Inovação e limites da preservação em Curitiba: O caso do patrimônio industrial

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INOVAÇÃO E LIMITES DA PRESERVAÇÃO EM CURITIBA: O caso do patrimônio industrial OLIVEIRA, GABRIEL RUIZ DE (1) 1. Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Rua Maranhão, 88 - 01240.000 - São Paulo - SP - Brasil [email protected] RESUMO As práticas de preservação do patrimônio desenvolvidas pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) consolidaram a imagem de “cidade modelo”, desenvolvida por Curitiba a partir da década de 1970, favorecendo e viabilizando investimentos financeiros e operando através de instrumentos diferentes daqueles utilizados pelos órgãos nacional e estadual de patrimônio. Após alguns anos de prática de preservação, verificam-se limitações nesses instrumentos, tal como a incapacidade de impedir a demolição de edifícios significativos. Diante desse contexto, constata-se que existe a necessidade de desenvolvimento de ferramentas mais rígidas de preservação do patrimônio. Para tal, é necessário avaliar as conquistas e as dificuldades da preservação do patrimônio da cidade, em especial aquele cuja valorização pela sociedade ainda é limitado, como é o caso dos remanescentes industriais. Através da análise da preservação de remanescentes industriais na cidade de Curitiba, este artigo busca reconhecer as conquistas possibilitadas pelos instrumentos de proteção do patrimônio associados às políticas de desenvolvimento urbano e identificar as limitações desses instrumentos diante da ausência de uma lei de tombamento municipal. Palavras-chave: Patrimônio industrial; Políticas de preservação; Curitiba.

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INOVAÇÃO E LIMITES DA PRESERVAÇÃO EM CURITIBA: O caso do patrimônio industrial

OLIVEIRA, GABRIEL RUIZ DE (1)

1. Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Rua Maranhão, 88 - 01240.000 - São Paulo - SP - Brasil [email protected]

RESUMO

As práticas de preservação do patrimônio desenvolvidas pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) consolidaram a imagem de “cidade modelo”, desenvolvida por Curitiba a partir da década de 1970, favorecendo e viabilizando investimentos financeiros e operando através de instrumentos diferentes daqueles utilizados pelos órgãos nacional e estadual de patrimônio. Após alguns anos de prática de preservação, verificam-se limitações nesses instrumentos, tal como a incapacidade de impedir a demolição de edifícios significativos. Diante desse contexto, constata-se que existe a necessidade de desenvolvimento de ferramentas mais rígidas de preservação do patrimônio. Para tal, é necessário avaliar as conquistas e as dificuldades da preservação do patrimônio da cidade, em especial aquele cuja valorização pela sociedade ainda é limitado, como é o caso dos remanescentes industriais. Através da análise da preservação de remanescentes industriais na cidade de Curitiba, este artigo busca reconhecer as conquistas possibilitadas pelos instrumentos de proteção do patrimônio associados às políticas de desenvolvimento urbano e identificar as limitações desses instrumentos diante da ausência de uma lei de tombamento municipal.

Palavras-chave: Patrimônio industrial; Políticas de preservação; Curitiba.

7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015

INOVAÇÃO E LIMITES DA PRESERVAÇÃO EM CURITIBA:

O caso do patrimônio industrial

A partir da década de 1970, Curitiba construiu e divulgou a imagem de uma “cidade modelo”

com soluções eficientes e criativas pautadas em uma política urbana competente e sensata

que recebeu reconhecimento no Brasil e internacionalmente. Favorecido pela longevidade

política do grupo ligado ao arquiteto Jaime Lerner, o Instituto de Pesquisa e Planejamento

Urbano de Curitiba (IPPUC) consolidou-se nesse período como um dos principais órgãos da

municipalidade, sendo laureado como o inovador epicentro intelectual das transformações da

cidade (CARVALHO, 2013, p.7).

Administrativamente, o setor municipal de patrimônio histórico funciona subordinado ao

IPPUC e desenvolve, paralelamente à Fundação Cultural de Curitiba (FCC), as ações de

preservação na cidade. Estes dois órgãos municipais foram os principais responsáveis pelo

desenvolvimento de iniciativas pioneiras de preservação que possibilitaram diversas

conquistas para o patrimônio cultural curitibano. Passadas algumas décadas de suas

fundações, torna-se necessário compreender e estudar a eficácia da atuação desses órgãos

na cidade.

Através da análise da preservação de remanescentes industriais na cidade de Curitiba, este

artigo busca reconhecer as conquistas possibilitadas pelos instrumentos de proteção do

patrimônio associados às políticas de desenvolvimento urbano e identificar as limitações

desses instrumentos diante da ausência de uma lei de tombamento municipal.

Inovação nas políticas de preservação do patrimônio

O Conselho Superior de Defesa do Patrimônio Paranaense foi criado em 1935, porém com a

implementação do Estado Novo e do SPHAN dois anos depois, este conselho foi extinto. A

preservação do patrimônio no Paraná pelo órgão federal segue a marca descrita por Miceli

(1987, p.44) de tombar edifícios monumentais de origem luso-brasileira.

Em 1948, foi criada a Divisão de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural dentro da

Secretaria Estadual de Educação e Cultura. Esta divisão visa auxiliar o Serviço Nacional e, a

partir da década de 1960, começou a realizar tombamentos utilizando os mesmos critérios do

órgão federal, legitimando a história formal por meio de monumentos no litoral e na capital

(FÉLIX, 2012, p.19). A Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, tombada em 1938, e a

Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, tombada em 1967, ambas na cidade

de Paranaguá, são exemplos representativos essa prática ideológica do início da preservação

do patrimônio no Paraná.

A nível municipal, algumas poucas indicações de preocupação formal com a preservação

aparecem esboçadas no Plano Agache, desenvolvido pelo urbanista francês a pedido da

Prefeitura, em 1942. O Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) foi

instituído em 1965, a partir de diretrizes previstas no Plano Diretor da cidade. Com a criação

do órgão, as primeiras diretrizes para a criação de uma política municipal de preservação do

patrimônio começam a ser esboçadas (IPPUC, 2014, s.p).

Jaime Lerner, engenheiro civil e arquiteto formado pela Universidade Federal do Paraná no

início da década de 1960, havia participado da criação do IPPUC e do desenvolvimento do

Plano Diretor de Curitiba e quando foi nomeado prefeito da cidade pela primeira vez, em 1971.

Como urbanista, sua primeira gestão dedicou-se à implantação do Sistema Trinário, que

associava o zoneamento adensado com a implantação de sistema viário e transporte público

de massa. Nesse período, algumas intervenções começam a ser realizadas pela Prefeitura no

campo do patrimônio arquitetônico buscando-se uma urbanização humanizada (CARVALHO,

2013, p.7). Além da delimitação do Setor Histórico de Curitiba pelo Decreto n.1.160, em 1971:

“(...) o processo de preservação é iniciado com a restauração do antigo

Paiol de Pólvora, entregue à população como Teatro (1971), a Casa

Romário Martins (1973), uma antiga fábrica de cola transformada no

Centro de Criatividade de Curitiba (1975), os quais serviram de modelo

para a ação restauradora de vários outros imóveis, sendo revitalizada

toda uma área do setor histórico que com o esforço do poder público e

da iniciativa privada pode moldar uma consciência coletiva de

preservação e uma renovada fisionomia urbana” (LEONE et al, 1996,

p.6 apud FÉLIX, 2012, p22).

As discussões sobre a valorização e preservação do patrimônio da industrialização ainda

estavam começando na Europa e nos Estados Unidos no início da década de 1970 (MANZIG;

PEREIRA, 2013, p.25), e por isso destaca-se como curioso que, dentre as primeiras iniciativas

de preservação de Curitiba, aparecem citados justamente dois projetos realizados sobre

remanescentes industriais na cidade.

O antigo paiol de pólvora e materiais inflamáveis da cidade foi construído em 1906, às

margens da estrada de ferro no bairro Prado Velho. Com o crescimento da cidade (o paiol

originalmente encontrava-se afastado do centro por questões de segurança), o uso original foi

transferido para uma área militar no bairro Bacacheri, de modo que o edifício encontrava-se

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subutilizado há alguns anos quando Lerner assumiu a prefeitura. O arquiteto Abraão Assad foi

convocado para desenvolver o projeto que transformou o antigo paiol circular em um teatro de

arena. Como representante das preocupações urbanísticas e culturais da prefeitura na época,

o Teatro Paiol tornou-se símbolo da Fundação Cultural de Curitiba, criada em 1973

(MILLARCH, 1981, p.6).

A antiga fábrica de cola animal da família Boutin era composta por um conjunto de galpões de

alvenaria retangulares construídos na década de 1940, nas margens do rio Belém. Após uma

enchente, o conjunto foi desapropriado pela Prefeitura para a criação do Centro de

Criatividade de Curitiba, um equipamento cultural anexo ao Parque Municipal São Lourenço,

criado na mesma época para controlar os alagamentos frequentes do rio. Projeto do arquiteto

Roberto Luiz Gandolfi inaugurado em 1973 1 , os antigos pavilhões industriais foram

transformados em espaços para ensino de música, artes plásticas e cênicas, além de uma

biblioteca e teatro (CASTRO, 2003, p.257-258).

Figura 1 – Teatro Paiol e Centro de Criatividade de Curitiba

Fonte: Acervo do autor.

O engenheiro civil Saul Raiz assumiu a prefeitura de Curitiba após o fim da primeira gestão de

Lerner e deu continuidade às diretrizes de trabalho do IPPUC. O Plano do Acervo da Região

Metropolitana de Curitiba, realizado em 1977, identificou, classificou e propôs usos e formas

de preservação para 363 imóveis. Essa listagem subsidiou a elaboração do decreto n.

1.547/1979, que declarou 586 imóveis da capital como Unidades de Interesse de Preservação

(UIP) (FÉLIX, 2012, p.22; FERNANDES, 2013, p.2).

Ao invés das restrições rígidas impostas pelo tombamento tradicional, na proposta das UIPs,

os proprietários dos imóveis listados poderiam contar com os serviços consultivos de uma

1 Observa-se discordância das fontes na datação do Centro de Criatividade (1973/1975). O trabalho

adota como referência a datação informada pela Prefeitura Municipal de Curitiba, 1973.

equipe de técnicos de patrimônio do IPPUC para acompanhar o restauro do bem (LERNER,

1980, p.1).

Uma vez que a grande maioria dos imóveis listados pertencia a proprietários particulares e a

desapropriação não era uma alternativa viável, a Prefeitura promulgou, em 1981, o decreto n.

161, reduzindo ou isentando do imposto predial (IPTU) as edificações listadas que fossem

preservadas ou revitalizadas como forma de incentivo aos proprietários (IPPUC, 2014, s.p.).

Esse incentivo, porém, não apresentou resultados suficientes para a conservação do

patrimônio. Com a demolição de algumas unidades listadas, no ano seguinte foi proposta a

Lei ordinária n. 6.337/1982, ou Lei do Solo Criado. Essa lei permitia a comercialização do

potencial construtivo não utilizável de um lote com UIP para outras áreas da cidade

previamente especificadas, garantindo a autorização para que se construísse acima dos

limites da legislação em vigor (Figura 2).

Embora outras cidades do Brasil já houvessem discutido métodos de aplicar esse instrumento

no controle de densidade urbana e na preservação histórica, Curitiba foi pioneira no país ao

efetivamente concretizar o uso do instrumento como ferramenta de preservação de imóveis

de valor cultural (BITENCOURT, 2004, p.3-4).

Figura 2 – Funcionamento da Transferência de Potencial Construtivo de UIP

Fonte: IPPUC, 2014.

A concessão do potencial construtivo e sua efetiva transferência total só são autorizadas

mediante a apresentação do alvará de restauro da UIP e o certificado de vistoria de conclusão

de obra, respectivamente (CURITIBA, 2004, p.6). A aplicação deste instrumento apresentou

bons resultados na recuperação do patrimônio edificado e serviu de referência para diversas

outras cidades do país (BITENCOURT, 2004, p.3).

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Para o IPPUC, estes instrumentos mostraram-se eficientes ferramentas de preservação e

restauro de diversas UIPs, garantindo a proteção da história dos imigrantes que constituíram

Curitiba sem a necessidade da imposição autoritária de uma legislação mais rígida como o

tombamento (LERNER, 1980).

Limitações das políticas de preservação de Curitiba

A despeito do que afirma a história oficial, o decreto que criou as UIPs não foi bem aceito por

todos os curitibanos, uma vez que a seleção dos edifícios foi feita de forma bastante

verticalizada. A Câmara Municipal não discutiu a legislação e os moradores das unidades

selecionadas somente foram informados da listagem de seu imóvel via correspondência.

Cândido Gomes das Chagas, proprietário de um imóvel listado como UIP e dono da revista

“Paraná em Páginas” utilizou-se do veículo de imprensa para mobilizar um abaixo assinado e

entrar com uma ação contra a prefeitura para derrubar o decreto n. 1.547/1979 (FÉLIX, 2012,

p.34-35). A ação criticava o decreto por não apresentar critérios que justificassem a escolha

dos imóveis como de importância histórica, característica típica das gestões Lerner, que

centralizava a tomada de decisões de forma antidemocrática pela “melhoria da paisagem da

cidade (...) e pela melhoria da qualidade de vida desta Curitiba” (LERNER, 1980, p.1).

Dentro desse contexto de disputa jurídica, a criação dos instrumentos de isenção de IPTU e a

possibilidade de transferência de potencial construtivo apresentados pelo IPPUC podem ser

entendidos como tentativas de promover benefícios e remediar os proprietários que se

sentiram prejudicados pela instituição das UIPs.

Apesar destas concessões, Chagas e seu grupo ganham a ação da Prefeitura em 1984 e os

instrumentos de preservação sofreram adaptações de modo que a lista de UIPs fosse revista

e os imóveis das novas listagens passassem a ser analisados individualmente pelo IPPUC

(FÉLIX, 2012, p.34).

Além da disputa política observada nesse caso, é preciso reconhecer as limitações da política

de preservação baseada na listagem das UIPs como forma de aprendizado e melhoria na

prática da salvaguarda do patrimônio edificado. O processo de escolha e definição das UIPs

foi centralizado em torno de uma equipe técnica da qual Lerner era o responsável. A listagem

não foi discutida na Câmara de Vereadores e a população não foi consultada quanto à

escolha dos imóveis que deveriam representar seu patrimônio cultural.

Além disso, se por um lado a listagem das UIPs procurou abranger uma grande parcela de

imóveis de valor cultural, por outro lado não apresentou critérios claros e sequer informações

consistentes relativas aos próprios imóveis listados (FELIX, 2012, p.35). Ainda hoje, a lista de

UIPs é bastante completa, porém obscura. A quantidade de imóveis catalogados é um

mistério e não conta com um inventário justificando a importância de preservação dos imóveis

(FERNANDES, 2013, p.3)

A lei municipal n. 6.337, de 1982, destinava os recursos auferidos a partir da comercialização

da transferência de potencial construtivo exclusivamente para subsidiar projetos de restauro e

conservação das unidades de interesse de preservação. Em 1991, a Lei n.7.841 permitiu que

esses recursos fossem utilizados na aquisição de áreas para construção de habitação de

interesse social e a Lei n.8.000/2000 também possibilitou a destinação desses fundos para a

criação de parques, praças e programas ambientais de proteção de fundos de vales. Os

parques Tanguá, Barigui Sul, Nascentes e os bosques Uberaba, Solitude, Portugal e

Fazendinha foram viabilizados com os recursos desse fundo (BITTENCOURT, 2004, p.6).

Em 2010, através do decreto n. 689 a Prefeitura permitiu o uso do instrumento do solo criado

para a obtenção de recursos para a construção de creches e para as obras de reforma do

estádio sede da Copa do Mundo de 2014. O mercado de solo criado de Curitiba foi

inflacionado com o aumento da oferta de potencial construtivo. Nessa dinâmica, os donos de

UIPs foram prejudicados, uma vez que o procedimento para compra de potencial do estádio

foi facilitado (FERNANDES, 2013, p.2). A comercialização de potencial construtivo,

originalmente destinada apenas à preservação do patrimônio, foi banalizada como moeda de

troca de qualquer projeto urbanístico na cidade.

Por conta dos problemas técnicos apresentados, tal como a ausência de critérios de

preservação, o decreto que estabelece as UIPs não garante sua proteção e nos últimos anos

a prefeitura perdeu na justiça diversas ações de proprietários ou incorporadores solicitando a

demolição de imóveis cadastrados. Esses problemas técnicos, somados à diminuição dos

incentivos à preservação, possibilitaram que alguns edifícios de valor cultural significativo

como o Hospital Psiquiátrico do Bom Retiro e a fábrica da Matte Leão não pudessem ser

preservados, apesar da comoção popular.

O aumento do número de casos de proprietários que obtiveram o alvará de demolição de suas

UIPs tem aumentado e garantido jurisprudência para outros proprietários que entram na

justiça solicitando a mesma liberação. Os técnicos do IPPUC, todavia, mantém a convicção na

eficiência dos instrumentos inovadores da década de 1980 da “cidade modelo”.

Em meio à disputa jurídica de Chagas com a Prefeitura contra o decreto n. 1.547/1979 na

década de 1980, Sérgio Pires, arquiteto do IPPUC, insistiu em afirmar em entrevista que a

proposta de Lerner para as UIPs estava sendo recebida com grande compreensão pelos

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proprietários dos imóveis relacionados (GAZETA DO POVO, 1980. In: FÉLIX, 2012, p.36).

Trinta e três anos depois, em meio a novos questionamentos da população sobre a eficácia

das políticas municipais de preservação, o mesmo Pires, atualmente presidente do IPPUC,

afirmou décadas depois que permanecia acreditando na eficiência do projeto do instituto

(FERNANDES, 2013, p.3).

Através de seus meios de divulgação de informação, o discurso oficial do IPPUC parece

silenciar os conflitos pela preservação do patrimônio. Os instrumentos de incentivo à

preservação permanecem eficientes e inovadores, uma vez que a população continua

acreditando (ou querendo acreditar) no projeto de cidade atraente que se deseja construir.

Há, dentre um grupo de especialistas de patrimônio da cidade, relativo consenso de que

Curitiba necessita de ferramentas mais rígidas para a proteção de seu patrimônio

(FERNANDES, 2013, p.2). Essa solicitação levou ao encaminhamento à Câmara dos

Vereadores de um projeto de lei que dispõe sobre a preservação do patrimônio da cidade e

cria o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (CENTRO DE APOIO..., 2015, p.1).

Este projeto de lei em tramitação, elaborado por equipes do IPPUC, da FCC e da Secretaria

Municipal de Urbanismo, regulamenta os instrumentos de inventário, tombamento, registro e

vigilância, além de estabelecer as regras de fiscalização e as penalidades para o não

cumprimento das diretrizes de preservação.

Alguns exemplos

Apesar dos problemas apontados e dos edifícios históricos demolidos nos últimos anos,

deve-se reconhecer que a instituição do decreto das Unidades de Interesse de Preservação

possibilitou a preservação de algumas centenas de imóveis ao longo das últimas quatro

décadas.

Embora bastante extensa, a lista das UIPs apresenta algumas ausências significativas.

Composta principalmente por edifícios que retratam a história da imigração europeia na

formação de Curitiba, marca da política de preservação do patrimônio das gestões Lerner

(FÉLIX, 2012, p.38), as casas de madeira, por exemplo, são praticamente ignoradas da

preservação municipal. Arquitetura típica construída no sistema de tábua e mata-junta

representou grande parte das habitações da cidade durante o ciclo de exploração das matas

de araucária do Paraná e hoje é representada por não mais do que meia dúzia de residências

(FERNANDES, 2013, p.1).

Os galpões remanescentes do primeiro surto de desenvolvimento industrial da cidade,

ancorado na prosperidade econômica da erva mate e da madeira de araucária sofrem ainda

mais com a ausência de representantes na lista de UIPs, uma vez que esse patrimônio ainda

enfrenta grandes dificuldades de reconhecimento e valorização pela comunidade (MANZIG;

PEREIRA, 2013, p.12).

Por conta dessa dificuldade de valorização, a preservação do patrimônio industrial em Curitiba

é frequentemente apresentada a partir dos mesmos exemplares, os quais são referenciados

como iniciativas pioneiras para subsidiar novas propostas e discussões quanto à preservação

e reutilização dos remanescentes industriais da cidade. É importante esclarecer que, embora

algumas dessas primeiras propostas de intervenção no patrimônio de Curitiba fossem

compreensíveis dentro do contexto das discussões preservacionistas das décadas de 1970 e

1980, essas intervenções não podem ser tratadas como isentas de crítica apenas por

apresentarem boas intenções.

O campo da preservação do patrimônio industrial amadureceu significativamente nas últimas

décadas, passando a incorporar prerrogativas metodológicas mais maduras que procuram

relacionar aspectos mais amplos na valorização dos conjuntos industriais. Referência deste

campo no país, Kühl (2009, p.269) defende que o reconhecimento de um bem cultural deve

considerar aspectos documentais, formais, memoriais e simbólicos de interesse para a

comunidade, e não preocupações setoriais imediatas. A autora critica ainda:

“Muitas das iniciativas recentes em bens de interesse histórico que se

revestem de uma aura de ação cultural quando, na verdade, o fato de

desnaturar um documento – semelhante ao de se apossar de um

manuscrito, único, arrancar trechos ou páginas para inserir uma nova

obra, por melhor que seja, é um ato contra a cultura.” (KÜHL, 2009,

p.269).

Precursoras mas não perfeitas, é necessário uma análise crítica dos objetivos e conquistas

desses projetos como iniciativas de preservação do patrimônio industrial curitibano de modo a

possibilitar o amadurecimento desse debate no contexto municipal. Dessa forma, são citadas

brevemente três intervenções no patrimônio fabril de Curitiba, de modo a exemplificar as

dificuldades e limitações da atual política de preservação, outrora valorizada e reconhecida

por sua inovação.

O primeiro caso trata-se do já mencionado Centro de Criatividade de Curitiba de 1973, que

ocupou as instalações da antiga fábrica de cola Boutin, no Parque São Lourenço. Anterior à

promulgação dos primeiros decretos de preservação do patrimônio arquitetônico municipal,

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não incidia sobre os galpões industriais uma legislação que condicionasse a intervenção no

imóvel segundo critérios de preservação, que foi “orientada pelo bom senso e criatividade do

arquiteto [Roberto Luiz Gandolfi], não se atendo a critérios oficiais de restauração do imóvel

considerado como patrimônio arquitetônico” (CASTRO, 2003, p.259).

Afirma-se que o conjunto de galpões de aspecto rústico e vernáculo era distribuído

aleatoriamente, atendendo apenas a intenções funcionais sem preocupações estéticas. Essa

leitura do complexo fabril justificou a descaracterização da volumetria dos blocos, com a

inserção de platibandas, ampliação de beirais e modificação no ritmo e formas das aberturas

dos edifícios. Além da chaminé de tijolos, foram preservados alguns tanques e caldeiras

metálicas que foram pintados de vermelho para combinar com os demais elementos metálicos

inseridos no conjunto para viabilizar o novo uso. Esses elementos, descontextualizados e

utilizados apenas com propósito compositivo, demonstram as intenções do projeto que se

apropriou dos vestígios históricos da antiga identidade fabril para ratificar a nova intervenção.

O Centro de Criatividade de Curitiba é um edifício com valor próprio e o uso intenso e

dinâmico do espaço desde sua inauguração evidencia a qualidade do projeto. Há que se notar

que, embora citado como exemplo pioneiro de preservação (FERNANDES, 2015, p.2), a

intervenção intencionalmente alterou as proporções e relações entre os edifícios de modo que

a percepção do conjunto como antigo espaço industrial é quase imperceptível (MANZIG;

PEREIRA, 2013, p.85). Mais uma reforma do que restauração, o que impressiona no caso do

Centro de Criatividade é a forma como a crítica arquitetônica avalia a intervenção:

“A validade da proposta de reutilização da antiga fábrica Boutin é

inquestionável, por quase trinta anos tem mantido em pleno

funcionamento suas atividades, atendendo a população com seu

notável centro de artes plásticas. A intervenção sobre os edifícios

antigos da fábrica é atualmente questionada, por fragilizar a

autenticidade do edifício histórico, mas a obra em seu conjunto é de um

valor inigualável, por inaugurar uma possibilidade de preservar antigas

fábricas” (CASTRO, 2003, p.263-264, grifo do autor).

De fato, inovadora no momento de sua idealização, a transformação do antigo conjunto

industrial não pode ser isenta de questionamentos para orientar futuras intervenções no

patrimônio industrial, devendo-se considerar ainda seu efetivo valor como iniciativa de

preservação.

Ainda mais crítico e polêmico é o caso da transformação da antiga Fundição Marumby –

Irmãos Mueller & Cia. em shopping center no Centro Cívico de Curitiba. Primeira oficina

mecânica e ferraria da cidade, fundada pelo imigrante suíço Gottlieb Mueller em 1878, a

fábrica cresceu e ampliou-se em fundição e metalúrgica, desempenhando importante papel

na industrialização do estado ao fornecer o maquinário para as serrarias e para os engenhos

de beneficiamento de erva mate. As diretrizes de planejamento urbano do município

desestimularam a continuidade das atividades produtivas na fábrica devido a sua localização

central (MANZIG; PEREIRA, 2013, p.45). Durante a década de 1970, o conjunto foi

desativado e permaneceu abandonado por alguns anos, aguardando nova destinação.

No início da década de 1980, durante o segundo mandato de Jaime Lerner na Prefeitura de

Curitiba, o urbanista apresentou, em parceria com Eduardo Ceneviva e Abraão Assad, um

projeto de reutilização dos edifícios da Fundição Mueller que preservava as fachadas e

coberturas das edificações e ocupava seus interiores com espaços de lazer e comércio. O

projeto das “Galerias Mueller” previa espaços abertos e diversos acessos das ruas para as

lojas, porém não recebeu apoio dos comerciantes da cidade na época e não se viabilizou

(CASTRO, 2003, p.270).

Um grupo de empreendedores demonstrou interesse na construção de um shopping Center

no local da antiga fábrica, porém o zoneamento da área previa que novas construções

deveriam apresentar um recuo de 10 metros. Com a inclusão do imóvel na lista de UIPs, sua

fachada original no alinhamento predial não poderia ser alterada, o que representou o

acréscimo de cerca de quatro mil metros quadrados à incorporação (FÉLIX, 2012, p.36-37).

O projeto proposto para o shopping Center se pautava pelos moldes norte-americanos, com

poucas entradas e muita área de circulação interna para disposição das lojas. Dessa forma,

as diversas aberturas do conjunto foram fechadas e as divisórias internas e edifícios menores

foram demolidos, mantendo-se apenas as fachadas externas do conjunto. Foi proposta uma

grande cobertura de fibrocimento em escama para unificar as diferentes modulações das

fachadas (Figura 3). As variações e dinâmicas das fachadas foram perdidas com a inserção

da nova cobertura desproporcional (CASTRO, 2003, p.272).

Figura 3 - Fundição Irmãos Mueller (1935) e atual Shopping Mueller (2014)

Fonte: Livro Azul da Cidade de Curityba, 1935.

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Citado como exemplo de requalificação um antigo edifício fabril para novos usos

(FERNANDES, 2010, p.2; idem, 2015, p.2), o Shopping Mueller claramente não tinha a

preservação do patrimônio industrial como premissa de projeto. A limitada preservação de

trechos das fachadas se perde em meio à mimetização das falsas aberturas e cimalhas, e à

inserção do grande volume que ocupa toda a quadra uniformemente.

O caso mais dramático e recente na preservação do patrimônio industrial de Curitiba, que

alcançou repercussão e provocou polêmicas entre a comunidade, certamente é a demolição

da antiga fábrica da Matte Leão, no bairro Rebouças.

A fábrica, fundada em 1901, transferiu-se em 1930 para o bairro do Rebouças, próximo à

estação ferroviária após um incêndio na antiga sede no Portão, onde funcionou até 2007,

quando a empresa foi vendida para a Coca Cola e o imóvel desocupado. Conjunto formado

por edifícios de tipologias híbridas com discreta influência art déco, (Figura 4) a fábrica foi um

dos principais centros de beneficiamento da erva mate do Estado, com distribuição para todo

o país (PINHERIO et al, 2011, p.47).

Figura 4 – Antiga fábrica da Matte Leão em demolição.

Fonte: Fernandes, 2011.

Com a venda do imóvel para a Igreja Universal do Reino de Deus, o destino das antigas

edificações foi comprometido. Como a fábrica não constava como Unidade de Interesse de

Preservação nos registros da Prefeitura, a demolição foi iminente, uma vez que a igreja não

tinha interesse na preservação. Apesar de manifestações contrárias à demolição por

ex-funcionários, jornalistas e pesquisadores da área (FERNANDES, 2010; idem, 2011), o

alvará de demolição não foi revogado e a memória do conjunto se perdeu (PINHERIO et al,

2011, p.77).

Reconhecendo as limitações da política de preservação do patrimônio de Curitiba é possível

propor novos avanços inovadores que possibilitem conquistas similares àquelas obtidas nas

décadas de 1970 e 1980. Para tanto, é necessário avaliar o sucesso das intervenções

possibilitadas pelos instrumentos vigentes a partir de análise crítica pautada em critérios

claros de preservação, e não apenas no sucesso final do empreendimento.

O patrimônio industrial, em particular, ainda carece de valorização pela comunidade. Novos

estudos de levantamento e inventário começam a ser desenvolvidos nos últimos anos, em

parte, estimulados pela perda da antiga fábrica da Matte Leão. Espera-se que, com o

desenvolvimento dessas políticas e com o avanço dos estudos, a memória fabril de Curitiba

possa ser preservada com maior sucesso.

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