito a não ser
nas tuas próprias ilusões. Que o caminho que parecia
irreversível deu um nó com você lá dentro... Alguma
vez?
Chico Buarque e Ruy Guerra (Calabar: o Elogio
da Traição - 2002)
Escrevi a primeira versão de Canivete em 1987,
ano em que a CNBB lançou a Campanha da
Fraternidade com o tema “A fraternidade e o menor”,
cujo lema era “Quem acolhe o menor a mim acolhe”. As
Comunidades Eclesiais de Base debatiam a dramática
situação da criança que vivia nas ruas, exposta a todo
tipo de violência.
Na ocasião, a mensagem do Papa João Paulo II
enfatizou: “No quadro da situação do menor no
imenso Brasil, as estatísticas falam de números muito
elevados de menores, objetivamente pobres,
marginalizados e abandonados: tais números são
indício de males que importa remediar, pois salvar o
menor é escolher, valorizar e celebrar a vida e
afugentar sombras de morte. Mas para isso, é preciso
descer da montada, como o bom samaritano, com
humildade e amor, e debruçar-se sobre a vida do
irmão, em atitude de dom, movidos pelo valor da vida
e do lugar da vida na hierarquia dos valores”.
A obra Canivete nasceu das minhas
inquietações diante do quadro real da violência que
cresce e atinge, sobretudo a criança e seu universo
familiar. Infelizmente, a história do menino Tomás,
apelidado de Canivete, não fica apenas no campo da
ficção, mas serve para confirmar a crua realidade
brasileira. A história é a mesma de centenas de
crianças que perdem a infância e passam a viver num
mundo onde a violência dolorosamente é encarada
como algo “normal”, corriqueiro, inevitável. O grito
de revolta de Canivete ainda ecoa em cada canto do
país, mas o sistema continua indiferente, cego e surdo.
A violência acolhe a criança, justifica seus atos e
amplia os seus horizontes.
A primeira edição foi lançada em 1991 e sua
repercussão foi, de certo modo, conflituosa.
Representou a década perdida de 1980, período em
que as questões sociais não recebiam as devidas
respostas. Por isso o pessimismo, por isso o realismo.
Passados mais de 20 anos, mantenho a certeza
de que, infelizmente, o drama de Canivete continua
vivo e se repete na história real de muitas crianças que
continuam sendo espancadas pelos pais, abusadas
sexualmente, levadas à prostituição, às drogas, ao
crime... Muitos só estudam até as séries iniciais, se
mudam para a rua e encontram o crack e a morte.
A segunda edição (revisada e ampliada) surge
com o propósito de buscar algumas respostas para as
inquietações de Tomás (Canivete) que não se acabam
na prisão. As reflexões do personagem são marcadas
sob a perspectiva de uma mudança concreta sem o
apelo da cultura da miserabilidade. Canivete
amadureceu e está muito além das grades de qualquer
prisão. Continua amargo, mas seu tom não é
individual. Suas perguntas não ficam em aberto ou no
eco do fatalismo. Busca sentido existencial-coletivo a
partir da cultura da organização – que passa pela
formação, ainda que seja no terreno das relações
humano-religiosas dentro e fora do presídio, como o
trabalho fraterno e realizador da Pastoral Carcerária.
Na obra a ação da Pastoral toma corpo e apresenta
uma dimensão que leva ao entendimento de que é
possível entrar no mundo violento das prisões e que,
apesar de suas contradições, trata-se de uma realidade
que carece de humanização e não pode ser ignorada.
Abraço fraterno. Boa leitura.
João Rodrigues Pinto
Tomás é um garoto que nasce numa família pobre e
conflituosa: o pai é um bandido que inferniza a vida
de todos; a mãe sofre espancamento; as irmãs são
abusadas sexualmente e o garoto é treinado para
roubar. Tomás recebe o apelido de Canivete porque é
magro “feito um caniço” e usa uma faca para roubar.
Filho das circunstâncias, Tomás é bondoso,
inteligente, sagaz, terno e sonha com a felicidade da
família. Porém os acontecimentos vão mudando o
curso da sua história e seu destino é demarcado por
situações dramáticas. O garoto cresce num mundo
marginal, torna-se um bandido experiente, mas acaba
sendo preso e sua vida transforma-se num silêncio
repleto de revolta. Na prisão, com o apoio da pastoral
carcerária, descobre que nem tudo está perdido: é
tempo de recomeçar a tecer novos caminhos como as
aranhas errantes que nunca deixam a teia esquecida. O
livro é uma lição de esperança e de ressignificação.
Há sonhos que se soltam e não voltam porque uma
força ilusória os leva a passear por lugares confusos e,
como as goteiras do telhado, secam quando para a
chuva.
Ademar Bogo
Eu me apresento: Tomás, mas pode me chamar de
Canivete
“Fazia frio e o frio que fazia, não era esse que a carne nos conforta... cortava assim como em carniçaria, o aço das facas incisivas corta!"
Augusto dos Anjos
Foi numa agonizante madrugada de domingo.
Fazia frio. O vento entrou sem pedir licença,
atravessou as grades de ferro, soprou sobre os
encarcerados, depois saiu, depois voltou... Assim a
noite inteira. Os presos de olhos trancados, sono
pesado, buscavam se proteger do vento que castigava
os ossos. Encolhiam-se, ajeitavam o cobertor,
viravam-se de lado, ressonavam. Todos dormiam,
menos Tomás. Ele acordou completamente zonzo.
Sentiu o corpo mole e as vistas confusas. A cabeça
girava, uma aranha no teto se transformava em duas,
três ou mais... Tentou sentar-se, mas o corpo não o
obedecia, queimava em febre, suava, tremia. O
cansaço o fez sentir-se a mercê de uma espécie de dor
solitária, capaz de revelar aos ouvidos da alma, que os
seus dias se aproximavam do fim. Ele quis gritar,
pedir socorro, mas o grito ficou preso, surdo... As
gotículas de suor brotaram sobre a fronte, o frio só
aumentava e ele se encolhia em busca do calor,
agarrando-se à coberta de algodão.
Era o começo de um delírio onde a lógica se
perdia nas visões que alimentavam os fantasmas da
imaginação. Tomás já não sabia separar o mundo dos
vivos e o dos mortos. Estava no limite, mas, dentro de
si, sobrevivia o impulso de querer ir além das quatro
paredes, de sair do chão de piso grosso, de romper
com todas as grades e desaparecer na escuridão.
E então, ele viu a cara da morte...
“Agora ele dorme debaixo da terra fria que
você mandou jogar em cima dele”!
“Não... vá embora... vá embora...”
Morte.
O fim estava cada vez mais perto, apitando
forte, imponente, feito uma lagarta de ferro: um trem
correndo sobre os trilhos ao som da valsa dos
esquecidos que seguiam viagem.
Morte.
A alma, essa menina teimosa, fazia parte do
ritual, tinha lugar de destaque, por isso, não se fez de
rogada: sussurrou aos ouvidos de Tomás a fria certeza
de que ele não caberia mais nas estrofes daquele
poema caricato, ridículo, absurdo, irreal, hipócrita...
“Mãe o que é universo”?
O sofrível delírio o deixou diante de imagens
confusas que surgiam e eram engolidas por uma
espécie de nevoeiro repleto de vultos, sombras,
espectros. E Tomás a enxergou. Ela estava ali, entre as
sombras... A estranha criatura se tornou mais
definida, reveladora, então, teve a certeza: era a
temida menina-morte e ela não se fez de rogada,
aproximou-se lentamente de Tomás. Caminhava com
desenvoltura como se não sentisse o chão que lhe
servia de tapete. Era absoluta, altiva, única. Os passos
graciosos revelavam detalhes de uma mórbida
elegância que mesclava beleza e integridade. O seu
olhar certeiro - imune a qualquer emoção – mirou a
paisagem da vida de Tomás, avaliando, talvez, o
momento certo de arrebatá-la inteiramente,
integralmente.
As sombras da noite passeavam sobre a morte
como asas de anjo, criando uma imagem celestial que
se transformava na descrição do mistério das
sombras: o enigma da vida e a luz da morte. Apenas
sombras. Tomás compreendeu, então, que a vida era
algo que não mais lhe pertencia, uma concessão da
morte e ela, somente ela, sabia o momento certo de
encerrar a sua existência de uma vez por todas. O
olhar da menina-morte o mirava tão profundamente
que escancarava a certeza absoluta das suas
limitações.
“Deus não me quer mais! Eu fiz uma coisa
muito feia...”
Por mais que tentasse, não conseguia tirar os
olhos da estranha visão: magra, quase esquelética,
dona de longos cabelos finos, pele branca e olhos
amendoados, inexpressivos. Os lábios levemente
azulados estavam parados, frios, mortos... A menina-
morte vestia roupas leves, alvas como a neve e
caminhava com graça. De vez em quando levantava
uma das mãos e acenava: um sinal para enfatizar a
certeza de sua missão em torno do dilema e da sina de
Tomás.
“Estou chegando... Tenha calma”.
“Não quero ir. Ainda não é minha hora”
“Não tenha pressa, estou chegando...”
“Ainda não é minha hora”
Tomás apertava os olhos, tentava fugir daquela
visão tenebrosamente sedutora. Se a encarasse,
certamente seria levado embora. Não era forte o
suficiente para resistir às investidas fatais da singular
aparição. Então relutou, como lutou! Buscava forças e
mesmo correndo o risco, encheu-se de coragem e
abriu os olhos.
Nada.
Silêncio.
Trevas.
Não havia ninguém.
A menina morte simplesmente desapareceu...
Tomás voltou a fechar os olhos, e sentiu que
uma mão apertou seu ombro.
“Ela voltou”, pensou temeroso.
Tentou inclinar a cabeça, mas não teve forças.
Manteve-se na mesma posição. Agora a mão tocou a
sua fronte e ele delirava.
Ouviu uma voz masculina familiar que se
misturava aos ecos de seus delírios:
- Acorde Canivete... Está tudo bem.
“Acorde Canivete! Temos um trabalho a fazer”
“Não papai, ele é só uma criança”
“Acorde Canivete! Temos um trabalho a fazer”
- Acorde – disse-lhe o homem.
Abriu os olhos. O corpo banhado de suor. O
homem se chamava Adelmo, apelidado de Dego, um
parceiro de cela. Tomás tentou responder, mas não
conseguiu.
- Quieto, você está queimando de febre. Eu
tenho um comprimido.
- Água... – suplicou. Voz arrastada, ofegante.
Dego apanhou uma jarra e encheu o copo.
Tomou o comprimido, depois suspirou ainda
confuso. Sentia um imenso vazio. No peito a dor o
incomodava como se dezenas de agulhas lhe
espetassem o corpo. Num ímpeto, sentiu vontade de
chorar. Não tinha outro jeito. Precisava engolir o tolo
orgulho, e seguir o sábio conselho da falecida mãe,
quando alguém de casa ficava doente:
“Chorar faz bem. É bom engolir o sofrimento,
quando não tem jeito, sem deixar rastro. O choro faz a
dor parecer bem menor”.
Dego trouxe outro cobertor. Tomás continuava
trêmulo.
- Você precisa de um médico. É efeito da febre.
O dia está quase chegando. Tente dormir...
“Você... precisa de... um médico...”
“Tente dormir...”
“Médico...”
Entre um e outro delírio, a febre foi passando,
lentamente. Pronto. Tomás estava condenado a
sobreviver e agora já podia voltar a sorrir da sua cara
amassada diante do espelho.
Vida.
Aos poucos o frio desapareceu. Os
pensamentos se misturavam.
Finalmente ele conseguiu dormir. Só acordou
mais tarde com o falatório dos companheiros.
Olhos cansados, pedaços de sono, restos de
dor.
Outro dia.
Sua boa mãe costumava dizer que durante o
dia as coisas ficam mais fáceis. Por isso, teria que se
levantar, mesmo a contragosto. Precisava reagir. Na
boca, o desagradável gosto amargo e a lembrança do
pai. Quando Bastião acordava de ressaca, dizia que a
língua tinha gosto de “cabo de guarda-chuva velho”.
A mãe sabia, corria fazer um café bem forte e aos
poucos o pai ficava bom.
Tomás queria ficar bem. Estava livre dos
delírios e do pesadelo, pronto para a rotina de mais
um dia na prisão. Sentia-se ainda cansado, corpo
dolorido e sem qualquer disposição para papear.
Quando acordava assim ficava no canto, no silêncio,
na solidão. A zanga não era só pela noite mal dormida
ou pela dor de cabeça. Ele sempre ficava desse jeito
quando era véspera do “dia de visita”. Uma data
especial para os presos, não para Tomás. Ele nunca
recebia ninguém. Aquele era o dia de tortura
psicológica. O dia de visita forçava a sua entrada na
teia de um passado que ele lutava para esquecer. Mas
o entra e sai dos visitantes, as novidades e os presentes
que os presos recebiam dos familiares, não permitiam
que Tomás se esquecesse. Em cada detalhe da visita
estava cravado o seu passado. Por isso, odiava aquele
dia.
Os companheiros de cela estavam eufóricos,
todos aguardavam o esperado momento. Na conversa
animada entre eles, o assunto era o mesmo: mulher,
filhos, conhecidos e muita expectativa.
Vida.
- Não se cansa de pentear cara? Quer ficar todo
metido a bacana só pra alegrar a esposa... – comentou
um deles, o mais velho do grupo.
- Fazer o quê, Zé Prego? Ela vem visitar o
macho dela e precisa sair satisfeita! – respondeu o
Cacá.
- Cara, tua mulher é muito bonita! Nem parece
que tem três filhos!
- Hoje eles não vêm. Tão no interior na casa da
minha sogra!
- Então, hoje a coisa vai ficar mais quente! –
ironizou Géo Caolho, com uma pitada de gozação.
- Caolho, fica na tua! Não tenho culpa se tua
mulé deu o fora, meu! A minha taí, firme e forte!
- Aquela piranha que me aguarde! Se ela pensa
que vou ficar o resto da vida aqui... Sumiu no mundo
com o meu filho, mas eu acho a filha da puta até no
inferno!
- E a minha filha que resolveu engravidar de
um mané? Eu vou ser avô daqui a cinco meses!
- Tá fudido, o cara é rico?
- Não, mas pelo menos vai assumir a responsa.
Já tá no barraco com ela! Parece boa gente e é limpo!
- Olha quem fala! Querendo dar lição de moral
só porque o cara comeu tua filha?
- Cala a boca otário! Não quero estragar teus
dentes e nem aleijar teu olho! Minha família é coisa
sagrada e ponto final! Esqueceu da lei?
- Foi mal cara!
- Aqui cada um tem que respeitar a família do
outro e quem não quiser entrar nessa, será descartado!
Dessa vez, passa, mas...
- Só quero saber se minha mãe trouxe o que
pedi – disse Pedro, ansioso.
- Cara, tá cansado de saber que tudo é
examinado detalhadamente, os tiras tão ficando
esperto!
- Acorda cara! Não percebe a jogada? Esquece
que tem um monte interessado na nossa fuga?
Esquece que pra eles a nossa prisão é preju?
- Também não sou burro, mas tem gente nova,
tem tira de fora começando carreira, querendo
mostrar serviço...
- Isso não é segredo pra ninguém. O jogo é claro
e eles entram de cabeça...
Eles riam freneticamente.
Era uma só piada, uma só lógica.
Tomás permanecia em silêncio, não dava
palpite nem sorria das conversas corriqueiras. Não
estava a fim de absolutamente nada.
- Você nunca recebe visita Canivete? -
perguntou um deles, o Pedro, um novato. Matou dois
caras num assalto, um era o gerente do Banco.
Por um momento, Tomás ficou pensativo.
Visitas... Há muito tempo ele não sabia o que era
aquilo. Também, quem o visitaria? Tudo se acabou.
“No rio da minha vida ninguém aprende a nadar”,
costumava dizer.
Engoliu em seco e não respondeu.
- Cara, tá cansado de saber que Canivete não
gosta de falar destas coisas. Somos velhos conhecidos
e até hoje não sei nada sobre o seu passado.
Dego era um bom camarada. Dos oito, era o
mais compreensível, o mais companheiro. Ele
continuava preocupado com a saúde de Tomás.
- Está melhor?
- Depois do remédio consegui dormir. Valeu
cara!
- Você conversou a noite inteira, chamava o pai,
a mãe, falava de morte... Acho que tua febre passou
dos 40. Você tremia o corpo todo. Teve uma hora que
você apagou! Pensei que era teu fim... Um susto cara!
- Só tive pesadelo, dormi quando o dia estava
amanhecendo.
- Cara, isso é coisa da tua mente! Teu dia tá
chegando... Você vai deixar a gaiola no fim do ano,
tem coisa mais animadora? Reage meu irmão – disse
batendo de leve no seu ombro.
Tomás ensaiou um leve sorriso. Dego
prosseguiu:
- Não acha melhor conversar com o médico?
- Não, estou bem...
- Por que não conversa com o padre? Ele é teu
chegado e pode te ajudar!
- Estou bem cara, pode crer!
- O nome disso é contagem regressiva cara,
cuidado para não morrer de ansiedade. Relaxa, velho.
Daqui a pouco você cai fora, bem longe daqui e vai
seguir tua vida! Agora tem uma coisa que vive
martelando na minha cabeça: tu não recebe visita, mas
de vez em quando ganha doces, bolo, pão... Quem te
espera lá fora?
- Não conheço ninguém. Já disse milhões de
vezes!
Tomás tinha a mesma curiosidade. Era um
mistério intrigante: quando chegava o dia de visita,
sempre recebia uma encomenda. Coisa de comer. O
mais estranho é que nem o carcereiro sabia dizer
quem era a pessoa que mandava aquelas coisas. No
fundo, ele ficava reconfortado com tamanha
gentileza. Quem seria o benfeitor? Por que o
escolhera? Perguntava-se a todo o momento. Eram
perguntas sem respostas. O fato é que havia alguém
lá fora que se importava com ele, que talvez o
conhecesse ou simplesmente gostasse de fazer
caridade.
Aos poucos, a cela se esvaziou. Tomás ficou só.
Estava pensativo. Talvez o Dego tivesse razão, a fase
da contagem regressiva o deixava impaciente,
nervoso, abatido... Sentimentos contraditórios que o
faziam perder o sono, deixando-o à mercê de dúvidas
cruéis: ia sair da prisão, mas não tinha para onde ir.
Não sabia o que fazer o que fazer lá fora, ninguém o
esperava e isso o deixava inseguro. Quanto mais se
aproximava a liberdade, mais crescia o medo de
enfrentá-la. Como seria a vida sem as grades?
Veio à mente a imagem da sua família e com
ela a inevitável vontade de chorar.
“Faz tanto tempo... Por que os meus fantasmas
não desaparecem?” – pensou.
“Você nunca recebe visitas, Canivete?”
Sorriu de si mesmo. Sabia a resposta. Não havia
ninguém à sua espera. Todos se foram para um lugar
distante, desconhecido, misterioso.
Uma lágrima escapou e ele a deixou rolar. Era
uma lágrima fria, quase gélida, daquelas que
aparecem sem querer, para colocá-lo à mercê da
angústia. Tomás tentou evitar as lembranças, mas elas
desfilavam na mente como aranhas que tecem fios de
uma história em que a dor ainda era capaz de fazer
sangrar as mesmas feridas... E então ele mergulhava
solitariamente nas suas recordações.
Morte vida.
Um
“Deus está cansado de saber como é a vida
de cachorro que ele deu pra gente”.
Tomás nasceu num canto esquecido lá no
morro. Era pouco mais da meia-noite quando Maria
começou a ficar incomodada. Contorcia-se de dor à
espera da parteira. A chuva fina sobre o telhado de
zinco ajudou a diminuir a quentura no interior do
barraco. Ali viviam os pais, duas irmãs e agora ele,
que estava chegando para completar a família e
aumentar a pobreza daquela gente.
Dona Belarmina empurrou a porta de leve e
entrou. Deixou o guarda-chuva atrás do tamborete da
sala, prendeu o cabelo numa popa e abriu a maleta.
Sorria paciente, não deu ligança às dores de Maria.
Estava calejada, toda mulher sente, sabia. Todas elas.
Maria não era diferente.
A mãe de Tomás descendia de uma família
indígena, pertencente à tribo das Araras do Pará, que
habitava a margem esquerda do rio Iriri nas
cachoeiras secas e falava a língua Karib. Num passado
que ninguém data, a bisavó materna de Tomás foi
apanhada no laço no meio da mata e virou a mulher
do bisavô, um branco galegado de lábio leporino que
morava em Santarém. Dessa mistura, nasceu Maria,
uma mulher alta, esguia, morena e dona de longos
cabelos pretos. O rosto bem feito apresentava
profundas marcas de expressão, fruto do sofrimento,
dos anos de luta, frustração, cansaço, desespero e
medo. Mas era mulher de fibra, calejada pela vida,
daquelas que aceitam tudo - inclusive a dor -, com
bravura e pitadas de ternura. Foi assim naquela
madrugada. Ela suava e mordia com força o lábio
inferior, revirava-se para conter a dor intensa, mas
não chorou. Buscava a esperança lá no fundo da sua
história, assim acalentava a dor e impedia o pranto.
Depois de muito esforço Maria pariu. O
menino enxergou a luz do mundo. Agora ela podia
respirar em paz, tudo correu bem, chegou outro filho.
O milagre da vida se repetiu num cantinho esquecido,
lá no morro.
Deram-lhe o nome de Tomás, nasceu chorão,
magro, fraco e miúdo. Naquela madrugada, o rebento
abriu forçosamente os olhos pequeninos para um
universo diferente dos contos de fadas. A família que
o acolheu era coroada com a miséria e coberta com o
manto trágico da violência. No morro, materializou-
se a realidade de um menino raquítico que começava
a se inquietar, ávido para enxergar a luz de um
mundo ácido, sem espaço para qualquer fantasia.
- É menino! – Anunciou Estela alegremente.
A parteira cortou a ponta do cordão, amarrou,
fez curativo, deu o primeiro banho, apanhou o
guarda-chuva, depois se despediu. O menino ficou
enrolado nos panos e as três o examinaram
detalhadamente. Faziam festa em comentários.
- Vai se chamar Tomás!
- Que bom! Temos um irmãozinho! – Exultou
Cida, a mais nova.
Nem sinal do pai...
Canivete nasceu Tomás. Menino magro,
moreno, cabelos pretos como os da mãe índia. Maria
o abraçou carinhosamente. Tentou desprender o riso,
mas não conseguia romper o nó que se lhe formava no
coração. Presságios... Por dentro a alma chorava de
dor. Temia o futuro do menino. Pensou em Sebastião,
o esposo, conhecido no morro como Bastião Pilantra,
famoso pelas trapaças, bebedeira, assaltos e centenas
de brigas. Naquele dia, ele não estava no barraco. Não
gostava de crianças. Não queria a gravidez. Não a
ajudou em nada.
Presságios...
Agora ela prendia os olhos no tempo, vez por
outra se voltava para o pequeno que dormia em seus
braços. Era um olhar penetrante, meio apagado, como
se quisesse chorar, mas não encontrasse o caminho
das lágrimas. O triste olhar da mãe de sangue índio
ficaria eternamente vigilante sobre a vida e os atos de
Tomás. O olhar estava tatuado em sua alma,
estampado em seus sonhos. Ah, como ele a amava,
como sentia a sua falta.
- Não beija o menino Cida. Ele pega sapinho.
Beijar criança novinha deixa o rosto todo empipocado
– advertiu a mãe.
Cida sorria enquanto alisava a fronte do bebê.
Mas a alegria não durou muito. Sebastião tinha
acabado de chegar. Ele costumava abrir a porta de
supetão, como se tivesse a intenção de flagrar alguém
da família aprontando algo contra si, desconfiava de
tudo e de todos.
As meninas trataram de engolir o canto.
Ninguém ousou abrir a boca em sua presença.
Sebastião se aproximou. Maria estava na cama,
impotente. Ele se manteve firme, fazia absoluta
questão de imprimir sua postura de dominador. O seu
olhar ameaçador estava à espera de alguma
explicação. Ninguém disse nada. Então ele rompeu o
silêncio, sem desviar os olhos da esposa.
- Já pariu?
Maria limitou-se a baixar a cabeça. O silêncio
foi seu melhor aliado, ajudava a disfarçar o arrepio de
terror que a percorria, deixando o seu coração aos
pulos. Engoliu em seco e, de vez em quando,
furtivamente, espiava por baixo. Por tantos anos, ela
dividiu a cama com aquele homem e ele não lhe
passava de um estranho.
Sebastião Pereira de Jesus, era um homem
forte e corpulento, alto, moreno, meio calvo e
bigodudo. Tinha quarenta e três anos. As vastas
sobrancelhas emprestavam-lhe um ar sombrio que
contrastava com os olhos castanhos. Era um homem
que não costumava sorrir, mas tinha o poder de
espalhar terror e desprezo em todo lugar, começando
pela própria família. Sempre que chegava em casa,
deixava escapar o inconfundível cheiro de cachaça,
mas, naquele dia, estava sóbrio.
- Um macho! – Disse, aproximando-se da velha
cama.
Examinou o menino detalhadamente, sem
tocá-lo. Voltou-se para a esposa. Ela permaneceu
quieta, repleta de medo. Sabia que o seu drama estava
apenas começando e podia adivinhar as intenções
maléficas do esposo. No afã do desespero, buscou
coragem e sua voz baixa, compassada e trêmula
rompeu com o mutismo, ao implorar:
- Não faz isso, pelo amor de Deus!
Ele não se incomodou. Agiu como se ela não
estivesse ali. Não havia qualquer sensibilidade em
suas atitudes. Ele era o dono da mulher, dos filhos e
do barraco. Ninguém ousava contrariá-lo.
- Muito bem! – Gritou – mais um que eu tenho
que sustentar!
- Eu... – balbuciou a esposa, sem encontrar as
palavras adequadas.
- Cala a boca! – Gritou mais alto ainda – A
verdade é esta, além de tudo é magrelo e fraco. É bem
capaz de morrer de fome! Até que não seria nada...
Deus está cansado de saber como é a vida de cachorro
que ele deu pra gente!
Tomou a criança nos braços fortes e peludos.
Em seguida, voltou-se para as meninas:
- E vocês, parem com essa choradeira, aqui não
é velório! Levante Cida, vá procurar um caixote e você
Estela, ajeite mais panos!
A mãe sentiu calafrios. Estremeceu. O esposo
tencionava livrar-se do filho. Tentou reagir, mas não
teve força suficiente. Implorou, buscou a compaixão,
mas ela não se manifestou no coração daquele
homem.
- Em nome de Jesus, não faz isso, eu te peço!
- Ora, quem é que manda aqui? Você só presta
para parir! E o resto? Quem cuida do resto? Eu tenho
certeza que alguém vai cuidar melhor dele do que
nós!
- Não tira o menino... É o primeiro homem que
nasce! – Disse, tentando persuadi-lo. Preferia morrer
na mais trágica miséria, a ter que se desfazer de
qualquer um dos filhos, mas nada era capaz de abalar
a decisão do esposo.
O menino voltou a chorar, era fome, a mãe o
tomou nos braços e o pranto cessou. Sugava,
gulosamente, o seio gordo. O pai continuava o
sermão.
- A coisa tá ficando feia. Estou correndo risco
de ser preso a qualquer momento e aí eu quero ver
como esse menino vai viver! Você prefere ver o garoto
morrer de fome?
- De fome ele não morre. Eu tenho bastante leite
e com fé em Deus...
Sebastião a interrompeu bruscamente, odiava
ouvir falar em Deus.
- Lá vem você com seu Deus misericordioso.
Na vida, a gente tem que pensar em comer, em ganhar
dinheiro e não em Deus! Ele não enche a barriga de
ninguém! Você ainda acredita nisso? Deixa de
bestagem, Deus não passa de um consola-tolo e você
é uma tola!
- Não fale assim, é pecado.
Ele soltou uma estrondosa gargalhada.
- Você não sabe mesmo o que é a vida, não é
Maria? Deus é pai dos aleijados, dos pobres, dos cegos
e dos diabo-sei-lá-o-quê! Mas que pai é esse, que vê a
desgraça dos filhos e não faz nada? Ora, não me venha
com besteira! O seu Deus não passa de uma mentira.
Verdade é o diabo, que só quer ver o mal e nunca
promete nada. Ele existe!
Maria fez o sinal da cruz. Nunca suportou o
sarcasmo com as coisas de Deus, sempre foi uma
mulher religiosa e a fé era sua camisa de força, sua
segurança. Era ainda jovem, apenas 31 anos, mas, por
conta do sofrimento, aparentava mais... Quando se
casou com Sebastião, no tempo que moravam no
interior da Bahia, não passava de uma adolescente.
Casou pensando que mudaria de vida, teria um lar
decente ao lado daquele que um dia amou de
verdade. Mas de mulher simples, filha de camponeses
ribeirinhos que plantavam na várzea e viviam do
pescado, transformou-se na tímida esposa de um
bandido fracassado, que nunca se sobressaiu no
mundo do crime: tudo o que roubava gastava em
minutos, pagava dívidas com jogo, bebida,
prostituição e muita farra. Seu trunfo era a fama de
mau. Seu maior legado. Sabia que era odiado por
todos e adorava ser apontado como o terror da
vizinhança.
Parte do sustento da família vinha das costuras
que ela fazia e os doces que as meninas vendiam
quando o pai estava ausente – ele nunca permitiu que
elas trabalhassem fora. O que elas ganhavam era coisa
pouca, mas fruto de esforço e honestidade. Já a outra
parte vinha dos roubos que Sebastião cometia. Maria
nunca aceitou a vida errada do esposo, mas sabia que
ele não estava disposto a mudar e nem pensava na
hipótese de tentar um trabalho honesto. Sebastião não
tinha vergonha de ser um bandido mal falado que
envergonhava a família e a comunidade. Ele roubava
e a família comia do fruto roubado ou então a morte
pelo pão.
No passado, Sebastião era boa gente. Nasceu
numa família pobre do sul da Bahia que sobrevivia
catando cacau para os fazendeiros de Itabuna. Ainda
adolescente, ele já era pau para toda obra. Ganhava
uma miséria enquanto os fazendeiros se enriqueciam
cada vez mais. Era o auge da cultura do cacau. Quem
tinha cacau tinha poder, era a própria tradução de
desenvolvimento e riqueza. Ironicamente, o luxo e a
fartura estavam infinitamente distantes da realidade
do jovem Sebastião. O sonho dele era ter um pedaço
de terra e ser o dono, só assim podia plantar algumas
ruas de cacau no meio da mata e sustentar a família.
Mas não passava de sonhos. Um dia, na faixa dos 17
anos, conheceu Maria, que também vivia uma
situação parecida e logo estavam apaixonados.
Começaram o namoro sem qualquer perspectiva de
futuro, mas a ausência de possibilidades foi
transformando Sebastião num jovem revoltado. A sua
maior vontade era sumir da Bahia, passou a odiar os
fazendeiros, o cacau. A mina de ouro que um dia foi o
seu sonho se transformou num pesadelo cruel e
contraditório. E como se não bastasse, certa feita, seu
pai foi picado por uma cobra venenosa, no meio da
mata, enquanto trabalhava na colheita. O homem
morreu sem que ninguém fizesse nada. O patrão
estava na cidade e o pobre não resistiu. A perna
inchou tanto que quase estourou. Não teve jeito. Com
a morte do pai, Sebastião passou a ser o senhor da
casa. Os três irmãos mais novos estavam sob a sua
responsabilidade. Tivera que adiar o casamento e
sepultar o sonho de ser um proprietário.
Com a jovem Maria, o drama foi parecido.
Ainda garota, conheceu o sofrimento no interior do
Pará. Perdeu a mãe muito cedo, vítima do câncer, a
doença maldita. A mãe deixou cinco filhos de herança,
Maria era a mais velha, a única mulher. Teve que
assumir a casa e os irmãos. Um ano depois, o seu pai
resolveu se mudar para o sul da Bahia, trabalhar com
os primos na região de Itabuna. A longa viagem em
cima do pau-de-arara, foi apenas o começo de mais
uma história de sofrimento.
Quando chegaram, improvisaram uma
palhoça, onde tinham que dormir amontoados. Na
Bahia, viviam mudando de fazenda. Foi numa dessas
andanças que Maria conheceu Sebastião. Aquele
jovem de traços fortes, olhar misterioso, cabreiro,
sempre sério, despertou-lhe alguma atração. Ele a
olhava timidamente, meio sem jeito e custou a tomar
qualquer iniciativa. A tímida Maria, sangue de índio,
foi a sua primeira namorada.
A morena do Pará vivia desconfiada e sempre
quieta. Gostava de rezar, trabalhar na roça e cuidar do
rancho. Não queria pensar em namoro, mas, aos
poucos, foi notando o interesse do jovem Sebastião.
Quase não tiveram tempo de se conhecer, dois ou três
encontros depois, já estava marcado o casamento. No
fundo, um tentava se amparar no outro.
Assim que iniciaram a vida de casados, os
desafios começaram. A pobreza era uma ameaça
constante e a sobrevivência na fazenda era cada vez
mais difícil. Um surto de meningite atacou a região e
os fazendeiros começaram a reduzir o número de
empregados. Dois irmãos de Maria foram atingidos
pela doença. Um médico se apresentava uma vez a
cada quinze dias, mas não resolvia a situação. O pai
de Maria foi outra vítima. A jovem entrou em
desespero e, a partir de então, os dois irmãos foram
morar consigo, espremidos no barraco minúsculo.
Mesmo com a intervenção médica, morreram quinze
crianças e sete adultos na região cacaueira.
Um ano depois, Maria engravidou da primeira
filha. Estela nasceu saudável, mas custava a ganhar
peso. A mãe secou o leite, a garota ficou desnutrida e
só não morreu, porque Sebastião trazia leite de cabra
dos criadores vizinhos. A família cresceu e a miséria
também. Os irmãos de Maria decidiram ganhar o
mundo. Um fazendeiro os levou para trabalhar em
outra fazenda, bem longe dali. Maria foi obrigada a
concordar, tinha consciência que a miséria não cede
lugar ao sentimento, mas à sobrevivência. Foi a última
vez que ela viu os irmãos. Nunca soube dizer se eles
estavam vivos ou mortos. O mesmo aconteceu com a
família de Sebastião. Os irmãos ganharam o mundo,
se mudaram para outras terras e nunca mais deram
sinal de vida. A família estava reduzida ao casal e uma
filha.
Ainda na fazenda, Maria voltou a engravidar.
Novamente uma menina. A morena recebeu o nome
de Aparecida e quase morreu ao nascer. Cida nasceu
raquítica, pesava pouco mais de dois quilos. Mas,
contrariando a lei do destino, sobreviveu e tornou-se
uma garota bonita e saudável. Não fosse o
testemunho da mãe, era impossível acreditar que a
menina tivesse passado perto do vale da morte.
Quatro anos mais tarde, Sebastião tomou a
decisão que lhe martelava a mente desde que se casou:
mudar para São Paulo, procurar um meio de vida
mais rentável. Só não fez isso antes, porque Maria não
queria arriscar a sorte. Tinha medo da capital e das
surpresas que poderiam aparecer por lá. Mas acabou
aceitando e não podia ser diferente: em casa ou na
roça, seus olhos enxergavam o fantasma da fome e o
medo apertava seu coração. Buscou no medo, a
coragem. No pesadelo, a esperança. Só tinha duas
opções: tentar o desconhecido ou morrer sufocada
pela teimosia. Escolheu a primeira. E como se não
bastasse, o fazendeiro começou a mandar embora a
maioria dos empregados, venderia a fazenda a
qualquer momento, o cacau estava em crise. Sebastião
foi obrigado a sair, precisava buscar outro rumo. O
dinheiro que recebeu não pagava os anos de
sofrimento, mas era pegar ou ficar de mãos abanando.
Juntou as poucas coisas e partiu com a família. A terra
da garoa podia ser a grande chance de viver com
dignidade e, com um pouco de sorte, encontrar,
talvez, a paz tão sonhada.
No começo as coisas correram bem em São
Paulo. Sebastião conseguiu emprego de servente de
pedreiro, ganhava pouco, mas resolvia. Arranjou um
canto lá no morro e a família começou a viver outra
parte da sua história. O problema é que a obra ficou
pronta e ele ficou desempregado. As coisas
começaram a apertar. Tudo ficou mais difícil na
capital – lugar que ninguém conhece ninguém e cada
um se vira como pode. A paz tão sonhada pela família
era algo distante. Aí, foi aquilo: sem emprego certo,
Sebastião começou a viver de bico, fazia de tudo para
ganhar um trocado a mais, pulava de galho em galho
feito macaco na selva: vendeu picolé, engraxou
sapato, catou lixo… Certa vez foi contratado para
carregar cereais na estação ferroviária. O emprego
parecia definitivo, mas durou menos de dois meses.
Foi mandado embora, sem direito a nada, porque
cometeu o primeiro roubo: um caixote de batata
inglesa.
- Bastião, a comida acabou.
- Vou dar um jeito...
- Mas como? Você só vai receber no final do
mês!
- Já disse, dou um jeito! Vou trazer um caixote
de batata. O fiscal vai distribuir pra peãozada, ainda
hoje!
- Batata? Bom, pelo menos dura bastante. A
gente cozinha com sal e dá pra enganar a barriga...
- É.
- Estela está com febre e vomitadeira...
- Foi aquele feijão velho, tava com um gostinho
azedo!
- Só tem leite em pó que ganhei da merendeira
da escola. O pacote estava vencido...
- Vou trazer um saco de batata ainda hoje! Se
Deus quiser...
Mas as batatas nunca chegaram. O pobre foi
apanhado em flagrante pelo vigia. O guarda nem
pensou duas vezes, aplicou-lhe um corretivo que o
deixou com o olho roxo e o entregou ao fiscal da
estação. Foi escorraçado na mesma hora. Voltou para
casa completamente humilhado.
Morte-vida
Depois do primeiro roubo, Sebastião nunca
mais conseguiu outro emprego. Não tinha dinheiro
para pagar o aluguel do barraco e foi despejado. As
meninas tiveram que deixar a escola. Sem qualquer
alternativa, a família foi morar na rua. A sorte é que
Maria conseguiu um emprego numa casa, fazia a
faxina e o que ganhava dava para comprar pouca
coisa. A patroa foi mais que uma mãe: cedeu-lhe uma
parte do terreno que tinha ao lado do esgoto. Foi ali
que Sebastião improvisou o barraco, cobriu com
papelão e um pedaço de lona preta. A única coisa de
valor que tinham era uma velha máquina de costura
manual. Maria costurava para algumas vizinhas, o
pouco que ganhava ajudava nas despesas. As
encomendas que recebia eram de pessoas pobres
como ela: um remendo aqui, um botão acolá, um
retalho ali...
Foi assim que Sebastião resolveu se dedicar
realmente ao novo ofício. Na bandidagem, ninguém o
mandaria embora. E mesmo se não quisesse, teria que
criar uma saída urgente. Maria adoeceu, ficou de
cama e as meninas começaram a passar fome. Não
deu noutra. Sebastião se transformou num ladrão por
necessidade, sem muitas opções. Porém, com o passar
do tempo, foi criando gosto pelo ofício marginal,
abandonando qualquer possibilidade de levar uma
vida normal, honesta. Nesse percurso, foi preso
inúmeras vezes, mas, nunca se remediou e nem se
tornou um grande bandido. Ganhava e perdia na
mesma proporção, arrastando a família para um
buraco cada vez mais profundo. Sebastião virou
mesmo um outro homem. Dormia em prostíbulos,
bebia e descontava as suas frustrações na família,
espancava a esposa e as filhas por qualquer motivo.
Para ele, o amor era coisa do passado. A família só
dava despesa, Deus não prestava. A verdade, ele
sabia, cada um por si. Matar ou morrer.
Depois que virou bandido experiente,
Sebastião deixou de lado a família, nunca se
incomodou com a sobrevivência, gastava o dinheiro
com mulheres, apostas e bebida. O que sobrava para
a família era o mínimo; a miséria continuava intacta.
E então a vida da morena do Pará se
transformou num verdadeiro inferno. A felicidade era
algo que não conhecia. O que a mantinha firme eram
os filhos e as orações. Ela nunca perdeu a fé e Jesus era
o seu consolador.
- Esta caixa serve? – perguntou Cida.
- Serve, e os panos?
- Aqui – respondeu Estela.
Sebastião forrou o velho caixote com os
retalhos e depositou o filho dentro como se fosse uma
mercadoria qualquer. Era um homem frio, jamais
deixou que a emoção o dominasse por completo. Agia
sem titubear, tinha certeza dos seus atos. Não se
incomodou com os pedidos de Maria ou as lágrimas
das filhas. Nem teve tempo para refletir que aquele
garotinho jogado no caixote era o seu filho, a sua
carne, o seu sangue.
- Ele ainda será muito feliz – disse.
Cobriu o bebê com uma coberta de algodão,
apanhou o caixote com cuidado e dirigiu-se para a
porta. Maria apertou as continhas do terço nas mãos e
lágrimas quentes vieram-lhe aos olhos.
- Volto logo – disse.
Dirigiu-se à rua em passos apressados.
Maria deu vazão ao desespero, afogando a sua
dor no velho colchão. Estela saiu em prantos,
enquanto Cida tentava consolar a mãe. Para aquela
dor não havia qualquer consolo.
...
Ele andava sem rumo. Assobiava qualquer
coisa e seu assobio perdia-se dentro da noite. O
silêncio voltou a dominá-lo. Era noite escura, soprava
um vento frio. Todos dormiam. A cidade era um único
sono.
Depois de carregar o filho feito um bichinho,
Bastião encerrou a caminhada diante de uma linda
casa. Colocou o caixote no capacho, acionou a
campainha e desapareceu no primeiro beco. Mas, eis
que, em meio à sombra escura das árvores, um vulto
tomou corpo: Estela. A filha mais velha seguiu o pai e
viu tudo. Assim que ele se afastou, ela correu até o
caixote, levantou a coberta e viu que o bebê estava
bem, ficou aliviada. Porém, a janelinha acima da porta
se abriu e uma criada mostrou os olhos.
- O que deseja menina?
- Nada, não senhora! Foi um moleque que
chamou e saiu correndo... – respondeu,
completamente insegura.
- Que molecada! E você? O que leva nesta
caixa?
Estela afastou-se rapidamente. Torcia para que
o pequeno Tomás não chorasse.
- É roupa usada... Estou pedindo roupas –
empalideceu. Sabia que não era uma resposta
convincente.
- Pedindo roupas a esta hora da noite? Essa
história não está bem contada. Quer saber de uma
coisa? Desaparece daqui menina! O meu patrão não
vai gostar dessa história. Suma antes que eu chame a
polícia... Suma daqui! – gritou.
Estela saiu em disparada, balançando o caixote.
O bebê chorava alto.
Enquanto isso, Sebastião julgava que a missão
de desfazer-se do filho estava cumprida. Maria estava
sem forças para derramar lágrimas e limpar o leite que
pingava dos seios gordos, molhando a camisola
branca. A morena do Pará estava arrasada,
contemplava o vazio. O olhar apagado e distante
buscava seu bebê indefeso, jogado num lugar
qualquer, no meio da noite.
- Como a gente ia poder sustentar mais uma
boca nesta casa?
Sebastião buscava justificar a sua atitude.
- Como sempre sustentamos os outros. A gente
sempre encontra um jeito, Bastião. O pobrezinho nem
bem acabou de nascer e agora está no relento, Deus
sabe onde...
- Ora, eu botei o buguelo na frente de uma casa
de bacana. Tenho certeza que ele terá um futuro
melhor que o nosso!
A porta se abriu e Estela entrou ofegante.
Estava nervosa, mas determinada. Aproximou-se
firmemente de Sebastião, sem temer o seu olhar de
reprovação.
- Pai, pode me bater! Eu te segui o tempo inteiro
e vi quando você colocou o bebê na porta da casa. Fui
lá e peguei de volta. É o primeiro menino que nasce e
não me arrependo do que fiz!
Todos ficaram em silêncio. Maria sentiu-se
aliviada, o bebê estava são e salvo, mas sabia que
Sebastião ia castigar a filha pelo atrevimento. Estela
manteve-se resoluta, retirou o bebê do caixote e o
depositou nos braços da mãe. Maria orava em
silencio, lembrou-se de outra Maria, a mãe de Jesus e
agarrou-se desesperadamente às pontas do seu manto
sagrado, rogando-lhe, em pensamento, a sua
intercessão:
“Nossa Senhora, passe à frente do ódio de
Bastião, alivia a nossa dor, em nome do sangue do teu
filho Jesus, não abandone a gente mãe querida”.
Sebastião continuou em silêncio.
- Agora está feito! Pode bater quantas vezes
quiser, mas não tire o nosso irmãozinho – disse a filha.
O ato de bravura de Estela o deixou sem ação,
meio perdido. Permaneceu num mutismo
inexplicável, mas não levantou um dedo contra a
filha. Estava sem forças para reagir. Seria a tal
emoção? Ninguém saberia dizer, o fato é que ele
decidiu quebrar o silêncio, para anunciar a sentença:
- Vamos dormir, cansei de ouvir tanta
bobagem!
Dois
“O terror tomava conta da sua alma, terror
em forma de pai”
Estela era a mais branca da família. Uma garota
linda, dona de expressivos olhos castanhos, lábios
carnudos, longos cabelos morenos e ondulados.
Aparentava ter mais de 15 anos. Embora cultivasse a
tolerância, tinha pavio curto, nunca foi de aturar
desaforo. A cisma que herdou da mãe, a tornou uma
jovem desconfiada, deixando-a sempre alerta diante
daqueles que se aproximavam com segundas
intenções. Era autêntica, não se deixava abater diante
dos obstáculos, sempre disposta e nunca se esquivou
dos desafios que a vida oferecia. Defendia a
sobrevivência da família com a maior dedicação:
vendia doces na rua, costurava, fazia faxina na casa de
bacana e se preciso fosse, não tinha qualquer receio de
mendigar. Só de uma coisa não abria mão: a
dignidade. Embora muito assediada, não gostava de
ficar com qualquer um e abominava a prostituição.
Mas no cantinho tímido do seu coração, escondia-se
uma jovem romântica, que sonhava com uma vida
normal, queria encontrar um bom esposo e ter uma
família feliz.
A morena Cida era um ano mais jovem, tinha
cabelos pretos, escorridos e os lábios grossos, uma
índia graciosa. Assim como a irmã, fazia de tudo, mas
não conseguiam emprego fixo. Assim que as pessoas
descobriam a procedência de ambas, imediatamente
eram demitidas. Não tinham bons antecedentes, por
conta da má fama do pai.
Apesar de tudo, os três eram unidos. Mas,
quando Sebastião estava presente, o clima de
despreocupação sumia, evaporava-se
instantaneamente. Ficava o medo, a revolta a dor e o
conhecido olhar de Maria: apagado, doloroso e triste.
A certeza de uma vida amarga que ela não desejou
para nenhum dos filhos. Voltava o pesadelo das
irmãs: seriam felizes algum dia? E quanto ao pequeno
Tomás? O que poderia esperar diante de uma
realidade tão cruel e sem qualquer possibilidade de
ruptura? Todos os sonhos eram destruídos pela
simples presença de um homem chamado Sebastião
Pereira de Jesus.
Nesse mundo, Tomás cresceu. Era magro,
miúdo, esperto e sorridente. Ignorado pelo pai,
amado pela mãe, adorado pelas irmãs.
O barraco foi reformado, metade continuava de
madeira, a cozinha e uma parte das paredes laterais
eram de alvenaria e material de refugo. O telhado
estava dividido, telha de amianto numa parte, a outra,
de zinco. Nas noites de frio dava para ouvir a música
do vento que entrava pelas frestas da madeira. As
cobertas ficavam geladas. Se chovia, a coisa ficava
pior: goteiras por todo canto, até em cima das camas.
Ninguém dormia. Quando a chuva vinha
acompanhada de raios e trovões, era um espetáculo
com requintes de terror. Sebastião nunca estava em
casa nesses momentos.
Certa feita, num desses temporais, a família foi
surpreendida pela ameaça de desabamento. Tomás,
ainda pequeno, dormia com a mãe. Tudo aconteceu
em questão de segundos: o trovão, o relâmpago que
clareou o barraco e o grito de Maria. Ela deu um salto
da cama, apertou o menino contra o peito, acordou as
filhas, anunciando:
- Vamos sair agora! O barraco vai cair!
Os três saíram. Ficaram debaixo da chuva
esperando o barraco cair. Felizmente isso nunca
aconteceu. Quando a chuvarada parava, voltaram
encolhidos, tremendo de frio, completamente
encharcados, mas o velho barraco continuava de pé.
Maria tratava de acalmar os filhos:
- Vou fazer um café...
Cida sofria com o tempo frio e úmido por conta
da bronquite. Qualquer resfriado a deixava ofegante e
com chiadeira. Naquele dia, ela tossiu ofegante. O
chiado logo se manifestou.
- É constipação, tire essa roupa, menina. Se
enrole na coberta e enxugue bem a cabeça... Vou fazer
um chá de erva-doce com limão e melaço.
Apesar da chuva e dos perigos que podia
causar, a família de Tomás sentia-se mais segura sem
a presença violenta de Sebastião. Ele tinha o poder de
amedrontá-los e colocá-los em risco maior do que
qualquer temporal.
Os três se sentaram no banco de madeira, bem
perto do fogão de lenha. As brasas vivas forneciam
um calorzinho aconchegante. Tomás voltou a dormir,
deitou a cabeça no colo da mãe.
No canto, perto da porta, ficava a geladeira
azul. A porta era escorada com uma tora de madeira.
Um dia que Sebastião chegou bêbado, bateu a porta
da geladeira com tanta força que ela relaxou,
precisava de uma escora. Ao lado, perto do armário
onde ficavam os utensílios da cozinha, tinha o fogão a
gás que só vivia entupido. Apenas duas bocas
funcionavam.
A única sala era o canto mais espaçoso. Havia
uma mesa de madeira, quatro cadeiras e no canto, um
sofá amplo, fora de moda, saindo as molas. Maria
jogava dois travesseiros nos buracos e pronto, ele
ficava novo. Aquele sofá foi a cama de Tomás por um
bom tempo. Maria jogava as cobertas e ele dormia ali
mesmo. Havia apenas um quarto, dividido em dois,
por uma cortina florida.
Na rua de cima, perto da feirinha, havia uma
boca de fumo disfarçada de casa noturna. O barzinho
da recepção era mal-amanhado, sujo, o ar carregado
do cheiro acre das bebidas, mesclado com o cheiro de
gordura rançosa que se desprendia do úmido balcão
de madeira. As paredes encardidas eram decoradas
com calendários de mulheres nuas e carros de luxo.
Acima do eixo do ventilador, preso ao teto, um
amontoado de fios de teias de aranha se prendia às
hélices do aparelho, dando-lhe a aparência de lustre
de castelo mal-assombrado. O ventilador fazia muito
barulho e pouco vento. Esses detalhes não
atrapalhavam o fluxo de clientes que entravam e
permaneciam horas naquele lugar pitoresco.
Atrás do aparente desleixo, firmava-se o ponto
estratégico para traficantes, usuários e prostituição.
Nos fundos do bar, havia alguns quartos onde as
prostitutas se deitavam com seus clientes. Sebastião
era um deles, enfrentava qualquer briga por uma
noitada ao lado das mulheres, aliás, o bar também era
palco para o costumeiro festival de pancadas e
centenas de discussões. Diversas vezes o ambiente
ficava todo destruído, mas no dia seguinte, tudo
voltava a funcionar normalmente. O proprietário se
chamava Toninho troca-troca, um ex-presidiário.
Apesar de possuir um milhão de defeitos
Sebastião era ciumento e tinha lá as suas razões,
afinal, a esposa era jovem e bonita, as filhas estavam
moças e despertavam o interesse e a fantasia dos
rapazes.
Um deles se encantou com a Estela, chamava-
se Carlos. Era bom moço, carregador de cereais da
feirinha. O namoro começou às escondidas, os
encontros furtivos aconteciam quando Sebastião não
estava na área. De vez em quando ele sumia, ficava
sem dar notícias por um tempo, depois aparecia e
nunca explicava o sumiço. Quando roubava, ficava
escondido e só depois que as coisas esfriavam, voltava
com a cara mais limpa do mundo e dinheiro no bolso.
Naqueles períodos de ausência paterna a família
ficava em paz e tudo era muito bom. Mas quando
Sebastião voltava, as feridas sangravam outra vez e a
insegurança não se desgrudava dos quatro.
O sonho de Estela era levar uma vida normal,
mas não sabia o que fazer. Sentia vontade de namorar,
como qualquer jovem da sua idade, mas isso não lhe
era concedido. O pai costumava dizer que “filha de
Bastião Pilantra não se enraba com macho nenhum”.
As meninas seguiam ao pé da letra. Morriam de medo
do pai.
Um dia o Carlos apareceu sem avisar, fincou os
pés na frente do barraco e insistiu:
- Estela, eu preciso falar com você!
- Carlos, você está louco! Vá-se embora! Se meu
pai te pega, ele te mata... Por favor, vá embora!
- Não, desta vez eu vou enfrentá-lo!
- Você não sabe o que está dizendo. Aqui todo
mundo tem medo do papai. Vá embora enquanto é
tempo, ele vai chegar a qualquer momento.
- Já disse que vou ficar. Eu gosto de você, não
quero namorar escondido, vamos viver uma relação
aberta. Não somos crianças, eu ainda vou te levar
desse lugar para sempre!
- Pirou cara? Você é pobre como eu; não
podemos sair pelo mundo assim...
- Você é covarde! Por você eu sou capaz de
tudo. Vamos sumir deste inferno, pelo menos assim
seremos felizes!
- Você acha mesmo que eu teria coragem de
deixar a minha mãe nas mãos dele? E a Cida? É
incapaz de qualquer coisa. Além disso, tem o Tomás...
Falar é fácil meu amor, mas a vida é bem diferente.
- Pense em você, pense em mim, na gente!
Vamos construir nossa família e com o tempo quem
sabe, a gente vem buscar a sua mãe...
- Meu querido, a vida não é como as novelas.
Você só tem 17 anos. Sabe o que vai acontecer se a
gente fugir? O meu pai vai atrás e mata a gente! Ele é
um homem perigoso, morre de ciúmes da gente e ai
daquele que tocar num fio de cabelo de uma de nós...
Vá embora, por favor! Depois a gente se encontra em
outro lugar, aqui é perigoso!
- Não, eu não irei embora!
Sem titubear ele a abraçou, beijando-a nos
lábios. Estela se soltou com o coração aos pulos, era
dia claro e os vizinhos estavam olhando.
- Vá embora Carlos.
Naquele momento Cida apareceu, estava
preocupada com a irmã.
- O pai vai chegar a qualquer momento! Vá
embora Carlos, se ele pegar os dois eu nem quero ver!
- Eu vou ficar. Resolvi enfrentar o famoso
Bastião...
Estela se desesperou. Implorava para que o
rapaz fosse embora, mas ele não se movia. A pobre já
não sabia o que fazer. Temia o pior...
- Pelo amor de Deus, vá embora!
Na descida do morro, a figura de Sebastião
tomava corpo, aproximando-se cada vez mais. Carlos
não se moveu, estava disposto a enfrentá-lo.
- O papai está chegando! - Avisou Cida ao
avistar o pai.
- Vá se embora, ainda está em tempo... -
choramingou Estela, coração aos pulos.
Sebastião se aproximou meio trôpego, estava
embriagado, mas consciente. Cida afastou-se,
arrastando Tomás pela mão, assistiam à distância. O
povo apreciava com certo entusiasmo e comentavam
entre si.
Sebastião agarrou o rapaz pelo braço e
começou a berrar perguntas. Cida tremia sem saber o
que fazer. Estela chorava.
- O que você está querendo com a minha filha
seu porra? - Gritou.
- Eu gosto da Estela e quero namorar sério com
ela! - Respondeu firmemente o rapaz.
- Será que ouvi bem ou estou sonhando? -
Perguntou zombeteiramente, fechando um olho e
arregalando o outro, mirando o rapaz.
- Eu gosto da sua filha, seu Bastião e quero que
o senhor fique sabendo do nosso namoro e... – Mas
Sebastião não o deixou continuar, desfechou-lhe um
soco que o rapaz caiu inerte. A gargalhada foi geral.
Cida soltou um grito, puxou Tomás para o interior do
barraco. Sebastião deixou o rapaz estendido e entrou
arrastando Estela pelo braço. Ela chorava
copiosamente, completamente humilhada. O Carlos
foi socorrido pelas pessoas e desde então, nunca mais
se ouviu falar dele. O primeiro amor de Estela.
Primeiro e último.
Sebastião estava furioso, sacudiu a filha com
força, enquanto protestava aos berros:
- Sua cachorra - gritou histérico - você quer
virar uma puta? Não vê que os caras só querem saber
de sacanagem?
Desferiu uma bofetada no rosto da filha, um
filete de sangue correu sobre o nariz. O pai não se
importou e ninguém podia socorrê-la, a mãe não
estava presente, tinha ido à igreja.
- Quer dar o rabo? Filha minha não vira puta!
Nem que eu morra, mas isso eu não vou deixar! Você
ainda vai me desobedecer?
O pranto não a deixou responder. Novo
bofetão.
- Responda!
- Não... - respondeu em lágrimas.
Maria entrou correndo. Ouviu de longe os
gritos e sabia que o marido estava castigando as filhas.
- Santo Deus, pare com isso Bastião!
Ele se voltou feito um cão feroz e encarou a sua
nova vítima. Empurrou a mulher com violência
contra a parede da frente.
- A culpa é toda sua! Em vez de ficar aqui,
tomando conta da casa, fica socada na maldita igreja!
Sabe o que eu vi? A sua filha mais velha de papo com
um moleque na frente do barraco. Se você não tivesse
saído, nada disso teria acontecido! Eu já lhe disse que
não quero saber de oração!
Sem esperar qualquer resposta, saiu
apressadamente em direção ao quarto. Pouco depois
começou a roncar como se nada tivesse acontecido. A
pancadaria fazia parte da rotina daquele homem.
Estela continuou chorando. Maria tentava consolá-la.
- Oh! Mamãe, não foi nada disso...
Maria levantou-se e a abraçou, não sabia o que
dizer diante de tanta humilhação. Falar o que numa
situação como aquela?
- Eu acredito minha querida. Mas não pode
contrariar seu pai. Ele é muito nervoso.
- Foi o Carlos. Tanto que eu pedi que fosse
embora e ele não foi. Disse que ia ficar e enfrentar o
papai frente a frente. Ele queria a permissão para
namorar... Pobre Carlos! Ganhou um soco tão violento
que desmaiou... Eu fui a culpada!
- Não chore. Eu sei que você é uma boa menina
e não fez nada errado. Mas é o seu pai, precisa
perdoar!
- Nunca o perdoarei! Eu não aguento mais... –
tentou afastar o choro que a voz trêmula denunciava
- Eu nunca serei como as moças da minha idade...
Ninguém vai se interessar por mim, pois temem o
meu pai. Acho que eu e a Cida vamos morrer solteiras!
- Não diga isso, Bastião pode escutar...
Por um momento ela parou de chorar, limpou
os olhos e encarou a mãe. Baixou o tom de voz e
afirmou seriamente:
- Eu sei muito bem porque ele faz isso!
- Filha... – advertiu-lhe a mãe receosa de
qualquer comentário.
- Ciúme, puro ciúme!
- Todo pai tem ciúme dos filhos. Vamos parar
com essa conversa, pelo amor de Deus. Chega por
hoje!
Ela deu de ombros, não se calaria. Contaria
tudo à mãe.
- Ele não tem ciúme como todo pai. Ele tem
ciúme de macho! A senhora sabe disso, Cida também.
E um dia o Tomás vai saber! Mas em mim ele não
trisca o dedo e nem na Cida. É por isso que ele tem
raiva de mim, tem ciúme, tem desejo... – voltou a
chorar.
- Fale baixo... – pediu a mãe.
- Ele é um porco nojento, filho do demônio! –
Gritou.
Maria engoliu em seco. Respirou fundo. Não
podia negar a realidade, mas podia escondê-la o
tempo que fosse preciso. Sempre notou o olhar guloso
do esposo sobre as filhas, especialmente quando elas
começaram a ficar mocinhas. Temia o pior, por isso
ficava vigilante. Não deixava as meninas sozinhas, era
um meio de lhes proteger de algum modo, sobretudo
em relação à mais nova que não era tão valente como
a irmã, e tal fragilidade poderia ser a sua perdição.
- Ele já buliu com vocês? - Perguntou.
Cida baixou a cabeça e começou a chorar.
- Em mim ele nunca tocou, mas a Cida... –
revelou Estela.
- Estela, não fale nada... – pediu a mais nova.
- Mãe precisa saber e eu vou contar. Não vou
esconder nada de agora em diante. Na semana
passada ele alisou os peitos dela e ela saiu correndo.
Ele é um bicho maldito, mãe, e só quer a nossa
desgraça.
Cida saiu envergonhada. Chorava no cantinho
do quarto. Não queria se lembrar daquilo, mas a cena
vinha-lhe à mente a todo o momento. Dormindo ou
acordada, a sensação da presença asquerosa do pai
tirava-lhe a paz. Uma cena diabólica. Foi num dia
comum da semana, ela estava só no barraco. A mãe
tinha saído com Tomás e Estela estava na casa da
vizinha. O danado se aproveitou e entrou sem fazer
barulho. Cida estava lavando a louça. Ele se
aproximou. Não tinha sede, mas tomou um copo
d’água. Depois começou a alisar maliciosamente o
cabelo da filha.
- Eu preciso lavar a louça...
Disse a menina, num fio de voz, gelada de
pavor.
- A louça espera... Eu tenho reparado que você
está ficando muito linda!
- Quer tomar café? Passei agora mesmo...
A voz saiu arrastada, as pernas tremiam. Ele
perdeu a calma e começou a abraçá-la.
- Tem medo de mim? Sou teu pai...
Numa fração de segundo abraçou a garota,
cheirou seu pescoço e como um cão faminto começou
a lamber-lhe o ombro. Não satisfeito enfiou a mão
sobre a blusa, rasgando o decote e apertou os seios
dela. Cida não resistiu, começou a tremer e a chorar.
Pálida como uma vela, teve que se sentar para não
cair. Vomitou ali mesmo. Sentiu que o ar lhe faltava e
começou a chiar ofegante. O safado ficou assustado e
saiu apressado, antes, porém, tratou de adverti-la:
- Hoje passa... E não fale nada, senão...
Quando Maria voltou, notou que a filha estava
diferente. A garota mentiu dizendo que estava com
febre e vomitadeira. Depois chamou Estela e contou-
lhe a verdade.
- Cida, ele só fez isso?
Estela estava revoltada.
- Só. Eu não quero ficar sozinha com ele. Ele vai
voltar Estela, me ajude pelo amor de Deus...
- Pode deixar minha irmã. Confie em mim e a
gente se vigia o tempo todo. Ainda bem que Tomás
nasceu homem! Desgraçado, agora sei por que ele
queria jogar o menino fora! Tomás será o nosso
escudo, ele vai nos ajudar...
- Tenho medo... – Cida chorava. O coração
palpitava apressadamente.
- Não chore minha irmã, eu vou te proteger. A
mamãe não deve saber de nada...
Aquele testemunho dramático deixou a mãe
arrasada. Maria vivia a desconfiar do marido, agora a
terrível certeza. Não sabia o que fazer. A violência do
esposo afastava toda e qualquer possibilidade de
resolução.
- Eu só não desapareço de uma vez, porque não
tenho coragem de deixar a senhora, a Cida e o Tomás
nas mãos dele! Se não fosse isso, eu já teria sumido há
muito tempo...
Maria engoliu em seco, limpou uma lágrima
teimosa que ameaçava deslizar-lhe sobre o rosto.
Tinha que manter a serenidade em nome dos filhos.
- Estela, não diga estas coisas. Venha, lave o
rosto. Seu nariz ainda está sangrando...
Sabia que as filhas corriam sério risco se
ficassem a sós com o pai... A ideia da separação já lhe
passou pela cabeça uma série de vezes, mas sentia-se
impotente diante do temperamento do esposo. Tinha
certeza que ele a mataria se ela o largasse.
“Jesus, tende misericórdia da minha família” –
suplicava dia e noite. Era o que podia fazer. Transferia
para os filhos todo o amor que já não sentia por
Sebastião. Os filhos eram a barreira entre ela e o
suicídio. Temia o destino dos filhos sem a sua
presença, por isso, escolheu a vida.
Três
“Mãe... o que é universo?”
Tomás cresceu neste mundo marginal, mas
tinha que aceitar. Sempre foi calado e tímido. Seu pai
o apelidou de Canivete e logo seu verdadeiro nome
ficou esquecido. Tomás tornou-se apenas uma sombra
de Canivete. O pai nunca o enxergou como filho, fazia
questão de mantê-lo longe de seus olhos, de expor seu
desamor.
Ainda na tenra idade, Tomás aprendeu a
cultivar o medo. Era o único sentimento que nutria
pelo pai. Sentia-se inseguro quando ele estava em
casa. Por isso, vivia torcendo, silenciosamente, que
Sebastião se afastasse, os deixasse em paz e partisse
para nunca mais voltar. Sabia, era apenas um sonho
tolo. O pai estava ali, o tempo todo, e quando sua voz
era ouvida, mesmo à distância, o coração disparava.
O medo se agigantava.
O garoto nunca esteve na escola. Tudo o que
aprendeu foi com as irmãs. Estela e Cida conseguiram
fazer o ensino fundamental, mas Sebastião as proibiu
de seguir adiante. Foi puro ciúme. Nunca suportou a
ideia de ver as filhas ao lado de outros garotos, longe
do seu território.
Proibido de estudar, o pequeno Tomás foi
alfabetizado em casa. Aprendeu a ler e a escrever com
as irmãs, mas nutria o sonho de entrar para a escola
como qualquer criança, mas isso nunca foi possível...
- Assim?
- Lindo, meu amor! Você é o garoto mais
inteligente do mundo.
- Eu queria entrar na escola...
- Ora meu bem, você não está gostando da sua
professorinha aqui?
- Gosto, mas é que eu queria ser da escola que
o Flavinho estuda. Lá tem um monte de alunos...
- Um dia você irá para a escola...
Estela o abraçou com força.
- Você está chorando...
Ela limpou os olhos rapidamente.
- Estou com as vistas ardendo. Não fique triste,
eu vou fazer a sua matrícula na escola do Flavinho.
Mas ainda é cedo...
Flavinho era um garoto, filho de uma vizinha
que trabalhava na casa de um médico.
- Eu vou crescer e tirar todo mundo daqui.
Vamos morar numa casa bonita, com um quintal deste
tamanho! - Abria os braços fazendo a demonstração -
vai ter um quarto pra cada um. Um pra você, outro
pra mamãe, outro pra Cida.
- Que ótimo! Olhe que eu vou te cobrar, viu?
Bom, agora fique aí estudando, enquanto vou
comprar um pacote de trigo. Vou fazer aquele pão que
você adora. A mamãe e a Cida foram à feira, logo
estarão de volta. Eu não demoro.
Estela saiu e ele continuou fazendo alguns
desenhos. Mas a paz durou pouco, foi rompida com a
chegada do pai. Tomás voltou a sentir o mesmo frio
por dentro. Fugia do seu olhar inquisidor,
desconcertante, sarcástico. Estava com o coração aos
pulos. O que o pai queria afinal? Quanto mais ele se
aproximava mais ele se sentia desconfortável.
Sebastião caminhou em silêncio, depois ficou
parado diante do filho, encarando-o sem dizer nada.
Em dado momento perguntou:
- O que está fazendo?
- Eu... estou estudando - respondeu num sopro.
Abruptamente Sebastião o ergueu, sentando-o
nas suas pernas. Por mais que ele tentasse ser
agradável, o garoto sentia-se amedrontado. Aquele
homem que o segurava entre os braços, roçando-lhe o
bigode vasto era a expressão do terror.
- Você vai ser um grande homem! Vai ter o
respeito de todo mundo e será forte como eu. Agora
você é magro como um caniço, mas será forte como
um touro.
Encarou o filho forçosamente, queria ver a sua
reação. Notou que o garoto estava pouco à vontade,
sentia medo, começou a tremer e a fazer cara de choro.
Num ímpeto, Sebastião deu-lhe um sopapo, fazendo-
o perder o equilíbrio e quase cair do seu colo. Tomás
estava mudo de medo.
- Está com medo? Sou o seu pai e não um bicho!
- Gritou.
O menino não aguentou segurar e abriu o
berreiro. Sebastião nunca suportou choradeira,
sacudiu o filho com violência e ele chorava ainda
mais. O terror tomou conta de Tomás, o coração batia
loucamente, enquanto o pai se divertia com o seu
drama. Tentou se libertar, mas Sebastião se enfureceu.
Arregalou os olhos e tapou-lhe a boca, abafando o
pranto.
- Grita agora que eu quero ver! Vamos, grita!
As duas irmãs e a mãe entraram correndo.
Tomás estava quase sem fôlego, com aquela mão
enorme tapando-lhe a boca. Seus olhos continuavam
a chorar e as lágrimas ardiam como brasas de um
vulcão incandescente.
- Para com isso, Bastião, quer matar o menino?
Ele não se importou, fazia absoluta questão de
ignorá-la. Foi quando ela perdeu a cisma e agarrou o
braço dele, tentando libertar o filho. Sebastião largou
o filho para se atracar à nova presa. No chão as poucas
verduras esparramadas. A mãe foi surrada na frente
dos filhos, sem qualquer compaixão.
Tomás ficou chorando no canto da sala. A mãe
apanhava nas costas, no rosto, nas pernas... Cida
agarrou a mão de Tomás e os dois foram se refugiar
no quintal. Estela entrou em defesa da mãe e tentava
apartá-los a qualquer custo. Em dado momento,
Sebastião largou as duas e saiu porta afora. Rosnava
como um tigre enjaulado. Elas ficaram encolhidas no
chão, chorando de dor, revolta e desespero.
Tomás estava em prantos. Cida tentou acalmá-
lo, mas o garoto tremia o corpo inteiro. Não sabia o
que se passava e nem o porquê, mas aprendeu, ainda
na infância, a sentir ódio do pai. Para ele, Sebastião era
um monstro que dormia ao lado da mãe.
Depois de algum tempo, Cida e Tomás
voltaram à sala. Maria estava chorando, o rosto cheio
de sangue. Estela limpava os ferimentos. Pela
primeira vez Tomás viu a mãe desesperada. Chorava
o fracasso, a covardia, a fraqueza, a impotência. O
garoto voltou a soluçar, assustado, achava que a mãe
estava morrendo.
- Mamãe...
Ela engoliu o choro e o olhou para o filho.
- Não foi nada, meu filho...
Manteve a voz terna, esforçou-se para sorrir.
- Estela, coloque a comida do Tomás, vou
tomar um banho.
Levantou-se meio desajeitada, aproximou-se
do filho. Acariciou seu rostinho e enxugou o resto do
choro. Nos gestos delicados, escondia a dor que sentia
no corpo e no coração.
- Não foi nada...
Saiu cambaleante. Evitou olhar para qualquer
um dos filhos. Ajeitou os cabelos em gestos rápidos
até prendê-los no costumeiro rabo de cavalo.
“Jesus, tenha compaixão da minha família” –
pensou num suspiro cansado.
O sol foi se escondendo aos poucos, nuvens
escuras pairavam no céu, o tempo mudou. Soprava
um vento frio. Sinal de chuva. Isso era bom, o calor
dos últimos dias estava sufocante. Os quatro foram
para a cozinha. Comeram batata, arroz e ovo frito.
Feijão e carne só de vez em quando. Quando a coisa
andava mal, era só batata, ou então, iam para a cama
com a barriga roncando.
Tomás passou boa parte da infância sem ter
amigos. Sua convivência era apenas com a mãe e as
irmãs. A fama do pai afastava os vizinhos e os outros
meninos o olhavam atravessado, caçoavam da sua
magreza, gritavam seu apelido, numa pirraça sem
fim. Tomás não reagia, baixava a cabeça como um
manso cordeiro, embora se sentisse incomodado com
as humilhações. Sempre foi uma criança sensível. As
marcas da infância sofrível sempre permaneceram
escondidas na parte mais delicada da alma.
Depois do almoço, ele foi para o quintal brincar
na terra. Ouviu soluços atrás do banheiro. Era a mãe.
Estava sentada debaixo do pé de goiaba, chorando
sozinha. Tentava ocultar a sua dor. Tomás ficou
parado a contemplar aquela figura. Não se conteve:
correu e a abraçou pelas costas. Ela se virou afagando-
lhe os braços...
- Tomás, meu Tomás...
Ele sentou-se ao lado da mãe. Maria o fez deitar
a cabeça no colo macio. Ele já sabia que ela ia fazer
cafuné, adorava sentir as suas mãos afagando seus
cabelos.
- Mãe... Por que a gente sofre tanto?
- A vida oferece tantas coisas. Boas e ruins... Os
meus filhos foram as coisas mais belas que me
aconteceram. Coisas boas...
- E o papai?
- O que é que tem o seu pai?
- Ele é a coisa ruim...
Tomás não conseguiu disfarçar a lágrima que
desceu suavemente. Maria o olhou, depois olhou o
tempo com um semblante triste. Respondeu com a
voz carregada de amargura.
- Nós ainda vamos ser muito felizes...
- Todos nós? Até papai?
- Sim...
- Você gosta dele?
- Nós devemos gostar de todas as pessoas que
nos cercam e também aquelas que não fazem parte do
nosso universo.
- Mãe, o que é universo?
- Universo é o mundo, as coisas, as cidades, o
sol, o mar, o mundo todo.
- Mãe...
- Pode falar querido...
Ele ficou em silencio, indeciso, buscava
pedaços de coragem para dizer aquilo que estava
preso no seu coração. As lágrimas voltaram a escorrer
e ele desabafou:
- Eu não gosto dele... Ele vive batendo em você,
nas meninas... Ele não é bom, não gosta da gente. Eu
queria que ele fosse embora e não voltasse nunca
mais! Aí, só ficaria eu, você e as meninas...
Ela engoliu em seco. O beijou amorosamente.
- Deus não gosta que a gente fale estas coisas. É
pecado. Tem que ser assim até quando Deus permitir.
- E Deus não gosta da gente?
- Gosta sim.
- Ele não quer o nosso bem?
- Quer.
- Então, ele quer que a gente fique sem o pai...
Às vezes, a mãe não sabia como mudar o seu
rumo de ver as coisas.
- Você é só uma criança. Tem muito tempo pela
frente e vai ser muito feliz. Deus vai permitir que você
tenha sorte na vida.
- E por que a gente não tem amigos?
Tomás voltou a surpreendê-la com aquela
pergunta. O filho nunca esteve numa escola, mas
sabia de muitas coisas. A mãe suspirou e olhou para o
céu, perguntando-se donde vinha tanta esperteza.
- Um dia, você vai saber de uma porção de
coisas, ninguém vai te contar. Você vai descobrir
sozinho.
De repente, ela ficou séria. Levantou-se e
estendeu a mão para o filho.
- Vamos entrar. Está esfriando. Parece que vai
chover forte.
- Que bom! Tomara que venha com relâmpagos
e trovões!
- Que gosto mais esquisito! Não tem medo?
- Não. Eu sei que vem do céu e quando chove
forte, eu peço à Nossa Senhora para não deixar o
barraco cair.
- Você reza como ensinei?
- Todos os dias.
Quatro
“No seu egoísmo, o pai conseguiu chorar.
Um choro seco, mas era choro”.
Os anos foram passando lentamente. Tomás
estava com sete anos. Era natal. Naquele dia ele
desenhava qualquer coisa no caderno. A mãe estava
acabando de aprontar a ceia. O frio era intenso. Ele
vestia um casaco de lã, cor marrom com remendos
vermelhos. Lembrava-se bem daquele dia.
O pai não estava em casa. A ceia foi uma
deliciosa sopa de macarrão com legumes,
acompanhada de alguns pães de sal. O prato do pai
foi separado e colocado em cima do fogão para que
não esfriasse. A luz do barraco tinha sido cortada mais
uma vez. As contas vencidas recebiam o devido
tratamento. Maria já esperava por isso e voltou a
utilizar o velho lampião a querosene. Na Rádio
Aparecida, a voz emocionada do padre Vitor Coelho
de Almeida, fazia de “Os ponteiros apontam para o
infinito”, um programa imperdível.
No centro comercial, a cidade estava repleta de
enfeites, lojas com papai Noel, luzes, músicas e
centenas de pessoas carregando braçadas de
presentes dos mais variados tipos. Era o natal do
comércio, do lucro e da fartura.
No morro, a família de Tomás também
comemorava, embora de forma humilde, o
nascimento de Jesus. Não teve “Papai Noel”,
presentes ou “parabéns a você”. Era apenas o 25 de
dezembro, natal dos pobres, famintos, abandonados,
miseráveis, esperançosos...
Tomás não sabia explicar os motivos, mas
naquela noite, sentiu um nó na garganta, quase não
conseguiu fazer a sopa descer. Antes de começar a
refeição, Maria aproveitou que Sebastião não estava
presente para reunir a família, à beira da mesa.
Rezaram, depois, começaram a comer. Era uma ceia
simples, sem novidade. Então, eles molhavam o pão
na sopa, saboreando-o, gulosamente.
E Jesus Cristo continua nascendo...
- Devagar Tomás. A sopa está muito quente, vá
soprando aos poucos.
A fumaça da sopa subia e se misturava com a
que saía do lampião.
- A cidade está uma beleza lá no centro. Tem
um monte de papai Noel nas lojas – disse Tomás.
Na véspera do natal, ele foi ao centro da cidade
com a mãe e ficou maravilhado. À entrada de uma
grande loja, havia um homem sentado, vestido de
Papai Noel - uma figura encantadora para as crianças
da sua idade. Maria o deixou ali enquanto foi visitar a
Igreja mais próxima. Tomás olhava, fascinado, para o
Papai Noel. Nem pensou nos presentes, estava diante
da pura magia. Mas o homem notou a sua curiosidade
e sua voz, carregada de intolerância, rompeu qualquer
possibilidade de encanto:
- Você quer alguma coisa? - Perguntou. No seu
colo havia duas crianças.
Tomás gaguejou, repleto de timidez. Notou
que as duas crianças saboreavam chocolates.
- Perdeu a língua menino? – Insistiu o homem,
sem muita paciência.
- Eu queria bombom...
O homem sorriu com desdém.
- Doce não mata a fome de ninguém, garoto.
Você precisa de uma tonelada de doces e eu não posso
dar essa quantidade. Tome um pirulito e agora vá
embora.
Tomás ficou em silêncio, não recebeu o pirulito.
Ele insistiu:
- Garoto, eu preciso trabalhar, pegue o pirulito
e caia fora. Não quer? O problema seu, agora caia fora.
Tomás afastou-se tristemente. Fez força para
não chorar. Aprendeu cedo o sentido e a dor da
humilhação. Andou alguns metros, de vez em quando
voltava a cabeça para o Papai Noel. O homem
continuava distribuindo simpatia para os clientes. De
longe, Tomás espiava. Outro garoto se aproximou
com a mãe, uma senhora de traços finos e delicados.
O bom velhinho se desmanchou em carinhos pelo
menino ricamente vestido.
- Feliz Natal meu filho... Venha sentar-se com o
papai Noel. Tome um saquinho de bombons. Presente
do bom velhinho!
A mãe do garoto sorriu. O menino permaneceu
em silêncio. Pegou a sacola de doces e voltou-se.
Caminhou em direção a Tomás. Seus olhos verdes,
brilhantes como esmeraldas, acentuados pelos cílios
escuros, não se desviavam dele. Aos poucos os seus
lábios foram desenhando um sorriso. Uma ternura
passou no coração de Tomás, como uma brisa leve.
Sentiu um arrepio estranho.
- Tome, eu não quero doce, disse, oferecendo a
sacola.
Tomás ficou parado, sem ação, apenas o olhava
em silêncio. A mãe do garoto assistia ao lado do Papai
Noel. Tomás não sabia o que dizer. Ficou num dilema
entre a humilhante vontade de chorar e a alegria de
aceitar a esmola.
- Eu tenho muitos doces lá em casa, estes são
para você. Por favor, aceite...
Ele tinha a voz suave, pareceu-lhe sincero,
deveria ter uns oito anos. Tomás piscou os olhos e
logo uma lágrima desceu. Começou a soluçar. O
garoto o abraçou amistosamente. Também ele
chorava.
- Eu sei que a fome é imensa no mundo. Uns
têm demais, outros nada tem. Existe muita
desigualdade! Mas a vida não acabou. Ainda é tempo
de muitas coisas. Não se deixe levar pelo desespero.
O garoto falava de modo tão especial, que
parecia ter o dobro da sua idade. Usava a língua dos
sábios. Enquanto o escutava, Tomás foi tomado por
uma agradável sensação de conforto. O menino
segurou a sua mão. Continuou a falar bonito, de um
jeito que Tomás nunca ouviu:
- Agora feche os olhos e repita comigo:
“Senhor, põe em mim um coração novo. Quero ser
feliz. Ajuda-me a descobrir a minha meta. Ajuda-me
a buscar as coisas do alto”.
Tomás repetiu com firmeza. Manteve-se de
olhos fechados. Então o garoto colocou em suas mãos
a sacola de doces. A magia foi quebrada, quando
Tomás escutou a voz da mãe, que o chamava,
acenando-lhe, do outro lado da rua. Ele fez sinal que
o aguardasse mais um pouco e ao voltar o rosto, um
susto inexplicável: o menino da voz suave não estava
ali. Olhou de todos os lados e só viu o Papai Noel, que
continuava sentado com uma criança ao colo. Encheu-
se de coragem e foi até ele. Perguntou:
- Onde foi aquele garoto que falava comigo?
- Que garoto?
- Um menino... – Tomás não conseguia se
explicar.
- Ora, eu tenho mais o que fazer.
Não sabia o que pensar. O coração estava aos
pulos, corpo arrepiado. Teria sido uma visão ou tudo
invenção da sua fantasiosa mente? O fato é que estava
com uma sacola de bombons na mão. O que houve
realmente? Não conseguia entender a experiência
mais linda da sua infância.
A mãe se aproximou.
- Quem deu esses doces?
- Foi o Papai Noel. Vou levar alguns para as
meninas. Elas vão adorar.
...
Quando estavam terminando a sopa, Sebastião
entrou com um monte de pacotes debaixo dos braços.
Parecia mais humano e pela primeira vez, tratou a
todos com carinho.
- Feliz Natal – disse.
Tomás não estava sonhando e seu pai não
estava bêbado, não daquela vez. Entregou um
embrulho a Maria, passou a mão levemente sobre a
sua cabeça e sorriu para as meninas. Todos ficaram em
silêncio, desprovidos de qualquer reação. Sebastião
estava diferente e, talvez por isso, naquele dia, Tomás
teve a rara oportunidade de experimentar a sensação
de ter um pai de verdade. Um pai que nunca se
manifestou, porque, possivelmente vivia sufocado
pelas feridas do destino e, para se manter protegido,
preferia ser um homem rude, violento e distante.
Às vezes, Tomás ficava pensando nele e não
conseguia ter raiva, mas compaixão. Sebastião nasceu
no sofrimento. Não teve infância e muito jovem viu-
se transformado num sem terra, depois num sem teto
e, finalmente, um sem nada. Sua vida sempre
transitou entre o risco de acertar e o medo do fracasso.
Ironicamente, mesmo no mundo do banditismo não
alcançou qualquer sucesso. Não era querido por
ninguém, muito menos pela família que nunca viu
nele um pai, mas um estranho opressor. Sim, ele era o
maior opressor da família, embora suas atitudes
condenáveis sejam explicáveis já que ele sentia a
necessidade de ascender-se como homem cuja família
era o único lugar em que conseguia manter domínio e
posse. A família era seu território demarcado e ele
senhor absoluto. Esse foi, certamente, o seu pior
defeito, pois ao perseguir a família, perdia uma
excelente oportunidade de se redimir, de ser um pai,
um amigo, um parceiro. Mas não, ele não admitia isso.
Ele não queria isso. A sua briga com o mundo e seu
criador não o permitia enxergar em Maria a terna
morena do Pará, uma esposa fiel, dedicada e amorosa.
Ele era um pai cego que não conseguia enxergar nas
filhas duas jovens exemplares que nunca se
entregaram à prostituição, às drogas, ao crime... Ao
contrário, gostavam de estudar, trabalhar e sonhavam
ter uma vida normal. Sebastião não quis a coerência,
infelizmente abdicou do caráter e de qualquer vestígio
da nobreza paternal; optou pela insensatez, tornando-
se o algoz das próprias filhas. Ao desejá-las
sexualmente, abriu mão de sua condição de pai para
ser um macho inescrupuloso.
- Gosto de pensar que tudo podia ser diferente
– diria Tomás alguns anos mais tarde.
Seu pai não nascera bandido, não era do mal,
não herdou essa marca terrível. Mas um dia a sua
história tomou um rumo diferente e ele nunca soube
lidar com as diferenças, pois ainda jovem sofreu
silenciosamente a pobreza e o abandono: perdeu os
pais, teve que criar os irmãos e viu a cara da fome
entrar e sair do seu casebre... Sebastião viu crescer
dentro de si o orgulho ferido que o cegava aos poucos,
alimentando o ódio de uma situação que ele queria se
ver livre, mas não sabia como. Para ele, o mundo
estava errado e o culpado era Deus. A ingenuidade e
o individualismo nunca o fez entender que as
estruturas sociais não são armações divinas, mas
humanas. Não se deu conta que o sistema produz as
diferenças.
Como seria a vida daquele jovem de alma
nobre - que não teve infância, tantas vezes humilhado
e desprezado pelos fazendeiros do sul da Bahia?
Talvez tivesse realizado o sonho de conquistar um
pedaço de terra, para plantar cacau no meio da mata,
para viver na sua terra natal...
Mas não foi assim.
Naquele natal, ele voltou a ser, por alguns
momentos, o mesmo jovem sonhador. Naquele dia,
ele não era o algoz, mas um pai que entrou em casa
com os braços carregados de presentes, de olhos
brilhantes, vivos, esperançosos. Aquele, era o pai
verdadeiro que veio dar o ar de sua graça de modo
inesquecível.
Todos receberam os pacotes. Após o impacto
daquela atitude incomum, eles se voltaram para os
presentes. O entusiasmo os invadiu, afastou a cisma,
abriram apressadamente os pacotes. Sebastião
observava em silêncio e, por alguns momentos, eles se
esqueceram que ele estava ali, escorado no canto da
parede, como se assistisse a um espetáculo.
A mãe ganhou uma linda blusa de lã cor de
rosa. Esboçou um sorriso de pesar, no fundo tinha
certeza que os presentes eram roubados. Não disse
nada, não havia o que dizer diante da ilusão dos
filhos. Era natal, afinal. Preferia fingir que o esposo era
um trabalhador honesto dedicado à família e que fazia
questão de celebrar o natal da esperança. Cida ganhou
um vidro de perfume e a Estela um delicado relógio
de pulso. Em seguida, foi a vez de Tomás: ganhou um
brinquedo, primeiro e único da sua vida, um lindo
caminhão. Ficou rindo feito bobo, contemplando o
presente com o maior carinho do mundo.
O pai continuou olhando, mas, naquele dia,
seus olhos estavam diferentes, sem a costumeira
expressão raivosa. Andou até o fogão, pegou o prato
de sopa e o pão de sal. Comeu em silêncio. Naquele
dia ele chorou. Um choro sem lágrimas. Um choro
solitário. Um choro seco. Mas era choro.
Maria fingiu tranquilidade diante do
contentamento dos filhos. Não podia destruir aquele
raro clima de harmonia.
Naquela noite Tomás sentiu-se um menino
feliz. Chegou a gostar do pai. Lembrou-se do garoto
da cidade: “a vida não acabou. Ainda é tempo de
muitas coisas”.
Brincou com o carrinho até a hora de se deitar.
Dormiu agarrado ao brinquedo, como o mais rico
tesouro da face da terra.
Naquele natal o pai não os tratou com
severidade. Era como se o espírito natalino o tivesse
apanhado desprevenido e ele se lembrasse que
possuía família. Embora tenha optado pelo caminho
do crime, Sebastião cumpria, a seu modo, o papel de
pai. E ele sofria quando não conseguia roubar. Enchia
a cara, ficava irritado e chegava em casa, descontando
o fracasso na família. Nesses momentos, todos iam
para a cama com a barriga roncando, sem reclamar.
Tinham consciência da situação.
Os filhos sabiam que o pai não era um grande
ladrão, do contrário, não estariam em situação tão
precária. Sebastião tinha sua turma e tudo era
repartido entre o grupo. Fora isso, gastava com
prostitutas, bebidas e com a família. Resultado: a
pobreza permanecia intacta.
Cinco
“Sentia uma dor terrível, mas não derramou lágrima alguma. A revolta doía mais!”
Os meses continuavam a passar, cumprindo a
missão de relógio eterno. Canivete completou sete
anos. Um dia o pai foi acordá-lo.
- Acorde Canivete.
Abriu os olhos. Sentiu novamente um frio por
dentro. A terrível sensação de pavor voltou. Mas a voz
do pai não estava brava. Sentou-se no sofá-cama,
procurou manter a calma. Para seu espanto, Sebastião
segurou as suas mãos e disse em voz baixa:
- Hoje você vai me ajudar a fazer um trabalho.
As irmãs também acordaram e foram até a sala.
Ainda era cedo. Estava escuro. Sebastião explicava
com entusiasmo:
- Você é esperto, Canivete, não vai despertar
suspeita. Hoje você vai aprender o ofício, será o meu
braço direito!
- Por favor, papai, não leve o Tomás! Espera ele
crescer um pouco mais.
- Cale a boca Estela! Não se meta.
- Ele é pequeno, não está acostumado e pode
ser apanhado pela polícia!
Tomás começou a ficar apavorado e as meninas
já não sabiam o que fazer para que o pai mudasse de
ideia. O garoto desconfiava, sabia que não era coisa
boa.
- Está decidido, hoje ele começa a aprender as
primeiras aulas. Já é tempo de Canivete ganhar a rua!
Embora soubesse que o pai não era honesto,
havia uma parede imaginária que o impedia de
enxergar a cara da realidade e se deparar com a outra
face da vida. Mas a parede caiu e tudo se esclareceu
de forma súbita, selvagem, terrível.
A mãe se levantou, ficou a par de tudo,
suplicou, tentou fazer o esposo mudar de ideia. Mas
ele estava realmente disposto a ensinar o filho a seguir
os seus passos. Tomás sentiu-se impotente, tinha de
obedecê-lo, apenas isso.
Depois de um café apressado, foram para o
centro da cidade. No caminho, o pai ia explicando os
detalhes. Ele ouvia atentamente, coração partido,
repleto de medo e dor. As horas passavam e a cidade
se movimentava: outro dia, outras preocupações,
outros assaltos...
- Atrás daquela lanchonete tem uma viela, bem
ali, olha - apontou - está vendo?
- Estou - respondeu num fio de voz.
- Eu ficarei lá, você fica por aqui. Daqui a pouco
algumas velhas cheias da grana vão passar por aqui.
Elas adoram passear pela manhã. É só você avançar
para a primeira que aparecer e tomar a bolsa. Depois
você corre pra viela. Tem que ser rápido e sem medo.
As velhotas não sabem reagir. Não banque o bobo.
Acho que falei tudo. Entendeu o que deve fazer?
- Sim – respondeu repleto de medo.
- Para iniciar é assim mesmo. Depois que você
treinar, poderá assaltar moças e madames. Por
enquanto, tem que se virar com as velhotas. Será o seu
treinamento. Agora fique por aqui. Já tá na hora.
Pouco depois, ele anunciou:
- Ei, acho que surgiu a primeira vítima. Lá vem
uma velha... Vá em frente e faça como eu ensinei! Te
espero no beco.
Tomás olhou e certificou-se que uma senhora
andava em sua direção. Voltou-se para o pai, mas ele
já estava longe. Foi para o local combinado. Só restava
obedecê-lo. Sentiu-se um tanto estranho. Quanto mais
a senhora se aproximava, mais ele tremia, tinha medo,
não sabia como agir. Era uma senhora bem vestida,
baixa estatura, gorda e os cabelos cuidadosamente
amarrado numa popa. Parecia uma vovó dos contos
de fada, sentiu vontade de abraçá-la e desabafar tudo
o que estava preso. Na mão direita, havia uma bolsa,
a maldita bolsa e na outra, uma sombrinha.
Voltou o rosto na direção do beco e avistou o
pai. Estava apressando-o através de sinais. Tomou
fôlego e avançou para a velha, mas na hora exata
faltou coragem e ele a cumprimentou com voz
trêmula.
- Bom dia...
- Bom dia, garotinho. Lindo dia, não?
Ele fez que sim com a cabeça e voltou a olhar o
beco. O pai gesticulava impacientemente e aqueles
acenos o encorajaram. Arrancou a bolsa da mão da
senhora num supetão. Ela gritou amedrontada:
- Socorro polícia, socorro! Alguém me ajude!
Assustado, largou a bolsa e saiu em disparada,
entrando na viela onde o pai se encontrava. Correram
juntos, até se esconderem noutro beco, misturando-se
às pessoas. O perigo havia passado. Ficaram a sós. Só
então, se dirigiu ao filho. Foi uma dor horrível.
Sebastião desfechou um soco tão violento no lado
esquerdo do rosto, que cortou o lábio superior. Tomás
cuspiu um dente. O sangue veio imediato e com ele a
revolta. Como odiou aquele homem.
- Seu idiota! Estúpido! Por que não trouxe a
bolsa, porra?
O pai o sacudia cheio de raiva. Tomás não disse
nada. Sentiu uma dor terrível, mas não derramou
lágrima nenhuma. A revolta doía mais. Passou a odiar
o pai com todas as forças.
- Eu não expliquei tudo, porra? Por que não
trouxe a bolsa? Ficou com medo da velha? Só por que
ela gritou?
Novo bofetão. Ele continuou silencioso.
- Todas gritam, ouviu bem? É só isso que elas
fazem quando são atacadas! Agora, levante-se! Vamos
ver se você aprendeu de verdade. Vamos, de pé!
Momentos depois, ele estava na rua. Respirou
fundo, buscou no mais íntimo todo o desprezo que
sentia pelo pai e assim alimentou-se de coragem e
determinação. Teria que cumprir a missão, nada
podia dar errado daquela vez. Não tardou e avistou
outra senhora idosa. Deveria ter mais ou menos uns
78 anos, caminhava com dificuldade, como se tivesse
medo de cair. Quando a senhora se aproximou, Tomás
evitou o sentimento de compaixão que começava a
brotar dentro de si. Mas se conteve quando a mente
lhe mostrou a imagem violenta do pai. Não podia
fraquejar daquela vez. Arrancou a bolsa da vítima.
Depois saiu em disparada, ao encontro do pai.
Fizera tudo conforme o pai orientou. Sentia
uma imensa dor de cabeça. Percebeu que a boca
estava dormente. O sangue diminuiu, mas ainda
corria de fininho por entre os dentes. Os pés estavam
doloridos, o corpo terrivelmente cansado, mas não
reclamou em momento algum. Não podia contrariá-
lo.
Sebastião não cabia em si de contentamento, a
bolsa da senhora estava recheada.
- Agora você aprendeu como se faz!
Passava do meio-dia, o sol continuava forte.
Sentiu fome, mas não se queixou. Resolveu não
incomodar o pai, pois ele podia se enfurecer e voltaria
a espancá-lo sem piedade... Era melhor sufocar a dor,
em silêncio.
Andaram uns oito quarteirões até o morro.
Passaram pelo bar do Toninho troca-troca. Ali o pai
passou a exibir o filho como um troféu. Contava com
grande dose de exagero, as proezas do garoto, no
campo do furto. Tomás se manteve em silêncio,
obedecia mecanicamente. O pai era seu dono.
- É isso aí, Canivete! - Gritavam em coro.
- Vamos beber na sua intenção!
O pai estendeu o copo com uma dose de
cachaça com limão. Ordenou:
- Mostre que você é filho de homem!
Tomás engoliu fazendo careta. Foi a primeira
vez que tomou cachaça. Engoliu a dose inteira. Quase
vomitou ao sentir o gosto do álcool. Bebeu sem a
mínima vontade. Sebastião agia naturalmente, não se
incomodava com o fato de que o filho era só uma
criança de sete anos.
O trágico espetáculo não tinha fim, o pai falava,
sorria, cuspia. Depois, quase bêbado, ordenou que
uma das prostitutas mostrasse a calcinha. A torcida
vibrou com mais uma piada do temido Bastião. A
mulher ergueu a saia, virou-se, exibindo a bunda.
Rebolava enquanto Sebastião a beliscava
maliciosamente.
- Canivete, esta é Fatinha. Ela é toda sua. É seu
grande prêmio!
- Bastião, ele é só uma criança! - Reclamou o
Toninho, percebendo a ausência de limites.
O pai replicou:
- Que criança coisa nenhuma! Ele é muito
macho! Puxou o pai. Canivete, não tenha medo, eu
pago! Vamos, arranca a calcinha dela!
Não era comédia, mas todos sorriram. Sempre
achavam motivo para zombar da desgraça humana.
Mas eram vítimas também. Nada mais possuíam.
Perderam tudo, até mesmo, o direito de reconhecer o
próximo como ser humano.
Fatinha também era um farrapo que ajudava a
cobrir a fantasia do palhaço. Pobre Fatinha... Teria ela,
uma alma? Claro que sim. Moça pura, 18 anos, bonita.
Deixou o interior do Ceará, foi tentar a sorte na cidade
grande. Em São Paulo, foi engolida pelo dragão e saiu
em fumaça. A partir de então, procurou respirar de
todas as formas. Perdeu a mãe por falta de assistência
médica e a família não tinha dinheiro. A criança,
atravessada no ventre da mãe, também morreu. Teve
que sair aos pedaços. O pai, pobre diabo,
enlouqueceu. As cinco filhas se dispersaram. Estariam
todas vivas? Fatinha estava. Encarou a prostituição, a
bebida, a violência e exibia seu corpo usado e sofrido
para o mundo.
...
Tomás sentiu o mundo girar à sua volta. De
repente o corpo amoleceu e os olhos se fecharam. Não
viu nada mais. Tudo escureceu. Tudo emudeceu...
Sebastião o jogou nos ombros e o levou para
casa. A mãe e as irmãs o aguardavam em frente ao
barraco. Avistaram o pai carregando o filho. Maria
soltou um grito de dor: Tomás estava embriagado.
Tentou arrancá-lo das mãos do pai, mas
Sebastião não cedeu. Entrou em casa fungando.
- Meu filho...
Tomás ainda estava meio tonto, quando o pai o
colocou no chão. As pernas não tinham força para
mantê-lo de pé. Caiu com força. A cabeça latejava de
dor. Aos poucos, foi recobrando a consciência e viu a
figura embaçada da mãe. Maria o tomou nos braços.
Encarou Sebastião com desprezo. Deixou de lado a
submissão e o medo que sentia. Pela primeira vez o
enfrentou, sem titubear.
- Você deu pinga ao menino?
Olhava-o no fundo dos olhos à espera da
resposta.
- Dei sim. Ele é macho, não é Canivete?
- Sou...
O menino respondeu sem entusiasmo, sem
saber o que dizia. Só queria dormir, dormir muito...
- O menino tem sete anos. É só uma criança.
Sebastião não se importou com os queixumes
dela. Foi para o quarto, jogou-se na cama e começou a
roncar.
Nos braços da mãe, o menino sentiu-se seguro.
Ela o apertava contra o peito. Cida trouxe um
travesseiro e Estela forrou um lençol sobre o sofá. O
amor das três o fez sentir-se protegido.
Era noite. Maria fez uma canja de galinha, mas
o garoto não quis. Estava sonolento. Fechou os olhos
para logo penetrar num profundo sono. As três
ficaram ao seu lado, compartilhando a sua dor.
Tomás passou a noite em paz. Mas, no dia
seguinte, a cabeça voltou a doer. Lembrou-se de tudo
e voltou a chorar. Sentiu uma imensa tristeza. Maria
aproximou-se, tentou consolá-lo. Ele descreveu tudo:
o assalto, o soco na boca, a cachaça no boteco, tudo.
- Quebrou o meu dente do canto, mas não
chorei e fiz o que pude para suportar a dor.
A mãe o ouvia em silencio. Sofria com o filho.
Presságios.... Arrepiava-se quando ouvia os mínimos
detalhes daquele relato doloroso. Dentro de si morava
uma certeza visceral. Os sonhos e a esperança estavam
por um fio. No barraco, prestes a desmoronar, aquela
gente nunca mais seria a mesma. Os piores tempos se
aproximavam. Sentiu as lágrimas. Doía admitir que o
pai rompia a pureza do filho, transformando-o num
bandido.
Tomás narrava os fatos, nada omitiu, falou até
da prostituta que foi dada como prêmio.
- Depois ela foi tirando a roupa e todo mundo
riu. Tudo ficou escuro e aí eu não vi nada mais.
Quando acordei, estava aqui...
Maria cobriu o rosto, estava horrorizada.
Queria evitar o pensamento teimoso:
“Ele vai jogar o meu Tomás no lixo... A mesma
maldição! Meu filho não terá nome, família, caráter.
Não terá sonhos. Visitará o inferno e talvez nunca
mais saia de lá... Não permita, meu Deus, não
permita”.
- Por que ele não gosta de mim?
- Você é um anjo meu filho, um anjo chamado
Tomás! Preste atenção, Tomás: seu pai vai querer
transformá-lo num bandido chamado Canivete. Mas
você não é Canivete. Nunca aceite ser Canivete. Você
sempre será Tomás, um garoto honesto, do bem,
temente a Deus. Não se deixe levar pelas facilidades
do crime, meu filho. Sua vida tem que ser diferente,
precisa ser diferente. Não perca a confiança em Deus
e não se esqueça de fazer as orações que eu ensinei.
Seu pai nunca poderá tirar a pureza do seu coração.
Jesus vai te proteger e um dia você sairá vencedor,
mas não se engane. Muitos acontecimentos ainda
estão por vir e, enquanto eu tiver vida e saúde, não
deixarei vocês desamparados...
Foi a primeira vez que Maria falou daquele
jeito. Alguns anos depois, ele entenderia o que ela quis
dizer. A mãe sabia que o caminho da felicidade do
filho seria tortuoso, repleto de provações, renuncia,
perdas. Tinha a certeza que os rumos da sua história
teriam que ser encarados e transformados por ele,
desde que estivesse disposto a seguir o caminho do
bem que ela tanto sonhou. No coração a certeza: o
filho querido estava iniciando uma nova vida,
assumindo uma nova identidade, transformando-se
aos poucos num jovem bandido conhecido pela
alcunha de Canivete.
Cida e Estela se levantaram e foram aprontar o
café. Sebastião entrou em seguida. Estava sério e
carrancudo. Olhou para o filho sem qualquer
compaixão. Tomás fugia do seu olhar. Engoliu em
seco, pronto a servi-lo.
- Levante Canivete! Temos trabalho pela frente!
- Bastião, não leve o Tomás. A cabeça dele está
doendo... – implorou a mãe.
- Bobagem! Ele é homem e dor de cabeça é
doença de rico!
Em seguida, voltou-se para o filho:
- Agora que você já aprendeu como se faz, não
podemos perder tempo.
- Bastião, deixa pra outro dia. Ele não está
bem... – suplicou a mãe.
Ele alterou o tom de voz resoluto:
- Porra, eu já disse que não quero perder
tempo! Vamos Canivete!
Tomás deu um salto. Como um cão adestrado,
ficou de pé imediatamente diante do seu dono.
- Bastião... Não o leve para beber. Ele ainda é só
uma criança.
- Filho meu tem que aprender a ser homem
desde pequeno! Vamos Canivete, tome seu café,
temos muito trabalho pela frente.
Começava ali um capítulo decisivo da sua
história: o mundo do crime. Estava sendo preparado -
contra a vontade - para assumir um lugar que jamais
desejou, mas que foi se tornando perigosamente
comum, natural, normal. Essa normalidade é uma
condição que retira do bandido o sentimento de culpa,
e a chamada dor na consciência aos poucos vai sendo
esquecida pela repetição dos atos. No mundo do
crime a frieza, o individualismo, a desconfiança e a
indiferença são elementos indispensáveis que atuam
no mais radical conceito de sobrevivência. Com
Tomás as coisas foram acontecendo aos poucos e, a
partir do momento que Canivete crescia, Tomás
perdia espaço e os conselhos da mãe eram deixados
de lado. Aos poucos, a vida fácil que Canivete podia
oferecer foi se tornando o centro das suas
preocupações e Tomás se afastava cada vez mais.
Seis
“Ele queria morrer também, apesar de
morrer de medo de morrer”.
Tomás passou a viver outra fase da sua vida.
Agora era um pivete perigoso chamado Canivete.
Uma personalidade forte que aos poucos ia se
firmando. Dentro de si, num cantinho esquecido da
alma, estava Tomás, um garoto bom que sonhava
fugir daquela vida desgraçada para sempre. Mas o
amor que nutria pela mãe e as irmãs era mais forte.
Ele jamais as abandonaria, sabia que ainda não era o
momento.
Os meses foram passando, arrastando consigo
os anos. Tomás estava com nove anos. Era um mestre
em furtos. Tinha notável habilidade em bater
carteiras, tomar bolsas de mulheres, roubar nas
feiras.... Jamais foi apanhado pela polícia. O pai se
orgulhava e vivia espalhando para todo mundo que o
filho era o garoto mais esperto do morro, graças a ele.
Sebastião sonhava em transformar o filho num
grande bandido, à sua imagem e semelhança. E então,
sem qualquer escrúpulo, enrolou o garoto em velhos
jornais e o colocou no centro da cidade, como um cão
adestrado: “pronto Canivete, faça o que te ensinei...”
Tomás era astuto, estava habituado à nova vida
e encarava a bandidagem como qualquer outro
trabalho. No barraco, a mãe sofria, sentia-se
mortalmente ferida. Não suportava ver Tomás
perdendo-se nos caminhos tortuosos do crime. Passou
a vida pedindo a Deus um futuro digno e correto para
o filho e agora, isso... Maria carregava a esperança de
ver o filho crescido, empregado e que um dia pudesse
tirá-la daquele lugar.
Mas não era tão simples, o pequeno Tomás
arrastava-se no cascalho da vida errada, como uma
serpente que cruza o deserto em busca de abrigo e
sobrevivência. Quantas vezes ele a viu chorando o seu
destino... Quando conversavam, ela se esforçava para
preencher o seu coração de bons ensinamentos. Mas o
filho se mantinha cego e surdo para as coisas do bem.
- Meu filho, você não é bandido. Não acabe com
a sua vida desse jeito.
- Mãe, eu não queria que fosse assim...
- Não use desculpas, você não precisa fazer o
que o seu pai pede. Eu não sei mais quem é você. Fica
o dia inteiro na rua, chega de madrugada e com o
bolso cheio. Está seguindo o rastro do seu pai. Você
fez a escolha e tomou gosto pela vida desgraçada. Eu
morro de vergonha...
- Eu não queria. Você sabe disso! Se eu não
obedecer, ele desconta na senhora e nas meninas. Foi
assim a vida inteira mãe. Você apanhando, ele
batendo. Não pense que as coisas seriam diferentes.
Cida e Estela estão aí, sem qualquer esperança de
futuro e eu? O que seria de mim?
- Pobreza não é defeito. Se quiser ajudar, faça
como tantos garotos da sua idade: vá lavar carros,
engraxar sapato, vender cocada, consertar bicicleta. É
pouco, mas é trabalho honesto, bonito,
engrandecedor. Roubar é um caminho fácil, mas pode
ser o seu fim... Não gostaria de te ver na cadeia,
apanhando da polícia ou morto numa emboscada.
Tomás ficou em silêncio. A verdade cortante
que a mãe escancarava, o deixava sem qualquer
argumento. Sentiu as lágrimas, mas conteve o choro.
Canivete não podia chorar. Canivete estava ali,
presente, e era capaz de passar por cima de tudo, até
do amor materno.
- Chega de papo, a vida é dura mãe. Tô
vazando!
- Onde você vai?
- Melhor não dizer.
“Jesus, não desista do meu filho” – pensava, dia
e noite...
E era assim, sempre que ela tentava conversar,
ele dava um jeito de fugir. Não queria enxergar a
verdade, preferia a ilusão. Mas a mãe nunca desistiu
de Tomás. Nunca deixou de amá-lo e sempre
acreditou na sua recuperação. Sabia que Tomás se
transformava em Canivete por ordem do pai, por
medo. Cumpria uma triste missão, independente da
sua vontade.
Os dias foram passando sem maiores
novidades, mas havia um novo capítulo reservado
para ampliar o drama de Tomás e deixar marcas
definitivas no curso da sua história. A manhã foi
tranquila e ele estava a fim de ficar em casa, não foi
roubar. Fazia frio. A família, sem a presença do pai,
estava vivendo um raro momento de paz. Jogavam
conversa fora... Ali Tomás sentia-se verdadeiro, único.
Canivete era só uma sombra distante.
Não tinha gás aquele dia, o almoço custava a
sair. O jeito foi usar o velho fogão, mas a lenha estava
molhada por conta da chuva da noite anterior. Maria
soprava o fogo e ele se apagava, sem vontade de vida.
A fumaça entrava nos olhos, aumentando a sua
irritação.
- É quase hora do almoço e esse fogo não quer
pegar! – resmungou.
- Daqui a pouco ele acende, deixa eu tentar –
disse Tomás.
Foi até o fogãozinho e começou a assoprar.
Uma pequena chama se formou.
- Você tem um sopro de ouro, meu filho, eu...
Não pode continuar. A porta se abriu
violentamente. Sebastião estava completamente
embriagado. Gritou palavrões como nunca.
- Eu tô com fome, porra!
A comida ainda não estava pronta. Foi a gota
que faltava. Deu um chute na panela de arroz e, em
seguida, agarrou Maria pelo braço e sem motivo
qualquer começou a espancá-la impiedosamente.
Tomás nunca presenciara tamanha maldade e
violência. Um bolo se formou em sua garganta.
Assistia o espancamento incapaz de reagir. Ele não
parava de bater. Maria, não suportou aquela
humilhação e perdendo o medo, começou a gritar,
enfurecendo-o ainda mais. Cida e Tela tentavam
separá-los. Maria procurava se soltar, arranhando-o
completamente.
- Me larga, você está repreendido, Satanás!
Ele estava mais forte, como se estivesse
possuído por uma força sobrenatural. Nada era capaz
de fazê-lo largar a presa. Continuavam atracados e ele
despejava palavrões. Os olhos esbugalhados eram a
certeza de que ali não estava um ser humano. Maria
se sentia encurralada, como se estivesse lutando
contra um monstro e alguém precisava salvá-la das
suas garras.
- Pare papai... Pare papai! – Gritou Cida.
- Ele vai matar a mamãe! – Alertou Estela.
Num ímpeto, Tomás foi despertado do estado
de passividade. Um ódio intenso subiu-lhe à tona, o
sangue fervia. Aquele homem não iria matar a sua
mãe! Avançou para a janela, pegou a trava que servia
para cerrá-la à noite. O pai estava de costas. Uma
cólera terrível apoderou-se de Tomás. As irmãs,
pressentindo o seu intento, tentaram arrancar a trava,
mas ele as empurrou para o lado, decidido. Era tarde
demais. Desferiu um golpe certeiro na cabeça de
Sebastião.
- Miserável! Você não vai matar a minha mãe!
O silêncio. Os soluços. O pavor. O pai
desacordado no chão em meio ao arroz derramado,
ainda cru. A poça de sangue debaixo da cabeça.
As mãos de Tomás ainda seguravam com
firmeza a pesada trava e o coração parecia querer
saltar fora. A realidade: o pai estava morto!
Ele estava morto.
Morto.
Então a sua mãe cessou o pranto e ainda
ofegante, se colocou de pé. Apertou o filho com força
e determinação contra o peito. Precisava enchê-lo de
energia, compreendera tudo: o filho tinha acabado de
matar o pai para salvá-la. Ela estava livre das suas
garras. Era o fim de um homem que nunca deixou a
felicidade entrar no barraco. Um fim trágico,
desgraçadamente inesquecível...
Por um momento, foi o silêncio que o dominou.
Depois as mãos foram se afrouxando e a trava caiu no
chão, num baque surdo. Tomás estava de volta. Então
ele chorou. Chorou como nunca. As irmãs também.
Maria ainda sangrava o nariz, mas, apesar de tudo,
era a mais forte. Sebastião estava estendido no chão e
Tomás já não suportava aquele quadro horripilante
pintado com fiel perfeição. Correu para o quarto,
jogou-se na cama e soluçou desesperado. O estômago
revirava, sentiu uma incontrolável vontade de
vomitar, parecia que todo o aparelho digestivo ia
saltar fora... As lágrimas não paravam. A mãe entrou
em seguida. Não queria que o filho ficasse sozinho
num momento tão delicado como aquele.
- Não fique assim, meu filho...
Maria alisou-lhe os cabelos com carinho, sua
voz terna buscava acariciar a alma do filho.
- Aconteceu... Você não queria, mas aconteceu.
Ele encontrará um bom lugar e terá descanso.
Ela nunca pode imaginar como aquelas
palavras machucavam o coração de Tomás...
- Eu...
Gaguejou, voz trêmula, engasgado. Buscou o
olhar de mãe e disse, tomado de emoção:
- Eu quis. Ele morreu, não é? Agora seremos
felizes! Ele não vai mais bater na senhora e nem nas
meninas. Ele vai ser enterrado! Nós estamos livres...
O filho estava diante de um pesadelo. Sentia
uma mistura de amargura, desespero, delírio... Os
conceitos se misturavam, não sabia o que pensar.
Estava confuso.
- Eu matei papai... - voltou a chorar.
- Tomás... - ela chorou com o filho. Apertou-o
com mais força.
- Eu tirei a vida dele.
As lágrimas não se cansavam de fazer o
percurso sobre a face de Tomás e como eram
ardentes... A mãe tentava oferecer o consolo de todas
as formas, mas nem mesmo a sua imensa ternura
conseguiu aplacar o desespero.
Na outra cama, as meninas choravam o seu
drama. A cabeça doía com intensidade. Tomás
constatou que a vida não mais fazia sentido. A
verdade é que ele queria morrer também, apesar de
morrer de medo de morrer! Não era remorso, sentia
uma mistura de tristeza e vazio...
Lá no morro, era assim: pancadaria, facadas,
tiros, prostituição, fome e tráfico de drogas. Isso sem
falar na constante onda de assaltos e pelotão da morte.
A luta por sobrevivência era imensa. Uma tragédia a
mais ou a menos, não era novidade. Por isso, todo
mundo encarou com naturalidade a morte de
Sebastião. Ninguém suspeitava em que circunstâncias
ele morreu ou que o responsável pela morte era seu
filho. Para o povo, amedrontado da comunidade, a
morte serviu de alívio.
No outro dia, à tarde, foi realizado o enterro. A
maioria tinha a satisfação de ver pessoalmente a terra
cair na cara do homem mais detestável da favela. O
comentário era de alegria e desprezo. Saboreavam as
palavras:
- Acabou o reino do Bastião Pilantra.
- Ele vai comer terra fria, feder como carniça,
depois vai se acabar nas profundezas do inferno!
- Vai comer o pão que o diabo amassou.
- Vai pagar todo o mal que semeou.
E o cortejo fúnebre, sem esperança ou lamento,
teve o seu fim.
Sebastião foi enterrado.
“Toda sua ternura provocou um nó na garganta e as lágrimas retomaram seu caminho”
No barraco, os dias continuavam a passar sem
qualquer horizonte... A sensação de vazio era
alimentada pela tristeza, pelo silêncio e o medo de
enfrentar a vida. No semblante de cada um, estava
desenhada a mesma angústia: o que seria deles?
Apesar de Sebastião ter sido um ladrão perverso,
sustentava a casa e agora, sem ele? Não havia
resposta.
Naqueles dias, Tomás evitou sair, vivia quieto
no canto, contemplando o vazio. Quando era noite,
perdia o sono, ficava horas acordado, pensando o que
fazer. Nadava num mar de pensamento, dúvida,
incerteza, melancolia.
“Canivete, a vida continua, agora você é o
homem da casa. Tem que levar adiante o desejo do seu
pai, afinal, era isso que ele esperava de você. Agora
você pode satisfazer a sua vontade”.
Os pensamentos se confundiam. Os olhos
pesavam, sentiu a chegada do sono. Batia no telhado
uma chuva fina. Puxou a coberta, encolheu-se e
dormiu profundamente.
O sonho feio que invadiu o seu repouso,
afastou qualquer vestígio de paz. Era uma noite sem
luar. Ele estava em meio a uma tempestade. Os
trovões estouravam a todo o momento e os
relâmpagos riscavam o céu. Tomás sentiu o corpo
inteiramente encharcado, enquanto os pés se
atolavam numa lama grudenta que dificultava os seus
passos. O lugar era deserto e não tinha qualquer
abrigo. De repente, do nada, avistou uma velha
cabana, abandonada, ao lado da estrada. Tomou
coragem, atravessou a tempestade e caminhou em sua
direção. A porta estava entreaberta, como se o
aguardasse. Entrou. Estranhamente, no interior da
casa o frio era maior. O telhado estava repleto de
goteiras. O vento entrava uivando pelas janelas
esburacadas. Na penumbra, teve a desagradável
sensação de que dezenas de olhos atentos o espiavam.
Entre os sussurros desconexos, pode ouvir o choro
inconsolável de uma criança. Uma voz suave,
feminina, tentava acalentar o bebê, mas ele
continuava soluçando como se sentisse uma dor
muito grande. Mas o pior veio em seguida: o clarão de
um relâmpago aumentou a visibilidade do interior da
casa e ele enxergou o horror: um senhor estendido no
chão, rodeado de arroz, feijão, sangue... Era o seu pai.
Ele estava naquela casa e, ao seu lado, dezenas de
pessoas as quais ele não conseguia ver o rosto. Mas
podia ouvir e compreender aquilo que eles diziam.
Primeiro, falavam em voz baixa, como se fosse um
perigoso segredo e sempre apontavam em sua
direção. Depois, falavam alto, quase aos gritos. O
choro doloroso da criança aumentou. As fortes e
insistentes acusações dos desconhecidos eram
apavorantes. Ele apertava os ouvidos, mas não
conseguia expulsá-las.
“Você matou seu pai, você matou seu pai, você
matou seu pai”
- Não! Eu não queria...
“Você tirou a vida do seu pai”
- Meu Deus...
“Agora ele dorme debaixo da terra fria no
cemitério triste”
- Vá embora... Vá embora...
“Você é o culpado, você é o culpado, você é o
culpado”
- Não! Não!
Estava a ponto de enlouquecer. Continuou
apertando os ouvidos, mas as acusações
aumentavam:
“Você matou seu pai! Você matou seu pai! Você
matou seu pai!”
O eco ensurdecedor. O choro convulsivo da
criança... Tomás rolou na cama desesperado. Teve a
nítida sensação que corriam lágrimas de sangue sobre
a face.
Sim, o remorso veio. E como ele é terrível.
Insiste em sua perseguição. Não oferece qualquer
trégua... Num ímpeto, veio à mente uma poesia que a
Estela escreveu quando perdeu o namorado. Na
ocasião ela se sentia no fundo do poço, por isso aquele
título. No fim. Era exatamente a sensação que ele vivia
naquele momento. Quando Estela declamava aquela
poesia, ficava emocionada, em lágrimas.
O fim
Oh! Inquietante angústia!
não permitas que eu pense no fim.
mesmo sabendo quero acreditar diferente...
e tudo é infinito.
É mais que um grito seco,
da garganta de um louco desgraçado!
Sou eu o mistério.
Sou eu a poesia.
Sou eu o rascunho.
Sou eu a caatinga...
E como não queria ser,
Mas continuo sendo humano!
Por que não um passarinho?
Voando
Cantando
Alçando a liberdade...
Mas existe a gaiola.
A molecada,
As pedradas,
O assado para o cão.
E novamente a angústia.
Vejo o meu fim
Em água,
Em fogo,
Em riso,
Em choro.
Puramente o meu fim.
O nosso fim.
Nada mais.
- Não, eu não queria!
A mãe acordou com os seus gritos. Levantou-
se apressada e juntou-se ao filho. Compartilhava a sua
desgraça. As irmãs acordaram também, estavam
abatidas, mas aparentemente conformadas. Só ele não
conseguia ter paz, sentia-se o causador da tragédia.
A mãe acariciou sua fronte. Estava quente. Os
cabelos molhados e ele tremia, agarrando-se às
cobertas.
- Não fique assim, meu filho...
Aquelas palavras tão sentidas e verdadeiras
causavam-lhe uma enorme tristeza.
- Você está queimando de febre.
- Não fique assim, Tomás, você precisa se
conformar – dizia Estela.
Elas não sabiam o que dizer, mas ele
compreendia a solidariedade familiar naquele
momento tão difícil da sua vida. Como poderia se
conformar? Ele sabia que o pai era um homem
violento, maldoso, perverso. Mas ele o matou. Em
defesa da mãe, é certo, mas o matou. Culpava-se por
entender que aquilo não tinha conserto, era
irremediável.
Pouco depois, Cida trouxe o chá. O frio
aumentou. Um bolo se formou em sua garganta. O
cheiro do chá impregnou o quarto e fez aumentar a
vontade de vomitar.
- Tome meu filho, bebe o chá, faz bem, você vai
ver.
- Não... Se eu beber, vomito.
- Mas você não comeu nada, está ficando
doente... Está tão pálido e fraco. Se você quiser eu
preparo um mingau bem gostoso, pode ser?
Tomás olhou para a mãe. Ela tentava ajudá-lo a
enfrentar a dura realidade, esforçava-se para que ele
se recuperasse do terrível sentimento de culpa que
ocupava seu coração. A ternura materna provocou
um nó na garganta e as lágrimas retomaram seu
caminho...
- Mãe... Eu vou para o inferno! Deus não me
quer mais.
Maria deixou escapar duas grossas lágrimas e
me apertou com força entre os braços.
- Não é assim meu filho. Deus é nosso Pai. Ele
entende as nossas reações. Vamos esquecer tudo.
Você é muito jovem para pensar estas coisas...
Na verdade, os quatro sabiam que ele não era
mais a criança inocente de outrora. Estava ali um
homem atormentado, sem saber o que fazer ou que
rumo tomar. Ele não podia esquecer simplesmente. A
cena voltava-lhe a todo o momento: o pai batendo na
mãe e ele o atacando por trás com a travanca. Depois
o pai estendido, morto, perto do fogão cujo fogo não
queria se firmar. Uma cena que marcou
definitivamente a sua existência.
E foi entre pesadelos e noites traiçoeiras que
Tomás foi sobrevivendo. Procurava não pensar na
tragédia e assim, tornar suportável a sua realidade.
Tudo ia bem, até que as provisões se acabaram.
Faltava dinheiro, faltava comida. Tomás permitiu que
Canivete ganhasse a rua. Voltaria a roubar. Levantou-
se mais cedo e foi para o centro, para as ruas
movimentadas. Voltou à tarde, quase ao pôr-do-sol.
Trouxe biscoito, arroz, carne e feijão. Comprou com o
dinheiro tirado à força de uma jovem.
- Ei, moça! Passe a bolsa, vamos!
- Ora, que atrevimento, eu... – calou-se ao
perceber uma faca pontiaguda perto do pescoço.
Estremeceu.
- Vamos! Passe a bolsa! – Ordenou com
firmeza. Ela estendeu a bolsa apressadamente. Tremia
e fazia cara de choro.
- Por favor, não me faça mal...
- Não quero papo! - Saiu correndo.
Ela gritou por socorro e Tomás desapareceu
como fumaça.
Os dias passavam. Ele continuava nas ruas,
ganhava experiência e perdia o medo. Enquanto isso,
a mãe e as meninas buscavam uma forma de ganhar a
vida honestamente. Cida começou a lavar e passar
roupa para os conhecidos. Estela passou a vender
doces caseiros pelas ruas. A mãe cuidava do barraco e
costurava para a vizinhança. O pouco que ganhavam,
garantia a sobrevivência da família. Mas o filho não
pensava assim. Adquirira gosto pela bandidagem,
seguia fielmente os ensinamentos e os passos do pai.
No início, tentou viver como Tomás, o bom menino.
Fazia a sua parte de forma honesta, vendia picolé,
engraxava sapatos. Mas, interiormente, o conflito de
personalidade se intensificava, tornando-o dividido.
Canivete era seu lado forte, decisivo, valente,
revoltado... Um pivete perigoso que queria mais,
sempre mais. Sua ambição não tinha limites, por isso
escolheu o jeito mais fácil de ganhar dinheiro. Era o
que sabia fazer com perfeição. Para manter-se longe
do olhar crítico da família, foi criando uma rede de
mentiras cada vez que chegava ao morro com
dinheiro, aparelhos eletrônicos ou roupas diferentes.
Enganava a si mesmo. Maria se quedava num silêncio
repleto de decepção, sabia que o filho fazia o caminho
do pai.
Ele já estava familiarizado com a vida de
pivete. Roubava de tudo: feira, supermercado, batia
carteira e assim por diante. Juntou-se aos outros
pivetes, tornando-se em pouco tempo o líder. Tinha
habilidade em planejar e colocar em ação os assaltos.
Estava bem diferente do garotinho fraco e medroso.
Ninguém o conhecia por Tomás, seu nome de guerra
era Canivete e ele já gostava do apelido, uma
lembrança do pai, que um dia o batizou de moleque
de rua.
Mesmo vivendo uma vida condenável, Tomás
buscava manter o respeito à vida. Nunca maltratou
qualquer vítima, apenas ameaçava como estratégia de
impor o medo. Curiosamente, nunca fez uso de
drogas ou bebidas. Experimentou o crack uma vez,
mas não gostou. A única coisa que passou a gostar e
não abriu mão foi o cigarro.
- Canivete, vamos pro centro?
- Não Chico, hoje não!
- Por que não, cara?
- Porque não estou a fim. É isso aí!
- Que bicho te mordeu Canivete?
- Você também, Betão? Ora, vá tomar no cu! Eu
quero ficar só! Hoje vocês vão sem mim!
- Mas sem você não tem graça!
- Eu já disse que não vou, porra! - Gritou.
Eles saíram. Tomás voltou para o barraco e
jogou-se na cama. Não tinha ninguém em casa. Uma
tristeza repentina o apanhou desprevenido, ferindo-o
profundamente... Então, chorou em voz baixa.
Em casa, a mãe e as irmãs ainda o chamavam
de Tomás. Aliás, para elas, ele nunca era o Canivete,
mas um menino bondoso e sensível. O remorso já não
o perseguia com frequência e ele procurava não
pensar naquele labirinto esquisito, repleto de vozes
estranhas e gritos medonhos. Às vezes, em sonhos, o
remorso voltava de forma inesperada e ele acordava
Oito
“Os curiosos seguiam seus passos com o mesmo olhar de compaixão”
Dois meses mais tarde, numa certa noite,
aconteceu algo inesperado e eles acordaram
apavorados. A porta do barraco se abriu
estrondosamente. Entraram três homens armados. A
família nada entendeu. Ficaram mudos de terror.
- Muito bem! Queremos as joias e a grana! -
gritou o primeiro. Tinha uma tatuagem no ombro
direito: um pirata de sorriso maldoso e braços
cruzados. A cabeça raspada, os músculos avantajados
e a pele branca queimada de sol, realçavam a cicatriz
escura em alto relevo no meio da testa.
- Que joias? Que grana? – Perguntou Maria.
Ninguém sabia do que eles falavam. O homem
da cicatriz agarrou Maria, ameaçando-a:
- Aqui, coroa! Queremos o dinheiro e as joias
que o safado do Bastião escondeu da gente. Vamos,
diga onde está! – encostou o revólver na cabeça de
Maria. Eles estavam furiosos.
Os outros apontavam as armas para os três
filhos.
- Eu não sei! - Maria sacudia-se tentando se
libertar do pirata - Bastião nunca falou dos seus
negócios. Não confiava em ninguém! Pelo amor de
Deus, vão embora, deixe a gente em paz. Não
sabemos de nada...
O pirata arregalou os enormes olhos, franzindo
a feia cicatriz. Sacudia Maria com mais força ainda.
- Você está mentindo, coroa! Eu não estou
brincando! Somos capazes de mandar sua laia pro
inferno! Bado, você fica aqui e pode atirar se qualquer
um reagir. Vem comigo, Miro, vamos revirar esse
barraco inteiro. Essa grana tem que aparecer!
O barraco foi completamente revirado. O
bandido, chamado Bado, era gordo, baixote e
bigodudo. Tomás teve a nítida impressão que já o
tinha visto em algum lugar. Tentou se lembrar de
todas as formas, mas não conseguiu. Miro, o terceiro
homem, era moreno claro. Também ele possuía uma
tatuagem no braço direito, à altura do músculo. Um
dragão colorido, soltando a típica labareda. Era
fortíssimo. Os cabelos eram avermelhados e pelo jeito
era o mais velho do grupo, deveria ter uns 40 anos.
Quando falava, notava-se a falta de um dente.
Depois de revirar o barraco, os dois retornaram
à sala. Tomás foi amarrado com uma corda que estava
pendurada no telhado. Servia para estender roupa
lavada. Os bandidos ameaçavam e praguejavam o
tempo inteiro.
- As filhas de Bastião... – comentou o pirata,
cheio de segundas intenções - dizem que o velho
Bastião morria de ciúmes dessas morenas!
- Fale onde estão as jóias e o dinheiro! Anda,
morena gostosa! - gritou o moreno forte.
Estela esperneava. Não era presa fácil. Brigaria
até o fim. Desconfiava das intenções dos caras.
- Eu não sei de nada seu porco! Me solta
desgraçado! - gritava.
Eles sorriam, divertindo-se com a cena. Era
uma verdadeira tortura.
- Vai dizer ou não, velha? - insistia o Pirata.
Maria suplicou-lhes:
- Eu já disse que não há dinheiro! Vão embora,
por favor!
- Ora, pois agora é que não vamos. Quer saber
de uma coisa cambada? Vamos comer as mentirosas!
- anunciou o pirata. O mais perverso de todos.
Maria implorou, em vão. Eles estavam
realmente dispostos a levar adiante a ideia. Não
queriam perder o trabalho. Não encontraram as joias,
mas tinham três fêmeas ao alcance, seria a
compensação.
- Não, por caridade não façam isso.
Maria procurava de todas as formas, fazer com
que os três homens mudassem de ideia. Cida era a
mais desesperada, desatou a chorar sem trégua.
Revoltado, Tomás ameaçou os bandidos:
- Não toque nelas! Eu mato vocês! - gritou
chorando.
- Olhe quem fala! Estou morrendo de medo... -
a gargalhada foi geral.
- Vamos pra cama. Se não disser onde está o
dinheiro, vamos brincar até enjoar! Escolham!
- Não sabemos de nada! Eu me entrego a vocês
no lugar das meninas, não façam nada com elas!
- Não, mamãe, não peça isso! - gritava Cida.
- Queremos as três! – Decidiu o pirata.
“Jesus misericordioso proteja meus filhos”
Um dos bandidos amordaçou Tomás. Em
seguida levaram as três para o quarto. Elas relutavam
e os bandidos as empurravam decididos. Da salinha,
Tomás escutava os gritos das irmãs e as risadas dos
três homens. Elas se esforçavam, lutando
desesperadamente contra os bandidos e ele, ali,
amarrado, amordaçado, indefeso, sem poder fazer
nada, nem mesmo tapar os ouvidos.
- Pare com isso, pelo amor de Deus! - Pedia a
mãe em soluços.
- Abre as pernas coroa! - Rosnava o pirata.
Tomás entrou em desespero, não podia gritar
por socorro. A comunidade dormia solenemente. Por
um momento ele duvidou da existência de Deus.
Estava vivendo um pesadelo infernal: ouvia gemidos
de prazer entre palavras obscenas. As lágrimas
escorriam sem trégua. Por que Deus não o ajudava a
ficar livre das cordas? Mesmo se morresse tentaria
impedir aquela barbárie. Uma revolta amarga, imensa
veio-lhe à tona. Lembrou-se das passagens bíblicas
que a mãe lia na quaresma e sentiu-se exausto,
entregue à própria sorte:
“Meu Deus, meu Deus... por que me
abandonastes?”
“E o seu suor caía sobre a terra, em grandes
gotas de sangue”...
O filho do homem finalmente aceitou o flagelo.
Nada podia modificar a história.
“Meu pai, se este cálice de sofrimento não pode
passar sem que eu beba faça-se a tua vontade, embora
não seja como eu quero, mas sim, como tu queres”...
Tomás perdeu os sentidos. Ficou desacordado
por algum tempo. Quando se recuperou, notou o
silêncio. Não ouvia mais os soluços abafados da
família, nem o sorriso dos bandidos. Tudo era
silêncio. Um vento frio passou por ele feito uma
lâmina gelada de terror, tomou-lhe todo o corpo.
Presságios...
Tomás experimentou uma profunda aflição
misturada ao frio que arrepiava a espinha. Virou-se de
todos os lados, tentou se libertar. Quando tudo
pareceu perdido, viu que o nó estava frouxo. Então ele
girou as mãos com cuidado e finalmente livrou-se das
cordas. As marcas vermelhas ficaram desenhadas nos
pulsos. Arrancou o pano que o amordaçava.
- Mamãe! Cida, Tela... - gritou - eles se foram!
Mas o grito perdeu-se no silêncio. Não houve
resposta. Correu ao quarto e viu a mãe e as duas irmãs
completamente nuas e sem vida. Tomás gritou com
todas as forças, mas o grito ficou entalado na
garganta. O mundo tinha acabado de desabar sobre a
sua cabeça.
- Mamãe...
A mãe levou um tiro na testa. Tomás retirou o
pano que cobria a sua boca, buscando a sua expressão
de ternura, de vida, de carinho... Estela foi morta com
um tiro no peito. As poucas roupas que lhe cobriam,
estavam em farrapos. A poucos metros estava
Cidinha, estendida, os olhos entreabertos...
Tomás se perguntava as razões daquela
chacina. Não tinham conhecimento de dinheiro ou
jóias.
- Não... Não... - chorou desesperado.
Abraçou a mãe, a sua melhor amiga, uma
mulher pela qual ele foi capaz de cometer um crime.
Agora, ela partia da sua vida de uma forma
estupidamente definitiva.
Um leve respiro. Um sopro de vida. Virou-se.
Era Cida, que apesar do tiro no peito, ainda vivia.
Tomás aproximou-se, retirou-lhe a mordaça. Ela o
olhou amorosamente, num fio de voz rouca, deixou
seu recado de despedida.
- To... Tomás... Você... Precisa... Viver!
Sorriu ternamente. Tomás tocou suavemente
seu lindo rosto. Mas se havia alguma esperança de
salvar a irmã, dissipou-se como fumaça. Cida também
se foi. As três mulheres de sua vida estavam mortas.
Com voz trêmula, carregado de emoção, ele proferiu
o maior juramento da sua vida, reunindo todas as suas
forças:
- Sim, eu vou viver minha irmã! Só vou
sossegar no dia que completar vingança! Eu juro que
ainda vou encontrar os três demônios e eles vão pagar
por essa desgraceira! Eu juro Cida... Eu juro mamãe...
Eu juro Tela...
A cabeça girava. Estava tonto. Vomitou
violentamente.
Ninguém ouviu o seu pedido de socorro. Todo
mundo estava acostumado com escândalos, violência,
batidas policiais que nem ligavam. Ainda mais em se
tratando de gente ligada a Bastião Pilantra.
- Elas morreram papai. Só ficou Tomás, o seu
canivete... – disse emocionado.
Em passos trôpegos, dirigiu-se à sala. Começou
a gritar desesperado. Naquele momento não sabia
fazer outra coisa. Algumas vizinhas escutaram os
gritos apavorantes e entraram correndo. Era de
manhã e o dia anunciava a dor que ele teria que
carregar pelo resto da vida.
- Meu Deus! O que houve aqui filho? -
Perguntou dona Belarmina, a parteira da
comunidade. Ela o abraçou, preocupada.
- Tomás, você está quente e pálido como uma
vela... Onde está a sua mãe?
- No quarto... - respondeu em lágrimas.
Elas entraram e se horrorizaram, diante da
tragédia.
- Santo Deus! O que foi que houve aqui,
Tomás?
Pouco a pouco o barraco foi se enchendo de
gente que antes nunca tinha dado as caras. Alguns
estavam ali por solidariedade, para compartilhar a
sua dor, mas a maioria tinha curiosidade, queria
presenciar os frutos de mais uma tragédia lá no
morro. Todos ouviam a sua história, choravam e
lamentavam a sorte do garoto. Era tudo o que podiam
fazer... Ofereceram-lhe calmantes, conselhos,
orações... Mas ele só queria sumir daquele lugar e
daqueles olhos piedosos. Não suportava o comentário
que faziam:
- Que pena!
- Nunca vi coisa igual!
- Pobre criança...
- Sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem ninguém!
- O que será dele sozinho no mundo?
- Deus sabe o que faz...
- Tudo tem seu dia e a sua vez!
- Você viu que tragédia?
- Mundo terrível!
Dona Belarmina o convenceu a tomar alguns
calmantes. Uma moleza tomou conta de si e ele foi
levado para a cama. Dormiu profundamente.
Acordou horas depois, banhado de suor. O barraco
estava repleto de gente que ele conhecia e gente que
nunca viu. Sentiu novos enjôos, vomitou mais uma
vez. A cabeça doía e o corpo não queria obedecer...
Fechou os olhos, voltou a dormir. Quando acordou já
passava do meio-dia. Levantou-se e foi à sala, desta
vez não chorou, aguentou firme. Uma estranha paz
conduzia-lhe os passos. As mulheres haviam dado
banho e ajeitado os corpos nas camas. As três estavam
serenas, como se dormissem tranquilamente. As
pessoas não se cansavam de comentar o triste
espetáculo. Ele deu um beijo em cada uma. Era seu
adeus à família querida; já não podia e nem queria
suportar tudo aquilo. Saiu em direção ao quintal. Os
curiosos seguiam seus passos com o mesmo olhar de
compaixão.
Dona Belarmina era uma mulher bastante
compreensiva. Quando percebeu as suas intenções,
foi atrás, chamou-o ao lado da casa e conversaram em
voz baixa:
- Aonde você vai, Tomás?
- Dona Belarmina, cuide de tudo. Eu não
aguento ficar aqui...
Ela o abraçou com carinho de mãe. A boa
senhora sentiu-se profundamente comovida com a
dor daquela criança ferida.
- Filho... Sabe mesmo o que vai fazer?
- Sei... A senhora foi a única amiga de mamãe.
Por favor, cuide de tudo. Está doendo muito, dona
Belarmina... Não posso ficar. Não quero ficar.
- Meu filho... Não vá embora, fique comigo. Eu
cuido de você!
Ela chorava mais do que ele.
- A senhora é muito pobre. Tem um monte de
filhos. Eu sei que a senhora tem bom coração e boa
vontade. Eu agradeço dona Belarmina, mas não posso
aceitar!
- Mas não vá agora. Você está muito abatido...
- Não, se eu ficar é pior...
- Eu vou orar por você! Pode deixar, eu cuido
de tudo!
- Por favor, ajeite minhas roupas, eu volto para
apanhar num outro dia.
- Cuidarei de tudo, Tomás.
- Adeus dona Belarmina. Não me esquecerei da
senhora!
Ela o abraçou amorosamente. Choraram
juntos.
- Você está bem? Não quer tomar algum
remédio?
- Não, não quero remédio... Adeus!
Para a sua dor não havia remédio que curasse.
Nove
“De repente um estalo: a certeza de que ele estava só, abandonado e infeliz”
Tomás saiu andando por aí. Destino era coisa
que ele desconhecia. O sol estava deixando o seu
brilho. Era quase noite. Estava cansado. Resolveu
sentar-se na grama de um jardim e repousar o corpo.
A imagem dos três facínoras não saia da mente e ele
jurou que um dia se vingaria de tamanha crueldade.
Nem que fosse a última coisa que fizesse. Sentiu fome.
Os olhos pesavam, o sono, os pensamentos confusos e
vozes de um passado recente.
“Canivete, levante-se, temos um trabalho a
fazer!”
“Mamãe... eu vou pro inferno, não é? Deus não
me quer mais”.
“Meu Tomás... não fique assim, meu pequeno”
“Papai, Tomás é apenas uma criança”
“É muito cedo papai, espera ele crescer um
pouco mais”.
“Tomás... você precisa viver!”
“Mãe, por que nós não temos amigos?”
“Meu Tomás, você não pode ficar assim, tome,
beba este chazinho”
“Não mamãe, se eu beber eu vomito”
“Você ainda vai ser muito feliz meu pequeno”
“Você é um anjo, Tomás”
“Mãe, o que é universo?”
As aulas de Estela, o sorriso de Cida e a ternura
da mãe... depois a penumbra e tudo se fez silêncio.
Sacudido pelos ombros, voltou bruscamente à
realidade. Era um guarda.
- Levante-se moleque! É proibido deitar na
grama!
De repente um estalo: a certeza de que ele
estava só, abandonado e infeliz. Levantou-se
cambaleando e odiou também aquele guarda que não
se importava com a sua dor.
Mais adiante avistou uma velha casa
abandonada e lá se encolheu feito um cãozinho
doente. Já estava escuro. Sentiu frio, a cabeça doía e
ele delirava no sofrimento. Já não sentia forças para
chorar e o seu pranto era seco. Áspero...
- Onde está você mamãe? Cida, Tela, por que
vocês foram embora? O que será de mim?
As perguntas não tinham respostas e se
perdiam no ar. Sentia-se cansado e fraco. Febre alta.
Começou a tremer, agarrando-se a si mesmo, numa
busca desesperada de calor. Dormiu finalmente. Teve
um belo sonho que nunca mais saiu da memória: o pai
estava sentado pensativo. Tinha os olhos fixos num
ponto qualquer. Estava calmo. Em seguida, entrou a
mãe com um bolo apetitoso e o colocou sobre a mesa.
Todos cantaram os parabéns. Era o aniversário de
Sebastião, que sorria emocionado. Abraçou Maria,
depois cortou o bolo cor de rosa. Era um quadro lindo!
Uma família feliz...
No dia seguinte, acordou e estranhou tudo.
Pouco a pouco foi se dando conta da situação e deixou
escapar um suspiro cansado e triste. A lembrança do
sonho trouxe uma paz de espírito muito grande.
Sentiu fome, não tinha o que comer. O estômago
reclamou em grandes roncos. Engoliu em seco.
Pensou:
“Tomás, Canivete precisa trabalhar. Caso
contrário morrerá você e ele! Você não pode morrer!”
Levantou-se decidido, entrou numa feira.
Andou como quem não quer nada para uma banca
que vendia biscoitos e doces. Numa rapidez incrível
estendeu a mão e apanhou dois pacotes de biscoitos.
Saiu em disparada. O homem o perseguia aos berros.
Escondeu-se no meio do povo e o homem o perdeu de
vista. Momentos depois retornou à velha casa. Ali
seria seu novo lar. Era escura e suja. Mas ali se sentia
seguro. Não tinha para onde ir. Dentro de si uma
certeza: não retornaria ao barraco. Passou a evitar
qualquer contato com a comunidade ou qualquer
conhecido. Queria apagar a página mais triste da sua
história.
Todos os dias, assim que acordava, procurava
um jeito de se virar. A sorte estava do seu lado,
raramente voltava de mãos vazias. Um dia conheceu
dois garotos que se tornaram bons amigos. Eles eram
mais experientes do que Tomás. Era o Dudu e Tecão.
Dudu tinha 13 anos, era loiro de cabelos
encaracolados e olhos castanhos claros. O outro,
Tecão, era da sua idade. Cabelos espetados, moreno,
magro e sorridente. Seu olhar revelava uma tristeza
comovente. Ao lado dos novos parceiros, Tomás
aprendeu a principal lição: ver a vida como um
contrato de risco e de sorte. Uma aventura incerta,
momentânea. Estavam vivos por uma mera questão
de sorte. Apenas isso. Era assim o seu mundo: sem
qualquer foco de esperança, um dia atrás do outro
enquanto o corpo resistir, por isso a droga, por isso a
fuga, por isso o fim. Nesse mundo tinha de tudo um
pouco: maconha, revolta, crack e roubo. Tomás
provou de tudo, mas não gostou, não virou traficante
e nunca quis saber de drogas. Apenas o cigarro era o
parceiro de todas as horas.
Por outro lado, sua astúcia o fez se destacar.
Sempre bolava planos inteligentes. Tudo o que
roubavam, era repartido, ninguém ganhava mais. Os
meses foram passando. Depois de muito tempo
voltou a sorrir com os novos parceiros. Nenhum tinha
família, governo ou qualquer espécie de proteção.
Eles tinham em comum o ódio pelo mundo.
Um dia os três estavam em casa, sem ter muito
que fazer. Chovia torrencialmente. Começaram a
conversar sobre coisas da vida, primeiro sem muito
interesse, depois, aos poucos colocavam para fora os
dramas que ainda estavam vivos na memória. Tecão
foi o primeiro. Sempre que chovia ele ficava triste,
lembrava-se da mãe e do seu passado.
- Eu sempre tive vontade de ter uma família,
mas a minha mãe era puta. Eu nasci na zona. A minha
mãe era dona de uma das casas, mas eu nunca aceitei
aquele tipo de vida. Fui crescendo e tomando nojo da
minha mãe e de todas as putas. Fugi de casa aos sete
anos e nunca mais ouvi falar da minha mãe. Ela nunca
me procurou. Sua vida era melhor sem filho. Se eu
fosse mulher, talvez ela aceitasse. Meus amigos
viviam tirando onda da minha cara e eu não podia
fazer nada. Era tudo verdade. Nunca me arrependi de
ter caído fora. Nem sei por onde ela anda, se está viva
ou morta...
Tecão engoliu em seco, mas não segurou as
lágrimas. Era a primeira vez que tocava no assunto. A
chuva não parava. Na velha casa, chovia também. Um
rato entrou meio desconfiado, procurava comida.
Dudu atirou um biscoito, ele fugiu amedrontado,
depois retornou, cheirou e levou embora o seu
bocado.
Tecão suspirou, depois prosseguiu:
- Muitas vezes eu vi os homens com a minha
mãe. Eu ainda não sabia direito das coisas, era muito
pequeno. Quando eu via aqueles homens saindo do
quarto dela, abotoando as calças ou ainda pelados,
ficava desconfiado, sabia que não era coisa boa. No
outro dia, perguntava sobre o assunto, e ela me batia
com raiva. Puxava as orelhas e me colocava de castigo
dizendo: “nunca mais fique espiando, seu moleque!”
Ela nem ligou quando eu saí de casa. Passei fome e
frio. Pedi esmola e passei fome. Aí virei isso aqui,
velho. Virei dono do meu nariz, do meu pedaço. Eu
não ia morrer de fome. No ano passado conheci Dudu,
um fodido como eu!
- Comigo aconteceu parecido - começou Dudu.
Mastigava um pedaço de pão – Minha mãe era viúva
e doente. Sofria do coração. Quando completei cinco
anos, ela morreu. Ficou só eu e Lenira, minha irmã de
15 anos. Mas a burra se juntou a um sacana chamado
Julião. O fila da puta não valia porra nenhuma. Lenira
passou a sofrer nas mãos do cara, apanhava todo dia
e eu também. Um dia ela apareceu morta. Cortou as
veias com a gilete. Fiquei só, nunca mais ouvi falar do
safado. Nesse tempo eu estava com oito anos, caí no
mundo sem saber o que fazer. Já chorei de fome, sabe
o que é isso, porra? Comi coisa podre no lixo, dormi
nas calçadas e a porra toda. Aí eu resolvi fazer do meu
jeito e o resto que tome no cu. Um dia conheci o Tecão
e tamo junto até hoje.
Eles se calaram. Esperavam que Tomás
também contasse seu drama:
- Eu não quero falar de mim. Não faz nem um
ano que perdi toda minha família. A dor ainda é
grande. Um dia ainda acertarei contas com aqueles
miseráveis!
- Velho, precisa se acostumar com as cacetadas
que a vida dá!
- Só vou sossegar o dia que encontrar aqueles
miseráveis! Eles nem sonham que eu existo... Canivete
está bem vivo e tem sede de vingança!
As lágrimas desceram. Os companheiros
ficaram em silêncio. Compreendiam a sua dor.
Dez
Pois eu me apresento: sou o menino Jesus!
Era o dia 24 de dezembro. Véspera de mais
outro natal. O primeiro longe da sua família. Tomás
lembrou-se da sopa com pão, os presentes, a mãe, as
irmãs, o pai... Tudo estava tão longe! A tristeza mais
uma vez invadiu sua alma. Apesar de tudo, não
chorou.
A cidade estava novamente enfeitada. Muitas
lojas exibiam seu Papai Noel. Tecão e Dudu se
preparavam para ir à rua. Tomás preferiu não os
acompanhar. Fazia muito frio.
E Deus menino nascia outra vez...
- Você não quer ir Canivete?
- Não.
- Não me diga que está bonzinho hoje, só
porque é natal... - ironizou Tecão.
- Não é por isso... Quer saber o que mais? É isso
mesmo. Não tô a fim de roubar hoje. Eu quero passar
o natal em paz!
- Qual é velho? Papo sinistro, mano!
- Eu não vou! - Gritou.
As lágrimas desceram sem que ele pudesse
impedir. Desabafou aos soluços:
- É o primeiro natal que passo sem a minha
família...
- Ora Canivete, não fique assim...
Ele continuou chorando desesperado. Os dois
amigos se calaram, nunca o tinham visto assim.
- Vai passar Canivete...
- Não sou Canivete. Meu nome é Tomás.
- Vamos Dudu, ele quer ficar sozinho.
Ele ficou só. Uma saudade imensa tomou seu
coração. Recordou-se do último natal, onde
experimentara um raro momento de felicidade ao
lado dos entes queridos:
“Senhor Deus. Hoje é o seu aniversário. Você
nasceu mais uma vez...”
“Devagar Tomás, a sopa está muito quente.
Sopre aos poucos...”
“A cidade está uma beleza lá no centro. Está
cheio de Papai Noel nas lojas”.
De repente um estalo: lembrou-se do menino
que lhe ofereceu bombons e depois desapareceu.
Vivera uma experiência única, sem explicação
concreta: afinal quem era aquele garoto? Será que foi
apenas invenção da sua fértil imaginação?
“Quem lhe deu esses doces”?
Levantou-se. Precisava ir ao centro. Um
pressentimento atravessou-lhe a alma. Queria
reencontrar o garoto, mas já era noite. Será que a loja
estaria aberta?
Pouco depois estava em frente à loja. Estava
fechada. Ficou triste e desapontado, o menino não
estava presente. Mas afinal, por que insistia tanto
naquela ideia fixa? Era apenas um garoto comum, o
resto era por conta da imaginação.
“Você adora sonhar de olhos abertos, não é
Tomás?” – Pensou.
- Olá! – Disse a voz atrás de si.
Virou-se. Um susto. Era ele. Sorriu
bondosamente.
- Não precisa falar nada... Tome este saquinho
de bombons. Lá em casa tem bastante doce. Feliz
natal! Continuo torcendo por você. Você pode e tem
capacidade para muito mais. Pense no Pai. Ele te
consolará em todo e qualquer momento! Agora repita
comigo: “Senhor, põe em mim um coração novo.
Quero ser feliz, Senhor. Ajuda-me a descobrir minha
meta. Ajuda-me a buscar as coisas do alto”
- Quem é você?
- Você já me conhece. Eu sei que tu me sondas.
- Não o conheço. Você é um mistério...
- Pois eu me apresento: sou o Menino Jesus.
Uma leveza o carregou para muito longe.
Sentiu-se flutuar... Sorria feliz. Mas aos poucos tudo
foi desaparecendo: ele, o menino, a cidade.
Acordou. Esfregou os olhos diversas vezes e
constatou decepcionado: “foi tudo um sonho”.
Tentou dormir outra vez, em vão. O sonho não saia da
cabeça. Estava confuso e ligeiramente gratificado. As
horas foram passando. A noite feliz se despediu da
terra dos homens. O dia raiou.
Tomás Jamais contou aquele sonho. Guardava-
o no coração, como seu maior tesouro. Fechou os
olhos e mesmo sentindo o clarão da manhã, voltou a
dormir tranquilamente.
Três dias depois Dudu e Tecão retornaram.
Estavam com uma aparência horrível.
- Vocês sumiram...
- Tamo aqui, porra! – Respondeu Dudu. A voz
pastosa e o olhar perdido não deixavam dúvidas:
crack.
- Vamos fazer estoque de pedinha –
comemorou Tecão.
Depois que eles começaram a usar o crack, não
queriam saber de mais nada. Estavam magros,
maltrapilhos, dormiam mal e tinham alucinações.
Quando ficavam sem a droga, tornavam-se violentos,
sem paciência, não queriam saber de conselhos. A
comida ficava em terceiro plano. Às vezes eles
desapareciam, voltavam dias depois, sujos,
desfigurados e sem vontade de conversar...
Presságios... No coração, uma certeza que não
se apagava: seus amigos estavam dizendo adeus aos
poucos...
De certo modo Tomás sentia-se culpado, pois
mesmo morando na rua, estava numa situação mais
confortável, procurava se cuidar e resistia às drogas.
Só não conseguiu largar o cigarro.
Os dias foram passando e eles continuavam
naquele calvário. No início parecia que tinham o
“controle” total da situação, mas, aos poucos, a
situação se agravava. Tomás lembrava-se das
primeiras investidas e do modo como os amigos
foram se aperfeiçoando:
- Chega de papo, vamos curtir a peda – propôs
Tecão.
Ele se levantou e foi ajeitar o cachimbo. Tomás
observava atentamente os gestos precisos de Tecão e
Dudu. Os dois amigos se tornaram adeptos do crack e
ele sofria em silencio. Embora não utilizasse as
pedrinhas, sabia dos efeitos e como aquilo podia
terminar. Não sabia como os amigos começaram, mas
foram eles que apresentaram as pedras. A primeira
vez ficara atento aos detalhes e cuidados que eles
tinham com a droga. O ritual era bastante organizado:
primeiro eles juntavam certa quantidade de pó de
cocaína, a mesma quantidade de bicarbonato de sódio
e água. Em seguida era a vez de usar a colher para
servir de “forma” para os ingredientes, como se fosse
um punhado de farofa. Na sequência eles pegavam
um isqueiro e aqueciam debaixo da colher até a
fervura, aí era só colocar um pouco de água fria para
fazer o choque térmico. Por fim ficava uma massa
uniforme que era coberta com um pano, para secar.
Pronto: as pedras estavam prontas para o consumo.
Nos primeiros segundos a sensação é de um
prazer imenso, mas logo o efeito ilusório vai
passando, a língua trava, os olhos ficam grandes e a
fisionomia muda completamente. Sem falar nas
consequências que a pedra deixa.
Tomás nunca mais quis saber daquilo. Preferia
o cigarro. Enquanto isso, os dois amigos eram
dominados pela droga, de forma possessiva.
A história triste dos amigos, ainda não estava
completa. Tecão e Dudu passaram a roubar cada vez
mais para alimentar o vício. Não havia esperança,
sonhos ou a remota possibilidade de liberdade. O
abismo se aproximava e eles estavam caminhando em
sua direção...
Onze
“Sem muita coragem ela levantou o rosto. Não havia dúvida: estava diante de uma mulher admirável”.
O dinheiro se acabava com uma rapidez
tremenda e a ambição crescia. Tomás começou a agir
sozinho, atirou-se de corpo e alma no mundo
marginal. A experiência fomentava a sua astúcia em
armar planos perfeitos e infalíveis.
Um dia o pior aconteceu: Dudu e Tecão foram
presos e levados ao juizado. Nunca mais Tomás ouviu
falar dos amigos, procurava não pensar no pior,
embora desconfiasse que eles estavam mortos.
Sozinho outra vez, a solidão era sua fiel amante...
O tempo continuou a passar. Estava com treze
anos: voz grossa, espinhas, puberdade. Os poucos fios
de barba apontavam e ele se orgulhava da sua cara de
homem. Sentia-se com vinte anos. Alimentava a sede
de vingança e ele persistia disposto a encontrar os três
facínoras. Era possível que se Tecão e Dudu não
estivessem presos, ele acabasse mudando de ideia,
afinal, ao lado deles, até se esquecia dos algozes. Mas,
sozinho, a revolta voltava e com ela o desejo de se
encontrar com os bandidos para encerrar o capítulo
mais dramático da sua vida.
- Quer tirar uma comigo? - Indagou.
- Tem grana? – Disse ela.
- Sim. Vamos?
- Quantos anos você tem?
- 18. Por quê?
- O juizado. Você tem cara de menino. Não está
mentindo?
- Não. Como é, vamos ou não, porra? - Mostrou
o dinheiro.
- Não quer beber nada? Ainda é cedo...
- Uma pinga com limão.
- Lucy, duas cruas com limão pra gente!
Lucy era um homossexual que morava na zona.
Um cara muito divertido, amigo e protetor da
prostituta.
- Aqui está querida - disse sem desviar os olhos
de Tomás.
- Quem é o bofe? – Perguntou com ar de
malícia.
- Ainda não sei. Qual o seu nome, cara?
- Canivete!
- Uau! Que nome cortante, Bete!
Lucy passou-lhe a mão no rosto. Tomás
levantou-se irritado.
- Escute aqui porra, eu detesto viado.
Lucy não se intimidou. Sorria daquela mostra
de valentia.
- Ai... o bofe é uma fera, Bete! Ele quer me bater,
pode?
- Lucy, vá embora. O cara não gosta de
brincadeira!
- Duvido se ele não gosta de uma sacanagem de
vez em quando. Olha só gato, contigo eu faço de
graça. Na manha!
- Eu já disse que não gosto de homem! Saia
daqui ou te rasgo o fato!
Ameaçou mostrando-lhe a faca. A badalada
Lucy saiu dando gritinhos histéricos, fingindo estar
apavorada. Tomás começou a rir daquela figura
divertida.
Ficaram a sós.
- Vamos para o quarto, Canivete. Já vi que você
quer ir logo ao ponto final!
Uma cama mal arrumada os aguardava. O
aposento era apertadíssimo e um tanto escuro. Na
parede um quadro do “Sagrado coração de Jesus”.
Não havia qualquer emoção ou expectativa
para aquela mulher. Era um velho costume. Tomás
era apenas mais um cliente. Venderia o prazer em
todas as performances, deixando-o completamente
satisfeito. Fazer sexo era o jeito de ganhar a vida. E
então, sem qualquer cerimônia começou a despir seu
mais novo cliente. Bete era uma mulher experiente,
notou que estava diante de um iniciante. O garoto,
metido a homem, estava vivendo sua primeira
experiência sexual, sabia. Por isso, fez questão de
tratá-lo de modo especial, com carinho e respeito.
Primeiro procurou despertá-lo, beijou seus
lábios, enquanto uma das mãos deslizava sobre o
peito, até alcançar as partes íntimas. Tomás ficou
excitado e, ao mesmo tempo apreensivo. Tentou
esquivar-se das suas carícias ousadas. Para deixá-lo à
vontade, dono da situação, ela tratou de elogiar seus
atributos físicos.
- Você tem razão. Não é criança coisa nenhuma!
Ela sorriu vaidoso. Então ela o empurrou sobre
a cama, jogando-se sobre ele. O acariciou de um jeito
todo especial, soltando gemidos de prazer. No
começo, não reagiu, ficou em silencio, olhos fechados,
numa sensação de intensa paz. Mas, aos poucos, viu
que aquilo era bom. Sentiu-se num paraíso
desconhecido, mas, totalmente maravilhoso. Sorriu,
repleto de prazer. Ela também. Agora ele estava mais
à vontade. No comando. Tomou coragem e começou
a beijá-la, meio sem jeito, deixando-a agradavelmente
surpresa quando ele a tocava respeitosamente,
inseguro, repleto de carinho. Por alguns momentos,
teve a sensação de que voltara a ser a garotinha que
sonhava encontrar-se com seu príncipe encantado.
Tomás estava eufórico. Não queria parar, nem
saber de nada mais. Para ele, o mundo lá fora, era
insignificante. Bete estava ali para satisfazer seus
caprichos, expulsar seus medos e revelar que existe
vida além das tragédias. Aquele quarto pobre, sem
qualquer conforto, era a representação do paraíso.
Estava exausto. Ofegante. Ela acariciava seus
cabelos. Por alguns segundos, ele sentiu que uma
moleza prazerosa tomava conta de si.
- Gostou?
- Quero mais! - Voltando energia, fez tudo
outra vez.
Bete era uma jovem de apenas dezenove anos.
Uma bela morena de lábios salientes, alta, pernas
grossas e seios fartos distribuídos em decotes sensuais
que acentuavam o seu charme. O rosto conservava os
traços infantis de menina do interior.
Ela não conhecia muita coisa do seu passado.
Quando contava apenas um dia de nascida, foi achada
num monte de lixo, quase morta e rodeada de
formigas. Nunca soube dizer se tinha pai, mãe ou
irmãos. Uma pobre menina abandonada no meio do
lixo, apenas isso.
Um casal de pescadores se compadeceu da
criança que gritava de fome, e a levou para casa.
Deram-lhe banho, comida e carinho. A menina passou
uma parte da vida ao lado da nova família: um lar
pobre, de gente simples e sem muitas perspectivas. A
menina cresceu e viveu feliz por algum tempo, tinha
no coração a certeza do amor e da proteção dos pais
adotivos. Mas, um dia, o desejo cruel do pescador foi
maior que o sentimento paternal. De modo
animalesco, ele foi se aproximando até conseguir
romper, definitivamente, a ternura da menina que o
chamava carinhosamente de padrinho. Tinha apenas
onze anos quando foi estuprada.
Tudo começou com o excesso de ciúmes que o
pai adotivo nutria pela garota. Bete era vigiada a todo
o momento e o comportamento do padrasto jamais
levantou suspeita, afinal era um homem caridoso,
evangélico e cheio de boas intenções. O casal não tinha
filhas, apenas dois garotos, ainda pequenos. Mas,
assim que a garota completou seis anos, o homem
começou a portar-se de modo estranho. Vivia
alisando seus cabelos, elogiava sua esperteza e
sempre que podia, trazia da rua um doce ou uma
lembrança qualquer para a garota. Bete crescia bonita
e inteligente. Depois dos sete anos, o ciúme do
pescador tornou-se visível. Enchia a menina de
conselhos e só se deitava depois que ela estivesse
dormindo. A esposa não desconfiava, nutria a certeza
de que o pescador fazia o papel de pai zeloso e
vigilante. A garota era como se fosse a filha legítima,
por isso, via com bons olhos, a exagerada dedicação
do esposo.
- Zequinha disse que você está meio calada... –
disse a madrasta.
- Dor de cabeça madrinha Celina – respondeu
a menina, coração aos pulos, cheia de medo.
- De uns dias pra cá você vive queixando de dor
de cabeça, vive nos cantos, triste...
- Nada não madrinha.
No fundo a menina desconfiava das intenções
do padrasto. Sentia-se insegura e meio sem jeito
quando ficavam a sós. Toda vez que a mulher se
ausentava, o padrasto dava um jeito de infernizar a
sua vida. Foi assim, naquela manhã de domingo.
- Não abriu o presente... Você sempre gostou de
chocolate.
- Padrinho, não precisa trazer doce... –
desculpou-se a garota.
- Está desprezando o presente do seu
padrinho?
- Não...
- Só precisa ficar boazinha... – alisou o rosto da
garota – hoje é seu aniversário de onze anos! Minha
menina virando mocinha, peitinho crescendo...
A menina gelou. Era o momento que mais
temia. Zequinha pescador não escondeu o forte desejo
que sentia pela bela morena que habitava seu rancho.
Não mediu sacrifícios ou embaraços naquele triste
domingo. A esposa e os filhos estavam na Igreja.
- Não faça nada padrinho, pelo amor de Deus...
– suplicou a garota.
- Não vai doer, você vai gostar!
A menina esperneava gritando, mas ele não
teve piedade e, como um animal feroz, rasgou-lhe a
pureza. Uma criança de onze anos... A prova cruel: o
pênis coberto de sangue. A menina gritava de dor e,
como se não bastasse a humilhação, foi ameaçada pelo
algoz enquanto abotoava a calça:
- Agora é assim. Sempre que eu quiser, você
fica comigo. Sou teu macho de hoje em diante.
Em prantos, a menina perdeu o medo e
enfrentou o padrasto pela primeira (e última) vez.
- Eu vou contar tudo para a madrinha Celina.
- Ela vai acreditar no marido ou numa morta-
fome que a gente deu abrigo? Fale e verá a resposta...
Buscou socorro na mãe adotiva. Estava em
prantos, desabafou com a madrinha, mas a reação da
mulher foi a sua maior decepção:
- Vagabunda, eu sempre notei seu jeito falso,
vivia abrindo as pernas e pedindo presente pro
Zequinha... Fez tudo de caso pensado, não é sua
moleca? Zequinha é homem de bem, respeitador e
temente a Deus. Você é erva ruim, do mundo e tem
que desaparecer!
- Não fale assim madrinha, eu não tive culpa!
A mulher começou a gritar mais desaforos.
- Suma daqui sua vagabundinha e nunca mais
apareça! Leve apenas a roupa do corpo!
E foi assim que aquela menina, sozinha e
indefesa, encontrou na prostituição a sua fonte de
sobrevivência. Aos 14 anos já conhecia o mundo
marginal das ruas e os prostíbulos da cidade. O
passado foi riscado da sua vida, tornou-se uma
mulher sem qualquer expectativa. Não tinha sonhos
ou vontade de sorrir. Tentou o suicídio algumas
vezes, não teve coragem. Sobreviveu. Cresceu.
Tornou-se uma mulher machucada pela vida.
...
Depois da primeira experiência, Tomás passou
a ser um assíduo frequentador da zona. Bete era a sua
preferida. Ela sentia tanta afeição por ele que nem
cobrava pelos momentos de prazer. Sabia como saciar
a sua fome de sexo e era cúmplice perfeita das suas
fantasias. Tomás virou o seu homem e aconteceu o
inevitável: estava amando, pela primeira vez...
Um dia, ela decidiu confessar o seu amor.
Chamou Tomás para uma conversa franca:
- Canivete, sou uma puta. Todo mundo sabe
disso, mas tenho coração. Eu já não sei viver sem você.
Uma puta nunca deve dizer isso, mas é verdade. Só
penso em você e já não quero me deitar com mais
ninguém. Sinto nojo dos outros homens, eles não são
como você... – atrapalhou-se na emoção e começou a
chorar.
Ele a ouvia em silêncio. Ela continuou, tentava
engolir o choro:
- Eu tô ligada em você, é isso, mas vamos
combinar uma coisa: você não vem mais aqui. Tem
um monte de casa aí na zona, um monte de garotas,
sabe? Não quero que você apareça mais aqui... Você
só vai atiçar o meu amor!
Silêncio. Esperava uma resposta. Tomás tocou
de leve seus cabelos e ela voltou a chorar.
- Não quero sua compaixão! – Disse, enquanto
afastava a sua mão.
Sem muita coragem ela levantou o rosto e
Tomás não teve dúvidas: estava diante de uma
mulher admirável.
- Você não gostaria de viver comigo? – Quis
saber Tomás.
Ela fechou os olhos. Estaria sonhando? Sempre
esperou por esse dia.
- É o meu maior sonho Canivete!
- Mas eu não tenho casa.
- Deixa comigo. A Lucy tem um barraco legal,
aqui perto. Ela voltou para Recife e deixou a casa para
mim. Não é grande coisa, mas é arrumadinha, tem
cama, cozinha, televisão e banheiro... O que você
acha?
- Eu topo.
Era exatamente o que ele pretendia: morar num
lugar seguro, cama, comida, roupa lavada e sexo a
todo o momento...
“Por que não? Não tenho nada a perder” -
pensou.
Aceitou, impondo-lhe apenas uma condição:
- Não quero saber de filhos!
- Tudo bem, eu também não quero.
- Então hoje mesmo a gente se muda pra casa
da Lucy.
Ela se atirou no seu pescoço sorrindo como
uma criança.
- Oh! Canivete! Nem estou acreditando! O meu
sonho está se realizando...
E assim o menino Tomás, aos 15 anos, tornou-
se o esposo de Bete. A barba rala disfarçava a pouca
idade. Bete confessou que desconfiava desde o início,
mas fingiu acreditar no seu homem feito.
Doze
“Ele estava diante do seu passado”.
E as primaveras passavam como nuvens sem
encanto... Tomás estava com 18 anos, vivia com a Bete,
uma mulher fiel, responsável e cheia de cuidados. Ao
seu lado, ele se sentia seguro. No fundo, os dois
estavam no mesmo barco. Ela deixou a prostituição e
se transformou em mulher de bandido. Ele já era mais
ou menos conhecido e respeitado entre os canalhas.
Algumas vezes Bete quis conhecer a sua
história, mas ele nunca falou sobre o passado, mudava
de assunto, mantinha segredo. Ela não insistia, ele
estava ao seu lado, o resto não tinha tanto valor. Era
uma mulher submissa e tinha consciência disso, fazia
questão de fazer tudo para que seu homem se sentisse
bem, alegre, realizado. Nunca o censurou. Para ela,
tudo o que ele fazia, estava correto. Amava-o com
ardor, sem medidas, de modo desesperador,
sufocante. Era uma mulher capaz de qualquer
sacrifício, desde que ele nunca se afastasse dela.
A vida prosseguia...
Certo dia, Tomás foi apresentado a dois
homens, num barzinho mal frequentado. Eram dois
bandidos experientes, precisavam de mais um
comparsa, de preferência jovem, sem envolvimento
com a polícia. Tomás ficou animado, aproximou-se
disposto a assumir definitivamente o mundo do
crime. Agir sozinho estava cada vez mais arriscado,
precisava se unir, criar defesas, fortalecer as ações,
realizar grandes assaltos.
- E aí rapaziada? Eu pago a rodada!
- Chega mais, gente boa! Sente e beba com a
gente. Meu nome é Bado e este é o Miro.
Tomás engoliu em seco. Uma moleza tomou
conta do seu corpo. O coração disparou na maior
emoção da sua vida. Não havia dúvidas, eram eles.
Empalideceu repentinamente e quando viu que ia
cair, apoiou as mãos na parte superior da cadeira. Não
podia cair diante deles. Aprendeu que todo aquele
que cai é humilhado e isso ele não podia admitir.
O destino acabava de lhe pregar uma estranha
peça. O colocou diante dos bandidos que arrasaram a
sua vida. Por um momento, ficou sem ação, perdeu a
fala. Um turbilhão de lembranças veio-lhe à memória
e se resumia na imagem dramática de um garotinho
desesperado, abandonado à própria sorte, na
madrugada mais triste da sua vida.
“Muito bem! Queremos as joias e a grana!”
Faltava apenas o “pirata” e pronto: estava
completo o quadro da destruição. Sentiu o mesmo
gosto de sangue na boca quando o pai o socou,
enquanto o ensinava a roubar.
O Bado continuava o mesmo, apenas alguns
cabelos brancos a mais. Conservava o detestável
bigode. Como poderia esquecer? Naquele tempo,
quando o viu pela primeira vez, teve a impressão de
que o conhecia e agora sentia a mesma sensação.
O outro, o Miro, continuava forte, cabeça
raspada e, sobre o músculo direito, a inconfundível
tatuagem do dragão em chamas. Era como se o tempo
não tivesse passado. Quando sorria, a mesma falha
nos dentes... Tomás estava diante do passado.
Depois de recobrada a surpresa, sentiu o ódio
subir à mente, como um relâmpago. Podia enxergar
nitidamente a mãe e as irmãs estendidas, nuas e
mortas. A destruição de três inocentes que não
fizeram nada para sofrer aquela violência. Agora, os
assassinos estavam ali, sentados, em sua frente,
sorrindo e bebendo...
Mas, precisava usar de cautela. Embora a sede
de vingança fosse mais forte, tinha de agir com
sabedoria, buscar dentro de si a arte do fingimento e
disfarçar as reais intenções.
- Ei, o que é que há gente boa? - Perguntou um
deles, o Bado.
- Nada... – respondeu, forçando um sorriso.
Precisava continuar fingindo. Eram dois assassinos
perigosos e recheados de experiência.
Sentou-se ao lado deles.
- Quem é você?
- Canivete. Ouvi dizer que vocês estão
buscando parcerias e eu tenho muito que aprender...
- Já ouvi falar alguma coisa de você. Posso dar
uma chance. Se você conseguir se sair bem, ficará com
a gente, estamos precisando de mais um. Temos uma
parada pela frente.
Como não aceitar? Estava diante de uma
chance de vingar-se e não podia desperdiçar o
momento. Alimentava um plano antigo: se juntaria
aos bandidos, tiraria proveito dos assaltos e depois
executaria os dois. Simples assim. Depois, cairia no
mundo.
- O Pirata foi preso e já faz um tempinho que a
gente não se encontra. Mas ele nunca fica fora mais de
quatro meses.
- Por quê? - quis saber, precisava confirmar as
suspeitas.
Eles riram da sua ingenuidade.
- Garotão, disse o Bado, alisando o bigode
orgulhosamente - eu sou tira aposentado, tenho meus
contatos e isso facilita...
Pronto. As suspeitas estavam confirmadas.
Aquele bandido era um ex-policial, defensor da
justiça e da segurança do povo. A revelação só aguçou
a sede de vingança. Esperava apenas uma chance.
Aos poucos foi se aproximando da dupla,
afastou-se de Bete por algum tempo. Precisava
realizar a sua missão e para isso, teria que aprender a
conviver com os dois bandidos, esperando o melhor
momento. E assim foi. A parceria foi um sucesso,
juntos conseguiram realizar assaltos importantes.
Tudo corria bem, eles passaram a confiar em Tomás e
isso era a parte fundamental do plano: conquistar a
confiança dos inimigos. Os dois nunca manifestaram
qualquer dúvida a seu respeito, afinal, na época,
Tomás era apenas uma criança indefesa e assustada
entregue à própria sorte.
Finalmente foi realizado o grande assalto.
Assaltaram um banco de uma cidade do interior. A
ação contava com a grande experiência dos bandidos.
Tudo estava preparado: o carro, o esconderijo, os
disfarces. A operação foi um sucesso. Um dos
funcionários do banco era comparsa da dupla, primo
do ex-policial, o Bado. Primeiro, ele forneceu os
códigos das máquinas onde o dinheiro ficava
guardado no cofre dos bancos, mais conhecidas como
dispensadores de notas. O bancário indicou o dia e a
hora que o assalto deveria ser realizado e como eles
deveriam atuar. Tomás foi designado para dirigir o
carro na fuga. Estrategicamente ficou de prontidão na
saída da cidade, atrás dos muros de um cemitério
abandonado. Eles o encontrariam em vinte minutos,
deixariam o primeiro carro e seguiriam para a BR,
sentido norte, em direção ao esconderijo. Tomás
tentava disfarçar o nervosismo, nada podia dar
errado. Eram nove horas. Os dois estavam
encapuzados e armados. Um dos funcionários
rendidos foi o comparsa. No momento da ação ele
trabalhava normalmente, sem levantar qualquer
suspeita. Conforme o combinado os assaltantes
tomaram a chave de seu carro e o utilizaram para sair
da cidade. O veículo foi abandonado atrás do
cemitério.
Saíram em disparada. A estrada deserta e a
cidade desprovida de segurança facilitaram a
operação. Os bandidos eram experientes em assaltos
a agencias do interior.
Raramente um golpe era malsucedido. Não
houve falhas. O grupo escondeu-se no mato. Ficaram
desaparecidos por um tempo. Os jornais só falavam
do grande roubo à mão armada. O carro foi pintado e
trocado a chapa. Estava preparado para qualquer
eventualidade. Enquanto isso, no esconderijo, Tomás
ficou aguardando ansiosamente a chance de se vingar,
até que ela surgiu. Era o momento. Não podia esperar
mais.
O Bado e o Miro dormiam. Tomás apenas
fingia. Em dado momento, levantou-se furtivamente
e começou a agir como uma sombra. Primeiro,
apanhou as armas de cada um. Interiormente, estava
tenso, temeroso: e se um deles acordasse? Mas os dois
dormiam profundamente.
Tomás respirou fundo, acionou o gatilho e,
munido de revolta, deu um chute no rosto de cada
um, acordando-os violentamente. Era tudo ou nada.
O momento havia chegado e ele não podia recuar. Os
homens acordaram assustados.
- Que porra é essa? Ficou louco? Largue esta
arma!
- Cala a boca seus vermes! – Ordenou Tomás,
repleto de cólera – isso não é brincadeira. Estou
falando sério!
- Eu não estou entendendo nada... –
argumentou o careca, meio desconfiado.
- Cala a boca seu porco! Vou refrescar a
memória de vocês, contando uma pequena história.
Vocês se lembram de Bastião Pilantra?
- Bastião Pilantra? Claro que me lembro
daquele sacana! Até hoje não vi a cor do dinheiro e
nem as joias que ele nos roubou! Mas o que o Bastião
tem a ver com isso? Ele já morreu, faz muito tempo!
- Bastião tem tudo a ver com isso!
- Ora Canivete, você está ficando...
- Eu mandei calar a boca, porra! Quem fala aqui
sou eu! Depois que Bastião morreu, vocês foram à casa
dele arrancar da família um certo dinheiro e um
monte de joias, não?
- Sim, é verdade. Mas já faz tanto tempo que eu
já tinha até me esquecido!
Aquela frase aumentou o seu ódio. Tomou
fôlego e prosseguiu:
- Como a mulher e os filhos não soubessem de
nada, vocês amarraram o menino e levaram as três
mulheres para o quarto. Depois de sacanear com cada
uma delas, não se contentaram não foi?
- Era uma fortuna em jogo, garotão! Bastião
sujou com a gente. Nós sempre dividimos com ele a
grana e ele nos passou a perna. Ficou com a maior
parte das jóias e da grana. Só depois da morte daquele
miserável, nós descobrimos e tentamos nos vingar.
Estávamos dispostos a tudo mesmo! Fomos ao
barraco dispostos a recuperar o que era nosso. Mas foi
tudo inútil. Até hoje não sei onde foi parar a porra
daquele tesouro... Vem cá, por que tudo isso, garotão?
Como é que você sabe desta história? Você conheceu
o Bastião? Já faz tanto tempo...
- Cala a boca, filho da puta! Vocês já falaram
demais e parem de me chamar de garotão! Vocês estão
pensando que eu estou brincando, não é mesmo?
Sempre sonhei encontrar vocês, frente a frente!
- Por quê?
- Apesar de sacanear com as mulheres, vocês
não ficaram satisfeitos e mataram as três
impiedosamente, não é verdade?
- É verdade. Foi ordem do Pirata. Ele estava
furioso e sempre chefiou o bando. Mas como é que
você sabe de tanta coisa? Quem é você afinal? Não me
diga que é um policial disfarçado...
- Eu sou o filho de Bastião Pilantra! – disse
pausadamente, saboreando cada palavra.
Eles empalideceram. Tomás prosseguiu
emocionado, sentia o coração bater forte, repleto de
rancor e mágoa:
- Eu sou aquele menino que vocês amarraram
na sala. Eu sou o filho da mulher que vocês
sacanearam e mataram. As mocinhas, eram as minhas
irmãs. Aquela, era a minha família... Eu sou a
vingança! Chegou o momento!
- Eu... - gaguejou o careca.
- Não é preciso ficar nervoso, eu... - não sabia o
que dizer.
Tomás sorriu sarcasticamente. Saboreava o
desespero dos bandidos.
- Sabe o que vai acontecer? Eu vou matar os
dois e depois vou ficar com toda a grana, vou atirar
sem piedade e o meu revólver também tem
silenciador. Vocês vão apodrecer aqui!
Apertou o gatilho, disparou uma dezena de
vezes. Os dois tombaram sem vida. O sangue
começou a escorrer sem trégua. Tomás contemplou a
cena por um momento...
“Mamãe, Cida e Tela, vocês estão vingadas”.
Imediatamente voltou a incontrolável vontade
de vomitar. Tinha que sair dali. Tentou se segurar,
mas não suportou, vomitou terrivelmente. Aos
poucos foi se acalmando. Pegou todo o dinheiro e as
armas. Os dois corpos estendidos ofuscavam a sua
visão.
- Ainda falta mais um! O pirata... Mas ele não
me escapa!
Treze
“Ele estimava aquela mulher que lutava ao seu lado em toda e qualquer circunstância”.
Tomás abriu a porta aos poucos. Bete apreciava
mais um capítulo da novela das oito. Quando ela o
viu, vibrou como uma criança diante de um novo
brinquedo. Estava radiante com o seu retorno.
- Canivete, quanto tempo! Que bom que você
voltou!
- Como tem passado?
- Agora está bem... Eu estava morta de
saudades!
- Estou aqui, isso é o que importa...
- Eu não preguei o olho! Te esperava todo santo
dia, morria de medo e preocupação. Cheguei a pensar
que os tiras tivessem te apanhado!
- Vira essa boca pra lá, foi tudo perfeito. Agora
temos grana e fartura! Mas ainda precisamos ter
cuidado. Ficaremos separados algum tempo até as
coisas esfriarem!
- Eu entendo. Você não pode correr nenhum
risco! Mas você vem de vez em quando dormir
comigo?
- Combinado!
Bete era ciumenta, era capaz de qualquer coisa
para manter-se ao lado de Tomás. Mas com o passar
do tempo, ele foi se tornando frio, distante. Nunca
disse que a amava, sentia carinho, gratidão e
companheirismo por ela. Mas, amor era coisa que ele
não havia conhecido, embora estimasse a mulher que
lutava ao seu lado em toda e qualquer circunstância.
Bete era mulher de guerra, carnaval e muito amor. No
fundo ela sabia que Tomás não a amava, não se
incomodava, desde que ele permanecesse ao seu lado.
Tomás estava razoavelmente bem, morava
numa casa maior, mobiliada e aconchegante, mas a
ambição crescia, queria riqueza, fartura, vida de rei.
No fundo, tinha a intenção de partir para outro
estado, tão logo a vingança se completasse. Queria
uma vida normal, sem a presença de Bete. Tencionava
libertar-se de sua mulher para sempre.
Tempos de maturidade. Agora ele estava com
vinte e dois anos. Interiormente, persistia o conflito
entre as duas personalidades. Por um lado, ainda era
o sonhador Tomás, menino puro que tentava
penosamente sobreviver, que sonhava com a
felicidade ao lado de uma esposa que amasse de
verdade. Tomás era forte e por mais que Canivete
tentasse, jamais conseguiu destruí-lo. Então, para não
perder o rumo da vida, os dois viviam uma intensa
luta. Tomás entrava em desespero, perdia o sono e
sentia horríveis dores de cabeça... Às vezes, entre as
sombras da noite, silenciosamente, o menino Tomás
sorria ternamente. Mas, a sensação de paz se rompia
bruscamente, quando o anjo malvado, revoltado e
vingativo, chamado Canivete, aparecia. Era
dominante. Não queria, de modo algum, oferecer uma
pequena chance a Tomás.
- Onde vai? – Perguntou Bete.
- Sair por aí, por quê? Tenho que dá satisfações?
Ora, vá pro inferno!
- Não precisa se zangar. Eu só fiz uma
pergunta, simples curiosidade.
Tomás nunca foi de muitas amizades, mas era
conhecido e respeitado na comunidade. Na verdade,
depois que virou bandido, mudou alguns hábitos:
evitava multidões, tinha uma vida reclusa, caseiro e
nunca foi ligado ao tráfico, embora conhecesse seus
integrantes. Era cada um na sua e pronto. Mas tratou
de melhorar de vida. Comprou uma casa maior, um
carro e armas. Nunca faltou comida e conforto. Bete
costumava dizer que ele vivia jogando dinheiro fora,
tinha que economizar. No fundo, a Bete nunca aceitou
a vida torta de Tomás. Diversas vezes sugeriu que ele
arranjasse um emprego e largasse a vida de bandido.
Temia por ele, sabia que naquele mundo, a lei da
sobrevivência era bem clara: matar ou morrer.
- Canivete temos uma casa boa, um carro, você
é jovem, inteligente, pode arrumar um emprego....
Olha só, vamos sair dessa e viver uma vida decente.
- Ainda não, Bete...
- O que está escondendo de mim? Por que não
se abre?
- Um dia você saberá de tudo. Não enche o
saco!
Ele continuava com a ideia fixa da vingança,
precisava reunir forças para não recuar enquanto não
completasse a promessa que fizera à família. Os
conselhos de Bete, repletos de boas intenções o
incomodava, de alguma forma atingiam seu coração,
por isso evitava o assunto e pensava em sair de casa,
deixar a mulher e viver outra vida longe dali.
Enquanto isso tratava de buscar um novo plano. E ele
aconteceu por mero acaso. Uma vez conheceu um cara
que lhe deu todas as dicas: o endereço da casa, a
ausência do dono – um empresário que vivia
viajando. Era só aguardar o momento. O cara era
casado, não tinha filhos. Tomás estudou o plano
durante vários meses, sabia que a casa ficava vazia a
maior parte do tempo e o sistema de segurança
contava apenas com a cerca elétrica, fora isso, a casa
ficava sem qualquer proteção.
Tomás começou a montar vigília. Certo dia, um
fato curioso chamou a sua atenção. Era quase meia-
noite. O casal voltava para casa, quando o luxuoso
carro foi estacionado a poucos metros da entrada da
casa. Tomás ficou observando de longe. O casal
discutia no interior do automóvel. Uma bolsa foi
atirada pela janela e o mais estranho: de repente, a
mulher desceu e o carro saiu em sentido oposto. Ela
estava tão aflita que não conseguia encontrar a bolsa.
Subitamente, o homem cruzou a terceira travessa e
retornou, desceu o vidro e disse aos gritos:
- Você tem uma semana para arrumar seus
trapos e cair fora. Quando eu voltar não quero
encontrá-la em minha casa, entendeu?
Ela respondeu à altura, tinha a voz trêmula,
cheia de ódio:
- Maldito! Você vai pagar caro, eu juro que vai!
O homem saiu em disparada. Foi quando
tentou cruzar a terceira travessa. Não percebeu que
havia um semáforo bem no cruzamento, e o sinal era
vermelho. Ele passou. E sumiu. Enquanto isso a
mulher chorava, sentada na calçada. Tomás encheu-
se de coragem e se aproximou.
- Precisa de ajuda?
Ela nem levantou a cabeça. Engoliu o choro,
depois disse olhando para o sinal.
- Preciso. Aceita matar aquele bruto? Não tive
tanta sorte... – voltou a chorar – Maldito! Miserável!
Ele vai pagar por tudo!
Só então levantou a cabeça.
- Se for bandido, seja bem-vindo. Se for um cara
bonzinho, caia fora! Estou uma merda! Vai, cai fora!
- Brigou com seu esposo?
- O que você acha? Ajude-me a procurar a
bolsa... – voltou a chorar.
Tomás encontrou a bolsa. Sentiu compaixão da
jovem, desprezada, abandonada, humilhada...
- Não chore... Venha, eu te levo para casa.
- Nem o conheço, mas aceito... Quem sabe seja
uma excelente oportunidade de me vingar daquele
canalha!
A casa era simplesmente linda. Um grande
jardim tomava-lhe a frente. Situava-se num bairro
residencial considerado seguro e repleto de ricos. Ela
acendeu a luz e ele pode ver nas paredes da sala
principal uma série de quadros valiosos. Ficou
boquiaberto. Nunca vira coisas tão esquisitas e ao
mesmo tempo, tão lindas.
- Agora pode ir – disse ela.
- Tem certeza que está bem?
Ela não respondeu. Voltou a chorar.
- Está uma droga! Uma droga... Abrace-me
forte estranho, bem forte!
Surpreso e ligeiramente sem graça, ele estreitou
a linda morena entre os braços. Estava tão envolvido
com a situação que nem se lembrava mais do seu
intento: assaltar a casa. Por um momento voltou a ser
o Tomás. Quedou-se a admirar aquela mulher tão
surpreendente.
- Se ele pensa que estou derrotada... Estou
usando a casa dele, deixei entrar um estranho. Um
cara que eu nem sei de onde veio ou o que pretende...
- Louca... – disse ele sem conseguir soltá-la.
- Aproveite meu querido, eu preciso ser amada,
desejada...
Tomás afastou-se abruptamente. Ela riu
divertida. Ele sacou a arma de modo desajeitado, não
sabia como agir naquela situação. Seu coração
continuava aos pulos.
- Acontece que eu não sou um simples
desconhecido. Se lhe disser que sou um bandido e que
planejei esse assalto?
Ela não se intimidou. Era uma mulher estranha
e deliciosamente imprevisível. Atirou-se na poltrona
e em seguida dirigiu-lhe a palavra. Sua voz rouca e
carregada de sedução o deixava sem fôlego.
- Muito bem - disse decidida - leve tudo que
você quiser.
Fez um breve silêncio. O sorriso morreu nos
lábios e novas lágrimas brotaram dos olhos,
borrando-lhe a maquiagem pesada, mesmo assim,
prosseguiu:
- Mas eu te peço uma coisa: atire! Não tenho
coragem para o suicídio! Vamos! Atire!
Matá-la? Não conseguia imaginá-la morta. Não
podia permitir que ela se fosse de modo tão estúpido
e covarde.
- Você quer mesmo morrer?
- Não me faça perguntas idiotas e aperte logo o
gatilho. Você não é o bandido? Então, o que está
esperando? Não se preocupe, não tem ninguém em
casa. Você não tem nada a perder, vai ganhar dinheiro
com isso! Por favor, atire...
Tomás ficou completamente sem ação.
- Atire logo... Eu não quero viver!
Como se estivesse hipnotizado, deixou o
revólver soltar-se no tapete e num impulso
aproximou-se, abraçando-a. Ela engoliu os soluços.
Por um momento, o olhou surpresa, depois, aos
poucos, foi se acalmando. Sentiu-se forte em seus
braços. Tomás alisou-lhe os cabelos, como se
consolasse uma criança indefesa. Ela voltou a encará-
lo sem qualquer receio. Estendeu-lhe a mão e o
conduziu aos seus aposentos. Estavam aprisionados
numa perigosa armadilha do destino. Ficaram ali, no
meio do quarto, abraçados como se fugissem da
realidade, do mundo, do óbvio. Ela o apertou forte,
como se ele fosse uma tábua de salvação. No silêncio
daquele quarto as palavras eram substituídas por
sussurros românticos. Tomás agora desfrutava outro
lado da vida, sentindo-se inteiro, normal, realizado,
feliz. Começou a despi-la, cuidadosamente e ela se
arrepiava de prazer, motivando-o a prosseguir com as
carícias. Fizeram amor com desespero, sem trégua.
Depois ficaram inertes, num só corpo, contemplando
o espaço.
- Que loucura! – Disse ela, finalmente. Abriu
um meio sorriso – não posso acreditar que tudo isso
aconteceu.
Tomás ficou olhando a linda mulher deitada ao
seu lado, era tudo muito estranho.
- Quem é você? Eu sonhei ou você existe
realmente?
Ela parou de sorrir, ficou séria. Ajeitou o
cabelo, levantou a cabeça, encarando-o:
- Meu nome é Jane. Você não sonhou, meu
bandido, você aconteceu. Se você não tivesse
aparecido talvez eu morresse de verdade, mas você
apareceu para mostrar-me quanto vale a pena viver!
- Isso é loucura, estou aqui para te assaltar e
olha só o que aconteceu!
- E você bandido? Qual o seu nome?
- Tomás, mas todos me conhecem por Canivete!
Ela riu divertida.
- Por que Canivete?
- Quando eu era pequeno, era magricela feito
um caniço. Foi o meu pai que me apelidou e a moda
pegou! Quase ninguém conhece meu nome.
- Seu pai não devia ter feito isso. Tomás é um
nome tão bonito!
- Engraçado... Momentos atrás eu nem te
conhecia e já estamos juntos como velhos conhecidos.
- Penso que tudo depende do momento. Você
presenciou aquela briga. Não foi a primeira vez que
ele me tratou como um lixo. Já fui espancada e expulsa
do seu carro centenas de vezes... Depois ele vinha
todo manso pedir perdão e a gente voltava a viver
bem até o próximo pileque. Mas hoje foi diferente. Ele
confessou que tem outra e que não quer saber de mim.
Expulsou-me de sua vida...
- Ele não sabe o que está perdendo...
- Sabe sim. Ele pode tudo, é poderoso, tem
todas as mulheres que deseja. Eu só fui mais uma na
vida daquele bandido, ele sim é o verdadeiro bandido
e não você. Eu estava numa pior. Detesto a solidão e
de repente surge você, arma na mão, inesperado,
lindo, sensual, selvagem! Você realizou meu maior
capricho: amei um desconhecido, sem culpa, sem
perguntas, sem planos, só amei. Eu realmente queria
morrer. Não pense que eu te seduzi para livrar-me do
assalto ou de algum crime. Eu estava completamente
desesperada, mas quando você me tomou nos braços,
senti uma coisa diferente. Uma espécie de alívio feliz...
- Não está arrependida? Esqueceu-se que eu
sou um bandido?
- E daí? Sou casada com um bandido e dos
grandes! Mas não quero falar disso agora. De uma
coisa você pode ter certeza: não costumo arrepender-
me daquilo que faço. Quer saber o que mais? Se
tivesse que fazer tudo outra vez, eu faria com prazer.
Gostei de você. Foi tudo muito lindo! Você é diferente,
o tipo de homem que eu sempre desejei. Foi um
momento inesquecível, completo, acredite.
Voltaram a se beijar. Em seguida, ela o
convidou para um banho de espuma. Na banheira a
água jorrava, fazendo nuvens de espuma feito neve.
Ficaram ali brincando como duas crianças. Em
seguida se vestiram e foram para a sala. Ela ofereceu
bebida. Tomás sentia-se estranho, era bonito demais
para ser verdade.
No fundo, sabia estava diante de uma aventura
de uma riquinha excêntrica. Porém, estava levando a
sério, acreditando na fantasia de um mundo que
entrou por acaso. Sentia-se ridículo, mas tinha certeza
que não queria perder aquela mulher.
- Não sou uma caprichosa. Um dia conto tudo.
Depois você pode julgar da maneira que bem
entender!
- Antes, me responda: eu não passei de uma
aventura meio louca, não foi?
- Foi mais do que uma simples aventura. Eu
ainda te quero!
- Somos dois loucos. Eu não passo de um
marginal e você é uma moça de respeito!
- Eu não sou ingênua. Sou a mulher rejeitada de
um senhor de 52 anos que partiu para Bogotá após a
nossa última discussão. Ele estava apressado e por
isso atravessou o sinal. Estava indo para o aeroporto.
E quer saber de uma coisa? Eu não tenho o direito de
condenar ninguém. Sempre existe uma razão para
tudo que a gente faz.
- O dia está quase aparecendo. Gostaria de
ficar, mas não posso.
- Ficarei aqui até o sábado. Depois tenho que
sair deste inferno. Prometa-me que voltará. Venha.
Precisamos conversar. Tenho um plano perfeito e
você pode ajudar. Estarei sozinha à sua espera. Vou
deixar com você a chave, mas a porta estará sempre
aberta para você, a qualquer hora da noite...
- Agora eu preciso ir – levantou-se decidido.
Mas eu volto.
E outra vez se beijaram. Ao lado daquela
mulher ele se surpreendia gentil, equilibrado. Ao seu
lado voltava a ser o amoroso Tomás: menino puro e
sonhador, sempre pronto a ouvir, compreender e
ajudar.
Pouco depois, estava na rua. As horas voavam
como raio. O dia se apresentou claramente. Ele ainda
podia sentir o sabor dos seus beijos, o cheiro do seu
perfume, seu corpo, nada lhe saía da mente.
“E se for só uma aventura? É isso! Eu servi para
afugentar a sua solidão. Nada mais... Canivete, você
não passa de um bandido, nada mais. Você não tem o
direito de por as suas mãos sujas de sangue, numa
mulher como Jane. Você sonha demais seu idiota.
Bandido não pode e nem deve sonhar. Você achou
que ainda era o puro Tomás, mas não é. Tomás já
morreu! Você é Canivete. Aqueles que já morreram
não mais voltarão à vida e ainda falta mais um, o
último! Aí a sua missão estará cumprida”.
Pouco depois, estava em casa. Bete estava à sua
espera chispando de ciúmes.
- Onde você andou Canivete? Quer me matar
de preocupação?
- Não devo satisfações da minha vida!
- Nossa vida, você quer dizer, não é? Você está
cheirando perfume de mulher e é perfume caro! O
cheiro é especial! Escute aqui: sou tudo, menos idiota!
Você não brinca comigo. Você ainda não me conhece
como pretende e não sabe do que sou capaz!
- Ora, cale a boca! Não tenho medo das suas
ameaças!
- Eu exijo respeito! Eu sou a sua mulher!
- Minha mulher? Mas que piada? Você não
passava de uma puta que vivia dando o rabo pra todo
mundo. Deu sorte que eu fui com a sua cara e
passamos a viver juntos! Mas e daí? Isso não apaga o
seu passado! Você tem a minha companhia, casa,
comida. Não basta? Você devia agradecer por eu ter
tirado você daquele mundinho podre... E chega de
bate-boca!
A humilhação feriu-lhe a alma. As lágrimas
foram escorrendo. Tomás respirou fundo, fora
extremamente grosseiro, afinal, Bete foi a única
mulher que o aceitou sem pedir nada em troca. Ela o
amava com sinceridade e sentia que a constante
indiferença era o indício de uma despedida.
- Olhe aqui - se pôs a falar chorando - eu fui
tudo isso que você me jogou na cara! Mas eu aprendi
a te respeitar. Jamais voltei a deitar com outro homem
desde que te conheci. Se estamos juntos, foi porque
você me convidou. Eu aceitei porque gosto de você.
Sou louca por você. Mas eu nunca te obriguei a nada.
Nem a você e nem a homem nenhum. Fique sabendo
que eu não sou uma cachorrinha sem dono. Estamos
juntos há sete anos e sempre fiz tudo por você. Sempre
desejei ter um filho e por sua causa, nunca me atrevi a
engravidar...
Ele a ouviu, em silêncio. Bete prosseguiu,
emocionada.
- Eu sei que você não gosta de mim, que me tem
apenas como uma empregada fiel e mulher de transa.
Mas eu te amo e como é doloroso sentir-me jogada
fora. Você nunca me chamou de querida, nunca me
tratou com carinho. Vive me agredindo até sem
motivo. Pisa e humilha e eu sempre me calei. Será que
você nunca parou para pensar que eu tenho um
coração? Você nunca se importa comigo!
Ela chorava copiosamente, mas ele permanecia
frio e distante. Não queria mais aquela mulher.
- Está arrependida? - gritou - pegue os seus
molambos e vá embora para sempre! Para mim tanto
faz!
- Você não tem o direito de falar assim comigo...
- Você provocou.
Ela limpou os olhos apressadamente.
- Canivete, vamos esquecer tudo?
Ela o abraçou suplicante. Suportava toda e
qualquer humilhação, exceto a ideia de um dia perde-
lo.
- Melhor assim...
Para ele aquele abraço era forçado, o beijo sem
gosto especial. Uma nítida diferença entre a mulher de
Canivete e a de Tomás. Mas, sabia que a sua realidade
era Bete. Jane não passava de um sonho impossível.
Bete era do seu mundo, juntos constituíam um
fragmento do universo marginal que escolhera para
viver.
- Vamos pra cama...
Tudo aquilo soava artificialmente, até naquela
relação, Jane estava presente. A mente martelava o
nome da misteriosa mulher que conhecera por
simples acaso e que da noite para o dia se transformou
no grande amor da sua vida. Não conseguia parar de
pensar em Jane. Estava sem ânimo até para roubar.
Bebia tentando esquecê-la, mas era tudo em vão. Seu
rosto não lhe saia da mente. Sua voz quente e sensual
ecoava aos seus ouvidos, sem trégua. Afinal, o que
estaria se passando comigo? Não queria admitir de
maneira alguma, mas era verdade: estava
perdidamente apaixonado pela estranha Jane.
- Ei, Canivete! Estou falando com você!
Era Bete que o despertara para o seu mundo. O
verdadeiro: sem amor, sem encanto, seu mundo cru.
- O que você tem Canivete? Está com a cabeça
longe daqui?
- Vai começar outra vez? Eu não estou aqui? O
que você quer mais?
“O seu amor” – respondeu em pensamento.
Mas sabia que era inútil pedir tal coisa. Então se
calava e se angustiava no constante medo de perder o
seu homem.
Catorze
“A alma estava numa tristeza profunda e quanto mais ele chorava, mais tinha vontade de desaparecer”.
Certo dia, numa conversa corriqueira, Bete
mencionou alguma coisa sobre o Pirata, o terceiro
bandido que chefiou o bando que destruiu a família
de Tomás. Ele ficou animado, assim a sua vingança
seria cumprida totalmente. Já estava cansado daquela
vida. Queria rever a Jane nem que fosse a última coisa.
Não podia esquecê-la simplesmente.
- Dizem que o Pirata é barra pesada e não tem
medo de nada!
- E nem eu!
- Canivete, que raio de negócio você tem com o
Pirata? Eu não sabia que você o conhecia.
- Ele precisa acertar uma conta comigo. Só isso!
- Que conta?
- É um dinheiro de um assalto, coisa nossa...
Bete não sabia de nada. Ela jamais suspeitou do
seu drama. Nada sabia do seu passado.
- Onde você viu o cara?
- Bom, dizem que ele estava preso, mas acabou
fugindo. Os tiras nunca conseguem segurá-lo de
verdade. O homem é grande entre os tiras e é muito
respeitado. Dizem que ele frequenta o bar do Luizão
ao lado da ponte.
- Eu preciso encontrá-lo de qualquer jeito, Bete!
Tem uma coisa importante que preciso fazer!
- Tome cuidado Canivete. O Pirata não é flor
que se cheire e é muito desconfiado. Dizem que ele
mata por divertimento, só para treinar a pontaria! O
cara é o próprio demônio em pessoa e tem o corpo
fechado! Adora uma briga! É muito perverso...
- Não se preocupe, saberei como amansar a
fera!
- Deixa eu ir com você?
- Não, você fica e cuida de tudo.
Engoliu em seco. Uma angústia o apanhou de
surpresa. Olhou para Bete como se fosse a primeira e
a última vez. Nutria um carinho especial por ela,
embora a tratasse duramente.
- Bete, eu quero voltar. Mas se alguma coisa
acontecer, obrigado por tudo. Você me ajudou esse
tempo todo. Valeu a pena conhecer você quando tinha
apenas treze anos - Beijou-lhe o rosto ternamente.
- Canivete... Você fala de um jeito... — ela
chorava — eu sinto um arrepio aqui dentro. Até
parece que você está me dizendo adeus! Por que não
me conta a verdade? Eu sei que você tem uma história
e eu gostaria de saber. Talvez eu possa te ajudar...
- Não, Bete, ninguém pode me ajudar! Um dia
você saberá de tudo, prometo... Agora, eu tenho que
ir!
- Canivete, não vá!
- É muito importante...
- E se você não voltar?
- Tome, esta é a chave da maleta. Guardei todo
o dinheiro que juntamos. A outra parte está no banco.
A casa agora é sua. Se eu não voltar, faça o que você
achar melhor!
- Canivete, pelo amor de Deus, você está me
dizendo adeus?
- Se tudo correr bem, eu volto, prometo. Torça
por mim, Bete.
- Seja lá o que for eu vou torcer. Estou do seu
lado, sempre!
- Espero voltar...
- Claro que voltará, com fé em Deus!
- Vai de carro ou moto?
- No carro. A moto fica com você.
Ele deixou atrás de si um pedaço da sua vida,
construído ao lado de Bete, a mulher que o idolatrava.
Da porta, ela o acompanhou, coração apertado,
repleto de aflição. Presságios... Sentiu um calafrio. “O
vento da morte passou por aqui”, pensou angustiada.
Seu homem atravessaria o vale das sombras. Não
podia perde-lo assim.
Tomás sentia algo esquisito, como se estivesse
indo para uma guerra inevitável. Sua jornada
vingativa estava chegando ao fim. Vozes e imagens de
um passado distante chegavam à sua mente e ele
revivia a sua infância tumultuada, em todos os
detalhes, como numa tela de cinema...
“Mãe, o que é universo?”
“Universo é o mundo, as cidades, as coisas,
tudo que nos cerca em geral”
“Não fique assim meu pequeno, tome, beba
este chazinho...”
“Não mãe, se eu beber, eu vomito...”
“Mãezinha, por que não temos amigos?”
“Tomás... meu Tomás...”
“Eu queria estudar na escola do Flavinho...”
“Você não gosta da sua professorinha aqui?”
“Mamãe... mamãe”
“Não foi nada Tomás. Estela coloque a
comidinha do Tomás”
“Tomás... você precisa viver”
“Tomás... meu Tomás”
“Mãe... mãe”
“Meu pequeno... meu pequeno... meu
pequeno”
E pouco a pouco tudo se perdia no eco. As
lágrimas escorriam e ele chorava, humildemente,
como se ainda fosse o pequeno Tomás. Nutria a
certeza de que a sua vida estava destruída por culpa
de três assassinos. Pensava que se os três não tivessem
cometido a barbárie, tudo podia ser melhor. Mas sua
família se foi completamente e ele tinha absoluta
convicção que aquele crime não podia ficar sem
punição, faria justiça a seu modo. Não podia recuar,
não era o momento.
Vasculhou a cidade inteira e não o encontrou.
Finalmente foi informado de que o Pirata estava no
mesmo bar, ao lado da ponte. Respirou fundo, a
missão estava chegando ao fim. Mal entrou no bar,
deparou-se com o Pirata tomando cerveja ao lado de
uma mulher. Estava o mesmo. A camiseta regata
deixava à mostra a tatuagem que deu origem ao seu
apelido: o pirata de braços cruzados e sorriso mau. O
bandido sorria e contava as suas proezas à mulher,
enquanto alisava suas pernas roliças.
- Ora, se não é o famoso Canivete! - anunciou
Luizão, o dono do bar. Era seu antigo conhecido.
Tomás encostou os cotovelos no balcão e pediu uma
dose caprichada de cachaça, sem desviar os olhos da
mesa do Pirata.
- Quem é aquele cara, Luizão?
- Você não conhece? É o Pirata. O cara é
poderoso, veja você que ele fugiu da gaiola e anda por
aí despreocupado. Não tem medo de nada.
- O cara é barra pesada pelo jeito...
- Se é! O cara é o próprio terror e é muito
inteligente!
O dono do bar baixou o tom de voz e disse-lhe
aos ouvidos:
- Alguns dizem que ele tem parte com o diabo.
Eu acho que não passa de lorota. No fundo, o Pirata é
gente boa, basta saber lidar com ele. Se quiser eu
posso te apresentar...
- Pode ser...
Aproximou-se da mesa do Pirata. O bandido o
encarou detalhadamente, como se soubesse que
aquele seria seu último encontro. Tomás procurou
disfarçar o ódio que o dominava. Conseguiu sorrir
dissimuladamente.
- Ora, então o grande Pirata mais uma vez é o
vencedor? Enganou os tiras!
- Pirata – disse o dono do bar – esse é Canivete,
gente nossa!
- Se Luizão tá dizendo, acredito. Sente aí e
festeja com a gente!
Tomás sentou-se à sua frente. Tinha que ser
forte, mesmo sentindo o coração aos pulos. Precisava
fingir com perfeição, estava diante de um bandido
perigoso, uma lenda do crime, respeitado até pela
polícia. Não podia falhar.
- Luizão, desce mais uma. Hoje quem paga
tudo sou eu!
Mal ele fechou a boca, Tomás sacou a arma e o
ameaçou:
- Nem tudo você pode pagar seu demônio!
Na rapidez de um relâmpago apontou o
revólver em sua direção. O dedo fervilhava no gatilho.
Chegou o momento. Apanhado de surpresa o
bandido espantou-se.
- Ei, o que há meu camarada? - sorriu intrigado.
- Fecha os dentes, miserável! Não se lembra de
mim, seu verme? Eu nunca me esqueci de você!
Sempre sonhei com este dia!
O bandido franziu o cenho. Não era homem
covarde. Procurou estender a prosa.
- Não me lembro de ter comido você, porra!
Além do mais nunca gostei de viado! O que você quer
palhaço?
Ele estava sério. A mulher escorregou-se dos
seus braços e acabou conseguindo levantar-se. Tremia
como vara verde.
- Miserável! Eu sou o filho de Bastião Pilantra e
prometi vingança! Não se esqueça que foi você e mais
dois vermes que destruíram a minha família.
Mataram a minha mãe e minhas irmãs
impiedosamente e sem qualquer motivo, pois não
sabíamos de nenhuma jóia ou dinheiro algum! Vocês
fugiram e eu fiquei amarrado. Jurei vingança e agora
chegou seu fim! Os dois eu já dei conta e nestas alturas
estão torrando no inferno! Só falta você e aí, o trabalho
estará completo.
Por um momento o Pirata ficou pensativo. Seu
olhar frio e calculista era o mesmo, não havia qualquer
sinal de medo ou surpresa. Para aquele homem matar
ou morrer era só uma questão de oportunidade.
- Esqueça essa frescura do passado! A vida é
crua meu irmão! Podemos entrar em acordo e quem
sabe, você acabe lucrando...
- Não faço acordo com um crápula como você!
Tomás percebeu que o Pirata tentava ser astuto,
procurava driblá-lo e assim pegar o revólver que, com
certeza, estava à cintura. O dono do bar ficou surpreso
e sem entender, a mulher do bandido manteve-se
paralisada e Tomás de arma em punho. Ele não se deu
por vencido, provocou ainda mais.
- Quer saber viadinho? Vá tomar no cu! Não
tenho medo! Quer atirar? Atire e reze para acertar
porque se eu sair dessa com vida eu acabo com tua
raça, assim como acabei com tua mãe e olhe que a
coroa era gostosa... As meninas então! Que noite! Ah!
Bons tempos aqueles... – e sorria saboreando o
escárnio – Atire viado! Atire!
Tomás disparou sem titubear.
- Vá pro inferno de uma vez por todas, pirata
filho da puta!
Apertou o gatilho mais três vezes. O pirata
estava no chão, sem vida. Seus olhos abertos,
encaravam o vazio e a boca ensaiava um sorriso
maléfico. Tomás contemplou o cadáver, o último.
- Pronto mamãe, Cida e Estela: descansem em
paz!
Entrou no carro. As pernas tremiam, teve que
apertar o pé no acelerador e desaparecer daquele
lugar. Estava tudo acabado. Tinha a sensação que a
sua cabeça estourava de dor. Saiu dirigindo sem
destino, sem se importar se seria preso. Não conseguia
ordenar os pensamentos. Atrás, um motociclista que
não queria ultrapassá-lo. Tomás julgou que fosse
algum comparsa do Pirata. Então, aumentou a
velocidade e conseguiu despistá-lo. Saiu da BR e
parou num terreno baldio, atrás de um velho galpão.
Tentava acalmar seu coração. Na mente, o sorriso
demoníaco do Pirata não o deixava em paz.
“Se eu sair dessa com vida eu acabo com tua
raça, assim como acabei com tua mãe e olhe que a
velha era gostosa”
Começou a chorar desesperado. Experimentou
a terrível sensação de que a vida perdera
completamente o sentido. Um enorme vazio tomou
conta de si, como se fosse absorvê-lo e pela primeira
vez sentiu vontade de morrer. A alma estava numa
tristeza profunda e quanto mais ele chorava, mais
tinha vontade de desaparecer.
“Não faz sentido” – pensou emocionado.
Dedicara-se ao crime de corpo e alma por uma
vingança concreta, levando-o a procurá-la sem
trégua... E agora, quando ela se concretizou, de fato,
sentiu um imenso vazio na alma, como se nada mais
tivesse importância, nem mesmo a vontade de viver.
Tomás compreendeu tarde demais que a vingança
não tem o poder de trazer de volta aqueles que já se
foram, nem alivia a dor que sentimos. Então, por que
a vingança?
De repente um rosto de mulher lhe veio à
mente: Jane. Ela deixaria a casa no sábado. Sua alma
se aqueceu de amor e as forças retornaram. Voltou
para a estrada e novamente a estranha sensação de
que alguém o estava seguido. Talvez fosse apenas
imaginação, se fosse alguém do Pirata, teria acertado
as contas consigo no terreno baldio. Presságios...
Aumentou a velocidade, queria chegar o mais rápido
possível e se atirar nos braços daquela mulher.
Estacionou o carro ao lado da calçada. Era
madrugada. Nem sentia o frio rigoroso, caminhava
desafiando o tempo, o destino, o desconhecido... De
repente, a bela casa surgiu em sua frente. Passou a
mão no bolso e não encontrou as chaves...
“Droga, esqueci em casa” – pensou.
Acionou o interfone e por um momento pensou
naquela loucura: e se o marido tivesse retornado?
Mas, o medo foi dissipado quando uma voz rouca,
sonolenta, atendeu.
- Sou eu... – disse.
- Eu sei bandido... – respondeu num sussurro.
Entrou. Ela vestia uma finíssima camisola.
Sorriu. Ele a contemplou por um momento, depois,
não se conteve, beijando-a suavemente. Ela abriu os
olhos e disse quase num sussurro.
- Você é um bandido caprichoso! – sorriu - Senti
sua falta. Temia que o meu bandido misterioso não
mais voltasse...
- Estou aqui.
Mais uma vez se entregaram de corpo e alma.
Ele voltou a se sentir o verdadeiro Tomás e no seu
coração uma ilusória certeza: Canivete tinha sumido
para sempre. Acreditava que agora Tomás voltou
para ficar, ninguém mais o amordaçaria e nem o
prenderia, as algemas estavam abertas. Canivete não
seria mais o seu condutor
“Tomás... você precisa viver”
Tomás acreditava na sinceridade daquele
amor. Sentiu que estava na hora de colocar as cartas
na mesa. Não esconderia nada, embora tivesse medo
de perdê-la de uma vez por todas... Para ele, Jane era
uma mulher bem resolvida e ele nada mais que um
bandido sem qualquer perspectiva. Ela teria que
saber. Não queria enganá-la. Sim, contaria tudo,
mesmo se depois ela o dispensasse para sempre. Seria
a cartada decisiva.
- Quem começa? – Perguntou ela.
- Você.
- Está bem. Nasci numa família bem sucedida.
Sou filha única e os meus pais sempre fizeram de tudo
para agradar-me. Papai era dono de uma grande
empresa que aos poucos foi perdendo espaço:
falência. Entrou numa fase de grandes empréstimos,
gastos exorbitantes, tudo para salvar o patrimônio. O
meu pai sempre foi um homem temperamental,
brigou com a diretoria, os negócios foram se
desmoronando e o controle fugiu-lhe das mãos. Era
de se esperar que ele entrasse em desespero. Afinal,
toda a sua vida foi dedicada à empresa, que de
geração a geração, crescia e se fortificava. Mas tudo
estava por um fio, até que o meu pai conheceu o
Adriano de Albuquerque, um agiota, empresário
influente, ligado a alguns dos principais esquemas de
lavagem de dinheiro e escândalos políticos. Meu pai
viu a salvação neste homem. O resto da história é
simples: o cara se interessou por mim, embora eu
relutasse contra a ideia de um casamento por
interesse, mas acabei cedendo aos apelos de papai.
Casei-me com um homem egoísta, mas muito rico.
Para o meu pai, Adriano foi a tábua de salvação,
empregou um grande capital na empresa, tornou-se
sócio de papai e tudo foi se equilibrando. A situação
voltou à normalidade. Mas Adriano se transformou
num sócio majoritário, ou seja, um quase dono de
tudo e papai nada menos que um sócio de segundo
escalão. Não sei se você compreende tudo isso, mas o
mundo dos negócios é cheio de patifaria. A disputa
pelo poder e as denuncias de lavagem de dinheiro e
ligação com o tráfico de drogas, tornaram Adriano um
homem cada vez mais egoísta e mesquinho. Vive
cercado de seguranças, não fica no Brasil mais que um
mês e seus negócios são geridos à distância. Casei com
um homem que sempre teve consciência do meu
desprezo, da minha falta de amor, da minha revolta e
assim mesmo, me faz acreditar que ele é o meu dono
e senhor absoluto, entende? Adriano se vinga de todas
as formas cabíveis: possui várias amantes e vivemos
como dois inimigos. Eu sempre quis a separação, mas
ele ameaça destruir o meu pai no mundo dos
negócios. Como vê, ele tem tudo nas mãos. Estamos
juntos há cinco anos e nunca fui realmente feliz. Agora
ele quer a separação do jeito dele, expulsando-me da
sua vida como uma simples garota de programa...
Ela o abraçou forte.
- Tomás, me leve com você. Quero sumir desta
vida para sempre. Eu tenho um plano perfeito, você é
o meu escolhido e se fizer tudo como eu planejei,
seremos o casal mais feliz do mundo. Olha só, a
Europa nos espera! Você vai embora comigo!
- Não Jane, você não pode fazer isso.
- Você é um egoísta, covarde e mentiroso!
Prove seu amor, entre no meu plano e tenho certeza
que você não se arrependerá!
- Jane, parece que você se esquece quem sou
eu... Nossos caminhos não podem se cruzar; são
totalmente diferentes!
- São diferentes, mas se cruzaram e nós não
temos culpa se isso aconteceu! E o nosso amor não
conta?
- Não fale assim... Antes eu tenho que contar a
minha verdadeira história!
- Seja qual for a sua história eu te quero mesmo
assim...
- Meu pai se transformou num ladrão para
sustentar a família...
E assim Tomás foi narrando todos os fatos
marcantes da sua tumultuada vida. Ela ouvia
atentamente.
- Ainda criança eu apanhava para aprender a
roubar. Quando tinha dez anos, meu pai deu uma
tremenda surra na minha mãe e eu não consegui
assistir àquela cena e então... Peguei uma trava que
segurava a janela, atingindo a sua cabeça. A pancada
foi mortal. Ele morreu na mesma hora.
Engoliu em seco. Sempre se emocionava
quando se lembrava daquilo, mesmo assim não
omitiu nada.
- Ora Tomás, não foi por sua culpa. Você
apenas defendeu a sua mãe. Ela teria morrido se você
não lhe tomasse a defesa.
- Eu sei, mas o fato é que cometi o meu primeiro
crime aos 10 anos. E tem mais: alguns dias após a
morte do meu pai, nosso barraco foi invadido por três
bandidos do bando do meu pai. Eles procuravam
dinheiro e jóias que o meu pai escondeu. Nós não
sabíamos de nada e tentamos explicar, mas eles não
acreditaram na gente e...
A emoção voltou a tomar conta de si. Mordeu
os lábios tentando se conter. Sentia que aquela cena
terrível não lhe sairia mais da mente. A Jane também
chorava. Tomou fôlego, prosseguiu.
- Eles abusaram da minha mãe e das meninas,
depois mataram as três pessoas que eu amava mais do
que qualquer coisa, nessa vida...
- Tomás... Não fale nada mais... Meu Deus, que
situação! Quanta maldade!
- Eu preciso falar, é bom botar pra fora esse
peso que me atormenta constantemente. Eu jurei que
vingaria dos bandidos e por isso me dediquei ao
roubo. Esperava poder reencontrá-los em qualquer
lugar desse mundão de Deus. Um dia encontrei dois
dos bandidos. Acabei com eles, mas faltava mais um,
o principal, o mais perigoso: o Pirata e este eu acabei
de matar. Matei o miserável e vim direto para a sua
casa. A polícia deve estar à minha procura, não me
importo, estou vingado. Eu só queria encontrá-la mais
uma vez, mesmo que seja um adeus. Você foi o meu
primeiro amor. Posso ser preso a qualquer momento
e talvez apodreça na cadeia. Não me importo. Quero
estar em paz com a verdade. Esse é o meu
compromisso. Chega de mistérios...
Encerrou a narrativa e ela ficou em silêncio.
Imaginou que ela não iria perdoá-lo, talvez não
suportasse a ideia de que ele não era um simples
ladrão, mas um frio assassino. Mas ela se atirou nos
seus braços e choraram juntos. Para Tomás aquele era
o fim de um amor sem começo.
- É isso. Sou um assassino que matou três
homens e até mesmo o próprio pai.
- Tomás... - ela tentava acalmá-lo.
Jane estava emocionada. Tomou um gole de
uísque, enxugou as lágrimas, e encarou Tomás. Seu
silêncio foi quebrado e ela disse o que ele não esperava
ouvir.
- Ainda assim, eu te quero! Olha só... Tenho um
negócio para te propor. Depois explico. Quero ir
embora com você para nunca mais voltar. O passado
morreu e está enterrado. Vamos fugir para outro país
bem distante. Eu sei como conseguir muita grana, a
gente se manda e seremos felizes bem longe do Brasil.
Vamos passar a limpo a nossa vida e começar de novo
num lugar tranquilo, longe de tudo.
Ficaram em silêncio abraçados numa emoção
incontida. Quem sabe daria certo? Ainda havia uma
chance de ser feliz. Chance de recomeçar a viver,
longe das marcas do seu passado e da triste sensação
de derrota... Como não arriscar na felicidade?
Porém, algo os interrompeu. A porta abriu-se
abruptamente e, para seu espanto, Bete entrou
ofegante, como se tivesse percorrido uma pista de
corrida. Estava pálida e os olhos estavam inchados de
tanto chorar. Atirou o capacete em cima da cama,
respirou fundo. Manteve os olhos fixos em Tomás,
enquanto enfiava a mão na bolsa. Era o que ele temia:
sacou a arma. Ele tentou avançar em sua direção,
queria acalmá-la, temia que ela realmente atirasse.
Mas quando deu o primeiro passo, ela o ameaçou com
a arma. Jane quedou-se num silêncio, paralisada de
terror.
- Bete, o que faz aqui? - Disse num sussurro.
“É isso, o motociclista era ela”! – Pensou.
- Eu te segui o tempo inteiro. Abri a porta com
as chaves que você esqueceu em casa. O resto foi
fácil... – gritou - traidor!
Ela estava revoltada, humilhada e derrotada.
Sua voz entrecortada de soluços convulsivos não a
impediu de expor a sua revolta:
- Eu te segui desde o momento em que você se
despediu de mim. Estava muito preocupada e não
podia deixar você sozinho. Ainda bem que você
deixou a moto em casa. Eu estava quase certa de que
você morreria, por isso fui atrás... Quando você matou
o Pirata, eu estava escondida no fundo do bar. Você
fugiu em seguida e eu o segui. Vi quando você saiu da
pista e entrou naquele terreno. Eu quase me
identifiquei, mas temia que você atirasse. Preferi
acompanhá-lo de longe. Quando você entrou nesta
casa, fiz o mesmo. Eu tinha que descobrir a verdade.
Engoliu em seco. Seu tom era de dor e
decepção.
- Eu ouvi uma parte da comovente história do
seu passado. Uma história que você sempre escondeu
de todo mundo. Mas você mentiu para a bonequinha
cheirosa. Não contou tudo. Você não contou para sua
amiguinha que tem uma mulher? Você não contou
que a sua mulher se chama Bete? Não, isso você não
quis contar, teve medo de perdê-la... Pois eu conto!
Virou-se para Jane que tremia apavorada:
- Bonequinha, eu sou a mulher de Canivete e
estamos juntos há muito tempo tá sabendo? Não
pense que ele é um homem livre! Canivete é meu,
cadela! Somente meu!
Apontou a arma em sua direção.
- Não, Bete!
Ela atirou assim mesmo. Jane tombou sobre o
tapete.
- Jane... Jane! Fale comigo pelo amor de Deus!
Tomás tentou reanimá-la de todas as formas.
Ela balbuciou algumas palavras.
- Foi melhor assim... - fechou os olhos, estava
viva, mas sangrava muito.
- Vou levá-la ao hospital!
- Não precisa... Estraguei a sua vida mais uma
vez, me perdoe Tomás!
Foram as suas últimas palavras.
Ele chorava desesperado e por um momento
esqueceu-se de Bete que também chorava no canto, ao
lado da porta. Jane era mais uma pessoa amada que
partia da sua vida. A tragédia era a marca da sua
realidade, o seu lema eterno.
- Quis roubar o meu homem, não é cadela?
Roube agora que eu quero ver! - Continuava de arma
em punho, soluçava sem trégua.
- Maldita! – Encarou Bete com ódio. Ela não
teve medo, estava decidida a ir até o fim.
- Nem tudo acabou meu querido. Eu também
sonhei muito na vida e acabei virando puta. Antes eu
queria ser uma médica, imagine só... Nunca fui numa
escola e sonhava formar e virar gente grande! Pois é,
somos da mesma lama, mas eu não te quero mais!
Estou estraçalhada por dentro e por fora e a culpa é
sua! Eu me dediquei só a você e nunca fiz outra coisa
na vida, desde que nos juntamos... Sempre me
preocupei com você: se doía a cabeça, se gostou do
café, se a comida não estava muito salgada. Fui a sua
escrava durante seis anos e você ia embora do país
com essa perua, sem se importar com nada mais! Eu
não te quero mais! Você nunca mais tocará num fio de
cabelo meu, pois eu também vou partir e levarei junto
o nosso filho...
Mordeu os lábios. Não queria revelar tal coisa.
Mas já era tarde.
- Estou grávida! – Gritou em pranto -, nosso
filho, ou melhor, o meu filho irá comigo, pois eu sei
que você não gosta de crianças e nunca quis ter um
filho!
Ele ouvia as palavras daquela mulher
machucada pela vida. Por alguns segundos esqueceu-
se do corpo inerte de Jane, a poucos metros da cama.
Tentou aproximar-me, mas ela não permitia,
ameaçou-lhe com a arma.
- Não se aproxime! Eu tenho coragem de atirar
em você! Não chegue perto de mim, seu canalha!
Adeus Canivete! Saiba que ninguém te amou nesse
mundo mais do que eu! Eu ainda te amo!
Bete estava fora de si. Quando viu que ela ia
cometer uma loucura, avançou em sua direção, tentou
arrancar a arma, mas ela relutava e num raio de
segundo o disparo: o tiro acabou acertando o seu
ombro. Ela caiu, sangrando, mas viva. Estava
ofegante...
- Traidor! Me deixa morrer!
- Sua louca! - Gritou revoltado - por que você
não me contou tudo antes? Nosso filho... Não posso
acreditar...
- Eu... – ficou pálida, tentou falar alguma coisa,
mas acabou desmaiando.
Tomás estava diante das duas mulheres mais
importantes da sua vida. Bete, uma tábua de proteção,
uma parede de apoio, um “sim” a todo o momento. A
outra, Jane, seu primeiro amor, uma suave ternura
que permitiu um novo rumo à sua tumultuada vida.
No centro daquela dor, dois espectadores: Tomás ao
lado de Jane e Canivete ao lado de sua adorável Bete.
Os carros da polícia apitavam de todos os lados
e ele não fez o mínimo gesto para fugir. Permaneceu
no mesmo estado de passividade, alheio a tudo e a
todos. Dois policiais examinaram as mulheres.
Disseram em seguida:
- Hospital, urgente! Temos que levá-las!
Foi a última vez que Tomás viu as duas
mulheres mais importantes da sua vida.
Quinze
A pastoral carcerária
Passaram-se cinco anos desde aquele dia.
Agora Tomás está preso e para passar o tempo, fica
escrevendo coisas de um passado distante que lhe
povoam a mente. Está com vinte e seis anos e a sua
batalha é árdua: luta para que um dia Canivete
desapareça e que Tomás recupere seu lugar
definitivamente. Um duelo existencial que carrega no
coração e na memória desde aquele dia em que o pai
o apresentou ao mundo do crime...
Hoje ele não é alegre nem triste, às vezes é feliz
do seu jeito, se é que se pode chamar de felicidade a
prisão, as grades, a mesma comida, o cheiro de urina
e as conversas corriqueiras com os companheiros de
cela. A monotonia, o eterno cotidiano... Mas às vezes
ele se sente feliz por um motivo mais significativo:
tem plena consciência que quer ser Tomás e talvez por
isso, o desespero não tenha tomado conta
inteiramente da sua vida. No cárcere observa as
aranhas e escreve algumas passagens da sua vida no
caderno que ganhou de presente do pessoal da
Pastoral Carcerária. Quando lhe perguntam sobre
como se sente, afirma que não está sofrendo, pois foi
exatamente neste lugar chamado prisão, que ele
aprendeu o significado da palavra liberdade.
A liberdade de Tomás se aproximava dos
muros da prisão. Era seu último ano no presídio, um
tempo de novidades em direção a novos caminhos.
Até então, ele vivia o trivial, as conversas corriqueiras,
os planos de fuga e assim por diante. Mas, naquele
ano, a sua atribulada história de vida começou a sofrer
rupturas definitivas.
Tudo começou com o movimento religioso. Na
prisão o assunto era um só: o trabalho da Pastoral
Carcerária da Igreja Católica e outros segmentos
religiosos. Era um grupo de pessoas comprometidas
com a evangelização nos presídios. Lutavam pelos
direitos humanos, realizavam palestras, teatro
popular, celebrações e dinâmicas de entrosamento
entre os presos. Toda semana tinha representantes
religiosos. Alguns estavam interessados apenas no
crescimento da sua igreja, para estes, o espaço da
prisão era a estratégia perfeita: falava em absolvição,
a salvação das almas que se achavam perdidas. Tinha
preso que ficava fascinado, virava pregador e lia a
Bíblia dia e noite. Outros, simplesmente fingiam que
estavam tocados pela fé e por aí vai...
Mas havia trabalhos interessantes, um deles era
desenvolvido pela Paróquia Nossa Senhora das
Dores, localizada na periferia. Era um grupo de oito
pessoas, assessorados pelo padre Thiago, um jovem
sacerdote que se tornou popular na prisão. Deveria ter
a mesma idade de Tomás. Falava de um jeito cativante
que prendia a atenção de todos. Aos poucos ele foi
conseguindo adeptos, tinha seguidores por toda
parte. Seu carisma conseguia emocionar os
encarcerados e não era algo apelativo, apenas falava
de um Jesus vivo, que se fazia presente no cárcere,
propenso a abrir os braços e a compartilhar as suas
dores.
Mas a relação de Tomás com o pessoal da
Pastoral não foi algo instantâneo. Foi um processo
mais ou menos complexo.
Ele costumava observar as suas amigas aranhas
enquanto aguardava seus últimos meses. A pena
estava quase no fim, por conta disso ele estava
antecipadamente preocupado, mudança de humor,
tristeza repentina, vazio. As emoções contraditórias
tinham uma só explicação: não sabia o que o esperava,
nem como seria a vida depois que saísse da prisão. Na
cadeia muitos presos vão perdendo o referencial e
quando estão próximos da liberdade, vivem como
Tomás, o dilema do “depois”, pois sabem que não há
ninguém para recebê-los. Há o mundo desconhecido
e o ex-detento não sabe como penetrar nesse espaço.
Na prisão o medo do recomeço era o fantasma
que sempre os rondava. Alguns entravam em
depressão e se matavam alguns dias após a saída.
Outros ficavam loucos e muitos voltavam à vida do
crime. A saudade do tempo de reclusão era um
sentimento contraditório, mas explicável: a prisão e
todas as suas adversidades era o nosso lugar. Todo
mundo se conhecia, os assuntos eram os mesmos, o
medo, a revolta e até o sofrimento eram coletivos.
Quando o preso deixa a prisão está diante de
um mundo estranho. Muitas vezes ex-detento ao sair
da prisão, experimenta uma sensação de gosto
amargo. Entra num lugar onde as pessoas falam outra
língua, vestem outras roupas, comem outras comidas,
olham outros horizontes... Diversos ex-detentos
sentem uma profunda angústia, pois dentro de si
permanece a sombra delatora do medo, como se
aquelas pessoas soubessem tudo da sua vida: o que
faziam, o que pensavam e, a cada gesto, a cada olhar,
uma advertência: “eu sei quem são vocês, de onde
vieram e o que fizeram”.
E assim, aqueles olhares ressentidos continuam
a expulsar os ex-detentos da cidade e os aprisionam
na sarjeta onde o antigo mundo do crime os acolhe de
braços abertos.
O medo que Tomás sentia, começou a
desaparecer, quando se envolveu com a Pastoral
Carcerária. Mas a aproximação levou um certo tempo.
A primeira vez que conversou com o padre Thiago foi
mero acaso. O padre estava cercado de presos,
quando um deles o abordou com evidente ar de
malícia:
- Padre você é lindo! É um desperdício ficar
sozinho...
Ele sorriu e respondeu com simplicidade:
- Nunca fico sozinho. Jesus está comigo.
- Jesus tem sorte...
O padre ficou sério. Olhou para o rapaz
profundamente, em seguida respondeu:
- A vida não se acaba aqui, você também não
está sozinho. Jesus te ama incondicionalmente, nunca
se esqueça disso.
O rapaz engoliu em seco, em seguida a lágrima
desceu. Ele se afastou, enfiando-se no meio dos
outros. Ninguém entendeu, mas daquele dia em
diante, o preso não voltou a importuná-lo.
Tomás assistia a tudo, sentado no canto da
quadra esportiva do Pátio B, enquanto fingia que lia o
folheto da pastoral. O padre se aproximou. Tomás
ficou um tanto sem graça. Sempre foi do tipo calado,
criou uma redoma e só permitia que as aranhas
entrassem ali.
- Gosta de ler? – Perguntou o padre, enquanto
se sentava ao seu lado.
- Um pouco...
- Notei que você é de pouca conversa, tem
poucos amigos, gosta de observar...
- É o meu jeito... Estou em pecado? – Indagou
com ar de sarcasmo, olhando-o furtivamente. Em
seguida pendeu a cabeça e voltou os olhos para o
informativo.
- Não gosta de conversar?
- Não tenho o que conversar.
- Podemos tentar...
- Não! – levantou-se bruscamente.
Ele permaneceu sentado.
- Só mais uma coisa: qual o seu nome?
Ele pensou em dizer o verdadeiro nome, mas
num impulso respondeu:
- Canivete.
- Não gosto muito de apelidos.
- Por quê? – Indagou e quase sem perceber
voltou a sentar-se no mesmo lugar.
- Às vezes penso que os apelidos ajudam a
perder a nossa identidade...
Por um momento Tomás se pôs a pensar no seu
apelido: “Canivete”. A marca de batismo que o pai
deixou como herança: o garoto que crescia magro feito
um caniço, como uma lâmina afiada, um canivete
amolado... Enquanto Tomás era esquecido, Canivete
crescia, tomava corpo, ganhava as ruas.
O padre continuou:
- Sabe? Uma vez, ainda garoto, li um texto
interessante na escola, extraído da obra de Érico
Veríssimo “As aventuras de Tibicuera”.
Fez um breve silêncio. Buscava uma chance de
fomentar o diálogo.
- Tibicuera? – Indagou curioso.
Era a deixa para a sequência que agora tinha a
sua atenção.
- Sim, era o nome do indiozinho. Significa
cemitério na língua tupi. O apelido pegou e o índio
ficou assim conhecido.
- Por que Tibicuera?
- Porque ele nasceu raquítico, um anjo da
morte, mas sobreviveu. Ainda trago na memória a
narrativa. Quer ouvir?
- Você é quem sabe... – No fundo estava repleto
de curiosidade.
Ele começou a narrar de forma emocionante.
Tomás sentiu-se novamente com oito anos, quando
descansava a cabeça no colo da mãe enquanto ela
contava as mais lindas histórias...
O padre Thiago conseguiu prender a sua
atenção e ele escutava a comovente história do índio
Tibicuera:
"Nasci na taba duma tribo tupinambá. Sei que
foi numa meia-noite clara, fazia luar. Minha mãe viu
que eu era magro e feio. Ficou triste, mas não disse
nada. Meu pai resmungou:
- Filho fraco. Não presta para a guerra.
Tomou-me então nos seus braços fortes e saiu
caminhando comigo para as bandas do mar. Ia
cantando uma canção triste. De vez em quando gemia.
Os caminhos estavam respingados do leite da
lua. O urutau gemeu no mato escuro. Uma sombra
rodopiou ligeira por entre as árvores.
O mar apareceu à nossa frente: grande,
misterioso... Suas ondas pareciam soltar um longo ai
quando rebentavam na praia. Meu pai estacou. Olhou
primeiro para mim, depois para o oceano... - não teve
coragem.
Voltou para a taba chorando. Minha mãe nos
recebeu em silêncio”.
Ao final da história Tomás estava mudo de
emoção, como se aquela fosse a sua história. Tibicuera
era o seu retrato. A sua família estava naquela
história. Apertou os olhos, tentou evitar as lágrimas
que brotavam naturalmente. Envergonhado baixou a
cabeça, mas o padre, num gesto amigo pousou a mão
direita sobre o seu ombro.
- Preciso ir. Outro dia a gente volta a conversar
– levantou-se -, até logo.
- Padre... – perdeu o receio e o encarou, mas não
sabia o que dizer.
O padre sorriu-lhe dizendo:
- É uma história emocionante. Uma lição sobre
o valor da vida, da essência da vida. O resto não tem
tanta importância...
- O que aconteceu com o Tibicuera?
- Cresceu, ficou forte, bonito e se tornou um
grande guerreiro. Como vê, meu caro, as evidências
não querem dizer muita coisa.
Tomás sorriu, o padre acabara de ganhar a sua
confiança.
- Padre...
- Sim?
- Meu nome é Tomás.
Ele estendeu a mão.
- Muito prazer Tomás. Eu voltarei, mas lembre-
se: Jesus te ama.
E saiu.
Foi o começo de uma grande amizade. O padre
Thiago sempre dava um jeito de conversar com
Tomás. Nas suas visitas deixava um livro, um jornal,
uma oração. Naquele jovem sacerdote, Tomás
conseguia ver a família, os amigos e suas esperanças
renasciam: sim, tinha alguém lá fora. Não seria
ignorado...
Na cela os companheiros notavam a sua lenta
transformação. Estava mais falante, sorridente e aos
poucos deixava de lado o mau humor. Nem palavrão
falava mais. As costumeiras crises de dor de cabeça
sumiram como fumaça e ele voltava a sentir, depois
de muito tempo, o cheiro bom da vida.
- Canivete está assim porque só faltam seis
meses... – comentavam.
- O cara mudou da água pro vinho!
- Fica pensando que lá fora é o paraíso!
- Ainda vai comer o pão que o diabo amassou.
Mas eles não sabiam de nada. A mudança não
era por conta da proximidade da sua saída da prisão.
Ele nem pensava nisso. Estava diferente por outro
motivo: a pastoral tinha mexido com ele de uma
forma especial. O padre Thiago o ajudou a abrir a
janela da vida e ele passou a olhar o mundo com
outros olhos. Sentia-se mais leve e cheio de sonhos. O
menino Tomás estava presente de corpo e alma.
Canivete era só uma parte do passado que, se não
podia morrer, pelo menos não mantinha qualquer
poder sobre as suas ações.
O primeiro livro que ganhou foi o Pequeno
Príncipe, de Antony Saint-Exupéry. Lembrava-se bem
das palavras do padre Thiago quando este o entregou
o presente:
- O pequeno príncipe é uma história de
ressignificação da vida. O príncipe é você Tomás, leia
com carinho e reflita: ainda é tempo de muitas coisas.
Ele leu. E chorou. Depois tornou a ler e já não
chorava mais. Aprendera a saborear as palavras, a ler
a existência e a rever a cultura da resistência. Tomás
crescia e os medos e o pessimismo eram banidos. O
grito de tristeza seria apenas o eco do aprendizado da
dor. A lição da dor é única, concreta e eficaz. Há tantos
oprimidos e tantos caminhos.
Mas foi preciso uma dose forte de confiança
para que Tomás abrisse o livro da sua vida para o
padre Thiago e quando o fez, ele se emocionou.
Choraram juntos. Experimentava a sua dor e
procurava, através da oração e do seu comovente
amor cristão, emprestar a Tomás o lenitivo que ele
tanto buscava. O ombro amigo era, sem qualquer
exagero, a personificação de Jesus. Um Jesus que
Tomás tanto amava e que Canivete simplesmente
ignorava.
Um dia o padre Thiago disse algo que o deixou
surpreso:
- Quando você sair deste lugar pretendo
acompanhá-lo na sua reinserção social e penso que
você terá um papel importante na nossa equipe
pastoral. Precisamos de pessoas como você, sensíveis
aos problemas sociais e dispostos a buscar possíveis
saídas através da organização. Queremos a sua
participação no processo de formação pastoral. Se
você aceitar, é claro.
Ele ficou em silêncio. O padre continuou:
- Nada é por acaso Tomás. Eu tenho a sensação
que o conheço de algum lugar e penso que um dia esse
mistério será revelado. Sinto que você é uma ovelha
que não pode mais se desgarrar.
- Parece estranho, mas eu também vivo a
sensação de que já nos falamos.
Ele ficou em silêncio, depois o fitou seriamente,
dizendo:
- Jesus tem planos e você está presente neles. O
problema é que você sempre buscou a solução de
modo individual, trágico, vingativo... Primeiro você
precisa alcançar a cura interior, perdoar a si mesmo,
limpar as feridas, lavar a alma de modo lento, mas
completo... Depois deve buscar a comunhão.
- O que é cura interior?
- É o processo pelo qual, por meio da oração,
somos libertos de sentimentos de ressentimento,
rejeição, autopiedade, depressão, culpa, medo,
tristeza, ódio, complexo de inferioridade,
autocondenação e senso de desvalor, etc. Tem uma
bela reflexão do meu amigo, o padre Léo. Ele
conseguiu de modo brilhante, descrever o sentido da
cura interior. Padre Léo fala que nós costumamos
esconder as feridas e as coisas negativas do passado.
Tomás, nós precisamos admitir as nossas fraquezas,
especialmente o fato de não conseguirmos mais
controlar nossas aparências. Esse é o primeiro grande
passo, a gota fundamental, para a cura interior. Mas
para experimentar a graça da cura interior,
necessitamos reconhecer que somos dependentes de
nós mesmos, de pessoas, de nosso passado e de nossos
traumas. Percebemos isso tendo a coragem de tomar
nossa vida nas mãos, sem medo e sem condenação.
Você pode encontrar a paz interior Tomás.
Tomás ficou pensativo. Lembrou-se da velha
angústia que carregava dentro do peito, das
constantes dores de cabeça, das lágrimas, dos
pesadelos, do terrível sentimento de culpa, do eterno
conflito entre o bem e o mal, o certo e o errado...
Aquela conversa, de certo modo, o ajudou a olhar
mais para seu interior, sem a sombra da condenação
ou da absolvição, mas o olhar da esperança, do
recomeço.
Ele continuou:
- A sua luta deve ser a de resgatar pessoas que,
como você, acham que não há saída e vivem apenas o
lado obscuro da vida... Sabe Tomás, a sociedade é
repleta de situações como a sua, mas nem por isso a
vida perde o sentido. A cura interior é a cura de nosso
homem interior: da mente, emoções, lembranças
desagradáveis, sonhos. Mas é preciso enfrentar a
realidade, sem máscara, sem medo e acima de tudo,
acreditando, de fato, na esperança. Tire a sua máscara
e não tenha medo da sua imagem. Não se jogue no
precipício, acredite em você. Problemas existem e
agravam o coração, mas nem por isso você deve
desistir do amor. A capacidade de amar está em seu
coração, mas a decisão de amar dependerá somente
de você. Se você se decide pelo amor, tudo mudará em
sua vida. Você tentou reconstruir sua vida após a
morte da sua família, mas escolheu o caminho errado,
foi isso.
- Eu sei.
- Lembra-se da última coisa que ouviu da sua
irmã quando agonizava naquela tragédia?
- Como esquecer? Cida me encarou e disse:
“Tomás, você precisa viver”.
- Sim. E embora ela não tivesse tempo para
explicar, é possível entender que sua irmã não queria
você metido com a violência, mas que vivesses com
dignidade, livre e voltado para as coisas boas da vida.
Era o sonho de sua mãe e suas irmãs que você
estudasse e encontrasse um emprego honesto, que
nunca se infiltrasse no mundo do crime. Cida pediu
vida, você preferiu a vingança, a morte. Cida pediu
felicidade, você preferiu a dor, a tristeza. Mas Deus
não o abandonou em momento algum, isso é o mais
importante. O mesmo recado da Cida continua ainda
hoje. Você sobreviveu, é jovem e pode recomeçar e
desta vez tomando um novo rumo, sem
individualismo, mas cercado de pessoas que
acreditam em você. Recomece Tomás, ainda é tempo
de semear novos campos.
E foi construindo momentos mesclados de
conhecimento, esperança e ternura que Tomás foi se
transformando noutro homem.
Dezesseis
Dona Belarmina
No dia da visita uma surpresa. A mulher
deveria ter uns 68 anos, mas estava firme e forte. O
rosto moreno, o olhar caridoso e o sorriso amigo não
deixavam dúvidas. Trazia nas mãos um envelope
velho e meio sujo. A princípio, Tomás não acreditou
quando soube que tinha visita. Ele nunca recebia
qualquer pessoa, era só um preso como tantos... Mas
ela estava ali, na sua frente, olhos molhados, voz
trêmula de emoção. A princípio ele ficou em silêncio,
inseguro quanto às suas lembranças, mas ela,
percebendo a sua desconfiança, resolveu quebrar o
gelo:
- Lembra-se de mim Tomás?
Aquela voz... O mesmo tom de afetividade
atrás de cada palavra.
- Dona Belarmina...
Os dois se abraçaram em prantos. Ela tocou
seus cabelos, seu rosto, cobriu-lhe de beijos. Por um
momento ele teve a sensação de que aquela boa
senhora era a sua mãe querida que viera de longe
visitar o filho perdido.
- Tomás, você está vivo!
- Graças a Deus! – respondeu sorrindo,
limpando as lágrimas.
- Disseram tanta coisa a seu respeito. Que você
tinha fugido do país, que tinha morrido... Procurei por
você todo esse tempo e ninguém sabia de nada.
Depois fiquei sabendo que você tinha morrido numa
luta com os assassinos da sua família... Visitei outras
prisões e nada. Até que tive a ideia de conversar com
o pessoal da Pastoral Carcerária. Eu conhecia o padre
Thiago e ele me falou de você.
Ele. Mais uma vez ele abriu as suas janelas.
Afinal quem era o padre Thiago? Por que Tomás
sempre tinha a sensação de que o conhecia?
Dona Belarmina continuava falando
animadamente, trazia notícia de tudo e de todos.
- Ele falou que você sai daqui a cinco meses.
Que bom, meu filho! Agora você toma juízo e fica
sossegado. Chega de sofrimento e morte. Vamos
sorrir um pouco...
- O que há neste envelope?
- Eu achei na sua casa. Depois que você se foi,
fiquei zelando do barraco. Limpo todo dia, as coisas
estão no mesmo lugar. Eu sempre achei que um dia
você ia voltar. Agora, como está quase livre da prisão,
penso que fiz a coisa certa. Você tem casa e carinho,
pode acreditar meu filho. Um dia, enquanto fazia a
limpeza, quando arrastei o velho sofá, vi a ponta desse
papel. Com jeito, puxei lá do fundo. Tinha esse
envelope e um saquinho de couro escondidos na parte
de trás, ao lado das molas velhas. Guardei o saquinho
e trouxe esse envelope. Quando você sair daqui me
procure e eu entrego a encomenda. Tomás, eu sei de
tudo... Tive que ler esse papel porque pensava que
você tivesse morrido. Chorei muito. Agora é a sua vez.
Estendeu-lhe o envelope. Tomás ficou receoso,
sem coragem de ler a carta. Temia que o passado
estivesse de volta e justamente agora quando ele se
preparava para enfrentar o mundo... Por outro lado,
tinha que vencer todos os medos, caso contrário,
jamais poderia ser feliz. Abriu o envelope. No interior
uma antiga folha de caderno dobrada, escrita com
caneta preta. A mensagem não era longa:
“Maria, se acontecer alguma coisa comigo,
pegue a sacola e fuja para bem longe. O nosso sonho
de ficar bem de vida já chegou e nós merecemos isso.
Cuide bem de Canivete e das meninas. Eu não presto
e só vou atrapalhar a vida de todos vocês”.
“Assinado: Sebastião de Jesus”.
E mais abaixo da folha, no canto:
“Escrito por Toninho Silva”.
Toninho troca-troca, esposo da Ângela, a
mulher que tinha um caso com o seu pai... Tomás
nunca imaginou que o Toninho se prestasse a uma
tarefa assim. Sabia da carta, sabia do seu conteúdo e
nunca falou nada.
- Ele tinha medo do Pirata... – explicou dona
Belarmina - Não sabia o que tinha na sacola, seu pai
não era bobo. Era analfabeto. Por isso pediu a Toninho
que escrevesse a carta. O Toninho era homem de
confiança, preferiu o silêncio. Morreu fiel a seu pai.
- Morreu?
- Sim. Tiroteio no morro. Ele estava passando.
Bala perdida. Foi no começo do ano atrasado, uma
coisa triste...
- O que tem na sacolinha de couro?
Ela olhou os lados, certificando-se de que
ninguém os ouvia, depois sussurrou:
- Uma fortuna. Em jóias.
Ele ficou indignado. Se soubesse de tudo não
haveria tragédia, sua família estaria viva... Por que o
pai fora tão sórdido?
- Ele não podia ter feito isso... – chorou
revoltado.
- Tomás, ele não imaginava que seria
descoberto... Morreu antes, lembra-se?
Engoliu o choro e ficou em silêncio. Era como
se ela quisesse dizer: “Como você queria que ele
resolvesse algo se foi você que o matou?”
- Tem razão... – disse um tanto desapontado.
- Pelo que ele afirmou na carta, ia deixar você,
as meninas e a comadre numa situação boa. Ele sabia
que mais cedo ou mais tarde seria descoberto pelos
bandidos...
- De qualquer forma é sujeira, não quero nada,
não vou me sujar nunca mais!
- Faça o seguinte: eu vou aguardar a sua saída.
A gente conversa e pensa com calma. Não tome
qualquer decisão. Agora tenho que ir. Fique em paz e
não se preocupe você está cercado de bons amigos.
Dezessete
Tempo de recomeçar
Ironicamente no percurso dos últimos meses
que antecedia a saída da prisão, Tomás passou a viver
sérias provações. A primeira foi a entrada da Pastoral
na sua vida, depois a amizade com o padre Thiago, o
reencontro com a dona Belarmina... Ele tinha medo de
não aguentar tantas emoções. Depois, com mais
calma, pode compreender que a sua história ainda
não tinha terminado. Nas suas orações pedia
discernimento e uma frase do padre Thiago
martelava-lhe os ouvidos de modo insistente,
tornando as coisas mais claras e reconfortantes:
“Nada acontece por acaso”.
Havia naquela frase um misto de
espiritualidade, fatalismo, conformismo, utopia e a
certeza de que cada dia tem que ser bem vivido,
mesmo quando as coisas não correm do jeito que se
espera. No coração de Tomás a certeza de que outras
descobertas viriam o deixava ansioso, inquieto,
temeroso.
Alguns amigos de cela achavam que ele estava
meio louco. Diziam que tinha que caminhar mais
devagar para não tropeçar na decepção. Ele tentava,
mas a ansiedade não permitia. Lia com paixão os
livros que o padre trazia, devorava as notícias dos
jornais e buscava com os olhos, a mente e o coração as
novidades. Quando o pessoal da pastoral chegava, era
um alívio. Ele se preenchia naqueles encontros,
naquelas palestras, nos cursos de formação, nas
celebrações. Ali descobria um novo mundo.
Faltava um mês para a sua liberdade. O tempo
passava tão rápido que ele nem dava conta. Naquele
dia teria pregação do padre Thiago. O tema foi “O
perdão e o recomeço”. Fazia um calor intenso, por isso
o evento foi realizado no pátio A, na parte da manhã
e, como sempre, todas as atenções estavam voltadas
para o padre. Naquele dia ele estava particularmente
inspirado. Começou apresentando alguns exemplos
que mostravam como Jesus definia seu projeto de vida
e como agia. Os detentos ouviam atentamente:
- Na parábola do fariseu e do publicano que
foram ao templo para rezar, Jesus não condenou as
virtudes do fariseu, nem justificou as falhas do
publicano. O que ele não admite é que nosso bom
comportamento nos torne orgulhosos, fechados,
insensíveis às necessidades e ao valor humano
daqueles que têm outra história de vida.
Tomou um copo d’água refrescante, para, em
seguida prosseguir:
- E por falar em história de vida, vou contar um
episódio que marcou a minha vida e que ainda guardo
no meu coração. Era véspera de natal. Eu tinha oito
anos e a minha mãe tinha acabado de se separar do
meu pai. Como eu era filho único senti mais
intensamente a crise conjugal, afinal sempre fui muito
apegado ao meu pai. Aquele seria o natal mais
solitário da minha vida, eu estava muito triste,
chorava sozinho no meu quarto e não queria comer. A
minha mãe tentava reanimar-me de todas as
maneiras, finalmente ela teve a ideia de fazermos as
compras de natal. Visitamos diversas lojas. Numa
delas, talvez a mais rica de todas, havia um rapaz
caracterizado de Papai Noel. Era o garoto propaganda
da loja, cujo papel era fazer gentilezas aos clientes,
oferecendo doces às crianças que estavam
acompanhadas e, desse modo, ganhar a simpatia da
burguesia. Era, como hoje, o natal comercial da
sociedade capitalista: época de fartura, altos lucros e
muita discriminação. Notei que a poucos metros da
entrada da loja havia um garoto esfarrapado. Ele tinha
fome e observava o entra e sai das pessoas, os
presentes, os doces, os sonhos... O bom velhinho fazia
questão de ignorar aquele garoto, mas quando me
aproximei ele me encheu de elogios, ofereceu-me
doces e lembranças do natal. Recebi o saquinho de
presente e não pensei duas vezes: passei ao garotinho
faminto. A princípio ele relutou em aceitar e então eu
comecei a falar de esperança e do amor de Jesus para
com a humanidade. O interessante é que foi a
primeira vez que eu falei de Deus para as pessoas.
Naquele tempo eu não era muito ligado à Igreja, tinha
o costume de frequentar a missa aos domingos com os
meus pais e só. Mas naquele dia senti algo diferente,
uma espécie de chama que me incitava a falar de Deus
para aquele garoto. Uma criança como eu... – fez uma
pausa, a voz trêmula denunciava o choro – e a oração
foi brotando do meu coração. Pedi que o garoto orasse
comigo e juntos rogamos a Deus, assim: “Senhor, põe
em mim um coração novo. Quero ser feliz, Senhor.
Ajuda-me a descobrir minha meta. Ajuda-me a buscar
as coisas do alto”. Nunca mais esqueci aquela oração,
aquela súplica tão sincera, tão pura, realizada de um
modo único em minha vida. Quando me recordo
daquele momento, realimento a certeza da presença
do Espírito Santo na minha vida e na vida daquele
garoto desconhecido.
À medida que ele falava, um calafrio foi se
apoderando de Tomás. Ele sentia que o chão
desaparecia.
Não podia acreditar naquele testemunho:
“Então aquele garoto era ele?” – Perguntou-se
emocionado.
- O que você tem Canivete? Está pálido como
uma vela! – Alguém o segurou.
- Eu... Eu... – gaguejou sem encontrar qualquer
palavra.
O padre não havia percebido o pequeno
tumulto que se formou ao redor de Tomás. Alguém
trouxe um copo d’água, ele tentava se reequilibrar e
continuou ouvindo. As lágrimas banhavam a sua face,
ele nunca saberia descrever o tamanho daquela
emoção...
Alheio ao que se passava, o Padre Thiago
continuou e sua voz soava trêmula. O momento que
vivera no passado tinha significado especial,
completo, por isso ficava emocionado com as
lembranças. Prosseguiu com o testemunho:
- Enquanto eu falava, o mais lindo aconteceu: o
garoto começou a chorar e eu também. Desabafamos
as nossas dores e nos abraçamos de um modo intenso,
seguro, confortante. Ele recebeu o saquinho, baixou os
olhos enquanto o examinava, saí de fininho sem que
ele notasse. Antes de entrar na loja, pedi ao Papai Noel
que não dissesse ao garoto onde eu estava... Nem sei
por que fiz aquilo, talvez por conta do nervosismo,
impulso ou pode ser que estava escrito no livro do
destino que seria assim... O fato é que nunca mais vi
aquele garoto, não sei o seu nome, onde mora se está
vivo ou se morreu. Mas o seu olhar de gratidão e dor
ainda me acompanha e eu tenho certeza que se ele
estiver vivo também guarda esse momento no fundo
do coração...
Um grito interrompeu a palestra do padre:
- Canivete está passando mal!
- Desmaiou.
Quando acordou não entendeu o que se
passava. A cabeça doía e no teto uma aranha estava
vigilante.
“Aranha, teia, inseto, vida, morte, eu...”
Tudo estava confuso. Voltou a dormir.
Ainda bem que ele não estava só. A pequena
aranha estava ali, assistindo a sua agonia. Era uma
aranha diferente. Tinha a cor castanho-amarelada
com marcas esbatidas, listas amarelas e pretas. A
cabeça pontuda e as patas alongadas, como tentáculos
estratégicos, emprestavam-lhe um ar de imponência,
tornando-a especial.
Era mais do que uma simples sedentária, na
verdade, pouco se assemelhava às aranhas que
costumam ocupar os beirais das casas, varandas e
matas. Aquela não estava ali apenas para caçar.
Certamente queria algo mais. Embora seu veneno
fosse pouco potente, tinha a habilidade de montar
longas teias, perfeitamente simétricas,
transformando-as em armadilhas pegajosas e,
pacientemente, ficava à espreita da primeira vítima.
Era uma aranha doméstica na fase adulta. Dava para
notar o seu abdômen castanho-acinzentado, meio
pálido, com pelos curtos.
Interessante o mundo das aranhas: fazem e
refazem seus fios todos os dias, armam a teia e a
utilizam várias vezes, remendando-a, até que tenham
de construir outra nova. Pacientemente produzem
fios de seda por meio de uma estrutura abdominal,
composta de glândulas e fiandeiras. A teia é a
estratégia de sobrevivência das aranhas.
O mais interessante são as aranhas errantes
(aquelas que vêm em busca da presa). Nunca fazem
teia regular. Nem sei por que são chamadas de
errantes se fazem a coisa certa. Talvez porque não
pertençam ao grupo de elite aracnídea. São aranhas
operárias que se limitam a produzir fios de seda para
forrar o ambiente onde vivem e assim protegerem a
cria.
Tomás nunca estudara sobre aranhas, tudo o
que sabia era fruto da curiosidade de quem não tem o
que fazer. Fazia muito tempo, mas na sua casa tinha
um livro velho de capa dura, forrado com plástico
colorido. Era o livro de Ciências da sua irmã mais
velha. Eles costumavam brincar de escola. A vida das
aranhas era a parte que ele mais gostava. Lembrava-
se que cada espécie descrita tinha fotografia e ele vivia
doido para comparar as aranhas do livro com aquelas
que ele encontrava no quintal. Era um verdadeiro
passatempo. Se tivesse condição, certamente seria um
biólogo, estudioso das aranhas por excelência, um
verdadeiro especialista no assunto. Porém, quis o
destino que ele sequer encerrasse o primário e o seu
sonho acadêmico se transformasse em teias de
desgosto, frustração e violência... “Paciência, pensava,
a vida tem dessas coisas”.
Mas ele nunca se afastou das aranhas, elas
estavam em toda parte, sempre lhe faziam companhia
e desde pequeno era profundo observador da labuta
desses bichinhos inteligentes.
Quando uma delas estava em plena atividade
de construção da teia, podia perceber que ali estava a
prova da existência de uma singular sabedoria e ele
ficava maravilhado com aquela técnica, observando a
maneira como a aranha estendia os eixos de
sustentação da teia. Depois ela prosseguia
pacientemente, ia unindo os fios de suporte e
preenchendo os espaços vazios, criando uma
estrutura resistente. Tomás ficava boquiaberto diante
de tamanha perfeição!
E lá estava ela, quietinha, no centro de uma teia
que se estendia ao alto, no canto superior que dividia
as paredes frias. Aquele bicho solitário na verdade era
a única testemunha da sua insônia. Era a imagem
estagnada, inabalável de uma teia de histórias e
conflitos da sua vida. Uma teia com uma aranha ao
centro e pronto: estava presente o quadro que ele
tinha que apreciar, muito além da vontade, do
cansaço, da dor de cabeça, da febre, das pálpebras
pesadas, do sono e dos detalhes repetitivos da sua
agonia.
Mesmo de olhos fechados ele a contemplava e
nada era capaz de ofuscar a imagem perfeita: a teia e
a aranha estampadas no teto, enfatizando sua
impotência diante de algo aparentemente
insignificante. Tomás se sentia preso outra vez entre o
passado e o presente, ambos recriando uma realidade
que se agigantava ao seu redor. Estava forçado a
apreciar a mesma rede cujos fios foram
minuciosamente trabalhados para prender os insetos
dos quais se alimenta a aranha artesã. Naquele
momento era ele o inseto maior, preso naquela
armadilha e prestes a ser devorado sem qualquer
cerimônia.
Certamente, aquela era uma aranha fria,
insensível, calculista e repleta de paciência: tinha a
certeza da vitória, por isso estava tranquila, como se
estivesse petrificada, guardando seu sono conflituoso
ou talvez tirando a maior onda da sua cara. Às vezes
ele tinha a estranha sensação de que aquele bicho o
espiava furtivamente. Era como se ela zombasse de si,
apresentando uma espécie de sorriso maléfico,
vingativo, exposto através dos pequenos olhos
negros. A sua boca, provavelmente deveria ser aquele
risco, quase imperceptível, que se abria sutilmente,
vez por outra.
“A boca de uma aranha”, eis aí uma coisa que
ele nunca viu nitidamente.
Uma vez lera que a boca da aranha se situa
entre os palpos. Entre a boca e o estômago existe uma
estrutura formada de milhares de pelos finos, que
funcionam como um sensível filtro, onde só as
partículas menores são capazes de passar. Com isso, a
aranha é protegida da entrada de bactérias, vírus e
outras formas de vida nocivas a ela.
Quando ele era criança, apanhava um graveto,
cutucava a aranha-caranguejeira e ela se encolhia,
mãos e pés se enroscavam e se transformava num
gozado novelo peludo. Ele nunca teve medo, mas a
sua irmã mais velha, a Estela, vivia reclamando:
- Tomás, um dia você será afetado e se o pelo
venenoso desse bicho cair no olho vai te cegar.
Era tanta ameaça que ele abandonava a danada
e ia inventar outra novidade. Quando alguém
aparecia com herpes no cantinho da boca, a mãe
apresentava uma explicação pouco convincente:
- Isso é boqueira, vai ver foi a aranha que
passou e deixou o seu rastro!
Lá no barraco tudo era culpa da aranha:
– Bicho metido a besta que invade a casa e se
espalha no telhado e na parede! – Reclamava a mãe.
As queixas não adiantavam, a aranha voltava,
renascia sei lá como e demarcava o seu território.
Viviam debaixo do mesmo teto, por determinado
tempo. Até a mãe fazer a faxina. Aí a coisa era
dramática, pois ela começava espiando cada detalhe
do telhado, buscando moradores intrusos. Pobre
aranha! Toda a labuta na construção de fios perfeitos
estava perdida. A teia que o bichinho tão
cuidadosamente tecia ia sendo destruída em
segundos. A vassoura de pindoba que a mãe usava
era uma arma eficaz, capaz de transformar o lar da
artesã num monte de fios entrelaçados com a palha da
vassoura. Porém, antes de se dar por vencida, a
esperta aranha escapava momentaneamente, em
disparada, talvez em desespero e quando encontrava
a saída pela porta dos fundos, prestes a alcançar a
liberdade, lá estava ele: o delicado pezinho da irmã
mais nova, aquele que finalizava a história,
esmagando a pobre aranha em mil pedaços. O que
restava era só uma pasta grudenta, numa coloração
branco-amarronzada - que a Cidinha expulsava no
gramado do quintal ou simplesmente atirava o
chinelo na água do velho balde. Era o fim da festa, da
teia, da aranha, da obra, da artesã. Os humanos
venciam mais uma vez!
Mas agora estava diante de uma aranha
diferente: forte, livre, maior e, certamente, mais
sensata do que ele, que se considerava “um imbecil
que gasta horas pensando em aranhas”. Sorriu com
tristeza, enquanto divagava em pensamento: “Pobre
de mim, querendo ser mais do que gente. Deve ser
efeito da insônia”. Já pensara em tanta coisa enquanto
olhava para a teia da aranha que os pensamentos
enjoavam e se misturavam ao gosto amargo do seu
hálito. Agora só queria uma coisa: dormir. Não queria
permanecer condenado a observar uma estúpida
aranha imóvel.
Mas aos poucos as coisas voltaram ao normal.
O padre só ficou sabendo da sua situação algum
tempo depois. Passaram-se quinze dias desde aquela
revelação. Interiormente vivia um novo dilema:
contar ao padre que o garoto era ele? E se ele não
acreditasse na sua história? Talvez pensasse que ele
estava buscando uma forma de se promover, criando
bons argumentos para uma sólida amizade e assim
garantir o apoio necessário para quando deixasse a
prisão. Chegou à conclusão que era melhor deixar as
coisas como estavam. Foi um momento inesquecível e
o segredo seria a melhor forma de torná-lo
especialmente mágico.
- Fiquei sabendo que você esteve doente... –
disse-lhe o padre.
- Um mal-estar súbito, já passou, estou bem... –
no fundo estava sem graça e a frieza foi a arma que
utilizou para se proteger do segredo.
- Disseram que foi durante o meu testemunho...
Havia um tom enigmático em sua fala. Será que
desconfiava de algo?
- Acho que sim, fui ouvindo e aos poucos senti
as vistas se embaralharem, ficou tudo confuso, depois
não vi nada mais...
- Então não se lembra do meu testemunho?
Tomás começou a ficar receoso: por que ele
insistia no assunto? Respondeu-lhe evitando qualquer
ênfase que o levasse a desconfiar de algo:
- Pouca coisa, falava do seu encontro com um
garoto pobre no natal, acho que foi isso.
- Sim. Aquele encontro foi decisivo para
despertar a minha vocação. A partir daquele dia
nunca mais fui o mesmo. Tornei-me estudioso,
sorridente e atencioso. Os meus pais ficaram
preocupados, achavam que eu estava fazendo tipo,
coisa de menino revoltado com a separação... Comecei
a ir à Igreja com mais frequência, fui convidado para
fazer parte do grupo de coroinhas e, aos poucos,
conhecia melhor a minha religião. Outra coisa: todo
natal eu voltava à loja na esperança de rever o garoto,
mas ele nunca estava por lá.
- Pode ser que você o tenha visto e não o tenha
reconhecido. São tantos garotos famintos espalhados
pela cidade, além disso, pobre é tudo igual, tem a
mesma cara, os mesmos olhos pidões, os mesmos
farrapos.
- Não, ele deixou presente mais do que uma
simples imagem, deixou a sua energia. Acho que se eu
o encontrasse hoje, mesmo tendo passado tanto
tempo, o reconheceria.
Num ímpeto Tomás quase revelou a verdade.
Mordeu os lábios, não ia deixar a emoção tomar conta
da sua razão. Disse-lhe com firmeza:
- As pessoas mudam. Aquele garoto pode ter
virado um perigoso bandido, pode ter sido
assassinado, pode estar preso...
- Ou talvez tenha se dado bem na vida, casado,
bem empregado, com mulher e filhos...
- Por que deseja tanto reencontrá-lo?
- Na verdade eu já não pensava mais nisso.
Acontece que tive um sonho curioso e que me trouxe
de volta o garoto.
- Sonho?
- Sonhei que estava viajando numa estrada de
chão. Era uma estrada longa, o sol estava forte e
atrapalhava a minha visão. Em dado momento avistei
um rancho coberto de sapê, de paredes de barro
socado com varas. Uma visível pobreza. Parei o carro
e entrei no rancho. Não havia ninguém em casa. Ouvi
um barulho estranho vindo do único quarto. Entrei e
vi o menino amarrado na cama, cercado de aranhas.
Algumas estavam penduradas no teto, outras pela
cama e no corpo do menino havia uma centena. As
mãos amarradas na parte superior da cama não
permitiam que ele espantasse os insetos. Quando ele
viu que era eu, começou a sorrir. E da sua boca saíam
mais aranhas. Depois, tudo mudou, não vi nenhuma
aranha, só o menino deitado, dormindo feito um anjo.
Quando me aproximei ele acordou abriu um lindo
sorriso e disse: “você ainda não sabe quem sou eu,
mas estou muito perto de você”... Acordei banhado de
suor e desde então voltei a pensar no garoto.
Uma pausa emocionada. Não havia como
ocultar nada mais. Ainda assim, Tomás tentou romper
com toda e qualquer forma de esperança:
- Sonho... Parece mais um pesadelo. Quer um
conselho padre? Esqueça essa história, viva a sua
vida. Não é isso que você sempre diz? O passado é
apenas uma história que já aconteceu. Feia ou bonita,
já fez sua parte. O presente é o mais importante.
- Sei... Mas é preciso conhecer o passado para
compreender o presente.
- Por que está me dizendo essas coisas?
- Não sei, talvez porque você é uma pessoa de
confiança.
- Eu... Gostaria de ficar a sós. Minha cabeça
voltou a doer.
- Tudo bem. Voltamos a nos falar outro dia.
Ele sabia de tudo. Não havia como escapar.
- Padre...
- Pois não.
Tomás estendeu-lhe a mão. Tremia de emoção.
A oração saltou-se dos seus lábios. Ele sorria e
chorava ao mesmo tempo. Oraram juntos como
naquele dia:
“Senhor, põe em mim um coração novo. Quero
ser feliz, Senhor. Ajuda-me a descobrir minha meta.
Ajuda-me a buscar as coisas do alto”.
Tomás o olhou profundamente e disse num fio
de voz:
- Aquele garoto era eu!
O padre sorriu com bondade e as lágrimas
desceram suavemente.
- Eu sei.
- Como tinha certeza?
- Esse encontro aconteceu não faz tanto tempo
assim, acho que uns 15 anos, mas o sonho foi a
revelação que eu precisava. Você sempre me falou da
sua predileção pelas aranhas. Quando acordei, disse
para mim mesmo: “é ele. O Tomás é o garoto que eu
conheci”. Foi uma grande descoberta e com toda
certeza a mais gratificante da minha vida. E pensando
bem, você não mudou tanto assim. Ainda carrega
certa aflição no olhar e a mesma ternura no sorriso.
Que bom que não foi um sonho. Você existe de
verdade...
A emoção quebrou a dureza do coração de
Tomás. Lembrava-se de todos os detalhes:
- Quando eu levantei os olhos e não mais o vi,
fiquei com uma sensação esquisita, perguntei ao
Papai Noel, ele disse que não tinha ninguém, que eu
estava inventando coisas. Voltei para casa com a
minha mãe e nas mãos o saquinho de doces que você
deu. Acabei escondendo a história, como se fosse mais
uma das minhas invenções, eu sempre fui muito
criativo. Aquele natal foi o mais feliz da minha vida,
aliás, o único. Depois disso, vivi o desespero, a dor e
a revolta.
Ficaram em silêncio por alguns segundos.
Depois o padre confessou:
- Estou muito feliz com o fim desse mistério.
- E agora?
- Como assim?
- Você queria saber a verdade, agora sabe. O
que pensa fazer?
- Sabe por que eu queria saber a verdade?
- Não faço ideia...
- Eu tinha uma dívida com aquele garoto.
Depois daquele encontro minha vida mudou e você
foi o responsável por isso.
- Padre, não diga isso. Eu não passava de um
garoto maltrapilho que vivia espiando comida de rico.
Você teve compaixão, deu uma migalha da sua
comida e depois sumiu no mundo.
- Foi mais do que isso. Sempre que eu tinha
dúvidas, a sua imagem cheia de ternura aparecia e eu
tinha a sensação que deveria abraçar a minha causa
em defesa dos oprimidos. Claro que tem o dedo de
Deus nessa história. Mas a minha fé foi alimentada
pela imagem do descaso, da negligência social, do
medo, da fome e da violência estampada no seu rosto.
Depois que me ordenei sacerdote, optei pelos
trabalhos pastorais e mais uma vez fiquei pensando: a
Pastoral Carcerária é um desafio e sem perceber, veio
a lembrança do nosso encontro.
- Ou seja, na sua cabeça eu teria crescido e
virado bandido. Estaria atrás das grades ou com a
boca cheia de formigas...
- Não, embora este seja o destino de centenas
de crianças como aquele garoto. Você sabe melhor do
que ninguém. Você é aquele garoto! Mas a minha
opção pela Pastoral Carcerária teve outro elemento
motivador. Um colega relatou que o padre Luiz
Roberto Teixeira Di Lascio costumava visitar algumas
prisões. Certa vez, enquanto visitava um preso do
Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, viu
uma cena inesquecível. Ele observou a entrada de
uma senhora de 60 anos, simples, cabelos grisalhos,
rugas no rosto, andar calmo, meio curvada, semblante
sereno, carregando uma sacola. A senhora dirigiu-se
até o banco onde estava sentado um jovem de uns 24
anos. Ele a acolheu com carinho e ela o acolheu com
seus gestos de amor materno. O padre ficou admirado
como aquela mãe demonstrava o carinho,
acolhimento, alegria, como o seu olhar para o rapaz
era de ternura e como ele se sentia alegre. No abraço
que eles trocaram para se despedir, Deus estava
presente. O preso que era visitado pelo padre
percebeu a sua admiração diante daquela cena, e
disse: "Sabe, Padre Luis Roberto, aquela senhora não
é a mãe dele, mas sim a mãe do rapaz a quem ele
matou. Ela prometeu, no dia do enterro, que ela o
perdoava. Como sinal desse perdão ela o
acompanharia com muito amor e assistência
enquanto ele estivesse na prisão".
Fez uma pausa. Bateu de leve no seu ombro.
- É claro que eu tinha esperança de um dia
poder reencontrá-lo e fazer como aquela boa senhora:
apresentar a esperança, o perdão e o amor de Deus.
Não fugirei como o fiz naquele dia, mas serei uma
presença concreta, verdadeira e leal. Quem sabe se eu
não tivesse fugido daquele jeito as coisas seriam
diferentes. Perdoe-me Tomás.
- Você era só uma criança. Não deve se culpar.
Estou bem, hoje estou mais sereno, sensato, aprendi a
ver o lado bom da vida e a acreditar na esperança. A
pastoral me ajudou a ser um novo homem e você é
parte fundamental nessa transformação.
- Sabe Tomás, eu acredito na Pastoral. Ela
representa de maneira admirável a imagem de Jesus
que vem salvar e morrer sem nada receber. Porém,
acreditar na pastoral apenas, não é suficiente, é
preciso acreditar no ser humano, na transformação, na
luta e na organização.
- Um trabalho admirável.
Fez uma pausa, consultou o relógio. Preparou-
se para sair, mas Tomás ainda tinha algo a lhe dizer:
- Padre, tem mais uma coisa. Certa vez, ainda
criança, eu sonhei que a gente tinha se reencontrado.
Foi logo depois que perdi minha família. Foi um
sonho lindo. Era natal e eu voltei na mesma calçada,
diante da mesma loja e quando eu perguntei seu
nome, você abriu um sorriso e respondeu: eu sou o
menino Jesus.
Ele apertou os olhos, repleto de emoção. Não
disse nada. Despediu-se com um sorriso.
Dezoito
“Eu sou o homem aranha”.
Era véspera da sua despedida da prisão. Tomás
passou a penúltima noite em claro, mil pensamentos
tomavam conta da sua cabeça. Pensava nos amigos
presos que ainda ficariam ali por algum tempo.
Quanto mais pensava, mas tinha a certeza de
que nunca se deu conta da culpabilidade daquelas
pessoas: o que fizeram, o tamanho do crime... A
reclusão cria e recria outros valores, outros conceitos.
Será que eles apenas fizeram mal à sociedade ou
foram, também, vítimas das suas armadilhas? Não
sabia dizer. Mas tinha absoluta convicção que ali
estava deixando amigos que conhecera daquele jeito e
daquele jeito permaneciam. Não estava em condição
de julgá-los, nem poderia, era parte encarnada dos
capítulos da história de todos eles. Era um pouco
daquela história e mesmo que passasse um, dois ou
mil anos, carregaria sempre a marca e o cheiro
daquela cela, daquelas grades, daquele povo,
daquelas aranhas.
No fundo tinha uma certeza: não estaria
sozinho. Dona Belarmina cumpriu sua promessa,
passou a me visitar diversas vezes, sempre com o
mesmo sorriso, a mesma ternura e o eterno olhar de
compaixão. Na véspera trouxe novas roupas,
cheirosas, dobradas e engomadas com o capricho de
toda mãe ansiosa.
- Quero você bonito lá fora e nada que lembre
esse lugar - disse enquanto o entregava a sacola.
- Não precisa se incomodar.
- Amanhã bem cedo, depois que sairmos daqui
você vai se encontrar com o padre e mais duas
pessoas.
- Mais surpresas?
- Eu... Desculpe-me, não devia ter comentado.
Oh! Língua danada!
- Agora eu quero saber.
- Paciência, disse em tom de brincadeira,
amanhã será outro dia. Agora preciso ir, o padre ainda
quer falar com você.
- Vocês estão planejando matar-me do coração.
Suspense, segredos, medos...
- Até amanhã meu querido!
Pouco depois estava diante do padre.
- Não gosto muito do jeito como as coisas estão
acontecendo... Dona Belarmina disse que amanhã
duas pessoas estarão à minha espera. Quem são elas?
Ele ficou sério.
- Ela não devia ter mencionado, era nosso
principal segredo.
- Não acha que está brincando demais com a
vida alheia? Isso não é uma atitude cristã.
- Tomás, nada do que estamos fazendo vai te
prejudicar e tenho absoluta certeza que ficará muito
feliz quando encontrar-se com as pessoas. Tenha
paciência, meu amigo, você esperou cinco anos! Um
dia a mais não fará diferença.
Tomás estava visivelmente aborrecido. Disse:
- Pelo visto minha vida está em suas mãos.
O padre alterou o tom da voz, como nunca o
fizera antes:
- Tomás, sabe por que meus pais se separaram?
Ele descobriu que a minha mãe o estava traindo com
o melhor amigo. Ficou desesperado e nos abandonou.
Depois, reconsiderou o fato, a minha mãe disse que se
arrependeu, que o amava e que a nossa família era a
coisa mais importante. Dois anos depois, voltaram a
se desentender. Mamãe pediu a separação e o meu pai
entrou em depressão. Uma tarde, quando voltava do
colégio, encontrei o meu pai morto. Ao seu lado várias
caixas de tranquilizantes. Quase fiquei louco, mas a
mão de Deus me amparou e eu sobrevivi.
O padre ficou em silêncio por alguns instantes,
em seguida afirmou seriamente:
- Você não é o único que tem uma tragédia
para contar, não é o único que sofre... Naquele
momento eu também não tinha ninguém. Minha mãe
ficou com tanto remorso que até hoje não se
recuperou. Já esteve em diversas clínicas e mesmo
assim vive tendo crises de depressão. A morte do meu
pai não foi o único episódio triste, ainda existe o
calvário da minha mãe.
- Eu sinto muito.
- Ah! Como eu gostaria de ouvir alguém
dizendo que tudo o que passei foi um sonho mal, que
meu pai não se matou, que a mamãe está bem, que
ainda somos uma família feliz... Por isso, Tomás, tudo
que eu faço por você, faço por mim. Digo o que eu
gostaria de ouvir, dou aquilo que gostaria de receber.
Busco minha paz na paz do meu irmão que sofre e isso
não é para me promover. Não sou nenhum santo, não
espero nenhum prêmio. Sou uma pessoa que acredita
que qualquer ser humano tem direito ao perdão e
pode recomeçar. Como a fênix, nos transformamos
em cinzas para, em seguida nos reintegrarmos, nos
ressignificarmos. Eis aí a nossa transfiguração. Mas se
você faz tanta questão, contarei tudo.
- Não, por favor. Eu sou um idiota, agi como
um egoísta. A dona Belarmina não teve culpa de nada.
Perdoe-me meu bom amigo!
- Entendo... O segredo gera ansiedade, mas eu
não gostaria de quebrar a minha palavra. Não se
preocupe, será algo maravilhoso, tenho certeza.
...
Última noite no cárcere. Tomás imaginou que
teria insônia, preocupações, mas dormiu bem.
Acordou no dia seguinte com uma paz de espírito
muito grande. A despedida não foi fácil. Os amigos de
cela estavam tristes e calados. Gostavam de Tomás,
nunca lhe fizeram mal, sempre o defenderam, foram
seus irmãos, pais, amigos. Na prisão não havia
máscaras, hipocrisia ou falso moralismo. Não eram
felizes, é certo, mas aprendiam a suportar o
isolamento e a juntar pedaços de um quebra-cabeça
chamado reclusão.
Apesar de todas as provações e humilhações,
Tomás nunca pensou que sentiria saudade daquele
lugar. Naquele dia ele experimentou uma emoção
diferente, conflituosa, como se parte dele não quisesse
sair nunca mais daquela prisão.
- Valeu... – disse o Bado, um bom amigo. Bateu
de leve no seu ombro e se afastou. Os outros fizeram
o mesmo. Não havia palavras, mas o silêncio dizia
tudo. Foi uma despedida dolorosa e todos choraram.
Tomás estava deixando seus irmãos e uma parte da
sua vida. Eles ficaram atrás das grades e ele não podia
fazer nada...
Então segurou fortemente a alça da mala e foi
caminhando pelos corredores da prisão sem olhar
para trás.
Na sala da recepção dona Belarmina o
aguardava.
- Meu filho... – ela estava emocionada.
- E a surpresa?
- Lá fora. O padre nos aguarda.
Saíram. O padre estava ao lado do carro, à
sombra de um belo jequitibá. Segurava um pacote.
- Tomás, bem vindo à liberdade.
Ele continuava sem ânimo. A sensação de vazio
aumentava em seu coração.
- Eu... não sei o que dizer.
- Padre, o Tomás perguntou sobre a surpresa.
- Sei... Tome, abra esse pacote.
Tomás recebeu o embrulho.
- Não vai abrir? – indagou dona Belarmina.
Abriu o pacote e se deparou com um cheiroso
bolo de coco.
- Esse é meu bolo preferido...
- Eu sei – disse o padre calmamente.
- A última vez que comi um bolo assim foi
quando vivia com... – parou emocionado. O passado
voltava.
- Você se lembrou da Bete, não é verdade? –
Perguntou o padre.
- Sim. Ela fazia esse bolo toda vez que eu estava
triste e saudoso. A minha mãe também gostava de
bolo de coco.
Estava tão envolvido pela nostálgica saudade
que quase se esqueceu de perguntar o principal.
- Quem trouxe o bolo?
- De vez em quando, nos dias de visita você
costumava receber bolo, pão, canjica, e assim por
diante, não é verdade? – Perguntou dona Belarmina.
- Sim, é verdade. Na prisão todo mundo ficava
intrigado com os presentes que eu recebia. Não
acreditavam quando eu falava que desconhecia a
pessoa que enviava... No começo eu ficava cismado,
tinha cisma de comer, depois me acostumei. Vocês
conhecem essa pessoa?
Eles se entreolharam como se estivessem
certificando se contariam tudo. A ansiedade tomava
conta do seu coração.
O padre não se fez de rogado. Abriu o jogo.
- Você vai se encontrar com duas pessoas muito
importantes. Elas estão na minha casa e esperam por
você. Eu não posso dizer nada mais, foi o meu
compromisso.
- Só uma dúvida: eu conheço as duas pessoas?
- Uma você ainda não conhece, mas a outra
certamente faz parte da sua história.
- Vamos então? – Apressou-se dona Belarmina.
Entraram no carro do padre e partiram. Ele
estava tão nervoso com aquele suspense que nem
conseguiu reparar a cidade, as casas, os prédios, os
carros. Não teve tempo de espiar os primeiros sinais
da vida em liberdade. Estava em busca de mais uma
peça do quebra cabeça que o destino fizera da sua
vida. No carro o silêncio os dominava. Vez por outra
dona Belarmina – que se sentara no banco traseiro –
alisava sua cabeça, queria reconfortá-lo. Seu afago era
o sinal para que ele tivesse paciência.
Foi a viagem mais longa da sua vida. Tomás
revirava a mente, em busca da lista de nomes do
passado. Almejava possíveis pistas que ajudassem a
explicar aqueles mistérios. Inútil, não havia ninguém.
De repente começou a bater no vidro uma fina
neblina. O padre sorriu.
- Tempos quentes, disse. Nada como esse
presente do céu.
Indiferente a tudo, Tomás não via a hora de
chegar. Nem a chuva foi capaz de afastar a ansiedade.
O carro entrou numa simpática rua, ao lado da subida
do morro que levava à favela. A casa paroquial ficava
em frente à pracinha e as bonitas árvores conseguiam
disfarçar a pobreza que havia na favela do morro. Era
só levantar os olhos para perceber o cartão postal da
periferia, ilustrando uma realidade que Tomás
conhecia profundamente. Mas quando os olhos
baixavam, estavam diante de uma pacata cidade do
interior cujo centro era a pracinha, lugar onde as
crianças gostavam de brincar e ponto predileto para
os velhinhos que jogavam dominó. Tinha banca de
jornal, um coreto e na parte central a Igreja de Nossa
Senhora da Glória. Mais adiante havia a rua do
mercado, lugar da feira, da fartura e da gostosura.
- Chegamos, disse o padre.
Tomás suspirou aliviado, mas a aflição
continuou. Quem seriam as duas pessoas? Como se
lesse o seu pensamento, o padre tratou de colocá-lo a
par da situação.
- Aguarde no meu escritório. Eles estão na
cozinha.
Eles, quem?
- Não é melhor voltarmos? – a pergunta saiu
sem pensar. Um rápido temor atravessou-lhe o
coração, já não sabia se queria descobrir novas coisas
sobre o passado. Dona Belarmina segurou a sua mão,
entraram juntos.
- Sua mão está fria.
- Estou com sede - disse.
- Espere, vou buscar água.
Os dois adentraram a casa, Tomás sentou-se no
largo banco de madeira cercado de fofas almofadas. O
escritório era acolhedor e tudo ali carregava aspectos
pastorais da Igreja Católica. Enquanto aguarda e
disfarçava a ansiedade, Tomás começou a andar pelo
aposento, parando diante dos cartazes sobre a fome
em Angola, Moçambique, Congo... Mães esqueléticas
com filhos pendurados ao colo, crianças raquíticas,
famintas. Ao lado de cada fotografia havia mensagens
de fé e de ação concreta à luz do Evangelho. Por todo
lado havia a presença da cultura e da mística da
transformação. Situações dramáticas no mundo
inteiro e a presença Cristã como alento, como
fermento.
Havia também uma estante repleta de livros e
revistas. Na mesa que ficava ao fundo, dois livros que
chamaram a sua atenção: “Memórias do Cárcere”, de
Graciliano Ramos, “Cartas da prisão” e “Batismo de
Sangue”, do Frei Betto. Sob o vidro que cobria a mesa,
dezenas de fotos, algumas dos assentamentos do
MST, mensagens sobre a Reforma Agrária, frases
famosas de nomes famosos como D. Pedro
Casaldáliga, D. Hélder Câmara, Chico Mendes,
Leonardo Boff, alguns poemas... Mais adiante, ao
centro, na parte superior da mesa, um porta-retrato
que exibia uma foto do amigo sacerdote, ainda
criança, abraçado com os pais. Tomás lembrou-se da
origem do amigo: família rica, cercado de luxo,
conforto e agora estava no subúrbio, desenvolvendo
um lindo trabalho de promoção social em defesa dos
menos favorecidos... O mais interessante era a sua
animação em poder ajudar as pessoas, em acreditar na
esperança e na luta pelo recomeço. Ele o ajudou a
reunir pedaços da sua história, sem pedir nada em
troca.
“Que bom que somos amigos” – pensou.
Ouviu barulho de passos. Tentou recompor-se,
ajeitou o corpo, mas quando se virou para a porta um
susto: ela.
“Meu Deus!”
Ela não disse nada. Apenas chorava. Esfregava
as mãos nervosamente e não conseguia encará-lo. Os
cabelos estavam mais curtos, mas o jeito de menina
era o mesmo. Tomás ficou completamente desprovido
de qualquer ação, como se estivesse assistindo a um
filme de suspense. Mas a cena era totalmente real e
quando sentiu que a fraqueza ia dominá-lo, o padre
Thiago entrou sem pedir licença e o amparou,
ajudando-o a sentar-se no banco. Dona Belarmina
entregou-lhe o copo com a água, em seguida retirou-
se acompanhada do padre, deixando-o diante da mais
surpreendente visão.
- Bete... – disse meio engasgado.
- Canivete...
Bete estava viva todo esse tempo. Agora as
coisas começavam a fazer sentido: o bolo, os salgados,
o pão... Ela sempre esteve presente, mas não queria
aparecer.
- Você... – não sabia o que dizer, não havia o
que dizer.
- Perdão. Eu não tive outra opção.
Ele tomou a água e mesmo assim a garganta
continuava seca. O coração ainda aos pulos. Era tudo
muito irreal. Sonho? Ela se aproximou e quando
tentou tocar seus cabelos, ele se levantou decidido.
Não deixaria a emoção expulsar a razão. Aquela
mulher matou a Jane. Uma assassina pedindo
clemência, que tremenda estupidez! Não, aquele
crime não teria a sua compreensão. Aquele episódio
finalizou a única esperança de viver um grande amor
e quem sabe levar uma vida decente.
- Você precisa me escutar, pelo amor de Deus...
– suplicou emocionada.
- Você sobreviveu... – sentiu a voz trêmula -
Muito bem e eu com isso? Não quero recomeçar a
minha vida ao seu lado. Eu não esqueci o que você fez!
E como se não bastasse deixou que eu acreditasse na
sua morte. Por quê? Que vantagens tirou com essa
farsa? Por que fazia questão de levar comida se não
queria me ver? Eu não posso compreender tanta
loucura!
- Se você ouvir vai entender tudo.
Ele alterou o tom da voz.
- Vocês estão brincando comigo! Como o padre
e a dona Belarmina descobriram você? Por que
insistem em trazer o meu passado de volta? Eu busco
a liberdade e o presente que recebo é a opressão.
Nesse caso, prefiro a prisão e a lógica da reclusão. Se
assim não for possível, prefiro a morte. Essa aventura
chamada vida não passa de mais um dos meus
devaneios. Prefiro a minha cela, a conversa com as
aranhas e os meus diários. Não quero mudança, não
assim.
O padre retornou. Ouviu seu desabafo e
munido de compreensão tentou conter a sua revolta:
- Tomás, procure ouvir a Bete. Depois faça o
que achar melhor. A dona Belarmina arrumou a sua
antiga casa, ficou uma beleza. Se você não quiser ficar
conosco tudo bem, venda o barraco, vá embora, sinta-
se à vontade. Mas só tome qualquer decisão depois
que escutar esta mulher.
- Prefiro sumir de uma vez por todas! –
Respondeu aos gritos.
O padre reagiu de forma enérgica, como se
estivesse passando um sermão numa criança
traquina:
- Muito bem, vá! A porta está aberta, não
pretendo prende-lo aqui. Se não quiser ouvir, o direito
é seu. Porém, saiba que está jogando a vida na lata de
lixo mais uma vez. Você é maduro o suficiente, tudo o
que viveu na prisão, o que aprendeu, experimentou,
perdeu, ganhou, são elementos importantes, mas só
terão sentido se forem incorporados à sua realidade,
caso contrário, serão apenas fragmentos dispersos.
Fiquem à vontade e conversem tudo o que estão
sentindo, depois me procurem.
Ele não esperou qualquer resposta. Deixou a
sala, fechando a porta lentamente. Ficaram a sós mais
uma vez. Ele sentou-se novamente. Bete permaneceu
de pé. Engolia o resto do choro.
- O que está esperando? – Indagou sem olhar
para ela.
- Você queria me deixar. Ia embora com aquela
mulher.
Mais uma vez ele perdeu a paciência.
- Não ouse falar da Jane, você não tem esse
direito! Ela está morta, você a matou! Não existe
explicação e eu jamais a perdoarei.
Ela perdeu a insegurança. Levantou a voz e
revelou com clareza:
- Pobre idiota! A sua querida Jane também não
morreu. Ela está bem viva, continua rica, feliz,
despreocupada!
- O que está dizendo?
- A verdade. E se você não quer acreditar o
problema é seu. Aquela fingida estava desmaiada, o
tiro atingiu um lado da costela, de raspão. Eu só fui
saber depois que vi a reportagem pela televisão.
- Mentira! Você matou a Jane, não adianta
querer remediar o seu crime.
- Pelo amor de Deus escute o que tenho para
dizer: ela não se chama Jane, o nome dela é Beatriz
Rameschini, nunca foi casada, era amante do
traficante, não tinha direito a nada. A relação estava
em crise porque o cara estava querendo trocá-la por
outra. Você foi vítima de uma grande armação. Ela
estava triste, sabia que a vida de rainha estava
chegando ao fim. Não queria sair de mãos abanando
daquela relação. Tinha que encontrar um comparsa
ideal que a ajudasse a destruir o cara e ficar com a
fortuna. Você entrou no plano por acaso, ela o
seduziu, gostou da aventura, estava diante do
parceiro ideal: um comparsa que poderia ajudá-la a se
vingar do cara. Você ia ajudá-la a roubar uma parte da
fortuna e depois ela o deixaria a ver navios. Pense
bem, Canivete: as coisas estavam fáceis demais. Você
tem a chave da mansão, não encontra qualquer
dificuldade, a vítima está sempre só e ela
simplesmente se deixa envolver sem medo, como se
você fosse um príncipe encantado. Uma açucarada
história de amor que não convence a ninguém, mas
você acreditou e entrou de cabeça. Mas, por ironia do
destino, eu estava presente e ela não contava com a
polícia. Quando os policiais invadiram a casa, fomos
levadas para o hospital. Assim que recebi alta,
ninguém soube dizer o seu paradeiro. Achei que ela
tinha morrido. Seis meses depois a manchete que
decorei de tanto ler: “traficante procurado pela polícia
é encontrado morto no seu iate, no litoral do Ceará”.
- Não acredito! – gritou - você é uma maldita
doente, deveria ter morrido de verdade!
Ela sorriu tristemente.
- Você ainda vai me pedir perdão.
- Como soube de tudo isso?
Ela abriu a bolsa, retirou uma página de jornal
e enquanto o entregava:
- Sabia que ia duvidar, eu trouxe isso. O
traficante não se chamava Adriano Albuquerque, o
nome verdadeiro dele era Décio Lakota. Outra coisa,
meu caro: ele não estava no exterior. Descansava
tranquilamente no litoral cearense. Leia e tire suas
conclusões.
Tomás abriu a página e seus olhos foram
devorando cada palavra da reportagem:
“Um dos maiores traficantes de São Paulo,
Décio Lakota, 56, é encontrado morto às 15h45 no
luxuoso Iate Lagunas que servia de sua residência, no
litoral do Ceará. O corpo da vítima foi alvejado com
seis tiros. As suspeitas recaem sobre a carioca Beatriz
Rameschini, 25, que segundo informações, vinha
arquitetando a morte do amante ao lado do comparsa,
o ex-policial Erivelton Gamide, 31. Beatriz foi alvo de
escândalo há seis meses quando foi atingida por um
tiro de Tomás de Jesus, vulgo Canivete, assaltante que
invadiu a mansão de Lakota. A mulher do bandido,
Elisabete Ferreira, 23, em fase de separação conjugal,
seguiu o esposo e acabou sendo atingida por um tiro,
ao lado do ombro direito. As mulheres foram
socorridas a tempo, não houve óbito. O bandido foi
preso em flagrante, com a arma do crime na mão. O
delegado seccional Juracy Campos determinou
apuração do caso que aos poucos foi sendo esquecido.
Depois do escândalo, Beatriz andou sumida.
Mas após a morte do marido, seu nome voltou a
circular e um fato curioso chamou a atenção da
polícia: Erivelton Gamide, o suposto comparsa da
amante era um dos policiais que a socorreu no
duvidoso episódio de um ano atrás. Mais: os dois
foram vistos no aeroporto um dia após o crime.
Estima-se a fortuna do traficante na ordem de 11
milhões de reais, sem levar em conta os imóveis
espalhados por vários estados brasileiros. Enquanto
isso, Beatriz e seu novo amante, estão curtindo férias
milionárias em algum lugar do mundo.”
Abaixo a foto de Jane. Não havia dúvida. O
mundo estava desabando, mais uma vez, sobre a sua
cabeça. Ficou sem ar, tomou outro copo d’água. Bete
voltou a falar, não havia qualquer agressividade na
sua voz. Sentiu-se comovida diante da maior
decepção que ele experimentara.
- Como vê Canivete, eu não sou tão bandida
assim. Nunca te abandonei, nem mesmo quando
esteve preso. A princípio fiquei magoada, depois
arrependida, e, finalmente preferi o silêncio. Você
nunca ia acreditar em mim. Por isso, cada vez que eu
levava um pão, um bolo ou biscoitos, eu pensava:
“meu amor, nunca deixarei de te amar, tenha certeza
disso”... No fundo eu estava com o orgulho ferido.
Naquele triste episódio eu queria morrer, mas não
deu certo. Queria morrer mesmo estando grávida...
Grávida. Sim, ela disse algo a respeito aquele
dia. Bete afirmou que estava esperando um filho seu.
Então. Se ela estava ali, o seu filho...
- Pelo amor de Deus. Não me esconda, eu
preciso saber...
Ela sorria e chorava ao mesmo tempo. Era o
anúncio de uma notícia fantástica. Abraçou Tomás
com força, sem mágoa, em prantos. A confirmação
estava naquele abraço. Seu filho, ele tinha um filho!
- Eu o criei com todo o meu amor! Ele é muito
parecido com você. Tem o mesmo temperamento e
não vê a hora de conhecer o pai que eu tanto falo!
- Meu Deus! Meu Deus! Eu tenho um filho.
Chorou de felicidade. O coração estava em
festa.
- Bete, perdoe-me, por tudo, perdoe-me!
- Meu amor, nunca mais iremos nos separar. Eu
prometi ao nosso filho. Eu mudei, nunca mais me
envolvi com homem algum, trabalho numa fábrica de
calçados, vivo honestamente do meu salário. Fou
incentivada pelo padre Thiago, faço parte da
comunidade e atuo na pastoral da criança. Também
voltei a estudar. Vendi a nossa casa e comprei outra
neste bairro. Não sou mais a Bete que você conheceu
num antro de prostituição, vendendo o corpo para
sobreviver. Minha vida é para meu filho. Nosso filho.
- Como é o nome dele?
- Mateus. Eu sempre gostei desse nome. Ele
está com cinco anos. Um menino esperto.
- Quando irei conhecê-lo?
- Agora mesmo. Ele está aqui.
Então era ele a outra pessoa. Claro. Só podia ser
o seu filho a maior surpresa que ele poderia ter.
Carinhosamente ela passou as mãos sobre a sua face.
Estava completamente emocionado, sentiu as
lágrimas, mas eram de alegria, de esperança, de
ressignificação da vida.
- O que direi a ele?
- Primeiro diga-lhe que você o ama. Que você é
o pai dele, que você não irá abandoná-lo. Ele está no
quintal, brincando debaixo do pé de goiaba. Agora vá,
seu filho te espera.
- Bete, antes eu queria te pedir uma coisa:
nunca mais me chame de Canivete. De hoje em diante
esse nome está proibido. Eu sou Tomás, esposo de
Bete e pai do Mateus. Um novo homem, uma nova
família. Promete?
- Tomás... Meu Tomás!
Na cozinha dona Belarmina aprontava o café.
O cheiro de bolos fritos era apetitoso. O padre Thiago
estava ao telefone. Bete indicou-lhe o quintal. Ao lado
da lavanderia ficava o pé de goiaba. O seu filho estava
sentado à sombra, de costas. Brincava com alguma
coisa. Os finos cabelos caiam sobre a face e
atrapalhavam sua visão. Tomás aproximou-se
lentamente. Tinha o pressentimento que o garoto ele
iria se afastar, correr ou simplesmente pedir socorro.
Dobrou o joelho e a sua sombra o atingiu. Ele se virou
e abriu um sorriso lindo. Estendeu-lhe uma aranha de
plástico, pendurada por um barbante.
- Não tem medo? – Perguntou o garoto.
As suas palavras lhe soavam como verdadeiros
acordes da mais doce canção.
- Quando eu era criança gostava de brincar com
as aranhas – respondeu emocionado, voz trêmula,
meio abobado diante do filho.
Num ímpeto sentiu a necessidade de abraçá-lo
e levantá-lo no colo, mostrando ao mundo que agora
ele tinha um filho. Mas se conteve, não sabia o que
dizer, como proceder...
- Eu também gosto do homem aranha. Olhe a
minha camiseta!
A camiseta azul estampava o homem aranha e
a sua famosa teia.
- Que linda! Mateus, você sabe quem sou eu?
- A mamãe disse que hoje eu ia conhecer o meu
pai. É você? – Perguntou, sem rodeios.
A ternura daquela criança o fez perder o receio.
Estava parado, diante de um garoto que agia com
naturalidade, sem maiores surpresas, como se ele
nunca tivesse se afastado. Seu olhar era uma força
encorajadora que o interrogava: “e então, não vai me
abraçar?”
- Meu filho... – chorando ele o abraçou.
- Não chore... - suas mãozinhas tentavam
limpar as lágrimas de Tomás.
- Meu filho querido! Nunca mais vamos nos
separar!
Ele ria gostosamente enquanto Tomás o erguia
no colo, fazendo seus cabelos tocarem os galhos da
goiabeira.
Estava coberto de razão o poeta que costumava
dizer que “a ternura é a essência do amor”. Na história
de Tomás a ternura sempre esteve presente, teve lugar
de destaque, mesmo nos momentos em que ele se
achava o pior dos seres humanos, o perdedor, o
fracassado, o isolado. A ternura entrava de modo
sutil, como aranhas que tecem as teias do destino;
como a menina morte que se aproxima, mas não
chega, não é tempo; como as guloseimas que a Bete
enviava sem pedir nada em troca; como as visitas de
dona Belarmina, uma senhora que não deixou de
cuidar da sua vida, de modo carinhoso, maternal,
como só uma mãe sabe zelar; como o seu amigo, o
padre Thiago que, ainda na infância, o ajudou a
descobrir o significado da vida; como a presença forte,
consoladora e fiel de Jesus, tornando-o uma pessoa
melhor, mais centrada na vida, na fé e na esperança
de que a sua história pede novos capítulos.
Agora Tomás estava com o filho nos braços, no
colo, montado no pescoço, brincando debaixo das
árvores, com pitadas de afeto, amor, recomeço.
Quando os braços doeram, colocou o filho de
volta ao chão, mas ele, teimosamente, puxou a borda
de sua calça surrada, queria mais atenção. Tomás se
agachou. Ficaram da mesma altura. Então, o garoto
tocou o dedo indicador na sua face e começou a
deslizá-lo lentamente, começando pela testa, depois
os olhos, nariz, boca... fez um desenho imaginário. Em
seguida, retirou o dedinho, olhou nos olhos de Tomás
e perguntou:
- Pai, o que é universo?
...
Tomás passou a se dedicar ao trabalho pastoral
da Igreja e na livraria da paróquia, mas antes resolveu
oficializar o casamento com a Bete. A família estava
restaurada.
E só então ele pode entende o verdadeiro
sentido do último conselho da irmã: “Tomás, você
precisa viver”. Cida tinha razão, ele estava morto, mas
recomeçaria a vida ao lado de pessoas que
acreditaram em sua recuperação, que nnunc
desistiram dele.
FIM
VIDA E OBRA
João Rodrigues Pinto nasceu em Licínio de Almeida,
uma pequena cidade do interior da Bahia, região
sudoeste, na divisa com o norte de Minas Gerais a 650
quilômetros da capital. A formação do autor sempre
esteve associada aos movimentos sociais, com
destaque para a Educação do Campo, o Teatro
Popular e as Comunidades Eclesiais de Base.
As raízes nordestinas e amor pelo interior brasileiro
são alguns dos elementos que esse autor faz questão
de exaltar. Quando lhe perguntam sobre o que mais
gosta de fazer, a resposta é curta e simples: “ficar em
casa”. Isso mesmo, seu maior prazer é ficar em casa
curtindo a família, um “território sagrado”, como
costuma dizer.
O autor é casado com Leila Cristina e tem dois filhos:
Henrique e Laisa.
Formação Acadêmica:
João Rodrigues é graduado em Letras-português
(UFES); Especialista em História do Brasil (UFES);
Mestre em Teatro-Educação (UNIRIO) e Doutorando
em Linguística (PUC-Minas).