Ideias e Movimentos: um debate sobre a Justiça Eleitoral no Brasil
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IDÉIAS E MOVIMENTOS:
UM DEBATE SOBRE A JUSTIÇA ELEITORAL NO BRASIL
Gustavo Silveira Siqueira1
João Andrade Neto2
“Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais”
(João Bosco e Aldir Blanc)
RESUMO O presente artigo pretende discutir a criação da Justiça Eleitoral brasileira. Por meio do diálogo com as ciências humanas e sociais, objetiva-se demonstrar que a instituição desse ramo judiciário no Brasil respondeu a demandas sociais específicas e pretendeu concretizar valores políticos reconhecidos. A despeito de a teoria majoritária reduzir o fenômeno a um único ato, como se resultasse de uma ação governamental descontextualizada, propõe-se compreendê-lo como um processo histórico de longa duração que se iniciou com as insatisfações da Primeira República e culminou com a Constituição de 1934. Para tanto, abordar-se-ão, interdisciplinariamente, tanto os movimentos sociais e políticos que impulsionaram a criação da justiça na década de 1930, quanto os ideais jurídico-políticos que permearam a criação do sistema. Assim, em um primeiro momento, demonstra-se que a pressão de diversos segmentos sociais e políticos contrários à Revolução de 1930 fomentou a adoção de um novo modelo de controle eleitoral, oponível ao
������������������������������������������������������������1 Doutorando em Direito no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na Linha de Pesquisa “Direito, Razaõ e História”; Mestre em Direito no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na Linha de Pesquisa “Poder e Cidadania no Estado Democrático de Direito. Bolsista da CAPES. 2 Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na Linha de Pesquisa “Poder e Cidadania no Estado Democrático de Direito”; analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG).
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sistema da Primeira República. Em um segundo momento, reconhecem-se os princípios que subsistem aos dois esquemas de governança das eleições e discutem-se os impactos na moralidade política da criação da Justiça Eleitoral. Deve-se, assim, conseguir estabelecer uma relação entre os movimentos sociais e políticos nacionais e a história das idéias político-jurídicas. Palavras-chave: Justiça Eleitoral, História dos Movimentos Sociais, História das Idéias Políticas; Electoral Justice, History of the Brazilian Social Movements, History of the Political Ideias. SUMÁRIO 1 Introdução; 2 A Primeira República (1889-1930): A democracia dos homens bons; 3 Movimentos pela mudança; 4 Ficções funcionalmente úteis; 5 Sistemas de legitimação das eleições; 6 Um princípio fundamental: a igualdade de chances de obter maioria; 7 O papel da neutralidade judiciária; 8 Conclusões; 9 Referências Bibliográficas. 1 Introdução
Comumente, concebe-se a Justiça Eleitoral brasileira como consequência de
um ato praticado por Getúlio Vargas, em 1932. O então Presidente, em 24 de
fevereiro daquele ano, expediu o Decreto n.º 21.076, que instituía o Código Eleitoral.
A norma do governo provisório, dotada de força de lei, decretou a criação de um
corpo judiciário especializado, com funções contenciosas e administrativas. Eram
órgãos colegiados da instituição o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), localizado no
Rio de Janeiro (na capital da República), os tribunais Regionais Eleitorais (TREs),
cada um na capital de um estado, no Distrito Federal e na sede do Território do
Acre3.
������������������������������������������������������������3 BRASIL. Decreto n. 21.076, de 24 fev. 1932. Disponível em: <https://legislacao.planalto.gov.br/LEGISLA/Legislacao.nsf/fraWeb?OpenFrameSet&Frame=frmWeb2&Src=%2FLEGISLA%2FLegislacao.nsf%2FviwTodos%2Ff92cef67cceeb0a1032569fa0054648
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A decisão de Vargas operou uma significativa mudança na organização
política do País. O sistema de controle das eleições até então adotado atribuía aos
órgãos do Poder Legislativo a competência para verificação dos poderes dos
detentores de mandato eletivo. Segundo a versão histórica tradicional, o Chefe de
Estado teria, sozinho, trazido tais inovações ao modelo eleitoral do Brasil,
modificando-o substancialmente.
O presente artigo percorre a mesma história, mas pretende demonstrar que
a criação da Justiça Eleitoral não pode ser reduzida a uma efeméride, a um ato
isolado, sem ligações com o contexto político circundante. Antes, constitui o
resultado de um processo de longa duração. A instituição desse ramo judiciário
especializado e a consequente alteração do sistema eleitoral vigente até 1932 são
reflexos de movimentações políticas e sociais anteriores ao governo Vargas. A
positivação do controle judicial das eleições naquele mesmo ano atendeu a anseios de
diversos segmentos sociais e não resulta simplesmente uma auspiciosa concessão do
Presidente da República.
Para alcançar o objetivo que propõe, este texto percorrerá um esquecido
caminho. Analisará o mecanismo eleitoral da Primeira República, para demonstrar de
onde provinham as insatisfações. Identificará os diversos setores que se levantavam
contra as alegadas distorções desse sistema. Exporá as mudanças trazidas pela
decretação do Código Eleitoral de 1932. Por fim, dedicar-se-á aos impactos de tal
mudança no pensamento político nacional. Mais especificamente, apontará os valores
que se pretendiam concretizar com a adoção de um modelo judiciário de controle da
legitimidade das eleições.
�������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������d%3FOpenDocument%26Highlight%3D1%2Cc%25C3%25B3digo%2520eleitoral%255D%26AutoFramed>. Acesso em: 27 mai. 2010.
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2 O Sistema eleitoral da Primeira República (1889-1930): A democracia dos
homens bons
Não é estranha às ciências sociais aplicadas a ideia de que os sistemas
políticos mantêm-se (pelo menos em parte) graças a ficções funcionalmente
necessárias, imagens socialmente difundidas e estimuladas pelo próprio sistema
acerca de si. Pois a manutenção das estruturas políticas exige ao menos a aparência
de legitimidade que torna as decisões institucionais toleráveis perante os membros da
comunidade. Como um véu, o disfarce de normalidade cobre a percepção coletiva
acerca das relações políticas e assim satisfaz as expectativas de utilidade ou justiça. As
pessoas convencem-se de que a organização a que pertencem é boa, justa ou útil, sem
problematizar o pano de fundo institucional. Com os sistemas eleitorais, não é
diferente.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1891, no seu art. 70,
proibia o alistamento como eleitores de mendigos e analfabetos:
Art. 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. § 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados: 1º) os mendigos; 2º) os analfabetos; [...].4
Acerca de tal proibição, José Murilo de Carvalho comenta:
A exclusão dos analfabetos pela Constituição republicana era particularmente discriminatória, pois ao mesmo tempo que se retirava a obrigação do governo de fornecer instituição primária,
������������������������������������������������������������4 BRASIL. Constituições Brasileiras: 1891. Volume II. Brasília: Senado Federal, Ministério da Ciência e Tecnologia, Centros de Estudos Estratégicos, 2001.
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que constava do texto imperial, exigia-se para cidadania política uma qualidade que só o direito social da educação poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se este direito. Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrática e resistente a esforços de democratização.5
O valor atribuído à representação dependia da imagem anterior da
racionalidade do eleitoral. Tal era a ficção: a eleição era boa, pois apenas os homens
bons votavam! Os “homens bons”, contudo, reduziam-se aos alfabetizados, que,
embora numericamente inexpressivos, detinham autorização para decidir em nome
de toda a coletividade. A organização política da época, “Ao exigir dos eleitores saber
ler e escrever, reduziu o eleitorado, que era de 10% da população, a menos de 1%.”6
Tal restrição se iniciara no final do Império, quando os analfabetos foram proibidos
de votar e ser votados. A relação entre alfabetização e influência econômica é nítida.
“Em 1881, a Câmara dos Deputados aprovou a lei que introduzia o voto direto,
eliminando o primeiro turno das eleições. [...] Ao mesmo tempo, a lei passava para
200 mil-réis a exigência de renda, proibia o voto dos analfabetos e tornava o voto
facultativo.”7 Ela contrastava, porém, com outras características do sistema eleitoral.
A exclusão dos analfabetos implicou o alijamento de parte significativa do
potencial eleitorado, de modo que, na eleição de 1894, apenas 2,2% da população
votou.8 Os requisitos de alistamento eleitoral eram estabelecidos de modo a permitir
que somente uma pequena fração da comunidade participasse. Apenas uma ficção,
como a da racionalidade das decisões dos homens bons, poderia sustentar um
sistema eleitoral tão pouco participativo.
������������������������������������������������������������5 CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 45. 6 CARVALHO, José Murilo. Pontos e contrapontos: escritos de história e política. 2. reimp. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 45. 7 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008, p. 38. 8 CARVALHO, 2008, p. 40
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A descentralização promovida pela Constituição de 1891 deu mais poder
aos governadores, mas facilitou a fortificação de um mecanismo de influência em um
país majoritariamente agrário: o coronelismo. Segundo José Murilo de Carvalho,
O coronelismo é, então, um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipotecava seu apoio ao governador, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao presidente da República em troca de reconhecimento por parte deste de seu domínio no Estado.9
Deve-se observar que, a despeito da ligação contextual estabelecida entre o
coronelismo e a restrição à participação popular nos pleitos, o apelo à força dos
coronéis implicava a intervenção de uma força política externa ao procedimento
eleitoral, para garanti-lo. Sinalizava, portanto, que o processo das eleições não era em
si suficiente para legitimar os resultados por meio dele obtidos.
O voto dos homens bons era influenciado pelo coronel, que sobre eles fazia
pressão e ameaças. Mas o próprio sistema facilitava a atuação desses coronéis: “[...]
não havia eleição limpa [...]” na Primeira República, o voto podia ser “[...] fraudado
na hora de ser lançado na urna, na hora de ser apurado, ou na hora do
reconhecimento do eleito.”10 O processo eleitoral, com o voto aberto, facilitava a
coação externa. Ademais, a ausência de funcionários isentos aptos a conduzir os
procedimentos facilitava a alteração das atas eleitorais, a inclusão de mortos entre os
votantes e a atuação de “fósforos” – pessoas pagas para votar no lugar de vivos ou
������������������������������������������������������������9 CARVALHO, 2005, p. 130-152. 10 CARVALHO, 2008, p. 42.
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mortos – e capangas que pressionavam, espancavam e prendiam a mando dos
coronéis.11
Por outro lado, o serviço público na Primeira República ajustou-se à política clientelista. Salvo raras exceções, não existia o concurso, e os quadros especializados se restringiam a uma pequena elite, a República herda a tradição patrimonialista do Império e do Estado português. Ainda cabia ao chefe escolher os seus funcionários e a preocupação da elite era manter-se perto do governo para o usufruto das benesses. Os pedidos de favores e empregos eram comuns nos gabinetes dos Ministros.12
Não é exagero concluir que o sistema eleitoral na República Velha não
apenas convivia com as fraudes, mas em grande medida as facilitava. Além da
violência e da manipulação, vale constar que não havia exigência de filiação
partidária, inexistia cadastro dos candidatos, e as cédulas de votação não eram
oficiais.13
A República Velha (1889-1930) trazia em seu bojo – entre outros vícios, certamente – um pelo menos que, interessando de perto às instituições judiciárias, de alguma forma contribuiu para apressar-lhe o fim: a negação da verdade eleitoral, a ausência de lisura dos pleitos políticos – que decorriam, não apenas da fragrante violação do sigilo do voto, do acabrestamento do eleitorado inerme, mas por igual alijar-se o Poder Judiciário – na verdade o mais indicado, por isso que eqüidistante dos conflitos e das paixões partidárias – das instâncias mais decisivas do processo eleitoral.14
������������������������������������������������������������11 Interessante perceber que o artigo 166 do Código Penal de 1890 já tipificava como crime a tentativa de compra de votos em qualquer eleição. A ineficácia dessa regra penal ilustra mais um caso de descompasso entre o Direito e a realidade que se instalava no Brasil.�12 CARVALHO, José Murilo. Os bestializados[...] Ibidem, p. 65. 13 CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito Geral e Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 424. 14 NIQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência: II – República. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1973, p. 63.
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Segundo Vítor Nunes Leal15, uma grave fragilidade do sistema de verificação
dos poderes decorria das funções atribuídas à mesa eleitoral, instituída pelo Decreto
n.º 511, de 23 de junho de 1890, conhecido como Regulamento Alvim. Além do fato
de competir ao presidente de cada câmara legislativa a nomeação de todos os
membros da mesa apuradora – nas hipóteses em que ele não a presidia –, causava
suspeita a prática de, uma vez lavrada a ata de apuração, serem os votos queimados,
sem possibilidade de recontagem:
[...] em cada distrito, compunha-se de cinco membros. No distrito da sede do Município, era presidida pelo presidente da câmara, que designava os quatro mesários, sendo dois vereadores e dois eleitores. Nos demais distritos, todos os membros eram nomeados pelo presidente da câmara. [...] Só podiam os eleitores da seção suscitar ou discutir questões quando a mesa o consentisse. [...] A mesa eleitoral é que apurava os votos e lavrava a ata respectiva, queimando, em seguida as cédulas [...]. As câmaras municipais do Distrito federal e das capitais dos Estados procediam à apuração final, à vista das cópias autênticas das atas.16
Semelhante é a opinião de Pontes de Miranda17, para quem
O Brasil teve e ainda continua a ter o mal de ainda não ter tido democracia. O Império não foi democrático, como se precisava que fôsse [sic]. As eleições, pela insignificância da camada que sabia ler e a inconsciência, a subserviência, a inércia moral e intelectual dessa, não tinham significado real de democracia. Tão-pouco, a República, de 1889 a 1930. Pregavam-se princípios democráticos sem que efetivamente se quisesse praticar
������������������������������������������������������������15 LEAL, Vítor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o Município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro, 1948. 16 LEAL, Ibidem, p. 64. 17 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1946. vol. II, art. 37-128. Rio de Janeiro: Henrique Cahen, 1947.
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democracia. [...] Era a evidência de que não havia eleições verdadeiras.18
A ficção racionalista de que o povo não podia votar, ou que não o sabia
fazer, ia aos poucos cedendo, caindo diante da força da realidade.
3. Movimentos pela mudança
Alguns historiadores acreditam que não existiram movimentos populares
contrários ao sistema eleitoral, ou que exigissem maior participação popular nele.
Carvalho19, por exemplo, afirma que, “Mas, apesar de todas as leis que restringiam o
direito do voto e de todas as práticas que deturpavam o voto dado, não houve no
Brasil, até 1930, movimentos populares exigindo maior participação eleitoral.”
Neste trabalho, porém, tenta-se demonstrar o contrário. O objetivo é
realizar uma pequena reconstrução da história brasileira, virar o foco, ressaltar os
pequenos eventos que contribuíram para o desencadeamento do feito (nesse caso, as
alterações eleitorais de 1932) e não focar a narrativa apenas nos grande feitos, nos
grandes heróis. O objetivo é analisar as micronarrativas que contribuíram para o
desencadeamento do evento e são fundamentais para sua compreensão. Questiona-se
o discurso único, dominador e vencedor. Assim, pretende-se demonstrar como os
ideais de alteração do sistema eleitoral já podem ser percebidos nos movimentos
anteriores a ela, explorando-se aqui as tensões presentes nas práticas cotidianas.20
������������������������������������������������������������18 PONTES DE MIRANDA, 1947, p. 296. 19 CARVALHO, 2008, p. 42: 20 CATTONI, Marcelo. Democracia sem espera e processo de constitucionalização. In: CATTONI, Marcelo e MACHADO, Felipe (orgs.) Constituição e processo: a resposta do constitucionalismo à banalização do terror. Belo Horizonte, Del Rey, 2009, p. 375.�
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As movimentações contrárias ao sistema eleitoral na Primeira República
podem ser divididas em três focos, que se entrelaçam e comunicam.
A classe média urbana, especialmente na década de 20, já mostrava sua
insatisfação com o sistema eleitoral. O desejo de um governo que cumprisse as leis e
a Constituição e a transformação da República oligárquica em uma República liberal
eram idéias ventiladas nas grandes cidades: “[...] falava-se de reforma social, mas a
maior esperança era depositada na educação do povo, no voto secreto e na criação de
uma justiça eleitoral.”21 Se as ideias podiam ser reconhecidas é que elas existiam. Ou
seja, se a criação de uma Justiça Eleitoral e o questionamento do processo eleitoral já
existiam, isso significa que a sociedade já tinha consciência e questionavam suas
implantações.
As próprias elites questionavam o seu sistema eleitoral. A candidatura de
Rui Barbosa, que se opôs ao poder de Epitácio Pessoa, e o descontentamento gaúcho
nas eleições que elegeram Arthur Bernardes demonstram que o sistema oligárquico,
manipulável e pautado nos homens bons já não se sustentava para os próprios
indivíduos que o sistema favorecia. A insatisfação também provinha daqueles que se
beneficiavam do sistema e/ou lhe utilizavam as engrenagens.
Mas não apenas deles. O movimento tenentista, fortificado e mitificado na
Coluna Prestes denunciava as mazelas da República e lutava pelo restabelecimento
do Estado de Direito e das garantias constitucionais.22 Uma das suas denúncias era
contra um sistema eleitoral corrupto, fraudulento, que impunha à população
governantes eleitos que dividiam o País em feudos.23 Os movimentos grevistas
pressionavam o Estado e os patrões. Embora o fim imediato fosse a conquista de
direitos e garantias trabalhistas, a insatisfação com o governo Republicado crescia em ������������������������������������������������������������21 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed. São Paulo: EDUSP, 2008, p. 305. 22 MEIRELLES, Domingos. As noites das grandes fogueiras: uma história sobre da Coluna Prestes. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 95.�23 FAUSTO, 2008, p. 314.
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diversidade e exigências. Desse modo, vários movimentos aceleraram a ruptura das
estruturas políticas da Primeira República. Além dos tenentes e dos grevistas, podem-
se citar Canudos e a Revolta da Chibata. Todos pareciam denunciar que a República
e as diversas ficções que a mantinham haviam-se degenerado em farsa.
Os jornais da época denunciavam: “[...] o exercício da soberania popular é
uma fantasia e ninguém a toma a sério.”24 A população não votava. Fica claro, nesse
sentido, que existia uma consciência e uma movimentação contra a ficção que
sustentava o sistema eleitoral da Primeira República. Os diversos seguimentos sociais
denunciavam que esse sistema deveria ser mudado. As alterações positivadas no
governo Vargas atendem às sociais que já existiam. Não ocorre a doação ao povo de
um novo sistema. O que há é o reconhecimento dos anseios de diversos setores da
sociedade.
Acreditar que a Justiça Eleitoral e o Código Eleitoral foram concessões
feitas pelo Governo Vargas pelo simples fato de o Presidente positivar o Decreto nº
21.076, de 24 de Fevereiro de 1932 (Código Eleitoral), é negar valor às diversas
narrativas e ações que antecederam o evento. Narrativas importantes que forçaram a
positivação de normas eleitorais ainda com o Congresso Nacional fechado.
O sistema eleitoral da Primeira República se revelou incapaz de manter a
aparência de conformidade da organização política com princípios básicos, como o
da periodicidade da renovação do poder. As primeiras décadas do século XX
assistiram à degeneração farsesca das ficções inicialmente estabelecidas para
manutenção do status quo. O processo levou ao comprometimento de toda a estrutura
política. O sistema eleitoral ruiu junto com a imagem que o sustentava e foi
substituído logo no inicio do novo governo provisório. A substituição foi reflexo da
pressão por mudanças de diversos segmentos sociais – e, nesses seguimentos sociais,
������������������������������������������������������������24 CARVALHO, 2008, p. 42.
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pode-se incluir o próprio governo. Ou seja, exposta a farsa que subjazia ao
mecanismo eleitoral, o modelo se tornou insustentável. E tal insustentabilidade foi
acusada pelos mais diversos – e, até mesmo, contraditórios – ramos da sociedade.
4 Ficções funcionalmente úteis
Para alguns teóricos, na Modernidade, a justificação das estruturas estatais
de poder decorre de procedimentos institucionalizados, como as eleições25. A função
desses processos é imunizar as decisões contra as inevitáveis frustrações. Por meio da
operação de “[...] uma ilusão funcionalmente necessária [...]”26, contorna-se o
problema da incerteza em relação “[...] a qual decisão ocorrerá pela certeza de que
uma decisão ocorrerá [...]”27. Nesse sentido, cabe ao Direito gerar ilusões
permanentes.
As ilusões operam, no entanto, em níveis. No mais imediato, o interessado
se convence da confiabilidade do sistema como instrumento de solução diferida das
necessidades, cuja satisfação direta se adia. Os indivíduos aceitam substituí-la por
expectativas. O segundo nível, mediato, tem causa na notável função simbólico-
expressiva dos procedimentos. Eles garantem às decisões a aparência de continuidade
e identidade de forma. Independentemente do resultado concreto de cada processo, a
frustração decorrente da decisão é aliviada pelo reconhecimento de que a condução
se deu de forma correta.28
������������������������������������������������������������25 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. 26 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Apresentação. In: LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Universidade de Brasília, 1980, p. 4. 27 FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 5. 28 LUHMANN, Ibidem.
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Cada uma dessas ilusões é provocada por aparências que o Direito projeta
sobre si. O sistema mantém e até mesmo estimula duas importantes ficções
operacionais: a de que o processo jurídico constitui o próprio processo de decisão, e
a de que a finalidade precípua de cada procedimento é declarada e publicamente
reconhecida.29
No primeiro caso, nenhuma das espécies de procedimento jurídico – entre
elas, os eletivos e judiciais – regulamenta o próprio estabelecimento da decisão ou os
processos mentais pelos quais se selecionam e eliminam possibilidades. No máximo,
servem à apresentação do resultado. Assim é que a verdadeira decisão obtida pelas
eleições permanece a consequência de opões individuais de cada um dos leitores, que
nem mesmo são obrigados a expô-las ou justificá-las. Ocorre que, ainda assim, a
ficção da coincidência entre o processo jurídico e o de decisão se mantém – em
muito, estimulada pelo modo como se estruturam os procedimentos. Essa ficção não
degenera necessariamente em farsa. Na maioria das vezes, apenas contribui para a
permanência de um sentimento difuso de confiança no sistema político. Em casos
específicos, entretanto, pode tornar-se nociva.30
No segundo caso, os procedimentos, embora desempenhem funções
específicas, possuem outras finalidades que não as declaradas ou reconhecidas de
imediato. Perseguem, simultaneamente, objetivos de natureza dúplice. Alguns,
instrumentais, decorrem dos meios para alcançar a decisão mais adequada – nas
eleições, o preenchimento de cargos executivos e legislativos. Outras finalidades são,
contudo, expressivas. Pois qualquer procedimento implica uma distinção temporal
entre a demanda presente e a decisão futura. Na medida em que a satisfação das
necessidades é adiada, faz-se necessário motivar as partes e justificar os esforços até
������������������������������������������������������������29 LUHMANN, Ibidem. 30 LUHMANN, Ibidem.
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que os efeitos pretendidos sejam alcançados. Assim é que os procedimentos eletivos
adquirem o sentido simbólico de manifestação de acordo político ou recusa.31
O sentido simbólico de cada procedimento se vincula intrinsecamente à
natureza da decisão que se apresenta como resultado dele. As eleições constituem
procedimentos para uma decisão não programada, que decorre diretamente da esfera
de disputa político-partidária. Elas dependem da elaboração de programas capazes de
alcançar maioria e da formação de acordos com vistas à obtenção de apoio. É
forçoso reconhecer, portanto, que o processo de eleições não se presta a deixar que o
povo decida questões políticas, nem que expresse interesses concretos. Permite
somente a distribuição de “[...] lugares e competências e não, simultaneamente, a
satisfação das necessidades.”32 Restringe-se ao preenchimento de papéis, “[...] à
entrega dos votos para um candidato ou uma lista e à expressão do apoio político
numa forma altamente generalizada.”33
É natural haver discrepância entre o objetivo oficial e a organização
institucional eletiva. A disputa se resolve numa votação precedida de campanhas de
convencimento ao eleitorado que obedecem a regras pré-estabelecidas. A
participação formal do eleitor se resume a marcar um xis na cédula corresponde – ou,
no caso brasileiro atual, a teclar alguns números num painel eletrônico. “Permanece
obscura a forma como aquele objetivo pode ser assim atingido.”34 A construção
causal só se completa com conjecturas adicionais, como a da vontade geral ou a da
racionalidade da decisão do eleitor isolado. Ambas as hipóteses são, todavia, ficções,
empiricamente insustentáveis. A pressuposição de uma vontade geral já existente,
mas não expressa, leva facilmente ao sacrifício dos procedimentos em prol da
aclamação das multidões. Já a hipótese do eleitor isolado, bem-informado e ������������������������������������������������������������31 LUHMANN, Ibidem. 32 LUHMANN, Ibidem, p. 137. 33 LUHMANN, Ibidem, p. 137. 34 LUHMANN, Ibidem, p. 19.
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puramente racional, se levada a extremo, implica, como ocorrido na Primeira
República, a não admissão de todos os demais membros da comunidade “[...] que
não satisfaçam os requisitos de informação completa e capacidade racional de
decisão.”35
Para que a ficção eleitoral funcionalmente útil não degenere em farsa, faz-se
necessário que três princípios que garantem a igualdade de participação do eleitorado
sejam mantidos: sufrágio universal, igual valor do voto e segredo da votação.
Conjuntamente, eles garantem a igualdade de participação no pleito e dão a cada
eleitor a confiança negativa de que todos os outros, no exercício do mesmo papel,
possuem as mesmas possibilidades de decisão que ele. Um mecanismo eleitoral como
esse imuniza o sistema político contra desigualdades sociais, que tendem a aparecer
como secundárias. Além disso, os princípios asseguram a indiferença também quanto
aos motivos da decisão do eleitor. O voto não tem “[...] de ser justificado em outros
contextos sociais, pois goza da garantia do segredo.”36 Isso alivia consideravelmente a
tarefa do votante. Faz com que o desempenho desse papel quase não traga
consequências para os papéis exteriores. E, simultaneamente, transfere para ele a
função de filtrar as influências externas. Obriga-o a eliminar por si um grande
número de motivos possíveis de decisão. A filtragem é indispensável, vez que
existem na sociedade mais causas políticas que possibilidades concretas de decisão.37
Noutras palavras,
[...] parece que, para se poder falar em representatividade das eleições, é necessário que estas apresentem as características de liberdade e periodicidade. Se estas faltarem, a relação de responsabilidade política que liga os governantes aos governados é
������������������������������������������������������������35 LUHMANN, Ibidem, p. 19. 36 LUHMANN, Ibidem, p. 134. 37 LUHMANN, Ibidem.
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esvaziada e, com ela, as funções de investidura e controle que são essenciais a uma eleição.38
Outro importante fator de absorção de protestos, especialmente no que se
refere aos candidatos derrotados na disputa, é o fato de as eleições repetirem-se
periodicamente. A certeza quanto à oportunidade de participação futura permite que
as expectativas sejam adiadas, não, desenganadas. Ao mesmo tempo, a periodicidade
transforma cada eleição isolada em parte de um processo maior, com uma história
própria, que pode ser usada para orientar o sistema político. Não fosse o bastante, as
repetidas votações oferecem mais oportunidades de expressão da insatisfação sem
riscos sistêmicos. Mesmo o voto derrotado num pleito específico adquire, na história
das eleições, valor expressivo. Ou se torna representativo de interesses sociais
minoritários ou “[...] digno de atenção como ‘sintoma’ de alteração da vontade
eleitoral no sistema político.”39
5 Sistemas de legitimação das eleições
Nas modernas democracias, a maneira como se estrutura o sistema
representativo tem consideráveis implicações na ordem política. Na medida em que
os procedimentos são tratados como fonte de legitimação do regime e das
instituições – aceitam-se os governos, independentemente dos governantes e das
decisões governamentais específicas, porque os aspectos fundamentais da
������������������������������������������������������������38 MAROTTA, Emanuele. Sistemas Eleitorais. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luiz Ferreira Pinto Cacais. 11. ed. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1998. 2 v. p. 1174-1179, p. 1174. 39 LUHMANN, Ibidem, p. 141.
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organização política são considerados legítimos40 –, as técnicas eleitorais adotadas
para autorizar os mandatos para exercício do poder se tornam um importante
elemento de sustentação da estrutura política. Sem sair do contexto da legitimação
dos sistemas sociais pelos procedimentos41, pode-se afirmar que, no regime
democrático contemporâneo, a concepção de legitimidade do poder governamental
envolve duas dimensões anteriores, a da legitimidade quanto à investidura no
mandato e a da legitimidade quanto ao exercício dele42.
A primeira das dimensões da legitimidade, a relativa à investidura no
mandato, refere-se aos mecanismos eleitorais adotados por uma comunidade política
para provimento das funções estatais. Qualifica, pois, as ações que antecedem e
autorizam o preenchimento de cargos públicos eletivos. O conjunto de instituições e
mecanismos que justificam o sistema representativo nessa dimensão inicial pode ser
denominado sistema de organização eleitoral e abrange as técnicas de funcionamento
do corpo eletivo e os critérios de distribuição numérica dos mandatos
representativos. Mas não só. Inclui também os órgãos responsáveis pela verificação
do funcionamento do próprio sistema e os instrumentos de que dispõem para tanto.
Já a segunda dimensão, a da legitimidade quanto ao exercício, refere-se ao
tempo de duração e ao modo como se exercem os mandatos. Exige, portanto, a
manutenção, durante todo o período mandatício, das condições legitimadoras da
função estatal do agente investido no cargo público eletivo.
O sistema de organização eleitoral de um Estado abrange os órgãos e
funções envolvidos tanto no procedimento jurídico das eleições, quanto no
procedimento judicial de verificação da dimensão inicial da representação, a
investidura no mandato. Dada a natureza diversa dos mecanismos mencionados, não
������������������������������������������������������������40 LUHMANN, Ibidem. 41 LUHMANN, Ibidem. 42 RIBEIRO, Ibidem.
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há dificuldade em reconhecer que integram o sistema pelo menos dois subsistemas:
um, propriamente eletivo, e outro, de controle.
O subsistema propriamente eletivo diz respeito às condições em que a
representação é autorizada. Compõe-se pelo próprio processo eleitoral, que culmina
na investidura no mandato, precedida, entre outras fases, da campanha de
convencimento do eleitorado e da votação, e pelas instituições, grupos e pessoas que
o conduzem ou dele participam. Abrange o que as ciências políticas comumente
definem como sistema eleitoral – os “[...] procedimentos institucionalizados para
atribuição de encargos por parte dos membros de uma organização ou de alguns
deles [...].”43 Por meio do principal mecanismo desse subsistema, as eleições, opera-se
“[...] a redução do ‘mais’ das massas ao ‘menos’ das elites de Governo[...].”44
Usamos a palavra eleição para referir-nos ao processo eleitoral, que, no
Brasil, se inicia com as convenções partidárias e finda com a diplomação dos
candidatos eleitos. O termo exprime o procedimento pelo qual se recrutam
indivíduos para preenchimento dos cargos públicos eletivos. A votação propriamente
dita, o comparecimento do eleitorado às urnas, constitui apenas uma etapa de tal
processo. Durante a preparação para o pleito, diferentes papéis são criados por
regulamentos jurídicos e por eles têm limitadas as possibilidades de atuação.
Desconsideradas as funções secundárias, auxiliares, os participantes se apresentam
essencialmente como eleitores e candidatos. Eles são assim classificados depois de
passarem por processos internos diferenciados: respectivamente, o alistamento
eleitoral, para obtenção do título de eleitor, e o registro de candidatura, para
obtenção do status de candidato.
Tais procedimentos especificam funcionalmente os indivíduos interessados.
Atribuem-se-lhes papéis com funções e possibilidades de comportamento
������������������������������������������������������������43 MAROTTA, Ibidem, p. 1.175. 44 MAROTTA, Ibidem, p. 1.175-1.176.
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previamente determinados. No primeiro caso, do eleitor, a influência na decisão final,
ainda que mínima, está garantida, mas sem capacidade de, na participação, promover
interesses políticos concretos. No papel do candidato, tais interesses podem ser
expostos, mas sem direito à decisão propriamente dita. Essa disposição,
especialmente no caso do eleitor, torna os demais papéis sociais indiferentes à
participação no procedimento45.
A despeito dos mecanismos de legitimação fornecidos pelo próprio
subsistema eletivo, organizações políticas complexas, como as modernas, garantem-
se contra conflitos surgidos durante o processo eleitoral conduzindo-os a outro
subsistema, o de controle da legitimidade das eleições. Tal estrutura compreende as
instituições estatais encarregadas, em caso de descumprimento, da aplicação forçada
das regras fixadas para o processo eleitoral e as práticas que elas institucionalizam.
Ou seja, abrange os órgãos e as decisões que definem, em última análise, os casos de
obediência e desobediência a tais normas, e qualificam os agentes políticos como
infratores ou não.46
A ciência política reconhece três tipos básicos de sistemas para controle da
legitimidade das eleições: o de verificação dos poderes, o eclético e o judicial. Eles
diferenciam-se, essencialmente, devido ao Poder estatal ao qual se atribui a função
controladora e às peculiaridades que ela adquire em razão dessa atribuição. O
primeiro e o último modelo foram adotados no Brasil em períodos históricos
diversos.47
O sistema da verificação dos poderes confere a órgãos tipicamente
legislativos a prerrogativa de atuar como juízes da elegibilidade e da regularidade da
eleição dos próprios membros. Consolidado historicamente na Inglaterra do século
������������������������������������������������������������45 LUHMANN, Ibidem. 46 RIBEIRO, Ibidem. 47 RIBEIRO, Fávila. Direito eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
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XVII, o modelo reconhecia à Câmara dos Comuns a função de controle das eleições,
e assim a resguardava do despotismo dos príncipes. Pois, em princípio, a verificação
eleitoral cabia ao monarca. Por meio da assunção do controle sobre a regularidade da
votação e a elegibilidade dos membros do parlamento, antes prerrogativa régia, o
Legislativo pôde “[...] firmar a sua independência funcional do Executivo [...].”48
Todavia, o mecanismo não se manteve restrito à comunidade inglesa, nem aos
regimes monárquicos. Foi incorporado à Constituição Americana de 1787 como
elemento integrante do esquema de freios e contrapesos de separação dos poderes. A
partir de 1789, nos Estados Gerais, foi introduzido também à organização política da
França.49
No Brasil, não foi diferente. Com a Carta Imperial de 1824, o País se filiou a
tal sistema. Dispunha o art. 21 da Constituição Política do Império: “A nomeação
dos respectivos Presidentes, Vice Presidentes, e Secretários das Câmaras, verificação
dos poderes dos seus Membros, Juramento, e sua policia interior se executará na
forma dos seus Regimentos.” Segundo Bueno50, a finalidade era evitar que “[...] o
ministério ou facções [...]” pudessem “[...] abusar, violentar as eleições, e impor à
Câmara criaturas suas a despeito dos direitos do País, e das liberdades de sua
representação nacional.” Pelos mesmos motivos, proclamada a República, o modelo
foi mantido pela Constituição de 1891, que, no parágrafo único do art. 18, previu
competir a cada uma das Câmaras “[...] verificar e reconhecer os poderes de seus
membros [...].”51
O terceiro sistema é o de controle por um tribunal tipicamente judiciário,
com competências exclusivamente eleitorais ou não. O País institucionalizou tal
������������������������������������������������������������48 RIBEIRO, Ibidem, p. 52. 49 RIBEIRO, Ibidem. 50 BUENO, José Antônio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: J. Villeneuve & Cia, 1857, p. 128. 51 BRASIL. Constituições[...] Ibidem.
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modelo após a Revolução de 1930. Os juízes e tribunais eleitorais foram instituídos
pelo Decreto n.º 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, e posteriormente incorporados à
Constituição de 1934. Desde então, com exceção do período ditatorial de 1937,
quando foi desfeita, para depois ser reinstalada pelo Decreto n.º 7.586, de 28 de maio
de 1945, e recepcionada pela Constituição de 1946, a Justiça Eleitoral permanece
como instituição central do controle das eleições brasileiras.52
Entre os modelos historicamente propostos para o sistema, o controle dos
poderes exercido pelo parlamento foi o primeiro. Segundo Ribeiro53, em todas as
comunidades políticas, as razões para a adoção de tal sistema “Não foram outras [...],
senão de preservar também das ingerências e das pressões do governo.” Se o sistema
da verificação dos poderes surgiu no contexto inglês como mecanismo para tornar
possível a autonomia das assembléias representativas, preservando-as da interferência
executiva – como princípio, portanto, do Liberalismo Político –, logo se demonstrou
a incapacidade institucional de cumprimento satisfatório de tal função. No Brasil, o
modelo possibilitou a degeneração do processo democrático da República Velha,
marcado por deformações dos tipos mais variados, cometidas “[...] por coações aos
grupos votantes, por falsificações dos votos, por depuração facciosa dos eleitores
[...].”54 Tais deformações acabavam por revelar a falta de legitimidade dos investidos
nos mandatos governamentais.55
A origem do sistema de controle por um tribunal eleitoral tipicamente
judiciário remete, pois, à crise de legitimidade do modelo político que predominava
anteriormente, o da verificação dos poderes, inerentemente sujeito a uso e
manipulação despótica pelas maiorias políticas – no sentido de grupos dominantes. O
risco era de que o partido majoritário decidisse as diretrizes eleitorais legais em seu ������������������������������������������������������������52 RIBEIRO, Ibidem. 53 RIBEIRO, Ibidem, p. 152. 54 RIBEIRO, Ibidem, p. 151. 55 RIBEIRO, Ibidem.
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próprio benefício e em detrimento de seu concorrente. Em última análise, o
reconhecimento da impossibilidade de que os parlamentares dirimissem com padrões
igualitários as controvérsias nas quais eram os principais interessados motivou a
adoção do sistema judiciário.56 Desde o princípio, portanto, “A neutralidade desse
órgão nas disputas que se travam entre as diversas correntes de opinião é requisito
essencial para a segurança dos resultados da operação eleitoral.”57
Neutralidade deve ser aqui entendida como não participação direta na esfera
de disputa política pelo poder; nunca, como ausência de ideologia, valoração ou
julgamento. Pois, como observou Carl Schmitt58 acerca do sistema de legalidade do
Estado legiferante parlamentar, a neutralidade política, a absoluta indiferença quanto
à matéria da deliberação, não é possível. Ainda que tomada a partir de uma
perspectiva “puramente funcionalista”, que iguala Direito a lei – às decisões da
maioria parlamentar, sem relação com qualquer conteúdo –, “[...] sempre se deverá
pressupor um princípio de justiça, caso não se queira ver sucumbir todo o sistema de
legalidade no mesmo momento [...].”59
6 Um princípio fundamental: a igualdade de chances de obter maioria
Como observado por Schmitt,60 um sistema representativo que conte com
eleições periódicas tem necessariamente de garantir a constância de repetição do
poder mediante a igualdade de chances de obter maioria. Sem tal garantia, logo após
a primeira obtenção do poder, o próprio sistema perde a legitimidade, que depende ������������������������������������������������������������56 RIBEIRO, Ibidem. 57 RIBEIRO, Ibidem, p. 151. 58 SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coord. e supervisão Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 28. 59 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, p. 29. 60 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem.
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da regular alternância dos representantes (mandatários). Pois a maioria inicial poderia
instalar-se como permanente, fechando atrás de si a porta pela qual entrou. Ainda
que não o faça voluntariamente, recairá sobre ela, em decisões sobre as quais não
houver suficiente consenso, a suspeita de utilização dos instrumentos legais em
benefício próprio. Não dificilmente, os juízos de legitimidade formulados pela
minoria que almeja a hegemonia estatal condenarão as opiniões do partido
antagônico. Acusá-lo-ão de cometer abusos e ilegalidades. Nesse contexto, torna-se
necessário incluir na disputa um terceiro elemento imparcial, que decida as situações
de conflito entre maioria e minoria.
Em Luhmann61, a relação entre princípio da maioria e a igualdade de
chances também é percebida, embora seja diferentemente denominada. Pois o autor
afirma que, “Se o princípio da maioria for institucionalizado com regra decisiva, todo
o poder político, antes de se tornar legitimamente eficiente quanto à decisão, tem de
se submeter ao princípio da constância de repetição do poder.”62
Schmitt63 nota que, mesmo sem considerar situações extraordinárias de
exceção e de flagrante ilegitimidade – em que “[...] a grande recompensa pela posse
do poder [...] desenvolve seu efeito integral maior e eliminador de qualquer
possibilidade de chances iguais [...]” –, o poder político das maiorias parlamentares
vai muito além do simples monopólio da capacidade de “[...] produção e sanção da
legalidade [...]”64 O autor chega a falar em “[...] uma recompensa supralegal pela posse legal
do poder e pela obtenção da maioria[...].”65
[...] um conceito como ‘igualdade de chances’ também é [...] um daqueles conceitos indeterminados, diretamente ligados a uma
������������������������������������������������������������61 LUHMANN, Ibidem. 62 LUHMANN, Ibidem, p. 146. Grifos do autor. 63 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, p. 37. 64 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, p. 32-33. 65 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, p. 33.
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situação dada, cuja exegese e cuja utilização são necessariamente coisas do poder legal, portanto, do partido que está no poder. [...] o partido que detiver a posse legal do poder tem de determinar e decidir, por força da posse dos meios hegemônicos estatais, acerca da aplicação e utilização concreta e politicamente importante dos conceitos de legalidade e ilegalidade a partir de sua própria ótica.66
Todavia, em situações de normalidade, a exegese e a utilização do princípio
da igualdade de chances são necessariamente não unilaterais. A minoria que almeja a
posse dos meios hegemônicos estatais e que presume a igualdade de chances (a qual
necessariamente pressupõe igualdade de direitos) emite juízos de legalidade e
legitimidade sobre si mesma e sobre o partido antagônico. Não dificilmente, as
situações de conflito de opiniões entre maioria e minoria caminharão para o impasse,
um momento crítico do qual o resultado é “[...] um estado de coisas desprovido de
legalidade e de Constituição.”67 Logo, torna-se necessário responder à questão de
“[...] quem é que, no caso de conflito, elimina e decide dúvidas ou incompatibilidades
de opiniões.”68
Schmitt responde à pergunta ponderando que “Seria, na prática, uma saída
buscar a solução por meio da inclusão de um ‘terceiro elemento imparcial’, o qual
pudesse decidir o conflito, fosse conforme a Justiça, fosse de outro modo.”69 Adverte
o autor, contudo, que:
[...] esse terceiro elemento seria perante ambos os partidos um terceiro supraparlamentar, até mesmo suprademocrático, em posição superior, e a vontade política não mais ocorreria por intermédio da livre concorrência pela hegemonia de partidos políticos que tivessem sempre as mesmas chances de poder.70
������������������������������������������������������������66 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, p. 34-35. 67 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, 36. 68 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, 35. 69 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, 31. 70 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem, 35-36.
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Nesse contexto, a busca do terceiro elemento imparcial desencadeou no
Brasil a transição do sistema de verificação de poderes para o judicial. Não parecia
suficiente a atribuição do método jurisdicional a um órgão colegiado de composição
política ou mista. O controle deveria ser exercido na própria esfera judiciária, para
garantia de imparcialidade. Não apenas porque os magistrados se submetem a
vedações de envolvimento em atividades partidárias, mas também porque se sujeitam
a regras processuais rígidas, que incluem causas impeditivas e de suspeição da função
judicante.71
Cumpre destacar que, a partir da Proclamação da República, a legislação
eleitoral sofreu sucessivas alterações, que ampliaram os poderes de interferência
judicial nos pleitos. A despeito de tais reformas legislativas, as fraudes persistiram.
Para Niquete72, a permanência dos abusos demonstrava a necessidade da
institucionalização definitiva do controle judiciário:
De nada adiantaram [...] as sucessivas reformas da lei eleitoral, nem mesmo aquelas que se processaram em 1916, com as Leis n.ºs 3129, de 2 de agosto, regulamentada pelo Decreto n.º 12.913, de 6 de setembro, e 3208, de 27 de dezembro, ocasião em que a magistratura teve aumentadas algumas de suas atribuições [...]: o que se queria [...] era elevar e colocar sob a sua égide protetora a segurança do nosso direito político, assim como a ela já tínhamos confiado a garantia de todos os nossos direitos individuais, os que diziam respeito à liberdade, à honra e à propriedade. [...] Inutilmente. Os magistrados continuaram partícipes inocentes de todo um sistema de fraudes [...].73
Conforme destaca Cunha Mendes74, as pressões sociais do período levaram
o então candidato à Presidência da República Washington Luís a incluir, entre as ������������������������������������������������������������71 RIBEIRO, Ibidem. 72 NIQUETE, Lenine. Ibidem. 73 NIQUETE, Ibidem, p. 65. 74 MENDES, Antônio Cunha. A psicologia do eleitorado brasileiro. 1926.
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promessas esboçadas no seu programa de governo, a de criar uma magistratura
especial, encarregada do alistamento eletivo. “Se há uma magistratura especial para os
resguardos dos direitos civis, outra para os direitos comerciais, outra para aplicações
de direito penal, não se compreende que não exista a privativa para os direitos
políticos, fonte esta de todos os outros.”75 Tal magistratura, prometia-se, seria dotada
das “[...] garantias indispensáveis da competência, da idoneidade, da independência
[...]”76. Os juízes que a integrassem
[...] teriam a incumbência privativa para formação do eleitorado brasileiro [...]. A seu cargo ficaria também o processo e registro de naturalização e os de suspensão, perda e reaquisição dos direitos de cidadão brasileiro [...]. Por fim, lhes incumbiria ainda a competência para conhecimento e julgamento de todos os delitos eleitorais, isto é, dos direitos políticos, desde o alistamento até a apuração.77
O Decreto n.º 21.076, de 1932, que instituiu o primeiro Código Eleitoral
republicano e, com ele, a Justiça Eleitoral foi então recebido como solução para as
distorções eleitorais.
[...] coube ao governo discricionário de 30 pôr cobre definitivo, desde logo, às distorções do processo eleitoral: o Decreto n.º 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, instituindo o Código Eleitoral, marcou o início da Justiça Eleitoral – constituída pelo Tribunal Superior Eleitoral (que se instalou no dia 20 de maio, sob a presidência do Ministro HERMENEGILDO DE BARROS), os Tribunais Regionais Eleitorais, nos Estados, e os Juízes eleitorais, nas comarcas, distritos ou termos judiciários – aos quais ficou afeta a direção do alistamento, dos pleitos, da apuração eleitoral, e
������������������������������������������������������������75 MENDES, Ibidem, p. 235-236. 76 MENDES, Ibidem, p. 236. 77 MENDES, Ibidem, p. 236.
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bem assim, a proclamação dos eleitos (acabando de vez com a fase do reconhecimento, delegada até então aos órgãos legislativos).78
Sobre o mencionado decreto, Pontes de Miranda79 comentou que “[...] a
facção liberal [...] logrou dotar o Brasil de seu primeiro estatuto eleitoral eficiente
[...].” O constitucionalista chegou a afirmar que as eleições que se seguiram à edição
da norma, “[...] para a Assembléia Constituinte e, depois, para o Poder Legislativo
federal e dos Estados-membros, inclusive Distrito Federal, foram as primeiras
eleições reais do Brasil.”80 Entendeu o autor que “Tão profundamente atendeu o
Código Eleitoral a necessidades do ambiente brasileiro, que a sua estrutura central se
impôs à Constituïção de 1934 e agora à de 1946.”81
7 O papel da neutralidade judiciária
A criação da Justiça Eleitoral foi precedida pela institucionalização da
exigência de neutralidade da magistratura perante a competição política. Mais
especificamente, pela proibição do exercício, pelos membros do Poder Judiciário e
do Ministério Público, de funções eletivas e partidárias.
[...] o Governo provisório, através do decreto n.º 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, [...] estabeleceu que os magistrados e membros do Ministério Público Federal não poderiam dali por diante aceitar nem exercer cargo de eleição, nomeação ou comissão, mesmo gratuita, ou qualquer outra função pública que não a do magistério.82
������������������������������������������������������������78 NIQUETE, Ibidem, p. 67. 79 MIRANDA, Ibidem, p. 297. 80 MIRANDA, Ibidem, p. 297, grifo nosso. 81 MIRANDA, Ibidem, p. 297. 82 NIQUETE, Ibidem, p. 67.
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Dadas as garantias de imparcialidade partidária a que se submeteram os
juízos, tornaram-se evidentes para a doutrina da primeira metade do século XX as
vantagens da adoção do modelo judicial de controle das eleições. Pontes de
Miranda83, por exemplo, assegura que a opção constituinte visou à “[...]
despolitização do diploma eleitoral:
A Justiça Eleitoral, criação constitucional de 1934, teve por fito a despolitização do diploma eleitoral. Havia a tendência, na ocasião dos reconhecimentos de deputados e senadores, para reconhecerem os deputados e senadores pelo número de votos dos diplomados de cada partido, ou coligação, sem atender à verdade eleitoral, isto é, ao cômputo dos votos dos eleitores. Não importavam trinta mil votos contra três mil ou menos, se o candidato dispunha de fôrça [sic] política, quase sempre só das “simpatias do Catete”.84
O anseio não é tanto por uma instância judicial, mas por um julgador
independente e neutro. Utiliza-se o caráter judicial apenas como o meio mais seguro
de uma independência garantida institucionalmente85.
Ninguém consideraria independente e neutro um tribunal composto por políticos partidários, mesmo se seus membros ‘não estivessem vinculados, no exercício de sua atividade judicial, a ordens e instruções’, [...] semelhante tribunal – tanto em sua ocupação quanto em sua atividade – tornar-se-ia cenário do sistema pluralista da mesma forma que se tornou o parlamento e todo cargo influenciado pela ‘confiança no parlamento’.86
Desde o início, portanto, são elevadas as expectativas sociais em relação às
consequências da atuação jurisdicional neutra sobre as eleições. Certo ímpeto ������������������������������������������������������������83 MIRANDA, Ibidem, p. 302. 84 MIRANDA, Ibidem, p. 302. 85 SCHMITT, Carl. O guardião[...] Ibidem. 86 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 224.
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corretivo das relações político-partidárias está na origem da Justiça Eleitoral,
concebida como instância moralizadora da realidade política. No Brasil, a atribuição
do controle das eleições à Justiça Eleitoral – a adoção do sistema judiciário de
controle eletivo – se deu para evitar os frequentes abusos do modelo anterior, o
sistema de verificação dos poderes, a que faltava neutralidade. A imparcialidade
institucional da Justiça Eleitoral – característica muito distinta da pretensa
despolitização de seus membros –, é, em parte, garantida por uma série de elementos
formais, típicos do Poder Judiciário como um todo, a vitaliciedade dos magistrados,
por exemplo, ou específicos, como a periodicidade bienal das funções judicantes
eleitorais.
A temporariedade do exercício da função judicial de controle não implica
ausência das garantias típicas dos magistrados no exercício da jurisdição. Além do
fato de a maioria dos seus membros serem recrutados entre integrantes de outros
órgãos judiciários e, por isso, transportarem para a Justiça Eleitoral as garantias que
lhes são vitalícias87, mesmo os que não o são passam a gozar de tais mecanismos de
proteção enquanto exercem a atividade.
No que diz respeito a essas garantias gerais, típicas de toda a magistratura,
Schmitt88 com razão percebe que a independência judicial difere da de outros agentes
estatais, tanto da dos demais funcionários de carreira, quanto da dos parlamentares.
Em relação a estes, ela é mais ampla: “[...] não se pensa [...] apenas na independência
judicial no sentido estrito do termo, i.e., na independência perante instruções de um
outro cargo que atingem o exercício de uma atividade judicial [...]”89. Em comparação
àqueles, é reforçada: “[...] os juízes [...], contra sua vontade, só podem ser permanente
ou temporariamente exonerados do cargo, transferidos ou aposentados por força de
������������������������������������������������������������87 RIBEIRO, Ibidem, p. 158. 88 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 225. 89 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 225.
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decisão judicial e pelos motivos e sob as formas que a lei determina [...]”90. O
pensador alemão ressalta que a vitaliciedade aparece como “[...] elemento
constitucional de estática e permanência [...]”91 da instituição e “[...] posição
juridicamente protegida [...]”92 de seus membros. O juiz, que “[...] não pode ser
destituído ou demitido à discrição, é retirado do conflito dos antagonismos
econômicos e sociais. Ele se torna ‘independente’ e, por isso, está em condições de
ser neutro e imparcial [...]”93.
Por neutralidade e imparcialidade, deve-se entender “[...] apenas a
eliminação de um determinado tipo de política, a saber, da política partidária [...]”94.
Deve-se ter em mente a não participação direta na esfera de disputa política pelo
poder; nunca, a ausência de ideologia ou valoração. Pois, como observou Carl
Schmitt95, a neutralidade política, a absoluta indiferença quanto à matéria da
deliberação, não é possível. Na medida em que está inserido no contexto social de
relações entre governantes e governados, o juiz, como todos os demais membros da
comunidade, formula concepções próprias da moralidade pública. Concebe, por
exemplo, como tais relações poderiam ser mais justas. É inevitável que, em certa
medida, uma sentença reflita essas concepções. Nesse sentido, qualquer decisão é
política.96
8 Conclusões
������������������������������������������������������������90 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 224. 91 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 219. 92 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 223. 93 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 223. 94 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 160. 95 SCHMITT, Carl. Legalidade… Ibidem, p. 28. 96 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007b.
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A atribuição da tarefa de controle da legitimidade das eleições ao Poder
Judiciário teve por fim condicionar às exigências formais rígidas de um procedimento
judicial a legitimidade de uma atividade inerentemente sujeita à composição política
de metas e interesses; ou, usando a terminologia proposta por Luhmann, submeter
um procedimento voltado para a divulgação de decisões programantes a condições
de legitimidade típicas dos procedimentos programados. Noutras palavras, o
verdadeiro objetivo do reconhecimento da natureza judicial da atividade de
verificação eletiva reside na possibilidade de a tensão causada pela disputa de forças
entre grupos políticos opostos ser pacificada pela objetividade do julgamento
baseado em um programa – em uma norma jurídica publicamente reconhecida.
Segundo Schmitt97, “É a vinculação à lei (que contém vinculações materiais)
que possibilita a objetividade e, com isso, uma espécie de neutralidade, assim como a
relativa autonomia do juiz perante a outra vontade estatal [...]” Essa neutralidade leva
a uma decisão – política, certamente, na medida em que “[...] toda área imaginável de
atividade humana é [...] política e se torna imediatamente política quando os conflitos
e questões decisivas se passam nessa área [...]”98 –, mas não político-partidária.
Apenas nesse sentido, de separação de duas esferas de atuação estatal, uma,
deliberadamente política (partidária), outra, tanto quanto possível, despolitizada em
termos partidários – mas, ainda assim, política, no significado mais geral do termo –,
pode-se concordar com a tese de Luhmann99, de que o procedimento judiciário
despolitiza os temas de conflito. Torna-os não generalizáveis. Fraciona-os, de modo
que a política passa a ser vista como um sistema autônomo em relação a eles. E assim
evita a institucionalização das insatisfações.
������������������������������������������������������������97 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 166. 98 SCHMITT, Carl. O guardião… Ibidem, p. 160. Grifos do autor. 99 LUHMANN, Ibidem.
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O julgador, “[...] evitando determinadas promessas de decisão e
dissimulando opções já tomadas [...]”100, cuida para que a curiosidade das partes em
relação ao resultado seja conservada desperta até a sentença. Se a incerteza acerca de
como se concluirá o processo tem de ser mantida para que os participantes sejam
motivados a desempenhar os respectivos papéis, é fundamental que o decisor não
leve para o interior do sistema um parecer social prévio sobre os intervenientes.101
O princípio da imparcialidade tem a importante função de reduzir as
possibilidades de crítica ao resultado do procedimento. Pelo fato de ser devido que a
decisão seja tomada imparcialmente – a saber, sem considerações prévias ou externas
ao processo –, presume-se que a própria decisão é imparcial. Toma-se a sentença
como algo já programado pelo Direito, seja porque fundamentada em normas
jurídicas anteriormente conhecidas, seja porque formulada no decorrer de um
procedimento previamente estabelecido. Nesse sentido, o processo decisório é
apresentado como uma operação técnica. E o juiz, aliviado da responsabilidade por
todas as consequências da decisão, que se remete às normas, tem garantida pelo
sistema a posição de terceiro nos conflitos. Não tem que atuar na esfera
propriamente partidária para defender interesses. Pois, diferentemente do que ocorre
com as decisões legislativas, programantes, as decisões judiciais, programadas, não
dependem de que os demais partícipes da comunidade estejam convencidos da
utilidade delas102.
A concepção de neutralidade judiciária infundiu a crença de que a criação de
juízes e tribunais especializados em matéria eleitoral solucionaria o problema da
crescente falta de legitimidade da democracia representativa da República Velha. O
sistema até então vigente de verificação (e, consequentemente, de afirmação) da
������������������������������������������������������������100 LUHMANN, Ibidem, p. 98. 101 LUHMANN, Ibidem. 102 LUHMANN, Ibidem.
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legitimidade das eleições entrava em colapso, devido às cada vez mais comuns
acusações de fraude contra ele dirigidas. Difundia-se a percepção de que, longe de
possibilitar a alternância do poder, a periodicidade dos pleitos disfarçava a nociva e
perene permanência de uma oligarquia. O controle dos poderes dos membros do
Executivo e do Legislativo, exclusivamente a cargo das assembleias, revelou-se um
fator de desestabilização da organização política que cumpria a ele imunizar.
Mostrou-se, portanto, insatisfatório. Antes de preservar o resultado das disputas
contra as frustrações dos grupos políticos minoritários, o próprio procedimento se
tornou alvo de protestos e críticas.
O juiz ocupa no imaginário político um papel intrinsecamente imparcial. A
posição em que se encontra – e que sem esforço se lhe considera natural –, de
terceiro inerentemente desinteressado nas disputas político-partidárias, veio a tornar-
se valorizada pelas exigências históricas concretas de correição do funcionamento
político. A transição do sistema de controle dos poderes para o modelo judicial de
verificação das eleições respondeu aos anseios de moralização do cenário
democrático-representativo.
Para Vítor Ferraz Júnior,
A justiça eleitoral brasileira é produto da revolução de 1930. E, como tal, sua fundação foi inspirada pelas bandeiras levantadas à época: críticas à oligarquia competitiva, que tinha se instalado ao longo da primeira república, e o evidente descrédito do processo eleitoral, marcado pelo poder dos coronéis e pelo ‘voto de cabresto’. A combinação desses elementos denunciados pelos revolucionários de 30 atentava contra a legitimidade da competição pelo poder político e a confiabilidade nos resultados das urnas.103
������������������������������������������������������������103 FERRAZ JÚNIOR, Vítor Emanuel Marchetti. Poder Judiciário e Competição Política no Brasil: uma Análise das Decisões do TSE e do STF sobre as Regras Eleitorais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tese. Doutorado em Ciências Políticas. São Paulo, 2008, p. 37.
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Maria Tereza Sadek chega a semelhantes conclusões:
O movimento de 30 tinha entre suas bandeiras a moralização das eleições, sumarizada no binômio cunhado por Assis Brasil, “representação e justiça”. Para isso parecia imprescindível afastar os poderes Executivo e Legislativo da administração e do controle do processo eleitoral, e retirar das Câmaras Legislativas a prerrogativa da verificação dos mandatos. Através dessas práticas a máquina majoritária assegurava sua perpetuação, manipulando todas as etapas do processo eleitoral, e chegando mesmo a decapitar mandatos oposicionistas.104
A expectativa moralizante em torno da atuação judiciária não era, contudo –
pelo menos, não, reconhecidamente –, a de concretização substantiva da justiça, de
maneira a efetivar a igualdade de chances de todos os agrupamentos políticos
obterem maiorias. Visava-se, antes, à garantia formal de que os procedimentos
fixados legalmente seriam observados na condução do processo eleitoral, até a
diplomação dos eleitos. Todavia, ainda que não se reconhecesse explicitamente, a
criação da Justiça Eleitoral representou a tentativa de realização de um princípio
fundamental. Mesmo que o pensamento político majoritário não admita, preso que
está ao formalismo, a teoria da legitimação do poder político pelo procedimento
jurídico das eleições fica a depender de princípios, entre eles, o da alternância de
poder – ou da igualdade de chances de obter maioria.
É certo que as sociedades modernas já não legitimam o Direito “[...] por
meio de verdades invariáveis existentes, mas, sim, apenas ou principalmente, por
meio de participação em procedimentos.”105 Só faz sentido falar em procedimentos
numa sociedade que não trate questões jurídicas como problemas que exigem das
������������������������������������������������������������104 SADEK, Maria Tereza. A justiça Eleitoral e a consolidação da democracia no Brasil. São Paulo: Konrad Adenauer, 1995, p.30. 105 LUHMANN, Ibidem, p. 8.
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decisões certeza. Pelo menos, não uma certeza exterior, ligada ao ambiente. Daí não
decorre, porém, que não haja parâmetros de avaliação política das instituições,
relativamente independentes dos processos (e, neste aspecto, semelhantes às
verdades de que fala o autor), mas não invariáveis nem externos ao sistema político
(e, nisto, diferentes das certezas pré-modernas).
Pois, embora descreva uma das mais importantes peculiaridades do Estado
contemporâneo, a teoria da legitimação pelo procedimento106 é insuficiente. Apenas
desloca o problema da justificação política. Não o resolve. Retira o enfoque do
resultado. Reconhece que o procedimento é um fator de legitimação. Deixa, contudo,
sem resposta o que legitima o próprio procedimento. A menos que se admita
existirem princípios do sistema, toda a estrutura estaria em permanente risco de ser
ela mesma objeto dos processos jurídicos que a mantêm. Não haveria certeza, mas
uma permanente instabilidade. Como tal não acontece, é de supor a existência de
princípios fundamentais, que sustentem o núcleo da organização estatal. A partir
desses princípios, porém, a própria organização pode ser criticada.
Nesse patamar, as alterações eleitorais da década de 30, também são o
resultado dos anseios, das lutas de diversos segmentos sociais, algumas vezes
discrepantes, outras convergentes. Essas inovações não podem ser reduzidas apenas
a uma ação presidencial. Elas são o reflexo de um contexto histórico que
demonstram que ação é o resultado de um amplo complexo de reações, algumas
vezes contraditórias outras concatenadas. Não é possível determinar um único
motivo para alteração no sistema e no processo eleitoral: é possível elencar vários
motivos.
Portanto buscou-se resgatar essas pequenas narrativas, compondo uma
história de longa duração da justiça eleitoral no Brasil: essa não é apenas o resultado
������������������������������������������������������������106 LUHMANN, Ibidem.
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do decreto presidencial de 1932, mas sim o resultado de uma série de demandas,
debates, idéias, contextos e revoltas.
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