Ouro Preto como paisagem cultural: preservação da paisagem da mineração

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OURO PRETO COMO PAISAGEM CULTURAL: PRESERVAÇÃO DA PAISAGEM DA MINERAÇÃO Vieira, Liliane de C. Técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Resumo O presente artigo tem por objetivo discutir a paisagem da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, como paisagem cultural. Durante o século XVIII, os leitos de rios e morros circundantes ao núcleo urbano foram revolvidos e escavados para a extração de ouro. Esta atividade econômica viabilizou a consolidação e o desenvolvimento de Vila Rica. A transformação da paisagem pela atividade mineradora foi registrada pelos viajantes estrangeiros e pela iconografia da primeira metade do século XIX. Atualmente, testemunhos desta mineração ainda são encontrados nas encostas. A paisagem, em Ouro Preto, não só emoldura o núcleo urbano e a arquitetura barroca, como também foi palco da exploração aurífera no setecentos: a interação do homem com esta paisagem configurou uma paisagem cultural. Até então, poucos estudos foram realizados sobre esta paisagem transformada pela mineração, densamente ocupada por edificações irregulares a partir da segunda metade do século XX, e sua relação com o núcleo urbano. E há carência de medidas de preservação do que restou da intervenção do homem neste meio no século XVIII: patrimônio arqueológico e geológico de grande importância. A leitura de Ouro Preto como paisagem cultural não seria um caminho para pensarmos na reabilitação e preservação desta paisagem da mineração? Palavras-chave: Ouro Preto. Paisagem Cultural. Mineração.

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OURO PRETO COMO PAISAGEM CULTURAL: PRESERVAÇÃO DAPAISAGEM DA MINERAÇÃO

Vieira, Liliane de C.

Técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Doutoranda noPrograma de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade de São Paulo.

Resumo

O presente artigo tem por objetivo discutir a paisagem da cidade de Ouro Preto,Minas Gerais, como paisagem cultural. Durante o século XVIII, os leitos de riose morros circundantes ao núcleo urbano foram revolvidos e escavados para aextração de ouro. Esta atividade econômica viabilizou a consolidação e odesenvolvimento de Vila Rica. A transformação da paisagem pela atividademineradora foi registrada pelos viajantes estrangeiros e pela iconografia daprimeira metade do século XIX. Atualmente, testemunhos desta mineração ainda sãoencontrados nas encostas.

A paisagem, em Ouro Preto, não só emoldura o núcleo urbano e a arquiteturabarroca, como também foi palco da exploração aurífera no setecentos: a interaçãodo homem com esta paisagem configurou uma paisagem cultural. Até então, poucosestudos foram realizados sobre esta paisagem transformada pela mineração,densamente ocupada por edificações irregulares a partir da segunda metade doséculo XX, e sua relação com o núcleo urbano. E há carência de medidas depreservação do que restou da intervenção do homem neste meio no século XVIII:patrimônio arqueológico e geológico de grande importância. A leitura de OuroPreto como paisagem cultural não seria um caminho para pensarmos na reabilitaçãoe preservação desta paisagem da mineração?

Palavras-chave: Ouro Preto. Paisagem Cultural. Mineração.

1- INTRODUÇÃO

No final do século XVII, a descoberta e a exploração de riquezasminerais na região de Minas Gerais proporcionaram o surgimento devários arraiais e lugarejos. Em 1711, foram criadas as trêsprimeiras vilas desta região, sendo Vila Rica (atual Ouro Preto) asegunda a ser criada.

Durante um século, os leitos de rios e os morros circundantes aOuro Preto foram minerados, imprimindo nesta paisagem marcasprofundas, muitas das quais ainda perceptíveis. A atividademineradora foi responsável pelo surgimento, consolidação edesenvolvimento da vila. Esta atividade econômica gerou um núcleourbano notável, reconhecido mundialmente em função de seupatrimônio cultural. No entanto, atualmente, o centro histórico deOuro Preto convive com uma paisagem circundante desordenada eirregularmente ocupada, sítio de ruínas arqueológicas do séculoXVIII. Este trabalho pretende discutir a paisagem da mineraçãocomo paisagem cultural visando sua valorização e proteção.

2- O SURGIMENTO DE VILA RICA E A EXPLORAÇÃO AURÍFERA

As bandeiras paulistas, empreendidas no final do século XVII,revelaram uma riqueza mineral há muito tempo almejada pela CoroaPortuguesa. Capistrano de Abreu, em Capítulos da História Colonial(ABREU, 1907), no extenso capítulo dedicado ao sertão, afirmou quehá duvidas sobre quem fez os primeiros descobrimentos minerais naregião:

“Quem os descobriu primitivamente é impossível apurar, tanto secontradizem as versões; o fato ocorreu pouco depois de 1690.Segundo Antonil-Andreoni, um mulato de Curitiba encontrou noriacho chamado Tripuí uns granitos cor de aço, que vendeu emTaubaté a Miguel de Sousa por meia pataca a oitava; levados ao Rioreconheceu-se neles ouro finíssimo. Foi este o primeirodescoberto.

Seguiram-se o de Antônio Dias, a meia légua de Ouro Preto, o deJoão de Faria, o de Bueno e de Bento Rodrigues pouco maisdistantes, os do ribeirão do Carmo e do Ibupiranga, todos nascercanias de Ouro Preto e Mariana; parte da bacia do alto rio Doce

foi escavada, justificando o nome de minas gerais primeiramenteaplicado a este distrito.” (ABREU, 1907, p. 79)

A extração de ouro e pedras preciosas em Minas levou a umaocupação e consequente desenvolvimento de uma sociedade e de umaeconomia. Os arraiais surgiram no momento em que os pioneirosdeixavam de ser exploradores e sedentarizavam-se para se dedicar àexploração aurífera ou a atividades complementares como a criaçãode animais e plantação de roças.

No início do século XVIII, a região de Ouro Preto já era umimportante centro de comércio da Capitania e local de disputaentre paulistas e portugueses pela hegemonia na exploração dasriquezas minerais (Guerra dos Emboabas).

Em 1709, a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro foi desmembradada Capitania do Rio de Janeiro. Neste mesmo ano, o Rei ordenou aoentão governador Antônio de Albuquerque ações como a pacificaçãodas disputas entre paulistas e portugueses pelo direito àexploração aurífera, a organização de cobrança de impostos e acriação de três vilas naquela região.

Em 1711, a partir da junção dos arraiais do Ouro Preto e deAntônio Dias foi criada Vila Rica. Em 1713, ocorreu a divisão doterritório em três comarcas, sendo a de Vila Rica uma delas, comVila Rica servindo de cabeça da comarca. Em 1720, a Capitania deMinas Gerais foi separada da Capitania de São Paulo, tendo comocapital Vila Rica. Em 1823, Vila Rica foi elevada à cidade,passando a chamar-se Imperial Cidade do Ouro Preto. Nesta cidade,foi instalada a principal casa de fundição da Província.

Ouro Preto formou-se a partir da localização das catas de ouro, aolongo dos córregos e nos morros circundantes, onde os exploradoresconstruíram assentamentos provisórios, organizados em torno de umacapela provisória. A consolidação desta forma de organizaçãoinicial do espaço gerou os arraiais, a maioria instalada ao longode um caminho principal, conhecido como caminho tronco. Estesarraiais, ao desenvolverem-se, entrelaçaram-se definindo uma formaurbana até hoje perceptível na cidadei.

Inicialmente, os leitos dos rios foram explorados, pois neles oouro poderia ser facilmente encontrado. Posteriormente, o uso datécnica de extração a talho aberto possibilitou a exploração dasencostas. A disseminação desta técnica e a introdução dos serviçosde mina transformaram a Serra de Ouro Preto na principal zona demineração de Ouro Preto. Na primeira década do século XVIII, aregião conhecida como Morro do Ouro Podre ou Morro do Pascoal daSilva, hoje Morro da Queimada, destacou-se. A expressão Morro doPascoal da Silva demonstra a importância e o poder adquiridos porPascoal da Silva Guimarães durante as duas primeiras décadas doséculo XVIII na vila. Esta região passou a ser denominada Morro daQueimada após o incêndio de suas casas e dos participantes daSedição de 1720, decretado pelo Conde de Assumar.

Atualmente, vestígios de residências e serviços de mineração aindasão encontrados nas encostas: mundéus, galerias, bocas das antigasminas, sarilhos para ventilação. Parte destas ruínas integra oParque Arqueológico do Morro da Queimadaii, em processo de estudo esistematização. Vale mencionar que este parque foi idealizado noPlano Diretor Municipal, em 1996, mas sua implantação só teveinício em 2005.

Em outras regiões da Serra do Ouro Preto como Veloso, Piedade,Morro São João e Morro do Santana, tais vestígios também podem serencontrados. É comum, inclusive, edificações construídas sobreruínas de pedra ou edificações que aproveitaram material destasruínas para o embasamento das construções (FIGURAS 01 a 04). Háainda antigas minas sendo exploradas para a visitação turística,normalmente localizadas nos fundos dos lotes de edificações donúcleo histórico, sendo a mais conhecida a mina de Chico Rei, nobairro de Antônio Dias. Há outras, menos conhecidas, no bairro dePadre Faria.

Figura 01 – Exemplo de aproveitamento de material de ruínas para oembasamento das edificações no Morro do Santana, Ouro Preto.

Foto da autora, 2006.

Figura 02 – Ruínas de pedra no Morro do Santana, Ouro Preto.Foto da autora, 2006.

Figura 03 – Ruínas de pedra no Morro do Santana, Ouro Preto.

Foto da autora, 2006.

Figura 04 – Exemplo de boca de antiga mina na Piedade, Ouro Preto.Foto da autora, 2006.

3- OS VIAJANTES ESTRANGEIROS DO SÉCULO XIX

Durante a primeira metade do século XIX, a transformação dapaisagem de Ouro Preto pela atividade mineradora foi registradanos relatos de viajantes estrangeiros e na iconografia produzidapor eles. Esta visão, resultado já de um século de mineração naregião, nos revelou encostas escavadas, leitos de rios revolvidose um núcleo urbano já em processo de abandono.

Em viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, obotânico francês Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) chegou em OuroPreto em 1816. A descrição do núcleo urbano nos revelou umapaisagem circundante transformada pela mineração:

“Descendo sempre acabamos por chegar à parte baixa da cidade, e nosvimos em um vale assaz apertado rodeado por morros elevados. Umaparte das casas se estende sobre os que tínhamos à nossa direita; osà esquerda são áridos, quase a pique e sem habitações. Pelo vale aque descemos corre o Rio de Ouro Preto, pequeno curso, cujas águas,pouco abundantes, são sem cessar divididas e subdivididas pelosfaiscadores, e cujo leito, de um vermelho escuro, não apresenta maisque filetes de água que correm entre montes de seixos enegrecidos,resíduo das lavagens.” (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 129, grafiaoriginal)

E ainda:

“É defronte do lado esquerdo da casa do sr. d'Eschwege que estãosituados dois dos grupos de casas mais consideráveis. Reunidos pelabase, elevam-se, divergindo, pela encosta de dois morros que avançampelo valão do Rio de Ouro Preto, e deixam entre eles, em um planopouco menos saliente, um espaço triangular sem cultura e habitação,onde o terreno revolvido e despojado de vegetação deixa por toda aparte lobrigar vestígios aflitivos dos trabalhos dos mineiros.”iii

(SAINT-HILAIRE, 1938, p. 132, grafia original)

Saint-Hilaire visitou Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, eeste percurso possibilitou uma visão geral da cidade:

“Após sairmos da vila, galgamos as elevações que a rodeiam. Portodos os lados tínhamos sob os olhos os vestígios aflitivos daslavagens, vastas extensões de terra revolvida, e montes de cascalho;mas, ao mesmo tempo, dominávamos uma parte da cidade, e mais alémpercebíamos o vale em que corre o rio de Ouro Preto.” (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 142-143, grafia original)

Em viagem empreendida entre 1828 e 1829, entre o Rio de Janeiro eSão João Del Rei, o médico e capelão inglês Robert Walsh (1772-1852), ao passar por Ouro Preto, encontrou um núcleo urbano jábastante decadente com o esgotamento das jazidas minerais. Aofalar da primeira impressão da cidade, entrando pelo Passa Dez –início da cidade para quem chega, hoje, a partir de Belo Horizonte- ele escreveu:

“Nada poderia ser mais melancólico do que o decadente aspectoapresentado por aquela que em outros tempos tinha sido a cidade doouro. No começo do caminho de pedra jaziam os restos de um grandeprédio, com numerosos escritórios e principescos jardins mandadosfazer por algum visionário caçador de ouro; agora não passava de ummontão de ruínas.” (WALSH, 1985, p. 97)

Ao descrever Ouro Preto, Robert Walsh mencionou a existência deuma extensa planície arenosa rodeada de morros escarpados, ondedesaguavam todos os riachos que desciam dos morros. Nestaplanície, descrita por ele como no fundo de uma vasta cratera,ainda havia vestígio de mineração:

“O grande repositório de ouro eram as areias localizadas abaixo dacidade, no fundo da cratera. Ali, depois das chuvas, poderiam serencontrados imensos depósitos do precioso metal. (...) Os vestígiosdessas inundações auríferas ainda são visíveis, pois as margens de

todos os riachos que cortam o areal ainda estão cobertos por algoque parece areia preta mas que, ao examiná-lo mais de perto,verifiquei tratar-se de esmeril, ou ferro magnético, que sempreacompanha o ouro em pó e – conforme se sabe – era rejeitado elargado para trás quando os preciosos grãos eram recolhidos.”(WALSH, 1985, p. 100)

E ainda:

“Foi em plana estação chuvosa que a visitei. Esperava encontrar,como me haviam dito, a população inteira cavoucando o areal.Entretanto, vi ali apenas alguns escravos pertencentes a pessoas queainda se apegavam a hábitos antigos, ganhando umas poucas patacaspor dia com o seu insignificante comércio.” (WALSH, 1985, p. 101)

A situação acima descrita foi registrada em um desenho da Serra doItacolomi (FIGURA 05): no pé do morro, podemos observar algunsescravos trabalhando ainda na atividade mineradora.

Em seu relato sobre Ouro Preto, Robert Walsh resumiu o aspecto dacidade tecendo uma paisagem bastante ferida pelos trabalhos damineração:

“Na sua presente situação, porém, rodeada por áridas e pedregosasmontanhas, com suas encostas nuas mutiladas pela busca do ouro, nadarestando para se ver senão as desgraciosas pedreiras, no alto, e abarrenta planície lá em baixo – o aspecto da cidade é singularmentefeio e desagradável.” (WALSH, 1985, p. 99)

Figura 05 – “ITA COLUMÉ, or CHILD of STONE, as seem from the bed of theRiver of VILLA RICA”.

Fonte: WALSH, Robert. Notícias do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;São Paulo: Edusp, 1985. v.2.

Em viagem pelo Brasil entre 1850 e 1852, o naturalista alemão Dr.Hermann Burmeister (1807-1892) ao chegar a Ouro Preto, vindo dePassagem, distrito de Mariana, descreveu uma paisagem marcada pelaatividade mineradora:

“Percorrida mais de meia légua, chegamos à pequena aldeia doTaquaral, de aspecto ainda mais pobre que a da Passagem. Daí emdiante, os barrancos dos dois lados do caminho tornavam-se cada vezmais rochosos à medida que a estrada se aproximava da margem do rio.Em certos lugares, pudemos observar algumas cavidades artificiaisnas pedras, vestígios evidentes de antigas tentativas de exploraçãodo ouro.” (BURMEISTER, 1952, p. 197, grafia original)

Ao falar da Serra do Itacolomi, o Dr. Hermann Burmeister descreveusua formação geológica:

“As camadas assim enegrecidas aparecem, no Itacolumi, em vastasproporções, sendo geralmente ricas em ouro, o qual com tantaabundância aparece em tôdas as formações desta montanha. Devido àqualidade e às estranhas misturas que nêles se encontram, os pontosde acúmulo de ouro do Itacolumi têm nomes especiais.” (BURMEISTER,1952, p. 196, grafia original)

Há duas gravuras do pintor, desenhista e gravador alemão JohannMoritz Rugendas (1802-1858) que evocam a paisagem de Ouro Pretosendo minerada. Na primeira gravura (FIGURA 06), Rugendasregistrou a lavagem de ouro nas proximidades do Itacolomi. Nasegunda gravura (FIGURA 07), podemos observar, em primeiro plano,uma cena de garimpo e, ao fundo, a silhueta da cidade na paisagem.Sobre esta gravura, vale remarcar que no livro “Rugendas e oBrasil” (DIENER; COSTA, 2002) os autores colocaram que a cena dogarimpo, incluída pelo artista-viajante, apresenta o valor de umalembrança histórica do lugar que havia vivido seu auge décadasantes.

Figura 06 – “LAVAGE DU MINEIRAI D’OR, près de la montagne Itacolumi”.Fonte: DIENER, Pablo; COSTA, Maria de Fátima. Rugendas e o Brasil. São

Paulo: Editora Capivara Ltda., 2002. 376 p.

Figura 07 – “VILLA RICA”.Fonte: DIENER, Pablo; COSTA, Maria de Fátima. Rugendas e o Brasil. São

Paulo: Editora Capivara Ltda., 2002. 376 p.

Diante do exposto, não há dúvidas de que os relatos de viajantes ea iconografia do século XIX são importantes testemunhos datransformação da paisagem pelo homem através da atividademineradora. Embora este conjunto de documentos seja subjetivo,entendemos que a riqueza das descrições e análises destes relatos,

o uso de iconografia e de diferentes viajantes em períodosemelhante minimizam esta subjetividade e nos proporcionamaproximações mais reais da paisagem que queremos ler.

4- OS MARCOS DE PROTEÇÃO LEGAL DE OURO PRETO

Em 1933, Ouro Preto foi elevada à condição de Monumento Nacionalatravés do Decreto no 22.928 de 12 de julho de 1933, pelo chefe dogoverno provisório, Getúlio Vargas. Em 1938, Ouro Preto foitombada e inscrita no Livro de Belas Artes pelo Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Em 1980, OuroPreto passou a integrar a lista de patrimônio cultural dahumanidade da Organização das Nações Unidas para a educação, aciência e a cultura (UNESCO). Em 1986, o tombamento de Ouro Pretofoi re-ratificado pelo IPHAN, com as inscrições nos LivrosHistórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Em 1989, oIPHAN definiu o perímetro de tombamento da cidade de Ouro Preto,englobando não só o núcleo urbano setecentista, mas também todosos morros circundantes ao sítio histórico.

Dessa forma, se em um primeiro momento o conjunto urbano foivisualizado como obra de arte, mais recentemente esta visão foiampliada com a proteção da paisagem circundante. Esta visãoinicial foi gerada pelo estado de grande abandono em que seencontrava a cidade na época de sua redescoberta: o centrohistórico não era um organismo vivo e dinâmico. Com a ampliação doconceito de patrimônio e a possibilidade de novas abordagens, osmorros circundantes ao centro histórico também passaram a serprotegidos.

A respeito da chancela da UNESCO, vale acrescentar que o centrohistórico de Ouro Preto passou a integrar a lista de patrimôniocultural da humanidade em função de remeter à história dacolonização das Américas, de representar um importante centrohistórico originado no século XVIII, de ser um testemunho damineração do ouro, por possuir acervo das obras de Aleijadinho,além do estilo Barroco peculiar. Nota-se que a mineração auríferafoi um dos pontos considerados pela UNESCO ao definir oexcepcional valor universal desse sítio. No entanto, o perímetrode proteção definido pela UNESCO não abrangeu os morroscircundantes à cidade histórica, restringindo-se ao arruamentosetecentista.

A definição da área tombada pelo IPHAN só foi concluída em 1989 eincluiu os morros circundantes ao centro histórico (FIGURA 08). Em09 de setembro de 1988, o arquiteto Fernando Machado Lealencaminhou ao Diretor Regional do IPHAN, Dr. Cláudio AugustoMagalhães Alves, através da Circular Interna nº. 039/88, o parecertécnico relativo à delimitação de perímetro de tombamento de OuroPreto. Neste parecer, ele destacou a importância da preservaçãotanto do núcleo urbano, quanto da natureza que o emoldura, emfunção de sua significação histórica e importância para a proteçãodo meio-ambiente local regional:

“A paisagem circundante, notável por sua conformação geográfica egeológica – serras abruptas, picos, vales profundos -, registra,historicamente, ainda com significativos vestígios, os locais dadescoberta e exploração do ouro, bem como de outros materiais de queveio a se abastecer a população da então Vila Rica.” (CircularInterna nº. 039/88, p. 37)

E ainda:

“Hoje em processo de reocupação, diante da desordenada expansãourbana da cidade, guarda a Serra de Ouro Preto, para a história, aolado do testemunho simbólico, pelos fatos de que foi palco, adocumentação material contida no expressivo depósito arqueológicoexistente em seu solo (minas desativadas, vestígios de antigosserviços de mineração, ‘mondeos’ e canais para transporte de águas)e nos vestígios de suas ruínas arquitetônicas e primitivas capelas.”(Circular Interna nº. 039/88, p. 38)

Figura 08 – Mapa de perímetro de delimitação da área tombada pelo IPHANem Ouro Preto.

Fonte: Arquivo Noronha Santos, Rio de Janeiro.

Nesse parecer, o arquiteto Fernando Machado Leal ainda lembrou aimportância da Serra do Itacolomi na paisagem da cidade, desde asprimeiras expedições à região a referência geográfica para osexploradores, e na extração do quartzito:

“Diferentemente da Serra de Ouro Preto, a do Itacolomi, por suaconformação geológica, não abriga depósitos auríferos. Outra eimportante contribuição trouxe, no entanto, à vida social eartística da sociedade que o ouro construiu. Depositária de imensasjazidas de pedra, o quartzito – localmente denominado itacolomito -,abasteceu Vila Rica, em seu período áureo, da pedra necessária parao trabalho da cantaria de suas mais expressivas edificações,principalmente religiosas, cuja importância artística as perpetuou enotabilizou internacionalmente. Vestígios dessas antigas mineraçõesregistram hoje o trabalho complexo de extração e corte dessaspedras.” (Circular Interna nº. 039/88, p. 38)

Por fim, vale acrescentar que já na década de 1960, o IPHANsolicitou à UNESCO a vinda de missões técnicas destinadas aavaliar as políticas de preservação praticadas no país. Em 1968, oarquiteto português Alfredo Viana de Lima elaborou para Ouro Pretoproposições para a proteção da paisagem, a restauração dasedificações e da estrutura urbana da cidade, destacando osproblemas geotécnicos da cidade. Infelizmente, na época, estaspropostas não tiveram repercussão nas políticas preservacionistaspara a cidade.

5- OURO PRETO COMO PAISAGEM CULTURALEm 30 de abril de 2009, o IPHAN publicou a Portaria no. 127 queestabeleceu a chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Estedocumento apresenta a seguinte definição para a paisagem culturalbrasileira:

“Art. 1o. Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar doterritório nacional, representativa do processo de interação dohomem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humanaimprimiram marcas ou atribuíram valores.” (MINISTÉRIO DA CULTURA,Artigo 1)

Nota-se que essa portaria apresenta suas motivações no corpo dotexto, das quais destacamos: o risco que a expansão urbanarepresenta para as paisagens urbanas e rurais; o reconhecimentodas paisagens culturais com a finalidade de preservação dopatrimônio; a necessidade de valorização da relação harmônica dohomem com a natureza. Essa portaria ainda sugere a adoção de umplano de gestão para a paisagem cultural reconhecida e afirma anecessidade do estabelecimento de um pacto entre poder público,sociedade civil e iniciativa privada, visando sua gestãocompartilhada.

Ouro Preto foi criada a partir da aglomeração de mineradores ehoje apresenta um patrimônio geológico e mineiro de grandeimportância concentrado nos morros circundantes ao núcleosetecentista. No século XVIII, a vila desenvolveu-se integrada coma natureza e dela dependente. O esgotamento das jazidas mineraislevou à decadência do núcleo urbano e ao abandono da estruturacriada para a extração de ouro, mas estas marcas ficaram impressasna paisagem.

Ao longo da Serra do Ouro Preto - Veloso, Piedade, Morro São João,Morro do Santana, Morro da Queimada - encontramos testemunhosdesse período da história da mineração brasileira. Curiosamente,os viajantes do século XIX não mencionaram especificamente o Morroda Queimada como local de exploração de ouro. No entanto, é nestelocal onde encontramos maior concentração de registros daexploração do ouro no século XVIII. Outro aspecto interessante dorelato dos viajantes estrangeiros é que as áreas por elesindicadas como muito íngremes, não ocupadas e utilizadas para amineração, estão hoje totalmente urbanizadas.

Os marcos de proteção legal desenvolvidos para Ouro Preto, aolongo do século XX, sempre mencionaram a importância dapreservação da paisagem da mineração. No entanto, medidas efetivasnão acompanharam estas sugestões, resultando apenas na proteção doIPHAN e na consolidação do Parque Arqueológico do Morro daQueimada.

Dessa forma, se a paisagem circundante ao centro histórico foipalco da exploração aurífera no século XVIII, se a atividademineradora motivou a transformação da paisagem pelo homem e se

esta interação agregou valor a esta paisagem, deixando marcas,concluímos que se trata de uma paisagem cultural. No entanto, ascicatrizes da mineração – ruínas arqueológicas – convivem com aocupação desordenada dos morros circundantes ao núcleo histórico.Até o presente momento, a paisagem da mineração foi poucoconsiderada nas políticas de preservação; considerou-seprioritariamente o núcleo urbano setecentista. Sendo esta paisagemindissociável do centro histórico, a leitura de Ouro Preto comopaisagem cultural poderia ser um caminho para pensarmos nareabilitação, valorização e preservação desta paisagem damineração.

6- CONCLUSÃO

Em Ouro Preto, a paisagem circundante ao núcleo urbano emoldura osítio histórico originado no século XVIII e representa otestemunho de um século de exploração aurífera: esta atividadeeconômica viabilizou a consolidação e o desenvolvimento de VilaRica. A interação que o homem teve com esta natureza configura umapaisagem cultural, densamente ocupada por edificações irregularesa partir da segunda metade do século XX. Esta paisagemtransformada pela mineração carece de medidas de preservação,valorização e reabilitação e a leitura de Ouro Preto como paisagemcultural é uma forma de alavancar este processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, João Capistrano de. Capítulos da História Colonial (1500-1800).

1907.

BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio deJaneiro e Minas Gerais visando especialmente a história natural dosdistritos auri-diamantíferos. São Paulo: Livraria Martins Editora S. A.,1952.

DIENER, Pablo; COSTA, Maria de Fátima. Rugendas e o Brasil. São Paulo:Editora Capivara Ltda., 2002. 376 p.

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e MinasGerais. v. 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento -residências. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956.

WALSH, Robert. Notícias do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; SãoPaulo: Edusp, 1985. v.2.

LEGISLAÇÃO

MINISTÉRIO DA CULTURA. Portaria nº. 127, de 30 de abril de 2009.

FONTES PRIMÁRIAS

Arquivo Noronha Santos, Rio de Janeiro:

Circular Interna nº. 039/88, ao Diretor Regional do IPHAN, Dr. Cláudio Augusto Magalhães Alves, do arquiteto Fernando Machado Leal, em 09/09/1988.

Mapa de perímetro de delimitação da área tombada pelo IPHAN em Ouro Preto.

ENDEREÇO ELETRÔNICO

http://morrodaqueimada.fiocruz.br.

i Para informações complementares, ver: VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica:formação e desenvolvimento - residências. Rio de Janeiro: Instituto Nacional doLivro, 1956.

ii Para informações complementares, sugerimos acessar:http://morrodaqueimada.fiocruz.br.

iii Nota-se que, em Ouro Preto, Saint-Hilaire hospedou-se na casa do Barãod'Eschwege.