Inteligência crítica

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A inteligência crítica: uma nova postura epistemológica para a atividade de inteligência no Brasil. Júlio Fontana * 1- Introdução Num artigo anterior (FONTANA, 2009, pp. 138-171) mostrei como a postura epistemológica endossada por uma instituição pode ter consequências éticas, sociais e políticas desastrosas. As instituições examinadas no referido artigo foram o catolicismo e o protestantismo. As doutrinas do pessimismo e do otimismo epistemológicos haviam levado, respectivamente, o catolicismo e o protestantismo ao enclausuramento institucional. Propus o racionalismo crítico como postura epistemológica mais saudável a ser adotada por qualquer instituição que modela visões de mundo, como é o caso do catolicismo e do protestantismo. * Professor de filosofia (SEEDUC-RJ) e mestrando em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ).

Transcript of Inteligência crítica

A inteligência crítica: uma nova postura

epistemológica para a atividade de

inteligência no Brasil.

Júlio Fontana*

1- Introdução

Num artigo anterior (FONTANA, 2009, pp. 138-171) mostrei

como a postura epistemológica endossada por uma instituição

pode ter consequências éticas, sociais e políticas

desastrosas. As instituições examinadas no referido artigo

foram o catolicismo e o protestantismo. As doutrinas do

pessimismo e do otimismo epistemológicos haviam levado,

respectivamente, o catolicismo e o protestantismo ao

enclausuramento institucional. Propus o racionalismo

crítico como postura epistemológica mais saudável a ser

adotada por qualquer instituição que modela visões de

mundo, como é o caso do catolicismo e do protestantismo.

* Professor de filosofia (SEEDUC-RJ) e mestrando em História dasCiências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE/UFRJ).

No presente artigo examinarei a instituição1 da

inteligência. A inteligência tem por finalidade,

descrevendo de modo bastante amplo, a produção e difusão de

conhecimentos sensíveis. Sendo assim, a adoção de uma postura

epistemológica adequada é fundamental para esta atividade.

Irei propor o racionalismo crítico2 como postura epistemológica

adequada à atividade de inteligência. Essa mudança de

postura epistemológica terá como consequência não apenas

uma ressignificação do conceito de inteligência como também

uma modificação da visão que se mantém sobre diversos

aspectos da atividade de inteligência. Não serão analisadas

as modificações nas relações entre a instituição de

inteligência e a sociedade.

2- O conceito tradicional de inteligência

SHERMAN KENT (1965, p. 69) elaborou uma definição de

inteligência que, segundo GONÇALVES, “é uma das concepções

1 “Temos tendência para falar em instituições onde quer que um corpo(variável) de pessoas observe um determinado conjunto de normas, oupreencha determinadas funções prima facie sociais (como o ensino, opoliciamento ou a venda de artigos de mercearia) que sirvamdeterminados fins também prima facie sociais (como a difusão deconhecimento, ou a proteção contra a violência ou a fome)”. (POPPER,2006, p. 185)2 Mais sobre o racionalismo crítico em MILLER (2006).

mais conhecidas e aceitas” pela doutrina da área de

inteligência (GONÇALVES, 2011, p. 07). Por essa razão

iremos apresentar somente a definição construída por KENT,

pela ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG) e, por fim, aquela

constante na LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

KENT sustenta que inteligência se apresente segundo três

aspectos: produto, organização e processo.

(1) Inteligência como produto: é o resultado do processo de

produção de conhecimento, que seguiu metodologia específica

de inteligência e que tem como cliente o tomador de

decisão. Inteligência é, sob esse aspecto, conhecimento

produzido.

(2) Inteligência como organização: são as estruturas funcionais

que têm por objetivo a obtenção de informações e produção

de conhecimento de inteligência. São as organizações que

atuam na busca do dado negado, na produção de inteligência

e na salvaguarda de informações.

(3) Inteligência como atividade ou processo: são os meios pelos

quais certos tipos de informação são requeridos, reunidos,

analisados e difundidos, e ainda, os procedimentos para a

obtenção de determinados dados, em especial aqueles

protegidos. Esse processo segue metodologia própria.

Passando à doutrina pátria, o Manual Básico (1975, p. 431

ss.) da ESG concebe inteligência também sob os três

aspectos arrolados por Kent, a saber, conhecimento,

organização e atividade. Sobre inteligência como

conhecimento, a ESG sustenta que, inteligência é produto de

um método peculiar praticado pela comunidade de

inteligência. Qualquer conhecimento derivado da aplicação

deste método é inteligência. No que concerne à inteligência

como organização, a ESG destaca que apenas uma organização

com estrutura especializada pode produzir inteligência. Em

termos de inteligência como atividade, a ESG destaca que a

inteligência decorre segundo um processo lógico e

metodizado que é observado em todas as etapas do ciclo de

inteligência. Percebe-se a grande preocupação da ESG com a

questão metódica, influência certamente da escola

positivista. Todas as deficiências do positivismo estão

presentes, portanto, na doutrina de inteligência elaborada

pela ESG.

A legislação brasileira destoa da concepção kentiana, e

também da ESG, e é unânime em definir inteligência como uma

atividade. A Lei nº 9.883/1999 define inteligência:

§ 2º Para os efeitos de aplicação destaLei, entende-se como inteligência aatividade que objetiva a obtenção, análisee disseminação de conhecimentos dentro efora do território nacional sobre fatos esituações de imediata ou potencialinfluência sobre o que o processo decisórioe a ação governamental e sobre asalvaguarda e a segurança da sociedade e doEstado.

Percebe-se que o legislador compreende a inteligência

apenas como atividade (da mesma forma, art. 2º da Lei nº

4.376/2002 e PNI) e não se mostra consoante com a doutrina

que relaciona inteligência também com organização e

produto.

O problema principal, ao que podemos ver, não é a

carência de formulação doutrinária (GONÇALVES, 2011, p.

05), mas a grande proliferação de perspectivas distintas

sobre o que realmente é inteligência (RORATTO, 2012, p.

37). Pode-se atribuir várias causas a essa proliferação de

conceitos de inteligência, contudo, fazê-lo estaria fora

dos objetivos deste artigo.

Ao examinar a doutrina elaborada por alguns centros e

pesquisadores da temática de inteligência, nos deparamos

com uma persistente propositura de definições.3 Não se

almeja neste artigo propor definições (POPPER, 2006, p.

375; Cf. BRUNEAU, 2003) e nem “desvelar essências” (ROSITO,

2006, pp. 23-27; Cf. POPPER, 2006, p. 40). O objetivo é

trabalhar com o conceito de inteligência o mais

proximamente da filosofia conhecida como racionalismo

crítico, levando em consideração alguns refinamentos

propostos pelas ciências cognitivas. Seguir-se-á um caminho

diverso da doutrina pátria, que é desconsiderar quaisquer

contribuições ao refinamento do conceito de inteligência

que possam surgir dentro do âmbito das ciências cognitivas

(GONÇALVES, 2011, p. 06).

Seria injusto não mencionar que uma abordagem

epistemológica da atividade de inteligência já foi

realizada por pesquisadores brasileiros (ROSITO, 2006, pp.

23-27; PATRÍCIO, 2009, pp. 87-100), mas, na minha

avaliação, ambas malogradas, visto que usam uma

3 Caso se queira examinar as diversas definições de inteligênciaconstantes na doutrina, ver BESSA, 2004, pp. 53-71; GONÇALVES, 2011,pp. 06-20.

epistemologia essencialista – nomeadamente a fenomenologia

de EDMUND HUSSERL – como suporte de sua abordagem.4 Não se

trata de uma discordância meramente filosófica, mas também

pragmática, visto que, o resultado das abordagens de ROSITO

e PATRÍCIO não são coerentes com o objetivo da inteligência

(RORATTO, 2012, p. 39), e mais grave ainda, não são

profícuas do ponto de vista da consecução da atividade de

inteligência (GONÇALVES, 2011, p. 63, 107).

3- O que as ciências cognitivas dizem sobre inteligência?

Quando se afirma que uma pessoa é inteligente, o que

realmente se quer expressar com isso? Que ela é esperta,

que aprende rápido, que ela tem uma capacidade muito boa de

resolver problemas, que ela tem uma capacidade de

memorização de dados muito ampla, etc. Essas são as

principais virtudes possuídas por uma pessoa inteligente

segundo o senso comum.

4 Há inúmeros problemas filosóficos com a fenomenologia de Husserl.Elencar-se-á apenas aqueles problemas mais graves que aparecem notexto de ROSITO: (1) desprezo pelo papel exercido pelo conhecimentoprévio possuído pelo sujeito no processo de obtenção de conhecimento(p. 23; na mesma linha de ROSITO, segue QUEIROZ NETO, 1984, p. 10; cf.POPPER, 2006, p. 52); (2) equívoco no que tange a natureza da lógica(p. 27; cf. POPPER, 2006, p. 282); e (3) compromisso com a doutrinafilosófica do relativismo (p. 27; cf. RUSSELL, 1941, pp. 77ss.).

Psicólogos e pedagogos, por sua vez, acreditavam que a

inteligência envolvia algumas habilidades, inclusive que,

era possível medir a inteligência por meio do aferimento

dessas habilidades. Essa medição era feita por meio de

conjuntos variados de indícios de habilidades especiais,

como compreensão verbal, fluência com palavras, facilidade

para números, raciocínio indutivo, rapidez de percepção,

raciocínio dedutivo, capacidade de memorização e coisas

semelhantes. A medição dessas habilidades ficou conhecida

como “Quociente de Inteligência – Q. I.” (SOUZA, 2013, p.

94)

O Q. I. é sem dúvida, um aspecto importante da

inteligência, mas outros aspectos não estão subordinados a

ele. Portanto, não devemos tentar reduzir inteligência a um

simples número em uma escala de avaliação. A grande questão

para se entender a inteligência não é quem é mais

inteligente, mas sim, quais são os aspectos importantes da

inteligência. Dentre aquilo de mais importante que a

inteligência abrange certamente estão os seguintes

aspectos: (1) a engenhosidade; (2) a capacidade de

previsão; (3) a rapidez; (4) a criatividade; e (5) a

quantidades de informações que você pode manipular ao mesmo

tempo (CALVIN, 1998, p. 21).

Todos esses cinco aspectos da inteligência estão

relacionados à conceituação de inteligência proposta por

JEAN PIAGET. Segundo PIAGET, a inteligência consiste naquilo que você

utiliza quando não sabe o que fazer.5 Isso capta o elemento de

novidade, a habilidade de enfrentar o problema e buscar uma

solução que é necessária quando não há “resposta correta”,

ou seja, quando os procedimentos normais provavelmente não

são suficientes.

O neurobiólogo HORACE BARLOW (1987) concebe a questão de

modo um pouco mais rígida, e chama nossa atenção para os

aspectos experimentalmente testáveis, afirmando que a

inteligência é toda ela relacionada com tecer suposições que revele uma nova

ordem subjacente. O ato “de supor bem” certamente é muito

abrangente. Engloba descobrir a solução de um problema ou a

lógica de um argumento, encontrar uma analogia apropriada,

criar uma harmonia agradável ou uma resposta espirituosa,

predizer corretamente o que é provável que ocorra no

momento seguinte. O ato “de supor bem” talvez seja central

5 PIAGET citado por CALVIN, 1998, p. 11.

para compreendermos no que consiste a inteligência. Esse

ato envolve, porém, uma rede complexa de habilidades, como

por exemplo, previsão e planejamento.

Uma base formada pelo conhecimento existente é,

evidentemente, necessária para a capacidade de fazer

previsões. Podemos afirmar que, grande parte do

comportamento inteligente consiste em novas combinações de

coisas antigas. Esse é o cerne, por exemplo, da lógica

dedutiva. Partindo da previsão, planejamos nossas ações.

Planejamento consiste então na montagem dos múltiplos

estágios do movimento antes da ação propriamente dita. Esse

tipo de planejamento é observado somente em um tipo

avançado de inteligência social, como por exemplo, quando

se elabora um modelo mental do modelo mental de outra

pessoa e depois se tira proveito disso.

Realmente difícil é fazer um planejamento antecipado e

detalhado em resposta a uma situação única. É preciso

imaginar múltiplos cenários. O planejamento em múltiplos

estágios para situações novas é sem dúvida um aspecto da

inteligência. Sendo assim, próximo à inteligência está o

poder das analogias, metáforas, alegorias, parábolas e

modelos mentais. Elas envolvem a comparação de relações.

KENNETH CRAIK explica a base biológica desse processo:

... o sistema nervoso é [...] uma máquinade calcular capaz de modelar ou simulareventos externos [...]. Se o organismocarrega consigo um “modelo em escalareduzida” da realidade externa e de suaspróprias ações possíveis dentro de suacabeça, ele será capaz de testar váriasalternativas e concluir qual é melhor entreelas, reagir a situações futuras antes queelas surjam, utilizar o conhecimento deeventos passados ao tratar com o futuro, e,sob todos os aspectos, reagir de uma formamuito mais completa, segura e hábil àsemergências com os quais depara (CRAIK,1943).

Os seres humanos podem simular os cursos futuros das

ações e afastar o que é absurdo. Num contexto adaptativo,

como KARL POPPER ressaltou, “isso permite que as nossas

hipóteses morram em nosso lugar” (POPPER, 1999, p. 227).

4- Nosso conceito de inteligência

Nosso conceito de inteligência tem fundamento filosófico

no racionalismo crítico e se mostra coerente com as teses

oriundas das ciências cognitivas mostradas no item

anterior. Antes de oferecer uma “definição” devemos apontar

aquilo que discordamos na doutrina dominante da área de

inteligência.

4.1. Há um método peculiar praticado pelos oficiais de inteligência?

GONÇALVES acredita que sim. Segundo ele, os dois traços

distintivos da atividade de inteligência são o seu método

próprio e o seu regime de segredo (p. 15). Nossa definição

de inteligência não sustenta que a inteligência seja um

produto de um “método técnico-científico de raciocínio”

(ESG, 1975, p. 431s.) ou “baseado em regras cartesianas”

(ESINT). Não há um método mecânico que, se adotado, produz

conhecimento. Se pudermos considerar o processo de tentativa e

erro (ver CRAIK no item 3) um método, então devemos afirmar

que este é o método utilizado pelo profissional de

inteligência na produção de conhecimento sensível.

Também não endossamos a opinião de GONÇALVES, que, sem o

segredo não se pode falar de inteligência. GONÇALVES

critica CEPIK por não considerar o aspecto do sigilo na sua

definição de inteligência (p. 16). Deve-se concordar que a

atividade de inteligência corre sob sigilo6, porém não se6 NEWTON-SMITH (1997, p. 34s.) afirma que a “supressão de dados” é umavirtude positiva tanto para a diplomacia como para a política (podemosdizer que a afirmação de NEWTON-SMITH é válida principalmente para a

deve confundir o regime de trâmite das informações com a

natureza de suas fontes.7 Caso se faça essa confusão

incorre-se em romantização da atividade de inteligência,

principalmente a praticada aqui no Brasil que recorre

amplamente às fontes abertas.

4.2. Quais são as fontes da atividade de inteligência?

Não achamos profícuo se realizar uma catalogação de

fontes, como se é enfaticamente determinado e praticado

pela doutrina tradicional de inteligência. Acredito que a

história já tenha deixado bem claro que nenhuma fonte é

confiável.8 Deve-se seguir o preceituado por POPPER, “o

nosso conhecimento tem fontes de todo o gênero, mas nenhuma

tem autoridade” (2006, p. 44).

Não se deve dar às fontes nem mesmo a prioridade temporal

no ciclo de inteligência. Como PLATT observou a “produção

área de inteligência). A supressão de dados não é proibida, éencorajada. NEWTON-SMITH cita como exemplo o caso do Sir. RobertArmstrong que foi apanhado fazendo justamente isso no caso jurídicoconhecido como Spy Catcher. Na ocasião ele respondeu que estava apenassendo econômico com a verdade. Sua carreira não foi afetada em razãodele ter sido “econômico com a verdade”.7 Parece que esse foi o caso de GONÇALVES (2011, p. 20). Porém, emoutras partes do livro encontramos posição diferente de GONÇALVES(2011, p. 99s.). Seguem na linha defendida neste artigo: REINHARDGEHLEN (1972, p. 68s.) e VICTOR MARCHETTI (1974, p. 09).8 GONÇALVES, 2011, pp. 87-92; VIDIGAL, 2004, p. 27.

de uma Informação sobre determinado assunto compreende a

seleção e reunião dos fatos relativos ao problema ...” (PLATT,

1974, p. 30 – itálico meu) A busca de conhecimento se dá

quando nos deparamos com um problema interessante para

resolver (POPPER, 1999, p. 120).

Para fins ilustrativos, mostrarei um exemplo oriundo do

nosso cotidiano.

Você dirige automóveis desde os 18 anos de idade e talvez

jamais tenha se questionado profundamente como eles

funcionam. Essa situação de ataraxia (tranquilidade da alma)

muda no dia em que seu carro para repentinamente. O que

você faz? Você tem um problema: seu carro não funciona.

Ainda dentro do próprio veículo você já elabora uma

primeira hipótese: “será que acabou o combustível?” Olha

atentamente para o odômetro do veículo e constata que há

combustível no tanque do seu carro. A sua primeira hipótese

acaba de ser descartada. O problema parece ser mais

complexo. Daí você sai do carro e abre a tampa do motor,

formulando outra hipótese: o cabo da bateria pode ter se

soltado. Então examina se há algum fio solto, dá algumas

batidinhas nas peças. Por que você faz isso? Qualquer

pessoa sabe que o motor funciona porque há canos por onde

circula a gasolina, canos que podem ficar entupidos. Caso

contrário, suas batinhas não teriam razão de ser. Você sabe

também que a eletricidade tem de fluir, que isso não ocorre

quando os fios estão desligados ou arrebentados. Você

elabora um modelo do motor, embora rudimentar. E seu modelo

é formado por canos por onde a gasolina deve fluir e que

eventualmente ficam entupidos, e fios por onde a

eletricidade deve passar e que são acidentalmente

desligados. Assim, quando busca fios soltos e dá suas

batidinhas no motor, você está agindo de forma inteligente,

a partir do modelo de que dispõe. É importante destacar que

é o defeito que faz você pensar. Se o carro não tivesse

parado, você teria continuado sua viagem tranquilamente,

sem sequer pensar que automóveis têm motores. O que não é

problemático não é pensado.

4.3. Qual é a etapa mais importante na produção do conhecimento de

inteligência?

Para a doutrina tradicional de inteligência parece que a

fase de coleta de informações é aquela mais importante no

ciclo de inteligência. Porém, como resta evidente da

leitura do item 4.1., o processo de validação do conhecimento,

etapa que eliminamos os nossos erros, é a mais importante

para a atividade de inteligência (GONÇALVES, 2011, p. 63,

79).

Não há fontes últimas do conhecimento.Todas as fontes, todas as sugestões sãobem-vindas; e todas as fontes, todas assugestões, estão abertas a um examecrítico. (POPPER, 2006, p. 48)

... proponho [...] que substituamos aquestão das fontes do nosso conhecimentopor outra completamente diferente: “comopodemos esperar conseguir detectar eeliminar o erro?” (POPPER, 2006, p. 46)

A validação do conhecimento se dá, quando este, sobrevive

a testes severos. Os testes consistem não em se buscar

confirmações dele, mas em tentativas de refutá-lo, isto é,

de mostrá-lo falso. Como informa Popper, “é fácil obter

confirmações ou verificações para quase todas as teorias –

desde que procuremos confirmações.” (POPPER, 2006, p. 59).

Concordando com Popper, apesar de ser sua crítica ferrenha,

está SUSAN HAACK que atribui à “falta de força de vontade”

a procura reiterada de confirmações:

A investigação pode ser difícil eexigente, e muitas vezes enganamo-nos. Porvezes, o obstáculo é a falta de força devontade; não queremos realmente saber aresposta a todo o custo para nos darmos aotrabalho de descobri-la, ou não queremosrealmente saber e esforçamo-nos bastantepara não a descobrir. Penso no detetive quenão quer realmente saber quem cometeu ocrime, apenas quer recolher provassuficientes para obter uma condenação ... .(HAACK, 2004)

O problema é que, como mostrou MLODINOW, temos uma

tendência muito forte de buscarmos confirmações.

Quando estamos diante de uma ilusão – ouem qualquer momento em que tenhamos umanova ideia – em vez de tentarmos provar quenossas ideias estão erradas, geralmentetentamos provar que estão corretas. Ospsicólogos chamam essa situação de viés daconfirmação ... . (MLODINOW, 2009, p. 201 –itálico meu)

... além de buscarmos preferencialmente asevidências que confirmam nossas noçõespreconcebidas, também interpretamosindícios ambíguos de modo a favoreceremnossas ideias. Isso pode ser um grandeproblema, pois os dados muitas vezes sãoambíguos; assim, ignorando alguns problemase enfatizando outros, nosso cérebro inteligenteconsegue reforçar suas crenças mesmo na ausência dedados convincentes. (Idem, ibid)

Vejamos um exemplo. Suponha que eu tenha pensado uma

regra para a construção de uma sequência de três números e

que a sequência 2, 4, 6 satisfaz a regra. Você consegue

descobrir a regra? Como lhe forneci apenas um simples

conjunto de três números então se você apresentar outras

sequências de três números eu lhe direi se elas satisfazem

a minha regra ou não. Se você agir como a maioria das

pessoas terá pensado em apresentar sequências do tipo 4, 6,

8 ou 8, 10, 12 ou 20, 24, 30. Essas sequências satisfazem a

minha regra de construção. A partir dessa nova evidência

você deve ter pensado ter descoberto a minha regra de

construção, que é, uma sequência de números pares

crescentes. Porém, a regra era apenas que a série deve ser

formada por números crescentes. A sequência 1, 2, 3, por

exemplo, teria sido válida. Não havia a necessidade de que

os números fossem pares. Por que isso ocorre?

A evolução do cérebro humano o tornoumuito eficiente no reconhecimento depadrões; porém, como nos mostra o viés daconfirmação, estamos mais concentrados emencontrar padrões que em minimizar nossasconclusões falsas. (MLODINOW, 2009, p. 203)

Nesse ponto devemos reconhecer a importância da crítica.

Somente por meio dela podemos nos livrar dos nossos

preconceitos. A imparcialidade e a objetividade não são

virtudes possuídas por um sujeito epistêmico ideal (ESINT),

mas resultam do ato de submeter nossas hipóteses a testes

severos. Devemos, como recomenda MLODINOW, “aprender a

gastar tanto tempo em busca de provas de que estamos

errados quanto de razões que demonstrem que estamos

certos.” (MLODINOW, 2009, p. 203)

4.4. O que é inteligência?

Não irei oferecer uma definição de inteligência. Não acho

interessante sequer pensar em estruturar uma definição.

Acredito ser mais significativo avançar no exame daquilo

que acredito ser a sua principal função: elaborar modelos

da realidade com o intuito de prever e prevenir ações que

atentem contra a segurança nacional.

Peter Gill e Mark Phytian lembram esse aspecto importante

na definição que propõem de inteligência, que é, na

terminologia das ciências cognitivas vista acima, a sua

capacidade de imaginar múltiplos cenários.

Inteligência é o termo geral para um amploespectro de atividades [...] com opropósito de manter ou aumentar asegurança, por meio da antecipação de ameaças reaisou potenciais. (2006, p. 07)

A ESG faz referência a esse aspecto, chamando-o de

inteligência como “estimativa”, isto é, “a projeção, em

futuro previsível, de um fato ou situação, feita com base

na análise objetiva de todos os dados envolvidos e no

estudo das possibilidades e probabilidades de sua evolução”

(1989, p. 287). Mais detalhadamente:

É o resultado de uma extrapolaçãointeligente dos dados ou fatos atuais.Exige do analista conhecimento, argúcia,isenção, experiência e, principalmente,absoluta correção e precisão ao expressarseu pensamento ... . (1989, p. 241)

Como ressalta GONÇALVES,

... nos EUA, a estimativa é percebida comoaspecto fundamental do assessoramento dostomadores de decisão de alto escalão, sendouma das atividades mais importantesrealizadas por membros da comunidade deinteligência daquele país ... . (GONÇALVES,2011, p. 55s.)

Vimos que apenas o racionalismo crítico provê o suporte

filosófico para esse importante aspecto da atividade de

inteligência. Somente o racionalismo crítico descreve

corretamente o papel das hipóteses e da crítica na produção

do conhecimento. As hipóteses estariam representadas pela

ação de elaborar previsões e a crítica consistiria na

eliminação das previsões equivocadas por meio da elaboração

dos cenários. Esses cenários são construídos com as

informações obtidas das fontes.

Como vimos no exemplo do automóvel, a inteligência está

diretamente relacionada à nossa capacidade para inventar e

operar modelos. Modelos nos permitem simular o que deverá

acontecer sob certas condições. Com o auxílio dos modelos,

simulamos situações sem que elas jamais aconteçam. Isso nos

permite ajustar o comportamento ou para evitar ou provocar

determinado futuro. RUBEM ALVES (2005, p. 67) afirma que

“os modelos economizam o corpo” indo de encontro com a

citação de POPPER com a qual fechamos o item 3.

Devemos atentar que o analista de informações jamais

produz conhecimento certo (episteme), mas apenas pode emitir

uma opinião informada (doxa) sobre os fatos. Essa opinião

informada é resultado do processo descrito acima. Esse

processo não é mecânico, envolve muita criatividade e

imaginação do analista. Um analista de informações não é um

profeta e nem um tomador de decisões, o seu papel é apenas

elaborar hipóteses que visem resolver problemas de

interesse da segurança nacional e por meio da elaboração de

cenários, descartar aquelas hipóteses que se mostrem

incoerentes com os dados obtidos das fontes.

5- Conclusão

Neste artigo vimos como a mudança de postura

epistemológica adequada transformou toda a concepção

tradicional da atividade de inteligência. A distinção entre

contexto de descoberta e de validação foi importante para

mostrar que o oficial de inteligência deve direcionar suas

forças não para a catalogação de fontes, mas para submeter

à crítica suas hipóteses. O centro de gravidade do ciclo de

inteligência está na eliminação das hipóteses elaboradas

pelo analista e ele realiza essa tarefa por meio da

imaginação de múltiplos cenários, todos eles alimentados

pela informação obtida das fontes. Defendemos a tese de que

a negatividade pode ser vista não só como a categoria central

da teoria do conhecimento, mas também como fundamentadora

dos princípios sobre os quais se assenta a visão de mundo

do racionalismo crítico. A negatividade, base e fundamento de

uma postura antijustificacionista, se transfere do campo da

epistemologia para os domínios da teoria político-social,

e, como propomos aqui, para os domínios da atividade de

inteligência.

Percebemos neste artigo o quanto as ideias filosóficas

podem permear domínios que, a princípio, podem parecer

distantes da sua influência. Por esse motivo é exigido de

um oficial de inteligência um espectro de conhecimentos

bastante amplo.

Sem dúvida, o oficial de inteligência é oque exige a maior gama de conhecimentospara o exercício de sua tarefa.Conhecimentos de ciência política,sociologia, psicologia, história, etc. – emsíntese, uma sólida cultura geral – parecemrequisitos indispensáveis. (VIDIGAL, p. 33)

Espero estar contribuindo para uma melhoria da

compreensão da atividade de inteligência, seja por meio da

transmissão de novos conceitos ou, mais amplamente, de um

sistema filosófico novo. O racionalismo crítico é pouco

conhecido pelos doutrinadores da área e certamente

desconhecido pelos os analistas e técnicos de inteligência.

Meu objetivo é também incentivá-los a abandonar filosofias

perniciosas, que caminham em direção ao relativismo e assim

acabam flertando com posturas totalitárias.

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