VILAS OPERÁRIAS COMO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL. Vilas Operárias... Como preservá-las?
Inovação e limites da preservação em Curitiba: O caso do patrimônio industrial
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INOVAÇÃO E LIMITES DA PRESERVAÇÃO EM CURITIBA: O caso do patrimônio industrial
OLIVEIRA, GABRIEL RUIZ DE (1)
1. Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Rua Maranhão, 88 - 01240.000 - São Paulo - SP - Brasil [email protected]
RESUMO
As práticas de preservação do patrimônio desenvolvidas pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) consolidaram a imagem de “cidade modelo”, desenvolvida por Curitiba a partir da década de 1970, favorecendo e viabilizando investimentos financeiros e operando através de instrumentos diferentes daqueles utilizados pelos órgãos nacional e estadual de patrimônio. Após alguns anos de prática de preservação, verificam-se limitações nesses instrumentos, tal como a incapacidade de impedir a demolição de edifícios significativos. Diante desse contexto, constata-se que existe a necessidade de desenvolvimento de ferramentas mais rígidas de preservação do patrimônio. Para tal, é necessário avaliar as conquistas e as dificuldades da preservação do patrimônio da cidade, em especial aquele cuja valorização pela sociedade ainda é limitado, como é o caso dos remanescentes industriais. Através da análise da preservação de remanescentes industriais na cidade de Curitiba, este artigo busca reconhecer as conquistas possibilitadas pelos instrumentos de proteção do patrimônio associados às políticas de desenvolvimento urbano e identificar as limitações desses instrumentos diante da ausência de uma lei de tombamento municipal.
Palavras-chave: Patrimônio industrial; Políticas de preservação; Curitiba.
7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015
INOVAÇÃO E LIMITES DA PRESERVAÇÃO EM CURITIBA:
O caso do patrimônio industrial
A partir da década de 1970, Curitiba construiu e divulgou a imagem de uma “cidade modelo”
com soluções eficientes e criativas pautadas em uma política urbana competente e sensata
que recebeu reconhecimento no Brasil e internacionalmente. Favorecido pela longevidade
política do grupo ligado ao arquiteto Jaime Lerner, o Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano de Curitiba (IPPUC) consolidou-se nesse período como um dos principais órgãos da
municipalidade, sendo laureado como o inovador epicentro intelectual das transformações da
cidade (CARVALHO, 2013, p.7).
Administrativamente, o setor municipal de patrimônio histórico funciona subordinado ao
IPPUC e desenvolve, paralelamente à Fundação Cultural de Curitiba (FCC), as ações de
preservação na cidade. Estes dois órgãos municipais foram os principais responsáveis pelo
desenvolvimento de iniciativas pioneiras de preservação que possibilitaram diversas
conquistas para o patrimônio cultural curitibano. Passadas algumas décadas de suas
fundações, torna-se necessário compreender e estudar a eficácia da atuação desses órgãos
na cidade.
Através da análise da preservação de remanescentes industriais na cidade de Curitiba, este
artigo busca reconhecer as conquistas possibilitadas pelos instrumentos de proteção do
patrimônio associados às políticas de desenvolvimento urbano e identificar as limitações
desses instrumentos diante da ausência de uma lei de tombamento municipal.
Inovação nas políticas de preservação do patrimônio
O Conselho Superior de Defesa do Patrimônio Paranaense foi criado em 1935, porém com a
implementação do Estado Novo e do SPHAN dois anos depois, este conselho foi extinto. A
preservação do patrimônio no Paraná pelo órgão federal segue a marca descrita por Miceli
(1987, p.44) de tombar edifícios monumentais de origem luso-brasileira.
Em 1948, foi criada a Divisão de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural dentro da
Secretaria Estadual de Educação e Cultura. Esta divisão visa auxiliar o Serviço Nacional e, a
partir da década de 1960, começou a realizar tombamentos utilizando os mesmos critérios do
órgão federal, legitimando a história formal por meio de monumentos no litoral e na capital
(FÉLIX, 2012, p.19). A Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, tombada em 1938, e a
Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, tombada em 1967, ambas na cidade
de Paranaguá, são exemplos representativos essa prática ideológica do início da preservação
do patrimônio no Paraná.
A nível municipal, algumas poucas indicações de preocupação formal com a preservação
aparecem esboçadas no Plano Agache, desenvolvido pelo urbanista francês a pedido da
Prefeitura, em 1942. O Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) foi
instituído em 1965, a partir de diretrizes previstas no Plano Diretor da cidade. Com a criação
do órgão, as primeiras diretrizes para a criação de uma política municipal de preservação do
patrimônio começam a ser esboçadas (IPPUC, 2014, s.p).
Jaime Lerner, engenheiro civil e arquiteto formado pela Universidade Federal do Paraná no
início da década de 1960, havia participado da criação do IPPUC e do desenvolvimento do
Plano Diretor de Curitiba e quando foi nomeado prefeito da cidade pela primeira vez, em 1971.
Como urbanista, sua primeira gestão dedicou-se à implantação do Sistema Trinário, que
associava o zoneamento adensado com a implantação de sistema viário e transporte público
de massa. Nesse período, algumas intervenções começam a ser realizadas pela Prefeitura no
campo do patrimônio arquitetônico buscando-se uma urbanização humanizada (CARVALHO,
2013, p.7). Além da delimitação do Setor Histórico de Curitiba pelo Decreto n.1.160, em 1971:
“(...) o processo de preservação é iniciado com a restauração do antigo
Paiol de Pólvora, entregue à população como Teatro (1971), a Casa
Romário Martins (1973), uma antiga fábrica de cola transformada no
Centro de Criatividade de Curitiba (1975), os quais serviram de modelo
para a ação restauradora de vários outros imóveis, sendo revitalizada
toda uma área do setor histórico que com o esforço do poder público e
da iniciativa privada pode moldar uma consciência coletiva de
preservação e uma renovada fisionomia urbana” (LEONE et al, 1996,
p.6 apud FÉLIX, 2012, p22).
As discussões sobre a valorização e preservação do patrimônio da industrialização ainda
estavam começando na Europa e nos Estados Unidos no início da década de 1970 (MANZIG;
PEREIRA, 2013, p.25), e por isso destaca-se como curioso que, dentre as primeiras iniciativas
de preservação de Curitiba, aparecem citados justamente dois projetos realizados sobre
remanescentes industriais na cidade.
O antigo paiol de pólvora e materiais inflamáveis da cidade foi construído em 1906, às
margens da estrada de ferro no bairro Prado Velho. Com o crescimento da cidade (o paiol
originalmente encontrava-se afastado do centro por questões de segurança), o uso original foi
transferido para uma área militar no bairro Bacacheri, de modo que o edifício encontrava-se
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subutilizado há alguns anos quando Lerner assumiu a prefeitura. O arquiteto Abraão Assad foi
convocado para desenvolver o projeto que transformou o antigo paiol circular em um teatro de
arena. Como representante das preocupações urbanísticas e culturais da prefeitura na época,
o Teatro Paiol tornou-se símbolo da Fundação Cultural de Curitiba, criada em 1973
(MILLARCH, 1981, p.6).
A antiga fábrica de cola animal da família Boutin era composta por um conjunto de galpões de
alvenaria retangulares construídos na década de 1940, nas margens do rio Belém. Após uma
enchente, o conjunto foi desapropriado pela Prefeitura para a criação do Centro de
Criatividade de Curitiba, um equipamento cultural anexo ao Parque Municipal São Lourenço,
criado na mesma época para controlar os alagamentos frequentes do rio. Projeto do arquiteto
Roberto Luiz Gandolfi inaugurado em 1973 1 , os antigos pavilhões industriais foram
transformados em espaços para ensino de música, artes plásticas e cênicas, além de uma
biblioteca e teatro (CASTRO, 2003, p.257-258).
Figura 1 – Teatro Paiol e Centro de Criatividade de Curitiba
Fonte: Acervo do autor.
O engenheiro civil Saul Raiz assumiu a prefeitura de Curitiba após o fim da primeira gestão de
Lerner e deu continuidade às diretrizes de trabalho do IPPUC. O Plano do Acervo da Região
Metropolitana de Curitiba, realizado em 1977, identificou, classificou e propôs usos e formas
de preservação para 363 imóveis. Essa listagem subsidiou a elaboração do decreto n.
1.547/1979, que declarou 586 imóveis da capital como Unidades de Interesse de Preservação
(UIP) (FÉLIX, 2012, p.22; FERNANDES, 2013, p.2).
Ao invés das restrições rígidas impostas pelo tombamento tradicional, na proposta das UIPs,
os proprietários dos imóveis listados poderiam contar com os serviços consultivos de uma
1 Observa-se discordância das fontes na datação do Centro de Criatividade (1973/1975). O trabalho
adota como referência a datação informada pela Prefeitura Municipal de Curitiba, 1973.
equipe de técnicos de patrimônio do IPPUC para acompanhar o restauro do bem (LERNER,
1980, p.1).
Uma vez que a grande maioria dos imóveis listados pertencia a proprietários particulares e a
desapropriação não era uma alternativa viável, a Prefeitura promulgou, em 1981, o decreto n.
161, reduzindo ou isentando do imposto predial (IPTU) as edificações listadas que fossem
preservadas ou revitalizadas como forma de incentivo aos proprietários (IPPUC, 2014, s.p.).
Esse incentivo, porém, não apresentou resultados suficientes para a conservação do
patrimônio. Com a demolição de algumas unidades listadas, no ano seguinte foi proposta a
Lei ordinária n. 6.337/1982, ou Lei do Solo Criado. Essa lei permitia a comercialização do
potencial construtivo não utilizável de um lote com UIP para outras áreas da cidade
previamente especificadas, garantindo a autorização para que se construísse acima dos
limites da legislação em vigor (Figura 2).
Embora outras cidades do Brasil já houvessem discutido métodos de aplicar esse instrumento
no controle de densidade urbana e na preservação histórica, Curitiba foi pioneira no país ao
efetivamente concretizar o uso do instrumento como ferramenta de preservação de imóveis
de valor cultural (BITENCOURT, 2004, p.3-4).
Figura 2 – Funcionamento da Transferência de Potencial Construtivo de UIP
Fonte: IPPUC, 2014.
A concessão do potencial construtivo e sua efetiva transferência total só são autorizadas
mediante a apresentação do alvará de restauro da UIP e o certificado de vistoria de conclusão
de obra, respectivamente (CURITIBA, 2004, p.6). A aplicação deste instrumento apresentou
bons resultados na recuperação do patrimônio edificado e serviu de referência para diversas
outras cidades do país (BITENCOURT, 2004, p.3).
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Para o IPPUC, estes instrumentos mostraram-se eficientes ferramentas de preservação e
restauro de diversas UIPs, garantindo a proteção da história dos imigrantes que constituíram
Curitiba sem a necessidade da imposição autoritária de uma legislação mais rígida como o
tombamento (LERNER, 1980).
Limitações das políticas de preservação de Curitiba
A despeito do que afirma a história oficial, o decreto que criou as UIPs não foi bem aceito por
todos os curitibanos, uma vez que a seleção dos edifícios foi feita de forma bastante
verticalizada. A Câmara Municipal não discutiu a legislação e os moradores das unidades
selecionadas somente foram informados da listagem de seu imóvel via correspondência.
Cândido Gomes das Chagas, proprietário de um imóvel listado como UIP e dono da revista
“Paraná em Páginas” utilizou-se do veículo de imprensa para mobilizar um abaixo assinado e
entrar com uma ação contra a prefeitura para derrubar o decreto n. 1.547/1979 (FÉLIX, 2012,
p.34-35). A ação criticava o decreto por não apresentar critérios que justificassem a escolha
dos imóveis como de importância histórica, característica típica das gestões Lerner, que
centralizava a tomada de decisões de forma antidemocrática pela “melhoria da paisagem da
cidade (...) e pela melhoria da qualidade de vida desta Curitiba” (LERNER, 1980, p.1).
Dentro desse contexto de disputa jurídica, a criação dos instrumentos de isenção de IPTU e a
possibilidade de transferência de potencial construtivo apresentados pelo IPPUC podem ser
entendidos como tentativas de promover benefícios e remediar os proprietários que se
sentiram prejudicados pela instituição das UIPs.
Apesar destas concessões, Chagas e seu grupo ganham a ação da Prefeitura em 1984 e os
instrumentos de preservação sofreram adaptações de modo que a lista de UIPs fosse revista
e os imóveis das novas listagens passassem a ser analisados individualmente pelo IPPUC
(FÉLIX, 2012, p.34).
Além da disputa política observada nesse caso, é preciso reconhecer as limitações da política
de preservação baseada na listagem das UIPs como forma de aprendizado e melhoria na
prática da salvaguarda do patrimônio edificado. O processo de escolha e definição das UIPs
foi centralizado em torno de uma equipe técnica da qual Lerner era o responsável. A listagem
não foi discutida na Câmara de Vereadores e a população não foi consultada quanto à
escolha dos imóveis que deveriam representar seu patrimônio cultural.
Além disso, se por um lado a listagem das UIPs procurou abranger uma grande parcela de
imóveis de valor cultural, por outro lado não apresentou critérios claros e sequer informações
consistentes relativas aos próprios imóveis listados (FELIX, 2012, p.35). Ainda hoje, a lista de
UIPs é bastante completa, porém obscura. A quantidade de imóveis catalogados é um
mistério e não conta com um inventário justificando a importância de preservação dos imóveis
(FERNANDES, 2013, p.3)
A lei municipal n. 6.337, de 1982, destinava os recursos auferidos a partir da comercialização
da transferência de potencial construtivo exclusivamente para subsidiar projetos de restauro e
conservação das unidades de interesse de preservação. Em 1991, a Lei n.7.841 permitiu que
esses recursos fossem utilizados na aquisição de áreas para construção de habitação de
interesse social e a Lei n.8.000/2000 também possibilitou a destinação desses fundos para a
criação de parques, praças e programas ambientais de proteção de fundos de vales. Os
parques Tanguá, Barigui Sul, Nascentes e os bosques Uberaba, Solitude, Portugal e
Fazendinha foram viabilizados com os recursos desse fundo (BITTENCOURT, 2004, p.6).
Em 2010, através do decreto n. 689 a Prefeitura permitiu o uso do instrumento do solo criado
para a obtenção de recursos para a construção de creches e para as obras de reforma do
estádio sede da Copa do Mundo de 2014. O mercado de solo criado de Curitiba foi
inflacionado com o aumento da oferta de potencial construtivo. Nessa dinâmica, os donos de
UIPs foram prejudicados, uma vez que o procedimento para compra de potencial do estádio
foi facilitado (FERNANDES, 2013, p.2). A comercialização de potencial construtivo,
originalmente destinada apenas à preservação do patrimônio, foi banalizada como moeda de
troca de qualquer projeto urbanístico na cidade.
Por conta dos problemas técnicos apresentados, tal como a ausência de critérios de
preservação, o decreto que estabelece as UIPs não garante sua proteção e nos últimos anos
a prefeitura perdeu na justiça diversas ações de proprietários ou incorporadores solicitando a
demolição de imóveis cadastrados. Esses problemas técnicos, somados à diminuição dos
incentivos à preservação, possibilitaram que alguns edifícios de valor cultural significativo
como o Hospital Psiquiátrico do Bom Retiro e a fábrica da Matte Leão não pudessem ser
preservados, apesar da comoção popular.
O aumento do número de casos de proprietários que obtiveram o alvará de demolição de suas
UIPs tem aumentado e garantido jurisprudência para outros proprietários que entram na
justiça solicitando a mesma liberação. Os técnicos do IPPUC, todavia, mantém a convicção na
eficiência dos instrumentos inovadores da década de 1980 da “cidade modelo”.
Em meio à disputa jurídica de Chagas com a Prefeitura contra o decreto n. 1.547/1979 na
década de 1980, Sérgio Pires, arquiteto do IPPUC, insistiu em afirmar em entrevista que a
proposta de Lerner para as UIPs estava sendo recebida com grande compreensão pelos
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proprietários dos imóveis relacionados (GAZETA DO POVO, 1980. In: FÉLIX, 2012, p.36).
Trinta e três anos depois, em meio a novos questionamentos da população sobre a eficácia
das políticas municipais de preservação, o mesmo Pires, atualmente presidente do IPPUC,
afirmou décadas depois que permanecia acreditando na eficiência do projeto do instituto
(FERNANDES, 2013, p.3).
Através de seus meios de divulgação de informação, o discurso oficial do IPPUC parece
silenciar os conflitos pela preservação do patrimônio. Os instrumentos de incentivo à
preservação permanecem eficientes e inovadores, uma vez que a população continua
acreditando (ou querendo acreditar) no projeto de cidade atraente que se deseja construir.
Há, dentre um grupo de especialistas de patrimônio da cidade, relativo consenso de que
Curitiba necessita de ferramentas mais rígidas para a proteção de seu patrimônio
(FERNANDES, 2013, p.2). Essa solicitação levou ao encaminhamento à Câmara dos
Vereadores de um projeto de lei que dispõe sobre a preservação do patrimônio da cidade e
cria o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (CENTRO DE APOIO..., 2015, p.1).
Este projeto de lei em tramitação, elaborado por equipes do IPPUC, da FCC e da Secretaria
Municipal de Urbanismo, regulamenta os instrumentos de inventário, tombamento, registro e
vigilância, além de estabelecer as regras de fiscalização e as penalidades para o não
cumprimento das diretrizes de preservação.
Alguns exemplos
Apesar dos problemas apontados e dos edifícios históricos demolidos nos últimos anos,
deve-se reconhecer que a instituição do decreto das Unidades de Interesse de Preservação
possibilitou a preservação de algumas centenas de imóveis ao longo das últimas quatro
décadas.
Embora bastante extensa, a lista das UIPs apresenta algumas ausências significativas.
Composta principalmente por edifícios que retratam a história da imigração europeia na
formação de Curitiba, marca da política de preservação do patrimônio das gestões Lerner
(FÉLIX, 2012, p.38), as casas de madeira, por exemplo, são praticamente ignoradas da
preservação municipal. Arquitetura típica construída no sistema de tábua e mata-junta
representou grande parte das habitações da cidade durante o ciclo de exploração das matas
de araucária do Paraná e hoje é representada por não mais do que meia dúzia de residências
(FERNANDES, 2013, p.1).
Os galpões remanescentes do primeiro surto de desenvolvimento industrial da cidade,
ancorado na prosperidade econômica da erva mate e da madeira de araucária sofrem ainda
mais com a ausência de representantes na lista de UIPs, uma vez que esse patrimônio ainda
enfrenta grandes dificuldades de reconhecimento e valorização pela comunidade (MANZIG;
PEREIRA, 2013, p.12).
Por conta dessa dificuldade de valorização, a preservação do patrimônio industrial em Curitiba
é frequentemente apresentada a partir dos mesmos exemplares, os quais são referenciados
como iniciativas pioneiras para subsidiar novas propostas e discussões quanto à preservação
e reutilização dos remanescentes industriais da cidade. É importante esclarecer que, embora
algumas dessas primeiras propostas de intervenção no patrimônio de Curitiba fossem
compreensíveis dentro do contexto das discussões preservacionistas das décadas de 1970 e
1980, essas intervenções não podem ser tratadas como isentas de crítica apenas por
apresentarem boas intenções.
O campo da preservação do patrimônio industrial amadureceu significativamente nas últimas
décadas, passando a incorporar prerrogativas metodológicas mais maduras que procuram
relacionar aspectos mais amplos na valorização dos conjuntos industriais. Referência deste
campo no país, Kühl (2009, p.269) defende que o reconhecimento de um bem cultural deve
considerar aspectos documentais, formais, memoriais e simbólicos de interesse para a
comunidade, e não preocupações setoriais imediatas. A autora critica ainda:
“Muitas das iniciativas recentes em bens de interesse histórico que se
revestem de uma aura de ação cultural quando, na verdade, o fato de
desnaturar um documento – semelhante ao de se apossar de um
manuscrito, único, arrancar trechos ou páginas para inserir uma nova
obra, por melhor que seja, é um ato contra a cultura.” (KÜHL, 2009,
p.269).
Precursoras mas não perfeitas, é necessário uma análise crítica dos objetivos e conquistas
desses projetos como iniciativas de preservação do patrimônio industrial curitibano de modo a
possibilitar o amadurecimento desse debate no contexto municipal. Dessa forma, são citadas
brevemente três intervenções no patrimônio fabril de Curitiba, de modo a exemplificar as
dificuldades e limitações da atual política de preservação, outrora valorizada e reconhecida
por sua inovação.
O primeiro caso trata-se do já mencionado Centro de Criatividade de Curitiba de 1973, que
ocupou as instalações da antiga fábrica de cola Boutin, no Parque São Lourenço. Anterior à
promulgação dos primeiros decretos de preservação do patrimônio arquitetônico municipal,
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não incidia sobre os galpões industriais uma legislação que condicionasse a intervenção no
imóvel segundo critérios de preservação, que foi “orientada pelo bom senso e criatividade do
arquiteto [Roberto Luiz Gandolfi], não se atendo a critérios oficiais de restauração do imóvel
considerado como patrimônio arquitetônico” (CASTRO, 2003, p.259).
Afirma-se que o conjunto de galpões de aspecto rústico e vernáculo era distribuído
aleatoriamente, atendendo apenas a intenções funcionais sem preocupações estéticas. Essa
leitura do complexo fabril justificou a descaracterização da volumetria dos blocos, com a
inserção de platibandas, ampliação de beirais e modificação no ritmo e formas das aberturas
dos edifícios. Além da chaminé de tijolos, foram preservados alguns tanques e caldeiras
metálicas que foram pintados de vermelho para combinar com os demais elementos metálicos
inseridos no conjunto para viabilizar o novo uso. Esses elementos, descontextualizados e
utilizados apenas com propósito compositivo, demonstram as intenções do projeto que se
apropriou dos vestígios históricos da antiga identidade fabril para ratificar a nova intervenção.
O Centro de Criatividade de Curitiba é um edifício com valor próprio e o uso intenso e
dinâmico do espaço desde sua inauguração evidencia a qualidade do projeto. Há que se notar
que, embora citado como exemplo pioneiro de preservação (FERNANDES, 2015, p.2), a
intervenção intencionalmente alterou as proporções e relações entre os edifícios de modo que
a percepção do conjunto como antigo espaço industrial é quase imperceptível (MANZIG;
PEREIRA, 2013, p.85). Mais uma reforma do que restauração, o que impressiona no caso do
Centro de Criatividade é a forma como a crítica arquitetônica avalia a intervenção:
“A validade da proposta de reutilização da antiga fábrica Boutin é
inquestionável, por quase trinta anos tem mantido em pleno
funcionamento suas atividades, atendendo a população com seu
notável centro de artes plásticas. A intervenção sobre os edifícios
antigos da fábrica é atualmente questionada, por fragilizar a
autenticidade do edifício histórico, mas a obra em seu conjunto é de um
valor inigualável, por inaugurar uma possibilidade de preservar antigas
fábricas” (CASTRO, 2003, p.263-264, grifo do autor).
De fato, inovadora no momento de sua idealização, a transformação do antigo conjunto
industrial não pode ser isenta de questionamentos para orientar futuras intervenções no
patrimônio industrial, devendo-se considerar ainda seu efetivo valor como iniciativa de
preservação.
Ainda mais crítico e polêmico é o caso da transformação da antiga Fundição Marumby –
Irmãos Mueller & Cia. em shopping center no Centro Cívico de Curitiba. Primeira oficina
mecânica e ferraria da cidade, fundada pelo imigrante suíço Gottlieb Mueller em 1878, a
fábrica cresceu e ampliou-se em fundição e metalúrgica, desempenhando importante papel
na industrialização do estado ao fornecer o maquinário para as serrarias e para os engenhos
de beneficiamento de erva mate. As diretrizes de planejamento urbano do município
desestimularam a continuidade das atividades produtivas na fábrica devido a sua localização
central (MANZIG; PEREIRA, 2013, p.45). Durante a década de 1970, o conjunto foi
desativado e permaneceu abandonado por alguns anos, aguardando nova destinação.
No início da década de 1980, durante o segundo mandato de Jaime Lerner na Prefeitura de
Curitiba, o urbanista apresentou, em parceria com Eduardo Ceneviva e Abraão Assad, um
projeto de reutilização dos edifícios da Fundição Mueller que preservava as fachadas e
coberturas das edificações e ocupava seus interiores com espaços de lazer e comércio. O
projeto das “Galerias Mueller” previa espaços abertos e diversos acessos das ruas para as
lojas, porém não recebeu apoio dos comerciantes da cidade na época e não se viabilizou
(CASTRO, 2003, p.270).
Um grupo de empreendedores demonstrou interesse na construção de um shopping Center
no local da antiga fábrica, porém o zoneamento da área previa que novas construções
deveriam apresentar um recuo de 10 metros. Com a inclusão do imóvel na lista de UIPs, sua
fachada original no alinhamento predial não poderia ser alterada, o que representou o
acréscimo de cerca de quatro mil metros quadrados à incorporação (FÉLIX, 2012, p.36-37).
O projeto proposto para o shopping Center se pautava pelos moldes norte-americanos, com
poucas entradas e muita área de circulação interna para disposição das lojas. Dessa forma,
as diversas aberturas do conjunto foram fechadas e as divisórias internas e edifícios menores
foram demolidos, mantendo-se apenas as fachadas externas do conjunto. Foi proposta uma
grande cobertura de fibrocimento em escama para unificar as diferentes modulações das
fachadas (Figura 3). As variações e dinâmicas das fachadas foram perdidas com a inserção
da nova cobertura desproporcional (CASTRO, 2003, p.272).
Figura 3 - Fundição Irmãos Mueller (1935) e atual Shopping Mueller (2014)
Fonte: Livro Azul da Cidade de Curityba, 1935.
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Citado como exemplo de requalificação um antigo edifício fabril para novos usos
(FERNANDES, 2010, p.2; idem, 2015, p.2), o Shopping Mueller claramente não tinha a
preservação do patrimônio industrial como premissa de projeto. A limitada preservação de
trechos das fachadas se perde em meio à mimetização das falsas aberturas e cimalhas, e à
inserção do grande volume que ocupa toda a quadra uniformemente.
O caso mais dramático e recente na preservação do patrimônio industrial de Curitiba, que
alcançou repercussão e provocou polêmicas entre a comunidade, certamente é a demolição
da antiga fábrica da Matte Leão, no bairro Rebouças.
A fábrica, fundada em 1901, transferiu-se em 1930 para o bairro do Rebouças, próximo à
estação ferroviária após um incêndio na antiga sede no Portão, onde funcionou até 2007,
quando a empresa foi vendida para a Coca Cola e o imóvel desocupado. Conjunto formado
por edifícios de tipologias híbridas com discreta influência art déco, (Figura 4) a fábrica foi um
dos principais centros de beneficiamento da erva mate do Estado, com distribuição para todo
o país (PINHERIO et al, 2011, p.47).
Figura 4 – Antiga fábrica da Matte Leão em demolição.
Fonte: Fernandes, 2011.
Com a venda do imóvel para a Igreja Universal do Reino de Deus, o destino das antigas
edificações foi comprometido. Como a fábrica não constava como Unidade de Interesse de
Preservação nos registros da Prefeitura, a demolição foi iminente, uma vez que a igreja não
tinha interesse na preservação. Apesar de manifestações contrárias à demolição por
ex-funcionários, jornalistas e pesquisadores da área (FERNANDES, 2010; idem, 2011), o
alvará de demolição não foi revogado e a memória do conjunto se perdeu (PINHERIO et al,
2011, p.77).
Reconhecendo as limitações da política de preservação do patrimônio de Curitiba é possível
propor novos avanços inovadores que possibilitem conquistas similares àquelas obtidas nas
décadas de 1970 e 1980. Para tanto, é necessário avaliar o sucesso das intervenções
possibilitadas pelos instrumentos vigentes a partir de análise crítica pautada em critérios
claros de preservação, e não apenas no sucesso final do empreendimento.
O patrimônio industrial, em particular, ainda carece de valorização pela comunidade. Novos
estudos de levantamento e inventário começam a ser desenvolvidos nos últimos anos, em
parte, estimulados pela perda da antiga fábrica da Matte Leão. Espera-se que, com o
desenvolvimento dessas políticas e com o avanço dos estudos, a memória fabril de Curitiba
possa ser preservada com maior sucesso.
Referências Bibliográficas
BITENCOURT, Ana P. M. de. Transferência do Direito de Construir para a conservação do
patrimônio natural e cultural: a experiência da cidade de Curitiba. In: Congresso Brasileiro
de Direito Urbanístico, 2004, Recife. IDBU, 2004.
CARVALHO, André de S. Urbanismo em Curitiba: Mudanças e transformações no pensar a
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2003. 329p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Universidade Federal do Rio Grande do
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