Inteligência crítica
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A inteligência crítica: uma nova postura
epistemológica para a atividade de
inteligência no Brasil.
Júlio Fontana*
1- Introdução
Num artigo anterior (FONTANA, 2009, pp. 138-171) mostrei
como a postura epistemológica endossada por uma instituição
pode ter consequências éticas, sociais e políticas
desastrosas. As instituições examinadas no referido artigo
foram o catolicismo e o protestantismo. As doutrinas do
pessimismo e do otimismo epistemológicos haviam levado,
respectivamente, o catolicismo e o protestantismo ao
enclausuramento institucional. Propus o racionalismo
crítico como postura epistemológica mais saudável a ser
adotada por qualquer instituição que modela visões de
mundo, como é o caso do catolicismo e do protestantismo.
* Professor de filosofia (SEEDUC-RJ) e mestrando em História dasCiências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ).
No presente artigo examinarei a instituição1 da
inteligência. A inteligência tem por finalidade,
descrevendo de modo bastante amplo, a produção e difusão de
conhecimentos sensíveis. Sendo assim, a adoção de uma postura
epistemológica adequada é fundamental para esta atividade.
Irei propor o racionalismo crítico2 como postura epistemológica
adequada à atividade de inteligência. Essa mudança de
postura epistemológica terá como consequência não apenas
uma ressignificação do conceito de inteligência como também
uma modificação da visão que se mantém sobre diversos
aspectos da atividade de inteligência. Não serão analisadas
as modificações nas relações entre a instituição de
inteligência e a sociedade.
2- O conceito tradicional de inteligência
SHERMAN KENT (1965, p. 69) elaborou uma definição de
inteligência que, segundo GONÇALVES, “é uma das concepções
1 “Temos tendência para falar em instituições onde quer que um corpo(variável) de pessoas observe um determinado conjunto de normas, oupreencha determinadas funções prima facie sociais (como o ensino, opoliciamento ou a venda de artigos de mercearia) que sirvamdeterminados fins também prima facie sociais (como a difusão deconhecimento, ou a proteção contra a violência ou a fome)”. (POPPER,2006, p. 185)2 Mais sobre o racionalismo crítico em MILLER (2006).
mais conhecidas e aceitas” pela doutrina da área de
inteligência (GONÇALVES, 2011, p. 07). Por essa razão
iremos apresentar somente a definição construída por KENT,
pela ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG) e, por fim, aquela
constante na LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.
KENT sustenta que inteligência se apresente segundo três
aspectos: produto, organização e processo.
(1) Inteligência como produto: é o resultado do processo de
produção de conhecimento, que seguiu metodologia específica
de inteligência e que tem como cliente o tomador de
decisão. Inteligência é, sob esse aspecto, conhecimento
produzido.
(2) Inteligência como organização: são as estruturas funcionais
que têm por objetivo a obtenção de informações e produção
de conhecimento de inteligência. São as organizações que
atuam na busca do dado negado, na produção de inteligência
e na salvaguarda de informações.
(3) Inteligência como atividade ou processo: são os meios pelos
quais certos tipos de informação são requeridos, reunidos,
analisados e difundidos, e ainda, os procedimentos para a
obtenção de determinados dados, em especial aqueles
protegidos. Esse processo segue metodologia própria.
Passando à doutrina pátria, o Manual Básico (1975, p. 431
ss.) da ESG concebe inteligência também sob os três
aspectos arrolados por Kent, a saber, conhecimento,
organização e atividade. Sobre inteligência como
conhecimento, a ESG sustenta que, inteligência é produto de
um método peculiar praticado pela comunidade de
inteligência. Qualquer conhecimento derivado da aplicação
deste método é inteligência. No que concerne à inteligência
como organização, a ESG destaca que apenas uma organização
com estrutura especializada pode produzir inteligência. Em
termos de inteligência como atividade, a ESG destaca que a
inteligência decorre segundo um processo lógico e
metodizado que é observado em todas as etapas do ciclo de
inteligência. Percebe-se a grande preocupação da ESG com a
questão metódica, influência certamente da escola
positivista. Todas as deficiências do positivismo estão
presentes, portanto, na doutrina de inteligência elaborada
pela ESG.
A legislação brasileira destoa da concepção kentiana, e
também da ESG, e é unânime em definir inteligência como uma
atividade. A Lei nº 9.883/1999 define inteligência:
§ 2º Para os efeitos de aplicação destaLei, entende-se como inteligência aatividade que objetiva a obtenção, análisee disseminação de conhecimentos dentro efora do território nacional sobre fatos esituações de imediata ou potencialinfluência sobre o que o processo decisórioe a ação governamental e sobre asalvaguarda e a segurança da sociedade e doEstado.
Percebe-se que o legislador compreende a inteligência
apenas como atividade (da mesma forma, art. 2º da Lei nº
4.376/2002 e PNI) e não se mostra consoante com a doutrina
que relaciona inteligência também com organização e
produto.
O problema principal, ao que podemos ver, não é a
carência de formulação doutrinária (GONÇALVES, 2011, p.
05), mas a grande proliferação de perspectivas distintas
sobre o que realmente é inteligência (RORATTO, 2012, p.
37). Pode-se atribuir várias causas a essa proliferação de
conceitos de inteligência, contudo, fazê-lo estaria fora
dos objetivos deste artigo.
Ao examinar a doutrina elaborada por alguns centros e
pesquisadores da temática de inteligência, nos deparamos
com uma persistente propositura de definições.3 Não se
almeja neste artigo propor definições (POPPER, 2006, p.
375; Cf. BRUNEAU, 2003) e nem “desvelar essências” (ROSITO,
2006, pp. 23-27; Cf. POPPER, 2006, p. 40). O objetivo é
trabalhar com o conceito de inteligência o mais
proximamente da filosofia conhecida como racionalismo
crítico, levando em consideração alguns refinamentos
propostos pelas ciências cognitivas. Seguir-se-á um caminho
diverso da doutrina pátria, que é desconsiderar quaisquer
contribuições ao refinamento do conceito de inteligência
que possam surgir dentro do âmbito das ciências cognitivas
(GONÇALVES, 2011, p. 06).
Seria injusto não mencionar que uma abordagem
epistemológica da atividade de inteligência já foi
realizada por pesquisadores brasileiros (ROSITO, 2006, pp.
23-27; PATRÍCIO, 2009, pp. 87-100), mas, na minha
avaliação, ambas malogradas, visto que usam uma
3 Caso se queira examinar as diversas definições de inteligênciaconstantes na doutrina, ver BESSA, 2004, pp. 53-71; GONÇALVES, 2011,pp. 06-20.
epistemologia essencialista – nomeadamente a fenomenologia
de EDMUND HUSSERL – como suporte de sua abordagem.4 Não se
trata de uma discordância meramente filosófica, mas também
pragmática, visto que, o resultado das abordagens de ROSITO
e PATRÍCIO não são coerentes com o objetivo da inteligência
(RORATTO, 2012, p. 39), e mais grave ainda, não são
profícuas do ponto de vista da consecução da atividade de
inteligência (GONÇALVES, 2011, p. 63, 107).
3- O que as ciências cognitivas dizem sobre inteligência?
Quando se afirma que uma pessoa é inteligente, o que
realmente se quer expressar com isso? Que ela é esperta,
que aprende rápido, que ela tem uma capacidade muito boa de
resolver problemas, que ela tem uma capacidade de
memorização de dados muito ampla, etc. Essas são as
principais virtudes possuídas por uma pessoa inteligente
segundo o senso comum.
4 Há inúmeros problemas filosóficos com a fenomenologia de Husserl.Elencar-se-á apenas aqueles problemas mais graves que aparecem notexto de ROSITO: (1) desprezo pelo papel exercido pelo conhecimentoprévio possuído pelo sujeito no processo de obtenção de conhecimento(p. 23; na mesma linha de ROSITO, segue QUEIROZ NETO, 1984, p. 10; cf.POPPER, 2006, p. 52); (2) equívoco no que tange a natureza da lógica(p. 27; cf. POPPER, 2006, p. 282); e (3) compromisso com a doutrinafilosófica do relativismo (p. 27; cf. RUSSELL, 1941, pp. 77ss.).
Psicólogos e pedagogos, por sua vez, acreditavam que a
inteligência envolvia algumas habilidades, inclusive que,
era possível medir a inteligência por meio do aferimento
dessas habilidades. Essa medição era feita por meio de
conjuntos variados de indícios de habilidades especiais,
como compreensão verbal, fluência com palavras, facilidade
para números, raciocínio indutivo, rapidez de percepção,
raciocínio dedutivo, capacidade de memorização e coisas
semelhantes. A medição dessas habilidades ficou conhecida
como “Quociente de Inteligência – Q. I.” (SOUZA, 2013, p.
94)
O Q. I. é sem dúvida, um aspecto importante da
inteligência, mas outros aspectos não estão subordinados a
ele. Portanto, não devemos tentar reduzir inteligência a um
simples número em uma escala de avaliação. A grande questão
para se entender a inteligência não é quem é mais
inteligente, mas sim, quais são os aspectos importantes da
inteligência. Dentre aquilo de mais importante que a
inteligência abrange certamente estão os seguintes
aspectos: (1) a engenhosidade; (2) a capacidade de
previsão; (3) a rapidez; (4) a criatividade; e (5) a
quantidades de informações que você pode manipular ao mesmo
tempo (CALVIN, 1998, p. 21).
Todos esses cinco aspectos da inteligência estão
relacionados à conceituação de inteligência proposta por
JEAN PIAGET. Segundo PIAGET, a inteligência consiste naquilo que você
utiliza quando não sabe o que fazer.5 Isso capta o elemento de
novidade, a habilidade de enfrentar o problema e buscar uma
solução que é necessária quando não há “resposta correta”,
ou seja, quando os procedimentos normais provavelmente não
são suficientes.
O neurobiólogo HORACE BARLOW (1987) concebe a questão de
modo um pouco mais rígida, e chama nossa atenção para os
aspectos experimentalmente testáveis, afirmando que a
inteligência é toda ela relacionada com tecer suposições que revele uma nova
ordem subjacente. O ato “de supor bem” certamente é muito
abrangente. Engloba descobrir a solução de um problema ou a
lógica de um argumento, encontrar uma analogia apropriada,
criar uma harmonia agradável ou uma resposta espirituosa,
predizer corretamente o que é provável que ocorra no
momento seguinte. O ato “de supor bem” talvez seja central
5 PIAGET citado por CALVIN, 1998, p. 11.
para compreendermos no que consiste a inteligência. Esse
ato envolve, porém, uma rede complexa de habilidades, como
por exemplo, previsão e planejamento.
Uma base formada pelo conhecimento existente é,
evidentemente, necessária para a capacidade de fazer
previsões. Podemos afirmar que, grande parte do
comportamento inteligente consiste em novas combinações de
coisas antigas. Esse é o cerne, por exemplo, da lógica
dedutiva. Partindo da previsão, planejamos nossas ações.
Planejamento consiste então na montagem dos múltiplos
estágios do movimento antes da ação propriamente dita. Esse
tipo de planejamento é observado somente em um tipo
avançado de inteligência social, como por exemplo, quando
se elabora um modelo mental do modelo mental de outra
pessoa e depois se tira proveito disso.
Realmente difícil é fazer um planejamento antecipado e
detalhado em resposta a uma situação única. É preciso
imaginar múltiplos cenários. O planejamento em múltiplos
estágios para situações novas é sem dúvida um aspecto da
inteligência. Sendo assim, próximo à inteligência está o
poder das analogias, metáforas, alegorias, parábolas e
modelos mentais. Elas envolvem a comparação de relações.
KENNETH CRAIK explica a base biológica desse processo:
... o sistema nervoso é [...] uma máquinade calcular capaz de modelar ou simulareventos externos [...]. Se o organismocarrega consigo um “modelo em escalareduzida” da realidade externa e de suaspróprias ações possíveis dentro de suacabeça, ele será capaz de testar váriasalternativas e concluir qual é melhor entreelas, reagir a situações futuras antes queelas surjam, utilizar o conhecimento deeventos passados ao tratar com o futuro, e,sob todos os aspectos, reagir de uma formamuito mais completa, segura e hábil àsemergências com os quais depara (CRAIK,1943).
Os seres humanos podem simular os cursos futuros das
ações e afastar o que é absurdo. Num contexto adaptativo,
como KARL POPPER ressaltou, “isso permite que as nossas
hipóteses morram em nosso lugar” (POPPER, 1999, p. 227).
4- Nosso conceito de inteligência
Nosso conceito de inteligência tem fundamento filosófico
no racionalismo crítico e se mostra coerente com as teses
oriundas das ciências cognitivas mostradas no item
anterior. Antes de oferecer uma “definição” devemos apontar
aquilo que discordamos na doutrina dominante da área de
inteligência.
4.1. Há um método peculiar praticado pelos oficiais de inteligência?
GONÇALVES acredita que sim. Segundo ele, os dois traços
distintivos da atividade de inteligência são o seu método
próprio e o seu regime de segredo (p. 15). Nossa definição
de inteligência não sustenta que a inteligência seja um
produto de um “método técnico-científico de raciocínio”
(ESG, 1975, p. 431s.) ou “baseado em regras cartesianas”
(ESINT). Não há um método mecânico que, se adotado, produz
conhecimento. Se pudermos considerar o processo de tentativa e
erro (ver CRAIK no item 3) um método, então devemos afirmar
que este é o método utilizado pelo profissional de
inteligência na produção de conhecimento sensível.
Também não endossamos a opinião de GONÇALVES, que, sem o
segredo não se pode falar de inteligência. GONÇALVES
critica CEPIK por não considerar o aspecto do sigilo na sua
definição de inteligência (p. 16). Deve-se concordar que a
atividade de inteligência corre sob sigilo6, porém não se6 NEWTON-SMITH (1997, p. 34s.) afirma que a “supressão de dados” é umavirtude positiva tanto para a diplomacia como para a política (podemosdizer que a afirmação de NEWTON-SMITH é válida principalmente para a
deve confundir o regime de trâmite das informações com a
natureza de suas fontes.7 Caso se faça essa confusão
incorre-se em romantização da atividade de inteligência,
principalmente a praticada aqui no Brasil que recorre
amplamente às fontes abertas.
4.2. Quais são as fontes da atividade de inteligência?
Não achamos profícuo se realizar uma catalogação de
fontes, como se é enfaticamente determinado e praticado
pela doutrina tradicional de inteligência. Acredito que a
história já tenha deixado bem claro que nenhuma fonte é
confiável.8 Deve-se seguir o preceituado por POPPER, “o
nosso conhecimento tem fontes de todo o gênero, mas nenhuma
tem autoridade” (2006, p. 44).
Não se deve dar às fontes nem mesmo a prioridade temporal
no ciclo de inteligência. Como PLATT observou a “produção
área de inteligência). A supressão de dados não é proibida, éencorajada. NEWTON-SMITH cita como exemplo o caso do Sir. RobertArmstrong que foi apanhado fazendo justamente isso no caso jurídicoconhecido como Spy Catcher. Na ocasião ele respondeu que estava apenassendo econômico com a verdade. Sua carreira não foi afetada em razãodele ter sido “econômico com a verdade”.7 Parece que esse foi o caso de GONÇALVES (2011, p. 20). Porém, emoutras partes do livro encontramos posição diferente de GONÇALVES(2011, p. 99s.). Seguem na linha defendida neste artigo: REINHARDGEHLEN (1972, p. 68s.) e VICTOR MARCHETTI (1974, p. 09).8 GONÇALVES, 2011, pp. 87-92; VIDIGAL, 2004, p. 27.
de uma Informação sobre determinado assunto compreende a
seleção e reunião dos fatos relativos ao problema ...” (PLATT,
1974, p. 30 – itálico meu) A busca de conhecimento se dá
quando nos deparamos com um problema interessante para
resolver (POPPER, 1999, p. 120).
Para fins ilustrativos, mostrarei um exemplo oriundo do
nosso cotidiano.
Você dirige automóveis desde os 18 anos de idade e talvez
jamais tenha se questionado profundamente como eles
funcionam. Essa situação de ataraxia (tranquilidade da alma)
muda no dia em que seu carro para repentinamente. O que
você faz? Você tem um problema: seu carro não funciona.
Ainda dentro do próprio veículo você já elabora uma
primeira hipótese: “será que acabou o combustível?” Olha
atentamente para o odômetro do veículo e constata que há
combustível no tanque do seu carro. A sua primeira hipótese
acaba de ser descartada. O problema parece ser mais
complexo. Daí você sai do carro e abre a tampa do motor,
formulando outra hipótese: o cabo da bateria pode ter se
soltado. Então examina se há algum fio solto, dá algumas
batidinhas nas peças. Por que você faz isso? Qualquer
pessoa sabe que o motor funciona porque há canos por onde
circula a gasolina, canos que podem ficar entupidos. Caso
contrário, suas batinhas não teriam razão de ser. Você sabe
também que a eletricidade tem de fluir, que isso não ocorre
quando os fios estão desligados ou arrebentados. Você
elabora um modelo do motor, embora rudimentar. E seu modelo
é formado por canos por onde a gasolina deve fluir e que
eventualmente ficam entupidos, e fios por onde a
eletricidade deve passar e que são acidentalmente
desligados. Assim, quando busca fios soltos e dá suas
batidinhas no motor, você está agindo de forma inteligente,
a partir do modelo de que dispõe. É importante destacar que
é o defeito que faz você pensar. Se o carro não tivesse
parado, você teria continuado sua viagem tranquilamente,
sem sequer pensar que automóveis têm motores. O que não é
problemático não é pensado.
4.3. Qual é a etapa mais importante na produção do conhecimento de
inteligência?
Para a doutrina tradicional de inteligência parece que a
fase de coleta de informações é aquela mais importante no
ciclo de inteligência. Porém, como resta evidente da
leitura do item 4.1., o processo de validação do conhecimento,
etapa que eliminamos os nossos erros, é a mais importante
para a atividade de inteligência (GONÇALVES, 2011, p. 63,
79).
Não há fontes últimas do conhecimento.Todas as fontes, todas as sugestões sãobem-vindas; e todas as fontes, todas assugestões, estão abertas a um examecrítico. (POPPER, 2006, p. 48)
... proponho [...] que substituamos aquestão das fontes do nosso conhecimentopor outra completamente diferente: “comopodemos esperar conseguir detectar eeliminar o erro?” (POPPER, 2006, p. 46)
A validação do conhecimento se dá, quando este, sobrevive
a testes severos. Os testes consistem não em se buscar
confirmações dele, mas em tentativas de refutá-lo, isto é,
de mostrá-lo falso. Como informa Popper, “é fácil obter
confirmações ou verificações para quase todas as teorias –
desde que procuremos confirmações.” (POPPER, 2006, p. 59).
Concordando com Popper, apesar de ser sua crítica ferrenha,
está SUSAN HAACK que atribui à “falta de força de vontade”
a procura reiterada de confirmações:
A investigação pode ser difícil eexigente, e muitas vezes enganamo-nos. Porvezes, o obstáculo é a falta de força devontade; não queremos realmente saber aresposta a todo o custo para nos darmos aotrabalho de descobri-la, ou não queremosrealmente saber e esforçamo-nos bastantepara não a descobrir. Penso no detetive quenão quer realmente saber quem cometeu ocrime, apenas quer recolher provassuficientes para obter uma condenação ... .(HAACK, 2004)
O problema é que, como mostrou MLODINOW, temos uma
tendência muito forte de buscarmos confirmações.
Quando estamos diante de uma ilusão – ouem qualquer momento em que tenhamos umanova ideia – em vez de tentarmos provar quenossas ideias estão erradas, geralmentetentamos provar que estão corretas. Ospsicólogos chamam essa situação de viés daconfirmação ... . (MLODINOW, 2009, p. 201 –itálico meu)
... além de buscarmos preferencialmente asevidências que confirmam nossas noçõespreconcebidas, também interpretamosindícios ambíguos de modo a favoreceremnossas ideias. Isso pode ser um grandeproblema, pois os dados muitas vezes sãoambíguos; assim, ignorando alguns problemase enfatizando outros, nosso cérebro inteligenteconsegue reforçar suas crenças mesmo na ausência dedados convincentes. (Idem, ibid)
Vejamos um exemplo. Suponha que eu tenha pensado uma
regra para a construção de uma sequência de três números e
que a sequência 2, 4, 6 satisfaz a regra. Você consegue
descobrir a regra? Como lhe forneci apenas um simples
conjunto de três números então se você apresentar outras
sequências de três números eu lhe direi se elas satisfazem
a minha regra ou não. Se você agir como a maioria das
pessoas terá pensado em apresentar sequências do tipo 4, 6,
8 ou 8, 10, 12 ou 20, 24, 30. Essas sequências satisfazem a
minha regra de construção. A partir dessa nova evidência
você deve ter pensado ter descoberto a minha regra de
construção, que é, uma sequência de números pares
crescentes. Porém, a regra era apenas que a série deve ser
formada por números crescentes. A sequência 1, 2, 3, por
exemplo, teria sido válida. Não havia a necessidade de que
os números fossem pares. Por que isso ocorre?
A evolução do cérebro humano o tornoumuito eficiente no reconhecimento depadrões; porém, como nos mostra o viés daconfirmação, estamos mais concentrados emencontrar padrões que em minimizar nossasconclusões falsas. (MLODINOW, 2009, p. 203)
Nesse ponto devemos reconhecer a importância da crítica.
Somente por meio dela podemos nos livrar dos nossos
preconceitos. A imparcialidade e a objetividade não são
virtudes possuídas por um sujeito epistêmico ideal (ESINT),
mas resultam do ato de submeter nossas hipóteses a testes
severos. Devemos, como recomenda MLODINOW, “aprender a
gastar tanto tempo em busca de provas de que estamos
errados quanto de razões que demonstrem que estamos
certos.” (MLODINOW, 2009, p. 203)
4.4. O que é inteligência?
Não irei oferecer uma definição de inteligência. Não acho
interessante sequer pensar em estruturar uma definição.
Acredito ser mais significativo avançar no exame daquilo
que acredito ser a sua principal função: elaborar modelos
da realidade com o intuito de prever e prevenir ações que
atentem contra a segurança nacional.
Peter Gill e Mark Phytian lembram esse aspecto importante
na definição que propõem de inteligência, que é, na
terminologia das ciências cognitivas vista acima, a sua
capacidade de imaginar múltiplos cenários.
Inteligência é o termo geral para um amploespectro de atividades [...] com opropósito de manter ou aumentar asegurança, por meio da antecipação de ameaças reaisou potenciais. (2006, p. 07)
A ESG faz referência a esse aspecto, chamando-o de
inteligência como “estimativa”, isto é, “a projeção, em
futuro previsível, de um fato ou situação, feita com base
na análise objetiva de todos os dados envolvidos e no
estudo das possibilidades e probabilidades de sua evolução”
(1989, p. 287). Mais detalhadamente:
É o resultado de uma extrapolaçãointeligente dos dados ou fatos atuais.Exige do analista conhecimento, argúcia,isenção, experiência e, principalmente,absoluta correção e precisão ao expressarseu pensamento ... . (1989, p. 241)
Como ressalta GONÇALVES,
... nos EUA, a estimativa é percebida comoaspecto fundamental do assessoramento dostomadores de decisão de alto escalão, sendouma das atividades mais importantesrealizadas por membros da comunidade deinteligência daquele país ... . (GONÇALVES,2011, p. 55s.)
Vimos que apenas o racionalismo crítico provê o suporte
filosófico para esse importante aspecto da atividade de
inteligência. Somente o racionalismo crítico descreve
corretamente o papel das hipóteses e da crítica na produção
do conhecimento. As hipóteses estariam representadas pela
ação de elaborar previsões e a crítica consistiria na
eliminação das previsões equivocadas por meio da elaboração
dos cenários. Esses cenários são construídos com as
informações obtidas das fontes.
Como vimos no exemplo do automóvel, a inteligência está
diretamente relacionada à nossa capacidade para inventar e
operar modelos. Modelos nos permitem simular o que deverá
acontecer sob certas condições. Com o auxílio dos modelos,
simulamos situações sem que elas jamais aconteçam. Isso nos
permite ajustar o comportamento ou para evitar ou provocar
determinado futuro. RUBEM ALVES (2005, p. 67) afirma que
“os modelos economizam o corpo” indo de encontro com a
citação de POPPER com a qual fechamos o item 3.
Devemos atentar que o analista de informações jamais
produz conhecimento certo (episteme), mas apenas pode emitir
uma opinião informada (doxa) sobre os fatos. Essa opinião
informada é resultado do processo descrito acima. Esse
processo não é mecânico, envolve muita criatividade e
imaginação do analista. Um analista de informações não é um
profeta e nem um tomador de decisões, o seu papel é apenas
elaborar hipóteses que visem resolver problemas de
interesse da segurança nacional e por meio da elaboração de
cenários, descartar aquelas hipóteses que se mostrem
incoerentes com os dados obtidos das fontes.
5- Conclusão
Neste artigo vimos como a mudança de postura
epistemológica adequada transformou toda a concepção
tradicional da atividade de inteligência. A distinção entre
contexto de descoberta e de validação foi importante para
mostrar que o oficial de inteligência deve direcionar suas
forças não para a catalogação de fontes, mas para submeter
à crítica suas hipóteses. O centro de gravidade do ciclo de
inteligência está na eliminação das hipóteses elaboradas
pelo analista e ele realiza essa tarefa por meio da
imaginação de múltiplos cenários, todos eles alimentados
pela informação obtida das fontes. Defendemos a tese de que
a negatividade pode ser vista não só como a categoria central
da teoria do conhecimento, mas também como fundamentadora
dos princípios sobre os quais se assenta a visão de mundo
do racionalismo crítico. A negatividade, base e fundamento de
uma postura antijustificacionista, se transfere do campo da
epistemologia para os domínios da teoria político-social,
e, como propomos aqui, para os domínios da atividade de
inteligência.
Percebemos neste artigo o quanto as ideias filosóficas
podem permear domínios que, a princípio, podem parecer
distantes da sua influência. Por esse motivo é exigido de
um oficial de inteligência um espectro de conhecimentos
bastante amplo.
Sem dúvida, o oficial de inteligência é oque exige a maior gama de conhecimentospara o exercício de sua tarefa.Conhecimentos de ciência política,sociologia, psicologia, história, etc. – emsíntese, uma sólida cultura geral – parecemrequisitos indispensáveis. (VIDIGAL, p. 33)
Espero estar contribuindo para uma melhoria da
compreensão da atividade de inteligência, seja por meio da
transmissão de novos conceitos ou, mais amplamente, de um
sistema filosófico novo. O racionalismo crítico é pouco
conhecido pelos doutrinadores da área e certamente
desconhecido pelos os analistas e técnicos de inteligência.
Meu objetivo é também incentivá-los a abandonar filosofias
perniciosas, que caminham em direção ao relativismo e assim
acabam flertando com posturas totalitárias.
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