Historias da Gente Brasileira - volume 1 - Colonia - Livros ...

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FichaTécnica

Copyright©2016MarydelPrioreTodososdireitosreservadoseprotegidospelaLei9.610,de19.2.1998.Éproibidaareproduçãototalouparcialsemaexpressaanuênciadaeditora.EstelivrofoirevisadosegundooNovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

Preparação:BrenoBarretoRevisão:LuanaLuzdeFreitasePedroStaite

Projetográficodecapaeiconografiacomplementar:VictorBurtonPesquisaiconográfica:RenatoVenancioPesquisadocumental:CarlosMilhon

Imagemdecapa:montagemapartirdaobradeCarlosJulião,imagenscedidaspelaFundaçãoBibliotecaNacional.

DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)AngélicaIlacquaCRB-8/7057

Priore,MarydelHistóriasdagentebrasileira:volume1:colônia/MarydelPriore.

–SãoPaulo:LeYa,2016.ISBN:9788544103869

1.Brasil–História2.Brasil–Períodocolonial,1500-1822-UsosecostumesI.Título16-0180CDD981

Índicesparacatálogosistemático:1.Brasil–História

TodososdireitosreservadosàLEYAEDITORALTDA.

Av.Angélica,2318–13ºandar01228-200–SãoPaulo–SP

www.leya.com.br

AgradeçoaRenatoVenancio,pelaseleçãodeimagens,eaCarlosMilhono,pelaajudanapesquisadocumental.OfereçoestelivroaVascoMariz,porumahistória

deamizade,eàsminhasnetas,MariaeSophia,paraquegostemdehistóriacomoaavó.

RUGENDAS,JohannMoritz.VistatomadadaIgrejadeSãoBento,RiodeJaneiro.CASALITOGRÁFICAENGELMANN,PARIS,1835.GRAVADORV.ADAM.

VPREFÁCIO

ocêgostadehistória?Então,estácomolivrocertonasmãos.Porque nele você há de conhecer uma história do Brasildiferente. Não aquela dos grandes feitos, nomes e datas quemarcaram o nosso passado; tampouco aquela dos fenômenosextraordinários que provocaram rupturas na nação, mas as

históriasdodiaadia,oumelhor,detodososdiasdasemana.Históriasfeitaspor personagens anônimos do passado, que raramente nos são apresentados,poisseconfundemcomotecidosocialemconstrução.Umahistóriadagentebrasileira no labor cotidiano, inventando, produzindo e ganhando o “pão decadadia”!Sim,nogerúndiomesmo,poisavidarealsepassanestaformadeverbo.Do que era feita essa gente, prisioneira da vida ordinária? Sob qual clima

cresceu, semultiplicou e desapareceu?E, de suas crenças e tradições, o queficouparaasgeraçõesquea sucederam?Deque trama foi tecidoessepovo?Pararesponderaessasquestõesvamosdiscorrersobreobásico,otradicional.Mas de forma nova e fresca. Vamos falar com simplicidade dos lugares-comuns,dascoisaspequenasquepodemsermuito relevantes,quandodamosvozàscomunidadesdeontem,ouvindo-assobreseucotidiano;dospequenosdetalhesda existência sobreosquais se colamgestosprecisos, exercidosporpersonagensqueritualizamsuasações.Oseu“saberfazer”.Nasmãos de nossa gente, vamos encontrar objetos. Objetos, eles também

atores históricos, cujos usos nos ajudam a compreender a complexidade denossavidamaterial.Emcadaumdelesresideanarrativadesuaprodução,desuas viagens, de seus usos e apropriações. Não podemos reduzi-los a suasimplessignificaçãoouuso.Marcadospelaintençãodeseucriador,edepoisdeseusdetentores,elessãoosignodeumaação.Suahistoricidadenosconvidaainscrevê-los na sucessão da vida coletiva. Um mundo habita cada coisa:panelas,roupas,instrumentosdetrabalho,móveis.Contrariamente às grandes obras de arte, o encanto das pequenas coisas

resideemnãoindividualizarogestocriador.Nãoháassinaturanaparteinferior

de tais peças. Arrancados de seu silêncio, de sua quietude, eles nos acenamcom descobertas imprevisíveis. E é a história de nosso cotidiano que seexpressaatravésdeartefatosconcretos.Dalembrançadeofíciosesquecidos.Descobrir a grande história das pequenas coisas é também uma forma de

olhar.Nesseolharestácontidaaartedeviver,mastambémdever.Deverdeperto.Poisatrásdosobjetosestácontidaumahistóriaoutra.Aqueladamãodoshomens,atarefadaemextrairdanaturezaobjetosdemetal,madeira,vidro.Eessahistóriaé tambémadadestruiçãodeflorestas, riosecarreirasdepedrasparaaconfecçãodeinstrumentosdeexploração.Osváriosartefatosusadosnosofícios responsáveis pela mineração do ouro e diamantes, pela criação demuares e bovinos, pela plantation de cana e outros produtos agrícolasestiveramassociadosaváriosmomentosdenossastransformaçõeseconômicasedenossoempobrecimentoecológico.E,sobretudo,éahistóriadaexploraçãodeumhomempelooutro.Nasmãos

doescravo,aenxada;nadofeitor,ochicote;nadosenhor,o“pão”ouosacodeaçúcar.Logo,prazereangústiatambémcoabitamnahistóriadaspequenascoisas.Civilizaçãoebarbárie,harmoniaeconflitopodemseconcentrarnumamesmapeça.Nãoà toa, apalavra“objeto”nasceno séculoXIVedesigna,desdeentão,

umacoisamaterial quepode serpercebidapelos sentidos: tato, olfato,visão,paladar – fazendo com que aquilo que namemória era pedra vire flor. Poiscontémbeleza, poesia e imaginação,mas não só. Pormeio dos objetos e denossaculturamaterial, encontramosas relações sociais emodosdeproduçãodenossosancestrais.Suatransformaçãoeadaquelesquedelesfizeramuso.Oqueostornapossíveisétudooqueelestêmadizeraosseuscontemporâneos,etudooqueagentebrasileiradizpormeiodeles.A histologia é o estudo dos tecidos. Gostaria de oferecer ao leitor uma

“histologiahistórica”,umahistóriado tecidomulticolorecomplexodanossagente. Ou seja, um estudo dos fios miúdos e, por vezes, invisíveis queentrelaçaramas tramasdenossopassadonosmomentosmaisóbviosdavida:emprivadoouempúblico,frenteaosciclosdavida,narepetiçãodosgestosdesobrevivência.Fiosquetêmcor,mastambémsons.Oquepareceumacacofonia,ruídodesencontrado,émúsica.Sãoossonsda

rua,dacasa,dosinstrumentosdetrabalhooudefestas.Paraissoéprecisoolharpeloretrovisorparavercomonossagenteera,comomorava,sevestia,comia,trabalhava, ria, amava e sonhava. De que forma seus problemas foramultrapassadosdegeraçãoemgeração.Maséprecisotambémolharpeloburaco

da fechadura, para enxergar como se comportava em sua intimidade nosmomentosdemedo,dorouprazer.Nãohálimitesparaseconheceroufazerhistória.Oimportanteéqueelaseja

boa. Descobrir os caminhos da gente brasileira e conhecer mais e melhor onossopassadoéareceitaparasegostarmaisdele.

RUGENDAS,JohannMoritz.Famíliadefazendeirosindoàigreja.CASALITOGRÁFICAENGELMANN,PARIS,1835

ISTOCKPHOTOS

“Nestemesmodia,àhoradasvésperas,avistamos terra!”:eraodia22deabrilde1500,eummontealtoeredondoacusousolonovonoAtlântico

meridional. Para os homens habituados a velejar ao norte do equador, o céuazulsubstituiuoesbranquiçadodosoutonoseinvernos.Emlugardoscamposcultivados, a capa verde damata se espreguiçava ao longo das praias.O soldourava apele, emvezdo astro frioque, salvonoverão,mal esquentavaoscorpos.Pássaroscoloridoscruzavamosarescomsuamúsica,diversadogritoestridentedasavesmarinhas.Dointeriordamassaverdedetroncosefolhasseouviam silvos, urros, sons de animais desconhecidos.A beleza da paisagem,quemaispareciaumavisãodoparaíso,interpelavaosrecém-chegados.Noaconchegodoabrigomais tardebatizadodebaíaCabrália,ascaravelas

deixavam para trás a fronteira entre o medo e a miragem: o Atlântico. Umcaminhodeáguasquetransportavahomens,armasemercadoriasaserviçodaambiçãodamonarquiacatólicadeencontrarumapassagemparaascobiçadasÍndias.Mas seria mesmo nova a terra que se avistava? Certamente não. Osespanhóisjáconheciamsuasregiõesaonorte,eédeseperguntarquantasvezesemissáriosded.JoãoII,filhoded.Henrique,oNavegador,depoisdechegaràMadeiraeaosAçores,nãoteriamseaproximadodascostasbrasileiras.Àsuamaneira,osportuguesesdominavamaextensão,acoreasvozesdomar,queosconvidavaaolharalémdohorizonte.Eagora,superadasasdificuldadesdaviagem,eramrecompensadospelaatraçãodosol,daluminosidadee...dolucropossível.No início, para os aqui desembarcados, não era oVerbo,mas sim o nada.

Apenas matas, medo e solidão. E um vasto litoral, desconhecido, que maisameaçavadoqueacolhia.Umespaçoaparentementedesabitado–apalavrajáexistia e designava o locus desérticos –, o lugar sem viva alma. Além daspraias,odesconhecidogentio:escondido,armadoeperigoso–eque,namaiorparte das vezes, podia receber estranhos com uma chuva de flechas. E, nointerior,terrasincultas,cobertasdedensasmatas,difíceisdetrabalhar.Frenteàpaisagem infinita, pairava a pergunta que lançara os portugueses à aventuraultramarina:queextraordináriasoportunidadesosaguardavam?Nadase sabia sobreoshabitantesdessa terraensolarada.Seriagentecomo

eles ou criaturas estranhas, bizarras, desnaturadas? Como adentrar essa terradesconhecida, que ultrapassava a imaginação e provocava ao mesmo tempoangústias e exaltação? Acreditava-se, então, na existência de povos

desconhecidos,descritosemrelatosdeoutrasviagens,mastambémsaídosdeimagensqueatradiçãosupunhaexistirnosconfinsdaTerra.OParaísoTerrealteria ali sua porta de entrada? Encontrariam, por acaso, a temidaMantícora,fera da Índia, forte como um tigre, gulosa de carne humana? Mulheresbarbadas, que portavampedras preciosas nos olhos e cauda que lhes saía doumbigo? Altas montanhas de ouro guardadas por formigas, grandes comocachorros? Vales perdidos, onde se ouvia o ruidoso barulho das hostesdemoníacas?Nãosepodiaduvidardenada.Afinal,opróprioSantoAgostinhodissera que Deus enchera céus e terras de inúmeros milagres e raçasmonstruosas,guardiãsdasPortasdoÉden.Ao olharem a imensidão desconhecida, os viajantes nelas projetavam

informações que circulavam no Ocidente cristão. Sonhavam sonhos deriquezas, como as que sabiam existir nas Índias Orientais: pedras preciosas,sedas,madeirasraras,chá,saleespeciarias.Ideavamcidadesdeouroeprata,poisnomescomoOfireCipangocirculavam,emboraasminassul-americanassótenhamsidodescobertasem1520.Presumiamcrescerapreciosapimentaoua noz-moscada, iguais às doOriente, descrito porMarco Polo,mas, temiamtambémsóencontrardoença,fomeemorte.Sobtemperaturasamenas,deviamselembrardaspalavrasdeSãoBoaventura,queinformavaDeustersituadooparaísojuntoàregiãoequinocial,regiãode“temperançadeares”.OuaquelasdeSãoTomás,maisincisivoainda:ojardimamenoestarianazonatórridaparaosul.Seriaali?Afinal,osonhoeaambiçãosempretiverampartenasviagensultramarinas.

Asobrevivência,ostrabalhoseosdias

Rapidamente,osestrangeiros iriamentenderque,de tantos sonhos,poucoounadaexistia.Arealidadeseimpunha:aterraera“dosPapagaios”eassimficouconhecida por algum tempo, passando depois a “terra de Santa Cruz” e,finalmente,aBrasil,porcontadamadeiratintorialquecrescianacosta.Paraosrecém-chegados,quotidianus era palavra datada do séculoXII que definia oquepertenciaàvidadetodososdias.Significavaohabitual,obanal,otempodas tarefas.O habitual que preenchiamanhãs e noites que se sucediam.E otempoquepassava,semrelógiosnemotoquedesinosdasigrejasquepoucoapouco seriam construídas,marcando oAngelus, as ave-marias ou asAlmas.Enquantoosdobresnãoenchiamosarescomseusomalegreoutriste,osoleasestrelasnocéumarcavamhorasaproximadas.Nadadequatroestaçõescomona Europa. Muito calor e muito frio variavam de acordo com as latitudes.Contava-seotempocomorações:“Otempodeumaouduasave-marias.”Oucom as funções fisiológicas: “O tempo de umamijada.”Umgalo trazido dePortugal fazia as vezes de relógio: cantava a primeira vez à meia-noite, asegunda,àsduasdamadrugada,eaterceira,aoromperdaaurora.

IlhasdoAtlântico:locaisdeabastecimentodascaravelas.LINSCHOTEN,JanHuygenvan.Insulad.Helenaesacracoeliclementiaetaequabilitatesoli

ubertateetaquarumsalubritatenullifecunda.HOLANDA:IMPRENTAHAGAECOMITIS,1589.

Do grego dyas, ou número dois, a palavra “dia” designava duas partes: aescuridãoeaclaridade.Odiaeraotempoentreosolnascidoeosolposto.Àépoca,haviamuitostiposdedias:oservil,quesegundoodicionaristaRaphaelBluteau ia“daauroraouda luzdamanhãparanosaproveitarmosdoserviçoatéqueaextremidadee fimdomesmono-lo tolhem”;odiaArtificial, assimchamadoporque erao tempoemque se exercitavam todas as artes, leiam-seofícios: o de ferreiro, o de sapateiro, o de tanoeiro, que fazia tonéis, entreoutros; os dias Santos; os de Peixe, ou seja, de comê-lo; de Finados ou doEntrudo. “Embonsdias,boasobras”, insistiaodicionarista,um jesuíta.Semrelógios, falava-se em “quartos e quartos de hora”. Cada hora se dividia em“partesmaioresepartesmenores”divididasemquatro.Logo, viver na colônia nos primeiros dois séculos de ocupação significou

paratodososqueaquiaportaramumasucessãodediasnosquaissesobrevivia,trabalhando e aprendendogestos, aperfeiçoando-os e repetindo-os como fimde se manter vivo. Pior, nossos antepassados eram “desassistidos”, outrapalavradeépocapara“desatendidosemquemnãosecuidavaounãosefaziacaso”.Afinal,tudopareciaconfirmaraopiniãodeAméricoVespúciosobreasterrasachadasporCabral:“Pode-sedizerquenelasnãoencontramosnadadeproveito.”De longe, e interessada no lucrativo comércio com o Oriente, a Coroa se

dispunha somente a distribuir machados e enxadas para os portuguesesinstalados nas precárias feitorias espalhadas pela costa. Vindas de Portugal,expedições exploradoras encarregadas de detectar eventuais riquezas e deespantarpiratasecontrabandistasestrangeirospassavamdetemposemtempos.Dom Manuel, dito “o Venturoso”, que morreu em 1521, se preocupavaprioritariamenteemcomercializarcomaÍndiaeoimpérioceleste:aChina.Pelaprecariedadeemqueviviam,osprimeirosdesembarcadosseinstalaram

a beira-mar. Apenas o oceano, que isolava e ligava, garantia a mobilidadenecessáriaahomensecapitais,àsarmaseàinformação.Masoquefariamali?Frente a frente como desconhecido, com a extraordinária precariedade, comobstáculos e incertezas, grupos de indivíduos desenraizados investiram emconstruirumasociedadeeuropeiasobreosombrosdoshabitanteslocais.Mas quem eram eles? “Índios.” A designação resultou do engano de

Colombo,que,aochegaràAmérica,achouquetinhachegadoàsÍndias.Entrenós,elaserviaparacaracterizarasmaisdiversasetniaseculturasnativas.Nafaixa costeira timidamente incluída nos projetos da Coroa portuguesa, se

espalhavamindígenasvivendodocultivodaroça,complementadopelacaça,apescaeacoleta.Sóemalgumasregiõesseencontrariamcacicados.Alínguadecomunicaçãoerao tupi,que se transformouna língua franca.De“corparda,em geral bem formados, de nariz e rosto bonitos”, no relato do escrivãoCaminha, os índios andavam nus, o que foi percebido como uma forma deinocência e estupidez. A ornamentação com penas coloridas e tatuagens,“espécie de tecido assaz belo”, impressionou. Obviamente foi inserida noimaginário por meio de classificações europeias. Mesmo pertencendo adiferentes nações, tamoio, tupinambá, caeté ou potiguar, passaram a ser“gentios”. Na Europa, as especulações sobre sua origem interrogavam ossábios.Afinal,nãoerammencionadosnaBíblia...SeriamumadasDezTribosPerdidasdeIsraelousobreviventesdaAtlântida?Para a Igreja Católica e os jesuítas que logo vieram para o Brasil, o

importanteeradestacarsua“humanidade”eseupendorparaacristianização.Entusiasmado com a perspectiva de convertê-los ao catolicismo, padreNóbrega,em1563,gravouque,como“papelbranco”,nelessepoderiaescreveràvontade.Muitos leigosou religiososdiscordavamde tal interpretação.Easdúvidassobresuadisposiçãoparaabraçara“verdadeirafé”veiologodepois.Para muitos, os índios não pronunciavam as letras “f”, “r” e “l” porquedesconheciamleis,reisefé.Canibalismoefeitiçariaalimentavamacrençadequeeramsimplesmenteselvagens.Seeram“creaturasdeDeus”,nãopassavamde seres inferiores que deveriam servir aos empreendimentos coloniais. Paraevitaramaiordegradaçãodessesquase“animaes”,melhorseriaescravizá-los.Desde 1502, a exploração do pau-brasil a ser extraído nos domínios da

América fora arrendada a alguns comerciantes de Lisboa, dentre os quais ocristão-novoFernãodeNoronha.Apromessadosarrematanteseraaseguinte:explorar até trezentas léguas da nova costa, construindo fortificaçõesadequadaseconservando-asportrêsanos.Feitoriaslitorâneasseestabeleceramno Rio de Janeiro, Cabo Frio, Pernambuco, Porto Seguro e ilha de SantoAleixo.Foidado,então,o iníciodopovoamentocomaajudamas tambémoapresamentodeíndios.AnauBretoa,queaportouemCaboFrioem1511,nãosó carregou pau-brasil, mas levou consigo alguns deles, além de aves epequenosanimais.

Índios:sobreviventesdoParaíso?JULIÃO,Carlos.Índios:homememulherrecobertosdepelos,empunhandoarcoeflechase

folhagens.S.D.

O escambo era a base das relações.Um documento redigido em 1526 porEnrique Montes, náufrago que viveu entre índios e, consequentemente, um“língua”–nomequesedavaaosportuguesesqueaprendiamotupi–,revelaavariedade das trocas: anzóis, adagas e facas de baixa qualidade, espelhospequenos, pentes, tesouras grandes e pequenas, parafusos velhos, galinhas epatoseramtrocadospor“cabaçasdemelemfavos”,cargasdemilho,“porcos-monteses”, provavelmente capivaras, peles de tatu para fazer armaduras paracavalos,ostras,palmitoseveados.Aoincentivaraaberturaparaoutrosmundos,omarpermitiaolevaetrazde

mercadorias e degente, poismuitos índios já seguiamcomoescravospara aEuropa. Os portugueses não usaram uma comunicação baseada naconfrontação intelectual, mas foram, sim, hábeis em resolver problemas deadaptaçãoesubsistênciapormeiodohábitodetrocas,bastanteexperimentadonoMediterrâneoenoNortedaÁfrica.Capazesdedesembarcar,seinstalar,seinformar e negociar, graças ao aprendizado da chamada “língua geral”, semovimentavamcomopeixesnaágua.Seemmaiode1500,dePortoSeguro,oescrivãoIsaíasCaminhaescreveua

d.Manueldizendoqueos índios “não lavravam”, se enganou redondamente.Pois os recém-chegados, desde o início de sua instalação, foram favorecidospelaelaboradaagriculturaeoconhecimentosofisticadoqueos índios tinhamsobreasespéciesanimaisevegetais.Raízescomoamandiocaeabatata-doce,asabóboras,omilho,omeldeabelhasselvagensoumesmoalarvadetaquarae a bunda da formiga tanajura faziam parte do cardápio substantivo que osmantinha.Osportuguesesaprenderamtambémaabaterárvores, fazercoivaraqueimando troncos, limpar os terrenos e depois o plantio, a erradicação deervas e a colheita do nutritivo tubérculo. Dele derivaram, segundo registroumais tarde um dos primeiros cronistas do Brasil, o colono de origem nobreGabrielSoaresdeSouza,“beijusmuitosaborosos, sadiosedeboadigestão”.Trigoparaopãonossodecadadia?Nempensar.Nanovaterra,segundoele,que chegou ao Brasil em 1569 para administrar seu engenho em Jaguaripe,Bahia,“umbichinhocomiaosgrãosenterrados”.Até então desconhecidas dos europeus, frutas como araçá, cajá, gabiroba,

ingá, jabuticaba, jatobá, pequi, pitanga e umbu – somente para citar algunsexemplos – deliciavam.Mais importantes ainda eram as palmeiras. Desde ocomeçodainvasãocolonizadora,osportuguesesficarammaravilhadoscomosmúltiplos usos dessa planta. Existiam vinte espécies conhecidas. Delas era

extraídoopalmito,alimentoconsumidonãosomentenasaldeias,mastambémnosmomentosdecaçaedeguerra,quandoeranecessárioadentrarnafloresta.As palmeiras também forneciam diversos tipos de frutas destinadas àfabricaçãodeóleos,empregadosnapreparaçãodealimentosemedicamentos.Uma vez amassadas e fervidas, elas eram transformadas em um pó decoloraçãocastanha,queporsuavezeraregularmenteconsumidocomosal.Dasfolhasdapalmeiraproduzia-seamatéria-primaparaforrarotetoeasparedesdascabanas.Omesmomaterialpermitiaafabricaçãodecestos.Dasfibrasdobroto eram elaboradas cordas. Das palmeiras que possuíam casca espinhosa,fabricavam-senãosóornamentoscomotambémraladoresdemandioca.Osíndios,tambémchamadosdebrasís,ensinaramosportuguesesautilizara

floravariadanavidaprática:folhasdecapimselvagemserviamdelâminasdebarbear; o fruto da bignoniácea era usado como pente; o capim-flecha setransformava em delicadas pinças para arrancar pelos. As castanhas-de-caju,comoafirmaumviajantedepassagemnaPernambucoseiscentista,serviamdecalendários: “Quanto aos algarismos, não passam de cinco. Devido a isso,utilizam-sedecastanhas-de-caju–cujofrutotorna-semaduroapenasumavezporano–emvezdeumcalendário,paramarcaroano[...]Porisso,quandosedesejasaberdelesháquantotempoaconteceuissoouaquiloouaidadedestapessoa,temqueseperguntarpelonúmerodecastanhas.”Ariquezadaflorestaensejouoarmazenamentoeocuidadocomalgumasplantasquepassaramasersemicultivadas.Dependentes das culturas e saberes indígenas, os colonos deles se

apropriaram. Ocorreu entre brancos e índios um jogo de trocas ereciprocidades.Osnativosacabaramse inserindonaeconomiacolonialcomoprodutores de excedentes para trocas. Seus grupos passaram a depender deprodutos manufaturados: anzóis, machados, armas. Em resposta, ofereciamsuasmulheres,alimentoseprodutos tropicaiscomoformasde inserçãonumasociedade nascente.Os primeiros descobriam a variedade domundo em queestavam graças aos segundos. Mas ai destes se resistissem ao projeto decolonização.Erammassacrados.PassadoscinquentaanosdachegadaaoBrasil,o rei d. Sebastião escreveu ao terceiro governador-geral, Mem de Sá,elogiando-opela“pacificação”dacolônia:“Recebiasvossascartas[...]eporelas soube como a capitania de Vasco Fernandes Coutinho ficava muitopacificadaeoseugentiotãocastigado,mortostantosetãoprincipais.”Porsuavez,em1570,oprópriogovernador-geralrelatariasuasfaçanhas:

Entreinos Ilhéuse fuiapédaremumaaldeiaqueestavasete léguasdavila [...]deinaaldeiaedestruí todos os que quiseram resistir, e na vinda vimqueimando e destruindo todas as aldeias queficaramparatráse,porogentioajuntarevirmeseguindoaolongodapraia,lhefizalgumasciladasondeoscerqueie lhesfoiforçadodeitarem-seanadoaomar[...]mandeioutros índiosatrásdelesegente solta que os seguiram perto de duas léguas e lá no mar pelejaram de maneira que nenhumtupiniquimficouvivo[...]eospuseramaolongodapraia,porordemquetomavamoscorpospertodeumalégua.

Porironiadodestino,naaldeiadomorubixabaUruçu-mirim,noatualmorroda Glória,Mem de Sá recebeu uma flechada no rosto, emmeio à luta pelaexpulsãodeumacolôniafrancesanoRiodeJaneiro.Faleceuummêsdepois.

P ara os recém-chegados, a atividade possível vinha da exploraçãodopau-brasil,belaárvorequetementre10e15metrosdealturaque se espalhava nasmatas, doRioGrande doNorte aoRio deJaneiro. E a extração da Caesalpnia echinata, com suasperfumadasfloresdepétalasamarelasevermelhas,sefazia junto

comos índios.Primeiro eles ensinavamedepois ajudavamaabater, cortar etransportar até as praias e naus a preciosa madeira em troca de espelhos,quinquilhariasepequenasfacas.Doipirapitanga,seunomeoriginal,seextraíaumpigmentocapazdecolorir

tecidoseserusadocomotintaparapinturadetelasepapel,alémdepermitirafabricaçãodemóveis.Opau-brasil,assimchamadopelacordebrasaemseumiolo, foi trazido da Índia pelos árabes desde o século XI, através do marVermelhoedoEgito, espalhando-sepeloscentrosmanufatureirosdaEuropa.NotíciasdoséculoXIIindicamsuapresençanaItália,naFrançaeemFlandres.No século XIII, passava, olímpico, às alfândegas de Gênova, Ferrara eMódena.AEspanhapassouaimportá-loeemPortugal,desdeoreinadoded.Duarte e d. Afonso V, já era empregado. Seu valor no mercado europeujustificavaointeresseemarrancá-lodenossasmatas.SegundoGasparCorreia,em seu Lendas da Índia, Pedro Álvares Cabral já teria levado consigo umprimeirocarregamento.Do nascer ao pôr do sol, grupos que incluíam estrangeiros – franceses ou

ingleses–seatarefavamnaatividadeque,quandosefaziacomocontrabando,era realizada às escondidas, numa pequena baía ou praia abrigada.Afinal, opau-brasileramonopóliodaCoroaesobresuaextraçãopesavamimpostosdosquais se tentava escapar. Datam de 1505 as primeiras contas da Feitoria deAntuérpia, encarregada da distribuição oficial de pau-brasil: cerca de 20milquintaisporano.CarregadaemCaboFrio,apreciosamadeiraseguiajuntocompapagaios,periquitos,macacose,sempre,índios.Oescamboerarealizadonasdependênciasdefeitorias,galpõeselevadosecercadosdeestacasparaprevenirataquesinimigos.Aonorte,nalongacosta,seguia,porém,ocontrabandocomoutrosparceiros:franceseseespanhóis.Mas era preciso que a gente portuguesa compusesse com as populações

indígenas,compartilhandoummesmodestino.Natradiçãotribal,aúnicaformadese relacionarpacificamentecomestranhosera integrando-osnumarelaçãode parentesco. Isso ocorria mediante casamento com uma das mulheres da

aldeia, fazendodobrancoumcunhadoougenro.E, futuramente,um tio,umpai e um avô. Tal estratégiamatrimonial não foi uma criação europeia. Foi,sim,umacordofortuito.Funcionoucomoummododeorganizaratransiçãodaprodução coletiva para a de excedentes regulares – o pau-brasil, sendo oprincipalinteressedoladoeuropeu–ouaprestaçãodeserviços,comooreparodenausemtrocadeinstrumentosdeferroequinquilharias.Oscasamentosdealiançativeramamesmaformacomtodosospovoseuropeusquemantiveramcontatonaáreatupi-guarani.NomescomoosdeCaramuru,JoãoRamalhoouJerônimodeAlbuquerque,

“oAdãodePernambuco”,assimconhecidopelonúmerodefilhosquedeixou,sãoosmais lembradosquando se falademestiçagem.PadreAnchieta, ao sereferiraosistemadeparentescodostupinambás,contaque,portodaacostaeosertão, os portugueses recebiam moças doadas por seus pais e irmãos naesperança de ganhar do estrangeiro sua boa vontade. O que para muitos,inclusive o jesuíta, parecia “luxúria” das índias, era apenas empenho emconseguir uma aliança indispensável frente às violências que iam sendoperpetradas.ÉdeAnchietaaexplicação:

Eaindaqueosportuguesesastivessemcomomancebas,contudoastinhamdepraçanasaldeiasdosíndiosouforadelas,commulher,filhosefilhasporqueparaosíndiosissonãoerapejonemvergonhaelheschamavamtemericô,amulherdeN,eaelesgenros,eosportuguesesaospaisemães,sogrosesograseaosirmãoscunhados,elhesdavamresgates,ferramentaseroupasetc.,comoosíndiosaquechamamgenroslhesvãoroçaroupescaralgumasvezes.

Otrabalhoindígenaerafundamentalnocorteenotransportedopau-brasil.THÉVET,André.LesSingularitezdelaFranceantarctique,autrementnommeeAmerique.

PARIS:CHEZLESHERITIERSDEMAURICEDELAPORTE,AUCLOSBRUNEAU,AL’ENSEIGNES.CLAUDE,

1557,P.117.

A instauração de capitanias hereditárias impactou relações relativamentepacíficas.Oconfiscodeterrasindígenaseotrabalhoagrícolaforçadoimpostoàspopulações foramumgolpemortal aosautóctones.Pior:oshomens, antesguerreiros e caçadores, agora se viam reduzidos às tarefas femininas eesmagadosnumritmodetrabalhopróximoàescravidão.LembraJorgeCaldeiraque,aoserentregueporcamisaeferramentas,oíndio

cruzouduas fronteiras importantes.Deixoudesermembrodeumasociedadeondeocomunitarismoeraregraesetornoupartedeumasociedadedominadapela produção mercantil. Em segundo lugar deixou de ser livre para serescravo.OpadrejesuítaJerônimoRodrigues,emexpediçãoaSantaCatarina,testemunhou:“Aummoço,vindoaondeestávamos,perguntamos-lhequemlhederaacamisaquevestiaeelerespondeuquederaporela,ealgumaferramenta,umirmãoseu.”Os portugueses introduziram a prática do “resgate”, ou seja, a troca direta

que não envolvia moeda. O resgate era praticado, por exemplo, com índioscondenadosàmorte,depoisdecapturadosduranteconflitosintertribais,muitasvezesincentivadospelospróprioseuropeus.Emtrocadesuavida,osinfelizestinham que os servir até a morte. O mesmo ocorria com as mulheres. Um“resgate” era oferecido em troca do pedido de casamento e de presentes àfamíliadajovem.Aseguirelaserviriaaoseucompanheiroparasempre,assimcomoseusfilhos,mamelucos.Quando,em1531,oprimeirodonatáriodacapitaniadeSãoVicente–atual

estadodeSãoPaulo–,MartimAfonsodeSouza,chegouaoBrasil,encontroudegredadosvivendocomosíndiose,comoresultadodessaintimidade,muitosmamelucos. Para muitos autores, os mamelucos foram os mais enérgicosagentes de ocidentalização. Foram eles que reduziram e escravizaram quasetodos os índios agricultores capacitados para o trabalho nas plantações,inclusive os já integrados às missões jesuíticas. Foram eles também queestenderam, por meio de “bandeiras”, a possessão portuguesa a oeste, atéencontrarosAndes;aosul,atéoriodaPrata;eaonorte,alémdoAmazonas.Forameles,ainda,quefundaramasociedadebaseadanocultivodamandiocaedomilhoenastécnicasdecaçaepesca,assimcomonoartesanato.Parapovoarasterras,juntaram-seaosmamelucososdegredados.Nanauque

transportou Martim Afonso, vieram mais de quatrocentos, entre colonos esoldados, para serem deixados aqui. E eles podiam ser admitidos no serviçopúblico,naarmadaounosofíciosdaFazendaeda Justiça, comexceçãodos

acusadosde rouboe falsificações.DenadaadiantaramascartasdodonatárioDuarteCoelhoaoreique,em1546,reclamavam:“PeloamordeDeus,quetalpeçonha para aqui não me mande.” PadreManuel da Nóbrega, encarregadopela Companhia de Jesus da conversão do “gentio”, concordava, em 1549:“Mal-empregada essa terra em degredados que cá fazem muito mal!” Eramchamados“patifes”enodizerdemuitoscronistasnãotinhamnenhumapegoàterra. Apenas viviam. “Mais hóspedes do que povoadores... Só querendoenricarparavoltarparalá!”Sim,asgrandescidadesportuguesasqueriamseverlivresdoselementosque

pudessemabalarapazsocialoureligiosa.Falava-seem“alimpar”asruas.Osprimeiros“lançados”ou“atirados”foraminicialmentedeixadospelaspraiasafimdeaprendera línguadosnativoseatuarcomointérpretesnoescambodopau-brasil em “Pindorama dos tupis”. A seguir, vieram vadios que ficavampelas ruas à noite, alcoviteiras encarregadas de facilitar encontros galantes,ladrões de galinhas ou perseguidos por furtar “uma mão de trigo”, roubarbolsasnaRibeiraoufrutasnasárvores,alémdeheréticos,feiticeiros,adúlteraseciganosacusadosde“falargeringonça”,ouseja,seudialeto.Invariavelmentefaziampartedogrupodeproscritosenviadosaferrosondefaltavamãodeobra.Houvequemtivessesidodegredadoporassoaronarizempanosdaigrejaou,emsendopadre, falar commulheresem“tom torpeedesonesto”.Valia tudoparapurificarametrópole.Emmaiode1535,umalvaráordenavaqueosoriginalmentedegredadospara

ailhadeSãoTomépassassemaserenviadosaoBrasil.Homiziados,ouseja,aquelesqueviviamfugitivosdaJustiça,poderiamvirparaacapitaniadePerodeGóis,semlácorreroriscodeserem“presos,acusadosnemdemandados”.Felizes? Não necessariamente. Muitos se queixavam de sofrimentos eprivaçõesvividosnoBrasilenãoescondiamseudesejoderegressaràpátria.Choravam as saudades de parentes e amigos. Imploravam com insistência operdãorealemuitoschegaramapedirclemência.Climaedoençascobravampreçoelevadoporsuasfaltas.Semesquecerque,sobretudoparaosdegredadospelo SantoOfício da Inquisição, enviados à Terra de SantaCruz para pagarpecados, não faltava vigilância, sobretudo pelas denúncias de vizinhos.Cuidava-se para que não difundissem suas práticas “insanas” e múltiplas“culpas” nos territórios colonizados. O Brasil era mesmo o “purgatório” dePortugal.Degredadosemamelucosacabaram tambémporpromoverumdensocaldo

deculturas.Veja-se,porexemplo,ocasodecertamulataMariaBarbosa,cujo

degredocomeçounametrópole,emÉvora,bastiãodosjesuítasedaInquisição.Processada por feitiçaria, ela foi enviada a Angola. Lá, prosseguiu suasatividades aliando feitiçarias e alcovitice. Na costa africana, uma verdadeiraantecâmara de mestiçagens, Maria teria convivido com os tangomaus,aventureiros de origem incerta, contrabandistas europeus, traficantes deescravos, além de ter visto passarem escravos cristãos portando amuletos efetiches, mal disfarçados sob as contas dos rosários. De lá, veio paraPernambuco, onde, em 1610, foi acusada de feitiçaria e prostituição. UmafricanolheforneceriaaservasnecessáriasaosrituaisaprendidosemAngola.ObispodaBahiaaremeteudevoltaaLisboa,paraserjulgadapelaInquisição.Mas o barco em que viajava foi assaltado por piratas, e ela, abandonada àprópriasorteemGibraltar.ChegouaPortugal,depoisdemendigaratravésdaAndaluzia,ondeseapresentouaoSantoOfício.TevepenaleveefoiproibidadevoltaràBahia.Mundializaçãoavantlalettre?MariaBarbosaéumexemplodecomopessoas,crençasepráticascirculavameinteragiamnessestemposemqueosoceanoseramestradastrilhadascomregularidade.Do norte de Portugal, sobretudo de Viana do Castelo, vieram muitos

lavradores e comerciantes para cá. E a eles se uniram indivíduos de outrasnações, como franceses ou corsários ingleses, flamengos ou alemães, quedeixaram,porsuavez,suasmarcasnapopulação.NáufragonaregiãodeSãoVicente, o alemão Hans Staden, por exemplo, foi bem recebido pelosportugueses,que,quandosouberamqueeleentendiadeartilharia,pediram-lhe,segundocontaopróprio,“paraficarnoforteeajudá-losavigiaroinimigo”:osíndios.Namesmacapitania,umafamília flamengamantinhaumengenho:osSchetz ou Esquetes, como aparecem na documentação: “Uns senhoresprincipais de Flandres muito católicos e devotos da Companhia de Jesus”,esclarecia o padre Anchieta. Ou ainda John Withall, conhecido como JoãoLeitão,quecomerciavatecidosdiversos,mantosparamulheres,tesouras,facasefechaduras,sabãoepregosvindosdaInglaterra.Para combater os concubinatos com índias, padre Nóbrega oferecia ao rei

umasolução:“Parece-me coisamuito convenientemandar SuaAlteza algumasmulheres

que lá têm pouco remédio de casamento a estas partes, ainda que fossemerradas, porque casarão mui bem, contanto que não sejam tais que de todotenhamperdidoavergonha.”Os africanos começama chegar a partir de1533.Emcartadatadade3de

marçodomesmoano,PerodeGóisinformavaquepretendiareceberdezessete

peçasdeescravos“forrosdetodososdireitosdefretequesoepagar”.Apartirde 1559, de Pernambuco, era a vez de Duarte Coelho mencionar o assuntoreiteradasvezes.Peloalvaráde29demarçode1559,oreifaziamercêàquelesque tinham construído engenhos noBrasil, permitindo-lhes “mandar resgataraoriodoCongoedelátrazerparacadaumdosditosengenhosaté120peçasdeescravosresgatadasàssuascustas,osquaisvirãononavioqueoditofeitor(dailhadeSãoTomé)láenviarparatrazerosescravos”.Desde 1486, e do primeiro encontro do navegador Rui de Sequeira com

Ewuaré, rei de Edo, no Benim, a vida do reinomudou: a expansão cresceugraças ao comércio, e, encorajado pelos portugueses, ele passou a buscarcativosentreasnaçõesinimigas.NascostasdaGuiné,aosuldorioSenegal,oslusos trocavam latão e cavalos por pimenta-malagueta, escravos e ouro. Umanimal com seus arreios valia catorze homens. Em Akan, os portugueseserigiram uma cidadela, Elmina, onde comerciavam pepitas de ouro e,devidamenteabastecidospelospequenosreinadossenegalesese,desdeofinaldoséculoXV,peloreidoBenim,vendiamescravosaosAkan,instaladoscomosenhoresnaregião.Ocomérciointernoeraintenso.A presença de portugueses no litoral ocidental daÁfrica e a circulação de

mercadorias transformaram a região de Elmina num espaço de trocas paradiferentes etnias: Fula, Wolof, Mandingas, Popos, Ewe, entre outras, semcontar os grupos que vinham das savanas para comercializar com osestrangeiros.Convencidodequeosportugueses,portadoresdecavalosearmasde fogo, o ajudariama aumentar seupoderio, o rei doBenimos autorizou ainstalarumapequenamissão.Nãodeucerto.Ocristianismoera incompatívelcomafunçãoreal,poisestaemanavadeumaessênciadivinaquepermitiaaosoberanoserveneradoetemidoporseussúditos.Eessenãofoioúnicosoberanoaseinteressarpeloslusos.Outroreisagrado,

o Mani Kongo, também quis tirar partido da chegada dos estrangeiros. Oprimeiro a acostar suas terras, na boca do Zaire e de Angola, em 1485, foiDiogo Cão. Quando os viram sair “do ventre da baleia”, pois assim lhespareceram as primeiras caravelas, os forasteiros foram tomados porbakulús,mortosquevivemsoba terraedequememprestavamascores.Semdúvida,taismundelé, os estrangeiros, vinham lhes anunciar o retorno dos ancestrais.Depoisdemuitopalavreado, ficouclaroque,graçasa eles e aosobjetosquetraziam,aterradoKongoconheceriaabundânciaepoder.Portuguesesseriamoaugúriodaboafortuna.Instalada emMbanzaKongo, a capital foi erigida sobre uma colina, e em

pouco tempoo reino se beneficiouda eficácia das armasde fogo, das novastécnicasedocomérciodeescravos.Cresciaopoderdorei,amparadotambémpelosenormesestoquesdecauris,moedausadaentrenaçõesafricanas,colhidaspertodailhadeLuanda.Em1491,umarevoltanosmercadosfoisufocadacomajuda de Ruy de Souza e seus homens. Aparentemente convertido aocatolicismo,vestidocomsedaseuropeias,acostumadoàspérolasazuis,vinhobranco e cachaça de uva, o Mani Kongo, tão próximo dos portugueses, aomorrerdeixouseufilho,NzingaMbemba,notrono.Onovosoberanoassumiuo poder em 1512, apesar da hostilidade dos dignitários do reino, que oacusavam de voar pelos ares e secar os rios, graças a sortilégios cristãos.Batizado,edoravantechamadodomAfonso,elemandouqueimaros“feitiços”quelembravamseusancestraisesejogounosbraçosdosestrangeiros.Seu filho, batizado dom Henrique, foi ordenado em Lisboa. E, em 1521,

tornou-se vigário apostólico, honraria que nenhum índio americano jamaisrecebeu. Bom cristão, o rei do Kongo enviou ao papa Leão X presentessuntuosos, levados a Roma por uma embaixada conduzida pelo portuguêsTristãodaCunha.Entreeles,43animaisexóticos,assimcomoumelefantedoqual se dizia chorar como um ser humano e compreender a linguagem doshomens.Opaquidermenãoresistiuàstemperaturaslocaisetevedireitoaumepitáfio escrito pelo papa. Enquanto animais eram tratados como homens,homenseramtratadoscomoanimaiseembarcadosparaoBrasil.Começava nas primeiras décadas do século XVI o que Serge Gruzinski

chamoude“ograndetráfico”.Em1519,oreidePortugalinstalouumafeitoriaem São Tomé para controlar excessos. Tarde demais. A essa altura, ostraficantes e negreiros locais, amparados pelos comerciantes portugueses,tinhamsuas redesdeabastecimentoorganizadas.Dooutro ladodoAtlântico,tantolusosquantoespanhóiscareciamdemãodeobraparaexplorarasnovasterras. Não foi difícil encaminhar cativos para o Brasil. Em 1587, GabrielSoaresdeSouzacalculavahaverentre4e5milafricanosemPernambuco.NaBahia,segundoFernãoCardim,haveriaentre3e4mil.Desde o início da colonização, a presença de brancos, negros e índios

resultou emmestiçagem.O termoprovémdo latimmixticius e erausado, naIdadeMédia,paradesignaro“nascidoderaçamisturada”.Apalavraseprestaa confusão, porque recobre uniões biológicas e entrecruzamentos culturais.Mastambémconfundeporsuasrepercussõesmúltiplas:numasociedadeondeostatusdo indivíduoeracodificadoeosdevereseobrigaçõesdependiamdolugarquecadaqualocupava, aposiçãodo“mestiço” inspiravadesconfiança.

TantomaisqueosprimeirosmestiçosnasceramlongedasprescriçõesdaIgrejae das autoridades metropolitanas, como veremos mais à frente. Mas eramreconhecidos e já constavam como verbetes nos dicionários portugueses:“Filhonascidodepaisdediferentesnações”,gravavaRaphaelBluteau.Amestiçagemfoisujeitaàviolência,inerenteàexistênciadetodoprojetode

conquistaepresentenodiaadia.Aconquista,porsuavez, impôsmudançasradicais: a instalação de instituições, de poderes, de crenças e valores, deformasdevidaurbanaedeumapaisagemagráriaibérica.Importou-se,então,umarsenaldepráticas,decostumesedetradiçõesquetinhaporobjetivonãoapenas as regras necessárias para a salvação das almas, mas também arentabilidade e a eficácia da dominaçãoportuguesa.Coube a esses primeiroscolonos inventar o que hoje chamamos de “ocidentalização” – um programagigantesco.Eraprecisoimporodireitoportuguês,aplicarosinterditosdasleiscanônicas,ensinaraleituraeaescritaalfabética,difundiramissaemlatim,ocasamento, a confissão e um grande número de atividades prosaicas – otrabalhocomferro,ohábitodebebervinhooudeusarcalções!Mais:orompimentocomocontextoancestralnaEuropaobrigouhomense

mulheres a reconstruí-lo no cotidiano. A distância oceânica das relaçõesfamiliares, o enraizamento numa terra estranha e não cristã, a passagem dotempo longe do calendário festivo e religioso conhecido, a coexistência eintimidade com indígenas e africanos e tantas outras situações incidiramdiretamentesobreocomportamentodosindivíduos,àsuarevelia,masnãosemtransformarasvivênciaseasensibilidadedosrecém-chegados.A mestiçagem vingou. E mamelucos e mulatos foram o resultado desses

primeiros séculos de encontro, simbolizando suas contradições. Em 1711, ojesuíta André João Antonil, em sua obraCultura e opulência do Brasil porsuas drogas e minas, assim a resumia: “O Brasil é o inferno dos negros, opurgatóriodosbrancoseoparaísodosmulatos.”Adocumentaçãocolonialtrazmuitos reflexos da ação destes grupos, egressos de etnias dominadas,mas jábeneficiadas coma proximidade dos portugueses, contra negros, índios e atémesmo brancos. Que o digam alguns exemplos recolhidos no Ceará e RioGrandedoNorte:“Em 1710, o mulato Bento Coelho maltratara o principal dos índios de

Caocaya,InácioSuassu,porestelhetirarumíndioparaomandaraocapitão-mordafortaleza,FranciscoDuartedeVasconcellos,queopedira.”Em1708,os índios da aldeota de Iapora se queixaram de que “o mulato Pedro deMendonça”, que tinha por incumbência levar presas umas índias, conseguira

queCarlosFerreira,entãovice-capitão,“lhedesseordemparairaoutraaldeiavizinha prender quantos pudesse apanhar”. Em 1710, o mulato e mamelucoFélixCoelho,comunstapuiasseusescravos,prenderaumbrancoquemoravanoCuruguayau“querendolhecortarasmãosporelelheterdesfeitoumcurralqueàsescondidasfizeraseu terreno”.Nomesmoano,omesmomulato,comdois escravos, “moeu de pau” Luís Pereira Coutinho, moço branco e “bem-procedido”,obrigando-oaausentar-sedacidadeporquinzedias.E, enquanto os mulatos davam as cartas, o pau-brasil, que promoveu a

mestiçagem, já tinha desaparecido do litoral.No séculoXVIII, sua escassez,causada pela exploração contínua, preocupou tanto as autoridades que elastentaram estabelecer normas para sua extração. Ele vinha de longe e otransporte era providenciado em carros de bois, do interior para os portos.Visandoàpreservaçãodematas remanescentes, foramcriadosconservatóriosem Ilhéus e Alagoas. O contrabando, contudo, seguia sem asperidades. Em1808,comaaberturadosportosbrasileirosaocomérciodasnaçõesamigas,aInglaterraseguiasendoomaiormercadocomprador:10milquintaisanuais.Mestiçagem e trabalho cotidiano se deram as mãos para fazer a colônia

funcionarnosprimeirostempos.

Céuouinferno?

E como os antepassados viam a então chamada Terra de Santa Cruz? Aprincípio, o Brasil seria um país excepcionalmente saudável. “Terra fértil”,disseumdosnossosprimeiroscronistas,“etãosadiadeseunaturalquequaseescusamedicina”.Ouseja,aquinãosemorriadedoença,sódevelhice.PerodeMagalhãesGandavo, autor de umTratado da terra& história doBrasil,escritonosegundoquarteldo séculoXVI,obradepropagandada imigração,endossava:“Terradebonsares,boaságuas,salutíferaelivredeenfermidades.”E acrescentava: “Fértil e viçosa”, nela permanecendo a verdura, inverno ouverão.Alémdisso: “Tão deleitosa e temperada que nunca nela se sente frio,nemquenturasobeja.”EmtudosemelhanteaoparaísodeondeforamexpulsosAdãoeEva.

Osportuguesestemiamaantropofagia.HONDIUS,Hendrik.AccuratissimaBrasiliaetabula.Amstelodami.

HOLANDA,1633.

Nãofaltouquemcomparasseanossanatureza“fartaedadivosa”aoparaísoterreal.Aregiãolitorâneaaparecianaimaginaçãodenossosprimeiroscronistascomo uma extensa planície regada por cursos d’água, a brilhar sob solpermanente. E essa idílica paisagem foi sendo lentamente modificada pelapresença da agricultura. Expulsos ou chacinados seus habitantes nativos, asbordas das densasmatas começarama dar espaço aos camposondulantes doprimeiro produto trazido do exterior: a cana. Vindas da ilha da Madeira,chegavam,então,asprimeirasmudas.Mas, contra os otimistas, havia os pessimistas.Nosso primeiro historiador,

freiVicentedeSalvador,foiumdeles.Paraele,essa“porçãoimaturadaterra”se identificava às regiões infernais. Pois, se antes era a abençoada Terra deSantaCruzque,sógraçasaonome,santificariaseushabitantes,doravanteseria

Brazil. EBrazil vinha de brasa, de fogo, do vermelho de Satã e do inferno.Lúciferlevaraamelhoraoverassimdenominadoonovoterritório.Semcontar a presençados índios, algo entre animais e demônios, vivendo

bestialmenteemchoçasenfumaçadasefedorentas.“Muitodesonestosedadosàsensualidade,entregando-seaosvícioscomosenelesnãohouvera razãodehumanos [...] sem terem outros pensamentos senão de comer, beber ematargente”,queixava-seGandavo.Eoquedizerdocanibalismo,emqueoshomensassavampedaçosdecorposnomoquémeasmulheresecrianças lambiamosdedos engordurados de sangue? Para os primeiros colonos, os índios erammesmosimpatizantesdoCão.Contra os males da terra, o trabalho seria fundamental. Mesmo porque a

terra,osoleaschuvasajudavam.Aatividadecolonizadoradeplantarcanasealgodões, criar gado e mantimentos tinha o amparo do “excelente clima” e“salutíferosares”.Mastudocomobatente.Nadadepreguiça,que,segundoosportugueses,eracaracterísticaexclusivadosíndios.Deixando de lado o olhar atravessado por um véu de quimeras e sonhos,

nossos antepassados ocuparam a terra por meio de instrumentos queviabilizaramacolonizaçãomercantil.Assim,apartirde1534,comadivisãodoterritórioemquinzepedaçosdoadosadozedonatários,seimpôsumcotidianodetrabalhoenraizadonavidaagrícolaenaimportaçãodeafricanos.Omodeloda grande propriedade, monocultora e escravista, implantado por Portugalacabou por consagrar o poderio dos senhores de engenho,mas nempor issodeixou de azeitar a vida de pequenos e médios proprietários. Os que nãotinhamrecursosparaarrendarterrasgravitavamemtornodosengenhosqueseformariamdesdeoiníciodacolonização,comotrabalhadoresespecializadosdoaçúcarouprestadoresdeserviço.Anecessidadedecontrolaraproduçãopormeiodoengenhocomplicava,em

parte, a existência da pequena propriedade, desvinculada da produção e nãodestinada a fins comerciais.Apesardisso, e alémdos tradicionais senhores eescravos, aos poucos se instituiu um número expressivo de homens livrespequenos proprietários, lutando com a qualidade da terra e diversificando alavouratradicional.Deixadosemcontatomaisíntimoedemoradocomomeiofísico,sujeitosàs

agressões e a circunstâncias inteiramente novas de vida, os lavradores nãotardariamafazerrestriçõesàsasperezasdosolo,àsinconstânciasdoclimaease convencer, também, de que o novo território não era aquele paraíso dosentusiastas de primeira hora. E os colonos passaram do sonho ao pesadelo.

Antesdeseencerraroprimeiroséculodepovoamento,jáhaviaquemdissesseque “a terra não servia para colônia”, porque era “quente como vulcão edoentia”.Enãoseriampoucas,apartirdeentão,asalusõespessimistasdosquesóviamnopaís“enchentesmortíferasesecasesterilizantes,viveirosdelarvas,multidõesde insetosevermesnocivosaohomem”.Enfim, tudoaquideixavade ser sonho para ser desequilíbrio. A invasão da cana-de-açúcar e asconsequentes guerras indígenas geradas por esse fenômeno levaram aoprogressivo abandono da visão idealizada, presente nos primeiros relatoscoloniais.

BRY,Theodorede.IlustraçõesdeJeandeLéry.LeVoyageauBrésil.GALLICA,1592.

Equandodesciaanoiteouescurecia,noquepensavamnossosancestrais?Ah,a imaginação! Ela também era parte do cotidiano, assim como os seres

fantásticos saídos dela. Presentes em todo o Ocidente cristão, uma série demonstrosfariaarotadosnavegadoresemdireçãoaooeste,chegandojuntocomos primeiros colonizadores. Acompanhavam-se do olhar que os europeustinhamsobreonovocontinente,enquantoqueseperguntavam:oNovoMundoseriahabitadoporseresquedescenderiamdeMoisésouseriaoendereçofixodo demônio e, por isso mesmo, uma fábrica de mostrengos em permanenteprodução?Porestarazão,omagistradobordalêsPierredeLancre,famosoporjulgarprocessosde feitiçarianaFrança,diziaquenasbruxas francesashaviaresquícios de diabos caçados e expulsos da América. As criaturas teriamvoltadoàEuropaparasevingardeseusperseguidores.DentreoseuropeuscapazesdedetectarmonstrosnoBrasil,encontrava-seo

renomado gravador Theodor de Bry. Protestante e originário de Liège, naBélgica, foi autor de uma enorme coleção denominadaGrandes viagens, naqual colocou a técnica de desenho e reprodução a serviço do testemunho deviajantesedesuasnavegações.Nofinaldoterceirolivrodacoleção,háumaimportantegravuradenominada

O inferno brasileiro. Ela reproduz outra gravura, esta impressa por Jean deLéryparaacompanharorelatodesuapassagempeloRiodeJaneiro,ondefoiprisioneirodostupinambás,em1585.Nesserelato,eledetalhava:“Durantesuavida,ospobresselvagenssãoterrivelmenteafligidospeloespíritomaligno(aoqualchamamkaagerre),que,comovi,váriasvezesosataca[...]elesdizemquevisivelmenteoveememformadebestaouave,ouemoutraformaestranha.”NasgravurasdeBry,otemasofreuoimpactodoscódigoseuropeussobreo

caráter diabólico dos habitantes do Brasil. A cena descortina uma paisagemlitorânea, na qual o mar faz a linha do horizonte com o céu. Uma suavemontanhamorre na costa. Duasmeias palmeiras fazem a borda da imagem,espécie de janela para a esplanada infernal. Uma pirâmide humana amontoacorpos atormentados. Um deles se inclina sob os golpes desferidos por ummonstruoso e sarcástico demônio. Soberbamente enfeitado com asasescamosas, chifres, garras, cauda bifurcada, coxa peluda e sexo ornado comuma cabeça satânica, ele parece cristalizar todos os vícios. Dois outrosmonstros rasgam o céu, de olho em suas vítimas: um, meio pássaro, meioserpente, tem a pele coberta de escamas e um bico pontudo. Outro, asas

enormes abertas, escarra seu veneno. No mar pululam peixes-voadores combicos,chifresetamanhoanormal.Nocentrodagravura,outracriaturamonstruosaextraídadolivrodeLéry:o

hay.E a legenda: “Omaior animal, queos selvagens chamamhay, é grandecomo um cão d’água com a face de um macaco, próxima daquela de umhomem. O ventre pendente como o de uma porca prenhe, o pelo cinzaesfumaçado como o da lã do carneiro negro, a cauda bem curta, as pernaspeludascomoasdoursoeasgarrasmuitolongas.”Ninguémadivinhariaqueportrásdahorrendacriaturaestariaoinofensivobicho-preguiça.Inúmeras crenças sobre criaturas extraordinárias, capazes de assustar, mas

também de despertar a curiosidade, se multiplicavam. Acreditava-se existir,entreaatualVenezuelaeasGuianas,umafamíliadehomensquenãotinhamcabeçaecomolhosnotórax.SirWalterRaleigh,quelevou,em1585,otabacoparaaEuropa,diziatê-losvistoali,localizando-oscomomoradoresdeCaora.Outro cronista assombrado com as criaturas fantásticas da Terra de Santa

CruzfoiocapuchinhofrancêsYvresd’Evreux,queconviveuentreosíndiosdoMaranhãoduranteaocupaçãofrancesaequepublicouumlivroem1615.Nele,afiguramíticadeJurupari,oprimeirosenhordocultomaisvastoecomumatodas as tribos, embaixador do sol, senhor de rito exigente e precauçõesmisteriosas, surge como fonte de terror para os tupinambás com os quaisconviveu. Mas também de diabolização por parte dos padres catequistas.Contoud’Evreux:

Pensamque os diabos estão sobo domínio de Jeropary, que era criadoporDeus e que por suasmaldadesDeusdesprezou,nãoquerendomaisvê-lo,nemaosseus.DizemtambémqueJeroparyeosseusacólitos têmcertosanimaisquenuncaseveem,quesóandamànoite,soltandogritoshorríveisqueabalamtodoointerior(oqueouviinfinitasvezes)comoqualconvivem,eporissoochamamSooJoropary, ‘animalde Joropary’, e creemque tais animais servemaosdiabosoradehomens, orademulheres,eporissonósoschamamossúcuboseíncubos,eosselvagens,KugnamJeropary,amulherdoDiabo,eAuaJeropay,ohomemdoDiabo.Hátambémcertospássarosnoturnosquenãocantam,mas têm um piado queixoso, enfadonho e triste, que vivem sempre escondidos, não saindo dosbosques, chamadospelos índiosdeUyraJeropary, ‘pássarodoDiabo’.Dizemquediabos comelesconvivem,quequandopõeméumovoemcadalugar,eassimpordiante,quesãocobertospeloDiaboequesócomemterra.

Não só Jurupari,mas também oCurupira – que provavelmente inspirou otermo“caipira”–foidosprimeirosduendesselvagensqueamãodoeuropeufixou em papel e comunicou ao outro lado do Atlântico. Em carta de SãoVicente,em31demaiode1560,citava-oopadreJosédeAnchieta.Segundo

ele, era dos entes mais temidos pelos indígenas. Nas longas marchas sertãoadentro,osguerreirosaliadosdosportugueseslhescontavamdosseuspavores.OnomedoCurupiraeramencionadoentresussurrosdemedo.Sobsuabatutasecurvavamasárvoreseosanimaisedelesediziachefiartodososassombrosda floresta. Padre Simão de Vasconcellos, outro jesuíta, o denominou “oespírito dos pensamentos”. Índio pequeno, de cabelo vermelho ou cabeçapelada, poderoso senhor da caça e donodasmatas cujos segredos conhece edefende, o Curupira tinha uma característica já descrita por viajantesmedievais: os pés tornados ao avesso, dedos atrás e calcanhar para a frente,mostrengo habitante da longínqua Índia. Padre Simão de Vasconcellosregistrou-oemsuaCrônicadaCompanhiadeJesusnoEstadodoBrasil,em1663, explicando: “Essa casta de gente nasce com os pés às avessas, demaneiraquequemhouverdeseguirseucaminhohádeandaraorevésdoquevãomostrandoaspisadas:chama-seMatuiús.”JácertoAnhanga,espíritomalfazejo,seencontramencionadonascartasdos

jesuítasAnchieta,NóbregaeFernãoCardim.O franciscanoecosmógrafodoreideFrança,FranciscoIII,ofrancêsAndréThévet,observou,em1558,queacriaturanãotinhaformadefinida.Seuobjetivoeraapenasatormentarosvivos:“Veemmuitas vezes ummau espírito ora numa forma, ora em outra, o qualnomeiamemsualínguaAgnaneosperseguefrequentementediaenoite,nãoapenasaalma,mastambémocorpo.”Espantomesmocausouoaparecimentodeummonstromarinhoaovivoea

cores no litoral de São Vicente. Quem o descreveu foi Gandavo em seuHistóriadaProvínciadeSantaCruz:

Foi causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a semelhança daquele fero e espantosomonstromarinhoquenestaprovíncia sematounoanode1564,queaindaquepormuitaspartesdomundosetenhanotíciadele,nãodeixarei,todavia,deadaraquioutravez,relatandoporextensotudooqueacercadissosepassou.

O autor acompanhava seu texto de uma imagem do monstro “tirada pelonatural”:cabeçaefocinhodecão,seiosfemininos,mãosebraçoshumanosepatasdeavederapina.Nomeiodocorpo,umacloaca.AIpupiaraestava,pois,longedesugerirabelezadassereiascapazesdeseduzirincautosmarinheiros.Escrevendoem1590,padreCardimdavaaindamaioresdetalhes.Oshomensteriam boa estatura e olhos encovados. As “fêmeas”, formosas de longoscabelos,pareciammulheres.Omodoquetinhamemmatarpescadoreseraeste:“Abraçamcomapessoa,tãofortemente,beijando-aeapertando-aconsigo,que

a deixam feita em pedaços [...] e como a sentemmorta são alguns gemidoscomo de sentimento, e largando-a fogem; e se levam alguns comem-lhesomente os olhos, narizes, pontas dos dedos dos pés emãos, e as genitálias,assimosachampelaspraiascomessascoisasmenos.”Tais monstros e criaturas demoníacas constituíam a pedra de toque da

autênticaexperiênciadeviagemoudeestadanoNovoMundo.Oencontrocoma “coisa” inesperada era, na realidade, esperado, pois vinha precedido datradiçãooralouescrita.Nãohaviaregrasparaoencontrocomodemônioouosmonstros.Bastavaencontrarumtestemunhodignodeféqueanunciassecomofato seguro a sua existência. E eles não faltaram. De padres a viajantesestrangeiros, de piratas a colonos, tantos viram e tantos contaram histórias ànoite,aopédofogo...

Guerreirasamazonas,guardiãsdasterrascomouro.THÉVET,André.“Lacosmographieuniverselled’AndréThévetcosmographeduroy”.Illustreedediversesfiguresdeschosesplusremarquablesvevesparl’auteur,[et]incogneuesdenoz

anciens[et]modernes:Tomepremier.PARIS:CHEZPIERREL’HUILLIER/CHEZGUILLAUMECHARDIERE,1575,P.126.

Pavorefascínio:assedutorasAmazonas

ValelembrarqueadescobertadoNovoMundorepresentouoprimeirocontatodaEuropacomumuniversoexóticoecheiodepromessas.Duranteosanosaolongo dos quais se desenvolveu a exploração das terras americanas,aventureiros e conquistadores estavam convencidos de ter achado o jardimondeAdãoeEvaforamcriadosedeondedepoisforamexpulsos.“Asárvoressão tão belas e doces que pensamos estar no paraíso terrestre”, atéColomboconfirmouemseudiário.Aambição,contudo, lhesdava forçasparasubirasmaisaltasmontanhas,explorarmaresdesconhecidoseflorestasimpenetráveis.Embaladosporsonhosemitos,perseguiamoscaminhosqueoslevassemparao País da Canela, o Eldorado ou o reino misterioso das Amazonas. Eles as

conheciam,poisatradiçãomedievalretomaramuitodosmitosantigos.Narrativas lendárias sobreosconfinsdomundo, representaçõesdoparaíso,

mitologiasindígenas,tudo,enfim,concorreuparaalongevidadedasguerreirassolitárias, cujas descrições não cessaram. As Amazonas revisitadas pelashistórias em torno deAlexandre, oGrande, e embelezadas pelas crônicas decavalaria, conhecidas de todos os conquistadores e viajantes, desenvolveramnão apenas um tema, mas também um sistema que, por sua vez, permitiaassociar vários elementos da Antiguidade. Assim elas se integravam àmitologiadosguardiõesdeourodosconfins.EisporqueaochegaràCalifórnia,em1539,CortezacreditoutertocadoumailhaaoladodasÍndiasOrientais,ilhamuitopróximaaoparaísoehabitadapormulheresnegrasqueviviamlongedequalquerpresençamasculina.Nãofoià toaqueomitodoouronaCalifórniaperdurouatéofinaldoséculoXIX.Mais:olagoquecercavaasterrasdasAmazonasremetiaaoparaísoterrestre,

poisHespéria,segundoomesmoDiodorodeSicília,estavacobertadeárvoresfrutíferas, e em seus campos abundavam animais que viviam em eternaprimavera. Essa associação com as águas vai se repetir no momento dafundaçãodosmitosqueacompanharamodescobrimentodomaiorcursofluvialdoNovoMundo.AvistadoporVicenteYañezPinzonem1500,aquelemesmorioqueoscronistasdeantanhodenominaram“omonarcadaságuas”,“afênixdos rios”, e que ele confundiu com o Ganges, deu, precisamente, nome àsAmazonas.AsmaiscélebresdelasforamobservadasedescritasnocoraçãodaAmérica

doSul,quandodaexpediçãodeFranciscodeOrellana,espanholquesaiuembuscadeouroeoutrasriquezas.Osconquistadorespartiram,emfinsde1541,de Quito – atual Equador –, região marcada pela beleza de sua brancacordilheira de vulcões. O objetivo era encontrar o mítico País da Canela,especiaria então muito rara e valorizada e que, acreditava-se, crescia nasproximidadesdoEldorado.Nãosetratavadaespéciecinnamomum,origináriado Ceilão, mas de uma planta perfumada conhecida como ishpingo, queentravanacomposiçãodeoferendasreligiosaseserviaafinsterapêuticos.Ascrônicassobre tantas riquezas teriamincendiadoa imaginaçãodosespanhóis.Na confluência entre os rios Coca e Napo, Orellana abandonou GonçaloPizarro – líder da expedição – e prosseguiu rumo ao Maranhão. Como elemesmo registrou em suas memórias, deixou-se levar “donde la ventura loguiase”, enquanto a floresta úmida, os insetos e os pântanos engoliam,lentamente,suasaúde,seushomenseseusbarcos.

CoubeaodominicanoGaspardeCarjaval,depoisdeentrevistarumindígena,a descrição das peripécias da viagem e da aparição das coniapuyara, ou“grandes senhoras”, que confirmavam a tradição domito grego: “Sãomuitobrancasealtas,têmcabeloscompridosetrançadosourevoltosnacabeça,esãomuito membrudas e andam nuas envoltas apenas em couros tapando suasvergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos, fazendo guerra como dezíndios.” Elas os afrontaram num violento combate “tão feroz”, queixou-se odominicano, que “estivemos a ponto de nos perder todos”. Os viajantesestavamfascinadosporestaestranhacombinação:mulheresguerreiras,cruéise... ricas.Umsonhode conquista.Amitologia antigadeformavaoolhardoseuropeusesetransformavaemcritériodeverdadeparaadescriçãodanatureza,das terras e da gente americanas.Mas o dominicano também traduzia, à suamaneira, as narrativas indígenas conhecidas em toda a bacia amazônica.Segundo elas, Jurupari, herói dos povos da floresta, tinha, na sua infância,arrancadoopoderdamãodasmulheresparadevolvê-loaoshomens.Ematarasua mãe, pois ela ousara encarar as flautas sagradas. Também nas culturasindígenasseencontravammitosquepunhamomundodecabeçaparabaixo.Mais adiante, e graças a um léxico por ele confeccionado, Orellana

conseguiusecomunicarcomosribeirinhos,queconfirmaramaexistênciadasAmazonas. E, sob os raios fabulosos da distância, surgiam mais e maisinformações sobre tais mulheres. Moravam a sete dias de viagem do rio eviviamseparadasdoshomens,comquemsósejuntavamparaprocriar.Comono mito grego, matavam os filhos homens e criavam, com presentes, asmeninas.Umagrandesenhora,cujonomeeraCoñori,reinavaentreelas,que,espalhadasemmaisdesetentacidadeslavradasempedra,moravamemcasascobertas por plumas de papagaio. O piso e os móveis eram feitos de prata.Possuíam ainda muitos “carneiros do Peru” – lhamas e alpacas –, que lhesforneciam lãparaovestuário.Na capital, havia cincooratóriosdedicados aosol, chamados caranain, adornados com ídolos de ouro. Vestiam-se comroupasmuitofinas,eseuscabeloscaíamatéochão.Ascabeçasiamcoroadasdometalamarelo,ehaviatantariquezaemouroeprataque,paraoserviçodanobreza, não se usava outro. Suas terras eram, igualmente, hidratadas porlagoasdeáguasalgada.A imagem da água no mito das Amazonas era recorrente, pois essas

mulheres guerreiras viviam ora em uma ilha, ora em região próxima a umgrandelago,ouseja,aomar.Vizinha,seencontravaatãoprocuradacanela,e

elas possuíam, ainda, enormequantidade de ouro.Tudo indica queOrellana,comoosdemaisconquistadoresdeseutempo,conheciaoutraslendasligandoouro,mulheresguerreiraserios,poisaconexãodasAmazonascomumgranderio, que parecia não ter princípio nem fim, era uma constante na geografiamedieval.AautoridadedaBíbliaerainvocadaparaafirmar,porexemplo,queomelhorourodomundoseencontravanasterrasondecorriamaságuasdorioGanges.Alendadacidadedouradaperdidanafloresta,ouManoa,foirecolhidaem

finsdoséculoXVIpelofavoritodarainhaElizabethI,SirWalterRaleigh.Acuriosidade dos ingleses fora atiçada pelos rumores sobre as mulheresguerreiras, bem como sobre suas reuniões anuais com reis de terras vizinhaspara a procriação. Os festejos e bebedeiras, segundo o cronista protestante,duravam ummês.AsAmazonas possuíam placas de ouro que trocavam porpedras verdes – jades ou uma variedade de feldspato também chamadaamazonita – usadas, na época, para tratar dos males da vesícula. SegundoRaleigh,elascontinuavamhabitandoasregiõesdeTobagoe“suasterrasmaisimportantessesituavamnasilhasdapartemeridionaldoestuário”.Mas aqui já se observavam pequenas mudanças na história: os filhos não

eram mais mortos, mas enviados para a casa de seus genitores. E,definitivamente, não havia provas de que tais guerreiras cortavam um dosseios. Elas foram, também, encontradas nas matas do Paraguai, segundo adeclaraçãodocapitãoHernandodeRivera,em1545,queinsistianaexistênciadegrandescidadeshabitadaspormulheresguerreiras.Elechegouadescreverseu encontro anual com os homens vizinhos e as riquezas que possuíam. E,quanto à localização, não tinha dúvidas: em meio a um lago chamadoEldorado.Aseguir,foramvistasnoestreitodeMagalhães.Nãose tinhampassadonemquinzeanosdesdeorelatodeCarjavaleeraa

vezdofrancêsAndréThévet,quepassoutrêsmesesnoBrasilemcompanhiadomilitarNicolasDuranddeVillegaignon,confirmarsuaexistência.Sóque,agora, com outra inovação. Estavam mais pobres: “Elas frequentavamraramenteoshomens;eofaziamemsegredo,ànoite,ouemhoradeterminada.Essepovohabitapequenascasinhasoucavernasnosrochedos,sealimentadepeixeecaçapequenaealgunsfrutosquecrescemnaterra.”Setinham,todavia,perdido as casas de plumas e prata, sua crueldade continuava a mesma. Aoguerrearem, elas faziam prisioneiros que maltratavam da seguinte maneira:penduravam-nos pelas pernas, nos galhos das árvores, e em seguida oscrivavam de flechas. Em vez de comê-los, como faziam os antropófagos

brasileiros,preferiamcozinhá-losatévirarcinzas.Seusgritosdeguerraeramterríveiseserviamparaafugentarosinimigos.Nãocontenteemdescrevê-las,ocosmógrafoAndréThévet ilustrou com suas imagens o seuHistória de umaviagemàterradoBrasil,umverdadeirobest-sellerdosfinaisdoséculoXVI.Outro francês, Jean Mocquet, retomou o mito em 1617, precisando algunsdetalhesqueospredecessorestinhamdeixadodefora.Oseiofaltante?Estenãoeraqueimadocomorezavaa lenda.Grandementira!Elas tinhamosdois.Osencontros para a reprodução tinham data certa: o mês de abril. Com tantasvariações sobre ummesmo tema, de pouco adiantava o ceticismo de algunscontemporâneos,comoJuandeCastellanos,queadmoestavaoscrédulos:“Nodito rio doMaranhão disseram que havia Amazonas e terra rica; não se dêcréditoaistopelasgrandesmentirasquesecontaramsobreosditosíndios.”Desenvolvendo-sedecrônicaemcrônica,aumentandoumpontoacadavez

queeracontado,omitodasAmazonaseraaprovavivadequetantagentenãopodiatrapacear.Afinal,perguntava-seJuandeVelasco,autordaHistóriaDelReinodeQuito,porquecinquentapessoaseentreelasumreligiosoter-se-iamentendidoparacontaramesmamentiracomaqualnadatinhamaver?Negarasua existência naAntiguidade ou nomundomoderno era, segundo ele, “umcapricho cego sem razão de desculpas”. Crer que elas existiram e aindaexistiam era o que havia de mais provável. Enfim, como na Antiguidade, alocalização das Amazonas e de outros mitos das margens do mundo vaimudandodelugar,aosabordasexpediçõessucessivas.QuantomaisseconheciadoNovoMundo,maislongealendaseescondiaou

se transformava. Sua persistência, contudo, era impressionante. Já no séculoXVIII, as viagens não tinham mais o escopo da busca de tesouros ouespeciarias. Elas serviam, entre outras razões, para o ideal da difusão doconhecimentopelaexperiência,acoletadefatoseapesquisasobreoshomense as coisas que os cercavam. Esse ideal deveria substituir a autoridade dosautoresantigos,comoDiodoro,ouaprópriaBíblia.ONovoMundoatraíanãomais missionários e aventureiros, mas os científicos. Foi por isso que oeficiente físico e naturalista Charles-Marie de La Condamine veio para aAmazônia numa expedição da Academia de Ciências da França. Sua maiordescobertafoiqueogranderiosecomunicavacomoOrinoco,naVenezuela,graçasaorioNegro.Mais:elepôsumpontofinalemcrençassecularessobreoEldorado.Estenuncaexistira.Nãopôde,contudo,resistiràsAmazonas.AsAmazonas,segundooeruditofrancês,eramumanaçãonômade.“Ofato

denãoterencontradovestígiosdessarepúblicademulheresnãosignificaque

elanãotenhaexistido”,ponderava.Paraexplicarumtalapagamento,ofrancêsinvocavaapossibilidadedeasmulheresteremseesquecidodaaversãodesuasmães pelos homens. E tal esquecimento, de seu ponto de vista, seria oresponsávelpelamiscigenaçãodasguerreirascomaspopulaçõesdasmargensdos rios. E ele não desistia: “Se houve um diaAmazonas nomundo, foi naAmérica, onde a vida errante dasmulheres que frequentemente seguem seusmaridosnaguerra,equenãosãomaisfelizesemsuavidadoméstica,deveter-lhesfeitonasceraideiaelhesfornecidoaocasiãofrequentedefugirdojugodeseustiranos,procurandoestabelecer-seondepudessemvivernaindependência,semseremreduzidasàcondiçãodeescravasoudebestasdecarga.”E,paraconfirmarsuaopinião,LaCondamineacrescentavaquesabiaserem

os índios da América meridional mentirosos, crédulos e obcecados pelomaravilhoso;masnenhumdeles – sublinhava– tinha jamais ouvido contar ahistória de Diodoro de Sicília. E as Amazonas já existiam muito antes dachegadadosespanhóisentrepovosquenuncatinhamavistadoumeuropeu.AfábulaeracontadadeMainas,noPará,aCaienaeàVenezuela,entrenaçõesindígenasquenãoseentendiamnemtinhamcomunicaçãoentresi.EaissosesomavaograndenúmerodeviajanteseautoresdetodasasnaçõesdaEuropaque, havia mais de dois séculos, afirmavam a existência das Amazonasamericanas.

A o chegarem ao Brasil, os portugueses logo descobriram quegrandes partes do litoral, bem como as partes do interior àsquais tinhamacesso,seencontravamocupadasporsociedadesque compartilhavam certas características comuns à culturatupi-guarani. Em outras partes, o Brasil era habitado por

sociedadesnão tupis, representandodezenasde famílias linguísticasdistintas.Para enfrentar o problema, os europeus reduziram esse cenário a duascategoriasgenéricas:tupietapuia.Apartetupiagregavaosgruposlitorâneosemcontatocomeuropeus,nãosóportugueses,mastambémfranceses,inglesesecastelhanos.A denominação “tapuia” se aplicava aos grupos desconhecidos. Em seu

Tratado descritivo, Gabriel Soares de Souza confessava a dificuldade emrepertoriá-los: “Como os tapuias são tantos e tão divididos em bandos,costumes e linguagem para se poder dizer deles muito, era necessário depropósito e devagar tomar grandes informações de suas divisões, vida ecostumes,poisaopresentenãoépossível.”Inúmeros relatos de missionários e viajantes contaram sobre os costumes

indígenas.NapenadeSoaresdeSouza,porexemplo,oleitorhádeencontrarverbetesdescritivos sobre “costumes e trajes”, “domodode comer ebeber”,“de como curam suas enfermidades”, da “luxúria”, de seus casamentos,antropofagiaelinguagem–enfim,umcatálogodosusosecostumesdeváriasnações,doscaetésaosubirajaras.Essestextosoraenfatizamasingularidadedesuasculturas,oraretratamaaculturaçãoqueresultoudocontatocomohomembranco e o consequente processo de integração, exploração e destruição daspopulações indígenas. Como se vestiam ou enterravam seus mortos, o quecomiameaquemseuniam,comoguerreavamoupassavamotempo?Astribosmais comentadas são aquelas com as quais foram cruzando ao longo daocupação:índiosdealdeias,vivendodesuaslavouras,comooscaiapósouosparecis,ouíndiosdecorso,ferozeseexcelentescavaleiros,comoospaiguazesouaicurus,deixaramseuretratonapenadepatodosbrancos.

Atradiçãoindígenaofereceuváriassoluçõesdeabrigoaoscolonizadorespobres.DEBRET,JeanBaptiste,1768-1848.VoyagepittoresqueethistoriqueauBrésil.Tomepremier.p.

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Eeraumapenaseletiva.Afinal,osbonseramaqueles“índiosdeassento”,sedentários, capazes de cultivar mandioca, milho, feijão, batata e ananás. Etambém de fazer belas “obras de pedra” como as insígnias que portavam oscaciques.Ossinaisnegativoseramemitidossobreasnaçõesitinerantes.ComodelesdissepadreMartinhodeNantes,capuchinhomissionário,emseuRelaçãodeumamissãonorioSãoFrancisco,gentede“vidaanimal,grosseiraaténosalimentos,quandosecontentavamcomascoisasqueencontravam,semquedeordinárioascultivassemecomendosempreocupaçãodelimpeza”.“Oseuusode pelejar uns com os outros é tudo de traições e armas, arcos, flechas eporretes e comem também carne humana”, completava em 1723 o capitãoAntônioPiresdeCampos,queosobservouaolongodeumaviagemaCuiabá.PadreSimãodeVasconcellososdistinguiaentre“índiosmansos”e“índios

bravos”,osprimeirossendoaquelesque“comalgummododerepública(aindaquetosca),sãomaistratáveiseperseveráveis,entreosportugueses,deixando-se instruir e cultivar. Chamamos bravos os que, pelo contrário, vivem semmododerepública,sãointratáveisecomdificuldadesedeixaminstruir”.“Instrução” significava a substituição de suas tradições por aquelas dos

brancos: batizar os filhos, casar-se na igreja, evitar a bigamia, andar vestido,aprender a ler, escrever, contar e mesmo cantar, pois muitos deles tinham,segundoregistros,excelentesvozes.Cobrir-seeraconsideradosinaldeadesão:“Já agora o gentio que habita entre nós anda coberto, os machos com unscalções, as fêmeas com uns camisões de linho muito alvo e os cabelosenastradoscomfitasdediferentescores,costumesqueintroduziramentreelescom assás de trabalho os padres daCompanhia [de Jesus] porque não haviaquemosfizesseapartardesuanatureza,queosincitavaaandaremnus”,diziaGandavo.Tratava-sedeumaadesãonemsemprebem-sucedidaqueinspiravaaopadre

Anchieta tiradasdemuitohumor:“Deordinárioandamnuse,quandomuito,vestemalgumaroupadealgodãooudepanobaixo,enistousamdeprimoresaseumodo,porqueumdiasaemcomgorro,carapuçaouchapéunacabeçaeomais nu; outras vezes trazem uma roupa curta até a cintura semmais outracoisa.Quandocasamvãoàsbodasvestidos,eàtardesevãopassearsomentecom o gorro na cabeça sem outra roupa, e lhes parece que vão assim muigalantes.”Empenhados em imprimir a marca da metrópole na colônia, os jesuítas

tentavam transformar os nativos em cristãos. Essa era a missão. A recém-

fundada Companhia de Jesus, em vez de cristianizar mouros em Jerusalém,preferiufazê-lonaAmérica.OcultoaoMeninoJesuseàSagradaFamíliaosfez focar nos “culumins”, nos “meninos da terra”. Era preciso evitar “osadultos aquemosmaus costumesde seuspais têmconvividoemnatureza ecerramosouvidosparanãoouvirapalavradesalvação”.Não por acaso, Nóbrega fundava em São Vicente, em 1554, o primeiro

colégiodecatecúmenosquehouvenoBrasil,“ordenandoque fosseconfrariado Menino Jesus”. Ali, juntaram-se alguns órfãos e meninos abandonadosvindos de Lisboa, mestiços da terra e “indiosícos”. Esses eram em geralegressosdeuniõesentremãesíndiasepaisportugueses.Ouvinhamapedidode algum “principal” ou cacique. O sentimento de valorização da criançaenquanto ser cheiodegraça evulnerabilidadenão estava ausentedo coraçãodosjesuítas,queviamnascrianças“inocentes,muieleganteseformosos”.Ou,ainda,“muchachosquequasecriamosaosnossospeitoscomoleitedadoutrinacristã”.Afagos?Sim,masmoldadospelosprincípiosmoraisdaIgreja,baseados“no

aproveitamento,noscostumesevidacristã”.O“muitomimo”era repudiado.Afinal,Deusensinouqueamar“écastigaredartrabalhosnestavida”.Oamorera feito de disciplina, castigos e ameaças. Eram comuns procissões em quemeninosfantasiadosdeanjose tocando instrumentoseuropeusatraíamoutrascrianças.Umaveznaescola,eram“instruídosotimamentenosrudimentosdafé,noestudodoselementosenoescrever”,cantavamhinos,entoavamonomede Jesus e tinham aulas de canto e flauta. Recitavam ladainhas, cantavam osalve-rainha e, nas sextas-feiras, “disciplinavam-se” até se cobrir de sangue,antes de sair em procissão. Confessavam-se de oito em oito dias, e à tarde“saíamacaçareapescar”,poiscadaumprecisavaproversuasubsistência.Sabia-se, porém, que a tal “instrução” nãopassava de umverniz.O apego

aoscostumeserafortíssimo.Nãoforampoucososmamelucosemestiçosque,uma vez fora das escolas jesuíticas, foram viver nos sertões, pintando seuscorpos com urucum e escarificando-os “à maneira gentílica”. Não poucoscomiam carne em dias de abstinência, tangendo atabaques e cobrindo-se depenas.Inúmeroseramaquelesqueadoravamseusdeuses,trocavamarmascomoutrosíndiose“desciamgentios”,quandonãocombatiamosprópriosbrancos.Sedavamàluz,asmulheresficavamsemcomercarne,peixeeovos,vivendosomentedefarinhademandioca,legumes,milhoefeijõesatéqueosdentesdosfilhos começassem a sair. “Muitas vezes sob o pretexto de irem à caça ouprocurarmelpeloscampos,saíamdasaldeiasparapraticaràsocultasassuas

cerimônias”,queixava-sefreiMartinhodeNantes.Entreosjovens,eracomumfugir das escolas jesuíticas onde estavam sendo educados na fé cristã paraparticipar de cerimônias religiosas, nas quais escarificavam o corpo, bebiamfumo, se embriagavame, não raro, praticavam rituais de antropofagia.Sobreela, aliás, o chefe tupinambá Japi-Açu, instado a abandonar o sacrifíciohumano,explicouaseusinterlocutoresfranceses:“Bemseiqueessecostumeéruime contrário à natureza, e por issomuitas vezes procurei extingui-lo [...]bastaalguémdizerqueocostumeéantigoequenãoconvémmodificaroqueapreendemosdenossospais.”A tradição preservada por chefes, xamãs ou pajés, que muitas vezes

acumulavam também autoridade política, falava mais alto. Tão alto que,mesmodiantedamortesacrificial,preferiamcumprirosritos.QuandoojesuítaAzpicuelta Navarro se ofereceu para comprar um prisioneiro tupinambá nahora do sacrifício deste, a vítima impediu a transação: “Ele disse que não ovendessem,porquelhecumpriaàsuahonrapassarportalmortecomovalentecapitão.”“Feras selvagens, montanhesas e desumanas”, além de preguiçosos,

mentirosos e comilões?Paramuitos, sim.Mas tais “feras” eram senhores damata, onde distinguiam as espécies vegetais só de trincar as folhas, dizendo,pelo gosto, sua serventia.Na caça,modulavam a voz conforme a do animalperseguido, sendo capazes de dizer seu tamanho, sexo e distância a que seencontrava. Liam os rastros no chão e sabiam pelos restos de comida qualanimal perseguir: a paca, que roía o milho sem deixar pó, ou a cutia, quedesfiavaapalha.Imitavamopiodemacucos,mutuns, jacuse inhambusparaatraí-losefaziamomesmocomoroncodemacacosoucapivaras.Quebravamgalhosemarcavamárvores,percorrendoasmataspelos“piabirús”,caminhosinvisíveis ao olhar do branco. Pela coloração do terreno, reconheciam umaaguadaquandonãohaviasinaldeáguaemregiõesáridasousedesalteravamcom líquido cristalino colhido em bromélias, umbuzeiros e bambuzas.Pintavam seus corpos comurucumou jenipapopara afastar insetos e porquecertas cores exercem sobre os animais repulsão ou atração. Pescavamadormecendoospeixespormeiodeervasecipósjogadosnosrios.Conheciamosastros e as estações, tinhamexcelentememória, tiravam“vinho”dasmaisvariadas plantas e, para surpresa dos estrangeiros, eram dotados de muitosconhecimentossobremedicamentosnaturais.

Ospovosindígenastinhamumasofisticadatecnologiadearmasdecaçaeguerra.Artefatosindígenas.

COLEÇÃOALEXANDRERODRIGUESFERREIRA.S/D.

“Proveu a natureza com lhes dar um azeite que se tira da árvore chamadacopaíba,daqualtomaoazeiteonome,ecomelecuramferidasporserdetãomaravilhosavirtude,queembrevetemposaramdelas”,comentouGandavo.As incursõesdeapresamentoou“descimento”de índiosnossertõesnãosó

abasteceram o mercado de índios no litoral como foram responsáveis poralimentar a força de trabalho, especialmente no planalto paulista.Graças aoschamados “negros da terra” e ao seu batente nas lavouras, a região de SerraAcima se integrou às outras partes da colônia portuguesa. Apesar dascondenaçõesdopapaPaulo IIIouas recomendaçõesdoRegimentode1548,preparado pelo primeiro governador-geral, os colonos seguiammaltratando eescravizando índios.Guerras “justas” ou “injustas” acobertavam situações deextrema violência. “Índios inteiramente livres”, como desejava uma lei de1609?Impossível,respondiamgovernadoresecolonosembuscadaexpansãodasáreasagriculturáveis.EmPernambuco,capitaniadeDuarteCoelho,alutamovida contra caetés e tabajaras empurrou os índios sertão adentro.

Atemorizados, os tabajaras optarampor uma aliança comos luso-brasileiros,bastante duradoura e proveitosa para o colonizador. Já sobre a situação doscaetés,assimaresumiufreiVicentedeSalvador:

Com a fama dessas duas vitórias, ficou todo o gentio da costa até o rio São Francisco tãoatemorizadoquesedeixavamamarrardosbrancoscomosefossemseuscarneiroseovelhas.Eassim,iamdebarcoporessesrioseostraziamcarregadosdelesavenderpordoiscruzadosoumil-réiscadaum,queéopreçodeumcarneiro.

Conflitosentrejesuítascontráriosaocativeiroemoradoresnãodiminuíramapreaçãooua“locaçãodeserviços”,sempreviolenta,obrigandoosíndiosaserender,sealiaroureagircomigualviolência.NasprimeirasdécadasdoséculoXVIIosíndiosdasaldeiaseramusadosem

atividadesbélicas,paracompensarosmagroscontingentesmilitaresnas lutascontra franceses e holandeses. Ajudavam nas fortificações e lutavam comoflecheiros:“Eramaprincipalpartedenossoexército,oquemaishorrormetiaanossosinimigos,porque,quandoestessaíameandavampeloscaminhosmaisarmadoseordenadosemsuascompanhiasestandoosolclaroeocéusereno,viam subitamente sobre si uma nuvem chovendo flechas, que ostrespassavam”,gabava-sepadreAntônioVieira.

Em São Paulo, houve indivíduos que tinham a seu serviço cem ou maisflecheiros.Eramos“potentadosemarcos”,comoValentimdeBarros,DiogoCoutinhodeMelo,SebastiãoPaisdeBarrosePedroVazdeBarros,que,em1650, tinha um plantel de mais de quinhentos índios. Eles desempenhavamqualquer tarefa que os brancos não queriam executar: portavam cargas nascostas, cuidavam das plantações, remavam no mar e nos rios, caçavam,construíamtodotipodeedificação,deigrejasafortesouedifíciospúblicos,etambémembarcações,eaindaajudavama lutarcontraoutros índios.Desdeadécadade1630,entregavam-seàculturado tabacoduranteseteaoitomeses

porano,emtrocadealimentoededuasaquatrovarasdetecidodealgodão,oequivalenteaoqueseriaumsaláriobaixo.Porvoltadosanos1640,passaramareceberduasvarasdepanopormês,eestaquantidadenãofoialteradadurantecem anos, quando subiu para três varas mensais. Uma vara equivalia a umjornaldeseteavinte réispordia,enquantoosassalariadosbrancos recebiamentre 150 e 200 réis. Os índios livres estavam em pior condição do que osescravos,segundopadreVieira,que,emcartaaoreid.JoãoIV,expressavasuapreocupação: “Que, para que os índios tenham tempo de acudir às suaslavourase famílias [...]nenhumíndiopossa trabalhar foradesuaaldeiacadaanomaisdoquequatromeses,osquatromesesosquaisnãoserão juntosdeuma vez, senão repartidos em dois.” E quanto aos pagamentos, que fossemfeitosàhoraequenenhumdelesservissedegraçaaqualquermoradorouàsobrasdoserviçopúblico.Pretendia também o jesuíta que os índios recém-aprisionados fossem

recebidoscomaldeiaseroçaspreparadasparaqueaípudessemviverequesócomeçassem a trabalhar depois de “estaremmui descansados do trabalho docaminho”. E para evitar tensões com os colonos, acrescentava: missionáriosnãopoderiam ter índios, livresouescravos, trabalhandopara si emcanaviaisououtraslavouras.Tal como os africanos, os índios também eram propriedade dos brancos e

aparecem como “negros da terra” nos documentos da época. Testamentos einventários paulistas confirmam que as chamadas “peças forras” eram dadascomodotesàsfilhascasadoirasepartilhadasentreviúvasefilhosouaindaeraoferecidoaoscredorescomopagamentodedívidas,garantiadeempréstimoehipotecas.OsertanistaCristóvãodeAguiarGirãogravouemseu testamento,em1616:“TenhoumanegrapornomeÚrsulacomtrêsmeninos,umafêmeaedoismachos, os quais deixo forros [...] um rapagão filhodanegrapornomeFrancisca,essesevenderá.”Decorridos cem anos, a denominaçãomudou: índios livres passaram a ser

chamadospelospaulistasde“peçasdeadministração”eaparecemladoaladocomescravosbenguelas,angolaseminas,aquem,aliás,seuniamemrelaçõesestáveis nos aldeamentos jesuíticos. O termo carijó para designar cativos,inicialmente referidoaosguaranis, tambémvira sensocomum.CertoManuelPachecoGato cravava em1715: “Declaro que possuo umas almas carijós asquais ficam na mesma administração de meus herdeiros, os quais lhe darãoaquele mesmo trato que eu os tratava, doutrinando e tratando com amor ecaridade.”Asuniõesentreescravoseadministradoreseramencorajadaspelos

senhorescomogarantiadeadministraçãomaisserena.Frente à poligamia e ao concubinato, ambos praticados por portugueses e

índias,eàsaliançasqueconferiamaosprimeirosprestígiodentrodasestruturasdos segundos, reagia, alarmado, o jesuíta Pedro Correia: “Há muito poucotemposeperguntavaaumamamelucaqueíndiaseescravassãoessasquetrazcomvocê.Ela respondia que eram asmulheres de seumarido, as quais elassempretrazemconsigoeolhavaporelascomoumaabadessaporsuasmonjas.”Taislaçosdeixavammarcasnahoradefazerostestamentos,comorevelao

decertoAntônioNunes:“Declaroquetenhoummoçodogentiodaterra[...]queémeutio, irmãodeminhamãe,casadocomumaíndiadaaldeiaeassimporbonsserviçosquemetemfeitoodeixoforroelivre.”NãopoucosagiramcomoAntônioMoreira, que comprou uma “rapariga do gentio da terra” e aalforriou.Erasuamãe.Haviatambémamodalidadedaalforriacondicional,quepermitiapassarde

cativoa livre.Elaestipulava tarefasouserviços.Caso,porexemplo,decertoPaulo,escravodeJoséOrtizdeCamargo.Segundootestamentodeseusenhor,Paulogozariadeumasemanalivrepormêsparaversuamulher,quemoravaemoutrapropriedade.Nassemanasseguintes,ensinariaaoitoíndiosescravosos segredos de seu ofício. Ao termo de seis anos, ficaria livreincondicionalmente.As atividades que exerciam os índios em São Paulo não eram muito

diferentesdasqueefetuavamnorestodacolônia:ajudarosbrancosa“descer”mais índios, remar, carregar fardos. Nas tarefas domésticas as índias seentregavam junto com brancas e negras à tecelagem, à cerâmica e à fiação.Ambosossexoscuidavamdascriaçõesdeporcos,carneirosegado.ComoaumentodopreçodeafricanosduranteoséculoXVII,houvequem

pagassecaroporescravosíndiosaosbandeirantespaulistas,queosforneceramatéparaosengenhosdoNordeste.Emtodaparte,porém,apossedenativossemanteve como uma prática comum. Na cidade de Paraíba, bispado dePernambuco, um lavrador se justificava, em 1729, por possuir “uma escravatapuiachamadaMariadoRosário,de20etantosanosdeidade,aqualtinhaumfilhoFrancisco,de7anos,eumafilhaLuísa,de8,eficavapejada,osquaissediz são seus escravos por ser a mãe cativa em justa guerra dos que selevantaramcontraodomíniod’ElRei”.Escravosoulivres,portantoassalariados,mascomrendimentosquenemlhes

chegavamàsmãos,os índiosestiveramsujeitosao trabalhocompulsivo, semdireitodeescolherolocalouosalário.Sólhesrestavaafugaouamortecomo

forma de resistência.A década de 1650, por exemplo, registrou um surto derevoltasviolentíssimas,quecolocaramemquestãoaviabilidadedaescravidãoindígena. As fugas também aumentaram. Maus-tratos – muitos eram presoscom ferros –, o desejo de se reunir aos parentes ou o de liberdade eram oestopim para o abandono do senhor. “Andar fugido” passou a ser umas dasformasderesistênciaaocativeiro.Mudanças? Em 1755, um Directório que se deve observar nas povoações

dosíndiosdoParáeMaranhão,estendidoparatodaacolônia,em1758,trarianovidades: proibia-se a escravidão indígena, abolia-se a tutela religiosa nasaldeiaseseproclamavamosnativosvassalos livresdaCoroa.Pormeiodele,Portugal desejava preservar fronteiras, incentivar a agricultura, converter osíndiosemmãodeobradisciplinada.Alínguaportuguesasetornouobrigatória,foramcondenadas as crenças indígenas e incentivadosos casamentosmistos.Portugueses que se casassem com índias não seriam mais considerados“infames” e seriam preferidos nas terras onde se instalassem com a família.Mais: os índios poderiam atuar na burocracia e assumir postos honoríficos,perdendoa“nódoa”quemanchavasua“limpezadesangue”.Funcionou? Pesquisas recentes revelam um novo rosto para os índios.

Presença namãode obra diversificada, eles foram também trabalhadores emengenhosdeaçúcar,naatividadedefiação,nasminasdesalitre,nalavouradesubsistência,nacriaçãodegado,alémdeauxiliaresnaadministraçãodealdeiasindígenas e missões. Foram, também, tradutores, carpinteiros, pedreiros,meirinhos,prefeitos,juízes,entreoutroscargos.Umavezprovadaafidelidadeao branco, sobretudo nos conflitos contra outros grupos indígenas, o índiopodiaexercercargosderesponsabilidadee,integradoaosportugueses,inserir-senasociedadecolonial.Nemquefossedamaneiraque,hoje,consideraríamosamaisbizarra:sereescravizando.Foiocasoda“cafuzaJoanaBatista,filhadopreto Ventura, escravo do padre João de Mello e da índia Ana Maria, doserviço do mesmo padre”, que no dia 19 de agosto de 1780 passou umaescritura de venda de “si própria” a certo Pedro Costa, morador na rua SãoVicente,emBelémdoPará,novalorde80milréis.Arazão,segundoomesmodocumento:

Eladeseunascimentofoisemprelivreeisentadecativeiro;ecomoaopresenteseachavasempaiesemmãequedelapudessetrataresustentarassimparaapassagemdavidacomoemsuamoléstia,nemtinhameios para poder viver em sua liberdade [...] cuja venda fazia unicamente de si por preço equantiade80$000asaber:metadeemdinheiroeoutrametade,quesão40$000,emfazendaetrastesdeouroeomaisqueprecisarparaseuornato.

Semaltratadaousenãosedessebemno“seucativeiro”,seusenhorpoderia“vendê-la a quem lhe parecer como sua escrava que por esta (escritura) ficasendo”.Umaexceção,semdúvida.Naoutraponta,umaeliteprovenientedos “principais”, compoderpolítico

para deliberar com os colonos e possuidores de formação escolar, pois seusfilhos tinham entrada nos colégios, aumentou a clivagem no interior dosdiferentes grupos. A introdução de ofícios que permitiram a acumulação debens e valores ajudou a solapar as estruturas tradicionais. Nascia uma novaelite,aptaasubmeter-seaosdominadores.Adispersãoouextermíniodastribosalavancoucasamentosentreindivíduossemconexõestribais.Oapoioindígenafoidecisivoparaotriunfodacolonização.Porémoresultadodessacolaboraçãofoi tão evidente quanto trágico. A grandemaioria de homens emulheres setornousúditadesegundacategoria.

A lémdosdebates sobresea terraeraboaoumáedos jesuítasperseguindoconcubinatos, se impunhaavidaprática.E,nela,foi em torno da cana, ou Saccharum officinarum, que ocotidianoseorganizou.HouvedegredadoquechegouaoBrasilpobre e nu, mas que, graças à cana, se tornou senhor de

engenho.Foi o casode certo JoãoPais, que, segundodocumentos, chegou apossuirdezoitoengenhoscomdezmilescravos.Exagerosàparte,não faltouquemprosperasse.Plantaperenedafamíliadasgramíneas,origináriadacostadaÍndia,acana

foiintroduzidaentrenósdesdeachegadadoseuropeus.Eraentãoconsideradaumadas“excelênciasdoBrasil”quando,inicialmente,elacresceranosjardinsindianos.Hásinaisdequechegoulogonosprimeirosanosdacolonização,em1502-1503. O trabalho sistemático de homens em torno de sua exploraçãodemorou,porém,maisumadécada.UmdicionáriodoséculoXVIIIdescreveuseucolmocilíndrico,nodosoedecoresvariadas, suas folhascerradase suasfloreshermafroditas,sobadesignaçãodearundosaccharífera.Canaeaçúcarsempre estiveram associados. Espécie de bambu que produziria mel sem aintervençãodasabelhas,acana-sacarinaéorigináriadaregiãoqueficaentreosdeltasdosriosGangeseAssam.Cultivadahámilêniosparaaextraçãodeáguadeaçúcare,depois,dopróprioaçúcar,eraconsideradaumremédio.A princípio consumida diretamente, ela passou a ser esmagada a fim de

oferecerosucoparaseringeridofrescooufermentado.Emsuasprescrições,osmédicospersasasubstituírampelomel.LevadapelosárabesaonortedaÁfricaeàEuropamediterrânea,suaprimeirautilizaçãofoimedicinal.EmBizâncio,edepoisdoséculoX,nafarmacopeiadaEscoladeSalerno,oaçúcareraremédioordinário, e por isso era considerado uma “droga”. Pães de açúcar einstrumentosparaafabricaçãodexaropesjáaparecemnasimagensapartirdoséculoXV.PlantadanoEgitonoséculoX,elaemigrouparaaSíriaedeláveioparaaEuropanabagagemdecruzados,tendoconhecidorápidafortunanailhade Chipre, passando a Valência e Sicília, e ganhando, alguns séculos maistarde,Marrocos,Madeira,AçoreseCanárias.Seuusoalimentareracorrentena ÍndiaenaChinaeaplanta seaclimatou

rápidona regiãoacidentadadeKouangToung,vizinhadeCantão.NoséculoXVI,oEgito já teriaumasofisticada indústriadedocesegeleias.No séculoXVII, a Companhia das Índias Orientais organizaria, sem dificuldade, a

exportaçãodoaçúcardaChinaedeTaiwanparaaEuropa.Limitadaaosclimasquentes,razãopelaqualnãoatravessouoYang-tsé-kiangemdireçãoaonorteda China, a cana tinha exigências: importante mão de obra, instalaçõescustosas, alémde tratamentos, preparações eprecauções ao cozero suconasgrandes cubas de cobre. Cultura e produção obrigavam a permanência decapitais e cadeias intermediárias. Onde eles não existiram, seu sucesso foiapenaslocal:casodoPeru,porexemplo.SuaprosperidadenoBrasilsedeuemfunçãodaproximidadecomaEuropaedarapidezdasembarcaçõesemcruzaroAtlântico.Desde1516,apoderosaCasadaÍndia,órgãometropolitanoencarregadodas

alfândegas, já procuravamestres de açúcar para trabalhar em engenhos, queteriam se estabelecido em áreas próximas às feitorias litorâneas. No ano de1518,escravosvindosdaGuinéecolonosda ilhadaMadeira jáestavamematividade. A partir de 1520, a Alfândega de Lisboa passou a cobrar direitossobreoaçúcarvindodaTerradeSantaCruz.No primeiro século de colonização, a lavoura de cana foi implantada em

váriasregiões,criandoumespaçosocioeconômicocominteressesemcomumeconsolidandoasatividadesdiáriasdehomensemulheres.Masonde?ApartirdeOlinda,aatividadesedesdobrouemdireçãoàParaíbaeaoRioGrandedoNorte. Da Bahia, caminhou para Sergipe e Alagoas. De Ilhéus, para PortoSeguro. Do Rio de Janeiro, para Campos dos Goytacazes e, posteriormente,paraMinasGerais–ondeseespecializouaproduçãodeaguardenteerapaduraparaosescravosdaslavras,enquantoSãoPauloeEspíritoSanto,atéasegundametade do séculoXVIII, conheceramum retrocesso ou fraco crescimento dalavouradacana.O que interferia no cotidiano dos colonos era a presença inamistosa dos

habitantes originais daTerra de SantaCruz. Por essemotivo a instalação dacanaencontrouinicialmenteembaraçonaresistênciaindígena.AlutacontraospotiguaresdoCeará,paraficaremapenasumexemplo,foiárduaesangrenta.Na Bahia, foi preciso esmagar Paiaiá, Acroá e Amoipira, além de chacinaríndiosdeJaguaripeeParaguaçu,paradesbastarterrasqueacolhessemavorazgramínea.Porvoltade1530,noRiodeJaneiro,ostamoiostrataramdeimpediraimplantaçãodosprimeirosengenhoselavourasdecana-de-açúcarcariocas.Paratrabalharacana,nossosancestraisprocuravamumcenáriodefinidopor

freiVicente do Salvador como de “grandíssimasmatas de árvores agrestes”.Um arvoredo “tão basto que não podia o homem dar conta”. Erammaçarandubas,jenipapos,vinháticoseangelins,entretantasoutrasárvoresque

se erguiam, imponentes, ao longo da costa – verdadeira fronteira florestal,tragadaporqueimadasdevastadoras.Homenslivreseescravosmovimentavamas fornalhas, e seus machados faziam o resto. Como se não bastasse, seesbanjoumadeiradeleinaconstruçãodecercasenormesqueseparavamumapropriedadedaoutra.À beira-mar, por sua vez, se espreguiçavam “grandesmatas demangues”.

Elas também não vingaram. Sob a copa das árvores, se estendia o fecundomassapé,húmuspegajosos,terrameladaque,segundoGilbertoFreyre,puxava“paradentrodesiaspontasdecanas,ospésdoshomens,aspatasdosbois,asrodasvagarosasdoscarros,osalicercesdascasas,deixando-sepenetrarcomonenhumaoutraterradostrópicospelacivilizaçãoagráriadosportugueses”.Eisporqueamaiorpartedosengenhosseaninhavanamata.Aescolhase

explicapelamaior fertilidadedos terrenosbem-vestidosdecapaverdeepelaabundânciadelenha,necessáriaàsfornalhasfamintas,alimentadasnumlaborque, às vezes, durava dia e noite, oito ou novemeses. E tais engenhos nãodeviam se afastar muito do litoral, sob pena de, sendo um só o preço dosgêneros de exportação, não poder competir com os demais fazendeiros, cujoprodutonãosofriacomasdespesasdetransporte.EmPernambuco,instalavam-seaolongodosriosqueseconcentramnavertentedoAtlânticodoplanaltodaBorborema, na Zona daMataÚmida, em que predominammorros e colinasarredondadas.NaParaíba,as lavourasocuparamasúmidasvárzeasdoMamanguapeedo

Camaratuba, entre outros.O corolário da terra era a água. Se a irrigação eradesnecessária graças ao rico massapé, tanto o gado quanto as pessoasprecisavamde água doce no dia a dia.Usavam-na, também, nos engenhos etrapiches, nas prensas emoinhos.Não à toa, amaior parte dos engenhos selocalizouàbeiraderioscomooParaguaçu,oJaguaribeeoSergipe,naBahia,eoBeberibe,o Jaboatão,oUnaeoSerinhaém,emPernambuco.NoRiodeJaneiro,amaioriaficavanasmargensdoParaíbaedeseusafluentes.

Quandonãoutilizavamforçahidráulica,osengenhosdependiamdeanimais.VELOSO,JoséMarianodaConceição.OfazendeirodoBrazil.

LISBOA:OFF.SIMÃOTHADDEOFERREIRA,1800,P.205.

Apologistasdacomplementaridadeentreoaçúcareosriosnãofaltariamaolongo dos séculos. Um funcionário holandês da Companhia das Índiasobservaria:“Osolobrasileiroétodoextremamentefértil,agradáveleirrigadopormuitosrioselagos,amaioriadosquaisatravessavárzeaspantanosasondese encontram numerosas variedades de frutas, mas especialmente cana-de-açúcar.” E o senhor de engenho Sebastião da Rocha Pita, de Paraguaçu, naBahia,acrescentaria:“Acana–plantacomumatodaaAméricaportuguesa–secultivaemsítiosprópriosparaasuaproduçãoquesechamammassapés,unsemterrafirme,outrosemilhas”–oumelhor,ilhasfluviais.EBarléusacrescentava:“Éesponjosa,suculentaecheiadeummiolodocee

branco.Temasfolhasdedoiscôvadosdecomprimento,afloréfilamentosaearaizmaciaepoucolenhosa.Destasaemrebentoseaesperançadanovasafra[...]édepoisdamanteiga,umregalonanossaalimentaçãoeumgratoestímulodagulanosdocesesobremesas.”Foi o tal “regalo” que atraiu os flamengos aoNordeste brasileiro entre os

anos de 1624 e 1654. A Companhia Privilegiada das índias Ocidentaisambicionavaosnovos rendimentos trazidospelacana.UmfolhetodeautoriadeJandeVriesnãodeixadúvidas.Seutítuloésignificativo:Motivosporquea

CompanhiadasÍndiasOcidentaisdevetentartiraraoReidaEspanhaaTerradoBrasile issooquantoantes,seguidodeumaListadetudooqueoBrasilpodeproduziranualmente.Éverdadequeantesdauniãodasmonarquiasibéricas,em1580,aomanter

uma boa relação com os portugueses, os flamengos frequentavam os portosbrasileiroseacidadedeLisboacarregandoaçúcaremsuasurcas,levando-oarefinar em Flandres e distribuindo-o por via terrestre e fluvial por toda aEuropa central. De sua embarcação tão característica, ficou a lembrança natoponímiacarioca,atravésdomorroqueevocaasuaforma.Aopassardealiadosainimigos,emconsequênciadasmedidastomadaspor

Felipe II contra a continuidade de seu comércio, holandeses e inglesesatacaram Salvador. Seguiram-se um ataque aos entrepostos açucareiros emRecifeedoisoutrosaSalvador.Em1604,PaulusvanCaardentomouaçúcarnaBahia. Passado um período de tréguas entre Espanha e os Países Baixos, aCompanhia das ÍndiasOcidentais optou pelo saque das possessões inimigas.TeveinícioaGuerradoAçúcareumperíododetrintaanosdeocupaçãodaszonasprodutivas.Ainda no século XVII, enquanto a Paraíba esteve sob jurisdição dos

flamengos,existiamaícercadevinteengenhosdecanaaolongodasmargensdosrios,sendoquedezoitodelesexportavamanualmentepertodequatromilcaixas de açúcar. Muitas zonas tomaram os nomes dos riachos que asbanhavam:Gramame,Tapoa,Mamanguape,Camaratuba,entreoutros.Portrásdocotidianodeplantioecolheita,organizava-seumembriãodevida

doméstica.Em1587,escrevendosobreaBahia,osenhordeengenhoGabrielSoares de Souza apontava a presença de “fazendas formosas”, alguns dessesengenhospertencendoaSuaMajestade.Mashaviatambém“roças,canaviaisecurrais”.NabocadoPirajásão“formosasealegresfazendasdavistadomar,quenãocansamosolhosdeolharparaelas”.Ermidaseigrejasseerguiamporperto, comoobjetivode congregaros colonos, dando-lheso apoio espiritualobrigatório.Enãofaltamdevoçõesqueresistiramaotempo:NossaSenhoradaEscada,daPiedade,daEncarnação,SãoJoãoouSãoBraz,paraficaremalgunspoucosexemplos.Juntoaosengenhos tambémeramimplantadosalambiques.NoséculoXVII,aaguardentepassouaserutilizadacomomoedadetrocanaaquisiçãodeescravosnocontinenteafricano.

Paracresceremultiplicar

Observadores, nossos antepassados percebiam que as condições geográficasimpunham limites à sua atividade. Para que a cultura crescesse e semultiplicasse, toda atenção era pouca. Na baixada santista, durante o séculoXVI,porexemplo,asplantaçõesnãomedraramcomonoNordeste.Assistiu-se,assim, a uma lenta desaceleração destes cultivares marcada apenas pelapresençamodestadeengenhocaspara fabricodeaguardente.Tal torpor seriarecompensadopela explosãocanavieirano séculoXVIII, quandooaçúcar setornaimportanteprodutonapautadasexportaçõespaulistas.Então,oentusiasmomultiplicouengenhoseestendeuasterrasdecultivoao

chamado “quadrilátero do açúcar”: Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu eJundiaí, com destaque para Itu, com suas terras pretas, e Campinas, com asroxas, como áreas privilegiadas de cultivo. Um viajante observou que tantacana engordava o gado e enfeava os moradores da região, cujos dentesincisivos ficavam “perdidos” devido aos excessos em chupar roletesaçucarados.Equalcanaplantavamnossosantepassados?Noterritóriopaulista,comono

resto daAmérica portuguesa, se cultivavam dois tipos de cana: amiúda, oucrioula, e a caiana. Nunca houve cuidado de se selecionarem variedadesmelhores.Segundoumtestemunho,acana-caianabrancafoiaíintroduzidaporvoltade1790,vindadeCuiabáoudeGoiás,tendosidoplantadainicialmentenumafazendadeJundiaí,daísedisseminando.Emgeral,ocanavialproduziadurantedoisoutrêsanosseguidos,dependendodafertilidadedosolo,sendooprimeiro corte chamado “planta”, o segundo, “soca”, e o terceiro, “ressoca”.Em Itu era possível manter a mesma produção durante três anos. EmMogiMirim,contudo,aproduçãoduravadoisanosapenas.Transplantada no século XVIII para Minas Gerais, região de clima

temperado,acanasofreucominvernosfriosefaltadechuva,naspartesaltas,onde a geada também prejudicava os canaviais. O abandono da culturacanavieira nessa região, por lavradores e proprietários, se deu porque elesentendiamnãolhesconvirinsistir,emvirtudedarepetiçãoanualdefenômenosmeteorológicos negativos, em regiões altas do sul da capitania, onde eramparticularmentegravesosefeitosda“queima”dacanapelofrio.Todavia,emmuitasregiõesmineiras,emqueocaloreaumidade,alémdosolo,favoreciamodesenvolvimentodacana,expandiu-sealavouraefirmou-seaatividadequea utilizava como matéria-prima, emmaior ou menor proporção. A cana emMinasrequeriamaistempoparaatingiraperfeição,enquantonaspartesmais

baixasequentesdoBrasil,bastavamnovemeses.Asespéciesmaiscultivadaseramacaiana,quechegavaacrescer30palmos;

acaninha,própriaparaosterrenosembrejadosefrescos;easalangó,ásperaecomgrandepercentagemdesacarina.Aestaespécie–cultivadasomenteemfinsdoséculoXVIII–precedeu,noentanto,acana-roxaeacana-fitaoucana-de-lista,sendoaprimeiraamaiscultivada.Segundoespecialistas,oregimeeraododeus-dará:nenhumcuidadohavianaescolhadasvariedadesoumudasetrabalhava-secomtotalausênciadosmenorespreceitosdepreparoeadaptaçãodosolo.Acanamedravanapurarotinadeseuaproveitamento.Já noNorte, a cana se instalou nas cercanias do rio Tapajós, plantada por

ingleses e holandeses. Ela foi, todavia, marginalizada pela concorrência das“drogas do sertão”, como o urucum e a baunilha, madeiras finas e paustintoriais,bemmaisrentáveis.Qualomododeplantiousadopornossosantepassadosemsualabutadiária?

AoembaixadoreexploradorholandêsNieuhof,coubeexplicar:

Acana-de-açúcarpropaga-sepelosseusbrotinhos,que,plantadoscomoanossavideira,cresceatéatingir a altura de 12pés, quando lançados em solo fértil e limpo.Seismeses depois de plantada acana,aparece-lhenotopoumasementedecorcastanha;está,então,nopontodesercortada,poisseficarmais tempo na terra, o caldo seca e azeda.” Para evitar crescimento excessivo, costumava-se,segundoomesmoautor,pôrareianosoloemvezdeestrume.“Emfevereiroemarço,fimdoverão,época das chuvas e da estação úmida, procedem-se às semeaduras à noite, não durante o dia ou àsúltimashorasdanoite.Tem-seocuidadodenãoenterrarfundodemaisassementes,poistudoquantoescapaaoalcancedosraiossolaresraramenteproduzfrutos.

Nãohámuitoquedizerdosprocessosdecultura.Aderrubada,acoivara,oabrir dos regos pela enxada ou pelo arado, o ”chegar a terra”, as limpas edespalhas, o corte, o transporte, tão repetidamente descritos por tantoscronistas, foram técnicas que pouco variaram de um banguê a outro. UmaRepresentação de senhores de engenho baianos, em 1752, mostra em queconsistiaalavouranaquelestempos:“Alimparaterraemquehajadeplantaracana, regar, ‘enregar’ a dita terra, cortar carros de cana para plantar a terra,conduzirestacana,trêslimpas,carretosparaoengenhoparaamoagem,cortedacana.”Por aquele tempo emuito depois não se empregava o arado para lavrar a

terra, “mondar” e “remondar” os plantios. Essa ausência continuou a serregistradaatéoúltimoquarteldoséculoXIX.Agrandeforça,noamanhodaterraenaproteçãodasculturas,eraaenxada.Atémuitotarde,ochamado“pai

Adão”,ouenxada,foiutilizadoparaenregar,abrirossulcosnaterrajároçadaecoivaradaequehaviaderecebera“semente”.O lugar ideal para o plantio da cana-de-açúcar, segundoGabriel Soares de

Souza,seriamosterrenosbaixos,muitomaisconvenientesqueosmorros.“Oidealéplantá-lasnasregiõesribeirinhas,facilmenteinundáveisporocasiãodasenchentes.”Daíapoucaimportânciadasregas.Paramelhoraraprodução,emPernambuco surgiram pilões, mós e eixos: os mais usados eram dois eixos,postosuns sobreosoutros,movidosporuma roda-d’águaouporbois.Alémdessamáquina,haviaoutradeduasoutrêsgangorrasdepauscompridosemaisgrossosdoque tonéis.Outrométodo– este, importadodoPeru entre1608e1612–consistiaemtrêstamborespostosnoalto,muitojustos,dosquaisodomeio se movimentava graças a uma roda d’água ou almanjarra de bois ecavalos, fazendo com que os outros se movessem também. Ao passar duasvezesentreostambores,acanaexpeliatodooseusuco.Mas quem plantava, limpava, fazia “chegar a terra”, colhia, botava a cana

paramoer, acondicionava e transportava o açúcar até omar?O escravo.Osproprietários de trinta e quarenta escravos não precisavam investir emequipamentos.Certamenteporqueo conhecimentode solos, doplantio e doscuidados com a planta, assim como das técnicas de extração de suco, já erabastanteconhecidonaÁfrica.DesdeoséculoXV,nosuldePortugale,posteriormente,nasilhasnãomuito

distantes do litoral da África, a escravidão em associação com engenhos deaçúcareracomum.ElaseintensificouaolongodosséculosXVIeXVII,graçasaotráficoparaoBrasil.Aimportaçãodeafricanoscobriaalacunadafaltademãodeobra,umavezqueepidemiasemortescausadaspelotrabalhoforçadoeorompimentocomestruturastradicionaisdevidasocial,associadasàfugadetribosinteirasparaointerior,acabaramporinviabilizarotrabalhodos“negrosdaterra”.Melhor:os“negrosdaGuiné”.Acanamatouoíndioeimportouoafricano.DiziaopadreAnchietaque“os

portuguesesnãotêmíndiosamigosqueosajudemporqueosdestruíramtodos”.Se, de um lado, a escravidão indígena durou até fins do século XVII noplanalto paulistano, absorvido pela produção de trigo, a percentagem deescravosíndiosenvolvidosnaproduçãodoaçúcarfoi,poroutrolado,baixandoà medida que os senhores enriqueciam e podiam importar africanos. IssocomeçouaacontecernoNordesteenolitoraldoSudeste,apartirdasegundametadedoséculoXVI.O tráfico,por suavez,desenvolveu-secadavezmaissobocontroledecomerciantesestabelecidosemcidadescomoRiodeJaneiro,

RecifeouSalvador,cujosproventoseramreinvestidosemengenhos,plantaçãodecanaeexportaçãodeaçúcar.Nasáreasrurais,taisplantaçõesdrenavamescravos,semcessar.Elessaíam

das lojase leilõesondeambosossexoseramexpostosnus,àvendacomosefossem animais. Submetidos a senhores e administradores, os cativos tinhamque se integrar a uma divisão de trabalho bastante sofisticada. Sem falar alíngua,eraprecisoobedecereaprenderoportuguêsassimcomoosrudimentosdapráticacristã.Eranecessárioainda seadaptar à culturados senhores,mastambémàqueladassenzalas,comseuscativosdediferentesnações,dialetosehábitos religiosos. Na Bahia, por exemplo, graças à sua superioridadenumérica,osnagôs conseguiram imporo iorubácomo língua franca entreosafricanos.Nos engenhos, o escravo faria parte de uma equipe de doze ou quinze

homens e mulheres. Se apresentasse aptidão para algum ofício especial, setornaria aprendiz de um escravo mais antigo. A produção de açúcar exigiadiversosespecialistas.Desdepedreiros,carpinteirosemarceneirosatéoficiaisdacasadecaldeira,purgadores,trabalhadoresnoserviçodeenxada,dacasadecaldeira,do serviçodemoendaoudahorta, assimcomocarreiros, carapinas,pedreiros,arraisdesaveiros,entreoutros.Comfrequência,ofíciosmaisparticularizadoseramreservadosaosescravos

crioulos;porém,muitasvezesoafricanochegavaformadoporseuclãousuatribo, pois nas aldeias não faltavam artesãos. Todo o cuidado que lhes eradispensado devia ser entendido como zelo pelo capital que representavam.Tratá-los como “coisa” era natural, regra, aliás, seguida pela IgrejaCatólica,queospossuía,àscentenas,emseusconventosepropriedades.Ocastigofísicoexageradoera,contudo,condenado,poisosmeiosdeconseguirsubordinaçãoerammaissutis.Ninguémnegaque tenhahavido senhores sádicosequeaescravidão fosse

umsistemamonstruoso.O jesuítaAntonil advertiuaos senhoresdeengenho:“Aos feitores, de nenhuma maneira se deve consentir o dar coices,principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas, nem dar compausnosescravosporquenacóleranãosemedemosgolpes, epode ferirnacabeça um escravo demuito préstimo, que vale muito dinheiro e perdê-lo.”Mais eficiente seria dar “algumas varancadas com cipó às costas”. PadreVieira, no século XVII, em sermões inflamados, comparou o sofrimento doescravonumafazendadeaçúcaraodoCristonaCruz.EojesuítaJorgeBenci,professor de teologia em Salvador, de 1684 a 1687, enfatizou a

responsabilidadedosdonosparacomseusescravos:abrigo,alimentoeroupaeeducaçãocatólica.Era preciso dar ao escravo algum espaço de liberdade, favorecer a

constituição de famílias e de grupos de solidariedade por meio de práticasreligiosaseumcalendáriodefestas.Umdesses“respiradouros”eraagarantiadeumdiaporsemanalivre,além

dodomingo.Nele,erapossíveloescravoplantarprodutosagrícolas,cuidardepequenas criações, fazer trabalhos artesanais e revender o excedente nosmercados locais e mesmo à beira das estradas. Alguns bem-sucedidosconseguiamcompraraliberdadecomaseconomiasresultantesdessepequenocomércio.Nãofaltousenhorqueobrigasseosseuscativosausaressediaparalimparo

mato, remendar redes de pesca ou cortar lenha.Mas não era a regra, pois aexigênciase tornavaaltamente improdutiva.Deacordocomváriosautores,ochicote, o tronco, amáscara de ferro ou o pelourinho só eramutilizados emcasodeinadaptação,repulsaaotrabalhoetentativadefuga.Houvesenhorquepreferiuoferecerrecompensaseincentivos.Graçasaeles,

oescravopoupavaparasuaalforria.Quandoestaerarecusada,aconteciadeocativo,sobretudosecrioulo,fugircomaseconomiasfeitas.Eháhistóriascomoa do escravo caldeireiro, tão eficiente que seu senhor se recusou a vendê-lo,acorrentando-o,paraquenãoescapasse.Aomorrerosenhor,oescravonãosócomprouàviúvaasualiberdade,comoconstituiu“umafirmadecaldeirasquelhe rende grandes lucros anuais; e esse homem prejudicado agora vive comtranquilidade e conforto”, segundo contou Henry Koster, ele mesmo,administradordeengenhoemPernambuco,em1809.Escravos trabalhavam muito. De todos e em qualquer serviço era exigida

uma média de quinze a dezessete horas de trabalho. Mas havia limitesrespeitados. Chuvas intensas interrompiam o ritmo das colheitas. O trabalhonoturno só se fazia durante a fase de cozimento do melaço. A jornada nocampo era intercalada para comer. O calendário religioso se encarregava dereduzir os dias úteis a 250. Mortalidade alta? Sim, em razão das doençasendêmicas do Brasil: tuberculose, sífilis, verminoses, escorbuto, disenterias,tifo, frequentementemortais e agravadas pelo péssimo estado de salubridadedassenzalas.Escravos distinguiam-se em “boçais” – como eram chamados os recém-

chegadosdaÁfrica–e“ladinos”,osafricanos jáaculturadoseentendendooportuguês. Ambos os grupos de estrangeiros se opunham aos “crioulos”,

nascidos no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas, e, dada amiscigenação,acormaisclaradapeleeratambémfatordediferenciação.Aoscrioulosemulatosreservavam-seastarefasdomésticas,artesanaisede

supervisão.Aos africanos se reservava o trabalhomais árduo, assim exigidopelospróprioscrioulos,comosevêemváriosdocumentosdeépocaemqueosantagonismos entre africanos e nascidos no Brasil são evidentes. Na guerracontra os flamengos, em 1647, por exemplo, Henrique Dias criou umRegimentodeHomensPretosdivididopornação–Minas,Ardas,BenguelaseCrioulos–,sugerindoaseparaçãoentreosnegrosvindosdaGuinéeos“filhosda terra”. Outro exemplo são os compromissos de irmandades e confrariasreligiosas,noséculoXVIII,queaguçavamaidentidadedegrupos.Vejam-seostítulos: Irmandade doSenhor bom Jesus dosMartírios erigida pelosHomenspretosdenaçãoGege,naviladeCachoeira,ouaIrmandadedeNossaSenhoradoRosáriodosPretosdaConceiçãodaPraia,restritaaangolasecrioulos,entrecentenasdeoutrasmanifestaçõesdoquechamamos,hoje,preconceito.Três séculosdepois,NinaRodriguesgravariaqueosafricanosdeSalvador

preferiam “a convivência dos patrícios, pois sabem que, se os teme pelareputaçãodefeiticeiros,nãoosestimaapopulaçãocrioula”.Adiferenciaçãoerivalidade cultural e social sempre estiveram presentes. O “trabalho sujo”,segundoohistoriadorJoãoJoséReis,esseficavasempreparaosafricanos.Omesmo autor sublinha o quanto os conflitos e encontros “abrasileiraram” oafricano. “Ele se tornou ladino, e seus filhos, crioulos e mestiços de váriasespécies:mulato,pardo,cabraecaboclo.”Rações de farinha de mandioca ou milho, coquinhos chamados “aquês”,

feijões,arrozehortaliçascompunhamocardápioalimentardosmoradoresdoengenhoe,porextensão,emmaioroumenorquantidade,odosescravos.Carnedevacaougalinhaeraexcepcionalmenteservidaaosdoentes.Certoartesanatosedesenvolveunasáreascanavieiras:odebarro,usadonoscachimbos,odoschapéusdepalhadeouricuri,odasredesdetrançado,odetamancos,odafacadeponta.Oaçúcar,porsuavez,invadiuoshábitosalimentares,transformandoasregiõescanavieirasemprodutorasdevariadostiposdegeleias,compotasedoçaria, além de ter introduzido dezenas de peças de cozinha ligadas aopreparodessesquitutes.Negroslivrestrabalhandoeganhando,nosengenhos?Sim.Cadavezmaise,

sobretudo, no século XVIII, quando começaram a substituir trabalhadoresbrancos. Processos técnicos garantiam a inserção desses especialistas. Um“mestredeaçúcar”,encarregadodemanipularacaldeiraatéaobtençãodeum

xarope impecável, graças à manutenção de temperatura específica, eracontratadodurante,epagodeacordocomaquantidadeproduzida.Em1711,recebiaumsaláriode120$000réispelasafra.Em1790,naáreadeCampos,receberianomínimoentre600e800réispordia.Seuauxiliareraobanqueiro,queporsuavezpodiaganharumsalárioentre30$000e40$000réisporano.Umsoto-banqueiro–emgeral,escravodoengenho–recebiagratificaçãoporseusserviços.Outrospostosocupadosporlibertosdecoreramodefeitor-mor,queganhava60$000réisporano,ode feitoresdepartidoedemoenda,com40$000 réis anuais. Os feitores de distribuição do açúcar e encarregados dalimpeza do caldo tanto podiam ser livres quanto escravos.Outras ocupaçõessecundárias pagas eram a pesca, o cuidado como gado e o fornecimento delenha.A plantação de fumo também requereu funções de especialistas forros e

remunerados: enroladores e pisadores combatiam o desperdício e adeterioração das folhas. Os segundos, por exemplo, eram encarregados deumedecer,deixar fermentareadicionar ingredientes,comoervas,paradaraofumoourapéconsistência,corecheirodiferenciados.Masnaculturadacanasóexistiamsenhorespoderososcercadosporummar

deescravos?Não.Forammuitosos“lavradores”,rendeirosemeeiros,brancosoulivresdecor,quenãotinhamcapitaisoucréditoparamontarseusprópriosengenhose,emvezdisso,arrendavamaterraoumoíamsuacanaemgrandesengenhos.Eraachamada“canacativa”,pois,doquedelaseextraía,umterçoerapagocomoarrendamento.Nessenegócio,haviadetudo:gentecomtítulosde nobreza ou altos postos na milícia, mercadores, padres, viúvas e joões-ninguém. Alguns com mais de 100 hectares de terra e mais de quarentaescravos, outros com poucos escravos e terras em que trabalhavam com aparentela.Arelaçãocomossenhoresdeengenhoeradeconflitoecooperação,os primeiros querendo dominar e tirar vantagens econômicas dos segundos.Estes, reagindo e se aliando com os primeiros contra osmercadores. Enfim,todoscompartilhavamriscosealmejavam,alémderiqueza,umaposiçãosocialhonrada.Paraosescravosquetrabalhavamcomlavradores,otrabalhonãoeramenor,

masocotidiano,diferente:viviamemgrupospequenos,tinhamcontatodiretocomoslavradores,interagiamcompequenosfazendeiroseartesãosqueviviamnas regiões açucareiras. Nas bordas dos engenhos, vaqueiros, lenhadores efornecedoresdealimentosganhavamavida.Semcontarosaltossaláriospagosnas grandes propriedades aos pedreiros, carpinteiros, feitores, advogados e

cirurgiões-barbeiros, todos na folha de pagamento do “senhor”.No início doséculoXVIII,lembraStuartSchwartz,metadedapopulaçãonaBahiaeralivree ativa, e muitos dos seus componentes certamente estavam integrados aosofíciosdacana.Osmúltiplosacordospossíveisdavamenormemaleabilidadeaocotidianodessagente.

Modelosdeconstruçãodeengenhosdeaçúcareramdivulgadosemlivros.FREIRE,JoséJoaquim.Moagemdecanasemumamoendadecilindrosverticaismovidaporuma

rodahidráulica.1784.

A terra foi vampirizada pela cana, mas também pelo fumo ou o algodão.Somou-seàmonoculturaadestruiçãodasmatasgraçasàsqueimadas,métodoqueoslusosjátinhamexperimentadonasilhasatlânticasquandodaintroduçãodacanapor lá ebemmais agressivadoquea singela coivarados indígenas.Desdeosprimórdiosdacolonização,afertilidadedosolocomeçouaseperdere a se dissolver nos rios.Gilberto Freyre foi o primeiro a chamar a atençãosobre os prejuízos ecológicos da monocultura, percebidos desde o séculoXVIII. O autor pernambucano opôs o canavial civilizador ao canavialdevastador, lembrando que um estado de guerra se instalou entre homem emata. “Quem todo quer, todo perde”: o provérbio já existia na época, masninguémlhedeuouvidos.AindanosséculosXVIeXVII,aMataAtlântica,queabasteciaosengenhos

de madeira, parecia inextinguível. Como qualquer colônia de exploração, o

Brasil sofreuadilapidaçãobrutalde seus recursosnaturais.O impactodiretodas atividades coloniais sobre os ecossistemas existentes causou imediatosprejuízos,semcontaraintroduçãodeespécimesalienígenasque,dentrodessescontextos perturbados, reproduziram-se de forma descontrolada. Animais,vegetais, ervas daninhas emicro-organismos patológicos se disseminaramdeformavoluntáriaounão,interferindonapaisagem.O território não possuía fronteiras limitadas; nele, uma lavoura desgastada

eraimediatamentesubstituídaporoutra.Osconhecimentosagronômicoseramprecáriosenãoajudavamacombateromodelousado.Pior,aconcessãofácildeterras,sobretudoàelite,estimulavaapráticadeexplorá-lasdeformapoucocuidadosa. Tal falta de cuidados com o ambiente, somada à presença doescravismo,despertoualgumacríticadesdeosprimeirostemposcoloniais.NosDiálogos das grandezas do Brasil, Ambrósio Fernandes Brandão culpa osproprietáriosdisplicentes,bemcomosuafaltadeamoràterra.

Elestêmpormuitotempoperdidooquegastamemplantarumaárvorequelheshajadedarfrutoemdoisoutrêsanos,porlhesparecerqueémuitaademora[...]nãoháhomememtodoesteestadoqueprocurenemsedisponhaaplantarárvoresfrutíferas,nemfazerasbenfeitoriasacercadasplantasque se fazem emPortugal [...] E daqui nasce haver carestia e falta destas cousas, e não vermos noBrasilquintas,pomaresejardins.

Um dos desdobramentos do problema foi a falta de gêneros de primeiranecessidade.ABahia, em alguns períodos do séculoXVIII, com todo o seufausto,não tinhaoquecomer.Faltavamandioca,alimentodepobrese ricos,livres e escravos, razão pela qualmandaram os governadores das capitanias,nos textos das sesmarias, incluírem a cláusula de que ficava o proprietárioobrigado “a plantar mil covas de mandioca por cada escravo que possuísseempregado na cultura da terra”. Repetiam, assim, providências tomadas noséculoXVII,porMauríciodeNassau,comrelaçãoaos lavradoresesenhoresdeengenhodePernambuco.Não foi por acaso que, em 1770, o jesuíta Guillaume Thomas François

Raynal, autor deUma história filosófica e política dos assentamentos e docomérciodoseuropeusnasÍndiasOrientaiseOcidentais,sublinhouquepara“alimentar uma colônia na América era preciso cultivar uma província naEuropa”.Apesar do cotidiano laborioso noBrasil, na Europa, a presença doaçúcarprogrediucomlentidãoeopreciosocondimentonuncaesteveemtodasasmesas.QueodigamoscamponesesfrancesesàsvésperasdaRevoluçãode1789:queixavam-sedafaltadele.

POST,Frans.VistadeOlinda.ÓLEOSOBREMADEIRA.

1662.

A os finais do século XVII, um censo revelou que o Rio deJaneiro tinhamaismulheres do que homens. Considerando ototal da capitania, entre 1779 e 1789 havia um predomíniofeminino na população livre. De um total de 86.526 livres,52,6%erammulheres.No recôncavodaGuanabara eVilade

São José, havia mais homens do quemulheres, e emAngra dos Reis, maisescravas doque escravos.De1779 a 1799,manteve-se a desproporção entresexosnoconjuntodapopulaçãolivredeCampos,emfavordasmulheres.EmCampos,emalgumasfreguesias,aproporçãodeescravaserasuperior.Assimcomoestiveramàfrentedefazendaseoutrasatividadesagrícolas,as

mulherestambémdirigiramengenhos.QuandofezsuaDescripçãodoDistrictodos Campos Goiatacaz, em 1785, Couto Reis recenseou 124 engenhos, dosquais dez pertenciam a mulheres. Para além destas senhoras de engenho, ocartógrafoidentificouinúmeraslavradoras,comoDorotheaBarreta,RaimundaRodriguez,RosaMaria,ÚrsulaCampeloeMariaAlmeida,envolvidascomocultivodecana.Compouquíssimasexceções,todaspossuíam,nomínimo,umescravo ou escrava e produziam anualmente milho, farinha de mandioca e,sobretudo,açúcar.De10arrobas,comoofaziaPauladaCruzcomumescravo,a700arrobas,comoMarcelaSoares,quepossuíatrezeescravos:duasmulhereseonzehomens.Outrosdocumentosindicamapresençademulherescomofilhaseviúvasde

senhoresdeengenhos, lavradoresou roceiros.Muitasdelas,perseguidaspeloSanto Ofício da Inquisição, respondiam pelo crime de “judaísmo”. Entreoutras, Ana de Paredes, Ana Gertrudes de Bragança, Bertoleza deMiranda,CatarinaMarques, Elena doVale, Guiomar de Lucena eMariana Peres. Aonorte,eramfazendeirasemSãoJoãodaBarraJosefaPintoBrandão,FranciscaBarretoJesusFariaeMarianaJosefadaSilva.NafreguesiadeNossaSenhorado Amparo do Taí, reinava d. Carolina Faísca, e na freguesia de São JoãoBatista,MarianadeMirandaMeneses.

Ostentaçãonovestir:exigênciadassenhorasricas.JULIÃO,Carlos.Cadeira,séculoXVIII[Iconográfico].

Nas primeiras décadas do século XIX, quando da extinção dos fradescapuchinhos, suas terras, antes pertencentes aos índios coroados, foramreclamadas por d. Maria Marinha da Cunha Godolfina. Já Maria Josefa deJesusFernandes,belezalocaldotadadetestaaltaelábiosfinos,eraasenhorada fazendaPedraBranca,emSãoFidélis.Viúva,AnaLuizaPintoPereiradeSampaio assumiu, por sua vez, o morgado de Capivari, com sua milagrosaermidadedicadaaNossaSenhoradoDesterro.Muitos engenhos tinham licença do bispo para ter cemitério e capelas

própriasemuitasdelasforamfundadaspormulheres:adeNossaSenhoradasNeves, por Maria da Cunha e seu marido, Domingos Sardinha, próxima aoPilar.IsabelEsteveseomaridoFranciscoDiasMachadofizeramomesmo.Nabaixada se rezava a Nossa Senhora da Guia, da Conceição, do Pilar, doRosário, devoções encarnadas em lindas imagens de madeira e barro que otemponãoesqueceu.

Algumas mulheres saíram do anonimato a que lhes condenou a história.Veja-se,porexemplo,ocasodeBentaTeixeira.FilhadepadreenascidaemCamposem1675,proprietáriadeterrasedeumpequenoengenho,elalideroua luta de pequenos produtores contra os descendentes do filho de SalvadorCorreia de Sá, o quarto visconde deAsseca.As reuniões dos insurgentes sedavamconstantemente em sua casa.Na épocado conflito armado,Benta eraviúva e mãe de filhos adultos. Ela investiu a cavalo e armada contra osrepresentantes do visconde quando estes vieram tomar posse da donataria.Consta que sua filha, Mariana Barreto, foi de fato quem liderou o ataque,algemando pessoalmente os oficiais, havendo notícias de que várias outrasmulheresparticiparamdoconflito.Olevanteduroudias,atésersufocadopelasautoridades, e a vila, ocupada.Muitos dos participantes foram punidos comdegredoemAngola,entreelesMarianaBarreto.OutraMarianaquesedestacouàfrentedeengenhosfoiafilhamaisvelhada

baronesa de Campos, Dona Maria Eugênia Carneiro da Costa. Segundo aviajante inglesaMariaGraham, foi em sua casa, naMata da Paciência, que,durante uma excursão a cavalo, a inglesa teve “uma das recepções dasmaispolidasporpartedeumabelamulher,detomsenhoril”.Vamosouvi-la:

D. Mariana conduziu-nos ao engenho onde nos deram bancos colocados perto da máquina deespremer,quesãomovidosporummotoravapor,daforçadeoitocavalos,umadasprimeiras,senãoaprimeira instalada noBrasil. Há aqui duzentos escravos e outros tantos bois em pleno emprego.Amáquinaavapor,alémdosroloscompressoresnoengenho,movediferentesserrasdemodoqueelatem a vantagem de ter a suamadeira aparelhada quase sem despesa. Enquanto estávamos sentadosjunto àmáquina, d.Mariana quis que asmulheres que estavam fornecendo cana cantassem, e elascomeçaram primeiro com uma de suas selvagens canções africanas com palavras adotadas nomomento,adequadasàocasião.ElalhesdisseentãoquecantassemoshinosàVirgem.Cantaramentãocom tom e ritmo regular com algumas vozes doces a saudação Angélica e outras canções.Acompanhamos d. Mariana dentro de casa, onde verificamos que enquanto nos ocupávamos emobservar a maquinaria, caldeiras e a destilaria, preparava-se o jantar para nós, apesar de já estarpassada,hámuito,ahoradafamília.

Comamãonamassa–oumelhor,nopilãoenamoenda

SobocomandodesenhorascomoasMarianaseBentaPereira,oulavradorasde cana e roceiras, estavam as escravas. Elas também interagiam nofuncionamento do engenho. O cronista Antonil foi pioneiro em observar a

participaçãofemininaemmeioàsperigosasengrenagensquemoíamascanas.A calcanha, segundo ele, era a escrava que tinha várias funções. Vigiava orecipienteemquesecoavao“mel”;varriaacasadascaldeirasoudoscobres;areava-oscomlimãoecinzas;acendiaasfamintascandeias.A um chamado do feitor, diz o cronista, as escravas recebiam a cana para

“virameterentreoseixosetirarobagaço”.Ocuidadoeraparaqueascativasnãodormissem,“peloperigoqueháde ficarempresasemoídas”.Cabia-lhesmoer as canas, metendo-as, “limpas da palha e da lama [...] e depois delaspassadas,torna-sedeoutraparteapassarobagaçoparaqueseespremamaise,de todoo sumo, ou licor que conserva.E este caldo cai damoenda emumacocha de pau que está deitada debaixo dos aguilhões, e daí corre para umabica”edesta,deumrecipienteaoutro,atéa“guinda,aondesehádealimpar”.Eeleespecifica:“Asescravasdequenecessitaamoendaaomenossãosete

ouoito, a saber: trêspara trazer cana, umapara ameter, outraparapassarobagaço,outraparaconsertareacenderascandeias,quenamoendasãocinco,epara alimpar o cocho do caldo, a quem chamam cocheira ou calumbá, e osaguilhõesdamoenda e refrescá-los comáguapara quenão ardam [...] comotambémparalavaracanaenlodada,parabotarforaobagaçoounorioounabagaceira,parasequeimaraseutempo.”SegundoAntonil, asmulheresusavamde foice e enxadana roça, comoos

homens.De junho a setembro labutavamdia e noite, revezando-se de quatroemquatrohorasparafabricaçãodoaçúcar.Anosmaistarde,MariaGrahamviuvoltaremtaisescravasdeseusterrenosdecultivo,localizadasnafazenda,“comsuacestinhacarregadadealgumacoisaprópriaemqueosenhorviaquenãotinhaparte”.Grávidasnãofaziamserviçonoeitoenãoseaplicavam,segundoCharlesRibeirolles, jornalista francês, aoutromisterqueodas atividadesdacasa. Enquanto amamentassem, eram dispensadas do serviço pesado e seusfilhos, confiados, logo que aprendessem a andar, a velhas negras. Escravaslavavam, passavam, cozinhavam, arrumavam, mas documentos as revelamigualmentecomoexímiasparteiras,tintureiras,hortelãs,aprendizesde“cozer”eaté comocarrapateiras, entreproprietáriosdecavalos emulasou“amasdecegos e crianças”, cuidando de velhos e miúdos. Não faltavam as oleiras,conhecedorasdevelhastradiçõesafricanas,bemdesenvolvidasaqui,graçasaobarroqueamesmaMariaGrahamobservaracomomatrizdetantacerâmicadelouçavermelha.Jáasroceirasplantavamcanacomaajudaounãodosescravosdosenhorou

dasenhoradeengenho.Tinhamquezelarpelocanavial,limpando-odeduasa

quatrovezesporano,evitandoquefosseabafadoporervasdaninhas.Naépocadacolheita,mandavamcortaracanaporsuagenteeconduziam-naemcarrosde boi para a moenda. Algumas moradoras destas engenhocas cobertas depalha tinham suas próprias moendas, que botavam para funcionar com bomtempo.Usavam filhos e parentesno trabalhodeplantionão sóda cana,mastambémdofeijãoedomilhoquecresciamentremeadosaocanavial.Longe de uma vida em cor-de-rosa, problemas não faltavam. Senhoras de

engenhotiveramqueenfrentartensõesentreescravoseseusdesafetosouentreescravoseelaspróprias.Aelascabiaprotegeragricultores,agregadosefeitoresquetrabalhassememsuasterrasoucomsuascanas,comoseviufazeraviúvadeManoel Ferreira dos Santos, que teve o seu feitormorto com facadas nopeitoenopescoço.Elas tinham que acalmar alaridos e bebedeiras de escravos e manobrar,

habilmente, contra a sua recusa de aceitá-las quando se tratava de escravonovo. Tinham também que contornar inaptidões que só eram descobertasdepoisdacompra.MariaTeresadaRocha,porexemplo,aomandarcertoJosé,denaçãoAngolaouBenguela, rachar lenha, este“sedesculpou,dizendonãopoder”. Confessou-lhe sofrer de “moléstia no peito, falta de força e GotaCoral”.Outrassenhorasanunciavamnosjornaisseusescravosfugidos:“Fugiudafazendaded.AnnaMoreiradaCostaBelas,hádoismeses,oseuescravoManoel,crioulo.”Não faltaram as que soubessem usar a violência de seus escravos em

benefíciodeseusassuntosinternosounegócios.AesposadeManuelLeite,porexemplo,soubearmar,comseuscativos,umaemboscadaparaumescravodeCustódioJoséNunes,umcertoManoel,afimdeevitarqueesteviesseversuaescravaMaria. Outras perderam açõesmovidas por ex-escravos, como foi ocaso de certa Maria Teresa, processada por não pagar rendimento de umcanavial quemandaramoer, bem comoo valor dos feijões e de sua soca.Odesfecho da história é que a senhora se viu obrigada a pagar com açúcar aquantia referente à moagem do canavial. Outras mais tiveram que defenderseusescravosenvolvidosemassassinatos.UmdoshomensdecertaCustódia,por exemplo, matara um feitor por este ter comido um porco de suapropriedade.Se não faltavam tensões e conflitos que as mulheres de engenhos ou

plantações tiveram que administrar, suas escravas, por sua vez, podiam serpivôs e testemunhas de crimes e violências. Processos as mostramassassinadas,comocertaAngélicaqueapareceumorta,comaorelhaamputada

e “ferimentospelo rosto eosbraços amarrados comcepos”.A razão,não sesabe. Como ela, muitas outras sofreram maus-tratos ou foram estupradas eseviciadas.Outrascativas,poralgumarazão,deramotroco:afazendeiraAnaJoaquinaCarneiroPimentafoisufocadaporsuasescravasLetícia,Querubina,CecíliaeVirgínia,eoutrastantascativasparticiparamativamentedelevantes,comooqueocorreuemVassourasem1838.MasazangaeabravezademuitaNhanãouNhãnganasobreosescravosnomaisdasvezesnãofaziamedoaosmoleques nem temor aos trabalhadores. Segundo registros literários, eram“mulheres respeitadas emesmo amadas pela sua gente”. Por isso não faltamexemplosdesenhorasquerecomendavam,emtestamento,aliberdadedesuasmucamasqueridas.Foiocaso,porexemplo,ded.FranciscaBarretodeJesusFaria, que, em 1676, estabelecia: “Por minha morte ficará liberta a escravaAmbrosina,pardaaquemdeixoparaaserviraescravaGabriela.Alémdestelegado,terámaisaquantiadeumcontoderéisquelheseráentreguepormeutestamenteiro.”Omesmofezd.Franciscacomaparda Idália,aquemlegoucomoescrava

Clemência,explicando:“AmbrosinaeIdáliamerecemdemimestefavor.”Como se não bastassem tantos problemas, as lutas por terras opunham

mulheresagricultorasaseusvizinhos,eelasnãomediamesforçosemjuntaraparentela para defender seus interesses. Para ilustrar a ferocidade destassenhorascontrafeitas,valelembrarocasodecertaJoanadaCruz,nosertãodeCalhambola, planície de Campos, que “com três filhos, de nomes Leandro,ManoeleAntônio,emaistrêsagregados,denomeJoãodosReiseseuirmãoFulanodosReiseFulanodoAmaral,edoisgenros,ManoeldaSilvaeAntônioRodrigues, e mais dezesseis escravos machos e fêmeas [...] destruíram earrasaram todas as lavouras de plantações que nas roças de Salvador NunesViana e seus foreiros se achavam, pondo tudo por terra”, conta-nos umdocumento.Amesmad.Mariana,tãoadmiradaporMariaGraham,seserviudetodosos

expedientespossíveisparaadiarapartilhadosbensdeseufinadomaridoentreosgenros.Seu inventário revela registros bizarros sobreo assunto.Neles, osjuízes de órfãos, provavelmente cooptados pela poderosa sinhá, alegavam,sucessivamente, incômodos de fígado, ventre, hemorroidas e até uma“inflamação nos testículos” para não realizar as viagens que os obrigariam aatenderasdeterminaçõesdofalecido.Se umas se impunham pela força, outras eram vítimas de coações e

constrangimentos.D.AnaMariadaMota,porexemplo,pagavaarrendamento

de terras a Joaquim Silvério dos Reis, acoitado em Campos, depois da“Inconfidência”.Ele, por suavez, impunha a seus foreiros a comprade seusescravospor“exorbitantepreço”.AvingativaDonananãohesitouemassinarlibeloacusatóriocontraoinconfidenteeseusogro,LuísAlvesdeFreitasBelo,comparsade espoliações.Não foi aúnica a reagir.Uma representaçãoao reimencionacertad.AnaFranciscaPinheiro,possuidorade“umengenhodefazeraçúcar em terras do dito visconde [de Asseca] e dos frades beneditinos”,igualmente alvo das manipulações de Silvério e do sinistro coronel Belo.Ambos pretendiam “o arrendamento das ditas terras e lançar fora do seuengenhoaviúva, reduzindo-aaoestadomaismiserável”.Outrasproprietáriasde pequenos engenhos, Rosa Maria de Jesus e d. Maria de Jesus daEncarnação, também sofreram ameaças – se “não dessemmeação e lenhas”.TodassevingaramindoàJustiçacontraadupla.

SMYTH,William.VistadomercadonoLargodoPaço[Aquarela].1832.

E nquanto a vida agrícola e os engenhos, motores da economiacolonial, moldavam o cotidiano demuitos, as pequenas vilas ecidades faziam o mesmo. O comércio foi a razão de ser dacolonização e, em maior ou menor escala, o modo de vida degrandepartedosemigrantesvindosdametrópole.Acomunidade

mercantil floresceu emRecife,Rio de Janeiro,SãoVicente,Bahia,Vitória eIlhéus, cujos portos tinham grande atividade no embarque do precioso ourobranco,oaçúcar.Àmedidaquecresciamasexportações,ascabanasdebarroecanas com telhados de palha, rodeadas por simples paliçada para conter osíndios,foramdandolugaraedifíciosdepedraecal,ondeacompraeavendadetodasortedeprodutosazeitavaocomércioexternoeinternodacolônia.Segundoo navegadorFrançoisPyrard deLaval, ao sopé da cidade deSão

Salvador,entãocapitaldoBrasil,“pormaisdeumquartodeléguadeextensãode um lado e de outro de uma bela rua, há uma série de prédios bemconstruídos, ocupados por todogênero demercadores, oficiais e artífices.Aíestão localizados todos os depósitos e armazéns de carga e descarga demercadorias,tantodemercadoriasdoreiquantodeparticulares”.Amercadoriasubia para a cidade não por ladeiras em lombo de mulas, mas por pesadomaquinário. O cirurgião francês Gabriel Dellon mencionou igualmente “onúmero considerável de mercadores ricos de todas as nações, o que temgarantido a prosperidade do comércio local e do resto do país”. Vindos deAngolaeGuiné,escravoserammultidão,segundoomesmo.Vinte anos mais tarde, o navegador William Dampier observava que “os

comerciantesquevivemnestapraçasãoreputadosricosetêmmuitosescravosem suas casas”. Ele cruzou com comerciantes holandeses, franceses e uminglêsquecarregavammercadoriasemnaviosportugueses.Asroupasdelinho,finasegrosseiras,biscoitos,trigo,vinhodoPorto,azeitedeoliva,manteigaequeijos,alémdeferramentasdeferroeutensíliosdeestanho,eramosobjetosdeseucomércio,alitrocadosportabacoemroloourapéeaçúcar.ObatavoDiederickRuitersescreveuquenacidadedePernambuco“faz-se

grande comércio de açúcar, que aí é muito abundante”. “As lojas do Rio”.RegistrouorefinadoLordStaunton,“estãorepletasdetecidosdeManchestereoutrasmercadoriasinglesas,entreasquaisseencontramatémesmogravurasecaricaturasimportadasdeLondres”.Emdoisséculos,nascidadescoloniaissecortaraminfinitasruas.Paraelas,

abriam suas portas tendas de pequenos comerciantes chamados, à época, demercadores “de retalho”. As ocupações comerciais implicavam uma grandequantidadede indivíduos, como regateiros,pequenosvendedoresambulantes,lojistas, taverneiros, caixeiros, mascates de miudezas, lavradores quecomerciavam seus gêneros, camboeiros de escravos, entre outros. Peloslogradouros, oferecendo serviços, circulavam as negras de tabuleiro e osescravosdeganho.Efervescênciaeebulição,negociaçãoeconflitospermitiamalivres,libertoseescravoscircular,ganhar,perdereviver.Do Nordeste ao Sudeste, nos sobrados dominavam os “homens de grosso

trato”, responsáveis pelo comércio internacional de importação e exportaçãoem larga escala e o tráfico de africanos. Também eram designados comofeitores, tratantes, traficantes, caixeiros e mercadores de loja, quando nãofaltavamarrematantesdecargasparafazerespeculação.Éoqueselênotrechodeuma“InstruçãoparaogovernodaCapitaniadeMinasGerais”,dapenadeJ.J. Teixeira Coelho: “No ano de 1779, estando eu naquela cidade do Rio deJaneiro,chegaramaoportodeladoisnavioscarregadosdenegroselogoumasociedadedenegociantescomprouascarregações inteiras.Essesnegociantes,comoficamsendosenhoresdetodososnegros,sãoárbitrosdopreçodeles.”O jesuíta Antonil é quem dá os preços dos escravos que seguiam para as

MinasGerais:

“Porumnegrobem-feito,valenteeladino 300oitavasdeouro

Porummolecão 250oitavasdeouro

Porumcrioulobomoficial 500oitavasdeouro

Porumbomtrombeteiro 500oitavasdeouro

Umamulatadepartes 600oitavasdeouro

Porumanegraladinacozinheira 350oitavasdeouro.”

AproduçãodasMinas,grandeconsumidorademãodeobraafricana,atuavadiretamentesobademandadeescravosemercadoriasnascidadesportuárias.Ostropeiros,camboeirosecomissáriosvolantesrealizavamaligaçãodoRiodeJaneiro com as minas, oferecendo às populações mineradoras além detrabalhadores,louçaseporcelanas,damascosetapeçariasdaChinaedaÍndia,brocados,vinhos,azeiteseumainfinidadedeoutrosartigos.Domesmomodo,oouro transportado, legalmenteounão,pelosmesmosagenteseraconduzido

aoportodoRioedeláparaoexterior.Aintensidadedenegócios,onúmerodeembarcaçõesancoradasnosportos,

o formigueiro de artesãos e pequenos comerciantes engajados na atividademercantilimpressionava.UmoficialdonavioL’ArcemCiel,depassagemporaquiem1748,observou:

QuasetodoocomérciodoBrasildependedosprodutosvindosdaEuropa.Emmatériadegênerosalimentícios, o país recebe de Portugal medíocres quantidades de farinha, de vinho do Porto e deespeciarias, o suficientepara satisfazer a frugalidadeportuguesa.Ocomérciodeprodutosde luxo éinfinitamentemaissignificativo.Importa-sedetudo:estofosbordadosaouroeprata,galões,peçasdeseda, belos tecidos, telas finas e uma infinidadedeoutrasmercadorias damoda, produzidas, na suamaioria,pelasmanufaturasfrancesas.Umavezporano,entreosmesesdesetembroeoutubro,Lisboaenviaparaasuacolônia,sobescoltadetrêsouquatronaviosdeguerra,umafrotacarregadacomosprodutos referidos. Essa frota, depois de distribuir a sua carga pela Bahia de Todos os Santos,PernambucoeRiodeJaneiro,écarregadacomouroealgunsdiamantes–provenientesdosdireitosdoreioupertencentesaalgunsparticularesinteressadosemremetersuasriquezasparaPortugal–evoltaa reunir-se na Bahia em dezembro ou janeiro, retornando daí para a Europa. Do país, os naviosmercantes portugueses levam, alémdoouro e da pedraria, somente tabaco, açúcar e algodão– esseúltimoaoquepareceproduzidocontraavontadedametrópole.

E pouco mais de vinte anos depois, foi a vez de Louis Antoine deBouganville, primeiro francês a realizar uma viagem de circum-navegação,anotar:“Logoqueasfrotasentramnoporto,todasasmercadoriasquetrazemsãoconduzidasàalfândega,ondeépagoumimpostode10%.”OmovimentodenausentreoRiodeJaneiroeaspraçasafricanaseragrande.

Em1783,oviajanteJuanFranciscoAguirreidentificoudecatorzeadezesseisnaviostrazendocadaqualcercadetrezentosouquatrocentosnegros,fundeadosnaGuanabara. Perifericamente havia aqueles que se dedicavam ao comércioilegal, contrabandistas marginais ou empregados públicos que evitavam asrestrições aos seus negócios. Liberar uma embarcação em direção ao rio daPrata? Quarenta moedas de ouro oferecidas ao secretário do governadorcostumavam resolver o problema no Rio de Janeiro, contou um agente daCompanhiadaGuinéencarregadodetrazernegrosparaacolônia:“Asmoedasde ouro foram entregues e, melhor de tudo, aceitas”, regozijava-se. ABouganville tambémnão passou despercebido o contrabando demercadoriasfeitoporbrasileiros,atravésdeBuenosAires,paraoChileeoPeru.Algumas cidades funcionaram como entrepostos demercadorias vindas de

outras capitanias e mesmo dametrópole, caso do Rio de Janeiro e de OuroPreto. Essa última recebia vinho, manufaturas, ferramentas, escravos e

remédios, revendendo-os a outros núcleos.Dentro das capitanias, circulavamosprodutosdaterra:toucinho,aguardente,açúcar,couro,gadoealgodão,alémdemilhoefeijão.Eraprecisocomprar,vender,distribuir,lucrarouperdercomtantosprodutos.

Milhares de vidas envolvidas com negócios deram um perfil diferenciado àsociedadecolonial.AtéoséculoXVIII,“negociante”erapalavraqueabarcavadiferentesocupações.Atécemanosantes,“mercador”,“homemdenegócios”e“cristão-novo” eram sinônimos revestidos de impopularidade. Na hierarquiamedieval cristã, o comerciante ficava abaixo das artes mecânicas. Aocomercializar o fruto de artes e ofícios, ele era considerado um parasita.ApenasnoséculoXVIIIoestigmacomeçouaseesvair,poisaadministraçãodomarquêsdePombal,emPortugal,decretou,em1770,queo“comércioeraprofissãonobre,necessáriaeproveitosa”.Apresença israelitanocomérciodacolônia foi incontornável. Inseridosna

vida social, política e administrativa baiana, muitos como Mateus LopesFrancoouDiogoLopesUlhoaeram,alémde“homensdenegóciosedemaiorconceito e experiência”, amigos das autoridades. Ulhoa era conhecido como“mimosodogovernador”,poiseraconselheirodeDiogodeLuísOliveiraem1646. Quando da Primeira Visitação do Santo Ofício, em 1591, à Bahia, onúmero de cristãos-novos na atividade impressiona.Era a “gente deNação”,“compostaporindivíduoscomumentericosemuitoafeiçoadosaocomércio”,diziaoviajanteCoréal.FrançoisFroger,jovemengenheiroqueacompanhavaosenhor De Gennes a uma viagem ao estreito deMagalhães, observou que amaior parte da população da capital seria constituída por “judeus ricos queadoramocomércio.Tantoéassimque,quandoumcidadãoquerqueumdosfilhossigaacarreiraeclesiástica,eleéobrigadoaprovarqueseusantepassadoseramcristãos”.JáoRiodeJaneirofoidefinidopelomesmoobservadorcomo“umantrodejudeus”.Aeles,aoscristãos-novos,assimcomoaosmercadores,oscargosmunicipaiseramvedados.EmOlinda,eraproibido,porexemplo,aos“mercadoresqueassistissemdelojaaberta”.NoMaranhão,em1700,seanulouaeleiçãodeumalmotacé–inspetordaaplicaçãocorretadepesosemedidas–porqueoindivíduovendiasardinhaseberimbaus.

Emtonéischegavamosprodutosportugueses,comobacalhauevinho.CALLCOTT,Maria.Ganhadores[Iconográfico].

BAHIA.S.D.

NaBahiaeemPernambuco,apassagemdatabernadevinhosoudobalcãode fazendas para o solar rural, ao pé da fábrica de açúcar, era expressão deenobrecimento.Na propriedade da terra, e não na consanguinidade, residia aqualidade do indivíduo. No início do século XIX, de passagem por MinasGerais, o viajante Saint-Hilaire escutaria o adágio “Pai taberneiro, filhocavaleiro,netomendicante”,sobrefortunasconstruídasnocomércioeperdidasnalavoura.Em São Paulo, desde o século XVII, empreendedores como Guilherme

Pompeu de Almeida começaram a vida arrendando forjas de ferreiros. Elefabricavafacas,cunhaseanzóis,produtosbásicosnastrocascomnativos,masemalgumasdécadas,depoisdetertreinadoescravos,játinhacincooficinasdemetalurgiaeumaserralheria,cadaumacomandadaporescravospagosecomdireitoater,elesmesmos,escravos.Prestamista,Almeidafinanciouvizinhoseparentes em missões de “resgate”. Numa delas, recebeu em paga cinco mil

índios guaranis, muitos deles, artesãos especializados, todos extirpados àcidadeespanholadeVilaRicadoEspíritoSanto.FinancioupartedamontagemdacolôniadeSacramento,alémdeterabastecidoatropa.Exceção? Não. De acordo com o exame de testamentos e inventários

efetuadoporJohnFrenchnoséculoXVII,asmaioresfortunasvinhamdosetormercantil,enãodeterrascultivadasoudasbandeiras.EntreelasseencontramosnomesdomamelucoGonçaloLopes,cuja fortunaem1693montavaa6,6contos, ou Leonor de Siqueira, viúva e alfabetizada que juntou uma dasmaioresriquezasdacidadeempregandoodinheiroemnegócios.Os testamentos e inventários revelam uma cidade ativa onde não faltavam

tendas de ferreiro ou carpinteiro com suas ferramentas: verrumas, goivas,formões,martelosdeorelha,plainas,junteiras,garlopa,cepilhos,tornos,serrasde mão, ferro de molduras, compassos. E bigornas, tenazes de tirar verga,tornos,tresmalhos,folescomsuasbiqueiras,mósemalhos.Certoautorreferiu-seàcidadedeSãoPaulocomouma“colmeiaruidosa”ondese labutavaparafazer jusàfrasedogovernador-geral:“Pelobemcomumeparaqueessavilanãopereça”.Instrumentosdiversoscontamahistóriadessetrabalhobarulhentoerepetitivo.Os“comerciantesdegrosso”,poderososeimportantesparaosinteressesdo

Estado, eram grandes financistas e usurários, diferenciando-se doscomerciantesquevendiam“aretalho”,ouseja,quetinhamlojas.Elespodiamexercer qualquer atividade, e essa era sua força. Especulavam, financiavam,asseguravam, armavam navios, arrematavam comendas, além de contratospúblicoseprivadosetc.ACoroatinhainteresseemtê-loscomosóciosmenoresnas companhias monopolistas, como a que foi fundada no Grão-Pará e noMaranhão,porexemplo.Na segundametade do séculoXVIII, esses comerciantes consolidaram sua

posiçãopormeiodocomérciodelongadistância.Motivo,aliás,dequeixumesparaMartinhodeMeloeCastro,ministrodeEstadoemLisboa,queescreveuem 1770: “Não se pode, sem tristeza, ver como os coloniais brasileirostomaramocomércioeanavegaçãocomacostadaÁfrica,comatotalexclusãodePortugal.”Comércio, sobretudo,deescravos.Comfortunassuperioresaossenhoresdeengenhoougrandesagricultores,elesalmejavam,porém,aterraeo poder que essa simbolizava. A terra, e apenas ela, nobilitava, enobrecia,enquanto a atividade comercial urbana continuava malvista pela sociedade.Arcaicos: emvezde se inseriremnamentalidadedaburguesiamercantil queprosperava no norte da Europa e nos Estados Unidos da América, tais

comerciantes de grosso sonhavam com títulos honoríficos e grandesplantações,comoseusancestraisalfacinhas.E quanto poder.Muitos negociantes de grosso trato estendiam seu raio de

influênciaporumavastaregião,fornecendodinheiroajurosaváriospequenoscomerciantes. O negociante Brás Carneiro Leão, o mais rico de todos, porexemplo,eraumdeles.Administravadiversosnegóciosligadosàimportaçãoeexportação,possuíaengenhos,naviosenumerososimóveisurbanosdegrandevalor.NaturaldoPorto,mantinhaligaçõescomerciaisnoreino,comascidadesdeLisboaesuacidadenatal,alémdeAngolaeBenguela,naÁfrica.NoBrasilatuavaemRiodeJaneiro,Salvador,Recife,VilaRica,SabaráeSerrodoFrio,entre outras localidades.Aomorrer, deixou no comando de seus negócios ofilho, Fernando Carneiro Leão, que tinha uma firma própria e outra emsociedadecomamãeviúva,GertrudesPedraLeão.Fernandotinhaexperiência:enviadoàEuropapelopaiparaaprendersobrecomérciointernacional,assuntovedado a brasileiros, antes de voltar ao Rio já era cavaleiro da Ordem deCristo, tenente-coronel no regimento paterno e tesoureiro da Irmandade dosPassos.Atéaí,nãofugiaaofigurinocolonial,dizJorgeCaldeira.AchegadadaCorteabriu-lhenovoshorizontessociais,possibilitando,porexemplo,quesuafilha,Guilhermina,casassecomMauríciodeSousaCoutinho,filhodeRodrigodeSousaCoutinho,ohomempreocupadocomos laçosnaturaisentrereinoemetrópole,queentãoocupavaoministériodaGuerraeNegóciosEstrangeiros.Emresumo,ohomemdegrossotratosoubeseaproveitardas transformaçõeseconômicas e sociais decorrentes da instalação da Corte para ampliar aindamaisseusnegócios.Num segundo escalão, encontramos, por exemplo, os marchantes, ou

vendedoresdetalhosdeaçougue,deextremaimportânciaparaocomérciodascidades.Estudos sobreessaatividade revelamosmecanismosqueenvolviamseus negócios: combinar tabelamento de preços nos lances dados paraarrematar talhos; organizar-se nas disputas por pontos de venda; negociardiretamente com os pecuaristas, fugindo às regras da arrematação. Os maispoderosos financiavam os menos importantes. Hierarquia? Sim. Talhos deaçougues públicos tinham importância superior aos “talhos dispersos”. Nacidade valiammais do que no campo.E, em tudo, o que valiamesmo era arelação pessoal e as amizades. As câmaras fechavam acordo de distribuiçãocom alguns marchantes em detrimento de outros, em função de interessescomuns.Masquemmatavaoboi?Oescravo.OviajanteJohnByron,em1764,fezoimpressionanteinstantâneo:

Omodocomosefazoabateéassazcurioso.Prendem-sealgunsnovilhosemalgumlugarcercadoeamarra-seumamaromanoschifresdoanimalqueestádestinadoaoabateparasepará-lodosdemais;feito isso,umcortadornegrovaipordetrásdonovilhoecorta-lheo jarrete;quandooanimalcainochão,onegromete-lheumcuteloentreoschifres.Ostourosdopaíssãotãoferozesquesomenteoscortadoresnegrosseatrevemameter-secomeles.Apesardisso,essesanimaissãomuitopequenoseapósseremesfoladoselimposnãopesammaisquedezarrobas.

Umexemplo de comerciante que enriqueceu vendendo carnes foi JoaquimJosédeSiqueira.Eleeraproprietáriodeumadasprincipaiscasascomerciaisdosetordeabastecimentoalimentício,que,aliás,levavaseunome:JoaquimJosédeSiqueiraeCia.Seuinventáriorevelouumvastoediversificadopatrimônio,incluindoimóveisnacidadedoRiodeJaneiro,cercadesetentaescravos,umbergantim – oNossa Senhora dos Remédios –, uma lancha e um bote. Seusnegócios seestendiamdoRiode JaneiroaSantos.Nãoporacaso, seu irmãoJoaquim fez fortuna com uma fábrica de atanados, ou seja, de curtição decouros.Desde os primeiros séculos da colonização vemos mulheres à frente de

pequenosnegócios.Elasnãosósustentavamsuascasas,mas,aocontráriodoqueseacreditoupormuitotempo,eramvisíveisnascidades.Estalajadeirasque“davamdecomeremsuascasas”,costureiras,tecedeiras,asque“tinhamcasadevendercoisasdecomereoutrasmercadorias”,“mestrasdeensinarmoçasalavrarecozer”,alémdetaverneiras,aparecemnadocumentaçãodaInquisiçãoemsuasvisitasaSalvadoreRecife.

Opequenocomércioeradominadopormulhereslivresepobres.Aslavegoingtomarketwithpoultry[Iconográfico].

S.D.

Padeiras? Muitas. Na Salvador do século XVII, certa Domingas SimõesPinheiro era “juíza das padeiras”, por ser amais antiga da cidade.Ali, umarelaçãodecontribuintesdoanode1648trazonomedenovemulheresdonasdetavernas,padariasevendas.EmSãoPaulo,ondeseplantavatrigo,aCâmaraMunicipal ameaçava aquelasque adulteravamopão,misturando-lhe àmassafarinhademandiocaedemilhobranco.Namesmacidade,padeirasmantinhamconstantelitígiocomascâmarasquecontrolavamopesoeopreçodopão.Eelas recorriam a greves, petições, protestos e embustes para manter seusnegóciosecontrolar,àsuamaneira...opesoeopreçodopão!Ocomérciolocaldecomestíveis,tantoosprodutosdaterraquantoosvindos

do reino,era sobrecarregadode taxase impostose,por isso,manipuladopor

todaumahierarquiadepequenosegrandesfuncionários,alémdosmercadorescom disponibilidade para atravessar e estocar produtos como sal, farinha eaguardente,podendo,assim,especularemmomentodecrise.Adisputaentrefacções locaisdeixavaamplamargemàsdesordenseaocontrabando,não sóemSãoPaulo,masemoutrascapitaniastambém.EstudosrevelamquefoinocorrerdoséculoXVIIquecomeçouaaumentaro

número das chamadas “escravas de ganho”. Eram negras e mulatas queinundavam as cidades com comércio ambulante de doces, pães e bolos ourendasebordados,“porumatutameia”,comosediziaentão,alémde tecidosbaratosemiudezasdetodootipo,entregandoaosseusdonos–muitosdeles,mulherestambém–oganhododiaerecebendoemtrocaumpercentual.Pelodesembaraçocomquesemovimentavampelas ruas,essaatividadeameaçavaasdonasde tendasepequenosnegóciosempontos fixos,de restosujeitasàsposturasmunicipais.MasaolongodoséculoXVIIIaofertadeprodutossediversificou.Em1769,

as autoridades se preocupavam com as negras que antes vendiam “frutos,legumes e doces”, mas que a partir de 1751 foram autorizadas a oferecertambém“panos brancos e quinquilharias” e que incorporaram “algumas fitasde seda, fazendas de algodão da índia de cores [tecido indiano], Bretanha eaniagem”. A nobreza ou riqueza de muitos donos protegia os escravos defiscalizaçãooudeperseguiçãodasautoridades,desejosas,elastambém,desuapartenolucro.A legislaçãometropolitanaassegurava,aliás,exclusividadedamãodeobra

feminina no comércio ambulante de “toda sorte de comestíveis pelo miúdo,como também vinhos e aguardentes”, além de “alféolas, obreias, jarfelim,melaço e azeitonas”.Aessesprodutos se somaramoutros: hortaliças, queijo,leite,hóstias,agulhasealfinetes,roupasvelhaseusadas.Aessecomércioqueintermediavaprodutossedavaonomede“carambola”.Oobjetivo?Destinaràsmulheres pobres um “exercício honesto e precisa sustentação” para quepudessemviverdesses“pequenostráficos”.Sim,poishaviamuitas,livreseescravas,quevendiamseucorpotambém.A

prostituição podia ser ensejada por senhores ou praticada secretamente comouma forma de ganho. A concorrência entre comerciantes e escravos queofereciamgêneroseravasta,gerandoreclamaçõesdospequenoscomerciantes,obrigados apagar impostos.A tensão eragrande, sobretudocomas escravaslibertas que, juntamente com as brancas pobres, rapidamente dominaram ocomércio de vendas e tavernas pelo interior. O toque de recolher ou

regulamentos que as obrigavam a ficar atrás do balcão raramente asincomodava.Comércio,aliás,feitoaténasbeirasdeestrada,ondeobalcãoeraumasimplesjanelinhaestreitaseparandocomestíveisecachaçadocomprador.“Viver de suas quitandas” ou de vender em “casinhas” onde um quartinhodiscretoseprestavaaencontroseraformadeidentificarseuganha-pão.

Mobilidadeefortunadenegrosemulatos

Graças ao pequeno comércio, amobilidade econômica de negros emulatos,homensemulheres, teriacomeçado jánoséculoXVIII?Sim.NoRio,houvecasos como o do escravo João, que adotou o nome completo de seu senhor,JoãoAntoniodoAmaral.Depoisdeeconomizarecomprarsuaalforria,passouaviverdeseuofíciodebarbeiroemúsicotimbaleiro.CasadocomapretaforraCatarinadoEspíritoSanto, original deBenguela, aomorrer declaroupossuirseisescravose“algumourolavrado”.Alémdelibertarseuscativoselegarseus“instrumentos das músicas”, ambos, ele e ela, deixaram esmolas para asirmandadesdeSãoDomingoseSantoAntôniodaMourariadaSé.Houve ainda o caso do dentista e barbeiro José dos Santos Martins, cujo

patrimônio,naaberturadotestamento,surpreendeuatésuaconcubina,apretaminaeforraGertrudesCorrêa: joias,peçasdeouroedeprata,onzeescravosdosquaiscincopara“serviçosdacasa”,alémdospreciososaparelhosdesuaduplaprofissão.No rol dos ferrosde tirar dentes foram listados: “Asaprema,boticãocomdescarnados,umaquilha,umapinçaeumasogra.”Em Minas Gerais, as “pérolas negras” – como foram chamadas pela

historiadoraJúniaFurtado–tinhamdesdebensimóveis,comocasas,fazendaserocinhas,atéjoiasdeouroediamantes,trastesdecasasedeuso,imagenseoratórios. Tão logo alcançavam a liberdade, se tornavam proprietárias deescravos.Numasociedadequedesprezavaotrabalhomanual,nadaseriamaisesperado.Sob omanto de concubinatos com seus senhores ou outros homens livres,

mas tambémpor sua“agênciae trabalho”,ou seja, esforçopróprio, as forrasfizeram seu espaço na sociedade adotando inclusive hábitos que asdistanciavam da senzala onde tinham nascido. Na casa de certa Jacinta daSiqueira, forra analfabeta, emVila do Príncipe, em 1751, o licor e os sucoseram servidos em garrafas e copos de cristal.O fino chocolate derretido em

chocolateira era acompanhadodepãode ló, feito embaciaprópriapara essefim. Jacinta dormia num catre de jacarandá torneado, coberta com colcha deseda e envolta em lençóis e fronhas de linho. Possuía 27 escravos, plantelsignificativoparaaépoca,alémdeoutrosdezcomquepresentearaumafilha.Inúmeros casos como esse são relatados por inventários e testamentos jáestudados.TambémnoSerroFrio,onegro livreBernardodeAlmeida,especialistano

retalhodetecidoseroupas,aomorrerpossuíadiamantespesandocincooitavaseavaliadosem8milcruzados,alémdedoiscavalos.Em qualquer vila ou cidade não faltavam ofícios – do latim officium,

significando “o que faz a obra”. Definindo-se pela natureza manual dotrabalho,aorganizaçãodosofícioserahierárquica.Notopo,mestres,seguidosde oficiais e aprendizes. Um exame de habilitação, realizado por juízes deofício,bemcomoocontrolesobreospreçospraticados,feitoporumalmotacé,garantiam a autorização para o trabalho. O exercício de atividades manuaisimplicou, desde cedo, a degradação dos ofícios. Consideravam-se seuspraticantesprovidosdeum“defeitomecânico”,noçãoqueosdesabilitavaparacertoscargos.Elesdificilmenteseriamconsiderados“homensbons”.Entrenósessequadroseagravou,poisamaioriadosofíciosmecânicoseraexercidapormulatosque,porsuavez,tinhamseusprópriosescravoscomoauxiliares.A exploração do ouro e a decorrente expansão urbana no Sudeste

aumentaram emmuito as atividades artesanais. Passava-se até por cima dos“exames de habilitação”, e alguns ofícios ganharam enorme projeção eautonomia.Oshomensdecor,chefesdedomicílios,exerciamofíciosvariados,muitas vezes resultado das “artes mecânicas” ou do trabalho exercido comoescravo ou ex-escravo: eram alfaiates, sapateiros, ferreiros,músicos,mestrescomerciantes,carapinas,pintores,escultores,barbeiros,capitãesdomato,entreoutros.Os provenientes deLuanda, afirmava o jesuítaAntonil, erampupilosargutosedesejososdeterprofissão.Escravoscomtaistalentosvaliammaisnomomentodacompra,maserainvestimentogarantido.Muitosdelesconseguiamse alforriar e se inserir na vida econômica da colônia. James Semple Lisle,britânicoqueusufruiudahospitalidadecariocaem1789,associouo“comérciointenso” que trouxe “fortuna para alguns habitantes locais” e o “ar deabundânciadacidade”aofatodeque“muitosdeles,depoisdealgunsanosdetrabalho, conseguem comprar sua alforria”. O inglês John Luccock,comerciantedeYorkshirequedesembarcounoBrasilem1808,verianogrupo“uma nova classe social”. Não se enganou: ao falecer, em 1812, o forro

Antônio Alves Guimarães deixou ummonte mor avaliado em 412 mil réis.Seusbensmaisvaliososeramtrêsescravosquesomavam320milréiseumacasaavaliadaem70mil.Orestanteeramroupasdeusocotidiano:umpardecalças,umjalecoeumacapa,alémdeseistamboretes,umamesa,umtachodecobreeumatrempedeferro.Histórias exemplares sobre o pequeno comércio? Sim. Quem conta é um

documentodo4ºOfíciodeNotasdoRiodeJaneiro,datadode16desetembrode 1785. Certa Maria Antônia do Rosário, como tantas outras mulheres nacolônia,viviadecomprarmercadoriaapreçobaixoerevendê-lacomlucro,ouemprestardinheiroajuros.Hátempos,conheciaaescravaLucrécia,denaçãobambuíla, pertencente a Caetano Pereira Cardoso, e sabia o quanto estadesejavacomprarsualiberdade.Lucrécia lhe fez uma proposta e o negócio foi fechado:Maria doRosário

comprouaescravaaoseusenhorCaetano,nacondiçãodequeestatrabalhasseduranteumanoparalhepagarovalordacompra,acrescidodemais6.400réisatítulodelucropelaaplicaçãofeita.Seemprestasse34milréisajuros,MariadoRosárioreceberiaporumanodeaplicação1.700réis,jáqueojurooficialerade5%aoano.ApropostadeLucrécialherenderiamaisdoqueotriplo.Orisco?Aescravanãoconseguirodinheironecessário.Masa16desetembrode1785asduasforamaocartóriodotabeliãoJoséC.R.WanDeck,ediantedeleforam contadas as moedas trazidas pela escrava. O montante somou 40.400réis.AescrituradeliberdadefoipassadaaLucrécia.Aoenriquecer,odonooudonadeumaloja“deportaaberta”procurariase

distanciar das atividades manuais, associando-se a uma casa comercial “degrossotrato”eaoempréstimodedinheiro.Porém,amarcadotrabalhomanualodiferenciavanasociedade.Um“peão”,ouseja,umartesãoligadoaosofíciosmecânicos, um operário, um degredado ou um judeu não seriam jamaisconsiderados“homensbons”,aquelesquereuniamascondiçõesparapertenceracertoestratosocial,distintosobastanteparateremautorizaçãodemanifestarsuaopiniãoeexercerdeterminadoscargos.Asmarcasdo“defeitodesangue”oudo“sangueinfecto”permaneciam.Se o comércio agitava e modificava a sociedade colonial, ele também

assegurava privilégios como a linhagem, o sangue e a ocupação, mantendobarreiras e graduações sutis entre os indivíduos, inclusive quandoendinheirados – até mesmo quando, no século XVIII, com o surgimento deuma burguesia urbana, se assistiu a uma modificação nas mentalidades e àvalorização da classe mercantil. Artífices conseguiram juntar fortunas muito

acima da linha da pobreza e viveram como negociantes e rentistas. Aomanteremrelaçõescomváriossetoresdasociedade, tinhaminformaçõesesemovimentavam na hierarquia social, sem chegar, porém, perto de posiçõespredominantes.Ocomércioocupavatambémamassadeescravosquedominavaboaparcela

dosofíciosurbanos.Atarefados,oferecendoseusserviçosouosprodutosfeitosna casado senhor, cumprindoobrigações, levando recados, carregando água,oscativosestavamemtodaparte,ganhandoparasiouseusproprietários.Suapresença associada ao transporte privado, por exemplo, é constante nasgravuras sobre o período. Eram eles que carregavamo banguê, velha liteira,particularoudealuguel,cujotelhadodecouroemformadebaúprotegiadosolquemiadentro.Portavamnosombrosascadeirinhas,maisrefinadas,feitasdecourodevacaeforradasdedamascocarmesim,cujascortinassefechavamacadavezquenelassetransportavaumadama.Levavam,também,aserpentina,espécie de palanquim indiano com cortinas, tendo um leito de rede. Omadeiramento em que se pendurava o traste e que era valentemente erguidopelos cativos possuía esculturas: pombas, querubins, flores, frutos, obras detalha, enfim. Fardas de melhor qualidade e perucas francesas vestiam os“andas”,escravosencarregadosdetransportarsenhoresabastados.As cidades ofereciam a pardos e mulatos oportunidades inúmeras de

mobilidade social. Mas não só – mobilidade espacial, também, pois algunscruzaramooceano,nãodevoltaàterradeseuspais,masàEuropa,ondeforamestudar como qualquer branco. Histórias impressionantes contam de suaescalada,redefinindoaimagemquetemosdoBrasilColônia,engessadoesemoportunidades para os descendentes de africanos.Manuel daCunha, filho deescravo e escravo ele próprio, dono de invejável atividade e saber, foiprotagonistadeumadelas.NascidonoRiodeJaneiroem1737,protegidoealforriadopelonegociante

JoséDiasdaCruz, foiparaPortugalestudarpintura.AoregressardeLisboa,dedicou-seàpinturareligiosaeaoretratismoemantinhaemsuacasa,naruadeSãoPedro,umaclassedepinturaquechegouacontarcomdozealunos.Seuóbito,a27deabrilde1809,estáassinaladonos livrosdaOrdemTerceiradaIrmandade da BoaMorte, em cuja igreja, a Candelária, foi enterrado com ohábitodesantoAntônioecercadodetodoprestígio.Outra figura impressionante foi Manuel Dias de Oliveira. Originário de

SantanadoMacacu,RiodeJaneiro,em1763,fixou-semuitojovemnacapital,onde praticava comoourives. Impressionado com tanto talento, seu senhor o

enviou para estudar no Porto.Morrendo seu benfeitor, ele se transferiu paraLisboa e sematriculou naRealCasa Pia, que funcionava noCastelo de SãoJorge.Seusucessofoitãograndequefoiescolhidopara,juntamentecomojácélebreDomingosAntôniodeSequeira,ircursaraAcademiadeSãoLucasdeRoma. Lá, se tornou assistente de Pompeo Battoni, retratista da nobreza eprecursordoneoclassicismonapintura.QuandoNapoleão invadiuosestadospontifícios, Manuel refugiou-se em Gênova, de onde retornou a Portugaldepoisdeumaausênciadedezanos.Em1800,foinomeadoprofessorrégiodeumaauladedesenhoefigura,criadanoRiodeJaneiro,épocaemqueretornouaoBrasil.EmPortugal,Manueleraconhecidocomo“oBrasiliense”.Aqui,setornou“oRomano”.OutromestiçoacruzarooceanofoiobaianoJoséTeófilodeJesus,pardoe

forro,nascidoemSalvadorefalecidonamesmacidade,com90anos,em1847.ArtesãodemoldurasparaoconhecidopintorJoséJoaquimdaRocha,foiporele premiado com uma viagem a Portugal para aperfeiçoar suas habilidadesartísticas.Umempréstimode150milréiscontraídojuntoàSantaCasabancousuaestadia.ElepermaneceuemLisboa,ondecursouaEscoladeBelasArtes.Devoltaem1801,passouatrabalharparaasOrdensTerceiras,alémdetersededicadoadouramentosde talhasealtares.Fez inúmeros tetos ilusionísticos,alémdequadrosdecavalete.Casou-se,em1808,comVicênciaRosadeJesus,pretaforranaturaldaCostadaMina.ÉconsideradoomaiorpintoraoperarnaBahianaprimeirametadedoséculoXIX.TambémcomhistóriasdesucessovamosencontraremMinasGeraisopintor

SilvestredeAlmeidaLopese,emSãoPaulo, JoséPatríciodaSilvaMansoeseu aluno Jesuíno do Monte Carmelo, além de tantos desconhecidos que ahistóriaestáporcontar.

Osonho de um Eldorado encravado no coração da colônia povoava aimaginação dos portugueses desde a chegada ao litoral. Narrativas

fantásticasdavamcontadaexistênciadeumaresplandecenteserradeouro,queos índios chamavamSabarabuçu, localizada namesma latitude dePotosí, noPeru.Aliás,sonhoseambiçãosempretiveramsuapartenahistória.Em1554,opadreAnchietaescreviaquenacapitâniadeSãoVicentehavia

grande abundância de ouro, prata e ferro, afirmando que até os moradorestinham suas casas abarrotadas de metais preciosos. Notícias deste quilateincentivaram Portugal a organizar inúmeras expedições em busca do metalamarelo. Ouro em São Vicente? Um malogro. Ele era ralo, escasso e delavagem. Nada de veios em minas inesgotáveis e riquíssimas. Não se sabeexatamente quando o ouro foi descoberto, e as narrativas divergem.AntônioRodriguesArzãoeBartolomeuBuenodeSiqueirasãoosnomesmaiscitados,masofatoéque,apartirde1694,asdescobertasfeitasemItaveravaabriramcaminhoparaopovoamentoeaexploraçãodepoloscomoosdeRibeirãodoCarmo,SabaráeOuroPreto.Afinal,um“outroPeru”!Teve início então uma corrida que provocou amaiormigração de homens

brancoselivresdentrodacolônia.Emdezanos,apopulaçãodasfuturasMinas–poisaregiãointegravaacapitaniadeSãoVicente,queantecedeuoestadodeSãoPaulo–atingiuacifrade50mil indivíduos.Eleserambrancoseuropeusou americanos, índios e negros: “gente tumultuária”, como se dizia à época.Comeles,veioarápidaurbanização,caminhosqueseabriam,desregramentose precariedade. Relatos de época estão cheios de imagens do caos deajuntamentosquesemovimentavamdeumladoparaooutro,acompanhandoadescoberta de novos veios ou a extinção de velhas lavras. As autoridadesreagiamcomtemorfrenteaoquedescreviamcomo“umaterraqueevaporavatumultos”,masqueconfirmavaasexpectativasdoreino.Acorridadoourodesencadeouefeitosperversos.Primeiro,atransferênciade

escravosnegrosdaslavourasdeaçúcaretabacoparaamineraçãoprovocouotemorda“ruínatotal”daeconomiacolonial.Lavourasperdidaseengenhosdefogomortoforamosaldodesteêxodoemmuitasregiões.Aseguir, temeu-seque nações estrangeiras viessem lutar por seu quinhão de ouro. E Portugal,conseguiria resistir a tais assaltos? E, por fim, como lidar com a reunião defacinorosos,genterebeldequepoderiareunir-seaosestrangeiros?Umasériedemedidasrestritivasfoibaixadaparaevitarotrânsitodepessoasemercadorias

atéasMinas.Paracontrolaraentradadeescravosseestabeleceuumacotadeduzentos cativos a serem adquiridos, anualmente, por proprietário,notadamente,ospaulistas.Quando, em 1707, ocorreu a descoberta do ouro de beta – extraído das

rochasmedianteescavaçãoprofunda–,acertezaseconsolidou:haveriariquezapormuitotempo.OresultadoimediatofoiadecisãodaCoroadeestabelecerogoverno político e militar nas Minas. E, em resposta, veio a “Guerra dosEmboabas”. Em meados do século XVIII, Minas já reunia o que havia demelhornacolônia.Aregiãoqueoutrorasedioubatalhas,adoRiodasMortes,seconverteunumeixocomercialedeserviços.AsvilasdeSãoJoãoDelRei,antigo Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar, e Tiradentes, ex-Ponta doMorro, contavamcommaisde três centenasdeestabelecimentosmercantis ede ofícios. Ometal amarelo operou uma revolução. A antiga Sabarabuçu setransformou em centro urbano cortado por ruas caprichadas. A minúsculacapeladeNossaSenhoradoÓ,naviladeNossaSenhoradaConceição,ganhoupinturascommotivosorientais.AantigaviladeNossaSenhoradoCarmofoielevada à posição de nona cidade da colônia e sede de bispado em 1745.PassouasechamarMarianaemhomenagemàrainhad.MariaAnadaÁustria.Ali se instalou o seminário deNossa Senhora daBoaMorte, uma escola deexcelênciaparapadresondeseensinavalatim.NacatedraldaSé,asmissasdedomingoeramanimadaspelossonsdeumórgãoalemão.Nada,porém,secomparavaàVilaRica,um“Potosídeouro,amaissoberba

eopulenta”detodasasvilas,segundoFranciscoTavaresdeBrito,em1732.Aurbe mais desenvolvida da colônia era um canteiro de obras. Construírampontescruzandocórregos,maisdecinquentachafarizesdecoradoseopaláciodo governador, que mais parecia uma fortificação. Ao lado, foi erguido umcasariobarrocoàvoltadeumapraçaretangular.Pelasruascirculavambaianos,paulistas, fluminenses, pernambucanos e africanos com uma característica:formavamumasociedadedegrandemobilidadesocial.Comsortenabateia,opobretãodehojepoderiaseroricodeamanhã.Os ofícios de carpinteiro, ferreiro, ourives, boticário e estalajadeiro

permitiamganhosexpressivos,eosetordeserviçoseraigualmentedinâmico.Ser “vigia de canoas”, ou seja, controlar diretamente o trabalho de quemminerava, impedindo roubos, era outra atividade prestigiada. Até corretorimobiliárioexistianascidadesdoouro,assimcomoainventivaagiotagem.NaslavrasdeVilaRica,porexemplo,padreFaria“enriqueceucomoouroqueláDeus lhe deu, pondo-o a razão de juros na cidade doRio de Janeiro”.A fé

também era excelente negócio: pagavam-se quatro gramas de ouro paracomungaredoisgramasparanãocomungar.Obatismovaliaquatrogramaseocasamento,onze.Omaiscaroeraoserviçofúnebre:catorzegramasdeouro.Não por acaso, a partir da década de 1720, multiplicaram-se os templosreligiosos,recobertosdedouramentos,esculturasemóveisfinos.Nadecoraçãodas igrejas sobressaíam-se entalhadores e pintores mulatos, entre os quaisAntônioFranciscoLisboa, dito oAleijadinho, filho de uma escrava comumconstrutorportuguês.Oespaçodos templosseenchiacommúsica.Noespaçode trêsdécadas,o

arraial do Tijuco teve sete regentes e cerca de cemmúsicos. Em Vila Ricaatuaramcercade250instrumentistas,comotocadoresdeviolino,contrabaixo,flauta, fagote, oboé, órgão, cravo, entre outros instrumentos. Joaquim JoséEmérico Lobo de Mesquita foi um deles. Mulato, alfabetizado, senhor decaligrafiafluidaeelegante,eraprofundoconhecedordemúsicasacraeerudita.Ele atendia às demandas de igrejas matrizes, irmandades religiosas e leigas,assim como as vindas de Câmaras. Músicos como ele participavam derepresentações cênico-musicais emcasas deópera particulares, tecendo laçoscomaeliteeconômicaeasautoridades.Não faltavadinheiropara festas, eaascensãosocialdessegrupofoiinequívoca,nãoapenasnacapitâniadeMinas,mas também emPernambuco eRio de Janeiro.Muitos se tornarammestres-régios, tendo ensinadomúsica, ou foramagraciados comcargos nas tropas eregimentos ou nas irmandades. Seus méritos e competências os mantiveramafastadosdemuitosobstáculosimpostosaoutrosmulatosounegros.Frenteàboamúsica, como comprovam as pesquisas recentes, amácula da cor ficavaemsegundoouterceiroplano.Por trás desse bem-sucedido momento, estava o trabalho duro: o da

mineração.Osmineradorespassavamodia comocorpo imersonaágua friadasmontanhas,bateandoe transportandoocascalhodos riosatéasmargens,para ser lavado. O grosso do serviço era feito por escravos. A flagrantesuperioridade numérica da “gente de cor”, como eram chamados, seriacaracterísticadaregião.Mestiçosenegrossomavam77,9%dapopulação,eaúnicaexceçãofoiaComarcadeRiodasMortes,ondeapareciambrancosemmaiornúmero.Os cativos tinham um regime de trabalho diferente do que realizavam nos

engenhos de açúcar, pois além de esse regime exigir mão de obraespecializada,eles tinhamrelativa liberdadedeaçãoemaioresoportunidadespara comprar sua liberdade. Eles não só escondiam oitavas de ouro que

catavam nos ribeiros, como tinham licença de seus senhores para batear emdiassantoseaocairdatarde.Estímulodepoisdaobtençãodeumaquantidademínima de ouro, dizem uns, resistência à escravidão, dizem outros.Os dois,certamente.Outraprofissãoexercidaporforroseescravoseraadeenfermeiro.Encaminhados a hospitais e às Santas Casas mediante remuneração, elesrecebiammelhor tratamento e comida do que trabalhando na lavoura ou naslavras.ApesardoelevadopreçodosescravosnaregiãodasMinas,aalforriaparece

tersidopráticacomum,apontodepreocuparasautoridades.Porgratidãododonoou “por dinheiroque ajuntavam”, osnegros se viamem liberdade.E apopulação livre de cor cresceu tanto que se tornou duas vezes superior à deoutras áreas escravistas na América, como a Jamaica ou o sul dos EstadosUnidos. A região apresentava também um índice altíssimo de escravoscoortados:aquelesquecompraramsualiberdadeoudetinham“cartadecorte”,ouseja,umdocumentoatestandoqueestavamsaldandoprestaçõesreferentesàcompradesuacartadealforria.Elespodiamvendersuaforçadetrabalhonumaatividade suplementar realizada fora do tempo dedicado ao seu senhor outrabalhando“deganho”ou“dealuguel”.Emépocadedinamismoeconômico,ascoortaçõesaumentavam.Algunsrecebiamdeseussenhoresinstrumentosdetrabalho, a fim de poder se dedicar a uma função remunerada e,consequentemente, juntar a quantia estipulada. Outros se viam prejudicadospelos senhores que os impediam de trabalhar. Muitos senhores impunhamcondições:trabalharpormaisumnúmeroespecíficodemeses,ousóaceitardarcartadecortesehouvesseumfiador.Pagamentospodiamserescalonados:deseis em seismeses, por exemplo.Havia senhores tolerantes como atraso depagamentoseoutrosqueameaçavamvenderocativo“por justopreço”,casonãocumprisseascondiçõescombinadas.Conflitos? Muitos – e também pactos rompidos. Alguns cativos se

queixavamde terempagado tudo,oquenãoera reconhecidopelos senhores.Senhores,doseulado,sequeixavamdeteremsidoroubadosoudaingratidãodeseusescravos.Haviadiscordânciadedatasdacoortaçãoouseparaçãoentrepais e filhos, ou marido e mulher, quando um deles não conseguia pagar ovalorarbitrado.Enãopoucasvezesserecorreuaojuízodegovernadores,quedecidiam,depoisdeexame,sedeviaounãoserdadaa liberdadea talequalpessoa. Alforrias e coortações colaboraram para pacificar a latenteinsubordinação dos cativos.Mas aumentou emmuito o número de negros emulatoslivres,fatoquepreocupavaasautoridades,comoficaclaronumacarta

de d. JoãoV ao conde deGalvêas, então governador da capitania: “No querespeitaaosmulatosforros,queestessãomaisinsolentesporqueamisturaquetêm de brancos os enche de tanta soberba e vaidade que fogem do trabalhoservil comquepoderiamviver, e assimviveamaiorpartedeles comogenteociosa.” E pergunta o rei: “Não seria melhor tomar providências contra oexcessodeforrosvivendoemgrandeliberdade?”Umavezliberto,oex-escravocompravaescravos.Umnúmeroexpressivode

ligações e casamentos entre senhores e escravas foi outra forma de aceleraralforrias.De1,2%do total da escravaria em1739,os alforriadospassaramacorrespondera41%em1808.Eram“ospretosforrosfilhosdopaís,chamadoscrioulos”, segundo Basílio Teixeira de Saavedra em seu Informação daCapitaniadeMinasGerais,de1805.Nasegundametadedo séculoXVIII,quando foimaisefetivaaexploração

do ouro e se desenvolveu a exploração de diamantes, os assuntos maismencionados pelas autoridades eram: a eficiência do trabalho, a temidacriminalidade e a desordem, além da presença de quilombos. Se antespreocupava o grande número de africanos na população, doravante suaorganização é que seria alvo de medidas coercitivas, tanto mais quantoaumentavamroubos,ataquesavilasearraiasecresciaocontrabandodeouro.Quandoometalcomeçouarareareasminasaseesgotar,relatospessimistasseacumularam.Dopontodevistadosescravos,essefoiomomentoemque,comatraso, teve início a preocupação com seu melhor tratamento e doenças,mencionando-se também a necessidade de importação de escravos de outrasregiões,comoBahiaePernambuco.

Daartedeencontrarfortuna

Ecomosedavaotrabalhodemineração?AndréaL.Gonçalvesexplicaque,seno período inicial da exploração era possível, como dizem documentos,“apanhar grãos de ouro com as mãos”, cinquenta anos depois, mineirossolicitavam licenças para instalarmáquinas para “retirar água” das datas – oequivalente a uma área de três mil metros quadrados. A princípio, foramusadosutensíliosdeusopessoalouempregadosnalavoura:“pratosdepauouestanho”como,porexemplo,osutilizadospelopioneiroRodriguesArzão.Asexplorações eram feitas nas margens ou no leito dos ribeirões, quando a

ausênciadechuvaspermitia.Misturadoaocascalho,esseeraoourodealuvião,de extração mais fácil. Uma vez esgotado o metal amarelo, o principalproblemaeraodovolumedaságuasquetinhaquesercontidocomsistemasderepresamento, diques e canais, chamados “serviços de rio”, a fim de que osmineirosprospectassemoleitodosribeirões,chamado“tabuleiro”.Até a chegada de técnicasmais apuradas, o instrumentomais usado era a

bateia,medindocercade0,5metrodediâmetroefeitadepau-cedro.Atribuiu-seaosafricanossuaintrodução,umavezqueestavamfamiliarizadoscomseuusonaCostadaMina,naEtiópiaenoZambeze.Nãoàtoa,declarouaorei,em1752,FranciscoXavierHares:“AestimaçãodosmineirosaosnegrosdaCostadaMina, porque se achammais aptos para o trabalho.”Além de excelentesmineradores e metalurgistas, eles também conheciam o fabrico de enxadas,alavancasecavadores.Baseando-seemtestamentoseinventáriospost-mortem,Eduardo França Paiva considera que entre os proprietários de dez ou maisescravos,naComarcadoRiodasVelhas,áreaessencialmentemineradora,40%doscativoseramMina.Asoutrasetniasmaisimportantesdividiam-seentreosAngola(26%),osBenguela(8%)eosCongo(4%).

Aextraçãodediamanteserafiscalizada.JULIÃO,Carlos.SerroFrio:trabalhodelavagemdocascalho,feitoporescravos[Iconográfico].

SÉCULOXVIII.

Alémdeterqueenfrentaraságuasgeladasnasquaisentravampelasdezdamanhã e saíam por volta das três, “pelo frio insuportável”, escravos eramobrigados a mergulhar para buscar o cascalho em águas profundas. Elessubmergiam,levandoumahastecomumaneldeferroeumsaconapontanoqualrecolhiamareia.Oconteúdoeracolocadoemcanoaseemseguidalevadopara asmargenspara ser beneficiado.Mais tarde, omergulho foi substituídopelapermanêncianascanoas.Quemmergulhavanãoerammaishomens,mascolheres de ferro com as quais se recolhia do fundo dos rios o cascalhodepositadoemsacosdecouro.Em 1717, registraram-se iniciativas como as de João Barbosa Moreira,

mineiro de Serro Frio, ou de certo frei Bonina Suave, que implantaram as“rodasdorosário”:duasrodascujodiâmetrovariavadequatroasetemetros,unidaspor tábuas formando recipientes.Apassagemdaáguamovimentavaaroda,queporsuavezacionavaumacorrentecompostaporcaixõesdemadeiraabertoseinclinados.Àmedidaquearodagirava,oscaixõesmergulhavamnorioesubiamcheios,despejandoporinclinaçãooseuconteúdo.“Romperpenhascos,arrasarmontesemudarrios”foiatarefaincansávelde

escravos e mineiros brancos, mulatos e negros. A instalação exigida para odesmontedeterrascomáguaerabastantedispendiosa,poisimplicavaconduzira águapor jiraus demadeira, através depenhascos emontes, até o tuboquefaria a canalização no local onde possivelmente houvesse ouro.Ainda que amineração a céu aberto fosse predominante, não faltaram iniciativas de secavarem buracos, os socavões, sustentados por estacas para evitardesabamentos.OpoetaInácioJosédeAlvarengaPeixoto,poucosmesesantesde ser acusado de envolvimento na Conjuração Mineira, atravessava umasituação difícil resultante do “fracasso das caras instalações hidráulicas” quehaviarealizadoemsuaslavrasauríferas.Nasmargensdaprodução,estavamos“desclassificadosdoouro”,comoos

chamouLauradeMelloeSouza:homenslivresqueforamembuscadefortunae que nada encontraram. Marginais? Não. Gente vista como “inútil”, “pesoinútil da terra”, “delinquentes” que poderiam ser de algum uso nas minas,vadiosdascidades litorâneasqueali achariamuma função.Eramde famíliaspobres,nascidasnamiséria,criadasna indigência, semamenor subsistência,segundo o bispo de Mariana, em 1799. Andavam seminus e sem sapatos,esmolando pelas ruas. Prostituíam suas filhas para sobreviver. Dos milharesque chegaramnumaonda embuscade riqueza, amaioria foi esmagadapelo

fiscalismo,presadasfebresdossertões,vítimadafomeedaindiferença.Paraeles,aliberdadealmejadapelosescravosdepoucovalia.

Aextraçãodoourodependiadotrabalhoescravo.JULIÃO,Carlos.SerroFrio:trabalhodelavagemdocascalho,feitoporescravos[Iconográfico].

SÉCULOXVIII.

JULIÃO,Carlos.SerroFrio:trabalhodelavagemdecascalho,feitoporescravos.[Iconográfico.Aquarela].

BIBLIOTECANACIONAL,SÉCULOXVIII.

E nquanto a agricultura concluía a ocupação da costa dePernambuco a São Paulo e a mineração fazia o mesmo com ointeriordacolônia,aexpansãosedesdobrouemdoismovimentospastoris: o queocupouos sertões doNordeste, área de índios emamelucos,eodaexpansãoparaosul,nasáreasoriginalmente

devassadas pelos jesuítas. Gado e povo se multiplicavam. Pastos naturais eregiões ermas bem irrigadas convidavam à imagem de abundância quedesenhouGabrielSoaresdeSouza:“Acontecemuitasvezesmamarobezerronanovilhaeanovilhanavacajuntamente.”Nasciaoutraformadeocupação–aquela que criou o sertanejo, o vaqueiro, o tropeiro, denominados, então,“homensdocaminho”.Oaproveitamentodocouro,dacarne-secaesobretudodo transporte de mercadoria para o interior foi fundamental para adiversificaçãodaeconomiaedocotidianodecolonos.Paraosucessodocomércio internonacolôniacolaboraramos tropeiros.A

partirdopovoamentodointerioredadescobertadoouroemMinasGerais,otransportedecargaseprodutosvindosdosportosmarítimossedavaemlombodemula.Sóelassemostravamcapazesdeavançarpelorelevoacidentadofeitode serras e montanhas dos “sertões”. “Tropeiro” era designação de muitos:desdeaquelesquenegociavamanimaisemfeirascomoadeSorocaba,emSãoPaulo, até os que transportavam mercadorias ou os simples condutores detropa.Fortunasimensasseconstituíramnapecuária.Porém,omaisimportanteéqueopequenocomérciodegadotambémmantinhaumagrandepopulaçãodecamaradas,vaqueiros,agregados,livreseforros,acumulandobens.Eoquenegociavamoshomensque,aosgritosde“Boaestrada”secruzavam

pelos sertões do Sudeste e Nordeste? Tropeiros, ou quem vivia de tropear,compravamevendiam,sobretudomuares.Amulaéumhíbrido,resultadodoacasalamento do jumento com a égua. Tal acasalamento não é fácil, tendochamado a atenção do viajante Avé-Lallemant, que, em 1858, assim odescreveu:“Aséguastêmqueserquaseenterradasparasuportaremoestranhogaranhão.”

Ospaulistasdestacaram-secomohomensdocaminho.DEBRET,JeanBaptiste,1768-1848.VoyagepittoresqueethistoriqueauBrésil.Tomedeuxième.

p.69

Uma das características do animal nascido desse cruzamento é a enormecapacidadedecarregarpesos.Osmachoseramcastradosaocompletar2anos,a fim de serem vendidos como animais de carga. Não eram chamados demulos, e sim de machos. Estáveis nas trilhas pedregosas, resistentes àsvariações climáticas e às alturas, com pouca exigência quanto às pastagens,eram animais de casco forte, bom porte e pernas vigorosas. Em tarefascontínuas,suplantavam,delonge,oscavalos.Nãoàtoa,JohnMawe,viajanteinglês, registrou quando de sua viagem ao interior do Brasil: “Enquantocaminhávamos,observávamosqueasmulaseramtãoligeirasnasubidaquantoemterrenoplano;excediamemmuitooscavalosemestradasíngremesemaisaindanasmásestradas.”Osmuarestinhampelagemvariada,que,segundoumdocumentopaulistade

1762, podia ser: escura (preta), castanha, rosilha (avermelhada e branca),pangaré (amarelo-clara), ruona (pelo branco com malhas escuras earredondadas), alazã (cor de canela), cor de rato (cinzenta), baia (amarelo-

torrada),ruça(castanhomuitoclaro),camurça(pardo-avermelhada)ougateada(amarelo-avermelhada).Eles se reproduziam nos campos do extremo sul, onde a abundância de

equinossesomavaàpresençadeexcelentefloracampestre,queresultavaemforragemcomaltosníveisdesaisminerais.Oclimafriotambémerafavorávelà criação de muares. As invernadas se faziam nos campos saleiros que seencontravamnaregiãomissioneiraenoscamposdeCimadaSerra.Umaraçãodesalmarinhoemtodososquartosminguantesbastavaparatransformá-losemlugardepastagemecriação.Ocasionalmente,substituía-seosalmarinhopelaqueimadepastos.Logoqueaterraresfriava,ogadoialamberacinza,naqualse concentravam substâncias alcalinas. A cinza servia ainda de purgativo eprevenia,segundoomesmoAvé-Lallemant,doençaspútridasnogado.Eficienteelucrativo,omuaradaptou-setãobemàsnecessidadesdetrabalho

que, em pouco tempo, se tornou febre.Os criadores de cavalo, contrariados,esbravejavam. Alarmado com o prejuízo fiscal e comercial – as mulas nãoeram importadas de Portugal –, o rei d. José I resolveu liquidar não só atradição do uso, mas a existência dos animais em território brasileiro. Umacarta régia, datada de 19 de junho de 1761, ordenava a extinção dos que“aparecessemdepoisdapublicaçãodarealordem”einterditavaonegóciodastropas.Éobvioqueaobediência a talordemnãoapenas significariao colapsoda

economia,comoensejariaocontrabandodeanimais.Areaçãofoibrutal,pois,passadostrêsanos,oreiexpedianovacartarégia,reconhecendoaimportânciadosmuaresedesuacriaçãoparaaeconomiadacolônia.Valelembrarque,nonegóciodas tropas,dominavamoshabitantesdacapitaniadeSãoPaulo,mastambémportugueseseespanhóisqueaíviviam.“Os paulistas”, dizia um cronista colonial, “depois que lhes tiraram os

terrenosauríferos,sevoltaramemgrandeparteparaonegócioeacriaçãodegados,aproveitandoassimosmuitoscamposnaturaisdacapitaniaeosfeitais–camposfeitosemdetrimentodaagricultura–,etambémacompraremgadosnacapitania de São Pedro, ou em Curitiba, e conduzindo-os por terra a estacapitania, vão vendê-las às outras.” Tinham razão: os gados baianos quedesciamoSãoFrancisconãodavammaiscontadealimentarasnecessidadesdas populações nas áreas mineradoras. Além disso, o prodigiosodesenvolvimentodascorrentesdecirculaçãohumana,duranteoséculoXVIII,ensejavameiosrápidoseabundantesdecomunicação.Essesmeiosseriamcavalosemulas.Oproblemade transportedosgrossos

rebanhos foi assim resolvido: traziam as reses até Laguna e, para galgar oparedãodaserradoMar,demaneiraaoferecer-lhesopastoqueiadeLagesaCuritiba,abriramaestradadeAraranguá.O itinerário da cidade de São Paulo para o Continente do Viamão dá a

medida da tremenda viagem das tropas: partiam de Sorocaba, seguiam nadireção de Itapetininga, atravessavam o Paranapanema, o Taguari, oJaguariaiva, tocavamemPontaGrossaeCuritibaeseuscampospovoadosdecurrais, cortavam o vale do rio Negro, penetravam as florestas da serra doEspigão,entravamnavastaregiãodeCampinasdeCuritibanoseLages.Delá,prosseguiampelosriosdasCanoasedasCaveirasatéoestreitodesfiladeirodocaudaloso Pelotas. Depois da garganta do Pelotas abriam-se os campos deVacaria, na serra rio-grandense. Desciam cortando os rios das Antas e dasCamisas até a verdejante planície do Guaíba. Por toda parte, de Sorocaba aViamão,avistavam-sefazendasecurraisdegado.Amudança do eixo econômico da colônia, privilegiando os produtores do

Centro-Sul no abastecimento das Minas alterou a geografia dos muares. Osanimais provenientes doRioGrande doSul desestabilizaramo fornecimentovindo das barrancas do São Francisco. Ao longo do século XVIII, a regiãosulina fornecia gado, principalmente para o Rio de Janeiro, assim como oburrão ou burro espanhol, que era do tamanho de um cavalo.Maior emaisestruturadoqueoburroprovenientedoSulcolonial,passouaseropreferidopelostropeiros,dominandoocomérciodasMinas.Os tropeiros eram proprietários de escravos? Aparentemente a resposta é

positiva.Hámuito,AlípioGoulart registrouaseguinteobservação:“Convémassinalar, porém, quemesmo depois de intensificado o tráfego demuares, aescravariacontinuoua fazer transporte,poishaviaartigos, comocadinhosdebarro, louças, vidros, espelhos etc. [...] cuja fragilidade exigia a cabeça denegro[...]paranãosefragmentar.”Defato,mesmonosditadospopularesdoséculo XVIII, é possível encontrar paralelismo entre as duas formas detransporte:“Caminholongo,oumula,oumulato.”Os viajantes também anotaram a presença de cativos nas tropas, pois as

mulhereseramcarregadasemliteirasporescravos,“ousentam-se,vestidasdelongamontariaazulcomchapéuredondo,emumacadeirinhapresaàmula”.

Ogritodepartida:“Boaestrada!”

Eodiaadiadessastropas?Aolongodaestrada,haviaosranchos:pequenosnúcleosdecivilizaçãoecomérciogarantiamsegurançaerepouso.Omilho,alivendidoebásicoaogado,erafontedelucro.Aosdomingos,umvigáriorezavamissa para os locais e os forasteiros. Nos ranchos, longas varandas cobertascomtelheiros,ostropeirosdescarregavam,faziamfogueirae,numtripéàmodacigana,preparavamde-comer:feijãocomcarne-seca,angudemilhoe–apartirde fins do século XVIII – café fumegante. A cachaça era usada emconfraternizaçõesoucomoremédio.Canastrasoubancosdemadeiraserviamdecama.Descarregadosdeseusfardos,osanimaiseramraspadoscomfacãoparatirar

o pó e o suor. Prevalecia a regra da solidariedade: quem chegasse primeirodeixavalugarparaasmulasdeoutrastropas,ajudandoadescarregá-lasquandonecessário.Cargaseramarrumadasdentrodorancho,comcuidadoparanãosemisturarem. As cangalhas secavam ao sol e eram depois empilhadas. Nasvendasencontrava-seumpoucode tudoparaenfrentaraestrada:aguardente,doces, velas, livros de missa. Pelo chão, mantas de toucinho, barriletes deaçúcargrossoesal,espingardasemunição.A permanente circulação dos animais permitia acesso contínuo a novas

pastagens,libertandoosgrandestropeirosdeconstituíremfazendas.Noiníciodo séculoXIX,Saint-Hilaire impressionou-se comos vastíssimos camposdecapim-gordura emMinasGerais.Aespécie, considerada exótica, surgia apóssucessivas queimadas nas matas. A descrição do naturalista não é das maissimpáticas,definindo-acomouma“gramíneaviscosa,pardacentaefétida”queengordava os animais, mas lhes tirava a força. Suas sementes tinham acapacidade de “aderir às vestimentas dos homens e ao pelo dos animais”.Assim,àmedidaquenovoscaminhoseramabertoseas tropascomeçavamacircular,registrava-seadisseminaçãodagramínea.Atribui-seumaorigemafricanaàespécie,sendoprovenientedeumaampla

região compreendida entre Congo e Angola, territórios que forneceramregularmente escravos para a América portuguesa. Teriam os africanos, noNovoMundo,difundidoasprimeirassementesdaforragem?Aconstantemovimentaçãodastropastambémexigiaqueosanimaisfossem

marcados a ferro em brasa, para que não se confundissem com os demaisarranchados.Uma prodigiosa legião de ferreiros surgiu, assim, ao longo doscaminhos pelos quais passavam os tropeiros. O ofício, baseado em técnicasmetalúrgicas portuguesas e africanas, garantiu emprego e sustento demuitoshomenslivresnãoproprietáriosdeescravos.

As mulas vindas do Sul eram comercializadas, grosso modo, na feira deSorocaba.A18léguasdacapitaldeSãoPaulo,acidade,desdeoséculoXVIII,foitambémcenáriodasmaisimportantesfeirasdemuares.Osanimaispartiamdo Sul entre setembro e outubro, meses de chuva, em que as pastagenscomeçamaverdejar.Unspreferiamvirdireto,chegandoentrejaneiroemarço,outrosestacionavamnoscamposdeLages,aosuldeSantaCatarina,paraqueosanimaisserefizessem.As tropasnãoeramtrazidasparadentrodacidade,esimestacionavamnas

imediações, nas invernadas dos campos d’El Rei. Tinha lugar a engordapreparatória para a festa, além da domesticação dos burros, na qual ossorocabanoserammestres.Umaescoladepeõesevoluiu juntocomas feiras.Aprendia-seadomarmuaresparaaselaouparaacangalha.Noprimeirocaso,exigia-se elegância no andar; no segundo, resistência e força. Junto aosanimais,ospeõesecapatazeserguiamsuasbarracas.Dedia,eramfeitososexercíciosdedoma,aalimentaçãodemilhoesal,o

preparoderédeaseloros.Ànoite,acendia-seofogo,preparava-seoquentão,gemiaaviola.Aíse juntavamcaboclos,peõesecamaradas,nomesgenéricosdos que não eram patrões. Estes, os tropeiros, iam para a cidade. Muitoprovavelmente detinham-se a examinar arreios e apetrechos que se vendiamnestas ocasiões: as sacadas, ou selas de madeira chapeadas a prata, facões,redes,ponchos,caronasdepeledeonçaemantassorocabanas.PoisécomessaaparatosaindumentáriaqueCharlesLandseerospintou,orgulhososeelegantesnumrancho,em1825.Seuslucrosseperdiamemgrossasapostasnaspatasdoscavalos,poisnãofaltavamcorridasnasraiasdeareia.Algumasruasnasaídadacidade concentravam as “perdidas” nas “casas de alcouce” – ou seja, deprostituição.Nelas,sexo,jogoebebidasemisturavam.Umavezvendidas,asmulasserviamparatudo.Carregavamgente,ouroou

produtos de subsistência, como cereais, carne, sal e açúcar. Portavam osinstrumentosdetrabalhoutilizadosnamineraçãoounosengenhos.Levavamosprodutosque,dosportoslitorâneos,partiamparamercadosnoexterior:açúcar,café, anil, fumo, aguardente, algodão. Transportavam pólvora, armamento eartigos de necessidade do cotidiano, como vestimentas, móveis, arreios eutensílios de casa. Levavam também artigos de luxo, como pianos ou livrosfrancesesproibidos–comoosdeRousseau.Aliás, a preocupação em racionalizar o tratodos animais, comodesejavam

iluministastaiscomoRousseau,sematerializouemmanuaiscomoopublicadoemPortugalem1761:OAlveitardeAlgibeiraqueensinaatratarecuraros

cavalosemjornadaequetrazquaissãoosremédiosparaqualqueracidenteque lhes aconteça no caminho. Com experiência de trinta anos, o autorantecipava que o cavaleiro haveria de agradecer-lhe por tantos avisos: “se ocavalo tropeçar”, “para conhecer o animal pelos dentes”, “os próprios paracarruagensouselas”,“castigosaevitar”,“moléstiasdelombo”,“borbulhasdecalor”,entreoutrasrecomendações.Aimportânciaeconômicaesocialdesseséculosertanejonãodeixadúvidas.

Sertanejos, guascas e tropeiros estiveram por trás do funcionamento deengenhos de açúcar, do desenvolvimento das atividades mineiras e doabastecimento do interior do Brasil, principalmente nas regiões em quefaltavam rios navegáveis. A circulação interna da colônia, assim como otransporte de produtos e bens, só podia ser feita em lombo de mula. Aofuncionar como uma verdadeira correia transmissora de mercadorias, cartas,recados e informações, tropas e tropeirosdurantemaisdeumséculo ligarampessoas nos pontos mais diversos da colônia. Inventores da vestimenta decouro,sobretudodogibãoqueoprotegiadavegetaçãoespinhosa,dascamas,mesasebaúsdecouroparaacondicionarcomidaebebida,dacarnecharqueadaeacondicionadano sal, taishomens tinhaméticaprópriaque repousavanumolhar,numgesto,nofiodeumbigode.Apredominânciadessescomerciantesestendeu-seatéachegadadotremdeferro,nasegundametadedoséculoXIX.

E ntre os séculos XV e XVIII, o mundo era um imenso campo.Entre80%e90%dapopulaçãoviviadaterra,esódela.Oritmo,a qualidade, a insuficiência ou abundância das colheitascomandavamavidacotidiana.Nasimediaçõesdecidadesevilas,nasmargensdasestradasquelevavamparaointeriordacolônia,

prosseguiaaatividadeagrícola.Amata,aparentementeinimigaetãocastigadapelainvasãodacana, levavaocolonoacombatercomvigorqualquerindíciodeseuavançosobreasroças.Poroutrolado,amataprotegia.Elaéatéhoje–eele não o ignorava, então – indispensável para o sistema de queimada, derecuperaçãodosoloe,portanto,decultivo.Apesardadesordemdasculturasedaanarquiadapaisagemagrária,misturadaàfloresta,cadaposseiroconheciabemoslimitesdesuaroça.Nãoexistiacercamentodasexploraçõesagrícolas,salvo quando havia gado por perto. Por vezes, aparecia algummarco – umavelha árvore, um regato, um olho-d’água, um cupinzeiro, uma pedra. Oscamposdeculturaeram,assim,perfeitamenteconhecidoseassinaladosnavidacotidianapormeiodesinaisexteriores.Raramenteumroceiroinvadiaasterrascultivadas de outro, e, quando isso ocorria, nasciam conflitos por vezessangrentos.A partir de fins do século XVII, a colônia sofreu um novo impulso. A

descobertadoouroanimouumapoderosacorrentemigratória,tantoportuguesaquanto africana. Estimativas recentes indicam que, entre 1650 e 1750, onúmero de portugueses vindos para o Brasil aumentou em 500%, enquantoentre os africanos esse crescimento foi de aproximadamente 220%. Talexpansãoviabilizouaconcessãodenovascartasdeliberdadeaosescravos,aomesmo tempo quemultiplicou a camada branca empobrecida.Muitos dessesindivíduos tiveram, na produção e comercialização dos gêneros alimentícios,assimcomonapequenapecuária,umaformadesobrevivência.

Ascasasdosroceiroseramsemelhantesàsmoradasdosescravos.AUBERT.Habitationdenegres=Negerwohnung[Iconográfico].

PARIS:FIRMINDIDOTFRÈRESETCIE,1846.

Não demorou muito para que tais agricultores humildes, saídos das roçasfamiliares, começassemaabastecerdemaneira contínuaou irregular asvilasmais importantes. O investimento em escravos tornou-se, então, umacaracterística comumde pequenos ou grandes donos de terra.Não se tratavapropriamente de uma prática inédita. No século XVII, tanto em São Pauloquanto na Amazônia, existiram numerosos pequenos proprietáriosescravizando “negros da terra”, ou seja, índios. A novidade inaugurada pelaépoca mineradora foi a multiplicação, em escala jamais vista, de pequenossenhoresdeescravos.Em Minas Gerais, onde predominava o espaço urbano, evoluiu uma

agricultura não exportadora, suporte fortíssimoda economia do ouro.Nessasregiões,raroseramosroceirosque,emalgummomentodavida,nãousavammão de obra cativa. EmCongonhas do Sabará, por volta de 1790, 91% dossenhores detinham, no máximo, dez escravos, muitos deles trabalhando nasroçasouempequenosalambiquesprodutoresdecachaça.Atémesmoasáreasnãodiretamenteprodutorasdeouro foramafetadas.Para ficarnumexemplo,em Santana do Parnaíba, São Paulo, no ano de 1775, pequenos sitiantes –donosdeumanoveescravos–respondiampor81%dosdomicíliossenhoriaislocais.Essesroceiros labutavama terraparasealimentar,mas tambémproduziam

para omercado. Além de fornecer alimento a arraiais, vilas e fazendas, seutrabalho consistia em manter o grupo doméstico, que podia se compor dosmembros da família, agregados, escravos e auxiliares. É bom lembrar quenessesistemaexistiaumarelaçãoestreitaentreoquesecultivavaeoqueseconsumia. Os produtos agrícolas correspondiam às necessidades do grupodoméstico e aos seus hábitos alimentares. Quase todas as roças produziammandioca,paraafarinha.Aoladodelamedravamofeijão,acana,oarrozouomilho.

Os cronistas coloniais permitem que se amplie aindamais esse inventário.NoséculoXVIII,SebastiãodaRochaPitaenumeracomoprodutosdahorta“osquiabos, os jilós eosmaxixes, as largas taiobas, apeitoralmaniçoba,que seguisadasfolhasdemandioca,ascheirosaspimentasdemuitasespéciesecoresqueservemaogosto,aoolfatoeàvista.Dashortaliças trazidasdaEuropajátinham se aclimatado as alfaces, couves de várias castas, repolhos, nabos,rábãos,cenouras,pepinos,espinafres,abóboras-d’água,cebolas,alhos,cardos,bredos,mostarda,salsa,manjerona,endro,manjericão,alecrim,arrudaelosna;dasmedicinais,canafístula, tamarindo, jalapa,salsaparrilha, filipódio,pau-da-china, malvas, tanchagem e sene, a que os naturais chamam tacumburi”.

Muitos produtos agrícolas vieram da África, junto com os cativos: caso doinhame, do chamado “coco da Bahia”, do amendoim, da arruda usada, emproteção contra insetos, do boldo, que não veio do Chile. Veio com elestambémoconhecimentoqueosafricanosjátinhamdocultivodoalgodão,docaféedoarroz.Dentreasfrutas,asmaiscomunseramabananaeoscítricos.Laranjas,limas

ecidreiras,vindasdePortugal,porexemplo,aquipegavamdecaroço;florindoem agosto, eram “grandes e saborosas”, segundo Gabriel Soares de Souza.Muitasdessasárvoresaparecemregularmentenosinventáriospost-mortemdoséculo XVIII, como “quintais de espinhos”. Em Pernambuco, o flamengoNieuhof, por volta de 1650, impressionou-se com a variedade de culturas,regadas pelas férteis cheias do rio Paraíba, crescendo ao lado de engenhos:trigo-turco,abacaxis,melões,bananas,pepinose“demaisgênerosnecessáriosaosustentodohomemedosanimais”.Juntoaoscultivaresmaiscomuns,notava-se,também,apresençadeanimais

domésticos: “Criam-senoBrasil todosos animais domésticos e domáveis deEspanha,cavalos,vacas,porcos,ovelhasecabras,eparemadoiseatrêscriasde cada ventre”, explicava frei Vicente de Salvador, considerado o primeirohistoriador do Brasil. Também era notada a presença de suínos, “negros epequenos”; estes semultiplicavam facilmente, com nomínimo três ninhadaspor ano, vivendo, segundo documentos, em “chiqueiros cobertos de capim”.Nieuhof indica aindaapresençade lebres e coelhos,queemnada ficavamadeveraseussimilareseuropeus.Ovelhasecabras,vindasdePortugaleCaboVerde, pariam anualmente, segundo omesmo cronista, “duas crias e muitasvezes três”. Sua carne é considerada “muito gorda,mui sadia e saborosa; e,quanto mais velha, melhor, e umas dão muito bom leite de que se fazemqueijos e manteigas”. Os cordeiros e cabritos, de acordo com o mesmotestemunho, são também estimados, “muito gordos e saborosos; a carne dosbodes é gorda emuito dura; a dos carneiros émagra enquanto são novos edepoisdevelhosnãotempreço;ecriamsobreocachoumacarnecomoubredevacasdetrêsdedosdegrosso”.Desde cedo, aves domésticas trazidas do Velho Mundo tiveram rápida

difusão, encontrando-se mesmo em aldeias indígenas. Eram objetos deintercâmbio com os europeus. Em 1519, não trocou Pigafetta, o piloto deFernãodeMagalhãesemsuaviagemdecircum-navegação,galinhasporanzóise facas? Soares de Souza, propagandeando as vantagens da colônia,acrescentavaque“asgalinhasdaBahiasãomaioresemaisgordasdoqueasde

Portugal,easgrandespoedeiras,muitosaborosas;masédeespantarque,comosão de trêsmeses, esperamo galo, e os frangões damesma idade tomamasfêmeasosquaissãofeitosgalosetãotenrosetãosaborososegordoscomonãoseviuemoutraspartes”.A pequena pecuária teve adeptos entre a elite. Em 1789, na lista de bens

confiscados a um dos “inconfidentes” mineiros, Alvarenga Peixoto, foramarroladasquarenta“cabeçasdeporcosde terreiros,entregrandesepequenos,machosefêmeas”.Nas roçasmedravam ainda as plantasmedicinais: a samambaia, que solda

quebraduras, a capeba, que desfaz apostemas, a erva-de-leite, que alimpanévoas nos olhos, omata-pasto, que tira febres, a caroba, que tira boubas, oananás, que expulsa pedras, o coroatá, que arroja lombrigas, o mil-homens,paramilenfermidades,eoutrasparaváriasqueixas.Avariedadedecultivaresencontrados na colônia indica uma precoce preocupação com a busca deequilíbrioecomplementaridadeentreprodutos,que,comoveremosadiante,sesomavamàmandioca,aomilho,aoalgodãoeaoutrasvariedadesquepodiamounãoserplantadasemmaiorescala.Ontem, como hoje, a paisagem era também produto da técnica disponível.

Ora,nosprimeiros temposcoloniais, a culturaextensivadenossosancestraisagricultores utilizavapoucas ferramentas.Elas quase sempre se resumiamaomachado,paraderrubadadeárvoresepreparodalenhaparaofogão,àenxada,àfoiceeaobastãorudimentar, tambémconhecidocomocavadeiradepauouchuço, para a semeadura. Eventualmente, registravam-se outros utensíliosagrícolas, especializados de acordo com as lavouras: descaroçadores para oalgodão,peneirasparaoarroz,esteirasparaocacau.A escassez de técnicas e ferramentas vindas dametrópole era compensada

pelossaberes indígenas.Assim,nãosóomanejodas terras,comotambémastécnicasagrícolas, acaboupor reproduzir conhecimentospré-coloniais.Esses,por sua vez, eram tributários de culturasmilenares doNovoMundo. Como,porém,sedeua“transferênciadetecnologia”indígenaparaosportugueses?Ora,umadasexplicaçõesexistentesatribuiessapassagemaoprópriomodo

de vida dos camponeses coloniais. Ao contrário das grandes fazendasaçucareiras, as famílias dos roceiros e caipiras abriampequenas clareiras nasmatas. Eles, quando protegidos das doenças europeias, como a gripe e osarampo,nãorepresentavamumaameaçaàsociedadeindígena.Justamenteporocuparem pequenos trechos da mata, tais segmentos puderam desenvolverrelaçõesamistosascomváriosgruposdetupisetapuiascoloniais,relaçõesque

implicavam não só a circulação de técnicas e tradições, como também aocorrênciadecasamentosmistos.Dessemodo, a cultura indígena foi assimiladapelos demais habitantes dos

sertões,que,umavezse tornandomoradoresemfazendas,a transmitiamaosescravosquetambémdetinhamconhecimentoseaosportugueses.Citemosumexemplo.Nãosabemosquandosedeuo iníciodaapiculturamaisorganizadaentre nós, mas é sabido que os índios conheciam bem a arte da criação deabelhas sociais produtoras de méis. Os camponeses coloniais não sóassimilaramessastécnicas,comotambémmantiverammuitosnomesindígenasnosinsetos,conformeobservouNieuhof:“Alémdosseresquejádescrevemos,hánoBrasildiversasqualidadesdeabelhaschamadaseiruca,quese instalamnasárvoresdasmaissurpreendentesmaneiras.Conquantoumpoucomenores,não diferem muito das nossas, costumam enxamear principalmente entre asárvores.” Classificadas em doze espécies diferentes, chamaram a atenção doholandês“aseirucas,detodasasmaioreseprodutorasdeexcelentemel”.Outrasabelhas,conhecidasporeichuecopy,erammenoresedecorescura.

Perfuravam a casca das árvores e, no interior, fabricavam favos de cerainteiramentebranca.Seumeltambémeratidocomoumdosmelhores,emboranãofosseencontradoemtãograndequantidadecomoosoutros;alémdisso,asabelhasqueoproduziampicavamfuriosamente.Omesmotestemunhoassinalaainda a existência dasmombucas, pequenas e de cor amarelada, que faziamseusfavosnotopodasárvoreseproduziamexcelentemel,queeraexportadoparaaEuropa.Aculturaindígenapossuíaumarsenaldeinformaçõesarespeitodasabelhas

quetambémsedesdobravaemtécnicasdeextraçãodemel.NoséculoXVIII,eracomumentrecaipirasdeSãoPaulo,MatoGrossoeGoiás,alémdeoutrasregiões da América portuguesa, extraí-lo com canudinhos ou trazer, dasexcursõesà floresta,pedaçosde troncocontendoabelheirasdemandaçaiaoujataí,afimdeguardá-lospróximoàcasaouchoça,juntocomacoletadomelsem destruição da abelheira.Outra herança indígena é o uso de cabaças nasquaisseguardavamosenxames.Essacirculaçãodesaberes,contudo,nãoeraumaviademãoúnica.Doscostumesindígenas,porexemplo,aculturacaipiraevitouassimilarapráticadaingestãodeabelhascomoalimento.Por outro lado, os brancos e libertos, transformados em roceiros, também

propagaramtradiçõeseuropeiaseafricanasjuntoaospovoslocais.Novamente,amelhorformadeentender issoécitandoumexemplo.Porvoltade1640,ooficialinglêsCuthbertPudseyobservouqueosíndiosdolitoraldePernambuco

haviam sido subjugados e expulsos para “vários rincões da terra”, onde sededicavamaocultivodediversasplantas,algumasdelasconhecidaspormeiodocontatocomportugueseseafricanos,comonosrespectivoscasosdoarrozedomelão.Assim,enquantoo litoralaçucareiro involuntariamenteseafricanizavaeos

aldeamentosjesuíticoslutavampelaeuropeizaçãodosnativos,nasclareirasdasflorestas, roceiros e caipiras promoviam uma singular fusão de costumes.Viam-seafricanosrecorrerem,comoosantigostapuias,àraizdeumbuzeiroouaomandacaruparamatarasede.Viam-seportugueses,comotupis,dormindoemredesefabricandocanoasdemadeirainteiriça.Viam-seíndiosimportaremda metrópole as orações Ad Petendam Pluvium, bem como a tradição demolhar os pés dos cruzeiros ou de fazer as misericórdias rogativas, com ossantosdedevoçãoenfiadosnaágua.

Nolitoral,multiplicaram-secomunidadesdepescadores.RUGENDAS,JohannMoritz,1802-1858.ViagempitorescaatravésdoBrasil.[gravura29]

Nessecadinhocultural,brancos, africanose índios tratavamdeensinaraosfilhos os preceitos ligados à botânica: bananeiras, para produzir, deviam serabraçadas por homens, emamoeiros, pormulheres; plantações de amendoimdispensavam presença masculina; o chá de mulungu acalmava doidos e acolheitadefrutasnasárvoresdeviadeixarsempreumnúmeroímparparanãodesagradaraárvore.Aos índioseafricanosos roceirosdeorigemportuguesaensinavam que a chuva podia ser de “borrasca, d’águas novas” – a primeiradepoisdoestio–“criadeira,salseiro,aruega”–chuvafinaebreve–“mofina,cambueira”–agrossa–“açoitadeira”–comvento–entreoutras.Seriaumerro,porém,imaginarqueomundodosroceirosfossehomogêneo.

Tantoomaioroumenorgraudemercantilização,propiciadopelaproximidadecom vilas e fazendas de exportação, quanto o maior ou menor apego àescravidão eram poderosos fatores de diferenciação social, observados,sobretudo,emsuaformademorar.Adiferenciaçãonomundoruraltambémésentidaquandosecontrastaointerioraolitoral.Duranteoperíodocolonial,aolongodosmilharesdequilômetrosdepraias,

vicejouumaindapoucoconhecidomundodecamponeses-pescadores.EmSãoPaulo, essas comunidades receberam o nome de caiçaras. Em sua dietaalimentar, os produtos da roça eram, por vezes, suplantados pelos frutos domar.Outrasingularidadedessegrupoeraacolher,emseumeio,náufragosoumesmopiratas,comoocorreunailhaGrande,nolitoraldoRiodeJaneiro.A exaustiva rotina da roça construía um certo tipo de cotidiano: acordar

cedo,aindaescuro;aoapareceràbarradodia,játinhainícioapelejadentroeem torno dos currais, apartando bezerros, tirando leite das vacas; o jejum sequebrava, perto da porteira do curral, compunhadosde farinhademandiocaensopadanoleite,afimdepoder,antesderaiarosol,seguirparaalavouraouparaospastos.Essajornadaeralonga,independentementedousodaterra,quevariavadeacordocomoclimaeotipodesolo.Omododevidarústicocolonial,roceirooucaiçara,tambémfoiseveramente

condenadopelas autoridades. Provocativo e distante do rei dePortugal, JoãoRamalhonão sedeclarava“fronteiro”pormorarnasmargensdasmatas?NoséculoXVIII,via-setalisolamentocomoumaameaçaàordemeàorganizaçãoda sociedade colonial. Sua forma de vida e produção era considerada, pelosenviados da metrópole, causa de “atraso e pobreza”. Da perspectivaportuguesa, a função da colônia era a de produzir para exportar ou paraabastecer as fazendas exportadoras. Quem não estivesse integrado a esse

sistemaeramalvisto.

Instrumentosdetrabalhonaroça.VELOSO,JoséMarianodaConceição.OfazendeirodoBrazil.

LISBOA:OFF.SIMÃOTHADDEOFERREIRA,1800,P.246.

Em 1765, Luís Antônio de Souza, o Morgado de Mateus, governador dacapitania de São Paulo, assim registrava suas impressões sobre roceirospaulistas:“Observeiaspovoaçõeseacheiquetodassãopequenas,aindaasdemaiornome,faltasdegenteesemnenhummododeganharavida:oscamposincultos, tudocobertodematabrava,a lavourapormaumétodo,sóseplantaemmato virgem, pelo pouco que custa e pela repugnância que se temde sesujeitar ao trabalho como neste reino [...] por cuja causa se acha o povoreduzidoàmaislastimosapobreza.”Nãopercebiaa autoridadequeoquadrocalamitosodaagriculturapaulista,

em grande parte, tinha origem nas medidas oficiais. Temerosos de seremrecrutados para as guerras fronteiriças do Sul colonial, que se arrastaram do

séculoXVIIaoXIX,milharesdecaipirasecaiçarasseembrenhavamnomato.Os que permaneciam próximos às vilas caíam nas malhas dos militares,desfalcandooslaresdosmaridosefilhosemidadeprodutivae“desamparandoasroças”.Tratava-sedeummovimentodifícildesercontido,pois“a técnicaderecrutamentoeraadasurpresaedosigilo.Geralmenteseapresentavanumdia de festa religiosa, quando a população rústica dispersa nos sítios e roçasvinhaaopovoado”.Outras tensõesmarcaram a vida na roça, em razão fundamentalmente dos

avançosdalavouradeexportação.Oquefazerquandoacanaprecisavaocuparoespaçodaculturadesubsistência?Umaprimeirareaçãoerasedeslocarparaáreas não ocupadas, o que fazia dos roceiros autênticos pioneiros,conquistadoresdoterritóriocolonial.Umasegundaalternativaeraseintegraràfazenda,comopeão, tropeirooucondutordecarrosdeboi.Haviaaindaumareação violenta por parte dos roceiros: lutar para defender as próprias terras.Um observador na Bahia de fins do século XVIII descrevia a justiça dos“grandes” como “tirânica”, senhora de “castigos lentos” e capaz de arrancar,aos pequenos, tudo o que tinham. A violência, engendrada na luta contra aexpansão das fazendas exportadoras, também se misturava às relações desolidariedade,comoduasfacesdamesmamoeda.Parceiros?Sim,nocombateàs dificuldades naturais, no fogo, na derrubada, na matança de animais, nacolheita.Violência?Também.Naviolênciafísicanoscontatosdevizinhança,nas atividadesde trabalho, nosmomentosde lazer e aténosdesacertos entreparentes.Tudoissoincluíatambémapobrezadasmassasrurais.Osimpostos,o recrutamentoobrigatório,aspragas,a faltad’águaouexcessodechuvas,aincompetência do Estado em preservar a prosperidade camponesa e a suaprópria, enfim, tudo colaborou para que no campo medrassem, também,tensões.

POST,Frans.VistadeItamaraca.[ÓLEOSOBRETELA].MAURITSHUIS,HAIA.1637.

Q uadrúpedes”:apalavra jáexistianoséculoXVIIIedesignavaasbestasdequatropatas, aindaqueodicionarista acreditasseexistirnoreinodeFez,aopédosmontesAtlas,umacastadeaves do tamanho do peru, com penas douradas e feitio decorujaqueteriam...quatropatastambém!

MasdesdequandopodemosfalaremcavalosnoBrasil?Asprimeirasraçascavalares formadas no continente americano são direta ou indiretamentedescendentesdoscavalosibéricos,vindosparaaAméricadoSulem1535,aoque tudo indica pelas rédeas dePedroMendoza, conquistador e fundador deBuenosAires.Outroespanhol,ÁlvaroCabezadeVaca,em1541,levou-osparao Paraguai, pela costa brasileira, provavelmente por Santa Catarina. Já ocronistaGabrielSoaresdeSouzaossinalizavanaBahiadefinsdoséculoXVI:“Criam-se no Brasil todos os animais domésticos e domáveis da Espanha,cavalos,vacas.”Oscavalosabandonados,quandodadestruiçãodeBuenosAirespelosíndios,

constituíramabasedenumerosasmanadasdos cimarronesoubaguales, que,porsuavez,deramorigemàstropasdecavalocrioulo.Salvomodificaçõesdomeio ambiente, trata-se domesmo animal do norte ao sul do subcontinente:pequenos, compactos, com altura média de 1,45m. O nome “crioulo” eraempregadopelosprimeiroscriadoresparadesignarocavaloqueviviasoltonoscampos.Esteerapreferidonasfazendasporqueexecutavaqualqueratividade,puxandocarroçasoufazendotrabalhosdecampo,crescendoeprocriandoemcondiçõesnaturais,comgranderusticidadeelongevidade.Seu criatório natural era o Sul. Os pastos, que constituíam a chamada

Campanha Gaúcha, cresciam em região ligeiramente ondulada, cujas partesbaixaseramocupadasporbanhados, cursosd’águae açudes,poçosdeáguassalobras, leves, turvadasa limoouabarro.Aíoarera tocadopeloaromadeflores do açoita-cavalo, impregnando-se também do cheiro das guabirobasrasteirasedocapim-limão.Noscamposcorriamsoltos,“rachandodegordoseaguaxados”,naspalavrasdeSimõesLopesNeto,milharesdeéguasepotros,“cavalhadalargada,quetodavirouharagana”.Essacavalhadaeramontadaporguascas ou vaqueanos, responsáveis por uma cultura específica em torno dopingooudocavalobom.Mestiços, tangedoresdegados,vestiamchiripaebombacha,chapéudeaba

larga, passado pelo nariz, tiradores de couro e facão de cabo floreado na

cintura, botas de couro com vistosas chilenas de prata. Senhores de váriossegredos da equitação e dos campos arreavam a montaria com ornatosprateados: rosas, estrelas e corações, aperos para cabeçadas, testeiras epeitorais.Valorizavamocampeadorgaúcho,oautênticoguascaeseuamoraopago e à querência, o hábito de carnear – esfolar a rês – do churrasco, omugangocomleite.SuashabilidadesnãoescaparamaobrigadeiroSilvaPaes,que,aochegaraoportoepresídiodeRioGrande,a12deabrilde1737,assimsedirigiuaseusuperior,ogovernadorGomesFreyredeAndrade:

AocupaçãodoRioGrandeémuitomaisútilaoBrasilqueadeMontevidéu.Oponto”,sublinhavaele, “é criar gente de a cavalo e que saiba fazer o serviço como cá se costuma [...] Já se achammarcadas para S.Majestademais demil cabeças de gado vacumque faço conta passá-los para umrincãodepastosadmiráveis,dondeandamascavalhadas;queroversepodejuntaralgumaeguadaparaque,pelaproduçãodestesgados,sesustenteaguarniçãoesobejeehajacavalaria,paratodooserviço.Euprocuroquetodossaibamandaracavalo,queémuitopreciso.

“Tudo era aberto; as estâncias pegavam umas nas outras sem cerca nemtapumes;asdivisasdecadaumaestavamescritasnospapéisdassesmarias;eláum que outro estancieiro é que metia marcos de pedras nas linhas, e issomesmo quando aparecia algumpiloto que fosse entendido do ofício e viessebemapadrinhado.Vancêvêquedesse jeito ninguém sabiaoque era seu, deanimalada. Marcava-se, assinalava-se o que se podia, de gado, mas mesmoassim, pouco; agora, o que tocava à abagualada, isso era quase reiuno...pertencia ao campoonde estavapastando”, contouo cronistagaúchoSimõesLopesNeto.

Cavalhadas:ousodoscavalosemfestas.DEBRET,JeanBaptiste,1768-1848.VoyagepittoresqueethistoriqueauBrésil.Tometroisième.

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Junto com o cavalo, havia o boi. Tal como no Nordeste, o gado foiintroduzidonoSuldesdeosséculosXVIeXVII.Ogadobovinoapresentavasemelhança com a raça Garaneza, provavelmente introduzida no Nordestepelos franceses, e comaCaracu, descendente direta dos animais dos troncosdos Bos tauros e dos Bos tauros aquitanicus, trazidos pelos colonizadoresportugueses.Aparentemente,aprimeiraentradadessesanimaisocorreu,em1534,emSão

Vicente, São Paulo: Ana Pimentel, esposa de Martim Afonso de Souza,importou o primeiro plantel.Depois, Soares de Souza os sinalizava em suascrônicas:“NaplaníciedeSantoAntôniodePiratiningacriam-seboiscapados,vacas fuscas, alvasãs, broquilhas, pintadas, vacas parideiras, vacas com suascrianças.”O fato é queogado se apresentava comumagrande fecundidade,criando-se, durante vários séculos, contra todas as dificuldades, comoalimentaçãoescassa,doenças,climatórridoeparasitas.Essapressãodeseleçãonatural moldou os animais chamados, inicialmente, crioulos ou nativos, edestesforamseparadososdepeloamarelo,daísendoformadooCaracu.ForamosjesuítasquedisseminaramresesnoRioGrandedoSul.Eofizeram

paraalimentarasaldeiasdecatequese.Noaugedofuncionamentodasmissões,

abatiam-se, comesse propósito,milhares de reses por ano.Havia tanto gadopastandonas coxilhasquequalquer estrangeiro tratavade registraro fato emsuasanotações:“rebanhosincontáveisdegado,invernoeverão”,comodiziaopadreAntônioSepp,em1691.NasépocasemqueosbandeirantesvindosdeSão Paulo abatiam-se sobre as aldeias, caçando indígenas, os jesuítasretaliavamabandonandoogadoàvidaselvagem.Talvacaria,queseestendiapelolitoralatlânticoSulatéorioUruguai,seformou,segundoumhistoriador,pela dispersão do primeiro gado – cerca de quatrocentas vacas leiteiras –,abandonadopelosjesuítasem1637.Asvacariasmultiplicaram-seenãopoucasvezesforamatacadaspelosespanhóis,emguerracomosportugueses.O primeiro quartel do século XVIII encontrou rebanhos quase dizimados.

Previdentes, os jesuítas deslocaram seu criatório para Pinhais, deixando seugadointocado,emreprodução.Em1759,logoapósaexpulsãodaCompanhiade Jesus da América portuguesa, em 1758, só na estância de Jajepu osinacianospossuíammilhares de cabeças.Ao chegarem, quinzeouvinte anosmais tarde, luso-brasileiros ainda encontraram os campos repletos de gado.Iniciou-se, então, um processo de mão dupla: o Estado resolveu estabelecerumaFazendaRealdeCriação,afimdealimentartropasefamíliasdesoldados,que vinham concorrendo para povoar o Sul. Organizaram-se as de Bojuru eCapãoComprido,aonortedoRioGrande.Masamáadministração logopôstudo a perder. A valorização do preço do couro promoveu uma verdadeiracarniçaria; matavam-se milhares de animais, inclusive vacas prenhes evitelinhas, para arrancar-lhes o precioso revestimento. Inúmeros vice-reisprotestaram. Tudo em vão. O Estado gastava fortunas para alimentar, comcarneefarinha,soldadosemoradoresdeSacramento,enquantoseuspróprioscriatóriossearruinavam,vítimasderoubosedescaso.Em algumas áreas, contudo, contrariando o processo de decadência, o

rebanho semultiplicava.Nas estâncias, sobretudo as instaladas nas cercaniasdorioPardo,abrigavam-semoradoresricosesenhoresdemilharesdecabeçasdegado.Currais constituídos por cercados demoirões e faxinas, isolados nopampa, funcionavamnãocomocentrodeestabulação,masdegravitaçãodosrebanhos. Impunha-se a lei da querência: as reses, passando pelo rodeio, sesujeitavamàaçãocentrípetadomesmoenãomaissedispersavam.Alança,olaçoeaboleadeira,instrumentosdeadestramentoecapturadosanimais,erammagnificamentemanejadospelosgruposdesolitárioscampeadores,conhecidoscomobombeiros.Oestancieiro,diferentementedopreadoroudotraficante,erahomemplantadoemterraprópria.Terracomcasasgrandes,pomaresecampos

detrigo.Invernadeiro e abrigado temporariamente sob tendas de couro, ele adquiria

gadoaopreadorparavendê-loaocomprador–comseustropeirosetropas–ouaotraficante.Essesdoisgrupos,pilhadoresdecavalosematadoresdeboi,porsuas arriadas – roubo de gado –, eram o tormento das autoridades. Erampejorativamentechamadosdeintrusos.Poroutrolado,foigraçasaelesqueaplanície platina se viu varrida de espanhóis e índios. Em multidão surda edifusa,seespalhavampelasfronteiras,empurrando-as.Estabelecidosemfalsasquerências com o fim único de revendê-las aos colonizadores, chegavam aapossar-sedepedaçosdasestânciasreais.Os muares não ficavam atrás. Iniciado o século XVIII, o contínuo

movimentodecomérciocomospaulistasseguiacrescendo.Entre1720e1750,aimportaçãoanualfoidemilanimais,dobrandonosúltimosanosdoperíodo.Sóparaficarnumexemplo,em1751,d.AntônioRolimdeMouraTavares,emviagemparaassumirogovernodacapitaniadeMatoGrosso,foiseencontrarcomGomes Freire, em Paraty, e anotou: “A villa deGuaratinguetá, em quefiqueinaqueledia,porsernecessárioadiantemandaravisarossítiosporondehaviapassar,éjámaisricadoqueasoutras,porserpassagemparaasMinasd’aqueles que vêm buscar a estrada de Paraty, pela qual me seguraramandavam1.300cavaleirosconduzindocargas.”Daíaté1780passouacincomile,de1780a1800,dobrou.De1826a1845,superou30milanimais.Osetorcresceu,comosevê,emritmobastanteintenso,formandoumaintrincadarededecomérciointerno,emgrandeparteforadocontroledePortugal.

AcivilizaçãodocouronoNordeste

E no Nordeste? Desde a década de 1530, com a instalação das capitaniashereditárias, começara a lenta expansão da pecuária.Devagarzinho,manadasbaianas, imensas e silenciosas, percorreram léguas e léguas do territóriobrasileiro,espalhando-sepelaregiãodoSãoFranciscoedaíparaoPiauí,GoiáseMatoGrosso.Dos engenhos de Pernambuco passaram aoCeará.O sertão,significando na época as terras apartadas do litoral, era o palco dessa novaocupação.Avidaaínãoerafácil.Ocotidianodesenrolava-sesobsolcausticanteesolo

árido. De agosto a dezembro, a falta d’água era tanta que, frequentemente,

muitos não tinham o que beber. Junto com a seca vinham as crises deabastecimento.Quasenadaflorescianemcrescia.Aregularidadedasestiagenseraapavorante.Anoscomoosde1660,1671,1673ou1735deixavammarcas.Preocupado,

o conde de Sabugosa, uma autoridade, anotou em sua correspondência: “HádoisanosqueseexperimentanestacapitaniaeemtodooEstadoumatotalfaltade água, por cuja causa se destruíramas plantas e não produziramas safras,alémdoquehágrandefaltadecarneedefarinha.”Asdificuldadesalimentaresaparecememoutrosregistros,comoodopadreCouto,que,em1697,anotavasobreossertanejos:

Comemesteshomenssócarnedevacacomlaticíniosealgummelque tirampelospaus;acarneordinariamentesecomeassada,porquenãohápanelasemquesecoza.Bebemáguadepoçoselagoas,sempreturvaemuitoassalitrada.Osaressãomuitogrossosepoucosadios.Destasortevivemessesmiseráveishomens,vestindocouroseparecendotapuias.

Escapava ao padre europeu a luta dos homens para adaptar-se ao meioambiente. Para ficar em poucos exemplos, que se pense no uso de fibrasvegetaissubstituindotecidosdevestir,nasredesdefibradecaroá,nocardápioagreste de carne de tatu, ou peba, e da paçoca de carne de sol pilada comfarinhaerapadura.AexpansãodogadonoNordesteenfrentoua resistência indígena.Desdeo

séculoXVI,omovimentodeocupaçãodosertãonortedoBrasilconfrontouocolonizadorcomospovosindígenasquehabitavamessasregiõesdestinadasàcriação do gado. Após a expulsão dos holandeses (1654) e a acentuação domovimento de expansão da pecuária, conflitos antes limitados tornaram-secadavezmaisfrequentes,demodoqueembreveumasituaçãodeconflagraçãogeral surgiria às vistas das autoridades coloniais, sendo denominada à época“GuerradosBárbaros”.AimensidãodasfazendasdegadodoNordestejá tinhachamadoaatenção

do jesuítaAntonil,ocupandovastidõesdaBahiaatéo“certãodoPiaghuy”–atualPiauí.Algunsarraiaisevilasnasciamnocentrodessas fazendas,dandoorigem a muitas das atuais cidades nordestinas. Casas de barro cobertas depalha,curraisdepedraoumadeira,pequenasroçasdemandioca,feijãoemilhofuncionavam como âncora para o gado que se criava solto. Pastagens semlimite funcionavamcomocamposdeengordanosquaisovaqueiro sópisavapara buscar bezerros novos e fazer nova choupana. Fazendas grandesagregavam tenda de ferreiro e carpinteiro, cercados para separação de reses,

reservas de pasto e lavouras de subsistência. Muitas delas ainda possuíamengenhosmovidosaboiouáguaparaaproduçãodeaçúcarmascavo,“casasdefarinhada” e alpendres ou tendas com rodas de fiar algodão. Na época daschuvas–anunciadaspelodesabrochardaflordomandacaru–,aprontavam-searreios,ferradurasecouros.Nos meses de abril e maio, conhecidos como “fins d’água”, floresciam

juremasemagnólias aperfumaros caminhos.Ascampinasverdejantes eramchamadaspelagentede“camposmimosos”.Nasnoitesescuras,osomagudodosberrantessinalizavaadireçãoparaosviajantesperdidos.Astécnicaseosequipamentos, tão importantes nos engenhos, eram aqui substituídos pelahabilidadeespecíficadovaqueiro.Habilidadeemtratarvacaparida,cuidardeumbigodebezerro,evitarbicheiras,serrarchifrespontiagudos,marcarasancasdosanimaiscomferroquente.O curral era o cenário para toda essa atividade: “Em cada fazenda”,

explicava o ouvidor Durão, no século XVIII, “deve haver pelo menos trêscurrais que tomam diversos nomes conforme o serviço que prestam. Chamacurraldevaquejadaàqueleemqueserecebeogadoque temdeservendido,ondesetiraoleiteeondesefazoroldeporteiras;curraldeapartaroemqueserecebe todo o gado indistintamente para ao depois ser distribuído pelasdiferentesacomodações;curraldebenefício,ondeserecolhemosgarrotesparaseremferradoseparasefazeraspartilhasdosvaqueiros.”Tais fazendas se formavam com facilidade. Uma casa rústica coberta de

folhasdecarnaúbaabrigavahomens,mulheresecrianças.Numcurraltoscoseintroduziam, em geral, oito vacas e um touro. As reses passavam por umperíododeadaptaçãoaospastos.Eraa“formaçãodoscascos”.Nessafaseeramnecessários de dez a doze homens para o manejo: vaqueiros gabaritados eoutros,oscabras,menoshábeis.Um quarto dos bezerros pertencia ao vaqueiro. O tamanho dos currais

variavadeacordocomorebanhoeonúmeroanualdebezerros,chegandoatéacentenas demetros. Uma fazenda de baixa produção amansava, anualmente,cembezerros;umagrande,mil.Cercaseramfeitasemaroeira,cedro,candeia,louro,jatobá,jacarandá,enfim,madeirasnobresqueanteseramabundantes.Juntoaosvaqueiroslivres,trabalhavamescravos,homensemulheres.Osde

serviçotrabalhavamnasdiferentesatividadesdafazenda:roçar,abrirpicadas,destocar,semear,serviçosdomésticosetc.Havia,contudo,escravosvaqueirosdivididos, juntocomos livres,porsuautilidade:“Vaqueirocabeçadecampode gado ou vaqueiro cabeça de campo d’éguas.” Havia os curtidores e os

serventes. Segundo os mesmos viajantes Spix e Martius, de passagem peloPiauí,em1820,paracadamilcabeças,bastavamdezescravos.Essesúltimospodiam criar e comercializar pequenos animais e cavalos, dominando, noséculoXVIII,essaúltimaatividadenosertãobaiano.Osforrosrapidamentesetornaram curraleiros de partido ou passadores de boiada. Eles tinham seusprópriosgruposdevaqueiros,cavaloseescravos.Eramcontratadosparalevarrebanhos do interior das capitanias de Pernambuco, Ceará, Bahia e Piauí aomercadodeCapoame,a8léguasdeSalvador.Ouseguiamportrilhasdifíceisao longodo rioSãoFrancisco, para vender gado emMinasGerais, a preçosmaisaltos.Casamentos ou uniões consensuais entre homens e mulheres escravos

também garantiam relativa estabilidade familiar nas fazendas de gado. Dascriançasnascidas, a grandemaioria era empurradaparao trabalhono campodesde cedo, e muitos meninos aos 7 anos aparecem nos documentos comopequenosvaqueiros.NoPiauí,comoemoutrasáreassertanejas,onúmerodelibertoseraalto,confundindo-seosex-escravoscomorestantedapopulação.Quem tinha menos de oitenta reses era considerado “pobre”. Os animais

eram utilizados até a exaustão. A carne verde alimentava cidades emPernambucoeBahia,mastambém,viarioSãoFrancisco,aspopulaçõesqueseinstalaram,desde finsdo séculoXVII, emMinasGerais.Ogado tinhaaindaoutras funções: seu couro servia para ensacamento da produção de fumo,matalotagem de alimentos nas viagens ultramarinas, fabricação de bruacas,surrões, laços e chinchas. Nas fazendas açucareiras, cordas de couro eramcomumenteusadas,querparaalavragemdascanas,querparaviraraspesadasrodasdosengenhos.Natradiçãopopular,ogadoserviaaindaparacaptarasdoenças.Quandodas

pestesnaBahia, soltavam-se,pelas ruas,boisevacasnaesperançadevê-losdissiparaepidemiaqueatacavaaspessoas.

“Seriadifícilexprimirporpalavrasasdiversasespéciesdeformigasquesãodeváriasnaturezasenomes,porquenalínguabrasílicaémuitousadodar

nomesdiversosaespéciesdiversas,e rarasvezessenomeiamosgênerospornome próprio [...] quanto às formigas, só parecem dignas demenção as quedestroemasárvores,denomeiçá,arruivadasque,esmagadas,cheiramalimãoe cavam para si grandes casas debaixo da terra. Na primavera, isto é, emsetembroedaípordiante,fazemsairoenxamedefilhosquasesemprenumdiaseguinteaodachuvadostrovões,sefizerbomsol.”AqueixafoiregistradaemcartapelopadreAnchietaem1560,quandonão

faltavam inimigos naturais no caminho dos colonos. Das terras, poucoarrancadashaviapoucohaviapoucoàMataAtlântica,emergiamproblemasdedifícilsolução.Insetossemultiplicavameavariedadedascondiçõesclimáticasensejavaaadaptaçãodemuitaservasdaninhasefungos.Masamaiorpragaeramesmoadasformigas,queexistiamem“prodigiosaquantidade”.JánoséculoXVI, os portugueses apelidaram o inseto de “rei do Brasil”. Em carreirascerradas e ondulantes, dia e noite, elas devastavam tudo dentro ou fora dashabitações.A espécie alada alojava-se “na terra, como toupeira e devasta assementeiras”.A ussaúba, como a chamavam os índios, cortadeira ou saúva, relata-nos

GabrielSoaresdeSouza,“éapragadoBrasil...Vêmdemuitolongeànoiteese as roças e árvores estão cheias demato de redor não lhe fazemmal,mastanto que as veem limpas, saltam nelas de noite e dão-lhe com as folhas aochãoqueépara levarparao formigueiro;enãohádúvidaque trazemespiaspeloscampos”.Econclui:“NoBrasilsedátudooquesepodedesejar,oqueestamaldição impede, demaneira que tira o gosto aos homensdeplantaremsenão aquilo que não podem viver na terra.” Embora as plantas crescessemcom facilidade, as formigas “em uma noite lhe cortam a folha e o fruto e olançam por terra”, queixava-se o cronista, repetindo o lamento de muitosagricultores.Não se tratava de um depoimento isolado. A luta diária de nossos

antepassados era mais contra elas do que contra seus semelhantes. PadreAnchieta não poupava palavras para caracterizar o inseto minúsculo enumeroso.Num relato coalhadopor pessimismo frente ao terrível inimigo, omissionário revela que este inseto nefasto comprometeria a própria expansãodemográficapordestruira lavoura.Paramuitos lavradores,as formigaseram

um dos principais fatores limitativos à transferência de regimes agrícolasestrangeiros. Nos Diálogos da grandeza do Brasil, de 1618, pela voz doprotagonista Brandônio, Ambrósio Fernandes Brandão atribui a elas a nãoprosperidadedaproduçãodevinhonoBrasil.Guilherme Piso, médico holandês, também no século XVII, lamentou a

presençadasformigasnoNovoMundo:“ProduzinfelizmenteoBrasilimensoexércitodeformigas,eestasdeváriaespécie;pois,comoalgumasigualamemtamanho as europeias, a maioria delas são três vezes maiores e onívoras.Alimentam-sedepeixes,carne,hortaliçasefrutos(sóseabstêmdosácidos),eaté de insetos venenosos, escorpiões, escolopendras, ratos silvestres equejandos, sem risco.Sou testemunhaoculardequevoamrapidissimamente,oucavamaterracomoastoupeiras,enãopoupamosterrenossemeados.”Na florestaprimária, tais formigassãoumaentreoutras tantasespéciesem

competiçãoe,porisso,seucrescimentoélimitado.Masemterrenoscultivados,e à medida que as queimadas vão afugentando seus predadores, formam-secolônias conexas que podem ocupar parte considerável dos camposagricultáveis. Como bem dizia Toledo Rondon, um funcionário colonial doséculoXVIII,asformigascomiammaiscapimdoqueogado!Ofatodequeemnovos trechosde floresta tais formigaserammenosvisíveis fezcomque,para se combaterem as cortadeiras, mais e mais faixas de mata fossemqueimadas.Não faltou nem um “pleito entre os religiosos menores da província da

Piedade,noMaranhão”easformigas.Segundoosfrades,osinsetosdiaenoitefurtavamafarinhadepãoguardadanosceleiros.Mascomonãopodiamfazermal aos animais, mesmo os insetos, considerados irmãos por são Francisco,resolveramprocessá-los.Oprocuradordosfradesapresentouumlibelodizendoque em vez de trabalhar ou viver de esmolas, as formigas roubavam,procedendocomoladrões.Jáemfavordasacusadas,oprocuradoralegouque,deacordocomosmeiosquelheacordaraoCriador,elasdavamaoshomensoexemplodasvirtudes:dadiligência,aoguardarparao tempodenecessidade;decaridade,ajudandoumasàsoutras,edapiedade,poisdavamsepulturaaosmortos de sua espécie. Depois das competentes réplicas e tréplicas, saiu asentença final: que fossemos frades obrigados a dar sítio competente para avivenda das formigas. Ao final do século XVII, segundo o padre ManoelBernardes, presbítero da Congregação do Oratório de S. Filipe de Nery, os“animalejos”, formando “longas e grossas fileiras”, deixaram suas antigasmoradasseguindoparanovoendereçoe“livresdesuamolestíssimarepressão,

aquelessantosreligiososrenderamgraçasaDeus”.O desmatamento atingia os animais capazes de ajudar no controle dos

formigueiros,comopássaros,morcegos,cobrasetamanduás.Aocontráriodastrês primeiras espécies, também vistas como pragas, a última gozou de boareputação, sendo descrita desde os primeiros tempos coloniais. Um cronista,por exemplo, descreveu o tamanduá com o nome de “Irara [...] animal dotamanho de um gato, de cor negra, focinho comprido, a boca de feição decoelho,cujoverdadeiromantimentosãoformigasedelassesustenta[...]Usaparaoefeitodeumaestranhainvenção,aqualéquevaibuscarosformigueiroseoutroslugaresporondecostumamaandarformigas,eali,lançadoemterra,bota fora da boca a língua, a qual, por ser muito comprida, e ter muitaviscosidade, se cobre incontinenti de formigas que, uma atrás outras,concorremabuscarocevo,e,comoobichosentequeseajuntaramjámuitas,recolhe a língua para dentro, com levar nela um arrazoado bocado, e, elecomido, tornaa largá-laoutravez, emuitas até se fartardo seumantimento,queporoutramaneiranãolheédificultoso.”Asfrequentesqueimadassómultiplicaramapragaquesefaziaacompanhar

de ervas daninhas. As térmitas, chamadas de kupia pelos indígenas econsideradas “tão prejudiciais quanto as formigas”, com elas eramconfundidas.“ProliferamnoBrasilváriasespéciesdeinsetos,algunsdosquaisatingem quatro dedos de comprimento e uma polegada de espessura”,lamentavam os primeiros colonos. Os jesuítas também tinham queixa degafanhotos, bicho, segundoeles, que “estraga tudoquanto existe, demaneiraque, se há aqui pecados, também não faltam castigos”. De fato, não faltavaquem acreditasse no poder do clima em influenciar de maneira negativa afauna, pela procriação de espécies que comprometeriam a colonização.Anchieta,porexemplo,pensavaqueaexistênciadeserpentes,ratos,morcegosearanhasdecorriadoexcessodecalornostrópicos.A cana-de-açúcar, por sua vez, alvo dos maiores investimentos durante

séculos de colonização, conhecia um inimigo mortal: certo “verme negro”,chamado pelos portugueses de ”pão-de-galinha”, que infestava os canaviais,segundo relato do holandês Nieuhof. Em terrenos úmidos, ele destruía eatacavaas raízesdagramínea.Peladescriçãopode-se tratardocascudo-pretooubicho-bolo,masconvémlembrarqueomaiorinimigodaespécieéabroca-de-cana,insetodehábitosubterrâneo,moradordesolosprofundos,ecapazdedevastarosistemaradiculardacana,perfurando-aemtodosossentidos.O tabaco utilizado na compra de escravos africanos tambémera devastado

pelas pragas. No início do século XVIII, Antonil recolheu informações arespeitodesseproblema:

Plantam-seemcovasdeumpalmo,quandocavaaenxadametida;eestasseenchemdeterrabemestercadaecomvigilânciaecuidadosecorreaditaplantatodososdiasparaversetemlagarta,eessalogo se mata, para a não comer, sendo tenra. Os inimigos da planta são, ordinariamente, além dalagarta,aformiga,opulgãoeogrilo.Alagarta,empequena,corta-lheopéouraizdebaixodaterra,e,emcrescendo,corta-lheasfolhas.Omesmofaztambémaformiga,eporissosepõemnosregos,ondeessaaparece,outrasfolhasdemandiocaouaroeira,paraquedelascomamasformigasenãocheguema cortar e comer as do tabaco que, sendo cortadas desta sorte, não servem. O pulgão, que é ummosquito preto, pouco maior que uma pulga, faz buracos nas folhas, e estas, assim furadas, nãoprestam para se fazer delas torcida.O grilo, enquanto a planta é pequena, a corta rente da terra, e,sendojácrescida,tambémseatreveacortar-lheasfolhas.

A cada nova espécie vegetal introduzida pelos europeus, observava-se osurgimento de nova praga. Nem amodesta produção de trigo colonial ficouimune.AferrugemfezsuaapariçãonoRioGrandedoSul,emáreasnasquaiscolonosaçorianostinhamdesenvolvidocultivaresdetrigonosfinaisdoséculoXVIII. Tempos mais tarde, Saint-Hilaire a registra, explicando que o trigo-crioulo, variedade entãoutilizada, tinha sido substituídopelo trigo-brancooutrigo-mouroparaescapardapraga.Oácaro,comcorpoemformadevírgula,coloraçãoamarelaeparda,temsuamaiorincidêncianoverãoeédisseminadopelovento.Nemfolhasnemsementesresistemaseuataque.Os cultivares de arroz, por sua vez, sofriam inúmeros danos causados por

outros tantos insetosdaninhos,comoa lagartaeopulgão.Aliás,esteúltimo,também chamado de percevejo-de-colmo, mas mais conhecido comocangapara, explica um especialista, ainda é muito comum nos arrozaismaranhenses, tendo a aparência de uma pequena tartaruga de igual nome ecomumnabaixadamaranhense.Tudoindicaqueosgrãoseramocampoidealparaaproliferaçãodessesinimigosdoagricultor,atraindotambémpássaros.Onaturalista Alexandre Rodrigues Ferreira menciona o ataque de “graúnas,certospássaroscomoosmelrosdoreino”.Senhoradevozmelodiosaemuitoconfundidacomopássaro-preto,agraúnaéhabitantedecamposdecultura,oqueexplicaocomentáriodonaturalista.De fato, os cultivares de arroz gozavam de péssima fama. Os terrenos

alagadosondesecultivavaocerealeramtidosporinsalubreseseachavaqueoarroz contribuía para as então chamadas infecções palustres. Não faltaramautoridadescoloniaisproibindoosarrozais,porconsiderá-losumproblemade

saúdepública,sómudandotalquadroapartirdoséculoXIX.Umcasoilustrabemo temor que se tinha: dentre os açorianos enviados pelametrópole paracolonizarSantaCatarina eoEspíritoSanto, entre1748 e1754,muitosdeleschegaram infectados com o germe da malária. Os estabelecidos na Vila deViana, Espírito Santo, apresentaram os primeiros sinais da doença, quandoplantavamarrozais.Depoisdasprimeirasmortes,nãodemoroumuitoparaoscolonossobreviventesfugirem.Ogovernoseviuobrigadoaimporseuretornoàforça.Nasregiõesinterioranas,ondeomilhosubstituíaamandiocacomoalimento

básicodehomenslivreseescravos,asavespassavamdacondiçãodeamigaspara a de inimigas, tornando-se uma temerosa praga. Em Serro Frio,MinasGerais, os vereadores, em 1755, alarmaram-se como “grande dano que lhesfazem os pássaros-pretos e outros mais [...] aos milhos e mais alguns queplantam”.Determinou-se, apartirde então,que todosos lavradores levariamanualmente às autoridades “‘duas dúzias de cabeças desses pássaros’ e, casonãocumprissemadeterminação,deveriampagaramultade6milréis”.Outrograndeperigoeramosratos.Elesnãosódisseminavamdoenças,como

também atacavam a colheita estocada em paióis e galpões. Para ficar numexemplo,ailhadeFernandodeNoronha,habitadaporholandesesporvoltade1630,foiarrasadapelosroedores,quedevoravamtantoascolheitascomoseusresíduos.Em carta à Holanda, datada de 1634, Willem Joosten Glimer refere-se a

“umaterrívelpragaderatos”queteriatudoaniquilado.Tambémhaviaqueixasde que no continente os ratos eram numerosíssimos. Eles se multiplicavamprodigiosamentequandoobambufrutificavae,umavezexaurido,voltavam-separaomilhoarmazenado.Havia ainda aquelas pragas que não prejudicavam as plantas, e sim os

trabalhadores.Um temor de escravos e trabalhadores livres era o número derépteis desconhecidos, sobretudo de serpentes, nos canaviais. Odesconhecimentodeofiologia incentivoucronistasdo iníciodacolonizaçãoafazer listas extensas nas quais constavam cobras “espantosas e medonhas!”.Desde cascavel, jiboia, surucucu, caninana e jararaca, até a boicupeganga,descritapelopadreCardimcomo“tendoespinhospelascostas,muitograndeegrossa”, a crença na existência de serpentes de duas cabeças e voadorasaumentavamuitoomedodoscolubrídeos.Emmeadosdo séculoXVII,GuilhermePisomostrouque adestruiçãodas

matas,econsequentementedos inimigosnaturaisdascobras,sófezcrescero

problema. Em lista escrita em delicioso tupi, ou “língua geral”, o autoridentifica as seguintes espécies: “Boiçinininga, boiçuciba, surucucu,çurucutinga,ibiracoá,boiguaçu,ibibobóca,boiábi,cacaboia,caninana,bitiapó,jararaca, iararaepéba, abiiaram, amorepinima,manúma, tareiboia, çucuriiu...”Dentre elas, amaismedonha era a “boiçinininga: a esta tãoperniciosa cobraparece ter a benévola natureza, como por precaução, ajuntado um chocalhopara que, advertindo por este som, seja o homem, seja o gado ou jumento,livre-se a tempo do inimigo próximo.” Trata-se da cascavel, cuja lendáriaforma de ataque alimentou o imaginário colonial: “Metida a extremidade dacaudanoânusdohomem,causa-lheimediatamenteamorte;oveneno,porém,quedeitadabocaoudosdentes,tiraavidamuitomaisdevagar...”

RépteisdoBrasil:umaameaça.JONSTON,John.Historiaenaturalisdequadrupetibuslibri.NEWYORKPUBLICLIBRARY:FRANCOFURTIADMOENUM,1655.

Contra as cobras, a medicina colonial possuía um vasto, mas precário,arsenal de medicamentos. Conta Nieuhof que “o melhor remédio que osbrasileirosconhecemcontraovenenodestacomodeoutrasvíboraséacabeçadopróprioréptil, reduzidaaumaespéciedepasta,numalmofariz,eaplicadasobreamordedura”.Aspartes feridaspodiam tambémser lavadascomsalivaequeimadascom

ferroembrasa.Porém,oconvíviodiáriocomvariadalegiãodevíborasacabouporgerarumaimagemambíguaarespeitodelas.Nãoàtoaofolcloredacanaincorporou a imagem da cobra, no mito da “serpente dos canaviais”:gigantesca, dona de inúmeros olhos capazes de enxergar no escuro e donaimperialdaplantação.Elaeraaguardiãdoscamposatéalavouratransformar-seemaçúcar.Nasnoitesdevento,achorosavozdequeixaqueseouvia,assimcomoourromedonho,eradela.Ocanavialerapadroeirodeoutrosserespeçonhentos.Ostrabalhadoreslivres

e escravos sofriam com eles. Havia lacraias, aranhas, escorpiões, baratas,pulgas, carrapatos, percevejos e diversos tipos de ácaros. As condições detrabalho precárias tornavam ainda mais danosa a ação desses bichos. Aausência de calçados, por exemplo, facilitava a proliferação do “ainhum” –também denominado de “bicho-de-pé, bicho-de-porco, bicho-do-porco,espinho-de-bananeira, jatecuba, nígua, pulga-de-areia, sico, taçura, tunga,xiquexique,zungue,zunga,zunja”–,parasitahematófagoqueroíavorazmenteos dedos dos pés, mutilando homens, mulheres e crianças. Os mosquitos epernilongos, por sua vez, causavam outros estragos cotidianos: “Estesmolestíssimos insetos”, informaGuilhermePiso,“são temidoscomrazãoportodos os habitantes, tanto atormentam e picam os agricultores que infestamcomsuamordeduradolorosanãosóosmembrosnus,mastambémosvestidos,lembrando as pontas das agulhas.” O suplício era tão grande que algunssenhoresusavamaexposiçãoaoinsetocomoumaformadecastigo:“Lembro-medequeunsetíopes[ouseja,escravos],amarradosaumpau,deordemdoseu senhor, e assim deixados por uma noite inteira (gênero espantoso desuplício), no dia subsequente estavam tomados de delírio só pelas dores etormentosdaspicadas.”Dospântanosemanguezaissupunha-seemanarpequenosseresnãovisíveisa

olho nu, os quais, aspirados pela boca ou nariz, acreditava-se causarem asfebres palustres. Somava-se a essa crença uma outra: a de que répteis ebatráquios podiam envenenar as águas e que este veneno, transmitido por

inalação, causava febres. Certos sintomas da malária ou da febre amarela,constante em nossas terras litorâneas, tinham, aos olhos dos antigos,semelhança com os sintomas de envenenamento por picada de serpentes. Odesignativo “serpentária”, que eles emprestavam a tais formas graves dadoença,comoàfebreamarela,éreveladordessetipodementalidade.As picadas mortais também podiam advir de marimbondos, na época

denominados“vespas”ou“vespões:osinfestadíssimosenxamesdevespas,quefazemninhosnasárvores,gostamdeperseguirosgadoseosviajores,queasevitam; irritadas, nãopoupamasmanadas de cavalos.Por causa do tamanhodiverso e da discrepância da cor, são-lhes dados diversos nomes pelosindígenas [...] As maiores de todas são as copueruçu, que nidificam nascavidadesdasárvores;aestassucedemasuruperâna,depoisasaiçâva,negrasepequenas, como também as tupeiçava, negras igualmente e as menores detodas.Aferroadadasduasúltimasémaishorrendaqueadasoutras.Todassãodenominadasporumsónome,mariposasoumaribundas,pelosespanhóis”.

Quandooinexplicávelacontecia:calamidades

Calamidades de ordemmeteorológica constituíam ameaças no cotidiano doscolonos.Se,deumlado,achuva tinhaumpapelpositivo–deladiziaFreyreser“tãoamigadas terrasgordaseúmidas”, fazendocrescer, felizes,ascanasdentrodeumaatmosferacheiadevapordeágua–,ascheias,deoutrolado,ouas secas de rios, eram cuidadosamente vigiadas. As primeiras, quandoocorriam, cobriam canaviais, matavam gado e até gente. Quando eram“brabas”, devastavam a lavoura e a pecuária, tanto no Nordeste quanto noSudeste.Em1641,porexemplo,“caíramchuvastãocontinuadasefortes,semintervalos, que se encheram os rios, inundando por toda a parte as terras earrebentandoasplantaçõesnassuaságuasevoragens”.Rompendo e superando osmarachões, a cheia cobriu os campos que eram

transitados por navios e os lavradores faziam ofício de marinheiros. Foramlamentáveisasmortesdehomensedeanimais,principalmenteàsmargensdoCapibaribe.“As canas-de-açúcar, novas e ainda em erva, ficaram afogadas e as mais

crescidas,prejudicadascomafrialdadedaágua,enganaramasesperançasdossenhoresdeengenho,poisunsvermezinhosnascidosnaágualhesroíamtodoo

miolo”, conta-nos o holandês Barléus, referindo-se, provavelmente, a pragascomoabroca,ogorgulhooualagarta-militar,quetambématacavamascanas.NoMaranhão, em 1769, amaior cheia conhecida do rio Itapicuru arrasou

terras e plantações de abril amaio, e provocou uma epidemia de febres quedizimoucercade20%dapopulação ribeirinha.NabaciadeCampos–outroexemplo–,oParaíbacostumavafugirdoleito,unindo-sealagoas,banhadosealagadiços, depois das pesadas chuvas que se abatiam sobre a região, denovembroamarço,formandoumúnicoepoderosocaudal.Quasenadasobravadessasenchentes.Roças ficavamdevastadase fazendeiros ilhados,quandoaságuasarrastavampontesqueligavamazonaruralaolitoralurbano.Eisporqueomautempotinhaqueservigiado,espreitado,controlado.Eele

se anunciava, segundo a tradição popular, pelo pio dos pássaros: o papo-d’água, o carão e o soco-boi. Ter o ouvido atento ao aviso da passarada eoutrossignosdanaturezaajudavaocolonoaseprevenir.Umcãorolanochão?Anúncio de tempestade violenta. Um disco avermelhado envolve o sol aoamanhecer?Chuva.Omesmopavorsetinhadassecas.Quandoocorriam,multiplicavamimagens

desoladoras:açudesvazios,lavourasperdidas,animaismortosdesede.Quandofaltavaáguanachamada“quadrachuvosadosnordestinos”–fevereiro,março,abrilemaio–,oscanaviaisamarelavam,sobopesodascanasdobradas.Emoutrasculturas,comoomilho,sefaltavachuvanafasedoespigamento,

asperdaseramtotais.Nessasépocas,oscolonosfaziamromariaseinvocavamorações: “OhDeus, em ti vivemos, nosmovemos e estamos; concede-nos achuva necessária, para que, recebendo a ajuda precisa na necessidade, commaiorconfiançaesperemososbenseternos.PeloNossoSenhorJesusCristo.”Edepoisdascomunhões:“Terogamos,Senhor,nosenvieumasaudávelchuvae tem a bondade de irrigar a face da terra com torrentes celestiais.” Nãofaltavamoferendasaossantosdedevoção,rezaseoferendas.O desmatamento e as chuvas poderosas acabaram por erodir as matas

ciliares. Uma das primeiras consequências foi o empobrecimento dos solos,levados pelas águas dos rios. Tentou-se o plantio de árvores para conter adevastação.Outroproblema,nocasodoNordeste,foiofogodosincêndios.Osíndios,comovimos,utilizavamofogonacoivara.Talpráticafoicopiadapelosroceirosetambémimplementadapelosfazendeirosdecana-de-açúcar.Nãoerararo, porém, a prática fugir ao controle. Durante a Guerra da Restauração,quilombolas, em resposta a perseguições que lhes moviam seus senhores,tambématacavamequeimavamasplantações.Oincêndiopropositadoerauma

estratégiadelutacomterríveisdesdobramentosecológicos.

As inclemênciasdo céu sãooprincipal inimigoque temas canas [...].Os canaviais nosouteirosresistemmaisàschuvasquandosãodemasiadas,porém,sãoosprimeirosaqueixar-sedaseca.Pelocontrário,asvárzeasnãosentemtãodepressaaforçadoexcessivocalor,masnaabundânciadaságuaschoramprimeirosuasperdas.AcanadaBahiaqueráguanosmesesdeoutubro,novembroedezembroepara aplantanovaem fevereiro, equer tambémsucessivamente sol, oqual comumentenão falta,assim não faltassem nos sobreditos meses as chuvas. [...] Porém, o inimigo mais molesto e maiscontínuoedomésticodacanaéocapim,pois,maisoumenosatéaofimapersegue.Eporisso,tendooplantareocortarseustemposcertos,olimparobrigaosescravosdoslavradoresairemsemprecomaenxada namão e, acabada qualquer outra ocupação fora do canavial, nunca se mandam debalde alimpar.

“E, ainda que só este inimigo baste pormuitos, não faltam outros de nãomenorenfadoemoléstia”,arrematavaAntonil,emseuCulturaeopulênciadoBrasil,em1711.Paranossosantepassados, “medo”queriadizero seguinte: “Perturbaçãoda

almaporcausadeapreensãodeummaleminente.”Emedosnãofaltavam,poisnão era só no campo das coisas práticas que moravam os temores. No dasrepresentações mentais, habitavam crenças que, por serem temidas, eramtambémrespeitadas.Oaparecimentodecometas,talcomooquecruzouocéudoBrasilem1666,

eraconsideradoaziagoparaoscultivares.Acreditava-se,então,quetaissinaiscelestiais anunciavam maus presságios. Segundo um cronista, eles eramsinônimode“ruínadasrepúblicasedosviventes”,umanunciadordeestragos.RochaPitaoentendeu,aoatribuirapestedebexigasouvaríolaàpassagemdeum “horroroso cometa que, por muitas noites tenebrosas ateado em vaporesdensos,ardeucominfausta luzsobreanossaAméricae lheanunciouodanoqueiasentir”.Em1685,assistiu-seaum“tremendoeclipsedalua,quenaquelaprovínciadaBahiaseviucomhorror[...]umacapadechamascobriuamaiorpartedeseuvastíssimocorpo”.O fenômeno foi interpretado comoprecursor de pestes, que teria dizimado

escravoselavradores,alémdesidoresponsávelpordesastresagrícolas.Tantaspreocupações com a meteorologia faziam com que os senhores de engenholetrados redigissem diários, ou borradores, como eram chamados, em queanotavam os ciclos de chuvas e de secas.Um deles,AntônioGomes FerrãoCastelo Branco, dono de canaviais decadentes no Recôncavo, registrou, porexemplo, suas observações num caderno intituladoModo de saber se fará

chuvaousolnosdozemesesdoano.Eneleperdia-seemcálculosbaseadosnascondições meteorológicas dos doze primeiros dias de agosto de 1755,projetando-as para 1756.O cuidado comque calculava e descrevia possíveischuvas,secas,ventose trovoadasrevelasuanecessidadedeordenarpreceitosdeação,resignaçãoouesperançaemrelaçãoaosseuscanaviais,permitindo-lhesearmarcontraospossíveisinfortúniosasurgirememseucaminho.Paracálculosmeteorológicos“eficientes”,usavam-secomobaseosLunários

perpétuosouPrognósticos.Verdadeirasaliadasdo tempoedasestações, taispublicaçõesserviamcomoguianasetapasdetratoagrícola:tempodesemear,tempodeedificar,decolheroudestruir.Foramoslivrosmaislidosnossertões.Nãohaviaautoridademaiorparafazendeiros,eosprognósticosmeteorológicoseuropeus,mesmo semmaiores exames pela diferença dos hemisférios, eramacatadoscomosentenças.Naformadefolhasvolantesoudeobrasimpressas,eramcomumentecomercializadosnacolônia.OLunário,deJerônimoCortês,publicadonoséculoXVIII, informava,por

exemplo, que, segundo Plínio, janeiro era mês bom para cavar e misturarestrumesdosdiferentesanimaisetambémparalavrarterrasforteseargilosasdasgrandesculturas,nocaso,acana-de-açúcar.Nos lunáriosseencontravam“avisos importantes para os lavradores”, do tipo: “Dizem alguns autores quepara as colheitas serem boas” é preciso que “a lua nova esteja em Touro,Câncer, Virgem, Libra ou Capricórnio”. Há ainda “segredos mui curiosos eúteisparaoslavradores”etratadosdeastronomiarústicaepastoril,emqueseindicavamsinaisdeterremotos(“quandopassarcometadecornegra,vermelhaou verde”), de peste (“quando o vento sul sopra e não chove”), de carestia(“quandochovermuitono inverno”),deventos (“quandoasestrelasparecemmaioresdoquecostumado”),entreoutros.OviajantefrancêsAugustedeSaint-Hilaireaindaregistrouapermanênciade

taistradiçõesentreosagricultoresdoEspíritoSantonoiníciodoséculoXIX.Batataemandiocaeramplantadasduranteafasedequartominguante.Arroz,milho, feijão e cana-de-açúcar, só na lua nova. O naturalista acreditava queessa convicção atravessara o Atlântico com os europeus, sendo igualmentecorrentenasAntilhas.Segundoele,acrençageneralizadanainfluênciadaluaera combatida, nessa mesma época, por naturalistas e agrônomos, mas nãohaviaunanimidadenassuasopiniões;daíteremrecomendadoacontinuaçãodeexperiênciassobreoassunto.TambémRichardBurton,cônsulinglêsemSantos,observouqueemMinas

Gerais, na época de seca, os agricultores levavam pedras na cabeça, de

determinado lugar para o cemitério.Quando a seca se prolongava e omilhocomeçavaaembonecar,molhavam-seoscruzeirosaomeio-dia.Recursoeficazpara chamar chuva era contrariar os santos, trocando-os de seus oratórios oucapelas.Enquantonãocaíaágua,nãovoltavamaosseuslugares.Chuvasfortesseanunciavampelogritodomacaco-guariba,ocantodobem-te-vi,agritariamaisaltadossaposouarevoadadeborboletasemlugaresúmidos.Paranossosantepassados,anaturezaeraumlivroquetinhaqueserdecifradoelido.

DEBRET,Jean-Baptiste.Calateiros[Aquarelasobrepapel}.1824.MUSEUCASTROMAYA.

OBrasil tinha portos coloniais dos mais bem localizados do mundo. AsfacilidadesdeintercâmbiocomEuropa,América,África,ÍndiasOrientaise

as ilhas dos mares do Sul indicavam um grande elo entre o comércio dasvariadasregiõesdoglobo.Enquadradaporautoridadesemercados,avidaalicaptada esquentava, nutria e iluminava o gigantesco corpo social que semovimentavaemsuasruas.Mas omais importante era o doRio de Janeiro.Ali, havia ruas cheias de

edifícios,“nogeral,dedoispavimentos...Asparedessãobemconstruídasdegranito; as soleiras, umbrais, vergas e esquadrias são de quartzo maciço,trazido da Bahia. Os tetos são cobertos por telhas tubulares. O pavimentoinferior é, em geral, ocupado pela loja ou armazém; o segundo e o terceiro,quandoexiste,pelosaposentosdafamíliaparacujoacessoexistemcorredoresestreitos e compridos”, conta-nos o comerciante inglês John Luccock, quedesembarcaranoRioem1808,comaintençãodemercadejar.Semprefocadosnocenárioarquitetônico,osprussianosVonLeitholdeVon

Ragoqueixavam-sedequeoúnicopasseioparaoshabitantes eraumapraçajunto aomar que, pelo traçado dos canteiros, mais parecia uma horta.Mas,dizia Schlichthorst, ex-tenente de granadeiros alemães do exército imperial,depoisdavindaded.JoãoVIascasasjáganharammaisumoudoisandares.EErnest Ebel, viajante austríaco, acrescentava que algumas possuíam gradisdourados à imagem de balcões franceses. Apenas sete anos depois dodesembarque, a cidade já tinha se transformado, graças amelhoramentos emtodaacapital.“Elamuitoperdeudesuaoriginalidade”, informavaopríncipeMaximilianodeWied-Neuwied,referindo-seaostais“bisonhoscostumes”dopadrePerereca,“tornando-se,hoje,maisparecidacomascidadeseuropeias”.

Tatuagem:marcasdaidentidadeafricana.Tiposafricanos[Iconográfico].

S.L./S.D.

Mudanças? Sim. Antes da presença da família real, chamava atenção aproeminênciadasjanelassuperioresfeitasdetreliça,omuxarabiêdeinfluênciaoriental,cujosinterstíciosserviamparaapassagemdear.Contudo,taisjanelastornavamasruassombrias,tendo,poisd.João,entãoregente,mandadoreduzi-las a balcões modernos, abrindo mercado direto para os vidros vindos deManchester.Ànoite,asruaspassaramaserrelativamentebemiluminadasporinúmeros lampiões e viam circular patrulhas de três a quatro soldados,refletindo a presença da recém-criada IntendênciaGeral de Polícia daCorte.Palavras como “civilidade” e “urbanidade” foram incorporadas ao cotidianograçasaessaforçaquecuidava,também,doabastecimento,deobraspúblicasedasegurançaindividualecoletiva.Mas registradas as impressões sobre osmonumentos de pedra e cal, o que

dizerdasatividadesedagentequeaquimorava?A repetiçãoquemarcavaaconstruçãodocotidianodamaiorpartedosmoradoresdaCortetinhaseuritmo.Interesses,exigênciasenecessidadesmoldavamapassagemdo tempo:“Bemcedo, às cinco horas, começa o espetáculo. Primeiro um retumbante tiro decanhão da ilha das Cobras estremece as janelas e obriga-me a despertarconquantoaescuridãoaindasejatotal.Àscincoemeia,umcornetadaguardapolicial,vizinha,soaaalvoradademaneiradissonante!Logoaseguirbadalamos sinos por toda a cidade, especialmente os da Candelária, tão ruidosa edemoradamentecomosequisessemacordarosmortos.Nosdiassantos,soltamrojões às dúzias para que os fiéis não durmamà primeiramissa.Às seis empontopassamospresosabuscarágua,rangendoascorrentes.Ospapagaios,dequeas redondezasestãocheias, soltamseusgritosestridenteseantesmesmodassetearalédoscangueirosevendilhõesjáestádepéatagarelareberrar”,conta-nosErnestEbel.Omesmohorário rígidomarcava, também,odiaadiadosambulantes.As

vendedorasdecafésaíamàsruasàsseisdamanhãepermaneciamatéasdez.Osvendedoresdecapimparavamdecirculartambémàsdezedaíparafrentesó exerciam suas vendas na Praça do Capim. As vendedoras de pão de lótinhamquefazê-loantesdaceia,ouseja,doalmoço.Impressionavao númerode negros escravos e livres circulandopelas ruas,

dandoaosforasteirosaimpressãodeterdesembarcadonaÁfrica.Masnãoerasó de lá que eles chegavam, vindos daCosta daMina,Congo e,mais tarde,Moçambique e Angola. Também negros, escravos ou libertos, vindos, porexemplo, da América espanhola e confundidos aos trabalhadores livres

misturavam-se no labirinto da cidade. Entre eles, ranchos de audaciososcapoeiras cruzavam a Candelária armados de paus e facas, exibindo-se numjogoatléticoapesardaspenalidadesimpostas–muitaschibatadasaosescravosque “capoeirassem”. Carregadores e mulheres ambulantes, ligeiramentevestidas, transportavam toda sorte de mercadoria na cabeça: frutas, animaisvivos, pacotes, feixes de fumo, água potável, roupas sujas e limpas, tigres[comoeramchamadososbarris]comexcrementos.Nãoeraumamassauniformeestaqueeravistaoferecendo serviços, como

parecemenxergar os estrangeiros.Nela, os indivíduos se identificavampelossinais de nação, talhos e escarificações no corpo ou na face, os cuidadosospenteados que denotavam estado civil e pertença a determinado grupo, ospanos daCosta, o porte de amuletos, joias ou chinelas.O abadá, espécie detúnica branca, por exemplo, identificava um malê. O uso do camate, gorrocircular, sinalizava o adepto de rituais bantos para ancestrais, realizados namata, a cabula. O fez apontava os islâmicos. Contas enfiadas em palhas dacosta,asilequês,osfiosdeburiticommiçangasebúzios,osmocãs,conjuntosde sete, catorze ou 21 fios demiçanga unidos pelamesma cor, osdiloguns,tinhamfunçãosocialereligiosaeeram“lidos”àdistância.Asnegrasdeganho,comseusxalesazuis,traziamsobresiobjetosdecunho

propiciatório, buscando proteção, lucro e outras benesses. Esses objetos,dispostos na cintura por argolas individuais ou tiras de couro, erambolas delouça, figas, saquinhos de couro, dentes de animais e tambémmedalhinhas,crucifixos e outros símbolos cristãos relidos pela funcionalidade mágica desuas formas. Seus tabuleiros também iam protegidos por figas de madeira,imagens de Santo Antônio e pequenas moedas. Os vendedores de cestas seidentificavam pelo calção de algodão apertado na cintura, por uma cinta desarjadelãeumacamisaenroladaemvoltadocorpo.Asvendedorasdeangu,prato da culinária afro-brasileira, tinham que ter as vestes impecáveis. Asdiferentes“nações”deafricanoseseusdescendentesformavamfronteirasnãovisíveis aos olhos de europeus, organizando-se por meio de irmandadesreligiosas,pontosdeencontroesociabilidadecomooscantose,maistarde,oszungus, onde não faltavam tensões e violência entre membros de diferentesdiásporas.

Cortesdecabelo:marcasdaidentidadeafricana.DEBRET,JeanBaptiste,1768-1848.VoyagepittoresqueethistoriqueauBrésil.Tomedeuxième.

p.44.

Todaumasonoridade,hojedesaparecida,identificavaasformasinvisíveisdetrabalho que enchiam as ruas. Ainda é Ebel quem conta: “O barulho éincessante.Aquiumachusmadepretosseminus,cadaquallevandoseusacodecaféeconduzidosàfrenteporumquedançaecantaaoritmodeumchocalhooubatendodois ferrosumcontraooutro,nacadênciademonótonasestrofesque todos fazem eco; dois mais carregam ao ombro pesado tonel de vinho,suspensodelongovaral,entoandoacadapassomelancólicacantilena;alémdeumsegundogrupotransportafardosdesal,semmaisroupaqueumatangae,indiferentesaopesocomoaocalor,apostamcorridagritandoaplenopulmão.Acorrentadosunsaosoutros,aparecemacoláseisoutroscombaldesd’águaàcabeça. São criminosos empregados em trabalhos públicos; também vãocantando em cadência. Mais adiante, passam dois aguadeiros, aos berrosdesafinados,maisumanegravendedoradebananaseoutrasdeconfeitos–oschamadosdoces–apregoandoambassuasmercadoriastambémaosgritos[...].Tudoétransportadoàcabeça,noqueosnegrosdemonstramtalhabilidadequenenhumagotaderramadoslíquidos,istosemajudadasmãosesempreacantarou a berrar.O barulho é aumentado por uma tropa demuares, carregada decafé,aqualparaemfrenteàcasa,atravancandoarua;piorainda:eisquesurge

enorme carroça de duas rodas, levando material de construção, puxada porquatro bois que faz um ruído ensurdecedor – o das rodasmaciças a giraremcomoeixo–comoseserrassempedrasouferros.”

AsjoiasdasescravasDEBRET,Jean-Baptiste.Esclavesnègres,dedifférentesnations.

1822.

De fato, umamúsica que não se sabia se celestial ou infernal, marcava oritmo da cidade. Por cima de tudo, o som contínuo dos sinos lembrava quecabiaàIgreja,tantoquantoaotrabalho,mediarapassagemdotempo.Ashoraslitúrgicas, distinguidas por badaladas específicas, obrigavam os moradores àvivênciadecertosimbolismocatólico.Àsseishoras,eraoAngelus.Àsdozeanunciava-sequeodemônioandavaàsolta.Melhorrezar...Àsdezoitoeramasave-mariasnasesquinas,frenteaosoratórios,casoseestivessenarua.Tantostoquesparaumenterro,outrostantosparaumnascimento,Xparameninos,Ypara meninas etc. Ao peditório em altos brados dos mendigos, se juntavaaqueledosirmãosdeconfrarias,combandejasdeesmolaseimagensdesantosàmão,numacacofoniasemfim.Com relação ao domínio de uma profissão, valia mais aquele escravo ou

escrava habilitado do que o trabalhador braçal semqualificação.E dentre os

profissionais de maior valor havia os capazes de ganhar mais com o seutrabalho,comooalfaiate,opedreiro,a rendeiraeomarceneiro,eoutrosquegeravamboarendaparaseusenhor.Ohomemvaliamaisdoqueamulher.Nasessão“Avisos”dejornaiscomoaGazetadoRioouAIdaded’OuronoBrasil,anunciava-seavendadeescravos“quetinhamalgumacousadesapateiro”oudecozinheiro,entreoutrashabilidades.Oimportanteeranãoter“vícios”.Já a categoria das pessoas livres dividia-se em três grupos: os plebeus

comuns – a maioria –, os plebeus dotados de algum privilégio ou título denobreza que formavam a pequena elite colonial e o grupo emergente de ex-escravosoudeseus filhosmarcadospelaorigem.Nosdocumentoscartoriais,eclesiásticosoudeEstado,onomevinhaacrescidodacoredostatusjurídicoda pessoa. Assim, um ex-escravo era sempre um ex-escravo, como, porexemplo,certo“João,pardoforro”.Mobilidadesocial jáhaviae foraamplificadapeloaumentodeatividadese

serviçosexigidospela instalaçãodaCorte.Porexemplo,asbarbearias,pontodeencontroedeconversamasculina,atendiamseusclientescomprofissionaisqueacumulavamtrêsfunções:dentista,cirurgiãoebarbeiro.Trabalhohaviaemtodososescaninhosdacidade.Daruad.Manuelatéasencostasdoouteirodosfradesbentos,ondeestavasendoerguidoporelesoseumosteiro,eraapraiadoPeixe, lugar de atracação das canoas de pescadores e da comercialização dofrutodeseutrabalhofresco,oualimesmoporelessalgado.Algunspescadoreseramtãobem-sucedidosqueemprestavamdinheiroajuros,comofoiocasodoportuguêsJoséFrancisco,donodetrêslanchasdepescariaemalto-mar,senhordetrintaescravos.Aí também era grande o movimento dos trabalhadores em torno da

calafetagem de barcos, obstruindo juntas e frestas com piche e alcatrão.Misturados a esses especialistas da limpeza e reparação de cascos, negros enegrascaminhavamligeiros,cestosnacabeça,e,contaSchlichthorst,todosiamcantando,assobiandooufalandoentreeles.Muitoseramrepentistas,buscandoos motivos de seus versos no que os cercava: “Vou carregando pros meuspecados /maladebrancopraviajar /QuemderaaoTonho,pobredonegro /prasuaterrapodervoltar.”Na segundametade do século XVIII, a praia do Peixe tomara o nome de

“praia dos Mineiros” em razão do aumento do comércio com as Minasprovocadopela abertura doCaminhoNovo.Daí partiammascates e cometaslevando, serra acima, azeitedepeixe, sal equinquilhariasdeporta emporta.Vestidoscomounsfrajolas,emsapatosdefivelas,emeiasatéojoelho,mala

demadeiraàscostasenelasfazendasemeiasdependuradas, traziamnamão,servindo tambémdebengala, ummetro demadeira dividido emduas partes.Antesdaaberturadosportos,quasetodoseramportuguesesoubrasileiros,daíopovochamá-losdecaixeiros,porcausadascaixasquecarregavam.Depoisforam chamados dematracas graças ao ruído que faziam com ometro paraatrairaclientela.Entreeles,algunsestrangeirosaproveitavamasoportunidadesparapequenosnegócios.Leitholdrefere-seaummédicoprussiano,odr.Ritter,que fez fortuna no Rio vendendo porcelana importada de porta em porta.Enfatiotado,comumchapéuàclaquedecoradocomococarprussiano,tododepreto e usando sapatos de verniz, era seguido por um escravo que levava àcabeçaumtabuleirocomsualouça.MaisalémdoValongochegava-seaoMorrodaConceição,ondeseinstalara

o trapiche de São Francisco. Era um dos muitos galpões ou armazéns ondeeram depositados, sob controle do Estado, as caixas de açúcar vindas decamposoudeSantos.Arecepçãodoprodutosetraduziaemgestosrepetitivos.Aochegar, as tais caixasde açúcar eramperfuradasparaque se fizesseumaprovacabaldaqualidadeedotipodeproduto:redondo,meioredondo,batidooumascavado.Asdenominações,emseguida,erammarcadasnascaixas.Seupeso era inscrito em tintapreta.Haviaoutros trapiches, comoodaSola, porexemplo,paramercadoriasespeciaiscomopeles,farinha,trigoetc.Emtodos,umacolmeiadehomenstransportavafardos,pesava,auferia,marcava,anotava,assegurando as rendasmais importantes para aCoroa: aquelas derivadas dasalfândegas.Também ali perto, num terreno cedido pelos beneditinos, a Coroa tentava

melhorar as condições de suaMarinha.O cenário era o arsenal.Na parte debaixo, uma chusma de gente arrumava e organizava a munição. Na partesuperior, funcionários graduados, inclusive oficiais em uniforme – LordCochrane, aristocrata e destacado oficial da Marinha inglesa, entre eles –trabalhavam intensamente. Uma parte dos operários era constituída porcriminosos, brancos,mulatos e negros, algemados por pesados ferros.Outra,por meninos de rua ou enjeitados que, entregues ao serviço do Estado,trabalhavamdesdecedonoaprendizadodaartedemarinharia.Junto ao Arsenal – é sempre E. Ebel quem conta – estava o principal

logradouro para a locação de transportes por água, que eram de dois tipos:botes a dois e quatro remadores, providos de toldos de lona, e canoas, doformatodecochos, tripuladaspordoisnegros.Baratas,elas iama todaparte,inclusiveoferecendoprodutosalimentícioseáguaàsgrandesembarcaçõesque

aportavamnabaía.Dentrodelas,taistrabalhadoresidentificavammarinheiros,grumetes, contramestres e pilotos, europeus e africanos, livres ou escravos,com quem trocavam informações, recados e, sobretudo, mercadorias. Asrelações comerciais diretas entre o Rio de Janeiro e Angola facilitavam ocontrabando, aproximavam pessoas e produtos e, como já se sabe, abriambrechasnomonopóliometropolitano,que,hojesabemos,nuncafoitãorígido.No velho mercado ou nas suas quitandas – outra palavra banto –

acotovelavam-seervanários,ondepontificavamcurandeirosquecomerciavamervasmedicinais,com“ferrosvelhos”,ondesecompravaevendiatodaespéciede objetos usados, fossem camas ou roupas, panelas ou gargalheiras paraescravosfujões.Emtrajestípicos,aspretas-minasvendiampatuás,bonecasdepanoemisteriososfiltros.Os prussianos mencionam também as lojas onde se ofereciam gravuras

emolduradas,artigosreunidosemsérie,quinquilhariasfrancesasebrinquedos.Também meias brancas de seda, meias pretas, lenços para rapé, lençosrendados, chalés, fitas, peças de crepe de todas as cores, panos de seda,levantinaselinhos.No Campo de Santana, após a Aclamação, reinavam as lavadeiras. No

centro, um vistoso chafariz de pedra reunia as mulheres, algumas delasalugadas à casa de famílias, que esfregavam e batiam roupa em meio aofalatório e a cantoria. Algumas levavam amarrados às costas, por meio depanoscoloridos,ascriaspequeninas.Criançasmiúdasaguardavamotrabalhode suas mães, quando não as ajudavam a quarar a roupa. Muito perto, seinstalaram os ciganos, que comerciavam com cobre, ofereciam trabalhos decaldeirarias,vendiamecompravamcavalosvelhoseroubados,enquantosuasmulheresliamaboasorteoubenziamdoentes.Nãomuitolonge,também,noLargodoRossio,portrásdevenezianascerradas,poisapolíciaassimoexigia,mulheres sussurravam convites lascivos aos homens que passavam pelacalçada.Ànoite,omovimentoaumentava.Afinal,oRioeraumporto.Otransporteerafeitoemsegesefiacresdealuguel,outraformadetrabalho

cotidiano.Alugadosporencomendademeiodiaoudiainteiro,assegeseramcarros de duas rodas, pequenos, semicobertos e forrados de couro verde ouvermelho,ondemalcabiamduaspessoas.Cortinasdecouroprotegiamafrentedo veículo em caso de chuva, e de cada lado havia uma pequena janela decorrer para deixar passar o vento. Mulas magras puxavam o carrinho queLeithold,sempremenosprezando,comparaaosqueseatrelavamaosmacacosoucãesnasfeiraseuropeiasparadiversãodacriançada.Haviasegesmaiores,

para seis pessoas, cobertos e puxados por seis mulas. Era comum encontrarcocheiros negros que, nos seusmomentos de lazer, sentados nos bancos dascarruagensqueconduziam,aproveitassemparatocarviola.Nãoeraincomum,tampouco, que tais seges servissem para encontros de amantes, atuando ococheirocomoalcoviteirooumolequederecadosderelaçõesproibidas.Outra forma de transporte que implicava trabalho era a que congregava

carregadores de serpentinas, de palanquins indianos com cortinas ou ascadeirassobreestrados:oschamadosserpentineiros,cadeireirosouliteireiros,então conhecidos como “anda”.Definidos pelo aparato de sua indumentária,mostravamagrandezaouadecadênciadacasaaqueserviam:fardasdamelhorqualidade, perucas vindas da França, luvas brancas. Gemidos compassadosindicavamque alguém tinha pressa.Outro tipo de serviço era prestado peloscarregadores de doentes: dois homens transportavam o achacado numa redepresa a um pau roliço, fechada em cima para preservar sua privacidade. Emgeral,contaLeithold,odoenteeraacompanhadoporcuriososedesconhecidosqueoincentivavamaresistiràdoença,comrogatórioseexclamaçõesdesaúde.Aos muares vindos de São Paulo e Rio Grande do Sul, e que eram

responsáveisporumativomercadodenegócios,cabiaacirculaçãodegenteedemercadorianacidade.Cavaloseramalugadospormeiodiaoudia inteiro.Eramcaros, bons e vinhamdo interior deMinasGerais.Apesar do custo demanutenção, todos tinhamo seucavalo, conta-nosLeithold.Osalfaiates,porexemplo, vinham visitar os seus fregueses a trote, trazendo na garupa umajudantedecercadedezoudozeanos,comomaterialdetrabalhoàcabeça.Aaberturadosportos incrementouosartigosdeselaria.Foio iníciodofimdospalanquins orientais substituídos pela importação de selas “regala-bunda”,conta-nos Gilberto Freyre, vendidas em lojas francesas como a de AffonseSaint-Martin, bem como damultiplicação das vendas de tilburys e victóriasingleses, forma democrática de transporte. Carrinhos ingleses, ferradoresinglesesearreiosinglesesenchiamaspáginasdeanúnciosdejornais.Também nos jornais, professores de todo tipo ofereciam seus serviços: de

professoresrégiosqueensinavam“asprimeirasletras,acontareocatecismo”em suas próprias residências a estrangeiros, em sua maior parte recém-chegados, até os que ensinavam a dançar, a tocar piano, a falar inglês oufrancês,arecitarpoesia.Entreeles,muitasmulheres.Estrangeirostambémseofereciam no jornal Gazeta do Rio de Janeiro, como pintores de paredes,forradores de parede com tecidos ou papel estrangeiro, ladrilhadores,cabeleireiros com seus pós mágicos para tingir ou fazer crescer cabelos,

perfumistas,comprovando,assim,adiversidadedoconsumoedomercadodetrabalho.SegundoLuccock,oafluxodeestrangeiroseamultiplicaçãodenecessidades

elevaramovalordotrabalhodeformaextravagante.“Deuistomotivoparaquesurgisseumanovaclassesocial,compostadepessoas”, livresouforros,“quecompravamescravosafimdeinstruí-losnalgumaarteútilouofício,vendendo-os, em seguida, por um preço elevado, ou alugando seus talentos e seutrabalho.” Nas festas religiosas como Corpus Christie nas procissões daSemanaSantaounosnatalíciosecasamentosmonárquicos,ferreiros,padeiros,tanoeiros, alfaiates, pescadores e arrais, taverneiros emercadores, sirgueiros,ponteiros, luveiros, latoeiros, fundidores, carpinteiros, tintureiros, esteireiros,picheleiros,entalhadores,entreoutroseramconvidadosaparticiparcomsuasinsígnias, com suas bandeiras de São Jorge, SãoMiguel, São José e outrasdevoções.Asdoaçõesquefaziamparaaarteefêmeradearcosecolunasqueenfeitavamacidadeeramumtermômetroprecisoparaavaliarocrescimentoe,maisdoqueisso,ofortalecimentodosofíciosmecânicos.A vinda daCorte acelerou os batimentos cardíacos da cidade.A oferta de

produtos, a circulaçãodepessoas, amultiplicaçãodas artes eofícios fizeramexplodir as fronteiras entre espaços geográficos, mas também entre asfronteiras linguísticas e legais que a princípio separavam as comunidades.LongedaCorteamorfaque,segundooslivrosdehistória,sóapartirde1850e1860apresentariamudançassignificativas,oquesedepreendedas fonteséocotidiano de uma cidade portuária viva, habitada por atores que fariam jus àopinião do marquês de Alorna: eram eles os moradores de um ponto deencontro entre as quatro partes do mundo – aqui se encontravam europeus,africanos,asiáticosebrasileiros–,habitantesdeumespaçoondeamobilidadeeramais importantedoqueaorigemgeográfica; eram,enfim,atoresdeumaprecoceglobalização–conceitoutilizadoporSergeGruzinski.Ares cosmopolitas misturavam viajantes, expatriados, imigrantes e

migrantes.HaviaosfrancesesfugidosdosdesastresdeNapoleão,denominadopelaimprensade“usurpadordocontinente”.AquedadeNapoleãoeaentradadosexércitosdeTalleyrandnacapitalapavoraramváriosbonapartistas, razãoda rápida organização da Missão Francesa, por exemplo. Nicolas AntoineTaunay,pintordepaisagens,encaminhou,então,umpedidoformaldeempregoao príncipe regente de Portugal. Quando a pequena colônia se pôs emmovimento, reunia vários nomes: Le Breton, Taunay, com sua família e oirmão Auguste, o pintor histórico Jean-Baptiste Debret, o gravador Charles

Pradier, além de Grandjean de Montigny, sua família e os ajudantesLevavasseureMeunié.Posteriormente,juntaram-seaogrupoosirmãosMarc,escultor, e Zeferin Ferrez, gravador. Editores como Pierre René FrançoisPlancherde laNoé, também fugidodo fimdasguerrasnapoleônicas, fundouuma pequena tipografia na rua dos Ourives e publicava folhinhas e oAlmanaque Plancher, além de “guias de conversação em francês”. A eleseguiram-se outros conterrâneos envolvidos com o mundo do livro, quaisfossem, Firmin Didot, Hippolyte Garnier e Villeneuve, que posteriormenteconsolidouoJornaldoCommercio,fundadoporPlancher.Somavam-sea estes recém-chegadosos comerciantes inglesesbeneficiados

pelotratadode1810,queprivilegiavaosprodutosinglesescomtarifasmenoreseconsolidouapreeminênciainglesanoBrasil.OjovemempregadodacasadecomércioPhilipe,WoodandCo.JohnArmitagefoiumdeles,alémdeautordeumlivropioneiro:TheHistoryofBrazil fromtheperiodof thearrivalof theBraganza family to the abdication ofD.Pedro theFirst in 1831, bemcomoRobertWalsh, pastor anglicano e autor deNotícias do Brasil, publicado em1830. Havia cientistas, naturalistas e botânicos, como o alemão, Georg vonLangsdorff,cônsul-generaldaRússia,apartirde1812;eaindaJohannMoritzRugendas, desenhista que acompanhou Langsdorff em uma expedição quecorreuMinasGerais entre 1821 e 1823, ou o barão deEschwege, renomadomineralogista. Todos eles comprovam o interesse que o futuro impériodespertava. Dentre outros europeus de renome que por aqui se instalaramdurantealgunsanos,houveosbotânicosKarlMartius–o“Von”denobrezasóchegamaistarde–eJohannBaptistVonSpix,esteresponsávelpelaprimeirainterpretação de um Brasil como matriz da mestiçagem entre raças. OdinamarquêsPeterWilhelmLund,desembarcadoem1825embuscadebonsaresparaseuspulmões,acabouporfundarapaleontologianoBrasil.Aproveitandoqueotratadode1810estabeleciaquesúditosdesuaMajestade

britânica não seriam molestados por sua religião e, mais tarde, que aConstituição de 1824 estabelecia a liberdade religiosa no país – os nãocatólicospodendopraticarseusrituaisemcultosdomésticos–,judeusinglesese franceses se estabeleceram naCorte. Foi, por exemplo, o caso deBernardWallenstein, comerciante de artigos femininos conhecido como o “CarlosMagno da rua do Ouvidor”, assim como de sefarditas descendentes dascomunidadesibero-judaicasexpulsasdapenínsula.Do Oriente, ou melhor, do Império do Meio, chegaram os chins para o

cultivo do chá e da seda. Dois ou três milheiros se juntaram na Corte aos

trezentosimportadosdeMacau,pessoalmente,pelocondedeLinhares.Sónãovieramas crianças, escravosmirins, que eramvendidas aosportuguesesparaserviremcomocriadinhos: asatai eamui.OBecodosFerreiros eraobairrochinês da cidade, onde se fazia a importação regular de louça e porcelanachinesa. A Casa da China, fundada em 1809, oferecia os serviços comdesenhosextraídosdorepertório:galos,pavões,pastores,corçaserosas,alémdeleõesecãescoloridosemdimensõesnaturais,própriosparaguardarportões.Nos vetustos sobrados se comprimia a densa colônia. A 10 de setembro de1814, por exemplo, o Registro de estrangeiros indicava a chegada de LiangChou,MingHuang,ChianChoueTsaiHuangemmissão recepcionadapelocondedaBarca.Anúnciosdejornaisatestamariquezadocomércioformalouinformal–graçasaosnaviosquefaziamaguadaoureparosnabaía–comestaregião: cera amarela, pentes para piolho de tartaruga e marfim, cangas decantão,mãode coçar as costas, leques, charão, chás.Ovocabulário ganhavacomaincorporaçãodepalavrascomokakiekiosque.Noprivadoounopúblico,ocotidianomudoudepoisdachegadadafamília

realaoBrasil.Acidadeficoumaiscosmopolita,onúmerodeseushabitantescresceu, as formas de trabalho se sofisticaram, os encontros culturais semultiplicaram, os grupos de estrangeirosmesclaram-se aos naturais, a línguafalada e escrita ganhou palavras novas, enfim, o dia a dia se modificou.Tornou-se o ponto de encontro entre arcaísmo e tradição, regularidade eruptura, aburguesamento emodernidade.Hámuito que estudar sobre o dia adia de camadasmédias, feitas de homens e mulheres anônimos, cujas vidaseram ritmadas pelo trabalho e a repetição. É preciso, contudo, – o que nãohouvetempoaqui–decifraraslinguagens,visuaisougestuais,pelasquaisseexprimiam;éprecisoanalisarasdesigualdadesdeclasse,deidade,desexo,decondição;éprecisounirovividoindividualcomasmanifestaçõesdeexistênciaque vigiam emdeterminada época.A lente de aproximaçãodeixa aparecer àdensidadedassituaçõesdevidaeoscontextosdeaçãodeanônimosdahistória.Mas, também, as rupturas, os meios-tons, as intenções escondidas que seuspercursosrevelam.Cidadescoloniais:delasjásedissequeajudamailuminarnãosóocontrasteentreavidaurbanaearural,suainérciaoumovimento,mas,sobretudo o cotidiano de homens e mulheres livres e escravos, libertos evadios.Seutemponãoeramarcadopelocantodosgalos,masosomdossinose canhões. Suas vozes apregoavam toda a sorte de produtos, orações econversas. Nelas, a agilidade e a adaptação permitiam que as oscilaçõesrápidas, breves e nervosas da economia ficassem mais visíveis. Mistura de

gente,detradiçõesegestos,elaregistravaigualmenteamestiçagemdeculturaseamobilidadeeconômicadeseusmoradores.

Obeija-mãodovice-rei

A cidade colonial era um aparelho administrativo a meio caminho entre osengenhoseoscentroseuropeusdecomercializaçãodoaçúcar.Nelamoravamfuncionários da administração e representantes da Coroa cada vez maispreocupadoscomasituaçãopolítica.AadministraçãodaCoroaestavaassentena pessoa do rei e implantada através de determinados órgãos. Três setoresreuniamprovedores,ouvidoresegovernadores:ogeral,omilitareojurídico.AsOrdenaçõesFilipinas e todaumaquantidadede leis extravagantes aliadasaos regimentos serviram de base jurídica à atuação de instituições efuncionários coloniais. A autoridade máxima era o governador-geral, cujafigura fora substituída pela do vice-rei do Brasil, título adotado a partir de1720,masgeneralizadoquandodatransferênciadacapitaldeSalvadorparaoRiodeJaneiro,em1763.As obrigações do mandatário consistiam em garantir desde a defesa do

território até a supervisão da justiça, fazenda e comércio, passando pelocontrole dos abusos de autoridade. Na segunda metade do século XVIII,transcorriam, porém, anos difíceis. Cada vezmais acirrada, a guerra com osespanhóis, ao sul, depois da queda da colônia de Sacramento, levara ametrópole,pelacartarégiade1763,aelevaroBrasilàcategoriadevice-reino.A indefinição entre os limites territoriais das coroas espanhola e portuguesaacirrava tensões desde 1750. Transferira-se, ao mesmo tempo, a capital deSalvadordaBahiaparaSãoSebastiãodoRiodeJaneiro.Amedidanãoapenascentralizavaasiniciativasparamelhorpreservaçãodos

interesses no extremo sul, como queria o marquês de Pombal, secretário deEstadodoreinoded.JoséI,mastambémconsolidavaacapitalcomopassagemobrigatória para o ouro e os diamantes vindos das Minas. A urgência dereformas para desvincular a metrópole da área de influência inglesa seacelerava.Preocupaçõesbélicaseadministrativasenchiamosdiaseasnoitesdosgovernantes.Mascomosedesenrolariaocotidianodetaisautoridades?Poiscertamanhã,

instalado no segundo pavimento do palácio situado no Largo do Carmo,

próximo à praia do Peixe, Dom Luís de Almeida Portugal, marquês doLavradioe terceirovice-reidoBrasil,examinava taciturnooqueconsiderava“serras inacessíveis de rocha viva, fazendo uma vista sumamentedesagradável”. Discordava, portanto, de um seu contemporâneo, Louis deBouganville,quepreferiaacharque“avistadabaíaserásempreumespetáculomemorávelparaqualquerviajante [...]ondeparaqualquer ladoqueseolheanaturezaofereceumdeslumbranteespetáculo”.Ossinostocandoasmatinasoarrancaramdasonolência,distraindo-odas lembrançasdeumanoitequenteesemviração:umbaile seguidodepeçadeMolièreencenadanaÓperaNova,teatrodeManoelLuís,umseuprotegido,aoqualchegavaporumapassagemcoberta ligada ao palácio. Realizado com planta do brigadeiro do rei, JoséFernandesAlpoim,estehaviasidoinauguradoem1743.Eraumacasasóbria,encravada aos pés do embarcadouro e, portanto, do coração da cidade. Trêsportadascomcurtaescadaemmármoreseabriamparaomar,tentandoventilaralcovasepequenassalas.Nelas,algumadecoraçãointernasedeviaaoshábeispincéis de José de Oliveira. O conjunto arquitetônico não devia ser de tododesprezível, pois o mesmo Bouganville destacou-o como um dos belosedifíciosdacidade.E o quemais avistaria?Ao pé da janela, sem a sombra nem o frescor de

árvores, os chãos batidos da praça, fervendo de gente que ele desprezava.Cruzando de um lado a outro, funcionários do governo nas suas capas desaragoça,soldadosdamilíciada terra,nassuas fardasamarelasdebruadasdeazul,padresefradesemseushábitosescuros.Atrásdeles,paradar-lhesesmolaoureceberumabênção,asbeatas.Àesquerdadapraça,ovice-reiadivinhariaas casas dos Telles, achatadas sob íngremes telhados. Aí, sobre um arco, seinstalara o Senado da Câmara. À sua entrada, num pequeno oratório, NossaSenhora dos Prazeres acolhia as demonstrações de devoção da gente quepassava. Nos baixos, amontoavam-se as lojas de mercadores: belchiores eadeleiros,ouseja,negociantesdealfarrábioseroupasusadas.Aocairdatarde,oarcose transformavaempontodeencontrodevadioseprostitutas.Ànoiteabrigavamendigosepedintes.Aolado,erguia-seabodegadofrancêsPhilippe,agente de câmbio e outros frutuosos negócios com que acolhia os viajantesvindosdeMinasouSãoPauloembuscadecamaecomida.Nocentrodapraça,umchafarizrenteàlinhadomareraalvodebulha.Cobertoscomumasimplestanga,carregadosdebarrisepotes,escravosbenguelas,cabindasemonjolos,chapinhando nas poças, gritavam e gesticulavam. Uma vez cheios osrecipientes,oscarregadoresdeáguaespalhavam-senadireçãodocaminhode

SãoBentoou tomavamàdireitao caminhodacadeia,gritando”Hi!Hi!”.Oprecioso líquido também seguia em barriletes transportados por aguadeiros,nãoraroportugueses,quetocavamcarroças,puxadasporburros.Osrepetitivosritosdocotidianodovice-reiprincipiavamcomachegadada

águaaopalácio.Cedinho,tinhainícioumpequenoritual,endossadoporvárioslivrosdemedicina.OmarquêsdoLavradiolavava,então,“asmãos,osolhoseacaracomáguafria”embenefíciodocérebroedossentidos,estirandoaseguirosmembrosa fimdeestimularadigestão,aevacuaçãoeaurina.Alisavaoscabeloseempoavaaperuca“embolsa”,habilmente terminadanumarrematede tafetá, que alternava com a trancinha “a chicote”, usada em passeios acavalo.Limpavadepoisosdenteseparadar“bomcheiro”àboca,gargarejavacomumapoçãoàbasedevinhocomraizdeorégano.Tinha três razõesparapreocupar-se com a higiene bucal: não deixar “enegrecer os dentes nemcorromperobafo”,evitarqueseuhálitoinfeccionasseoestômagoeevitar,peloacúmulodesujeiradaboca,qualquerdanoouperturbaçãoàcabeça.Asdemaisabluçõesserviriam,nalógicadotempo,paradilatarosporos,deixandosairos“vaporesdocérebro”.Osbanhostinhamqueserraros,assimcomoaatividadesexual.Arazãoerasimples:seusexcessos“danavamavista”.Oconselhonãodeve ter sido seguidoà risca, poisovice-rei cádeixoudois filhosbastardos,maistardereconhecidosemtestamento.NaAméricaportuguesa,ondeasruaseramverdadeirosesgotosacéuaberto,

onde animais domésticos aliviavam-se às portas das casas, os tonéis comdejetos eram despejados pelos escravos onde fosse mais fácil e a varíolagrassava,aspreocupaçõescomahigieneeocorporefletiamasmutaçõesnasnormasde comportamento, amodelagemeo afinamentodos cuidados de si,até no vestir. Eis porque Lavradio, por alcunhaO gravata, usava um coletetrabalhadoemsedefrouxa,gravatinhamolesoboqueixoecoloridoredingotecujasabasmorriamacimadacurvadaperna.Oscalçõesjustoslhemodelavamascoxas,fechando-seàfrentepela“portinholaàbávara”,aberturaconsideradapela Igreja “criação do lascivoDiabo”.Apesar de austero, havia de usar umsinaldetafetáemfeitiodemeia-luaouluainteiranafronde(“omajestoso”)oupertodaorelha(“odiscreto”).Emcontrastecomagentequeviapassarnaruaequesedefendiadosolcausticantecomchapéudesabadodepalhaoudefeltro,levavaaobraçoseu“anastácio”ou“tribico”,nomedadoaotricórnioemsedaque não passava de ornamento chique. E tudo molhado de muito calor eumidade. Pronto para um dia de trabalho, ele adentrava o salão saudando:“EntremVossaMercêeseuanjodaguarda,sr.sargento-mor”.Eouviaaseguir

“DeusabençoeaVossaExcelência,sr.vice-rei”!Atrocadepalavrasnãoerabanal.Oritualcotidianofacilitavaarelaçãoentre

pessoas,permitindo,contudo,quecadaqualdemarcasseseuterritório.Depoisdaobrigatóriapitadaderapé,vícioconsideradoelegante,atendiaoscolonosaquem,naintimidade,tratavapor“pataratas”e“ladrões”,tentandodesvendarepunir as tremendas redes de corrupção e contrabando entranhadas naburocracia da colônia. A defesa da capital era sua prioridade, além doscuidados com a área urbana. Não à toa mandara realizar uma plantaencomendada ao sargento-mor dos engenheiros, Francisco JoãoRoscio, comtodososdetalhestopográficosquecomeçavamnorioCattette,àsmargensdoqual se espreguiçava uma dúzia de casas com suas “pequenas hortas” – nasquais, contaoviajante JamesCook, “se cultivavaamaiorpartedos legumesqueconhecemosnaEuropa,sobretudoacouve,aervilha,afava,ofeijãoeonabo”, até o Bica doMarinheiro, no Saco de São Diogo, onde desaguavammansamente vários afluentes do Catumbi. Não o preocupava apenas oaparelhamento bélico da cidade, mas também o comércio e a agricultura.Lavradiointeressara-se,porexemplo,emaprimorarointercâmbiocomMinasGerais,promovendoumafeiraanualqueduranteosmesesdeestiagemreuniatropeiros no Largo da Glória. Eles aí chegavam, suas mulas carregadas defardos,ajuntando-seemgruposparaouvirgemeraviola,provaroquentãoeoangudemilhoeexaminararreioseapetrechosquesevendiamnestasocasiões.Lavradiotiveraoutrainiciativaimportante:transferiuomercadodeescravos,

antes exposto na rua Direita, para o Valongo. Ali, junto ao telheiro dostrapiches,viuseconcentrarocomércioemgrosso.Vendia-seporatacadotodogrão,fumo,saleomaisquefossenecessárioaodiário.No“trapichedasola”,os couros que chegavam do Sul e esperavam embarque para a Europa. Nosarmazénsdecarnehumana,seamontoavamescravosvindosdacostadaÁfrica.Ciganos com anel na orelha exibiam aos fregueses musculatura rija e belasformas.Ovice-reihaviadepreferiracenaali,discretaepróximaàchamadaPrainha,adescortiná-lanaruaDireita,centrodacidade.Embora tenha fundado a Academia Científica para estimular o estudo das

ciênciasnaturais, comoqualquerhomemde seu tempo,Lavradiodeviavivercercadopor livrosqueamaioriados leitores–poucos,nestes tempos– tinhaemcasa:catecismos,vidasdesantoseummanuseadoDiáriocríticodasfalasphilosophias, seguidodeummata-horasaborrecido.Seu interesse científico,notadamente por botânica e mineralogia, o fizera aproximar-se defarmacêuticos,médicosenaturalistas,inaugurando,em1772,umsilogeusoba

proteção de Pombal. Suas atividades eram, contudo, irrisórias. Os sábiosbrasileiros preferiam orbitar em torno da concorrente Academia Real deCiênciasdeLisboa.Findos os trabalhos administrativos, era hora do almoço.Depois de frugal

refeiçãocomcarnedeporconadandoemmolhocomangu,regadaaovinhodoreinoeadoçadacomgeleiadefrutasoudoçariavindadoconventodaAjuda,Lavradio se preparava para o momento em que a vida pública invadia suaprivacidade: as festas encenadas com brilho e pompa em certas datas docalendárioreligioso.Nestedia,eraadoImpériodoDivino.Na tarde de sol partia na sege puxada por seis mulas. Evitava a rua do

Ouvidor, até bem pouco tempo percorrida por carros de boi carregados decapim.Deixandoparatrásabarulheirada“quitandadosmariscos”oudaruadaQuitanda,rumavaemdireçãoàruadosPescadores,acompanhandoobraçodemar que adentrava a terra, onde pombeiros – nome que se dava aosatravessadores – encostados às canoas ofereciam peixe fresco. Cruzava nocaminhocadeirinhas,serpentinaseliteiras,muitasdelaspintadas,esculpidasecom suas cortinas de seda bordadas a ouro hermeticamente cerradas.De pésdescalços, os escravos, vestidos com casacos leves de seda e saiotes sobrecalçascurtas,suportavamnosombrosopesodo“sinhôedasinhá”.SeguiaparaocampodaCidade,edepoisparaocampodeSãoDomingos,

onde mais animadamente se comemoravam as festas públicas, com danças,fogos de artifício, leilão emastro de prendas, cavalhadas e comilanças. Taisfolguedos,iniciadosnosábadodeAleluia,seprolongavampormuitosemuitosdias e terminavam sempre pela coroação do imperador do Divino, depreferênciaummeninotedeuns12anos,ricamentevestido:casacaecalçãodeveludovermelho,meiasdesedabrancaeespadaàilharga.Issoparanãofalarnocetroenacoroa,àsvezesdeinestimávelvalor,debommetalecravejadosde pedras preciosas. Tudo se passava numa nesga da chácara de d.EmerencianaDantasdeCastro,quefizeraconstruirumimpério,“pavilhãodepedra e cal”, com capelinha ao fundo, em cujo terraço o pequeno imperadorrecebia as homenagens de seus súditos ao som da “música dos barbeiros”,orquestra demestres e oficiais da corporação dos barbeiros da cidade. Numanfiteatro próximo, Lavradio era aguardado por notáveis: comerciantes degrosso trato, os homens do Senado, da Câmara e da Provedoria, além dosrepresentantes da Mitra. À sua chegada espocavam girândolas de rojões,multiplicando-se as cortesias oficiais. Ao som de trombetas e charamelas, ovice-reiseabrigavasobospanosdeumtoldo improvisado.Omovimentode

casacasemantilhasdopúblicoerainterrompidopelasnegrasdetabuleiroquevendiam o refrescante aluá, canjica e pamonha. Salvas de palmas e gritosanunciavam:“Vaicomeçar!Vaicomeçar!”Em trajes exuberantemente coloridos, sobre cavalos guarnecidos com

espelhos, pérolas falsas e vidrilhos, amascarada abria o desfile. Seguia-se aapresentaçãodedançarinos“mouriscos”e“gigantes”.Ascorporaçõesdeofícioapresentavam suas bandeiras de São João, Santo Antônio e São Pedro,empunhadas por indivíduos fantasiados “à trágica”. Rabecas embalavam asdançasdos“sapateiros”enquantoque,aosomdeadufesepandeiros,passavamgalegos.“Ospretos”,contaumdocumentodeépoca,“divididosemnaçõesecom instrumentos próprios, dançam e fazem como arlequins com diversosmovimentosdecorpoqueaindaquenãosejamosmaisindecentessãocomoosfandangos de Castela”. Crianças escravas e forras, “vestindo saiotes de sedaagaloados com ouro e capacetes com tremulante plumagem, executaram adança dos ‘índios carijós’ seguidos de um préstito de escravos cantando edançandoamodoetiópico”.Opontoaltodafesta?Adançadas“calheiras”,naqualhomensvestidosdemulher,comsaiasrodadasefinascamisasderenda,bailavam. Nas tabernas à volta da praça, outros complementos da festa: acachaça,o jogodecartas edados, asmulheres.Fontes com licores coloridosjorravam enquanto brancos, negros e mulatos comiam e brincavam,“esguichando,deitandopulhaselaranjadas”.Teria Lavradio jamais compreendido que as festas constituíam um grito

desafiadorcontraasdificuldadesdaárduavidanacolônia, representandoumexutóriodastensõesacumuladascontraasautoridades,fossemelasosenhordeescravos, a Igreja Católica ou o próprio governo português, que ele mesmorepresentava?SeriamtaisfestastãomaiscapazesdeextravasartensõesquantoàcentralizaçãoadministrativapropostaporLavradioquecolocavaapopulaçãodecócorassobrígidocontrole?Festaseramocontrasteaosritosdocotidiano.Eram o oposto do fundo permanente e quase imutável de pequenos fatosdiários.Alheio,contudo,àculturamestiçaqueaquisedesenvolvia,ovice-reiconcluía,enfadado:“Aquitudomefede,tudomecome,tudomeaborrece.”Adespeitodedesabafoscomoeste, tão frequentesemsuacorrespondência

com a metrópole, o vice-rei mantinha extraordinária atividade. E caminhosbempodemtê-lolevadodoCampodaCidadeparaumendereçobempertinho:ahortadoscapuchinhositalianos,nocaminhodosarcosdaCarioca.Aliveriaflorir, quase que num único dia, os pés de café, cujas sementes ou mudasvindas do Maranhão ele teria ajudado a disseminar. Daí teriam saído as

rubiáceas quemedraram, a seguir, na quinta do holandês JoãoHopman, emMata-Porcos, na fazenda do bispo d. José Joaquim de Mascarenhas, emInhaúmaou,ainda,nafazendadaMendanha,emCampoGrande,pertencenteaopadreAntônioLopesdaFonseca.“Vistadelonge”,diriaobotânicoGeorgGardner,anosdepois,“aplantaçãoparececobertadeneveeasflorestêmumperfumedelicioso”.ConsideradoumsantoremédionoséculoXVIII,ocaféeraentão recomendado pelo médico de d. João V, pois, entre outras virtudes,“confortaamemória,alegraoânimoeéremédionagotanosmalesdeouvido,naspalpitaçõesdocoração,nasquedasesupressõesdeurina”.Quandodesuapassagem pelo Rio, Debret registraria o resultado dos esforços de Lavradio:escravoscarregandosacasdecafévindasdaschácarasnosarrabaldes,famíliastirando seu sustento e o de seus cativos graças à venda da rubiácea,quitandeirasoferecendoadomicílio café já torrado emoído, cuidadosamenteacondicionado em latas. Enfim, anotava o francês, “o mais insignificanteproprietáriobrasileiropossuiaomenosumamodestaplantaçãodecafé”.Ao final do dia, este que foi um dos melhores funcionários da Coroa

portuguesaentrenóssededicariaatraçaraslinhasdomaiscompletoRelatórioaté então feito por um administrador ao seu sucessor. Um retrato dos anospassados no Paço do Largo do Carmo, entre 1769 e 1779. Novas linhas deatividade econômica como, por exemplo, a cultura do índigo, problemasdiplomáticos, como o preenchimento de provisões do Tratado de SantoIldefonso,bemcomoospreparativosparareceberopróximovice-rei,d.LuísdeVasconcelloseSouza,ocupariamsuasúltimashoras.

JULIÃO,Carlos.Trajesfemininos.Séc.XVIII.

E m1789,noseuPequenoelucidáriodepalavrasefrases,opadreJoaquim de Santa Rosa de Viterbo ignorou olimpicamente otermo“lazer”.Outrosfilólogos,contudo,orepertoriaramdesdeoséculoXII. A significação?Do latim licere, “lazer” significava“ser permitido”. A palavra expressava o estado no qual era

permitidoaqualquerumfazerqualquercoisa.Osensocomumconsagravaumuso: o do período de tempo fora do trabalho, tempo esse passado, namaiorpartedasvezes,ematividadesdomésticas.AolongodaIdadeModerna,aideiadelazerseconsolidariaaomesmotempoquedeprivacidade.Nos primeiros séculos de colonização, o lazer era algo em construção: um

conceitoexíguo,desfalcadomaisdoqueconquistado,alémdenegociadonasbrechasdeumaexistênciaprovisória.Afinal,oBrasilfoipormuitotempoumacolônia de exploração. O tipo de atividade econômica predatória que sedesenvolvia no Novo Mundo impunha uma compulsão do trabalho. Oenvolvimentodequase todososatores sociais–homensemulheres, livres eescravos–comaterrívellutapelasobrevivênciasesomavaàmobilidadedaspopulações, à precariedade de suas vidas e ao convívio com uma massa deescravos,deixandopoucotempo“paraqualquerumfazerqualquercoisa”.Alémdopoucotempolivre,ocristianismozelavapelaobservânciadosseus

preceitos,dentreeles,ocombateaoócio.Comeropãodapreguiçaeracometerumdossetepecadoscapitais.“Cabeçavazia,oficinadoDiabo”,diziaoditadopopular. Representada pelo demônio Belphegor, a preguiça era a recusa derealizartarefasnecessárias.Cruzinhasdemadeirapregadasàporta,imagensdesantos em oratórios ou reproduções em tela ou papel, nas paredes, seencarregavamdevigiarocotidianodenossosantepassados,evitandoamoleza.Mergulhados em certo pieguismo barroco, se nossos avós não eramconsumados ortodoxos – como demonstrou o antropólogo historiador LuisMott –, eram permeáveis à doutrinação que a Igreja Católica colocara emfuncionamento.Valelembrar,ainda,que,apesardaterrívelexploraçãoemqueviviagrande

parte dos habitantes, livres e escravos, eles não escaparam a acusações quefaziamdoBrasil o “berço da preguiça” – nas palavras do professor de latimLuísdosSantosVilhena,noiníciodoséculoXIX.Afinal,nossosantepassadosseriamociosos,comtempodesobraparaolazer,ouoprimidosporumfamintosistemamercantil?Ambos. Por issomesmo, percebê-lo na documentação do

períodocolonialnãoéfácil.Masissonãoimpedequeaquiealisedescubramfragmentosdavidahumana,que,entrandonahistoriografia,imiscuem-seentreasinformaçõesquetemossobreavidasocialeculturalnopassado.Eque,pormeiodessamodestacoleta,percebamosque,nosprimeirosséculos,nossolazercomeçouaseconstruirmodeladopormuitosconstrangimentos.No mundo disperso, precário e rural em que viviam nossos antepassados,

visitas eram sempre esperadas ao longo do dia. As dos mascates, então,aguardadasansiosamente.Comseusarmarinhosàscostas,repletosdeprodutoscompradosàsembarcaçõesatracadasnoportodoRiodeJaneiro,elesbatiamem todas as portas. Organizados em pequenas tropas para se proteger deperigos,seguiamemburroscargueiros,esmagadossobopesodamercadoria.Noavarandadodacasadesenrolavamtecidosdiversos,exibiamfitaserendasou artigos de perfumaria, como sabonetes de violeta, encantando sinhás esinhazinhas com notícias da Corte. Quando no interior ou nos arredores dacidade,levavamnovasdeoutrasfazendas.Além de mascates, recebiam-se, também, as visitas de moradores da

vizinhança.Asmulheres, com vestido novo e xale de ramagens dos grandesdias, sentavam-se pelo chão em esteiras e conversavam sobre remédioscaseiros, conselhos matrimoniais ou receitas. Algumas trocavam presentes:galinhasgordas,rendas,ummimodeovos.Emtodaparte,duranteaestaçãodacolheita,vizinhosacorriamaosengenhos

e fazendas, para ajudar a catar as frutas em tabuleiros. Acompanhadas demucamas que levavam o farnel do almoço em cestas, a colheita começavacedo.Asmoçasecriançascolhiamasmaisbaixas,eosrapazesasmaisaltas.Quandoocalorcomeçavaaficarinsuportável,estendiam-seesteirasnochãoeos convivas se sentavam à volta da mesa improvisada. Danças depois dasrefeições permitiam alguma familiaridade entre rapazes emoças, que viviamtrancadasasetechaves.

Igreja:féreligiosaeespaçodesocializaçãodasmulheres.DEBRET,JeanBaptiste,1768-1848.VoyagepittoresqueethistoriqueauBrésil.Tometroisième.

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Nocampoounacidade,duranteafainadiária,nãofaltavaminterrupçõesoumomentosemquelazeregestosrepetitivossemisturavam:nasfontesourios,onde se reuniam as lavadeiras, “enterravam-se vivos e desenterravam-semortos”. Nos mercados da cidade ou nas atividades agrícolas que juntavamhomens e mulheres, noticiavam-se, esmerilhavam-se e comentavam-se osacontecimentos locais, notadamente, os escandalosos ou ridículos. Entrehomens,“praticaraboaconversação”–expressãoqueaparecerecorrentementenasdenúnciasaoSantoOfíciodaInquisição–duranteoudepoisdotrabalho,ou, entremulheres, enquanto coziam, lavravamou faziam trancinha em suasalmofadasdebordar,eraformacomumdeentretenimento.Umexemplo:certaMariadeAzevedo“desceuabaixoafalarcomopedreiro

JoãoNunesempresençadeGaspardaSilveira,purgadordoengenho,eassimfalandotodosostrês”.Mariaacusouumvizinhodedefecarnumpenicosobre

um crucifixo. De uma conversação maldosa qualquer, podia nascer umjudaizante,umherético,umsomítico.Então,mexericarera,sim,umaformadedistração.E tãocomumquehaviamesmouma lei,nasOrdenaçõesFilipinas,códigolegalqueperdurouaté1830,queproibiaasintrigas.NolivroV,pode-se ler: “Dos mexeriqueiros: Por se evitarem os inconvenientes que dosmexericosnascem,mandamosquesealgumapessoadisseraoutraqueoutremdissemaldele,hajaamesmapena,assimcívelcomocrimequemereceria,seelemesmolhedissesseaquelaspalavrasquedizqueooutroterceirodeledisse,postoquequeiraprovarqueooutroodisse.”Ohábitonuncaseperdeuequemopresenciou foioviajante JamesHardy

Vaux,depassagempeloRiodeJaneiro,em1807:“Naruaemqueestávamosestabelecidos, residia, na companhia de três jovens, uma velha senhora.Frequentemente, eu a via na porta de sua simpática casa, entretida com unscarretéisdispostossobreumaalmofada–estaatividade,alémdeproporcionaralgumdivertimento,ofereceumafontederendimentosparaosmembrosmaisjovensdas famílias.Essa senhorae suasacompanhantes ficavamsentadasnochãodasaladevisitas,depernascruzadas,emfrenteaumaportade treliça,quepermaneciasempreabertaparareceberoarfresco.Todasastardes,euasencontravanessaposição,entretidasnumaanimadaconversa.”Outra prática que reunia alegremente as pessoas,mas que era considerada

”repugnante” pelos estrangeiros de passagem pelo Brasil, era a do cafuné:“Catar ou fingir catação de piolhos e lêndeas é uso utilitário e processoprolongador de êxtase e preguiça, em quase todo o mundo”, interpretou oetnólogo Luís da Câmara Cascudo. Distração e prazer que tinha inúmerosentusiastas,avagarosafricção,acompanhadaounãoporestalos,eraexecutadaàsombra,depoisdasrefeições,sobreasesteirasdepiripiriounosalpendres.Ede noite, também no quintal, quando a família buscava um entretenimento,quer de cavaqueira, quer de passatempo, mãos exclusivamente femininaspousavamascabeçasdascriançasecompanheirosnocolo,para“revolverosdedinhos e ouvir os estalinhos”, como cantou o poeta. Ao desembarcar noporto de Maceió, o pastor americano Daniel Kidder estranhou a cena, queassimdescreveu:“Umoudoisrapazesestavamdeitadossobreaareia[...]asmulheresestavam

sentadasaopédeles,executandoalgumcarinhosomisteremsuascabeças.Seessasmulheresseocupavamemtatearacidentesfrenológicosouseentregavamao trabalho de naturezamenos científica, não cuidamos de indagar.”E, comironia:“Felicitamo-las,mentalmente,porteremelasdiantedesiumlindodia

paraodesempenhodesuapenosatarefa.”Estudando a vida doméstica naAmérica portuguesa, LeilaMezanAlgranti

lembrouopapeldosjardinscomoumespaçodesociabilidadeeintimidade–e,portanto, de lazer. Varandas que se abriam para o quintalmonopolizavam oburburinho das atividades, e este último se transformava em espaço deconfinamentoefiscalizaçãodemulheresdaelite,cujosmomentosdelazeraoarlivreeramàsvezescontroladosporseusfamiliares.OviajanteSaint-Hilaire,em1822,acrescentou:“Osjardins,sempresituadosportrásdascasas,sãoparaas mulheres uma fraca compensação de seu cativeiro, e, como as cozinhas,interditadasaosestrangeiros.”Amesma autora destacou a presença de baralhos e tabuleiros de xadrez e

gamãonosinventáriosetestamentosentreosséculosXVIeXVIII,expressãodavontadedereuniresedivertircomfamiliaresouamigos:“banquinhacomjogodedamasecartasdemadeiradecoresembutida”,informavaumdesses.Muitos indivíduos foram denunciados ao Santo Ofício, no século XVI, porblasfemarem enquanto jogavam cartas ou gamão, como sucedeu comAndréTávoras,queenquanto jogava“ao trunfoascartas”emsuacasa, comalgunsamigos, perturbado, disse que “descria ou renegava de Deus”, tendo sidocensuradopelospresentes.Doisséculosmaistarde,nosarredoresdeSãoJoãoDelRei, entreosbens apreendidos ao inconfidente JoséAyresGomes, estãorelacionados: “Tabuleiro de jogar gamão com suas tabelas respectivas e umjogodedadosesuastabelasdemarfim”,dandoaentenderseressaumapráticabastantedifundidanacolônia,equeperdurounotempo.Os jogos estavamnamoda: obilhar, desdeo séculoXVI.Osdados–que

tiveraminíciocomgregoseromanos–,apartirdeentão,sedisseminaram.Osbaralhos, com vivas pinturas, se tornaram uma febre. Produzidos naEuropa,eleseramexportadosparaasAméricas.Presentesnascasasdefamíliaouemespaços públicos, não poucas vezes suscitavam brigas, “indignações,execrações, perjúrios e escândalo do povo”. Por isso mesmo as chamadas“tabolagens” eram proibidas a eclesiásticos ou seculares, sob pena depagamentodemilréis.Emdomingosediasdefesta,sóeramfacultadasdepoisda missa ou dos demais ofícios para evitar tensões no dia santo. Cabia àsjustiças seculares perseguir as “casas de jogo públicas”, informam-nos asConstituiçõesdoArcebispadodaBahia,leisaplicadasnacolôniadesde1707.O baralho ou baralha, sinônimo de confusão e tumulto, foi introduzido no

Ocidentepelossarracenos,noséculoXIV.GilVicente,noAutodafeira,indicao caminho das cartas, então chamadas naipe. Quem arma a sua tenda é o

próprioDiabo,quediz:

EtragodeAndaluziaNaipes,comqueossacerdotesArrenegamcadadiaEjoguemtéospelotes

Ascartasmaioresounobreseramreis,damasevaletes.Osquatroreiseramrepresentados por David, Alexandre, César e CarlosMagno; as rainhas, porMinerva,Argina,RaqueleJudite;osvaletes,Heitor,umdosoficiaisdeCarlosII,Ogier,ocavaleiroandante,LancelotedoLagoeLahire,nomedeguerradeum gentil-homem, Etiénne de Vignolles. Jogava-se o bacará, a bisca, aespadilha, o lasquenê, a manilha, a primeira. A partir do século XVI,disseminou-seaadivinhaçãopelascartas:copasepausanunciavamfelicidade;espadas e ouros, os infelizes oumaus etc.Nas cortes europeias, cartomanteseramrecebidasporreiserainhasdeverdade,ealeituradotarôsetornououtramania.Àvoltadasmesas–poucas–ounochão,sobreesteiras,comumtambémera

ojogodaspedrinhas,o“bato”vindodePortugal,masdeorigemgrega.Usandoseixosouossos, jogados sucessivamenteaoar até serem todos reunidosnummontinho, era o passatempode adultos e crianças.A finca, ou jogodo pião,que consistia em aproximar o brinquedo de uma “casquinha” de louça oumadeira,pousadanosolo,atraíaosmesmosaficionados.Aofinaldeumdiadetrabalhoedepoisderezarasave-mariasquesoavam,

aolonge,nossinosdaspequenascidades,mulheresreuniam-separapentearoscabelos e catar piolhos às crianças e adultos.Ou para “fiar ao serão”, velhatradiçãoportuguesaquesevaliadotrabalhodomésticofemininoemtornodasrocas, criando momentos de distração. Às vezes, ajuntavam-se vizinhas ecomadres para fiar juntas, cada qual fornecendo um pouco de azeite para acandeia. À volta do fogo de lenha, caçarola na trempe, a família se reunia,conversando e rindo. Os fatos do dia, lendas, contos e adivinhas eram aídesfiados.Cantar “cantigas honestas”, evitando as difamatórias e desonestas,tambémerapermitido.Aoshomens,oempregodaviolaeraconstante:“fazerhuadançaefolgar”sãoverbosqueaparecemnosdocumentosdoséculoXVIeXVII.Não à toa, o viajante alemão JohannMoritzRugendas reproduziu umdessesmomentosnumdosdesenhosquedeixou,quandodesuapassagempeloBrasil,entre1822e1825.

Nos sobradosurbanosounas áreas rurais, o entardecer eraomomento emquemucamas e rapariguinhas que viviam na casa-grande ouviam à volta damesa de costura ou nas lides da cozinha a senhora lhes contar históriasextraídas daBíblia Sagrada, como registrou em suasmemórias uma filha debaianos,plantadoresdecana,d.AnnaRibeirodeGóesBittencourt.No oratório, com suas abas pintadas com santos, as mulheres, com as

criançasentreaspernas,sereuniampararezar.Faziamprecesparapedirchuvanos tempos de seca, quando os crepúsculos pareciam fornalhas e os vigáriosexortavamosfiéisarepetirladainhasàVirgem.Comasportasabertasparaoterreiro,àssuasvozesvinhaseunirocorodeescravos,dejoelhosaoarlivre.Desciaanoitesobamelodiasimplesemonótonadeversinhos,oudocanto

da gente da casa. Ouviam-se, também, repetitivos acalantos. Na sala, sejogavam prendas, o queijo do reino sobre amesa. Uma escrava idosa vinhaentão colocar sobre a canastra a lamparina, repetindo as palavras usuais:“Louvado sejaNosso Senhor Jesus Cristo!” Todos se sentavam em volta damesa, e começava a conversa animada. Nela, os assuntos prediletos eram alavoura, as chuvas e a estiagem. A política era assunto para os jornais quecomeçarama serpublicadosapartirde1808: entre eles, aGazetadoRiodeJaneiro.À luz de candeeiros, vozes murmuradas distribuíam predições de chuva,

colhidas na experiência dos astros: “Choveu na primeira e oitava de SantaLuzia. Fevereiro emarço vão ter chuvas. Os porcos estão carregandomato:sinal de chuva.” Outro assunto de predileção, mas este na cozinha, eram asvisagens, assombrações e histórias de gente que se “envultava” nasencruzilhadas dos caminhos ou perto dos cemitérios. No silêncio do sono,ouviam-se vozes de crianças que tinham morrido sem batismo a pedir osacramento. Além do temor dos mortos, os vivos também faziam medo:quilombolas fugidos rios acima, aninhados pelos matos, tiravamdefinitivamente o sono dos senhores. Crianças iam dormir com o susto debichos infernais: o caipora, os homens amarelos que chupavam fígado demenino,ozumbi,olobisomem.

Aculturaafricanaincorporouadançaàsfestasreligiosas.CortejodaRainhaNegranafestadeReis[Iconográfico].

SÉCULOXVIII.

Alémdepequenasformasdelazerintroduzidasnoritmodavidaprivadaounos pequenos gestos repetitivos do cotidiano, havia momentos, associados afestividadesqueocorriamemcasa.Eramascomemoraçõesfamiliaresemtornodebatizados,noivados,casamentoseaniversáriosque,atéfinsdoséculoXIX,chamavam-se“funções”.EmMemóriasdeumsargentodemilícias,evocandoumafestadebatizado,realizadonacidadedoRiodeJaneiro,ManuelAntôniode Almeida assinala: “Já se sabe que houve nesse dia função...” A palavra“baile”era,então,desconhecida,e,em1842,padreLopesGama,moralistaejornalistadeOCarapuceiro, registrouescandalizadoasconsequênciasdetaisfestas:

Viola,minhaviolaVioladocoraçãoCantavaumacabrapacholaTocandonumaunção.Nãoháfunção,nembrincadeiraQuenãoacabePorbebedeira

Durante as mesmas festas caseiras, os convidados ficavam nas tulhas, ouseja,nosceleirossuspensos.Acendiam-segrandesfogueiras,trovasaosomdaviola eram improvisadas em desafio, realizavam-se banquetes e pagodes sobumbarracãodepanoouemsalõesornamentadosondeassinhásrodopiavamaosom da clássica quadrilha francesa, da valsa, da mazurca, do xote. Nessasocasiões,cantarversosdeautoriadepoetaconhecidonaregiãoeraobrigatório.Além das funções, outra festa era regularmente celebrada em áreas rurais,

ondeseplantavamuitacana:adaBotada.Otítulodesignavaoatodebotaroengenho a moer, nas fazendas de cana-de-açúcar, precedido da bênção docapelão e seguido de um jantar dado pelo senhor de engenho aos seuslavradores, escravos, vizinhos e amigos. Henry Koster, inglês que se tornousenhordeengenho,em1813,assimtraduziuoevento:“Tudoficouprontopelofimdomêsdeagostoemandeibuscarumpadreparabenzeroengenho.Semque essa cerimônia seja realizada, nenhuma das pessoas empregadas noengenho, seja homem livre ou escravo, quer começar sua tarefa, e, se algumacidente sobrevém, é explicado como justo castigo de céu pela falta deobservânciareligiosa.Opadreveioedisseamissa,depoisdaqualalmoçamosefomosparaoengenho.Ofeitoremuitoshomenslivresenegrosestavamaopédamáquina...Duasvelasacesasforamcolocadaspertodoscilindrossobreaplataforma que sustenta as canas, e foi disposta entre elas uma imagem deNossoSenhornacruz.Opadretomouseubreviárioeleuváriasoraçõese,emcertos momentos, com um ramo de arbusto preparado para esse gestomergulhado na água benta, aspergia o engenho e os presentes.” Em muitasfazendas, era a dona da casa, com suasmucamas enfeitadas, quem trazia osprimeiros feixes de cana, envoltos em fitas coloridas, para serem benzidos epassadosnamoenda.A casa de vivenda, a do engenho, os paióis e as extensas senzalas eram

caiadas e limpas. A escravatura recebia timões de baeta azul e roupa dealgodão para o gasto do ano. E de oito a quinze dias antes da moagem

procedia-seaocortedascanas,quechegavamemcarrosdeboiseficavamsobalpendres ou em depósitos especiais. De véspera, a casa do engenho emaisconstruções eram enfeitadas. No terreiro, as bandeiras flutuavam nasextremidades de bambus verdes. Matava-se um boi para o banquete dossenhoresecarneirosegalinhasparaarefeiçãodosescravos.Oscompadreseamigosquetinhamvindodelongecomsuasfamíliaschegavamumdiaantes.Foreirosajudavamescravosnospreparativosdamúsicaedosfogos.No dia da Botada, visitantes acorriam sobre carros de bois, sob toldos de

esteiras ou de chitão lavrado. Muitos vinham a pé, descalços, trazendo ossapatosaoombro.Eoengenhomoíacomprazer.Nessedia,comexceçãodagenteenvolvidacomafesta,ninguémmaistrabalhava.Osescravosbatucavamdepoisdojantar,osforeiroscantavamedançavam,ossenhorespresenteavamas crioulas emulatas de estimação com cortes de chita ou de cassa, fios decorais e brincos de ouro. Em outras ocasiões festivas, o ritmo era dado pelarodadefigurasdançandoebatendopalmasaotoquedetamboreseganzás.Asletrascantadasfaziamreferênciaaocortedacana,àmoagemeaopreparodoaçúcar. Era o coco. Fora das festas, escravas se divertiam com a dança dojongo,aosomdetamboresecantodepontos.Quando as mulheres livres se reuniam para festas de colheita ou outras,

passeiossobrebestasluzidasdepassotrotadoeramapreciadíssimos.Elestantosepodiamrealizardentrodaprópriafazendaquantonosarredores,emfazendasdevizinhos.Selasfemininas,comseusarreiosapropriados,assimcomoroupasdemontar, atestam que algumas senhoras de engenho eram também exímiasamazonas.LuísaBorges deBarros, futura condessa deBarral, que começaracavalgandonocabeçotedaseladopai,seria,maisparafrente,umadelas.Os escravos não ficavam alheios aosmomentos de lazer.Numa época em

que esse conceito não estava totalmente desenhado, não faltavamoportunidades para misturar diversão e trabalho, apesar da exploração e dapobrezamaterialemqueviviam.AhistoriadoraMaryC.Karashrevelamuitosdesses instantâneos de diversão.Depois do almoço, era a hora de apanhar oinstrumento africano, fabricado com os materiais encontrados na cidade,extraindo-lhe sonoridades. Um casal sentado junto, ao som extraído damarimba,revivia“lembrançasdecasanascançõesdesuaterranatal”,anotouoviajanteamericanoThomasEwbankemseuAvidanoBrasil.Emboraproibidapelocódigo jurídicoportuguês,dançava-sepelas ruasaoritmode tamboresemuitoseconversavaemidiomasafricanos,comotestemunhouoprofessordegregoLuísdosSantosVilhena,emSalvador,em1787.

Os tambores que muitos carregavam consigo serviam como linguagem decomunicação.Notrabalho,osescravosusavaminstrumentosdaprofissãoparafazermúsica:ochocalhocomoacompanhamentodepeçaspesadaseracomum.Em Minas Gerais, os ares das fazendas onde ainda havia mineração

associada à lavoura eram embalados por cantigas de trabalho dos escravos.Esses cantos eram chamados de “vissungos” – alguns adaptados às fases detrabalho nas minas, outros parecendo cantos religiosos ajustados à ocasião.Conta-nosAiresdaMataMachadoFilhoqueosnegrosnoserviçocantavamodia inteiro.Antesmesmodonascerdo sol,dirigiam-seà lua, emcantigasdeevidenteteorreligioso.Pelamanhã,entoavamumPadeNosso,pedindoaDeuseNossaSenhoraqueabençoassemseu trabalhoecomida:“Otê!PadeNossocum Ave-Maria, securo câmera qui t’Anganamzambê, iô...”. A seguir, ocantadormestre acordavaos companheiros: “Galo cantou, rê rê/Cacariacou/Cristonasceu/Galojácantou”.Àluaerapedidoque“furasseoburaquinhododia”:“Ai!Senhê!/Ô...ôimbanda,comberati,senhê”.Aomeio-dia,ocantadoravisavaàmulherdeserviçoqueosoliaalto:erahoradoalmoço:“Andambi,ucumbiuatundá...?Sequerende...”Paraajuntar terrasnosmontes,apressaramarchadocavalo,avisarsobreo

encontrodeumdiamante,falar“línguadebranco”,enterrarosmortos,ironizaromaualimentoquelheseraservido,alertarsobrefogonoscampos,perseguiracaçanomato,fugirparaosquilombos,lembrarospais,pedirumaroupanova,contra os feitiços – enfim, para tudo–, cantavamos cativos.Os “vissungos”eramparteimportantedocotidianodasfazendas,esuamúsicamarcavaoritmodos trabalhos e dos dias, informando sobre o que se passava. Durante otrabalho das fiandeiras e capinadores da roça, e no mutirão de construções,outroscantosenchiamasserrasmineiras.Cantava-seatéparareclamardofrio:“Auê/Durojáfoisenguê”.Oupedirchuva:“Ongombecoiipique.”Osescravoscantavamemtodasasocasiõespossíveis.Emborataiscoleções

de música não tenham sobrevivido, há informações sobre a capacidade quetinham os cativos de improvisar com palmas e vozes. A dança vinha junto:“Assimquedoisoumaiscomeçavamadançar,outrossejuntavamaogrupo”,com“todasasvariedadesconcebíveisdecontorçõesegesticulações”,segundoobservouoviajante inglêsRobertson.Nassenzalasounoszungus,pontosdereunião espalhados pela cidade, não faltavam os batuques, que muitosestudiosospercebemcomooberçodosamba.Duelosdetrabalho,notadamenteentreasraspadeirasdemandioca,quesedesafiavamsentadasnastulhasecasasdefarinha,eramoutramaneiradesedivertirtrabalhando.

Nas horas vagas, nas fazendas e engenhos ou na cidade, cativos sededicavam à feitura de belos objetos funcionais, religiosos e decorativos.Osurdidoscomfibrasnaturaiseramosmaiscomuns:esteiras,cestos,chapéusdepalha e capas. Na tecelagem decorativa, os angolanos se revelavam artistasexcepcionais.Os cuidados com a cabeça, o corpo e os dentes também os ocupava. As

cuidadosas escarificações no rosto e nos braços, assim como os engenhosospenteados, revelavam a pertença de cada indivíduo a um grupo étnico ereligiosoouestadocivil.Aconfecçãodecolarescomcontas,búzioseamuletosmágico-religiososvindosdaÁfricaocupava-os longamente.Eavariedadedeestilosdedenteslimadosecortadosrevelava,igualmente,aimportânciadadaàaparênciacomoformadeidentificação.Atento,CâmaraCascudodetectouumjogomuitopraticadoentreoscativos.

Trata-sedoAi-I-Ú,umjogoafricanodetabuleirocomfrutosescuros.Asdozepartescôncavasdeumtabuleirorecebiampequenosfrutos,daíretiradosouaíalocadossegundoumatradiçãoconhecidaemquasetodoocontinenteafricano.Ascamadasmenosabastadasdapopulaçãoencontravam-se,depoisdasave-

marias, nas tabernas, nas vendas, nas “casas de alcouce” ou de prostituição:eramespaçosdesociabilidadeondesebebiacachaçabarata,cantava-seaosomdaviola,emSãoPaulo,oudamarimba,noRiodeJaneiro,ejogavam-sedadosecartas.Ochãodeterrabatida,sobreoqualsecuspinhavaofumomascado,recebianãopoucasvezesocorpodeumferidodebrigaoudeumaprostitutacujosserviçoseramprestadosaliperto.Emmuitosdesseslocaismisturavam-seosdialetosafricanoscomafalareinol.Soavamatabaques,rabecas,berimbaus.Duranteodia,asruasdascidadesseanimavamcomoutrossons.Opeditório

dosirmãosdasconfrariaseraumdeles.Bandejaàmão,elesesmolavamdepésdescalçosparasuasfestas:adoDivino,adoreiCongo,adoSantíssimo.Avozinsistente também pedia: “Para a cera de Nossa Senhora! Para as obras dacapela!ParaasalminhasdeDeus!”Campainhasinformavamsuapresença,queera respondida pela criançada gritando: “Pai Nosso! Pai Nosso!” O santoviático,quandopassava,tambémcausavacomoção.Irmãosdeopaanunciavampelotristebadalodacampainhaqueestavamlevandoosúltimossacramentosaummoribundo.Umamultidãoconsternadaseguiaatrás,emoração.Conversas,orações e cantos em voz alta, quando não palmas e o som de instrumentosmusicais, sobretudo no enterro de escravos, animavam o préstito: amorte –comobemdisseJoãoJoséReis–tambémpodiaserumafesta.

DEBRET,Jean-Baptiste.Umasenhorabrasileiraemseular[Litografia].VOYAGEPITTONESQUE,1835.

C asa: a palavra existia? Sim, e designava, segundo o dicionáriosetecentista, um “edifício onde vive uma família com seusmóveis e alfaias, amparada das injúrias do tempo”. Mas adefinição certamente não servia a todos, nem em todos ostempos, pois alfaias emóveis foram coisa rara entre nós até o

séculoXVIII.De início, foi preciso construir para se proteger. A morada, a habitação

ordinária, foi umadasprimeiras expressõesdaocupação e do trabalhonumacolôniacujoslimitesnãoeramconhecidos.Nasprimeirasdécadasdeocupaçãovalia a sabedoria indígena. Debaixo de um teto de sapê ou de palha decoqueiro,dormia-seemredesfabricadascomalgodão,omesmomaterialqueserviapararedesdepescar.Nolugarde“pregaduras”,cipósoutimbósserviamparaamarrarospaus.Aocomentaraimportânciadohabitat,FernandBraudelsublinha que, para sua construção, hábitos e tradições se impunham. Maisainda em se tratando de culturas agrícolas. Uma casa de caboclo, de pau apique,comsuasparedesemtrançadodecarnaúbaouaroeira,revestidadebarrosocado e coberta com folhas de babaçu ou pindoba, é um documento semidade,capazdeatravessarostempos.ElaéencontradadoséculoXVIaoXXnoBrasil.Expressãoda lentidãonasmudanças,acasaconvidavaà repetição tantona

forma quanto nos materiais de construção: barro, pedra, madeira, tijolo. Oestilo tendia a repetir técnicas ancestrais. Na Goa portuguesa, como nosarredoresdoRiodeJaneiro,ascasascobertasdepalhatinhamportasestreitaseasesteirasserviamparadormir,sentaroucomer.Abostadevacamisturadaaobarrodasparedesajudavaacombaterinsetos.Umúnicocômodoserviacomocozinha,quartoesala,emboraofogãodelenhasesituasse,namaiorpartedasvezes,doladoexternodamoradia,soboque,emSãoPaulo,sechamavauma“tacaniça”: um puxado, lição dos indígenas. Já o óleo de baleia para ligar aargamassa das construções foi contribuição dos africanos, assim como omanuseiodoadobe tãopresenteemMinasNovasouParacatu,MinasGerais.Bancosdecoralouconchaspermitiamafabricaçãodacal,matéria,“alvaeboaparaguarnecerecaiar”,indicavaFernãoCardim.Destinadas a ter curta duração, logo que as circunstâncias permitiam, tais

casaseramsubstituídasporconstruçõesmaisduráveis.OaventureiroAnthonyKnivet, prisioneiro dos portugueses, em 1591, carregoumuita pedra e barro

paraconstrução.OpadrejesuítaAntôniodeSá,também.Lamentava:“Somoscavouqueiros com a gente que tira pedra.”Madeira? Só quando haviamataspor perto. Em carta de São Vicente, em 1550, o jesuíta Leonardo Nunesmenciona“emadeirarumaigrejaqueaquitemosfeita”.Coisarara.Nosprimeirosséculosdacolonizaçãoamarcaeraasimplicidadeeapenúria.

PadreAnchieta,aosereferiràsacomodaçõesqueosjesuítasviriamencontrar,descreve a “paupérrima e estreita casinha” em quemoravam.Àmedida quecresciaochamado“tratodosaçúcares”,osengenhosiamganhandoespaço.E,segundo Anchieta, nas “terras cheias de matos”, do “capitão-mor ao maispequeno” dos colonos, todos se ocupavam em “cortar madeira, acarretá-lasobreosombros,terra,pedraeoutrascousasnecessárias”paraaconstruçãodecercas e moradas. A seguir, buscava-se e achava-se um “poço d’água boa”.Nasciamaspovoações.Do pau a pique se passou à taipa de pilão. Trazida do sul da península

ibérica, que a herdou do norte daÁfrica, a técnica permitia a construção deparedes de terra socada de 60 a 80 centímetros de espessura, protegidas dachuvaporlongosbeiraisefendidasporpequenasaberturas.Emregiõesondeapedra era rara, se adotou esse modelo. Um depoimento de frei Vicente doSalvador registra nosso primeiro século de arquitetura: “São também asmadeiras do Brasil mui acomodadas para os edifícios das casas por suafortaleza;ecomelasseachajuntamenteapregadura,porqueaopédasmesmasárvoresnascemunsvimesmui rijos, ripas e todas asmadeirasdas casasquehouveremdeserpregadas.”As construções militares e religiosas foram pioneiras na utilização de

material mais consistente. Em 1583, Pedro Cardim, ao se referir ao colégiojesuíticodaBahia,afirmou:“Oedifícioétododepedraecaldeostra,queétãoboa como a de pedra de Portugal. Os cubículos são grandes, os portais depedra.” Antes dele, Pedro Gandavo também observou os esforços dosmoradoreslocaisdeassimconstruíremsuasmoradas:“Quantoàscasasemquevivem,cadavezsevãofazendomaiscustosasedemelhoresedifícios:porqueem princípio não havia outras na terra senão de taipa e térreas, cobertassomente com palma. E agora há já muitas assobradadas e de pedra e cal,telhadas e forradas como as deste reino, das quais há mui compridas eformosas.”

AelitebrancamoravaemsobradosDEBRET,Jean-Baptiste.Casario[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,C.1816-1818.

Noperíodoholandês,ousodapedrapareceterchegadoatéasvilaspobres,mascontinuourestritoàsedificaçõesoficiais.GasparBarléupercebeuissonaParaíba:“Moramempovoados,cujascasasnãosãopegadasumasàsoutras...masesparsas...Empregampedrasetelhas,masnãoferro.Quandovãoconstruiruma casa, levantam primeiro os esteios e escoras, estendem sobre eles umripado sobre o qual armam um telhado, coberto de telhas ou de folhas decoqueiro [...] O andar térreo serve-lhes de armazém e despensa. As paredeslaterais são formadas de varas rebocadas, sem capricho nem elegância. Acidade propriamente contém alguns edifícios bonitos, feitos de pedra, cujoscantos e janelas são de mármore branco, sendo o resto das paredes dealvenaria.”

OinglêsJohnMawe,quandopassouporSãoPaulo,todabrancaeemtaipa,em 1808, chamou-a de “cidade de barro”. O “barro”, no caso, era a fortetabatinga, responsávelporváriasmoradaseatépelaconstruçãode torres.Osinventáriosdospaulistanosreforçamadescrição.OdeFranciscodeAlmeida,em1616, registrava: “Casadavila, dois lançosde taipademão, cobertasdetelhacomquintal.”OdeFranciscodeSeixasdizia:“Sítiocomcasasdetaipacobertas de palha.” Anexos, simples telheiros funcionavam como casa defarinha,abrigandomonjolosemoendas.

Duranteoprimeiroséculodecolonização,surgiramváriaspovoaçõeslitorâneas.HONDIUS,Hendrik.AccuratissimaBrasiliaetabula[Cartográfico].

AMSTERDÃ:HENRICUSHONDIUSEXCUDIT,1633.

Aplanta variavapouco: as casas tinhamampla sala rodeadadequartos.Àfrente,umcorredoroualpendrecomdoiscômodosdecada lado:umacapelaparticulareumquartoparahóspedesdepassagem.Oalpendre,alémdeafastaro calor em regiões quentes, filtrava o mundo exterior. O que interessava àfamília estava dentro de casa. Na varanda, ficavam os visitantes, escravos edesconhecidos.Eralugardelazer,observaçãoetroca.Com fisionomia semelhante, as casas de engenho se multiplicaram na

direção de Angra dos Reis e Paraty. Ao Norte, as dunas arenosas asempurraram para dentro do litoral em Maricá, Araruama e Campos dosGoitacazes.OexemplaremMatodePipa,Quiçamã,falabemdasimplicidadedessas moradas de um só piso, avarandadas, de velhas portas arqueadas epossuidorasdeoratóriointerno.Paraescoarasgrandeschuvas,aliçãoveiodoOriente: telhados e beirais alongados com desenhos graciosos ou figurasfantásticas. De Portugal veio a tradição das paredes caiadas e dos portaiscoloridos,tãocomunsnaspaisagensdoMinho,doAlentejoedoAlgarves.Noterreiro de terra socada, em frente do casarão, batia o coração do engenho:escravos recebiam as ordens do feitor, eram contados ou castigados. Osmolequesalimentavamascriações,asgalinhasciscavam,asmucamassocavamofeijãooudescascavammandioca.E,emdiasfestivos,eraaliqueseacendiaafogueiraesetocavamostamboresparaojongoouolundu.

EnquantonoRiode Janeiro terras eramdoadas “aquempudesse construirumengenhoem trêsanos”,noNordeste, torresdegranitovigiavamo litoral,misturandoprevençãoelavouradecana.AsordensparasuaconstruçãovieramdoRegimento de Tomé de Souza.Mem de Sámontou o próprio engenho àsmargens do rio Sergipe.O rei também quis ter o seu, noRio de Janeiro: àsmargensdeuma lagoa, foiomaisantigodacapitania.Vendidováriasvezes,ganhouonomedoquartoproprietário,RodrigodeFreitas.Em Tatuapara, na Bahia, embelezada por trabalhos de cantaria, paredes

ciclópicasecapelahexagonal,ficavaatorredeGarciad’Ávila–umverdadeirocastelocujasjanelasemarcoseabriamparaorioPojuca.Eraumadasquarentatorres que se encontravamnaBahiaou as sessenta situadas emPernambuco,repertoriou padre Fernão Cardim. E na capitania se encontravam desdeengenhos com a simplicidade do Pimentel, emSão Sebastião do Passé, comcurral,senzalaehospedariaparaviajantes,atéoSãoFranciscodoConde,emParamirim,comsuaigrejarecobertadeazulejos,piabatismalemmármoredeCarrara,ossuárioesacristiacomlavabodelioz.A ocupação holandesa, que vigorou de 1630 a 1654, pouco interferiu na

arquiteturapernambucana.Casascomfrontãoeempenasemdegraus,alémdouso do tijolo, material que os flamengos traziam como lastro nos navios,valorizou as ruas das cidades. Nos arredores, Franz Post deHaarlem, pintortrazido porMaurício deNassau, retratou vários engenhos de taipa.Na parteinferiorficavaodepósito,e,nasuperior,aresidência.Umapalhoçacoladaaosmurospodiatantoservirdetetoparaosescravosquantoparaabrigarcriações.Otijolo,fabricadoapartirde1643,assoalhouvarandasecômodosdegrandesfazendas, como se podem ver ainda nos municípios de Abelheiras, Garrote,CampoMaioreSãoDomingosdoLivramento.Ohábitodedestinarumaparteparadepósitoeoutraparamoradiaprovém,

segundo estudiosos, do norte de Portugal. Assim como a tradição de casasgrandes associadas às capelas, com fachada única, o que as tornava maisimponentes.Algumas eram tão grandes quanto igrejas, como ainda se vê noNordeste, por exemplo, no Engenho Bonito, em Nazaré da Mata. Ali,impressionavaobelíssimotetoemmadeirapolicromada,emcujosmedalhõessemostraSãoFranciscoXavierconvertendooshindus,amesadecomunhãotorneadaeaportaesculpida.Osenhordeengenhoesuafamíliatinhamassimacessoprivativoaosofíciosreligiosos.Afamíliaenchiaastribunasdanaveouacapela-morsemseacotovelarcomescravosougentedefora.Livre dos flamengos, a Bahia respirou e ganhou força. Seus engenhos

enriqueceram.OdecertoHeitorAntunes,“oqualtinhagrandesedifíciosassimdeengenhocomodecasadepurgar,devivendaedeoutrasoficinas[...]aqualfazenda mostra tanto aparato da vista do mar, que parece uma vila”,impressionouGabrielSoaresdeSouza.Passados150anos,numaavaliaçãode1811,oengenhoMatoim,dafamíliaRochaPita,apareceassim:

Umamoradadecasadevivendanobredesobrado,comprimeiroesegundoandarescomeirado,emfundo da dita propriedade outro quarteirão de casa que serve para arranjo da família, tudo feito depedra e cal com caixa de paredes mestras, contigua à dita casa de vivenda uma capela com doisconsistórios, sacristia,átrio,campanárioe forrodevoltanacapela-morena frentedaditacasaumaescadariaquefazentradadacapelaedacasa,tudodepedraecal,avaliadaacasaeacapela[...]emdozecontosderéis.

Nessaépoca,ascasas-grandesdeSãoPauloàBahiapassaramaseassociarcom as fábricas de açúcar. O argumento era o de que “só o olho do donoengordava o boi”. Ou seja, proprietários tinham que vigiar pessoalmente aprodução.Muitostinhamatéumquartonoedifício,ondedormiam.Muitossenhoresvoltavamàscidadespararealizarnegóciosoutinhamaíum

sobrado.Comoeramascasasemtaispovoações?AochegaraoRiodeJaneiroem 1649 com o governador Sebastião de Brito Pereira, o aluno dos jesuítasRichard Flecknoe descreveu-as como “edifícios pouco elevados” em ruasvoltadasparaomar.UmagentefrancêsdaCompanhiadoSenegal,dedicadaaotráficonegreiro,

depassagempeloRioem1703,comentouasmudançasprovocadaspeloourode Minas: “No meio da rua principal, do lado do mar, situa-se a casa dogovernador,quenãoégrandecoisa.Hámuitasoutrasruasmenores,masquenãodeixamde serbonitas,bem traçadase repletasdecasasbemconstruídas[...] a cidade seria muito diferente caso as minas não tivessem sidodescobertas.”Enquantoisso,emSãoPaulo,ogovernadorAntônioJosédeFrancaeHorta

escreviaaoviscondedeAnadiapedindo-lheque,dePortugal,enviasseoficiaisengenheiros “de que há tanta perciszão nessa capitania, assim para aconstrução de obras públicas como para levantar cartas”, ou seja, desenharmapasdosterrenosparanovasedificações.Apreocupaçãocomabelezadascasasestavanosdetalhes.EmboranaChina

aarquiteturanãofosseaartemaior,conformeanalisouJoséRobertoTeixeiraLeite,acirculaçãodemercadoriaspromovidapelametrópoleentreaÁsiaeoBrasil promoveu também aquela de gostos e ideias decorativas. Os telhados

acachapados, por exemplo, foi o resultado desta importação: “Largos beiraisarrebitadosnaspontas emcornosde lua [...] casasde telhadoacachapadonoestilo dos pagodes da China.” Os velhos telhados, também estudados porGilberto Freyre, foram por muitos anos uma marca tradicional de nossaarquiteturacolonialnacidadeounocampo.AstelhaszoomórficasouadornosdeaparênciabizarraeexóticaevocavamasquinasdashabitaçõesencontradasemMacaueGoa.O engenheiro francês Louis Vauthier, que residiu no Brasil em 1840, se

impressionou com os ângulos dos telhados à maneira chinesa e o vermelhovivocomquesepintavamosbeirais,contrastandocomabrancuradascornijas.“Os ângulos das cumeeiras têm ornamentos bizarros, constituídos maisfrequentemente por vãos de louça chumbados pela base na argamassa epintados de vermelho vivo.” Outros estudiosos identificaram “uma ponta oupomba,feitadetelha”,“pombascomasasmuitoabertas”ou“saltitantesbeiraisarrebitados”.As telhas esmaltadas também são uma lembrança da China no Brasil e

tinham a função de “gratificar quem olhasse o beiral de baixo para cima”.Telhas semicilíndricas em azul e branco, exibindo delicados desenhos commotivos florais ou vegetais, davam acabamento elegante aos edifícios. Oscachorros–nomequesedavaàsextremidadesdavigaqueseprojetadeumapilastraparaornarousustentar–,quandodecoradoscomanimais,sãotambémumalembrançachinesa,alémdenoscontaremsobreashabilidadesdecorativasdamarcenariacolonial.EmSãoPaulo,podemosvê-losnaarquiteturaruraldascasasbandeiristas.Ascasas-grandesdossítiosdoMandú,emCotia,edeSantoAntonio,emSãoRoque,possuemelementosornamentaisdetradiçãochinesa,comogolfinhosestilizadosna sustentaçãodosbeirais.NaChina, identificadocomodragãochi-wen,ogolfinhoéumdosseteanimaisaquemseatribuiaproteçãodascoberturas,contraoperigodeincêndios.Com todos os defeitos, Salvador foi, até 1763, a capital da possessão

portuguesa, e nela se concentrava a alta fidalguia lusitana, o alto clero e osmagistrados que administravam a colônia. “Quanto às casas em que vivem,cadavezsevãofazendomaiscustosasedemelhoresedifícios”,surpreendia-seGandavo.Seanteseramdetaipaepalha,agoraeram“muitosobradadas”.Oslucros com o açúcar incentivaram a construção de edifícios oficiais ereligiosos, assim como de algumas luxuosas residências. Essas, na forma desobradosgeminadosdetrêsouquatropavimentos,começaramasererigidasnoséculoXVII.

O solar dos Sete Candeeiros é um exemplar desse tipo de obra. Outroexemplo de arquitetura residencial suntuosa se encontra no Solar doUnhão,com suas quatro fachadas livres, originalmente morada do desembargadorPedro de Unhão Castelo Branco. Pequenas capelas foram erigidas desde osprimeirosanos:adaConceição, juntoaoporto,na faixa litorânea,origemdaatual igrejadeNossaSenhoradaConceiçãodaPraia; adaAjuda,naCidadeAlta, que funcionou como matriz e como igreja dos jesuítas, antes daconstrução da Sé e da igreja do colégio dos padres da Companhia. A Sé,edificada depois da chegada do bispo Fernandes Sardinha, foi iniciada porTomé de Souza e assim descrita porMem de Sá, em 1570: “Fiz a Sé dessacidadedepedraecal,comtrêsnavesedeboagrandura.”GabrielSoaresdeSouzacomplementava,sobreoColégiodosJesuítas:“Tem

essecolégiograndesdormitóriosemuitobem-acabados,partedosquaisficousobreomarcomgrandevista;cujaobraédepedraecal[...]comumaformosaealegreigreja,ondeseserveaocultodivino,commuiricosornamentos,aqualospadrestêmsempremuilimpaecheirosa.”Aexistênciadecasariocomarquiteturamaisrebuscadalevavaaosurgimento

deopiniõesfavoráveisaomeiourbanocolonial.SegundoojámencionadoLuísdo Santos Vilhena, morador da capital baiana, em 1790, a maior parte dossobradosdesembocavanapraia,ouCidadeBaixa.SetecalçadaslevavamdestaàCidadeAlta.“Hánela”,explicavaoautor,“muitosedifíciosnobres,grandesconventosetemplosricoseasseados”.Salvadortinhaaindatrêspraças:aNovadaPiedade,ondeos regimentos faziamexercíciosmilitares;adoPalácio,emtornodaqualseconcentravaaresidênciadosgovernadores,aCasadaMoeda,aCâmara, aCadeia, o Paço daRelação, o corpo da guarda principal, outrastantascasasparticulareseseisruasquesecomunicavamcomtodaacidade;eoTerreirodeJesus,cercadopelocolégioe igrejadosjesuítas,posteriormenteàsuaexpulsão,transformadoemHospitalMilitar,aigrejadosTerceirosdeSãoDomingos, a igreja da Irmandade de São Pedro dos Clérigos e inúmerascasinhasbordejandoseteruasquealidesembarcavam.

SantoseSãoVicente,localidadescommuradasdeestacasdemadeira,1615.OportodeSantoseodeSãoVicenteem1615.SegundoagravuradoroteirodoalmiranteJoris

vanSpilberg[Iconográfico].PARIS:IMP.LEMERCIER.SÉCULOXIX.

Nas cercanias da cidade se encontrava o bairro de São Bento, planícieaprazívelcortadaporruaslargas,ondeseerguiambelasresidênciasealgumasigrejas, o bairro da praia, endereço de opulentos comerciantes, e o de SantoAntônio, menos importante. A preocupação de Vilhena era, contudo, com aconstruçãodemasiadaemterrenoimpróprio.Segundo ele, encarapitadas morro acima, por “evidente milagre, não

rolavam”morro abaixo. “Visto que todas são feitas de tijolo, sobre delgadospilares domesmo, levantados em precipícios escarpados, e sem terreno parasegurançadosalicercescujavista infundeterroraomaisafoitoedestemido”,queixava-se.Suapreocupaçãoeraigualoumaiordoqueonúmerodesobradoscujas varandas com rótulas, cobertas com telhadinhos, se sobrepunham. Aescuridãodavaao“tapumederótulas”,comoochamava,umaspectofúnebre.Ainda criticando a fragilidade do urbanismo de Salvador, lembrava que, se

“troassemcanhões”denações inimigassobreaCidadeAlta,estaarruinariaaCidadeBaixa.NoRecife,ariquezadoaçúcartrataradeconcentrarapopulaçãoepromover

aconstruçãodealtossobrados,chamados“sobradosmagros”,queconviviamcomumamultidãodemocambosdeescravosehomenspobres.Nossobrados,ocomércioocupavaotérreo;noprimeiroandar,oescritóriocomapartamentosparacaixeirosesucessivamentealcovasesalas;noúltimoandar,emfunçãodocalor excessivo, se localizava a cozinha. Ia longe a época em que GabrielSoaresdeSouzadefiniaRecife,noséculoXVI,comoumsimplespovoadode“pescadoreseoficiaisderibeira”.No iníciodo séculoXVII, a capitalpernambucanaeraconsideradapor frei

Vicente do Salvador o porto mais frequentado do Brasil. Diferentemente deoutrastantascidadescoloniais,Recifeestabeleceuumarelaçãoespecialcomaságuas,principalmenteasdoCapibaribe,queemolduravamoespaçourbano.NobairrodeSantoAntônioficavaopaláciodaBoaVista.ORecifepropriamentedito–ondeaindaficaoporto–estavaunidoaOlindaporumistmodeareiadepraiafacilmenteencobertopelomaremdiasderessacaforte.SantoAntônio,aMauritstadtdeNassau,concentravaaslojasdecomércio,sendoqueexpressivaparte dessa atividade – portas adentro ou portas afora – era exercida pormulheres,entreasquaismuitasnegrasquitandeiraseprostitutas.Na época em que chegaram os holandeses, Santo Antônio, antiga ilha de

Antônio Vaz, não passava de um vasto pântano coberto pelas marés. Aí seerguiaoconventodeSãoFranciscoealgumascasasdemorada.NadireçãodeAfogados,passava-seaopédofortedasCincoPontas.OpaláciodaBoaVista,de longe a maior construção, estava mais no interior, pontilhado de casasgrandes,comquintaisextensoseatésítios.UmbraçodoCapibaribecortavaosudoeste daquele subúrbio e, ao norte, um afluente do rio Beberibe e osmanguezaisdeSantoAmarodasSalinas– localdedesembarquedeescravosafricanos– iam,aospoucos, separandoa ilhaqueabrigavaopaláciodaBoaVistadaterrafirmeatéchegaràdivisacomOlinda,aantigacapital.Oincêndioprovocadopelosholandesesem1631emOlindafezdesabrochar

Recife,quecresceuaolongodaságuas.Onódaantigapovoaçãofeitodeumconjuntodearmazéns,trapichesdeaçúcarepequenascasasdepescadoresforasubstituído, no “tempo dos flamengos”, pela rua dos judeus, com suasresidências,comércioesinagoga.Aolongodorio,debruçavam-semoradiasdetodosos tiposmirandoomovimento imensodecanoeirosescravosou livres,levando gente, víveres, mercadorias, água potável e animais em todas as

direções.OPoçodaPanela,deáguascristalinas,erao lugarondeasfamíliasabastadas se refugiavam durante os tórridos verões. O Varadouro, barragemnatural que separava a água doce da salobra, foi melhorado por sucessivosgovernadores, tornando-se não só o manancial da cidade como também umportoparaascanoasqueiamevinhamdeRecife.NasmargensdoCapibaribe,de águas caudalosas, sobretudo em época de cheia, concentravam-se aslavadeiras da cidade, assim como os mocambos – feitos de barro batido,mariscos, cipós, madeira e folhas –, em que moravam escravos e famíliaspobres.Ancorada entre os charcos formados pelo Tamanduateí, o Pinheiros, o

Juqueri e o Cotia, São Paulo parecia, aos olhos dos viajantes estrangeiros,melhoraglomeraçãourbanadoquesuascongêneres.Noaltodeumapequenaelevaçãosobressaíamastorresdesuasoitoigrejas,seusdoisconventosetrêsmosteiros. Casas em taipa branqueada com tabatinga, uma espécie de argilaclara, davam-lhe ares de incrível limpeza. As ruas, no entender de váriosobservadores,eram“largas,claras”,eascalçadas,”espaçosaseasseadas”.Aquieali,chafarizesreuniamamultidãodeescravosemulheresembusca

deágua.OdolargodaMisericórdiaeradosmaisconcorridos.Oclimaamenoe saudável também impressionava: “O clima de São Paulo é um dos maisamenos da terra”, exultavam Spix eMartius, depois de torrar sob o intensocalor carioca. Transposto o riacho doTamanduateí, entrava-se na partemaisanimada: o mercado ou rua das “casinhas” – lojas de víveres – que seesparramavampelaruadoBuracãooupelaladeiradoCarmo.

As casas de moradia dos que tinham mais posses costumavam ter doisandares dotados de balcões, onde se instalavam homens emulheres. Algunscômodos tinham piso em madeira: “assoalhado de taboado” ou “forrados”.Neles, os moradores tomavam a fresca da manhã e da tarde e assistiam aodesfilar das procissões em dias de festa de santos. Outras casas possuíamcorredoreslateraissustentadosporpilaresemmadeira,assimcomoumbraisdeportasejanelasdecoradas.AtéoiníciodoséculoXVIII,oscarpinteiroseramíndios, e seu estilo deixou registros na construção das casas: elevadas paraevitar que as enxurradas destruíssem suas paredes, voltadas para o Norte,evitandoosventosfriosquesopravamdeSudoeste,armaçõesdepausroliçoshabilmenteamarradosparasuportartelhadosecozinhasexternassobjiraus.

NoséculoXVIII,oRiodeJaneiropassouaseracapitaldoBrasil.FORBES,James.AperspectiveviewofthecityofSt.SebastianatRiodeJaneiro[Iconográfico].

S.L.1765.

Quanto ao seu interior, Saint-Hilaire, viajante francês do século XIX,descreveu-ascomolimpasemobiliadascomgosto.Asparedes,pintadascomcores claras e guarnecidas de rodapés nas casas novas, contrastavam com asdasantigas,ornadascomarabescosedesenhos.Singelas construções religiosasdominavama silhuetada capital: a catedral

daSé,omosteirodeSãoBento,osconventosdeSãoFrancisco,CarmoeSantaTeresae,maisafastado,odaLuz.Ocedrogarantiaa fabricaçãodealtareseretábulos. Capelas particulares, como a de Fernão Paes de Barros, eramelegantemente decoradas com folhas de ouro, exóticas chinesices e tetospintados.Outrasconstruções se sobressaíamaocasariouniformeeaustero:opalácio do governo, a cadeia, o quartel e o hospital militar. Segundo umcronista, as igrejas pouco tinhamde notável. Para alémda colina central, aonorte da cidade, descobria-se o Jardim Botânico, construído em 1799 porAntônioManuel deMello Castro e Mendonça, governador da capitania; doladodoBrás,daConsolaçãooudaSantaIfigênia,pequenaschácarascomseuspomareseroçasbemcuidadasindicavamapresençademoradores.Maislonge,alémdosriosquebanhavamosopédacolina,freguesiasperiféricassediavamfazendasqueabasteciam,comseusprodutos,omercadodealimentos.Os chamados “negros da terra” tinham seus alojamentos no fundo das

propriedades, próximos às cozinhas e separados das casas por roças. Nocampo, suas moradias estavam sempre próximas à lavoura em quetrabalhavam. No início do século XVII, tais casas extensas eram chamadas“tijupares”. Gradativamente, passaram a ser individualizadas e cobertas de

palhapara,no séculoXVIII, se transformarememsenzalasparaosafricanoschegadosaSãoPaulo.Apresençadeterreirosepraças,tãocomumemnossascidades,notadamente

nascosteiras,nãosefariasentirnosnúcleosdemineraçãoqueseformaramdepequenosarraiais,comoOuroPretoeSãoJoãoDelRei.Ocorrendooouroemregiões montanhosas, os arraiais nasciam ora junto aos regatos, ora nasencostas. Entre eles se formou uma rede de ruas irregulares e íngremes, nasquais se encravavam pequenos pátios. Em meio ao emaranhado de vielas,travessasebecos,seequilibravam,aprincípio,casasdepauapiquecobertasde telhas do barro facilmente encontrado na região, as casas de “sopapo”,posteriormente trocadas, pelo menos entre a elite, por construções maisduráveis.No auge da corrida do ouro, a itinerância dosmoradores definia ofuturodascasas.ContoucertocomercianteFranciscodaCruz,deSabará,quehouvequemtrocasseseusimóveis“porunscalçõesencarnadosouumfreiodecavalo”.Equetudodeixasseparairàsminasnovas.Oouro fezcomqueospovoados rapidamentese transformassememvilas,

concentrandocolonose imigrantesque,comseusescravos,vinhamembuscadefortuna,alémdeautoridadesquealiseinstalavamparacontrolaraextraçãoaurífera.Comessasmudanças,oscasarõesseassobradavame,comoemoutraspartesdoBrasil,instalavam-senegóciosnotérreo.AolongodoséculoXVIII,asausterasparedesdetaipacomeçaramaabrir-seemjanelasevãosquedavamàscasasmineirasumaextraordináriaharmonia.Ipês,braúnas,cedrosecasca-de-cobra forammadeiras largamente utilizadas na construção de residências,igrejas e edifícios públicos. Seus interiores ganhavam tetos lisos ou compainéis ricamente decorados com festões, arabescos, colunas e figuras deanimais.Comomesmoobjetivodeembelezar,aesteiradebambuachatado,processo

trazido pelos portugueses do Oriente, recebia curiosas pinturas. Os imóveiseram acessados por corredores, muitas vezes pavimentados com hematitas equartzos rolados. Uma escada metida entre as paredes levava ao primeiroandar.Neleseencontravamosalãodevisitas–defrenteparaarua–easaladejantar,nosfundos,abrindo-separaumalpendre.Osquartosdedormirseabriamparaoprimeirorecinto.Ascozinhas,paraa

varanda. Aí também se localizava o quartinho em que eram depositados osvasos de serviço íntimo e onde, em gamelas ou bacias de “arame”, vez poroutra se tomava banho.Outra escada ligava a varanda ao pátio interno. Paraalém do pátio, estendia-se a horta familiar. Debaixo da casa, junto ao

galinheiro,àscocheiraseaoquartodearreios,localizava-seoespaçoondeosescravosdormiam.Segundoespecialistas,compoucasvariantes,essefoiotipodeconstruçãocomumàelitenosdistritosdoouroedosdiamantes.ApartirdasegundametadedoséculoXVIII,ousodapedralavradadetradiçãominhotafoi frequente em igrejas, casas solarengas, edifícios públicos e fazendas nasregiões de “tapanhoacanga”. Esse é o caso, por exemplo, do sítio do padreFaria,doTaquaral,edoarraialdaPassagemdeMariana.A prosperidade da vida urbana mineira incentivou uma série de

melhoramentosarquitetônicosedomésticos:asfachadascomeçaramaganharsacadas rendilhadas empedra-sabão, grades em ferrode inspiração italiana eornamentos em cantaria nas soleiras. Jardins à francesa, recortados emcanteiros de flores variadas, chamavam a atenção dos viajantes, como os dacasadosMotta,emOuroPreto.EmGoiás,cidadesdoouro,comoJaraguá,viramsurgirousodamalacacheta

em lugar de vidros na janela e de seixos rolados na ornamentação devestíbulos. Fontes inspiradas na escola de escultura deMafra murmuravam,refrescando as tardes. Residênciasmédias e grandes abrigavam capelas comaltaresemjacarandáoucedro,ondesenhoreseescravosassistiamàmissa.Nascasassemcapela,o“quartodossantos”,emqueumacômodaaltasustentavaoratórioseimagens,atendiaàspromessaseoraçõesdetodos.AtéadescobertadoouroemMinasGerais,acidadedoRiodeJaneironão

tinhamuitosencantos.Possuía,noséculoXVII,umafortalezabemguarnecidadecanhõeseumcentrocomercialmuitoanimadoporembarcaçõesvindasdoRiodaPrataedeAngola.AtémeadosdoséculoXVII,acidadepossuíaquinzeigrejas e instituições religiosas: o colégio dos jesuítas, no extinto morro doCastelo, omosteiro de São Bento, o convento do Carmo, a igreja de NossaSenhoradaConceiçãooudaCruzdosMilitaressinalizavamaprosperidadedacidade. Seu perfil, contudo, era ainda de umRio de Janeiro rural. A cidadetinha havia poucodescido dosmorros, onde a plantara inicialmenteMemdeSá,parainvadirvárzeasevalesentremontes.Aolongodaribeira,plantavam-setrapichesencarregadosdearmazenaraçúcar.Entreoquadriláterodosmorrosdo Castelo, Santo Antônio, de São Bento e da Conceição delineavam-se asprimeiras vias: a rua Direita, da Vala, da Misericórdia. No atual Catete,instalaram-seolariasqueabasteciamacidadecomtijolosetelhas.Duas importantes ermidas foram, então, construídas: a da Candelária,

erguida, empromessa, pelo abastadoAntônioMartins daPalma, que pagavaumvotoque fizeradurante terrível travessiadoAtlântico, e adaPenha,que

desde sua construção, por Baltazar de Abreu Cardoso, ganhou fama desantuáriomilagroso.Medidas de higiene combatiam com timidez o péssimoestado sanitário: isolaram-se bexigosos em lazaretos e obrigou-se odestripamentoemalto-mardasbaleiascaçadasaolargodacosta:“Paraqueomaucheiroque exalavamnão infeccionasse a cidade.”ACadeiaPública e aCasa da Câmara desceram do Castelo e se instalaram na várzea, no antigoterreiro da Polé, depois nomeada praça do Carmo, e atual praça XV deNovembro.Nailhagrande,erigiu-seumestaleiro,destinadoafabricargaleõese fragatas empregados no comércio marítimo e no policiamento do litoralbrasileiro. Os primeiros quilombos, constituídos por negros fugidos dosengenhos,começavamaconcentrar-senasmargensdoParaíba.NoiníciodoséculoXVIII,seintensificouotráficonegreiroparaaextração

doouroeoaumentodaproduçãodoaçúcarfluminense.Comoficouacidadeeamoradia?Aprimeira,crescida,inchada,viaaumentardiaadiaosproblemascomlimpeza.OsviajantesestrangeirosconsideravamoRiodeJaneiro,comodissedelauminglês,“amaisimundaassociaçãohumanavivendosobacurvadoscéus”.Emcontrastecomabelíssimabaíaazulemontanhosa,ascasaseramfeias.Asruas,sujas,atraíamporcosououtrosanimaisdomésticosquevinhamcomerosrestosdelixojogadosportaafora.O“desasseio”daspraias,emcujaságuas se derramavam os dejetos domésticos, preocupava as autoridades:“Despejoscujoseflúviosvoltamparaacidadeeafazempestífera.”Nicolas-Louis de Lacaille, astrônomo, passou noRio em 1751 e observou

que,emmeioàsujeira,“ascasas,feitascompedrastalhadasetijolos,sãobemconstruídas.Elas sãocomumentededois andares, algumasde três, são todascobertas com telhas e contam com gelosias nas portas e janelas. As igrejaslocais são bonitas, ainda que compridas e pouco elevadas. Quase todos osinteriores são esculpidos com frisos banhados em ouro,mas esses frisos sãotantos que quase não se percebe nenhum desenho. A maior parte dessestemplos, iluminadosporumaúnica egrande janela instalada acimadaporta,temumaspectosoturno”.Já Évariste Parny, poeta e planteur rico, proveniente da Reunião,

desembarcadoemsetembrode1773,discordou:“Acidadeégrande,ascasassãograndesemalconstruídaseasruassãobemalinhadas,masmuitoestreitas[...]Nadadirei sobre as igrejas, pois os portugueses são iguais a si próprios.Registrareiapenasqueelassãodeumariquezaespantosa,porémdesprovidasdebancos.”Melhoradosem1743,os“armazénsdorei”setransformaramemresidência

dosgovernadorese,apartirde1763,emresidênciadosvice-reis.JohnByron,avôdeLordByron,narotaparaumamissãoespecialnasÍndiasOrientais,aopassar, em outubro de 1764, anotou: “O palácio, além de ser uma suntuosaconstrução de pedra, é o único edifício da cidade que conta com janelas devidro, pois as demais casas só dispõem de pequenas gelosias. Junto a esseprédio está instalado um cárcere, destinado aos criminosos; essa construção,repletadegrades,ofereceaovisitanteumespetáculodesagradávelediminuiaformosuradoedifíciocontíguo.”Branca, retangular e baixa, a construção era modesta e seus vastos salões

abrigavam pouca mobília. À sua direita, na linha do casario voltado para apraia, erguiam-se os telhados íngremes da casa dos Telles. Ao lado, portasabertasindicavamaestalagemdofrancêsPhilippe,bodegueiroconhecidodosimigrantes portugueses que buscavam os caminhos para Minas Gerais. Umchafariznapraçareuniaescravosquevinhambuscaráguaemsonorotumulto.Sem numeração, as casas eram conhecidas pelos nomes dos que nelas

residiamoupelocomércioqueali sepraticava.Numportoondeo tráficodeescravoseradeterminante,onde ficava talmercado?OValongo,nomequeosinistro local recebeu, localizava-se entre o outeiro da Saúde e o morro doLivramento.ErigidosobasordensdomarquêsdoLavradio,quandoseinstalounoRio,em1769,consistiaemarmazénsalinhados,beirandoapraia,cadaumcom sua porta aberta para receber a mercadoria humana vinda da África.Depois da travessia em condições terríveis, os cativos encaveirados eramengordadoscomfarinha,bananaeágua,podendoganhar“atécincolibrasporsemana”. Cartazes do lado de fora anunciavam a chegada de “negros bons,moçosefortes”,vendidosporpreçoscom“abatimento”.Aliás,emqualquerparte,asmelhoriasurbanasnãoalcançavamosescravos.

Quandonãohaviasenzalaougalpãoondedormir,esticavamsuasesteirasondedesse:porão,résdochãoepertodofogãonascozinhasdossobrados.NoPará,já no início do séculoXIX, Spix eMartius observaram pequenas casas paracativos. Presentes em Minas Gerais, elas também existiram em algunsengenhosbaianos,comoodoviscondedePedraBranca,DomingosBorgesdeBarrosounoValedoParaíba,antesdeoscafezaistomaremcontadosmorroseaumentaremosplantéisdecativos,quandofoiprecisocontrolá-lospormeiodegrandes senzalas. Feitas em tijolo, madeira ou pedra, cobertas de palha outelha, com portas que davam para corredores e eram trancadas pelo lado defora, agregavamfamíliasou separavamosescravospor sexo.Algunsautoresenxergam tradições banto e iorubá nas construções dedicadas aos cativos.

Tinhampisodeterranua,aberturasestreitaseumaúnicaporta.Nas artériasmais importantes cruzavam-se os funcionários do governo, os

soldadosdamilíciada terra, fradesepadresseguidosdebeatas,mazombos–enriquecidos graças ao açúcar, ao ouro ou ao tráfico de escravos –,mulatos,mamelucos,cabras,peões,oficiaismecânicos,ciganos,degredadosemilharesdeescravos.Mulheres–as trabalhadoras,cativas, forrasoubrancaspobres–vendiam, elas também, os seus serviços de lavadeiras, doceiras, rendeiras,prostitutas, parteiras, cozinheiras etc. Pouco se viam senhoras e sinhás.Reclusas,nãodeixavamderealizartarefasdomésticas,expondo-seapenasemdiasdefestareligiosa.

P ortas adentro, as moradas brasileiras não impressionavam. Aoentrar,ovisitantemergulhavanameiaobscuridadeproporcionadapelas janelas estreitas e pela presença demuxarabiês: treliças demadeira que encobriam rótulas e permitiamver sem ser visto.Aideia era conjugar sombra, ventilação e discrição. Na falta de

vidros,essaeraasolução.AochegaraSalvador,omarquêsdoLavradioficouhorrorizadocomoquechamoude“memoráveisurupemas[...]queguarneciamportas e janelas da cidade, fazendo-as parecermais cabanas do que casas deumacapital”.Taisurupemaseramumtipodetreliçaque,nafaltadamadeira–custosaerara–,eraconfeccionadacomfibravegetal.Ochãobatidoeafumaçado fogão a lenha faziam o resto. A falta de chaminés enegrecia as paredes.Tudo ficava escuro e fedido: “Todos os sentidos ali padecem com o fedorinsuportáveldecatinga”,diziaomarquês.Móveis? Poucos, e somente nas casas de ricos fazendeiros ou autoridades.

Demorouparaqueocatresubstituíssearedeefosse,porsuavez,aposentadopelas “camas com seu sobracéu e seus pavilhões”. Para que as cadeiras deespaldaoudeestado,onde só se sentavamautoridades, tomassemo lugardecadeiras rasas, tamboretes e bancos. E para que as mesas de “missagras eengonços” dessem lugar amóveis “torneados e com gavetas”.Que o diga oprofessordelatimLuísdosSantosVilhena,quedescreviaosinterioresdoladopobredeSalvadorcomo“mobiliadosdeordináriocomduasoutrêsesteirasdetábuas,segundoascamasquecareceafamília”.Ele tinha razão. Móveis variavam de acordo com a condição social dos

ocupantes da casa. Naquelas dos ricos, as artes orientais, criadoras decontadores marchetados de marfim, com aplicações de tartaruga ouincrustaçõesdemadrepérola,foramchegando.Amodanametrópole,em1662,era o mobiliário oriundo da China e da Índia, tal como o que fez parte doenxovaldecasamentoded.CatarinadeBragança,quelevouparaaInglaterra“tantos contadores indianos como nunca se tinha visto”, segundo umcontemporâneo.Isso explica, na relação de bens deixados por JoséLopesFiúza, senhor de

engenhodoBaixodeBocadorioParanamirim,naBahia,em1741,apresençade “dois contadores da Índia”, avaliados em 16mil réis, de dois “ventos daÍndia”, ou seja, biombos ou “para-ventos”, tambémmarchetados e avaliadosem50milréise“arcas,tabuleiros,bandejasgrandesepequenasdecharão”ou

lacafina.Igualmente,ilustraocasodoespelhode“tartarugacomseupavilhãodedamascovermelho”,mencionadonumtestamentopaulistadoséculoXVII–omesmoquecitaochãocoberto“comalcatifasdeseda,tapetesdelã,coxinsdedamasco,depalhadeAngola”epainéisde“madamasesantos”.Namesmacidade,famosaporsuaaparentesimplicidade,nãofaltavaogosto

por embelezar o ambiente com pinturas. Certo Antônio Ribeiro de Moraispossuía“seisquadrosdeRomagrandes,seisquadrosdeRomapequenosetrêsquadrosdeRomamédios”, alémde“uma lâminade santaCatarina”.Deixoutudopara o colégiodos padres jesuítas, em trocade algumasmissas por suaalma.LeonordaSiqueiratinhaumalâminadaVirgemSenhoraeumaimagemde Cristo, enquanto que Miguel Garcia Velho possuía “doze painéis demadamas”.Contadoresde jacarandá, fabricadosna colôniaou importadosdePortugal,

foram encontrados entre pessoas de posses: comerciantes, artesãos eproprietáriosrurais.Comsuasinúmerasgavetasesegredos,elesindicamcertaracionalização na administração do patrimônio. Móveis com elementostorneados e incrustados revelam a presença de artesãos habilidosos entre ospaulistas.Nascidadeslitorâneas,cabiaaosazulejosdeixarascasasbonitas,formando,

com cor e luz, lambris em vestíbulos e em corredores de entrada. Os maisantigostinhamornatosrepetidoscompondotapetesoufigurinhasisoladas.Osmaismodernos,doséculoXVIII,traziamcenasougrandespainéiscontornadosdeelementosbarrocos,contaJoséWasthRodrigues.Arcas? Aos montes. Na vastidão de seus sete ou oito palmos de

profundidade, substituíam todos osmóveis da casa. Guardavam de roupas aarmas,deferramentasalouças.Fechadas,serviamdemesaoubanco.Cobertasde couro ou “encouraçadas”, guardavam ornatos para dias de festa como“mantos de recamadilho, capilhas de cetim e os chapéus de Bardá”. Elasaparecem nos inventários com o nome de “caixas com argolas”, “comfechaduras”,“comchave”,“comalças”.Podiamser“meãs”ougrandes,terpésougavetasepossuirescaninhossecretos.Feitasemmadeiraouferro,podiamser cobertas de couro de vaca ou de anta. O baú, com seu tampo abaulado,tambémfoimuitoutilizadocomomóveldeguarda.Pintadoaogostohispano-arábicoedecoradocompequenastachas,veiodiretodonortedePortugalparanossosinteriores.

Aprecariedadedodiaadia.DEBRET,Jean-Baptiste.Debretnapensão.[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO.1816.

Traseiros pobres sentavam-se sobre tripeças, assento redondo e baixo comvazadocentral,tamboretesrasosoumochoscobertosdecourodeboi.Osmaissofisticados tinham pés tornados. Cadeiras demadeira, só a partir do séculoXVIIemSãoPauloe,emfinsdoséculoseguinte,noNordeste,dizTildeCanti.As cadeiras dobradiças, de couro lavrado com decoração geométrica, ou ascadeirasdebraço,comassentoeespaldartambémcobertosdecourolavrado,sóforamincorporadasaocotidianonoséculoXVIII.

Redededormir:tradiçãoindígenaincorporadapeloscolonizadores.HONDIUS,Hendrik.AccuratissimaBrasiliaetabula[Cartografia].

AMSTERDÃ.1633.

Transportávelefresca,alémdeadaptadaaoclimatropical,arederetardouadifusãodoleitooudocatre.Osrarosexemplaresdestesmóveispertenciam,noséculoXVII,aautoridades,funcionáriosdaCorteoucolonosabastados–casode certo Francisco Lopes Pinto, cujo inventário revelava, na São Paulo de1623, “um catre torneado à cabeceira”. Coisa rara! Em Minas Gerais, ainfluência do norte de Portugal se fez sentir na segunda metade do séculoXVII. Surgiram leitos com balaustradas e colunas sustentando dosséis, massemtorneados,poisnãohavia...torno!Já no século XVIII, quando as camas se tornaram mais comuns, houve

influência da marcenaria hispano-americana vinda das reduções jesuíticas efeitapor índiosparaguaios.Exímiosmarceneiros, entalhadorese torneadores,elesnãohesitaramemcolocarcarasexóticaserepresentaçõesdoSolnascamasqueconfeccionavam.Emmenornúmero, emalguns inventários, elaspodiamtercortinaseservistasdeperto,nosex-votospintados.Neles,doentesdeitadosevocamosmilagresqueosarrancaramdasdoenças.Gentepobreouescravossonhavamseussonhossobreesteiras,courosdeboioufinoscolchõesdepalha.

Cansado?Um“preguiceirosemcabeceira”faziapartedoarrestodebensdoinconfidente padre Carlos Correa de Toledo e Mello. Já o catre, leito deestruturamaissimplesesemdossel,foimuitousado.Suaversãorústicaencheuos inventários do século XVII com designações diversas: catre de mão, deenxó,devento,ordinário,torneado,entreoutros.Asofisticaçãoveiomaistardequandocatrescomeçaramatercabeceirascombilrosetorneados.Sobre eles se colocava colchão de lã, de paina ou de perfumada macela,

cobertaporesteiramoledeAngolaeaseguirrevestidacomlençol,segundooviajante francês Jean-Baptiste Debret. A roupa de cama era abundante econstavadostestamentos.Em1710,certoFranciscoProençalegouàsuafilha“seislençóis”.Elespodiamserdealgodão,debretanha,deholandaederuão.As denominações indicavam as regiões de origem do pano. Da arca demoscóviadoengenhodafamíliaRochaPitasaíram,entreoutros:“umacolchade damasco carmesim guarnecida com prata”, “uma dita de cetim de floresusada”,“trêslençóisdebretanhadeFrança”,“quatrocolchasdechitausada”,“seis lençóis de morim novo” e “dois colchões de lã em bom uso”.Travesseiros já eram usados. Podiam ser sofisticados, cobertos de linhobordado ou simplesmente recheados de palhas de milho. Por vezes e porincúriadoescravoqueopreparasse,comossabugosjunto.E asmesas?As famílias se reuniam à sua volta para as refeições diárias?

Tudo indica que, até o século XVIII, o hábito de comer junto não se tinhainstalado,salvonosconventos.Hoje,exibidasemmuseus,asmesasdeabaoucancela,decavaleteoucompernasdeliramaisserviamparasuportedealfaiasou de oratórios de santos. Somente no início do século XIX encontraremosinformações como as de JohnLuccock explicando que “na hora do jantar, ameiodia,pelajustaposiçãodeduasoumaismesinhasformava-seumaúnica”.Àvolta,“tamboretestoscos”.Improvisação,portanto.NasegundametadedoséculoXVIII,bufetescomgavetasemoldurasforam

recorrentes emMinas eGoiás, e os armários começaram a sair das paredes,ganhando portas pintadas e almofadas. Antes se penduravam em chifres deveadoobjetosdeusoconstante comoselas, armas, cestas,peneirasoucapas.Ganchosserviamdecabides.Numerosasoficinasdecarpintariadavamcontadeencomendasdeestátuas,

terços, coroas e rosários. A mobília, inspirada em desenhos importados dePortugal, ganhava volutas, garras de leão ou burro, embelezando camas,cadeiras,cômodas,contadoresebufetes.Espelhoseferragenssesofisticavam.Asarcas,ondeseguardavamroupasfinasebenspreciosos,tambémganhavam

decorações com tachas douradas. Para alegrar as paredes, religiosos italianosvendiamquadros de procedência europeia.A prata convertia-se embaixelas,serviçosdetoucadorearreios,sobabatutadeprateirosbaianosemineiros.OlinhocultivadonosdistritosdoriodasMorteseoalgodãodeMontesClarostransformavam-se em finas alfaias domésticas. Em Mariana, Prados eCongonhas do Campo, pequenas olarias forneciam louça grossa para o usodiário.AofinaldoséculoXVIII,chegouoestilohíbridoentreolusoeoinglês,o

ditod. JoãoV:osmóveisganharamarcos,pésemfeitiodepatadeanimaleelementosdecorativosemformadeconcha.Novidadesforamasarcas-bancoseas cômodas. A influência inglesa foi trocada pela francesa no reinado de d.José.Maisleves,menosentalhadosemenores,multiplicaram-seosformatosdecadeiras, de papeleiras, de canapés.Os estrados e assentos trocaram o couropelapalhinha.Odouramentoeapinturadascabeceirasdecamacoloriramosambientes.Asalfaiaseramvariadas.NaSãoPauloseiscentista,sobreasmesasseviam

tigelas, alguidares, púcaros, potes de louça do reino ou da Índia. Pesquisasarqueológicas têm reveladoa fisionomiadessa louçadecorada emazul sobrefundo branco, com listras, caracóis ou “garatujas”. Entusiasmado com aqualidade do barro, certo André Jacobus propôs mesmo sua fabricação, nasegunda metade do século XVIII. Não foi o único. Em carta para Portugal,datadade1805,ogovernadorFrancaeHortacontavaque,viajandonobrigueinglêsMary, vindodo riodaPrata,onaturalista JohnMarre, empasseiosaolargo de Santos, descobriu “que se podem tirar grandes vantagens do barrofino,capazdefazerumalouçatãosuperiorquantoadaSaxônia”.Aideianãofoiadiante,masgraçasàgenerosa tabatingaseguiaafabricaçãode telhaseaconfecçãodebotijaseperoleirasparaarmazenarvinho.

Criançasescravastratadascomoanimaisdeestimação.DEBRET,Jean-Baptiste.Umjantarbrasileiro[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,1827.

Em Minas, os objetos de mesa existiam e oscilavam entre rusticidade esofisticação.CertoJoãodeAzevedoPereira,comerciantenoarraialdoTejuco,tinha para seu uso garfos e colheres de latão,mas também um “faqueiro depratacomdozefacasedozegarfos”,alémdeumjogode“facascomcabodeosso”.D.AnaPerpétuaMarcelinadaFonsecaarrolouobjetosfinosdemesanoinventário do finado marido: pratos da Índia, rasos e fundos, grandes epequenos, chocolateiras de cobre, colheres, garfos e facas de prata, umgalheteiroebandejasdiversas.FelipeJoséCorreadeLacerda,administrador-geraldosDiamantesnoTejuco,tinhaumagrandequantidadedepeçasqueiamdolatãoedoestanhoàprata,dalouçasimplesàdaÍndia,jogosdepirescomxícara,cálicesefrascosparavinho.NãoerararoencontrarnosinventáriosdoséculoXVIIIgarrafasdevinhobrancoetinto.Nacozinhaseusavamfrigideirasdebarroouferroecaçoilas,vasosemque

secoziamosalimentos.Etambémpilõesdetodosostamanhosealmofarizespara esmagar grãos, moringas de louça, salvas e bandejas, tambuladeiras,saleiros, alguidares e pratos. Mais: de cobre, havia tachos, caldeirões ealambiques. De estanho, pratos, colheres e tigelas. De ferro, candeeiros ecaldeirões.De pau, gamelas de todos os feitios.Rodas de ralarmandioca ouprensasdefarinhasãoenumeradasaoladodemoinhosdeáguademoertrigo,dealambiquesdedestilarcanaoudeprensasefôrmasdefazerqueijo.Grãosefarinhaseramguardadosemgavetõesfechadosasetechaves.De norte a sul, se iluminavam as casas da mesma forma: castiçais já

aparecemem inventários desdeo séculoXVI.Podiam ser em latão, estanho,bronze ou arame. Castiçais com muitos braços e lampadários, também.Candeeiros ou candeias com bicos por onde saía a mecha, assim comolanternasdefolhasdeflandresoudeprata,eramcomuns.Alimentavam-nososóleosmaisdiversos:odetartaruga,naAmazônia;odecopaíba,naBahia;odeandiroba e gergelim, no Pará; o de palmeira, em todo oNordeste; a palma-christi, em São Paulo; o de abóboras, no Sul. Todos fabricados em casa.Tesouras de espevitar em ferro ou metal nobre eram usadas para apagar asmechassemdeixarodorouqueimarosdedos.Tapetes, chamados de alcatifa, podiam ser em lã ou seda, provenientes da

ÍndiaoudacidadeespanholadeArrayolos,ouser tramadosemredevegetal.Naguarniçãodamesausavam-setoalhasdemesaedesobremesa,emalgodão,linhoou“panodoreino”,comsuasrendasecrivos,lavradosefranjascoloridasquepunhamsofisticaçãoàsrefeições.Asmaissimplespodiamsercobertasde

esteiras,sobreasquaisiamastigelaseospratosdebarro.Haviaaindapanosparacobrirbancoseassentos:os“lambéis”.Tambémnas redesherdadasdosíndios conviviam delicadeza e arte. Elas tinham vários feitios: de Carijó,grosseiradechã,comsuasrendas,depanorendado,depicotegrosso,ouseja,delãdecabra.E,parabelasceias,nãofaltaramesforçosemalgumascasas.Quemcontaé

LouisAntoinedeBouganville,depassagempeloRiodeJaneiro,em1766:“Aatençãoquenosdispensavaovice-reiprolongou-sepormuitosdias,numdosquais ele nos ofereceu uma pequena ceia – servida à beira-mar sob umcaramanchão decorado com flores de laranjeiras e jasmins –, seguida de umespetáculode ópera.Fomos conduzidos até umabela sala, onde assistimos auma representação da obramaior deMetastásio, encenada por uma trupe demulatos,eescutamosalgunsextratosdegrandesmestresitalianos,executadospor uma péssima orquestra dirigida por um padre corcunda em trajeeclesiástico.”Panorápido!

Escravodanobrezadaterra.DEBRET,Jean-Baptiste.Cenaderua(patrãoeescravo)[Aquarela].COLEÇÃOGENEVIÈVEEJEANBOGHICI,RIODEJANEIRO,C.1817-1829.

C omercomasmãos,arrotar,defecarouurinarpublicamentesãohábitosbanidosdenossoconvívio.Porém,aspráticasemtornodas necessidades fisiológicas, assim como o uso da água e daindumentária, percorreram uma longa estrada antes de seremadestrados. E a educação do corpo teve que se dobrar às

fórmulas de contenção, contrariando o desejo e os apelos da “natureza”.“Lavado”?Significava“limpocomáguaououtrolicor”!Apalavra“higiene”,por exemplo, não constavanosdicionáriosdo séculoXIX,momento emquemuitos viajantes estrangeiros passaram por aqui. Nem por isso o tema lhespassoudespercebido.Casas? Essas eram “repugnantemente sujas”, segundo a inglesa Maria

Graham.Aindapiores eramas cozinhas, fossemdepobresoude ricos: “Umcompartimento imundo, com chão lamacento, desnivelado, cheio de poçasd’água, onde em lugares diversos armam fogões, formados por três pedrasredondas onde pousam as panelas de barro em que cozinham as carnes”,horrorizou-seJohnMawe.Raramente o interior das habitações era limpo. Quandomuito, era varrido

com uma vassoura de bambu. Água no chão? Nunca. As paredes, apenascaiadas, ficavam amarelas. A fim de tornar os quartos toleráveis e delesexpulsaromaucheiro, costumava-sequeimarplantasodoríferas.Taisodorestambémmantinham afastados os “atacantes invisíveis”:mosquitos, baratas eoutras imundícies. No Colégio Jesuíta do Maranhão, os reverendos padrespreferiramespalharvasoscom“cheiros”,ouseja,comervasaromáticas,comomesmoobjetivo,conta-nosJ.P.Bettendorf.Ospenicosestavamemtodaparte,eseuconteúdo,semprefresco,erajogado

nasruasepraias.Acostumadoaos“gabinetesàinglesa”,ocomercianteinglêsJohn Luccock queixava-se que entre as piores inconveniências domésticashaviacerta“tinadestinadaarecebertodasasimundícieserefugosdacasa,que,nalgunscasos,élevadaeesvaziadadiariamente,noutros,somenteumavezporsemana, de acordo com o número de escravos, seu asseio relativo epontualidade, porém sempre carregado, já sobremodo insuportável”. Atéencherem,taisperfumadastinasficavamisoladasnocompartimentochamado“secreta”.Quandochovia,eramesvaziadasnasruas.Omonturosecavasobosol.Evarredoresderuanãoexistiam!Os“esterquilínios”–comooschamouobem-humorado Ernani da Silva Bruno – eram facilmente reconhecidos:

cobriam-se de uma espécie de cicuta, planta popular conhecida como erva-salsa.Jean-BaptisteDebretdeixou,eletambém,suasimpressõessobreos“potes”:

“[...]debarrocozidoede formaoblonga, temmaisocaráter indígena.Éemgeraldetrêspalmosdealtura.Suasfunçõesvergonhosasfazemcomqueestejasempreescondidonumcantodojardimoudopequenopátiocontíguoàcasa,colocado atrás de uma cerca de trepadeiras ou simplesmente escondido porduasou três taboasapoiadasaomuro.Nascasasmais ricas, ele sedissimulasobumassentodemadeiramóvel.E,nesseesconderijo,aguardaahoradaave-maria para, molemente, balançando à cabeça do negro encarregado desseserviço,seresvaziadonumapraia.Antesdapartidaépreviamentecoroadoporumapequenatábuaouumaenormefolhadecouve,tampaimprovisadaquesesupõesuficienteparaevitaromaucheiroexaladoduranteotrajeto”.Quartos?Os sobrados costumavam oferecer um para os pais e camarinhas

apertadasparaasmoças.Asjanelaspoucoseabriam,enãoseexpunhamaosolas camas úmidas de suor. Na alcova havia mosquiteiro, colchão rijo,travesseirosredondose“excelenteslençóis”.Sinaldeque,apesardasujeira,aroupabrancaeravalorizada.Quanto aos habitantes, amaioria deles deambulava pelas ruas vestida com

“casacas pretas, velhas e coçadas”. As calças nos joelhos eram atadas comfivelas de brilhantes-fantasia, asmeias eramde algodãonacional, e a cabeçaeracobertacom“umaperucaempoadasobrequepunhamumenormechapéuarmado já sebento,geralmenteornadodeum tope”.Onúmerodepessoasdeaparência respeitável, segundo Luccock, era diminuto. E pior: o que semostravanaruanãoerarealidadeportasadentro.Parafazervisitas,oshomensenfiavam-se em tricórnios e grudavam fivelas aos sapatos. Mas em casamostravam-se “com barba de vários dias e os cabelos pretos em francodesalinho,emborabesuntadosdegorduraesemroupaalgumasobresuacamisadealgodão.Éverdadequeessetrajeébem-feito,ornamentadocomtrabalhosdeagulha,especialmente sobreopeito;mas frequentementeopõemdepeitoaberto e com as mangas arregaçadas até os ombros”. Curtas, as calçasdeixavamaspernasnuase“ospésmetidosemtamancas.Nadadissoélámuitocorreto”,ponderava.Ohábitodeestarsemivestidoeratambémobservadonahoradasrefeições:

tiravam sapatos, meias e outras “peças que o calor tornasse opressivas,guardandoapenaso trajequeadecênciarequer”, reportouLuccock.Garfosefacascomeçavamaseremusados,emborafossemdemodeloantigo,pequenoe

desaparelhado:

Comemmuitoecomgrandeavideze,apesardeembebidosemsuatarefa,aindaachamtempoparafazergrandebulha.Aalturadamesafazcomqueopratochegueaoníveldoqueixo;cadaqualespalhaseuscotovelosaoredore,colocandoopulso juntoàbeiradadoprato, fazcomquepormeiodeummovimentohábiloconteúdotodoselhedespejenaboca.Poroutrosmotivosalémdeste,nãohágrandelimpezanemboasmaneirasdurantearefeição;ospratosnãosãotrocados[...]poroutrolado,osdedossão usados com tanta frequência quanto o próprio garfo.Considera-se como prova incontestável deamizade alguém comer do prato do seu vizinho [...] antes do final da refeição, todos se tornambarulhentos,exagera-seagesticulaçãoedespedempunhadasnoar,defacaougarfo,detalmaneiraqueumestrangeiropasmaqueolhos,narizesefacesescapemilesos.

E registrou para concluir mais à frente: “É de observação vulgar que oshábitos pouco limpos costumam seguir de perto a ignorância [...] Poucosvocábulos foram tão empregados quanto sujeira, imundície e expressõessinônimas,mas não é possível fazer-se de outromodo se quisermos de fatorepresentarasituaçãorealegeraldopaísedeseushabitantes.”Debret concordaria, pois ficou chocado em constatar que pequenos

comerciantes ou homens abastados comiam “com os cotovelos fincados àmesa, enquanto sua mulher, com o prato sobre os joelhos, sentada em suamarquesacomaspernascruzadas,àmodaoriental,comiacomasmãos,bemcomoseus filhosaindapequenosque,deitadossobreabarrigaoudecócorasnasesteiras,seenlambuzavamàvontadecom“apastacomidanasmãos!”.Guardanapos?Coisarara,mesmonacasadogovernador.Emjantarquelhe

foi oferecido, Nicolas de La Caille ironizou: “Na ocasião, deram-nos unsguardanapos quadrados, pequenos e sujos. E esse senhor gabava-se de sermuitoricoeespecialistanaartedebemviver.”Já a sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se

instalaranaEuropa,juntocomapreocupaçãode“oxigenarosares”edebaniremdefinitivoomaucheiro.Talmovimentosuscitavaaintolerânciaemrelaçãoaosodoresdocorpoqueentrenósaindaeramplenamenteadmitidos.Teóricosjá advertiam para os riscos de a gordura tapar os poros, retendo “humores”maléficos e “imundícies”, das quais a pele já estava carregada. A películanauseabunda, queos antigos acreditavam funcionar comoumverniz protetorcontra doenças, na verdade bloqueava as trocas “aéreas” necessárias aoorganismo.Essamudançaprovocouumapassagemdanaturezaaoartifício.Osperfumes

queremetiamaosodoresanimais–âmbar,almíscar–saíramdemodaporsua

violência.Antes,asmulheresosutilizavamnãoparamascararseucheiro,masparasublinhá-lo.Havianeleumpapelsexualqueacentuavaaligaçãoentreaspartesíntimaseoodor.NaEuropa“civilizada”,porém,aemergênciadeumanova forma de pudor ameaçava esta tradição, substituindo-a por exalaçõesdelicadas à base de lavanda e rosas.Obidê foi então introduzidonaFrança,tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas se revestiam deerotismo.Ostalcosperfumadoseoutrospós,àbasedeíris,flordelaranjeiraecanela,cobriamaspartesíntimas.Umsimplesperfumeaguçavaaconsciênciade si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro e o dos outros:multidãofedorenta.Oodorforte,consideradoumarcaísmo,setornoucoisaderoceiraseprostitutasvelhas.Entrenós,oâmbitodahigieneíntimafeminina,dedifícilpesquisahistórica,

foi brevemente abordado pelo poeta baianoGregório deMatos. No final doséculoXVII, ele escreveu sobre a carga erótica do “cheiro demulher”. Sim,cheirosíntimosagradavam:odoalmíscareraumdeles.Opoetacriticouumamulherqueoseduziraapesardelavaravaginaantesdoatosexual,maldizendoasquequeriamser“lavandeirasdoseucu”.Certacargadeerotismodependiadoequilíbrioentreodoreabluções,emborahouvessemuitos,comooBocadoInferno, que preferissem o sexo feminino recendendo a “olha” e sabendo a“sainete”; “Lavai-vos, minha Babu, cada vez que vós quiserdes”, cantava opoeta,“jáqueaquisãoasmulhereslavandeirasdoseucu.”

Nasfazendas,oescravogarantiaoabastecimentodeágua.VELOSO,JoséMarianodaConceição.OfazendeirodoBrazil.

LISBOA:NAOFFICINADESIMÃOTHADDEOFERREIRA,1799.TOMO3,PARTE2.

Lavai-vosquandoosujeisEporquevosfiqueoensaioDepoisdefoderlavai-oMasantesnãoolaveis

Ereclamava:

LavaracarneédesgraçaEmtodaapartedoNortePorquediz,quedessasortePerdeacarneosal,agraça;EsevósporessatraçaLhetiraisopassareteOsal,agraça,ocheirete,EmpoucoadúvidatopaSemequereisdarasopaDai-macomtodoosainete.

OcheirodealmíscaraindaagradavaporestesladosdoAtlânticoondeobidêsóaportounoséculoXIX.Mas lavar o corpo com o quê?Umpedaço de sabão era bem inestimável.

Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618, ao ver que fora roubado do seu,transportadocomdificuldadenacaravelaqueotraziadacidadedoPortoparaPernambuco,deude“dizerpalavrasdecóleraequeoDiaboolevassedeseucorpo”,numaexplosãoderarafúria.Conclusão?FoidenunciadoàInquisiçãoporblasfêmia.Banhos?Sóemcasodedoença.D.JoãoVIseriaomelhorexemplo.Contam

biógrafos que, picado por um carrapato na fazenda de Santa Cruz, ondepassava o verão, teve a perna inflamada e muita febre. Os médicos lherecomendarambanhodemar.O rei tinhapavorde seratacadoporpeixesoucrustáceose,porisso,mandouconstruirumacaixademadeira,dentrodaqualeramergulhadonas águas da praia doCaju, nas proximidades doPalácio deSãoCristóvão.Acaixaeraumabanheiraportátil,comdoisvarõestransversaise furos laterais por onde a água domar podia entrar. O rei costumava ficarimerso ali dentro por alguns minutos, com a caixa imersa e sustentada por

escravos.Oiodomarinhoajudariaacicatrizarasferidas.Ousodecaixasparabanhoseraconhecidodascidadeseuropeias,cortadasporrios.Essesmergulhos improvisados na praia doCaju, a conselhomédico, são a

única notícia que se tem de um banho de d. João nos treze anos em quepermaneceu noBrasil.Ao que tudo indica, o banho de imersão era coisa deestrangeiros no séculoXVIII. Coisa de “gosto inglês”, como comentou JuanFrancisco de Aguirre, ao observar que apenas nas chácaras sob influênciaestrangeira se contava surpreendentemente com “lugares para banhos comabundânciadeágua”.Passadasdécadas,Luccockcomplementouqueasabluçõesnãoeram“nada

apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa daspessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas, todos eles andam muitoexpostosemambosossexos,raramenterecebemabênçãodeumalavada”.Osinventáriosconfirmam:toalhas“paraenxugar”sóas“decabeça”,“derosto”ou“demãos”.Maisnenhuma.Asujeiracausavadoençasdepele.Emsuacorrespondênciacomfamiliares

em Portugal, o vice-rei marquês do Lavradio se vangloriava da saúde,acrescentandoque“conserva-sebemsemsarnas,nemperebas,moléstiadequeaquipadecemtodos,esónãotenhoescapadoaosbichinhosdopé,porqueestesmetêmperseguidobarbaramente”.Deorigemlatino-americana,estaespéciedepulgaganhounomespopulares:

zunja,xique-xique,jatecuba.Habituadaàpelemaisfinaetenraentreosdedos,era encontrada em currais, chiqueiros e praias. O mercenário alemão CarlSeidler foi uma das vítimas desses “imundos hóspedes”: “Aindame lembrobem que havia soldados que extraíam de trinta a quarenta saquinhos dessebicho,cheiodeovos,cadaumdossaquinhosdeixavaumburacodo tamanhodeumaervilha,extraçãomuitodolorosa,ejánodiaseguintenúmeroigualsealojara,notadamentenasunhasenoscalcanhares.Paraevitar isso,muitosdenósnoslimitávamosaabrirosaquinhocheiodaquelacriaturadoDiaboelhedeitávamosemcimaumpoucodemercúrio”.Asensibilidadeolfativadoscolonosestavalongedaquelaquejáseinstalara

naEuropa,poismesmoparalimparusavam-seprodutosfétidos.Ostintureiros,por exemplo, misturavam urina e vinagre para fixar as cores dos tecidos ecouros. Lavava-se roupa com folhas saponáceas e passava-se nela bosta decavaloparafixarascores.Paratirarmanchas,usava-se“feldeboi”oucebolabemesfregada.Afabricaçãodesabão,que,aliás,foi importadodaÁfricaaté1780,consistianumamisturadegorduraanimalevegetalcomumtipodesoda

cáustica. Tomavam-se cinzas resultantes da queima de algumas madeiras e,molhando-as sobre umpano, se deixava que gotejassem lentamente. Sebos ecarnes fervidas proviam a gordura animal. Já o uso do coco permitia afabricação de uma gorduramais leve e refinada.Daí, no entender de algunsautores, amultiplicaçãode coqueiros, sobretudona regiãodeSalvador, ondeafricanosensinaramaosportuguesesafazersabão.O mau cheiro dos produtos de limpeza não impedia, contudo, que se

tomassem certos cuidados. Contou-nos Debret, em 1816: “As lavadeirasbrasileiras, aliás muitomais cuidadosas do que as nossas, têm a vaidade deentregar a roupa não somente bem-passada e arranjada em ordem, dentro deuma cesta, mas ainda perfumada com flores odoríficas.” Asseio não era selavar,masvestirroupalimpa.Paracombateromaucheirodasvestes,usava-sea bolsa escrotal do jacaré. “Melhor do que qualquer animal almiscareiro”,recomendava Knivet ou ainda Gandavo: “Qualquer roupa a que chegam ostestículos, o cheiro fica pegado pormuitos dias”.Mas roupa limpa todos osdias?Nocasodospadresjesuítas,arespostaserianão.Sótrocavamdecamisaàsquartas-feiraseaossábados.Mausmodostambémeramnotados.Defecareurinarempúblico,expondoas

partesíntimas,chocavamosviajantes.QueodigaJohnBarrow,queregistrouohábitodeasmulheresurinarem“descaradamente”nasruasdoRio.Ocertoerafazê-lo contra um muro, cobrindo o sexo, na tentativa de proteger-se dosolhares alheios. M. de la Flotte, em 1759, também estranhou que aquelesmesmos que se autodenominavam “fidalgos”, “título que emLisboa é usadosomente pelas pessoas de qualidade”, “andassem malvestidos, e muitos, nasombra, estendessem a mão para satisfazer as suas necessidades maiselementares”. Mas o exemplo vinha “de cima”. Eduardo Theodor Boesche,contratadocomocadetedecavalaria,comquartelnapraiaVermelha,assistiuaumacenacujoprotagonistafoininguémmenosdoqueo jovemimperadord.PedroI:

Ao romper do dia chegavam a cavalo d. Pedro e sua consorte, acompanhados de camaristas egenerais. Não há talvez no mundo soldado tão entendido como o imperador no manejo prático eexercício da espingarda [...]. De resto, seus modos são grosseiros, falta-lhe o sentimento dasconveniências,poisvi-oumaveztreparaomurodafortalezaparasatisfazerumanecessidadenaturalenesta atitude altamente indecorosa assistir aodesfiledeumbatalhãoemcontinência.Tal espetáculodeixouatônitosatodosossoldadosalemães,masoimperialatorconservouinalterávelacalma.

AtéasprimeirasdécadasdoséculoXIX,“dahigienepúblicaincumbiam-se

aságuasdachuva,osraiosdesoleosdiligentesurubus”,resumiuCapistranodeAbreu.As relações com a higiene e o pudor refletem como os processoscivilizatóriosmodelaramgradualmenteassensaçõescorporais,aumentandoseurefinamento,desenrolandosuassutilezas.E,naobservaçãodafaltadelas,nadaescapouaosviajantes.Peloburacodafechadura,elesviamosbrasileirosaindabemlongedas“boasmaneiras”.

C omia-semuito,pouco,oquê?GilbertoFreyre,umdospioneirosem trataraquestãodaalimentaçãonoBrasil, já informava:“Éilusãosupor-seasociedadecolonial,nasuagrandemaioria,umasociedade de gente bem-alimentada”. Talvez, as extremidades:ossenhores,porquecomprariamouimportariamalimentos.Eos

escravos,porquetinhamquesuportarotrabalhoduro.Nas regiões de engenhos, a lavoura monocultora cobrou seu preço. Tanta

cana em todaparte nãodava espaçopara seplantarmais nada.No iníciodoséculo XVII, o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil se queixava:“Resulta a carestia e falta destas cousas.” As “cousas” eram os demaisalimentos que enchessem os pratos de estanho ou cerâmica: ovos, legumes,carne fresca. E de boa qualidade, pois, segundo Freyre, os frutos erambichados, a carne, má, e os produtos importados, malconservados. Muitasdoenças do aparelho digestivo eram atribuídas não à alimentação, mas aos“mausares”.NaBahia, grandes proprietários evitavam ter animais domésticos para que

não atacassem as lavouras de cana ou tabaco. Não sobrava terra para pasto.Ovelhas e cabras eram consideradas inúteis. Os porcos, difíceis, poisrapidamentesetornavamselvagens.Eogadomaistinhaeraqueobrarnalidedo engenho. Os senhores de léguas de terras opulentas não tinham o quecomer!Sofria-seda“faltadefarinhas”.Poroutrolado,adoçariaarredondavaagorduradefradesesinhás.ÉcertoquepadreFernãoCardimseentusiasmoucomosbanquetescomque

foirecebidoemtodaparte,nacasadehomensricosenoscolégiosdepadres.Aboa acolhida se justificava: era o Visitador. Mas foi exceção. Ao final, elemesmoregistrava:“NuncafaltaumcopinhodevinhodePortugal,semoqualnão se sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e osmantimentos,fracos.”Poiseranovinhoedepoisnacachaçaqueseafogavamasmágoase...afome.ObispodeTucumã,emvisitaaoBrasilnoséculoXVII,observouquenas

cidades “mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe e nada lhetraziam, porque nada se achava na praça nem nos açougues”. Nóbrega sequeixavasistematicamentedafaltademantimentos.Osalunosdasescolasdepadres caçavam e pescavam para encher as próprias barrigas, e emPernambuco,osjesuítasresolveramcriargado,pois,“seassimnãoofizessem,

não teriam o que comer”. “Todos se sustentam mediocremente [...] por ascousasvaleremmuicaraseotresdobroqueemPortugal.”PadreAnchietadissecomumaperdoávelpontinhade inveja:“Alguns ricoscomempãode farinhadetrigodePortugal,máximeemPernambucoeBahia,edePortugaltambémlhesvemvinho,azeite,vinagre,azeitona,queijo,conservaeoutrascousasdecomer.”Nafaltadecarne,fazia-seregimecomcarnebranca:“alimentaçãodeclasse

indigente”,segundoDebret,sobretudonoRiodeJaneiro,onde“asenseadasdaGlóriaedaLapaeramextremamentepiscosas”.Alidepassagemem1715,Dela Caille observou que a dieta de farinha e peixe era comum em todas asclasses. Num jantar na casa do governador, “o cardápio foi quase todopreenchido por pescado”, comentou. Na falta de carne, se comiam acaris,acarás, arraias, baiacus, dourados, garoupas, siobas, surubins, piabinhas –enfim,oquecaíssenarede.DesdeoséculoXVI,osmoradoressedeliciavam:”abrótea [...] é peixe mole, mas muito sadio e saboroso”, registrou GabrielSoares de Souza. E um surpreso Francisco de Aguirre complementou: “Ospeixesmais apreciados são o cherne, a cavala e a anchova, espécies grandesquejulgamosdequalidadesuperior.Naspeixarias,situadasnoladonoroestedacidade, passam de sessenta as espécies de pescados à venda.Costumávamospercorreressasbancassimplesmenteparaapreciaraabundânciadamercadoriaexposta.”Ostrasseempilhavamnosmercados.Comiam-seasovasdeváriasespécies,

mas as de moreia davam ânsias e vômitos. “Ovadas de ovas grandes esaborosas”, secas e prensadas, eram vendidas nos mercados em Salvador,Bahia. Os fígados de peixes como o peixe-porco eram tidos por iguaria:“Gordos e saborosos.”O pacífico peixe-boi era feito em “taçalhos”, “cozidocom couves e outras carnes”, e, surpreendentemente, tinha gosto de vaca.Assado,“parecenocheiroegostooporco,etambémtemtoucinho”,apreciavaFernãoCardim.NaQuaresma,opeixeeraobrigatórioe,semvinagreouazeite,ingerido “sobre leite”, segundo o Visitador. Camarões eram “sustento dosescravos e regalo de muitos brancos”, anotava Vilhena. Em 1768, a JamesCoocknãoescapouapresençadepequenosegrandescaranguejosnosriachosà beira-mar, de onde iam para as caçarolas. “Caçar guaiamum” era práticahabitual.

Frutasdasmatasecaçaeramalimentosdoslivresepobres.DEBRET,JeanBaptiste,1768-1848.VoyagepittoresqueethistoriqueauBrésil.Tomepremier.p.

09

NoséculoXIX,foiavezdeVonSpixeVonMartiusdescreveremosjirauscomripasondesesecavaoprodutodapesca,refinava-seazeiteeesperava-senovo cardume com arpão e tarrafa. A técnica consistia em abrir o peixe nosentidodocomprimento,retirarasentranhasesalgá-lodeleveantesdepô-lopara secar. “Assados na própria gordura, espalham cheiro extremamenteagradável.”Otrabalhodeoitodiasdavaparameioano,contaramestupefatos.O peixe ainda servia como comida de doentes “que estejam no cabo”, e,quandosemraçãonosquartéis,ossoldadoseramenviadosparapescar,comocontouopríncipeMaximilianodeWied-Neuwied.Em se plantando, tudo dava?Sim.Mas só em se plantando, pois a grande

maioriadas árvores frutíferas, comooscajueiros e asmatasdemangabasdoNordeste,foidizimadapelasplantaçõesdecana.NoséculoXVI,hámençõesdeGabrielSoaresdeSouzaaoabajeru,semelhanteaameixaseuropeiasouaoamitim, com seus bagos aveludados e cor “brancacenta”. O amendoim, ditomanobi,cresciaemcaroçosdotamanhodeavelãs,segundoJeandeLery,eeracultivadopelosindígenas.FreiVicentedeSalvadorchupoumuitocajunomês

de dezembro, quando a colheita ocupava todomundo. Abacaxis podiam sercomidosfrescosoufritos,fatiadosouemrodelas.

Vendedordeleite,umaocupaçãodeescravos.JULIÃO,Carlos.Negrovendedordeleite.

SÉCULOXVIII.

Os araçás, vermelhos ou amarelos, eram considerados “gostosos,desenfastiados, apetitosos”,por teremumapontadeacidez.Seuempregoemmarmeladaeracomum,assimcomoagoiaba,“comgostodemorangoecheiro

deurinadegato”,definiaDebret.Abananacruaouassada,considerada“frescae adocicada”, lembrando ao mesmo francês “o sabor de um sorvete deframboesa”, regalava. Da grumixama, ele apreciava o suco açucarado eligeiramente ácido, e o jambo, dizia, tinha “forte perfume de rosa”. FernãoCardimvalorizavaoperfumedoaraticum,umtipodepinha.Em1763, frei JoãodeSãoJoséQueiróz,emÓbidos,Pará, louvavaoaçaí,

comsuacor“negro-carmínea”,misturadoàáguaeaoaçúcar.Comfarinhademandioca,eracomidanutritivadepobre.Palmeirascomoaburitiouobutiá,assimcomoosdiversoscocos,taiscomoodepiaçaba,deindaiá,catarrooudaBahia, emprestavam seu miolo para ser degustado fresco ou em doces: nacanjicaounocanjicão.Ounospratoscomoocuscuz,omungunzá,amoqueca,os ensopados de lagostas e camarões. Vilhena gostava do abacate, “muitocálido e oleoso”.A castanha-de-caju seria usada na doçaria para substituir aamêndoa. Fruta verde? Assava-se. No século XVIII, a abundância de frutasaindaimpressionavaosestrangeiros.“Os bosques estão repletos de excelentes frutas, muitas das quais

desconhecidas naEuropa e no restante daAmérica.As laranjas, os limões eoutrasfrutasprópriasdeclimasquentessãotãofáceisdeencontrarnosbosquesdesse país quanto as avelãs nos bosques da Inglaterra”, encantava-se JohnByron.Oguaranáseria repertoriadoapartirdoséculoXIXedesceriadoTapajós,

onde era consumido pelos maués, para o Sudeste. Colhidas entre outubro enovembro,suascápsulaserampostasasecar,piladassobrepedraaquecidaporbrasas e reduzidas a cinzas. Depois de umedecida pelo sereno, a pasta emforma de bola secava junto ao fogo, até ficar tão dura que fosse difícil dequebrar.Embrulhada em folhas largasde tabacopara conservação, erausadamedianteum ralador.Os índios tambémconheciamo cacau, cujas amêndoaseram raspadas numa peneira para separar o invólucro viscoso do sucoadocicado. As favas eram chupadas. Muitas outras frutas faziam parte daalimentação: do cajá ao cambucá, do figo à fruta-pão, da janamacara aomandacaru.Emépocasdefome,elasfaziam,juntocomopeixeeafarinha,otrioquetapavaosburacosdoestômago.Ah,amilagrosaepolivalentefarinha!Ademandioca,usadapelosindígenas,

por certo. Das mais antigas espécies cultivadas na América do Sul, cresciasegundo“abondadedaterraeacriaçãoquetem”,explicavaGabrielSoaresdeSouza,que,umtantoexagerado,comparavaotubérculoàgrossuradacoxadeumhomem.Segundoomesmocronista,depoisdecolocadaemáguacorrente

poralgunsdiasatéamolecereliberaracasca,erasecaaofogoouraladafrescasobreumapranchademadeiracravejadadepedrinhaspontiagudas.Viravaumamassa que era peneirada com água, graças a gestos precisos das cunhãs.Extraídoolíquidopeçonhentoouácidoprússicoquepossui,eraarrumadaembolosedeixadaasecaraosol.Taisbolos,esfareladossobreumtachoraso,borrifadoscomáguaelevados

aofogo,davamnobeiju,“demelhordigestãodoqueafarinha”,concluíaPerode Magalhães Gandavo. “Mais agradável do que o pão de trigo”, replicavaSaint-Hilaire.Asemelhançacomofilhóportuguêseafaltadefarinhalevaramobeijudasaldeias indígenasàscasasgrandesesenzalas.Commel,carneoupeixeseco,ouaindacomcaldos,a farinhademandiocaera fundamental.Nafaltadeacompanhamentos,eraingeridapura.Semela,sepassavafome.JáomilhofoioúnicocerealencontradopeloseuropeusnoBrasil.Depoisde

feita a farinha, foi considerado no Diálogo das grandezas do Brasil um“mantimentomuiproveitosopara a sustentaçãodos escravosdaGuiné edosíndios,porquesecomeassadoetambémembolos,osquaissãomuitogostososenquantoestãoquentes”.Relegadoacomidasecundáriapelosportugueses,erausadonopreparodemingauscomooacaçá,papagrossaeconsistente,receitaafricana,alémdeconhecidosangus.Suaexistêncianoplanaltopaulistasedeveà presença indígena nessas regiões, somada ao fato de que era fácil detransportareproduzir.EmMinasGeraissustentava,sobretudo,escravosdepoisde um dia de garimpo. Misturada à água e ao açúcar, a farinha de milhoresultavanajacuba,registradaporváriosviajantesestrangeiros.Nasmesasvia-se com recorrência ummontículo de farinha demilho e outro de farinha demandioca. Acompanhadas de feijão com carne-seca, eram um “jantarsubstancial”, na opinião de George Gardner, de passagem pela Serra dosÓrgãos.Outras farinhas eram adicionadas ou transformadas em alimento: a de

maniçoba, adepau,depeixe,do reino,deararuta,decarimã,decenteio,dearicuri, de trigo, de tapioca ou fubá.Ao formar “grande variedade de pratossaudáveis e gostosos”, as farinhas eram complementos indispensáveis nasdietasenascozinhas.Acarne-seca,porsuavez,éherançadomoquém,agradedevarassobreas

quaisos indígenaspousavamascarnesdecaçaquealipassavamdoponto.Ecom razão: em terra tropical, a vianda ressecada se conservava melhor.Transportadaemlombodemulas,elavinhadascharqueadassertanejasparaolitoral graças ao tropeirismo. O boi em pé sofria com as viagens e chegava

magroaosmercadosdeabate.Secriadopróximoàscidades,ogadoeramau.QuemcontaéJamesCook:

Amaiorpartedasterrasquevisitamoseraconstituídaporpastagens.Nelacriavam-seanimaistãomagrosqueuminglêssóoscomeriaacontragosto.Aervacultivadaalieramuitocurta,esóoscavalose ovelhas conseguiam pastar nessas condições. O gado e as cabras, por sua vez, tinham imensadificuldadeemencontraralimento.

CoubeaDebretsintetizaramesacolonial:“Passando-seaohumildejantardopequenonegocianteesuafamília,vê-secomespantoqueseconstituiapenasdeummiserávelpedaçode carne-seca [...] cozinham-noagrandeáguacomumpunhadodefeijões,ejoga-seneleumagrandepitadadefarinhademandioca,aqual,misturadacomosfeijõesesmagados,formaumapastaconsistentequesecomecomapontadafacaarredondada.”Partes mais fibrosas da carne, como nervos, gorduras e pelancas, eram

picadasapontadefaca,fritasemgordura,misturadasàfarinhademandiocaetrituradas no pilão, até ficarem reduzidas a pó: paçoca de carne-seca. Entre1791 e 1793, uma grande seca arrasou boa parte da pecuária no sertãonordestino.Masoutraszonascomeçaramaseerguer,roubandoamaiorpartedomercadodo sertão.Em1814,por exemplo,GeorgWilhelmFreyreiss, emviagem pelo Brasil, anotava: “A carne-seca ao ar e levemente salgada vemespecialmente do Rio Grande do Sul e, como o consumo é muito grande,constitui uma das mais importantes indústrias daquela capitania.” Uma vezreduzidaaproduçãodeouro,MinasGeraistambémsededicouàpecuáriaeaoabastecimentodoRiode Janeiro, sóque sevalendodas terras férteis ebem-hidratadasdeseusvalesedocuidadocomogado,criadoemvivendasecurraisbem-construídos.

NofinaldoséculoXVIII,começaramaserdifundidosobjetosparaservircafé.VELOSO,JoséMarianodaConceição.OfazendeirodoBrazil.

LISBOA:OFF.SIMÃOTHADDEOFERREIRA,1800,P.320.TOMO3,PARTE1.

Emcircunstânciastãofavoráveis,nasceutambémoabastecimentodeleiteeafabricaçãodequeijos.Oleitenatadofoimuitasvezesservidoemchifresdeboi, mas sua qualidade era discutível: “aguado”, “rançoso”, “não tão bomquanto na Europa” e “insípido” são qualificações que acompanham oscomentáriosdequemoprovou.Amanteigaerapouca,importadaecara.Jáasprensas e fôrmas de queijo davam em produtos apreciados, sobretudo orequeijão,“quefaziaesqueceroAlentejo”,segundoFernãoCardim.Cultivadoempequenashortas,ou“roçariasde feijão”,a leguminosa jáera

conhecida dos indígenas. Em 1637, Gaspar Barléus menciona “feijoais”. Ogrão aparece nos documentos como “prato comum”, “refeição principal”,“cozidocomporcoefolhasdecouve”,alimentodenegros,queomisturavamàfarinhademilho,responsávelporindigestões,oferecidonasvendasàbeiradoscaminhos,misturadoaoarroz,levadonasviagensfluviais,ingeridopordamascom“graça e destreza em formadebola amassada”, servido emcuia emaisoutros tantos empregos. Podia ser feijão domato, guandu, pardo, branco oupreto,omaiscomum.Asgordurasusadasnaculináriatinhamprocedênciadiversa.Desdeoperíodo

colonialseusavaoazeitedeoliva,alvodecríticaspeloaltocusto:“Umapipapor250milréisou300milréis”,reclamavaLuísdosSantosVilhena.Nafaltadeste,recorria-seaoazeitedeaçaí,aodecoco,aodedendê,“temperoessencialdamaiorpartedasviandasdospretoseaindadosbrancoscriadoscomeles”,segundoomesmoVilhena.NaAmazônia,empregava-seoazeitedepeixe-boi;emMinas, a gordura do bicho de taquara; e em toda parte, banha de porco.Alémda tradicional, havia amanteiga extraídadosovosde jabuti, depeixescomoocamurupimedojaúoudetartarugas.Osóleosvinhamdaprensagemdoamendoim,dacastanha-de-caju,dasamêndoasdamacaúba,dacastanhadapindoba. E, em regiões de criação de porcos, usava-se o toucinho, que, emmeadosdoséculoXIX,passouaserimportadodosEstadosUnidos.Se em 1530 havia gente de estômago exigente como certo João deMello

Câmara,queescreviaaoreiparadizer-lhe,entreoutrascoisas,quenãocomeriados “mantimentos da terra”, tantos outros se renderam à mestiça culináriatropical.Assaudadesdopãodetrigoedovinhotintomaisfuncionavamcomoumatentativadereproduzirummododevidaque,poucoapouco,foificandoparatrás.

N aÁfrica, o escravo não escolhia o que comer: recebia ração.Grandes plantações de gêneros, destinadas aos capturados erecolhidosembarracõesnacosta,cresciamentreSãoFelipedeBanguela, Amabaca, Cacondo ou Cajango. Informa Luís daCâmaraCascudoquealirecebiam,numsaco,asuaprovisãode

milho fresco ou assado, aipim e farinha de mandioca. Nas longas marchas,acorrentados, não tinham tempo para usar o azeite de dendê, oundende, emquimbundo, ou o sal, substituídos pelo peixe seco. Raramente conseguiamprepararumangucomfarinhademilho,oanfunge,ouumasopa,amatete.OtráficodeAngola eGuiné se abastecianosportosbrasileiros com farinhademandioca, macaxeira ou aipim, feijão, salpreso e, a partir do século XVIII,aguardente. No século XIX, Carl Seidler viu acrescentarem arroz à dieta datravessia.OsbarcosquecruzavamoAtlânticointroduziramousodomilhoedamandiocanolitoraldocontinente.Nos primeiros séculos, os africanos estranharam a alimentação. Ao milho

quelheseradado“porfruta”,comoindicaGabrielSoaresdeSouza,aoscaráseàs pacovas, banana nativa, preferiam o sorgo, os inhames e as bananas. NoRecôncavo baiano, os senhores entenderam a lição e passaram a plantarinhamesebananas.Jáafarinhademandiocaeraobrigatórianacasagrandeouna senzala. Que o diga Soares de Souza: “Desta farinha de guerra usam osportuguesesquenãotêmroças[...]comquesustentamseuscriadoseescravose nos engenhos se provêm dela para sustentarem a gente em tempo denecessidade.”Aodesembarcarexaustosesangrandopelo“maldeLuanda”,nomedadoao

escorbuto, os escravos iam recuperar a saúde e, graças a ela, o preço. NoNordeste, os cajuais, ricos em vitamina C, eram remédio certo. No Rio deJaneiro, de onde eram distribuídos para as outras capitanias, faltavam oscajuais, mas a preocupação dos comerciantes domercado do Valongo era amesma: recuperar os viajantes. Eram, então, alimentados com farinha demandioca, feijão e carne-seca, e, como observou o viajante Rugendas, “nãolhesfaltamfrutasrefrescantes”.Uma vez adquiridos, a comida de escravo variava com sua função ou

atividade.E,segundoCâmaraCascudo,variavapouco.Abaseeraidêntica,dizele,eapenasaincidênciadealgumacarneoupescadoparadargostodistinguiao regime. Para o Norte, a farinha de mandioca dava o tom do prato. Pelo

interior da Bahia, na direção Sudeste, predominava o milho, batizado peloangolês de fubá, nome da farinha em quimbundo, além do mingau maisconsistentedeangu.Saint-Hilaireobservou:“Éfazendocozerofubánaágua,semacrescentarsal,quesefazessaespéciedepolentagrosseiraquesechamaangu e constitui o principal alimento dos escravos.” No Rio, no tempo deDebret, os escravos das fazendas “alimentavam-se com dois punhados defarinhaseca,umedecidosnabocapelosumodealgumasbananasoularanjas”.Ecompletava:“Aalimentaçãodonegronumapropriedadeabastadacompõe-sede canjica, feijão-preto, toucinho, carne-seca, laranjas, bananas e farinha demandioca [...] É permitido, entretanto, ao negro mal-alimentado aplicar oproduto da venda de suas hortaliças na compra de toucinho e carne-seca.Finalmente, a caça e a pesca, praticadas em suas horas de lazer, dão-lhe apossibilidadedealimentaçãomaissuculenta.”Muitas plantas africanas foram, assim, transplantadas para cá, como a

palmeiradedendê,vindadeAngola,ouoquiabo.Emtempodeseca,oescravopodiaatécompraraliberdadepelavendadecereaisproduzidoseguardadosno“roçadinho”.FoiocasodeFelicianoJosédaRocha,quemorreu livree rico,senhor da fazenda Barrentas, no Acari, Rio Grande do Norte, pois vendeufarinhaaseusenhor.Jásepropriedadedesenhorespobres,elestinhamquesecontentarcomfarinhaelaranjas.Porém,escravo“pedirdecomer”noutracasaeradesonraparaosenhor.Escravofamintosignificavavergonha.Osescravoscom filhosmenoresou ainda amamentados tinham raçõesduplas, e asmães,horáriosparaatenderascrias.Nascidades–éomesmoautorquemodiz–osrecursosseacresciampela

vendade comidapreparada e oferecidapelas negras nas praças e cais: angu,mingaudecarimãoumilho,peixeassado,milhocozidoemgrãosservidosnocaldo, mungunzá e iguarias vindas da Bahia, possivelmente acaçá, caruru,moquecas com o peixe enrolado em folhas, farinhas de castanha-de-caju emilhotorradoaçucaradas,otãoelogiadoportodososviajantesaluádearroz.Eas carnes: seca, afogueada nas brasas ou assada nos braseiros, escaldada emrápidafervura.Paraadoçarabocaeavida,caldodecana,rapadura,manuês,bolo-preto,pédemoleque,arroz-docecomcanela,docedecocoralado,“tantosengana-fomes inventados pela penúria aproveitadora do material maispróximo”,conformeCâmaraCascudo.

Aculináriadasruas.DEBRET,Jean-Baptiste.Angudaquitandeira[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,1826.

Nosengenhosdeaçúcar,oescravotinhanacana,nagarapaenomelreforçoalimentar.Ocaldoeraabebidapreferida.NoNorte,afarinhafaziaduplacoma “bucha” de carne de bode ou peixes secos. Quando era a época das“avoantes”edasarribações,nãofaltavamavesfartandoquemestivessecomabarriga vazia. Na fornalha acesa dos fogões externos, se assavam bananasverdes, mamões, ananases, camaleões, mocós, preás e tatus, com acumplicidade dos cozinheiros ou fornalheiros. Os pedaços misturados aosmingaus de farinha “desciam rápido”, disfarçando a temporária ausência dotrabalho.

Bichosdasmatasserviamdealimentoparaescravos.JONSTON,John.Historiaenaturalisdequadrupetibuslibri.

BIBLIOTECAPÚBLICADENOVAYORK:FRANCOFURTIADMOENUM,1655.

Noagreste,almoçodeescravotinhafeijão,farinhademandioca,carne-secaou carne fresca de bode e, às vezes, de boi.No jantar, juntava-se aomesmocardápio o jerimum, ou abóbora. As sextas-feiras eram dias de peixe seco:agulha,voadoroucaícomisturadoàfarofad’águae temperadocomcebolaecoentro.Paraquemtrabalhassenoeito,engenhooulavoura–ésempremestreCâmaraCascudo quem informa –, era levado o “de comer” pelosmoleques,antes preparado por negras escolhidas. Os casados, quase todos comiam emcasaalimentospreparadospelasesposas.Cuidadosparaosquetrabalhavamemalagadiços?Sim.Parafecharocorpo

contra osmiasmas,muito alho, tanto na comida quantomastigado cru. Para

imunizar contra tremedeiras e febres,milho cozidomisturado commel e umgoledecachaça.A“branquinha”eraconsideradasantoremédiocomgomademascar, cebolas assadas, raspas de raízes ou frutos secos. O café, “bebidatônica”, segundo Debret, passou a ser ministrado na primeira refeição damanhã,noséculoXIX.Para“rebater”,umgoledecachaça.EmMinas,na listadecomprasquesustentavamosescravos,omilhoerao

primeiro ou dos primeiros a ser mencionado, seguido pelo fubá, o feijão, acarne,osal,oazeitedemamonaeofumo,tidoporenergizante.Naregiãodosdiamantes,osgrãosconstituíamoprincipalalimentodapopulaçãoescrava.Oaumentodacriaçãodesuínospermitiuacrescentarotoucinhoaoangu.Acaçadacodorna,domacucooudaperdizémencionadacomocomplemento:“Temosalimentosquedáomato”,concluíamasautoridades,pensandotambémnasfrutas silvestres: jabuticabas,mangabas, araçás,mamões, entreoutras;ounaspacas,antasequatis,cujotoucinhoseconsideravamaioremaissaborosoqueodoporco.Escravospodiamreceberdepresentecabras,ovelhas,porcosecarneiros.Ou

os compravam e criavam, raramentematando para comer,mas lhes dando otristedestinodemorreremhomenagemaosdeuses.Quandovendiamascarnes,porém,reservavamosossoseasvísceras.Otutanoera“batido”ouretiradodosossos sobre o pirão, ou derretido e guardado em frascos para combater oreumatismo. As vísceras eram saboreadas fritas, cozidas ou assadasadicionadas ao feijão-verde ou preto.Ovo, só como remédio.A comida quelevasse ovos era suspeita de fazer mal, promover coceiras e atacar a pele.Tampouco gostavam de leite cru, nem cozido. Só com jerimum, batatas oufarinhas.

O condimento preferido era a pimenta, esmagada no caldo e incluída emquase todos os pratos, proveniente da Costa de Malagueta ou da Pimenta,compreendendoolestedeSerraLeoaàatualLibéria.Omaterialmanuseadonacozinha o era também no terreiro de candomblé, durante “calundus” e“acotundás”:feijão,milhoemandioca.Nenhumanimalafricanoparticipavadocardápio brasileiro, excluindo-se a galinha-d’angola ou da guiné, tambémchamadagalinha-do-mato,oblaçãoaosorixáse,desdeoséculoXV,costumeentre bantos e sudaneses. Galinhas e galos eram oferendas regulares, e nãoalimentoregular.Osexcelentesquiabostinhampapelimportantenoscarurus,oferendavotiva

aosIbejieiguariarealaXangô.Opratoéafricano,emboraadenominaçãosejaindígena.Seuconteúdoébemdiverso,podendolevargalinha,peixe,carneoucrustáceos. Já o indígena continha apenas ervas batidas a pilão.O caruru foiregistradopioneiramentepelodoutorGuilhermePiso,médicodeMauríciodeNassau,emseuHistórianatural,depassagemporPernambuco,em1638:“Aervavulgarcaruru,quenascenoscamposehortos,parecemaisumaespéciedebredobrancoquevermelho;échamadabredospelosportugueses[...]Come-seestebredocomolegumeecozinha-seemlugardeespinafre;édomesmosabor

e eficácia juntando-se suco de limões para condimento [...] é de facílimadigestão,detemperaturaúmidaefria.”NofinaldoséculoXVII,reapareceocarurunumsonetodoBocadoInferno,

opoetaGregóriodeMatos:

AlinhafemininaécarimáMoqueca,petitinga,caruruMingaudepuba,vinhodecajuPisadonumpilãodePirayá.

Outra delícia africana era o aluá, ou aruá, de milho, arroz ou cascas deabacaxi.OpadreAntônioJosédeSouza,em1797,bebeuaiguarianoDaomé,referindo-sea“umasasseadascuiascheiasdearuá,queéumamassadearrozdesfeitaemágua”.Fervidaenãofermentada,abebidafoieaindaéservidanasfestas de São José e noNatal, noNordeste. Já omais conhecido prato afro-brasileiroéovatapá,cozidodepeixeoudegalinha.Éfeitocomumaespessabasedepapadearrozoudefarinhademandioca,camarões,azeitededendê,pimenta e leite de coco. Em Angola, vários pratos estudados por CâmaraCascudoseaproximamdovatapá:amuambadegalinha,oquitandedepeixecomfunji,pirãodemilho,ocandumbaeoazeitedepalmaoudedendê.Outropratoimportadoéamoquecadepeixe,especialmentedexaréu,fritonoazeitedoceoudedendê.Ovocábulo é tupi, significando“envolvido, embrulhado”,porque o peixe era enrolado em folhas, fazendo-se dele um pacotinho. Já aconhecida feijoada, que, segundo o especialista Almir El-Kareh não foiinventada nem importada por africanos, só se tornaria famosa a partir demeadosdoséculoXIX.Trocas?Sempre.Daquiparaláfoioperu,vindodopaísdomesmonomee

familiardasfestasquinhentistasportuguesas.AbundantenoséculoXVI,aavecruzou oAtlântico nos negreiros e aclimatou-se entre os bantos agricultores.Outras influências se podem observar na inclusão do milho nas comidas deOxossi,Iemanjá,OmulueXapanã,quetambémgostadaspipocasindígenas.Ofeijão é do agrado de Oxum. O fumo, do gosto de Irocô. E a farinha demandiocaengrossaoamalá,oupirãodeinhame,deIansã.E,alémdetrocas,havia saudades. Que o diga certo jesuíta Daniel, isolado numa prisãoportuguesa, que sonhava com“umpoucode água engrossada ao fogocomafarinhacarimã,ecomseusraiosdetucupiepicantedemalagueta”,otacacá.Enfim,cadaqualcomsua“madeleine”!

E stá com sede?Tome água.” Este poderia ser omote quando setrata de bebidas no período colonial. “A bebida ordinária dosíndioséaáguafriadasfontesoudorio”,observouonaturalistaalemãoGeorgeMarcgrafem1638.Eraprecisosecontentarcomaquelaquesetinhaàmão:dachuva,derios,fontesoucisternas.

Quandoeraáguadachuva,colhidadasfolhasdabromélia,comosabiamfazeros indígenas, o líquido era coado num pano, juntava-se suco de limão,aguardente e açúcar, resultando a mistura “num delicioso refresco”, comocontouopríncipeMaximilianodeWied-Neuwid,queodegustou.Nafaltadefontes, tomava-se água de coco, tida por rival “dos mais finos refrescos”,segundoDanielParishKidder.Mas “beber água” era hábito do resto da população, pois há um consenso

sobreasobriedadedobrasileiro,paraquemelaeraumabebidaordinária,tantoduranteasrefeiçõescomonorestododia.OviajanteSaint-Hilaireconfirmaohábito.Nasfamíliasricas,elaera“servidaemumcopoimensolevadoemumasalvadeprata,queésempreomesmoparatodos[...]emcasadegentemenosabastada,encontra-se,aumcantodapeçadenominadasala,umaenormetalhacomumcopopresoaumcabo,ecadaqualbebeporsuavez”.ParaDebret,aágua era frequentemente solicitada “para acalmar o abuso dos alimentosardidosoudascompotasaçucaradas”.Louis-FrançoisTollenare,autordecertasNotasdominicaissobresuaestadiaemRecifeem1819,concordaria:paraele,também,aculpaeradoexcessodaspimentasnoprato.Mas tanto indígenas quanto africanos conheciam bem as bebidas

fermentadas.Osprimeirostiveramassuas“cauinagens”bemregistradaspelospadres jesuítas que condenavam as borracheiras. A cargo das mulheres, apreparação à base de caju, macaxeira, milho, ananás ou jenipapo, depois debemmastigadosparaacelerara fermentação,porvezesmisturadosaomeldeabelha,resultavanumlíquidotomadoemsonoracelebraçãotribal.Investidadecaráterreligioso,abebedeiraeraproibidaparacriançasesóadmitidadepoisdapuberdade.Aosomdosmaracás,improvisavam-secanções,dançaseassobios,que levaramo jesuítaFernãoCardimacomentar:“Debêbadosfazemmuitosdesmandosequebramascabeçasunsdosoutrosetomamasmulheresalheiasetc.” Com a chegada dos portugueses, os nativos aderiram ao cauim-tatá,“bebidadefogo”,eàgarapa,tomadapelosafricanosnaszonasaçucareiras.

Vendedordeágua,umaherançacolonial.BRIGGS,FredericoGuilherme.Water-seller[Iconográfico].

RIODEJANEIRO:LUDWIGANDBRIGGS,1845.

Estes, por sua vez, produziam vinho de palma, da palmeira dendê, e omacerato,infusãodesementes,sorgoemilhetos.AadesãoaomilhobrasileiropermitiuacriaçãodecervejascujoconsumoseestendeudesdeoSenegalatéoÍndico, segundo Câmara Cascudo. Outros produtos transplantados, como ocaju,ocajáouamandiocadoce,ganharamaadesãodetodoolitoralafricanoemambososoceanos.TantonaÁfricaquantonoBrasil irritavaos jesuítasofatodeamaiorpartedoqueconsideravamalimento,notadamenteamandioca,nãoeraingerida,mastransformadaemlíquidoesorvidaemfestas,pois,paraeles, o líquido não era alimento.E, pior, bebia-se de umaúnica vez, pois aslibaçõesduravamdias!Abebedeiraeralocalizada,pois,talcomonocasodosindígenas,elasocorriamapenasnos festejos.Duranteas refeições, se tomavaágua.Jáparaoseuropeus,nãoerapossívelbebersemcomer.Umsemooutroera

atitude de bêbados, ou melhor, “beberrões ou beberrazes”, adjetivos

dicionarizados no séculoXVIII para definir os que cometiam excessos. Para“beber a miúdo” se usava “beberricar”. Ao fundar a indústria do açúcar, oportuguêscriouadoálcool.Eseoestadodeembriaguezindígenaouafricanaresultava da quantidade de líquidos fermentados, a rapidez com que eles seembriagavam com cachaça, aguardente de cana destilada dos alambiques,surpreendia. A mais antiga notícia sobre o assunto é dada pelo viajanteFrançoisPyrarddeLaval,em1610:“Faz-sevinhocomosumodacana,queébarato,massóparaosescravosefilhosdaterra.”Sua fabricação foi descrita porGuilhermePiso: umavez isolada a espuma

queserviaparaogado,osexpurgosdocaldodecanaeramfiltradosempanode linho e, misturados à água, resultavam na garapa, avidamente procuradapelos habitantes quando envelhecida. O envelhecimento era feito num vasoapropriado chamado “coche descumas”. Antonil esclarece: “À derradeiraescuma da última meladura, que é a última purificação do caldo, chamamclaros, e estes, misturados com água fria, são uma regalada bebida pararefrescarasedenashorasemquefazamaiorcalma.”Vê-sequeobomjesuítanãoprovouabeberagem.Agarapa,designaçãolegitimamenteafricana,évinhoou cerveja que ainda se bebe emAngola, e título, também, para cervejas deoutrasfrutas.Daladroagemnastabernasondeabebidaera“batizada”,deixoutestemunho,

em1728,NunoMarquesPereira.Naconversaentreotaberneiroeoescravo,oprimeiropergunta,semcerimônias,quantaáguaosegundo“deitaranovinhoenas mais bebidas”. Resposta: “No vinho deitara duas canadas de água e novinagretrês;equetambémcaldearaaaguardentedoreinocomadaterra[...]tudofiz,Senhor,comoVossaMercêmetemensinado.”Em 1799, o marquês do Lavradio, em relatório, assinalava a produção de

3.969pipasdeaguardente.TodososnaturalistasestrangeirosquevisitaramoBrasil, do Rio Grande do Sul ao Amazonas, encontraram a cachaça, aaguardente da terra, ou jeribita, como a bebida favorita e indispensável aobrasileiro pobre.No séculoXIX, eles observarampequenas engenhocas parafabricodomésticooualambiquesdecobreoubarroescondidospelosmatos,amaiorpartefuncionandoclandestinamenteesempagarimpostos.SegundoCâmaraCascudo,omodeloseexportouparaaÁfricaOcidentale

Oriental, onde a cachaça, feita de frutas, sementes e raízes, tinha vendagarantida.Os tumbeiros, ounaviosnegreiros, levavamemseusporõesbarrisougarrafasdecachaçaqueeram trocadosporcativos.CertoAntônioCoelhoGuerreiroenvioudaBahiaparaLuanda,em1689,barrisdejeribitaavaliados

em2.279réiscadaum.E,numofíciode12dejulhode1730,ogovernadordeAngola,RodrigoCésardeMenezes,ofereciaad.SebastiãoFranciscoChequeDembo Caculo Cacahenda, do Congo, “um quinto de jeribita que, como otempoestáfresco,serviráparavosesquentar”.Presenteportuguêsnuminvernoafricano!Acachaça,oujeribita,aindainspiroupoemascomooquelhefezGregório

deMatos:

AguardenteéjeribitaFilhadacaninhatorta

“Tortas”, mesmo, ficavam as autoridades. Os alambiques, no entender deumaautoridade,eramprejudiciaisaosossegopúblico,postoqueeralugarpara“bebedicesdosnegros”.Porumlado,sabia-sequeousodajeribitaacalmava.Pacificavaânimosdeescravosexaltados,evitandocomportamentosrebeldesecontribuindo para que os senhores pudessem dormir sem susto. Por outro, oelevadoconsumopodiaacarretarproblemasdesaúde,acidentesdetrabalhoeainutilização ou perda do escravo.Veja-se o exemplo deMinasGerais: haviarepressão à venda da aguardente, ordenada por meio de “bandos”, ou seja,ordens e instruções de comando emanadas pelo governador português, masestes eram burlados pelas negras de tabuleiro. Elas não se esquivavam emoferecer o produto e ganhar dinheiro com sua venda. Tabernas e zungustambém tinham suas pipas e garrafas ao abrigo do olhar das autoridades.Quandohaviaquilombosporperto,arepressãoeraaindamaisviolenta.Umaprovisãode1659,decorrentedosurgimentodequilombosnaserradosÓrgãos,ordenou a aplicação de penas severas aos infratores e a destruição dosalambiques.SeatéoséculoXVIIIfoiconsideradosaudávelremédiocontravermes,mal

da vista e erisipela, a aguardente depois passou ao index dos médicos. Sóbebidacommoderaçãoeraútil,sobretudoparaosvelhoscujosórgãosaquecia.Emexcesso, faziaperder a razãoeos sentidos: “Que fraqueza!Que tristeza!Que palidez!”, – pontuava o médico mineiro Francisco de Mello Franco,vituperandocontraabebedice.Beberemdemasiapassouaserproblemamoral.A embriaguez fora de controle era capaz de gerar “furores e ímpetosperniciosos”, levando seu adepto a homicídios, adultérios e ladroagens.Tornada“vício”,acachaçateve,porém,seuconsumoembaladopelocomérciotransatlânticodedestiladoseamodernizaçãodasgarrafas.Antesemformade

cebola,agora, tinhamformatodebastão,podendoserempilhadasumassobreasoutras,paraaalegriadoscomerciantesedos“viciosos”consumidores.

Ocomérciodasruas.DEBRET,Jean-Baptiste.UmatardenapraçadoPalácio[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,1826.

Na defesa dos comportamentos moderados, os médicos davam largas àimaginação. Um remédio eficaz, por exemplo? A cabeça de um cordeirolanudo, uma mancheia de cabelos humanos, uma enguia com seu fel, tudolevadoaofornoatétorrar.Opóresultantedeviasermisturadoàbebida.“Tiroequeda!”O vinho português reinou absoluto por séculos. Era solicitado àmesa dos

engenhos ricos e constava da hospitalidade dos conventos. Em recepções, asautoridades não economizavam o conteúdo das preciosas pipas vindas daterrinha. Oriundos do Porto ou da Madeira, os vinhos eram oferecidos emfestas deNatal e Páscoa, enchendo com sua cor dourada e quente os cáliceserguidos em brindes. Debret e Saint-Hilaire provaram deles. Antes dosfranceses,porém,osfundadoresdaAustrália,depassagempeloRio,em1787,estiveramàsuaprocura:“Ovinhoduranteaestaçãoemquepermanecemosnacidadesóeraencontradonosmercadosderetalhos.[...]Entreosprodutosaqui

disponíveisencontram-se:oaçúcar,ocafé,orum,ovinhodoPorto...”Referindo-seaoscostumespaulistas,Vilhenaassimosdescreveu: “Tomam

muitopoucovinhoàsrefeições.Abebidausualéágua.Emocasiõespúblicasou quando se oferece uma festa a muitos convidados, ornamenta-se a mesasuntuosamente [...] O vinho circula copiosamente, repetindo-se os brindesduranteobanquetequeduraemgeraldeduasatrêshoras,seguidodedoces,oorgulhodamesa.”NadocumentaçãodoSantoOfício,ocapitosovinhosurgecomocoadjuvante

nos prelúdios amorosos, sobretudo os proibidos, aqueles praticados porsodomitas. João Freire, um jovem criado morador de Olinda, em 1595,confessou à mesa do Santo Ofício, quando da Primeira Visitação emPernambuco,que, indoalgumasvezes à casado sapateiroAndréLessa, “porimportunaçãoe instigaçãododitoqueoprovocava, lhemostrouseumembroviril contra sua vontade, deixando o sapateiro tomá-lo na mão, e certa vezconvidou-opara jantarecomerampão,pacovasebeberamvinho”.Em1652,durante uma travessia transatlântica, o barbeiro André Mendes não fez pormenos:“Estavacheiodevinho,querendobeijareconvidandomuitossoldadospara dormir junto.” E explicava sua receita infalível de sedução: “Com umaperoleiradevinhoeumabotijadeaguardentefazianosrapazesoquequisesse,porqueovinhoeaaguardentefazemperderojuízo.”Emmesa farta e ao final da refeição imperavamos licores.Destilados em

casaepreparadossegundoreceitasavoengas,podiamserdeabacaxi,jenipapo,anis,macaxeira, butiá ou “quaisquer frutas da fazenda”, como garantiu JohnMawe.HouveatéquemcomparasseoanisetepreparadoemBelémcomaquelefeito nas ilhas francesas. Refrescos tinham outro nome: os sumos de fruta,xaropes ou capilés eram chamados de garapa, garapada ou gelada. Entre agente rica, “gente-sinhá”, a garapa recebia o nome de ponche: sempre frio esemálcool.Emoutubrode1817,escrevendodoRiodeJaneiroaseupaiemLisboa, o bibliotecário e arquivista real Joaquim dos Santos Marrocosinformava:“JoséLopesSaraivamorreuderepenteemPernambucoemaçãodetomarumcopodeponchedentrodeumbotequim.”Águadecocoeraoutrabebidadesalteranteecom“umsaborespecial”,assim

comoalimonada,muitorequisitadaevendidapelasnegrasdeganho.Ocaldode cana era comercializado pelas ruas no verão e no inverno, dizia DanielParishKidder.Ocháeratomadoregularmenteentreoitoedezhorasdanoiteeservido em xícaras, a partir do século XIX. Já o mate ou congonha seguiadentro de um coco cortado ao meio ou um chimarrão. Ao já mencionado

francês Louis-François de Tollenare, foi oferecido, em 1818, um copo degenebra, lembrançadapresença flamenga, emPernambuco.Oguaraná jáeraconsumidoporbrancosnoséculoXVIII.Bastavamisturaraopóaçúcareumquartilhodeágua,recomendavad.freiJoãodeSãoJoséQueiróz.Alaranjadaazedavanocalor,umapena!

S im,jáexistia:“Sobremesa:afrutaouodoce,quedepoisdacarneou do peixe se põe no fim da mesa”, explicava o dicionaristaBluteau.Naterradoaçúcar,nempodiaserdiferente.NaEuropa,oingrediente já tinhapassadodedrogaouremédioparaamesadenobres, sempre recomendado como um facilitador da digestão.

Comelesefaziampudins,docesemolhosqueacompanhavamacarnedecaça.Osprópriosanimaiscaçados,javalisoufaisões,porexemplo,recebiamoglacêcapaz de permitir a sua apresentação como se estivessem vivos, sobre asbandejas.Ouainda,viravamrecheiodepastéis,passadosnoaçúcarenacanela,como se vê em Arte da cozinha útil e necessária a todos que regem ougovernamcasa, dapenadeDomingosRodrigues, publicado em1680.Nessaobra, jásevêoaindaconhecido“manjar realemtigelascoroadas”,os“ovosbrancos” ou “moles”, os “sonhos passados em açúcar e graxa [gordura]”,sempre apresentados como penúltimo ou último prato, servidos antes dos“docesfrios”edasfrutas.Doseulado,osconventosportuguesesaumentavamseusproventosgraçasà

confecçãodebolos,compotas,licoreseoutrosregalosàbasedemuitosovoseaçúcar.DesdeoreinadodeAfonsoIV,em1325,atémaiode1834,quandoasordens religiosas foram dissolvidas, a doçaria conventual trazia nomes earomas dignos de registro. Havia os confessionais: bolinhos de amor,esquecidos,melindres,paciências,raivas,sonhos,beijos,suspiros,caladinhos,saudades;osquetraziamamarcadavidareligiosa:beijosdefreira,triunfosdefreira,fatiasdefreira,cremedaabadessa,toucinhodocéu,cabelosdaVirgem,papodeanjo,celestes;eaindaossatíricos:barrigadefreira,orelhasdeabade,sopapos, casadinhos, velhotes; ou os cerimoniais: manjar-real, marqueses,morados,bolo-reietc.Herança mourisca quando feitos com mel na forma de alfenim, alféola,

pinhoada ou bolo de mel, muitas das receitas incentivaram bem guardadossegredosdecozinha.OCadernodereceitasdesórorMariaLeocádia,abadessadoconventodeSantaClaradeÉvora,datadode26deoutubrode1729,éumexemplo.Elerevelavainformaçõesqueeramproibidasaestranhos:“Estelivronãoseentregaráaoutremquenãosejapessoadestacasa,nemporcedência,nem por empréstimo, por afetar os proveitos da feitura dos doces que nestacasasãofeitos”,advertiaomanuscrito.As broas demilho de santaClara, os queijinhos do céu, os pastelinhos de

nataouasfatiasdesantaClararevelamnãosóacriatividadedasreclusas,mastambém a multiplicidade de apetrechos usados na doçaria: tachos, púcaros,carretilhas, colheres de recheio, fôrmas de vários feitios – estrelas, coração,luas, flores –, batedeiras de bacia, colheres e escumadeiras de madeira oucobre,tábuas,cestinhasadornadascompapelrecortadoparaaapresentaçãodosdoces,covilhetesdebarroondeeramacondicionados.Osegredoeraafrescurados ovos, como se vê nesta receita demanjar celeste do convento de SantaMônica,especialidadede“nossairmãsórorTheresadeSantaRita”,segundoocaderno: “Duasquartas de requeijão e duasde açúcar; seis ovos, gemas semclaras. Põe-se o açúcar em ponto de fio e deita-se o requeijão ralado; emfervendo, tira-se do lume e deitam-se as gemas.Torna a ir ao lume a ferveroutravez.Tira-sedepoisdolumeedeita-seemtigelinhasdebarropequenas,deixa-seesfriarevaiaofornoàfartes.”“Fartes” ou “fartemdaBeira” era o nome dado a umdeterminado tipo de

bolo feito em casa ou vendido por confeiteiros que tinham, até 1755, emLisboa, uma rua dedicada somente a eles. Um amigo de Luís de Camões,Fernão Rodrigues Lobo Soropita, deixou dos deliciosos e inesquecíveis“fartes”assuasimpressões.Elescontinhamamêndoas,canelaecravo,alémdepão ralado. Foram também oferecidos por Pedro Álvares Cabral aostupiniquins,emPortoSeguro.SegundoCâmaraCascudo,foioprimeirodoce-bolovindodametrópoleeconsumidonacolônia.Inúmerasreceitasnasceramdesuafórmulaclássicadobolobatidocomovos,manteiga,farinhadetrigoeofiníssimoaçúcar.Haviatambémmuitosoutrosboloscomnomesdefantasiaoupilhéria: “bolo busca-marido”, “orelha de burro”, “come e cala”, “engordamarido”,“beijodeestudante”,“brevidade”,“bolodebeata”.Emalquimiacomoleitedecoco,omilho,frutaseoamendoim,outrostantosbolosdominarammuitascombinaçõesdesobremesa.

Livrosdifundiamreceitasdedocesportugueses.RODRIGUES,Domingos.Artedecozinha.

LISBOA:NAOFFIC.DEJOÃOANTONIOREIS,1794.

Amesadedoceseracomumnasvarandasnobresenasfestasreligiosas,eosrapazes elegantes costumavam levar rebuçados – um tipo de caramelo quepodia ou não conter ovos – nos bolsos, para oferecer às senhoras. O “saberfazer”dailhadaMadeiracirculavaentreosamantesdedoçaria.Delávinhamconservas de doces em que entravam especiarias vindas de longe: cravo dasMolucas, noz-moscada deBanda, pimenta e gengibre deMalabar, canela doCeilãoeaçúcardoBrasil.

Doceirabaiana,c.1800.CALLCOTT,LadyMaria.Sellerofsweetmeats[Iconográfico].

BAHIA:S.L./S.N.,[S.D.].

DizCâmaraCascudoqueobolopossuíafunçãosocialindispensávelnavidaportuguesa, representando a solidariedade entre as pessoas. Figurava sempreem noivados, casamentos, visitas de parida, aniversários, convalescença,enfermidade ou condolências. Ele significava oferta, lembrança, prêmio,homenagem.Odoce,dizele,“visitava,faziaamizades,carpiaefestejava”.Embandejas mais ou menos enfeitadas, era oferecido ao rei, ao cardeal, aospríncipes,aosfidalgos,aoscompadreseaosvizinhos.Desenhosfeitoscompóde canela, em formatos simbólicos, e adornos com açúcar fundido deixaram

suahistórianadoçariaportuguesa.Qualquer bandeja de bolo ou doces era decorada. Panos com franjas ou

“papel decorado” eram obrigatórios. Os segundos eram tradição seriamenterespeitada,verdadeirasmaravilhasdefinezaegraças.Suafabricaçãofoiartedefreiras, pois era nos conventos que se aprendia a prepará-los. Tesourinhasespeciaisemuitapaciênciatransformavamorudepapelemrendasfiníssimas.NoNordeste,asmeninasdaeliteiamaprendera“cortarpapelparabolo”commatronas de saber reconhecido.O epíteto de “boa quituteira”, “mão de ouronosdoces”ou“boleira”eradotepotencialparaocasamento.Menos sofisticado que as receitas portuguesas foi o emprego do leite de

coco, que, no Brasil, encontrou omilho. Juntos, eles tiveram no carimã, nopolvilho, na goma demandioca e no fubá parceiros ideais para fazer bolos,cremes,papas,mingaus,tortasepudins.Acocadaeodocedecoco,alémdascomidasjuninascomoapamonha,acanjica,omungunzá,ocuscuzeatapioca,têmnafrutaimportadadaÍndiaomaioraliado.GilbertoFreyrelembraaindaapresençadodocenospratossalgadoscomoalagostaaomolhodecocodoce;afritadadesiriouaguaiamunzadacomarrozdecoco;omariscoaomolhodecoco.GabrielSoaresdeSouzareservoupáginasàssenhorasportuguesas,primeiras

donas de casa na colônia e pioneiras em adaptar as receitas da terrinha aosprodutos brasileiros, como o cará. “Da massa destes carazes”, informa ocronista, “fazem os portugueses muitos manjares com açúcar.” E dosamendões,oucastanhas-de-caju: “Desta fruta fazemasmulheresportuguesastodasascastasdedocesquefazemdeamêndoasecortadososfazemcobertosdeaçúcardemisturacomconfeitos.”As frutas cristalizadas eram guloseima encontrada em toda a colônia.

Mergulhava-seofrutonumacaldaespessa,e,depoisderetirado,eleerapostoaosol,ousobreofornodofogãoàlenhaparasecar.Algumasdelasficavam,no dizer popular, “doces como torrões de açúcar”, caso das mangas ou desapotis de Itamaracá na Bahia. Em caixotes, goiabadas e marmeladascirculavamentreascapitaniascomoumdosprodutosmaisconsumidos,alémdeseremvendidosnastendasdesecosemolhados.

VendedoresnasruasdoRiodeJaneiro.DEBRET,Jean-Baptiste.Vendedoresdepão-de-ló[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,1826.

Ovice-cônsuldeS.M.britânicanaBahiaeParaíba,JamesWethrell,revelouoprazeremdegustar“themostexcellent”geleiadepitanga,odocedearaçáeomaracujáeomamãoemtorta.Suspiros,dizele,eramvendidospelasruasemferiados.JáofrancêsFerdinandDenisadorouoarroz-docesalpicadodecanela.Arapadura,“massaduradeaçúcaraindanãodepurado”,veiodasCanáriaseacompanhava tropeiros e viajantes dentro da colônia, notadamente no Sul.Dotada de alto valor nutritivo, era preparada em vasilhames apropriados edepois embrulhada em folhas secas da própria cana, o que lhe permitia umaconservação invejável. Era acompanhamento para carne de sol, farofas,jerimuns,batatas,umbuzada,cuscuzepaçoca.Delasefaziamdocesdebanana,goiaba, araçá, caju, abacaxi, laranja ou guabiraba. Com mel de rapadura sesaboreavam–eatéhojesesaboreiam–inhame,macaxeiraoufarinha.A tradição da doçaria passou da cozinha à rua, graças aos tabuleiros das

negrasforras,enormeseforradoscompanosalvos.“Negrasdoceiras”,contouFreyre,tinhamocuidadodeenfeitarseusdocescompapelazulouencarnado,arrumadossobrefolhasdebananeiras.“Dessestabuleirosdepretasquituteiras,unscorriamasruas,outrostinhamseupontofixoàesquinadealgumsobradogrande ou pátio de igreja, debaixo de velhas gameleiras. Aí os tabuleirosrepousavam sobre armações de pau escancaradas em X [...] De noite os

tabuleiros se iluminavamcomoque liturgicamentede rolosde cerapreta; ouentão de candeeirinhos de folha de flandres ou de lanternas de papel.”Entreescravas,nãofaltouaquefugissedeseussenhores,levandoconsigotabuleiros,balaios de frutas secas, bolos e doces, como certa Simoa, vendedora debolinhos,negrafulabemfalanteque,numbelodiade1837,fugiudeAflitos,Recife,dacasadeseusenhor,Pimentel.Conservou-senacolônia–ésempreGilbertoFreyrequemrelata–atradição

deacompanharasprocissões,compessoasoferecendodocesaospenitentesqueseflagelavam,sobretudoaosquerepresentavamfigurasdaPaixãoedaHistóriaSagrada,os“bons”.Aconteceuqueumdessesbeneméritosofereceuoregaloaum indivíduoque faziapapelde judeu,maue inimigodeNossoSenhor.FoidenunciadoàInquisição.Nemosremédiosescaparamdodoce.Paratratamentodetossesebronquites,

tornaram-secélebresasbalasdedocesdecambará,uruçueagrião.Para“abriro leite” de mulher parida, um pouco de cachaça com açúcar. Os mortostambémgostavamdedoces.Confirmaohábitodese“pôramesaàsalmas”–termo corrente nos processos inquisitoriais –, normalmente em caminhos ouencruzilhadas, alimentando-as com pão, bolos, queijo, mel, água e vinho. Ocardápioserviaparapedircuras,davacontadoparadeirodeobjetosperdidos,pessoasvivaseatédasjámortas.

H istória da indumentária – algo fútil? Nunca.Muitas questõespodemserrespondidaspeloshistoriadoresquandoseremexeofundo dos baús. As matérias primas, os procedimentos defabricação,oscustos,amoda,ashierarquiassociaisatravésdasaparências são algumas delas. A roupa definia, então, os

lugares sociais.Aque erausadadentrode casa raramente saía à rua, e vice-versa. Leis suntuárias, em Portugal chamadas de Pragmáticas, definiam oslimitesdoluxoeregulavamhábitosdeconsumo.Oproblema,porém,nãosecolocavaparaquemandavanuouseminu,caso

de nossos ancestrais indígenas. As referências à despreocupação com avestimentasãoconstantesnoscronistascoloniais,acomeçarporPeroVazdeCaminha, que escreveu em tom impressionado, voltando várias vezes aoassunto: “Acudiram pela praia [...] vinte homens, pardos, todos nus, semnenhumacoisaquelhescobrisseasvergonhas.”Ou“andamnus,semnenhumacobertura”.Em1584,ojesuítaAnchietaregistravaalgumaslevesmudanças:

Osíndiosdaterradeordinárioandamnusequandomuitovestemalgumaroupadealgodãooudepanobaixoenistousamdeprimoresaseumodo,porqueumdiasaemcomgorro,carapuçaouchapéunacabeçaeomaisnu;outrasvezessaemcomseussapatosoubotaseomaisnu,outrasvezestrazemumaroupacurtaatéacinturasemmaisoutracoisa.[...]Asmulherestrazemsuascamisasdealgodãosoltasatéocalcanharsemoutraroupaeoscabelosquandomuitoentrançadoscomumatraçadeiradefitadesedaoudealgodão;mashomensemulheresdeordinárioandamnusesempredescalços.

Menossisudo,ocapuchinhoClauded’Abbevilleachavatudoisso“cômico”!No início, impressionou a beleza de nossas índias: pardas, bem-dispostas,

comcabeloscompridos,andandonuase“semvergonhaalguma”.ACaminhanão passou despercebidas as “moças bemmoças e bem gentis, com cabelosmuito pretos compridos pelas espáduas”. Seus narizes, segundo o mesmonarrador, eram “bem-feitos”, assim como tinham “bons rostos”. Os corpos,“limposetãogordosetãoformososquenãopodemaisser”.Astupinambássepintavamde tinta de jenipapo, “commuitos lavores a seu gosto [...] e põemgrandesramaisdecontasdetodaasortenospescoçosenosbraços”,segundoinforma,em1587,GabrielSoaresdeSouza.JáocapuchinhoYvesD’Evreuxacentuavaseugostopelosbanhoseporpentear-se“muitasvezes”.Oscânonesdabeleza europeia se transferiampara cá, noolhargulosodos

primeiroscolonizadores.DuranteoRenascimento,graçasàteorianeoplatônica,

amorebelezacaminhavamdemãosdadas.Váriosautores,comoPetrarca,porexemplo,trataramdessetemaparadiscutiracorrespondênciaentreobeloeobom, entre o visível e o invisível. Não é à toa que nossas indígenas sãoconsideradaspeloscronistasseiscentistascriaturasinocentes.Seudespudoreralido numa chave de desconhecimento do mal, ligando, portanto, sua“formosura”àideiadepureza.É bem verdade que as características de nossas belas estavam um tanto

distantes domodelo renascentista europeu.Os grandes pintores doperíodo–por exemplo,Veronese,oveneziano–preferiammulheresdecabelos claros,ondulados ou anelados, com rosto e colo leitosos como pérola, bochechaslargas,frontealta,sobrancelhasfinasebemseparadas.Ocorpodeviaser“entreomagroeogordo,carnudoecheiodesuco”,segundoumliteratofrancês.A“construção”,comosedizia,tinhaqueserdeboacarnadura.Ametáforaserviaparadescreverombrosepeitofortes,suporteparaseiosredondosecostasondenão se visse um sinal de ossos. Até os dedos afuselados eram cantados emprosaeverso,dedosdeunhasrosadasfinalizadasempequenosarcosbrancos.Joiasepedrarias,bemdiversasdosramaisdecontasedatintadejenipapoquerecobriam nossas índias, reafirmavam o esplendor da união entre elementosanatômicoseelegância.GilbertoFreyrefoipioneiroemcaptarointeressedosportuguesesnãopelo

modeloclássicoqueacabamosdedescrever,maspela“mouraencantada”:tipodelicioso de mulher morena de olhos pretos, segundo ele, envolta emmisticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos oubanhando-senosriosounaságuasdefontesmal-assombradas–queos lusosvieramreencontrarnasíndiasnuasedecabelossoltos.

Adança:ritualindígena.WHITE,John.DançaTupinambá.[Aquarelasobrepapel].

WIKIMEDIACOMMONS,SÉCULOXVI.

“Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardopintadodevermelho, e, tantoquanto as nereidasmouriscas, eramdoidasporumbanhoderioondeserefrescassesuaardentenudezeumpenteparapentearocabelo.Alémdoquê,eramgordascomoasmouras.”Elelembraaindaque,enquanto em terras brasileiras prevalecia o modelo moreno, em Portugal, amodaitalianavingava.Lá,naépocadeFelipeII,asmulheres“dasclassesaltastingiamoscabelosdecorloura,elánaEspanhaváriasarrebicavamorostodebranco e encarnado para tornarem a pele, que é um tanto, ou antes, muitotrigueira,maisalvaerosada,persuadidasdequetodasastrigueirassãofeias”.SegundoFreyre,poder-se-iaafirmarqueamulhermorenaeraapreferidadosportuguesesparaoamorfísico.

Sendo a roupa o envelope do corpo, como seria andar nu? Sabemos queescravas e índias vestiam-se com camisa e saia de algodão grosso. Apreocupação era de que não se vissem “nuas nem rotas”, como se queixavaAnchieta.MasquesignificadoteriaonunaIdadeModerna?Havia,então,umagrande diferença entre nudez e nu.Aprimeira se referia àquelas que fossemdespojadas de suas vestes. O segundo remetia não à imagem de um corpotransido e sem defesa, mas ao corpo equilibrado e seguro de si mesmo. Ovocábulofoiincorporado,noséculoXVIII,àsacademiasdeciênciasartísticasondeapinturaeaesculturafaziamdonuomotivoessencialdesuasobras.Nomesmo ano do achamento do Brasil, o pintor Giorgione criara uma Vênus,deitadaeadormecidanumapaisagemcordemel,totalmenteoferecidaaoolhardoespectador,emboraseucorpobrancoexalassecastidade.

Asculturasafricanaseindígenasvalorizavamaliberdadedeexporocorpo.GUILLOBEL,JoaquimCândido.ColecçãodosusosecostumesdoshabitantesdacidadedeS.

LuizdoMaranhão.BRASILIANA,USP:1822.

Na mesma época, no Brasil, índias e negras andavam seminuas. Ambastinham,contudo,condiçõesdetransformarsuanudezemobjetoestético.Todoum código artístico era inscrito na substância corporal através de técnicasarcaicas:pinturas faciais, tatuagens, escarificações,queas transformavamemobras de arte ambulantes, em “quadros vivos”. Não escaparam a GilbertoFreyreseussinaisdenação,astatuagensafricanasaolongodonariz,ostalhosimitando pés de galinha, na testa e nas faces, “talhinhos ou recortes,verdadeiras rendas, pelo rosto todo”. As orelhas furadas, para argolas oubrincos, também eram uma constante. As iaôs, de rituais religiosos, tinhamdireitoàspinturascorporais.No corpo, valorizavam-se as nádegas arrebitadas para trás, empinadas e

salientes, a “bunda” grande – palavra quimbundo para designar o que osportugueses chamavam de “nadeguda”! Os peitos valorizados eram ospequenoseduros, apontodehaveruma lenda recolhidaporNinaRodrigues

sobreoassunto:umamulhermuitograndeevalente tinhapeitos tãograndesque caíam pelo chão. Depois de um embate com guerreiros inimigos, nafloresta onde morava, foi morta, despedaçada e cozida pelas mulheres damesma tribo. “Então, diz o conto, cada qual tratou de apoderar-se de umpedaçodopeito;asquepuderamapanharumpedaçograndetiveramospeitosmuitograndes,asquesóalcançaramumpedacinhoficaramdepeitopequeno,eéporissoqueasmulheresnãotêmpeitosdomesmotamanho.”Agigantedepeitos grandes e caídos, entidademaléfica, era também critério de feiura naculturaafricana.Os anúncios de jornal, notificando a fuga de escravos, informavam as

características físicas de nossos avós negros: a cor “preta”, “alva ou fula dapele”; os cabelos encarapinhados, crespos, lisos, anelados, cacheados,acaboclados, russos, assas, avermelhados e até louros.Nasmulheres, cabelosque eram cuidadosamente arranjados em birotes, tranças, coques. Cabelos“agaforinhados com pentes de marrafa dos lados” ou alisados com óleo decoco. Os dentes quase sempre inteiros e alvos podiam ser “limados” ou“aparados”. As deformações profissionais deixavammarcas nasmãos, pés epernas e os vestígios de chicote pelo corpo não eram escamoteados: “nasnádegasmarcasdecastigorecente”ou“relhonascostas”.Osolhospodiamser“na flor do rosto”, grandes, castanhos ou “tristonhos”. Podiam, ainda, piscar“por faceirice”, enquantoanegra falava.Demuitas sedizia“terboa figura”,ser “uma flor do pecado”, ser “alta e seca”, “bem-feita de corpo” ousimplesmente robusta. “Ter peitos em pé”, “peitos escorridos e pequenos”,“nariz afiladoepequeno”, “peitos empéegrandes”, “pés emãospequenas”erasinaldeformosuraquepodiaimpressionarocomprador.Opeitofemininoeratambémolugardesinaisdenaçãooumarcas.Anegra

rebolo que, em 1840, desaparecera da casa de seus senhores, informa-nosFreyre,trajava“vestidoazulcomfloresamarelas”,ostentava“argolasdeouropequenas nas orelhas” e levava no peito esquerdo a marca MR”. Mas eletambém seduzia: “o busto de basalto negro” encantou o olhar do viajanteRobertAvé-Lallemant.Osvistosospanosdacosta,turbanteserodilhas,xailesamarradosàcabeça,

saias rendadas, camisas abertasde rendaebico e chinelinhasvestiammuitascativas.Umapoesia deMeloMoraesFilho enfeita amulata ou a negra commuitosdosadereçosutilizadospelasbrancas:camisabordada, finae tãoalvaarrendada, torso de cassa à cabeça, corais engrazados nos pulsos, saias derendas finas, brincos de pedrarias, correntinha de prata. E suas palavras

exprimemociúmedasúltimas:“Eusoumulatavaidosa,linda,faceira,mimosa,quais muitas brancas não são!” Para arrematar, “minhas iaiás da janela, meatiramcadaolhadela,Aidá-se!Mortasassim...Eeusigomaisorgulhosa,comoseacararaivosanãofossefeitap’rámim”.No início do século XIX, índios e negros demonstrariam as adaptações

vestimentares.Osprimeiros,distantesdohábitode tirarebotar roupasdadaspelos padres ou europeus, usavam calções, coletes, vestes e bonés emesmocamisas feitas com fibras vegetais. Os naturalistas Spix e Martius, naAmazônia, em 1819, encontraram o chefe dos índios Corotus, que lhesapareceu “descalço, trazendo as calças de algodão usuais dos índios, masenvergavaumfraqueazuleempunhavaa‘pococaba’,umjuncoespanholcomborladeprata”.Asmulheres se cobriamcomcamisase saiasdealgodão,debretanha, de chita. Ou usavam aventais de retalhos de algodão, por vezes,lenços na cabeça à moda portuguesa. Ainda que portando roupas sujas, asguaranis pareceram a Saint-Hilaire incrivelmente “asseadas”. Os cabelosnegros e bastos, presos em coque por “pentes feitos de bambus”, observouHenryWalterBates.Aelegânciadasnegrasnãoescapouaoscronistasdacolônia.Opreparodas

roupas com capricho e o afinco caracterizamum culto rigoroso na forma deportar saias, torços de seda, sandálias enfeitadas e panos da costa, ensina oantropólogo Raul Lody. Na Bahia, se identificavam por seus turbantes ecamisas de musselina sobre a qual colocavam os panos da costa. Roupasbordadas e ornadas de bicos e crivos na rua contrastavam com camisolõesbrancos daquelas que eram escravas domésticas de gente pobre. E Vilhenacontasobreasescravasquesaíamàruacomsuassenhoras:

Aproduçãodefiosdealgodãoparaconfecçãodetecidos.CÂMARA,ManuelArrudada.Máquinadefiaralgodão.TipografiaCalcográfica,Tipoplásticae

LiteráriadoArcodoCego.1799,anexo5.

“Pretas vestidas com ricas saias de cetim, becas de lemíste finíssimo ecamisasdecambraiaoucassabordadasde forma talquevaleovalor trêsouquatro vezes mais do que a peça; e tanto é o ouro que cada uma leva emfivelas, cordões e pulseiras ou braceletes, ou bentinhos, que, sem hipérbole,bastaparacomprarduasoutrêsdestasnegrasoumulatascomoaqueoleva.”Equantasjoias!Desde “punhos ou copos” e braceletes emouro emque se via a elaborada

joalheria desenvolvida por africanos e seus descendentes até balangandãs deprata com diferentes objetos que tinham função simbólica: dentes, figas demadeira,contasebolasde louçaemcoral,âmbaroumarfim.Apenca,presaporumcorrentãodeprata, erausadanaalturadacinturacombinandocomopanodacosta.Osbalangandãspodiamserdevocionais, comaespadadesãoJorge, a pombinha doEspírito Santo, sãoCosme eDamião presos a uma sóargola,entreoutros;votivos,representandograçasalcançadasnosex-votosdecostelas,cabeças,seios,olhosetc.;propiciatórioscomfigasdiversas,dentesdejacaré, moedas, bastões ocos de prata com guiné, pó de pemba e terra decemitério; ou evocativos: o cacho de uvas para lembrar as vindimas

portuguesas,otambor,instrumentodasdançasdeterreiroesenzala.Portava-seaindaobrincoemestilo“pitanga”,feitodebúzioeouro,ouasargolas,tambémconhecidascomo“africanas”,arosouarosderapariga.Etinhaaindaosanéis,comoode“pedra-corada”,gordosepesados,normalmenteusadoporhomens.Nas laterais, atributos curiosos como folhasde tabaco, paraosprodutoresdefumo,efloresdealgodão,paraosagricultores.Ehaviaosfiosdeconta,simbolizandodiferentesorixás,eajoalheriadeAxé,

aquelareligiosa:osibóseidés,aspulseiras,captadosprecocementeporDebreteCarlosJuliãoe,noMaranhão,ditos“rosários”.TaljoalheriasubiuatéMinasGeraispelorioSãoFranciscoeeracomumenteencontradanostestamentosdeescravas ou forras que as compravam com seu “ganho”.Muitas destas joiasforam ainda presente de senhores generosos à amas de leite ou amas. Omaterial simbólico chegava nas embarcações que faziam a rota entre a costaafricanaeosportosbrasileiros, sendodistribuídonas lojase tendasmantidaspornegros,etaistalismãseramusadosporambosossexos.A compra de relíquias era corrente entre escravos, traduzindo a crença na

comunicação com seres sobrenaturais do catolicismo. Eles foram grandesconsumidores de bentinhos, contas do rosário, medalhinhas com efígies desantos, verônicas e até papelotes com o “leite em pó da Virgem Maria”,vendidosporumpadresalafrárionaregiãodoSerro,emMinasGerais.Oportede bolsas de mandinga se misturava às joias de axé. Trazendo poderosasorações que vinham acompanhadas por desenhos, pós de ossos, pedaços depedra d’ara ou de círio pascal, tais conteúdos atendiam a objetivos variados.Eram usados como proteção contra a maldade, para separar casais, contradoenças ou quedas, para escapar da morte e atrair o bem. Acessórioobrigatório, tais bolsas de mandinga tinham seus fabricantes especializados.Algunstãobem-sucedidosqueatédeequipedeajudantesprecisavamparadarconta do número crescente de encomendas. Tais bolsas faziam parte daindumentáriaafricananoBrasilouentreosmembrosdasdiferentesnaçõesdooutroladodoAtlântico.Elegância?Sim.NoRiode Janeiro,duranteobatizadodeumnegronovo,

Debretseimpressionoucom“opadrinho,vestidocerimoniosamente,usaumacalça de seda herdada de seu senhor, chapéu e bengala”. Por sua vez, JohnMawe,nasminasdediamantesobservou:“Nãoháregulamentoespecialparaovestuáriodosnegros;vestemparaotrabalhooquemaisconvémaseugênerodeocupação;usam,emgeral,jalecoecalçãoenãoandamnuscomoasseveramalguns escritores.” Os que garimpavam dentro dos rios portavam calças e

blusasdecourodecapivaraparaseprotegerdofrio,comovistopelosmesmosSpixeMartius.Nocalordosengenhos,ousodacamisadebaetaoualgodão,tecidomuitasvezesfiadoemcasa,eraconstante.Ochapéudepalhacontraosoleraumaobrigaçãoparahomensemulheres:“Asnegrasusam,naruaounocampo, um chapéu preto para se protegerem do sol.” Já as escarificaçõespermaneciamcomomarcadeidentidadeeprocedência.Kidder,em1837,numengenhonordestinoreferiu-seaos“provenientesdaÁfricaquetêmosombros,osbraçoseopeitocobertosdemarcassimétricasqueparecemfeitascomferroembrasas”.NicolasdeLaCailleosviu“quasenus,vestidoscomumcalçãoou,quandoàsvoltascomsuaslidasdiárias,comumsimplespano.Algunstêm,contudo,umacamisaeumcasaco.Osnegroslibertosportamasmesmasvesteseomesmomantodosbrancos”.Searoupaserviuparaidentificarquemeraquemnacolônia,percebe-seque

havia muitos tons de cinza entre o que vestiam brancos e negros. Nada eraóbvio.

M oreniceerobustezeram,então,padrõesdebelezafeminina.Nãoapenasnaplumadospoetas,mas tambémnapenadeviajantes estrangeiros de passagem pelo Brasil, sensíveiselestambémàsnossasVênus.Coube-lhesdeixaroregistrodoqueerapercebidoeapreciado.Registro,diga-se,deuma

formadereagiràbeleza.Suapalavrasobrenossasavósasreproduzaomesmotempoemqueasmodelaeesculpe:“As portuguesas do Brasil são, em geral, extremamente honradas e têm o

corpobem-feito;seuscabelossãodeumbelocastanho-escuroeosseusolhos,grandes e negros, deixando transparecer uma espécie de languidez quedenunciaumpoucodecrueldade.Suasmaneirassãodoceseafáveis,sobretudoemrelaçãoaosestrangeiros.Emmatériadeamor,entretanto,émuitoperigosodespertaroseuciúme,poiselassãocapazesdegrandesexcessos”, registravacuidadosoM.delaFlotte.Juan Francisco Aguirre, por sua vez, anotava: “As mulheres do Rio de

Janeiro vestem-se como as de Portugal. Há algumas senhoras que nãodispensamousodemantilhaseospenteadosadornadoscomfitas.Oquemaislhesinteressa,porém,éestarembemcalçadaseempoadas.Parairemàsigrejasouaqualqueroutraparte,usamsempreumacapadecastor– sejaqual foraestaçãodoano.Asfidalgasportam,emgeral,saiaemanta.DuranteaSemanaSanta,quandoasvestimentasganhammaiorluxo,assaiassãoabertasnafrentee deixam à mostra um saiote bordado em ouro e prata. Nessa ocasião, assenhoras portam uma grande quantidade de pedras preciosas [...]. Osportugueses que as contemplam julgam que estão diante das mais formosasdamasdouniverso.Amodanão temgrandepenetraçãoentreasmulheresdoRiodeJaneiroeogostoébastanteflexível,oquefazcomqueascoreseospadrões das vestimentas variem muito. Observamos que há uma grandepredileção pelas cores fortes como o azul, o violeta e o vermelho e pelosdesenhos de ramagens. O apreço pelas pedrarias é enorme. Uma noite, noteatro,parouaonossoladoumasenhoraque,emrazãodosgrandesanéisedeoutras joias que trazia, era apelidada pelas gentes da terra de Tabuleta ouVitrine de Ourives. Essa mesma dama usava um penteado copiado de umainglesaquehápoucopassaraporestacidadeacaminhodoOriente.”“Tanto os homens quanto asmulheres sãomuito asseados e adoramvestir

roupa branca, a qual é bem tratada, lavada e engomada primorosamente.”

“Todostêmespecialpredileçãopeloslaivosazuisqueoempregodoanildeixanotecidobranco.”UmdosfundadoresdaAustrália,depassagempeloRiodeJaneiroem1787,legou-nostambémsuasimpressões:

Asmulheres,antesdaidadedecasar,sãomagras,pálidasedelicadas.Depoisdecasadas,tornam-serobustas sem, contudo, perder a palidez, oumelhor, certa cor esverdeada.Elas têmosdentesmuitobonitosemelhortratadosdoqueamaioriadasmulheresquehabitapaísesquentes,ondeoconsumodeaçúcaréelevado.Seusolhossãonegrosevivoseelassabemcomoninguémosutilizarparacativaroscavalheiros que lhes agradam.Emgeral elas sãomuito atraentes e suasmaneiras livres enriquecemsuas graças naturais. Tanto os homens quanto asmulheres deixam crescer prodigiosamente os seuscabelosnegros:asdamasemformadegrossastrançasquenãocombinamcomadelicadezadostraços.Masohábitotornafamiliaresasmaisestranhasmodas.Estandoumdianacasadeumricoparticulardo país, comentei com ele minha surpresa relativa à grande quantidade de cabelos das damas eacrescentei que me era impossível acreditar que tais cabelos fossem naturais. Esse homem, parademonstrarque eu estava errado, chamou suamulher, desfez seupenteadoe, diantedemeusolhos,puxouduas longas trançasqueiamatéochão.Ofereci-me,emseguida,pararearranjá-los,oquefoiaceitocomsimpatia.

Nopassado ou hoje, os cabelos femininos ainda são altamente valorizadosemnossacultura.Eneladesvalorizadaaonipresentefeiura.Efeiuraassociadaà velhice. As cantigas medievais portuguesas de escárnio e maldizer nãopoupavamas“feas,velhasesandias”,ouseja,asfeias,velhasemalucas.Umrenomadopoeta,PerodaPonte, dizia sempudoresquenão sedava àsvacasvelhas o mesmo tratamento das novilhas novas. No cancioneiro popular, orosto feminino enrugado era comparável ao traseiro e ai daquelas quepintassem“cu”erostocomalvaiade!Qualquertentativadeesconderaidadeouamáaparênciaeraridicularizada.

Orelhasenrugadas,peleescura,sobrancelhasquecobrissemosolhos,pelosembigodeoubarbafeminina,pésgrandes,maçãsencovadas,barrigamoleeseiosfartos demais armama antítese da beleza juvenil.Após os trinta anos, comodiria o poeta baiano Gregório de Mattos a certa “discreta e formosíssimaMaria”,abelezaseesvanecia:

EnquantoestamosvendoclaramenteNavossaardentevistaosolardente,EnarosadafaceaAurorafria:

Enquantopoisproduz,enquantocria

Essaesferagentil,minaexcelenteNocabeloometalmaisreluzente,Enabocaamaisfinapedraria:

Gozai,gozaidaflordaformosura,AntesqueofriodamaduraidadeTroncodeixedespido,oqueéverdura.

Quepassadoozênitedamocidade,Semanoiteencontrardasepultura,Écadadiaocasodabeldade

Enquanto cronistas, poetas e viajantes despiam o que a sociedade cobria,uma rede de objetos,matérias, cores e odores buscavam transformar o copofeminino, batalhando a dupla infernal: feiura e velhice. Dissimular, apagar,substituirasimperfeiçõesgraçasaousodepós,perucas,unguentos,espartilhosetecidosvolumososeracomum.Apeleazeitonada,arobustezfísica,asfeiçõesdelicadasealongacabeleirapassavamporprocessosfeitosdebenseserviços,utensílios e técnicas, usos e costumes capazes de traduzir gostos e rejeição,preceitos e interditos. Muitos deles, aliás, já bem conhecidos na Europamoderna.Lá, desde o século XVI circulavam livros de receitas – os segredos – de

beleza.Acosméticaevoluía.Adepilaçãodassobrancelhas,apinturadosolhosedoslábios,acoloraçãodasmaçãsdorosto,orelevodadoàfronteatestavamumanova representaçãodamulher.Preparaçõesvariadasdesdobravam-seemmaquilagenspesadas,muitoparecidasamáscaras.Difíceis de manejar, muitos pós deviam ser diluídos em água de rosas,

servindo para cobrir a cara inteira. Elaborado a partir de pau-brasil oucochinilha, emais raramente de cinabre, o “rouge” apresentava-se na formalíquida ou de unguento quando se lhe adicionava gordura de porco ou cera.Serviaparatingirbocaebochechasetinhaconsistênciaidealquandoaplicadoquente. Resistência era um critério recomendado. Os bons tinham que durarentreseteetrintadias.Suacorvariavadocarmim,parapasseiosaoarlivre,aovermelhão,usadoàluzdevelas,atéum“meio-ruge”,paradormir.Complexasou onerosas, boas e baratas, tais receitas eram feitas a partir de ingredientesdiversos.Avirtudedealgumasatravessouosséculos.A ação depilatória do sulfato de arsênico, malgrado sua toxicidade, por

exemplo, é umadelas.O leite de cabra e a gordura de cavalo, pela analogiacomoslongospelosdoanimal,garantiamcabelossoberbosesedosos.Apeleea gordura de cobra prometiam fazer a pele feminina ficar nova. Pérolasesfregadas aos dentes garantiam brilho e brancura.Milagrosa para omesmofim era a pedra-pome dormida no vinho branco e transformada em pó.Pomadasepentesdavamformaperfeitaaospelosfaciaisrestantes.Cobertodealvaiade,orostoeratotalmenteemaciadocomafinalidadedecobrirasmarcasdeixadas por doenças, então, corriqueiras: varíola, catapora,manchas de sol,acne.Numa época em que o dimorfismo sexual era lei, a figura feminina era

marcada,naspartesbaixasdocorpo,pelascurvase,norosto,pelossignosdafeminilidade. A cabeleira em tranças e birotes era alvo de todas aspreocupações. Monumento de afetação, extravagância e desmesura, ela seequilibrava graças às camadas de farinha empoadas pelo cabeleireiro.Embranquecer e perfumar os cabelos graças à utilização do amido, de ossossecos e transformados empódepois debempilados, demadeiras raspadas ereduzidasapóeraofíciodessescúmplicesdaintimidadefeminina.Depois,oscabeloseramfrisados,eriçados,encrespadosebanhadosempomadas.Os penteados mais conhecidos eram o “tapa-missa” e o “trepa-moleque”.

Esseúltimofeitocomumainfinidadedepentessobreosquaisseempilhavamperucas,inclusiveasfeitascomcabelosdemoçasdefuntas.Oresultadofinal?NunoMarquesPereira,cronistadoshábitosbaianosdoiníciodoséculoXVIII,équemdescreveasmulheresquetraziam“enfeitese toucadosnascabeças,evinha a ser que se usava naqueles tempos umamoda que chamavam patas,feitas também de cabelos, porém presas em arames. Foi crescendo tanto ademasiadamoda, [...] e tão disformes, que para entrar umamulher com esteenfeite nas igrejas, era necessário que estivessem as portas desimpedidas degente!”.

Padreecriançanegrosacompanhadosdeumadama.BRIGGS,FredericoGuilherme.Humasimplicia[Iconográfico].[S.l.]s.n.,[s.d.].

Não faltaram cronistas a ver o outro lado: os cabelos desgrenhados, malpenteadoseaaparênciadegenteque“nãotomavabanho”.Apesardapobrezamaterial que caracterizava a vida diária no Brasil Colônia, a preocupaçãofeminina com a aparência não era pequena. Só que ela era controlada pelaIgreja. A mulher perigosa por sua beleza, por sua sexualidade, por suaassociação com a natureza inspirava toda a sorte de preocupações dospregadorescatólicos.Não forampoucososque fustigaramocorpo feminino,associando-oaoinstrumentodopecadoedasforçasobscurasediabólicasqueelerepresentavanateologiacristã.“Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em

ódio;emuitasvezesnãoseránecessárioperder-seaformosuraparaperder-setambém o amor, porque, como o que se emprega nas perfeições e partes docorpo não é o verdadeiro amor, se não apetite e a nossa natureza é sempreinclinada a variedades, em muitos não durará”, admoestava um pregadorresmungão.Oenfeamentodocorpoestavaarticuladocomateoriapunitivadousodestemesmocorpo.Osvícioseas“fervênciasdacarne”,ouseja,odesejo,

tinham como alvo o que a Igreja considerava ser “barro, lodo e sangueimundo”,emquetudoerafeioporquepecado.Isso,porqueamulher–avelhaamigadaserpenteedoDiabo–eraconsiderada,nessestempos,umveículodeperdiçãodasaúdeedaalmadoshomens.Aquela“bemparecida”,sinônimonoséculoXVIIparaformosa,eraapior!

Logo, modificar a aparência ou melhorá-la pelo emprego de artifíciosimplicavaemadensaressainclinaçãopecaminosa.Mais.Significava,também,alteraraobradoCriador,quemodelaraseusfilhosàsuaimagemesemelhança.Interferência impensável, diga-se de passagem. Vários opúsculos circulavamtentando impedirasvaidades femininas.Ospadresconfessores,porexemplo,ameaçavamcompenasinfernais:

Estaràjanelacheiadebesuntos,levantarosfatos(osvestidos)quandonãohálama,levantaravozentoandofalsete,porostentarmelindre;tingirosobrolhocomcertoingredienteefazeromesmoàcaracomtintasbrancasevermelhas,trazerboasmeiasefingirumdescuidoparamostrá-las,rirdemansoparaesconderapodridãoouafaltadosdentesecomermalparavestirbem.

Apesardetantasadvertências,amulhersemprequisseroufazer-sebela.SeaIgrejanãolhepermitiatalinvestimento,aculturalheincentivaráaforjarosmeiospara transformar-se.Osdispositivosde embelezamento, assimcomoocortejo de sonhos e ilusões que os acompanhavam, eram de conhecimentogeral.Oinvestimentomaiorconcentrava-senorosto,locus,porexcelência,dabeleza.Asoutraspartesdocorpoerammenosvalorizadas.Consequênciadiretadesta valorização, o embelezamento facial recorria à certa incipiente técnicacosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele comremédios.Seguia-seamaquilagemcompós,“besuntos”e“tintasvermelhasebrancas”,comojáseviu.Desabrochava, nessa época, uma visãomédica da cosmetologia, visão que

foifortementeretomadanoséculoXXpelosfabricantesdecosméticos.Assimcomo hoje, há quatrocentos anos atrás, a ideia fundamental consistia emesconderosmalesdemaneiraartificial.Afecçõescutâneasemácoloraçãodatez eram consideradas preocupantes. Para combatê-las usou-se, até oaparecimentodaquímica,certafarmacopeiadomésticaàbasedeprodutosque,aindahoje,vigoram:ceradeabelha,mel,amêndoasdoces,gorduradecarneiro,águaderosas,leitedepepinos,glicerina,benjoim.Apartir do séculoXVI,o crescimentodas trocas econômicas e comerciais

incrementou o aparecimento de especiarias que vinham do Oriente ou daAméricaparaaEuropano fundodasnaus: limão,arroz, açúcar,manteigade

cacau, que foram acrescidos ao receituário tradicional. Havia, contudo,produtos mais prosaicos. Por exemplo, o “leite de mulher parida” eraconsiderado eficiente para a queda de cabelo, sinais e cicatrizes, erisipela,icteríciae“cancro”.Osexcrementosdeanimais,maisconhecidoscomo“floresbrancas”, foram

largamente utilizados para clarear e cicatrizar sinais na pele. Excrementos,diga-se, que podiam ser tanto de sofisticado crocodilo africano quanto deprosaicocachorrodoméstico.Aurina,poderosocicatrizante,idem.Éobvioquetais produtos não eram aplicados sobre a pele sem certos cuidados.Cozimentos, exposição ao sol, macerações buscavam decompor oudesmaterializar o componente original.A destilação, apropriada da alquimia,alimentavao imagináriodepurezaassociadoaos tratamentoscosméticos.Erapreciso purificar para embelezar. Matérias puras, límpidas, essenciais eramusadas para embranquecer a pele azeitonada, considerada feia pelosestrangeiros de passagem. Ferros aquecidos em cinzas quentes ajudavam aencrespar os cabelos. Mas não esqueça: “embelecar” era sinônimo de“enganar”.Olimiteentreacosméticasaudável,aquelacapazdesanarmalesedoenças,

eacosméticapara“embelezar”eraestreito.Asmulheres resvalavamdeumaparaaoutra,soboolharsemprecondenatóriodemaridos,padresemédicos.Acrítica regular do uso excessivo de tintas, besuntos, cremes e unguentos seacumulava.Perseguia-seapossibilidadedevê-lasseassemelharàscortesãsouprostitutas.Ocritério,portanto,erao“muito”ou“pouco”maquilada,critério,esse, que variou ao longo dos tempos. Basta pensar no “meio-ruge” que asmulheresusavam,aodeitar-se,noséculoXVIII!Nadadisso,porém, impediuumviajantefrancêsdevê-laspenteadascomfitaseregistrar:“Oquemaislhesinteressa,porém,éestarembemempoadas.

Aroupa, na sua forma, cor e substância, significou, entre os séculosXVI eXVIII, uma condição, uma qualidade, um estado. Não havia dúvidas

quantoa isso. Instrumentode regulaçãopolítica, social e econômica, as “leissuntuárias”existiamparamantervisíveisosníveissociaisdequemsevestia.Oluxo de tecidos e bordados era apanágio da aristocracia. Seusmembros nãopodiamserconfundidoscomosdascamadasemergentes.Codificandocortes,materiais, tinturas, a roupa garantia marcas de poder, intensificando-lhes obrilho.Semelhanteaoqueocorre,hoje, comousode roupasdegriffe?Não.Muito mais rígido. Entre os séculos XV e XVIII, a roupa tinha um papelpolítico-social.Elafuncionavacomosignodehierarquização,defixidezoudemobilidadedosgrupos.Nopreâmbulodapragmáticade8dejunhode1668,porexemplo,d.PedroII

dePortugalordenava:“Façosaberaosqueestaleiviremque,nasCortesqueconvoqueiparaascousasnecessáriasaconservaçãodestereino,porpartedosTrêsEstadosdelle,Eclesiástico,NobrezaePovo,mefoirepresentadoepedidocomgrandeinstanciaquizesseatalharagrandedemasiaeexcessosquehánostrajes, vestidos, guarnições e outras cousas, e feitios delles.” Com intençãoprotecionista, tais pragmáticas buscavam mitigar os danos à economiaportuguesa, causadospela saídadosmetaispreciososdo reino,decorrentedaconstanteentradademanufaturasestrangeiras.Eelaseramminuciosas,comosevê,porexemplo,naproibiçãodousode“todoogênerodetelasesedasquelevaremprataououro,todaaguarniçãodeouro,ouprata,emqualquergênerode alfaias, ou de vestidos [...]. Todo o gênero de chapéus que não foremfabricadosnestereino.Todasasrendas,quesechamambordados,oupontoeVeneza.Todososadereçosdevidrosepedrasfalsas,ouvenhadeforadoreino,oufaçamdentredele”.Outroexemplodoalcancedaspragmáticaseraaobrigação,emPortugal,de

os judeus usarem uma carapuça amarela. E os mouros, uma lua de panovermelhodequatrodedos,“cosidanoombro,nacapaenopelote”segundoocódigodeleisconhecidocomoOrdenaçõesFilipinas.Outroexemploparaquesepercebaaquepontotallegislaçãoerarestritivadizrespeitoàsroupasquesepodiaounãousarduranteoluto,chamadoentão,dó:

Quandoaalgumapessoa falecerpaioumãe,ououtroascendenteou filha,ououtrodescendente,sogroousogra,genroounora,oucunhado,poderá trazerpordócapuz, tabardoou lobacerradapor

tempo de ummês somente, e não serão demais comprimento que até os artelhos, e daí por diantepoderátrazercapaabertadedóquenãopassademeiaperna[...]eospeloteseroupetasquetrouxerempordónãoserãomaiscompridosqueatécobriremosjoelhos,enãotrarãonelesmangaslargas.

Otabardoeraumacapa,capoteoucasacãocomcapuzemanga.Lobaeraumtipodevestidocomtúnicaaberta,semmangas,quesesobrepunhapelafrente,earoupeta,umavestemaisestreita,comoatúnicadosjesuítas.Comosepodeobservar,aimobilidadedaslinhascorrespondiaàimobilidadequeseesperavadequemestivessetristeechorandoapartidadosseus.Tais leis suntuárias funcionavam? Sabemos que elasmais freavam do que

impediamoportededeterminadasvestimentasoutecidosporquemnãodevia.Um exemplo? Nos finais do século XVII, durante o reinado de Luís XVII,chegou-seacercear,deacordocomonívelsocial,agrossuradosgalõesouamatériadosbotões.Restritosaousomasculino,osbotõessóentãopassaramaser usados pelas mulheres, antes obrigadas a manusear um sem número delaçosefitasparafecharsuasvestimentas.Masnãohádúvidasdeque,comaemergênciadaburguesiaeodeclíniodofeudalismo,teminícioacorridapelodesejo de consumo. Até então as qualidades vestimentares femininas erambaseadasnamodéstiaenamoderação,comopregavaaBíblia.NoséculoXVIIItudo se precipita. A gestão das rivalidades entre cortesãos escapaprogressivamenteaossoberanos,eamoda,que,desdeoRenascimento,pareciatertendênciasseculares,adquiresuaacepçãomodernadetendênciapassageira,degostocoletivaedeefêmera.Éessa,pelomenos,adefiniçãoquelheédada,em1690,numdicionáriofrancês.E,entrenós,comofuncionavamtaiscuidadoscomavestimenta?Deacordo

com as informações que temos para o Brasil Colonial, nossas antepassadasforamexcelentesrendeiras.Seotrabalhodefiaralgodão,reservadoàsescravasnegras e índias, era considerado cansativo, aquelede adornarpanos caseiros,roupas, xailes e redes era tarefa generalizada entre as mulheres das maisvariadascondiçõessociais.Sentadascomaspernascruzadasaochão,frenteàcertaquantidadedebilroseumaalmofada,seutrabalhofuncionavaaomesmotempocomofontedelucroediversão.Ocrivo,umtipodetrabalhodeagulhafeitosobredesenho,comfiosdelinhaecerzidonumpadrão,complementavaosadornosemqualquervestimenta.

JULIÃO,Carlos.Cenaromântica:velhovestidoàmodadoséc.XVIIIfazmençãodeentregaraumajovem,cartaondeselê:”ASra.JoannaRosa...”

SÉCULOXVIII.

Sabe-se, também, que uma quantidade enorme de rendas era importada deEspanhaePortugal.Aqui,comolá,nenhumamulherandavasemvéusouumaprofusão de rendas nas roupas. A seda prestava-se bem para realçar taistrabalhos.Desedanegraeramasmantilhasguarnecidascomrendaslargasqueserviampara tapar a cabeça, comoumcapuz, talvezpara “embuçar” a damanasruas,emsuacaminhadaparaaigreja.Háinformaçõesdequealgumaseramtãograndesquesódeixavamexpostososolhos,cobrindotodaapessoaatéospés. Mulheres negras, de origem muçulmana ou não, cobriam-se com finosvéusdealgodãobranco,tidopor“odasmulheresdoOriente”,elongosmantosquelhescaíamatéospés,envolvendotodoocorpo.Usavam-setambémcapas

oumantasemcoresvivas.Oanileopau-brasileramcostumeiramenteutilizadosparatornarostecidos

mais atraentes.Urina era o produtomais utilizado na fixação das cores. Talcomo na Europa moderna, onde tecidos caros serviam para a realização demodelos damoda, entre nós, as mulheres não pareciam ter dificuldade paraescolher.Ospercalços,contudo,chegavamnahoradopagamento. Isso,pois,mesmosendooambientedaterradegrandeprecariedadeepobreza,vestir-secom apuro fazia parte das mentalidades e não se mediam esforços paraaparecer bem. Os emblemas exteriores de riqueza contavam, e muito, numaterraondeasaparências,namaiorpartedasvezes,enganavam.Não faltaramcríticosaohábitode“parecer, semser”. Jáem1587,Gabriel

Soares de Souza queixava-se dos colonos que tratavam suasmulheres “comvestidosdemasiados,porquenãovestemsenãosedas,poraterranãoserfria,eno que fazem grande despesa,mormente entre a gente demenor condição”.Pavonear-seem“sedas,veludosepanosfinosdePortugal”eramuitocomum.Mas o outro lado desta exibição eram as dívidas. O exibicionismo – e oconsequente endividamento– levaramopadreAntônioVieira a vituperar dopúlpitocontraogastoexcessivodosfiéiscomtecidos,nacidadedeSãoLuís:

VemummestredenaviodePortugalcomquatrovarredurasdaslojas,comquatropanosequatrosedasquejáselhespassouaeraenãotêmgasto;oquefaz?Iscacomaquelestraposaosmoradoresdanossa terra; dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobemais o preço; e osbonitos,ouosquequeremparecer, todosesfaimadosaos trapos,ali ficamengasgadosepresos,comdívidasdeumanoparaoutroano[...]Notristefarrapocomquesaemàrua,paraissosematamtodooano.

A maior parte das naus que aportava no litoral trazia fazendas finas ougrosseirasparavender.Abuscapelo raroe caro traduzia-senumaculturadeaparênciasexibidanapraçapública–cenárioidealparaaquelasquebuscavamfazer parte do espetáculo dos privilegiados – emultiplicada na concorrência.Era o efeito vitrine que contava.Mas não escapava aosmais observadores opontofracodaquestão.“Oluxodosvestidos”,escreviaem1768ogovernadordeSãoPaulo,“édesigualàpossibilidadedestagente;seasfazendasfossemdoreino tudo ficava em casa, porém sendo estrangeiras não há ouro que aspague...Tudoissocompra-sefiado,edepoisestuda-separapagar”.Porvezes,adescriçãodasroupas,mesmoasdefesta,nãoindicavaaênfase

em tais gastos suntuários. A descrição de uma denunciada à Inquisição, noséculoXVII,demonstraquesuasmelhoresroupas–“evestiudefesta”,dizo

documento – constavam de “uma saia de tafetá azul e jubão de holanda etoucadonacabeça”.Aduplasaiaegibãodominavatambémentreasburguesase camponesas europeias cujo guarda-roupa básico era de cinco peças.O quevariava era o contraste com a qualidade e a quantidade de tecido.As cores,comonocasoomencionadoazul,podiamidentificarousodaroupa:“Festa.”Para atividades diárias, escolhiam-se as escuras.A lã era indicada por sua

durabilidade.Vestidoseramcoisadearistocraciacujosmembrosenfiavamumamédia de dez peças de roupa, fora a roupa branca e íntima.O séculoXVIIIintroduziu na Europa tecidos novos: sedas, algodões, linho. Os coloridos sediversificavam.Os ricos se adaptaram commais rapidez a essamudança degosto, mas os pobres também aderiam. O que se ganhava em diversidadeperdia-se em solidez. Esse é omomento em que as classesmenos abastadascomeçam,elastambém,aaceleraroritmodascompras.Confirmando a hegemonia da aparência, amaior parte dasmulheres só se

vestiaparairàsruas.Eraaconfirmaçãodovelhoditado:“Porfora,belaviola;por dentro, pão bolorento! ” Em casa, cobertas com um “timão”, espécie deconfortável camisolão branco em tecido leve, ocupavam-se nas atividadesdomésticas.Os cabelos,mal penteadosou “enpapilottes”, segundoa inglesaMariaGraham,davamumapéssimaimpressãodedesmazelo.Pior, a tal camisola deixava expostos os seios. E a estrangeira fulminava:

“Nãovihojeumasómulher toleravelmentebela.Masquempoderáresistiràdeformaçãocomoaqueasujeiraeodesleixoexercemsobreumamulher?”Aovisitar, em 1821, residências baianas, anotou, consternada, sobre suasmoradoras: “Quando apareciam, dificilmente poder-se-ia acreditar que ametadedelaseramsenhorasdesociedade.Comonãousamnemcoletes,nemespartilhos,ocorpotorna-seindecentementedesalinhadologoapósaprimeirajuventude; isto é, tãomais repugnante quanto elas se vestemdemodomuitoligeiro, não usam lenços ao pescoço e raramente os vestidos têm qualquermanga. Depois, nesse clima quente, é desagradável ver escuros algodões eoutrostecidossemroupabranca,diretamentesobreapele,ocabelopretomaldesgrenhado,amarradoinconvenientemente,ou,aindapior,empapelotes,eapessoatodacomaaparênciadenãotertomadobanho.”SegundoMariaBeatrizNizzadaSilva,asaídadominicalparaamissalevava

asmulheres a usar umamantilha negra de seda que ocultava as roupasmaistransparentes e decotadas usadas por baixo delas. Outro inglês, ThomasLindley, que esteve na Bahia no início do século XIX, observou que ovestuáriofemininomaiscomumeraumasaiausadaporcimadeumacamisa:

“Esta é feita de musselina mais fina, sendo geralmente muito trabalhada eenfeitada.Étãolarganobustoqueresvalapelosombrosaomenormovimento,deixandoobustointeiramenteàmostra.Alémdisso,étãotransparentequesevêtodaapele.”

Joiasded.MariaI.Estudodejoiasdeestilod.MariaI[Visualgráfico].G.Pessoa[entre1800e1850].

O prussiano Theodor Leithold, por seu turno, observou que, no Rio deJaneiro,noprimeiroquarteldoséculoXIX,asmulheresvestiam-sedepreto,geralmente com seda, commeias de seda branca, sapatos damesma cor, “esobreacabeçaumvéupretodefinocrepequecobremetadedocorpo”.Otalvéu, segundo De La Flotte, servia de disfarce, também: “Como todas seescondematrásdeumvéuesevestemdepreto,éimpossívelmesmoaoolharmais penetrante distingui-las umas das outras.Assim, sob o pretexto de ir àigreja pode tranquilamente dirigir-se para um encontro amoroso sem serreconhecida”,diziaofrancês.A simplicidade ou pobreza da indumentária contrastava com as joias. Sem

elas, asmulheres não saíam às ruas. As negras portavam figas, crucifixos epencas de ouro. As brancas, anéis, colares, brincos e braceletes ricamentetrabalhados, tesouroque tantopodia ser presente domarido, quantoparte dodote de casamento. Segunda Silva, além de saírem aos domingos para ir àigreja, as mulheres apareciam em público nas reuniões da Corte, se eramaristocratasemoravamnoRiodeJaneiro,ounosespetáculosteatrais,quesóserealizavam nas grandes cidades,momento em que tiravam as joias do cofre.Pedras preciosas como esmeraldas, crisólitas, topázios brancos ou amarelos,diamantes rosa, águas-marinhas, pérolas, alémdevestidosbordados aouro eprata, ousadamente decotados à moda francesa da segunda década doOitocentos,enchiamaplateia.

Outrasjoiasded.MariaI.Estudodejoiasdeestilod.MariaI.

VISUALGRÁFICO].G.PESSOA[ENTRE1800E1850].

Na cabeça colocavam quatro ou cinco plumas, importadas da França,inclinadas para a frente, e na fronte, diademas incrustados de diamantes epérolas.Paradançarnosbailes,ocerimonialexigia“vestidosredondos,luvaseenfeites de cabeça mais ligeiros e próprios para aquele fim”. O espetáculoteatral,noentenderdamesmaautora,exigiamenosluxodoqueascerimôniasda Corte e nesse ambiente usavam as mulheres flores no cabelo, brincoscompridosevistosos,umxalepelosombroseumlequequepodiasermaisoumenosvalioso.Dois prussianos emvisita aoRio de Janeiro, em1819, fizeramquestão de

anotar que as mulheres de elite possuíam amplos guarda-roupas de linho esedas de toda a classe, “guarnecidos de outros enfeites”. Para atender a essademanda de consumo, os armarinhos de luxo enchiam as ruas cariocas.Capelistas vendiam fitas largas ou estreitas, lisas ou lavradas, na sua maiorparte de seda,mas tambémdeveludo; galõesdeouro e deprata, guarniçõesbordadas, franjas e rendas de várias qualidades (linho, linha, filó, seda),inclusivedefiodeouropara“véusdeombros”,tirasbordadaspara“coleiras”,entremeios,cordõesdeseda,bordadurasdeouroetudoomaisoqueservissepara ornar asmulheres. Sim, para enfeitá-las, mas, também para irritar seuspadresconfessores.VeiodeVieira a críticamais ácida: “Temchegadoo luxo e a vaidadedas

mulheresatalexcessoqueaténasHorasoulivrosdeorarquelevamàigrejavão entre as folhas encadernadas espelhos [...] a fim de que suas fervorosasoraçõesnãoapareçamdiantedeDeusdesacompanhadasdesteornato.”Entreomundoruraleourbano,estabeleciam-seclivagens.Noprimeiro,os

valores de estabilidade, identificados ao clima, à duraçãodas peças e ao usoreiterado do vestuário, permaneciam regra. No sul do Brasil, John Luccockobservou mulheres usando capotes de casimira com ornamentos de pele eescravas enroladas em pedaços de baeta enfeitados com franjas. Em MinasGerais,elassevestiamdebrancooudecoresvistosas,eguarda-sóiscoloridosabrigavam-nas do sol causticante.Na falta destes, usavam um chapéu em lãnegra.Ogostopelastelasrústicasetecidosresistentescomoabaeta,obaetão,a estamenha, o lemiste e a sarja mostra que os hábitos não eramexclusivamenteosditadospelosricos.

Oquenãofaltavanoguarda-roupa,oumelhor,nosbaús,eraabata,acamisa,acamisola,asaia,ossapatosouchinelas.Espartilho?Raro,tornandoocorpo“indecenteerepugnante”.Apeçasósetornaráobrigatória,noséculoXIX.E eles? Segundo padre Vieira, eram tão vaidosos quanto as mulheres,

sobretudoquandoseesforçavamparademonstrar“fidalguia”.Osmembrosdaelite formada por senhores de engenho, grandes proprietários de terra etraficantes de escravos aguardavam a chegada de navios trazendo produtosimportados como os tecidos de seda e lã, o crepe, o damasco, a holanda, ochamalote, além de chapéus de Segóvia ou de Bardá e botas, abotoaduras,fivelasegravatas,entreoutros.EVieira sabia bem do que falava, pois no seio da própria Igreja existiam

condenaçõesaoexibicionismodereligiosos.AsConstituiçõesdoArcebispadodaBahiaproibiamqueosclérigosadotassemamodadossecularestaiscomobordados, detalhes em ouro e prata, meias com ligas de seda, guarnições,galõeseretrósquefaziamagraçadaindumentáriadealgunspoucos.Longeostemposemque,paupérrimos,osmembrosdaCompanhiadeJesuspediamaoreidePortugalquelhesenviassepanopardoparaasbatinas,sapatosepanodelençoparafazercamisas.Atéassotainasdecânhamo,tingidasdepreto,eramfeitasdevelasdenausdasÍndias.Nacabeça, levavamsombreirosdoadosouemprestados. As capas para sair à rua eram poucas. A solução? Revezar-se.Seuscalçõespodiamserfeitosempeledeemaeoscintos,empeledelontra.Em 1785, quando a produção de tecidos de algodão, notadamente a chita,

estavaemfrancaexpansãoumdecretoded.MariaIproibiuasmanufaturas.Oresultadofoioaumentodaimportaçãodeprodutosdeluxovendidosemtodaaparte pormercadores emascates.Roupas e tecidos eram tãopreciososque aprópria Inquisição do Santo Ofício os confiscava, ao lado de joias e outros

objetos.Caso,porexemplo,dolavradordecanaAntôniodaFonsecaRego,deOlinda,presoem22denovembrode1729,quedeclaroupossuir:“Umvestidodelemistepretonovoqueconstavadecasaca,vesteecalçãoforradodebaetapretaquetinhacustado40milréis,commeiasbrancasdesedaetalabartedemarroquino[...]quatrogravatascomumarendinhamuitopequena.”OmercadorBelchiorMendesCorrea,daBahia,presoem22denovembrode

1726,declarouapossedeum“roupãodesedaazul-claromatizadocomváriascoresforradodetafetácarmesim,novo,quevaleria20milréis”.Outrofatointeressante,nassuasconfissõesaoInquisidor,osréusrevelavam

suasdívidasparacommercadores,alfaiatesesapateiros.Numatentativaderetratodovestuáriomasculino,NicolasLouisdeLaCaille

diria que “a gente comum usa um casaco e um amplo manto com o qualcobremtodoocorpoeatémesmoorosto;algunstrazemtambémumchapéudomesmomaterialparacobriracabeça,demodoque,frequentemente,nãoépossívelreconhecerapessoaquepassa,anãoserpelasuamaneiradecaminharoupelacoroupelotipodasuamanta.Osoficiaisdejustiçasedistinguemporumbastãoouumabengalaqueosprincipaiscarregamnoladodireito,acimadocotovelo,enquantoosoficiaissubalternoscarregamomesmoadereçopresonobolsoesquerdodavestimenta.Osoficiaismilitaresqueestãode luto têmporhábitotrazerumlençodecrepepretoatadonobraçoesquerdo.Osdoutoresemteologia,direitoemedicinausamgeralmenteóculossobreonarizparasefazerrespeitarpelospassantes”.EmSãoPaulo, onde a vida era áspera e rude, reinava o “gibão de armas”

comosquaisoshomensseinternavampelossertõesematosoua“saltibarcadepicote”comqueseassistiaàfainaagrícola.AofinaldoséculoXVI,ajulgarpelos testamentos, era o fim dos vastos “tabardos”, dos “pelotes de mangasgolpeadas”,das“gorrasdeguedelha”,dos“pantufos”.Oscalçõesperdiamos“golpes”,estreitando-seatéos joelhos.Asmeias longas,chamadasdecalças,encurtaram-seemmeias-calças.Abotaaltairiaacabarabaixodosjoelhos,comocanovoltado“emcanhão”.Poucoapouco,acorconquistavaaindumentáriae os bandeirantes usavam coletes amarelos, gibões azuis da cor do céu,roupetasverdosas,calçõesverde-mar,meiasazuis,amarelasouverdes,casacascor de flor, cor de pessegueiro, calção de seda amarela, entre outras roupasvivasechamativas.Em Minas Gerais, os homens pobres costumavam usar calças leves e

folgadasecamisascomas fraldaspara fora, ambasdealgodão.Àsvezes, secobriamcomumajaquetadecouro.Asesporaseramcolocadasmesmonospés

nusoucalçadosemtamancos.HerculeFlorenceosviutãoempobrecidosquelhesbastavamasceroulas.Nofrio,umcoletedelãfaziaàsvezesdeagasalho.Oschapéuseramdefeltro,desabadosegrandesnocasodostropeiros,edeabaestreita e copa alta, entre os condutores de porcadas.Na zona demineração,JohnMawe observou: “Algumas vezes, os homens se envolvem num velhocapote oumanto, e têm como calçados uma espécie de sandália demadeira,exceto quando saem, ocasião em que mostram toda a sua magnificência,diferindo sua toilette da roupa doméstica, tanto quanto difere a borboletafaustosadomodestocasulodacrisálida.”No Rio Grande do Sul, nas “classes obreiras”, como denominava Saint-

Hilaire,barqueiros,peões,campôniosepequenossitiantesqueencontrou,eracomumoportede jalecosde lãcommoedasdedois reais, feitobotões.Suasbotas eram feitas da pele crua tirada da perna de um cavalo ou boi, secadadepoisnumafôrmagrosseiraeamarradanaextremidadeinferiorparaformarapontadopé.Botasdepeledejiboiaeramoorgulhodosqueasportavam.No Rio de Janeiro, o que impressionava era a “sem cerimônia”, como a

definiram vários viajantes estrangeiros ao estranhar o hábito de os homensestaremdetamancos,camisasabertasaopeitoecalçasfrouxasàportadesuastendas:aroupademonstravaqueseususuárioseram“amigosdocomodismo”,criticouSaint-Hilaire.Elesseriama“verdadeira imagemdorelaxamento[...],portanto, nada de meio-termo; ou está num desalinho mesquinho ou numavestimentabrilhante”,arrematavaJohnMawe.NoséculoXVIII,nãoescapouaDe La Flotte a aparência e o comportamento: “Os homens são de um talhemedíocre e de uma tez azeitonada; são sérios, orgulhosos e, com rarasexceções,desprovidosdaquelasmaneiras finasquedistinguemumcavalheirodeumhomemdopovo.”O problema da negligência vestimentar não estava só na capital. No Rio

Grande do Norte, na cidade de Natal, em visita pastoral à igreja de NossaSenhora da Apresentação, o padre pregou contra os que chamou de“irreverentes”:homensqueadentravamamatrizcom“chinelasdetalam”!Eovisitadord.ManuelGarciaVelhodoAmaralrepreendeu,chocado:“AsIgrejasdeDeusnãosãocasasdepessoasparticularesparaqueentremnelacomotrajereferido em que mostram a pouca reverência que têm ao SantíssimoSacramentoeàMãedeDeus,edemaisSantos.”Talam,provavelmente,vemdapalavratalão,quesignificaparteposteriortraseiradopé,ouseja,calcanhar,quenessecalçadoficavaexposto.MotivodairadoVisitador.Juan Francisco deAguirre observou que os portugueses não usavam seda,

preferindoostecidosdealgodãoinglesesouindianos.Ascasacasdelã,apesardointensocalor,erambastantecomuns;ninguémasdispensava.Osoficiaisemestres de qualquer ofício usavam perucas, que, segundo ele, pareciam ser“mais estimadas do que o próprio cabelo.Nemmesmo os negros dispensamesse adereço e estão sempre bem penteados e empoados. Mas o forte dosadereçossãoaspedraspreciosasqueadornamoschapéus,osanéis,osbotões,ospeitilhoseasfivelas”.LordeMacartney,em1792,confirmouaimportânciadasbengalasebordões,

alémdeobservarqueenormesbrincosdeourooudeprataornavamossapatosequeasligaspodiamserpresascomdiamantesetopáziosdoBrasil.Guarda-chuvascobertoscomalgodãogrossoeresistentejáeramusados,enquantoqueos escravos se defendiam da chuva com mantos feitos com folhas secas elongas do capim-mumbeca.Nos sertões usavam-se as folhas de buriti nessascapasdechuvaimprovisadas.Nuncafaltoucriatividade!

DEBRET,Jean-Baptiste.Casadeumdoentepreparadoparasersacramentado[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,1826.

H á muito poucas palavras para definir a criança no passado,sobretudo no passado marcado pela tremenda instabilidade epela permanente mobilidade populacional dos primeirosséculosdecolonização.“Meúdos”,“ingênuos”,“infantes”sãoexpressões com as quais nos deparamos nos documentos

referentesàvidasocialnaAméricaportuguesa.Ocertoéque,namentalidadecoletiva, a infância era, então, um tempo sem maior personalidade, ummomentodetransiçãoe,porquenãodizer,umaesperança.Galeno, citado emmanuais demedicina entre os séculosXVI eXVIII era

quemmelhordefiniaoquefosseaprimeiraidadedohomem:a“puerícia”tinhaaqualidadedeserquenteeúmidaeduravadonascimentoatéos14anos.Asegundaidade,chamadaadolescência,cujaqualidadeeraser“quenteeseca”,duravados14aos25anos.NalógicadeGaleno,oquehojechamamosinfânciacorresponderiaaproximativamenteàpuerícia.Estaporseuturnosedividiaemtrêsmomentosquevariavamdeacordocomacondiçãosocialdepaisefilhos.Oprimeiroiaatéofinaldaamamentação,ouseja,findavaporvoltados3ou4anos.Nosegundo,queiaatéos7anos,criançascresciamàsombradospais,acompanhando-osnas tarefasdodiaadia.Daíemdiante,ascriançasou iamtrabalhar, desenvolvendo pequenas atividades, ou estudavam em domicílio,com preceptores ou na rede pública, através das escolas régias, criadas nasegundametadedoséculoXVIII,ou,ainda,aprendiamalgumofício,tornando-se“aprendizes”.Masvejamoscomoessespequenosentravamnavidaedepoisnomundodos

adultos.Vigiadaporuma imagemdeNossaSenhoradoÓoudoBomParto,agachadaousentada,amulheresperavaossinaisdoparto.Familiarizadascomasmanobrasparafacilitá-lo,ascomadresou“aparadeiras”encarregavam-sedalubrificação das partes genitais, untando-as com gordura animal, óleo deaçucenasouazeite.Entregolesdecachaçaedecaldosdegalinhacomcanela,aparturienteeraconfortada,devendomostrar-se“rijaevaronil”paraenfrentarasdoresqueseseguiriam.Oventredilatadopelagravidezsecobriaderelíquiasecordões coloridos, capazes, namentalidade da época, de assegurar um partotranquilo.Nojoelhoesquerdodaparturienteeraamarradaumapedrachamada“deMombaza”,encontradaemMinasGerais,cujafunçãomágico-religiosaeraa de atrair a criança para fora da barriga damãe. Preces endereçadas a sãoMamede,sãoFranciscoesantaMargaridaerammurmuradas,baixinho,afim

de afugentar qualquer perigo que pusesse em risco a vida do nascituro.Mastigarcebolasouatarnacoxadireitaofígadocrudegalinharecém-abatidaeram gestos recomendados para combater a dor do parto. Os gritos, quesugeriamqueasmulheres fizessem forçaouempurrassem,acompanhadosdevigorosamassagemabdominal, incentivavama expulsão.A criança vinha aomundoentrepreces,gritosdedorejúbilo.A socialização do nascimento fazia-se através de cartas trocadas entre

parentesoudanotíciabocaaboca:“Seja-nosumaemilvezesparabénsofeliznascimento de meu querido neto e o bom sucesso de minha querida filha”,escreviaem1771umesfuziantemarquêsdeLavradio,vice-reidacapitaniadoRiodeJaneiro,aofilhoemPortugal!Umnascimentosignificou,desdeanoitedostempos,umavitóriacontraamorte.Osprimeiroscuidadoscomorecém-nascidoeramvelhíssimos.Seucorpinho

molengoerabanhadoemlíquidosespirituosos,comovinhooucachaça,limpocom manteiga e outras substâncias oleaginosas e, firmemente enfaixado. Acabeçaeramodeladaeoumbigorecebiaóleoderícinocompimentacomfinsde cicatrização. Coroando os primeiros cuidados, era fundamental o uso daestopada: “cataplasma confeccionado com amistura de umovo comvinho”,aplicadoaumaestopaqueporsuavezerapresaporumlencinhoàcabecinhadopequenopara“fortificá-la”.Asmães indígenaspreferiambanhar-senoriocomseusrebentos.Asafricanascostumavamesmagaronarizinhodeseuspequenos,dando-lhes

uma forma que lhes parecia mais estética. Os descendentes de nagôs eramenrolados em panos embebidos numa infusão de folhas, já bebida pelaparturiente. O umbigo recebia as mesmas folhas maceradas e, num rito deiniciaçãoaomundodosvivo,imergia-seacriançatrêsvezesnaágua.Poucoapoucoosmanuaisdemedicinaensinavamàsmãesaenvolverseus

filhinhos em “mantilhas suaves e folgadas” em vez de apertá-los em faixascapazesdeestropiarostenrosmembros.Sugeriam,ainda,quesesubstituíssemas pegajosas abluções com óleos por “água e sabão” e que a estopada fossesubstituída por “barretinho ou touca de pano branco”, como aconselhavaFranciscodeMelloFranco,médicomineirodoséculoXVIII.Comosevê,osmédicos davam grande ênfase ao asseio corporal numa época em que ageografia dos odores era bem outra. As mães, por sua vez, cuidavam parapreservarafunçãosimbólicadasujeiradocorpoinfantilcomoumaformadeproteçãocontraomauolhadooubruxarias.Partescomooumbigoouasunhas,que poderiam ser utilizadas para malefícios contra os vulneráveis filhinhos,

eram cuidadosamente enterradas no quintal. Já a urina e os primeirosexcrementos, considerados santos remédios e poderoso exorcismo, eramcuidadosamenteusadosparacurarmanchasouinfecçõesdeadultos.Osmédicosvigiavamcuidadosamenteocardápioservidoàpequenainfância.

Aênfasenoleiteeratotal,nãosóporser“maissaudável”,mas,porque“paraqualquer doença é extremado remédio a mama da mãe”, como já explicavaAlexandredeGusmãoem1685.Asmães,paragarantiroleite,portavam,porsuavez,“contasdeleite”:contasdelouçaembrancoleitosoquepormimesegarantiam a fartura do leite de peito. Tudo indica que o hábito indígena doaleitamento até tarde tenha incentivado a amamentação na colônia, pois oviajante francês Jean deLéry notara, em 1578, que asmulheres naAméricaamamentavamdiferentementedaseuropeias,que,“emboranadaasimpeçadeamamentar os filhos, cometem a desumanidade de entregá-los a pessoasestranhas, mandando-os para longe, onde muitas vezes morrem sem que osaibamasmães”.Alémdoleite,eracomumofereceràscrianças“alimentosengrossadoscom

farinha”, o que segundo Melo Franco causava “azedumes, lombrigas,obstruções domesentério, opilação do estômago, opressões do peito, cólicascontínuas, câmaras viscosas, pardas, amarelas, verdes, negras, inchações doventreinferior,ventosidades,numapalavra,todosossintomasconvulsivos”.Alistaaterradoradeviabastarparaquesedesencorajasseessadietaconsideradainadequadaparaascrianças.Outromédico,J.M.Imbert,denunciava,porseuturno, o hábito introduzido pormães africanas que, “sem atender à fraquezados órgãos digestivos dos recém-nascidos”, lhes nutriam com “alimentosgrosseirose tiradosdaprópria comida”.Eadmoestava: “Semelhantemaneirade alimentar, em vez de ser proveitosa, faz muito mal às crianças.” Asrecomendaçõesmédicastinhamrazãodeser.ErnestEbel,viajanteaustríacodepassagem pelo Brasil, em 1824, escandalizara-se com as escravas quealimentavamascriançasbrancas“commingaudetapioca,queelalhelevavaàboca servindo-se para isso dos dedos”. Um “procedimento censurável”,segundoomesmo.Oqueamaiorpartedosautoresnãosedavacontaéqueascriançaseramcevadasdesdecedocomtodaasortedepapinhas,porumaúnicarazão: as mães queriam fortificar logo seus pequeninos, evitando o risco deperdê-los nos primeiros meses. A valorização da superalimentação, aliás,revanchesimbólicasobreamánutriçãocrônica,explicaorecursoàspapasnosmeiospopularesenoseiodamedicinatradicional.Apassagemdaalimentaçãomistaparaasemissólidaseoperavacominfinita

precaução não percebida, todavia, pelos viajantes estrangeiros. A técnica depré-digestão de alimentos embebidos na saliva dos adultos significavamuitomaisumcuidadodoquefaltadehigiene.Natradiçãoafricana,atéostrêsanos,ascriançascomiampirãodeleite,de

manhã, farinha seca com açúcar bruto; leite com jerimum ou escaldado decarneaoalmoço.Opratoderesistênciaeraofeijãocozido,servidocomfarinhae machucado à mão. Leite de cabra era considerado poderoso fortificanteinfantil.Faltandoleiteàmãe,alugava-seumaamadeleitenegra(issonocasodasfamíliasdeposses,ejánoiníciodoséculoXIX)ouentravamemcenaaspapinhas mais variadas. De acordo com a economia caseira, o bebê recebiapapade farinha demandioca, leite de gado e açúcar, papa de goma, araruta,banana machucada, creme de arroz e fubá de milho, empurrados a dedo, oindicadoremanzol,naboquinhafaminta.Dava-se mesmo leite de coco, destemperado na água com açúcar. A

preocupação materna era a de “arredondar” a criança; o critério não eraalimentá-la, mas dar-lhe de comer! Contudo, os jovens intestinos aindapreguiçosos e os diminutos estômagos despreparados para receber tantosalimentos grosseiros ou viscosos incentivavam a gastrenterite a cobrar altaporcentagemdepequenasvidasnoprimeiroano.Ébomnãoesquecerqueestaspequenas vidas estavam ligadas estreitamente à evolução do sistemaeconômico. A criança era a vítima privilegiada das crises frumentárias, dastensõessociais,dasepidemias.Asdiferençassociaisacentuavam,porsuavez,as chances entre ricos e pobres; os últimos, sem dúvida,mais vulneráveis eadoentados.Com os dentinhos já visíveis aplicava-se o ditado popular: “Mordeu!

Comeu!” O pequerrucho iniciava-se no cardápio familiar, degustando pirõesescaldados, peixe cozido, carne desfiada, caldos de panela engrossados comfarinha sessada.Nãohavia diferenças entre a alimentação infantil e a adulta.Desde que começava amastigar, o pequeno comia de tudo, participando dasrefeições comuns. As crianças indígenas recebiam o mesmo tratamento,observado, aliás, pelo cosmógrafo francês André Thevet no século XVI. Ospequenos mamavam e comiam frutas e farinhas mastigadas pelas mães. Acriançasertanejarecebiabeijusmaisfinosparafacilitaradigestão.Crescidas,acompanhavamasmães,queiam“àsfrutas”:mulheresdopovovendedorasdefrutos colhidos nas cercanias das cidades, em tabuleiros. Maiores, ainda,colhiam, elas mesmas, moluscos e crustáceos, em mangues, alagados emanguais àbeiradomaroude riosondeaproveitavamparabanhar-se como

uma forma de lazer. Vale lembrar que “os banhos frescos de rio”, para “oasseiodocorpo”dascrianças,passa,em1855,aserrecomendadopelomédicopernambucano Carolino da Silva Campos, pois, como dizia, “além depreencheremofimrelativoàlimpeza”,concorriampara“fortificarostecidos”.Outra grande preocupação em torno das crianças pequenas era a de

resguardá-las contra o assédio de bruxas. O medo da perda, a crença emfeitiços realizados com os excretos da criança, o perigo de doenças reais ouimagináriasalimentavamumasériedeconselhosseguidosàriscapelasmães.O médico Bernardo Pereira, em meados do século XVIII, prevenia sobre opoderquetinhamasbruxasdeatrofiarosrecém-nascidospormalefícios,pois,segundoele,“elaschupamosanguedosmínimos”.Nãosepodiadeixá-lossós,à noite. Protegê-los graças a defumadouros na casa e na cama e do uso dearrudaentreoslençóiseraobrigatório.Osaposentosdeviamserregadoscomcozimento de verbena e “osmínimos”, borrifados comomesmo.Omédico,ainda, recomendava: “Armem-se com os antídotos da Igreja [...] relíquias,oraçõesetc.queessas sãomaiscertase segurasqueoutrasparaafugentarosbruxos.”Não satisfeito, omédico insistia para que se pendurasse à cama dacriança “cabeça ou língua de cobras e sangue e fel da mesma, posto pelasparedesdacasaemquedormiremosmínimos”.Sendo alvo fácil, a fragilidade do corpo infantil incentivava o sentido de

proteçãodasmães.Estassemantinhamalertasereconheciamoenfeitiçamentode seus pequeninos por vários sintomas claramente detectáveis: “medos etremores a miúdo, choros repetidos, tristeza de aspecto, mudança de cor,terrível repugnância emmamar, vergões ou nódoas em algumas partes”. Nadúvida, existiam algumas maneiras de reconhecer se havia “quebranto”.Bastava tomarumvaso cheiode água epostodebaixodos cueirosou faixasdosmínimosoudosberços,metendo-lhedentroumovo,“eseandarnadandoécertohaverquebranto,eseforaofundo,estálivre”.Paracombaterquebrantosebruxedos,acriançaerabenzida,emjejum,durante trêsdias,comraminhosdearruda,guinéoujurumeira.Masnãoeramexatamenteasbruxasasresponsáveispelamortalidadeinfantil

nos primeiros tempos da colonização. Os lusos, recém-chegados, traziamconsigorígidasnoçõesderesguardoedeagasalho.Tinhamhorroraosbanhoseaoarlivre.OmédicoholandêsGuilhermePiso,moradordeRecifenaprimeirametade do séculoXVII, contrapondo tais hábitos aos dos caboclos recifenselocais,concluiupelasuperioridadedométodoindígena,noqualacriançaeralivredepanosgrossoseagasalhospesadoscomoosqueenfaixavamacriança

europeiaafimdedarfirmezaaosseusmembros.Maistarde,em1834,opadreGamaexplicavaqueasmulheresportuguesas teriamaprincípiocriadomuitopoucos filhospeloelevado índicedemortalidade infantil.Masque“as filhasdestasmulheres,acomodando-seaoclimaerejeitandoopesodosvestidoseouso de abafar a cabeça dos filhinhos, banhando-os em água morna, não sequeixaram mais de que o clima fosse o destruidor das vidas dos recém-nascidos”.De todaa forma,doenças infantismaiscomuns–maldos setedias, sarna,

impingem, sarampo, bexiga, lombrigas – eram combatidas com remédios depouquíssimaeficácia.Aerisipela,porexemplo,eratratadacomsantosóleoseumaoraçãoemverso:

PedroePauloforamaRomaeJesusCristoencontrouEstelheperguntou:–Então,queháporlá?–Senhor,erisipelamá.–Benze-acomazeite.elogotesarará.

Gilberto Freyre lembra que a mortalidade infantil abrandou da segundametade do séculoXVI em diante;mas continuou impressionante. No séculoXVIIIpreocupou-secomelaodr.BernardinoAntônioGomes;noséculoXIXéumdosproblemasquemaisinquietamoshigienistasdoSegundoImpério–Sigaud,PaulaCândido, Imbert, o barãodeLavradio; até que, em1887, JoséMariaTeixeiraconsagrou-lheumestudonotável:“CausasdaMortalidadedasCriançasdoRiodeJaneiro.”NasessãodaAcademiadeMedicinadejunhode1846 levantaram-se várias hipóteses. As mesmas, aliás, que perseguiam osmanuaisdemedicinadoséculoXVIII:oabusodecomidasfortes,ovestuárioimpróprio, o aleitamentomercenário com amas de leite atingidas por sífilis,boubas e escrófulas, a falta de tratamento médico quando das moléstias, osvermes, a “umidadedas casas”,omau tratamentodocordãoumbilical, entreoutras que estão aí até hoje. Mas havia aqueles que milagrosamente sesalvavam. Os relatos de histórias envolvendo a saúde dos pequenos e ascrenças na proteção divina ou na de intercessores celestiais iluminam algunsaspectosdareligiosidadecolonialenvolvendoainfância.Colocados frente às imagens da Virgem, levados em peregrinação a

oratórios, presentes às procissões ou recebendo bênçãos em dias de festareligiosa, os pequeninos recuperavam a saúde e reproduziam um universomental e cultural depietismo religioso.Ex-votospintados sobremadeira, emque se reproduzem cenas da vida quotidiana de crianças atingidas poracidentes, doenças ou qualquer forma de perigo – na época era comum amordeduradecobraoudecãoraivoso–sãotestemunhosdapreocupaçãoqueas mães tinham com seus “meúdos”. Havia os que morriam e se tornavam“anjinhos”,honravamaDeus,nocéu,ehaviaaquelesquepartiamdiretopara“olimbo”:segundoumcatequista,“umacavernaescuraporcimadopurgatórioemqueestãoosmínimosquefaleceramsembatismo”.Pagãoseramenterradosnas biqueiras das casas ou nas encruzilhadas, de onde – acreditava-se –rogavam batismo. Os cortejos fúnebres de anjinhos, iluminados por velas econgregando filas de pessoas, atraíam, sobretudo, a atenção dos viajantes.Sensibilizado, Debret fez questão de registrar suas impressões: “Grupos decíriosacesos,colocadosemprofusão,fazembrilharasfloresevidrilhosentreosquaisnãosedistingueopequenoembriãofantasiadodeanjoedeitadonumpequeno leitode tafetábranco, rosaouazul-céu,guarnecidocomdebrunsdeprata.Orostodescobertoépintadodasmaisvivascoreseopenteadoconsistenuma peruca loura, bem empoada, coroada por uma enorme auréola feita deplaquedeouroeprata.”Escravinhoseindigentesutilizavam,apenas,umtabuleirorecobertoporuma

toalhaderendaenquantoqueasmãespobrespreferiamalugarfloresartificiaisecoroasparacumprirodeverdeenterrarcondignamenteseusrebentos.Os que sobreviviam continuavam a merecer cuidados. Os “meúdos” eram

embaladosporacalantosemredes,emxalesenroladosnascostasdasmãesdeorigemafricana,ouemrarosbercinhosdemadeira.Essasformasrudimentaresde canto, sobre melodias simples e feitas, muitas vezes, com letrasonomatopaicas a fim de favorecer a monotonia necessária para adormecer acriança,vieramdePortugal.Mas nossos indígenas tinham também acalantos de extrema doçura, como

um,deorigemtupi,noqualsepedeemprestadoaoAcutipuruosonoausenteao curumim. No idioma nheengatu, o acalanto é descrito como cantiga domacuru, sendoomacuru o berço indígena.As “mães negras”, amasde leite,contavam por sua vez, aos pequenos tinhosos e chorões, histórias de negrosvelhos, papa-figos, boitatá e cabras-cabriolas. A cultura africana fecundou oimaginário infantilcomassombraçõescomoomãodecabelo,oQuibungo,oxibamba, criaturas que, segundo Gilberto Freyre, rondavam casas grandes e

senzalasaterrorizandoosmeninosmalcriados:

VamosatrásdaSéNacasadasinháTetéCaiumbaVeramulatinhaDecaraqueimadaQuemfoiqueaqueimouAsenhoradelaCaiumbaPorcausadopeixefritoQueogatocomeu...

Escravascarregavamosfilhosnascostas.JULIÃO,Carlos.Negrasvendedoras.

SÉCULOXVIII.

Embalar,cantando,acriançaquedormeouchorasublinhaaimportânciadecertosgestoseatitudesfaceàprimeirainfância.Paraalémdoscuidadosmateriais,ascriançasrecebiam,igualmente,aqueles

espirituais. Compêndios de doutrina católica circulando no Brasil colonialrecomendavamàsmãese“amas”queseempenhassem“emfazercomqueosmínimos que criam pronunciem primeiro que tudo os Santíssimos nomes deJesuseMaria.Depoisdelevantados,quandotiveremalgumconhecimento,osmandembeijarochão,eque,prostradosporterra,lembrem-sedoinfernoondevãopararascriançasquefazemobrasmáselhesexpliquemohorrordofogodoinferno”.Ocardápiodepráticasreligiosasservidonapequenainfânciaatendiaauma

pastoral difundida em larga escala na Europa e na América portuguesa. Eleincluía o hábito dedar o nomedo santodeproteçãoquepresidisse o dia do

nascimento ou do batismo aos filhos, bem como o de terNossa Senhora ousantos de devoção por padrinhos emadrinhas de batismo.O recebimento dobatismo “sem dilatação” – como enfatizava o padre confessor Manoel deArceniaga–eraoutraexigência.Criticandoahabitualdemoradospais,aIgrejadava-lhesapenasoitodiasde tolerânciaparaacerimônia,pois“eracertoqueosmínimosinocentesquemorriamlogodepoisdobatismosemteremousodarazão” iamdiretoparaocéusempassarpelopurgatório.Obatismoconsistianão somente num rito de purificação e de promessa de fidelidade ao credocatólico,masumaformadedarsolenidadeàentradadacriançanasestruturasfamiliaresesociais.Aroupabrancabordadaeosenfeitesdefitasdediversascoresestenderam-se,noiníciodoséculoXIX,atéaosfilhinhosdeescravas.Aparteiraeramuitasvezesconvidadaasermadrinhadacriança.Emliteirasdealugueloudeempréstimo,ouapé, essasmatronas levavamospequerruchostodos enfeitados à pia batismal. A cerimônia costumava reunir os próximos,padrinhosemadrinhas,traduzindooenrijecimentodelaçosafetivos.“Entreosricos”, conta Debret, viajante francês de passagem pelo Brasil em 1817”, obatismo é administrado no oratório da casa por um eclesiástico amigo dafamília; neste caso, a cerimônia religiosa constitui um pretexto para umareuniãobrilhante, realizando-sepor isso somente à tarde.Asvisitas feitas aorecém-nascido permitem uma alegre noitada que termina por um magníficochá”.Nocasodosfilhosdeescravosedelibertos,oslaçosestabelecidosgraçasao

batismo eram, também, étnicos e culturais. Os registros de batismo delocalidadescomo Inhaúmae Jacarepaguá,noestadodoRio,parao iníciodoséculo XIX, revelam que de 5% a 6% dos escravos batizados tomavam osnomesde seuspadrinhos emadrinhas escravos,numa formade ampliar suasrelaçõesfamiliares.

Amar,educar,modelarerestringir

Mas a infância tinha aspectos mais práticos e menos teóricos. O maisimportantedelesera,semdúvida,orelacionamentoafetivoentrepaisefilhos.Observadoporváriosviajantes,eleeraconsideradoexcessivo:“Ocarinhodospais pelos filhos, enquanto pequenos, chega a não ter limites, e éprincipalmente o pai quem se ocupa com eles, quando temumminuto livre.

Ama-os até a fraqueza e, até certa idade, atura as suasmalcriações. Não hánadaquemaisomolestedoqueveralguémcorrigirseufilho.Quandomaridoemulhersaemdecasa,sejaparavisitaremumafamília,sejaparairemaalgumafesta,levamconsigotodososfilhos,comsuasrespectivasamas,eéaindaopaiquem carrega todo o trabalho, agarrando-se-lhe os pequenos ao pescoço, àsmãos, às abas do casaco.”Mas “estremecer sobre os filhos, contar histórias,graças,acalentá-los”,comodizia-se,noséculoXVIII,eraconsideradocoisademulher: “Não é coisa pertinente a um homem ser ama nem berço de seusfilhos”,resmungavaomédicoFranciscodeMelloFrancoem1790.Oamormaterno,porseuturno,deixoumarcasindeléveisnostestamentosde

época.Nãohaviamãequeaomorrernãoimplorasseàsirmãs,comadreseavósque“olhassem”porseusfilhinhos,dando-lhes“estado”,ensinando-lhes“aler,escrever e contar”ou “a coser e lavar”.Aexpressão “amormaterno”pontuavários destes documentos, revelando a que ponto as mães, no momento dadespedida, tinhamoscoraçõescarregadosdeapreensão, temerosasdodestinodosseusdependentes.A ama negra, como lembraGilberto Freyre, deu também sua contribuição

para enternecer as relações entre o mundo adulto e o infantil. Criou umalinguagem na qual se reduplicavam as sílabas tônicas dando às palavraspronunciadas um especial encanto: dodói, cacá, pipi, bumbum, tentem,dindinho,bimbinha.Comtantosmimos,o riscoeradeacriançaficarmoleebamba,cansadaeamarela.PadreGama,jánaviradadoséculoXIX,voltavaàcarga contra a criança criada entre resguardos de mães extremosas e amasnegras.“Omolequinhoquebraquantoencontra”,informa.“Etudoégracinha;játem7e8anos,masnãopodeirdenoiteparacamasemdormiroprimeirosononoregaçodesuaIaiá,queofazadormecerbalanceando-osobreapernaecantando-lhe uma embirrante enfiada de chácaras e cantilenasmonótonas dotempodocapitãoFrigideira.”Osmimosemtornodacriançapequenaestendiam-seaosnegrinhosescravos

ouforrosvistosporváriosviajantesestrangeirosnosbraçosdesuassenhorasou engatinhando em suas camarinhas. Brincava-se com crianças pequenascomosebrincavacomanimaizinhosdeestimação.MasistonãoeraprivilégiodoBrasil.NasgrandesfamíliasextensasdaEuropaOcidental,ondeapresençade crianças de todas as idades e colaterais era permanente, criava-se umamultiplicidadedepresençasquenãodeixavamjamaisospequeninossós.E esses eram tratados pelosmais velhos como verdadeiros brinquedos, da

mesma forma, aliás, como eram tratados os filhos de escravos entre nós:

engatinhandonascamarinhasdesuas senhoras, recebendodecomernaboca,ao pé da mesa, como os retratou Debret. Tais carinhos exagerados ou “osmimosmaternos” eram, contudo, vistos pormoralistas setecentistas, como obaianoNunoMarquesPereira,comocausapara“deitaraperderosfilhos”.Aboaeducaçãoimplicavaemcastigosfísicosenastradicionaispalmadas.O castigo físico em crianças não era nenhuma novidade no cotidiano

colonial. Introduzido, no século XVI, pelos padres jesuítas, para horror dosindígenas,quedesconheciamoatodebateremcrianças,acorreçãoeravistacomoumaformadeamor.O“muitomimo”deviaserrepudiado.Faziamalaosfilhos.“Amuitafarturaeabastançaderiquezaseboavidaquetemcomeleécausa de se perder”, admoestava em sermão José de Anchieta. Vícios epecados, mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser combatidos com“açoitesecastigos”.A partir da segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das

chamadas Aulas Régias, a palmatória foi o instrumento de correção porexcelência:“Nemafaltadecorreçãoosdeixeesquecerdorespeitoquedevemconservar a quemos ensina”, cita umdocumentode época.Mas, ressalvava,endereçando-se aos professores: “E tão somente usarem dos golpes dasdisciplinas ou palmatórias quando virem que a repreensível preguiça é aculpada dos seus erros e não a rudez das crianças a cúmplice de suaignorância.”Asviolênciasfísicas,muitasvezesdirigidasàsmães,atingiamosfilhosenão

forampoucasasfamíliasquesedesfizeramdeixandoentreguesaoDeusdarámães e seus filhinhos: fome, abandono, instabilidade econômica e socialdeixarammarcasemmuitasdascrianças.Nãosãopoucasasqueencontramos,nos documentos de época, esmolando às portas de igrejas, junto com suasgenitoras. Um processo crime datado de 1756, movido na vila de SãoSebastião, São Paulo, porCatarinaGonçalves deOliveira revela imagens deoutras violências: a de pais contra filhos. Nos autos, Catarina revela terdefendidoseuenteado,umacriançapequena,dechicotadasdesferidaspelopai,ansiosoporcorrigirohábitodopequenodecomer terra.As“disciplinas”,osbolos e beliscões se revezavam com as risadas e mimos.Mas também comdivertimentosefestas.Nas escolas jesuíticas o lazer ficava por conta do banho de rio e no “ver

correr as argolinhas”. Tradição lusa antiguíssima, essas consistiam em umaformade “justa” emque se deixava pender de umposte ou árvore enfeitadaumaargolinhaquedeviaser tiradapelocavaleiroemdisparada.“Ensina-mo-

lhesjogosqueusamláosmeninosdoreino”,conta,entusiasmado,opadreRuiPereiraem1560.“Tomam-nostãobemefolgamtantocomelesqueparecequetodasuavidasecriaramnisso.”Brincava-se,também,comminiaturasdearcose flechas ou com instrumentos para a pesca. Outras brincadeiras: o jogo dobeliscão,odevirarbundacanastra,o jogodapeia-queimada, alémde ritmos,cantos, mímicas feitas de trechos declamados e de movimentaçãoaparentemente livre,masrepetidoradeumdesenho invisíveledeumalógicamisteriosaemecânica.Piões,papagaiosdepapeleanimais,genteemobiliárioreduzidos, confeccionados em pano, madeira ou barro, eram os brinquedospreferidos. A “musicaria” atraía loucamente: crianças indígenas adoravaminstrumentos europeus como a gaita ou o tamboril que acompanhavam,segundooscronistasjesuítas,aosomdemaracásepausdechuva.A participação em festas com música atraía crianças de todos os grupos

sociais.Alegrandoprocissões,enfeitadascomcarapuçascobertasdepedrariaseflores,participavamdecoreografiasecantosemhomenagemadeterminadosantodaIgrejaCatólicaouemhomenagensaosgovernadoresrecém-chegadosde Portugal. Um documento do século XVIII fotografa com clareza aparticipaçãodecriançasnasfestascoloniais:

Pelas sete da noite doze meninos ricamente vestidos apresentaram uma cena terníssima. Elesvinhamconduzidosemumcarro triunfalepararamdiantedabarraca(ondeestavaoGovernadordoCeará). Depois de se apearem com os braços entrelaçados formaram uma cadeia sobre a qual umamenina de seis anos adornada dos encantos da inocência passou airosamente e aproximando-se doGovernadorderramou-lhesobreacabeçaumsemnúmerodeflores[...]enquantoosoutrosapresentamumacontradançaengenhosaaosomdemúsicainstrumental.

Nafamosafestamineira,oTriunfoEucarístico,realizadaem1734emVilaRica, “onzemulatinhos” vestidos como indígenas, enfeitados com saiotes depenas e cocares, levando nas pernas fitas e guizos, cantaram ao som detamboris,flautasepífaros,bailandouma“dançadoscarijós”.Festas do calendário tradicional como São João ou Reis animavam as

criançasqueiampularfogueira,subiremmastrose,comainvasãodosfogosde artifício, no século XVIII, soltar rojões e estrelinhas. Coadjuvantes nosautos de Natal participavam devidamente enfeitados como anjinhos oupastores, e vinham vestidos de estopinha branca, chapéu de palha fabricadocom palmas de ouricuri, enfeitado de fitas, tendo a copa coberta de algodãocom enfeites de belbutina preta, cajado de fitas, cesta com flores no braço epequeno pandeiro de folha de Flandres. Debret, de passagem pelo Rio de

Janeiro, impressionou-se e reproduziu uma destas crianças, verdadeiropersonagemdasatuais escolasde samba,vestidocomcocardeplumas, joiasfalsasefigurinosofisticado.Naszonascanavieiras,naépocadamoagem,ascriançasescravasajudavam

alimparpaióisedepósitos,caiavamasextensassenzalas,recebiamtimõesdebaetaazuleroupadealgodãoparaogastodoanoerepartiamcomosfilhosdosenhorde engenho edosmeeiros livres a raçãode carnedevaca, carneiro egalinha. Todos juntos, também, acompanhavam em barulhenta algazarra umcarrodeboienfeitadocomflorese ramagens,àsvezescobertocomtoldodeesteira ou de chitão lavrado onde vinha um nédio vigário da região, paraabençoaramoendadoengenho.Oclímaxdacerimôniatinhalugarquandosobmúsica e palmas “ummolequinho de roupa bonita e chapéu entremeado defolhas trepava na boleia fixa e uma das hastes do triângulo da almanjarra,tocava a parelha de burros, fazendo girar o maquinismo”. Logo depois,tomava-se o caldo de cana da primeiramoagem, devorando, junto, potes demelado e rapadura a gosto. À noite, os cantos e batuques dos negrosacalentavamsonhosdepequenosescravoselivres.Aformaçãodeumacriançaseacompanhava,também,decertapreocupação

pedagógica que tinha por objetivo transformá-la num indivíduo responsável.HumanistaseuropeuscomoErasmoeVicenteVivés já tinhamdadoaspistasdesta“educaçãobásica”:desdecedo,acriançadeviaservalorizadaatravésdaaquisição dos rudimentos da leitura e da escrita, assim como das bases dadoutrinacristãqueapermitissemleraBíbliaemvulgata.NoBrasilColonial,“compêndios de doutrina cristã” como os escritos pelo padre João FelipeBettendorf, em 1634, misturavam elementos de formação doutrinal comelementosdereflexãoeleitura.MasasexigênciasdeformaçãonãovinhamsódaIgreja.ObrasdotipoContosehistóriasdeproveitoeexemplo,comoaqueescreveu

Gonçalo Fernandes Troncoso em 1575, ensinavam, por meio de históriasexemplares, o comportamento que era esperado, na sociedadeportuguesa, dejovensdeambosossexos.Temascomo“avirtudedasdonzelas”,“osprejuízosdaszombarias”,adesobediênciados filhos,a fénadoutrinacristãe todoumleque de outros “ensinamentos” considerados fundamentais para uma boaeducaçãoeramvisitadosdeformaaficargravadosnamemóriadacriança,seconstituindonumaautênticabulademoralevalorescomuns.AsHistóriasdoTroncosofizerampartedalongaduraçãodasleiturasentreascriançasdaelitenoBrasil.Nãoeraeleolivroprediletodo“MeninodeEngenho”deJoséLins

doRêgo?Cartilhasdealfabetizaçãoeensinodareligiãoeramcomumenteusadas,tanto

noaprendizadoadomicílio,quantonaquelepúblico.Sedimentandootrabalhoquejádeveriatersidofeitopelamãe,naprimeirafasedavidadacriança,taiscartilhasvoltavamàcargasobretudooquediziarespeitoàvidaespiritual.Aescoladeveriaterumcrucifixodiantedoqual,aoentrarnaescola,ascriançassepersignavam,ajoelhandoebenzendo-se,pois“osinaldasantaCruzéomaisforte para vencer as tentações do inimigo comum”, Satã.Osmestres tinhamque ensinar as crianças a rezar o pai-nosso, ave-maria (“explicando-lhes quecontémemsi a saudaçãoangélicaqueoanjoGabrielveioa fazeraSenhoraAve Maria cheia de graça”), os símbolos da fé e rudimentos de teologia:“Deveis saber que cousa é a essência divina... Dizemos que Cristo foiconcebidopor obradoEspíritoSanto... Por queodemônio e outros artíficescriados não podem criar de nada... É preciso compreender que depois dopecadooriginalcondenouDeusatodososhomensaotrabalho”etc.Cabiaaosmestresincentivarecontrolaraconfissãomensaldeseusalunos,

bemcomoa suaparticipaçãonasprocissõesdoSantíssimoSacramento, comcantos de “bendito e louvado”. Orações para serem ditas antes e depois dasrefeiçõestambémeramassuntodeensino:“Senhor,abençoaiestesustentoquenosdaisparanutriçãodonossocorpoefazei-nosagraçaquenossirvamosdelecomtemperança;eistovospeço,emnomedoPai”etc.Eomaisimportante:“Faz-se precisamente necessário que os mestres adotem a penosa tarefa deleituraaosmeninoscomalgumasbrevespráticascomquesevãocristianizandoe instruindo; como vós que já conheceis as letras, que sabeis as sílabas e aspalavras é necessário agora aprender as letras e a juntá-las com perfeição,trabalhai com desvelo para serem bons católicos, bons cidadãos e paraordenadamente poderesmanejar as vossas dependências principais a usar davossa razão e concebei que Deus vos criou para o amares, servires e paragozardes a vida eterna [...] (E quanto ao ensino) Esta vida é cheia dedependências e embaraços que vos causarão bastantes desvelos e maiscrescidossevosfaltaracomodidadedevemfalarbem,lerebemescrever[...]aquelequecarecedessascircunstânciasévistososujeitoinerte,servemassuasvozesdeassuntoparaoescárnioeparaazombariaeparaodesprezo.Aquelequenãosabelerpassaametadedavidacego,eparapoucascoisasécapazohomemquenãosabelereescrever.”Ascartilhastinhamumaintroduçãoformalqueanunciava:“Foramimpressos

os livros para a vossa instrução. Toda essa máquina que vedes de livros é

compostadevinteecincoletras;destassãoseisletrasvogais[...]Chamam-seestasvogais,porquecadaumaporsi só temumsom;chamam-seconsoantesporquenãosignificamnadaporsisóssemauxíliodealgumadasvogais[...]”Segundo as cartilhas aprendia-se a ler repetindo as sílabas de duas letras“Babebibobu Dadedidodu etc.” Depois as sílabas de três letras“Blableblibloblu... Brabrebribrobru... Chachechichochu... Clacleclicloclu...”Aseguir a cartilha recomendava em diálogo direto com o leitor: “Estás jáinstruídosnassílabaséprecisoqueentrescomdesveloa juntá-laseaformarnomes:Amaro,Amador,Agostinho,Aleixo,Alexandre[...]”.Depois:“Nomesdemulheres:Ana,Anastácia,Anacleta,Caetana,Custódia,Casemira,Dorotéia,Domingas, Francisca, Fulgência [...]”. Por fim, eram ensinados os nomes decidades:“Lisboa,Évora,Porto,Elvas,Lamego...Olinda,Bahia,RiodeJaneiro,Madrid, Salamanca, Toledo, Paris, Milão [...] Roma”. Depois das cidades,ensinava-se aos “meninos e meninas” a escrever o padre-nosso “e maisorações”.Aseguir,artigos,pronomes,advérbios,preposiçõesetc.atéchegaraocapítulo “Do verbo”. “O verbo é o que completa, o que enche e o quedeterminaaoração,porquenenhumaoraçãosemverbosepodechamaroraçãonem expressar nenhuma coisa, nem escrever período que tenha um sentidoterminado e completo.” E as últimas advertências: “Toda a escrita, todo odiscurso de qualquer qualidade que seja principia sempre por letra capital.Depois de ponto se deve seguir sempre letra capital. Todos os verbosprincipiamnamesmaforma.”E,encerrando:“FarãoosmestresserviraDeuseaopúblico,queéaquiloaquetodosdevemosaspirar,osquequisermosvivercomohomensecomocatólicos...”Interessante é que, nas festas religiosas, questões da formação pedagógica

eramretomadasnaformaderepresentaçõesteatralizadasdentrodasigrejasounas praças. Um papel de cordel, datado de 1758 e espécie de materialpedagógicoauxiliar,descreveodiálogomantidopor“meninosdeescola”.Sãoeles“Florêncio,Roberto,AurélioeJerônimo”eseuspersonagensperguntam-se,entresi,questõesdevidamentetrabalhadasnaescola:

Florêncio:Queleiprofessais,menino,adoscristãos,piedosa,adeLutero,deleitoso,ouafalsadeCalvino?Aurélio:SóaCatólicasigoAbominoasoutrasmais

PoissãotodasinfernaisCheiasdeeternoPerigo...Jerônimo:QuemvosdeuestafésantaQuenóshojeprofessamosFoiumexcelsomeninoUmDeus,emformadehumanoetc.

Poucoapouco,aeducaçãoeamedicinavãoburilandoascriançasdoBrasilcolonial.Maisdoquelutarpelasuasobrevivênciafísica,tarefaqueeducadorese médicos compartilhavam com os pais, procurava-se adestrar a criança,preparando-a para assumir responsabilidades. Certa consciência sobre aimportânciadestepreparovaitomandoforma,nodecorrerdoséculoXVIII,navidasocial.Oreconhecimentodecódigosdecomportamentoeocuidadocomoaspectoexterioreramfenômenos,então,emviadeestruturaçãoatémesmoentrecrianças.Taiscódigoserambastantediferenciadosentreosnúcleos sociaisdistintos:

os livres e os escravos; os que viviam em ambiente rural e em ambienteurbano;osricosepobres;osórfãoseabandonadoseosquetinhamfamíliaetc.Apesar das diferenças, o fator idade os unia. Aos “meúdos” convinha umaformação comum, quer dizer, cristã, e as circunstâncias socioeconômicasconvidavam-lhes a amoldar-se a diferentes tradições culturais e costumessociais e educativos. Entre os séculos XVI e XVIII, a percepção da criançacomoumserdiferentedoadultofezsurgirumapreocupaçãoeducativaquesetraduziaemsensíveiscuidadosdeordempsicológicaepedagógica.Francisco de Mello Franco, médico mineiro setecentista, advertia que “a

educaçãoétantofísicaquantomoral(particularmentenastrêsprimeirasidades:infância,pueríciaeadolescência),éomaispoderosoexpedienteparaconseguiraté certo ponto notável alteração no temperamento originário”. Segundo ele,eradepequeninoquesetorciaopepinoe“asduaseducações”deviamcomeçar“desdeoberço”.Dizia ainda que “muito se engana quem entende que essas idades não

admitemensino algum”,poisnelas “poucoounadaobrava a razão,mas, emcontrapartida, muito obravam os costumes” e, quando chega à luz doentendimento,nenhum lugar lhedãooshábitosadquiridos, senãoseusardeforçaeviolência,querarasvezesnãoaproveitam”.Para quem não podia estudar, sobrava trabalhar.A infância traria ainda as

marcas da cor da pele e da condição de nascimento. A grande maioria das

crianças era ilegítima. Tinham nascido fora do casamento, dentro de uniõeslivres. Algumas ignoravam seus próprios pais. Outras possuíam paternidadereconhecida,masnasciamdegenitoresconcubinados.Ailegitimidade,segundoasatasdebatismodequasetodasascapitanias,eraumapraxe.Rarososcasaiscomumarelaçãoestável,repartindoounãoummesmodomicílio,quenãoastivessem.Osfilhosnaturaisdestapopulaçãopredominavam.DesdeoiníciodoséculoXVIII,aprevalênciadecriançasmulataspelasruas

ensejoucríticaácidadasautoridadesqueaíviamoanúnciodeumapopulaçãomestiçaeameaçadora.ComoaumentodasalforriasaofinaldoséculoXVIII,cresceuonúmerodecriançasperambulandopelas ruas,vivendodepequenosexpedienteseesmolas.Somava-seatalcondiçãoainstabilidade,bemcomoarotatividadedegrandepartedapopulaçãopaterna.Istoresultavaemfogos,oudomicílios,comchefiamarcadamentefeminina.O resultado?Umaestreita ligação,mesmoeconômica, entremães e filhos.

Unsajudandoo sustentodosoutros.Mas, também,entre senhoras–brancas,mulatas ou negras – e seus pequenos cativos. Em Sabará, 1762, Vitória doNascimento,pretaforra,mãesolteira,alémdepossuircriançasescravas,criavauma“enjeitada”.Viviamtodosdecosturarparafora.Nasinúmerasvendasquese espalhavam por pequenas ou grandes aglomerações, não era de estranharencontrar crianças fazendo pequenos serviços. Os mesmos, aliás, que seexecutavamemtodaparte.Comoadestramentocompletadoentrenoveedozeanos,qualquermeninooumeninaparticipavaàs tarefascotidianasde limpar,descascar,cozinhar,lavar,alimentarosanimaisdomésticos,remendarroupas,trabalhar madeira, pastorear, estrumar a plantação, regar a horta, pajearcriançasmenores da própria casa ou dos vizinhos, levar recados ou carregarmercadoria.Comobemdizummemorialista,eraodiainteiro:“Joãozinho,vaibuscaristo,Joãozinho,vaibuscaraquilo!”Alguns, inclusive, já teriam se iniciado em variados ofícios. Escravos ou

livres pobres podiam ser aprendizes de sapateiros, costureiras, torneiros,carapinas, jornaleiros. Vários deles exerciam atividades domésticas,complementaresàs realizadasporsuasmães.Filhosdedoceirasdescascavamamendoim, coletavam ovos, colhiam frutas, transportavam feixes de cana nacabeça. Filhos de vendedoras de tabuleiro portavam tripés, oferecendo, aosgritos, biscoitos de goma, sequilhos e broa. Outras crianças vendiam osprodutos feitos em casa por suas genitoras, avós ou senhoras: velas decarnaúba,canjica,comidadeangu,rendas,floresdepapel.Atradiçãomusicalde certas regiões comoMinas Gerais incentivava a participação de crianças

como pequenosmúsicos e cantores – houvemesmo sopraninos – nas festasreligiosas,tãocomunsnestestempos.Conta-nosJulitaScaranoque“donosdeescravos recebiam pagamentos por cativos ‘moleques’ que participassem debandasoudegruposprofissionais”.Eamúsicapodiaserumótimoganha-pão.Emcasoextremo,ospequenosmendigavam,comoocorreucomos filhosdecertoAntôniodaSilveira,emOuroPreto,1753:“Muitasvezesestãoaandarascrianças da dita casa em algumas casas, alguma coisa para se comer emcasa...”,revelaumdocumento.Muitodesteprecoce trabalhoinfantileracadenciadopelosofrimento.Entre

os filhos de cativos e brancos e mulatos pobres, pequenas humilhações,castigos físicos e outros agravos marcavam a iniciação compulsória àsobrevivência.

“Adolescência” é uma palavra que aparece ao final do século XIII. Eladesigna,então,osanosquesucediamàinfância,ouseja,dos12aos18

para meninas e dos 14 aos 20 para meninos. Ausente da maior parte dosdicionáriosdalínguaportuguesaatéoséculoXIX,elaaparece,poroutrolado,nosmanuais demedicina. Estava associada à segunda idade do homem – aprimeira era a infância– e caracterizava-sepor ser “quente e seca”, segundoGaleno, médico grego. Uma tal ausência no mundo luso-brasileiro não égratuita. Ela significa que a fase de amadurecimento ou de crescimento dosjovensseperdiaentremilharesdeafazeresrelacionadosàsuasobrevivência.A juventude sempre suscitou reações ambivalentes e foi, em diferentes

épocas,percebidaevivenciadadeformaespecífica,segundoogruposocialnoqual o jovem estava inserido. Os trabalhos do historiador francês PhilippeÁries, uma autoridade e um pioneiro no assunto, sugeriam que entre ofeudalismo e a industrialização se passava diretamente da infância à idadeadulta.Semadolescência.Hoje,sabe-sequeascoisasnãoerambemassim.Emdiferentes regiões do planeta,modalidades de saída da infância e entrada nomundo adulto obedeciam a rituais precisos. Um exemplo: na Antiguidadegrega,aformaçãodejovens,particularmenteemEspartaeCreta,secompunhadeumaprendizadodeginástica,caça,equitação,mas,também,deexperiênciaseróticasnasquaismeninossesubmetiamàsexigênciasdos“maisvelhos”pormeiodeumaencenaçãonaqualoadolescenteeraraptadoporseu“amante”.Na Idade Média, o termo “juventus” remetia a realidades diversas: a dos

clérigos, que, ao fazer seus votos de entrada nos monastérios, viviam onoviciado na juventude,mas, igualmente, a dos jovens nobres cujo ritual deentrada na cavalaria era codificado por sofisticada cerimônia de recepção.Aliteratura dos trovadores cantava, em prosa e verso, a juventude destesmancebos,capazesdesedestacarporsuacoragemebelezafísica,enquantoaIgreja alertava contra as tentações que eles mesmos inspiravam. A partir dametadedoséculoXVIII,conceitoscomoadolescênciaejuventudecomeçamaseconsolidargraçasaosavançosdapedagogia,damedicinaedafilosofia.Opensador Jean-Jacques Rousseau foi um dos primeiros a definir a crise daidentidadesexual,duranteapuberdade,noseuconhecidolivroEmílio.As poucas informações sobre a adolescência no período colonial mais

contam sobre os rapazes. Sim, pois as moças tinham como única funçãopreservarsuavirgindade.Numasociedadecristã,seuúnicodestinofoi,durante

muito tempo, o casamento ou o convento, este último significando umconfinamentomuitomaiordoqueaquelepropostopelosconventosmasculinos.Oquedistinguesuasvidasdasdosrapazeséatotalausênciadeliberdade.O trabalho feminino era associado à moral e à disciplina. Junto a isto se

desenvolviaohorroraocorpoeàsexualidade,ambosesmagadospelocontroleexercidopela famíliaouogrupo.Para asmoças, as transformaçõesda idadetinham que ser interiorizadas e vividas ao abrigo dos olhares do outro sexo.Moçasourapazessofriam,contudo,asconsequênciasdocontroledosadultos.Ajuventudeeravividacomoumtempoqueinspiravatemoraosdefensoresdaordem e das convenções sociais. O adolescente era visto como ameaça,sinônimodedesordem.A julgar por nossa história, estes primeiros rebeldes apareceram cedo, na

documentação histórica. Eles são jovens portugueses vindos com os padresjesuítas para a instalação das escolas para crianças indígenas, as chamadas“Casas de Muchachos”. Recolhidos nas ruas das cidades portuárias dametrópole,elescresciam,nacolônia,entreindiozinhosqueeramcatequizados.Ao chegar à adolescência, os indígenas abandonavam a vida nas escolas evoltavam a viver nas matas. Neste momento, os jovens portugueses emamelucos os acompanhavam. Fugiam todos juntos e iam viver nas aldeias,pintando seus corpos com tinta urucum, tatuando-se e usando penas. Apedagogia inaciana ficava para trás e tinha início uma vida em que asreferênciasindígenassemisturavamàculturaeuropeiaemfrancamestiçagemdeusosecostumes.Nossosancestraisafricanossurgempormeiodeseusritosdepassagem,bem

demarcadosevindosparacáporcontadotráficoescravo.Sabe-sequenogolfoda Guiné, de onde saiu as primeiras levas destes imigrantes forçados, cadaaspectodavidacotidianapermitiaumaformadeaprendizado.Aformaçãodajuventudeseguiaumprogramaprecisoevelavasobreaaquisiçãodevirtudesmorais, habilidades manuais, técnicas e guerreiras, atividades artesanais,comerciais ou místicas. Este desenvolvimento também incluía odesenvolvimentocorporal,asociabilidade,aobediênciaàordem,orespeitoàparentela, aos laços de sangue e à autoridade. A violência era permitida eencorajada por batalhas ritualizadas, que marcavam a passagem do meninopara o guerreiro. Apostando na beleza física, na elegância dos trajes e dospenteados, na virilidade e insolência, adolescentes africanos construíam umacultura particular. A estatuária em barro, feita na região de Kaduna, atualNigéria, revela o rosto destes jovens cujo penteado cuidadoso em forma de

coque era coroado por penas e ornamentados com cachos e tranças laterais.Anéis e braceletes colocados nos tornozelos aumentavam seu poder desedução.Afestadacircuncisão,naentradadaadolescência,erarealizadacommúsica

edançaqueregistrasseaimportânciadomomento.Oscucumbis,ouquicumbis–doquibundo“puberdade”–,sãoosremanescentesdestatradiçãonofolclorebrasileiro. Com ranchos de canta e dança, realizados nas proximidades doNatal, época das congadas e da coroação do “rei Congo”, um cortejoapresentava os “mametos” recém-circuncidados à rainha do Congo, após alautarefeiçãodo“cucumbe”!Apresençade jovensnegrosnas festas religiosaseraconstante.NoRiode

Janeiro em1763,numa“congada”quemereceu a atençãodas autoridades, opréstito do rei Congo foi acompanhado de um “catupi” – provavelmente ocatopê,tipodedançaemcortejoquetinhalugarduranteacongada–realizado“por moleques maiores”. Por outro lado, jovens índios eram convidados adançar“caboclinhos”,comoseviunaigrejadosPardosdeNossaSenhoradoLivramento, emRecife, emmaio de 1745. Era dia da festa de SãoGonçaloGarcia–“damesmacordoscaboclinhos”segundoumdocumento.Durantealuxuosaprocissão,bailaramaosomdetamboresegaitas:

Nove rapazes índios do país, ricamente ornados e nus da cintura para cima ao modo pátrio.Cobriam-lhes as cabeças capacetes lavrados de cordões de ouromatizados de broches de brilhantescom tremulanteplumagemnaparteposterior.Vestiamsaiotesde sedacomrendase franjasdeouro[...]cingiamcinturõesdeouroemramagem;cingiamosmesmosnosbuchosdosbraçoscomcarrancasemváriasformas.Portavamnãopoucascascavéis[guizos]nospés,presasemsuasfitas.

Especialistas afirmam que a verdadeira origem da capoeira é um ritualafricano, chamado de N’golo, que marcava a passagem para a vida adulta.Neste ritual os jovens guerreiros das tribos disputavam, com movimentosbaseados na luta das zebras, as jovens mulheres e cabia a quem melhorsobressaía-seodireitodeescolhersuaesposaentreasjovens,semopagamentododotematrimonial.Oscativosdescobriramqueestesmovimentosdaszebras,quando usados com rapidez, destreza e malícia, poderiam ser fatais para ooponente. Diante de sua situação difícil e da violência a eles imposta, elescomeçaram,semprequepodiam,aensaiarestaformadelutanascapoeirasdoscanaviais,lugaresnasplantaçõesdecana-de-açúcarondeomatoforaqueimadoparaocultivodaterra.Já os brancos, “meninos órfãos” ou outros, estavam presentes em várias

festas religiosas nas procissões. Reiteravam a tradição que rezava crianças eadolescentes teremaclamadoJesusemseuburrinho,nachegadaàJerusalém.Outra tradição,adecelebraros“santos Inocentes”, sublinhavao interessedaIgrejaemoferecerumaimagemcelestialdainfâncianormatizadapelasregrasda educação europeia. Nas festas comemoradas em Sabará pelo natalício dopríncipedaBeira,porexemplo,estudantesdacidadefizeramsuaapariçãopormeio de “uma esquisita farsa de lagartos, osmais próprios que se têm vistocom música e movimentos bem imitados”. Esquisito aqui, vale lembrar,significavasofisticado!Durante os primeiros séculos de colonização, temos poucas notícias de

nossos adolescentes por uma simples razão. Estavam todos no batente. Aatividade econômica basicamente rural exigia braços para a lavoura desdecedo.Por isso,umrapazoumoça, tendo forçaspara levantaraenxada,catarmatooudesempenharqualqueroutroserviçonalavoura,iadiretotrabalhar.Enão eram apenas os escravos que trabalhavam. Brancos pobres, mulatos enegroslivrestambém.Algunsadolescentessedestacaramporsualutaemfavorda colonização. Caso de João Pais Barreto, oriundo da pequena nobreza deViana,noMinho,queporterlutadoferozmentecontraosíndiosaostrezeanos,recebeu,comorecompensa,umasesmaria.

Moçaquechora:seduzidaeabandonada.JULIÃO,Carlos.Cenaromântica:soldadodoregimentodeinfantariadeMouradespedindo-se

deumamoçaquechora[Iconografia].

DosescravosdesembarcadosnomercadodoValongo,noRiodeJaneirodoiníciodoséculoXIX,4%eramcrianças,informaManoloFlorentino.Apartirdos quatro anos, muitas delas trabalhavam com os pais ou sozinhas, poisperder-sedeseusgenitoreseracoisacomum.Aos12anos,ovalordemercadodas crianças já tinha dobrado. E por quê? Pois se considerava que seuadestramentoestavaconcluídoenaslistasdosinventáriosjáaparecemcomsuadesignação estabelecida: Chico “roça”, Ana “mucama”, transformados empequenaseprecocesmáquinasdetrabalho.Apobrezaeafaltadeescolarizaçãoempurravamosjovensparaestemeiodevida.Oscasamentosprecoces,entre11 e 14 anos, roubavam às moças a sua adolescência. A maior parte dosviajantes estrangeiros que passa pelo Brasil, entre os séculos XVIII e XIX,afirmou, contudo, que nelas amalícia supria a idade. Como frutos tropicais,taismocinhas amadureciam antes da hora e nada tinham de ingênuas. Já osrapazes eramsubtraídos às suas famíliaspelo recrutamentocompulsórioparaas guerras, tornando-se, muitas vezes, soldados sem querer, lavradores semquerer,escravossemquerere,maistarde,operáriossemquerer.

Paissoturnosefilhosamedrontados?

Reaçãodospais?Arelaçãoentrepaisefilhoseraperpassadapelosentimentode posse.Emdecorrência disso, os pais se sentiamno direito de usufruir dotrabalhoededeterminarodestinodosfilhos.Aestescaberiam,apenas,devereobediência. Os comportamentos e atitudes adultos eram impostos aosadolescentes, pois considerados, socialmente, paradigmasde conduta.Não seadmitia franqueza, espontaneidade, criatividade e agitação. Intimidaçõesmoraisecastigosfísicosregulavamasrelações.“Tomarpropósito”eraolema.Valorespatriarcaiseautoritarismofaziampartedojogonoqualoadolescentetinha que ser o obediente, ouvindo de cabeça baixa, as recomendações eadmoestaçõespaternas.Saberlereescrevernãoerahabilidadeestimuladaparamoças, o que as obrigava a realizar o trabalho doméstico e a sonhar com ocasamentoeamaternidadecomoúnicaviadepassagemparaomundoadulto.A infâncianestes tempos fabricavacrianças tristes,verdadeirasminiaturasdeadultosna formadevestir e se comportar.Eramos candidatos ao fraquee àcalvície precoce, comodizia o renomado sociólogoGilbertoFreyre, pioneiro

emdescreverafaltadebrinquedos,deimaginação,detravessurasdecriançasejovensbrasileiros.Exceçãoaotrabalhodeadolescenteseraotempodasfestasreligiosas.Uma

delas, onde era mais visível a presença de aprendizes, jovens oficiais, eempregadosnastendasdecomércioeraafestividadechamadadea“Serraçãoda Velha”. A cerimônia caricata de serrar a velha realizava-se durante aQuaresma. Os dias variavam, vindo até o Sábado de Aleluia. Um grupo defoliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis,fingindoserrarumavelhaque,representada,ounão,poralgumdosvadiosdabanda, lamentava-se num berreiro ensurdecedor: “Serra a velha! Serra avelha!”Eavelhagritando,gritando.Porvezesocorriaessacomédiadiantedaresidênciadepessoas idosaseogrupoerarepelidoabaldesd’águaemesmotirosdeespingardaoupistola.Noutrasocasiões,medianteconvênioprévio,osbandos de jovens recebiam bolos e bebidas, para a refeição ao amanhecer,porqueaserraçãoeraduranteanoite,paratornarmaissinistrooespetáculo.Ao final e dado certo sinal, jovens de ambos os sexos se embolavam,

trocando empurrões, pontapés e tapas. Os mais violentos acabam na prisão,enquantoasjovens,verdadeirasCinderelas,queixava-sedesapatosperdidosechinelas rotas. A representação da Quaresma como uma velha serrada pelosjovens determina bem o significado ritual da luta entre as diferentes faixasetárias.Masquemé avelha?Certamente, uma representaçãodamorte.Umadasváriasque,nopassado,àépocadaQuaresma,percorriamasruas.Àsvezes,avelhacorriaempunhandoumafoiceerevidandoapancadariadosrapazesqueaperseguiamcantando“OhMorte!Ohpiela,tiraachichadapanela!”.Outras,elaacompanhavaaprocissãodasCinzas.AvelhapersonificavaaQuaresma,eGilVicente, em sua obraTriunfo de inverno, representou o inverno como avelha perseguida por Maio, o moço jovem, o verão. E quanto à funçãosimbólicadaSerraçãodavelha?CâmaraCascudoexplicaquetradicionalmentea velha é uma entidademaléfica ou grotesca, intervindo nas histórias com afunçãodeperturbarafelicidadeoudificultaraconquistadealgumacoisa.Comopermanênciadastradiçõeseuropeias,misteriosaecheiadepoder,ela

simbolizaamorte,astrevas,afome.Comocrescimentourbano,oaumentodaviolência edasdificuldadesde sobrevivência,os jovens“botavampara fora”seus problemas na Serração da Velha. Barulhos, gritaria e ritos aícuidadosamenterepresentados–o julgamento, testamentoemortedavelha–ajudavamnacatarse.Numabatalhasimbólicacontraamorte,elescelebravamofimdoinverno(emfevereiro,nohemisférioNorte),ofinaldaQuaresmaeda

esterilidadedoscampos,homenageandoachegadadoverãoedafecundidade,enfim, o poder da juventude. A inversão carnavalesca da poderosa morte,personificada numa frágil velha serrada, era também uma forma de meditarsobreapassagemdotempo,oenvelhecimentoeamorte.DuranteosfestejosdeSãoJoão,osjovensajudavamaergueromastrodiante

da igrejaedisputavam,depois, asprendasaípenduradas, enquantoasmoçasfaziamadivinhascomcoposdeáguaparasaberosamoresprometidosparaapróxima estação agrícola.No entrudo – nome que se dava aoCarnaval – osrapazesperseguiamasmoças,procurandoseusbraçosroliçosparaesmagaroslimões de cheiro. A vida religiosa também incentivava encontros. Mas delonge.Namissa,osolharestrocadosrevelavamverdadeiroscódigossecretose,com sorte, era possível cochichar algumas frases de amor durante o sermão.Comonão havia bailes públicos, eram frequentes as reuniões em residênciasparticulares,ondesejuntavamamigosevizinhoseondeamocidadedançavaefaziamúsica.EmmeadosdoséculoXIX,osjovensdeambosossexosjáeramvistos pelas praias e, nas palavras de um viajante estrangeiro, omissionárioanglicanoKidder,“corriampelapraiasoltandogritosdeprazertodavezqueumaondamaispesadarolavaemcimadogrupoeosatiravacambaleandoàpraia”.A adolescência era também a idade da iniciação sexual. Os rapazes

principiavamcomfrutas–comoamelancia–,árvoresouanimais.Oonanismo–oumasturbação–eraseveramentecondenado.Aojovemquesemasturbava,fazia-semedocomoMãodeCabeloeoutrosmonstrosdofolclore.Asfloresvermelhasdomandacaru,osocosdebananeira,assimplesgalinhasouasancaslargasdasvacas,tãoúteisnosprimeirospassosdavidasexual,passaramaserperseguidasporpais,médicoseconfessores.Amasturbaçãodestruíafamílias.Dizia-sequenãoapenas faziamalàsaúde,comoprejudicavao trabalhoeosestudosporesgotarasforças.Suprimiam-seosbolsosdascalças.Ameaçavam-se as meninas bonitas de ficarem feias. Proibia-se dormir de dorso. Eramproibidasas leituraspicantes–“aspestilenciaisnovelas”ouapoesiaerótica,assimcomoaingestãodecháevinho.Noslivrosdemedicina,adescriçãodosmasturbadoresnãovariava:hálitoforte,gengivaselábiosdescorados,espinhasemtodaaparteeperdadememória.Amores homoeróticos também tinham início nessa faixa etária como

comprovamosestudantesJerônimodeParadaeBastiãod’Aguiar,quetiveram“acessos nefandos e ajuntamento de natura” com homens mais velhos,conformeregistrouaVisitadaInquisiçãoàBahia,em1591.Jáojovempajem

João Batista, da ilha da Madeira, em visita à casa de um sapateiro paraencomendarchinelasparaseuamo,depoisdeouvir“palavrastorpes”ecomerpão e frutas, deixou-se seduzir.Mas fugiu antes que seu parceiro ejaculasse,livrando-se,segundosuaconfissãoaoVisitador,decastigosmaioresporpartedoSantoOfício.Entrerapazesemoçassedesenvolviaumrápidonamoro.Asredeseesteiras

serviamparaosembatesamorosos.Paraencontroseramutilizadosos“matos”,aspraias,osquintais,enfim,todoocantoquedesseumpoucodeprivacidade.Muitaseramseduzidase–comosedizia,então–“levadasdesuavirgindade”.Cair nomundo era o pior que podia acontecer àsmoças que, muitas vezes,eramexpulsasdecasaparanãocobrirafamíliadevergonha.Adolescênciasignificou,duranteséculos,apassagemdomundoinfantilpara

o adulto. Mas não só. Tais passagens obedeciam a rituais precisos queimplicavamemafirmaraidentidadededeterminadafaixaetária,mas,também,degruposvinculadosacondiçõesdevidadiferentes:nacidadeounocampo,entrejovenspobresouricos,educadosouanalfabetos.E,seduranteséculosanoçãodeadolescênciafoiconotadanegativamente,foiprecisoesperaroséculoXXparainaugurarumafasepositivaeumanovaleituradestafasedavida.

“M inhaqueridafilhaeamigadocoração”,“Cadavezlhequeromais,seépossível”, “Meu bem daminh’alma”:muitas foram formas de dizer o

amor,nopassado.Muitos foramosamoresealguns registrarammaismarcasdoqueoutros.Quemnãoouviucontarsobreapaixãoqueuniu,nosprimeirostempos da colônia, Paraguaçu e Caramuru? Ou não ouviu falar dos afetos,cantadosemprosaeverso,deMarília,queroubou,entresuspiros,“osincerocoração de Dirceu”, o inconfidente Tomás Antônio Gonzaga? Quem não selembra da tórrida relação de d. Pedro I com amarquesa de Santos, de cujalembrança o Museu Imperial de Petrópolis guarda, cuidadosamente, uminsólito registro: um bilhete no qual o enamorado governante rabiscou seupróprio pênis ejaculando? Ou a sólida união entre Chica da Silva e ocontratadordediamantesJoãoFernandesdeOliveira,quedeuaambosfamíliaextensaeprestígiolocal?Mas em vez de “tempo de amar”, melhor seria dizer tempo de se unir a

alguém.Ede se juntar, para sobreviver.Tempode formar família atravésdeumauniãoestável.Poisessafoiatônicadoscasaisduranteséculos.Entrenós,durantemaisdequinhentosanos,oscasamentosnãosefaziamdeacordocomaatração sexual recíproca ou a paixão. Elesmais se realizavam por interesseseconômicos ou familiares. Entre osmais pobres, omatrimônio ou a ligaçãoconsensualeraumaformadeorganizarotrabalhocotidiano.Nãohádúvidasdequeolaborincessanteeárduonãodeixassemuitoespaçoparaapaixãosexual.Sabe-se que, entre casais, as formas de afeição física tradicional – beijos ecarícias – eram raridade. Para os homens, contudo, as chances de manterligaçõesextraconjugaiserammuitas.OeuropeutrouxeparaoNovoMundoumamaneiraparticulardeorganizara

família. Esse modelo, constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”,correspondia aos ideais definidos pelo catolicismo. Apenas dentro destemodelo seria possível educar os filhos, movimentando uma correia detransmissão pela qual passariam, de geração em geração, os valores doOcidentecristão.Mas será que o europeu conseguiu impor esse tipo de família ao Novo

Mundo? Inicialmente, foram poucos os homens que trouxeram mulheres efilhos. Entre os donatários, apenas dois: Duarte Coelho, em Pernambuco, ePero de Campos Tourinho, em Porto Seguro. Em 1549, padre Nóbregacomentavaasuniõesinformaiseamiscigenação:“Todosmeescusamquenão

têmmulherescomquemcasem,econheçoeuquecasariam,seachassemcomquem.”O jesuíta tinha solução:mandarprostitutasdePortugalparaoBrasil,“aindaque fossemerradas, se casarão todasmuito bem”!Para os oficiais dogoverno, a rainha d. Catarina mandou “donzelas órfãs de nobre geração”.Comoocontingentedemulheresbrancascontinuoubaixopormuitotempo,oscolonosescolhiamasíndiascomoconcubinas,comquemviviam“segundooscostumesdaterra”.ENóbregaconta,chocado:“Nãohánenhumquedeixedetermuitasnegras

(leia-seíndias)pormancebasdasquaisestãocheiosdefilhoseégrandemal.”EntrecolonossolteirosoucasadosquetinhamsuasmulheresemPortugalnãohaviaproblemaem“abarregar-secomsuasescravasgentias”.Osconcubinatosincomodavam mais à Igreja do que às autoridades. Mas eles foramresponsáveis pelas primeiras uniões e uma geração de mamelucos. Deles,nasciam os “bastardos tidos com brasilas”, o termo, no século XVI,significando ao mesmo tempo ilegítimo e mameluco. As crianças nascidasdestes“amancebamentos”eramchamadas“curibocas”,nalínguatupi.É bom não esquecer alguns aspectos importantes da vida indígena. O

casamentoeraproibidoentrefilhoemãe,filhoeirmã,paiefilha.Elesseguiamregrasbemsimples:desejandoseunir,oshomenssedirigiamaumamulhereperguntavamsobresuavontadedecasar.Searespostafossepositiva,pedia-sepermissãodopaiouparentemaispróximo.Dadaapermissão,os“noivos”seconsideravam “casados”. Não havia cerimônias e, se ficassem fartos doconvívio, consideravam a relação desfeita. Ambos podiam procurar novosparceiros: “Tomam uma mulher e apartam-se quando querem”, lamentavapadre Ignácio de Azevedo em 1556. Normalmente, os índios tratavam bemsuascompanheiras.Protegiam-nas,andavamjuntoscomelasdentroeforadaaldeia,seoinimigoaparecesse,lutavam,dandochanceàsmulheresdeescapar.Quando os casais brigavam, podiam espancar-se mutuamente, seminterferência de terceiros. O adultério feminino causava grande horror. Ohomemenganadopodiarepudiar,expulsaremesmomataramulherquetivessecometido essa falta. Quando as mulheres engravidavam na relaçãoextraconjugal,acriançaeraenterradavivaeaadúltera, trucidada.Haviaumagrandeliberdadesexualantesdocasamento.Asmoçaspodiammanterrelaçõescom rapazes índios ou europeus, sem que isso lhes provocasse desonra.Posteriormente,casavam-sesemnenhumconstrangimento.

Famíliasenhorialacompanhadaporescravos.CLARK,JohnHeaviside.ABrazilianfamily[Iconográfico].

LONDRES:HOWLETTANDBRIMMER,1822.

A análise dos testamentos quinhentistas feita por Maria Beatriz Nizza daSilva revela a preocupação dos pais em educar e profissionalizar os filhosmamelucos.Muitasvezes,contavamatécomaajudadesuaslegítimasesposas.Em geral, os filhos naturais ou ilegítimos eram alforriados, registrava-se emdocumento o pedido de ensinar-lhes a ler e escrever e o aprendizado de umofício.Àsfilhasreservava-se,quandopossível,umdoteparalhesgarantirumcasamento.Emestudo,NizzadaSilvachamaaatençãoparaasdiferençasregionaisna

incorporaçãodemamelucosebastardosàs famíliasdebrancos.NoNordeste,prevaleceu a endogamia acentuada pela presença flamenga. Frente aoestrangeiro calvinista, os senhores de engenho pernambucanos católicos secasaram,maisemais,entresi,protegendoseusbensemfavordadescendêncialegítima.Mamelucosherdando?Sósefossefilhodemulheresbrancas.Filhos

de negras e índias podiam ser excluídos como, por exemplo, o foram nasucessão do morgado de Francisco de Sá, da família de Mem de Sá. Semabandonaraproleilegítima,ossenhoresdeengenhoevitavamsualegitimação.Caso, por exemplo, de João Fernandes Vieira, que, em seu testamento em1674, refere ter tido um filho de certamoça portuguesa,Maria deArruda, aquem “o mandei criar e doutrinar até a era de 1654 e o sustentei e vesti,trazendo-osempreacavalocomescravos”.Em São Paulo, por outro lado, era normal que se cuidasse dos filhos dos

bastardos, sobretudoquandonãohaviaherançaa receber.Umexemplo?AnadaCostaescreveuemseutestamento,em1649,“temosumameninaemcasa,neta nossa que criamos por nome de Maria, filha de nosso filho ToméFernandes,defunto;peçoemandoquefiqueamãecomaditameninaisentadeservidão,semsujeiçãoalguma”.Ou,jánofimdoperíodocolonial,em1820,obrigadeiroManuelRodriguesJordão,solteiro,fezumadoaçãodealimentosaofilho ilegítimo de 14 anos, Antônio Rodrigues de Almeida Jordão, a quemsempre tratara e educara como filho. Nessa doação estavam incluídos umengenhocomseusutensíliose terrasemPiracicaba,umacasaemSãoPaulo,quatro ações doBanco doBrasil e quatro escravos. Ela sublinha também asdificuldadesqueenvolviamapartilhadebensentreherdeirosdossenhoresdeengenho. Quando havia muitos escravos a herdar, era difícil retirá-los daspropriedades,pois,aofazê-lo,quebrava-seaprodutividade.Para Gilberto Freyre, com ou sem mamelucos, a família rural foi o mais

importantefatordecolonização.Elaeraaunidadeprodutivaqueabriaespaçosnamata, instalavafazendas,compravaescravos,boise instrumentos.Agiadeformamaiseficienteparaodesbravamentodaterradoquequalquercompanhiadecomércio.JáSérgioBuarquedeHolandaobservouqueafamíliaprevaleciacomocentrodetodasasorganizações.Osescravos,juntamentecomparenteseempregados, dilatavam o círculo no qual o senhor de engenho era o todo-poderosopater-familias.

Apesardopatriarcalismo,mulheresbrancascirculavamnasruas.HUNT,G.Humahistoria[Iconográfico].LONDRES:HOWLETTANDBRIMMER,1822.

Para os dois autores, a soma da tradição patriarcal portuguesa com acolonizaçãoagráriaeescravistaresultounochamadopatriarcalismobrasileiro.Tanto no interior quanto no litoral, ele garantia a união entre parentes, aobediênciadosescravosea influênciapolíticadeumgrupofamiliarsobreosdemais.Uma grande família impunha sua lei e ordem nos domínios que lhepertenciam.Ochefecuidavadosnegóciosetinhaabsolutaautoridadesobreamulher, filhos, escravos, empregados e agregados. Essa concepção quaseimperial na relação entre os membros é uma característica sublinhada porEvaldo Cabral deMello, em seus estudos sobre as famílias pernambucanas.Elasincluíam,também,parentes,filhosilegítimosouosdecriação,afilhados.Suainfluênciaeraenormeeseestendia,muitasvezes,aosvizinhos.Haviaumarelaçãodedependênciaesolidariedadeentreseusmembros.Embora se reconheça a importância deste modelo, outros tipos de família

vicejavam nessa época: famílias pequenas de solteiros e viúvos, de mães efilhos vivendo sem pais. Entre as camadas mais pobres, eram comuns astradicionais ligações consensuais, sobretudo nas áreas de passagem,urbanização acelerada ou mineração. Importante: viver numa família ondefaltavabênçãodopadrenãoqueriadizervivernaprecariedade.Taisligações,então chamadas de concubinárias, podiam ser, e eram,muito estáveis.Haviaconsensoentreoscompanheiros.Haviadivisãodepapéisepartilhadetarefas.O que era precário era sua situação material. Mas a estima, o respeito e a

solidariedade eram características que se encontravam tanto num tipo defamília,quantonooutro.Assimcomoastensõesouviolências,presentes,emambas,também.Asafricanas,porsuavez,vieramengrossaras“uniõesàmodadaterra”.Os

portuguesesjáestavamfamiliarizadoscomelas,pois,desdeoséculoXV,eramenviadasparaPortugal.Trabalhandocomoescravas,emserviçosdomésticoseartesanais, acabavam se amancebando ou casando com eles. No Brasil, ascoisasnãoforamdiferentes.Daíasfamíliasdemestiçosemulatos.Damesmamaneira que as uniões de brancos com índias, ou de brancos pobres, as debrancos,mulatosenegrostambémnãopressupunhamocasamentooficial.Aspessoasseescolhiamporquesegostavam,passandoatrabalharjuntaseaterfilhos.OfatodenoBrasilColonialascidadesseremdistantesumasdasoutrasfazia

com que a maioria das pessoas morasse “pelos sertões ou matos”. Elas,também, tinham dificuldade em cumprir os preceitos da religião. Em suamaioriaviviamjuntas,antesmesmodecasar.Eramoschamados“desponsóriosdefuturo”,istoé,umauniãotendoemmenteumfuturocasamento.Paraalgunshomens,engravidaracompanheiraeraimportante,poispermitiaavaliarseelalhedariamuitos filhos.Comoamaioriaviviana roça,os filhosajudavamnalavoura. Mas, se eventualmente não se importavam com a virgindade, oshomens ligavammuitoparaa fidelidadedacompanheira.Quandose sentiamtraídoseracomumameaçareespancarsuasmulheres.Maselasdavamotroco.Abandonadas, não hesitavam em tentar envenená-los ou pediam ajuda aosirmãoseparentesparaaplicar-lhesumaboasurra.Graças às grandes ondasmigratórias, alguns centros urbanos ficavam com

mais mulheres do que homens. Elas cuidavam do pequeno comércio, dalavoura, da plantação e dos animais domésticos. Algumas, mais abastadas,eramfazendeiras,comerciantesdeescravosedetropas.Enfim,trabalhandoemcasa ou na rua, elas ajudavam na sobrevivência de suas famílias e erammembros destacados da economia informal que existia então. A vida demulheres sozinhas, com filhos e dependentes, se consolidava no que, hoje,chamamos de lares monoparentais. Alguns deles incluíam escravos. Outros,parentes ou “agregados”. Longe de revelar qualquer fragilidade social, taisfamílias permitiam às matriarcas traçar agendas extremamente positivas:casavam filhos interferindo na escolha do cônjuge, controlavam o dinheiro,com que cada membro colaborava para o domicílio, punham emfuncionamento redes de solidariedade, agiam em grupo, quando tinham seus

interessescontrariados.Eosescravos?AIgrejaCatólicanãosópermitiacomodefendiaseudireito

ao casamento, inclusive com pessoas livres. Os senhores mais ricoscostumavamcasarseusescravosnomesmodiaemquebatizavamascriançasnascidas no engenho. Assim, chamava-se um padre que realizava as duascerimônias e depois havia uma “função”: festa ao somde batuques, violas eatabaques.Otrabalhonalavoura,aépocadecolheitaoudemoagemdacana,servia para que homens e mulheres se encontrassem. Demaneira geral, nasgrandesfazendas,haviamaishomensdoquemulheresnassenzalas.Aescolhadacompanheiramuitasvezescausavadisputasviolentas,ameaçaseatémortes.Os escravos preferiam unir-se com companheiras da mesma origem étnica.Chama-sea este fenômenoendogamia.Escravosdeorigemnagô se casavamcom nagôs; os de origem haussá, com haussás, e assim por diante. Essaescolha,ditadaporafinidadesculturaisereligiosas,permitiaaocasalorganizarseu mundo com os mesmos hábitos e tradições da sua região de origem naÁfrica.Omelhor retratoda situação foi o diálogoquemanteveSaint-Hilairecom um africano, em Minas Gerais. Perguntado se era casado, o escravorespondeu:

Não,masvoumecasardentrodepoucotempo,quandoseficaassim,sempresó,ocoraçãonãovivesatisfeito.Meusenhormeofereceuprimeiroumacrioula,masnãoaqueromais;ascrioulasdesprezamosnegrosdacosta.Voumecasarcomoutramulherqueminhasenhoraacabadecomprar;essaédaminhaterraefalaminhalíngua.

De acordo com as Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, osescravostinhamo“direitohumanoedivino”decasar-secomoutrosescravosou livres. O senhor não podia impedi-los. A Igreja chegou a lembrar que amultiplicação de famílias cativas só poderia ajudar os proprietários. Emalgumasregiõesosgrandesplantéisde fazendaseengenhos tinhamabênçãodopadre:até94%,emSantanadoParnaíba,emSãoPaulo,porexemplo.Haviamesmo quem enviuvasse e casasse com companheiros da mesma senzala.Manolo Florentino e José Roberto Góes comprovaram que no Nortefluminensetrêsouquatrogeraçõessereproduziamdentrodosmesmosplantéis.E, mesmo quando havia partilha dos cativos por herança, a tendência eramanterasfamíliasunidas,demonstrandograndeestabilidadenosarranjos.Seteentredezcriançasconviviamcomseusgenitores.

PasseioemfamílianasruasdoRiodeJaneiro.DEBRET,Jean-Baptiste.Empregadodogovernosaindoapasseio[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,C.1820-1825.

Casamentos mistos entre livres e escravos levantavam questõesproblemáticas. Quando índias se casavam com escravos, quando esses eramvendidos, elas tinham que acompanhá-los no novo cativeiro, colocando oproblemadamobilidadegeográficadapopulaçãodecor.Taisuniões,porém,eram mais comuns nas fazendas de gado do Nordeste. E repetidas em SãoPaulo, onde a estratégia dos colonos de casar seus escravos africanos comíndiasquandoopreçodosprimeirossubiafoiseguidapelospadresjesuítas.Osfilhosdestescasaiseramchamados“servos”.Adiferentecondiçãojurídicadoscônjugesfezcomquemuitasmulherestentassemcompraraliberdadedeseusmaridos.Quandoo senhornegavaopedido, elas recorriamaosgovernadoresoumesmoaorei,queconcediaaliberdadecomouma“graça”.

Amores,amor,famíliasefamília:plural

Nascidades,asuniõesconsensuaisentrehomensemulheresescravosouentrealforriadosou livres tambémeramcorrentes.Aí tambémprevaleciaopadrãoendogâmico de casamento. Ao estudar a família na vila do Recife, emPernambuconofinaldoperíodocolonial,ohistoriadorGianCarlosdeMeloe

Silva observou a permanência de casamentos dentro do mesmo grupo,sobretudo quando se tratava de uniões legalizadas: brancos com brancos,pardoscompardos,criouloscomcrioulos,pretoscompretos.Asuniõesmistas,quefizeramHenriKoster louvaramiscigenaçãocomoalgocorriqueiro,erammenoscorrentesesedavamàmargemdosistemaoficialdecasamentos.A família escrava se apoiava numa forma de solidariedade muito forte: a

espiritual.Escolhendoparapadrinhosoumadrinhasde seus filhosamigosoucompanheirosdetrabalhooudeetnia,osdescendentesdeafricanosformavamumtipodefamíliaondelaçoscomatradiçãoafricanaerammuitoimportantes.Ospadrinhosficavamencarregadosdeprotegereajudaroafilhadoatéofinaldavida, servindopara forjaruma redede informaçõesdasdiversas “nações”que fazia circular as notícias sobre os familiares vendidos a proprietáriosdiferentes. Havia sempre a possibilidade de reencontrarem-se irmãos, pais emãesououtrosparentes.Nas senzalas, quando aumentava a importação de africanos, os crioulos se

fechavamentresi.Aentradadenovoshomenserasentidacomoumaameaça.Apenas um entre cinco casamentos reunia pessoas de etnias diferentes. EstepadrãovigorounoRiodeJaneiroenoRecôncavoBaiano.MasoaumentodotráficonoséculoXIXacabouporrompê-lo,poisaquichegavamcadavezmaisindivíduosvindosdediferentesorigens.FlorentinoeGóesobservaramagudasdiferençasdeidadeentreoscônjuges.Homensvelhossecasavamcommoças–como,aliás,sefazianogolfodoBenim–emoços,commulheresdécadasmaisvelhas. Os mais velhos, prestigiados na tradição africana, dominavam omercado demulheres férteis; os cativos jovens, excluídos do acesso a estas,acabavamcommulheresemidadebemsuperior.Quanto ao tempo de amar dos grupos afrodescendentes, vale lembrar ao

leitorqueossistemasdenupcialidadenãoeramidênticos.Hádiferençasentrecasamentos de livres e de escravos. Os primeiros podiam se casar quandoquisessemoupudessem.Ocalendáriodecasamentosdapopulaçãolivrenuncafoi,contudo,homogêneoeeraequitativamentedistribuídopelosmesesediasdomês.Ofenômenosofriainterferênciasdesistemasdereligiosidadepopular,mitosecrenças,assimcomodocalendárioagrícolaoulitúrgico.Afamíliasenhorialapresentavaalgumascaracterísticastambémencontradas

no restante da sociedade. Ela podia ser “extensa” – englobando familiares eagregados,parentes,filhosbastardoseconcubinas.Oupodiasermonoparental.Essaeraemgerallideradaporviúvasqueviviamcomseusfilhoseirmãosouirmãs solteiras. Em ambos os casos, eram comuns as núpcias entre parentes

próximos,primoseatémeios-irmãos.Graçasaoscasamentos“endogâmicos”,asfamíliassenhoriaisaumentavamsuaáreadeinfluência,aumentandotambémsuas terras, escravos e bens. O casamento com “gente igual” era altamenterecomendávelepoucoseramosjovensquerompiamcomessatradição.Odiaa dia destes grupos transcorria em meio ao grande número de pessoas. Asmulheres pouco saíam de suas casas, empregando seu tempo em bordados ecosturas,ounopreparodedoces,bolosefrutasemconserva.Eramchamadasde“minhasenhora”,pelosmaridos.Embora a Igreja considerasse o vínculo do matrimônio indissolúvel, esse

nem sempre se extinguia com a morte de um dos cônjuges. Crises? Sim.Separações e anulações do contrato, enclausuramento de mulheres emconventosfemininos,bigamiasemesmoassassinatodocônjugeocorriam.Emoutubrode1795,numarelaçãodepresosculpadospormortenacadeiadoRiodeJaneiro,seencontravamquatroesposasquetinhameliminadoseusmaridos.NacapitaniadoMaranhão,em1804,d.MariadaConceiçãofoicondenadaportermandadomatareassistido“àmortealeivosa”deseumarido.Elavivia“empúblicaeadulterinadevassidão”comocorréudocrime,sobreiroecaixeirodomarido“comquemseajustaraacasarpormortedeste”.Emmaiode1816,foiavezdeprenderemnoRiodeJaneirocertaJoaquinaMarinhadeAlbuquerque,que matara o seu cônjuge com uma corda, juntamente com um cúmplice.Tentativas de envenenamento, várias. O uso do vidro moído misturado aosalimentoseracorrente.Não faltaram uxoricidas. Homem de negócios, Vitorino Vieira Guimarães

ferirademortesuamulher,d.HelenadaSilva,fazendo-lhedezoitoferidascomumpregoaguçado.Aacusaçãodeadultériocontraamortafoiaceita,emboraelafosseconhecidaporser“entradaemanos,doente,notoriamentehonradaebem-procedida”. Já Vitorino era renomado concubinário, desfilando comsucessivas amantes. Mas tinha “poder, arte e amigos”. Por meio de provasfalsas,conseguiuprovaraomagistradoquesuamulheroenganavaequeagirapara“limparsuahonra”.Eracomumquehomensdecondiçãoelevadaobtivessem“seguroreal”para

cuidardesuascausasemliberdade,mesmoquandobastanteevidenteocrime.Emgeral,eramdesculpadosporcometercrimes“porpaixãoearrebatamento”.Jáagentedecornãoencontravaomesmoapoio juntoaosmagistrados,poisesses não achavamque negros emulatos tivessem honra a defender, explicaNizzadaSilva.CertoManoelFerreiraMedranha,pardoliberto,foicondenadoadegredoparatodaavidaemAngola,alémdepagarumapenapecuniáriapor

termatadoamulher.Sehaviadiferençasentreassassinospobresericos,haviapiordistinçãoentre

homens e mulheres. Enquanto entre as segundas não se colocava sequer apossibilidade de serem desculpadas por matarem seus maridos adúlteros, omarido traído quematasse a adúltera não tinha qualquer punição. Ele estavaprotegidopelasOrdenaçõesFilipinas:“Achandoohomemcasadosuamulheremadultério,licitamentepoderámataraçõesaela,comoaoadúltero,salvoseo marido for peão e o adúltero fidalgo ou pessoa de maior qualidade.” Acondiçãosocialdoparceirodeadultérioeralevadaemconta.Adaadúlteranãocontava.Morriaaplebeiaouanobre.Outraformadepuniçãofemininaeraareclusãonosconventos,muitasvezes,

perpétua. Para trancafiá-las era preciso uma permissão da autoridade, fosseessadorei,dovice-reioudobispo.E,apartirde1808,dointendentegeraldapolícia doRio de Janeiro.Umexemplo: em1771,BentoEsteves deAraújo,suspeitando de que sua mulher, Ana da Cruz, lhe era infiel, conseguiu suaconfinaçãonoconventodeNossaSenhoradaAjuda,noRiode Janeiro.Anatentousairde lá,masomarido reagiuescrevendoàsautoridadesedizendo-a“ummonstro”.Qualquer retirada, alegava, seria “vergonhosa”.Mas a paixãodevia ser grande, pois lhe escrevia: “Não tenho tempodenarrar oque tenhosentidoaseurespeito...Olha,fiqueitãoforademimquechegueiemcasatodomolhado[...]Infinitasvezestenhodenoiteacordadotodoelevado,equerendocompletartodaavontadenãoachooquetenhonosentido,pois,cadadia,sãomaisdemil lembrançasdestas [...]”E,avisandoàesposaque iriavisitá-laàsescondidas, rabiscava: “Estando o prego fora avise que lá irei dizer-lhe umadeus,ouviu.Rasguelogoesta.Seumarido.”Esse tipo de punição era tão corrente que chamou a atenção dos viajantes

estrangeiroscomoLuccockeLeithold,quemencionavamosconventoscomolugaresondeosmaridospodiamencerrarasmulheres,“porcaprichoououtrasrazões”. O encarceramento podia ser para sempre, bastando, para isso,sustentá-lascomalimentosládentro.Violência entre cônjuges?Muita edesde sempre. “Darmávida àmulher”,

“viverembulhas”,“darpancadas”ou“açoitarcomoumnegro”sãoexpressõesqueaparecemnormalmentenasDevassasEpiscopaisemtodaaparte.Afrontasdetodootipoeramperpetradas,como,porexemplo,algunsmaridosdedicaremtratamentoímparàssuasamantes:nãoalimentavamsuasfamílias,mascobriamde mantimentos a “outra”. Vestiam a amásia enquanto a esposa andava emandrajos. Faziam a mulher trabalhar, enquanto a concubina, muitas vezes

mulata e negra, era “tratada como senhora da casa”. “Dar o tratamento queDeusmanda”àesposaerarecomendaçãodaIgrejaaosmaridosviolentos.Nacrise do matrimônio, a mulher era a primeira a sofrer, explica LucianoFigueiredo,queestudouasfamíliasemMinasGerais.A fragilidade do casamento não resistia, muitas vezes, à violência e ao

abandono.Háregistrosdemulheresquefogemdeseuscônjuges,voltamparaacasa dos pais, tentam refazer suas vidas. Quem julgava os comportamentos,apoiando um ou outro lado do casal, era a comunidade. Vizinhos, amigos eparentes se uniam ao cônjuge ofendido para apoiá-lo perante os bispos quevisitavam as paróquias distantes avaliando sua situação. Eram as chamadasVisitasPastorais,ou“pequenasinquisições”,comoaschamouFigueiredo,pormeio das quais se tentava disciplinar a população e avaliar a administraçãoeclesiástica. Mas, se a mulher “andava vagabunda”, era “adúltera” ou“meretriz”, perdia os apoios comunitários. Passava-se de relações conjugaispara uniões consensuais. Viver em concubinato era opção imediata, menosdispendiosaedesligadadeobrigaçõesinstitucionaiseburocráticas,tornando-seo inimigo implacável da Igreja. Vale lembrar que a atividade comercial demuitas mulheres lhes dava independência suficiente para estabelecer novosamores. Punição para os concubinários? Pouca... Recusa dos sacramentos eproibiçãodeassistiremamissa,porvezes,expulsãodacomunidade.Em pesquisas sobre roceiros pobres, a historiadora Maria Luíza Marcílio

comprovou que as uniões consensuais eram a regra. E, quando haviacasamentos, eles mais respeitavam o calendário das colheitas do que oreligioso.Aquelede“papelpassado”maisinteressavaàsfamíliasproprietárias,interessadas na transmissão do patrimônio a seus herdeiros. Nas roças dealimentos, localizadas pelos sertões, apesar da austeridade moral e aestabilidade conjugal o casamento legal de livres ou escravos tinha poucosignificado. Entre cativos, a taxa demulheres era inferior à dos homens e adispersãonasroçasdificultavaaescolhadocônjuge.Mas havia quem, no casamento oficial ou fora dele, vivesse feliz para

sempre.Caso,porexemplo,deFrancisca,ouChicadaSilva,eocontratadordediamantes JoãoFernandes deOliveira.Embora casado, ele fez vida conjugalcomaex-escravaquealforriouecomquemtevetrezefilhos, todosbatizadospor conhecidos personagens do Arraial do Tijuco. Francisca da Silva deOliveiraagiacomoqualquersenhoradaelitesocial.EducoutodasasfilhasnoRecolhimentodeMacaúbas,omelhoreducandáriodasMinas.ChicadaSilva,osfilhoseomaridoparticiparamdediversasirmandadesreligiosasdaregião,

como a do Santíssimo Sacramento, São Miguel e Almas, São Francisco deAssis,TerraSanta,NossaSenhoradoCarmodoTejucoedaViladoPríncipe,SãoFrancisco,TerraSantaetambémdasirmandadesdemulatosnegros,comoNossaSenhoradoRosárioeMercês.Chica da Silva foi uma boa mãe e esposa honrada. Quando o marido foi

obrigadoaretornarparaPortugal,assumiuaeducaçãodasfilhas,mantendo-sefielaoesposo.Cadaumadasfilhasrecebeudopaiumafazendacomoherançae, assim, realizaram seus casamentos com homens bem posicionadossocialmente.JoãoFernandeslevouparaPortugalosquatrofilhoshomens,alémdeSimãoPiresSardinha,oprimeirofilhodeChicacomummédicoportuguês.SeufilhoJoãosetornouseuprincipalherdeiro,queconstituiunametrópoleoMorgado doGrijó, destinando-lhe dois terços de seus bens. JoséAgostinho,outro filho, tornou-se padre e recebeu dote para ocupar uma capela. SimãoSardinhaestudouemRoma,comproutítulosdenobrezaepatentedetenente-coroneldacavalarianoregimentodeDragõesdeMinasGerais.Àmedidaqueas famílias iamseadaptandoàs realidadesdomeio,a Igreja

atraía mais e mais fiéis. O casamento foi transformado num sacramentoregulamentadoquedeveriaserobedecidoesóconcedidomedianteabênçãodopadre. O objetivo dependia de várias regras a serem respeitadas: osimpedimentos.Nãoerapermitido“errodepessoa”,ouseja,eraproibidofingirser outrem ou falsificar documentos para tal. Amesma proibição valia para“errodecondição”,afimdeevitarqueescravossepassassemporlivres.Ode“voto” se referia àsordens sacras.Ode “cognação”, aoparentesco espiritualqueexistiaapartirdobatismo:eraproibidaaconsanguinidadeatéquartograuoucasamentocomadotados.Ode“disparidade”interditavaauniãodepessoasdecredodiferente.Ode“forçaoumedo”diziatudo.Eode“ligame”proibiaaosquetinhamfeitovotodecasamentoligar-seaterceiros.Enfim,haviaoutrosimpedimentosaindacomoode“afinidade”,contraídoapartirdecópulailícitafora do casamento. O de “impotência” quando um dos cônjuges tinhaproblemascom“osinstrumentosdacópula”,nãoconseguindogerar.O“rapto”quandoo “roubador”nãopodia casar comsuavítima.O“crime”, quando sematavaocônjugeanterior.O controle era importante, pois a bigamia foi um fenômeno conhecido na

colônia. Quando da Primeira Visitação do SantoOfício ao Brasil, em 1591,houvedezenasdecasosdenunciados,poisosbígamos teriam“famapública”ou “porque se ouvia dizer” de sua condição.Não escapou ninguém: homenscomoomarinheiroBelchiorPiresouAntônioRóis,queconseguiusecasartrês

vezes!MulherescomoaportuguesaIsabelSoaresouuma“Negrabrasila”comdoismaridos.AssituaçõeseramespantosascomoadeBaltazarMartins,nascidonailhada

Madeira emestre de açúcar, que aos 26 anos se casou com IsabelNunes deGrados.Ocasamentofindou,poiseledescobriuqueaesposajáeracasadaemTanger, com certo Bento Veiga. O bispo local exigiu que Isabel voltasse avivercomoprimeiromarido,emboraeleestivessevivendocomsuaprimeiramulher.AoternotíciadequeIsabelestavavivendonaMadeirae“fazendomalde si”, Baltazar resolveu se casar na Bahia com Suzana Borges Pereira, dequem teve filhos. Denunciado pela última esposa ao Santo Ofício, foisentenciado às galés. Finda a pena, voltou a viver com a primeira mulher,Isabel,jáviúva.Quandoestafaleceu,voltouacasarcomSuzanaBorges!Ao final do século XVIII, as “uniões à moda da terra” deram

progressivamentelugaraoscasamentos.Nãocustalembrarqueestásefalandode um sacramento que se consolidou apenas no século XIII. A partir doConcíliodeTrento,em1545,aIgrejadesenvolveuumadoutrinaemtornodomatrimônio, estabelecendo, inclusive, a necessidade do consentimento doscônjuges e de seus pais, encarregados de proverem dotes ao casal. A uniãosexual se tornou “um mistério” e “sacramento” que assegurava dignidade elegitimidade ao ato. Antes realizada às portas de qualquer igreja, no séculoXVII,acerimôniapassouaterlugaremfrenteaoaltarcomabênçãonupcialauferidaporumpadre.Osnubentesnãousavamtrajesespeciaisparaoenlace,mas vestiam suas melhores roupas. Os “manuais laicos de casamento”, emapoioàsnormasda Igreja, justificavamasvantagensdavidadecasado tantosobre o ponto de vista patrimonial quanto para evitar os desregramentos davidadesolteiro.Muitoscasaisusaramosacramentocomoformadeinserçãoedemobilidade

social. Ao fugir à pecha da relação condenada e ilegítima, mais e maismestiços,mulatos e brancos ou negros pobres procuravammanter seu statusdentrodogrupodeorigem.Formavamlaçosdeparentescocompessoasdesuamesmarealidadesocial,evitandomancharadescendênciadafamília,alémdeinserir homens e mulheres de cor, nos costumes dos brancos. Elesconquistavam, assim, direitos civis e respeito perante os demaismembrosdacomunidade.Melhor época para celebração? Fora do “tempo proibido” ou “tempo de

penitência”,naQuaresmaenoAdvento.Sextas-feiras,diadaPaixãoemortede Jesus eram evitados, assim como os domingos, dia de louvar o Senhor.

Evitavam-se igualmente os meses de trabalho na lavoura do milho, cana,mandioca, feijão e arroz.E na beira-mar, a época de “campanhas de pesca”,quandosepescava,secavaesalgavaopeixe.Ascerimôniasserealizavam,emgeral, de manhã, mas os convidados chegavam dias antes, arranchando-secomo podiam. Ao ato religioso, por vezes coletivo, seguiam-se as festas debodascommúsica,comezainaebebidaafartar.

U ma vez que, na Idade Moderna, erotismo designava “o quetivesse relação com o amor”, como esta definição sematerializava em práticas? Há registros de estratégias desedução que soariam pouco familiares e mesmo pueris aosolhosdehoje.Éocasodo“namorodebufarinheiro”,descrito

por Júlio Dantas, corrente em Portugal e talvez no Brasil, ao menos nascidades.Consistiaempassaremoshomensadistribuirpiscadelaseafazeremgestossutiscomasmãosebocasparaasmulheresquesepostavamàjanela,em dias de procissão, como se fossem eles bufarinheiros a anunciar seusprodutos.Étambémocasodo“namorodeescarrinho”,costumeluso-brasileirodosséculosXVIIeXVIII,noqualoenamoradopunha-seembaixodajaneladamoça e não dizia nada, limitando-se a fungar à maneira de gente resfriada.Casoadeclaraçãofossecorrespondida,seguia-seumacadeiadetosses,assoardenarizesecuspidelas.Escapa-nos,sobremaneira,oapelosedutorqueostais“escarrinhos” poderiam ter naquele tempo, mas sabe-se que, até hoje, nointeriordopaís,onamoroàjaneladasmoçasnãodesapareceudetodo.

ACIMAEAOLADO

AimagemdodesejoMestreValentim.NinfaEco.[Bronzepatinado].

MUSEUNACIONALDEBELASARTES-IBRAM/MNC,1783.

Documentos remanescentes dasVisitas da Inquisição, preocupadas com asmoralidades de nossos ancestrais, revelam, por exemplo, a existência de“palavrasderequebroseamores”ede“beijoseabraços”,sugerindoprelúdioseróticos e carícias entre amantes. Atos sexuais incluíam toques e afagos,implicando na erotização das mãos e da boca. “Chupar a língua”, “enfiar alínguanaboca”segundoosmesmosdocumentosnãoeramalgoincomum.Osprocessosrevelamquealgunssedutoresiamdiretoaoponto:“pegarnospeitos”e“apalparaspartespudentes”eraqueixaconstantedemulheresseduzidas.Processos de sodomia masculina, por exemplo, revelam amantes que

“andavamombroaombro”,abraçavam-se,trocavampresentesepenteavam-seoscabelosmutuamenteàvistadevizinhos,desafiandoaInquisição,suagrandeinimiga.ÉconhecidoocasodecertoJoãodeCarvalho,umrapazqueensinavalatimelinguagemparaosfilhosdosmoradoresdeumafreguesiaemSãoJoãoDelRei,noséculoXVIII.Apaixonadoporumdosseusalunos, lhemandava

bilhetesnosquaisdizia:“Luiz,meuamorzinho,minhavidinha!Vindeparaobananalqueeulávoucomagarrafinhadeaguardente.”Rituaisdenamoroentrehomossexuaisnãosedistinguiamdosdemais.Luís

Delgado,estanqueirodefumoemSalvadordaBahia,setornouconhecidopordemonstrar publicamente a paixão que nutria por seus sucessivos amantes,beijando-os na frente de outras pessoas, regalando-os com presentes de finotrato,vestindo-oscom“galas”,ouseja,roupasesapatoscaros,andandojuntosdebaixodeumgrandeguarda-sol,paraescândaloeescárniodeseusinimigos.Eracomumatrocade“memóriasdeouro”,ouseja,umaneldecompromisso.Numarrufocomumdeles,certoDoroteuAntunes,dequemmorriadeciúmes,ameaçou-oaosgritos,defrontedaFontedosSapateiros:“Comissomepagaisdo amor que vos tenho e o muito que convosco gasto, dando-vos dinheiro,vestidos,casasemquemoraisetudoomaisquevosénecessário?!”Outro,LuísdaCosta,o tabaqueiro, costumavapegarnamão, “dizendo-lhe

queeraafeiçoadoaeleeoqueriamuitogentil-homemetinhaumacaracomouma dona”. Outra cena pública de grande ciúme teve certa Isabel Antônia,apelidada“AdoVeludo”, referênciaao faloqueusavanas relações, tambémmoradora em Salvador. Ela tinha conturbada relação com Francisca Luiz,causandograndeescândalonacidade,pelaviolênciaeexcessivozeloquetinhacom a amante. Numa ocasião, ao saber que a amiga tinha saído com umhomem,dirigiu-seaela, aosbradosde: “Velhaca!Quantosbeijosdásao seucoxo(amante)eabraçosnãodásamim!Nãosabesquequeromaisaumconoqueaquantoscaralhosaquihá.”Disse isso tudoaosberros,pegando-apeloscabelos,trazendo-aàportadecasacombofetõesàvistadosvizinhos.Arroubos não foram incomuns; beijos roubados e furtivas bolinações eram

práticas usuais regadas a propostas lascivas e palavras amatórias. Algunstocamentos podiam ser tímidos, escondendo confessados desejos. Rostos emãos levemente roçados por dedos ávidos ou mãos apertando outras. Fazercócegasnapalmadamãoepôramãosobreocoraçãoparadizeroquererbemerapartedagramáticaamorosa.Emalgumasocasiões,eramospésqueagiamligeiros a alisarem outros pés. Alguns afagos eram apenas esboçados, aanunciaravontadedeoutrosmaisousados,enquantoseelogiavaaformosurada mulher. Conjugavam-se muito os verbos estimar e querer bem. CâmaraCascudoestudouo significadode inúmerosgestosque serviamdecódigodeconversação entre namorados, impedidos de expressarem de forma maisdeclaradaosseussentimentos.Apoesiaburlescaesatíricavingava-sedarepressão.Nela,osórgãosgenitais

“falavam”.EmBocage,opênisafirmavacategórico:“Jurosófodersenhoras.”Napoesia,ouniversovocabular tambémcontemplavaocorpoeo sexo, sempudor. “Alcatreira” queria dizer bunduda. “Arreitar” era excitar, dar tesão.“Bimba”,pênispequeno.“Crica”,vagina.“Cu”,bunda.“Pachocho”,genitáliafeminina.“Pívia”,masturbação.“Trombicar”,foder.“Vir-se”,gozar.“Sesso”,ânus.Eéoprópriopoetaqueinformasobreosencontros:

Talfogoemmimsenti,quedeimprovisoSemnadalhedizermefuidespindoTeficarnuempelo,eomembrofeito[...]NisecheiadesustoecastopejoJuntoamimsentou-sesemresolver-seEumesmoafuidespindo,efuitirandoQuantocobriaseuairosocorpoErafeitodeneve:osombrosaltosOcolobranco,ocuroliçoebrancoAbarrigaespaçosa,oconoestreitoOpentelhomuidenso,escuroelisoCoxaspiramidais,pernasroliçasOpépequeno...ohcéus!Comoésformosa.

Mas,comodemonstreiemHistóriasíntimas,issoerapoesia...Poisenquantoliteratosdavamvazãoaossentimentoseróticos,acatequeseseimpunhaatodaasociedadecolonial.Aagendaeraumasó:civilizar,educandonosprincípioscristãos.Nocasamento todoocuidadoerapouco.Normas regiamaspráticasdos casados. Até para ter relações sexuais, as pessoas não se despiam. Asmulhereslevantavamassaiasouascamisaseoshomens,abaixavamascalçase ceroulas. Mesmo nos processos de sedução e defloramento que guardamnossosarquivosvê-sequeosamantesnãotiravamaroupaduranteoato.Umexemplo, em Paraty, Rio de Janeiro, no início do século XIX: “E que eletestemunha presenciara e vira a ofendida e o Réu estarem nomato juntos eunidos um por cima do outro a fazeremmovimento com o corpo, e que eletestemunha,vendoesteato,voltousemdaraperceberaninguém.”Nem uma palavra sobre despir-se. As práticas amorosas, contudo, eram

rigidamente controladas. Toda a atividade sexual extraconjugal e com outrofimquenãoaprocriaçãoeracondenada.Manobrascontraceptivasouabortivas

não eram admitidas. O casal deveria se portar com pudor, amizade,discernimento,moderaçãoesemnenhumimpulsodevolúpia.Amanifestaçãode ardor sexual era considerada, como queria são Jerônimo, uma forma deadultérioporqueconspurcavaaconjugalidade.Anoçãodedebitum,oudébitoconjugal, uma dívida ou dever que os esposos tinham que pagar quandosexualmenterequisitados,torna-selei.Associava-seoprazerexclusivamenteàejaculação, e por isso era “permitido” aosmaridos prolongaremo coito comcarícias,recorrendoatéàmasturbaçãodaparceira,afimdequeela“emitisseasemente”,justificandoafinalidadedoatosexual.Ao ser definido como uma conduta racional e regulada em oposição ao

comércioditoapaixonadodosamantes,ocomércioconjugalsóerapermitidoemtemposelocaisoportunos.Consideravam-seimprópriososdiasdejejumefestas religiosas, o tempo da menstruação, a quarentena após o parto, osperíodosdegravidezeamamentação.Sobreopapeldamulherduranteocoito,fazia-seecoaosconselhosdeAristóteles:quenenhumamulher,masnenhumamesmo, desejasse o lugar de amante de seumarido. Isso queria dizer que aesposanãodeviademonstrarnenhumconhecimentosobresexo.Somentecastaepura,elaseriadesejada.Suaingenuidadeseriaprovadesuahonradez.AsregrasdaIgrejaCatólicapareciamseescondersobacamadoscasados,

controlando tudo. Proibiam-se ao casal as práticas consideradas “contra anatureza”.Alémdasrelações“foradovasonatural”consideravam-sepecadosgraves “quaisquer tocamentos torpes” que levassem à ejaculação. Assim, seperseguiamos“preparativos”oupreliminaresaoatosexual.Aprática,bastantedifundida,apareceemtratadosdeconfissãoencarregadosdesimularodiálogoentreopecadoreopadre:“Pequeiemfazendocomalgumaspessoasnacama,pondo-lhesasmãospor lugaresdesonestoseelasamim,cuidandoe falandoemmás coisas”, diria o primeiro. “Já pagar seus pecados compenitências!”,diriaosegundo.O sexo admitido era restrito exclusivamente à procriação. Donde a

determinação de posições “certas” durante as relações sexuais. Era proibidoevitar filhos,gozandoforado“vaso”.Eraobrigatóriousaro“vasonatural”enão o traseiro. Era proibido à mulher colocar-se por cima do homem,contrariando as leis da natureza. Afinal, só os homens comandavam. Oucolocar-se de costas, comparando-se às feras e animalizando um ato quedeveria ser sagrado.Certas posições, vistas como “sujas e feias” constituíampecado venial, fazendo com que “os que usam de tal mereçam granderepreensão,porserempioresdoquebrutosanimais,quenotalatoguardamseu

modonatural”, dizia a Igreja.Outras posturas conhecidas como “à la brida”,“comocarneiropastando”ouados“malabaristas”eramilícitas.Controladooprazer,osexonocasamentoviravadébitoconjugaleobrigaçãorecíprocaentreoscônjuges.Negá-loerapecado,anãoserqueasolicitaçãofossefeitanosjámencionados dias proibidos ou se a mulher estivesse muito doente. Dor decabeça não valia. O que se procura é cercear a sexualidade, reduzindo aomínimoassituaçõesdeprazer.Estavigilânciaextrapolaoleitoconjugalespalhando-seportodaasociedade.

Condenavam-se, também, “as cantigas lascivas”, “os bailes desonestos”, “osversos torpes”, “as cartas amatórias”, a alcovitice, “as bebedices”, os“galanteios”.Essasexpressõesresgatamoburburinhodavidasocialcomseusencontros, festas, enfim, a sexualidade do cotidiano, que a Igreja precisavaregulamentar,controlardesdeonamoroàsrelaçõesconjugais.Gestosmiúdosde afeto, como o beijo, eram controlados por sua “deleitação natural esensitiva”,sendoobeijoconsiderado“pecadograveporqueé tão indecenteeperigoso”.Alémdeevitarbeijos,–ostemidos“ósculos”–,devia-seestaremguardacontraassutilezasdasmenoresexpressõesdeinteressesexualquenãoconduzissemaoqueerachamadode“coitoordenadoparaageração”.Dentrodestasrelações,quasenãohaviaespaçoparaoamorerotizadoeasmulheresseentregavamaosmaridosporamoraDeus.Tudo indica que ao final do século XVIII, alguns casais já tivessem

incorporado às ideias da Igreja. E, sobre o assunto, não foram poucos osdepoimentos. Em 1731, por exemplo, certa Inácia Maria Botelho, paulista,pareciasensívelaodiscursodaIgrejasobreaimportânciadacastidade,poissenegavaapagarodébitoconjugalaomarido.Alegandoterfeitovotosquandomoravacomsuamãee inspiradadoexemplodas freiras recolhidasemSantaTeresa,seviuestimuladaporestavirtude.Sobreoseudeverconjugal,contavaomarido,AntônioFranciscodeOliveira,aojuizeclesiásticoque,naprimeiranoite emque seacharamnacama, lhe rogaraa esposaque“adeixassecastadaquelaexecuçãoporunsdias”,poistinhafeitovotosdecastidade.Casos de desajustes conjugais devido à pouca idade da esposa não foram

raroserevelamosriscosporquepassavamasmulheresqueconcebiamaindaadolescentes. Há casos de meninas que, casadas aos 12 anos, manifestavamrepugnânciaemconsumaromatrimônio.Numdeles,omarido,emrespeitoàslágrimas e queixumes, resolvera deixar passar o tempo para não violentá-la.Escolástica Garcia, outra jovem casada aos nove anos, declarava em seuprocessodedivórcioquenuncahouvera“cópulaouajuntamentoalgum”entre

ela e seu marido, pelos maus-tratos e sevícias com que sempre tivera queconviver. E esclarecia ao juiz episcopal que “ela, autora do processo dedivórcio em questão, casou contra sua vontade, e só por temor de seusparentes”.Confessoutambémque,sendotão“tenra[...]nãoestavaemtempodecasaretercoabitaçãocomvarãoporserdemuitomenoridade”.Oscasosdecasamentoscontraídospor interesseouna infância, somadosa

outrosemqueidiossincrasiasdamulheroudomaridorevelamomauestadodomatrimônio, comprovam que as relações sexuais dentro do sacramento erambreves,desprovidasdecalorourefinamento.Cadavezmaisseevidenciaoeloentresexualidadeconjugalemecanismospurosesimplesdereprodução.MariaJacinta Vieira, por exemplo, bem ilustra a valorização da sexualidade semdesejo.Elaserecusavaacopularcomseumarido“comoanimal”.Bemlongejá se estavados excessos eróticos cometidosquandodasprimeirasvisitasdoSanto Ofício à colônia. Na Bahia do século XVI, Inês Posadas não pareciaentão muito preocupada em ter sido denunciada pelo fato de seu amante,durante o coito, retirar o membro de sua vagina para sujar-lhe a boca. Ocomportamento de Maria Jacinta ilustrava um consenso do Antigo Regime,verbalizadoporMontaigne.Aesposadeviaignorarasfebresperversasdojogoerótico.E como funcionava o matrimônio? Os casados desenvolviam, de maneira

geral, tarefas específicas.Cadaqual tinha umpapel a desempenhar frente aooutro.Osmaridosdeviamsemostrardominadores,voluntariososnoexercícioda vontade patriarcal, insensíveis e egoístas. As mulheres por sua vezapresentavam-secomofiéis,submissas,recolhidas.Suatarefamaisimportanteera a procriação. É provável que os homens tratassem suas mulheres comomáquinasdefazerfilhos,submetidasàsrelaçõessexuaismecânicasedespidasdeexpressõesdeafeto.Bastapensarnafacilidadecomqueeraminfectadaspordoenças venéreas, nos múltiplos partos, na vida arriscada de reprodutoras.Aobediênciadaesposaeralei.Com relação à população escrava, estudos comprovam a presença do

machismoedoracismo.Osgestosdiretos,alinguagemchulaeramdestinadosàsnegrasescravaseforrasoumulatas;àsbrancasreservavam-segalanteiosepalavras amorosas. Os convites diretos para a fornicação são feitospredominantementeàsnegrasepardas,fossemelasescravasouforras.Afinal,amisoginiaracistadasociedadecolonialclassificavaasmulherescomofáceis,alvos naturais de investidas sexuais, comquempodia-se ir direto ao assuntosemcausarmelindres.GilbertoFreyrechamouaatençãoparaopapel sexual

desempenhadoporessasmulheres,reproduzindooditadopopular“Brancaparacasar,mulataparafoderenegraparatrabalhar”.Degradadas e desejadas, aomesmo tempo, as negras seriam omesmo que

prostitutas, no imaginário de nossos colonos:mulheres “aptas à fornicação”,em troca de algumapaga, explicouRonaldoVainfas.Ena falta demulheresbrancas, fossempara casar ou fornicar, caberiamesmo àsmulheres de cor opapel de meretrizes de ofício ou amantes solteiras, em toda a história dacolonização. Nos séculos seguintes a degradação das índias como objetossexuais dos lusos somou-se à das mulatas, das africanas, das ladinas e dascaboclas – todas inferiorizadas por sua condição feminina, racial e servil noimagináriocolonial.Maisdesonradasqueas“solteirasdoreino”,nomequesedavaàsprostitutasportuguesas,poisaquelasmulheres,alémde“putas”,eramnegras.

Mandingas:feitiçosdeamorquecirculavamemPortugalenoBrasil.ProcessodeJoséFrancisco[1730-1736].

ARQUIVONACIONALDATORREDOTOMBO,LISBOA,PORTUGAL.

Mas nem por isso ficaram as cabrochas do trópico sem a homenagem dopoeta.No séculoXVII,Gregório deMatos dedicouvários de seus poemas acertas mulatas da Bahia, em geral prostitutas. “Córdula da minha vida,mulatinhademinhaalma”,folgavaoBocadoInferno.Opoetalouvaocorpoeosencantosdamulata,que,comoaíndiadoséculoXVI,torna-seobjetosexualdos portugueses. Mas o mesmo poeta não ousa brincar com a honra dasbrancas,asquaissódescreviaemtomcortês,aopassoqueàsnegrasd’Áfricaou às ladinas refere-se com especial desprezo: “anca de vaca”, “peitoderribado”, “horrível odre”, “vaso atroz”, “puta canalha”.À fornicaçãoe aospecados sexuaisnos trópicos,não faltarampontadasde racismoedesprezoàmulherdeorigemafricana.Não há dúvidas, por outro lado, que os afrodescendentes tivessem seus

rituais de sedução. A receita certa era extraída de falares africanos. Ummanuscrito mineiro do século XVIII reconstitui um diálogo de abordagemsexualenegociaçãoamorosa,emlínguamina-jeje:

–Uhámihimelamhi.Vamosdeitar-nos.–Nhimádomhã.Eunãovoulá.–Guidásucam.Tutensamigos(machos)?–Humdásucam.Eutenhoamigo(macho).–Nhimácóhinhínum.Euaindanãoseidosseusnegócios.–Nhitimcam.Eutenhohímen.–Sóhámádénauhe.Dêcáqueeutotirarei.–Guigéroume.Tumequeres?–Guitimasitóh.Vosmicêtemsuaamiga(mulher).–Guihinhógampèguàsuhé.Tuésmaisformosadoqueela(minhamulher).

Uma série de palavras de origem banto e iorubá com sentido eróticoengordou nosso vocabulário: xodó, que quer dizer, em banto, namorado,amante, paixão.Nozdo, amor e desejo, naborodô, fazer amor, caxuxa, termoafetuoso para mulher jovem, enxodozado, apaixonado, indumba, adultério,kukungola, jovem solteira que perdeu a virgindade, dengue, candongo ekandonga, bem querer, benzinho, amor, binga, homem chifrudo, huhádumi,venhamecomer/foder.

“Médico” desde sempre foi coisa rara e cara. Era aquele que “curava eaplicava remédios”, segundo o dicionarista Bluteau. Em Portugal, a

ciênciasedividiaemdoisramos:umerudito,exercidopormédicosformados,outro, mais prático, desempenhado por cirurgiões, barbeiros e parteiras, querealizavam sangrias, extraíam dentes e, quando possível, tratavam de ossosquebrados.Paraficarnumasimplescomparação,apenasnacidadedeLisboa,em1533,havia57médicos,70cirurgiõese46boticários.Quantosnacolônia?Só um! À 20 de abril do mesmo ano, foi nomeado pela Coroa certo JorgeFernandes,cujoordenadonãopassavade60$000réis.Pobrecolônia!Não por acaso, em 1554, o padre Anchieta escrevia do planalto de

Piratininga, aos seus superiores: “Servi de médico e barbeiro, curando esangrandoaquelesíndios.”Encontrava-seentãoojesuíta.Elemesmochegouase improvisar cirurgião: “Esfolei parte das pernas e quase todos os pés,cortando-lhes apele corrupta comuma tesoura, ficandoemcarneviva, coisalastimosa de se ver, e lavando-lhes aquela corrupção com água quente [...]sararam.”“Nossacasaéaboticadetodos”,exultava.Mas o jesuíta se enganava. Pois a competição com os feiticeiros, que se

gabavamdeteravidaeamortenasmãos,eragrande.Osíndiosseescondiampara usar seus métodos tradicionais de cura. Longe da tradição europeia desangrias e purgas para todos os males, inclusive para curar mordida decarrapato, preferiam exercer seus conhecimentos sobre a flora medicinal. ÉGabriel Soares de Souza quem conta sobre a fitoterapia indígena,conhecimentorecém-adquiridopeloscolonos:“Assim, por exemplo, as raízes do jeticuçú, usadas comopurga em todoo

Brasil e nomeadamente na Bahia, eram preparadas do seguinte modo: secortamem talhadasaindaverdes,quesãopordentroalvíssimas,e secam-nasmuitobemaosol;etomamdessastalhadasdepoisdesecas,paracadapurgaopesodedoisreaisdeprata,elançandoemvinhoouemáguamuitobempisadosedáabeberaodoentedemadrugadaefazmaravilhas.”Enãoerasóojeticuçú.Oóleodecopaíbaerasensacionalparacurarferidas,

emplastros de raiz de mandioca curavam “postemas”, o carimã, tambémextraído do tubérculo, era usado contra picadas de cobras ou para matarlombrigas.Omilhosaburrodadoemsuadouro,eem“bafos”,curava“boubas”.Oscajuserambonsparaquemsofriadefastiooudemalesdoestômago.Eo“petume”, ou erva-santa, fechava bicheiras, matando-lhes todos os vermes.

Semsocorro,oremédioeraprestaratençãonadietadestinadaacontribuirparaamelhoriadodoente.Acarnedeporcoeraconsideradamuitosadiaeoferecidaao longodoanoem lugardegalinha.Eoquedizerdobenefíciodospeixes,“muito medicinais”, como os “jaguaraçás, piraçaquens ou tucupás?”,perguntava-seAnchieta.Osremédiosvindosdoreinonãosócorriamoriscodese deteriorar durante os três meses de travessia atlântica, como, uma vezchegados, tinham suas virtudes originais alteradas em função do clima.Conclusão:melhorusarosprodutoslocais.ENieuhofcorroboravacommaisinformações:

VáriasmoléstiascomunsnaEuropasãodesconhecidasnoBrasil.Osnativosusamremédiosmuitosimpleseriem-sedenossaspoções.Sãomuitohábeisemministrarseusremédios,principalmentenoquerespeitaaantídotos.Praticamasangriasugandoatravésdeumchifresobreumaescarificaçãoousobre uma veia aberta. Em lugar de lanceta, usam o dente de certa lampreia chamada kakaon, quetodostrazemconsigo.Logoquealgumconhecidocaidoente,todossereúnemparaofereceroremédioqueaexperiêncialhesensinouserbom.Põem-se,então,afazerincisõesnaspartesmaiscarnudasdocorpo,quercomespinhodecarnaúba,quercomdentedepeixe,atéque tenhamextraídododoente,quantidadedesanguequejulguemsuficiente.Sugam,também,aferidacomaboca,pretendendoassimremover osmaus humores da região afetada. Provocam vômito introduzindo na garganta folhas decarnaúbatorcida.Quandonenhumdestesremédiosdáresultado,nãoprocuramoutros,e,sedepoisdetentarváriostratamentos,perdemaesperançadeverodoenterestabelecido,abrem-lheacabeçacomotacape,poisparaelesémuitomaisglorioso libertardessa formaopacientedeseussofrimentosquedeixá-loesperarpelamorteatéosúltimosinstantes.

Mordeduras por animais venenosos foram acidentes que reclamavamterapêuticaseficientes.NemospadresdaCompanhiaescaparamdoflagelodascobras que andavam por toda a parte, entravam pelas casas dos colonos e,também,por suasbotas.O irmãoLuísRodrigues, emcartade Ilhéus, referiuqueaovisitaruma roça foipicado:“Eracascavel,quenuncaescapanenhumqueaquelasmordem.”Deu-seentãoporperdido:“Tornei-meparacasafazendoconta de aquela noite ir ver o Nosso Criador e Senhor.” Despediu-se dosirmãosdehábito,eemtrêshorasperdeuossentidossobaaçãodefortíssimasdoresque tinhaem todoocorpo.Foi tratadocom“olicorni”,ouseja,pósdeunicórnio! Conclusão da história: “Quis nosso Senhor que escapasse.” Ummilagre!Havia acidentes e doenças. E tudo valia a pena quando se tratava de lutar

contraelas,quenãoforampoucas.EmtodaaAmérica,entreosséculosXVIeXVII, epidemias não cessaram de realizar sua “obra de extermínio”. Osarampo,avaríola,atuberculoseeasdoençasvenéreasestavamentreosmais

devastadores males. Os tumbeiros, vindos de diferentes regiões da África,transportavamhomenseseusvírus.EmboraobrigatóriadesdeoséculoXVII,aquarentenaeraburlada.Primeiroosnegócios,depoisasaúde.Ochamado“malde Luanda”, ou escorbuto, não necessariamente proveniente da África, semanifestavanas longastravessias.Aculpa,segundoocirurgiãoJoséAntônioMendes,erados“alimentoscrassosecorruptosdequeseusanamaiorpartedessa América dar-se aos negros”. Tais alimentos, como peixe, queijo,biscoitos, cebolas, açúcar, mel ou manteiga, não incluíam frutas e verdurasresponsáveispeloprovimentodevitaminaC.Enquantoquedesde1580,noMéxico,seestudavamedicinaemuniversidade

localecirculavamtextosinspiradosnafarmacopeiaenaterapêuticaindígena,entrenós,sóhaviamesmomilagresou“remédiosdeíndios”.OpioneiroasedebruçarsobreaquestãofoioflamengoGuilhermePiso,naturalistaemédicodeMaurício deNassau, que, em1648, viu ser publicado o seuDemedicinabrasiliense. Aqui, Piso coletou plantas e animais, descreveu pioneiramentedoençastropicais,estudouaterapiaindígena,examinouoefeitodosremédiosnativos, fez autópsias e dissecações, tendo ainda enviado para a Holandamaterial exótico para o acervo do “Theatrum Anatomicum” de Leyden –instituiçãoparaestudosdeanatomiarecentementecriada.

Em1694,umlivroidentificaaspestesemPernambuco.ROSA,JoãoFerreira.TratadoúnicodaconstituiçãopestilencialdePernambuco.

LISBOA:OFFICINADEMIGUELMANESCAL,1694.

Apartir do final do séculoXVII, surgiram os primeiros relatos em línguavernácula sobre os males que atingiam os habitantes, no Brasil. O médicocristão-novoSimãoPinheiroMorãopublicouem1683seuTratadoúnicodasbexigasedosarampo;JoãoFerreiradaRosafoipioneiroemdescreverafebreamarelanoseuTratadoúnicodaconstituiçãopestilencialdePernambuco,em1694; e Miguel Dias Pimenta, cirurgião-mascate, seu Notícia do que é oachaque do bicho, de 1707. Eram todos portugueses que, emigrados para acolônia, seguiram o passo de hispânicos no México ou Peru. Ou seja,entenderam que era preciso assimilar as substâncias tropicais às formaseuropeiasdevida.Nãohaviasaídasemodiálogodesabrestãodiferentes.A varíola, “corrupção pestilenta”, “peçonha” ou “bexigas” atacou desde o

século XVI, registrada que foi, com pânico, por Anchieta e Simão deVasconcellos.Eramalterrível:“Gastadaamaiorpartedaescravaria[...]tirouavida de três partes dos índios [...] estragomiserável”, clamavaVasconcellos.Teria chegado nos primeiros tumbeiros, para os engenhos de Pernambuco eSãoVicente?Tudoindicaquesim.PelomenosassimoconsideravaGuilhermePiso,queatribuíasuaorigemaAngolaouoreinodeArda.Emsuascartas,osjesuítas dizem que os primeiros variolosos chegaram à Bahia numa nau queaportouem1561,masaepidemiaatingiuseuclímaxapenasem1563,matandotrês quartos dos índios aldeados e catequizados. O padre Leonardo Valechamou a epidemia de “flagelo do Senhor” e assim a descreveu: “Umasvaríolasoubexigastãoasquerosasehediondasquenãohaviaquemaspudessesuportarcomagrandefetidezquedelassaía,eporestacausamorriammuitosao desamparo, comidos de vermes ou das chagas nasciame se engendravamem seus corpos em tanta abundância e tão grandes que causavam horror eespantoaquemasvia.“Haviamuitasmulheresprenhesquetantolhesdavaomal,queasdebilitava

deformaquebotavamacriança,ficando-lhesaspáreasdequeprocediafedorinsofrívelatéquemorriam[...]Finalmente,chegouacoisaa tantoquejánãohaviaquem fizesse covas e alguns se enterravampelosmonturos e arredoresdascasasetãomalenterradosqueostiravamosporcos.”Empânico,osíndiosfugiamdosaldeamentosparadespistaro“demônioda

varíola” e entravam nos matos onde permaneciam andando em círculos,deixandoparatrásosfamiliaresdoenteseospadres,quenãotinhamqualquerajuda para enterrar os mortos. Em 1662, a varíola dizimou tantos negros eíndiosemPernambucoquealavouracanavieiraficouestagnada.Para combater a varíola e, portanto, a mortalidade recomendava-se desde

“untar bexigas com a banha que as parteiras acham nas crianças quandonascem”ou“passarsebodosrinsdebode”nasbexigasaté“sangraraspústulase extrairosbichosgusanosque ferviamemseus corpos como formigasnumformigueiro”.Adietaalimentardosdoentessefaziaàbasedecaldodegalinhae marmelada. Arroz, farinha e feijão eram adquiridos pela Santa Casa deMisericórdiaparabexiguentospobres.Alémdisso,empregou-seadelaçãodedoentesquedeviamserisoladoscomo

medidaparaevitarcontaminação.Alarmadacomosurtodevaríolanolitoral,aCâmaradeSãoPaulo, em1666, organizouumcordão sanitáriopara isolar oplanalto com ordens para deter à bala os que tentassem rompê-lo. Certo“AgostinhoLeitão,médico licenciado, avisavaàs autoridadeshavervistoum

mulatinhovariolosoemcasadeDomingasFernandes,sendoestecondenadoatrês dias de cadeia e seismil réis demulta por haver ocultado o caso”. Em1774, emSãoPaulo, foipresa JosefaÁvilapor tratarvariolososocultamenteemcasa.O Tratado de Morão é dividido em oito partes sobre causas, “castas”,

contágio e cura das bexigas. Havia as “loucas ou brancas”, as “negrais”, as“pintas”,as“pelesdelixa”eas“deolhodepolvo”;todas,emmaioroumenorescala, resultantes de humores que em muitos casos, “cometendo a suamalignidadeaocoração,matamoenfermo”.A“peste”,ou“febrepestilencial”,atingia grandes e pequenos e era “mal que se apegava”. SegundoMorão, ocontágio não se fazia de pessoa a pessoa,mas de “parte a parte”, de local alocal, provocado, entreoutros,pelapassagemdecometasnocéu.Ode1664“fez mais os seus efeitos nesta América como estes fervores, produzindobexigas e sarampos, e nos outros reinos produziu guerras e outros efeitossemelhantes”. Os poros abertos devido ao calor dos trópicos absorviam os“ares infectos”. Ares “de manifestas qualidades, ou de qualidade malignaoculta, que por influência dos astros se movem” e que junto “às grandesmudanças de tempo” influíamdiretamente na disseminaçãodosmales.Alémdoclima,edacrençaem“falsosmédicos”,osvíciosdosbrasileirosajudavamapropagá-los.Eisporque,nosadultos,asbexigaserammaisseverasdoquenascrianças.

Contínuosbanhose excessodeexercícios atraíamadoença.Sangrar,purgar,enfiar o doente num aposento a salvo de ventos, cobrirem-no com panosvermelhos,esfregar-lhesosporosparaabrirasvesículas,lavar-lhecomáguadesalsa,aipo, funchooumarcelaeramo tratamentocorrente.Depoisvinhamas“mezinhas”,osclisteresde“caldodegalinha”,os lambedourosexaropes, asdietas alimentares. Os ingredientes? Raiz de cana torrada, “água ferrada emouro”, gordura de ganso, pós de osso, rosas secas, mingau de carimã, entreoutros.NoTratadoúnicodasbexigasedosaramposeencontra,combastanteclareza,adistinçãoentreavaríolaeosarampo.PersistiaaindanoséculoXVIImuitaconfusãoquantoàindividualizaçãodessasdoenças.Eaimportânciadolivroéadedescrever,combastanterigor,asmanifestaçõesdavaríola,fazendoanecessáriadistinçãoentreumadoençaeoutra.ParaFerreiradaRosa,tãomedonhaquantoavaríolaeraa“bicha”,oufebre

amarela.Bicha,poissefaziaanalogiadossintomasdafebrecomasresultantesdaspicadasdecobrapeçonhenta.Ovenenodeumaoudeoutraagiaemsetedias.Fazia-seurgenteum“remédiopreservativoecurativo”.“Omaldabicha

faziadesertodemuitascidades”,ouseja,traziaconsigomortalidadealtíssima,levandoconsigopacientesemédicos.Maistarde,omesmovocábulopassouadenominarasprosaicaslombrigas.

Botica:farmáciacolonial.DEBRET,Jean-Baptiste.Botica[Aquarelasobrepapel].

MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,1823.

A causa da peste que vitimou gente na Bahia e, depois, em Pernambucoseria,novamente,umfenômenoastronômico:umeclipse lunarobservadoem1685, aliado ao desembarque de barricas de carne podre, oriundas danavegaçãonegreiravindadeSãoTomé,teriamviciadoosares.Masnãoerasóculpadosastros.Ostumultosdospovos,asagitaçõessociaiseospecadosdoshomens também influíam sobre a saúde dos povos. E, segundo Ferreira daRosa, pecados como a prostituição e os concubinatos atraíam pestes. RochaPitta confirmava: dois homens depois de jantar na casa de uma prostitutamorreramem24horas!EdenadaadiantouaprocissãopelasruasdeSalvadorcomasisuda imagemdeSãoFranciscoXaviera10demaiode1686. JáemPernambuco, preferiu-se invocar são Sebastião e são Roque. Mas, a bichaignorouoraçõeseseguiumordendo...Os tratamentos variavam. Iamde ventosas de casca de abóbora ouvidro a

andar com “pomos aromáticos” feitos de âmbar ou pinho, nas mãos e no

sovaco.Osdoentes deviamestar semprebemcobertos e com roupas limpas,defumadascomlourooualecrim.Oidealeraesfregarosdentescomalho,pelamanhã.Adietaeraàbasedechicórias,docedecidraequeijoduro. Insônia?Melhortomar“infusõesdeervasdormideiras”.Andarpouco,tomarpoucosol,evitar“paixõesd’alma”,taiscomoamelancolia,oódio,atristezaouotemordamorte,comerpoucoenashorascertaseramformadeprevenção.Nadadefarturaouexageros!Quanto aos remédios, pílulas de erva-babosa, infusões demaracujá-mirim,

óleodeescorpiõeseraizdeangelicójáprovinhamdoreceituáriolocal.Dordecabeça?Bastavacolocar“pombosmortosnassolasdospés,abertosvivospeloespinhaço e aplicado seu calor”. Nos pés? Sim, junto com o ânus, elessimbolizavam as aberturas mágicas do corpo pelas quais os males eramdrenados. Milagroso mesmo e receitado de Léry a Anchieta, de Gandavo aCardim era o óleo de copaíba. Considerado adstringente, sanava contusões,impinges,quebraduras,dordedente,flatosepicadadecobra.Faziavirregraseexpulsavafebres.Conservavaamocidadeeera,emsuma,aquintamaravilhaqueFerreiradaRosaencontrounoBrasil.MasseriacertopântanoqueseachavaemOlinda,conhecidocomobarragem

doVaradouro,acausadabicha?Depoisdesolicitarumpareceraomédicoqueinocentou o poço sujo, o governador Marques de Montebelo encaminhou àCâmaraumregulamentoemnome“dos inumeráveismortosequase infinitosressuscitados” para sanear a cidade.Ele exigia a escolha de umprovedor desaúde,a instalaçãodehospitaispararecolherdoentesdos“males”,ocontroledos navios que chegassem ao porto, a limpeza obrigatória de casas, ruas epraias sob pena de multas e chicotadas, desinfecções com vinagre nosinteriores,aobrigaçãosemanaldeacenderumafogueiracomervascheirosas,aproibição demulheres saírem sós, depois das ave-marias e, como não podiafaltarnum regimedepolícia sanitária, a execuçãodeuma lista com todas asmeretrizesesua“expulsãodacidadeadezléguasdedistância”.Homenslivresou escravos que se encontrassem na companhia de tais mulheres sofreriampenadedegredo.A severidade das penas e os custos da execução do regulamento foram

suficientesparaqueoSenadodaCâmaradeOlindasenegasseaaplicá-lo!Emsuaraiz,porém,haviaumapreocupaçãocomfumigações,fogueiraseaspersõesaromáticascomoprevendoqueoproblemaestarianummosquito.Mas,comodehábito,asautoridadessepreocupavam,apenas,ementerrarosmortos.Isoladoemsualutapormelhorhigiene,sócoubeaomarquêsdeMontebelo

registrarseudesapontamento:“Queimportatodaaprecauçãoeprovidênciaemprevenira formadassepulturasdosmortos, separaosvivos (querodizer,osdoentesdomesmomal)nãohouveigualprecauçãoouprovidência?”Também sem conhecer o mosquito transmissor da febre, o governador de

São Paulo,Martim Lopes de Lobo Saldanha, na primeira metade do séculoXVIII ordenou “que se queimassem ervas perfumadas nos locais onde seencontrassemosatingidospelapesteamarela,equegrandequantidadedeboisecarneirosfossemlevadosdecambulhadaapercorrerruas,afimdecomissoatraíremparaeles,bichos,amalditafebre”.

Duelosentreavidaeamorte

Emépoca de epidemias, omédico se transfigurava, quem conta é o cronistaLuiz Edmundo: “Vestia uma couraça antisséptica, um balandrau brancoembebido emvinagre e outras drogas tremendas, na boca, umdente de alhoatravessado e, namão, sinistra e piedosa, um galhinho de arruda emais umterço em contas de jacarandá.” A assustadora figura auscultava o doentepreviamente lavadoemaguardenteedeitadosobreomelhorde sua roupadecama.O autor deNotícia do que é o achaque do bicho, diferentemente de seus

antecessores, não se apresentava como médico. Era um simples empírico e,dizem, um mascate, viajante e conhecedor do interior da capitania.Impressionado com o que era considerado uma praga – o apodrecimento dobaixo retoea infestaçãodoânuscom“bichos”,Pimentapropôs tratamentos.Osíndios já tratavamessetipodemalcomfolhasdetabacosobreasferidas.GabrielSoaresdeSouzaepadreFernãoCardimjátinhamregistradoa“doençadobichomuitocomumnas terrasquentes”.EmborapresentedoCongo–alidenominadabichosdecu–àDinamarca,eraconhecidanaHolandacomo“maldoBrasil”.Àlassidãododoente,seguidadepruridos,sucediaumaúlcera“commuita podridão”, e, depois de sucessivas e ininterruptas diarreias, “seavistavam as tripas”. E ali, confortavelmente instalados, bichinhos brancoscomiamacarnepordentrodocorpo.Resultado:câmaras,doresefebresatéamorte.Osantoremédioera,segundoPimenta,olimão.Limãoemsupositórios,limãoemlavagensou,ainda,seringascomcítricosassociadosaocozimentodefolhasdetapiá,umtipodefedegoso,assimcomoomussambê.

Andanças pelos sertões revelaram a Pimenta outro problema: a sífilis. Elededicaumcapítuloàquelesquesofriamcomo“malgálico”.Reconhecidosporteremcaspasnacabeça,mauhálito,fedornospéseaxilas,suornasmãose,emcasodemulheres,sanguemensalcheirandoapeixecru,os“galicados”tinhamquesertratadosantesquelheaparecessem“assarnas,impigenseboubas”.Oremédio era o suco das folhas da salsaparrilha, de acordo com Pimenta, tãoeficazquantoabundante,emPernambuco.No século XVIII, um cirurgião português, Luís Gomes Ferreira, se

encontrava no Brasil atuando entre Bahia e Minas Gerais. Imigrante comoPimenta, ele não veio para tratar de doentes, mas para tentar a fortuna namineração.PerdidonossertõesdeMinas,empoucotempocomeçouaexercercomo “cirurgião-barbeiro”.Mais tarde, autor de umEráriomineral, divididoemdozetratados,publicadoemLisboa,em1735,nãosócriticouacidamenteadegeneração dos remédios vindos de Portugal, como se entusiasmou com osingredientesmedicinaisda colônia.Seuuso, afirmava, era inevitável,mesmoporqueapobrezadasboticaseadistânciadoscentrosurbanoseramenormes:“Em tão remotas partes, que hoje estão povoadas nessas Minas, aonde nãochegam médicos [...] por cuja causa padecem os povos de grandesnecessidades.”Emmeio à natureza tropical, a experiência incentivava os profissionais da

áreamédicaaumagrandeliberdade,alémdealimentaracrençadequeDeusdeixaranoNovoMundoprodutosmedicinais superioresaoseuropeus.Comodizia Gomes Ferreira, existiam substâncias, “assim vegetais como raízes emineraiseanimais,aquemoNossoSenhordeuvirtudesexcelentes [...]pararemédiodemuitasenfermidades”.Amatrizde tantosconhecimentoseramosíndios,confirmavamosprópriosmédicos.Sobrearaizdobutuá,“medicamentodaterra”,empregadoeminfusãocontrafebres,eleregistrou:

Euviospaulistasfazeremmuitocasodela,trazendo-aconsigo,quesãoesteshomensmuitovistoseexperimentadosemraízes,ervas,plantas,árvoresefrutos,porandarempelossertõesanoseanos,nãose curando de suas enfermidades, senão com tais coisas, e por terem muita comunicação com oscarijós,dequemsetêmalcançadocoisasboas,comquelhessecuramdemuitasdoenças.

Saberesafricanosnãoficavamatrásdosindígenas.Nieuhoffoiumentusiastados “médicos” negros. Vistos como embusteiros e enganadores pelosmoralistas coloniais, os babalorixás dos cultos nagôs e os feiticeiroscurandeiros contribuíram para amenizar, mesmo com métodos poucoortodoxos,asagrurasdocativeiro:

Lembro-mecertavezquemeachavaemcasadeumamigoquandovientrarpelacozinhaumnegroquevinha tratardeumescravodoente,que, segundonosafirmou,havia sidovítimade feitiçaria.Ocurandeirofezodoente levantar-sedacadeirae tomandoumtiçãodefogomandouqueoescravoolambesse três vezes justamente no ponto emque as brasas brilhavam.Depois apagou o tição numavasilha d’água e esfregou nela o carvão até que ficasse negra como tinta. A seguir mandou que odoenteingerisseaáguadeumtrago.Sorvidaabeberagem,oescravosentiuimediatamenteumaligeiradornoventre.Feitoisso,ocurandeirofriccionouambososladosdopacientee,segurandocomamãoumpoucodecarneegorduraacimadoquadril,aífezcomumafaca,quetrazianobolso,umaincisãodeduaspolegadasdeprofundidadedeondeextraiuumamaçarocadecabelosetrapos.Lavouafendacom um pouco da água preta que ainda restava e, logo depois, a ferida estava fechada e o doente,curado.

Mas tanto entusiasmo em tornodas receitas locais trazia dissabores.Haviaquem não concordasse com sua eficácia e Gomes Ferreira chegou a haverdisputaverbal,nomeiodeumaruaemSabará,comoutromédico.Arazãofoio empregoque este fezde claradeovopara curar a fraturade fêmurdeumescravo,receitaportuguesae,deacordocomocirurgião,falha!Masasreceitasdonossoboticárionãoerammenos insólitas.Para curarpicadade cobra, elerecomendava beber do “próprio esterco diluído em água” ou “pólvoradesfeita”,que“saravam”.Para“mordeduradecãodanado”,lavarcomvinagreesalquente,depoisaplicarumamisturadealhos,cebolasetriagamagna.Essaúltimacostumavalevarcarnedeserpente,ópioecoral.Alémdoconhecimentodeervas,aartedamedicinarequeriaconhecimento

docotidianodoshabitantes, lembraJuniaFurtado,queestudouatrajetóriadeGomesFerreira.Eisporque,emsuasreceitas,eleacrescentavasapatosvelhos,enxofredeverrugas,águadecisterna,leitedemulherparida,fezesdecavalosoudemeninossadios,legumesdehortas,meiassujasesuadas.Umexemplo:para dor de garganta, “atar ao redor um escarpim, ou palmilha demeia bemsuada e fedorenta”.A receita teria “a aprovação de religiosos irlandeses quevivemnaCorteReal”,razãobastante,segundoele,parasuavalidade.Gomes Ferreira fez um longo e minucioso levantamento sobre plantas e

animaisúteisparaacurademoléstias tropicaiseescreveucomaintençãodedivulgarconhecimentosúteisaosmoradoresdasMinas.Dedicouseutrabalhoaos pobres e aos que “viviam nos matos faltos de notícias”. Num climadiferente, cheio de perigos, febres e violência, o seu livro era ummanual desobrevivência, lembrando aos leitores cuidados óbvios: “Não trará os pésúmidos,nemenxugarácamisanocorpo,nãocomerácoisascrassas,nemfriasouúmidas”,eporaíafora.

Semesquecerosescravos:

Advirtoqueseodoente forpreto, se lhedêboacobertura,casabemrecolhidaeocomerdeboasustância, que nisto pecammuitos senhores de escravos [...] advirto que os senhores vão ver seusescravos quando estiverem doentes e lhes façam boa assistência, porque nisto lhe darão muitaconfiança, metendo-lhes ânimo e esforço para resistirem melhor à doença [...] e assim, porconveniência como por obrigação, devem tratá-los bem em saúde e melhor nas doenças, não lhesfaltando com o necessário que desta sorte farão o que devem, serão bem servidos, terão menosdoenças,maisconveniências,experimentarãomenosperdaseterãomenoscontasquedarnodiadelas.

Em Minas atuou, igualmente, José Antônio Mendes. Seu livro, com ometiculoso título deGoverno demineirosmui necessário para os que vivemdistantes de professores, seis, oito ou dez léguas, padecendo por esta causaseus domésticos e escravos que pela dilatação dos remédios se fazemincuráveis e o mais das vezes mortais, foi publicado em Lisboa em 1770.Ofocomaiorsãoasdiversasmoléstiasenãosuascausas,assimcomoreceitasde sangrias, unguentos e ervas capazes de curá-las. Tal como os seusantecessores,elese indignava:“Há lugares tão limitadosepobresquenessesnãohámédicos,nemcirurgiões,esósimumsimplesbarbeiro,queintrépidaeatrevidamentesemeteacuraramaisexecrandamalignaqueselheoferece.”Apesardaspublicaçõesquetrazemumretratonítidodosproblemasdesaúde

na colônia, a Coroa não fazia grande coisa para saná-los. A remuneraçãooferecidapelasCâmarasmunicipaisaoscirurgiõescontratadosparacuidardospobres,necessitadosepresos,oschamadoscirurgiõesdepartido,nãoeranadaatrativa. Que o dissessem os camaristas da Vila de Santos, ao reclamar, em1736,apresença“deummédiconaquelapraçaparaaondenenhumqueriremrazãodetersócemmilréisdeordenado”.Oresultadoéquequandotinhalugaruma epidemia, as Câmaras eram obrigadas a contratá-los de formaemergencial,pagandosaláriosmuitomaisaltos.UmadascaracterísticasdasociedadecolonialdoséculoXVIIIeraacrença

de que as doenças eram uma forma de advertência ou punição enviada porDeus. Até os autores citados corroboravam essa impressão. Só o sofrimentodoscorpossalvariaasalmas.DeuseoDiabomediamsuasforçassobreocorpohumano: sadioeraabençoado.Doente,amaldiçoado.Aprópria Igrejaassistiaosdoentescomamuletoscatólicoseumainfinidadedeobjetospermeadosdepoderesmágicos.Santosesantas,invocadosnasorações,eramencarregadosdediminuir as dores. As de dente, por exemplo, eram da alçada de santaApolônia:“Deuseterno,porcujoamorsantaApolôniasofreuquelhetirassem

osdentescomtantorigorefossequeimadacomchamas,concedei-meagraçado celeste refrigério contra o incêndio dos vícios e dai-me socorro saudávelcontraadornosdentes,Amém,Jesus.”Para cicatrizar feridas, rezava-se a santo Amaro. Dores de cabeça seriam

resolvidas por santa Brígida e partos difíceis, por santa Margarida ou sãoAdrido. Operações curativas e bênçãos dadas por eclesiásticos e outrosreligiososeramaceitáveis,pois“coisadeDeus”.Jáquandoascuraseramfeitaspor benzedeiras ou curandeiras, inspiravam todo o tipo de desconfiança...Desconfiançadasautoridades.Sim, porque a população recorria a elas sem pestanejar. Aparentemente

distintadosaberdemédicosecirurgiões,amedicinaempírica,seassimpodeser chamada, usava do mesmo conhecimento fitoterápico. Apenasacompanhadodefórmulasmísticasepalavrasmágicas.Porém,utilizando-sedomesmoprocedimentoemfricções,beberagens,emplastrosedefumadourosdeplantasconhecidas.Nacolônia,onúmerodecurandeiraseraexpressivoeelasseocupavam,sobretudo,deoutrasmulheresadoentadas,cujoscorpos,porumaquestãodepudor,nãopodiamserexaminadosporhomens.Plantas como a “malícia de mulher”, sarmentosa, espinhosa e de folha

miudíssima, que fechava a corola quando tocada, foram muito usadas paraproblemasuterinos.Ogoembeguaçuserviaparaconterfluxosmensais.Osucode sua casca, ou o defumadouro de suas folhas aplicado “na parte, logoestanca”.O lírio amarelo, com sua raiz pisada, bebida commel ou aplicada,purgava a aquosidade das partes íntimas. Chifre de veado raspado erarecomendadoparaamadre,oútero,quesaíssedolugar.A farmácia doméstica contava com um uma rica variedade de espécies

cultivadas nos quintais. O alecrim era considerado poderoso contra raios eusadoparaafastarfeitiços.Folhasdefigueiratinhamqueserrespeitadas:nãopodiamserqueimadasemcasaondetivessecriançaemfasedealeitamento.Orosmaninho,osabugueiroeoalecrimcolhidosnamanhãdeSãoJoãolivravamacasadeenfermidades.OchádaarrudacolhidaemnoitedeNatalerausadoemtodasasdoenças.Picãoeerva-de-santamariacombatiamvermeseparasitasintestinais. A manjerona enxugava corrimentos, a erva-de-urubu afastavacobras e a ipecacuanha incentivou mesmo capítulos em obras europeias:remédiomilagrosoparatudo!Vários regulamentosvetavamaos leigoso exercíciodamedicina, tornando

oscurandeiros,homensemulheres,personagensperseguidos.Mas,diantedarealidadecotidiana,asprópriasautoridadesabdicavamedavamcertidõespara

que mulheres seguissem substituindo médicos que não existiam. Em MatoGrosso,MariaFernandesMaciel,quepraticavacurascomsucesso,em1798,recebeuacertidãopassadadepunhopelaJuntadoProtomedicato:

AntônioRodriguesdaRocha,cirurgião,aprovadoporSuaMajestadeFidelíssima,DelegadoRealdaRealJuntadoProtomedicato,certificoqueMariaFernandesMacielmeenviouadizerporsuapetiçãoqueelasetinhaaplicadocuriosamenteacurartumorescirrososecomonãoopodiafazersemlicençame pedia que a admitisse a exame para curar as ditas enfermidades, e saindo aprovadamandar-lhepassaracertidão,oqueassimofezemminhapresençapelosexaminadoresSerafimPintodeAraújo,oqualmecertificouqueasuplicantetinhafeitováriascurasequeforanelasfeliz.

Valelembrarqueumregimentogeraldosdelegadosejuízescomissáriosdocirurgião-morefísico-mornoEstadodoBrasilfoipromulgadoem16demaiode 1744, intensificando a fiscalização do exercício das artes de curar nacolônia.Adita JuntadoProtomedicatopassouaexercer suasatribuiçõespormeio de seus delegados, que passaram a fiscalizar a prática médica doscirurgiões, cirurgiões-barbeiros, barbeiros, sangradores, veterinários,enfermeiros,dentistaseparteiraseoensinomédicocirúrgiconoBrasil,alémdaconcessãodecartasdeexaminação,licençasdosdiversoscuradoresevistosem diplomas de faculdades médicas estrangeiras, e do controle de hospitaiscivisemilitares.Adiantou?Parainúmeraspartesdacolônia,não.AochegaraoGrão-Pará,em

1763,aTerceiraVisitaçãodoSantoOfícioàspartesdoBrasilencontrouváriasmulheres índias,mestiças e pobres que praticavam curasmágicasmesclandoelementos católicos aos ritos mágicos. A índia Domingas Gomes daRessurreição, por exemplo, aprendera a curar “quebranto” com sua senhora,umaportuguesa,usandoasseguintesfrases:“Doisolhosmaustederam,comtrês hei de curar. Jesus Cristo te livrou, Jesus Cristo te diz quem demal teolhou.”Eraexímianotratamentodeerisipela,quandocruzavaasmãossobreoenfermo, rezando ave-marias e pais-nossos. Certa Ludovina Ferreira sedestacava por desenterrar feitiços, retirar bichos de corpos enfeitiçados edescobrir a causa das doenças. Muito diferentes dos médicos? Não, pois asfronteiras entre ciência emagia eram tênues.Basta lembrar queLuisGomesFerreiraindicava,eletambém,antídotoscontrafeitiços,sobretudoopódecoxadesapoparaquemestivessemagroesejulgasseenfeitiçado.AtémesmonoRiodeJaneiro,noiníciodoséculoXIX,Jean-BaptisteDebret

representou, numa gravura, o “cirurgião negro”, capaz de tanto aplicartratamentos tradicionais como as ventosas, quanto de vender amuletos e

talismãs curativos como o cone feito de chifre de boi, “que se pendura aopescoçoparapreservardashemorroidasoudasafecçõesespasmódicas”.Adifusãodos livrosdemedicinaficavarestritaàsesparsasclasses letradas

ou às bibliotecas de conventos. A dos jesuítas no Colégio do Pará, segundoinventáriode1760,continhavintetomosdemedicina.Suaboticaerainvejável:recipientes diversos com mais de quatrocentos remédios, fornalhas,alambiques,almofarizesdemármore,ferroemarfim,armários,frascosepotesdeváriascoresetamanhos,balanças,pesos,medidas,tachosdecobre,bacias,prensasetenazes,todoumaparatoparaafabricaçãoderemédios.Remédios, aliás, que podiam se materializar em exorcismos, quando se

tratavademalefícios.Afinal,aIgrejaacreditavaqueodemônioseinserianoscorposhumanoscausando-lhesmal.E,paraextirpá-los,nãofaltaramexorcistascujosmétodosnãomuitoortodoxos foramperseguidospela Inquisição.Certofrei Luiz de Nazaré, por exemplo, atuante na Bahia na década de 1730 doséculo XVIII, justificava atitudes lascivas que tinha com mulheres doentesescudando-senasleiturasquefazia.Semprequeprocurado,opadrediziaquepara recobrar a saúde era essencial ter relações sexuais com ele. E, sério,acrescentava:queelasnãotivessemescrúpulosdetaisatos,pois“tudoaquiloquefaziaeracoisadaIgrejaequeofaziapelolivroquetinhanasmãos”.Algunsdosremédiosreceitadosporpadresexorcistasnãosediferenciavam

dosque se encontravampublicados: pombos e frangões abertos pelas costas,encostadosnoumbigoounospésdospacientes,misturasdeáguacomvinhoeaçúcarouclisteresdeágua-benta.Outrosconseguiam iralémda imaginação.Aoatenderumamulhersupostamenteenfeitiçada,freiLuizdeNazarémandou-acomprarumporcoe,depoisdeenviarosquartoseabanhaparasuadespensa,queelacozesseos“miúdos”e“osdeitassenumaencruzilhadaàsdezhorasdanoite”.Avelhacariadopadreficouconhecidacomo“acuradoporco”!Emmeioa tantasdificuldades,erapossívelsersaudável?Deacordocoma

literaturamédica, sim. Já diziamos doutores que as práticas cotidianas eramfundamentais para a conservação da saúde. Alimentar-se de acordo com os“humores” era importante. Alimentos quentes convinham aos pacientesmelancólicos, considerados frios e secos. Bebidas frias deveriam serministradasaoscoléricos,denaturezaquente.Excessoscomcomidaspesadasenão fermentadas deviam ser evitados e “nunca soltar as rédeas do apetite”,recomendavaumdoutor.A gula era pecado mortal, lembrava Nuno Marques Pereira, pregador na

colônia,ealémdeserumaenfermidadecorporaleratambémespiritual.“Muito

sal” tambémnão fazia bem. Pão, ervas e legumes compunham a dieta ideal.Moderação era a palavra de ordem, inclusive nas bebidas: chá, chocolate eaguardente. O vinho, considerado remédio, tinha que ser ingerido semexcessos.Casocontrário,provocava“acidentesepiléticos,estupores,paralisias,pleurites,entretantosmales”.Cachaça,bebidanumdedal,pelamanhã,matava“bichos”efortificava.Mas,aosetornarum“abominávelvício”,geravacríticascomoadeGomesFerreira:

Não há coisa alguma nelas que sejamais prejudicial à saúde, assim de pretos como de brancos,comoéaditaaguardenteou,poroutronome,cachaça,poisordinariamente,quandoqueremosafirmarqueumacoisanãoprestaparanada,dizemosqueéuma‘cachaça’.Estatemsidoacausademorrereminumeráveis escravos e tambémbastantesbrancos, irremediavelmente;os escravos,unsbebem tantaque, perdendo o juízo, sematam empendências; outros, bebendo-a de ordinário, adquiremdoençasgravíssimascomoasobstruçõesnasveiasecanaisdetodoocorpo,nobaço,nomesentério[...].

E,paracurara“bebedice”,oautordoEráriomineralrecomendava:“Tomemacabeçadeumcordeirocomlã,ossosedenteseumquartilhodesanguedomesmocordeiroeumamãocheiadecabelosdacabeçadequalquerhomem,eofígadodeumaenguiacomoseufel;tudojuntosemetanumapanelae[...]semetanofornoatéquetudofiquebemtorrado.”Ospóseramdadosdiariamenteaosbêbadosquesaravam.Mal também para a saúde, os “desejos de sujos e desonestos deleites”.

Luxúria ou sexo em excesso? Cuidado... Antes de matar, cegavam eenlouqueciam.

N acolônia,emboraasvidasfossemcurtas,adefiniçãodamorteeralonga.DeladiziaodicionaristaBluteau:“Seraseparaçãodaalmaedocorponocompostohumanoe

fimdavidaoucessaçãodosmovimentosdosespíritosesanguenos brutos. Pintaram os egípcios amorte em figura demoça

comarcoeflechanasmãos,olhosvendados,asasnospés,semorelhas.Moçaafizeramporquesebematodasas idadesfazestragos,principalmenteatiranamocidade [...] no véu dos olhos se vê que amorte não distingue as pessoas,masosgrandesepequenos,bonsemaus,igualmenteleva.Mostramasasasnospés a velocidade comque a todas as partes se acha tirando vidas; a falta deorelhasédemonstraçãodequenãoouveninguém,arazõesegemidosésempresurda.Entrounomundoamorteparacastigodopecado,masnãodeixadeserútil aomundo, porque, se não fora omedodamorte, seria imortal amalíciahumana.”Medodemorrer?Não.Medodenãoseprepararparaamorte.Denãoestar

prontoe,porisso,nãoacederaoparaíso.Ecomoseaparelhar?Deinícioporumadisposição testamentáriaquecontavacomodedoda Igreja:a legislaçãocanônica favorecia os legados ad pias causas. Quem dispunha de seus benssemcontemplarainstituiçãosearriscavaanãoreceberaextrema-unçãoenãoserenterradoemsolosagrado.Eomedodeseperdernaschamasdo infernofazia com que os indivíduos fizessem o possível para deixar esmolas ouencomendarmissasembenefíciodesuaalma,semprepecadora.Pararedimi-la,sederramavamdoaçõesepagamentos,óboloseespórtulas.Quemhabitava a colônia sabia amorte “coisamuito ordinária, natural aos

homens”.No dizer simplório de umdesses homens, “como ser humano, soumortalepossomorrer”,ou,noentendimentopoéticodeoutro,“somos,afinal,de finometal e por não saber damorte nemda vida [...]”.O importante era“aparelhar-se para bemmorrer enquanto são, rijo, valente e de pé”. Não seesquecendonunca,nomomentodetestar,dedizerqueseestava“comtodooseu juízo e siso e comprido entendimento com todos os seus cinco sentidosperfeitos,potências,memóriaeentendimentocorporal,queNossoSenhorteveporbemdelhedarparacomeleseregeregovernarcomoésuavontade”.DizAlcântaraMachadoqueagrandemaioriadosmoradoresdacapitaniade

São Paulo fazia testamento. Faziam-no desde indigentes como Maria Leite,“tãopobreetãocarregadadefilhos”,quepediaumacovapeloamordeDeus

noconventodeSãoFranciscoeimplorava“peloamordeDeus”queseucaixãofosse “acompanhado pelo vigário e mais três sacerdotes até a tumba daMisericórdia”, até gente muito abastada ou viajante. O bandeirante AntônioRodriguesdeMirandatestou“porestardecaminhoparaosertãobuscarmeuremédio e por sermortal e não saber a hora que hei de dar conta daminhavida”.Precavidos,também,certoPedroMadeira,“pornãosaberdamortenemdavidanestaviagemquevoufazeraosGuaianazes”,e,FranciscoRibeiro:“SeNossoSenhorfizerdemimalgumacoisanestaviagemquehorafaçoadondeDeusmeguiar.”Omotivoquelevavanossosantepassadosafazer testamentoestavasempre

declarado no proêmio dos documentos. “Temendo-me damorte e desejandoporminha alma no verdadeiro caminho da salvação” ou “considerando quãoincerta é ahoradamorte e a estreita contaquedevodar aomeuRedentor eCriador”.Tinhaosquesedeixassemmoverpor inspiraçãopiedosade“pôraalma bem com o Senhor Jesus Cristo”. Ou, como esclarecia certa IsabelSobrinha, “para concertar suas cousas de maneira que ficassem postas emordememaneiraquetodoocristãotemporobrigaçãofazer”.Debruçado sobre tais testamentos, Machado sublinhou que muitos só se

lembravam da morte quando essa se fazia lembrada. O tabelião entãoencontrava o doente “em cama, ferido a espingarda”, “doente numa rede”,“presonamãodoSenhor,muitomal,comgrandesdores”,“enfermonamãodeNossoSenhorJesusCristoenoregaçodaVirgemNossaSenhora”,“doentedeumaflechadaquelhederamostopiõesnosertãodeParacatu”.Se o achaque permitisse,mulheres recebiam o oficial, “assentadas em seu

estrado”. Nesses casos, era melhor nomear a morte por eufemismos e nãoinvocá-la com insistência: “Fazendo Nosso Senhor alguma coisa de mim”;”Quandodestemundodemisériasevaledelágrimassairàhonraereverênciasua”;”Quandoestaminhaalmadocorpoterrenodetodosair”;”Nodiadomeutranse”.Aimportânciadeestarpreparadolevouàdivulgaçãodemanuaiscomocerto

Breve aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer o cristão com arecopilaçãode testamentos e penitenciais, várias orações devotas tiradas daEscritura Sagrada, publicado em Lisboa, em 1627. O manual, aliás, nãoescondia no prólogo o seu uso: “Naquela hora de aperto os enfermos e suasalmas, quanto ao apartar da vida, as dores do corpo, a lembrança do tempopassadomalgastado,ostemoresdoJuízoeternodeDeus,avistadosDemôniose,finalmente,alembrançadaeternidadeperturbemdetalmaneiraasuapessoa

postanaqueleestadoquecomafraquezadaspotênciascorporaisficaumaalmaemgrandetribulação.”A obra tinha seis partes, num verdadeiro itinerário para que o moribundo

conseguissegarantirsuaentradanocéu:

Aprimeiraparaavisaraoenfermoquenãofezoseutestamentoqueofaça;asegundacontémumsolilóquio para lhe avivar a fé e inflamar a alma com amor divino. A terceira, perguntas de SantoAnselmo com orações muito devotas. A quarta, alfabeto de versos do Saltério de Davi. A quinta,recopilação de palavras sagradas tiradas da Escritura Santa, excelentes contra demônios. A sexta,versosdeadmirávelvirtudeinseridosnelesonomedeJesus,oqualserveparaosextopassoemqueaalmasearrancadocorpo.

Omanualcontinhaorientaçãoparaministrarossacramentos,emespecialaconfissão, alémde repreensões comas quais se censuravaomoribundo.Uminterrogatório particular era desejável no caso de se estar morrendo um“converso”oucristão-novo:parasetercertezadequenãojuraraaMaomé,nãofizera feitiçaria ou superstição, não comera carne na Quaresma ou cometerapecadonefando,nãodesejarapecarporobraoucasarcomalgumainfiel.Nãose evitavam perguntas íntimas: se o moribundo pecara com alguma mulherprometendo casar com ela e depois não satisfez a promessa. Se pecou comanimaloucontraanatureza.Sesedeleitouemverpartesdesonestassuasoudeoutras pessoas e se falou palavras censuráveis.Quais ilegítimos herdariam equaisnãoherdariam,alémderecomendarquesedeixasse“alimentos”paraosbastardos.Maisumacaridade,afinal...Aoconfessarumcondenadoàmorte,oconfessor podia fazer sugestões. Afinal, esmolas para remir cativos, casarórfãs,ajudarhospitais,repararigrejasemosteiroseramsemprebem-vindas.Eterminava consolando o doente com palavras pias e santas. A confissão eraconsiderada “um remédio”.Acreditava-se que, se corpo e alma eram um só,aliviar a alma implicava em aliviar o corpo. Seguindo-se a esta, fazia-se otestamento.As aventuras do corpo depois de morto tinham variações que ficavam

gravadas no documento. Falava-se com detalhes do enterro. Receosa de serenterradaviva,AntôniaGonçalvesrecomendavaqueseucorponãofosse“dadoà sepultura” antes de “24 horas acabadas”. Já o bem-estar da alma estariaasseguradopelonúmerodemissascantadas,“comresponsos”oucomvésperase ladainhas. Havia os que queriam pompa no enterro: “Todo oacompanhamento que for possível [...] todos os sacerdotes que na vilaestiverem[...]comabandeiradairmandadeeaceraquehouver.”Haviaosque

desejavam um enterro na mais absoluta discrição: “sem mais pompa que oreverendo vigário e sua cruz”, ou, como dizia outro, “sem pompas, mashonesto”.Tinhamoribundocujaconsciênciaempazouobolsoapertadopediaapenas“dozemissaspelasalmasdofogodopurgatório”.Apompaestavanarazão direta do acompanhamento. Quase todos gravavam no testamento umpedido:queriamdarumapassadanaMisericórdia.EmSãoPaulo,muitosqueriamdescerao túmuloemhábito franciscanoou

carmelitano, nunca sem signos da confraria a que pertencessem. EmMinas,MariaVazdaConceiçãopediuqueseucorpofosseamortalhadonumhábitodelã. IsabeldaSilva teveseucorpoenroladonumlençol.MasmuitasmulherespreferiamserenterradasvestindoohábitodeSãoFranciscoouNossaSenhorado Carmo, com predominância para o primeiro. As mortalhas eram caras eraras,eoacessoaelasera sinalde importância,mas tambémdedevoção.AnegraMariaMartinsCastanheiradeterminouqueselheenrolassenacinturaocordãodeSãoFranciscodasChagas,santoprotetordospardos.Os locais de inumação também eram criteriosamente descritos nos

testamentos:“namatrizdestavila,dopaudoarcograndeparadentro”,“diantedoaltardeNossaSenhoradoRosário”,“dasportastravessasparabaixo”,“dasgradesparadentro”.Umsecontentavacomacovaembomlugar.Outropedia“ao reverendo vigário queme enterre namatriz porque assimminha alma élembradademeusparentes”.“Nasepulturademeupai,queécomeçandodoarcazdeNossaSenhoradoRosáriodabandadoaltar”,diziaumaflitoAntôniodeBritto,em1687.Porvoltade1757,aviúvaRitaGodoySoarespediaparasersepultadanamatrizdaviladeSorocaba,eseucorpo“levadoà igrejapordoisnegrosnumarede”.

Enterrodeanjinho.FRÈRES,Thierry.Convoifunèbredenégrillons[Iconográfico].

PARIS:FIRMINDIDOTFRÈRES,1839.

Opreçodoenterrovariavadeacordocomtaislugares.Maiscaro,dentrodaigreja nas partesmais próximas do altar e elevadas.Mais barato, nas partesbaixas, no solo e adros. Anjinhos, se batizados, ficavam “dentro”. Sembatismo,nasbiqueirasdascasasoumurosdocemitério.Aimportânciadadaàsepultura,eemparticularàconservaçãodocorponotúmulo,permaneceuparaacristandadecomofatorextremamenteimportantecomvistasàRessurreição.Ousodosarcófago,oudocaixão,tradiçãoantiga,deviaestarreservadoàgenteimportante,porquestõesdehierarquiaefortuna.O testamento providenciava também o bem da alma que devia se elevar

embalada por missas, muitas missas. Podiam ser “missas cantadas comresponsos,comvésperaseladainhas,ofíciosdenoveliçõesemribadocorpo,ofícios vários com noturnos”. Sem receio de exagerar, o testamento de JoãoLeitedaSilvapedia“ummilhardemissas,repartidasportodosossacerdotesque houver”. Luiza Leme pedia 600 missas no Brasil e 400 em Portugal elegavaaoseufilho,padreJoãoLeite,escravoscujosserviçospagassemmissas.Escravostrabalhavamnãosóemvida,mas,depoisdamortedeseussenhores,também.O já conhecidoAntônioBritto ordenava que se dissessemduzentasmissas

repartidasentrea“honradeNossoSenhorJesusCristo”,“suascincochagas”,“sua sagrada morte e paixão”, “sua Santíssima reverência”, “sua Gloriosa

Ascensão”, “a Santíssima Trindade”, as “nove festas de Nossa Senhora” eassim por diante. De maneira geral, os moribundos tinham pressa. Pediamurgêncianaexecuçãodeseuspedidos insistindo:“seja logo,semdemora[...]quantomaisdepressamelhor”,“logo”.O esforço de apagar as faltas confirma que nossos antepassados temiam o

infernoecriamnaressurreiçãoda“alma”,amesmaqueNossoSenhor“remiucomseupreciososangueemorte”,aquenoúltimodiahaveriaderetornaremjuízo final e dar conta do bem e do mal que tivesse feito. Os moribundospreferiam não incomodar diretamente Deus, mas pediam intercessão deadvogados, como, por exemplo, “a Virgem Nossa Senhora e no seu santonome,eaoanjodesuaguardaeaoarcanjoSãoMigueleatodosossantosesantas da corte dos céus e as onzemil virgens e a todos os anjos, arcanjos,querubins,braços,dominações,patriarcaseprofetasquesejamemsuaajudaefavorquandoaalmadestemundoeseucorposair”mereçaver“adivinaface”.Nostestamentoslembrava-se,também,das“almasdopurgatório”,dasmais

“desamparadasesemremédio”edas“almasdaspeçasquemorreramemseuserviço”, pois se temia a volta de seus fantasmas. Aliás, nessa época nãofaltavam sufrágios e obras pias destinadas a salvar as almas, procissõesrealizadascomfinalidadedeabsolviçãodasalmasdopurgatórioeprocissõesdeossos,asquetransladavamosossosdejustiçadospublicamenteemdireçãoao cemitério pelas Misericórdias, que consumiam a maior parte da fortunadeixadanostestamentos.A crença no purgatório como local de remissão das culpas criava um rito

forçado de passagem para a elevação da alma. NasMinas, por exemplo, ascativas forras reservavam grande parte de seu espólio para a celebração demissasespecíficasparaasalmasqueseencontravamnoestágiointermediárioentreocéuea terra.Entreas inúmerasmissasdeixadasporelasdestaca-seaprecisãocomquedispôscertaTeresaFeliz:dezcelebradasnaMatrizdoSerroe vinte noArraial do Tejuco, nas igrejas doCarmo,Mercês, São Francisco,BonfimenumaltarprivilegiadodaigrejadoAmparo.Representadasempinturas,nascaixasdeesmolasàsportasdasigrejasetoda

a sorte de confrarias, as almas tinham importante papel entre as elites dosarraiaismineiros. Só para brancos?Não.A já conhecida Jacinta deSiqueira,moradoradaviladoPríncipe,nomomentodamortereafirmouaposiçãoqueconquistaraemvida.AmortalhadocomohábitodeSãoFrancisco, seucorpofoi enterrado na matriz, acompanhado da Irmandade das Almas e NossaSenhora do Rosário, a que pertencia, sendo celebrada uma missa de corpo

presente. A filiação à Irmandade das Almas, que congregava nos arraiaismineirosaseliteslocaisnaprimeirametadedoséculoXVIII,ohábitocomqueiaamortalhadaeoenterronamatrizcomtodaapompa–sinaisexterioresdehonra – mostraram que ela conseguira em vida se retirar do mundo dedesclassificaçãoqueacoreacondiçãodeescravalheimpingiraminicialmente.Emseutestamento,airmãJacintadeterminouqueseusbensfossemrepartidosentreasquatrofilhasigualmente,semproteçãoaqualquerdelas.Demonstrousermãeeavózelosa,poisnoatodocasamentodotaracadauma

dasfilhascomtrêsescravos;alémdisso,aindaemvida,deraacadaumadasnetasdoismulatinhoseparaasuabisneta,um.Quantoaosseusbensimóveis,eraproprietáriadeumafazenda,umarocinhaedacasaondemorava,alémdese dedicar à mineração de ouro e diamantes, tendo vários escravosmatriculadosna Intendência.Possuía27escravos,plantel significativoparaasociedadedaépoca.Situaçãoqueconsolidousuaentradaparaaditairmandade.Afinal,riquezanuncatevecor.Jáoscomerciantesportugueses,preocupadosemengajar-seemirmandades

que denotassem distinção social, como a do Santíssimo de Mariana, nãoadmitiammisturas.Nada de “judeus,mulatos e hereges”.Desejavam os quefossem reconhecidos como “cristãos-velhos de limpo sangue, sem rumor emcontrário”; o que não impedia a participação de cristãos-velhos oucomerciantesmenores, sendo25,8%dos filiados comerciantesquebuscavaminserir-senaelitecolonial.Asfrestasparaamobilidadesocialexistiamemtodaparte.Nas Minas, a proibição da instalação das Ordens Primeiras fez com que

florescessemasirmandadesleigas,pormeiodasquaisoshomensexpressavamsua religiosidade e eram refletidas estratificações raciais e locais. Mas ali,também, as pistas das origens se confundiam ou apagavam. Mulheres ecomerciantesmulatosenriquecidosprocuravamesqueceropassadoescravistaou apagar o estigma de mecânicos reunindo elementos que os inserisse nomundometropolitanoaoentrarnuma irmandadedebrancos livres.Omesmoocorriacomoscristãos-novosaosejuntaremaumairmandadedeelite.Porfalaremriqueza,oqueencareciaofuneraleramosmementosentoados

durante as cerimônias fúnebres – os cantos com órgãos e harpas. A missarezada custa apenas um tostão; a cantada, três mil réis. Testadores pediam“missas cantadas com responsos, com vésperas e ladainhas, ofícios de noveliçõesemribadocorpo,eofíciosváriosnoturnos”.Indicavam sempre quem iria acompanhar o corpo à sepultura: o padre-

vigário, os padres daCompanhia de Jesus ou de outras ordens religiosas, ouainda membros da confraria. Uma das funções principais das irmandadesconsistiaprecisamenteemfazeroacompanhamento fúnebredos irmãoseemdizer missas pelas suas almas. Esses dois aspectos aparecem em todos oscompromissosdestasassociaçõesreligiosas.No compromisso da irmandade de Nossa Senhora do Terço da cidade de

Salvador lê-se: “Quando falecer algum irmão serãoobrigadosaMesaemaisirmãosacompanharaquelecadáverematodeirmandade;enocasodealgunsdestesnãoteremcomqueseamortalharporcausadapobreza,selhesdaráumamortalhabrancadeesmolaporamordeDeus.”Amesmaobrigaçãotinhaairmandadeparacomfilhosdosirmãoscasados,

se estes vivessem “debaixo da sujeição e obediência de seus pais”.Emancipados, perdiam tal direito. Exceção era feita às filhas, em idadeavançadae“estadodedonzela”.Quantomaisaltaaposição,maioronúmerode sufrágios recebidos pelo irmão, que, por sua vez, deveria estar quite comsuas “promessas” e pagamentos anuais à irmandade. Um juiz recebia trintamissas. Um escrivão, vinte. Procuradores e consultores quinze, e o simplesirmão,dez.Confrarias,oumelhor,irmandadeseordensterceiras,associaçõesreligiosas

deleigosquesereuniamparalouvarumsanto,foramnevrálgicasnosritosdemorte. Elas também localizavam os lugares sociais de cada um, no seio dascoletividades. Na colônia elas erammilhares, de brancos, mulatos, pardos enegros,livres,forroseescravos.Apossibilidadedereunir-seoficialmenteemconfrarias congregadas por etnia permitiu aos negros a vivência do cultoafricano:dentrodas igrejas,veneravamossantoscatólicose, foradelas, seusorixás. Nas festas dos santos e santas das irmandades dos homens pretos epardos,astradiçõesafricanassemanifestavam.Tornaram-seumaexpressãodosincretismoreligiosodoBrasilColonial.Estasassociaçõesestãonaorigemdocandomblé e outras manifestações afro-brasileiras como o maracatu e ocongado.Aseleiçõesdosreiserainhasdairmandadeeramumaocasiãodeafirmação

da identidade cultural e também a ocasião de arrecadar as doações para osustentodaassociação.Alémdoamparoqueasirmandadesbrancasgarantiama seus associados, como assistência médica, jurídica e funeral e amparofinanceiro,as irmandadesdenegrosreservavampartedeseusrecursosparaacompradealforriadeseusmembros.Redução das diferenças num denominador comum sobre a morte? Na

aparência, sim. Era preciso impor as práticas europeias a uma populaçãomescladaemestiçada,quereunia,sobretudo,negrosdenaçõesdiferentes.Parauniformizarcomportamentosfrenteaosenterros,asirmandadesdoRosáriodacapitaniadoOuro tentavam imporaos seusconfradesa imagemdamortedaelitecatólica:

Assim que falecer algum irmão ou irmã, branco ou preto forro, ou cativo, se fará logo saber aoprocurador,ou sacristãoda irmandade,oqualavisará logoesta,não só fazendocomos sinos sinaiscostumados como tocando pelas ruas a campainha da irmandade para que os irmãos se juntem naIgrejaahorascostumadas(anoitecer)paraoenterroe, juntosquesejam,sairãotodoscomsuasopasbrancas,levandoosacristãoououtroqualquerirmãoadianteaCruzbaixaequatroirmãosatumbadairmandade, e atrás de todos, irão, o Juiz deNossa Senhora, ou outro qualquer dosmais santos quepresente se achar, com suavara e levará a suamãodireita o reverendopadre capelão e chegados àporta do irmão defunto entrará o reverendo padre capelão com licença do reverendo párocoencomendá-lo, o que feito, mandarámeter na tumba o corpo defunto, e postos os irmãos em duasfileiras com a cruz adiante, levantada, levarão o corpo até a sepultura que lhe estiver destinada emnossaigrejaouemoutraqualquerforsepultadonestavila,eoprocuradoriráregendoairmandadeparaquevácomtodaamodéstiaecomposturaqueserequeremaquelesatos, rezandopelaalmadoditodefunto.E,casoesteestejalongedavila,oirmãojuizomandaráconduzirpordoisirmãosparaparteconvenienteondeairmandadepossabuscareestalhemandarádizerporsuaalmaoitomissas,asaber,cinco que até agora a irmandade mandava dizer por cada um dos irmãos defuntos e três que airmandadeagoraacrescentae,devendoalgumacoisaàirmandade,selhedescontaráaquantiadevidanossufrágios.

Airmandadeatendiaaosafiliados,nãoosdeixandoexpostosàmortenaturaleàvoracidadedosanimais “assistindoaunse aoutrosnoartigodemorteeajudando-osabemmorrer”.Morria-sebemexpulsandoodemônioatravésdeoraçõeseinvocandooanjodaguarda,queajudavaadestacaraalmadocorpo.Nos primórdios da capitania do ouro, quando as irmandades doRosário nãohaviam ainda se retirado das igrejas matrizes para erigirem suas própriascapelas,ocativoerainumadonointeriordostemploscomolevaacreratabeladepreçospromulgadapord.ManueldaCruz,publicadanoanode1749,queestabeleciaaquantiademeiaoitavadeouropara“escravoenterradodentrodaigreja”.NoRiodeJaneiro,poroutro lado,osnegroseramenterradosempequenos

cemitérios. A alta mortalidade que caracterizaria as condições de vida daescravarialevouaaberturadecampossantosparapretosemulatos.Dataçadepráticasreligiosasnemtodosbeberamcomamesmasede.Havia

sentidos invisíveis da morte que os africanos e seus descendentes, e apenas

eles,decifravam.NãofoiporoutrarazãoqueobispovisitadorFreiAntôniodeGuadalupeobservouem1726:

Achamos que algum escravo, principalmente da Costa daMina, retém algumas relíquias de suagentilidade, fazendo ajuntamento de noite comvozes e instrumentos em sufrágio de seus falecidos,ajuntando-se em algumas vendas, onde compram várias bebidas e comidas e depois de comeremlançamosrestosnassepulturas;recomendamosaosReverendosVigáriosdesuasfreguesiasquefaçamdesterrarestesabusos,condenadosemtrêsoitavasparaaFábricaaosquereceberememsuascasaseajudaremestassuperstições.

Sim,haviaumhiatoentreosrituaisoficiaisemtornodamorteeaspráticaspopularesmestiças.Veja-seoexemplo,nacidadedoRiodeJaneiro,estudadoporAdalgisaArantesCampos.Segundoela,apranchadenúmerodozedapenade Debret, que ilustra a extrema-unção levada a um doente, exibe umdestacamentomilitaratrásdopálioeaindaapresençadeumabanda.Oqueogravador deseja mostrar é o irmão que sai com o sino para atrair os outrosconfrades.Nãoosencontrando,pedeajudade“soldadosdopostomilitarmaispróximo”. Mas se coincide que, naquele dia, “era dia de festa celebradaespecialmentecuja assistênciaé solicitada,o cortejoé acrescido solenementedabandademúsicosnegros”,oresultadonãoéumamúsicafúnebre,massonsvariados de “valsas, alamandas, lundus, gavotas, recordações de baile,militarmenteentrecortadaspelatrombetadaretaguarda,quedominatudocomumamarchacadenciada”,acrescidadecoro“entoandoaslitaniasintermináveisdaVirgem”.Nas imagens animadas pelo texto de Debret, o capelão chega à casa do

moribundoeentraparaadministrarosacramentodaextrema-unção.Porém,dolado de fora, os negros “recomeçam com todas as forças a executar suascontradanças”. O retrato minucioso feito por Kidder corrobora a mesmaimpressão:“Devemos aludir a outra espécie de funeral que atesta a existência de

costumes pagãos entre os africanos do Brasil. Os numerosos escravos dapropriedade rural do imperador têm permissão de adotar os costumes quequiserem.LogodepoisdenossamudançaparaoEngenhoVelho,tivemos,umdomingo, a atenção atraída para trás de nossa casa, por uma interminávelgritaria na rua. Olhando pela janela vimos um negro com uma bandeja demadeirasobreacabeça,naquallevavaocadáverdeumacriança,cobertocompanobrancoeenfeitadodeflores,comumramalheteatadoàmãozinha.Atrásdo negro, seguia uma multidão promíscua no meio da qual cerca de vinte

negras e numerosas crianças, quase todas adornadas com tiras de panovermelho, branco e amarelo, entoavam algum cântico etíope cujo ritmomarcavam com um trote lento e cadenciado; o que levava o corpo paravafrequentemente e girava sobre os pés como se dançasse. Entre os da frentesobressaía pela exagerada gesticulação a mãe da criança, conquanto nãopudesse, pela mímica, determinar com exatidão se eram de alegria ou detristeza os sentimentos que a empolgavam. Assim foram eles até o adro daigreja, onde entregaram o corpo ao vigário e ao sacristão. O cortejo voltouentão,cantandoedançandocommaisveemência–sepossível–quenaida.AcenaserepetiuváriasvezesduranteanossapermanêncianaquelebairrodoRiodeJaneiro.Jamaisapresenciamosemoutrolugar.”Aenormecarênciaassistencial,ainsuficiênciadaatuaçãodeautoridadeseo

teor violento da vida chamaram a atenção dos viajantes estrangeiros, dentreeles, John Luccock, que anotou, em sua estada na colônia, entre os anos de1808e1818,quandopassavapeloRecolhimentodeNossaSenhoradoParto,noRiodeJaneiro.

Pelaépocaemquecheguei, essacapela se faziacenáriodosmais abomináveisdoscostumes.Ospequeninos cadáveres dos filhos da gente pobre, envoltos em molambos, eram frequentementecolocadosnasgradesdealgumadasjanelas,alipermanecendoatéquealgumaalmacaridosasobreelesdepositasseaquantiadataxacobradaparaoenterro.Então,masnuncaantes,oshomenscujaocupaçãodeviaseracaridade,tantoparaosvivos,comoparaosmortos,carregavamodefuntoeembolsavamodinheiro.

Já Carl Seidler assistiu a um acontecimento na Misericórdia do Rio deJaneiro,entre1833e1834queochocouprofundamente:

Aoreferiressecemitérioacodem-me lembrançasquemearrepiam.Naverdade,é indiferentequeumdianossocadáver repouseaquiouali, quenoscomamos tubarõesouosvermes:omortonadapercebe.Mas a questão muda para os queridos sobreviventes: para estes deve ser horrível saber oparenteouoamigoenterradodeumaformaquecausahorroraindaaomaisindiferentepassante.Semesquife,muitasvezes semamenorpeçade roupa, emabsolutanudez, são atiradososmortosdessehospital numa cova que nem tem dois pés de profundidade.Dois negros conduzemomorto para asepultura,emumapadiolaouredepresaacompridavara,atiram-naaoburaco,comoumcãomorto,põemumpoucodeterrasoltaporcimaeentão,seporcausadapoucaprofundidadedacovaalgumaparte fica descoberta, socam-na com pesados tocos de madeira, de forma que acaba formando umhorrívelmingaudeterra,sangueeexcrementos.

Nãoeradiferentenasoutrascapitanias.Poroutro lado,nãoeramincomunsos gestos de solidariedade de membros da nação do defunto indigente, no

sentidodeconseguirosrecursosnecessáriosaosepultamentomaisbarato,“naSantaCasadeMisericórdia,ondeestetipodeinumaçãocustatrêspatacas”.Asruidosaspompasfúnebresocorriamaoanoitecer,comoeracostume,aosomdepalmase“rufarde tambores”.Ocadáverseguiadentrodeumarede“envoltoemfolhasdebananeira”,condiçãodospobresquenãoconseguiamalugarumesquife,aocustode“doisfrancos”.Naoutrapontadascomunidadesafricanas,ocorriamosenterrosdepríncipes,

comoogravadoporDebret.Nessesmomentos,mantinha-seatradiçãotribaldereverenciarantigaselitesmesmoqueescravizadaseprivadasdesuasinsígnias.Assim, “saudar respeitosamenteo soberanode sua casta”, beijar-lhe amãoepedir bênção eram atitudes que permaneciam nas práticas dos cativos. Eraquaseum funeraldeEstadoaquecompareciammembrospolíticosdeoutrasnações.Morto o soberano ou seu filho, era estendido em sua esteira, com o rosto

descobertoeabocafechadacomumlenço.Eracostumetambémcolocarumamoedanabocadomorto.Seelenãotivessepeçasdesuasvestesafricanas,omelhor artista dentre seus vassalos compensava a falta de trajes reaisdesenhandoseucorpointeironummuropróximoe“vestindo-ocomseugrandeuniforme embelezado com todas as cores”, no dizer de Debret. O povo quevinha vê-lo jogava água-benta sobre “seu corpo venerado”. O soberano eravisitado também por delegações oficiais de outras nações negras, compostaspor três dignitários: o diplomata, o porta-bandeira e o capitão da guarda.Aochegar, cada grupo nacional era apresentado por seu capitão da guarda, queabriacaminhonomeiodamultidão.Duranteumdiainteiro,doamanheceratéa noite, os vassalos do soberano ficavam em sua casa, tocando seusinstrumentos nacionais, batendo palmas juntos, num ritmo de três rápidas eduas lentas, ou duas rápidas e uma lenta, enquanto se disparavam fogos deartifício de tempos em tempos. Por fim, às seis ou sete horas da noite,organizava-seaprocissãodofuneral.Ummestredecerimôniaslideravaaprocissãoquesaíadacasadosoberano

morto e comgrandesgolpesda suabengala fazia amultidãodenegros abrircaminho. Seguindo-o vinha o homem negro que soltava os fogos e três ouquatroacrobatasquerealizavampiruetas.Depoisdessegruporuidoso,vinhaogrupo silencioso de amigos e delegações nacionais que guardavam o corpo,transportado numa rede coberta com “umpanomortuário”, comuma grandecruz. Fechava a procissão a retaguarda, que, carregando bengalas, tambémmantinhaoscuriososàdistância.Seguiamentãoparaumadasquatro igrejas:

Sé Velha, Nossa Senhora da Lampadosa, Nossa Senhora do Parto ou SãoDomingos.Duranteacerimôniana igreja,umamissaobviamente fúnebre,aspessoas do lado de fora soltavam mais fogos, batiam palmas, tocavaminstrumentosafricanosecantavamsuascançõesnacionais.Em comparação com o funeral dinâmico e colorido do filho de um rei

africano,Rugendasdátestemunhodofuneralcatólicoesóbriodeumhomemnegro. Nesse caso, somente um menino liderava a procissão, carregando aimagem de um triângulo no alto. Atrás dele vinha outro menino com ocrucifixo, seguidodedois coroinhas segurandooquepareciamser lanternas,adiante de um quinto que levava uma bandeira com uma caveira e ossoscruzados.Depois dele, caminhava o padre, de compleiçãomais clara que osnegros.Ocorpodohomemmortoeracarregadonumacaixasimplessobreosombrosdeseishomens,viúvaefilhosvinhamatrás.Duasfigurasencapuzadaslideravamorestodogrupo.Assim,nãohaviadança,nenhumamúsicaaparentenemfogosdeartifícioenadadavitalidadetumultuosatãoclaranofuneraldeumreiafricano.SegundoDebret,quandoumamulhernegramorria, seucortejo fúnebreera

compostoapenaspormulheres,excetopelomestredecerimôniaseumtocadordetambor.Emsuailustração,Debretmostraomestredecerimôniasnaportada igreja, ao lado do tocador de tambor. Estão diante de uma procissão demulheres negras de pé ao lado da rede enrolada emumpano sustentada pordois carregadores. Outras observam o funeral ou batem palmas. ConformeDebret, as mulheres moçambiques cantavam canções que eram notáveis porseusentidocristão,enquantooutraslamentavamaescravidão.Felizmente,eletranscreveuumadessascanções:“Estamoschorandopornossaparenta;nãoaveremosnuncamais;elavaiparaabaixodaterraatéodiadojuízo,láelaestaráparasempre,amém.”Seamulherfossepobre,suascolegaspassavamamanhãcarregandoocorpo

numa redeatéomuroda igrejaoupertodaportadeuma loja,ondeumaouduasmulheresmantinhamumavelaacesapertodaredeepediamesmolasparacompletarasdespesasdeseuenterro.Avisãodocorpoatraíaoscuriosos,maseram especialmente seus compatriotas que contribuíam para o sepultamento.Emboratãopobresquantoela,todosdavamalgumacoisa;nãohaviaexemplode uma “pobre moçambique” que não tivesse sido enterrada “por falta dedinheiro”.Em certo funeral que se realizou à noite na Lampadosa, o mestre de

cerimônias, com seu bastão na mão, parou a procissão diante da porta e o

tambortocouseuinstrumentoenquantoasmulheresbatiampalmasecantavamcançõesfúnebresemhonradamulhermorta.Ocorpodela,suspensoemumarede,eraacompanhadoporoitodesuasparentaseamigas,cadaumadasquaiscolocava a mão na vara da rede ao som de dois pequenos sinos. A missafúnebreeosepultamentoocorriamimediatamente.Se a igreja tivesse um local de enterro, como algumas das igrejas dos

escravos,ocorpoeracolocadoemumnichodaparede;opadreeosamigosdofalecidoborrifavamágua-bentaedepoiscalsobreocorpo.Depoisdeoraçõesemlouvordesuaalma,onichoerafechadocomtijolosecobertocomreboco.Apósdoisanos,osossoseramremovidosecolocadosemumvasodepau-rosaou mármore, ou queimados e as cinzas, preservadas. Porém, se os escravosfossempobres,essesgastoseramdispensadoseeles,enterradosemesteirasoufolhas de bananeira, em florestas das proximidades, ou na cova comum daSanta Casa. Em engenhos, não era incomum o enterro em covas perto dasfábricasdeaçúcar.Cadaqualcomsuamorte.Mortequetraziaalegrias,muitasvezes.Graçasa

ela, escravos ganhavam liberdade, bastardos eram reconhecidos, vendasextorsivas tinham a dívida reduzida, restituía-se dinheiro emprestado.Distribuíam-se patacas aos necessitados, roupas aos órfãos, dava-se algumacoisaao“maispobrehomem”oua“maisdesamparadaórfãqueseachar”.Osmoribundos se lembravam de parentes mortos, de injustiças ou atrocidadescometidas, de brutalidades cometidas contra escravos ou desafetos. Paradescarregar a consciência e evitar ir para o inferno,muitos se acusavamdasfaltas cometidas. Restituía-se até tostões, pediam-se missas para escravosmortos no eito ou índios trucidados. Outros alforriavam seus escravos “poramor” e perdoavam dívidas sabendo que a caridade era imprescindível àsalvação.Alguns recomendavamummembro da família a outros, sobretudo,quando se tratava de uma amante ou concubina: “Peço aosmeus filhos queponhamosolhosnestamulher,poisfoimulherdeseupai.”Doava-sepor amor, também.Maria JoaquinaSilvaPereira,negradaCosta

daMina, ao falecer emSalvador, deixouuma terçade terra para seumarido“em atenção ao amor, fidelidade e zelo com que sempre me tratou e a boaunião que sempre fizemos”. Distribuíam-se bens, casas, animais, utensíliosdomésticos, roupas, joias, moedas à parentela, agregados e escravos.Nomeavam-se os filhos bastardos e as concubinas, ou, no caso demulheres,seus amantes e “filhos do coito danado”. Legava-se às irmandades,incumbindo-se os padres a administrar juros de “mil réis”, para ajudar em

festasreligiosaserezarmissapelaalmadoagonizante.Mashaviaquemmorressesemternadadesi,abandonadoeamortalhadoem

lençóis doados por uma alma caridosa. Suas queixas ficavam tambémregistradas nos testamentos: Luzia de Abreu, falecida aos 93 aos, em 1793,Sorocaba, registrou que fora “vítima de uma pena demaldição” imposta porseus filhos e que nunca fora “assistida com um ovo que fosse”. Estava tãoabandonadaquesólherestouserenterradacomumlençoldealgodãodadoporsuaneta.Osqueserecusavamasubmeter-seaoritoeramconsiderados“libertinos”e

suaatitude,denunciadaaoSantoOfíciodaInquisiçãoemLisboa.Em1778,porexemplo, Antônio da Costa Serra, morador na cidade de São Paulo ecomerciante de escravos novos, foi acusado de, estando gravemente doente,recusar-se à confissão e aos sacramentos. “Respondia com despropósitos eblasfêmias.”Explicouumdenunciante que o renegado “tambémnegaque asnossasalmaspassemdestaparaoutravidaadarcontasaoseuCriadorequeDeustenhalugardestinado,queéo infernoeopurgatórioparaascastigar;eainda nega que haja céu onde alguém é premiado e glorificado emnome deDeus, antes que sejamaniquilados nestemundo”.Chocado, o cura envia umvizinho para convencê-lo a confessar; a resposta era clara.Antônio em nadaacreditava.Masum“herege”eraexceção.

Oaquieodepois

O momento que se seguia à morte, situando-se, singularmente, entre ofalecimentoeoenterro,eracruciale,emalgunsaspectos,perigoso.Eleexigiatodo um conjunto de serviços a prestar tanto ao corpo quanto à alma, jáseparadadacarne,assimcomoàcomunidade.Oscuidadoscomocorpoeramtãomaisimportantes,quandoestenãoeraconsideradoaindatotalmentemorto–sóaputrefaçãodeterminavaofim.Falava-se,pois,comomorto,preparando-oparaaviagem.Depoisdefecharosolhos,nafrentedafamília,dopadreedequantosquisessemvê-lomorrer,oindivíduoerabanhado,porumaparteiraoucurandeiraouparentepróximo;acreditava-seque, lavandoocorpo, lava-seaalma.Eleeraaindaembelezadoporumcortedecabelo,debarbaedeunha,evestidocomamortalhadesuairmandade.Guardavam-seospelosparafeitiços,emboraeste rito fossepunidocompenaspecuniárias.Emcasasdistintas, em

Pernambuco, as “choronas”, vestidas de branco e cobertas com véus negros,seguiamoenterro,gemendo.

Enterrosolene.DEBRET,Jean-Baptiste.Enterrod’umirmãodaNossaSenhoradaConceição[Aquarelasobre

papel].MUSEUCASTROMAYA,RIODEJANEIRO,1823.

Iniciava-se a vigília, com a chegada de mais parentes, membros dacomunidadeedairmandadeàluzdeumafogueiraacesanoquintal:asentinela.Mulheres, novamente, entoavam incelensas. O fogo aceso marcava,simbolicamente, a casa domorto e a presença de sua alma. Esta última eravigiada.Haviaquemavisseinstalar-senumacoruja,borboleta,bruxaououtroanimal.Todaumaestratégiacomasportasejanelaseraacionada,paradeixá-lapartir. Não sabemos se aqui, como na Europa, avisava-se aos animais deestimação:“Seudonosefoi.”Nosvelórios,circulavambebidasdefabricaçãodoméstica,oaluádemilhooudeabacaxi,ovinhodecajuoude jenipapo, acachaça com casaca de laranja, o café bem forte. As comidas eram secas,especialmente os doces tradicionais. Nada de garfo e faca. Era refeiçãofúnebre,rápida,silenciosa,contrita.Ascriançasnãodesmereciamcuidados.OobservadorDanielKidderéquem

conta:“Muitassãoasdescriçõesdeenterros,noRiodeJaneiro.Caracteriza-os

o mesmo gosto pelas exterioridades e ostentações que se nota nas outrascerimônias religiosas.Variam,porém, largamentede acordocoma idade e acondição do morto. Quando se trata de criancinha, o enterro é consideradomotivo de júbilo e organizam uma procissão triunfal. Cavalos brancos,festivamenteornamentadoscomplumasnacabeça,puxamumcocheabertonoqual vai umpadre paramentado, de cabeça descoberta, levando ao colo numataúdeabertoocorpodacriançaricamentevestidaecobertadelaçosdefitaseflores.Osportadoresdastochas,senãointeiramentedebranco,levamrendasprateadasnospaletósetocheirosbrancos.”DizaindaKidder:“Quandoofuneralédeadulto,ocontrasteéomaiorque

sepossaimaginar.Ocortejosaigeralmenteànoite.Nodiaanteriorarmamumcatafalconacasadomorto.Àportacolocamumreposteiropreto.Oscavalos,ocarro mortuário, os portadores das tochas, vão todos vestidos de negro. Ococheiro levadragonasportassobreosombros,enacabeça,um‘chapeaudebras’ com pluma ondulante. O número de tocheiros está sempre em relaçãocomodascarruagens,aoladodasquaisformamalas.Vãoemgeralmontados,eosseus longos tocheirosnegros,chamejandonaescuridão,produzemefeitoimponente.Quandooféretrochegaàigreja,étransferidoparaumpedestalaltoaquechamammausoléu,cobertodepanospretosecercadodecíriosacesos.Aífica o morto enquanto celebram as cerimônias fúnebres. O corpo é depoisenterradosobumadaslagesdemármoredequeopisodaigrejaestárepleto,ou colocado emalgumacatacumba aberta nasparedes laterais do edifício.Ocaixão usado no cortejo não é enterrado com o cadáver,mas conservado naigrejaounasededairmandade,queoalugaparataisocasiões.Quandoocorpoé colocado na catacumba, atiram cal virgem para acelerar o processo dedecomposição;depoisdemaisoumenosumanoabremnovamenteotúmuloetiramosossosparalimpá-los.Osparentesdomortomandamentãoencerrarosrestosmortaisemumaurnaquepoderáficarnaigrejaouserremovidaparaacasa.Emgeral,porém,asurnasficamnaigrejaeasfamíliaslevamaschaves;conta-se,porém,ocasodeumhomemquelevouosossosdesuamulherparaoprópriodormitório.Taisurnas sãode tamanhoe formatosvariados,mas têmaparência de féretro.Algumas sãograndes comomausoléus; outras, pela suaornamentaçãoexterna,dãoideiadecaixapararoupa.

Olugareascircunstânciasparecemaltamenteimprópriasparaexibiçãodeornamentos,entretanto,algumasdessasurnasmortuáriassãoenfeitadascombrocadosdeouroeprataaplicadossobrecetimeveludo,paraadmiraçãodosvisitantes.Quãodiferentedopomposoemagnificentecerimonialfúnebredosabastadoséoenterrodopobreescravo.Nemtocheiro,nemataúdenodiminutocortejo.Ocorpo

vaibalançandonumaredecujasextremidadessãoatadasaumlongopauapoiadoaoombrodeseuscompanheiros.Estesenterrossaempelamanhã,numandarcadenciado,osnegrosemfila,acaminhodaMisericórdia.Ocemitériodessainstituiçãoresume-seemumterrenoacanhadofechadopormuros,no qual se vê pintada de vez em quando a figura de uma cabeça de cadáver. Nesse recinto abremdiariamente uma cova de sete pés quadrados. Aí enterram em promiscuidade os corpos dos quemorremnohospitalduranteanoiteedosescravoseindigentessepultadosgratuitamente.Dessaforma,o terreno inteiro é escavado no decurso de um ano, mas, nos anos seguintes continuam o mesmoprocesso.

Nãosemrazãooscolonostemiammorrerempecado.Oinfernobarrocoeraespaçodetodoosofrimentofísicopossível.Nele,oshomensardiamemriosdelavas, tinham seus corpos invadidos por serpentes, sapos, vermes e todos osorifíciospermitiamaentradadeanimaisrepugnanteserasteiros.Comosenãobastasse, alimentavam-se, segundo o pregador Manuel Bernardes, “de umcálice de fezes”. Do alto do púlpito, nas escuras igrejas, os sermões caíamcomopedrasnascabeçasdosfiéis:“OSenhorsopraafornalhacomosedentrodela correra um rio de enxofre.”Os pecadores?Haviamde “torcer os olhos,lançar escumas, inchar as veias, denegrir-se a cara, levantar-se nos ares erefinarosgritos”.Omedodoescuro, sinônimodedesconhecido, significavasensações:“ese

sentirão rodeadosdeumaobscuridade tãobastaqueapodiampalpar comasmãos,etãomolestaquenolugarondesobreveioacadaumatéficousempoderbulir-se”; “e estando juntos em um feixe, e fechados naquelas masmorrassubterrâneas, bem se entende quão pestilencial vapor lançarão de si aquelescorposquemaissãocadáveresdoquecorposvivos”.Nãoporacaso,operfumedemorte, o da putrefação de corpos, era um odor bastante familiar para serinvocado como imagempelo pregador, pois tal “odor pestilencial” estava nointeriordaigreja,ondeosmortoseramenterradosasetepalmosdochão.“O corpo há de ir brevemente para a sepultura e ser manjar de bichos e

horror da vista”, dizia padreAfonso deAndrade: “Não sereis tratados comomeninos tenros,mimososedelicados,mas,deitadosa ferverempez,metaleenxofrederretidocomocarnedura,secaemaldita,queportodaaeternidadeháde ferverna fornalha infernal,mexendo-a tiranamentecomduríssimosgarfosdeferrooscozinheirosdoinferno,semacabarnuncajamaisdecozer-senemseapartardofogo.”Os nossos ancestrais aceitavam a morte por doença com resignação. Ela

permitiaapreparaçãodoindivíduoparaodesenlace,assimcomotomartodasasprovidênciaserealizartodasasvontades.Asmortesrepentinas,traiçoeiras,

inesperadas provocavam uma revolta silenciosa, um sentimento de nãoaceitação.Naufrágios,raios,picadasdecobras,ataquesdeíndioseassassinatosnãodavamtempoaosrituaisquepudessemgarantirumarelativatranquilidadeno além.Enchiamas casas e famílias de temor da volta dodefunto a cobrarprovidênciasoutransformadoemfantasma.Ohorrordemorrerforadareligiãoeradetalordem,queafamíliadeIsabel

Martins, moradora de Nazaré paulista, abriu processo contra o tribunaleclesiástico.Falecidademortesúbita,Isabelnãotiveratempodeconfessar-se,cumprindo sua obrigação de cristã, na época daQuaresma. Por essemotivo,seucorpo ficara“insepultoeolvidadode justiça”.Seusparentescorreramaotribunal do bispo e explicaram que ela falecera dando “mostras e sinais decontriçãoearrependimentoeinvocandoonomedeMariaeJoséeseacharamem seu pescoço contas ou verônicas”.Morrera, portanto, com as “sobreditasdemonstraçõesdecristã”.Foiperdoadadepoisdemortae, apósalgumasnoitesdoseucorpoenvolto

em mortalha ao pé da igreja, seus parentes puderam dar-lhe o condignorepouso.Crenças condenadasporheterodoxas, tais comoadeportar consigouma “hóstia consagrada, retirada da boca por ocasião daQuaresma”, tinhamporescopoprotegernocasodachegadarepentinadadamadafoice:demortessúbitas,detiros,demaussucessos,comomorrerafogadoesemconfissão.Enquantoalguémmorria,acasaseagitava,poisoutroscuidavamdovelório.

Osparentesmasculinoseramchamadosparaorganizarofuneral.Quempodiacontratavaum“armador”,para“armaracasa”,oquesignificavadecorá-lacomumagamavariadadepanosnegrosqueanunciavamo luto.Cobria-seaportade entrada. Fazia-se anunciar a morte pelo choro da carpideira ou por umacampainha que a irmandade a que pertencia o defunto mandava tocar pelasruas. As famílias abastadas mandavam avisar os amigos por “carta convite”especialmenteentreguepelosescravos.O cortejo fúnebre iniciava-se na própria casa do defunto, cujo corpo era

conduzido à igreja e daí à sepultura. Paragens no trajeto, como as que eramfeitas diante da Santa Casa deMisericórdia, para cantar responsos ou rezar,contribuíamparasacralizaroespaçoexterior,acentuandoadimensãopúblicadofuneral.Asaídadoféretroconstituíaummomentoespecialmentecelebrado.Em torno do corpo se reuniam familiares, amigos, vizinhos e todos aquelescujapresençahaviasidopedidapelodefunto,comoobjetivodeintercederempor sua alma: pobres, doentes, clérigos eram pagos ou retribuídos porparticiparemnessescortejosdeacompanhamentoàúltimamorada.

Tendosaídooenterro,apagavam-seosrastrosdamorteemcasa.Asroupasdodefuntoeasdesuacamaeramdistribuídasouqueimadas,seucolchãoourede,destruídooujogadofora.Varria-seacasacomespecialcuidadodejogarapoeirapelaportadafrente,queficariasemicerrada,impedindooretornodaalma. Jogava-se a água do último banho e enterravam-se cabelo e unhascortados em lugar previamente selecionado.Embaralhavam-se as pistas, paranãoodeixarvoltar,indicando,aomesmotempo,quenãohaviamaislugaremcasa.Depoisdamorte,onomedodefuntodeixavadeserpronunciado;guiadapor

sãoMiguel,aspiradapelalua,suaalmadeveriapassaràViaLáctea.Casonãotivesse recebido a absolvição dos pecados, ela continuava a perambular pelaterra durante três dias.Omorto poderia voltar?Na tradição portuguesa, sim.Em algumas festas – Natal, Dia de Reis, São João e Corpus Christi – elespartilhavamos restos das refeições que lhe eram deixadas nos cemitérios.Obanquete ritual foi uma prática condenada pela igreja através do cânoneLXXIX,doConcíliodeBragade572:“Nãoerapermitidolevaralimentosaotúmulodosdefuntosnemoferecersacrifíciosemsuahonra.”Aviagemparaoalémpodiaseratrapalhadaporespíritosmalignoscapazes

deestenderciladasaosmortos.Natradiçãoibérica,asoraçõespediamproteçãocontra o Diabo, “potestas aéreas”, “anjos aterrorizadores” e “príncipes dastrevas”comoseresperigososecapazesdedesviaraalmadobomcaminho.Na excursão, os bons iam para o céu, de onde traziam boas notícias e

apareciam commensagens de outrosmortos.Os danados ardiam no inferno.Parao limbo,partiamascriançasquenãoreceberambatismo.LánãoveriamDeus, nem podiam ter esperança de encontrá-Lo. As almas do purgatórioapareciamemencruzilhadas,nascruzesdeestrada,nosossuáriosecemitérios.Vivos e mortos tinham contato alimentando o folclore com histórias: a daburrinha sem cabeça, o chimbira, o vira-roupas, que assustava lavadeiras, asvisagensevisões.Acrençana“luztrêmula”davelacomomensageiradeoutromundo,recadoautênticodasalmas,seencontravadenorteasul.Estalidoseocrepitardachamaexigiamimediatosinaldacruzdequemestivesseporperto.Muitosvivosmandavamrecadosaosseusmortos,aproximando-sedoouvidodomortoedirigindo-lheapalavracomosefossepessoaviva.O morto seguia vivo no túmulo. Imóvel, mas consciente. A sepultura era

apenasumaoutraresidência,celadodormitórioondeaguardariaodespertarnoDiadoJuízo.Eisporquesuainterferêncianocotidianoerapossível,sobretudo,quando se tratava de fazer justiça, arrancando línguas de maldizentes,

realizando vinditas implacáveis, punindo mentiras. Ele voltava para punirpecados sociais, sentenciando e condenando. O morto como sombra oufantasma podia manifestar-se aos vivos de forma perturbadora e terrível,sobretudo,quandoporalgumarazão,nãopodebeneficiar-sedesepulturaederituaisfúnebres,casodemuitosescravos,suicidasenáufragos.Omortopodiatambém,pelocontrário,protegerinvisivelmenteosvivos,nomeadamenteseusparentes. E amigos que recordassem piedosamente o seu nome, e por eleoferecessem preces, sacrifícios e até esmolas; o morto assegurava aos vivosprosperidadeefecundidade,protegendo-osdosperigose inspirando-lhessuasdecisões.Quemsabe,razãopelaqualumatradiçãomedievalportuguesaerecriadano

Brasil pelos africanos teve extraordinária longevidade. Trata-se daRecomendaçãoouEncomendaçãodasAlmas,realizadasduranteaQuaresma.Soturnos cortejos deixavam, orando, seus pequenos vilarejos e caminhavamcontritosatéocemitériolocal,chegandosempreàmeia-noite,horárioemque,acreditava-se, osmortosvinhamao encontrodosvivos.Vinte equatrohorasantes, em alguns grupos se preparava a “guiné”: bebida mágica à base deaguardente,alho,raízesdaplantadomesmonomeeraspasdechifredeboiouveado.Apoção“fechavaocorpo”eprotegia,pois,foraenterradaporumtempono

“mundodebaixo”,ondeosafrodescendentesacreditavamhabitarseusmortoscom quem compartilhariam forças. Depois de ingerida, de preferência numaencruzilhada,lugarsimbólicodecomunicaçãoentreunseoutros,entoavam-secantigas oferecidas a todos os tipos de almas: as do purgatório, as dacomunidade, as dos necessitados, as dos ofendidos oumortos de picadas decobra,adospaisemães,adosmortosportiro,eassimpordiante.E os índios? Os viajantes europeus relataram as cerimônias fúnebres

realizadaslongedohomembranco.EmMinasGerais,contamSpixeMartius,eramenterradosdecócorasdentrodacabanaoumetidosdentrodeumgrandevaso.Acabanaeraabandonada,poisnãosequeriaperturbarseusono.Podiamaindasersimplesmentemetidosaochãodepoisdeembrulhadosemembirraoutecidovelhodealgodão.Ochãoerapisoteado,duasvezesaodia,aosomdeumlamentofúnebre.Porcimadacova,repousavamasarmas,alimentosecaçadomorto.Asviúvas,segundoouviramcontarosmesmosviajantes,pintavamocorpodepretoecortavamcurtososcabelos.Istojápassadosmaisde200anosdepresençaportuguesa.

N opróximovolumedeHistóriasdagentebrasileiraseguiremosacompanhando a ação do tempo e das transformações nocotidianodenossos ancestrais. Império:quantasmudanças!Eforam lentas ou aceleradas? Houve adesão ou rejeição?Ocuparam-se,lentaetrabalhosamente,asterrasaoCentroeao

Norte do país. O trabalho era, agora, compartilhado com imigrantes livres eestrangeiros: chins, espanhóis, italianos, alemães e mais portugueses. Achegadadenovasculturasesuaadaptaçãonostrópicos,aclivagemacentuadaentre campo e cidade, as transformações urbanas graças à vinda da água, dobond, da eletricidade, tudo mudou paisagens e comportamentos. Atransferência de capitais da escravaria e da terra ao comércio e depois àindústria incipiente trouxe tantas inovações! No consumo, nos instrumentosdiáriosdetrabalho,nasmodas,nainstalaçãodafamíliaburguesa,nacasacommóveis inglesesecriados,naalimentaçãoeadaptaçãodaspráticasculinárias,nosexocomotabucrescenteeaténamorteenomorrerseobservaramlentasalterações.O novo parecia ter substituído o velho. O penico deu lugar ao WC. O

telefoneeotelégrafoaceleraramascomunicações.Alentatropademulasfoisubstituídapelo tremveloz.Surgiuo jogodobicho,o iodofórmio,aemulsãode Scott, o sabonete Reuter. O presépio cedeu lugar ao Papai Noel. Osrestaurantes adotaram cardápios franceses oferecendo dîners et desserts. Asestademuitoserafeitanosbraçosdecocottes,prostitutasfrancesasepolacas.Estiloseritmosseaceleraram.Porém,otempoeramúltiploecontraditório.Seporum ladohaviapressa,poroutro, a lentidão regiao tecidodavida social.Poisgestoseritos,presentesdesdeostemposdacolônia,permaneceramvivose eram repetidos, sobretudo na intimidade, onde seguia vigorando opatriarcalismo, a violência e as relações hierárquicas. As inércias? Muitoprofundas. Entre a vida pública e a privada, a correnteza da história seguiuarrastandoospequenospersonagens,osatoresanônimos,suasações,sentidosesignificações. Aqueles mesmos que há séculos fazem o tecido da gentebrasileira.

GLOSSÁRIO

Akan:RegiãoepovodaregiãodaatualGana,naÁfrica.Alcatifas:Tapetegrandepararevestirochão.Alféola:Balafeitacommassadeaçúcaroumelaço.Alguidares:Vasosdebarrooumetal,baixos,emformadeconeinvertido.Almofarizes:Recipienteemquesetrituramehomogeneízamsubstânciassólidas,omesmoquepilão.Alvaiade:Pigmentobrancodecarbonatobásicodechumbooudeóxidodezinco.Angelus:HoradoAngelus,meio-dia.Aniagem:Panogrosseiro, semacabamento, de jutaou fibravegetal análoga, usadopara confecçãodefardos.Aperos:Oconjuntodaspeçasnecessáriasparaencilharocavalo.Arcaz:Grandearcacomgavetões,usadaemsacristias,paraguardarvesteseobjetossagrados.Arraes:Arrais,marítimocomconhecimentospráticoselocaisdenavegação.Atlântica:Atlântida,umalendáriailhaoucontinentemencionadaporPlatão.Augúrio:prognóstico,presságio,auspício,agouro.Autóctones:habitanteprimitivodeumaterra,aborígene.Bagualada:Manadadebaguais(potros).Balandrau:Antigavestimentadecapuzemangaslargas.Bandeiras:ExpediçõesparticularesaointeriordoBrasilduranteoperíodocolonial.Barriletes:Pequenobarril.Beijus:Bolodemassadetapiocaoumandioca,deorigemindígena.Belbutina:Belbutefino,istoé,tecidodealgodãoaveludado.Belchiores:Mercadoresdeobjetosvelhoseusados.Birotes:Cocó.Penteadofemininoqueconsisteemenrodilharoscabelosnoaltodacabeça;coque.Bordalês:Bordelês.OnaturalouhabitantedeBordéus,França.Bruacas:Sacooumaladecourocru,paratransportedeobjetosemercadoriassobrebestas.Bufarinheiros: Vendedor ambulante de bufarinhas, ou seja, objetos pouco valiosos, bugigangas,quinquilharias.Bulha:Gritaria,altercação,discussão,briga,desordem.Camboeiros:Aquelequeescoltaouguiacomboio.Canastras:Caixarevestidadecouro,naqualseguardamroupaseoutrosobjetos.Canedo:Canavial.

Cangalhas:Armaçãodemadeiraoudeferroemquesesustentaeequilibraacargadasbestas,metadeparaumlado,metadeparaooutro.Cantão:CidadenaChina.Carapinas:Carpinteiros.Carrapateiras:Quetratadecarrapatos.Catafalco:Estradoaltoarmadoemigreja,casamortuáriaetc.,sobreoqualsecolocaoféretro.Cepilhos:Pequenaplainaparaalisarmadeiras.Limafinaparapolirmetais.Charamelas:Antigoinstrumentodesopro,precursordaatualclarineta,detimbreestridenteeáspero,dafamíliadaflauta,dotadodepalhetasimplesqueoarfaziavibrardepoisdepercorrerumtubocilíndrico,postoemcimadocorposonorodoinstrumento.Chinchas:Éumacintafina,emcouro,usadaemconjuntocomo“travessão”,quefazpartedoconjuntode selaria de um cavalo. É colocada na barriga da montaria para ajudar a firmar o conjunto sobre oanimal.Chiripá:Vestimentasemcosturaqueconsistiaem1,5mdefazendaque,passadaporentreaspernas,erapresaàcinturaporumatiradecourooupelotirador.Choças:Habitaçãohumilde,pobre.Cipango:Um dos antigos nomes pelo qual o Japão era conhecido pelos europeus. Mencionado pelaprimeiraveznasdescriçõesdaviagemdeMarcoPolo.Coartação: Ou quartamento, consistia em um acordo pelo qual o escravo pagava ao senhor umadeterminada quantia pela sua libertação, em parcelas previamente estipuladas e dentro de um prazodefinido.Apartirdesseacordo,oescravoassumiaumaposiçãointermediária,mantendoosprivilégiosdelivre,porémsomenteassumindoplenamenteestacondiçãoapósaquitaçãodadívidacomoseusenhor.Coivara: técnica agrícola tradicional que consiste na plantação através da derrubada da mata nativa,seguidapelaqueimadavegetação.Colônia de Sacramento: Antiga colônia portuguesa fortificada na margem direita do rio da Prata.Fundadaem1680,éatualmenteumacidadedoUruguai.Cometas:Caixeiroviajante.Cono:Conjuntodaspartesgenitaisfemininas.Vulva.Córdula:CoraçãoCorsários:Umaespéciedepirataqueatacavaosnaviosinimigos,sobasordensdeumrei.Coxilhas: Campina com pequenas e contínuas elevações arredondadas, típica da planície sul-rio-grandense,emgeralcobertadepastagemeondesedesenvolveapecuária.Cunhãs:Mulheres.Daomé:AntigoreinoafricanolocalizadoondehojesesituaoBenim.Debruns:Listrasoufiletescircundantes;orla,barra,cercadura.Degredados:Aquelequesofreuapenadedegredo;desterrado.Devassas:Sindicânciasparaapurarumatocriminoso.DezTribosPerdidasdeIsrael:SerefereàstribosqueformavamoreinodeIsraeledesapareceramdosrelatosbíblicosdepoisdadestruiçãodestereino,porvoltade720a.C.,pelosassírios.Acabaramporsetornaralvodeespeculaçõessobreumapossívelsobrevivênciaousobreoseuretornofuturo.Dobres:Toquesdossinos.

Elmina:CidadeemGana,nogolfodaGuiné,nacostaocidentaldaÁfrica.Remontaaumaantigafeitoriaestabelecidapelosportugueses.Eito:Roçaondetrabalhavamosescravos.Engonços:Espéciededobradiça;gonzos.Entrudo: Folguedo carnavalesco antigo cuja principal característica era lançar uns aos outros água,farinha,tintaetc.Enxó:Instrumentoparadesbastartábuasoupequenaspeçasdemadeira.Equinocial:Quesesituaouérelativoàzonadoequador.Ermida:Capelaforadopovoado;pequenaigreja.Escambo:Troca,permuta,câmbio.Escarificações:Técnicademodificaçãocorporalqueconsisteemcortessuperficiaisnapele,produzindocicatrizesmaisoumenospronunciadas.Escolopendras:Lacraias.Espórtulas:Esmolas.Ex-votos:Quadro,imagem,inscriçãoouórgãodecera,madeiraetc.queseofereceeexpõenumaigrejaoucapelaemcomemoraçãodegraçarecebida,votooupromessacumpridos.Feitoria:Grandeestabelecimentocomercial,geralmentedasex-colôniaseuropeias.Fez(reino):AntigosultanatonoMarrocos.AcidadedeFezfoifundadaem789d.C.eestálocalizadanocentro-nortedoMarrocos.Fiacres:Antigoscarrosdepraça,puxadosporcavalos.Forros:Liberto,alforriado.Ganzás:Espéciedemaracás.Chocalhosfeitosdeumcilindrodemetalquecontémpedrasousementes.Garlopa:Instrumentodecarpinteiro,semelhanteàplaina,masmaiordoqueesta.Gentio:Aquelequeprofessaopaganismo;oindígena.Goivas:Espéciedeformãoacanelado.Guascas:Habitantedocampo;caipira,roceiro.Gaúcho.Guedelha:Cabelodesgrenhado,longo.Haragana:Diz-sedocavaloquedificilmentesedeixaagarrar.Hespéria:ReferênciaaomitogregodoJardimdasHespéridesouIlhasHespérides,ondesesupunhaqueviviamasninfasHespérides.Hortelãs:mulheresquetratamdehortas.Hostes:Exércitos,tropas.Ilharga:Cadaumadasparteslateraisinferioresdobaixo-ventre.Invernadeiro:Invernador,aquelequesededicaàengordadeanimaisparaotalho.Jarrete:Nervooutendãodapernadosquadrúpedes.Jornal:Pagamento.Salárioporumdiadetrabalho.Léguas:Medidaitineráriaantigacujovalorévariávelsegundoasépocaseospaíses.Nointeriorpaulistadenominava-seléguaadistânciapercorridaapé(caminhada)porumahora,aproximadamente2km.NoNordestebrasileirojáfoiumaunidadedemedidamuitoutilizada,queequivaliaa6km.

Lemíste:Panopretodelã.Limõesdecheiro:Pequenasbolasdecerarecheadasdeáguasperfumadas,característicasdoCarnavaldoRiodeJaneiroatéoséculoXIX.Lógea:Loja.Loros:Correiapormeiodaqualsesuspendeoestribodoselim.Malacacheta: Substância composta de lâminas finas, com brilho metálico, que constitui um doselementosfundamentaisdogranito.Mica.Mamelucos:Filhosdeíndioscombrancos.Mancebas:Moças,jovens.Maniçoba:Plantaeuforbiáceadequeseextraiborracha.Mantícora:Criaturamitológicasemelhanteàsquimeras.Marachões:Aterrooudiqueàbordadeumriodestinadoaimpedirinundações.Marimba:Instrumentodepercussãodeorigemafricanaconstituídopormetadedeumacabaçapresaaumarcodemadeira,comumfiodearameretesadoqueépercutidocomumavara.Berimbau.Marrafa:Pequenopenteornamentalusadopelassenhoras.Matalotagem:Provimentodenaviooupraça;víveres.Mazombos:IndivíduosnascidosnoBrasilfilhosdeeuropeus.Metastásio:PoetaeescritoritalianoconsideradoomaisrespeitadoeinfluentelibretistadoséculoXVIII.Missagras:Peça,geralmentemetálica,compostaporduaspartesqueligamaomesmoeixo,permitindomovimentoemportas,janelas,tampas,abasdemesa.Dobradiças.Morgado:Propriedadevinculadaouconjuntodebensvinculadosquenãosepodiaalienaroudividir,equeemgeral,pormortedopossuidor,passavaparaofilhomaisvelho.Mós:Pedraspesadaseredondasparamoinhooulagar.Mugango:Variedadedeabóbora-menina.Moranga.Mungunzá:Iguariafeitadegrãosdemilho(geralmentebrancos)cozidosemcaldoaçucarado,algumasvezescomleitedecocooudegado,aquesejuntapolvilhocomcanela.Canjica.Nédio:Luzidio,brilhante.Nhengatu:Língua indígena da família tupi-guarani modificada por influências europeias, foi durantealgumtempoeatéoséculoXIXamaisutilizadanoBrasil,tantopelosportuguesescomopelosnativos.Nidificar:Fazeroninho.Óbolos:Somainsignificantecomquesecontribui.Esmola,donativo.Obreias:Pastademassadequeéfeitaahóstiaecertosdoces.Ofir:NomedeumaregiãomencionadanaBíbliafamosaporsuariqueza.Olho-d’água:Nascentedeáguaquerebentanosolo.Opilação:Obstrução.Ouricuri:Espéciedecoqueiro.Palanquim:Espéciedeliteiratransportadanosombros.Pejadas:Grávidas.Pelote:Antigovestuáriodegrandesabas.

Pífaros:Instrumentodesoproparecidocomaflauta,porémmenoredesomagudo.Preação:Atoouefeitodeprear;prender,aprisionar.Prestamista:Pessoaqueemprestadinheiroajuros.Propiciatórios:VasosagradoemqueseoferecemsacrifíciosaDeus.Púcaros:Pequenovasocomasaparabeberáguaouparaextrairlíquidosdeoutrosvasosmaiores.Recamadilho:Bordadoouornatoemrelevo,sobretecido.Redingote:Vestuáriomasculinolargoecompridocomaspeçasdafrenteinteiriças;sobrecasaca.Reiúno:AnimalsemdonoouquepertenceaoEstado.Rentistas:Queouquemvivederendas.Reses:Cabeçasdegado.Salutífera:Saudável.SãoBoaventura:FoiumteólogoefilósofoescolásticomedievalnascidonaItálianoséculoXIII.São Tomás:Tomás de Aquino, importante teólogo, filósofo e padre dominicano do século XIII. Foideclarado santo pelo papa João XXII em 18 de julho de 1323. É considerado um dos principaisrepresentantesdaescolástica(linhafilosóficamedievaldebasecristã).Foiofundadordaescolatomistadefilosofiaeteologia.Saragoça:Tecidogrosseirodelãpreta.Sirgueiros:Omesmoqueserigueiro.Pessoaquefabricaouvendefios,tecidosouobrasdeseda.Soca:Asegundaproduçãodacana,depoisdecortadaaprimeira.Sodomitas:Queouquempraticaasodomia;designaçãodadaaoshomossexuais.Somitígo:Queouquemémuitoapegadoaodinheiroouabensmateriais;Avarento.Sóror:Tratamentoquesedáàsfreiras.Sotainas:Batinasdeeclesiásticos.Súcubose íncubos:Demôniosqueassumemaparência femininaoumasculina, respectivamente, equeinvademosonhodoshomensedasmulheresafimdeterumarelaçãosexualcomelesparalhesroubaraenergiavital.Tabardos:Capotecomcapuzemangas.Tabatinga:Variedadedeargilabrancaouamarela.Tambuladeiras:Pequenastaçassempé,feitasnormalmenteempratapolidaounummetalclarocomooestanhopolidooutambém,emalgumascircunstâncias,emouro.Tapuias:Antigadesignaçãodadapelostupisaosgentiosinimigos.Índios.Tigres:Barril onde se transportavam, para despejo, matérias fecais. Também servia para designar oscriadosouescravosquefaziamessetransporte.Trapiches:Armazéns onde se guardam mercadorias para embarque, junto ao cais. Também designapequenosengenhosdecana-de-açúcarmovidosporanimais.Tresmalhos:Rededepescademalhalargaaqueandaunidaoutrademalhamiúda.Tutameia:Quasenada;preçovil;poucodinheiro.Urcas:EmbarcaçõesportuguesasdoséculoXVIIdedoisoutrêsmastros,develasredondasoulatinas,comumgrandeporãoparaotransportedecargaequepassou,comotempo,asechamarcharrua.Uxoricidas:Aquelesqueassassinamsuasmulheres.

Vêrga:Varaflexíveledelgada.Zungús:Cortiços.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

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EstelivrofoieditadonacidadedeSãoSebastiãodoRiodeJaneironoverãode2016.

ÍndiceCAPAFichaTécnicaPREFÁCIOPARTE1‒TERRAETRABALHO1.“AOCABODOMUNDO”:NOINÍCIOERAOCÉUEATERRA2.ATERRADOLENHODODIABO3.MEDO,SEMPRE...4.ÍNDIOSNOCOTIDIANODEBRANCOS5.ACANANOSSADECADADIA6.MULHERESDEAÇÚCAR7.COMPRASEVENDASDARUAAOSOBRADO8.ARTESEOFÍCIOSDOOURO9.OSHOMENSDOCAMINHO10.ENTREASCIDADESEOSSERTÕES:ROÇAS11.COMPANHEIROSDODIAADIA12.ALUTADAGENTECONTRAOSMALESDESEMPRE13.CIDADESMESTIÇAS14.EALÉMDOTRABALHO?

PARTE2‒OSUPÉRFLUOEOORDINÁRIO:casa,comidaeroupalavada1.DOTETOÀCASADEMORADA2.“PODEENTRAR...”3.EUMELAVO,TUTECOBRES,NÓSSUJAMOS:CATINGAE

LIMPEZA4.NOFOGÃOALENHA:PALADAREALIMENTAÇÃO5.“COMIDADEESCRAVO”ECULINÁRIAAFRICANA6.PARAMATARASEDE7.NATERRADOAÇÚCAR:DOCES!8.COBERTOEDESCOBERTO9.BELASOUFERAS?10.OSUPÉRFLUOEONECESSÁRIO

PARTE3‒RITMOSDAVIDA:nascimento,adolescência,uniões,doençaemorte1.OSVERDESANOS:TEMPODENASCERECRESCER2.ADOLESCÊNCIA:EXISTIA?

3.TEMPODEUNIR-SE,TEMPODEFAMÍLIA4.TEMPODETODOSOSDESEJOS5.CORPODOENTEECORPOSADIO6.TEMPODOSMORTOSEDEMORRERASHISTÓRIASCONTINUAM

GLOSSÁRIOREFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS