João Rodrigues Pinto Canivete “Eu já era mais ou menos ...

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João Rodrigues Pinto Canivete “Eu já era mais ou menos conhecido e respeitado entre os canalhas”

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João Rodrigues Pinto

Canivete

“Eu já era mais ou menos conhecido e respeitado entre os

canalhas”

Aos meus filhos Henrique e Laisa, ternura que aquece

a minha inspiração.

À minha esposa Leila, pelo amor incondicional.

Alguma vez você sentiu que o seu destino é tão

grandioso, tão maior que o dos outros homens, tão

independente dos teus atos que chega a assustar, ao

mesmo tempo que te dá uma intensa sensação de

prazer? Alguma vez? E depois os teus gestos se

repetem e no seu cotidiano você passa a acreditar

nesse destino até o dia em que tudo fica amargamente

claro e você descobre que nada estava escrito a não ser

nas tuas próprias ilusões. Que o caminho que parecia

irreversível deu um nó com você lá dentro... Alguma

vez?

Chico Buarque e Ruy Guerra (Calabar: o Elogio

da Traição - 2002)

Escrevi a primeira versão de Canivete em 1987,

ano em que a CNBB lançou a Campanha da

Fraternidade com o tema “A fraternidade e o menor”,

cujo lema era “Quem acolhe o menor a mim acolhe”. As

Comunidades Eclesiais de Base debatiam a dramática

situação da criança que vivia nas ruas, exposta a todo

tipo de violência.

Na ocasião, a mensagem do Papa João Paulo II

enfatizou: “No quadro da situação do menor no

imenso Brasil, as estatísticas falam de números muito

elevados de menores, objetivamente pobres,

marginalizados e abandonados: tais números são

indício de males que importa remediar, pois salvar o

menor é escolher, valorizar e celebrar a vida e

afugentar sombras de morte. Mas para isso, é preciso

descer da montada, como o bom samaritano, com

humildade e amor, e debruçar-se sobre a vida do

irmão, em atitude de dom, movidos pelo valor da vida

e do lugar da vida na hierarquia dos valores”.

A obra Canivete nasceu das minhas

inquietações diante do quadro real da violência que

cresce e atinge, sobretudo a criança e seu universo

familiar. Infelizmente, a história do menino Tomás,

apelidado de Canivete, não fica apenas no campo da

ficção, mas serve para confirmar a crua realidade

brasileira. A história é a mesma de centenas de

crianças que perdem a infância e passam a viver num

mundo onde a violência dolorosamente é encarada

como algo “normal”, corriqueiro, inevitável. O grito

de revolta de Canivete ainda ecoa em cada canto do

país, mas o sistema continua indiferente, cego e surdo.

A violência acolhe a criança, justifica seus atos e

amplia os seus horizontes.

A primeira edição foi lançada em 1991 e sua

repercussão foi, de certo modo, conflituosa.

Representou a década perdida de 1980, período em

que as questões sociais não recebiam as devidas

respostas. Por isso o pessimismo, por isso o realismo.

Passados mais de 20 anos, mantenho a certeza

de que, infelizmente, o drama de Canivete continua

vivo e se repete na história real de muitas crianças que

continuam sendo espancadas pelos pais, abusadas

sexualmente, levadas à prostituição, às drogas, ao

crime... Muitos só estudam até as séries iniciais, se

mudam para a rua e encontram o crack e a morte.

A segunda edição (revisada e ampliada) surge

com o propósito de buscar algumas respostas para as

inquietações de Tomás (Canivete) que não se acabam

na prisão. As reflexões do personagem são marcadas

sob a perspectiva de uma mudança concreta sem o

apelo da cultura da miserabilidade. Canivete

amadureceu e está muito além das grades de qualquer

prisão. Continua amargo, mas seu tom não é

individual. Suas perguntas não ficam em aberto ou no

eco do fatalismo. Busca sentido existencial-coletivo a

partir da cultura da organização – que passa pela

formação, ainda que seja no terreno das relações

humano-religiosas dentro e fora do presídio, como o

trabalho fraterno e realizador da Pastoral Carcerária.

Na obra a ação da Pastoral toma corpo e apresenta

uma dimensão que leva ao entendimento de que é

possível entrar no mundo violento das prisões e que,

apesar de suas contradições, trata-se de uma realidade

que carece de humanização e não pode ser ignorada.

Abraço fraterno. Boa leitura.

João Rodrigues Pinto

Tomás é um garoto que nasce numa família pobre e

conflituosa: o pai é um bandido que inferniza a vida

de todos; a mãe sofre espancamento; as irmãs são

abusadas sexualmente e o garoto é treinado para

roubar. Tomás recebe o apelido de Canivete porque é

magro “feito um caniço” e usa uma faca para roubar.

Filho das circunstâncias, Tomás é bondoso,

inteligente, sagaz, terno e sonha com a felicidade da

família. Porém os acontecimentos vão mudando o

curso da sua história e seu destino é demarcado por

situações dramáticas. O garoto cresce num mundo

marginal, torna-se um bandido experiente, mas acaba

sendo preso e sua vida transforma-se num silêncio

repleto de revolta. Na prisão, com o apoio da pastoral

carcerária, descobre que nem tudo está perdido: é

tempo de recomeçar a tecer novos caminhos como as

aranhas errantes que nunca deixam a teia esquecida. O

livro é uma lição de esperança e de ressignificação.

Há sonhos que se soltam e não voltam porque uma

força ilusória os leva a passear por lugares confusos e,

como as goteiras do telhado, secam quando para a

chuva.

Ademar Bogo

Pela alma de Fernando Ramos da Silva – o eterno

Pixote.

Eu me apresento: Tomás, mas pode me chamar de

Canivete

“Fazia frio e o frio que fazia, não era esse que a carne nos conforta... cortava assim como em carniçaria, o aço das facas incisivas corta!"

Augusto dos Anjos

Foi numa agonizante madrugada de domingo.

Fazia frio. O vento entrou sem pedir licença,

atravessou as grades de ferro, soprou sobre os

encarcerados, depois saiu, depois voltou... Assim a

noite inteira. Os presos de olhos trancados, sono

pesado, buscavam se proteger do vento que castigava

os ossos. Encolhiam-se, ajeitavam o cobertor,

viravam-se de lado, ressonavam. Todos dormiam,

menos Tomás. Ele acordou completamente zonzo.

Sentiu o corpo mole e as vistas confusas. A cabeça

girava, uma aranha no teto se transformava em duas,

três ou mais... Tentou sentar-se, mas o corpo não o

obedecia, queimava em febre, suava, tremia. O

cansaço o fez sentir-se a mercê de uma espécie de dor

solitária, capaz de revelar aos ouvidos da alma, que os

seus dias se aproximavam do fim. Ele quis gritar,

pedir socorro, mas o grito ficou preso, surdo... As

gotículas de suor brotaram sobre a fronte, o frio só

aumentava e ele se encolhia em busca do calor,

agarrando-se à coberta de algodão.

Era o começo de um delírio onde a lógica se

perdia nas visões que alimentavam os fantasmas da

imaginação. Tomás já não sabia separar o mundo dos

vivos e o dos mortos. Estava no limite, mas, dentro de

si, sobrevivia o impulso de querer ir além das quatro

paredes, de sair do chão de piso grosso, de romper

com todas as grades e desaparecer na escuridão.

E então, ele viu a cara da morte...

“Agora ele dorme debaixo da terra fria que

você mandou jogar em cima dele”!

“Não... vá embora... vá embora...”

Morte.

O fim estava cada vez mais perto, apitando

forte, imponente, feito uma lagarta de ferro: um trem

correndo sobre os trilhos ao som da valsa dos

esquecidos que seguiam viagem.

Morte.

A alma, essa menina teimosa, fazia parte do

ritual, tinha lugar de destaque, por isso, não se fez de

rogada: sussurrou aos ouvidos de Tomás a fria certeza

de que ele não caberia mais nas estrofes daquele

poema caricato, ridículo, absurdo, irreal, hipócrita...

“Mãe o que é universo”?

O sofrível delírio o deixou diante de imagens

confusas que surgiam e eram engolidas por uma

espécie de nevoeiro repleto de vultos, sombras,

espectros. E Tomás a enxergou. Ela estava ali, entre as

sombras... A estranha criatura se tornou mais

definida, reveladora, então, teve a certeza: era a

temida menina-morte e ela não se fez de rogada,

aproximou-se lentamente de Tomás. Caminhava com

desenvoltura como se não sentisse o chão que lhe

servia de tapete. Era absoluta, altiva, única. Os passos

graciosos revelavam detalhes de uma mórbida

elegância que mesclava beleza e integridade. O seu

olhar certeiro - imune a qualquer emoção – mirou a

paisagem da vida de Tomás, avaliando, talvez, o

momento certo de arrebatá-la inteiramente,

integralmente.

As sombras da noite passeavam sobre a morte

como asas de anjo, criando uma imagem celestial que

se transformava na descrição do mistério das

sombras: o enigma da vida e a luz da morte. Apenas

sombras. Tomás compreendeu, então, que a vida era

algo que não mais lhe pertencia, uma concessão da

morte e ela, somente ela, sabia o momento certo de

encerrar a sua existência de uma vez por todas. O

olhar da menina-morte o mirava tão profundamente

que escancarava a certeza absoluta das suas

limitações.

“Deus não me quer mais! Eu fiz uma coisa

muito feia...”

Por mais que tentasse, não conseguia tirar os

olhos da estranha visão: magra, quase esquelética,

dona de longos cabelos finos, pele branca e olhos

amendoados, inexpressivos. Os lábios levemente

azulados estavam parados, frios, mortos... A menina-

morte vestia roupas leves, alvas como a neve e

caminhava com graça. De vez em quando levantava

uma das mãos e acenava: um sinal para enfatizar a

certeza de sua missão em torno do dilema e da sina de

Tomás.

“Estou chegando... Tenha calma”.

“Não quero ir. Ainda não é minha hora”

“Não tenha pressa, estou chegando...”

“Ainda não é minha hora”

Tomás apertava os olhos, tentava fugir daquela

visão tenebrosamente sedutora. Se a encarasse,

certamente seria levado embora. Não era forte o

suficiente para resistir às investidas fatais da singular

aparição. Então relutou, como lutou! Buscava forças e

mesmo correndo o risco, encheu-se de coragem e

abriu os olhos.

Nada.

Silêncio.

Trevas.

Não havia ninguém.

A menina morte simplesmente desapareceu...

Tomás voltou a fechar os olhos, e sentiu que

uma mão apertou seu ombro.

“Ela voltou”, pensou temeroso.

Tentou inclinar a cabeça, mas não teve forças.

Manteve-se na mesma posição. Agora a mão tocou a

sua fronte e ele delirava.

Ouviu uma voz masculina familiar que se

misturava aos ecos de seus delírios:

- Acorde Canivete... Está tudo bem.

“Acorde Canivete! Temos um trabalho a fazer”

“Não papai, ele é só uma criança”

“Acorde Canivete! Temos um trabalho a fazer”

- Acorde – disse-lhe o homem.

Abriu os olhos. O corpo banhado de suor. O

homem se chamava Adelmo, apelidado de Dego, um

parceiro de cela. Tomás tentou responder, mas não

conseguiu.

- Quieto, você está queimando de febre. Eu

tenho um comprimido.

- Água... – suplicou. Voz arrastada, ofegante.

Dego apanhou uma jarra e encheu o copo.

Tomou o comprimido, depois suspirou ainda

confuso. Sentia um imenso vazio. No peito a dor o

incomodava como se dezenas de agulhas lhe

espetassem o corpo. Num ímpeto, sentiu vontade de

chorar. Não tinha outro jeito. Precisava engolir o tolo

orgulho, e seguir o sábio conselho da falecida mãe,

quando alguém de casa ficava doente:

“Chorar faz bem. É bom engolir o sofrimento,

quando não tem jeito, sem deixar rastro. O choro faz a

dor parecer bem menor”.

Dego trouxe outro cobertor. Tomás continuava

trêmulo.

- Você precisa de um médico. É efeito da febre.

O dia está quase chegando. Tente dormir...

“Você... precisa de... um médico...”

“Tente dormir...”

“Médico...”

Entre um e outro delírio, a febre foi passando,

lentamente. Pronto. Tomás estava condenado a

sobreviver e agora já podia voltar a sorrir da sua cara

amassada diante do espelho.

Vida.

Aos poucos o frio desapareceu. Os

pensamentos se misturavam.

Finalmente ele conseguiu dormir. Só acordou

mais tarde com o falatório dos companheiros.

Olhos cansados, pedaços de sono, restos de

dor.

Outro dia.

Sua boa mãe costumava dizer que durante o

dia as coisas ficam mais fáceis. Por isso, teria que se

levantar, mesmo a contragosto. Precisava reagir. Na

boca, o desagradável gosto amargo e a lembrança do

pai. Quando Bastião acordava de ressaca, dizia que a

língua tinha gosto de “cabo de guarda-chuva velho”.

A mãe sabia, corria fazer um café bem forte e aos

poucos o pai ficava bom.

Tomás queria ficar bem. Estava livre dos

delírios e do pesadelo, pronto para a rotina de mais

um dia na prisão. Sentia-se ainda cansado, corpo

dolorido e sem qualquer disposição para papear.

Quando acordava assim ficava no canto, no silêncio,

na solidão. A zanga não era só pela noite mal dormida

ou pela dor de cabeça. Ele sempre ficava desse jeito

quando era véspera do “dia de visita”. Uma data

especial para os presos, não para Tomás. Ele nunca

recebia ninguém. Aquele era o dia de tortura

psicológica. O dia de visita forçava a sua entrada na

teia de um passado que ele lutava para esquecer. Mas

o entra e sai dos visitantes, as novidades e os presentes

que os presos recebiam dos familiares, não permitiam

que Tomás se esquecesse. Em cada detalhe da visita

estava cravado o seu passado. Por isso, odiava aquele

dia.

Os companheiros de cela estavam eufóricos,

todos aguardavam o esperado momento. Na conversa

animada entre eles, o assunto era o mesmo: mulher,

filhos, conhecidos e muita expectativa.

Vida.

- Não se cansa de pentear cara? Quer ficar todo

metido a bacana só pra alegrar a esposa... – comentou

um deles, o mais velho do grupo.

- Fazer o quê, Zé Prego? Ela vem visitar o

macho dela e precisa sair satisfeita! – respondeu o

Cacá.

- Cara, tua mulher é muito bonita! Nem parece

que tem três filhos!

- Hoje eles não vêm. Tão no interior na casa da

minha sogra!

- Então, hoje a coisa vai ficar mais quente! –

ironizou Géo Caolho, com uma pitada de gozação.

- Caolho, fica na tua! Não tenho culpa se tua

mulé deu o fora, meu! A minha taí, firme e forte!

- Aquela piranha que me aguarde! Se ela pensa

que vou ficar o resto da vida aqui... Sumiu no mundo

com o meu filho, mas eu acho a filha da puta até no

inferno!

- E a minha filha que resolveu engravidar de

um mané? Eu vou ser avô daqui a cinco meses!

- Tá fudido, o cara é rico?

- Não, mas pelo menos vai assumir a responsa.

Já tá no barraco com ela! Parece boa gente e é limpo!

- Olha quem fala! Querendo dar lição de moral

só porque o cara comeu tua filha?

- Cala a boca otário! Não quero estragar teus

dentes e nem aleijar teu olho! Minha família é coisa

sagrada e ponto final! Esqueceu da lei?

- Foi mal cara!

- Aqui cada um tem que respeitar a família do

outro e quem não quiser entrar nessa, será descartado!

Dessa vez, passa, mas...

- Só quero saber se minha mãe trouxe o que

pedi – disse Pedro, ansioso.

- Cara, tá cansado de saber que tudo é

examinado detalhadamente, os tiras tão ficando

esperto!

- Acorda cara! Não percebe a jogada? Esquece

que tem um monte interessado na nossa fuga?

Esquece que pra eles a nossa prisão é preju?

- Também não sou burro, mas tem gente nova,

tem tira de fora começando carreira, querendo

mostrar serviço...

- Isso não é segredo pra ninguém. O jogo é claro

e eles entram de cabeça...

Eles riam freneticamente.

Era uma só piada, uma só lógica.

Tomás permanecia em silêncio, não dava

palpite nem sorria das conversas corriqueiras. Não

estava a fim de absolutamente nada.

- Você nunca recebe visita Canivete? -

perguntou um deles, o Pedro, um novato. Matou dois

caras num assalto, um era o gerente do Banco.

Por um momento, Tomás ficou pensativo.

Visitas... Há muito tempo ele não sabia o que era

aquilo. Também, quem o visitaria? Tudo se acabou.

“No rio da minha vida ninguém aprende a nadar”,

costumava dizer.

Engoliu em seco e não respondeu.

- Cara, tá cansado de saber que Canivete não

gosta de falar destas coisas. Somos velhos conhecidos

e até hoje não sei nada sobre o seu passado.

Dego era um bom camarada. Dos oito, era o

mais compreensível, o mais companheiro. Ele

continuava preocupado com a saúde de Tomás.

- Está melhor?

- Depois do remédio consegui dormir. Valeu

cara!

- Você conversou a noite inteira, chamava o pai,

a mãe, falava de morte... Acho que tua febre passou

dos 40. Você tremia o corpo todo. Teve uma hora que

você apagou! Pensei que era teu fim... Um susto cara!

- Só tive pesadelo, dormi quando o dia estava

amanhecendo.

- Cara, isso é coisa da tua mente! Teu dia tá

chegando... Você vai deixar a gaiola no fim do ano,

tem coisa mais animadora? Reage meu irmão – disse

batendo de leve no seu ombro.

Tomás ensaiou um leve sorriso. Dego

prosseguiu:

- Não acha melhor conversar com o médico?

- Não, estou bem...

- Por que não conversa com o padre? Ele é teu

chegado e pode te ajudar!

- Estou bem cara, pode crer!

- O nome disso é contagem regressiva cara,

cuidado para não morrer de ansiedade. Relaxa, velho.

Daqui a pouco você cai fora, bem longe daqui e vai

seguir tua vida! Agora tem uma coisa que vive

martelando na minha cabeça: tu não recebe visita, mas

de vez em quando ganha doces, bolo, pão... Quem te

espera lá fora?

- Não conheço ninguém. Já disse milhões de

vezes!

Tomás tinha a mesma curiosidade. Era um

mistério intrigante: quando chegava o dia de visita,

sempre recebia uma encomenda. Coisa de comer. O

mais estranho é que nem o carcereiro sabia dizer

quem era a pessoa que mandava aquelas coisas. No

fundo, ele ficava reconfortado com tamanha

gentileza. Quem seria o benfeitor? Por que o

escolhera? Perguntava-se a todo o momento. Eram

perguntas sem respostas. O fato é que havia alguém

lá fora que se importava com ele, que talvez o

conhecesse ou simplesmente gostasse de fazer

caridade.

Aos poucos, a cela se esvaziou. Tomás ficou só.

Estava pensativo. Talvez o Dego tivesse razão, a fase

da contagem regressiva o deixava impaciente,

nervoso, abatido... Sentimentos contraditórios que o

faziam perder o sono, deixando-o à mercê de dúvidas

cruéis: ia sair da prisão, mas não tinha para onde ir.

Não sabia o que fazer o que fazer lá fora, ninguém o

esperava e isso o deixava inseguro. Quanto mais se

aproximava a liberdade, mais crescia o medo de

enfrentá-la. Como seria a vida sem as grades?

Veio à mente a imagem da sua família e com

ela a inevitável vontade de chorar.

“Faz tanto tempo... Por que os meus fantasmas

não desaparecem?” – pensou.

“Você nunca recebe visitas, Canivete?”

Sorriu de si mesmo. Sabia a resposta. Não havia

ninguém à sua espera. Todos se foram para um lugar

distante, desconhecido, misterioso.

Uma lágrima escapou e ele a deixou rolar. Era

uma lágrima fria, quase gélida, daquelas que

aparecem sem querer, para colocá-lo à mercê da

angústia. Tomás tentou evitar as lembranças, mas elas

desfilavam na mente como aranhas que tecem fios de

uma história em que a dor ainda era capaz de fazer

sangrar as mesmas feridas... E então ele mergulhava

solitariamente nas suas recordações.

Morte vida.

Um

“Deus está cansado de saber como é a vida

de cachorro que ele deu pra gente”.

Tomás nasceu num canto esquecido lá no

morro. Era pouco mais da meia-noite quando Maria

começou a ficar incomodada. Contorcia-se de dor à

espera da parteira. A chuva fina sobre o telhado de

zinco ajudou a diminuir a quentura no interior do

barraco. Ali viviam os pais, duas irmãs e agora ele,

que estava chegando para completar a família e

aumentar a pobreza daquela gente.

Dona Belarmina empurrou a porta de leve e

entrou. Deixou o guarda-chuva atrás do tamborete da

sala, prendeu o cabelo numa popa e abriu a maleta.

Sorria paciente, não deu ligança às dores de Maria.

Estava calejada, toda mulher sente, sabia. Todas elas.

Maria não era diferente.

A mãe de Tomás descendia de uma família

indígena, pertencente à tribo das Araras do Pará, que

habitava a margem esquerda do rio Iriri nas

cachoeiras secas e falava a língua Karib. Num passado

que ninguém data, a bisavó materna de Tomás foi

apanhada no laço no meio da mata e virou a mulher

do bisavô, um branco galegado de lábio leporino que

morava em Santarém. Dessa mistura, nasceu Maria,

uma mulher alta, esguia, morena e dona de longos

cabelos pretos. O rosto bem feito apresentava

profundas marcas de expressão, fruto do sofrimento,

dos anos de luta, frustração, cansaço, desespero e

medo. Mas era mulher de fibra, calejada pela vida,

daquelas que aceitam tudo - inclusive a dor -, com

bravura e pitadas de ternura. Foi assim naquela

madrugada. Ela suava e mordia com força o lábio

inferior, revirava-se para conter a dor intensa, mas

não chorou. Buscava a esperança lá no fundo da sua

história, assim acalentava a dor e impedia o pranto.

Depois de muito esforço Maria pariu. O

menino enxergou a luz do mundo. Agora ela podia

respirar em paz, tudo correu bem, chegou outro filho.

O milagre da vida se repetiu num cantinho esquecido,

lá no morro.

Deram-lhe o nome de Tomás, nasceu chorão,

magro, fraco e miúdo. Naquela madrugada, o rebento

abriu forçosamente os olhos pequeninos para um

universo diferente dos contos de fadas. A família que

o acolheu era coroada com a miséria e coberta com o

manto trágico da violência. No morro, materializou-

se a realidade de um menino raquítico que começava

a se inquietar, ávido para enxergar a luz de um

mundo ácido, sem espaço para qualquer fantasia.

- É menino! – Anunciou Estela alegremente.

A parteira cortou a ponta do cordão, amarrou,

fez curativo, deu o primeiro banho, apanhou o

guarda-chuva, depois se despediu. O menino ficou

enrolado nos panos e as três o examinaram

detalhadamente. Faziam festa em comentários.

- Vai se chamar Tomás!

- Que bom! Temos um irmãozinho! – Exultou

Cida, a mais nova.

Nem sinal do pai...

Canivete nasceu Tomás. Menino magro,

moreno, cabelos pretos como os da mãe índia. Maria

o abraçou carinhosamente. Tentou desprender o riso,

mas não conseguia romper o nó que se lhe formava no

coração. Presságios... Por dentro a alma chorava de

dor. Temia o futuro do menino. Pensou em Sebastião,

o esposo, conhecido no morro como Bastião Pilantra,

famoso pelas trapaças, bebedeira, assaltos e centenas

de brigas. Naquele dia, ele não estava no barraco. Não

gostava de crianças. Não queria a gravidez. Não a

ajudou em nada.

Presságios...

Agora ela prendia os olhos no tempo, vez por

outra se voltava para o pequeno que dormia em seus

braços. Era um olhar penetrante, meio apagado, como

se quisesse chorar, mas não encontrasse o caminho

das lágrimas. O triste olhar da mãe de sangue índio

ficaria eternamente vigilante sobre a vida e os atos de

Tomás. O olhar estava tatuado em sua alma,

estampado em seus sonhos. Ah, como ele a amava,

como sentia a sua falta.

- Não beija o menino Cida. Ele pega sapinho.

Beijar criança novinha deixa o rosto todo empipocado

– advertiu a mãe.

Cida sorria enquanto alisava a fronte do bebê.

Mas a alegria não durou muito. Sebastião tinha

acabado de chegar. Ele costumava abrir a porta de

supetão, como se tivesse a intenção de flagrar alguém

da família aprontando algo contra si, desconfiava de

tudo e de todos.

As meninas trataram de engolir o canto.

Ninguém ousou abrir a boca em sua presença.

Sebastião se aproximou. Maria estava na cama,

impotente. Ele se manteve firme, fazia absoluta

questão de imprimir sua postura de dominador. O seu

olhar ameaçador estava à espera de alguma

explicação. Ninguém disse nada. Então ele rompeu o

silêncio, sem desviar os olhos da esposa.

- Já pariu?

Maria limitou-se a baixar a cabeça. O silêncio

foi seu melhor aliado, ajudava a disfarçar o arrepio de

terror que a percorria, deixando o seu coração aos

pulos. Engoliu em seco e, de vez em quando,

furtivamente, espiava por baixo. Por tantos anos, ela

dividiu a cama com aquele homem e ele não lhe

passava de um estranho.

Sebastião Pereira de Jesus, era um homem

forte e corpulento, alto, moreno, meio calvo e

bigodudo. Tinha quarenta e três anos. As vastas

sobrancelhas emprestavam-lhe um ar sombrio que

contrastava com os olhos castanhos. Era um homem

que não costumava sorrir, mas tinha o poder de

espalhar terror e desprezo em todo lugar, começando

pela própria família. Sempre que chegava em casa,

deixava escapar o inconfundível cheiro de cachaça,

mas, naquele dia, estava sóbrio.

- Um macho! – Disse, aproximando-se da velha

cama.

Examinou o menino detalhadamente, sem

tocá-lo. Voltou-se para a esposa. Ela permaneceu

quieta, repleta de medo. Sabia que o seu drama estava

apenas começando e podia adivinhar as intenções

maléficas do esposo. No afã do desespero, buscou

coragem e sua voz baixa, compassada e trêmula

rompeu com o mutismo, ao implorar:

- Não faz isso, pelo amor de Deus!

Ele não se incomodou. Agiu como se ela não

estivesse ali. Não havia qualquer sensibilidade em

suas atitudes. Ele era o dono da mulher, dos filhos e

do barraco. Ninguém ousava contrariá-lo.

- Muito bem! – Gritou – mais um que eu tenho

que sustentar!

- Eu... – balbuciou a esposa, sem encontrar as

palavras adequadas.

- Cala a boca! – Gritou mais alto ainda – A

verdade é esta, além de tudo é magrelo e fraco. É bem

capaz de morrer de fome! Até que não seria nada...

Deus está cansado de saber como é a vida de cachorro

que ele deu pra gente!

Tomou a criança nos braços fortes e peludos.

Em seguida, voltou-se para as meninas:

- E vocês, parem com essa choradeira, aqui não

é velório! Levante Cida, vá procurar um caixote e você

Estela, ajeite mais panos!

A mãe sentiu calafrios. Estremeceu. O esposo

tencionava livrar-se do filho. Tentou reagir, mas não

teve força suficiente. Implorou, buscou a compaixão,

mas ela não se manifestou no coração daquele

homem.

- Em nome de Jesus, não faz isso, eu te peço!

- Ora, quem é que manda aqui? Você só presta

para parir! E o resto? Quem cuida do resto? Eu tenho

certeza que alguém vai cuidar melhor dele do que

nós!

- Não tira o menino... É o primeiro homem que

nasce! – Disse, tentando persuadi-lo. Preferia morrer

na mais trágica miséria, a ter que se desfazer de

qualquer um dos filhos, mas nada era capaz de abalar

a decisão do esposo.

O menino voltou a chorar, era fome, a mãe o

tomou nos braços e o pranto cessou. Sugava,

gulosamente, o seio gordo. O pai continuava o

sermão.

- A coisa tá ficando feia. Estou correndo risco

de ser preso a qualquer momento e aí eu quero ver

como esse menino vai viver! Você prefere ver o garoto

morrer de fome?

- De fome ele não morre. Eu tenho bastante leite

e com fé em Deus...

Sebastião a interrompeu bruscamente, odiava

ouvir falar em Deus.

- Lá vem você com seu Deus misericordioso.

Na vida, a gente tem que pensar em comer, em ganhar

dinheiro e não em Deus! Ele não enche a barriga de

ninguém! Você ainda acredita nisso? Deixa de

bestagem, Deus não passa de um consola-tolo e você

é uma tola!

- Não fale assim, é pecado.

Ele soltou uma estrondosa gargalhada.

- Você não sabe mesmo o que é a vida, não é

Maria? Deus é pai dos aleijados, dos pobres, dos cegos

e dos diabo-sei-lá-o-quê! Mas que pai é esse, que vê a

desgraça dos filhos e não faz nada? Ora, não me venha

com besteira! O seu Deus não passa de uma mentira.

Verdade é o diabo, que só quer ver o mal e nunca

promete nada. Ele existe!

Maria fez o sinal da cruz. Nunca suportou o

sarcasmo com as coisas de Deus, sempre foi uma

mulher religiosa e a fé era sua camisa de força, sua

segurança. Era ainda jovem, apenas 31 anos, mas, por

conta do sofrimento, aparentava mais... Quando se

casou com Sebastião, no tempo que moravam no

interior da Bahia, não passava de uma adolescente.

Casou pensando que mudaria de vida, teria um lar

decente ao lado daquele que um dia amou de

verdade. Mas de mulher simples, filha de camponeses

ribeirinhos que plantavam na várzea e viviam do

pescado, transformou-se na tímida esposa de um

bandido fracassado, que nunca se sobressaiu no

mundo do crime: tudo o que roubava gastava em

minutos, pagava dívidas com jogo, bebida,

prostituição e muita farra. Seu trunfo era a fama de

mau. Seu maior legado. Sabia que era odiado por

todos e adorava ser apontado como o terror da

vizinhança.

Parte do sustento da família vinha das costuras

que ela fazia e os doces que as meninas vendiam

quando o pai estava ausente – ele nunca permitiu que

elas trabalhassem fora. O que elas ganhavam era coisa

pouca, mas fruto de esforço e honestidade. Já a outra

parte vinha dos roubos que Sebastião cometia. Maria

nunca aceitou a vida errada do esposo, mas sabia que

ele não estava disposto a mudar e nem pensava na

hipótese de tentar um trabalho honesto. Sebastião não

tinha vergonha de ser um bandido mal falado que

envergonhava a família e a comunidade. Ele roubava

e a família comia do fruto roubado ou então a morte

pelo pão.

No passado, Sebastião era boa gente. Nasceu

numa família pobre do sul da Bahia que sobrevivia

catando cacau para os fazendeiros de Itabuna. Ainda

adolescente, ele já era pau para toda obra. Ganhava

uma miséria enquanto os fazendeiros se enriqueciam

cada vez mais. Era o auge da cultura do cacau. Quem

tinha cacau tinha poder, era a própria tradução de

desenvolvimento e riqueza. Ironicamente, o luxo e a

fartura estavam infinitamente distantes da realidade

do jovem Sebastião. O sonho dele era ter um pedaço

de terra e ser o dono, só assim podia plantar algumas

ruas de cacau no meio da mata e sustentar a família.

Mas não passava de sonhos. Um dia, na faixa dos 17

anos, conheceu Maria, que também vivia uma

situação parecida e logo estavam apaixonados.

Começaram o namoro sem qualquer perspectiva de

futuro, mas a ausência de possibilidades foi

transformando Sebastião num jovem revoltado. A sua

maior vontade era sumir da Bahia, passou a odiar os

fazendeiros, o cacau. A mina de ouro que um dia foi o

seu sonho se transformou num pesadelo cruel e

contraditório. E como se não bastasse, certa feita, seu

pai foi picado por uma cobra venenosa, no meio da

mata, enquanto trabalhava na colheita. O homem

morreu sem que ninguém fizesse nada. O patrão

estava na cidade e o pobre não resistiu. A perna

inchou tanto que quase estourou. Não teve jeito. Com

a morte do pai, Sebastião passou a ser o senhor da

casa. Os três irmãos mais novos estavam sob a sua

responsabilidade. Tivera que adiar o casamento e

sepultar o sonho de ser um proprietário.

Com a jovem Maria, o drama foi parecido.

Ainda garota, conheceu o sofrimento no interior do

Pará. Perdeu a mãe muito cedo, vítima do câncer, a

doença maldita. A mãe deixou cinco filhos de herança,

Maria era a mais velha, a única mulher. Teve que

assumir a casa e os irmãos. Um ano depois, o seu pai

resolveu se mudar para o sul da Bahia, trabalhar com

os primos na região de Itabuna. A longa viagem em

cima do pau-de-arara, foi apenas o começo de mais

uma história de sofrimento.

Quando chegaram, improvisaram uma

palhoça, onde tinham que dormir amontoados. Na

Bahia, viviam mudando de fazenda. Foi numa dessas

andanças que Maria conheceu Sebastião. Aquele

jovem de traços fortes, olhar misterioso, cabreiro,

sempre sério, despertou-lhe alguma atração. Ele a

olhava timidamente, meio sem jeito e custou a tomar

qualquer iniciativa. A tímida Maria, sangue de índio,

foi a sua primeira namorada.

A morena do Pará vivia desconfiada e sempre

quieta. Gostava de rezar, trabalhar na roça e cuidar do

rancho. Não queria pensar em namoro, mas, aos

poucos, foi notando o interesse do jovem Sebastião.

Quase não tiveram tempo de se conhecer, dois ou três

encontros depois, já estava marcado o casamento. No

fundo, um tentava se amparar no outro.

Assim que iniciaram a vida de casados, os

desafios começaram. A pobreza era uma ameaça

constante e a sobrevivência na fazenda era cada vez

mais difícil. Um surto de meningite atacou a região e

os fazendeiros começaram a reduzir o número de

empregados. Dois irmãos de Maria foram atingidos

pela doença. Um médico se apresentava uma vez a

cada quinze dias, mas não resolvia a situação. O pai

de Maria foi outra vítima. A jovem entrou em

desespero e, a partir de então, os dois irmãos foram

morar consigo, espremidos no barraco minúsculo.

Mesmo com a intervenção médica, morreram quinze

crianças e sete adultos na região cacaueira.

Um ano depois, Maria engravidou da primeira

filha. Estela nasceu saudável, mas custava a ganhar

peso. A mãe secou o leite, a garota ficou desnutrida e

só não morreu, porque Sebastião trazia leite de cabra

dos criadores vizinhos. A família cresceu e a miséria

também. Os irmãos de Maria decidiram ganhar o

mundo. Um fazendeiro os levou para trabalhar em

outra fazenda, bem longe dali. Maria foi obrigada a

concordar, tinha consciência que a miséria não cede

lugar ao sentimento, mas à sobrevivência. Foi a última

vez que ela viu os irmãos. Nunca soube dizer se eles

estavam vivos ou mortos. O mesmo aconteceu com a

família de Sebastião. Os irmãos ganharam o mundo,

se mudaram para outras terras e nunca mais deram

sinal de vida. A família estava reduzida ao casal e uma

filha.

Ainda na fazenda, Maria voltou a engravidar.

Novamente uma menina. A morena recebeu o nome

de Aparecida e quase morreu ao nascer. Cida nasceu

raquítica, pesava pouco mais de dois quilos. Mas,

contrariando a lei do destino, sobreviveu e tornou-se

uma garota bonita e saudável. Não fosse o

testemunho da mãe, era impossível acreditar que a

menina tivesse passado perto do vale da morte.

Quatro anos mais tarde, Sebastião tomou a

decisão que lhe martelava a mente desde que se casou:

mudar para São Paulo, procurar um meio de vida

mais rentável. Só não fez isso antes, porque Maria não

queria arriscar a sorte. Tinha medo da capital e das

surpresas que poderiam aparecer por lá. Mas acabou

aceitando e não podia ser diferente: em casa ou na

roça, seus olhos enxergavam o fantasma da fome e o

medo apertava seu coração. Buscou no medo, a

coragem. No pesadelo, a esperança. Só tinha duas

opções: tentar o desconhecido ou morrer sufocada

pela teimosia. Escolheu a primeira. E como se não

bastasse, o fazendeiro começou a mandar embora a

maioria dos empregados, venderia a fazenda a

qualquer momento, o cacau estava em crise. Sebastião

foi obrigado a sair, precisava buscar outro rumo. O

dinheiro que recebeu não pagava os anos de

sofrimento, mas era pegar ou ficar de mãos abanando.

Juntou as poucas coisas e partiu com a família. A terra

da garoa podia ser a grande chance de viver com

dignidade e, com um pouco de sorte, encontrar,

talvez, a paz tão sonhada.

No começo as coisas correram bem em São

Paulo. Sebastião conseguiu emprego de servente de

pedreiro, ganhava pouco, mas resolvia. Arranjou um

canto lá no morro e a família começou a viver outra

parte da sua história. O problema é que a obra ficou

pronta e ele ficou desempregado. As coisas

começaram a apertar. Tudo ficou mais difícil na

capital – lugar que ninguém conhece ninguém e cada

um se vira como pode. A paz tão sonhada pela família

era algo distante. Aí, foi aquilo: sem emprego certo,

Sebastião começou a viver de bico, fazia de tudo para

ganhar um trocado a mais, pulava de galho em galho

feito macaco na selva: vendeu picolé, engraxou

sapato, catou lixo… Certa vez foi contratado para

carregar cereais na estação ferroviária. O emprego

parecia definitivo, mas durou menos de dois meses.

Foi mandado embora, sem direito a nada, porque

cometeu o primeiro roubo: um caixote de batata

inglesa.

- Bastião, a comida acabou.

- Vou dar um jeito...

- Mas como? Você só vai receber no final do

mês!

- Já disse, dou um jeito! Vou trazer um caixote

de batata. O fiscal vai distribuir pra peãozada, ainda

hoje!

- Batata? Bom, pelo menos dura bastante. A

gente cozinha com sal e dá pra enganar a barriga...

- É.

- Estela está com febre e vomitadeira...

- Foi aquele feijão velho, tava com um gostinho

azedo!

- Só tem leite em pó que ganhei da merendeira

da escola. O pacote estava vencido...

- Vou trazer um saco de batata ainda hoje! Se

Deus quiser...

Mas as batatas nunca chegaram. O pobre foi

apanhado em flagrante pelo vigia. O guarda nem

pensou duas vezes, aplicou-lhe um corretivo que o

deixou com o olho roxo e o entregou ao fiscal da

estação. Foi escorraçado na mesma hora. Voltou para

casa completamente humilhado.

Morte-vida

Depois do primeiro roubo, Sebastião nunca

mais conseguiu outro emprego. Não tinha dinheiro

para pagar o aluguel do barraco e foi despejado. As

meninas tiveram que deixar a escola. Sem qualquer

alternativa, a família foi morar na rua. A sorte é que

Maria conseguiu um emprego numa casa, fazia a

faxina e o que ganhava dava para comprar pouca

coisa. A patroa foi mais que uma mãe: cedeu-lhe uma

parte do terreno que tinha ao lado do esgoto. Foi ali

que Sebastião improvisou o barraco, cobriu com

papelão e um pedaço de lona preta. A única coisa de

valor que tinham era uma velha máquina de costura

manual. Maria costurava para algumas vizinhas, o

pouco que ganhava ajudava nas despesas. As

encomendas que recebia eram de pessoas pobres

como ela: um remendo aqui, um botão acolá, um

retalho ali...

Foi assim que Sebastião resolveu se dedicar

realmente ao novo ofício. Na bandidagem, ninguém o

mandaria embora. E mesmo se não quisesse, teria que

criar uma saída urgente. Maria adoeceu, ficou de

cama e as meninas começaram a passar fome. Não

deu noutra. Sebastião se transformou num ladrão por

necessidade, sem muitas opções. Porém, com o passar

do tempo, foi criando gosto pelo ofício marginal,

abandonando qualquer possibilidade de levar uma

vida normal, honesta. Nesse percurso, foi preso

inúmeras vezes, mas, nunca se remediou e nem se

tornou um grande bandido. Ganhava e perdia na

mesma proporção, arrastando a família para um

buraco cada vez mais profundo. Sebastião virou

mesmo um outro homem. Dormia em prostíbulos,

bebia e descontava as suas frustrações na família,

espancava a esposa e as filhas por qualquer motivo.

Para ele, o amor era coisa do passado. A família só

dava despesa, Deus não prestava. A verdade, ele

sabia, cada um por si. Matar ou morrer.

Depois que virou bandido experiente,

Sebastião deixou de lado a família, nunca se

incomodou com a sobrevivência, gastava o dinheiro

com mulheres, apostas e bebida. O que sobrava para

a família era o mínimo; a miséria continuava intacta.

E então a vida da morena do Pará se

transformou num verdadeiro inferno. A felicidade era

algo que não conhecia. O que a mantinha firme eram

os filhos e as orações. Ela nunca perdeu a fé e Jesus era

o seu consolador.

- Esta caixa serve? – perguntou Cida.

- Serve, e os panos?

- Aqui – respondeu Estela.

Sebastião forrou o velho caixote com os

retalhos e depositou o filho dentro como se fosse uma

mercadoria qualquer. Era um homem frio, jamais

deixou que a emoção o dominasse por completo. Agia

sem titubear, tinha certeza dos seus atos. Não se

incomodou com os pedidos de Maria ou as lágrimas

das filhas. Nem teve tempo para refletir que aquele

garotinho jogado no caixote era o seu filho, a sua

carne, o seu sangue.

- Ele ainda será muito feliz – disse.

Cobriu o bebê com uma coberta de algodão,

apanhou o caixote com cuidado e dirigiu-se para a

porta. Maria apertou as continhas do terço nas mãos e

lágrimas quentes vieram-lhe aos olhos.

- Volto logo – disse.

Dirigiu-se à rua em passos apressados.

Maria deu vazão ao desespero, afogando a sua

dor no velho colchão. Estela saiu em prantos,

enquanto Cida tentava consolar a mãe. Para aquela

dor não havia qualquer consolo.

...

Ele andava sem rumo. Assobiava qualquer

coisa e seu assobio perdia-se dentro da noite. O

silêncio voltou a dominá-lo. Era noite escura, soprava

um vento frio. Todos dormiam. A cidade era um único

sono.

Depois de carregar o filho feito um bichinho,

Bastião encerrou a caminhada diante de uma linda

casa. Colocou o caixote no capacho, acionou a

campainha e desapareceu no primeiro beco. Mas, eis

que, em meio à sombra escura das árvores, um vulto

tomou corpo: Estela. A filha mais velha seguiu o pai e

viu tudo. Assim que ele se afastou, ela correu até o

caixote, levantou a coberta e viu que o bebê estava

bem, ficou aliviada. Porém, a janelinha acima da porta

se abriu e uma criada mostrou os olhos.

- O que deseja menina?

- Nada, não senhora! Foi um moleque que

chamou e saiu correndo... – respondeu,

completamente insegura.

- Que molecada! E você? O que leva nesta

caixa?

Estela afastou-se rapidamente. Torcia para que

o pequeno Tomás não chorasse.

- É roupa usada... Estou pedindo roupas –

empalideceu. Sabia que não era uma resposta

convincente.

- Pedindo roupas a esta hora da noite? Essa

história não está bem contada. Quer saber de uma

coisa? Desaparece daqui menina! O meu patrão não

vai gostar dessa história. Suma antes que eu chame a

polícia... Suma daqui! – gritou.

Estela saiu em disparada, balançando o caixote.

O bebê chorava alto.

Enquanto isso, Sebastião julgava que a missão

de desfazer-se do filho estava cumprida. Maria estava

sem forças para derramar lágrimas e limpar o leite que

pingava dos seios gordos, molhando a camisola

branca. A morena do Pará estava arrasada,

contemplava o vazio. O olhar apagado e distante

buscava seu bebê indefeso, jogado num lugar

qualquer, no meio da noite.

- Como a gente ia poder sustentar mais uma

boca nesta casa?

Sebastião buscava justificar a sua atitude.

- Como sempre sustentamos os outros. A gente

sempre encontra um jeito, Bastião. O pobrezinho nem

bem acabou de nascer e agora está no relento, Deus

sabe onde...

- Ora, eu botei o buguelo na frente de uma casa

de bacana. Tenho certeza que ele terá um futuro

melhor que o nosso!

A porta se abriu e Estela entrou ofegante.

Estava nervosa, mas determinada. Aproximou-se

firmemente de Sebastião, sem temer o seu olhar de

reprovação.

- Pai, pode me bater! Eu te segui o tempo inteiro

e vi quando você colocou o bebê na porta da casa. Fui

lá e peguei de volta. É o primeiro menino que nasce e

não me arrependo do que fiz!

Todos ficaram em silêncio. Maria sentiu-se

aliviada, o bebê estava são e salvo, mas sabia que

Sebastião ia castigar a filha pelo atrevimento. Estela

manteve-se resoluta, retirou o bebê do caixote e o

depositou nos braços da mãe. Maria orava em

silencio, lembrou-se de outra Maria, a mãe de Jesus e

agarrou-se desesperadamente às pontas do seu manto

sagrado, rogando-lhe, em pensamento, a sua

intercessão:

“Nossa Senhora, passe à frente do ódio de

Bastião, alivia a nossa dor, em nome do sangue do teu

filho Jesus, não abandone a gente mãe querida”.

Sebastião continuou em silêncio.

- Agora está feito! Pode bater quantas vezes

quiser, mas não tire o nosso irmãozinho – disse a filha.

O ato de bravura de Estela o deixou sem ação,

meio perdido. Permaneceu num mutismo

inexplicável, mas não levantou um dedo contra a

filha. Estava sem forças para reagir. Seria a tal

emoção? Ninguém saberia dizer, o fato é que ele

decidiu quebrar o silêncio, para anunciar a sentença:

- Vamos dormir, cansei de ouvir tanta

bobagem!

Dois

“O terror tomava conta da sua alma, terror

em forma de pai”

Estela era a mais branca da família. Uma garota

linda, dona de expressivos olhos castanhos, lábios

carnudos, longos cabelos morenos e ondulados.

Aparentava ter mais de 15 anos. Embora cultivasse a

tolerância, tinha pavio curto, nunca foi de aturar

desaforo. A cisma que herdou da mãe, a tornou uma

jovem desconfiada, deixando-a sempre alerta diante

daqueles que se aproximavam com segundas

intenções. Era autêntica, não se deixava abater diante

dos obstáculos, sempre disposta e nunca se esquivou

dos desafios que a vida oferecia. Defendia a

sobrevivência da família com a maior dedicação:

vendia doces na rua, costurava, fazia faxina na casa de

bacana e se preciso fosse, não tinha qualquer receio de

mendigar. Só de uma coisa não abria mão: a

dignidade. Embora muito assediada, não gostava de

ficar com qualquer um e abominava a prostituição.

Mas no cantinho tímido do seu coração, escondia-se

uma jovem romântica, que sonhava com uma vida

normal, queria encontrar um bom esposo e ter uma

família feliz.

A morena Cida era um ano mais jovem, tinha

cabelos pretos, escorridos e os lábios grossos, uma

índia graciosa. Assim como a irmã, fazia de tudo, mas

não conseguiam emprego fixo. Assim que as pessoas

descobriam a procedência de ambas, imediatamente

eram demitidas. Não tinham bons antecedentes, por

conta da má fama do pai.

Apesar de tudo, os três eram unidos. Mas,

quando Sebastião estava presente, o clima de

despreocupação sumia, evaporava-se

instantaneamente. Ficava o medo, a revolta a dor e o

conhecido olhar de Maria: apagado, doloroso e triste.

A certeza de uma vida amarga que ela não desejou

para nenhum dos filhos. Voltava o pesadelo das

irmãs: seriam felizes algum dia? E quanto ao pequeno

Tomás? O que poderia esperar diante de uma

realidade tão cruel e sem qualquer possibilidade de

ruptura? Todos os sonhos eram destruídos pela

simples presença de um homem chamado Sebastião

Pereira de Jesus.

Nesse mundo, Tomás cresceu. Era magro,

miúdo, esperto e sorridente. Ignorado pelo pai,

amado pela mãe, adorado pelas irmãs.

O barraco foi reformado, metade continuava de

madeira, a cozinha e uma parte das paredes laterais

eram de alvenaria e material de refugo. O telhado

estava dividido, telha de amianto numa parte, a outra,

de zinco. Nas noites de frio dava para ouvir a música

do vento que entrava pelas frestas da madeira. As

cobertas ficavam geladas. Se chovia, a coisa ficava

pior: goteiras por todo canto, até em cima das camas.

Ninguém dormia. Quando a chuva vinha

acompanhada de raios e trovões, era um espetáculo

com requintes de terror. Sebastião nunca estava em

casa nesses momentos.

Certa feita, num desses temporais, a família foi

surpreendida pela ameaça de desabamento. Tomás,

ainda pequeno, dormia com a mãe. Tudo aconteceu

em questão de segundos: o trovão, o relâmpago que

clareou o barraco e o grito de Maria. Ela deu um salto

da cama, apertou o menino contra o peito, acordou as

filhas, anunciando:

- Vamos sair agora! O barraco vai cair!

Os três saíram. Ficaram debaixo da chuva

esperando o barraco cair. Felizmente isso nunca

aconteceu. Quando a chuvarada parava, voltaram

encolhidos, tremendo de frio, completamente

encharcados, mas o velho barraco continuava de pé.

Maria tratava de acalmar os filhos:

- Vou fazer um café...

Cida sofria com o tempo frio e úmido por conta

da bronquite. Qualquer resfriado a deixava ofegante e

com chiadeira. Naquele dia, ela tossiu ofegante. O

chiado logo se manifestou.

- É constipação, tire essa roupa, menina. Se

enrole na coberta e enxugue bem a cabeça... Vou fazer

um chá de erva-doce com limão e melaço.

Apesar da chuva e dos perigos que podia

causar, a família de Tomás sentia-se mais segura sem

a presença violenta de Sebastião. Ele tinha o poder de

amedrontá-los e colocá-los em risco maior do que

qualquer temporal.

Os três se sentaram no banco de madeira, bem

perto do fogão de lenha. As brasas vivas forneciam

um calorzinho aconchegante. Tomás voltou a dormir,

deitou a cabeça no colo da mãe.

No canto, perto da porta, ficava a geladeira

azul. A porta era escorada com uma tora de madeira.

Um dia que Sebastião chegou bêbado, bateu a porta

da geladeira com tanta força que ela relaxou,

precisava de uma escora. Ao lado, perto do armário

onde ficavam os utensílios da cozinha, tinha o fogão a

gás que só vivia entupido. Apenas duas bocas

funcionavam.

A única sala era o canto mais espaçoso. Havia

uma mesa de madeira, quatro cadeiras e no canto, um

sofá amplo, fora de moda, saindo as molas. Maria

jogava dois travesseiros nos buracos e pronto, ele

ficava novo. Aquele sofá foi a cama de Tomás por um

bom tempo. Maria jogava as cobertas e ele dormia ali

mesmo. Havia apenas um quarto, dividido em dois,

por uma cortina florida.

Na rua de cima, perto da feirinha, havia uma

boca de fumo disfarçada de casa noturna. O barzinho

da recepção era mal-amanhado, sujo, o ar carregado

do cheiro acre das bebidas, mesclado com o cheiro de

gordura rançosa que se desprendia do úmido balcão

de madeira. As paredes encardidas eram decoradas

com calendários de mulheres nuas e carros de luxo.

Acima do eixo do ventilador, preso ao teto, um

amontoado de fios de teias de aranha se prendia às

hélices do aparelho, dando-lhe a aparência de lustre

de castelo mal-assombrado. O ventilador fazia muito

barulho e pouco vento. Esses detalhes não

atrapalhavam o fluxo de clientes que entravam e

permaneciam horas naquele lugar pitoresco.

Atrás do aparente desleixo, firmava-se o ponto

estratégico para traficantes, usuários e prostituição.

Nos fundos do bar, havia alguns quartos onde as

prostitutas se deitavam com seus clientes. Sebastião

era um deles, enfrentava qualquer briga por uma

noitada ao lado das mulheres, aliás, o bar também era

palco para o costumeiro festival de pancadas e

centenas de discussões. Diversas vezes o ambiente

ficava todo destruído, mas no dia seguinte, tudo

voltava a funcionar normalmente. O proprietário se

chamava Toninho troca-troca, um ex-presidiário.

Apesar de possuir um milhão de defeitos

Sebastião era ciumento e tinha lá as suas razões,

afinal, a esposa era jovem e bonita, as filhas estavam

moças e despertavam o interesse e a fantasia dos

rapazes.

Um deles se encantou com a Estela, chamava-

se Carlos. Era bom moço, carregador de cereais da

feirinha. O namoro começou às escondidas, os

encontros furtivos aconteciam quando Sebastião não

estava na área. De vez em quando ele sumia, ficava

sem dar notícias por um tempo, depois aparecia e

nunca explicava o sumiço. Quando roubava, ficava

escondido e só depois que as coisas esfriavam, voltava

com a cara mais limpa do mundo e dinheiro no bolso.

Naqueles períodos de ausência paterna a família

ficava em paz e tudo era muito bom. Mas quando

Sebastião voltava, as feridas sangravam outra vez e a

insegurança não se desgrudava dos quatro.

O sonho de Estela era levar uma vida normal,

mas não sabia o que fazer. Sentia vontade de namorar,

como qualquer jovem da sua idade, mas isso não lhe

era concedido. O pai costumava dizer que “filha de

Bastião Pilantra não se enraba com macho nenhum”.

As meninas seguiam ao pé da letra. Morriam de medo

do pai.

Um dia o Carlos apareceu sem avisar, fincou os

pés na frente do barraco e insistiu:

- Estela, eu preciso falar com você!

- Carlos, você está louco! Vá-se embora! Se meu

pai te pega, ele te mata... Por favor, vá embora!

- Não, desta vez eu vou enfrentá-lo!

- Você não sabe o que está dizendo. Aqui todo

mundo tem medo do papai. Vá embora enquanto é

tempo, ele vai chegar a qualquer momento.

- Já disse que vou ficar. Eu gosto de você, não

quero namorar escondido, vamos viver uma relação

aberta. Não somos crianças, eu ainda vou te levar

desse lugar para sempre!

- Pirou cara? Você é pobre como eu; não

podemos sair pelo mundo assim...

- Você é covarde! Por você eu sou capaz de

tudo. Vamos sumir deste inferno, pelo menos assim

seremos felizes!

- Você acha mesmo que eu teria coragem de

deixar a minha mãe nas mãos dele? E a Cida? É

incapaz de qualquer coisa. Além disso, tem o Tomás...

Falar é fácil meu amor, mas a vida é bem diferente.

- Pense em você, pense em mim, na gente!

Vamos construir nossa família e com o tempo quem

sabe, a gente vem buscar a sua mãe...

- Meu querido, a vida não é como as novelas.

Você só tem 17 anos. Sabe o que vai acontecer se a

gente fugir? O meu pai vai atrás e mata a gente! Ele é

um homem perigoso, morre de ciúmes da gente e ai

daquele que tocar num fio de cabelo de uma de nós...

Vá embora, por favor! Depois a gente se encontra em

outro lugar, aqui é perigoso!

- Não, eu não irei embora!

Sem titubear ele a abraçou, beijando-a nos

lábios. Estela se soltou com o coração aos pulos, era

dia claro e os vizinhos estavam olhando.

- Vá embora Carlos.

Naquele momento Cida apareceu, estava

preocupada com a irmã.

- O pai vai chegar a qualquer momento! Vá

embora Carlos, se ele pegar os dois eu nem quero ver!

- Eu vou ficar. Resolvi enfrentar o famoso

Bastião...

Estela se desesperou. Implorava para que o

rapaz fosse embora, mas ele não se movia. A pobre já

não sabia o que fazer. Temia o pior...

- Pelo amor de Deus, vá embora!

Na descida do morro, a figura de Sebastião

tomava corpo, aproximando-se cada vez mais. Carlos

não se moveu, estava disposto a enfrentá-lo.

- O papai está chegando! - Avisou Cida ao

avistar o pai.

- Vá se embora, ainda está em tempo... -

choramingou Estela, coração aos pulos.

Sebastião se aproximou meio trôpego, estava

embriagado, mas consciente. Cida afastou-se,

arrastando Tomás pela mão, assistiam à distância. O

povo apreciava com certo entusiasmo e comentavam

entre si.

Sebastião agarrou o rapaz pelo braço e

começou a berrar perguntas. Cida tremia sem saber o

que fazer. Estela chorava.

- O que você está querendo com a minha filha

seu porra? - Gritou.

- Eu gosto da Estela e quero namorar sério com

ela! - Respondeu firmemente o rapaz.

- Será que ouvi bem ou estou sonhando? -

Perguntou zombeteiramente, fechando um olho e

arregalando o outro, mirando o rapaz.

- Eu gosto da sua filha, seu Bastião e quero que

o senhor fique sabendo do nosso namoro e... – Mas

Sebastião não o deixou continuar, desfechou-lhe um

soco que o rapaz caiu inerte. A gargalhada foi geral.

Cida soltou um grito, puxou Tomás para o interior do

barraco. Sebastião deixou o rapaz estendido e entrou

arrastando Estela pelo braço. Ela chorava

copiosamente, completamente humilhada. O Carlos

foi socorrido pelas pessoas e desde então, nunca mais

se ouviu falar dele. O primeiro amor de Estela.

Primeiro e último.

Sebastião estava furioso, sacudiu a filha com

força, enquanto protestava aos berros:

- Sua cachorra - gritou histérico - você quer

virar uma puta? Não vê que os caras só querem saber

de sacanagem?

Desferiu uma bofetada no rosto da filha, um

filete de sangue correu sobre o nariz. O pai não se

importou e ninguém podia socorrê-la, a mãe não

estava presente, tinha ido à igreja.

- Quer dar o rabo? Filha minha não vira puta!

Nem que eu morra, mas isso eu não vou deixar! Você

ainda vai me desobedecer?

O pranto não a deixou responder. Novo

bofetão.

- Responda!

- Não... - respondeu em lágrimas.

Maria entrou correndo. Ouviu de longe os

gritos e sabia que o marido estava castigando as filhas.

- Santo Deus, pare com isso Bastião!

Ele se voltou feito um cão feroz e encarou a sua

nova vítima. Empurrou a mulher com violência

contra a parede da frente.

- A culpa é toda sua! Em vez de ficar aqui,

tomando conta da casa, fica socada na maldita igreja!

Sabe o que eu vi? A sua filha mais velha de papo com

um moleque na frente do barraco. Se você não tivesse

saído, nada disso teria acontecido! Eu já lhe disse que

não quero saber de oração!

Sem esperar qualquer resposta, saiu

apressadamente em direção ao quarto. Pouco depois

começou a roncar como se nada tivesse acontecido. A

pancadaria fazia parte da rotina daquele homem.

Estela continuou chorando. Maria tentava consolá-la.

- Oh! Mamãe, não foi nada disso...

Maria levantou-se e a abraçou, não sabia o que

dizer diante de tanta humilhação. Falar o que numa

situação como aquela?

- Eu acredito minha querida. Mas não pode

contrariar seu pai. Ele é muito nervoso.

- Foi o Carlos. Tanto que eu pedi que fosse

embora e ele não foi. Disse que ia ficar e enfrentar o

papai frente a frente. Ele queria a permissão para

namorar... Pobre Carlos! Ganhou um soco tão violento

que desmaiou... Eu fui a culpada!

- Não chore. Eu sei que você é uma boa menina

e não fez nada errado. Mas é o seu pai, precisa

perdoar!

- Nunca o perdoarei! Eu não aguento mais... –

tentou afastar o choro que a voz trêmula denunciava

- Eu nunca serei como as moças da minha idade...

Ninguém vai se interessar por mim, pois temem o

meu pai. Acho que eu e a Cida vamos morrer solteiras!

- Não diga isso, Bastião pode escutar...

Por um momento ela parou de chorar, limpou

os olhos e encarou a mãe. Baixou o tom de voz e

afirmou seriamente:

- Eu sei muito bem porque ele faz isso!

- Filha... – advertiu-lhe a mãe receosa de

qualquer comentário.

- Ciúme, puro ciúme!

- Todo pai tem ciúme dos filhos. Vamos parar

com essa conversa, pelo amor de Deus. Chega por

hoje!

Ela deu de ombros, não se calaria. Contaria

tudo à mãe.

- Ele não tem ciúme como todo pai. Ele tem

ciúme de macho! A senhora sabe disso, Cida também.

E um dia o Tomás vai saber! Mas em mim ele não

trisca o dedo e nem na Cida. É por isso que ele tem

raiva de mim, tem ciúme, tem desejo... – voltou a

chorar.

- Fale baixo... – pediu a mãe.

- Ele é um porco nojento, filho do demônio! –

Gritou.

Maria engoliu em seco. Respirou fundo. Não

podia negar a realidade, mas podia escondê-la o

tempo que fosse preciso. Sempre notou o olhar guloso

do esposo sobre as filhas, especialmente quando elas

começaram a ficar mocinhas. Temia o pior, por isso

ficava vigilante. Não deixava as meninas sozinhas, era

um meio de lhes proteger de algum modo, sobretudo

em relação à mais nova que não era tão valente como

a irmã, e tal fragilidade poderia ser a sua perdição.

- Ele já buliu com vocês? - Perguntou.

Cida baixou a cabeça e começou a chorar.

- Em mim ele nunca tocou, mas a Cida... –

revelou Estela.

- Estela, não fale nada... – pediu a mais nova.

- Mãe precisa saber e eu vou contar. Não vou

esconder nada de agora em diante. Na semana

passada ele alisou os peitos dela e ela saiu correndo.

Ele é um bicho maldito, mãe, e só quer a nossa

desgraça.

Cida saiu envergonhada. Chorava no cantinho

do quarto. Não queria se lembrar daquilo, mas a cena

vinha-lhe à mente a todo o momento. Dormindo ou

acordada, a sensação da presença asquerosa do pai

tirava-lhe a paz. Uma cena diabólica. Foi num dia

comum da semana, ela estava só no barraco. A mãe

tinha saído com Tomás e Estela estava na casa da

vizinha. O danado se aproveitou e entrou sem fazer

barulho. Cida estava lavando a louça. Ele se

aproximou. Não tinha sede, mas tomou um copo

d’água. Depois começou a alisar maliciosamente o

cabelo da filha.

- Eu preciso lavar a louça...

Disse a menina, num fio de voz, gelada de

pavor.

- A louça espera... Eu tenho reparado que você

está ficando muito linda!

- Quer tomar café? Passei agora mesmo...

A voz saiu arrastada, as pernas tremiam. Ele

perdeu a calma e começou a abraçá-la.

- Tem medo de mim? Sou teu pai...

Numa fração de segundo abraçou a garota,

cheirou seu pescoço e como um cão faminto começou

a lamber-lhe o ombro. Não satisfeito enfiou a mão

sobre a blusa, rasgando o decote e apertou os seios

dela. Cida não resistiu, começou a tremer e a chorar.

Pálida como uma vela, teve que se sentar para não

cair. Vomitou ali mesmo. Sentiu que o ar lhe faltava e

começou a chiar ofegante. O safado ficou assustado e

saiu apressado, antes, porém, tratou de adverti-la:

- Hoje passa... E não fale nada, senão...

Quando Maria voltou, notou que a filha estava

diferente. A garota mentiu dizendo que estava com

febre e vomitadeira. Depois chamou Estela e contou-

lhe a verdade.

- Cida, ele só fez isso?

Estela estava revoltada.

- Só. Eu não quero ficar sozinha com ele. Ele vai

voltar Estela, me ajude pelo amor de Deus...

- Pode deixar minha irmã. Confie em mim e a

gente se vigia o tempo todo. Ainda bem que Tomás

nasceu homem! Desgraçado, agora sei por que ele

queria jogar o menino fora! Tomás será o nosso

escudo, ele vai nos ajudar...

- Tenho medo... – Cida chorava. O coração

palpitava apressadamente.

- Não chore minha irmã, eu vou te proteger. A

mamãe não deve saber de nada...

Aquele testemunho dramático deixou a mãe

arrasada. Maria vivia a desconfiar do marido, agora a

terrível certeza. Não sabia o que fazer. A violência do

esposo afastava toda e qualquer possibilidade de

resolução.

- Eu só não desapareço de uma vez, porque não

tenho coragem de deixar a senhora, a Cida e o Tomás

nas mãos dele! Se não fosse isso, eu já teria sumido há

muito tempo...

Maria engoliu em seco, limpou uma lágrima

teimosa que ameaçava deslizar-lhe sobre o rosto.

Tinha que manter a serenidade em nome dos filhos.

- Estela, não diga estas coisas. Venha, lave o

rosto. Seu nariz ainda está sangrando...

Sabia que as filhas corriam sério risco se

ficassem a sós com o pai... A ideia da separação já lhe

passou pela cabeça uma série de vezes, mas sentia-se

impotente diante do temperamento do esposo. Tinha

certeza que ele a mataria se ela o largasse.

“Jesus, tende misericórdia da minha família” –

suplicava dia e noite. Era o que podia fazer. Transferia

para os filhos todo o amor que já não sentia por

Sebastião. Os filhos eram a barreira entre ela e o

suicídio. Temia o destino dos filhos sem a sua

presença, por isso, escolheu a vida.

Três

“Mãe... o que é universo?”

Tomás cresceu neste mundo marginal, mas

tinha que aceitar. Sempre foi calado e tímido. Seu pai

o apelidou de Canivete e logo seu verdadeiro nome

ficou esquecido. Tomás tornou-se apenas uma sombra

de Canivete. O pai nunca o enxergou como filho, fazia

questão de mantê-lo longe de seus olhos, de expor seu

desamor.

Ainda na tenra idade, Tomás aprendeu a

cultivar o medo. Era o único sentimento que nutria

pelo pai. Sentia-se inseguro quando ele estava em

casa. Por isso, vivia torcendo, silenciosamente, que

Sebastião se afastasse, os deixasse em paz e partisse

para nunca mais voltar. Sabia, era apenas um sonho

tolo. O pai estava ali, o tempo todo, e quando sua voz

era ouvida, mesmo à distância, o coração disparava.

O medo se agigantava.

O garoto nunca esteve na escola. Tudo o que

aprendeu foi com as irmãs. Estela e Cida conseguiram

fazer o ensino fundamental, mas Sebastião as proibiu

de seguir adiante. Foi puro ciúme. Nunca suportou a

ideia de ver as filhas ao lado de outros garotos, longe

do seu território.

Proibido de estudar, o pequeno Tomás foi

alfabetizado em casa. Aprendeu a ler e a escrever com

as irmãs, mas nutria o sonho de entrar para a escola

como qualquer criança, mas isso nunca foi possível...

- Assim?

- Lindo, meu amor! Você é o garoto mais

inteligente do mundo.

- Eu queria entrar na escola...

- Ora meu bem, você não está gostando da sua

professorinha aqui?

- Gosto, mas é que eu queria ser da escola que

o Flavinho estuda. Lá tem um monte de alunos...

- Um dia você irá para a escola...

Estela o abraçou com força.

- Você está chorando...

Ela limpou os olhos rapidamente.

- Estou com as vistas ardendo. Não fique triste,

eu vou fazer a sua matrícula na escola do Flavinho.

Mas ainda é cedo...

Flavinho era um garoto, filho de uma vizinha

que trabalhava na casa de um médico.

- Eu vou crescer e tirar todo mundo daqui.

Vamos morar numa casa bonita, com um quintal deste

tamanho! - Abria os braços fazendo a demonstração -

vai ter um quarto pra cada um. Um pra você, outro

pra mamãe, outro pra Cida.

- Que ótimo! Olhe que eu vou te cobrar, viu?

Bom, agora fique aí estudando, enquanto vou

comprar um pacote de trigo. Vou fazer aquele pão que

você adora. A mamãe e a Cida foram à feira, logo

estarão de volta. Eu não demoro.

Estela saiu e ele continuou fazendo alguns

desenhos. Mas a paz durou pouco, foi rompida com a

chegada do pai. Tomás voltou a sentir o mesmo frio

por dentro. Fugia do seu olhar inquisidor,

desconcertante, sarcástico. Estava com o coração aos

pulos. O que o pai queria afinal? Quanto mais ele se

aproximava mais ele se sentia desconfortável.

Sebastião caminhou em silêncio, depois ficou

parado diante do filho, encarando-o sem dizer nada.

Em dado momento perguntou:

- O que está fazendo?

- Eu... estou estudando - respondeu num sopro.

Abruptamente Sebastião o ergueu, sentando-o

nas suas pernas. Por mais que ele tentasse ser

agradável, o garoto sentia-se amedrontado. Aquele

homem que o segurava entre os braços, roçando-lhe o

bigode vasto era a expressão do terror.

- Você vai ser um grande homem! Vai ter o

respeito de todo mundo e será forte como eu. Agora

você é magro como um caniço, mas será forte como

um touro.

Encarou o filho forçosamente, queria ver a sua

reação. Notou que o garoto estava pouco à vontade,

sentia medo, começou a tremer e a fazer cara de choro.

Num ímpeto, Sebastião deu-lhe um sopapo, fazendo-

o perder o equilíbrio e quase cair do seu colo. Tomás

estava mudo de medo.

- Está com medo? Sou o seu pai e não um bicho!

- Gritou.

O menino não aguentou segurar e abriu o

berreiro. Sebastião nunca suportou choradeira,

sacudiu o filho com violência e ele chorava ainda

mais. O terror tomou conta de Tomás, o coração batia

loucamente, enquanto o pai se divertia com o seu

drama. Tentou se libertar, mas Sebastião se enfureceu.

Arregalou os olhos e tapou-lhe a boca, abafando o

pranto.

- Grita agora que eu quero ver! Vamos, grita!

As duas irmãs e a mãe entraram correndo.

Tomás estava quase sem fôlego, com aquela mão

enorme tapando-lhe a boca. Seus olhos continuavam

a chorar e as lágrimas ardiam como brasas de um

vulcão incandescente.

- Para com isso, Bastião, quer matar o menino?

Ele não se importou, fazia absoluta questão de

ignorá-la. Foi quando ela perdeu a cisma e agarrou o

braço dele, tentando libertar o filho. Sebastião largou

o filho para se atracar à nova presa. No chão as poucas

verduras esparramadas. A mãe foi surrada na frente

dos filhos, sem qualquer compaixão.

Tomás ficou chorando no canto da sala. A mãe

apanhava nas costas, no rosto, nas pernas... Cida

agarrou a mão de Tomás e os dois foram se refugiar

no quintal. Estela entrou em defesa da mãe e tentava

apartá-los a qualquer custo. Em dado momento,

Sebastião largou as duas e saiu porta afora. Rosnava

como um tigre enjaulado. Elas ficaram encolhidas no

chão, chorando de dor, revolta e desespero.

Tomás estava em prantos. Cida tentou acalmá-

lo, mas o garoto tremia o corpo inteiro. Não sabia o

que se passava e nem o porquê, mas aprendeu, ainda

na infância, a sentir ódio do pai. Para ele, Sebastião era

um monstro que dormia ao lado da mãe.

Depois de algum tempo, Cida e Tomás

voltaram à sala. Maria estava chorando, o rosto cheio

de sangue. Estela limpava os ferimentos. Pela

primeira vez Tomás viu a mãe desesperada. Chorava

o fracasso, a covardia, a fraqueza, a impotência. O

garoto voltou a soluçar, assustado, achava que a mãe

estava morrendo.

- Mamãe...

Ela engoliu o choro e o olhou para o filho.

- Não foi nada, meu filho...

Manteve a voz terna, esforçou-se para sorrir.

- Estela, coloque a comida do Tomás, vou

tomar um banho.

Levantou-se meio desajeitada, aproximou-se

do filho. Acariciou seu rostinho e enxugou o resto do

choro. Nos gestos delicados, escondia a dor que sentia

no corpo e no coração.

- Não foi nada...

Saiu cambaleante. Evitou olhar para qualquer

um dos filhos. Ajeitou os cabelos em gestos rápidos

até prendê-los no costumeiro rabo de cavalo.

“Jesus, tenha compaixão da minha família” –

pensou num suspiro cansado.

O sol foi se escondendo aos poucos, nuvens

escuras pairavam no céu, o tempo mudou. Soprava

um vento frio. Sinal de chuva. Isso era bom, o calor

dos últimos dias estava sufocante. Os quatro foram

para a cozinha. Comeram batata, arroz e ovo frito.

Feijão e carne só de vez em quando. Quando a coisa

andava mal, era só batata, ou então, iam para a cama

com a barriga roncando.

Tomás passou boa parte da infância sem ter

amigos. Sua convivência era apenas com a mãe e as

irmãs. A fama do pai afastava os vizinhos e os outros

meninos o olhavam atravessado, caçoavam da sua

magreza, gritavam seu apelido, numa pirraça sem

fim. Tomás não reagia, baixava a cabeça como um

manso cordeiro, embora se sentisse incomodado com

as humilhações. Sempre foi uma criança sensível. As

marcas da infância sofrível sempre permaneceram

escondidas na parte mais delicada da alma.

Depois do almoço, ele foi para o quintal brincar

na terra. Ouviu soluços atrás do banheiro. Era a mãe.

Estava sentada debaixo do pé de goiaba, chorando

sozinha. Tentava ocultar a sua dor. Tomás ficou

parado a contemplar aquela figura. Não se conteve:

correu e a abraçou pelas costas. Ela se virou afagando-

lhe os braços...

- Tomás, meu Tomás...

Ele sentou-se ao lado da mãe. Maria o fez deitar

a cabeça no colo macio. Ele já sabia que ela ia fazer

cafuné, adorava sentir as suas mãos afagando seus

cabelos.

- Mãe... Por que a gente sofre tanto?

- A vida oferece tantas coisas. Boas e ruins... Os

meus filhos foram as coisas mais belas que me

aconteceram. Coisas boas...

- E o papai?

- O que é que tem o seu pai?

- Ele é a coisa ruim...

Tomás não conseguiu disfarçar a lágrima que

desceu suavemente. Maria o olhou, depois olhou o

tempo com um semblante triste. Respondeu com a

voz carregada de amargura.

- Nós ainda vamos ser muito felizes...

- Todos nós? Até papai?

- Sim...

- Você gosta dele?

- Nós devemos gostar de todas as pessoas que

nos cercam e também aquelas que não fazem parte do

nosso universo.

- Mãe, o que é universo?

- Universo é o mundo, as coisas, as cidades, o

sol, o mar, o mundo todo.

- Mãe...

- Pode falar querido...

Ele ficou em silencio, indeciso, buscava

pedaços de coragem para dizer aquilo que estava

preso no seu coração. As lágrimas voltaram a escorrer

e ele desabafou:

- Eu não gosto dele... Ele vive batendo em você,

nas meninas... Ele não é bom, não gosta da gente. Eu

queria que ele fosse embora e não voltasse nunca

mais! Aí, só ficaria eu, você e as meninas...

Ela engoliu em seco. O beijou amorosamente.

- Deus não gosta que a gente fale estas coisas. É

pecado. Tem que ser assim até quando Deus permitir.

- E Deus não gosta da gente?

- Gosta sim.

- Ele não quer o nosso bem?

- Quer.

- Então, ele quer que a gente fique sem o pai...

Às vezes, a mãe não sabia como mudar o seu

rumo de ver as coisas.

- Você é só uma criança. Tem muito tempo pela

frente e vai ser muito feliz. Deus vai permitir que você

tenha sorte na vida.

- E por que a gente não tem amigos?

Tomás voltou a surpreendê-la com aquela

pergunta. O filho nunca esteve numa escola, mas

sabia de muitas coisas. A mãe suspirou e olhou para o

céu, perguntando-se donde vinha tanta esperteza.

- Um dia, você vai saber de uma porção de

coisas, ninguém vai te contar. Você vai descobrir

sozinho.

De repente, ela ficou séria. Levantou-se e

estendeu a mão para o filho.

- Vamos entrar. Está esfriando. Parece que vai

chover forte.

- Que bom! Tomara que venha com relâmpagos

e trovões!

- Que gosto mais esquisito! Não tem medo?

- Não. Eu sei que vem do céu e quando chove

forte, eu peço à Nossa Senhora para não deixar o

barraco cair.

- Você reza como ensinei?

- Todos os dias.

Quatro

“No seu egoísmo, o pai conseguiu chorar.

Um choro seco, mas era choro”.

Os anos foram passando lentamente. Tomás

estava com sete anos. Era natal. Naquele dia ele

desenhava qualquer coisa no caderno. A mãe estava

acabando de aprontar a ceia. O frio era intenso. Ele

vestia um casaco de lã, cor marrom com remendos

vermelhos. Lembrava-se bem daquele dia.

O pai não estava em casa. A ceia foi uma

deliciosa sopa de macarrão com legumes,

acompanhada de alguns pães de sal. O prato do pai

foi separado e colocado em cima do fogão para que

não esfriasse. A luz do barraco tinha sido cortada mais

uma vez. As contas vencidas recebiam o devido

tratamento. Maria já esperava por isso e voltou a

utilizar o velho lampião a querosene. Na Rádio

Aparecida, a voz emocionada do padre Vitor Coelho

de Almeida, fazia de “Os ponteiros apontam para o

infinito”, um programa imperdível.

No centro comercial, a cidade estava repleta de

enfeites, lojas com papai Noel, luzes, músicas e

centenas de pessoas carregando braçadas de

presentes dos mais variados tipos. Era o natal do

comércio, do lucro e da fartura.

No morro, a família de Tomás também

comemorava, embora de forma humilde, o

nascimento de Jesus. Não teve “Papai Noel”,

presentes ou “parabéns a você”. Era apenas o 25 de

dezembro, natal dos pobres, famintos, abandonados,

miseráveis, esperançosos...

Tomás não sabia explicar os motivos, mas

naquela noite, sentiu um nó na garganta, quase não

conseguiu fazer a sopa descer. Antes de começar a

refeição, Maria aproveitou que Sebastião não estava

presente para reunir a família, à beira da mesa.

Rezaram, depois, começaram a comer. Era uma ceia

simples, sem novidade. Então, eles molhavam o pão

na sopa, saboreando-o, gulosamente.

E Jesus Cristo continua nascendo...

- Devagar Tomás. A sopa está muito quente, vá

soprando aos poucos.

A fumaça da sopa subia e se misturava com a

que saía do lampião.

- A cidade está uma beleza lá no centro. Tem

um monte de papai Noel nas lojas – disse Tomás.

Na véspera do natal, ele foi ao centro da cidade

com a mãe e ficou maravilhado. À entrada de uma

grande loja, havia um homem sentado, vestido de

Papai Noel - uma figura encantadora para as crianças

da sua idade. Maria o deixou ali enquanto foi visitar a

Igreja mais próxima. Tomás olhava, fascinado, para o

Papai Noel. Nem pensou nos presentes, estava diante

da pura magia. Mas o homem notou a sua curiosidade

e sua voz, carregada de intolerância, rompeu qualquer

possibilidade de encanto:

- Você quer alguma coisa? - Perguntou. No seu

colo havia duas crianças.

Tomás gaguejou, repleto de timidez. Notou

que as duas crianças saboreavam chocolates.

- Perdeu a língua menino? – Insistiu o homem,

sem muita paciência.

- Eu queria bombom...

O homem sorriu com desdém.

- Doce não mata a fome de ninguém, garoto.

Você precisa de uma tonelada de doces e eu não posso

dar essa quantidade. Tome um pirulito e agora vá

embora.

Tomás ficou em silêncio, não recebeu o pirulito.

Ele insistiu:

- Garoto, eu preciso trabalhar, pegue o pirulito

e caia fora. Não quer? O problema seu, agora caia fora.

Tomás afastou-se tristemente. Fez força para

não chorar. Aprendeu cedo o sentido e a dor da

humilhação. Andou alguns metros, de vez em quando

voltava a cabeça para o Papai Noel. O homem

continuava distribuindo simpatia para os clientes. De

longe, Tomás espiava. Outro garoto se aproximou

com a mãe, uma senhora de traços finos e delicados.

O bom velhinho se desmanchou em carinhos pelo

menino ricamente vestido.

- Feliz Natal meu filho... Venha sentar-se com o

papai Noel. Tome um saquinho de bombons. Presente

do bom velhinho!

A mãe do garoto sorriu. O menino permaneceu

em silêncio. Pegou a sacola de doces e voltou-se.

Caminhou em direção a Tomás. Seus olhos verdes,

brilhantes como esmeraldas, acentuados pelos cílios

escuros, não se desviavam dele. Aos poucos os seus

lábios foram desenhando um sorriso. Uma ternura

passou no coração de Tomás, como uma brisa leve.

Sentiu um arrepio estranho.

- Tome, eu não quero doce, disse, oferecendo a

sacola.

Tomás ficou parado, sem ação, apenas o olhava

em silêncio. A mãe do garoto assistia ao lado do Papai

Noel. Tomás não sabia o que dizer. Ficou num dilema

entre a humilhante vontade de chorar e a alegria de

aceitar a esmola.

- Eu tenho muitos doces lá em casa, estes são

para você. Por favor, aceite...

Ele tinha a voz suave, pareceu-lhe sincero,

deveria ter uns oito anos. Tomás piscou os olhos e

logo uma lágrima desceu. Começou a soluçar. O

garoto o abraçou amistosamente. Também ele

chorava.

- Eu sei que a fome é imensa no mundo. Uns

têm demais, outros nada tem. Existe muita

desigualdade! Mas a vida não acabou. Ainda é tempo

de muitas coisas. Não se deixe levar pelo desespero.

O garoto falava de modo tão especial, que

parecia ter o dobro da sua idade. Usava a língua dos

sábios. Enquanto o escutava, Tomás foi tomado por

uma agradável sensação de conforto. O menino

segurou a sua mão. Continuou a falar bonito, de um

jeito que Tomás nunca ouviu:

- Agora feche os olhos e repita comigo:

“Senhor, põe em mim um coração novo. Quero ser

feliz. Ajuda-me a descobrir a minha meta. Ajuda-me

a buscar as coisas do alto”.

Tomás repetiu com firmeza. Manteve-se de

olhos fechados. Então o garoto colocou em suas mãos

a sacola de doces. A magia foi quebrada, quando

Tomás escutou a voz da mãe, que o chamava,

acenando-lhe, do outro lado da rua. Ele fez sinal que

o aguardasse mais um pouco e ao voltar o rosto, um

susto inexplicável: o menino da voz suave não estava

ali. Olhou de todos os lados e só viu o Papai Noel, que

continuava sentado com uma criança ao colo. Encheu-

se de coragem e foi até ele. Perguntou:

- Onde foi aquele garoto que falava comigo?

- Que garoto?

- Um menino... – Tomás não conseguia se

explicar.

- Ora, eu tenho mais o que fazer.

Não sabia o que pensar. O coração estava aos

pulos, corpo arrepiado. Teria sido uma visão ou tudo

invenção da sua fantasiosa mente? O fato é que estava

com uma sacola de bombons na mão. O que houve

realmente? Não conseguia entender a experiência

mais linda da sua infância.

A mãe se aproximou.

- Quem deu esses doces?

- Foi o Papai Noel. Vou levar alguns para as

meninas. Elas vão adorar.

...

Quando estavam terminando a sopa, Sebastião

entrou com um monte de pacotes debaixo dos braços.

Parecia mais humano e pela primeira vez, tratou a

todos com carinho.

- Feliz Natal – disse.

Tomás não estava sonhando e seu pai não

estava bêbado, não daquela vez. Entregou um

embrulho a Maria, passou a mão levemente sobre a

sua cabeça e sorriu para as meninas. Todos ficaram em

silêncio, desprovidos de qualquer reação. Sebastião

estava diferente e, talvez por isso, naquele dia, Tomás

teve a rara oportunidade de experimentar a sensação

de ter um pai de verdade. Um pai que nunca se

manifestou, porque, possivelmente vivia sufocado

pelas feridas do destino e, para se manter protegido,

preferia ser um homem rude, violento e distante.

Às vezes, Tomás ficava pensando nele e não

conseguia ter raiva, mas compaixão. Sebastião nasceu

no sofrimento. Não teve infância e muito jovem viu-

se transformado num sem terra, depois num sem teto

e, finalmente, um sem nada. Sua vida sempre

transitou entre o risco de acertar e o medo do fracasso.

Ironicamente, mesmo no mundo do banditismo não

alcançou qualquer sucesso. Não era querido por

ninguém, muito menos pela família que nunca viu

nele um pai, mas um estranho opressor. Sim, ele era o

maior opressor da família, embora suas atitudes

condenáveis sejam explicáveis já que ele sentia a

necessidade de ascender-se como homem cuja família

era o único lugar em que conseguia manter domínio e

posse. A família era seu território demarcado e ele

senhor absoluto. Esse foi, certamente, o seu pior

defeito, pois ao perseguir a família, perdia uma

excelente oportunidade de se redimir, de ser um pai,

um amigo, um parceiro. Mas não, ele não admitia isso.

Ele não queria isso. A sua briga com o mundo e seu

criador não o permitia enxergar em Maria a terna

morena do Pará, uma esposa fiel, dedicada e amorosa.

Ele era um pai cego que não conseguia enxergar nas

filhas duas jovens exemplares que nunca se

entregaram à prostituição, às drogas, ao crime... Ao

contrário, gostavam de estudar, trabalhar e sonhavam

ter uma vida normal. Sebastião não quis a coerência,

infelizmente abdicou do caráter e de qualquer vestígio

da nobreza paternal; optou pela insensatez, tornando-

se o algoz das próprias filhas. Ao desejá-las

sexualmente, abriu mão de sua condição de pai para

ser um macho inescrupuloso.

- Gosto de pensar que tudo podia ser diferente

– diria Tomás alguns anos mais tarde.

Seu pai não nascera bandido, não era do mal,

não herdou essa marca terrível. Mas um dia a sua

história tomou um rumo diferente e ele nunca soube

lidar com as diferenças, pois ainda jovem sofreu

silenciosamente a pobreza e o abandono: perdeu os

pais, teve que criar os irmãos e viu a cara da fome

entrar e sair do seu casebre... Sebastião viu crescer

dentro de si o orgulho ferido que o cegava aos poucos,

alimentando o ódio de uma situação que ele queria se

ver livre, mas não sabia como. Para ele, o mundo

estava errado e o culpado era Deus. A ingenuidade e

o individualismo nunca o fez entender que as

estruturas sociais não são armações divinas, mas

humanas. Não se deu conta que o sistema produz as

diferenças.

Como seria a vida daquele jovem de alma

nobre - que não teve infância, tantas vezes humilhado

e desprezado pelos fazendeiros do sul da Bahia?

Talvez tivesse realizado o sonho de conquistar um

pedaço de terra, para plantar cacau no meio da mata,

para viver na sua terra natal...

Mas não foi assim.

Naquele natal, ele voltou a ser, por alguns

momentos, o mesmo jovem sonhador. Naquele dia,

ele não era o algoz, mas um pai que entrou em casa

com os braços carregados de presentes, de olhos

brilhantes, vivos, esperançosos. Aquele, era o pai

verdadeiro que veio dar o ar de sua graça de modo

inesquecível.

Todos receberam os pacotes. Após o impacto

daquela atitude incomum, eles se voltaram para os

presentes. O entusiasmo os invadiu, afastou a cisma,

abriram apressadamente os pacotes. Sebastião

observava em silêncio e, por alguns momentos, eles se

esqueceram que ele estava ali, escorado no canto da

parede, como se assistisse a um espetáculo.

A mãe ganhou uma linda blusa de lã cor de

rosa. Esboçou um sorriso de pesar, no fundo tinha

certeza que os presentes eram roubados. Não disse

nada, não havia o que dizer diante da ilusão dos

filhos. Era natal, afinal. Preferia fingir que o esposo era

um trabalhador honesto dedicado à família e que fazia

questão de celebrar o natal da esperança. Cida ganhou

um vidro de perfume e a Estela um delicado relógio

de pulso. Em seguida, foi a vez de Tomás: ganhou um

brinquedo, primeiro e único da sua vida, um lindo

caminhão. Ficou rindo feito bobo, contemplando o

presente com o maior carinho do mundo.

O pai continuou olhando, mas, naquele dia,

seus olhos estavam diferentes, sem a costumeira

expressão raivosa. Andou até o fogão, pegou o prato

de sopa e o pão de sal. Comeu em silêncio. Naquele

dia ele chorou. Um choro sem lágrimas. Um choro

solitário. Um choro seco. Mas era choro.

Maria fingiu tranquilidade diante do

contentamento dos filhos. Não podia destruir aquele

raro clima de harmonia.

Naquela noite Tomás sentiu-se um menino

feliz. Chegou a gostar do pai. Lembrou-se do garoto

da cidade: “a vida não acabou. Ainda é tempo de

muitas coisas”.

Brincou com o carrinho até a hora de se deitar.

Dormiu agarrado ao brinquedo, como o mais rico

tesouro da face da terra.

Naquele natal o pai não os tratou com

severidade. Era como se o espírito natalino o tivesse

apanhado desprevenido e ele se lembrasse que

possuía família. Embora tenha optado pelo caminho

do crime, Sebastião cumpria, a seu modo, o papel de

pai. E ele sofria quando não conseguia roubar. Enchia

a cara, ficava irritado e chegava em casa, descontando

o fracasso na família. Nesses momentos, todos iam

para a cama com a barriga roncando, sem reclamar.

Tinham consciência da situação.

Os filhos sabiam que o pai não era um grande

ladrão, do contrário, não estariam em situação tão

precária. Sebastião tinha sua turma e tudo era

repartido entre o grupo. Fora isso, gastava com

prostitutas, bebidas e com a família. Resultado: a

pobreza permanecia intacta.

Cinco

“Sentia uma dor terrível, mas não derramou lágrima alguma. A revolta doía mais!”

Os meses continuavam a passar, cumprindo a

missão de relógio eterno. Canivete completou sete

anos. Um dia o pai foi acordá-lo.

- Acorde Canivete.

Abriu os olhos. Sentiu novamente um frio por

dentro. A terrível sensação de pavor voltou. Mas a voz

do pai não estava brava. Sentou-se no sofá-cama,

procurou manter a calma. Para seu espanto, Sebastião

segurou as suas mãos e disse em voz baixa:

- Hoje você vai me ajudar a fazer um trabalho.

As irmãs também acordaram e foram até a sala.

Ainda era cedo. Estava escuro. Sebastião explicava

com entusiasmo:

- Você é esperto, Canivete, não vai despertar

suspeita. Hoje você vai aprender o ofício, será o meu

braço direito!

- Por favor, papai, não leve o Tomás! Espera ele

crescer um pouco mais.

- Cale a boca Estela! Não se meta.

- Ele é pequeno, não está acostumado e pode

ser apanhado pela polícia!

Tomás começou a ficar apavorado e as meninas

já não sabiam o que fazer para que o pai mudasse de

ideia. O garoto desconfiava, sabia que não era coisa

boa.

- Está decidido, hoje ele começa a aprender as

primeiras aulas. Já é tempo de Canivete ganhar a rua!

Embora soubesse que o pai não era honesto,

havia uma parede imaginária que o impedia de

enxergar a cara da realidade e se deparar com a outra

face da vida. Mas a parede caiu e tudo se esclareceu

de forma súbita, selvagem, terrível.

A mãe se levantou, ficou a par de tudo,

suplicou, tentou fazer o esposo mudar de ideia. Mas

ele estava realmente disposto a ensinar o filho a seguir

os seus passos. Tomás sentiu-se impotente, tinha de

obedecê-lo, apenas isso.

Depois de um café apressado, foram para o

centro da cidade. No caminho, o pai ia explicando os

detalhes. Ele ouvia atentamente, coração partido,

repleto de medo e dor. As horas passavam e a cidade

se movimentava: outro dia, outras preocupações,

outros assaltos...

- Atrás daquela lanchonete tem uma viela, bem

ali, olha - apontou - está vendo?

- Estou - respondeu num fio de voz.

- Eu ficarei lá, você fica por aqui. Daqui a pouco

algumas velhas cheias da grana vão passar por aqui.

Elas adoram passear pela manhã. É só você avançar

para a primeira que aparecer e tomar a bolsa. Depois

você corre pra viela. Tem que ser rápido e sem medo.

As velhotas não sabem reagir. Não banque o bobo.

Acho que falei tudo. Entendeu o que deve fazer?

- Sim – respondeu repleto de medo.

- Para iniciar é assim mesmo. Depois que você

treinar, poderá assaltar moças e madames. Por

enquanto, tem que se virar com as velhotas. Será o seu

treinamento. Agora fique por aqui. Já tá na hora.

Pouco depois, ele anunciou:

- Ei, acho que surgiu a primeira vítima. Lá vem

uma velha... Vá em frente e faça como eu ensinei! Te

espero no beco.

Tomás olhou e certificou-se que uma senhora

andava em sua direção. Voltou-se para o pai, mas ele

já estava longe. Foi para o local combinado. Só restava

obedecê-lo. Sentiu-se um tanto estranho. Quanto mais

a senhora se aproximava, mais ele tremia, tinha medo,

não sabia como agir. Era uma senhora bem vestida,

baixa estatura, gorda e os cabelos cuidadosamente

amarrado numa popa. Parecia uma vovó dos contos

de fada, sentiu vontade de abraçá-la e desabafar tudo

o que estava preso. Na mão direita, havia uma bolsa,

a maldita bolsa e na outra, uma sombrinha.

Voltou o rosto na direção do beco e avistou o

pai. Estava apressando-o através de sinais. Tomou

fôlego e avançou para a velha, mas na hora exata

faltou coragem e ele a cumprimentou com voz

trêmula.

- Bom dia...

- Bom dia, garotinho. Lindo dia, não?

Ele fez que sim com a cabeça e voltou a olhar o

beco. O pai gesticulava impacientemente e aqueles

acenos o encorajaram. Arrancou a bolsa da mão da

senhora num supetão. Ela gritou amedrontada:

- Socorro polícia, socorro! Alguém me ajude!

Assustado, largou a bolsa e saiu em disparada,

entrando na viela onde o pai se encontrava. Correram

juntos, até se esconderem noutro beco, misturando-se

às pessoas. O perigo havia passado. Ficaram a sós. Só

então, se dirigiu ao filho. Foi uma dor horrível.

Sebastião desfechou um soco tão violento no lado

esquerdo do rosto, que cortou o lábio superior. Tomás

cuspiu um dente. O sangue veio imediato e com ele a

revolta. Como odiou aquele homem.

- Seu idiota! Estúpido! Por que não trouxe a

bolsa, porra?

O pai o sacudia cheio de raiva. Tomás não disse

nada. Sentiu uma dor terrível, mas não derramou

lágrima nenhuma. A revolta doía mais. Passou a odiar

o pai com todas as forças.

- Eu não expliquei tudo, porra? Por que não

trouxe a bolsa? Ficou com medo da velha? Só por que

ela gritou?

Novo bofetão. Ele continuou silencioso.

- Todas gritam, ouviu bem? É só isso que elas

fazem quando são atacadas! Agora, levante-se! Vamos

ver se você aprendeu de verdade. Vamos, de pé!

Momentos depois, ele estava na rua. Respirou

fundo, buscou no mais íntimo todo o desprezo que

sentia pelo pai e assim alimentou-se de coragem e

determinação. Teria que cumprir a missão, nada

podia dar errado daquela vez. Não tardou e avistou

outra senhora idosa. Deveria ter mais ou menos uns

78 anos, caminhava com dificuldade, como se tivesse

medo de cair. Quando a senhora se aproximou, Tomás

evitou o sentimento de compaixão que começava a

brotar dentro de si. Mas se conteve quando a mente

lhe mostrou a imagem violenta do pai. Não podia

fraquejar daquela vez. Arrancou a bolsa da vítima.

Depois saiu em disparada, ao encontro do pai.

Fizera tudo conforme o pai orientou. Sentia

uma imensa dor de cabeça. Percebeu que a boca

estava dormente. O sangue diminuiu, mas ainda

corria de fininho por entre os dentes. Os pés estavam

doloridos, o corpo terrivelmente cansado, mas não

reclamou em momento algum. Não podia contrariá-

lo.

Sebastião não cabia em si de contentamento, a

bolsa da senhora estava recheada.

- Agora você aprendeu como se faz!

Passava do meio-dia, o sol continuava forte.

Sentiu fome, mas não se queixou. Resolveu não

incomodar o pai, pois ele podia se enfurecer e voltaria

a espancá-lo sem piedade... Era melhor sufocar a dor,

em silêncio.

Andaram uns oito quarteirões até o morro.

Passaram pelo bar do Toninho troca-troca. Ali o pai

passou a exibir o filho como um troféu. Contava com

grande dose de exagero, as proezas do garoto, no

campo do furto. Tomás se manteve em silêncio,

obedecia mecanicamente. O pai era seu dono.

- É isso aí, Canivete! - Gritavam em coro.

- Vamos beber na sua intenção!

O pai estendeu o copo com uma dose de

cachaça com limão. Ordenou:

- Mostre que você é filho de homem!

Tomás engoliu fazendo careta. Foi a primeira

vez que tomou cachaça. Engoliu a dose inteira. Quase

vomitou ao sentir o gosto do álcool. Bebeu sem a

mínima vontade. Sebastião agia naturalmente, não se

incomodava com o fato de que o filho era só uma

criança de sete anos.

O trágico espetáculo não tinha fim, o pai falava,

sorria, cuspia. Depois, quase bêbado, ordenou que

uma das prostitutas mostrasse a calcinha. A torcida

vibrou com mais uma piada do temido Bastião. A

mulher ergueu a saia, virou-se, exibindo a bunda.

Rebolava enquanto Sebastião a beliscava

maliciosamente.

- Canivete, esta é Fatinha. Ela é toda sua. É seu

grande prêmio!

- Bastião, ele é só uma criança! - Reclamou o

Toninho, percebendo a ausência de limites.

O pai replicou:

- Que criança coisa nenhuma! Ele é muito

macho! Puxou o pai. Canivete, não tenha medo, eu

pago! Vamos, arranca a calcinha dela!

Não era comédia, mas todos sorriram. Sempre

achavam motivo para zombar da desgraça humana.

Mas eram vítimas também. Nada mais possuíam.

Perderam tudo, até mesmo, o direito de reconhecer o

próximo como ser humano.

Fatinha também era um farrapo que ajudava a

cobrir a fantasia do palhaço. Pobre Fatinha... Teria ela,

uma alma? Claro que sim. Moça pura, 18 anos, bonita.

Deixou o interior do Ceará, foi tentar a sorte na cidade

grande. Em São Paulo, foi engolida pelo dragão e saiu

em fumaça. A partir de então, procurou respirar de

todas as formas. Perdeu a mãe por falta de assistência

médica e a família não tinha dinheiro. A criança,

atravessada no ventre da mãe, também morreu. Teve

que sair aos pedaços. O pai, pobre diabo,

enlouqueceu. As cinco filhas se dispersaram. Estariam

todas vivas? Fatinha estava. Encarou a prostituição, a

bebida, a violência e exibia seu corpo usado e sofrido

para o mundo.

...

Tomás sentiu o mundo girar à sua volta. De

repente o corpo amoleceu e os olhos se fecharam. Não

viu nada mais. Tudo escureceu. Tudo emudeceu...

Sebastião o jogou nos ombros e o levou para

casa. A mãe e as irmãs o aguardavam em frente ao

barraco. Avistaram o pai carregando o filho. Maria

soltou um grito de dor: Tomás estava embriagado.

Tentou arrancá-lo das mãos do pai, mas

Sebastião não cedeu. Entrou em casa fungando.

- Meu filho...

Tomás ainda estava meio tonto, quando o pai o

colocou no chão. As pernas não tinham força para

mantê-lo de pé. Caiu com força. A cabeça latejava de

dor. Aos poucos, foi recobrando a consciência e viu a

figura embaçada da mãe. Maria o tomou nos braços.

Encarou Sebastião com desprezo. Deixou de lado a

submissão e o medo que sentia. Pela primeira vez o

enfrentou, sem titubear.

- Você deu pinga ao menino?

Olhava-o no fundo dos olhos à espera da

resposta.

- Dei sim. Ele é macho, não é Canivete?

- Sou...

O menino respondeu sem entusiasmo, sem

saber o que dizia. Só queria dormir, dormir muito...

- O menino tem sete anos. É só uma criança.

Sebastião não se importou com os queixumes

dela. Foi para o quarto, jogou-se na cama e começou a

roncar.

Nos braços da mãe, o menino sentiu-se seguro.

Ela o apertava contra o peito. Cida trouxe um

travesseiro e Estela forrou um lençol sobre o sofá. O

amor das três o fez sentir-se protegido.

Era noite. Maria fez uma canja de galinha, mas

o garoto não quis. Estava sonolento. Fechou os olhos

para logo penetrar num profundo sono. As três

ficaram ao seu lado, compartilhando a sua dor.

Tomás passou a noite em paz. Mas, no dia

seguinte, a cabeça voltou a doer. Lembrou-se de tudo

e voltou a chorar. Sentiu uma imensa tristeza. Maria

aproximou-se, tentou consolá-lo. Ele descreveu tudo:

o assalto, o soco na boca, a cachaça no boteco, tudo.

- Quebrou o meu dente do canto, mas não

chorei e fiz o que pude para suportar a dor.

A mãe o ouvia em silencio. Sofria com o filho.

Presságios.... Arrepiava-se quando ouvia os mínimos

detalhes daquele relato doloroso. Dentro de si morava

uma certeza visceral. Os sonhos e a esperança estavam

por um fio. No barraco, prestes a desmoronar, aquela

gente nunca mais seria a mesma. Os piores tempos se

aproximavam. Sentiu as lágrimas. Doía admitir que o

pai rompia a pureza do filho, transformando-o num

bandido.

Tomás narrava os fatos, nada omitiu, falou até

da prostituta que foi dada como prêmio.

- Depois ela foi tirando a roupa e todo mundo

riu. Tudo ficou escuro e aí eu não vi nada mais.

Quando acordei, estava aqui...

Maria cobriu o rosto, estava horrorizada.

Queria evitar o pensamento teimoso:

“Ele vai jogar o meu Tomás no lixo... A mesma

maldição! Meu filho não terá nome, família, caráter.

Não terá sonhos. Visitará o inferno e talvez nunca

mais saia de lá... Não permita, meu Deus, não

permita”.

- Por que ele não gosta de mim?

- Você é um anjo meu filho, um anjo chamado

Tomás! Preste atenção, Tomás: seu pai vai querer

transformá-lo num bandido chamado Canivete. Mas

você não é Canivete. Nunca aceite ser Canivete. Você

sempre será Tomás, um garoto honesto, do bem,

temente a Deus. Não se deixe levar pelas facilidades

do crime, meu filho. Sua vida tem que ser diferente,

precisa ser diferente. Não perca a confiança em Deus

e não se esqueça de fazer as orações que eu ensinei.

Seu pai nunca poderá tirar a pureza do seu coração.

Jesus vai te proteger e um dia você sairá vencedor,

mas não se engane. Muitos acontecimentos ainda

estão por vir e, enquanto eu tiver vida e saúde, não

deixarei vocês desamparados...

Foi a primeira vez que Maria falou daquele

jeito. Alguns anos depois, ele entenderia o que ela quis

dizer. A mãe sabia que o caminho da felicidade do

filho seria tortuoso, repleto de provações, renuncia,

perdas. Tinha a certeza que os rumos da sua história

teriam que ser encarados e transformados por ele,

desde que estivesse disposto a seguir o caminho do

bem que ela tanto sonhou. No coração a certeza: o

filho querido estava iniciando uma nova vida,

assumindo uma nova identidade, transformando-se

aos poucos num jovem bandido conhecido pela

alcunha de Canivete.

Cida e Estela se levantaram e foram aprontar o

café. Sebastião entrou em seguida. Estava sério e

carrancudo. Olhou para o filho sem qualquer

compaixão. Tomás fugia do seu olhar. Engoliu em

seco, pronto a servi-lo.

- Levante Canivete! Temos trabalho pela frente!

- Bastião, não leve o Tomás. A cabeça dele está

doendo... – implorou a mãe.

- Bobagem! Ele é homem e dor de cabeça é

doença de rico!

Em seguida, voltou-se para o filho:

- Agora que você já aprendeu como se faz, não

podemos perder tempo.

- Bastião, deixa pra outro dia. Ele não está

bem... – suplicou a mãe.

Ele alterou o tom de voz resoluto:

- Porra, eu já disse que não quero perder

tempo! Vamos Canivete!

Tomás deu um salto. Como um cão adestrado,

ficou de pé imediatamente diante do seu dono.

- Bastião... Não o leve para beber. Ele ainda é só

uma criança.

- Filho meu tem que aprender a ser homem

desde pequeno! Vamos Canivete, tome seu café,

temos muito trabalho pela frente.

Começava ali um capítulo decisivo da sua

história: o mundo do crime. Estava sendo preparado -

contra a vontade - para assumir um lugar que jamais

desejou, mas que foi se tornando perigosamente

comum, natural, normal. Essa normalidade é uma

condição que retira do bandido o sentimento de culpa,

e a chamada dor na consciência aos poucos vai sendo

esquecida pela repetição dos atos. No mundo do

crime a frieza, o individualismo, a desconfiança e a

indiferença são elementos indispensáveis que atuam

no mais radical conceito de sobrevivência. Com

Tomás as coisas foram acontecendo aos poucos e, a

partir do momento que Canivete crescia, Tomás

perdia espaço e os conselhos da mãe eram deixados

de lado. Aos poucos, a vida fácil que Canivete podia

oferecer foi se tornando o centro das suas

preocupações e Tomás se afastava cada vez mais.

Seis

“Ele queria morrer também, apesar de

morrer de medo de morrer”.

Tomás passou a viver outra fase da sua vida.

Agora era um pivete perigoso chamado Canivete.

Uma personalidade forte que aos poucos ia se

firmando. Dentro de si, num cantinho esquecido da

alma, estava Tomás, um garoto bom que sonhava

fugir daquela vida desgraçada para sempre. Mas o

amor que nutria pela mãe e as irmãs era mais forte.

Ele jamais as abandonaria, sabia que ainda não era o

momento.

Os meses foram passando, arrastando consigo

os anos. Tomás estava com nove anos. Era um mestre

em furtos. Tinha notável habilidade em bater

carteiras, tomar bolsas de mulheres, roubar nas

feiras.... Jamais foi apanhado pela polícia. O pai se

orgulhava e vivia espalhando para todo mundo que o

filho era o garoto mais esperto do morro, graças a ele.

Sebastião sonhava em transformar o filho num

grande bandido, à sua imagem e semelhança. E então,

sem qualquer escrúpulo, enrolou o garoto em velhos

jornais e o colocou no centro da cidade, como um cão

adestrado: “pronto Canivete, faça o que te ensinei...”

Tomás era astuto, estava habituado à nova vida

e encarava a bandidagem como qualquer outro

trabalho. No barraco, a mãe sofria, sentia-se

mortalmente ferida. Não suportava ver Tomás

perdendo-se nos caminhos tortuosos do crime. Passou

a vida pedindo a Deus um futuro digno e correto para

o filho e agora, isso... Maria carregava a esperança de

ver o filho crescido, empregado e que um dia pudesse

tirá-la daquele lugar.

Mas não era tão simples, o pequeno Tomás

arrastava-se no cascalho da vida errada, como uma

serpente que cruza o deserto em busca de abrigo e

sobrevivência. Quantas vezes ele a viu chorando o seu

destino... Quando conversavam, ela se esforçava para

preencher o seu coração de bons ensinamentos. Mas o

filho se mantinha cego e surdo para as coisas do bem.

- Meu filho, você não é bandido. Não acabe com

a sua vida desse jeito.

- Mãe, eu não queria que fosse assim...

- Não use desculpas, você não precisa fazer o

que o seu pai pede. Eu não sei mais quem é você. Fica

o dia inteiro na rua, chega de madrugada e com o

bolso cheio. Está seguindo o rastro do seu pai. Você

fez a escolha e tomou gosto pela vida desgraçada. Eu

morro de vergonha...

- Eu não queria. Você sabe disso! Se eu não

obedecer, ele desconta na senhora e nas meninas. Foi

assim a vida inteira mãe. Você apanhando, ele

batendo. Não pense que as coisas seriam diferentes.

Cida e Estela estão aí, sem qualquer esperança de

futuro e eu? O que seria de mim?

- Pobreza não é defeito. Se quiser ajudar, faça

como tantos garotos da sua idade: vá lavar carros,

engraxar sapato, vender cocada, consertar bicicleta. É

pouco, mas é trabalho honesto, bonito,

engrandecedor. Roubar é um caminho fácil, mas pode

ser o seu fim... Não gostaria de te ver na cadeia,

apanhando da polícia ou morto numa emboscada.

Tomás ficou em silêncio. A verdade cortante

que a mãe escancarava, o deixava sem qualquer

argumento. Sentiu as lágrimas, mas conteve o choro.

Canivete não podia chorar. Canivete estava ali,

presente, e era capaz de passar por cima de tudo, até

do amor materno.

- Chega de papo, a vida é dura mãe. Tô

vazando!

- Onde você vai?

- Melhor não dizer.

“Jesus, não desista do meu filho” – pensava, dia

e noite...

E era assim, sempre que ela tentava conversar,

ele dava um jeito de fugir. Não queria enxergar a

verdade, preferia a ilusão. Mas a mãe nunca desistiu

de Tomás. Nunca deixou de amá-lo e sempre

acreditou na sua recuperação. Sabia que Tomás se

transformava em Canivete por ordem do pai, por

medo. Cumpria uma triste missão, independente da

sua vontade.

Os dias foram passando sem maiores

novidades, mas havia um novo capítulo reservado

para ampliar o drama de Tomás e deixar marcas

definitivas no curso da sua história. A manhã foi

tranquila e ele estava a fim de ficar em casa, não foi

roubar. Fazia frio. A família, sem a presença do pai,

estava vivendo um raro momento de paz. Jogavam

conversa fora... Ali Tomás sentia-se verdadeiro, único.

Canivete era só uma sombra distante.

Não tinha gás aquele dia, o almoço custava a

sair. O jeito foi usar o velho fogão, mas a lenha estava

molhada por conta da chuva da noite anterior. Maria

soprava o fogo e ele se apagava, sem vontade de vida.

A fumaça entrava nos olhos, aumentando a sua

irritação.

- É quase hora do almoço e esse fogo não quer

pegar! – resmungou.

- Daqui a pouco ele acende, deixa eu tentar –

disse Tomás.

Foi até o fogãozinho e começou a assoprar.

Uma pequena chama se formou.

- Você tem um sopro de ouro, meu filho, eu...

Não pode continuar. A porta se abriu

violentamente. Sebastião estava completamente

embriagado. Gritou palavrões como nunca.

- Eu tô com fome, porra!

A comida ainda não estava pronta. Foi a gota

que faltava. Deu um chute na panela de arroz e, em

seguida, agarrou Maria pelo braço e sem motivo

qualquer começou a espancá-la impiedosamente.

Tomás nunca presenciara tamanha maldade e

violência. Um bolo se formou em sua garganta.

Assistia o espancamento incapaz de reagir. Ele não

parava de bater. Maria, não suportou aquela

humilhação e perdendo o medo, começou a gritar,

enfurecendo-o ainda mais. Cida e Tela tentavam

separá-los. Maria procurava se soltar, arranhando-o

completamente.

- Me larga, você está repreendido, Satanás!

Ele estava mais forte, como se estivesse

possuído por uma força sobrenatural. Nada era capaz

de fazê-lo largar a presa. Continuavam atracados e ele

despejava palavrões. Os olhos esbugalhados eram a

certeza de que ali não estava um ser humano. Maria

se sentia encurralada, como se estivesse lutando

contra um monstro e alguém precisava salvá-la das

suas garras.

- Pare papai... Pare papai! – Gritou Cida.

- Ele vai matar a mamãe! – Alertou Estela.

Num ímpeto, Tomás foi despertado do estado

de passividade. Um ódio intenso subiu-lhe à tona, o

sangue fervia. Aquele homem não iria matar a sua

mãe! Avançou para a janela, pegou a trava que servia

para cerrá-la à noite. O pai estava de costas. Uma

cólera terrível apoderou-se de Tomás. As irmãs,

pressentindo o seu intento, tentaram arrancar a trava,

mas ele as empurrou para o lado, decidido. Era tarde

demais. Desferiu um golpe certeiro na cabeça de

Sebastião.

- Miserável! Você não vai matar a minha mãe!

O silêncio. Os soluços. O pavor. O pai

desacordado no chão em meio ao arroz derramado,

ainda cru. A poça de sangue debaixo da cabeça.

As mãos de Tomás ainda seguravam com

firmeza a pesada trava e o coração parecia querer

saltar fora. A realidade: o pai estava morto!

Ele estava morto.

Morto.

Então a sua mãe cessou o pranto e ainda

ofegante, se colocou de pé. Apertou o filho com força

e determinação contra o peito. Precisava enchê-lo de

energia, compreendera tudo: o filho tinha acabado de

matar o pai para salvá-la. Ela estava livre das suas

garras. Era o fim de um homem que nunca deixou a

felicidade entrar no barraco. Um fim trágico,

desgraçadamente inesquecível...

Por um momento, foi o silêncio que o dominou.

Depois as mãos foram se afrouxando e a trava caiu no

chão, num baque surdo. Tomás estava de volta. Então

ele chorou. Chorou como nunca. As irmãs também.

Maria ainda sangrava o nariz, mas, apesar de tudo,

era a mais forte. Sebastião estava estendido no chão e

Tomás já não suportava aquele quadro horripilante

pintado com fiel perfeição. Correu para o quarto,

jogou-se na cama e soluçou desesperado. O estômago

revirava, sentiu uma incontrolável vontade de

vomitar, parecia que todo o aparelho digestivo ia

saltar fora... As lágrimas não paravam. A mãe entrou

em seguida. Não queria que o filho ficasse sozinho

num momento tão delicado como aquele.

- Não fique assim, meu filho...

Maria alisou-lhe os cabelos com carinho, sua

voz terna buscava acariciar a alma do filho.

- Aconteceu... Você não queria, mas aconteceu.

Ele encontrará um bom lugar e terá descanso.

Ela nunca pode imaginar como aquelas

palavras machucavam o coração de Tomás...

- Eu...

Gaguejou, voz trêmula, engasgado. Buscou o

olhar de mãe e disse, tomado de emoção:

- Eu quis. Ele morreu, não é? Agora seremos

felizes! Ele não vai mais bater na senhora e nem nas

meninas. Ele vai ser enterrado! Nós estamos livres...

O filho estava diante de um pesadelo. Sentia

uma mistura de amargura, desespero, delírio... Os

conceitos se misturavam, não sabia o que pensar.

Estava confuso.

- Eu matei papai... - voltou a chorar.

- Tomás... - ela chorou com o filho. Apertou-o

com mais força.

- Eu tirei a vida dele.

As lágrimas não se cansavam de fazer o

percurso sobre a face de Tomás e como eram

ardentes... A mãe tentava oferecer o consolo de todas

as formas, mas nem mesmo a sua imensa ternura

conseguiu aplacar o desespero.

Na outra cama, as meninas choravam o seu

drama. A cabeça doía com intensidade. Tomás

constatou que a vida não mais fazia sentido. A

verdade é que ele queria morrer também, apesar de

morrer de medo de morrer! Não era remorso, sentia

uma mistura de tristeza e vazio...

Lá no morro, era assim: pancadaria, facadas,

tiros, prostituição, fome e tráfico de drogas. Isso sem

falar na constante onda de assaltos e pelotão da morte.

A luta por sobrevivência era imensa. Uma tragédia a

mais ou a menos, não era novidade. Por isso, todo

mundo encarou com naturalidade a morte de

Sebastião. Ninguém suspeitava em que circunstâncias

ele morreu ou que o responsável pela morte era seu

filho. Para o povo, amedrontado da comunidade, a

morte serviu de alívio.

No outro dia, à tarde, foi realizado o enterro. A

maioria tinha a satisfação de ver pessoalmente a terra

cair na cara do homem mais detestável da favela. O

comentário era de alegria e desprezo. Saboreavam as

palavras:

- Acabou o reino do Bastião Pilantra.

- Ele vai comer terra fria, feder como carniça,

depois vai se acabar nas profundezas do inferno!

- Vai comer o pão que o diabo amassou.

- Vai pagar todo o mal que semeou.

E o cortejo fúnebre, sem esperança ou lamento,

teve o seu fim.

Sebastião foi enterrado.

A viúva e os filhos voltaram para casa.

Sete

“Toda sua ternura provocou um nó na garganta e as lágrimas retomaram seu caminho”

No barraco, os dias continuavam a passar sem

qualquer horizonte... A sensação de vazio era

alimentada pela tristeza, pelo silêncio e o medo de

enfrentar a vida. No semblante de cada um, estava

desenhada a mesma angústia: o que seria deles?

Apesar de Sebastião ter sido um ladrão perverso,

sustentava a casa e agora, sem ele? Não havia

resposta.

Naqueles dias, Tomás evitou sair, vivia quieto

no canto, contemplando o vazio. Quando era noite,

perdia o sono, ficava horas acordado, pensando o que

fazer. Nadava num mar de pensamento, dúvida,

incerteza, melancolia.

“Canivete, a vida continua, agora você é o

homem da casa. Tem que levar adiante o desejo do seu

pai, afinal, era isso que ele esperava de você. Agora

você pode satisfazer a sua vontade”.

Os pensamentos se confundiam. Os olhos

pesavam, sentiu a chegada do sono. Batia no telhado

uma chuva fina. Puxou a coberta, encolheu-se e

dormiu profundamente.

O sonho feio que invadiu o seu repouso,

afastou qualquer vestígio de paz. Era uma noite sem

luar. Ele estava em meio a uma tempestade. Os

trovões estouravam a todo o momento e os

relâmpagos riscavam o céu. Tomás sentiu o corpo

inteiramente encharcado, enquanto os pés se

atolavam numa lama grudenta que dificultava os seus

passos. O lugar era deserto e não tinha qualquer

abrigo. De repente, do nada, avistou uma velha

cabana, abandonada, ao lado da estrada. Tomou

coragem, atravessou a tempestade e caminhou em sua

direção. A porta estava entreaberta, como se o

aguardasse. Entrou. Estranhamente, no interior da

casa o frio era maior. O telhado estava repleto de

goteiras. O vento entrava uivando pelas janelas

esburacadas. Na penumbra, teve a desagradável

sensação de que dezenas de olhos atentos o espiavam.

Entre os sussurros desconexos, pode ouvir o choro

inconsolável de uma criança. Uma voz suave,

feminina, tentava acalentar o bebê, mas ele

continuava soluçando como se sentisse uma dor

muito grande. Mas o pior veio em seguida: o clarão de

um relâmpago aumentou a visibilidade do interior da

casa e ele enxergou o horror: um senhor estendido no

chão, rodeado de arroz, feijão, sangue... Era o seu pai.

Ele estava naquela casa e, ao seu lado, dezenas de

pessoas as quais ele não conseguia ver o rosto. Mas

podia ouvir e compreender aquilo que eles diziam.

Primeiro, falavam em voz baixa, como se fosse um

perigoso segredo e sempre apontavam em sua

direção. Depois, falavam alto, quase aos gritos. O

choro doloroso da criança aumentou. As fortes e

insistentes acusações dos desconhecidos eram

apavorantes. Ele apertava os ouvidos, mas não

conseguia expulsá-las.

“Você matou seu pai, você matou seu pai, você

matou seu pai”

- Não! Eu não queria...

“Você tirou a vida do seu pai”

- Meu Deus...

“Agora ele dorme debaixo da terra fria no

cemitério triste”

- Vá embora... Vá embora...

“Você é o culpado, você é o culpado, você é o

culpado”

- Não! Não!

Estava a ponto de enlouquecer. Continuou

apertando os ouvidos, mas as acusações

aumentavam:

“Você matou seu pai! Você matou seu pai! Você

matou seu pai!”

O eco ensurdecedor. O choro convulsivo da

criança... Tomás rolou na cama desesperado. Teve a

nítida sensação que corriam lágrimas de sangue sobre

a face.

Sim, o remorso veio. E como ele é terrível.

Insiste em sua perseguição. Não oferece qualquer

trégua... Num ímpeto, veio à mente uma poesia que a

Estela escreveu quando perdeu o namorado. Na

ocasião ela se sentia no fundo do poço, por isso aquele

título. No fim. Era exatamente a sensação que ele vivia

naquele momento. Quando Estela declamava aquela

poesia, ficava emocionada, em lágrimas.

O fim

Oh! Inquietante angústia!

não permitas que eu pense no fim.

mesmo sabendo quero acreditar diferente...

e tudo é infinito.

É mais que um grito seco,

da garganta de um louco desgraçado!

Sou eu o mistério.

Sou eu a poesia.

Sou eu o rascunho.

Sou eu a caatinga...

E como não queria ser,

Mas continuo sendo humano!

Por que não um passarinho?

Voando

Cantando

Alçando a liberdade...

Mas existe a gaiola.

A molecada,

As pedradas,

O assado para o cão.

E novamente a angústia.

Vejo o meu fim

Em água,

Em fogo,

Em riso,

Em choro.

Puramente o meu fim.

O nosso fim.

Nada mais.

- Não, eu não queria!

A mãe acordou com os seus gritos. Levantou-

se apressada e juntou-se ao filho. Compartilhava a sua

desgraça. As irmãs acordaram também, estavam

abatidas, mas aparentemente conformadas. Só ele não

conseguia ter paz, sentia-se o causador da tragédia.

A mãe acariciou sua fronte. Estava quente. Os

cabelos molhados e ele tremia, agarrando-se às

cobertas.

- Não fique assim, meu filho...

Aquelas palavras tão sentidas e verdadeiras

causavam-lhe uma enorme tristeza.

- Você está queimando de febre.

- Não fique assim, Tomás, você precisa se

conformar – dizia Estela.

Elas não sabiam o que dizer, mas ele

compreendia a solidariedade familiar naquele

momento tão difícil da sua vida. Como poderia se

conformar? Ele sabia que o pai era um homem

violento, maldoso, perverso. Mas ele o matou. Em

defesa da mãe, é certo, mas o matou. Culpava-se por

entender que aquilo não tinha conserto, era

irremediável.

Pouco depois, Cida trouxe o chá. O frio

aumentou. Um bolo se formou em sua garganta. O

cheiro do chá impregnou o quarto e fez aumentar a

vontade de vomitar.

- Tome meu filho, bebe o chá, faz bem, você vai

ver.

- Não... Se eu beber, vomito.

- Mas você não comeu nada, está ficando

doente... Está tão pálido e fraco. Se você quiser eu

preparo um mingau bem gostoso, pode ser?

Tomás olhou para a mãe. Ela tentava ajudá-lo a

enfrentar a dura realidade, esforçava-se para que ele

se recuperasse do terrível sentimento de culpa que

ocupava seu coração. A ternura materna provocou

um nó na garganta e as lágrimas retomaram seu

caminho...

- Mãe... Eu vou para o inferno! Deus não me

quer mais.

Maria deixou escapar duas grossas lágrimas e

me apertou com força entre os braços.

- Não é assim meu filho. Deus é nosso Pai. Ele

entende as nossas reações. Vamos esquecer tudo.

Você é muito jovem para pensar estas coisas...

Na verdade, os quatro sabiam que ele não era

mais a criança inocente de outrora. Estava ali um

homem atormentado, sem saber o que fazer ou que

rumo tomar. Ele não podia esquecer simplesmente. A

cena voltava-lhe a todo o momento: o pai batendo na

mãe e ele o atacando por trás com a travanca. Depois

o pai estendido, morto, perto do fogão cujo fogo não

queria se firmar. Uma cena que marcou

definitivamente a sua existência.

E foi entre pesadelos e noites traiçoeiras que

Tomás foi sobrevivendo. Procurava não pensar na

tragédia e assim, tornar suportável a sua realidade.

Tudo ia bem, até que as provisões se acabaram.

Faltava dinheiro, faltava comida. Tomás permitiu que

Canivete ganhasse a rua. Voltaria a roubar. Levantou-

se mais cedo e foi para o centro, para as ruas

movimentadas. Voltou à tarde, quase ao pôr-do-sol.

Trouxe biscoito, arroz, carne e feijão. Comprou com o

dinheiro tirado à força de uma jovem.

- Ei, moça! Passe a bolsa, vamos!

- Ora, que atrevimento, eu... – calou-se ao

perceber uma faca pontiaguda perto do pescoço.

Estremeceu.

- Vamos! Passe a bolsa! – Ordenou com

firmeza. Ela estendeu a bolsa apressadamente. Tremia

e fazia cara de choro.

- Por favor, não me faça mal...

- Não quero papo! - Saiu correndo.

Ela gritou por socorro e Tomás desapareceu

como fumaça.

Os dias passavam. Ele continuava nas ruas,

ganhava experiência e perdia o medo. Enquanto isso,

a mãe e as meninas buscavam uma forma de ganhar a

vida honestamente. Cida começou a lavar e passar

roupa para os conhecidos. Estela passou a vender

doces caseiros pelas ruas. A mãe cuidava do barraco e

costurava para a vizinhança. O pouco que ganhavam,

garantia a sobrevivência da família. Mas o filho não

pensava assim. Adquirira gosto pela bandidagem,

seguia fielmente os ensinamentos e os passos do pai.

No início, tentou viver como Tomás, o bom menino.

Fazia a sua parte de forma honesta, vendia picolé,

engraxava sapatos. Mas, interiormente, o conflito de

personalidade se intensificava, tornando-o dividido.

Canivete era seu lado forte, decisivo, valente,

revoltado... Um pivete perigoso que queria mais,

sempre mais. Sua ambição não tinha limites, por isso

escolheu o jeito mais fácil de ganhar dinheiro. Era o

que sabia fazer com perfeição. Para manter-se longe

do olhar crítico da família, foi criando uma rede de

mentiras cada vez que chegava ao morro com

dinheiro, aparelhos eletrônicos ou roupas diferentes.

Enganava a si mesmo. Maria se quedava num silêncio

repleto de decepção, sabia que o filho fazia o caminho

do pai.

Ele já estava familiarizado com a vida de

pivete. Roubava de tudo: feira, supermercado, batia

carteira e assim por diante. Juntou-se aos outros

pivetes, tornando-se em pouco tempo o líder. Tinha

habilidade em planejar e colocar em ação os assaltos.

Estava bem diferente do garotinho fraco e medroso.

Ninguém o conhecia por Tomás, seu nome de guerra

era Canivete e ele já gostava do apelido, uma

lembrança do pai, que um dia o batizou de moleque

de rua.

Mesmo vivendo uma vida condenável, Tomás

buscava manter o respeito à vida. Nunca maltratou

qualquer vítima, apenas ameaçava como estratégia de

impor o medo. Curiosamente, nunca fez uso de

drogas ou bebidas. Experimentou o crack uma vez,

mas não gostou. A única coisa que passou a gostar e

não abriu mão foi o cigarro.

- Canivete, vamos pro centro?

- Não Chico, hoje não!

- Por que não, cara?

- Porque não estou a fim. É isso aí!

- Que bicho te mordeu Canivete?

- Você também, Betão? Ora, vá tomar no cu! Eu

quero ficar só! Hoje vocês vão sem mim!

- Mas sem você não tem graça!

- Eu já disse que não vou, porra! - Gritou.

Eles saíram. Tomás voltou para o barraco e

jogou-se na cama. Não tinha ninguém em casa. Uma

tristeza repentina o apanhou desprevenido, ferindo-o

profundamente... Então, chorou em voz baixa.

Em casa, a mãe e as irmãs ainda o chamavam

de Tomás. Aliás, para elas, ele nunca era o Canivete,

mas um menino bondoso e sensível. O remorso já não

o perseguia com frequência e ele procurava não

pensar naquele labirinto esquisito, repleto de vozes

estranhas e gritos medonhos. Às vezes, em sonhos, o

remorso voltava de forma inesperada e ele acordava

gritando. Como sempre, a mãe vinha para a sua

cabeceira, trazia o consolo e ele voltava a dormir.

Oito

“Os curiosos seguiam seus passos com o mesmo olhar de compaixão”

Dois meses mais tarde, numa certa noite,

aconteceu algo inesperado e eles acordaram

apavorados. A porta do barraco se abriu

estrondosamente. Entraram três homens armados. A

família nada entendeu. Ficaram mudos de terror.

- Muito bem! Queremos as joias e a grana! -

gritou o primeiro. Tinha uma tatuagem no ombro

direito: um pirata de sorriso maldoso e braços

cruzados. A cabeça raspada, os músculos avantajados

e a pele branca queimada de sol, realçavam a cicatriz

escura em alto relevo no meio da testa.

- Que joias? Que grana? – Perguntou Maria.

Ninguém sabia do que eles falavam. O homem

da cicatriz agarrou Maria, ameaçando-a:

- Aqui, coroa! Queremos o dinheiro e as joias

que o safado do Bastião escondeu da gente. Vamos,

diga onde está! – encostou o revólver na cabeça de

Maria. Eles estavam furiosos.

Os outros apontavam as armas para os três

filhos.

- Eu não sei! - Maria sacudia-se tentando se

libertar do pirata - Bastião nunca falou dos seus

negócios. Não confiava em ninguém! Pelo amor de

Deus, vão embora, deixe a gente em paz. Não

sabemos de nada...

O pirata arregalou os enormes olhos, franzindo

a feia cicatriz. Sacudia Maria com mais força ainda.

- Você está mentindo, coroa! Eu não estou

brincando! Somos capazes de mandar sua laia pro

inferno! Bado, você fica aqui e pode atirar se qualquer

um reagir. Vem comigo, Miro, vamos revirar esse

barraco inteiro. Essa grana tem que aparecer!

O barraco foi completamente revirado. O

bandido, chamado Bado, era gordo, baixote e

bigodudo. Tomás teve a nítida impressão que já o

tinha visto em algum lugar. Tentou se lembrar de

todas as formas, mas não conseguiu. Miro, o terceiro

homem, era moreno claro. Também ele possuía uma

tatuagem no braço direito, à altura do músculo. Um

dragão colorido, soltando a típica labareda. Era

fortíssimo. Os cabelos eram avermelhados e pelo jeito

era o mais velho do grupo, deveria ter uns 40 anos.

Quando falava, notava-se a falta de um dente.

Depois de revirar o barraco, os dois retornaram

à sala. Tomás foi amarrado com uma corda que estava

pendurada no telhado. Servia para estender roupa

lavada. Os bandidos ameaçavam e praguejavam o

tempo inteiro.

- As filhas de Bastião... – comentou o pirata,

cheio de segundas intenções - dizem que o velho

Bastião morria de ciúmes dessas morenas!

- Fale onde estão as jóias e o dinheiro! Anda,

morena gostosa! - gritou o moreno forte.

Estela esperneava. Não era presa fácil. Brigaria

até o fim. Desconfiava das intenções dos caras.

- Eu não sei de nada seu porco! Me solta

desgraçado! - gritava.

Eles sorriam, divertindo-se com a cena. Era

uma verdadeira tortura.

- Vai dizer ou não, velha? - insistia o Pirata.

Maria suplicou-lhes:

- Eu já disse que não há dinheiro! Vão embora,

por favor!

- Ora, pois agora é que não vamos. Quer saber

de uma coisa cambada? Vamos comer as mentirosas!

- anunciou o pirata. O mais perverso de todos.

Maria implorou, em vão. Eles estavam

realmente dispostos a levar adiante a ideia. Não

queriam perder o trabalho. Não encontraram as joias,

mas tinham três fêmeas ao alcance, seria a

compensação.

- Não, por caridade não façam isso.

Maria procurava de todas as formas, fazer com

que os três homens mudassem de ideia. Cida era a

mais desesperada, desatou a chorar sem trégua.

Revoltado, Tomás ameaçou os bandidos:

- Não toque nelas! Eu mato vocês! - gritou

chorando.

- Olhe quem fala! Estou morrendo de medo... -

a gargalhada foi geral.

- Vamos pra cama. Se não disser onde está o

dinheiro, vamos brincar até enjoar! Escolham!

- Não sabemos de nada! Eu me entrego a vocês

no lugar das meninas, não façam nada com elas!

- Não, mamãe, não peça isso! - gritava Cida.

- Queremos as três! – Decidiu o pirata.

“Jesus misericordioso proteja meus filhos”

Um dos bandidos amordaçou Tomás. Em

seguida levaram as três para o quarto. Elas relutavam

e os bandidos as empurravam decididos. Da salinha,

Tomás escutava os gritos das irmãs e as risadas dos

três homens. Elas se esforçavam, lutando

desesperadamente contra os bandidos e ele, ali,

amarrado, amordaçado, indefeso, sem poder fazer

nada, nem mesmo tapar os ouvidos.

- Pare com isso, pelo amor de Deus! - Pedia a

mãe em soluços.

- Abre as pernas coroa! - Rosnava o pirata.

Tomás entrou em desespero, não podia gritar

por socorro. A comunidade dormia solenemente. Por

um momento ele duvidou da existência de Deus.

Estava vivendo um pesadelo infernal: ouvia gemidos

de prazer entre palavras obscenas. As lágrimas

escorriam sem trégua. Por que Deus não o ajudava a

ficar livre das cordas? Mesmo se morresse tentaria

impedir aquela barbárie. Uma revolta amarga, imensa

veio-lhe à tona. Lembrou-se das passagens bíblicas

que a mãe lia na quaresma e sentiu-se exausto,

entregue à própria sorte:

“Meu Deus, meu Deus... por que me

abandonastes?”

“E o seu suor caía sobre a terra, em grandes

gotas de sangue”...

O filho do homem finalmente aceitou o flagelo.

Nada podia modificar a história.

“Meu pai, se este cálice de sofrimento não pode

passar sem que eu beba faça-se a tua vontade, embora

não seja como eu quero, mas sim, como tu queres”...

Tomás perdeu os sentidos. Ficou desacordado

por algum tempo. Quando se recuperou, notou o

silêncio. Não ouvia mais os soluços abafados da

família, nem o sorriso dos bandidos. Tudo era

silêncio. Um vento frio passou por ele feito uma

lâmina gelada de terror, tomou-lhe todo o corpo.

Presságios...

Tomás experimentou uma profunda aflição

misturada ao frio que arrepiava a espinha. Virou-se de

todos os lados, tentou se libertar. Quando tudo

pareceu perdido, viu que o nó estava frouxo. Então ele

girou as mãos com cuidado e finalmente livrou-se das

cordas. As marcas vermelhas ficaram desenhadas nos

pulsos. Arrancou o pano que o amordaçava.

- Mamãe! Cida, Tela... - gritou - eles se foram!

Mas o grito perdeu-se no silêncio. Não houve

resposta. Correu ao quarto e viu a mãe e as duas irmãs

completamente nuas e sem vida. Tomás gritou com

todas as forças, mas o grito ficou entalado na

garganta. O mundo tinha acabado de desabar sobre a

sua cabeça.

- Mamãe...

A mãe levou um tiro na testa. Tomás retirou o

pano que cobria a sua boca, buscando a sua expressão

de ternura, de vida, de carinho... Estela foi morta com

um tiro no peito. As poucas roupas que lhe cobriam,

estavam em farrapos. A poucos metros estava

Cidinha, estendida, os olhos entreabertos...

Tomás se perguntava as razões daquela

chacina. Não tinham conhecimento de dinheiro ou

jóias.

- Não... Não... - chorou desesperado.

Abraçou a mãe, a sua melhor amiga, uma

mulher pela qual ele foi capaz de cometer um crime.

Agora, ela partia da sua vida de uma forma

estupidamente definitiva.

Um leve respiro. Um sopro de vida. Virou-se.

Era Cida, que apesar do tiro no peito, ainda vivia.

Tomás aproximou-se, retirou-lhe a mordaça. Ela o

olhou amorosamente, num fio de voz rouca, deixou

seu recado de despedida.

- To... Tomás... Você... Precisa... Viver!

Sorriu ternamente. Tomás tocou suavemente

seu lindo rosto. Mas se havia alguma esperança de

salvar a irmã, dissipou-se como fumaça. Cida também

se foi. As três mulheres de sua vida estavam mortas.

Com voz trêmula, carregado de emoção, ele proferiu

o maior juramento da sua vida, reunindo todas as suas

forças:

- Sim, eu vou viver minha irmã! Só vou

sossegar no dia que completar vingança! Eu juro que

ainda vou encontrar os três demônios e eles vão pagar

por essa desgraceira! Eu juro Cida... Eu juro mamãe...

Eu juro Tela...

A cabeça girava. Estava tonto. Vomitou

violentamente.

Ninguém ouviu o seu pedido de socorro. Todo

mundo estava acostumado com escândalos, violência,

batidas policiais que nem ligavam. Ainda mais em se

tratando de gente ligada a Bastião Pilantra.

- Elas morreram papai. Só ficou Tomás, o seu

canivete... – disse emocionado.

Em passos trôpegos, dirigiu-se à sala. Começou

a gritar desesperado. Naquele momento não sabia

fazer outra coisa. Algumas vizinhas escutaram os

gritos apavorantes e entraram correndo. Era de

manhã e o dia anunciava a dor que ele teria que

carregar pelo resto da vida.

- Meu Deus! O que houve aqui filho? -

Perguntou dona Belarmina, a parteira da

comunidade. Ela o abraçou, preocupada.

- Tomás, você está quente e pálido como uma

vela... Onde está a sua mãe?

- No quarto... - respondeu em lágrimas.

Elas entraram e se horrorizaram, diante da

tragédia.

- Santo Deus! O que foi que houve aqui,

Tomás?

Pouco a pouco o barraco foi se enchendo de

gente que antes nunca tinha dado as caras. Alguns

estavam ali por solidariedade, para compartilhar a

sua dor, mas a maioria tinha curiosidade, queria

presenciar os frutos de mais uma tragédia lá no

morro. Todos ouviam a sua história, choravam e

lamentavam a sorte do garoto. Era tudo o que podiam

fazer... Ofereceram-lhe calmantes, conselhos,

orações... Mas ele só queria sumir daquele lugar e

daqueles olhos piedosos. Não suportava o comentário

que faziam:

- Que pena!

- Nunca vi coisa igual!

- Pobre criança...

- Sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem ninguém!

- O que será dele sozinho no mundo?

- Deus sabe o que faz...

- Tudo tem seu dia e a sua vez!

- Você viu que tragédia?

- Mundo terrível!

Dona Belarmina o convenceu a tomar alguns

calmantes. Uma moleza tomou conta de si e ele foi

levado para a cama. Dormiu profundamente.

Acordou horas depois, banhado de suor. O barraco

estava repleto de gente que ele conhecia e gente que

nunca viu. Sentiu novos enjôos, vomitou mais uma

vez. A cabeça doía e o corpo não queria obedecer...

Fechou os olhos, voltou a dormir. Quando acordou já

passava do meio-dia. Levantou-se e foi à sala, desta

vez não chorou, aguentou firme. Uma estranha paz

conduzia-lhe os passos. As mulheres haviam dado

banho e ajeitado os corpos nas camas. As três estavam

serenas, como se dormissem tranquilamente. As

pessoas não se cansavam de comentar o triste

espetáculo. Ele deu um beijo em cada uma. Era seu

adeus à família querida; já não podia e nem queria

suportar tudo aquilo. Saiu em direção ao quintal. Os

curiosos seguiam seus passos com o mesmo olhar de

compaixão.

Dona Belarmina era uma mulher bastante

compreensiva. Quando percebeu as suas intenções,

foi atrás, chamou-o ao lado da casa e conversaram em

voz baixa:

- Aonde você vai, Tomás?

- Dona Belarmina, cuide de tudo. Eu não

aguento ficar aqui...

Ela o abraçou com carinho de mãe. A boa

senhora sentiu-se profundamente comovida com a

dor daquela criança ferida.

- Filho... Sabe mesmo o que vai fazer?

- Sei... A senhora foi a única amiga de mamãe.

Por favor, cuide de tudo. Está doendo muito, dona

Belarmina... Não posso ficar. Não quero ficar.

- Meu filho... Não vá embora, fique comigo. Eu

cuido de você!

Ela chorava mais do que ele.

- A senhora é muito pobre. Tem um monte de

filhos. Eu sei que a senhora tem bom coração e boa

vontade. Eu agradeço dona Belarmina, mas não posso

aceitar!

- Mas não vá agora. Você está muito abatido...

- Não, se eu ficar é pior...

- Eu vou orar por você! Pode deixar, eu cuido

de tudo!

- Por favor, ajeite minhas roupas, eu volto para

apanhar num outro dia.

- Cuidarei de tudo, Tomás.

- Adeus dona Belarmina. Não me esquecerei da

senhora!

Ela o abraçou amorosamente. Choraram

juntos.

- Você está bem? Não quer tomar algum

remédio?

- Não, não quero remédio... Adeus!

Para a sua dor não havia remédio que curasse.

Nove

“De repente um estalo: a certeza de que ele estava só, abandonado e infeliz”

Tomás saiu andando por aí. Destino era coisa

que ele desconhecia. O sol estava deixando o seu

brilho. Era quase noite. Estava cansado. Resolveu

sentar-se na grama de um jardim e repousar o corpo.

A imagem dos três facínoras não saia da mente e ele

jurou que um dia se vingaria de tamanha crueldade.

Nem que fosse a última coisa que fizesse. Sentiu fome.

Os olhos pesavam, o sono, os pensamentos confusos e

vozes de um passado recente.

“Canivete, levante-se, temos um trabalho a

fazer!”

“Mamãe... eu vou pro inferno, não é? Deus não

me quer mais”.

“Meu Tomás... não fique assim, meu pequeno”

“Papai, Tomás é apenas uma criança”

“É muito cedo papai, espera ele crescer um

pouco mais”.

“Tomás... você precisa viver!”

“Mãe, por que nós não temos amigos?”

“Meu Tomás, você não pode ficar assim, tome,

beba este chazinho”

“Não mamãe, se eu beber eu vomito”

“Você ainda vai ser muito feliz meu pequeno”

“Você é um anjo, Tomás”

“Mãe, o que é universo?”

As aulas de Estela, o sorriso de Cida e a ternura

da mãe... depois a penumbra e tudo se fez silêncio.

Sacudido pelos ombros, voltou bruscamente à

realidade. Era um guarda.

- Levante-se moleque! É proibido deitar na

grama!

De repente um estalo: a certeza de que ele

estava só, abandonado e infeliz. Levantou-se

cambaleando e odiou também aquele guarda que não

se importava com a sua dor.

Mais adiante avistou uma velha casa

abandonada e lá se encolheu feito um cãozinho

doente. Já estava escuro. Sentiu frio, a cabeça doía e

ele delirava no sofrimento. Já não sentia forças para

chorar e o seu pranto era seco. Áspero...

- Onde está você mamãe? Cida, Tela, por que

vocês foram embora? O que será de mim?

As perguntas não tinham respostas e se

perdiam no ar. Sentia-se cansado e fraco. Febre alta.

Começou a tremer, agarrando-se a si mesmo, numa

busca desesperada de calor. Dormiu finalmente. Teve

um belo sonho que nunca mais saiu da memória: o pai

estava sentado pensativo. Tinha os olhos fixos num

ponto qualquer. Estava calmo. Em seguida, entrou a

mãe com um bolo apetitoso e o colocou sobre a mesa.

Todos cantaram os parabéns. Era o aniversário de

Sebastião, que sorria emocionado. Abraçou Maria,

depois cortou o bolo cor de rosa. Era um quadro lindo!

Uma família feliz...

No dia seguinte, acordou e estranhou tudo.

Pouco a pouco foi se dando conta da situação e deixou

escapar um suspiro cansado e triste. A lembrança do

sonho trouxe uma paz de espírito muito grande.

Sentiu fome, não tinha o que comer. O estômago

reclamou em grandes roncos. Engoliu em seco.

Pensou:

“Tomás, Canivete precisa trabalhar. Caso

contrário morrerá você e ele! Você não pode morrer!”

Levantou-se decidido, entrou numa feira.

Andou como quem não quer nada para uma banca

que vendia biscoitos e doces. Numa rapidez incrível

estendeu a mão e apanhou dois pacotes de biscoitos.

Saiu em disparada. O homem o perseguia aos berros.

Escondeu-se no meio do povo e o homem o perdeu de

vista. Momentos depois retornou à velha casa. Ali

seria seu novo lar. Era escura e suja. Mas ali se sentia

seguro. Não tinha para onde ir. Dentro de si uma

certeza: não retornaria ao barraco. Passou a evitar

qualquer contato com a comunidade ou qualquer

conhecido. Queria apagar a página mais triste da sua

história.

Todos os dias, assim que acordava, procurava

um jeito de se virar. A sorte estava do seu lado,

raramente voltava de mãos vazias. Um dia conheceu

dois garotos que se tornaram bons amigos. Eles eram

mais experientes do que Tomás. Era o Dudu e Tecão.

Dudu tinha 13 anos, era loiro de cabelos

encaracolados e olhos castanhos claros. O outro,

Tecão, era da sua idade. Cabelos espetados, moreno,

magro e sorridente. Seu olhar revelava uma tristeza

comovente. Ao lado dos novos parceiros, Tomás

aprendeu a principal lição: ver a vida como um

contrato de risco e de sorte. Uma aventura incerta,

momentânea. Estavam vivos por uma mera questão

de sorte. Apenas isso. Era assim o seu mundo: sem

qualquer foco de esperança, um dia atrás do outro

enquanto o corpo resistir, por isso a droga, por isso a

fuga, por isso o fim. Nesse mundo tinha de tudo um

pouco: maconha, revolta, crack e roubo. Tomás

provou de tudo, mas não gostou, não virou traficante

e nunca quis saber de drogas. Apenas o cigarro era o

parceiro de todas as horas.

Por outro lado, sua astúcia o fez se destacar.

Sempre bolava planos inteligentes. Tudo o que

roubavam, era repartido, ninguém ganhava mais. Os

meses foram passando. Depois de muito tempo

voltou a sorrir com os novos parceiros. Nenhum tinha

família, governo ou qualquer espécie de proteção.

Eles tinham em comum o ódio pelo mundo.

Um dia os três estavam em casa, sem ter muito

que fazer. Chovia torrencialmente. Começaram a

conversar sobre coisas da vida, primeiro sem muito

interesse, depois, aos poucos colocavam para fora os

dramas que ainda estavam vivos na memória. Tecão

foi o primeiro. Sempre que chovia ele ficava triste,

lembrava-se da mãe e do seu passado.

- Eu sempre tive vontade de ter uma família,

mas a minha mãe era puta. Eu nasci na zona. A minha

mãe era dona de uma das casas, mas eu nunca aceitei

aquele tipo de vida. Fui crescendo e tomando nojo da

minha mãe e de todas as putas. Fugi de casa aos sete

anos e nunca mais ouvi falar da minha mãe. Ela nunca

me procurou. Sua vida era melhor sem filho. Se eu

fosse mulher, talvez ela aceitasse. Meus amigos

viviam tirando onda da minha cara e eu não podia

fazer nada. Era tudo verdade. Nunca me arrependi de

ter caído fora. Nem sei por onde ela anda, se está viva

ou morta...

Tecão engoliu em seco, mas não segurou as

lágrimas. Era a primeira vez que tocava no assunto. A

chuva não parava. Na velha casa, chovia também. Um

rato entrou meio desconfiado, procurava comida.

Dudu atirou um biscoito, ele fugiu amedrontado,

depois retornou, cheirou e levou embora o seu

bocado.

Tecão suspirou, depois prosseguiu:

- Muitas vezes eu vi os homens com a minha

mãe. Eu ainda não sabia direito das coisas, era muito

pequeno. Quando eu via aqueles homens saindo do

quarto dela, abotoando as calças ou ainda pelados,

ficava desconfiado, sabia que não era coisa boa. No

outro dia, perguntava sobre o assunto, e ela me batia

com raiva. Puxava as orelhas e me colocava de castigo

dizendo: “nunca mais fique espiando, seu moleque!”

Ela nem ligou quando eu saí de casa. Passei fome e

frio. Pedi esmola e passei fome. Aí virei isso aqui,

velho. Virei dono do meu nariz, do meu pedaço. Eu

não ia morrer de fome. No ano passado conheci Dudu,

um fodido como eu!

- Comigo aconteceu parecido - começou Dudu.

Mastigava um pedaço de pão – Minha mãe era viúva

e doente. Sofria do coração. Quando completei cinco

anos, ela morreu. Ficou só eu e Lenira, minha irmã de

15 anos. Mas a burra se juntou a um sacana chamado

Julião. O fila da puta não valia porra nenhuma. Lenira

passou a sofrer nas mãos do cara, apanhava todo dia

e eu também. Um dia ela apareceu morta. Cortou as

veias com a gilete. Fiquei só, nunca mais ouvi falar do

safado. Nesse tempo eu estava com oito anos, caí no

mundo sem saber o que fazer. Já chorei de fome, sabe

o que é isso, porra? Comi coisa podre no lixo, dormi

nas calçadas e a porra toda. Aí eu resolvi fazer do meu

jeito e o resto que tome no cu. Um dia conheci o Tecão

e tamo junto até hoje.

Eles se calaram. Esperavam que Tomás

também contasse seu drama:

- Eu não quero falar de mim. Não faz nem um

ano que perdi toda minha família. A dor ainda é

grande. Um dia ainda acertarei contas com aqueles

miseráveis!

- Velho, precisa se acostumar com as cacetadas

que a vida dá!

- Só vou sossegar o dia que encontrar aqueles

miseráveis! Eles nem sonham que eu existo... Canivete

está bem vivo e tem sede de vingança!

As lágrimas desceram. Os companheiros

ficaram em silêncio. Compreendiam a sua dor.

Dez

Pois eu me apresento: sou o menino Jesus!

Era o dia 24 de dezembro. Véspera de mais

outro natal. O primeiro longe da sua família. Tomás

lembrou-se da sopa com pão, os presentes, a mãe, as

irmãs, o pai... Tudo estava tão longe! A tristeza mais

uma vez invadiu sua alma. Apesar de tudo, não

chorou.

A cidade estava novamente enfeitada. Muitas

lojas exibiam seu Papai Noel. Tecão e Dudu se

preparavam para ir à rua. Tomás preferiu não os

acompanhar. Fazia muito frio.

E Deus menino nascia outra vez...

- Você não quer ir Canivete?

- Não.

- Não me diga que está bonzinho hoje, só

porque é natal... - ironizou Tecão.

- Não é por isso... Quer saber o que mais? É isso

mesmo. Não tô a fim de roubar hoje. Eu quero passar

o natal em paz!

- Qual é velho? Papo sinistro, mano!

- Eu não vou! - Gritou.

As lágrimas desceram sem que ele pudesse

impedir. Desabafou aos soluços:

- É o primeiro natal que passo sem a minha

família...

- Ora Canivete, não fique assim...

Ele continuou chorando desesperado. Os dois

amigos se calaram, nunca o tinham visto assim.

- Vai passar Canivete...

- Não sou Canivete. Meu nome é Tomás.

- Vamos Dudu, ele quer ficar sozinho.

Ele ficou só. Uma saudade imensa tomou seu

coração. Recordou-se do último natal, onde

experimentara um raro momento de felicidade ao

lado dos entes queridos:

“Senhor Deus. Hoje é o seu aniversário. Você

nasceu mais uma vez...”

“Devagar Tomás, a sopa está muito quente.

Sopre aos poucos...”

“A cidade está uma beleza lá no centro. Está

cheio de Papai Noel nas lojas”.

De repente um estalo: lembrou-se do menino

que lhe ofereceu bombons e depois desapareceu.

Vivera uma experiência única, sem explicação

concreta: afinal quem era aquele garoto? Será que foi

apenas invenção da sua fértil imaginação?

“Quem lhe deu esses doces”?

Levantou-se. Precisava ir ao centro. Um

pressentimento atravessou-lhe a alma. Queria

reencontrar o garoto, mas já era noite. Será que a loja

estaria aberta?

Pouco depois estava em frente à loja. Estava

fechada. Ficou triste e desapontado, o menino não

estava presente. Mas afinal, por que insistia tanto

naquela ideia fixa? Era apenas um garoto comum, o

resto era por conta da imaginação.

“Você adora sonhar de olhos abertos, não é

Tomás?” – Pensou.

- Olá! – Disse a voz atrás de si.

Virou-se. Um susto. Era ele. Sorriu

bondosamente.

- Não precisa falar nada... Tome este saquinho

de bombons. Lá em casa tem bastante doce. Feliz

natal! Continuo torcendo por você. Você pode e tem

capacidade para muito mais. Pense no Pai. Ele te

consolará em todo e qualquer momento! Agora repita

comigo: “Senhor, põe em mim um coração novo.

Quero ser feliz, Senhor. Ajuda-me a descobrir minha

meta. Ajuda-me a buscar as coisas do alto”

- Quem é você?

- Você já me conhece. Eu sei que tu me sondas.

- Não o conheço. Você é um mistério...

- Pois eu me apresento: sou o Menino Jesus.

Uma leveza o carregou para muito longe.

Sentiu-se flutuar... Sorria feliz. Mas aos poucos tudo

foi desaparecendo: ele, o menino, a cidade.

Acordou. Esfregou os olhos diversas vezes e

constatou decepcionado: “foi tudo um sonho”.

Tentou dormir outra vez, em vão. O sonho não saia da

cabeça. Estava confuso e ligeiramente gratificado. As

horas foram passando. A noite feliz se despediu da

terra dos homens. O dia raiou.

Tomás Jamais contou aquele sonho. Guardava-

o no coração, como seu maior tesouro. Fechou os

olhos e mesmo sentindo o clarão da manhã, voltou a

dormir tranquilamente.

Três dias depois Dudu e Tecão retornaram.

Estavam com uma aparência horrível.

- Vocês sumiram...

- Tamo aqui, porra! – Respondeu Dudu. A voz

pastosa e o olhar perdido não deixavam dúvidas:

crack.

- Vamos fazer estoque de pedinha –

comemorou Tecão.

Depois que eles começaram a usar o crack, não

queriam saber de mais nada. Estavam magros,

maltrapilhos, dormiam mal e tinham alucinações.

Quando ficavam sem a droga, tornavam-se violentos,

sem paciência, não queriam saber de conselhos. A

comida ficava em terceiro plano. Às vezes eles

desapareciam, voltavam dias depois, sujos,

desfigurados e sem vontade de conversar...

Presságios... No coração, uma certeza que não

se apagava: seus amigos estavam dizendo adeus aos

poucos...

De certo modo Tomás sentia-se culpado, pois

mesmo morando na rua, estava numa situação mais

confortável, procurava se cuidar e resistia às drogas.

Só não conseguiu largar o cigarro.

Os dias foram passando e eles continuavam

naquele calvário. No início parecia que tinham o

“controle” total da situação, mas, aos poucos, a

situação se agravava. Tomás lembrava-se das

primeiras investidas e do modo como os amigos

foram se aperfeiçoando:

- Chega de papo, vamos curtir a peda – propôs

Tecão.

Ele se levantou e foi ajeitar o cachimbo. Tomás

observava atentamente os gestos precisos de Tecão e

Dudu. Os dois amigos se tornaram adeptos do crack e

ele sofria em silencio. Embora não utilizasse as

pedrinhas, sabia dos efeitos e como aquilo podia

terminar. Não sabia como os amigos começaram, mas

foram eles que apresentaram as pedras. A primeira

vez ficara atento aos detalhes e cuidados que eles

tinham com a droga. O ritual era bastante organizado:

primeiro eles juntavam certa quantidade de pó de

cocaína, a mesma quantidade de bicarbonato de sódio

e água. Em seguida era a vez de usar a colher para

servir de “forma” para os ingredientes, como se fosse

um punhado de farofa. Na sequência eles pegavam

um isqueiro e aqueciam debaixo da colher até a

fervura, aí era só colocar um pouco de água fria para

fazer o choque térmico. Por fim ficava uma massa

uniforme que era coberta com um pano, para secar.

Pronto: as pedras estavam prontas para o consumo.

Nos primeiros segundos a sensação é de um

prazer imenso, mas logo o efeito ilusório vai

passando, a língua trava, os olhos ficam grandes e a

fisionomia muda completamente. Sem falar nas

consequências que a pedra deixa.

Tomás nunca mais quis saber daquilo. Preferia

o cigarro. Enquanto isso, os dois amigos eram

dominados pela droga, de forma possessiva.

A história triste dos amigos, ainda não estava

completa. Tecão e Dudu passaram a roubar cada vez

mais para alimentar o vício. Não havia esperança,

sonhos ou a remota possibilidade de liberdade. O

abismo se aproximava e eles estavam caminhando em

sua direção...

Onze

“Sem muita coragem ela levantou o rosto. Não havia dúvida: estava diante de uma mulher admirável”.

O dinheiro se acabava com uma rapidez

tremenda e a ambição crescia. Tomás começou a agir

sozinho, atirou-se de corpo e alma no mundo

marginal. A experiência fomentava a sua astúcia em

armar planos perfeitos e infalíveis.

Um dia o pior aconteceu: Dudu e Tecão foram

presos e levados ao juizado. Nunca mais Tomás ouviu

falar dos amigos, procurava não pensar no pior,

embora desconfiasse que eles estavam mortos.

Sozinho outra vez, a solidão era sua fiel amante...

O tempo continuou a passar. Estava com treze

anos: voz grossa, espinhas, puberdade. Os poucos fios

de barba apontavam e ele se orgulhava da sua cara de

homem. Sentia-se com vinte anos. Alimentava a sede

de vingança e ele persistia disposto a encontrar os três

facínoras. Era possível que se Tecão e Dudu não

estivessem presos, ele acabasse mudando de ideia,

afinal, ao lado deles, até se esquecia dos algozes. Mas,

sozinho, a revolta voltava e com ela o desejo de se

encontrar com os bandidos para encerrar o capítulo

mais dramático da sua vida.

- Quer tirar uma comigo? - Indagou.

- Tem grana? – Disse ela.

- Sim. Vamos?

- Quantos anos você tem?

- 18. Por quê?

- O juizado. Você tem cara de menino. Não está

mentindo?

- Não. Como é, vamos ou não, porra? - Mostrou

o dinheiro.

- Não quer beber nada? Ainda é cedo...

- Uma pinga com limão.

- Lucy, duas cruas com limão pra gente!

Lucy era um homossexual que morava na zona.

Um cara muito divertido, amigo e protetor da

prostituta.

- Aqui está querida - disse sem desviar os olhos

de Tomás.

- Quem é o bofe? – Perguntou com ar de

malícia.

- Ainda não sei. Qual o seu nome, cara?

- Canivete!

- Uau! Que nome cortante, Bete!

Lucy passou-lhe a mão no rosto. Tomás

levantou-se irritado.

- Escute aqui porra, eu detesto viado.

Lucy não se intimidou. Sorria daquela mostra

de valentia.

- Ai... o bofe é uma fera, Bete! Ele quer me bater,

pode?

- Lucy, vá embora. O cara não gosta de

brincadeira!

- Duvido se ele não gosta de uma sacanagem de

vez em quando. Olha só gato, contigo eu faço de

graça. Na manha!

- Eu já disse que não gosto de homem! Saia

daqui ou te rasgo o fato!

Ameaçou mostrando-lhe a faca. A badalada

Lucy saiu dando gritinhos histéricos, fingindo estar

apavorada. Tomás começou a rir daquela figura

divertida.

Ficaram a sós.

- Vamos para o quarto, Canivete. Já vi que você

quer ir logo ao ponto final!

Uma cama mal arrumada os aguardava. O

aposento era apertadíssimo e um tanto escuro. Na

parede um quadro do “Sagrado coração de Jesus”.

Não havia qualquer emoção ou expectativa

para aquela mulher. Era um velho costume. Tomás

era apenas mais um cliente. Venderia o prazer em

todas as performances, deixando-o completamente

satisfeito. Fazer sexo era o jeito de ganhar a vida. E

então, sem qualquer cerimônia começou a despir seu

mais novo cliente. Bete era uma mulher experiente,

notou que estava diante de um iniciante. O garoto,

metido a homem, estava vivendo sua primeira

experiência sexual, sabia. Por isso, fez questão de

tratá-lo de modo especial, com carinho e respeito.

Primeiro procurou despertá-lo, beijou seus

lábios, enquanto uma das mãos deslizava sobre o

peito, até alcançar as partes íntimas. Tomás ficou

excitado e, ao mesmo tempo apreensivo. Tentou

esquivar-se das suas carícias ousadas. Para deixá-lo à

vontade, dono da situação, ela tratou de elogiar seus

atributos físicos.

- Você tem razão. Não é criança coisa nenhuma!

Ela sorriu vaidoso. Então ela o empurrou sobre

a cama, jogando-se sobre ele. O acariciou de um jeito

todo especial, soltando gemidos de prazer. No

começo, não reagiu, ficou em silencio, olhos fechados,

numa sensação de intensa paz. Mas, aos poucos, viu

que aquilo era bom. Sentiu-se num paraíso

desconhecido, mas, totalmente maravilhoso. Sorriu,

repleto de prazer. Ela também. Agora ele estava mais

à vontade. No comando. Tomou coragem e começou

a beijá-la, meio sem jeito, deixando-a agradavelmente

surpresa quando ele a tocava respeitosamente,

inseguro, repleto de carinho. Por alguns momentos,

teve a sensação de que voltara a ser a garotinha que

sonhava encontrar-se com seu príncipe encantado.

Tomás estava eufórico. Não queria parar, nem

saber de nada mais. Para ele, o mundo lá fora, era

insignificante. Bete estava ali para satisfazer seus

caprichos, expulsar seus medos e revelar que existe

vida além das tragédias. Aquele quarto pobre, sem

qualquer conforto, era a representação do paraíso.

Estava exausto. Ofegante. Ela acariciava seus

cabelos. Por alguns segundos, ele sentiu que uma

moleza prazerosa tomava conta de si.

- Gostou?

- Quero mais! - Voltando energia, fez tudo

outra vez.

Bete era uma jovem de apenas dezenove anos.

Uma bela morena de lábios salientes, alta, pernas

grossas e seios fartos distribuídos em decotes sensuais

que acentuavam o seu charme. O rosto conservava os

traços infantis de menina do interior.

Ela não conhecia muita coisa do seu passado.

Quando contava apenas um dia de nascida, foi achada

num monte de lixo, quase morta e rodeada de

formigas. Nunca soube dizer se tinha pai, mãe ou

irmãos. Uma pobre menina abandonada no meio do

lixo, apenas isso.

Um casal de pescadores se compadeceu da

criança que gritava de fome, e a levou para casa.

Deram-lhe banho, comida e carinho. A menina passou

uma parte da vida ao lado da nova família: um lar

pobre, de gente simples e sem muitas perspectivas. A

menina cresceu e viveu feliz por algum tempo, tinha

no coração a certeza do amor e da proteção dos pais

adotivos. Mas, um dia, o desejo cruel do pescador foi

maior que o sentimento paternal. De modo

animalesco, ele foi se aproximando até conseguir

romper, definitivamente, a ternura da menina que o

chamava carinhosamente de padrinho. Tinha apenas

onze anos quando foi estuprada.

Tudo começou com o excesso de ciúmes que o

pai adotivo nutria pela garota. Bete era vigiada a todo

o momento e o comportamento do padrasto jamais

levantou suspeita, afinal era um homem caridoso,

evangélico e cheio de boas intenções. O casal não tinha

filhas, apenas dois garotos, ainda pequenos. Mas,

assim que a garota completou seis anos, o homem

começou a portar-se de modo estranho. Vivia

alisando seus cabelos, elogiava sua esperteza e

sempre que podia, trazia da rua um doce ou uma

lembrança qualquer para a garota. Bete crescia bonita

e inteligente. Depois dos sete anos, o ciúme do

pescador tornou-se visível. Enchia a menina de

conselhos e só se deitava depois que ela estivesse

dormindo. A esposa não desconfiava, nutria a certeza

de que o pescador fazia o papel de pai zeloso e

vigilante. A garota era como se fosse a filha legítima,

por isso, via com bons olhos, a exagerada dedicação

do esposo.

- Zequinha disse que você está meio calada... –

disse a madrasta.

- Dor de cabeça madrinha Celina – respondeu

a menina, coração aos pulos, cheia de medo.

- De uns dias pra cá você vive queixando de dor

de cabeça, vive nos cantos, triste...

- Nada não madrinha.

No fundo a menina desconfiava das intenções

do padrasto. Sentia-se insegura e meio sem jeito

quando ficavam a sós. Toda vez que a mulher se

ausentava, o padrasto dava um jeito de infernizar a

sua vida. Foi assim, naquela manhã de domingo.

- Não abriu o presente... Você sempre gostou de

chocolate.

- Padrinho, não precisa trazer doce... –

desculpou-se a garota.

- Está desprezando o presente do seu

padrinho?

- Não...

- Só precisa ficar boazinha... – alisou o rosto da

garota – hoje é seu aniversário de onze anos! Minha

menina virando mocinha, peitinho crescendo...

A menina gelou. Era o momento que mais

temia. Zequinha pescador não escondeu o forte desejo

que sentia pela bela morena que habitava seu rancho.

Não mediu sacrifícios ou embaraços naquele triste

domingo. A esposa e os filhos estavam na Igreja.

- Não faça nada padrinho, pelo amor de Deus...

– suplicou a garota.

- Não vai doer, você vai gostar!

A menina esperneava gritando, mas ele não

teve piedade e, como um animal feroz, rasgou-lhe a

pureza. Uma criança de onze anos... A prova cruel: o

pênis coberto de sangue. A menina gritava de dor e,

como se não bastasse a humilhação, foi ameaçada pelo

algoz enquanto abotoava a calça:

- Agora é assim. Sempre que eu quiser, você

fica comigo. Sou teu macho de hoje em diante.

Em prantos, a menina perdeu o medo e

enfrentou o padrasto pela primeira (e última) vez.

- Eu vou contar tudo para a madrinha Celina.

- Ela vai acreditar no marido ou numa morta-

fome que a gente deu abrigo? Fale e verá a resposta...

Buscou socorro na mãe adotiva. Estava em

prantos, desabafou com a madrinha, mas a reação da

mulher foi a sua maior decepção:

- Vagabunda, eu sempre notei seu jeito falso,

vivia abrindo as pernas e pedindo presente pro

Zequinha... Fez tudo de caso pensado, não é sua

moleca? Zequinha é homem de bem, respeitador e

temente a Deus. Você é erva ruim, do mundo e tem

que desaparecer!

- Não fale assim madrinha, eu não tive culpa!

A mulher começou a gritar mais desaforos.

- Suma daqui sua vagabundinha e nunca mais

apareça! Leve apenas a roupa do corpo!

E foi assim que aquela menina, sozinha e

indefesa, encontrou na prostituição a sua fonte de

sobrevivência. Aos 14 anos já conhecia o mundo

marginal das ruas e os prostíbulos da cidade. O

passado foi riscado da sua vida, tornou-se uma

mulher sem qualquer expectativa. Não tinha sonhos

ou vontade de sorrir. Tentou o suicídio algumas

vezes, não teve coragem. Sobreviveu. Cresceu.

Tornou-se uma mulher machucada pela vida.

...

Depois da primeira experiência, Tomás passou

a ser um assíduo frequentador da zona. Bete era a sua

preferida. Ela sentia tanta afeição por ele que nem

cobrava pelos momentos de prazer. Sabia como saciar

a sua fome de sexo e era cúmplice perfeita das suas

fantasias. Tomás virou o seu homem e aconteceu o

inevitável: estava amando, pela primeira vez...

Um dia, ela decidiu confessar o seu amor.

Chamou Tomás para uma conversa franca:

- Canivete, sou uma puta. Todo mundo sabe

disso, mas tenho coração. Eu já não sei viver sem você.

Uma puta nunca deve dizer isso, mas é verdade. Só

penso em você e já não quero me deitar com mais

ninguém. Sinto nojo dos outros homens, eles não são

como você... – atrapalhou-se na emoção e começou a

chorar.

Ele a ouvia em silêncio. Ela continuou, tentava

engolir o choro:

- Eu tô ligada em você, é isso, mas vamos

combinar uma coisa: você não vem mais aqui. Tem

um monte de casa aí na zona, um monte de garotas,

sabe? Não quero que você apareça mais aqui... Você

só vai atiçar o meu amor!

Silêncio. Esperava uma resposta. Tomás tocou

de leve seus cabelos e ela voltou a chorar.

- Não quero sua compaixão! – Disse, enquanto

afastava a sua mão.

Sem muita coragem ela levantou o rosto e

Tomás não teve dúvidas: estava diante de uma

mulher admirável.

- Você não gostaria de viver comigo? – Quis

saber Tomás.

Ela fechou os olhos. Estaria sonhando? Sempre

esperou por esse dia.

- É o meu maior sonho Canivete!

- Mas eu não tenho casa.

- Deixa comigo. A Lucy tem um barraco legal,

aqui perto. Ela voltou para Recife e deixou a casa para

mim. Não é grande coisa, mas é arrumadinha, tem

cama, cozinha, televisão e banheiro... O que você

acha?

- Eu topo.

Era exatamente o que ele pretendia: morar num

lugar seguro, cama, comida, roupa lavada e sexo a

todo o momento...

“Por que não? Não tenho nada a perder” -

pensou.

Aceitou, impondo-lhe apenas uma condição:

- Não quero saber de filhos!

- Tudo bem, eu também não quero.

- Então hoje mesmo a gente se muda pra casa

da Lucy.

Ela se atirou no seu pescoço sorrindo como

uma criança.

- Oh! Canivete! Nem estou acreditando! O meu

sonho está se realizando...

E assim o menino Tomás, aos 15 anos, tornou-

se o esposo de Bete. A barba rala disfarçava a pouca

idade. Bete confessou que desconfiava desde o início,

mas fingiu acreditar no seu homem feito.

Doze

“Ele estava diante do seu passado”.

E as primaveras passavam como nuvens sem

encanto... Tomás estava com 18 anos, vivia com a Bete,

uma mulher fiel, responsável e cheia de cuidados. Ao

seu lado, ele se sentia seguro. No fundo, os dois

estavam no mesmo barco. Ela deixou a prostituição e

se transformou em mulher de bandido. Ele já era mais

ou menos conhecido e respeitado entre os canalhas.

Algumas vezes Bete quis conhecer a sua

história, mas ele nunca falou sobre o passado, mudava

de assunto, mantinha segredo. Ela não insistia, ele

estava ao seu lado, o resto não tinha tanto valor. Era

uma mulher submissa e tinha consciência disso, fazia

questão de fazer tudo para que seu homem se sentisse

bem, alegre, realizado. Nunca o censurou. Para ela,

tudo o que ele fazia, estava correto. Amava-o com

ardor, sem medidas, de modo desesperador,

sufocante. Era uma mulher capaz de qualquer

sacrifício, desde que ele nunca se afastasse dela.

A vida prosseguia...

Certo dia, Tomás foi apresentado a dois

homens, num barzinho mal frequentado. Eram dois

bandidos experientes, precisavam de mais um

comparsa, de preferência jovem, sem envolvimento

com a polícia. Tomás ficou animado, aproximou-se

disposto a assumir definitivamente o mundo do

crime. Agir sozinho estava cada vez mais arriscado,

precisava se unir, criar defesas, fortalecer as ações,

realizar grandes assaltos.

- E aí rapaziada? Eu pago a rodada!

- Chega mais, gente boa! Sente e beba com a

gente. Meu nome é Bado e este é o Miro.

Tomás engoliu em seco. Uma moleza tomou

conta do seu corpo. O coração disparou na maior

emoção da sua vida. Não havia dúvidas, eram eles.

Empalideceu repentinamente e quando viu que ia

cair, apoiou as mãos na parte superior da cadeira. Não

podia cair diante deles. Aprendeu que todo aquele

que cai é humilhado e isso ele não podia admitir.

O destino acabava de lhe pregar uma estranha

peça. O colocou diante dos bandidos que arrasaram a

sua vida. Por um momento, ficou sem ação, perdeu a

fala. Um turbilhão de lembranças veio-lhe à memória

e se resumia na imagem dramática de um garotinho

desesperado, abandonado à própria sorte, na

madrugada mais triste da sua vida.

“Muito bem! Queremos as joias e a grana!”

Faltava apenas o “pirata” e pronto: estava

completo o quadro da destruição. Sentiu o mesmo

gosto de sangue na boca quando o pai o socou,

enquanto o ensinava a roubar.

O Bado continuava o mesmo, apenas alguns

cabelos brancos a mais. Conservava o detestável

bigode. Como poderia esquecer? Naquele tempo,

quando o viu pela primeira vez, teve a impressão de

que o conhecia e agora sentia a mesma sensação.

O outro, o Miro, continuava forte, cabeça

raspada e, sobre o músculo direito, a inconfundível

tatuagem do dragão em chamas. Era como se o tempo

não tivesse passado. Quando sorria, a mesma falha

nos dentes... Tomás estava diante do passado.

Depois de recobrada a surpresa, sentiu o ódio

subir à mente, como um relâmpago. Podia enxergar

nitidamente a mãe e as irmãs estendidas, nuas e

mortas. A destruição de três inocentes que não

fizeram nada para sofrer aquela violência. Agora, os

assassinos estavam ali, sentados, em sua frente,

sorrindo e bebendo...

Mas, precisava usar de cautela. Embora a sede

de vingança fosse mais forte, tinha de agir com

sabedoria, buscar dentro de si a arte do fingimento e

disfarçar as reais intenções.

- Ei, o que é que há gente boa? - Perguntou um

deles, o Bado.

- Nada... – respondeu, forçando um sorriso.

Precisava continuar fingindo. Eram dois assassinos

perigosos e recheados de experiência.

Sentou-se ao lado deles.

- Quem é você?

- Canivete. Ouvi dizer que vocês estão

buscando parcerias e eu tenho muito que aprender...

- Já ouvi falar alguma coisa de você. Posso dar

uma chance. Se você conseguir se sair bem, ficará com

a gente, estamos precisando de mais um. Temos uma

parada pela frente.

Como não aceitar? Estava diante de uma

chance de vingar-se e não podia desperdiçar o

momento. Alimentava um plano antigo: se juntaria

aos bandidos, tiraria proveito dos assaltos e depois

executaria os dois. Simples assim. Depois, cairia no

mundo.

- O Pirata foi preso e já faz um tempinho que a

gente não se encontra. Mas ele nunca fica fora mais de

quatro meses.

- Por quê? - quis saber, precisava confirmar as

suspeitas.

Eles riram da sua ingenuidade.

- Garotão, disse o Bado, alisando o bigode

orgulhosamente - eu sou tira aposentado, tenho meus

contatos e isso facilita...

Pronto. As suspeitas estavam confirmadas.

Aquele bandido era um ex-policial, defensor da

justiça e da segurança do povo. A revelação só aguçou

a sede de vingança. Esperava apenas uma chance.

Aos poucos foi se aproximando da dupla,

afastou-se de Bete por algum tempo. Precisava

realizar a sua missão e para isso, teria que aprender a

conviver com os dois bandidos, esperando o melhor

momento. E assim foi. A parceria foi um sucesso,

juntos conseguiram realizar assaltos importantes.

Tudo corria bem, eles passaram a confiar em Tomás e

isso era a parte fundamental do plano: conquistar a

confiança dos inimigos. Os dois nunca manifestaram

qualquer dúvida a seu respeito, afinal, na época,

Tomás era apenas uma criança indefesa e assustada

entregue à própria sorte.

Finalmente foi realizado o grande assalto.

Assaltaram um banco de uma cidade do interior. A

ação contava com a grande experiência dos bandidos.

Tudo estava preparado: o carro, o esconderijo, os

disfarces. A operação foi um sucesso. Um dos

funcionários do banco era comparsa da dupla, primo

do ex-policial, o Bado. Primeiro, ele forneceu os

códigos das máquinas onde o dinheiro ficava

guardado no cofre dos bancos, mais conhecidas como

dispensadores de notas. O bancário indicou o dia e a

hora que o assalto deveria ser realizado e como eles

deveriam atuar. Tomás foi designado para dirigir o

carro na fuga. Estrategicamente ficou de prontidão na

saída da cidade, atrás dos muros de um cemitério

abandonado. Eles o encontrariam em vinte minutos,

deixariam o primeiro carro e seguiriam para a BR,

sentido norte, em direção ao esconderijo. Tomás

tentava disfarçar o nervosismo, nada podia dar

errado. Eram nove horas. Os dois estavam

encapuzados e armados. Um dos funcionários

rendidos foi o comparsa. No momento da ação ele

trabalhava normalmente, sem levantar qualquer

suspeita. Conforme o combinado os assaltantes

tomaram a chave de seu carro e o utilizaram para sair

da cidade. O veículo foi abandonado atrás do

cemitério.

Saíram em disparada. A estrada deserta e a

cidade desprovida de segurança facilitaram a

operação. Os bandidos eram experientes em assaltos

a agencias do interior.

Raramente um golpe era malsucedido. Não

houve falhas. O grupo escondeu-se no mato. Ficaram

desaparecidos por um tempo. Os jornais só falavam

do grande roubo à mão armada. O carro foi pintado e

trocado a chapa. Estava preparado para qualquer

eventualidade. Enquanto isso, no esconderijo, Tomás

ficou aguardando ansiosamente a chance de se vingar,

até que ela surgiu. Era o momento. Não podia esperar

mais.

O Bado e o Miro dormiam. Tomás apenas

fingia. Em dado momento, levantou-se furtivamente

e começou a agir como uma sombra. Primeiro,

apanhou as armas de cada um. Interiormente, estava

tenso, temeroso: e se um deles acordasse? Mas os dois

dormiam profundamente.

Tomás respirou fundo, acionou o gatilho e,

munido de revolta, deu um chute no rosto de cada

um, acordando-os violentamente. Era tudo ou nada.

O momento havia chegado e ele não podia recuar. Os

homens acordaram assustados.

- Que porra é essa? Ficou louco? Largue esta

arma!

- Cala a boca seus vermes! – Ordenou Tomás,

repleto de cólera – isso não é brincadeira. Estou

falando sério!

- Eu não estou entendendo nada... –

argumentou o careca, meio desconfiado.

- Cala a boca seu porco! Vou refrescar a

memória de vocês, contando uma pequena história.

Vocês se lembram de Bastião Pilantra?

- Bastião Pilantra? Claro que me lembro

daquele sacana! Até hoje não vi a cor do dinheiro e

nem as joias que ele nos roubou! Mas o que o Bastião

tem a ver com isso? Ele já morreu, faz muito tempo!

- Bastião tem tudo a ver com isso!

- Ora Canivete, você está ficando...

- Eu mandei calar a boca, porra! Quem fala aqui

sou eu! Depois que Bastião morreu, vocês foram à casa

dele arrancar da família um certo dinheiro e um

monte de joias, não?

- Sim, é verdade. Mas já faz tanto tempo que eu

já tinha até me esquecido!

Aquela frase aumentou o seu ódio. Tomou

fôlego e prosseguiu:

- Como a mulher e os filhos não soubessem de

nada, vocês amarraram o menino e levaram as três

mulheres para o quarto. Depois de sacanear com cada

uma delas, não se contentaram não foi?

- Era uma fortuna em jogo, garotão! Bastião

sujou com a gente. Nós sempre dividimos com ele a

grana e ele nos passou a perna. Ficou com a maior

parte das jóias e da grana. Só depois da morte daquele

miserável, nós descobrimos e tentamos nos vingar.

Estávamos dispostos a tudo mesmo! Fomos ao

barraco dispostos a recuperar o que era nosso. Mas foi

tudo inútil. Até hoje não sei onde foi parar a porra

daquele tesouro... Vem cá, por que tudo isso, garotão?

Como é que você sabe desta história? Você conheceu

o Bastião? Já faz tanto tempo...

- Cala a boca, filho da puta! Vocês já falaram

demais e parem de me chamar de garotão! Vocês estão

pensando que eu estou brincando, não é mesmo?

Sempre sonhei encontrar vocês, frente a frente!

- Por quê?

- Apesar de sacanear com as mulheres, vocês

não ficaram satisfeitos e mataram as três

impiedosamente, não é verdade?

- É verdade. Foi ordem do Pirata. Ele estava

furioso e sempre chefiou o bando. Mas como é que

você sabe de tanta coisa? Quem é você afinal? Não me

diga que é um policial disfarçado...

- Eu sou o filho de Bastião Pilantra! – disse

pausadamente, saboreando cada palavra.

Eles empalideceram. Tomás prosseguiu

emocionado, sentia o coração bater forte, repleto de

rancor e mágoa:

- Eu sou aquele menino que vocês amarraram

na sala. Eu sou o filho da mulher que vocês

sacanearam e mataram. As mocinhas, eram as minhas

irmãs. Aquela, era a minha família... Eu sou a

vingança! Chegou o momento!

- Eu... - gaguejou o careca.

- Não é preciso ficar nervoso, eu... - não sabia o

que dizer.

Tomás sorriu sarcasticamente. Saboreava o

desespero dos bandidos.

- Sabe o que vai acontecer? Eu vou matar os

dois e depois vou ficar com toda a grana, vou atirar

sem piedade e o meu revólver também tem

silenciador. Vocês vão apodrecer aqui!

Apertou o gatilho, disparou uma dezena de

vezes. Os dois tombaram sem vida. O sangue

começou a escorrer sem trégua. Tomás contemplou a

cena por um momento...

“Mamãe, Cida e Tela, vocês estão vingadas”.

Imediatamente voltou a incontrolável vontade

de vomitar. Tinha que sair dali. Tentou se segurar,

mas não suportou, vomitou terrivelmente. Aos

poucos foi se acalmando. Pegou todo o dinheiro e as

armas. Os dois corpos estendidos ofuscavam a sua

visão.

- Ainda falta mais um! O pirata... Mas ele não

me escapa!

Treze

“Ele estimava aquela mulher que lutava ao seu lado em toda e qualquer circunstância”.

Tomás abriu a porta aos poucos. Bete apreciava

mais um capítulo da novela das oito. Quando ela o

viu, vibrou como uma criança diante de um novo

brinquedo. Estava radiante com o seu retorno.

- Canivete, quanto tempo! Que bom que você

voltou!

- Como tem passado?

- Agora está bem... Eu estava morta de

saudades!

- Estou aqui, isso é o que importa...

- Eu não preguei o olho! Te esperava todo santo

dia, morria de medo e preocupação. Cheguei a pensar

que os tiras tivessem te apanhado!

- Vira essa boca pra lá, foi tudo perfeito. Agora

temos grana e fartura! Mas ainda precisamos ter

cuidado. Ficaremos separados algum tempo até as

coisas esfriarem!

- Eu entendo. Você não pode correr nenhum

risco! Mas você vem de vez em quando dormir

comigo?

- Combinado!

Bete era ciumenta, era capaz de qualquer coisa

para manter-se ao lado de Tomás. Mas com o passar

do tempo, ele foi se tornando frio, distante. Nunca

disse que a amava, sentia carinho, gratidão e

companheirismo por ela. Mas, amor era coisa que ele

não havia conhecido, embora estimasse a mulher que

lutava ao seu lado em toda e qualquer circunstância.

Bete era mulher de guerra, carnaval e muito amor. No

fundo ela sabia que Tomás não a amava, não se

incomodava, desde que ele permanecesse ao seu lado.

Tomás estava razoavelmente bem, morava

numa casa maior, mobiliada e aconchegante, mas a

ambição crescia, queria riqueza, fartura, vida de rei.

No fundo, tinha a intenção de partir para outro

estado, tão logo a vingança se completasse. Queria

uma vida normal, sem a presença de Bete. Tencionava

libertar-se de sua mulher para sempre.

Tempos de maturidade. Agora ele estava com

vinte e dois anos. Interiormente, persistia o conflito

entre as duas personalidades. Por um lado, ainda era

o sonhador Tomás, menino puro que tentava

penosamente sobreviver, que sonhava com a

felicidade ao lado de uma esposa que amasse de

verdade. Tomás era forte e por mais que Canivete

tentasse, jamais conseguiu destruí-lo. Então, para não

perder o rumo da vida, os dois viviam uma intensa

luta. Tomás entrava em desespero, perdia o sono e

sentia horríveis dores de cabeça... Às vezes, entre as

sombras da noite, silenciosamente, o menino Tomás

sorria ternamente. Mas, a sensação de paz se rompia

bruscamente, quando o anjo malvado, revoltado e

vingativo, chamado Canivete, aparecia. Era

dominante. Não queria, de modo algum, oferecer uma

pequena chance a Tomás.

- Onde vai? – Perguntou Bete.

- Sair por aí, por quê? Tenho que dá satisfações?

Ora, vá pro inferno!

- Não precisa se zangar. Eu só fiz uma

pergunta, simples curiosidade.

Tomás nunca foi de muitas amizades, mas era

conhecido e respeitado na comunidade. Na verdade,

depois que virou bandido, mudou alguns hábitos:

evitava multidões, tinha uma vida reclusa, caseiro e

nunca foi ligado ao tráfico, embora conhecesse seus

integrantes. Era cada um na sua e pronto. Mas tratou

de melhorar de vida. Comprou uma casa maior, um

carro e armas. Nunca faltou comida e conforto. Bete

costumava dizer que ele vivia jogando dinheiro fora,

tinha que economizar. No fundo, a Bete nunca aceitou

a vida torta de Tomás. Diversas vezes sugeriu que ele

arranjasse um emprego e largasse a vida de bandido.

Temia por ele, sabia que naquele mundo, a lei da

sobrevivência era bem clara: matar ou morrer.

- Canivete temos uma casa boa, um carro, você

é jovem, inteligente, pode arrumar um emprego....

Olha só, vamos sair dessa e viver uma vida decente.

- Ainda não, Bete...

- O que está escondendo de mim? Por que não

se abre?

- Um dia você saberá de tudo. Não enche o

saco!

Ele continuava com a ideia fixa da vingança,

precisava reunir forças para não recuar enquanto não

completasse a promessa que fizera à família. Os

conselhos de Bete, repletos de boas intenções o

incomodava, de alguma forma atingiam seu coração,

por isso evitava o assunto e pensava em sair de casa,

deixar a mulher e viver outra vida longe dali.

Enquanto isso tratava de buscar um novo plano. E ele

aconteceu por mero acaso. Uma vez conheceu um cara

que lhe deu todas as dicas: o endereço da casa, a

ausência do dono – um empresário que vivia

viajando. Era só aguardar o momento. O cara era

casado, não tinha filhos. Tomás estudou o plano

durante vários meses, sabia que a casa ficava vazia a

maior parte do tempo e o sistema de segurança

contava apenas com a cerca elétrica, fora isso, a casa

ficava sem qualquer proteção.

Tomás começou a montar vigília. Certo dia, um

fato curioso chamou a sua atenção. Era quase meia-

noite. O casal voltava para casa, quando o luxuoso

carro foi estacionado a poucos metros da entrada da

casa. Tomás ficou observando de longe. O casal

discutia no interior do automóvel. Uma bolsa foi

atirada pela janela e o mais estranho: de repente, a

mulher desceu e o carro saiu em sentido oposto. Ela

estava tão aflita que não conseguia encontrar a bolsa.

Subitamente, o homem cruzou a terceira travessa e

retornou, desceu o vidro e disse aos gritos:

- Você tem uma semana para arrumar seus

trapos e cair fora. Quando eu voltar não quero

encontrá-la em minha casa, entendeu?

Ela respondeu à altura, tinha a voz trêmula,

cheia de ódio:

- Maldito! Você vai pagar caro, eu juro que vai!

O homem saiu em disparada. Foi quando

tentou cruzar a terceira travessa. Não percebeu que

havia um semáforo bem no cruzamento, e o sinal era

vermelho. Ele passou. E sumiu. Enquanto isso a

mulher chorava, sentada na calçada. Tomás encheu-

se de coragem e se aproximou.

- Precisa de ajuda?

Ela nem levantou a cabeça. Engoliu o choro,

depois disse olhando para o sinal.

- Preciso. Aceita matar aquele bruto? Não tive

tanta sorte... – voltou a chorar – Maldito! Miserável!

Ele vai pagar por tudo!

Só então levantou a cabeça.

- Se for bandido, seja bem-vindo. Se for um cara

bonzinho, caia fora! Estou uma merda! Vai, cai fora!

- Brigou com seu esposo?

- O que você acha? Ajude-me a procurar a

bolsa... – voltou a chorar.

Tomás encontrou a bolsa. Sentiu compaixão da

jovem, desprezada, abandonada, humilhada...

- Não chore... Venha, eu te levo para casa.

- Nem o conheço, mas aceito... Quem sabe seja

uma excelente oportunidade de me vingar daquele

canalha!

A casa era simplesmente linda. Um grande

jardim tomava-lhe a frente. Situava-se num bairro

residencial considerado seguro e repleto de ricos. Ela

acendeu a luz e ele pode ver nas paredes da sala

principal uma série de quadros valiosos. Ficou

boquiaberto. Nunca vira coisas tão esquisitas e ao

mesmo tempo, tão lindas.

- Agora pode ir – disse ela.

- Tem certeza que está bem?

Ela não respondeu. Voltou a chorar.

- Está uma droga! Uma droga... Abrace-me

forte estranho, bem forte!

Surpreso e ligeiramente sem graça, ele estreitou

a linda morena entre os braços. Estava tão envolvido

com a situação que nem se lembrava mais do seu

intento: assaltar a casa. Por um momento voltou a ser

o Tomás. Quedou-se a admirar aquela mulher tão

surpreendente.

- Se ele pensa que estou derrotada... Estou

usando a casa dele, deixei entrar um estranho. Um

cara que eu nem sei de onde veio ou o que pretende...

- Louca... – disse ele sem conseguir soltá-la.

- Aproveite meu querido, eu preciso ser amada,

desejada...

Tomás afastou-se abruptamente. Ela riu

divertida. Ele sacou a arma de modo desajeitado, não

sabia como agir naquela situação. Seu coração

continuava aos pulos.

- Acontece que eu não sou um simples

desconhecido. Se lhe disser que sou um bandido e que

planejei esse assalto?

Ela não se intimidou. Era uma mulher estranha

e deliciosamente imprevisível. Atirou-se na poltrona

e em seguida dirigiu-lhe a palavra. Sua voz rouca e

carregada de sedução o deixava sem fôlego.

- Muito bem - disse decidida - leve tudo que

você quiser.

Fez um breve silêncio. O sorriso morreu nos

lábios e novas lágrimas brotaram dos olhos,

borrando-lhe a maquiagem pesada, mesmo assim,

prosseguiu:

- Mas eu te peço uma coisa: atire! Não tenho

coragem para o suicídio! Vamos! Atire!

Matá-la? Não conseguia imaginá-la morta. Não

podia permitir que ela se fosse de modo tão estúpido

e covarde.

- Você quer mesmo morrer?

- Não me faça perguntas idiotas e aperte logo o

gatilho. Você não é o bandido? Então, o que está

esperando? Não se preocupe, não tem ninguém em

casa. Você não tem nada a perder, vai ganhar dinheiro

com isso! Por favor, atire...

Tomás ficou completamente sem ação.

- Atire logo... Eu não quero viver!

Como se estivesse hipnotizado, deixou o

revólver soltar-se no tapete e num impulso

aproximou-se, abraçando-a. Ela engoliu os soluços.

Por um momento, o olhou surpresa, depois, aos

poucos, foi se acalmando. Sentiu-se forte em seus

braços. Tomás alisou-lhe os cabelos, como se

consolasse uma criança indefesa. Ela voltou a encará-

lo sem qualquer receio. Estendeu-lhe a mão e o

conduziu aos seus aposentos. Estavam aprisionados

numa perigosa armadilha do destino. Ficaram ali, no

meio do quarto, abraçados como se fugissem da

realidade, do mundo, do óbvio. Ela o apertou forte,

como se ele fosse uma tábua de salvação. No silêncio

daquele quarto as palavras eram substituídas por

sussurros românticos. Tomás agora desfrutava outro

lado da vida, sentindo-se inteiro, normal, realizado,

feliz. Começou a despi-la, cuidadosamente e ela se

arrepiava de prazer, motivando-o a prosseguir com as

carícias. Fizeram amor com desespero, sem trégua.

Depois ficaram inertes, num só corpo, contemplando

o espaço.

- Que loucura! – Disse ela, finalmente. Abriu

um meio sorriso – não posso acreditar que tudo isso

aconteceu.

Tomás ficou olhando a linda mulher deitada ao

seu lado, era tudo muito estranho.

- Quem é você? Eu sonhei ou você existe

realmente?

Ela parou de sorrir, ficou séria. Ajeitou o

cabelo, levantou a cabeça, encarando-o:

- Meu nome é Jane. Você não sonhou, meu

bandido, você aconteceu. Se você não tivesse

aparecido talvez eu morresse de verdade, mas você

apareceu para mostrar-me quanto vale a pena viver!

- Isso é loucura, estou aqui para te assaltar e

olha só o que aconteceu!

- E você bandido? Qual o seu nome?

- Tomás, mas todos me conhecem por Canivete!

Ela riu divertida.

- Por que Canivete?

- Quando eu era pequeno, era magricela feito

um caniço. Foi o meu pai que me apelidou e a moda

pegou! Quase ninguém conhece meu nome.

- Seu pai não devia ter feito isso. Tomás é um

nome tão bonito!

- Engraçado... Momentos atrás eu nem te

conhecia e já estamos juntos como velhos conhecidos.

- Penso que tudo depende do momento. Você

presenciou aquela briga. Não foi a primeira vez que

ele me tratou como um lixo. Já fui espancada e expulsa

do seu carro centenas de vezes... Depois ele vinha

todo manso pedir perdão e a gente voltava a viver

bem até o próximo pileque. Mas hoje foi diferente. Ele

confessou que tem outra e que não quer saber de mim.

Expulsou-me de sua vida...

- Ele não sabe o que está perdendo...

- Sabe sim. Ele pode tudo, é poderoso, tem

todas as mulheres que deseja. Eu só fui mais uma na

vida daquele bandido, ele sim é o verdadeiro bandido

e não você. Eu estava numa pior. Detesto a solidão e

de repente surge você, arma na mão, inesperado,

lindo, sensual, selvagem! Você realizou meu maior

capricho: amei um desconhecido, sem culpa, sem

perguntas, sem planos, só amei. Eu realmente queria

morrer. Não pense que eu te seduzi para livrar-me do

assalto ou de algum crime. Eu estava completamente

desesperada, mas quando você me tomou nos braços,

senti uma coisa diferente. Uma espécie de alívio feliz...

- Não está arrependida? Esqueceu-se que eu

sou um bandido?

- E daí? Sou casada com um bandido e dos

grandes! Mas não quero falar disso agora. De uma

coisa você pode ter certeza: não costumo arrepender-

me daquilo que faço. Quer saber o que mais? Se

tivesse que fazer tudo outra vez, eu faria com prazer.

Gostei de você. Foi tudo muito lindo! Você é diferente,

o tipo de homem que eu sempre desejei. Foi um

momento inesquecível, completo, acredite.

Voltaram a se beijar. Em seguida, ela o

convidou para um banho de espuma. Na banheira a

água jorrava, fazendo nuvens de espuma feito neve.

Ficaram ali brincando como duas crianças. Em

seguida se vestiram e foram para a sala. Ela ofereceu

bebida. Tomás sentia-se estranho, era bonito demais

para ser verdade.

No fundo, sabia estava diante de uma aventura

de uma riquinha excêntrica. Porém, estava levando a

sério, acreditando na fantasia de um mundo que

entrou por acaso. Sentia-se ridículo, mas tinha certeza

que não queria perder aquela mulher.

- Não sou uma caprichosa. Um dia conto tudo.

Depois você pode julgar da maneira que bem

entender!

- Antes, me responda: eu não passei de uma

aventura meio louca, não foi?

- Foi mais do que uma simples aventura. Eu

ainda te quero!

- Somos dois loucos. Eu não passo de um

marginal e você é uma moça de respeito!

- Eu não sou ingênua. Sou a mulher rejeitada de

um senhor de 52 anos que partiu para Bogotá após a

nossa última discussão. Ele estava apressado e por

isso atravessou o sinal. Estava indo para o aeroporto.

E quer saber de uma coisa? Eu não tenho o direito de

condenar ninguém. Sempre existe uma razão para

tudo que a gente faz.

- O dia está quase aparecendo. Gostaria de

ficar, mas não posso.

- Ficarei aqui até o sábado. Depois tenho que

sair deste inferno. Prometa-me que voltará. Venha.

Precisamos conversar. Tenho um plano perfeito e

você pode ajudar. Estarei sozinha à sua espera. Vou

deixar com você a chave, mas a porta estará sempre

aberta para você, a qualquer hora da noite...

- Agora eu preciso ir – levantou-se decidido.

Mas eu volto.

E outra vez se beijaram. Ao lado daquela

mulher ele se surpreendia gentil, equilibrado. Ao seu

lado voltava a ser o amoroso Tomás: menino puro e

sonhador, sempre pronto a ouvir, compreender e

ajudar.

Pouco depois, estava na rua. As horas voavam

como raio. O dia se apresentou claramente. Ele ainda

podia sentir o sabor dos seus beijos, o cheiro do seu

perfume, seu corpo, nada lhe saía da mente.

“E se for só uma aventura? É isso! Eu servi para

afugentar a sua solidão. Nada mais... Canivete, você

não passa de um bandido, nada mais. Você não tem o

direito de por as suas mãos sujas de sangue, numa

mulher como Jane. Você sonha demais seu idiota.

Bandido não pode e nem deve sonhar. Você achou

que ainda era o puro Tomás, mas não é. Tomás já

morreu! Você é Canivete. Aqueles que já morreram

não mais voltarão à vida e ainda falta mais um, o

último! Aí a sua missão estará cumprida”.

Pouco depois, estava em casa. Bete estava à sua

espera chispando de ciúmes.

- Onde você andou Canivete? Quer me matar

de preocupação?

- Não devo satisfações da minha vida!

- Nossa vida, você quer dizer, não é? Você está

cheirando perfume de mulher e é perfume caro! O

cheiro é especial! Escute aqui: sou tudo, menos idiota!

Você não brinca comigo. Você ainda não me conhece

como pretende e não sabe do que sou capaz!

- Ora, cale a boca! Não tenho medo das suas

ameaças!

- Eu exijo respeito! Eu sou a sua mulher!

- Minha mulher? Mas que piada? Você não

passava de uma puta que vivia dando o rabo pra todo

mundo. Deu sorte que eu fui com a sua cara e

passamos a viver juntos! Mas e daí? Isso não apaga o

seu passado! Você tem a minha companhia, casa,

comida. Não basta? Você devia agradecer por eu ter

tirado você daquele mundinho podre... E chega de

bate-boca!

A humilhação feriu-lhe a alma. As lágrimas

foram escorrendo. Tomás respirou fundo, fora

extremamente grosseiro, afinal, Bete foi a única

mulher que o aceitou sem pedir nada em troca. Ela o

amava com sinceridade e sentia que a constante

indiferença era o indício de uma despedida.

- Olhe aqui - se pôs a falar chorando - eu fui

tudo isso que você me jogou na cara! Mas eu aprendi

a te respeitar. Jamais voltei a deitar com outro homem

desde que te conheci. Se estamos juntos, foi porque

você me convidou. Eu aceitei porque gosto de você.

Sou louca por você. Mas eu nunca te obriguei a nada.

Nem a você e nem a homem nenhum. Fique sabendo

que eu não sou uma cachorrinha sem dono. Estamos

juntos há sete anos e sempre fiz tudo por você. Sempre

desejei ter um filho e por sua causa, nunca me atrevi a

engravidar...

Ele a ouviu, em silêncio. Bete prosseguiu,

emocionada.

- Eu sei que você não gosta de mim, que me tem

apenas como uma empregada fiel e mulher de transa.

Mas eu te amo e como é doloroso sentir-me jogada

fora. Você nunca me chamou de querida, nunca me

tratou com carinho. Vive me agredindo até sem

motivo. Pisa e humilha e eu sempre me calei. Será que

você nunca parou para pensar que eu tenho um

coração? Você nunca se importa comigo!

Ela chorava copiosamente, mas ele permanecia

frio e distante. Não queria mais aquela mulher.

- Está arrependida? - gritou - pegue os seus

molambos e vá embora para sempre! Para mim tanto

faz!

- Você não tem o direito de falar assim comigo...

- Você provocou.

Ela limpou os olhos apressadamente.

- Canivete, vamos esquecer tudo?

Ela o abraçou suplicante. Suportava toda e

qualquer humilhação, exceto a ideia de um dia perde-

lo.

- Melhor assim...

Para ele aquele abraço era forçado, o beijo sem

gosto especial. Uma nítida diferença entre a mulher de

Canivete e a de Tomás. Mas, sabia que a sua realidade

era Bete. Jane não passava de um sonho impossível.

Bete era do seu mundo, juntos constituíam um

fragmento do universo marginal que escolhera para

viver.

- Vamos pra cama...

Tudo aquilo soava artificialmente, até naquela

relação, Jane estava presente. A mente martelava o

nome da misteriosa mulher que conhecera por

simples acaso e que da noite para o dia se transformou

no grande amor da sua vida. Não conseguia parar de

pensar em Jane. Estava sem ânimo até para roubar.

Bebia tentando esquecê-la, mas era tudo em vão. Seu

rosto não lhe saia da mente. Sua voz quente e sensual

ecoava aos seus ouvidos, sem trégua. Afinal, o que

estaria se passando comigo? Não queria admitir de

maneira alguma, mas era verdade: estava

perdidamente apaixonado pela estranha Jane.

- Ei, Canivete! Estou falando com você!

Era Bete que o despertara para o seu mundo. O

verdadeiro: sem amor, sem encanto, seu mundo cru.

- O que você tem Canivete? Está com a cabeça

longe daqui?

- Vai começar outra vez? Eu não estou aqui? O

que você quer mais?

“O seu amor” – respondeu em pensamento.

Mas sabia que era inútil pedir tal coisa. Então se

calava e se angustiava no constante medo de perder o

seu homem.

Catorze

“A alma estava numa tristeza profunda e quanto mais ele chorava, mais tinha vontade de desaparecer”.

Certo dia, numa conversa corriqueira, Bete

mencionou alguma coisa sobre o Pirata, o terceiro

bandido que chefiou o bando que destruiu a família

de Tomás. Ele ficou animado, assim a sua vingança

seria cumprida totalmente. Já estava cansado daquela

vida. Queria rever a Jane nem que fosse a última coisa.

Não podia esquecê-la simplesmente.

- Dizem que o Pirata é barra pesada e não tem

medo de nada!

- E nem eu!

- Canivete, que raio de negócio você tem com o

Pirata? Eu não sabia que você o conhecia.

- Ele precisa acertar uma conta comigo. Só isso!

- Que conta?

- É um dinheiro de um assalto, coisa nossa...

Bete não sabia de nada. Ela jamais suspeitou do

seu drama. Nada sabia do seu passado.

- Onde você viu o cara?

- Bom, dizem que ele estava preso, mas acabou

fugindo. Os tiras nunca conseguem segurá-lo de

verdade. O homem é grande entre os tiras e é muito

respeitado. Dizem que ele frequenta o bar do Luizão

ao lado da ponte.

- Eu preciso encontrá-lo de qualquer jeito, Bete!

Tem uma coisa importante que preciso fazer!

- Tome cuidado Canivete. O Pirata não é flor

que se cheire e é muito desconfiado. Dizem que ele

mata por divertimento, só para treinar a pontaria! O

cara é o próprio demônio em pessoa e tem o corpo

fechado! Adora uma briga! É muito perverso...

- Não se preocupe, saberei como amansar a

fera!

- Deixa eu ir com você?

- Não, você fica e cuida de tudo.

Engoliu em seco. Uma angústia o apanhou de

surpresa. Olhou para Bete como se fosse a primeira e

a última vez. Nutria um carinho especial por ela,

embora a tratasse duramente.

- Bete, eu quero voltar. Mas se alguma coisa

acontecer, obrigado por tudo. Você me ajudou esse

tempo todo. Valeu a pena conhecer você quando tinha

apenas treze anos - Beijou-lhe o rosto ternamente.

- Canivete... Você fala de um jeito... — ela

chorava — eu sinto um arrepio aqui dentro. Até

parece que você está me dizendo adeus! Por que não

me conta a verdade? Eu sei que você tem uma história

e eu gostaria de saber. Talvez eu possa te ajudar...

- Não, Bete, ninguém pode me ajudar! Um dia

você saberá de tudo, prometo... Agora, eu tenho que

ir!

- Canivete, não vá!

- É muito importante...

- E se você não voltar?

- Tome, esta é a chave da maleta. Guardei todo

o dinheiro que juntamos. A outra parte está no banco.

A casa agora é sua. Se eu não voltar, faça o que você

achar melhor!

- Canivete, pelo amor de Deus, você está me

dizendo adeus?

- Se tudo correr bem, eu volto, prometo. Torça

por mim, Bete.

- Seja lá o que for eu vou torcer. Estou do seu

lado, sempre!

- Espero voltar...

- Claro que voltará, com fé em Deus!

- Vai de carro ou moto?

- No carro. A moto fica com você.

Ele deixou atrás de si um pedaço da sua vida,

construído ao lado de Bete, a mulher que o idolatrava.

Da porta, ela o acompanhou, coração apertado,

repleto de aflição. Presságios... Sentiu um calafrio. “O

vento da morte passou por aqui”, pensou angustiada.

Seu homem atravessaria o vale das sombras. Não

podia perde-lo assim.

Tomás sentia algo esquisito, como se estivesse

indo para uma guerra inevitável. Sua jornada

vingativa estava chegando ao fim. Vozes e imagens de

um passado distante chegavam à sua mente e ele

revivia a sua infância tumultuada, em todos os

detalhes, como numa tela de cinema...

“Mãe, o que é universo?”

“Universo é o mundo, as cidades, as coisas,

tudo que nos cerca em geral”

“Não fique assim meu pequeno, tome, beba

este chazinho...”

“Não mãe, se eu beber, eu vomito...”

“Mãezinha, por que não temos amigos?”

“Tomás... meu Tomás...”

“Eu queria estudar na escola do Flavinho...”

“Você não gosta da sua professorinha aqui?”

“Mamãe... mamãe”

“Não foi nada Tomás. Estela coloque a

comidinha do Tomás”

“Tomás... você precisa viver”

“Tomás... meu Tomás”

“Mãe... mãe”

“Meu pequeno... meu pequeno... meu

pequeno”

E pouco a pouco tudo se perdia no eco. As

lágrimas escorriam e ele chorava, humildemente,

como se ainda fosse o pequeno Tomás. Nutria a

certeza de que a sua vida estava destruída por culpa

de três assassinos. Pensava que se os três não tivessem

cometido a barbárie, tudo podia ser melhor. Mas sua

família se foi completamente e ele tinha absoluta

convicção que aquele crime não podia ficar sem

punição, faria justiça a seu modo. Não podia recuar,

não era o momento.

Vasculhou a cidade inteira e não o encontrou.

Finalmente foi informado de que o Pirata estava no

mesmo bar, ao lado da ponte. Respirou fundo, a

missão estava chegando ao fim. Mal entrou no bar,

deparou-se com o Pirata tomando cerveja ao lado de

uma mulher. Estava o mesmo. A camiseta regata

deixava à mostra a tatuagem que deu origem ao seu

apelido: o pirata de braços cruzados e sorriso mau. O

bandido sorria e contava as suas proezas à mulher,

enquanto alisava suas pernas roliças.

- Ora, se não é o famoso Canivete! - anunciou

Luizão, o dono do bar. Era seu antigo conhecido.

Tomás encostou os cotovelos no balcão e pediu uma

dose caprichada de cachaça, sem desviar os olhos da

mesa do Pirata.

- Quem é aquele cara, Luizão?

- Você não conhece? É o Pirata. O cara é

poderoso, veja você que ele fugiu da gaiola e anda por

aí despreocupado. Não tem medo de nada.

- O cara é barra pesada pelo jeito...

- Se é! O cara é o próprio terror e é muito

inteligente!

O dono do bar baixou o tom de voz e disse-lhe

aos ouvidos:

- Alguns dizem que ele tem parte com o diabo.

Eu acho que não passa de lorota. No fundo, o Pirata é

gente boa, basta saber lidar com ele. Se quiser eu

posso te apresentar...

- Pode ser...

Aproximou-se da mesa do Pirata. O bandido o

encarou detalhadamente, como se soubesse que

aquele seria seu último encontro. Tomás procurou

disfarçar o ódio que o dominava. Conseguiu sorrir

dissimuladamente.

- Ora, então o grande Pirata mais uma vez é o

vencedor? Enganou os tiras!

- Pirata – disse o dono do bar – esse é Canivete,

gente nossa!

- Se Luizão tá dizendo, acredito. Sente aí e

festeja com a gente!

Tomás sentou-se à sua frente. Tinha que ser

forte, mesmo sentindo o coração aos pulos. Precisava

fingir com perfeição, estava diante de um bandido

perigoso, uma lenda do crime, respeitado até pela

polícia. Não podia falhar.

- Luizão, desce mais uma. Hoje quem paga

tudo sou eu!

Mal ele fechou a boca, Tomás sacou a arma e o

ameaçou:

- Nem tudo você pode pagar seu demônio!

Na rapidez de um relâmpago apontou o

revólver em sua direção. O dedo fervilhava no gatilho.

Chegou o momento. Apanhado de surpresa o

bandido espantou-se.

- Ei, o que há meu camarada? - sorriu intrigado.

- Fecha os dentes, miserável! Não se lembra de

mim, seu verme? Eu nunca me esqueci de você!

Sempre sonhei com este dia!

O bandido franziu o cenho. Não era homem

covarde. Procurou estender a prosa.

- Não me lembro de ter comido você, porra!

Além do mais nunca gostei de viado! O que você quer

palhaço?

Ele estava sério. A mulher escorregou-se dos

seus braços e acabou conseguindo levantar-se. Tremia

como vara verde.

- Miserável! Eu sou o filho de Bastião Pilantra e

prometi vingança! Não se esqueça que foi você e mais

dois vermes que destruíram a minha família.

Mataram a minha mãe e minhas irmãs

impiedosamente e sem qualquer motivo, pois não

sabíamos de nenhuma jóia ou dinheiro algum! Vocês

fugiram e eu fiquei amarrado. Jurei vingança e agora

chegou seu fim! Os dois eu já dei conta e nestas alturas

estão torrando no inferno! Só falta você e aí, o trabalho

estará completo.

Por um momento o Pirata ficou pensativo. Seu

olhar frio e calculista era o mesmo, não havia qualquer

sinal de medo ou surpresa. Para aquele homem matar

ou morrer era só uma questão de oportunidade.

- Esqueça essa frescura do passado! A vida é

crua meu irmão! Podemos entrar em acordo e quem

sabe, você acabe lucrando...

- Não faço acordo com um crápula como você!

Tomás percebeu que o Pirata tentava ser astuto,

procurava driblá-lo e assim pegar o revólver que, com

certeza, estava à cintura. O dono do bar ficou surpreso

e sem entender, a mulher do bandido manteve-se

paralisada e Tomás de arma em punho. Ele não se deu

por vencido, provocou ainda mais.

- Quer saber viadinho? Vá tomar no cu! Não

tenho medo! Quer atirar? Atire e reze para acertar

porque se eu sair dessa com vida eu acabo com tua

raça, assim como acabei com tua mãe e olhe que a

coroa era gostosa... As meninas então! Que noite! Ah!

Bons tempos aqueles... – e sorria saboreando o

escárnio – Atire viado! Atire!

Tomás disparou sem titubear.

- Vá pro inferno de uma vez por todas, pirata

filho da puta!

Apertou o gatilho mais três vezes. O pirata

estava no chão, sem vida. Seus olhos abertos,

encaravam o vazio e a boca ensaiava um sorriso

maléfico. Tomás contemplou o cadáver, o último.

- Pronto mamãe, Cida e Estela: descansem em

paz!

Entrou no carro. As pernas tremiam, teve que

apertar o pé no acelerador e desaparecer daquele

lugar. Estava tudo acabado. Tinha a sensação que a

sua cabeça estourava de dor. Saiu dirigindo sem

destino, sem se importar se seria preso. Não conseguia

ordenar os pensamentos. Atrás, um motociclista que

não queria ultrapassá-lo. Tomás julgou que fosse

algum comparsa do Pirata. Então, aumentou a

velocidade e conseguiu despistá-lo. Saiu da BR e

parou num terreno baldio, atrás de um velho galpão.

Tentava acalmar seu coração. Na mente, o sorriso

demoníaco do Pirata não o deixava em paz.

“Se eu sair dessa com vida eu acabo com tua

raça, assim como acabei com tua mãe e olhe que a

velha era gostosa”

Começou a chorar desesperado. Experimentou

a terrível sensação de que a vida perdera

completamente o sentido. Um enorme vazio tomou

conta de si, como se fosse absorvê-lo e pela primeira

vez sentiu vontade de morrer. A alma estava numa

tristeza profunda e quanto mais ele chorava, mais

tinha vontade de desaparecer.

“Não faz sentido” – pensou emocionado.

Dedicara-se ao crime de corpo e alma por uma

vingança concreta, levando-o a procurá-la sem

trégua... E agora, quando ela se concretizou, de fato,

sentiu um imenso vazio na alma, como se nada mais

tivesse importância, nem mesmo a vontade de viver.

Tomás compreendeu tarde demais que a vingança

não tem o poder de trazer de volta aqueles que já se

foram, nem alivia a dor que sentimos. Então, por que

a vingança?

De repente um rosto de mulher lhe veio à

mente: Jane. Ela deixaria a casa no sábado. Sua alma

se aqueceu de amor e as forças retornaram. Voltou

para a estrada e novamente a estranha sensação de

que alguém o estava seguido. Talvez fosse apenas

imaginação, se fosse alguém do Pirata, teria acertado

as contas consigo no terreno baldio. Presságios...

Aumentou a velocidade, queria chegar o mais rápido

possível e se atirar nos braços daquela mulher.

Estacionou o carro ao lado da calçada. Era

madrugada. Nem sentia o frio rigoroso, caminhava

desafiando o tempo, o destino, o desconhecido... De

repente, a bela casa surgiu em sua frente. Passou a

mão no bolso e não encontrou as chaves...

“Droga, esqueci em casa” – pensou.

Acionou o interfone e por um momento pensou

naquela loucura: e se o marido tivesse retornado?

Mas, o medo foi dissipado quando uma voz rouca,

sonolenta, atendeu.

- Sou eu... – disse.

- Eu sei bandido... – respondeu num sussurro.

Entrou. Ela vestia uma finíssima camisola.

Sorriu. Ele a contemplou por um momento, depois,

não se conteve, beijando-a suavemente. Ela abriu os

olhos e disse quase num sussurro.

- Você é um bandido caprichoso! – sorriu - Senti

sua falta. Temia que o meu bandido misterioso não

mais voltasse...

- Estou aqui.

Mais uma vez se entregaram de corpo e alma.

Ele voltou a se sentir o verdadeiro Tomás e no seu

coração uma ilusória certeza: Canivete tinha sumido

para sempre. Acreditava que agora Tomás voltou

para ficar, ninguém mais o amordaçaria e nem o

prenderia, as algemas estavam abertas. Canivete não

seria mais o seu condutor

“Tomás... você precisa viver”

Tomás acreditava na sinceridade daquele

amor. Sentiu que estava na hora de colocar as cartas

na mesa. Não esconderia nada, embora tivesse medo

de perdê-la de uma vez por todas... Para ele, Jane era

uma mulher bem resolvida e ele nada mais que um

bandido sem qualquer perspectiva. Ela teria que

saber. Não queria enganá-la. Sim, contaria tudo,

mesmo se depois ela o dispensasse para sempre. Seria

a cartada decisiva.

- Quem começa? – Perguntou ela.

- Você.

- Está bem. Nasci numa família bem sucedida.

Sou filha única e os meus pais sempre fizeram de tudo

para agradar-me. Papai era dono de uma grande

empresa que aos poucos foi perdendo espaço:

falência. Entrou numa fase de grandes empréstimos,

gastos exorbitantes, tudo para salvar o patrimônio. O

meu pai sempre foi um homem temperamental,

brigou com a diretoria, os negócios foram se

desmoronando e o controle fugiu-lhe das mãos. Era

de se esperar que ele entrasse em desespero. Afinal,

toda a sua vida foi dedicada à empresa, que de

geração a geração, crescia e se fortificava. Mas tudo

estava por um fio, até que o meu pai conheceu o

Adriano de Albuquerque, um agiota, empresário

influente, ligado a alguns dos principais esquemas de

lavagem de dinheiro e escândalos políticos. Meu pai

viu a salvação neste homem. O resto da história é

simples: o cara se interessou por mim, embora eu

relutasse contra a ideia de um casamento por

interesse, mas acabei cedendo aos apelos de papai.

Casei-me com um homem egoísta, mas muito rico.

Para o meu pai, Adriano foi a tábua de salvação,

empregou um grande capital na empresa, tornou-se

sócio de papai e tudo foi se equilibrando. A situação

voltou à normalidade. Mas Adriano se transformou

num sócio majoritário, ou seja, um quase dono de

tudo e papai nada menos que um sócio de segundo

escalão. Não sei se você compreende tudo isso, mas o

mundo dos negócios é cheio de patifaria. A disputa

pelo poder e as denuncias de lavagem de dinheiro e

ligação com o tráfico de drogas, tornaram Adriano um

homem cada vez mais egoísta e mesquinho. Vive

cercado de seguranças, não fica no Brasil mais que um

mês e seus negócios são geridos à distância. Casei com

um homem que sempre teve consciência do meu

desprezo, da minha falta de amor, da minha revolta e

assim mesmo, me faz acreditar que ele é o meu dono

e senhor absoluto, entende? Adriano se vinga de todas

as formas cabíveis: possui várias amantes e vivemos

como dois inimigos. Eu sempre quis a separação, mas

ele ameaça destruir o meu pai no mundo dos

negócios. Como vê, ele tem tudo nas mãos. Estamos

juntos há cinco anos e nunca fui realmente feliz. Agora

ele quer a separação do jeito dele, expulsando-me da

sua vida como uma simples garota de programa...

Ela o abraçou forte.

- Tomás, me leve com você. Quero sumir desta

vida para sempre. Eu tenho um plano perfeito, você é

o meu escolhido e se fizer tudo como eu planejei,

seremos o casal mais feliz do mundo. Olha só, a

Europa nos espera! Você vai embora comigo!

- Não Jane, você não pode fazer isso.

- Você é um egoísta, covarde e mentiroso!

Prove seu amor, entre no meu plano e tenho certeza

que você não se arrependerá!

- Jane, parece que você se esquece quem sou

eu... Nossos caminhos não podem se cruzar; são

totalmente diferentes!

- São diferentes, mas se cruzaram e nós não

temos culpa se isso aconteceu! E o nosso amor não

conta?

- Não fale assim... Antes eu tenho que contar a

minha verdadeira história!

- Seja qual for a sua história eu te quero mesmo

assim...

- Meu pai se transformou num ladrão para

sustentar a família...

E assim Tomás foi narrando todos os fatos

marcantes da sua tumultuada vida. Ela ouvia

atentamente.

- Ainda criança eu apanhava para aprender a

roubar. Quando tinha dez anos, meu pai deu uma

tremenda surra na minha mãe e eu não consegui

assistir àquela cena e então... Peguei uma trava que

segurava a janela, atingindo a sua cabeça. A pancada

foi mortal. Ele morreu na mesma hora.

Engoliu em seco. Sempre se emocionava

quando se lembrava daquilo, mesmo assim não

omitiu nada.

- Ora Tomás, não foi por sua culpa. Você

apenas defendeu a sua mãe. Ela teria morrido se você

não lhe tomasse a defesa.

- Eu sei, mas o fato é que cometi o meu primeiro

crime aos 10 anos. E tem mais: alguns dias após a

morte do meu pai, nosso barraco foi invadido por três

bandidos do bando do meu pai. Eles procuravam

dinheiro e jóias que o meu pai escondeu. Nós não

sabíamos de nada e tentamos explicar, mas eles não

acreditaram na gente e...

A emoção voltou a tomar conta de si. Mordeu

os lábios tentando se conter. Sentia que aquela cena

terrível não lhe sairia mais da mente. A Jane também

chorava. Tomou fôlego, prosseguiu.

- Eles abusaram da minha mãe e das meninas,

depois mataram as três pessoas que eu amava mais do

que qualquer coisa, nessa vida...

- Tomás... Não fale nada mais... Meu Deus, que

situação! Quanta maldade!

- Eu preciso falar, é bom botar pra fora esse

peso que me atormenta constantemente. Eu jurei que

vingaria dos bandidos e por isso me dediquei ao

roubo. Esperava poder reencontrá-los em qualquer

lugar desse mundão de Deus. Um dia encontrei dois

dos bandidos. Acabei com eles, mas faltava mais um,

o principal, o mais perigoso: o Pirata e este eu acabei

de matar. Matei o miserável e vim direto para a sua

casa. A polícia deve estar à minha procura, não me

importo, estou vingado. Eu só queria encontrá-la mais

uma vez, mesmo que seja um adeus. Você foi o meu

primeiro amor. Posso ser preso a qualquer momento

e talvez apodreça na cadeia. Não me importo. Quero

estar em paz com a verdade. Esse é o meu

compromisso. Chega de mistérios...

Encerrou a narrativa e ela ficou em silêncio.

Imaginou que ela não iria perdoá-lo, talvez não

suportasse a ideia de que ele não era um simples

ladrão, mas um frio assassino. Mas ela se atirou nos

seus braços e choraram juntos. Para Tomás aquele era

o fim de um amor sem começo.

- É isso. Sou um assassino que matou três

homens e até mesmo o próprio pai.

- Tomás... - ela tentava acalmá-lo.

Jane estava emocionada. Tomou um gole de

uísque, enxugou as lágrimas, e encarou Tomás. Seu

silêncio foi quebrado e ela disse o que ele não esperava

ouvir.

- Ainda assim, eu te quero! Olha só... Tenho um

negócio para te propor. Depois explico. Quero ir

embora com você para nunca mais voltar. O passado

morreu e está enterrado. Vamos fugir para outro país

bem distante. Eu sei como conseguir muita grana, a

gente se manda e seremos felizes bem longe do Brasil.

Vamos passar a limpo a nossa vida e começar de novo

num lugar tranquilo, longe de tudo.

Ficaram em silêncio abraçados numa emoção

incontida. Quem sabe daria certo? Ainda havia uma

chance de ser feliz. Chance de recomeçar a viver,

longe das marcas do seu passado e da triste sensação

de derrota... Como não arriscar na felicidade?

Porém, algo os interrompeu. A porta abriu-se

abruptamente e, para seu espanto, Bete entrou

ofegante, como se tivesse percorrido uma pista de

corrida. Estava pálida e os olhos estavam inchados de

tanto chorar. Atirou o capacete em cima da cama,

respirou fundo. Manteve os olhos fixos em Tomás,

enquanto enfiava a mão na bolsa. Era o que ele temia:

sacou a arma. Ele tentou avançar em sua direção,

queria acalmá-la, temia que ela realmente atirasse.

Mas quando deu o primeiro passo, ela o ameaçou com

a arma. Jane quedou-se num silêncio, paralisada de

terror.

- Bete, o que faz aqui? - Disse num sussurro.

“É isso, o motociclista era ela”! – Pensou.

- Eu te segui o tempo inteiro. Abri a porta com

as chaves que você esqueceu em casa. O resto foi

fácil... – gritou - traidor!

Ela estava revoltada, humilhada e derrotada.

Sua voz entrecortada de soluços convulsivos não a

impediu de expor a sua revolta:

- Eu te segui desde o momento em que você se

despediu de mim. Estava muito preocupada e não

podia deixar você sozinho. Ainda bem que você

deixou a moto em casa. Eu estava quase certa de que

você morreria, por isso fui atrás... Quando você matou

o Pirata, eu estava escondida no fundo do bar. Você

fugiu em seguida e eu o segui. Vi quando você saiu da

pista e entrou naquele terreno. Eu quase me

identifiquei, mas temia que você atirasse. Preferi

acompanhá-lo de longe. Quando você entrou nesta

casa, fiz o mesmo. Eu tinha que descobrir a verdade.

Engoliu em seco. Seu tom era de dor e

decepção.

- Eu ouvi uma parte da comovente história do

seu passado. Uma história que você sempre escondeu

de todo mundo. Mas você mentiu para a bonequinha

cheirosa. Não contou tudo. Você não contou para sua

amiguinha que tem uma mulher? Você não contou

que a sua mulher se chama Bete? Não, isso você não

quis contar, teve medo de perdê-la... Pois eu conto!

Virou-se para Jane que tremia apavorada:

- Bonequinha, eu sou a mulher de Canivete e

estamos juntos há muito tempo tá sabendo? Não

pense que ele é um homem livre! Canivete é meu,

cadela! Somente meu!

Apontou a arma em sua direção.

- Não, Bete!

Ela atirou assim mesmo. Jane tombou sobre o

tapete.

- Jane... Jane! Fale comigo pelo amor de Deus!

Tomás tentou reanimá-la de todas as formas.

Ela balbuciou algumas palavras.

- Foi melhor assim... - fechou os olhos, estava

viva, mas sangrava muito.

- Vou levá-la ao hospital!

- Não precisa... Estraguei a sua vida mais uma

vez, me perdoe Tomás!

Foram as suas últimas palavras.

Ele chorava desesperado e por um momento

esqueceu-se de Bete que também chorava no canto, ao

lado da porta. Jane era mais uma pessoa amada que

partia da sua vida. A tragédia era a marca da sua

realidade, o seu lema eterno.

- Quis roubar o meu homem, não é cadela?

Roube agora que eu quero ver! - Continuava de arma

em punho, soluçava sem trégua.

- Maldita! – Encarou Bete com ódio. Ela não

teve medo, estava decidida a ir até o fim.

- Nem tudo acabou meu querido. Eu também

sonhei muito na vida e acabei virando puta. Antes eu

queria ser uma médica, imagine só... Nunca fui numa

escola e sonhava formar e virar gente grande! Pois é,

somos da mesma lama, mas eu não te quero mais!

Estou estraçalhada por dentro e por fora e a culpa é

sua! Eu me dediquei só a você e nunca fiz outra coisa

na vida, desde que nos juntamos... Sempre me

preocupei com você: se doía a cabeça, se gostou do

café, se a comida não estava muito salgada. Fui a sua

escrava durante seis anos e você ia embora do país

com essa perua, sem se importar com nada mais! Eu

não te quero mais! Você nunca mais tocará num fio de

cabelo meu, pois eu também vou partir e levarei junto

o nosso filho...

Mordeu os lábios. Não queria revelar tal coisa.

Mas já era tarde.

- Estou grávida! – Gritou em pranto -, nosso

filho, ou melhor, o meu filho irá comigo, pois eu sei

que você não gosta de crianças e nunca quis ter um

filho!

Ele ouvia as palavras daquela mulher

machucada pela vida. Por alguns segundos esqueceu-

se do corpo inerte de Jane, a poucos metros da cama.

Tentou aproximar-me, mas ela não permitia,

ameaçou-lhe com a arma.

- Não se aproxime! Eu tenho coragem de atirar

em você! Não chegue perto de mim, seu canalha!

Adeus Canivete! Saiba que ninguém te amou nesse

mundo mais do que eu! Eu ainda te amo!

Bete estava fora de si. Quando viu que ela ia

cometer uma loucura, avançou em sua direção, tentou

arrancar a arma, mas ela relutava e num raio de

segundo o disparo: o tiro acabou acertando o seu

ombro. Ela caiu, sangrando, mas viva. Estava

ofegante...

- Traidor! Me deixa morrer!

- Sua louca! - Gritou revoltado - por que você

não me contou tudo antes? Nosso filho... Não posso

acreditar...

- Eu... – ficou pálida, tentou falar alguma coisa,

mas acabou desmaiando.

Tomás estava diante das duas mulheres mais

importantes da sua vida. Bete, uma tábua de proteção,

uma parede de apoio, um “sim” a todo o momento. A

outra, Jane, seu primeiro amor, uma suave ternura

que permitiu um novo rumo à sua tumultuada vida.

No centro daquela dor, dois espectadores: Tomás ao

lado de Jane e Canivete ao lado de sua adorável Bete.

Os carros da polícia apitavam de todos os lados

e ele não fez o mínimo gesto para fugir. Permaneceu

no mesmo estado de passividade, alheio a tudo e a

todos. Dois policiais examinaram as mulheres.

Disseram em seguida:

- Hospital, urgente! Temos que levá-las!

Foi a última vez que Tomás viu as duas

mulheres mais importantes da sua vida.

Quinze

A pastoral carcerária

Passaram-se cinco anos desde aquele dia.

Agora Tomás está preso e para passar o tempo, fica

escrevendo coisas de um passado distante que lhe

povoam a mente. Está com vinte e seis anos e a sua

batalha é árdua: luta para que um dia Canivete

desapareça e que Tomás recupere seu lugar

definitivamente. Um duelo existencial que carrega no

coração e na memória desde aquele dia em que o pai

o apresentou ao mundo do crime...

Hoje ele não é alegre nem triste, às vezes é feliz

do seu jeito, se é que se pode chamar de felicidade a

prisão, as grades, a mesma comida, o cheiro de urina

e as conversas corriqueiras com os companheiros de

cela. A monotonia, o eterno cotidiano... Mas às vezes

ele se sente feliz por um motivo mais significativo:

tem plena consciência que quer ser Tomás e talvez por

isso, o desespero não tenha tomado conta

inteiramente da sua vida. No cárcere observa as

aranhas e escreve algumas passagens da sua vida no

caderno que ganhou de presente do pessoal da

Pastoral Carcerária. Quando lhe perguntam sobre

como se sente, afirma que não está sofrendo, pois foi

exatamente neste lugar chamado prisão, que ele

aprendeu o significado da palavra liberdade.

A liberdade de Tomás se aproximava dos

muros da prisão. Era seu último ano no presídio, um

tempo de novidades em direção a novos caminhos.

Até então, ele vivia o trivial, as conversas corriqueiras,

os planos de fuga e assim por diante. Mas, naquele

ano, a sua atribulada história de vida começou a sofrer

rupturas definitivas.

Tudo começou com o movimento religioso. Na

prisão o assunto era um só: o trabalho da Pastoral

Carcerária da Igreja Católica e outros segmentos

religiosos. Era um grupo de pessoas comprometidas

com a evangelização nos presídios. Lutavam pelos

direitos humanos, realizavam palestras, teatro

popular, celebrações e dinâmicas de entrosamento

entre os presos. Toda semana tinha representantes

religiosos. Alguns estavam interessados apenas no

crescimento da sua igreja, para estes, o espaço da

prisão era a estratégia perfeita: falava em absolvição,

a salvação das almas que se achavam perdidas. Tinha

preso que ficava fascinado, virava pregador e lia a

Bíblia dia e noite. Outros, simplesmente fingiam que

estavam tocados pela fé e por aí vai...

Mas havia trabalhos interessantes, um deles era

desenvolvido pela Paróquia Nossa Senhora das

Dores, localizada na periferia. Era um grupo de oito

pessoas, assessorados pelo padre Thiago, um jovem

sacerdote que se tornou popular na prisão. Deveria ter

a mesma idade de Tomás. Falava de um jeito cativante

que prendia a atenção de todos. Aos poucos ele foi

conseguindo adeptos, tinha seguidores por toda

parte. Seu carisma conseguia emocionar os

encarcerados e não era algo apelativo, apenas falava

de um Jesus vivo, que se fazia presente no cárcere,

propenso a abrir os braços e a compartilhar as suas

dores.

Mas a relação de Tomás com o pessoal da

Pastoral não foi algo instantâneo. Foi um processo

mais ou menos complexo.

Ele costumava observar as suas amigas aranhas

enquanto aguardava seus últimos meses. A pena

estava quase no fim, por conta disso ele estava

antecipadamente preocupado, mudança de humor,

tristeza repentina, vazio. As emoções contraditórias

tinham uma só explicação: não sabia o que o esperava,

nem como seria a vida depois que saísse da prisão. Na

cadeia muitos presos vão perdendo o referencial e

quando estão próximos da liberdade, vivem como

Tomás, o dilema do “depois”, pois sabem que não há

ninguém para recebê-los. Há o mundo desconhecido

e o ex-detento não sabe como penetrar nesse espaço.

Na prisão o medo do recomeço era o fantasma

que sempre os rondava. Alguns entravam em

depressão e se matavam alguns dias após a saída.

Outros ficavam loucos e muitos voltavam à vida do

crime. A saudade do tempo de reclusão era um

sentimento contraditório, mas explicável: a prisão e

todas as suas adversidades era o nosso lugar. Todo

mundo se conhecia, os assuntos eram os mesmos, o

medo, a revolta e até o sofrimento eram coletivos.

Quando o preso deixa a prisão está diante de

um mundo estranho. Muitas vezes ex-detento ao sair

da prisão, experimenta uma sensação de gosto

amargo. Entra num lugar onde as pessoas falam outra

língua, vestem outras roupas, comem outras comidas,

olham outros horizontes... Diversos ex-detentos

sentem uma profunda angústia, pois dentro de si

permanece a sombra delatora do medo, como se

aquelas pessoas soubessem tudo da sua vida: o que

faziam, o que pensavam e, a cada gesto, a cada olhar,

uma advertência: “eu sei quem são vocês, de onde

vieram e o que fizeram”.

E assim, aqueles olhares ressentidos continuam

a expulsar os ex-detentos da cidade e os aprisionam

na sarjeta onde o antigo mundo do crime os acolhe de

braços abertos.

O medo que Tomás sentia, começou a

desaparecer, quando se envolveu com a Pastoral

Carcerária. Mas a aproximação levou um certo tempo.

A primeira vez que conversou com o padre Thiago foi

mero acaso. O padre estava cercado de presos,

quando um deles o abordou com evidente ar de

malícia:

- Padre você é lindo! É um desperdício ficar

sozinho...

Ele sorriu e respondeu com simplicidade:

- Nunca fico sozinho. Jesus está comigo.

- Jesus tem sorte...

O padre ficou sério. Olhou para o rapaz

profundamente, em seguida respondeu:

- A vida não se acaba aqui, você também não

está sozinho. Jesus te ama incondicionalmente, nunca

se esqueça disso.

O rapaz engoliu em seco, em seguida a lágrima

desceu. Ele se afastou, enfiando-se no meio dos

outros. Ninguém entendeu, mas daquele dia em

diante, o preso não voltou a importuná-lo.

Tomás assistia a tudo, sentado no canto da

quadra esportiva do Pátio B, enquanto fingia que lia o

folheto da pastoral. O padre se aproximou. Tomás

ficou um tanto sem graça. Sempre foi do tipo calado,

criou uma redoma e só permitia que as aranhas

entrassem ali.

- Gosta de ler? – Perguntou o padre, enquanto

se sentava ao seu lado.

- Um pouco...

- Notei que você é de pouca conversa, tem

poucos amigos, gosta de observar...

- É o meu jeito... Estou em pecado? – Indagou

com ar de sarcasmo, olhando-o furtivamente. Em

seguida pendeu a cabeça e voltou os olhos para o

informativo.

- Não gosta de conversar?

- Não tenho o que conversar.

- Podemos tentar...

- Não! – levantou-se bruscamente.

Ele permaneceu sentado.

- Só mais uma coisa: qual o seu nome?

Ele pensou em dizer o verdadeiro nome, mas

num impulso respondeu:

- Canivete.

- Não gosto muito de apelidos.

- Por quê? – Indagou e quase sem perceber

voltou a sentar-se no mesmo lugar.

- Às vezes penso que os apelidos ajudam a

perder a nossa identidade...

Por um momento Tomás se pôs a pensar no seu

apelido: “Canivete”. A marca de batismo que o pai

deixou como herança: o garoto que crescia magro feito

um caniço, como uma lâmina afiada, um canivete

amolado... Enquanto Tomás era esquecido, Canivete

crescia, tomava corpo, ganhava as ruas.

O padre continuou:

- Sabe? Uma vez, ainda garoto, li um texto

interessante na escola, extraído da obra de Érico

Veríssimo “As aventuras de Tibicuera”.

Fez um breve silêncio. Buscava uma chance de

fomentar o diálogo.

- Tibicuera? – Indagou curioso.

Era a deixa para a sequência que agora tinha a

sua atenção.

- Sim, era o nome do indiozinho. Significa

cemitério na língua tupi. O apelido pegou e o índio

ficou assim conhecido.

- Por que Tibicuera?

- Porque ele nasceu raquítico, um anjo da

morte, mas sobreviveu. Ainda trago na memória a

narrativa. Quer ouvir?

- Você é quem sabe... – No fundo estava repleto

de curiosidade.

Ele começou a narrar de forma emocionante.

Tomás sentiu-se novamente com oito anos, quando

descansava a cabeça no colo da mãe enquanto ela

contava as mais lindas histórias...

O padre Thiago conseguiu prender a sua

atenção e ele escutava a comovente história do índio

Tibicuera:

"Nasci na taba duma tribo tupinambá. Sei que

foi numa meia-noite clara, fazia luar. Minha mãe viu

que eu era magro e feio. Ficou triste, mas não disse

nada. Meu pai resmungou:

- Filho fraco. Não presta para a guerra.

Tomou-me então nos seus braços fortes e saiu

caminhando comigo para as bandas do mar. Ia

cantando uma canção triste. De vez em quando gemia.

Os caminhos estavam respingados do leite da

lua. O urutau gemeu no mato escuro. Uma sombra

rodopiou ligeira por entre as árvores.

O mar apareceu à nossa frente: grande,

misterioso... Suas ondas pareciam soltar um longo ai

quando rebentavam na praia. Meu pai estacou. Olhou

primeiro para mim, depois para o oceano... - não teve

coragem.

Voltou para a taba chorando. Minha mãe nos

recebeu em silêncio”.

Ao final da história Tomás estava mudo de

emoção, como se aquela fosse a sua história. Tibicuera

era o seu retrato. A sua família estava naquela

história. Apertou os olhos, tentou evitar as lágrimas

que brotavam naturalmente. Envergonhado baixou a

cabeça, mas o padre, num gesto amigo pousou a mão

direita sobre o seu ombro.

- Preciso ir. Outro dia a gente volta a conversar

– levantou-se -, até logo.

- Padre... – perdeu o receio e o encarou, mas não

sabia o que dizer.

O padre sorriu-lhe dizendo:

- É uma história emocionante. Uma lição sobre

o valor da vida, da essência da vida. O resto não tem

tanta importância...

- O que aconteceu com o Tibicuera?

- Cresceu, ficou forte, bonito e se tornou um

grande guerreiro. Como vê, meu caro, as evidências

não querem dizer muita coisa.

Tomás sorriu, o padre acabara de ganhar a sua

confiança.

- Padre...

- Sim?

- Meu nome é Tomás.

Ele estendeu a mão.

- Muito prazer Tomás. Eu voltarei, mas lembre-

se: Jesus te ama.

E saiu.

Foi o começo de uma grande amizade. O padre

Thiago sempre dava um jeito de conversar com

Tomás. Nas suas visitas deixava um livro, um jornal,

uma oração. Naquele jovem sacerdote, Tomás

conseguia ver a família, os amigos e suas esperanças

renasciam: sim, tinha alguém lá fora. Não seria

ignorado...

Na cela os companheiros notavam a sua lenta

transformação. Estava mais falante, sorridente e aos

poucos deixava de lado o mau humor. Nem palavrão

falava mais. As costumeiras crises de dor de cabeça

sumiram como fumaça e ele voltava a sentir, depois

de muito tempo, o cheiro bom da vida.

- Canivete está assim porque só faltam seis

meses... – comentavam.

- O cara mudou da água pro vinho!

- Fica pensando que lá fora é o paraíso!

- Ainda vai comer o pão que o diabo amassou.

Mas eles não sabiam de nada. A mudança não

era por conta da proximidade da sua saída da prisão.

Ele nem pensava nisso. Estava diferente por outro

motivo: a pastoral tinha mexido com ele de uma

forma especial. O padre Thiago o ajudou a abrir a

janela da vida e ele passou a olhar o mundo com

outros olhos. Sentia-se mais leve e cheio de sonhos. O

menino Tomás estava presente de corpo e alma.

Canivete era só uma parte do passado que, se não

podia morrer, pelo menos não mantinha qualquer

poder sobre as suas ações.

O primeiro livro que ganhou foi o Pequeno

Príncipe, de Antony Saint-Exupéry. Lembrava-se bem

das palavras do padre Thiago quando este o entregou

o presente:

- O pequeno príncipe é uma história de

ressignificação da vida. O príncipe é você Tomás, leia

com carinho e reflita: ainda é tempo de muitas coisas.

Ele leu. E chorou. Depois tornou a ler e já não

chorava mais. Aprendera a saborear as palavras, a ler

a existência e a rever a cultura da resistência. Tomás

crescia e os medos e o pessimismo eram banidos. O

grito de tristeza seria apenas o eco do aprendizado da

dor. A lição da dor é única, concreta e eficaz. Há tantos

oprimidos e tantos caminhos.

Mas foi preciso uma dose forte de confiança

para que Tomás abrisse o livro da sua vida para o

padre Thiago e quando o fez, ele se emocionou.

Choraram juntos. Experimentava a sua dor e

procurava, através da oração e do seu comovente

amor cristão, emprestar a Tomás o lenitivo que ele

tanto buscava. O ombro amigo era, sem qualquer

exagero, a personificação de Jesus. Um Jesus que

Tomás tanto amava e que Canivete simplesmente

ignorava.

Um dia o padre Thiago disse algo que o deixou

surpreso:

- Quando você sair deste lugar pretendo

acompanhá-lo na sua reinserção social e penso que

você terá um papel importante na nossa equipe

pastoral. Precisamos de pessoas como você, sensíveis

aos problemas sociais e dispostos a buscar possíveis

saídas através da organização. Queremos a sua

participação no processo de formação pastoral. Se

você aceitar, é claro.

Ele ficou em silêncio. O padre continuou:

- Nada é por acaso Tomás. Eu tenho a sensação

que o conheço de algum lugar e penso que um dia esse

mistério será revelado. Sinto que você é uma ovelha

que não pode mais se desgarrar.

- Parece estranho, mas eu também vivo a

sensação de que já nos falamos.

Ele ficou em silêncio, depois o fitou seriamente,

dizendo:

- Jesus tem planos e você está presente neles. O

problema é que você sempre buscou a solução de

modo individual, trágico, vingativo... Primeiro você

precisa alcançar a cura interior, perdoar a si mesmo,

limpar as feridas, lavar a alma de modo lento, mas

completo... Depois deve buscar a comunhão.

- O que é cura interior?

- É o processo pelo qual, por meio da oração,

somos libertos de sentimentos de ressentimento,

rejeição, autopiedade, depressão, culpa, medo,

tristeza, ódio, complexo de inferioridade,

autocondenação e senso de desvalor, etc. Tem uma

bela reflexão do meu amigo, o padre Léo. Ele

conseguiu de modo brilhante, descrever o sentido da

cura interior. Padre Léo fala que nós costumamos

esconder as feridas e as coisas negativas do passado.

Tomás, nós precisamos admitir as nossas fraquezas,

especialmente o fato de não conseguirmos mais

controlar nossas aparências. Esse é o primeiro grande

passo, a gota fundamental, para a cura interior. Mas

para experimentar a graça da cura interior,

necessitamos reconhecer que somos dependentes de

nós mesmos, de pessoas, de nosso passado e de nossos

traumas. Percebemos isso tendo a coragem de tomar

nossa vida nas mãos, sem medo e sem condenação.

Você pode encontrar a paz interior Tomás.

Tomás ficou pensativo. Lembrou-se da velha

angústia que carregava dentro do peito, das

constantes dores de cabeça, das lágrimas, dos

pesadelos, do terrível sentimento de culpa, do eterno

conflito entre o bem e o mal, o certo e o errado...

Aquela conversa, de certo modo, o ajudou a olhar

mais para seu interior, sem a sombra da condenação

ou da absolvição, mas o olhar da esperança, do

recomeço.

Ele continuou:

- A sua luta deve ser a de resgatar pessoas que,

como você, acham que não há saída e vivem apenas o

lado obscuro da vida... Sabe Tomás, a sociedade é

repleta de situações como a sua, mas nem por isso a

vida perde o sentido. A cura interior é a cura de nosso

homem interior: da mente, emoções, lembranças

desagradáveis, sonhos. Mas é preciso enfrentar a

realidade, sem máscara, sem medo e acima de tudo,

acreditando, de fato, na esperança. Tire a sua máscara

e não tenha medo da sua imagem. Não se jogue no

precipício, acredite em você. Problemas existem e

agravam o coração, mas nem por isso você deve

desistir do amor. A capacidade de amar está em seu

coração, mas a decisão de amar dependerá somente

de você. Se você se decide pelo amor, tudo mudará em

sua vida. Você tentou reconstruir sua vida após a

morte da sua família, mas escolheu o caminho errado,

foi isso.

- Eu sei.

- Lembra-se da última coisa que ouviu da sua

irmã quando agonizava naquela tragédia?

- Como esquecer? Cida me encarou e disse:

“Tomás, você precisa viver”.

- Sim. E embora ela não tivesse tempo para

explicar, é possível entender que sua irmã não queria

você metido com a violência, mas que vivesses com

dignidade, livre e voltado para as coisas boas da vida.

Era o sonho de sua mãe e suas irmãs que você

estudasse e encontrasse um emprego honesto, que

nunca se infiltrasse no mundo do crime. Cida pediu

vida, você preferiu a vingança, a morte. Cida pediu

felicidade, você preferiu a dor, a tristeza. Mas Deus

não o abandonou em momento algum, isso é o mais

importante. O mesmo recado da Cida continua ainda

hoje. Você sobreviveu, é jovem e pode recomeçar e

desta vez tomando um novo rumo, sem

individualismo, mas cercado de pessoas que

acreditam em você. Recomece Tomás, ainda é tempo

de semear novos campos.

E foi construindo momentos mesclados de

conhecimento, esperança e ternura que Tomás foi se

transformando noutro homem.

Dezesseis

Dona Belarmina

No dia da visita uma surpresa. A mulher

deveria ter uns 68 anos, mas estava firme e forte. O

rosto moreno, o olhar caridoso e o sorriso amigo não

deixavam dúvidas. Trazia nas mãos um envelope

velho e meio sujo. A princípio, Tomás não acreditou

quando soube que tinha visita. Ele nunca recebia

qualquer pessoa, era só um preso como tantos... Mas

ela estava ali, na sua frente, olhos molhados, voz

trêmula de emoção. A princípio ele ficou em silêncio,

inseguro quanto às suas lembranças, mas ela,

percebendo a sua desconfiança, resolveu quebrar o

gelo:

- Lembra-se de mim Tomás?

Aquela voz... O mesmo tom de afetividade

atrás de cada palavra.

- Dona Belarmina...

Os dois se abraçaram em prantos. Ela tocou

seus cabelos, seu rosto, cobriu-lhe de beijos. Por um

momento ele teve a sensação de que aquela boa

senhora era a sua mãe querida que viera de longe

visitar o filho perdido.

- Tomás, você está vivo!

- Graças a Deus! – respondeu sorrindo,

limpando as lágrimas.

- Disseram tanta coisa a seu respeito. Que você

tinha fugido do país, que tinha morrido... Procurei por

você todo esse tempo e ninguém sabia de nada.

Depois fiquei sabendo que você tinha morrido numa

luta com os assassinos da sua família... Visitei outras

prisões e nada. Até que tive a ideia de conversar com

o pessoal da Pastoral Carcerária. Eu conhecia o padre

Thiago e ele me falou de você.

Ele. Mais uma vez ele abriu as suas janelas.

Afinal quem era o padre Thiago? Por que Tomás

sempre tinha a sensação de que o conhecia?

Dona Belarmina continuava falando

animadamente, trazia notícia de tudo e de todos.

- Ele falou que você sai daqui a cinco meses.

Que bom, meu filho! Agora você toma juízo e fica

sossegado. Chega de sofrimento e morte. Vamos

sorrir um pouco...

- O que há neste envelope?

- Eu achei na sua casa. Depois que você se foi,

fiquei zelando do barraco. Limpo todo dia, as coisas

estão no mesmo lugar. Eu sempre achei que um dia

você ia voltar. Agora, como está quase livre da prisão,

penso que fiz a coisa certa. Você tem casa e carinho,

pode acreditar meu filho. Um dia, enquanto fazia a

limpeza, quando arrastei o velho sofá, vi a ponta desse

papel. Com jeito, puxei lá do fundo. Tinha esse

envelope e um saquinho de couro escondidos na parte

de trás, ao lado das molas velhas. Guardei o saquinho

e trouxe esse envelope. Quando você sair daqui me

procure e eu entrego a encomenda. Tomás, eu sei de

tudo... Tive que ler esse papel porque pensava que

você tivesse morrido. Chorei muito. Agora é a sua vez.

Estendeu-lhe o envelope. Tomás ficou receoso,

sem coragem de ler a carta. Temia que o passado

estivesse de volta e justamente agora quando ele se

preparava para enfrentar o mundo... Por outro lado,

tinha que vencer todos os medos, caso contrário,

jamais poderia ser feliz. Abriu o envelope. No interior

uma antiga folha de caderno dobrada, escrita com

caneta preta. A mensagem não era longa:

“Maria, se acontecer alguma coisa comigo,

pegue a sacola e fuja para bem longe. O nosso sonho

de ficar bem de vida já chegou e nós merecemos isso.

Cuide bem de Canivete e das meninas. Eu não presto

e só vou atrapalhar a vida de todos vocês”.

“Assinado: Sebastião de Jesus”.

E mais abaixo da folha, no canto:

“Escrito por Toninho Silva”.

Toninho troca-troca, esposo da Ângela, a

mulher que tinha um caso com o seu pai... Tomás

nunca imaginou que o Toninho se prestasse a uma

tarefa assim. Sabia da carta, sabia do seu conteúdo e

nunca falou nada.

- Ele tinha medo do Pirata... – explicou dona

Belarmina - Não sabia o que tinha na sacola, seu pai

não era bobo. Era analfabeto. Por isso pediu a Toninho

que escrevesse a carta. O Toninho era homem de

confiança, preferiu o silêncio. Morreu fiel a seu pai.

- Morreu?

- Sim. Tiroteio no morro. Ele estava passando.

Bala perdida. Foi no começo do ano atrasado, uma

coisa triste...

- O que tem na sacolinha de couro?

Ela olhou os lados, certificando-se de que

ninguém os ouvia, depois sussurrou:

- Uma fortuna. Em jóias.

Ele ficou indignado. Se soubesse de tudo não

haveria tragédia, sua família estaria viva... Por que o

pai fora tão sórdido?

- Ele não podia ter feito isso... – chorou

revoltado.

- Tomás, ele não imaginava que seria

descoberto... Morreu antes, lembra-se?

Engoliu o choro e ficou em silêncio. Era como

se ela quisesse dizer: “Como você queria que ele

resolvesse algo se foi você que o matou?”

- Tem razão... – disse um tanto desapontado.

- Pelo que ele afirmou na carta, ia deixar você,

as meninas e a comadre numa situação boa. Ele sabia

que mais cedo ou mais tarde seria descoberto pelos

bandidos...

- De qualquer forma é sujeira, não quero nada,

não vou me sujar nunca mais!

- Faça o seguinte: eu vou aguardar a sua saída.

A gente conversa e pensa com calma. Não tome

qualquer decisão. Agora tenho que ir. Fique em paz e

não se preocupe você está cercado de bons amigos.

Ela se despediu e ele ficou com a velha carta.

Chorou mais uma vez.

Dezessete

Tempo de recomeçar

Ironicamente no percurso dos últimos meses

que antecedia a saída da prisão, Tomás passou a viver

sérias provações. A primeira foi a entrada da Pastoral

na sua vida, depois a amizade com o padre Thiago, o

reencontro com a dona Belarmina... Ele tinha medo de

não aguentar tantas emoções. Depois, com mais

calma, pode compreender que a sua história ainda

não tinha terminado. Nas suas orações pedia

discernimento e uma frase do padre Thiago

martelava-lhe os ouvidos de modo insistente,

tornando as coisas mais claras e reconfortantes:

“Nada acontece por acaso”.

Havia naquela frase um misto de

espiritualidade, fatalismo, conformismo, utopia e a

certeza de que cada dia tem que ser bem vivido,

mesmo quando as coisas não correm do jeito que se

espera. No coração de Tomás a certeza de que outras

descobertas viriam o deixava ansioso, inquieto,

temeroso.

Alguns amigos de cela achavam que ele estava

meio louco. Diziam que tinha que caminhar mais

devagar para não tropeçar na decepção. Ele tentava,

mas a ansiedade não permitia. Lia com paixão os

livros que o padre trazia, devorava as notícias dos

jornais e buscava com os olhos, a mente e o coração as

novidades. Quando o pessoal da pastoral chegava, era

um alívio. Ele se preenchia naqueles encontros,

naquelas palestras, nos cursos de formação, nas

celebrações. Ali descobria um novo mundo.

Faltava um mês para a sua liberdade. O tempo

passava tão rápido que ele nem dava conta. Naquele

dia teria pregação do padre Thiago. O tema foi “O

perdão e o recomeço”. Fazia um calor intenso, por isso

o evento foi realizado no pátio A, na parte da manhã

e, como sempre, todas as atenções estavam voltadas

para o padre. Naquele dia ele estava particularmente

inspirado. Começou apresentando alguns exemplos

que mostravam como Jesus definia seu projeto de vida

e como agia. Os detentos ouviam atentamente:

- Na parábola do fariseu e do publicano que

foram ao templo para rezar, Jesus não condenou as

virtudes do fariseu, nem justificou as falhas do

publicano. O que ele não admite é que nosso bom

comportamento nos torne orgulhosos, fechados,

insensíveis às necessidades e ao valor humano

daqueles que têm outra história de vida.

Tomou um copo d’água refrescante, para, em

seguida prosseguir:

- E por falar em história de vida, vou contar um

episódio que marcou a minha vida e que ainda guardo

no meu coração. Era véspera de natal. Eu tinha oito

anos e a minha mãe tinha acabado de se separar do

meu pai. Como eu era filho único senti mais

intensamente a crise conjugal, afinal sempre fui muito

apegado ao meu pai. Aquele seria o natal mais

solitário da minha vida, eu estava muito triste,

chorava sozinho no meu quarto e não queria comer. A

minha mãe tentava reanimar-me de todas as

maneiras, finalmente ela teve a ideia de fazermos as

compras de natal. Visitamos diversas lojas. Numa

delas, talvez a mais rica de todas, havia um rapaz

caracterizado de Papai Noel. Era o garoto propaganda

da loja, cujo papel era fazer gentilezas aos clientes,

oferecendo doces às crianças que estavam

acompanhadas e, desse modo, ganhar a simpatia da

burguesia. Era, como hoje, o natal comercial da

sociedade capitalista: época de fartura, altos lucros e

muita discriminação. Notei que a poucos metros da

entrada da loja havia um garoto esfarrapado. Ele tinha

fome e observava o entra e sai das pessoas, os

presentes, os doces, os sonhos... O bom velhinho fazia

questão de ignorar aquele garoto, mas quando me

aproximei ele me encheu de elogios, ofereceu-me

doces e lembranças do natal. Recebi o saquinho de

presente e não pensei duas vezes: passei ao garotinho

faminto. A princípio ele relutou em aceitar e então eu

comecei a falar de esperança e do amor de Jesus para

com a humanidade. O interessante é que foi a

primeira vez que eu falei de Deus para as pessoas.

Naquele tempo eu não era muito ligado à Igreja, tinha

o costume de frequentar a missa aos domingos com os

meus pais e só. Mas naquele dia senti algo diferente,

uma espécie de chama que me incitava a falar de Deus

para aquele garoto. Uma criança como eu... – fez uma

pausa, a voz trêmula denunciava o choro – e a oração

foi brotando do meu coração. Pedi que o garoto orasse

comigo e juntos rogamos a Deus, assim: “Senhor, põe

em mim um coração novo. Quero ser feliz, Senhor.

Ajuda-me a descobrir minha meta. Ajuda-me a buscar

as coisas do alto”. Nunca mais esqueci aquela oração,

aquela súplica tão sincera, tão pura, realizada de um

modo único em minha vida. Quando me recordo

daquele momento, realimento a certeza da presença

do Espírito Santo na minha vida e na vida daquele

garoto desconhecido.

À medida que ele falava, um calafrio foi se

apoderando de Tomás. Ele sentia que o chão

desaparecia.

Não podia acreditar naquele testemunho:

“Então aquele garoto era ele?” – Perguntou-se

emocionado.

- O que você tem Canivete? Está pálido como

uma vela! – Alguém o segurou.

- Eu... Eu... – gaguejou sem encontrar qualquer

palavra.

O padre não havia percebido o pequeno

tumulto que se formou ao redor de Tomás. Alguém

trouxe um copo d’água, ele tentava se reequilibrar e

continuou ouvindo. As lágrimas banhavam a sua face,

ele nunca saberia descrever o tamanho daquela

emoção...

Alheio ao que se passava, o Padre Thiago

continuou e sua voz soava trêmula. O momento que

vivera no passado tinha significado especial,

completo, por isso ficava emocionado com as

lembranças. Prosseguiu com o testemunho:

- Enquanto eu falava, o mais lindo aconteceu: o

garoto começou a chorar e eu também. Desabafamos

as nossas dores e nos abraçamos de um modo intenso,

seguro, confortante. Ele recebeu o saquinho, baixou os

olhos enquanto o examinava, saí de fininho sem que

ele notasse. Antes de entrar na loja, pedi ao Papai Noel

que não dissesse ao garoto onde eu estava... Nem sei

por que fiz aquilo, talvez por conta do nervosismo,

impulso ou pode ser que estava escrito no livro do

destino que seria assim... O fato é que nunca mais vi

aquele garoto, não sei o seu nome, onde mora se está

vivo ou se morreu. Mas o seu olhar de gratidão e dor

ainda me acompanha e eu tenho certeza que se ele

estiver vivo também guarda esse momento no fundo

do coração...

Um grito interrompeu a palestra do padre:

- Canivete está passando mal!

- Desmaiou.

Quando acordou não entendeu o que se

passava. A cabeça doía e no teto uma aranha estava

vigilante.

“Aranha, teia, inseto, vida, morte, eu...”

Tudo estava confuso. Voltou a dormir.

Ainda bem que ele não estava só. A pequena

aranha estava ali, assistindo a sua agonia. Era uma

aranha diferente. Tinha a cor castanho-amarelada

com marcas esbatidas, listas amarelas e pretas. A

cabeça pontuda e as patas alongadas, como tentáculos

estratégicos, emprestavam-lhe um ar de imponência,

tornando-a especial.

Era mais do que uma simples sedentária, na

verdade, pouco se assemelhava às aranhas que

costumam ocupar os beirais das casas, varandas e

matas. Aquela não estava ali apenas para caçar.

Certamente queria algo mais. Embora seu veneno

fosse pouco potente, tinha a habilidade de montar

longas teias, perfeitamente simétricas,

transformando-as em armadilhas pegajosas e,

pacientemente, ficava à espreita da primeira vítima.

Era uma aranha doméstica na fase adulta. Dava para

notar o seu abdômen castanho-acinzentado, meio

pálido, com pelos curtos.

Interessante o mundo das aranhas: fazem e

refazem seus fios todos os dias, armam a teia e a

utilizam várias vezes, remendando-a, até que tenham

de construir outra nova. Pacientemente produzem

fios de seda por meio de uma estrutura abdominal,

composta de glândulas e fiandeiras. A teia é a

estratégia de sobrevivência das aranhas.

O mais interessante são as aranhas errantes

(aquelas que vêm em busca da presa). Nunca fazem

teia regular. Nem sei por que são chamadas de

errantes se fazem a coisa certa. Talvez porque não

pertençam ao grupo de elite aracnídea. São aranhas

operárias que se limitam a produzir fios de seda para

forrar o ambiente onde vivem e assim protegerem a

cria.

Tomás nunca estudara sobre aranhas, tudo o

que sabia era fruto da curiosidade de quem não tem o

que fazer. Fazia muito tempo, mas na sua casa tinha

um livro velho de capa dura, forrado com plástico

colorido. Era o livro de Ciências da sua irmã mais

velha. Eles costumavam brincar de escola. A vida das

aranhas era a parte que ele mais gostava. Lembrava-

se que cada espécie descrita tinha fotografia e ele vivia

doido para comparar as aranhas do livro com aquelas

que ele encontrava no quintal. Era um verdadeiro

passatempo. Se tivesse condição, certamente seria um

biólogo, estudioso das aranhas por excelência, um

verdadeiro especialista no assunto. Porém, quis o

destino que ele sequer encerrasse o primário e o seu

sonho acadêmico se transformasse em teias de

desgosto, frustração e violência... “Paciência, pensava,

a vida tem dessas coisas”.

Mas ele nunca se afastou das aranhas, elas

estavam em toda parte, sempre lhe faziam companhia

e desde pequeno era profundo observador da labuta

desses bichinhos inteligentes.

Quando uma delas estava em plena atividade

de construção da teia, podia perceber que ali estava a

prova da existência de uma singular sabedoria e ele

ficava maravilhado com aquela técnica, observando a

maneira como a aranha estendia os eixos de

sustentação da teia. Depois ela prosseguia

pacientemente, ia unindo os fios de suporte e

preenchendo os espaços vazios, criando uma

estrutura resistente. Tomás ficava boquiaberto diante

de tamanha perfeição!

E lá estava ela, quietinha, no centro de uma teia

que se estendia ao alto, no canto superior que dividia

as paredes frias. Aquele bicho solitário na verdade era

a única testemunha da sua insônia. Era a imagem

estagnada, inabalável de uma teia de histórias e

conflitos da sua vida. Uma teia com uma aranha ao

centro e pronto: estava presente o quadro que ele

tinha que apreciar, muito além da vontade, do

cansaço, da dor de cabeça, da febre, das pálpebras

pesadas, do sono e dos detalhes repetitivos da sua

agonia.

Mesmo de olhos fechados ele a contemplava e

nada era capaz de ofuscar a imagem perfeita: a teia e

a aranha estampadas no teto, enfatizando sua

impotência diante de algo aparentemente

insignificante. Tomás se sentia preso outra vez entre o

passado e o presente, ambos recriando uma realidade

que se agigantava ao seu redor. Estava forçado a

apreciar a mesma rede cujos fios foram

minuciosamente trabalhados para prender os insetos

dos quais se alimenta a aranha artesã. Naquele

momento era ele o inseto maior, preso naquela

armadilha e prestes a ser devorado sem qualquer

cerimônia.

Certamente, aquela era uma aranha fria,

insensível, calculista e repleta de paciência: tinha a

certeza da vitória, por isso estava tranquila, como se

estivesse petrificada, guardando seu sono conflituoso

ou talvez tirando a maior onda da sua cara. Às vezes

ele tinha a estranha sensação de que aquele bicho o

espiava furtivamente. Era como se ela zombasse de si,

apresentando uma espécie de sorriso maléfico,

vingativo, exposto através dos pequenos olhos

negros. A sua boca, provavelmente deveria ser aquele

risco, quase imperceptível, que se abria sutilmente,

vez por outra.

“A boca de uma aranha”, eis aí uma coisa que

ele nunca viu nitidamente.

Uma vez lera que a boca da aranha se situa

entre os palpos. Entre a boca e o estômago existe uma

estrutura formada de milhares de pelos finos, que

funcionam como um sensível filtro, onde só as

partículas menores são capazes de passar. Com isso, a

aranha é protegida da entrada de bactérias, vírus e

outras formas de vida nocivas a ela.

Quando ele era criança, apanhava um graveto,

cutucava a aranha-caranguejeira e ela se encolhia,

mãos e pés se enroscavam e se transformava num

gozado novelo peludo. Ele nunca teve medo, mas a

sua irmã mais velha, a Estela, vivia reclamando:

- Tomás, um dia você será afetado e se o pelo

venenoso desse bicho cair no olho vai te cegar.

Era tanta ameaça que ele abandonava a danada

e ia inventar outra novidade. Quando alguém

aparecia com herpes no cantinho da boca, a mãe

apresentava uma explicação pouco convincente:

- Isso é boqueira, vai ver foi a aranha que

passou e deixou o seu rastro!

Lá no barraco tudo era culpa da aranha:

– Bicho metido a besta que invade a casa e se

espalha no telhado e na parede! – Reclamava a mãe.

As queixas não adiantavam, a aranha voltava,

renascia sei lá como e demarcava o seu território.

Viviam debaixo do mesmo teto, por determinado

tempo. Até a mãe fazer a faxina. Aí a coisa era

dramática, pois ela começava espiando cada detalhe

do telhado, buscando moradores intrusos. Pobre

aranha! Toda a labuta na construção de fios perfeitos

estava perdida. A teia que o bichinho tão

cuidadosamente tecia ia sendo destruída em

segundos. A vassoura de pindoba que a mãe usava

era uma arma eficaz, capaz de transformar o lar da

artesã num monte de fios entrelaçados com a palha da

vassoura. Porém, antes de se dar por vencida, a

esperta aranha escapava momentaneamente, em

disparada, talvez em desespero e quando encontrava

a saída pela porta dos fundos, prestes a alcançar a

liberdade, lá estava ele: o delicado pezinho da irmã

mais nova, aquele que finalizava a história,

esmagando a pobre aranha em mil pedaços. O que

restava era só uma pasta grudenta, numa coloração

branco-amarronzada - que a Cidinha expulsava no

gramado do quintal ou simplesmente atirava o

chinelo na água do velho balde. Era o fim da festa, da

teia, da aranha, da obra, da artesã. Os humanos

venciam mais uma vez!

Mas agora estava diante de uma aranha

diferente: forte, livre, maior e, certamente, mais

sensata do que ele, que se considerava “um imbecil

que gasta horas pensando em aranhas”. Sorriu com

tristeza, enquanto divagava em pensamento: “Pobre

de mim, querendo ser mais do que gente. Deve ser

efeito da insônia”. Já pensara em tanta coisa enquanto

olhava para a teia da aranha que os pensamentos

enjoavam e se misturavam ao gosto amargo do seu

hálito. Agora só queria uma coisa: dormir. Não queria

permanecer condenado a observar uma estúpida

aranha imóvel.

Mas aos poucos as coisas voltaram ao normal.

O padre só ficou sabendo da sua situação algum

tempo depois. Passaram-se quinze dias desde aquela

revelação. Interiormente vivia um novo dilema:

contar ao padre que o garoto era ele? E se ele não

acreditasse na sua história? Talvez pensasse que ele

estava buscando uma forma de se promover, criando

bons argumentos para uma sólida amizade e assim

garantir o apoio necessário para quando deixasse a

prisão. Chegou à conclusão que era melhor deixar as

coisas como estavam. Foi um momento inesquecível e

o segredo seria a melhor forma de torná-lo

especialmente mágico.

- Fiquei sabendo que você esteve doente... –

disse-lhe o padre.

- Um mal-estar súbito, já passou, estou bem... –

no fundo estava sem graça e a frieza foi a arma que

utilizou para se proteger do segredo.

- Disseram que foi durante o meu testemunho...

Havia um tom enigmático em sua fala. Será que

desconfiava de algo?

- Acho que sim, fui ouvindo e aos poucos senti

as vistas se embaralharem, ficou tudo confuso, depois

não vi nada mais...

- Então não se lembra do meu testemunho?

Tomás começou a ficar receoso: por que ele

insistia no assunto? Respondeu-lhe evitando qualquer

ênfase que o levasse a desconfiar de algo:

- Pouca coisa, falava do seu encontro com um

garoto pobre no natal, acho que foi isso.

- Sim. Aquele encontro foi decisivo para

despertar a minha vocação. A partir daquele dia

nunca mais fui o mesmo. Tornei-me estudioso,

sorridente e atencioso. Os meus pais ficaram

preocupados, achavam que eu estava fazendo tipo,

coisa de menino revoltado com a separação... Comecei

a ir à Igreja com mais frequência, fui convidado para

fazer parte do grupo de coroinhas e, aos poucos,

conhecia melhor a minha religião. Outra coisa: todo

natal eu voltava à loja na esperança de rever o garoto,

mas ele nunca estava por lá.

- Pode ser que você o tenha visto e não o tenha

reconhecido. São tantos garotos famintos espalhados

pela cidade, além disso, pobre é tudo igual, tem a

mesma cara, os mesmos olhos pidões, os mesmos

farrapos.

- Não, ele deixou presente mais do que uma

simples imagem, deixou a sua energia. Acho que se eu

o encontrasse hoje, mesmo tendo passado tanto

tempo, o reconheceria.

Num ímpeto Tomás quase revelou a verdade.

Mordeu os lábios, não ia deixar a emoção tomar conta

da sua razão. Disse-lhe com firmeza:

- As pessoas mudam. Aquele garoto pode ter

virado um perigoso bandido, pode ter sido

assassinado, pode estar preso...

- Ou talvez tenha se dado bem na vida, casado,

bem empregado, com mulher e filhos...

- Por que deseja tanto reencontrá-lo?

- Na verdade eu já não pensava mais nisso.

Acontece que tive um sonho curioso e que me trouxe

de volta o garoto.

- Sonho?

- Sonhei que estava viajando numa estrada de

chão. Era uma estrada longa, o sol estava forte e

atrapalhava a minha visão. Em dado momento avistei

um rancho coberto de sapê, de paredes de barro

socado com varas. Uma visível pobreza. Parei o carro

e entrei no rancho. Não havia ninguém em casa. Ouvi

um barulho estranho vindo do único quarto. Entrei e

vi o menino amarrado na cama, cercado de aranhas.

Algumas estavam penduradas no teto, outras pela

cama e no corpo do menino havia uma centena. As

mãos amarradas na parte superior da cama não

permitiam que ele espantasse os insetos. Quando ele

viu que era eu, começou a sorrir. E da sua boca saíam

mais aranhas. Depois, tudo mudou, não vi nenhuma

aranha, só o menino deitado, dormindo feito um anjo.

Quando me aproximei ele acordou abriu um lindo

sorriso e disse: “você ainda não sabe quem sou eu,

mas estou muito perto de você”... Acordei banhado de

suor e desde então voltei a pensar no garoto.

Uma pausa emocionada. Não havia como

ocultar nada mais. Ainda assim, Tomás tentou romper

com toda e qualquer forma de esperança:

- Sonho... Parece mais um pesadelo. Quer um

conselho padre? Esqueça essa história, viva a sua

vida. Não é isso que você sempre diz? O passado é

apenas uma história que já aconteceu. Feia ou bonita,

já fez sua parte. O presente é o mais importante.

- Sei... Mas é preciso conhecer o passado para

compreender o presente.

- Por que está me dizendo essas coisas?

- Não sei, talvez porque você é uma pessoa de

confiança.

- Eu... Gostaria de ficar a sós. Minha cabeça

voltou a doer.

- Tudo bem. Voltamos a nos falar outro dia.

Ele sabia de tudo. Não havia como escapar.

- Padre...

- Pois não.

Tomás estendeu-lhe a mão. Tremia de emoção.

A oração saltou-se dos seus lábios. Ele sorria e

chorava ao mesmo tempo. Oraram juntos como

naquele dia:

“Senhor, põe em mim um coração novo. Quero

ser feliz, Senhor. Ajuda-me a descobrir minha meta.

Ajuda-me a buscar as coisas do alto”.

Tomás o olhou profundamente e disse num fio

de voz:

- Aquele garoto era eu!

O padre sorriu com bondade e as lágrimas

desceram suavemente.

- Eu sei.

- Como tinha certeza?

- Esse encontro aconteceu não faz tanto tempo

assim, acho que uns 15 anos, mas o sonho foi a

revelação que eu precisava. Você sempre me falou da

sua predileção pelas aranhas. Quando acordei, disse

para mim mesmo: “é ele. O Tomás é o garoto que eu

conheci”. Foi uma grande descoberta e com toda

certeza a mais gratificante da minha vida. E pensando

bem, você não mudou tanto assim. Ainda carrega

certa aflição no olhar e a mesma ternura no sorriso.

Que bom que não foi um sonho. Você existe de

verdade...

A emoção quebrou a dureza do coração de

Tomás. Lembrava-se de todos os detalhes:

- Quando eu levantei os olhos e não mais o vi,

fiquei com uma sensação esquisita, perguntei ao

Papai Noel, ele disse que não tinha ninguém, que eu

estava inventando coisas. Voltei para casa com a

minha mãe e nas mãos o saquinho de doces que você

deu. Acabei escondendo a história, como se fosse mais

uma das minhas invenções, eu sempre fui muito

criativo. Aquele natal foi o mais feliz da minha vida,

aliás, o único. Depois disso, vivi o desespero, a dor e

a revolta.

Ficaram em silêncio por alguns segundos.

Depois o padre confessou:

- Estou muito feliz com o fim desse mistério.

- E agora?

- Como assim?

- Você queria saber a verdade, agora sabe. O

que pensa fazer?

- Sabe por que eu queria saber a verdade?

- Não faço ideia...

- Eu tinha uma dívida com aquele garoto.

Depois daquele encontro minha vida mudou e você

foi o responsável por isso.

- Padre, não diga isso. Eu não passava de um

garoto maltrapilho que vivia espiando comida de rico.

Você teve compaixão, deu uma migalha da sua

comida e depois sumiu no mundo.

- Foi mais do que isso. Sempre que eu tinha

dúvidas, a sua imagem cheia de ternura aparecia e eu

tinha a sensação que deveria abraçar a minha causa

em defesa dos oprimidos. Claro que tem o dedo de

Deus nessa história. Mas a minha fé foi alimentada

pela imagem do descaso, da negligência social, do

medo, da fome e da violência estampada no seu rosto.

Depois que me ordenei sacerdote, optei pelos

trabalhos pastorais e mais uma vez fiquei pensando: a

Pastoral Carcerária é um desafio e sem perceber, veio

a lembrança do nosso encontro.

- Ou seja, na sua cabeça eu teria crescido e

virado bandido. Estaria atrás das grades ou com a

boca cheia de formigas...

- Não, embora este seja o destino de centenas

de crianças como aquele garoto. Você sabe melhor do

que ninguém. Você é aquele garoto! Mas a minha

opção pela Pastoral Carcerária teve outro elemento

motivador. Um colega relatou que o padre Luiz

Roberto Teixeira Di Lascio costumava visitar algumas

prisões. Certa vez, enquanto visitava um preso do

Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, viu

uma cena inesquecível. Ele observou a entrada de

uma senhora de 60 anos, simples, cabelos grisalhos,

rugas no rosto, andar calmo, meio curvada, semblante

sereno, carregando uma sacola. A senhora dirigiu-se

até o banco onde estava sentado um jovem de uns 24

anos. Ele a acolheu com carinho e ela o acolheu com

seus gestos de amor materno. O padre ficou admirado

como aquela mãe demonstrava o carinho,

acolhimento, alegria, como o seu olhar para o rapaz

era de ternura e como ele se sentia alegre. No abraço

que eles trocaram para se despedir, Deus estava

presente. O preso que era visitado pelo padre

percebeu a sua admiração diante daquela cena, e

disse: "Sabe, Padre Luis Roberto, aquela senhora não

é a mãe dele, mas sim a mãe do rapaz a quem ele

matou. Ela prometeu, no dia do enterro, que ela o

perdoava. Como sinal desse perdão ela o

acompanharia com muito amor e assistência

enquanto ele estivesse na prisão".

Fez uma pausa. Bateu de leve no seu ombro.

- É claro que eu tinha esperança de um dia

poder reencontrá-lo e fazer como aquela boa senhora:

apresentar a esperança, o perdão e o amor de Deus.

Não fugirei como o fiz naquele dia, mas serei uma

presença concreta, verdadeira e leal. Quem sabe se eu

não tivesse fugido daquele jeito as coisas seriam

diferentes. Perdoe-me Tomás.

- Você era só uma criança. Não deve se culpar.

Estou bem, hoje estou mais sereno, sensato, aprendi a

ver o lado bom da vida e a acreditar na esperança. A

pastoral me ajudou a ser um novo homem e você é

parte fundamental nessa transformação.

- Sabe Tomás, eu acredito na Pastoral. Ela

representa de maneira admirável a imagem de Jesus

que vem salvar e morrer sem nada receber. Porém,

acreditar na pastoral apenas, não é suficiente, é

preciso acreditar no ser humano, na transformação, na

luta e na organização.

- Um trabalho admirável.

Fez uma pausa, consultou o relógio. Preparou-

se para sair, mas Tomás ainda tinha algo a lhe dizer:

- Padre, tem mais uma coisa. Certa vez, ainda

criança, eu sonhei que a gente tinha se reencontrado.

Foi logo depois que perdi minha família. Foi um

sonho lindo. Era natal e eu voltei na mesma calçada,

diante da mesma loja e quando eu perguntei seu

nome, você abriu um sorriso e respondeu: eu sou o

menino Jesus.

Ele apertou os olhos, repleto de emoção. Não

disse nada. Despediu-se com um sorriso.

Dezoito

“Eu sou o homem aranha”.

Era véspera da sua despedida da prisão. Tomás

passou a penúltima noite em claro, mil pensamentos

tomavam conta da sua cabeça. Pensava nos amigos

presos que ainda ficariam ali por algum tempo.

Quanto mais pensava, mas tinha a certeza de

que nunca se deu conta da culpabilidade daquelas

pessoas: o que fizeram, o tamanho do crime... A

reclusão cria e recria outros valores, outros conceitos.

Será que eles apenas fizeram mal à sociedade ou

foram, também, vítimas das suas armadilhas? Não

sabia dizer. Mas tinha absoluta convicção que ali

estava deixando amigos que conhecera daquele jeito e

daquele jeito permaneciam. Não estava em condição

de julgá-los, nem poderia, era parte encarnada dos

capítulos da história de todos eles. Era um pouco

daquela história e mesmo que passasse um, dois ou

mil anos, carregaria sempre a marca e o cheiro

daquela cela, daquelas grades, daquele povo,

daquelas aranhas.

No fundo tinha uma certeza: não estaria

sozinho. Dona Belarmina cumpriu sua promessa,

passou a me visitar diversas vezes, sempre com o

mesmo sorriso, a mesma ternura e o eterno olhar de

compaixão. Na véspera trouxe novas roupas,

cheirosas, dobradas e engomadas com o capricho de

toda mãe ansiosa.

- Quero você bonito lá fora e nada que lembre

esse lugar - disse enquanto o entregava a sacola.

- Não precisa se incomodar.

- Amanhã bem cedo, depois que sairmos daqui

você vai se encontrar com o padre e mais duas

pessoas.

- Mais surpresas?

- Eu... Desculpe-me, não devia ter comentado.

Oh! Língua danada!

- Agora eu quero saber.

- Paciência, disse em tom de brincadeira,

amanhã será outro dia. Agora preciso ir, o padre ainda

quer falar com você.

- Vocês estão planejando matar-me do coração.

Suspense, segredos, medos...

- Até amanhã meu querido!

Pouco depois estava diante do padre.

- Não gosto muito do jeito como as coisas estão

acontecendo... Dona Belarmina disse que amanhã

duas pessoas estarão à minha espera. Quem são elas?

Ele ficou sério.

- Ela não devia ter mencionado, era nosso

principal segredo.

- Não acha que está brincando demais com a

vida alheia? Isso não é uma atitude cristã.

- Tomás, nada do que estamos fazendo vai te

prejudicar e tenho absoluta certeza que ficará muito

feliz quando encontrar-se com as pessoas. Tenha

paciência, meu amigo, você esperou cinco anos! Um

dia a mais não fará diferença.

Tomás estava visivelmente aborrecido. Disse:

- Pelo visto minha vida está em suas mãos.

O padre alterou o tom da voz, como nunca o

fizera antes:

- Tomás, sabe por que meus pais se separaram?

Ele descobriu que a minha mãe o estava traindo com

o melhor amigo. Ficou desesperado e nos abandonou.

Depois, reconsiderou o fato, a minha mãe disse que se

arrependeu, que o amava e que a nossa família era a

coisa mais importante. Dois anos depois, voltaram a

se desentender. Mamãe pediu a separação e o meu pai

entrou em depressão. Uma tarde, quando voltava do

colégio, encontrei o meu pai morto. Ao seu lado várias

caixas de tranquilizantes. Quase fiquei louco, mas a

mão de Deus me amparou e eu sobrevivi.

O padre ficou em silêncio por alguns instantes,

em seguida afirmou seriamente:

- Você não é o único que tem uma tragédia

para contar, não é o único que sofre... Naquele

momento eu também não tinha ninguém. Minha mãe

ficou com tanto remorso que até hoje não se

recuperou. Já esteve em diversas clínicas e mesmo

assim vive tendo crises de depressão. A morte do meu

pai não foi o único episódio triste, ainda existe o

calvário da minha mãe.

- Eu sinto muito.

- Ah! Como eu gostaria de ouvir alguém

dizendo que tudo o que passei foi um sonho mal, que

meu pai não se matou, que a mamãe está bem, que

ainda somos uma família feliz... Por isso, Tomás, tudo

que eu faço por você, faço por mim. Digo o que eu

gostaria de ouvir, dou aquilo que gostaria de receber.

Busco minha paz na paz do meu irmão que sofre e isso

não é para me promover. Não sou nenhum santo, não

espero nenhum prêmio. Sou uma pessoa que acredita

que qualquer ser humano tem direito ao perdão e

pode recomeçar. Como a fênix, nos transformamos

em cinzas para, em seguida nos reintegrarmos, nos

ressignificarmos. Eis aí a nossa transfiguração. Mas se

você faz tanta questão, contarei tudo.

- Não, por favor. Eu sou um idiota, agi como

um egoísta. A dona Belarmina não teve culpa de nada.

Perdoe-me meu bom amigo!

- Entendo... O segredo gera ansiedade, mas eu

não gostaria de quebrar a minha palavra. Não se

preocupe, será algo maravilhoso, tenho certeza.

...

Última noite no cárcere. Tomás imaginou que

teria insônia, preocupações, mas dormiu bem.

Acordou no dia seguinte com uma paz de espírito

muito grande. A despedida não foi fácil. Os amigos de

cela estavam tristes e calados. Gostavam de Tomás,

nunca lhe fizeram mal, sempre o defenderam, foram

seus irmãos, pais, amigos. Na prisão não havia

máscaras, hipocrisia ou falso moralismo. Não eram

felizes, é certo, mas aprendiam a suportar o

isolamento e a juntar pedaços de um quebra-cabeça

chamado reclusão.

Apesar de todas as provações e humilhações,

Tomás nunca pensou que sentiria saudade daquele

lugar. Naquele dia ele experimentou uma emoção

diferente, conflituosa, como se parte dele não quisesse

sair nunca mais daquela prisão.

- Valeu... – disse o Bado, um bom amigo. Bateu

de leve no seu ombro e se afastou. Os outros fizeram

o mesmo. Não havia palavras, mas o silêncio dizia

tudo. Foi uma despedida dolorosa e todos choraram.

Tomás estava deixando seus irmãos e uma parte da

sua vida. Eles ficaram atrás das grades e ele não podia

fazer nada...

Então segurou fortemente a alça da mala e foi

caminhando pelos corredores da prisão sem olhar

para trás.

Na sala da recepção dona Belarmina o

aguardava.

- Meu filho... – ela estava emocionada.

- E a surpresa?

- Lá fora. O padre nos aguarda.

Saíram. O padre estava ao lado do carro, à

sombra de um belo jequitibá. Segurava um pacote.

- Tomás, bem vindo à liberdade.

Ele continuava sem ânimo. A sensação de vazio

aumentava em seu coração.

- Eu... não sei o que dizer.

- Padre, o Tomás perguntou sobre a surpresa.

- Sei... Tome, abra esse pacote.

Tomás recebeu o embrulho.

- Não vai abrir? – indagou dona Belarmina.

Abriu o pacote e se deparou com um cheiroso

bolo de coco.

- Esse é meu bolo preferido...

- Eu sei – disse o padre calmamente.

- A última vez que comi um bolo assim foi

quando vivia com... – parou emocionado. O passado

voltava.

- Você se lembrou da Bete, não é verdade? –

Perguntou o padre.

- Sim. Ela fazia esse bolo toda vez que eu estava

triste e saudoso. A minha mãe também gostava de

bolo de coco.

Estava tão envolvido pela nostálgica saudade

que quase se esqueceu de perguntar o principal.

- Quem trouxe o bolo?

- De vez em quando, nos dias de visita você

costumava receber bolo, pão, canjica, e assim por

diante, não é verdade? – Perguntou dona Belarmina.

- Sim, é verdade. Na prisão todo mundo ficava

intrigado com os presentes que eu recebia. Não

acreditavam quando eu falava que desconhecia a

pessoa que enviava... No começo eu ficava cismado,

tinha cisma de comer, depois me acostumei. Vocês

conhecem essa pessoa?

Eles se entreolharam como se estivessem

certificando se contariam tudo. A ansiedade tomava

conta do seu coração.

O padre não se fez de rogado. Abriu o jogo.

- Você vai se encontrar com duas pessoas muito

importantes. Elas estão na minha casa e esperam por

você. Eu não posso dizer nada mais, foi o meu

compromisso.

- Só uma dúvida: eu conheço as duas pessoas?

- Uma você ainda não conhece, mas a outra

certamente faz parte da sua história.

- Vamos então? – Apressou-se dona Belarmina.

Entraram no carro do padre e partiram. Ele

estava tão nervoso com aquele suspense que nem

conseguiu reparar a cidade, as casas, os prédios, os

carros. Não teve tempo de espiar os primeiros sinais

da vida em liberdade. Estava em busca de mais uma

peça do quebra cabeça que o destino fizera da sua

vida. No carro o silêncio os dominava. Vez por outra

dona Belarmina – que se sentara no banco traseiro –

alisava sua cabeça, queria reconfortá-lo. Seu afago era

o sinal para que ele tivesse paciência.

Foi a viagem mais longa da sua vida. Tomás

revirava a mente, em busca da lista de nomes do

passado. Almejava possíveis pistas que ajudassem a

explicar aqueles mistérios. Inútil, não havia ninguém.

De repente começou a bater no vidro uma fina

neblina. O padre sorriu.

- Tempos quentes, disse. Nada como esse

presente do céu.

Indiferente a tudo, Tomás não via a hora de

chegar. Nem a chuva foi capaz de afastar a ansiedade.

O carro entrou numa simpática rua, ao lado da subida

do morro que levava à favela. A casa paroquial ficava

em frente à pracinha e as bonitas árvores conseguiam

disfarçar a pobreza que havia na favela do morro. Era

só levantar os olhos para perceber o cartão postal da

periferia, ilustrando uma realidade que Tomás

conhecia profundamente. Mas quando os olhos

baixavam, estavam diante de uma pacata cidade do

interior cujo centro era a pracinha, lugar onde as

crianças gostavam de brincar e ponto predileto para

os velhinhos que jogavam dominó. Tinha banca de

jornal, um coreto e na parte central a Igreja de Nossa

Senhora da Glória. Mais adiante havia a rua do

mercado, lugar da feira, da fartura e da gostosura.

- Chegamos, disse o padre.

Tomás suspirou aliviado, mas a aflição

continuou. Quem seriam as duas pessoas? Como se

lesse o seu pensamento, o padre tratou de colocá-lo a

par da situação.

- Aguarde no meu escritório. Eles estão na

cozinha.

Eles, quem?

- Não é melhor voltarmos? – a pergunta saiu

sem pensar. Um rápido temor atravessou-lhe o

coração, já não sabia se queria descobrir novas coisas

sobre o passado. Dona Belarmina segurou a sua mão,

entraram juntos.

- Sua mão está fria.

- Estou com sede - disse.

- Espere, vou buscar água.

Os dois adentraram a casa, Tomás sentou-se no

largo banco de madeira cercado de fofas almofadas. O

escritório era acolhedor e tudo ali carregava aspectos

pastorais da Igreja Católica. Enquanto aguarda e

disfarçava a ansiedade, Tomás começou a andar pelo

aposento, parando diante dos cartazes sobre a fome

em Angola, Moçambique, Congo... Mães esqueléticas

com filhos pendurados ao colo, crianças raquíticas,

famintas. Ao lado de cada fotografia havia mensagens

de fé e de ação concreta à luz do Evangelho. Por todo

lado havia a presença da cultura e da mística da

transformação. Situações dramáticas no mundo

inteiro e a presença Cristã como alento, como

fermento.

Havia também uma estante repleta de livros e

revistas. Na mesa que ficava ao fundo, dois livros que

chamaram a sua atenção: “Memórias do Cárcere”, de

Graciliano Ramos, “Cartas da prisão” e “Batismo de

Sangue”, do Frei Betto. Sob o vidro que cobria a mesa,

dezenas de fotos, algumas dos assentamentos do

MST, mensagens sobre a Reforma Agrária, frases

famosas de nomes famosos como D. Pedro

Casaldáliga, D. Hélder Câmara, Chico Mendes,

Leonardo Boff, alguns poemas... Mais adiante, ao

centro, na parte superior da mesa, um porta-retrato

que exibia uma foto do amigo sacerdote, ainda

criança, abraçado com os pais. Tomás lembrou-se da

origem do amigo: família rica, cercado de luxo,

conforto e agora estava no subúrbio, desenvolvendo

um lindo trabalho de promoção social em defesa dos

menos favorecidos... O mais interessante era a sua

animação em poder ajudar as pessoas, em acreditar na

esperança e na luta pelo recomeço. Ele o ajudou a

reunir pedaços da sua história, sem pedir nada em

troca.

“Que bom que somos amigos” – pensou.

Ouviu barulho de passos. Tentou recompor-se,

ajeitou o corpo, mas quando se virou para a porta um

susto: ela.

“Meu Deus!”

Ela não disse nada. Apenas chorava. Esfregava

as mãos nervosamente e não conseguia encará-lo. Os

cabelos estavam mais curtos, mas o jeito de menina

era o mesmo. Tomás ficou completamente desprovido

de qualquer ação, como se estivesse assistindo a um

filme de suspense. Mas a cena era totalmente real e

quando sentiu que a fraqueza ia dominá-lo, o padre

Thiago entrou sem pedir licença e o amparou,

ajudando-o a sentar-se no banco. Dona Belarmina

entregou-lhe o copo com a água, em seguida retirou-

se acompanhada do padre, deixando-o diante da mais

surpreendente visão.

- Bete... – disse meio engasgado.

- Canivete...

Bete estava viva todo esse tempo. Agora as

coisas começavam a fazer sentido: o bolo, os salgados,

o pão... Ela sempre esteve presente, mas não queria

aparecer.

- Você... – não sabia o que dizer, não havia o

que dizer.

- Perdão. Eu não tive outra opção.

Ele tomou a água e mesmo assim a garganta

continuava seca. O coração ainda aos pulos. Era tudo

muito irreal. Sonho? Ela se aproximou e quando

tentou tocar seus cabelos, ele se levantou decidido.

Não deixaria a emoção expulsar a razão. Aquela

mulher matou a Jane. Uma assassina pedindo

clemência, que tremenda estupidez! Não, aquele

crime não teria a sua compreensão. Aquele episódio

finalizou a única esperança de viver um grande amor

e quem sabe levar uma vida decente.

- Você precisa me escutar, pelo amor de Deus...

– suplicou emocionada.

- Você sobreviveu... – sentiu a voz trêmula -

Muito bem e eu com isso? Não quero recomeçar a

minha vida ao seu lado. Eu não esqueci o que você fez!

E como se não bastasse deixou que eu acreditasse na

sua morte. Por quê? Que vantagens tirou com essa

farsa? Por que fazia questão de levar comida se não

queria me ver? Eu não posso compreender tanta

loucura!

- Se você ouvir vai entender tudo.

Ele alterou o tom da voz.

- Vocês estão brincando comigo! Como o padre

e a dona Belarmina descobriram você? Por que

insistem em trazer o meu passado de volta? Eu busco

a liberdade e o presente que recebo é a opressão.

Nesse caso, prefiro a prisão e a lógica da reclusão. Se

assim não for possível, prefiro a morte. Essa aventura

chamada vida não passa de mais um dos meus

devaneios. Prefiro a minha cela, a conversa com as

aranhas e os meus diários. Não quero mudança, não

assim.

O padre retornou. Ouviu seu desabafo e

munido de compreensão tentou conter a sua revolta:

- Tomás, procure ouvir a Bete. Depois faça o

que achar melhor. A dona Belarmina arrumou a sua

antiga casa, ficou uma beleza. Se você não quiser ficar

conosco tudo bem, venda o barraco, vá embora, sinta-

se à vontade. Mas só tome qualquer decisão depois

que escutar esta mulher.

- Prefiro sumir de uma vez por todas! –

Respondeu aos gritos.

O padre reagiu de forma enérgica, como se

estivesse passando um sermão numa criança

traquina:

- Muito bem, vá! A porta está aberta, não

pretendo prende-lo aqui. Se não quiser ouvir, o direito

é seu. Porém, saiba que está jogando a vida na lata de

lixo mais uma vez. Você é maduro o suficiente, tudo o

que viveu na prisão, o que aprendeu, experimentou,

perdeu, ganhou, são elementos importantes, mas só

terão sentido se forem incorporados à sua realidade,

caso contrário, serão apenas fragmentos dispersos.

Fiquem à vontade e conversem tudo o que estão

sentindo, depois me procurem.

Ele não esperou qualquer resposta. Deixou a

sala, fechando a porta lentamente. Ficaram a sós mais

uma vez. Ele sentou-se novamente. Bete permaneceu

de pé. Engolia o resto do choro.

- O que está esperando? – Indagou sem olhar

para ela.

- Você queria me deixar. Ia embora com aquela

mulher.

Mais uma vez ele perdeu a paciência.

- Não ouse falar da Jane, você não tem esse

direito! Ela está morta, você a matou! Não existe

explicação e eu jamais a perdoarei.

Ela perdeu a insegurança. Levantou a voz e

revelou com clareza:

- Pobre idiota! A sua querida Jane também não

morreu. Ela está bem viva, continua rica, feliz,

despreocupada!

- O que está dizendo?

- A verdade. E se você não quer acreditar o

problema é seu. Aquela fingida estava desmaiada, o

tiro atingiu um lado da costela, de raspão. Eu só fui

saber depois que vi a reportagem pela televisão.

- Mentira! Você matou a Jane, não adianta

querer remediar o seu crime.

- Pelo amor de Deus escute o que tenho para

dizer: ela não se chama Jane, o nome dela é Beatriz

Rameschini, nunca foi casada, era amante do

traficante, não tinha direito a nada. A relação estava

em crise porque o cara estava querendo trocá-la por

outra. Você foi vítima de uma grande armação. Ela

estava triste, sabia que a vida de rainha estava

chegando ao fim. Não queria sair de mãos abanando

daquela relação. Tinha que encontrar um comparsa

ideal que a ajudasse a destruir o cara e ficar com a

fortuna. Você entrou no plano por acaso, ela o

seduziu, gostou da aventura, estava diante do

parceiro ideal: um comparsa que poderia ajudá-la a se

vingar do cara. Você ia ajudá-la a roubar uma parte da

fortuna e depois ela o deixaria a ver navios. Pense

bem, Canivete: as coisas estavam fáceis demais. Você

tem a chave da mansão, não encontra qualquer

dificuldade, a vítima está sempre só e ela

simplesmente se deixa envolver sem medo, como se

você fosse um príncipe encantado. Uma açucarada

história de amor que não convence a ninguém, mas

você acreditou e entrou de cabeça. Mas, por ironia do

destino, eu estava presente e ela não contava com a

polícia. Quando os policiais invadiram a casa, fomos

levadas para o hospital. Assim que recebi alta,

ninguém soube dizer o seu paradeiro. Achei que ela

tinha morrido. Seis meses depois a manchete que

decorei de tanto ler: “traficante procurado pela polícia

é encontrado morto no seu iate, no litoral do Ceará”.

- Não acredito! – gritou - você é uma maldita

doente, deveria ter morrido de verdade!

Ela sorriu tristemente.

- Você ainda vai me pedir perdão.

- Como soube de tudo isso?

Ela abriu a bolsa, retirou uma página de jornal

e enquanto o entregava:

- Sabia que ia duvidar, eu trouxe isso. O

traficante não se chamava Adriano Albuquerque, o

nome verdadeiro dele era Décio Lakota. Outra coisa,

meu caro: ele não estava no exterior. Descansava

tranquilamente no litoral cearense. Leia e tire suas

conclusões.

Tomás abriu a página e seus olhos foram

devorando cada palavra da reportagem:

“Um dos maiores traficantes de São Paulo,

Décio Lakota, 56, é encontrado morto às 15h45 no

luxuoso Iate Lagunas que servia de sua residência, no

litoral do Ceará. O corpo da vítima foi alvejado com

seis tiros. As suspeitas recaem sobre a carioca Beatriz

Rameschini, 25, que segundo informações, vinha

arquitetando a morte do amante ao lado do comparsa,

o ex-policial Erivelton Gamide, 31. Beatriz foi alvo de

escândalo há seis meses quando foi atingida por um

tiro de Tomás de Jesus, vulgo Canivete, assaltante que

invadiu a mansão de Lakota. A mulher do bandido,

Elisabete Ferreira, 23, em fase de separação conjugal,

seguiu o esposo e acabou sendo atingida por um tiro,

ao lado do ombro direito. As mulheres foram

socorridas a tempo, não houve óbito. O bandido foi

preso em flagrante, com a arma do crime na mão. O

delegado seccional Juracy Campos determinou

apuração do caso que aos poucos foi sendo esquecido.

Depois do escândalo, Beatriz andou sumida.

Mas após a morte do marido, seu nome voltou a

circular e um fato curioso chamou a atenção da

polícia: Erivelton Gamide, o suposto comparsa da

amante era um dos policiais que a socorreu no

duvidoso episódio de um ano atrás. Mais: os dois

foram vistos no aeroporto um dia após o crime.

Estima-se a fortuna do traficante na ordem de 11

milhões de reais, sem levar em conta os imóveis

espalhados por vários estados brasileiros. Enquanto

isso, Beatriz e seu novo amante, estão curtindo férias

milionárias em algum lugar do mundo.”

Abaixo a foto de Jane. Não havia dúvida. O

mundo estava desabando, mais uma vez, sobre a sua

cabeça. Ficou sem ar, tomou outro copo d’água. Bete

voltou a falar, não havia qualquer agressividade na

sua voz. Sentiu-se comovida diante da maior

decepção que ele experimentara.

- Como vê Canivete, eu não sou tão bandida

assim. Nunca te abandonei, nem mesmo quando

esteve preso. A princípio fiquei magoada, depois

arrependida, e, finalmente preferi o silêncio. Você

nunca ia acreditar em mim. Por isso, cada vez que eu

levava um pão, um bolo ou biscoitos, eu pensava:

“meu amor, nunca deixarei de te amar, tenha certeza

disso”... No fundo eu estava com o orgulho ferido.

Naquele triste episódio eu queria morrer, mas não

deu certo. Queria morrer mesmo estando grávida...

Grávida. Sim, ela disse algo a respeito aquele

dia. Bete afirmou que estava esperando um filho seu.

Então. Se ela estava ali, o seu filho...

- Pelo amor de Deus. Não me esconda, eu

preciso saber...

Ela sorria e chorava ao mesmo tempo. Era o

anúncio de uma notícia fantástica. Abraçou Tomás

com força, sem mágoa, em prantos. A confirmação

estava naquele abraço. Seu filho, ele tinha um filho!

- Eu o criei com todo o meu amor! Ele é muito

parecido com você. Tem o mesmo temperamento e

não vê a hora de conhecer o pai que eu tanto falo!

- Meu Deus! Meu Deus! Eu tenho um filho.

Chorou de felicidade. O coração estava em

festa.

- Bete, perdoe-me, por tudo, perdoe-me!

- Meu amor, nunca mais iremos nos separar. Eu

prometi ao nosso filho. Eu mudei, nunca mais me

envolvi com homem algum, trabalho numa fábrica de

calçados, vivo honestamente do meu salário. Fou

incentivada pelo padre Thiago, faço parte da

comunidade e atuo na pastoral da criança. Também

voltei a estudar. Vendi a nossa casa e comprei outra

neste bairro. Não sou mais a Bete que você conheceu

num antro de prostituição, vendendo o corpo para

sobreviver. Minha vida é para meu filho. Nosso filho.

- Como é o nome dele?

- Mateus. Eu sempre gostei desse nome. Ele

está com cinco anos. Um menino esperto.

- Quando irei conhecê-lo?

- Agora mesmo. Ele está aqui.

Então era ele a outra pessoa. Claro. Só podia ser

o seu filho a maior surpresa que ele poderia ter.

Carinhosamente ela passou as mãos sobre a sua face.

Estava completamente emocionado, sentiu as

lágrimas, mas eram de alegria, de esperança, de

ressignificação da vida.

- O que direi a ele?

- Primeiro diga-lhe que você o ama. Que você é

o pai dele, que você não irá abandoná-lo. Ele está no

quintal, brincando debaixo do pé de goiaba. Agora vá,

seu filho te espera.

- Bete, antes eu queria te pedir uma coisa:

nunca mais me chame de Canivete. De hoje em diante

esse nome está proibido. Eu sou Tomás, esposo de

Bete e pai do Mateus. Um novo homem, uma nova

família. Promete?

- Tomás... Meu Tomás!

Na cozinha dona Belarmina aprontava o café.

O cheiro de bolos fritos era apetitoso. O padre Thiago

estava ao telefone. Bete indicou-lhe o quintal. Ao lado

da lavanderia ficava o pé de goiaba. O seu filho estava

sentado à sombra, de costas. Brincava com alguma

coisa. Os finos cabelos caiam sobre a face e

atrapalhavam sua visão. Tomás aproximou-se

lentamente. Tinha o pressentimento que o garoto ele

iria se afastar, correr ou simplesmente pedir socorro.

Dobrou o joelho e a sua sombra o atingiu. Ele se virou

e abriu um sorriso lindo. Estendeu-lhe uma aranha de

plástico, pendurada por um barbante.

- Não tem medo? – Perguntou o garoto.

As suas palavras lhe soavam como verdadeiros

acordes da mais doce canção.

- Quando eu era criança gostava de brincar com

as aranhas – respondeu emocionado, voz trêmula,

meio abobado diante do filho.

Num ímpeto sentiu a necessidade de abraçá-lo

e levantá-lo no colo, mostrando ao mundo que agora

ele tinha um filho. Mas se conteve, não sabia o que

dizer, como proceder...

- Eu também gosto do homem aranha. Olhe a

minha camiseta!

A camiseta azul estampava o homem aranha e

a sua famosa teia.

- Que linda! Mateus, você sabe quem sou eu?

- A mamãe disse que hoje eu ia conhecer o meu

pai. É você? – Perguntou, sem rodeios.

A ternura daquela criança o fez perder o receio.

Estava parado, diante de um garoto que agia com

naturalidade, sem maiores surpresas, como se ele

nunca tivesse se afastado. Seu olhar era uma força

encorajadora que o interrogava: “e então, não vai me

abraçar?”

- Meu filho... – chorando ele o abraçou.

- Não chore... - suas mãozinhas tentavam

limpar as lágrimas de Tomás.

- Meu filho querido! Nunca mais vamos nos

separar!

Ele ria gostosamente enquanto Tomás o erguia

no colo, fazendo seus cabelos tocarem os galhos da

goiabeira.

Estava coberto de razão o poeta que costumava

dizer que “a ternura é a essência do amor”. Na história

de Tomás a ternura sempre esteve presente, teve lugar

de destaque, mesmo nos momentos em que ele se

achava o pior dos seres humanos, o perdedor, o

fracassado, o isolado. A ternura entrava de modo

sutil, como aranhas que tecem as teias do destino;

como a menina morte que se aproxima, mas não

chega, não é tempo; como as guloseimas que a Bete

enviava sem pedir nada em troca; como as visitas de

dona Belarmina, uma senhora que não deixou de

cuidar da sua vida, de modo carinhoso, maternal,

como só uma mãe sabe zelar; como o seu amigo, o

padre Thiago que, ainda na infância, o ajudou a

descobrir o significado da vida; como a presença forte,

consoladora e fiel de Jesus, tornando-o uma pessoa

melhor, mais centrada na vida, na fé e na esperança

de que a sua história pede novos capítulos.

Agora Tomás estava com o filho nos braços, no

colo, montado no pescoço, brincando debaixo das

árvores, com pitadas de afeto, amor, recomeço.

Quando os braços doeram, colocou o filho de

volta ao chão, mas ele, teimosamente, puxou a borda

de sua calça surrada, queria mais atenção. Tomás se

agachou. Ficaram da mesma altura. Então, o garoto

tocou o dedo indicador na sua face e começou a

deslizá-lo lentamente, começando pela testa, depois

os olhos, nariz, boca... fez um desenho imaginário. Em

seguida, retirou o dedinho, olhou nos olhos de Tomás

e perguntou:

- Pai, o que é universo?

...

Tomás passou a se dedicar ao trabalho pastoral

da Igreja e na livraria da paróquia, mas antes resolveu

oficializar o casamento com a Bete. A família estava

restaurada.

E só então ele pode entende o verdadeiro

sentido do último conselho da irmã: “Tomás, você

precisa viver”. Cida tinha razão, ele estava morto, mas

recomeçaria a vida ao lado de pessoas que

acreditaram em sua recuperação, que nnunc

desistiram dele.

FIM

VIDA E OBRA

João Rodrigues Pinto nasceu em Licínio de Almeida,

uma pequena cidade do interior da Bahia, região

sudoeste, na divisa com o norte de Minas Gerais a 650

quilômetros da capital. A formação do autor sempre

esteve associada aos movimentos sociais, com

destaque para a Educação do Campo, o Teatro

Popular e as Comunidades Eclesiais de Base.

As raízes nordestinas e amor pelo interior brasileiro

são alguns dos elementos que esse autor faz questão

de exaltar. Quando lhe perguntam sobre o que mais

gosta de fazer, a resposta é curta e simples: “ficar em

casa”. Isso mesmo, seu maior prazer é ficar em casa

curtindo a família, um “território sagrado”, como

costuma dizer.

O autor é casado com Leila Cristina e tem dois filhos:

Henrique e Laisa.

Formação Acadêmica:

João Rodrigues é graduado em Letras-português

(UFES); Especialista em História do Brasil (UFES);

Mestre em Teatro-Educação (UNIRIO) e Doutorando

em Linguística (PUC-Minas).

Obras:

Canivete (1991) – 1ª edição

Cindagorda (1998)

Espelho do Tempo (2002)

A dinâmica textual: da interpretação à produção

(2003)

História da Comunidade Santo Antonio (2004)

O coelho e a onça (2007);

O chapéu do lobo (2007);

Nó na garganta (2007).