Do Direito à Política: a Gênese da Jurisdição Constitucional Norte-Americana.

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Do Direito à Política: a Gênese da Jurisdição Constitucional Norte-Americana. Christian Edward Cyril Lynch 1 Publicado em: Revista de Ciências Sociais (UGF), v. 20, p. 15-40, 2010. Resumo: O objetivo do artigo é o de reexaminar a gênese da jurisdição constitucional norte-americana e reavaliar as relações entre direito e política à luz da recente literatura de história das idéias políticas naquele país, resgatando o peso da cultura política inglesa e da tradição colonial de pluralismo religioso. Essas duas heranças refletir-se-ão num conceito defensivo de soberania do povo, que levará à proposta federalista de organizar as novas instituições políticas a partir da fragmentação vertical e horizontal do poder. No intuito de eliminar a discricionariedade inerente ao conceito de soberania, os fundadores da república atribuirão ao senado uma função moderadora que, a longo prazo, ele se revelará incapaz de exercer. È nesse quadro que, primeiro de modo tímido, depois ostensivo, surge a Suprema Corte como verdadeiro poder moderador da Constituição de 1787. Palavras-chave: Estados Unidos, Constituição, Inglaterra, jurisdição constitucional, Suprema Corte, Poder Moderador. Introdução 1 O autor é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); professor do Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF); professor da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-RIO) e do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF). 1

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Do Direito à Política: a Gênese da Jurisdição

Constitucional Norte-Americana.

Christian Edward Cyril Lynch1

Publicado em: Revista de Ciências Sociais (UGF), v. 20, p. 15-40, 2010.

Resumo: O objetivo do artigo é o de reexaminar a gênese dajurisdição constitucional norte-americana e reavaliar asrelações entre direito e política à luz da recente literaturade história das idéias políticas naquele país, resgatando opeso da cultura política inglesa e da tradição colonial depluralismo religioso. Essas duas heranças refletir-se-ão numconceito defensivo de soberania do povo, que levará à propostafederalista de organizar as novas instituições políticas apartir da fragmentação vertical e horizontal do poder. Nointuito de eliminar a discricionariedade inerente ao conceitode soberania, os fundadores da república atribuirão ao senadouma função moderadora que, a longo prazo, ele se revelaráincapaz de exercer. È nesse quadro que, primeiro de modotímido, depois ostensivo, surge a Suprema Corte comoverdadeiro poder moderador da Constituição de 1787.

Palavras-chave: Estados Unidos, Constituição, Inglaterra,jurisdição constitucional, Suprema Corte, Poder Moderador.

Introdução

1 O autor é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário dePesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF); professor da Escolade Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro(UNI-RIO) e do Departamento de Direito Público da Universidade FederalFluminense (UFF).

1

Um dos mais fascinantes temas da teoria política é aquele

referente às relações entre os conceitos de soberania popular

e de constitucionalismo que, ao oporem a toda potência

igualitária da massa à proclamada limitação do poder político

em nome da liberdade, conformam uma das mais importantes

antíteses constitutivas da democrática liberal (ARON,

1997:70). Entretanto, os estudos políticos que abordam o

problema daquela antítese conceitual, quando da passagem para

a modernidade política, geralmente se limitam a explicá-la

pela contraposição algo chã e reducionista das teorias liberais

de Locke às democráticas de Rousseau. Essa insistência de uma

análise puramente filosófica e autoral, em detrimento de um

complemento histórico e contextual, deixa de lado uma série de

outros aspectos, concernentes às formas empíricas, concretas,

institucionais, por que aquela antiga oposição foi ou não

resolvida no mundo político real, e consequentemente as

aporias e tensões daí decorrentes. Por isso, alguns estudos

contemporâneos têm preferido se debruçar mais detidamente no

estudo das diferentes soluções e experiências de governo

constitucional e representativo que foram ensaiadas quando da

saída do Antigo Regime, começando pela Inglaterra, pelos

Estados Unidos e pela França, e depois pelo restante da Europa

e da América Ibérica (1789-1848). Em todos os casos até agora

examinados, os resultados têm sido reveladores da complexidade

da transição, em cada realidade nacional, do Antigo Regime

para o Estado democrático liberal, pois ajudam a desvelar as

variadas formas por que transigiram a dimensão especificamente

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política do conceito de soberania com o elemento

caracteristicamente jurídico do conceito de Constituição.

E é justamente nesse espaço intermediário entre soberania

e constituição, como reflexo das aporias e tensões decorrentes

dos esforços de conjugação dos dois conceitos, que deve ser

compreendido o tema momentoso do controle da

constitucionalidade. Por conta da emergência visível do papel

político do Poder Judiciário - fenômeno conhecido como o de

judicialização da política, ou por politização da justiça –, o tema do

controle da constitucionalidade deixou de ser considerado um

tópico estritamente jurídico, confiado à competência dos

juristas e afins, para adentrar triunfantemente na seara das

ciências sociais. Foram justamente esses estudos mais

recentes, resultantes da relativização da abordagem filosófica

pela introdução dos elementos históricos e contextuais, que

permitiram essa avocatória no plano específico da teoria

política, onde o controle da constitucionalidade tem sido

visto tradicionalmente como um assunto secundário; mera

técnica liberal de limitação da soberania popular. Assim, por

exemplo, o exame detalhado efetuado nos anais parlamentares da

Revolução francesa por Marcel Gauchet (GAUCHET, 1995) permitiu

entrever que o tema do controle da constitucionalidade já

tinha lugar no continente europeu no decorrer do século XVIII;

do mesmo modo, procurei demonstrar, em minha tese de

doutorado, que ele se desenvolveu da reflexão republicana

clássica da necessidade de se conciliarem as exigências de um

governo virtuoso regido por leis impessoais, de um lado, e a

de se admitir, excepcionalmente, um poder discricionário que

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pudesse excepcionalmente suspender a legalidade. Essa nova

abordagem me levou a crer, assim, que o controle de

constitucionalidade emergiu do debate político do século XVIII

como uma instituição destinada a legalizar a manifestação da

potência absoluta da soberania, quando circunstâncias

extraordinárias pusessem em perigo a existência da

constituição política do Estado, entendida como expressão

primeira da vontade política de uma comunidade de viver de

modo autônomo.

Naturalmente, a diversidade de panos de fundo ideológicos

e contextuais levou à conformação de tipos distintos de

controle da constitucionalidade. Desenvolvendo argumentações

explicitamente políticas em torno do conceito de soberania e

da necessidade de estabilização do novo governo constitucional

e representativo, no torvelinho da Revolução, os franceses

chegariam à elaboração de uma fina teoria de um controle

estrutural da constitucionalidade. A ele, dar-se-ia o nome de

poder moderador, neutro ou preservador, a ser exercido por um chefe de

Estado imparcial, desvinculado da atividade governativa, com o

fim de preservar o equilíbrio político entre os poderes e,

conseqüentemente, a Constituição em que se plasmava a nova

forma democrática e liberal. Já os norte-americanos, na

esteira da tradição judiciarista britânica, crédulos da

estabilidade política de suas novas instituições, elaboraram

um controle normativo da constitucionalidade, na forma de uma

jurisdição constitucional destinada a circunscrever os

excessos da política, decorrentes do entrechoque dos poderes

soberanos do povo – executivo e legislativo -, dentro de um

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círculo supostamente metapolítico do direito, resguardado pelo

poder judiciário. A ele, dariam o nome de revisão judicial ou

jurisdição constitucional. O poder moderador seria destinado a uma

atuação mais episódica contra os conflitos de natureza e

institucional que ameaçassem as estruturas políticas da

constituição do Estado; a jurisdição constitucional, por sua

vez, era encarregada de preservar a integridade normativa da

Constituição. A mesma função moderadora, portanto, exercida

com diferenças de graus: preservar o Estado liberal desenhado

no documento político que era expressão da vontade soberana: a

Constituição. Isso significa que, ao contrário do que

geralmente se sustenta, o estado de exceção e o controle

normativo da constitucionalidade não são institutos

adversários, mas afins; além disso, a reflexão permite

resolver o lugar do poder moderador na teoria política ou do

Estado, entendido ele como instituição intermediária entre

ambos, na forma de um controle estrutural da

constitucionalidade.

Dando seqüência a essas reflexões, a que voltarei mais

adiante, procederei, neste artigo, a um primeiro reexamine da

gênese e do desenvolvimento da jurisdição constitucional

norte-americana durante o século XIX, de forma a contrapô-los

à gênese e ao desenvolvimento do poder moderado, ocorridos na

França durante o mesmo período – exercício este a que dediquei

em minha tese de doutorado. Este artigo pretende, portanto,

revisitar o tema da gênese da jurisdição constitucional nos

EUA para reforçar o argumento de que o controle normativo de

constitucionalidade pode ser compreendido dentro de uma teoria

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mais ampla que versa sobre o problema do poder discricionário

decorrente do conceito de soberania na formação do Estado

constitucional liberal, entendido aqui como Estado de direito.

Guardando fidelidade à teoria política que me guiou quando

desta última empreitada, reitero minha filiação, no que toca à

forma teórica de se pensar o político, ao espírito da escola

francesa contemporânea, “aroniana”, a que pertencem François

Furet, Claude Lefort, Pierre Rosanvallon e Marcel Gauchet.

Para eles, o fenômeno político deve ser compreendido, na

encruzilhada da filosofia e da história, a partir de uma

interrogação tanto “sobre a origem do poder e sobre as

condições de sua legitimidade; sobre a relação mando -

obediência em toda a extensão da sociedade”, como também

“sobre a religião, sobre os fins respectivos do indivíduo e do

corpo social” (LEFORT, 1991:11). Do ponto de vista da análise

histórica, por sua vez, tentarei me amparar em autores

anglófonos como Gordon Wood, Bernard Baylin, Isaac Kramnick e

John Pocock, que renovaram nas últimas décadas o estudo da

história das idéias políticas norte-americanas no período em

tela em obras como: A Criação da República Americana, As Origens

Ideológicas da Revolução Americana e O Momento Maquiaveliano. Esses

conseguiram abrir uma via intermediária refinada, de gosto

contextual e lingüístico, num debate então esterilizado na

contenda entre os analistas marxistas, para quem a revolução

americana fora elitista e conservadora (PARENTI, 1986:237), e

os estudiosos de expressão liberal e ufanista, para quem

eventos de 1776-1787 teriam constituído, ao contrário, “uma

revolução sem paralelo nos anais da história humana” (MASON,

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1978 23). Como se percebe, trata-se se uma abordagem

histórica e política e não sociológica, puramente filosófica

ou jurídica. Embora verse sobre temas como o da judicialização

da política e a teoria da decisão judicial, o objeto do

controle normativo da constitucionalidade é tratado aqui

exclusivamente a partir da história das idéias políticas e,

portanto, de forma externa ao debate travado, seja no campo da

sociologia do direito, seja no campo da filosofia do direito.

Nestes termos, buscarei desenvolver o argumento de que o

retorno ao ambiente intelectual do período, por intermédio

desses autores, permite compreender a jurisdição

constitucional a partir do débito das instituições norte-

americanas com uma cultura inglesa de precedência do direito

sobre a política e uma tradição colonial de pluralismo

religioso. Essas duas heranças levaram os norte-americanos a

organizar a sociedade política a partir de uma fragmentação do

poder político, não apenas horizontal, pela divisão em

executivo, legislativo e judiciário, mas também vertical, pela

divisão estabelecida entre União e Estados. O resultado foi a

forja de um conceito defensivo de soberania do povo, sem

ênfase na sua unidade ou potência, reservada apenas para o

caso de usurpação do governo por outrem - bastante distinto,

portanto, daquele vigente na Europa continental e, em

particular, daquele consagrado no curso da Revolução Francesa.

No intento de garantir o equilíbrio das diversas partes

componentes, os fundadores da república recorreram à tradição

polibiana do governo misto renovada por Montesquieu para

incumbir o senado de exercer uma função moderadora dessa

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complexa estrutura constitucional – tarefa que, a longo prazo,

ele se revelará, entretanto, incapaz de exercer. È nesse

quadro que, primeiro de modo tímido, depois de forma

ostensiva, enfrentando resistências de toda a ordem,

paulatinamente a Suprema Corte se afirmará como o verdadeiro

poder moderador da Constituição de 1787, no exercício do

controle normativo da constitucionalidade. Depois de examinar

os pareceres dos constitucionalistas americanos do século

dezenove e a forma radicalmente diversa como a jurisdição

constitucional passou a ser percebida cerca de cem anos

depois, o artigo conclui retomando o tema do direito e da

política, representativos das tensões entre o liberalismo e a

democracia.

1. Da jurisdição constitucional como tipo normativo do

controle da constitucionalidade.

No âmbito da teoria política, o tema do controle de

constitucionalidade está umbilicalmente ligado à tensão

constitutiva da organização do Estado moderno como entidade

política. Esta tensão deriva das oposições entre duas idéias-

força em torno dos quais ele foi estruturado, o de soberania

absoluta e o de governo legalmente limitado, nas suas formas

historicamente sucessivas –, soberania monárquica, depois

nacional ou popular, e o de governo misto, depois governo

constitucional representativo ou Estado de direito. A primeira

idéia, encerrada no conceito de soberania, pressupõe a

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existência de um poder uno, indivisível e absoluto, isto é,

discricionário, reunido para preservar a ordem e da segurança

da comunidade por quem detém legitimamente o direito de

governar. Já a segunda idéia, encerrada no conceito de governo

limitado por leis, exprime a divisão eqüitativa do poder entre

as forças da comunidade e sua limitação por leis que assegurem

sua perpetuidade e a liberdade ou autonomia das corporações ou

dos indivíduos que a compõem. Esses princípios antagônicos

começaram a ser conciliados pela doutrina ou teoria do poder

constituinte, para a qual só uma constituição fixada pela vontade

do soberano é legítima a organização institucional e a

limitação do político. Ou seja, que a soberania só é exercida

em sua plenitude no momento constituinte, deixando de ser

ordinariamente exercido quando da entrada em vigência da

constituição que deverá orientar o Estado de direito ou o

governo constitucional. Disse ordinariamente, porque a

manifestação da potência soberana não desapareceu de todo,

depois do advento da ordem constitucional; ela foi canalizada

por três institutos encarregados pela própria constituição de

regular o seu emprego quando nas hipóteses de razão de Estado,

isto é, ocasiões mais ou menos extraordinárias ou excepcionais

de ameaça à sua existência, à sua estrutura política ou à sua

integridade normativa. No fito de responder a cada uma dessas

ameaças, foi constituída uma modalidade diferente de controle,

isto é, de defesa da Constituição.

Exercendo sucessivos tipos de controle constitucional,

portanto, conforme os diferentes graus e espécies de ameaça à

ordem, se acham respectivamente os institutos do estado de

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exceção, do poder moderador e da jurisdição constitucional. Todos eles

regulam o emprego discricionário da força pública desgarrada,

em maior ou menor grau, dos limites ordinariamente impostos

pelo Estado de direito. A faculdade de exercício de cada um

desses institutos foi distribuída eqüitativamente pelos

poderes políticos conforme um critério de relevância. Assim,

coube ao Poder Legislativo a declaração de vigência do

primeiro e mais grave desses institutos, o estado de exceção,

destinado a suspender a constituição no todo ou em parte para

salvá-la ou à comunidade que ela rege. Conforme o país, o

gênero possui diversas espécies ou designações: de guerra, de

sítio, de defesa ou de emergência. O segundo instituto foi conferido

nos países parlamentares ao chefe do Estado, com as

designações de moderador, neutro, régio, preservador ou arbitral,

destinado ao controle das estruturas políticas subjacentes à

normatividade constitucional, ou seja, a velar pelo equilíbrio

entre os poderes políticos. Seu maior doutrinário foi Benjamin

Constant, mas, longe de constitui uma teoria antidemocrática e

superada do século XIX, ela guarda toda a sua atualidade, ao

menos nos países não-parlamentaristas, como fórmula que

possibilita conciliar a estabilidade do Estado com a

permanente contestação aos governos, típica do regime de livre

competição partidária2. Por fim, encarregada de preservar a2 È a questão suscitada por Raymond Aron em Democracia e Totalitarismo. “Comoobter a conciliação entre o entendimento nacional e a contestaçãopermanente?”, ele pergunta. Uma das soluções passaria pela “subtração de umcerto número de funções, de pessoas ou de decisões à contestação dospartidos. Em certos regimes do tipo ocidental – mas não nos paísespresidencialistas - , o presidente da República ou o monarca passa porestrangeiro, superior às lutas partidárias. Dito de outra forma, tenta-seencarnar num homem a adesão unânime dos governados ao regime e à pátria. Omonarca ou o presidente da República é a expressão de toda a coletividade”(ARON, 1965:78).

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incolumidade da Constituição contra as leis, projetos de lei

ou atos normativos editados pelos poderes públicos que

contrariem seus dispositivos normativos, a jurisdição

constitucional foi entregue a um tribunal de natureza e

procedimento judiciários, que exerce controles de diversas

espécies, como o difuso ou concentrado, o abstrato ou concreto, o

preventivo ou repressivo. Circunscrevo-me aqui a esmiuçar o papel

específico da jurisdição constitucional.

O controle normativo da constitucionalidade é exercido por

uma corte ou conselho, à parte ou como cúpula do judiciário,

dotado de autoridade para excluir do ordenamento jurídico

normas produzidas pelos poderes políticos, desde que

considerados incompatíveis com a Constituição. Assim, o juiz

constitucional se faz intérprete da vontade do soberano e, com

base na sua interpretação e em seu nome, toma a decisão que,

ao excluir a norma do ordenamento jurídico, o torna uma

espécie de legislador negativo (KELSEN, 2003). Geralmente,

tais decisões também vinculam a administração pública, que é

obrigada a seguir o mesmo entendimento. Embora os estudos

sobre a natureza desse instituto primem por apresentá-lo como

a antítese do estado de exceção, em nome da conservação dos

direitos individuais ou difusos contra os excessos do poder,

entendo que na verdade são institutos da mesma natureza,

situados nas extremidades opostas de uma mesma balança de

poder discricionário exercido por outras instituições. Ambos

os institutos velam pela preservação da vontade geral, ambos

desempenham papéis eminentemente políticos, ambos fazem uso de

um poder discricionário constitucionalmente regulado. É que a

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jurisdição constitucional ou controle normativo de

constitucionalidade reflete indiretamente a expressão da

vontade geral e, portanto, da soberania popular. Se, conforme

preconiza a teoria que nos rege, a lei votada não exprime a

vontade geral, senão na medida de sua conformidade à

Constituição, é evidente que, na inexistência de um controle

normativo, não haverá garantias de que a lei corresponderá à

expressão da vontade soberana, gerando incerteza sobre a

legitimidade do ordenamento. Assim, o juiz constitucional

também deve ser encarado como intérprete da vontade soberana,

vez que, pelo seu ato de jurisdição, ele enuncia os princípios

contidos na Constituição.

“O juiz constitucional se apresenta, portanto, como o

'representante' encarregado de exprimir a vontade do

soberano inscrita nos textos constitucionais. Ora, esses

textos têm por autor 'o povo soberano (...)', soberano

fictício suposto impor, ao cabo do tempo, sua vontade

constituinte aos poderes constituídos. Esse 'povo soberano

constituinte ' corresponderá ao 'povo eleitoral' que

designa seus representantes políticos? (...) O

constitucionalismo supõe que a vontade do soberano dure;

que ela seja contínua. (...) O juiz constitucional reflete

aos parlamentares a imagem de um representante que deve

respeitar a constituição. (...) O controle de

constitucionalidade permite assim à vontade do 'povo

constituinte' se impor exteriormente aos poderes

constituídos” (BLACHÈR, 2003).

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O estado de exceção, exercido pelo Parlamento, e a

jurisdição constitucional, exercido por um órgão colegiado de

natureza judiciária, se distinguem pelo grau de

discricionariedade de que dispõem. Este é muitíssimo mais

reduzido no caso do controle normativo da Constituição, já que

a decisão jurisdicional impõe a observância de rígidos

procedimentos exegéticos e formais. Essa redução do grau de

discricionariedade se justifica no fato de que, conforme

referido, o estado de exceção e a jurisdição constitucional se

destinam a enfrentar graus distintos de ameaça à Carta – um

existencial; outro, normativo. Pressupõe-se que as ameaças à

vontade soberana, embutidas nos casos submetidos a uma corte

constitucional, são de natureza muito menos gravosa que

aquelas enfrentadas pelo estado de exceção ou pelo poder

moderador. Daí que, inferior o potencial de dano, sua

resolução não requer tanta urgência, nem o mesmo grau de

discricionariedade decisória. Nem por isso, a decisão

jurisdicional perde o seu caráter discricionário. Quem o

reconhece é o próprio Kelsen, criador do modelo de corte

constitucional moderna: quanto mais elevado o topos jurídico a

ser decidido pelo tribunal, mais político e sujeito a

interpretações abertas e discricionárias ele estará:

“O caráter político da jurisdição é tanto mais forte

quanto mais amplo for o poder discricionário que a

legislação, generalizante por sua própria natureza, lhe

deve necessariamente ceder (...). Na medida em que o

legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos

limites, interesses contrastantes entre si, e decidir

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conflitos em favor de um ou de outro, está lhe conferindo

um poder de criação do direito, e portanto um poder que dá

à função judiciária o mesmo caráter 'político' que possui

– ainda que em maior medida – a legislação” (KELSEN,

2003).

Entretanto, o que a jurisdição constitucional perde em

discricionariedade, ganha em periodicidade de seu exercicio

cotidiano, através da possibilidade de ser provocada por parte

de membros legitimados pelo soberano por meio da propositura

de ações específicas ou da interposição de recursos de última

instância. É o que, aliás, explica também a adoção de ritos

mais elaborados, pautados pelo contraditório e do devido

processo legal, próprios do direito e, em particular, do

direito processual. Historicamente, esse instituto encontrou

suas formas sucessivas de exercício nos modelos da Suprema

Corte norte-americana e do Tribunal Constitucional austríaco,

copiados mais ou menos por toda a parte nos últimos dois

séculos. É sobre a gênese do primeiro modelo, americano, que

o artigo discorrerá.

2. A precedência do direito sobre a política: a Constituição

norte-americana como aperfeiçoamento da Constituição da

Inglaterra.

Parte substantiva do repertório conceitual que concorreu

para a elaboração da Constituição norte-americana de 1787 foi

extraída do debate que teve lugar na Inglaterra durante a

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primeira metade do século XVIII. Capitaneado por Bolingbroke

na década de 1720 contra o discurso liberal emergente, o

republicanismo cívico voltou com força total quando Jorge III

ascendeu ao trono e enfim a oligarquia whig foi desalojada do

poder, quarenta anos depois. O retorno dos tories aos conselhos

da Coroa deu a muitos whigs, agora na oposição, a oportunidade

de reencontrar o antigo cânone radical que haviam abandonado

ao subirem ao poder; desta vez, porém, o discurso radical

revestiu-se também de uma série de argumentos jusnaturais e

contratualistas articulados por Locke para fundar a

legitimidade da ordem política. Nessa qualidade, o

republicanismo foi reivindicado pelos que condenavam qualquer

concepção de governo restritiva de direitos políticos,

postulando por isso reformas no sistema eleitoral que só em

1832 começariam a ser efetuadas (POCOCK, 1985:258). Foi essa

tradição republicana revelou-se vivíssima nas colônias

inglesas da América do Norte nos anos que precederam a guerra

da independência. Outra fonte em que foram beber os

fundadores da república norte-americana para justificar a

submissão e a limitação do político ao direito foi o

constitucionalismo antiquário (BAILYN, 2003:49).

Grosso modo, a tradição política inglesa resultava da

conjugação de dois discursos que, desaparecidos do continente,

sobreviveram na cultura política anglófona – o

constitucionalismo antiquário e o republicanismo cívico (ou

clássico). O discurso republicano cívico remonta a Roma antiga

e postula que, amparada na moralidade dos seus costumes e no

culto da lei, a liberdade política do povo era condição

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essencial para o autogoverno da polis. Livre da disciplina

moral, o homem tenderia a se corromper, e essa degeneração dos

costumes traria consigo a decadência do governo e a tirania.

Já o constitucionalismo antiquário pugnava que os direitos dos

cidadãos ingleses remontavam à Idade Média, decorrendo de uma

luta entre o poder arbitrário e a resistência à opressão, cujo

desfecho, na Revolução Gloriosa, culminara com a vitória da

liberdade (POCOCK, 1997). Ambas as ideologias entendiam que o

bem estar da sociedade política dependia de instituições que,

embora representativas do poder popular, fossem limitadas pela

lei. Predominava aí uma concepção pluralista do político, onde

o direito do indivíduo, compreendido como produto da vontade

histórica e fundamento da ordem legítima, formatava a esfera

de manifestação da soberania. Essa concepção foi decisiva na

formatação do liberalismo anglo-americano, com seus postulados

de individualismo e livre iniciativa, e sua condenação da

ingerência do Estado na esfera privada. Do ponto de vista

constitucional, essa concepção das relações de poder se

refletia num respeito quase religioso às formalidades

jurídicas, na supressão quase absoluta do recurso ao poder

discricionário, na divisão dos poderes e no papel do Poder

Judiciário, como moderador político. No entanto, o caráter

fundacional decorrente da independência das treze colônias

impôs importantes diferenças frente à experiência inglesa

institucional, inclusive no conceito de Constituição. Pretendo

destacar alguns dos elementos de ruptura e de continuidade

verificados nesse momento, dentro da tradição anglo-americana

de soberania e de Estado de direito.

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O primeiro ponto é, naturalmente, a posição dos

fundadores da república norte-americana frente ao modelo

institucional representado pela Constituição Inglesa, julgada

então de maneira ambivalente, como tudo relacionado à

metrópole. Aqueles que a acusavam, para justificar a

independência, apontavam-lhe quatro defeitos. Primeiro, ela

seria demasiado complicada, de difícil compreensão; segundo,

ela não consagrava a soberania do povo, almejando uma

injustificada acomodação da democracia com elementos

monárquicos e aristocráticos que lhe deveriam ser subordinados

ou simplesmente eliminados. Desqualificado idealmente, o

governo misto estamental também era condenado in concreto, já que

a prática constitucional se revelara incapaz de coibir as

usurpações dos órgãos da vontade popular pela Coroa (MADDOX,

1989:60). Por fim, a forma costumeira da constituição tornava

precária a defesa dos direitos contra o poder político,

devendo ser escrita e, assim, ter forma visível: a

Constituição Inglesa era “imperfeita, sujeita a convulsões e

incapaz de produzir o que parece prometer” (PAINE, 1973:53).

Por outro lado, mesmo aqueles que criticavam a Carta britânica

ressalvavam que ela encerrava muitas lições que precisavam ser

aproveitadas; com todos os esses defeitos, ela ainda era a

melhor modalidade de organização política conhecida. Embora

Jefferson reconhecesse, pois, que ela era uma “espécie de meio

termo” entre despotismo e o governo livre (JEFFERSON,

1973:19), o próprio Paine reconhecia que “os indivíduos têm

mais segurança na Inglaterra do que nos outros países” (PAINE,

1973:53 e 54). O resultado foi que, embora criticada, a

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própria Constituição da Inglaterra deveria servir de base para

a elaboração de uma organização política superior. “A história

da Grã-Bretanha (...) nos dá muitas lições úteis”, lembrava

Hamilton. “Podemos nos valer da experiência deles, sem ter de

pagar seu custo” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:109). O modelo

britânico serviu assim de principal referência dos

convencionais de Filadélfia, a ponto de um conhecido Jefferson

reconhecer que a Constituição dos Estados Unidos resultara “da

composição dos princípios da Constituição Inglesa com os

outros, derivados do direito natural e da razão natural”

(JEFFERSON, 1973:13). Esse aperfeiçoamento da equilibrada

Constituição britânica envolvia, porém, aspectos muito

delicados, que passavam previamente por reconceitualizar a

soberania do povo norte-americano e depois articulá-la com o

arcabouço institucional do novo estado federativo.

Isto posto, na fabricação da Constituição dos Estados

Unidos, predominaram, ainda que racionalizadas, as premissas

constitucionais antiquárias implícitas no sistema da common

law, que haviam sido levadas para a América inglesa no início

da colonização e vulgarizadas pela obra de Blackstone. Embora

a independência tenha gerado movimentos pela codificação do

direito, a queda de braço travada nas décadas subseqüentes

terminou com a vitória do sistema herdado da ex-metrópole e,

com ela, a influência doutrinária dos juristas ingleses que

tinham Edward Coke como patrono (DAVID, 1996:364).

3. Fragmentação religiosa e direito natural: uma concepção

defensiva da soberania popular.

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Na raiz desse movimento, estava uma concepção de

soberania e de povo muito diferentes daquelas que, naquela

época, predominavam nas obras dos republicanos franceses. A

concepção francesa hegemônica de Estado de direito consagrava

a soberania do povo como princípio ordenador da ordem

política. A lei era aí vista como um instrumento de uma

vontade eticamente definida e, como tal, poderia ser suspensa

ao seu arbítrio. Ou seja, era a política que formatava o

direito, e não o contrário. Do ponto de vista constitucional,

a subordinação da lei à soberania implicava a subordinação do

Judiciário frente aos poderes políticos – Executivo e

Legislativo. Por conseguinte, o Judiciário ficava

impossibilitado de verificar a constitucionalidade dos seus

atos ou de apreciar as ações de que o Estado fizesse parte,

reservados à esfera de uma justiça administrativa. No

entanto, o juscontratualismo anglo-americano considerava a

soberania popular de modo completamente diverso. Para eles,

Estado e representação eram elementos apartados do povo e

soberania. Se estes últimos davam-lhes origem por meio das

eleições, nem por isso estes adquiriam qualquer força

autônoma. Os federalistas entendiam que era da “natureza do

poder soberano uma avidez (...) que dispõe os que estão

investidos de seu exercício a ver com maus olhos todas as

tentativas de limitar (...) suas ações” (MADISON, HAMILTON &

JAY, 1993:163). Assim, ao invés de concentrar o poder soberano

do povo nas mãos de um único representante, como preconizavam

os republicanos franceses, os fundadores da república norte-

19

americana preferiram desinstitucionalizar completamente o locus

da soberania, deixando-o nas mãos do povo. Como a dimensão

absoluta do poder soberano era malvista independentemente de

quem fosse o seu detentor, a soberania do povo foi

interpretada, não ofensivamente, como força de ação e criação,

mas defensivamente, como o poder de resistência a qualquer

tipo de absolutismo que violasse os direitos naturais.

Atualizada e consolidada por argumentos iluministas, a

soberania do povo passou a ser identificada a um complexo de

direitos fundamentais conferidos aos indivíduos por Deus, pela

natureza ou pela história.

Essa perspectiva era perfeitamente oposta àquela de

Rousseau, que concebera o povo soberano como potência

legisladora leiga e ativa. A tese de que o pacto de associação

suprimira os direitos naturais, dissolvendo-os no poder

coletivo e soberano da vontade geral, era categoricamente

rejeitada. Não apenas a anterioridade e a perenidade dos

direitos eram as únicas salvaguardas da resistência à tirania

(JEFFERSON, 1973:10), como a própria concepção de uma

soberania, desvinculada do reconhecimento prévio dos direitos

naturais do homem, era considerada base do despotismo eletivo

(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:340). Para os norte-americanos,

o papel da lei não era o de criar o direito fundamental, pois

ele já existia na natureza e na divindade; o que ela deveria é

confirmá-lo aos olhos dos homens e garanti-lo no melhor estilo

lockeano (BAILYN, 2003:179). A finalidade do pacto de

associação era melhor salvaguardar o direito, que continuava

essencialmente nas mãos do povo; por isso, as relações entre

20

povo e Estado eram estabelecidas por meio de mandatários

eleitos, cujos poderes decorriam de uma delegação a título

precário. O preconceito contra o poder político em geral,

visto como ameaçador, justificava o apelo de Paine a que os

homens não se descuidassem “no dever e apego mútuos”, pois

“nada, a não ser o céu, é inimpregnável ao vício”. Daí que o

Estado não passasse de “mal necessário” (PAINE, 1973:52). O

político se achava, portanto, em posição subordinada frente ao

direito, devendo pautar-se em conformidade a ele.

No entanto, a principal causa dessa concepção

dessubstancializada do conceito de soberania democrática nos

Estados Unidos, mais profundamente que a herança inglesa, deve

ter sido a cultura protestante das colônias. A tradição

católica francesa motivara os seus teóricos a transferir ao

povo todos os atributos da soberania divina, como a unidade, a

bondade e a onipotência, voltando-a simultaneamente contra a

Igreja e o Trono para criar um absolutismo democrático.

Fragmentada em inúmeras seitas igualitárias e desprovidas de

um intermediário entre o céu e a terra, a tradição protestante

norte-americana, ao contrário da francesa, preservava a esfera

religiosa em toda a sua intensidade e por isso a punha numa

esfera distinta e superior à política, ainda que a moldasse à

sua feição. Assim, ao invés de deslocar os atributos de

soberania de Deus para o povo e voltá-los contra a própria

religião, Deus continuou perfeitamente poderoso e intocado nos

Estados Unidos, velando pelos direitos naturais de seus fiéis

na terra – a liberdade, a igualdade e a propriedade. A Bíblia

tornou-se assim a principal fonte de mobilização política pela

21

defesa dos direitos fundamentais: os libelos de Paine, por

exemplo, apontavam no sentido da fundação de uma “república de

direito divino”. Segundo ele, “a vontade do Todo Poderoso

(...) desaprova expressamente o governo dos reis. (...) A

monarquia, na Bíblia, ocupa o lugar de um dos pecados dos

judeus, pelo que paira sobre eles a maldição” (PAINE,

1973:55/56). O manifesto de independência americana fez quatro

referências a Deus: ele era autor da natureza e das leis

naturais, criador dos direitos individuais, juiz da justiça da

rebelião emancipadora e fonte da divina providência, em cujos

desígnios os revoltosos confiavam (JEFFERSON, 1952:1). Como se

percebe, a precedência do jurídico sobre o político não

passava por uma concepção estritamente laica do direito; muito

pelo contrário, ela se justificava justamente pela conotação

religiosa que perseguia a idéia de justiça embutida no

direito.

4. Da fragmentação religiosa à fragmentação política:

federalismo, representação e divisão dos poderes na

organização constitucional de 1787.

Dito isto quanto à compreensão da natureza da soberania

do povo na Constituição de 1787, outro tanto o merece a

respeito da forma como o poder político representativo haveria

de ser exercido no quadro das novas instituições. Três pontos

aqui são particularmente dignos de atenção. Os dois primeiros

dizem respeito à distribuição espacial ou horizontal do poder

22

político, operada pela criação da estrutura federativa, e à

legitimação das instituições do Estado, articulada pela

representação política. O terceiro ponto a ser abordado

concerne à distribuição vertical do poder político,

viabilizada pela divisão de poderes por critério de

especialidade de competências e por seu equilíbrio aos

mecanismos de freios e contrapesos. Este terceiro ponto se

entrelaça com a questão do controle normativo da

constitucionalidade ou da jurisdição constitucional.

O problema da conciliação da unidade da soberania com a

dualidade de estruturas governativas não era um problema novo

na América do Norte: uma fórmula de soberania dual havia sido

esboçada antes da independência, quando se tentara acomodar a

teoria da supremacia parlamentar com a reivindicação

autonomista das colônias (BAILYN, 2003:202). Rechaçada pelas

autoridades britânicas por criar um imperium in imperio, a idéia

acabou resgatada pelos fundadores da república norte-

americana, depois da independência. Da convenção de Filadélfia

saiu assim um governo federal substantivamente mais poderoso

que o estabelecido anteriormente pela confederação. Mesmo

assim, ele ainda parecia mais fraco do que o de qualquer

monarquia européia, dada o receio que tinham os Estados-

membros de que suas prerrogativas pudessem ser ameaçadas pelo

novo centro de poder. Os Estados consideravam-se entidades

soberanas e naturalmente não desejavam que sua liberdade de

ação acabasse reduzida ou aniquilada com a criação da União

Federal. A fim de evitar problemas teóricos que servissem de

munição aos opositores do projeto constitucional, os

23

federalistas preferiram confirmar, em seus escritos, a teoria

da soberania dos entes federados – o que não os impediu de, na

prática, transferir para a União a maior parte das

prerrogativas inerentes à soberania: a manutenção de relações

internacionais, a declaração de guerra, a mobilização de

exércitos e a cunhagem de moeda (MADISON, HAMILTON & JAY,

1993:281). Nascia assim a célebre doutrina do federalismo

dual, caracterizada por “poderes mutuamente exclusivos,

reciprocamente limitadores, cujos ocupantes governamentais se

defrontavam como iguais absolutos” (SCHWARTZ, 1984:26). A

celebridade dessa doutrina, porém, esteve longe de resolver o

problema teórico da unidade da soberania na prática

institucional norte-americana. Nos Estados Unidos, ela

serviria de argumento para a secessão dos estados do Sul, em

1860, estopim da guerra civil que a sucedeu3.

O segundo aspecto relevante na nova configuração

institucional concerne à representação, concebida como

delegação temporária de poder deliberativo. A vastidão do

território nacional e a multiplicidade de interesses nele

existentes prenunciavam desafios para os quais o

republicanismo cívico, que valorizava os meios diretos de

participação do povo, parecia oferecer poucas respostas. De3 Ainda hoje, “a doutrina da soberania popular não tem tido um significadoclaro para a tradição constitucional americana. O conceito de soberaniapersistiu como problema porque embora a geração fundadora estivesseacostumada a ser parte de um governo que inclui a monarquia, eles eram,sobretudo, republicanos. Esta mesma geração discordava sobre a natureza e alocalização da soberania, mas não sobre a importância deste conceito emsuas novas circunstâncias politicas” (SIFFERT, 2002:60). Até mesmo noBrasil, durante a primeira década republicana, ela geraria uma série decontrovérsias inauguradas no começo da década de 1890 entre Campos Sales eAnfilófio de Carvalho, pacificadas somente quando o Supremo Tribunal, dezanos depois, assentou que apenas a União Federal era soberana.

24

sorte que a representação política já parecia uma necessidade

indeclinável do mundo atual mesmo para os republicanos puros,

admiradores dos modelos da Antiguidade (JEFFERSON, 1973:14).

Essa consciência da ruptura no interior das temporalidades não

significa, porém, uma rejeição em bloco do classicismo: embora

o mundo se tivesse modificado demasiado para que aqueles

modelos pudessem ser imitados de forma acrítica, “os

progressos da ciência política” permitiriam adaptá-los aos

tempos modernos (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:129). A

principal adaptação a ser efetuada era a da teoria do governo

misto, pedra de toque da teoria institucional do

republicanismo clássico e que pressupunha o equilíbrio do

poder político entre duas câmaras, uma ocupada pela

aristocracia, outra pela democracia. A preexistência de uma

camada aristocrática e virtuosa era mesmo um pressuposto

sociológico do republicanismo clássico. Ocorre que os

federalistas se decepcionaram em sua expectativa de que a o

patriciado rural norte-americano pudesse desempenhar aquele

papel e compensar, com suas virtudes cívicas, a carência que

dela tinham as camadas inferiores (POCOCK, 1975:514). Daí que

a questão da representação política adquiriu foros de um

problema magno: além de viabilizar o a república num país de

grandes proporções, ela deveria agora ser organizada de sorte

a filtrar, entre os candidatos, aqueles mais capazes de

administrar a coisa pública; dessa forma, a falta de uma

aristocracia natural seria qualitativamente suprida. Os

efeitos deletérios do poder do número seriam corrigidos,

limitando-se este a plebiscitar a posteriori a gestão de seus

25

mandatários (MANIN, 1996:209). Ao contrário do republicanismo

francês, não era função da representação projetar a unidade

soberana para o interior das estruturas políticas, mas

refletir pluralmente a diversidade numa rede de instituições

eqüipotentes e equilibradas: “A regulação desses interesses

diversos e concorrentes constitui a principal tarefa da

legislação moderna e introduz o espírito partidário nas

operações necessárias e ordinárias do governo” (MADISON,

HAMILTON, & JAY, 1993:135).

Esse ponto nos leva ao terceiro e último aspecto do

arcabouço institucional, relativo à distribuição vertical do

poder pela sua divisão em três, a partir de um critério de

divisão de competências por especialidade, e de seu

equilíbrio, pela inserção de mecanismos de freios e

contrapesos. A necessidade de se garantir os direitos

individuais protegidos pela Constituição exigia fórmulas que

permitissem às facções competirem entre si, sem pôr em risco a

estabilidade sistêmica.

Para os federalistas, haveria apenas dois meios capazes

de operar essa proeza. O primeiro passava pela criação de um

“poder independente (...) da própria sociedade” (MADISON,

HAMILTON & JAY, 1993:351). Em tese, esse poder autônomo

poderia ser criado tanto pelo preenchimento de certos cargos

públicos por um critério de hereditariedade, como pela criação

de órgãos que, como as convenções e os conselhos de censura,

previstos na tradição republicana; órgãos que periodicamente

institucionalizavam, em nome do soberano, um poder

discricionário encarregado de examinar a Constituição,

26

reformá-la e anular os atos normativos ou leis que, elaborados

nesse ínterim, fossem considerados incompatíveis com ela

(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:343). Disse em tese porque, os

federalistas julgavam os dois mecanismos inviáveis na prática.

A hereditariedade lhes parecia incompatível com o princípio

republicano, que exigia a eleição popular para todos os

cargos. Já as convenções à Mably se lhes afiguravam

tumultuárias e inócuas; e, quanto ao tribunal de censura, a

experiência daquele previsto na Constituição da Pensilvânia

(1776) também não o recomendava4, tendo sido incapaz de

constituir um locus ético de defesa do bem comum. Além disso,

como Montesquieu, os federalistas temiam que institutos como

estes só conseguissem manter a ordem sacrificando a liberdade.

Para eles, abolir a liberdade porque ela nutria lhes parecia

“tão insensato quanto desejar a eliminação do ar (...) porque

ele confere ao fogo sua ação destrutiva” (MADISON, HAMILTON &

JAY, 1993:134).

Todos esses motivos que os levavam a rejeitar as

convenções soberanas e dos tribunais de censura e, com eles, a

própria ambição de instaurar uma instância estatal autônoma da

própria sociedade, poderiam ser reduzidos a um único: a

impossibilidade de se criar um poder eletivo imparcial,

intérprete abalizado do interesse comum. Os federalistas não

acreditavam que o Estado pudesse ser ocupado por legisladores

iluminados, capazes de incutir as virtudes cívicas num povo4 O artigo 46 dessa Constituição determinava que coubesse a esse tribunal decensura examinar “se a constituição tem sido preservada inviolada em cadauma de suas partes; e se os poderes executivo e legislativo têmdesempenhado seus deveres como guardiões do povo, ou arrogado para si ouexercido outros ou maiores poderes, além daqueles conferidos pelaconstituição”.

27

corrompido; logo, achavam que os sistemas de controle fundados

em poderes independentes da sociedade acabavam encapsulados

pelo próprio facciosismo que deveriam combater, podendo “tanto

esposar as aspirações injustas da maioria como os interesses

legítimos da minoria” como “se voltar contra ambos os grupos”

(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:352). Toda representação criava

sempre um interesse particular e a politicidade inerente a

esse órgão lhe impossibilitaria de fazer exame imparcial dos

atos cometidos pelos demais poderes, que também eram políticos

(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:347). Ademais, a rejeição de um

controle político ou estrutural de constitucionalidade, por

parte dos federalistas, não decorria apenas do seu modo

eletivo de composição; o vício residia na própria natureza

humana que, dominada pelas paixões, raramente conseguia

visualizar o bem comum. A virtude que havia no mundo não era

suficientemente duradoura ou tão estável para que se pudesse

fiar apenas nela para se fundar a república (BAILYN,

2003:327).

Essa descrença num órgão político capaz de assegurar a

supremacia do soberano, por meio do imparcial controle da

ordem constitucional representativa, levava os federalistas a

uma segunda alternativa: a de arquitetar “de tal modo a

estrutura interna do governo, que suas várias partes

constituintes possam ser, por suas relações mútuas,

instrumentos para a manutenção umas das outras em seus devidos

lugares” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:349). O poder político

deveria ser fracionado nas mãos de “um número tão grande de

categorias distintas de cidadãos, que tornaria muito

28

improvável, senão impraticável, o conluio injusto da maioria”

(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:351). Evidentemente, a tradição

de uma multiplicidade de seitas religiosas convivendo

harmonicamente num mesmo espaço pesou de forma decisiva nessa

solução de pulverizar o poder político para garantir a

liberdade. Adaptando a Constituição da Inglaterra, tal como

Montesquieu a descrevera, os federalistas preconizavam a

construção de um arcabouço institucional onde os poderes

políticos, embora emanassem da vontade popular, deveriam ser

igualmente divididos por especialização e mantidos em

equilíbrio por freios e contrapesos.

“Enquanto toda a autoridade emanará da sociedade e dela

dependerá, a própria sociedade estará fragmentada em

tantas partes, interesses e categorias de cidadãos, que

os direitos dos indivíduos, ou da minoria, serão pouco

ameaçados por combinações interesseiras da maioria. (...)

As facções ou partidos serão gradualmente induzidos (...)

a desejar um governo que proteja todas as partes, tanto a

mais fraca quanto a mais poderosa” (MADISON, HAMILTON &

JAY, 1993:352).

Tomando como modelo a teoria do governo misto que

norteava a Constituição da Inglaterra, os federalistas

projetaram, com o nome de república, uma monarquia original,

temperada e eletiva. O elemento temperado ficava por conta da

outorga do Poder Legislativo a um outro órgão, que não o

príncipe; já o elemento eletivo, decorria de ser o príncipe

eleito pelo povo para reinados de duração predeterminada:

quatro anos. A este príncipe, deram o nome de Presidente da

29

República. Interessante notar que o esboço de sistema de

gabinete foi rejeitado como fruto da corrupção da Constituição

Inglesa. “Esse 'poder arbitrário dominador, que controla

absolutamente o Rei, os Lordes e os Comuns era composto,

dizia-se, pelos 'ministros e favoritos do Rei' que, a despeito

de Deus e dos homens igualmente, 'estendem sua autoridade

usurpada infinitamente longe' e, abandonando o equilíbrio da

constituição, fazem de sua 'vontade despótica' a autoridade da

nação” (BAILYN, 2003:126). Se o Executivo deveria recair

portanto sobre uma única pessoa, o Poder Legislativo deveria

ser bicameral. Na câmara baixa ficariam os representantes do

povo e, na alta, os dos estados-membros da federação.

Encarregado de preservar os direitos individuais, o Judiciário

seria formado por juízes vitalícios e encabeçado por uma corte

suprema federal. O sistema de freios e contrapesos se compunha

de várias possibilidades de intervenção recíproca entre os

poderes políticos. Destacava-se a faculdade de veto do

Executivo sobre projetos do Legislativo, a nomeação dos juízes

pelo presidente, a possibilidade de declaração de nulidade de

atos inconstitucionais pelo Judiciário, o mútuo papel revisor

das câmaras sobre os respectivos projetos e, finalmente, o

processo de impeachment do Legislativo contra o Executivo. Essa

teia de poderes e suas respectivas interconexões eram

replicadas em número correspondente ao dos estados-membros da

federação, que também a adotariam em seus respectivos

territórios.

5. O Senado e a intervenção federal como mecanismos de

30

equilíbrio constitucional.

A partir dessa idéia de unidade da soberania originária,

fragmentada todavia sua projeção pelos órgãos do Estado, os

fundadores da república norte-americana conseguiram conciliar

a exigência da origem popular de todo o poder, sem constituir

no interior do aparelho do Estado, a supremacia de um

interesse único, tal como preconizado pelo “celebrado

Montesquieu” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:332). Em

particular, evitava-se o perigo de uma câmara popular

demasiado poderosa que, com sua força, desequilibrasse os

poderes públicos e pusesse o governo exclusivamente nas mãos

da multidão. A pedra angular desse sistema, que lhe conferiria

o almejado equilíbrio, residiria na câmara alta, o Senado. Os

argumentos que faziam dele o “regulador estrutural” ou “poder

moderador” das instituições norte-americanas foram três:

primeiro, o da necessidade de um elemento aristocrático, extraído da

tradição humanista; segundo, o do equilíbrio institucional pela oposição

de diferentes interesses, retirado da filosofia moral inglesa; e

terceiro, a exigência de uma representação estadual eqüitativa junto ao

governo da União.

Vimos que sobrevivia na cultura política anglo-americana

uma tradição aristocrática que se nutria do receio da

democracia. Na medida em que, na república, o fundamento do

poder residia essencialmente no povo, a assembléia única que o

representasse ficaria “imbuída de intrépida confiança em sua

própria força”, pois seria “suficientemente numerosa para

sentir todas as paixões que movem uma multidão” (MADISON,

31

HAMILTON & JAY, 1993:339). A concentração das prerrogativas

soberanas numa única instituição resultava “numa das mais

execráveis formas de governo que a insensatez humana jamais

concebeu” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:200); daí que o

sistema legislativo unicameral à francesa apresentava maiores

perigos do que o Executivo único. Nos Estados Unidos, a

tradição e a história indicavam aos federalistas que, sem uma

classe social economicamente independente, educada, livre, e

permanentemente acima do egoísmo mesquinho da multidão, ao

invés de representar a 'infinita diversidade dos interesses

particulares e opiniões dissonantes', ele ficaria prisioneiro

do interesse da maioria ignorante e pobre, levando a um regime

de desordens (BAILYN, 2003:258). Eis por que o Legislativo

deveria ser fracionado em duas câmaras distintas, a fim de

que, nos momentos difíceis, um senado “moderado e respeitável”

pudesse chamar a turba à razão, dissipando os ânimos e

favorecendo o equilíbrio.

O argumento extraído da filosofia moral inglesa

sustentava que não era preciso esperar excessiva virtude dos

senadores para que o salutar efeito moderador do senado fosse

produzido pela câmara alta: bastava recrutá-los de maneira a

que, pela natureza de seus próprios interesses, ele não

pudesse se identificar com o povo representado na câmara

baixa, nem com o governo, dirigido pelo chefe do Estado

(MONTESQUIEU, 1979:151). Na prática, esse “componente seleto e

estável no governo”, que era a câmara alta, (MADISON, HAMILTON

& JAY, 1993:404) poderia ser forjado adotando-se certas

precauções frente aos critérios admitidos para a seleção para

32

a Câmara baixa. Primeiro, os requisitos de elegibilidade

ficariam mais rigorosos, elevando-se a idade mínima para que

os candidatos fossem mais maduros. Segundo, a duração dos

mandatos deveria ser três vezes mais longa, a fim de que a

estabilidade incutisse nos senadores um interesse de longo

prazo. Por último, os senadores não deveriam ser eleitos pelo

povo, mas por cada assembléia estadual. Elas seriam capazes de

fazê-los representar, não as paixões da câmara baixa, mas os

interesses gerais de cada estado que, de si mais serenos, o

ficariam ainda mais pela eleição indireta.

Por fim, na costura do acordo parlamentar sobre a

organização da representação legislativa federal, conhecida

como “o grande compromisso”, a idéia de uma segunda câmara

caiu como luva. Divididos os deputados acerca do critério para

se distribuir as cadeiras de representantes junto à União,

isto é, se deveria ser adotado o critério de proporcionalidade

relativamente ao tamanho da população, ou um critério de

paridade entre os Estados, fundado na igual soberania de cada

qual, a proposta de se criar duas câmaras ao invés de uma

agradou a gregos e a troianos: o primeiro critério serviria

para a composição da Câmara dos Deputados; o segundo critério,

para organizar o Senado (MILLER, 1962:116). Foi assim que o

senado se tornou, aos olhos de uma longeva tradição

constitucionalista norte-americana, “a mais importante e

valiosa parte do sistema e seu verdadeiro ponto de equilíbrio,

que ajusta e regula seus movimentos” (STORY, 1833:182).

Esse modelo de governo plural, que concebia a política

como uma arena de poderes delegados pela representação,

33

fragmentada verticalmente pelo federalismo e, horizontalmente,

pela divisão de poderes, impactou de modo negativo quanto à

possibilidade de manifestação excepcional do poder

discricionário. É verdade que os federalistas recorriam ao

“fato excepcional” para justificar o emprego extraordinário da

força: “a idéia de governar sempre pela simples força da lei

(...) só tem lugar nos devaneios daqueles doutores em

política, cuja sagacidade desdenha os conselhos da

experiência” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:223); “nenhuma

limitação pode ser imposta à autoridade encarregada de

assegurar a defesa e a proteção da comunidade” (MADISON,

HAMILTON & JAY, 1993:261). No entanto, esse argumento não foi

utilizado para ampliar a ação do poder excepcional, mas para

criar o próprio poder federal, visto como uma

“superintendência discricionária geral”, contra a oposição

encabeçada pelos antifederalistas (MADISON, HAMILTON & JAY,

1993:161). A referência ao poder discricionário excepcional

tem por fim convencer o leitor da necessária subordinação dos

Estados ao poder da União e não para justificar a eventual

dispensa da lei ou da apreciação judiciária dos atos do

governo. Com efeito, a Constituição de 1787 esteve longe de

contemplar hipóteses como a de sua própria suspensão em caso

de urgência e perigo iminente. Ela só admitiu a mesma hipótese

tímida prevista pela Constituição da Inglaterra previa desde o

Bill of Rights: a suspensão do habeas corpus em caso de rebelião ou

invasão estrangeira (art. 1o. Seção 9). As discussões da

Convenção Constitucional evidenciam que a preocupação em

cercear o poder discricionário da União Federal veio

34

principalmente dos Estados, que temiam que suas eventuais

resistências futuras aos atos inconstitucionais daquelas

pudessem sempre ser interpretadas como rebeliões, ensejando a

suspensão do habeas corpus; entretanto, cedo se chegou a um

consenso de que sob circunstâncias extremas de guerra ou

invasão teria de ser tomada medida semelhante (TURLEY,

2005:154)5.

A lógica da estrutura federativa deu ensejo, todavia, a

uma nova modalidade de ação discricionária regulada - a

intervenção federal. Na condição de “baluarte contra o perigo

estrangeiro, a mantenedora da paz entre nós, a guardiã de

nosso comércio (...) e o antídoto adequado contra a doença das

facções” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:153), a cabia à União

Federal intervir nos Estados-membros para combater “o abuso

dos governantes” e “as agitações e arbitrariedades do

facciosismo e da sedição na comunidade” (MADISON, HAMILTON &

JAY, 1993:189). Mas nem sempre a intervenção derivaria da

decisão soberana do governo federal; ela só teria lugar quando

ameaçada a forma republicana de governo ou em caso de invasão

estrangeira ou de outros estados federados. Em todos os demais

casos, a Constituição exigia como requisito da intervenção a

5 Posteriormente, a eclosão de guerras civis ou mundiais não impediu que setentasse alargar o campo de autoridade discricionária do governo federal,por meio de leis ordinárias, doutrinas ou medidas de pura força. Assim, em1917, a lei de espionagem deu origem, pela Suprema Corte, à doutrina do“perigo real e iminente”, com que se tentava limitar a liberdade deexpressão para reprimir os progressistas que protestavam contra orecrutamento para a guerra. No julgamento de Schenck vs. Estados Unidos, aSuprema Corte entendeu que “para que o governo possa punir a manifestaçãode uma opinião, é necessário geralmente que tenha ocorrido em taiscircunstâncias ou sido de tal natureza que criasse um perigo evidente eatual do que decorreriam males substantivos que o governo poderia evitar”(CORWIN, 1986:239).

35

requisição do próprio governo do Estado. Nessas hipóteses, não

tinha o governo federal direito algum de agir por conta

própria, isto é, julgar por si mesmo se os governos estaduais

teriam ou não capacidade de dar conta de seus problemas

sozinhos (art. 4, seção 4a., da constituição). No mais, a

discricionariedade regulada parecia banida do panorama

institucional norte-americano: o senado “moderador” não gozava

de qualquer poder especial, não havia formas de controle

político dos atos normativos (como a censura), admitindo-se

apenas, a título de freio, um controle normativo de caráter

judiciário, difuso e ex post.

6. Do Senado à Suprema Corte: o triunfo do controle normativo

sobre o controle político da constitucionalidade.

No entanto, a prática constitucional veio desmentir as

intenções dos fundadores da república de extirpar do solo da

América a “bolha discricionária”. A primeira intervenção

federal foi decretada já em 1794 para sufocar a insurreição do

uísque na Pensilvânia (JACQUES, 1964:96); além disso, a

restrição dos direitos fundamentais, durante e depois da

Guerra de Secessão, iria bastante mais além do que previra a

Constituição. Nas áreas conflagradas, Lincoln agiria como

autêntico ditador, abolindo a escravidão nos Estados do Sul

por meio de proclamação unilateral, de que o Congresso não

participou. Seguindo a tradição inglesa, a Suprema Corte

entendeu em 1863 que, nos negócios que dissessem respeito às

36

zonas de guerra onde tribunais não funcionassem ou fosse

“impossível exercer a jurisdição criminal”, a lei marcial

poderia ser decretada para substituir a autoridade civil pela

militar, que ficaria encarregada de velar “pela segurança do

exército e da sociedade” (In: SCHMITT, 1968:224). Esse acórdão

não impediu que, dominado pelos radicais abolicionistas, o

Congresso decretasse a lei marcial em cinco diferentes

distritos depois do final da guerra, como mero instrumento de

repressão dos focos de resistência à política adotada no Sul

(MILLER, 1962:202). Quanto à interpretação do Senado como um

poder moderador, popularizada por Story, ela colapsou quando o

processo de democratização tornou evidente o caráter elitista,

politizado e partidário daquela instituição. Tornara-se

problemático sustentar que o Senado constituiria uma câmara de

caráter equilibrado e apolítico, pois que há muito a

instituição se achava sujeita à mesma sorte de pressões

partidárias que a Câmara dos Deputados, recriminada por todos

os lados como sede dos lobbies de todas as oligarquias rurais,

comerciais e industriais do país (ZIMMERMANN, 1999:124). O

debate culminou na promulgação da 17a. emenda constitucional,

em 1913, que alterou a fórmula de escolha de senadores, que

passaram a ser eleitos pelos votantes de seus Estados, ao

invés de o serem pelos Legislativos estaduais. Desde então,

tornou-se impossível, desde então tratá-lo seriamente como uma

verdadeira câmara de representação estadual.

Essas evoluções da prática constitucional norte-

americanas foram acompanhadas da emergência de outra

instituição, cujo papel não havia sido claramente estabelecido

37

pelos federalistas e cuja pretensa apoliticidade havia sido

sempre questionada pelos políticos. Esse órgão foi a Suprema

Corte. O papel desse tribunal nos Estados Unidos deve ser

examinado a partir das conseqüências, já insinuadas aqui, do

modo como os fundadores daquela república encaravam as

relações entre direito e política. Imersos intelectualmente nas

fontes do republicanismo cívico, do contratualismo whig e da

tradição jurídica do constitucionalismo antiquário, os

federalistas cultivavam uma visão dicotômica entre direito e

política que os levava, a exemplo dos ingleses, a compreender

o jurídico como o lugar do não-político, isto é, da força que

limitava o político. Essa visão era diametralmente oposta à

dos republicanos franceses, para quem o direito, embora dele

distinto, extraía sua força precisamente do fato de constituir

a autêntica expressão do político. Encarando o direito como

espaço da despolitização, o discurso anglo-americano tinha por

fim esvaziar o conteúdo ético do conceito de soberania que se

achava no coração da tradição política da Europa continental.

Desaparecido o locus social em que se pudesse ancorar uma ética

de bem comum que servisse de óbice ao espectro do

partidarismo, impunha-se substituí-lo pelo formalismo de um

compromisso constitucional escrito, consagrador dos direitos

individuais e da divisão, autolimitação e equilíbrio dos

poderes estatais. Para tanto colaboraram a experiência das

antigas cartas coloniais e das constituições estaduais

preexistentes, bem como o desejo de pôr os princípios

jurídicos sobre as instituições políticas, a salvo dos embates

cotidianos dos interesses particulares. Como a organização do

38

Estado e os direitos humanos haviam se tornado os princípios

ordenadores da comunidade, o interesse público passava a ser

entendido como o minimum minimorum de eticidade do texto

constitucional (BAILYN, 2003:80). Documento onde o interesse

público encontrava a sua expressão e limitação, a Constituição

precisava forçosamente ser considerada superior às demais leis

existentes no âmbito da União. Esse foi, aparentemente, o

desejo dos convencionais da Filadélfia, que no art. 6º.

daquele documento o qualificaram como “a lei suprema do país”.

Do princípio da supremacia da Constituição, pouco

bastava para se deduzir um segundo princípio, o da supremacia do

Judiciário, insinuado no art. 3o. seção 2a. daquela carta e

solidamente ancorado na experiência inglesa (CAPPELLETTI,

1984:59). A lógica sistêmica era clara: o fato da soberania do

povo impunha, à realidade do sistema representativo,

mecanismos de controle da legitimidade dos atos praticados

pelos representantes, que poderiam sempre extrapolar os

limites de suas respectivas delegações. Esse controle da

legitimidade, que passava pelo poder de “declarar a nulidade

dos atos contrários ao sentido manifesto da Constituição”

(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:480), deveria ser exercido por

um poder distinto daqueles dois, independente como eles, mas

imparcial diante de suas rusgas. Ao contrário do tribunato

rousseaniano, que moderaria somente o executivo para proteger

o legislativo soberano (ROUSSEAU, 1996), nenhum poder político

detinha, nos Estados Unidos, a exclusividade na representação

da soberania popular. Por conseguinte, não havendo qualquer

hierarquia ente eles, a preservação da ordem normativa da

39

Constituição pressupunha um órgão que arbitrasse seus

conflitos.

No entanto, o conteúdo defensivo do conceito de

soberania e a descrença dos federalistas a respeito na

neutralidade de qualquer órgão eletivo na esfera do interesse

público frustraram qualquer veleidade de que o controle

normativo pudesse ser exercido por uma instituição

independente. Madison propusera à convenção que se criasse um

conselho político de revisão judicial, mas a proposta

naufragou, sob as acusações gerais de que ele violaria a

separação e a igualdade dos três poderes políticos (KRAMNICK,

1993:48). Inadmitida qualquer forma autônoma de controle, só

restava delegar aquela função ao Poder Judiciário em geral.

Destarte, ele seria “um intermediário entre o povo e o

Legislativo, de modo a, entre outras coisas, manter este

último dentro dos limites atribuídos a seu poder” (MADISON,

HAMILTON & JAY, 1993:481). No conjunto deste poder, a Suprema

Corte ganhava relevo: era ela que decidiria da

constitucionalidade das leis em última instância, ao julgar os

processos judiciais individuais em grau de recurso e os

conflitos entre os entes federados. Na prática, esse poder de

decidir soberanamente sobre a interpretação da Constituição

tornava-na um quarto poder, superior, ao mesmo tempo, aos

demais órgãos judiciários, ao governo e ao congresso. Daí o

surgimento, no lugar do senado, desse poder que o próprio

Washington designara como a “coluna-mestra”, a “chave de

abóbada do nosso edifício político” (In: BARBOSA, 1974:326).

Ocorre que não foi assim como, até pouco tempo, o papel

40

da Suprema Corte no quadro constitucional norte-americano foi

explicado. Ainda que reconhecessem o papel decisivo dos

tribunais na compreensão do alcance e dos limites das normas

editadas pelo poder legislativo6, seus próprios defensores

negavam o caráter político das decisões daquele tribunal e sua

posição de superioridade frente aos outros dois poderes. Os

operadores jurídicos pleiteavam que, ao nulificar leis, o

Judiciário não decidia discricionariamente; apenas exercia uma

atividade hermenêutica que simplesmente declarava a intenção

do soberano, expressa – agora sim – de modo discricionário no

compromisso constitucional. Os federalistas, aliás, foram os

primeiros a corroborar a opinião de Montesquieu, para quem o

Judiciário era um poder politicamente nulo, adstrito que era à

aplicação mecânica das leis (MADISON, HAMILTON & JAY,

1993:479). Ora, na medida em que a organização política dos

Estados Unidos se consolidava, a Suprema Corte precisava

construir e delimitar suas funções institucionais, sem gerar

oposição violenta por parte do Congresso ou da Presidência da

República. Por razões estratégicas, os magistrados preferiram

insistir na neutralidade do Judiciário, que supostamente se

restringiria a aplicar o ordenamento jurídico e resolver as

6 “Todas as leis novas, ainda que redigidas com a maior perícia técnica eaprovadas apos a mais completa e madura deliberação, são consideradas maisou menos obscuras e equivocas até que seu significado seja estabelecido edeterminado por uma série de discussões e julgamentos particulares. Aobscuridade que surge da complexidade dos objetos e da imperfeição dasfaculdades humanas, o meio pelo qual os homens transmitem uns aos outrossuas concepções acrescentam uma nova confusão (...) Nenhuma língua (...) érica o bastante para suprir palavras ou expressões para toda idéiacomplexa, ou tão correta a ponto de não incluir muitas de denotaçãoequivoca (...). E essa inevitável imprecisão será maior ou menor, segundo acomplexidade e a novidade dos objetos definidos” (MADISON, HAMILTON & JAY,1993:268).

41

controvérsias constitucionais, lançando mão do critério

hierárquico. Assim, a justificativa para declarar a nulidade

do texto legislado seria buscada noutra norma legislada, a ela

superior – e não fora do sistema jurídico, em fundamentações

políticas (SOUZA NETO, 2002:62).

Essa linha de argumentação tornou-se majoritária, de

modo que, graças a juristas como Joseph Story e Thomas Cooley,

em meados do século dezenove a doutrina constitucional norte-

americana já construíra uma elaborada interpretação que

confirmava a rigorosa separação que deveria prevalecer entre o

direito e a política, a fim de não violar o princípio da

separação e da igualdade dos poderes. Embora ao Judiciário

coubesse o papel de intérprete máximo da Constituição, ele

ficava proibido de julgar o mérito de questões exclusivas dos

poderes legislativo e executivo, isto é, “questões políticas”,

cuja característica estava no exercício, por parte dos

congressistas e do presidente, de competência discricionária.

Assim, “sobre questões políticas, os tribunais não têm

qualquer autoridade, devendo aceitar a determinação dos órgãos

políticos do governo como conclusivas” (COOLEY, 1898:156).

Mas, como a doutrina não elencava de forma exaustiva que

questões eram essas, ela fornecia argumentos para que o

Legislativo e Executivo desobedecessem a decisões judiciárias,

a pretexto de que o Judiciário se metera em “questão

política”. Na mesma trilha, a doutrina vedava o exame da

constitucionalidade da lei em tese, ou seja, em abstrato,

validando apenas os casos individuais em que a lei acusada de

inconstitucional vulnerasse interesse concreto. Na medida em

42

que, nesses casos, o efeito nulificador da sentença se

limitaria a restaurar os direitos violados dos autores,

preservava-se a ficção de que a lei elaborada pelos outros

dois poderes políticos seguia intocada, restaurando-se o

direito ferido sem violar o princípio da separação de poderes

e o princípio democrático.

“Os diversos órgãos do governo são iguais em dignidade e

em autoridade coordenada e nenhum pode sujeitar o outro à

sua própria jurisdição, nem privá-lo de qualquer porção

de seus poderes constitucionais. Mas o judiciário é a

autoridade última na interpretação da constituição e das

leis, e sua interpretação deve ser recebida e seguida

pelos outros departamentos. (...) Mas os tribunais não

têm autoridade para julgar questões abstratas, nem

questões não suscitadas pelo próprio litígio e que,

portanto, digam respeito exclusivamente às autoridades

executiva e legislativa. Nem há aí qualquer método pelo

qual suas opiniões possam ser constitucionalmente

expressas, de modo a ter força vinculante sobre o

executivo ou o legislativo, quando a questão se

apresenta, não como relativa a uma lei existente, mas

como algo próprio à política, competente para legislar no

futuro. O judiciário, embora juiz último do que a lei é,

não é o juiz do que a lei deve ser” (COOLEY, 1898:159).

Portanto, para aqueles que defendiam a revisão judicial,

a alegação de que ela contrariava o princípio de separação e

eqüipotência dos poderes não passava de um falso problema. Se

haveria que se falar em superioridade de algum poder, ele

43

residia, não no Judiciário, mas no povo soberano; os juízes

apenas teriam sido incumbidos de, por meio da jurisdição

constitucional, garantir que a vontade dos políticos não fosse

além daquela que o povo estabelecera na Constituição (MADISON,

HAMILTON & JAY, 1993:480). No final do século dezenove, ela

acabou repetida por James Bryce em A Comunidade Americana,

reputada o primeiro “clássico” da ciência política moderna, e

obra destinada a ter imensa repercussão no modo de explicar o

funcionamento do sistema político-institucional norte-

americano, até a Primeira Guerra Mundial:

“Os juízes americanos, ao contrário do que usualmente

dizem os europeus, não ‘controlam o legislativo’, mas

simplesmente interpretam a lei. A palavra ‘controlar’ é

enganadora porquanto implica dizer que a pessoa ou órgão

que a usa possui e exerce vontade pessoal discricionária.

Ora, os juízes americanos não têm mais vontade na questão

do que o tribunal inglês quando interpreta as leis do

Parlamento. A vontade que prevalece é a do povo, expressa

na Constituição. Os juízes simplesmente verificam nas

leis qual a vontade do povo, aplicando-a aos fatos de

determinado caso. (...) Faltariam eles ao dever se

expressassem, poderíamos dizer, sequer pensassem, uma

opinião sobre a política que a respalda, exceto na medida

em que tal política contribuir para explicar-lhe a

significação (...). Interpretar a lei, isto é, elucidar a

vontade do povo como legislador supremo, constitui o

princípio e o fim dos seus deveres” (BRYCE, 1959,

I:76/77).

44

Foi desse modo que a doutrina buscou, por mais de um

século, negar a superioridade e a politicidade do Poder

Judiciário, verberando seu papel meramente jurisdicional de

controle, último dos mecanismos de interdependência entre os

poderes.

7. A jurisdição constitucional como poder moderador

reconhecido da Constituição americana.

A primeira manifestação concreta do ativismo judiciário

no exame da constitucionalidade das leis teve lugar em 1803,

quando do julgamento do caso Marbury vs. Madison. No voto do

presidente daquela Corte, John Marshall, foram enunciadas pela

primeira vez as três teses centrais do judiciarismo, isto é, do

movimento de defesa da jurisdição constitucional. A primeira

tese sustentava a superioridade normativa da Carta,

considerada a manifestação máxima da vontade do povo, expressa

na plenitude de seu poder discricionário: era o princípio da

supremacia da Constituição. Marshall explicava que a vontade

soberana só poderia ser respeitada na medida em que se

reconhecesse a Carta como uma lei hierarquicamente superior às

demais; do contrário, “a Constituição escrita não passa de um

esforço inútil” (In: MASON, 1978:41). A segunda tese do

judiciarismo preconizava que, sendo da essência da atividade

judicante que os tribunais interpretassem as normas sobre os

casos concretos, a jurisdição constitucional era corolário

necessário da vontade do povo de se governar por uma

45

Constituição (TEPKER, 2003:131). A terceira tese enunciava

que, em decorrência dos postulados anteriores, os magistrados

ficavam obrigados a, em caso de conflito normativo, preferir

sempre a aplicação do comando constitucional àquele da lei

ordinária. Do contrário, não faria sentido que os países

elaborassem leis constitucionais; elas não passariam de

“tentativas absurdas (...) de limitar um poder ilimitado por

sua própria natureza”. E prosseguia: “Qual é o serviço ou o

objetivo de um Judiciário senão executar as leis de maneira

pacífica e ordenada, sem derramar sangue, criar uma disputa ou

levar os senhores a fazer uso da força?… A quem os senhores

irão recorrer contra uma infração da Constituição, se não

conferirem tal poder ao judiciário? Não há outro órgão capaz

de proporcionar tal proteção” (In: MASON, 1978:41).

Reafirmado pela Corte Suprema quando do julgamento do

caso Fletcher vs. Peck, em 1810, o judiciarismo ganhou cada vez mais

força entre os constitucionalistas e os teóricos políticos -

até que, 23 anos depois, em seus Comentários à Constituição dos

Estados Unidos, o primeiro grande comentarista da constituição

norte-americana, Joseph Story, aduziu que a Suprema Corte era

o “final e comum árbitro fornecido pela própria Constituição,

a que todas as outras decisões  ficam subordinadas” (STORY,

1833:347). Pouco depois, ainda na década de 1830, Tocqueville

reconheceria o judiciarismo como uma realidade inconteste em A

Democracia na América: “Os americanos reconheceram nos juízes o

direito de fundamentar seus veredictos na Constituição mais do

que nas leis. Em outras palavras, permitiram-lhes não aplicar

leis que lhes pareçam inconstitucionais” (TOCQUEVILLE,

46

1973:207). Na obra, por fim, escrita com o propósito

deliberado de superar a Democracia na América como guia de exame e

interpretação do sistema político-institucional norte-

americano, já em torno de 1890, James Bryce descreveria o

controle normativo de constitucionalidade em termos já

apologéticos: “Nenhum aspecto do governo dos Estados Unidos

desperta tanta curiosidade à mente européia, provoca tantas

discussões, merece tanta admiração, e menos se compreende do

que os deveres atribuídos ao Supremo Tribunal e as funções por

ele desempenhadas na defesa da Constituição”. Para o Bryce de A

Comunidade Americana, o poder moderador representado pelo

controle normativo da constitucionalidade atribuído a um poder

não-político, neutro, imparcial, como o Judiciário, era um ovo

de Colombo: “Parte alguma do sistema americano mais credencia

seus autores e melhor funciona na prática. Possui a vantagem

de relegar questões não apenas intrincadas e delicadas, mas

especialmente capazes de excitar a paixão política, à fria e

seca atmosfera da decisão judicial” (BRYCE, 1959, I:80).

Isso não quer dizer que o judiciarismo se tenha firmado

sem oposição. Muito pelo contrário, a oposição foi ferrenha,

não sendo exata a observação, também de Tocqueville, de que a

jurisdição constitucional era “reconhecida por todos os

poderes; não se encontra partido que o conteste” (TOCQUEVILLE,

1973:207). Tendo desde cedo rejeitado o papel de colaborador

do governo para afirmar sua independência e promover uma

interpretação unionista - leia-se: federalista - da

Constituição, a Suprema Corte logo foi considerada peça

estratégica do embate político, tendo os republicanos e,

47

depois, os democratas, regularmente combatido como

antidemocrático o poder de revisão judicial que aquele

tribunal se arrogara. Como forma de contrastar a influência da

Suprema Corte, dominada pelos adversários, Jefferson e outros

republicanos passaram a defender o direito correspondente que

os tribunais estaduais teriam de nulificar leis federais que

julgassem inconstitucionais (PINTO FILHO, 2002:28). Já sob o

influxo dos debates da França revolucionária, um íntimo amigo

de Jefferson, Filippo Mazzei, proporia a criação de um

conselho de anciãos, de caráter político, que cumpriria o

papel de um poder moderador7 (MAZZEI, 1798:376). Em 1809,

Jefferson voltou a reclamar que a Constituição não previra

suficientes freios à autoridade da Suprema Corte. Sete anos

depois, ele romperia com os sistemas de freios e contrapesos

consagrado em Filadélfia para pregar uma pura e simples

separação de poderes, todos eles eletivos - inclusive o

judiciário. Ele pensava que, tornando os três poderes

diretamente responsáveis diante do soberano, o “intermediário”

a que se referira Hamilton no artigo 78 de O Federalista - a

Suprema Corte - poderia afinal ser suprimido. Os argumentos

expostos por Jefferson nesse período acerca do caráter

antidemocrático do controle normativo da constitucionalidade

seriam basicamente os mesmos que invocariam, no futuro, todos

aqueles que se oporiam à jurisdição constitucional, como

7 “Nossas constituições declaram com razão que os três poderes, olegislativo, o executivo e o judiciário, devem ser separados e distintos eabsolutamente independentes um do outro, mas elas não indicam a maneira depor fim às diferenças que poderiam nascer entre eles... Admitindo-se oestabelecimento desses seis (anciãos), essas diferenças poderiam ser julgadaspor eles” (MAZZEI, 1798:376).

48

Alexander Bikel8.

Mas essas contrariedades e limitações não foram capazes

de evitar, a longo termo, a sedimentação do judiciarismo e sua

propagação pelo restante do continente. Ele resistiria às

humilhações que lhe infligiram Andrew Jackson, Abraham Lincoln

e o Congresso da Reconstrução; ele resistiria ao próprio

conservadorismo que dominaria a maioria de seus juízes no

final do século dezenove e só seria vencido por Franklin

Roosevelt, na década de 1930. Com a encampação do movimento

pelos direitos civis, vinte anos depois, o caráter político da

jurisdição constitucional acabou reconhecido por todos os

autores, seja para exaltá-lo ou condená-lo. Da mesma forma, a

hermenêutica jurídica contemporânea tanto reconhece a margem

discricionária do poder decisório dos juízes da Suprema Corte,

que parte dela, encabeçada por Dworkin, que se dedica a

encontrar argumentos filosóficos para cerceá-los, sustentando

que é possível extrair princípios políticos da própria ordem

liberal democrática que conduzam o juiz à decisão adequada9. A8“O puro republicanismo (...) somente pode ser mensurado pelo completocontrole do povo sobre seus órgãos de governo. A pedra de toque daconstitucionalidade deve ser, portanto, um apelo ao povo. Cada órgão dogoverno deve ter 'um igual direito de decidir por si mesmo qual é osignificado da constituição nos casos submetidos à sua ação'. A revisãojudicial era 'efetivamente uma doutrina muito perigosa' e incompatível comuma autêntica leitura da constituição, que havia 'sabiamente feito todos osórgãos co-iguais e co-soberanos entre eles” (VILE, 1998:181).9 Embora empregue imprecisamente o conceito de “política” em seus textos, noque se refere à natureza da dimensão judicial (a carga é empregada nosentido negativo, como sinônimo de “discricionariedade”, mas numa chavepositiva, quando “domada” pelos princípios), o fato é que Dworkin aqui fazuma habilidosa defesa da decisão judicial como devendo ser simultaneamentepolítica, mas não-discricionária. Ele sustenta a necessidade de se superara hermenêutica positivista, cujas tentativas de recuperar a intençãohistórica do legislador mal ocultariam a dimensão política da decisãojudicial sob a capa da aparente neutralidade do julgador. Reivindicandoassim a assunção, pelo juiz, de um papel abertamente político, Dworkin

49

atividade interpretativa da Suprema Corte acabou por assumir

uma tamanha proporção na determinação da ordem constitucional,

que um dos principais constitucionalistas contemporâneos

descreveu a Carta norte-americana recentemente como “uma

prática institucional baseada em um texto em que intérpretes

autorizados (isto é, os juízes daquele tribunal) podem criar novas normas

constitucionais” (GRIFFIN, 1998:56). Ou seja, ainda que por

meio de procedimentos judiciários argumentativamente fundados

em princípios, reconhece-se hoje não apenas o caráter político

da decisão judicial como o próprio caráter legislativo da

atividade hermenêutica desenvolvida pelos juízes da Suprema

Corte, por conta da formidável margem discricionária de que

eles. Não deixa de ser uma ironia para um país que criou o

sistema justamente para, por meio dele, banir a política em

nome do direito.

Fontes primárias:

evita, entretanto, recair no puro realismo jurídico esposado nesta matériapelo próprio Kelsen, para quem, nos casos difíceis, o juiz fica livre paradecidir conforme suas preferências pessoais. Para o jurista austríaco, acrença em valores universais de justiça traduziria uma nostalgia do direitonatural, perfeita “ilusão da justiça” (KELSEN, 2000). Para Dworkin, porém,é perfeitamente possível decidir de forma política e não-discricionária, apartir do momento em que o juiz deve recorrer aos princípios políticos quecaracterizam a ordem liberal democrática em que se insere o ordenamentojurídico. Naturalmente, Dworkin não tem qualquer comprometimento comteorias puramente jurídicas, propondo abertamente a integração da atividadejurisdicional à ordem política liberal e democrática. Assim, à perguntasobre a possibilidade de haver uma única resposta certa para os casoscontroversos, ele responde afirmativamente, negando a discricionariedade dojulgador. A decisão judicial é assim simultaneamente política e não-discricionária (DWORKIN, 2001). Seja como for, Dworkin está no terreno dowishful thinking ao propor que a decisão judicial siga os parâmetros por elepropostos, exatamente porque os julgadores, na prática, tendem a agir demodo discricionário.

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