Do Direito à Política: a Gênese da Jurisdição Constitucional Norte-Americana.
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Do Direito à Política: a Gênese da Jurisdição
Constitucional Norte-Americana.
Christian Edward Cyril Lynch1
Publicado em: Revista de Ciências Sociais (UGF), v. 20, p. 15-40, 2010.
Resumo: O objetivo do artigo é o de reexaminar a gênese dajurisdição constitucional norte-americana e reavaliar asrelações entre direito e política à luz da recente literaturade história das idéias políticas naquele país, resgatando opeso da cultura política inglesa e da tradição colonial depluralismo religioso. Essas duas heranças refletir-se-ão numconceito defensivo de soberania do povo, que levará à propostafederalista de organizar as novas instituições políticas apartir da fragmentação vertical e horizontal do poder. Nointuito de eliminar a discricionariedade inerente ao conceitode soberania, os fundadores da república atribuirão ao senadouma função moderadora que, a longo prazo, ele se revelaráincapaz de exercer. È nesse quadro que, primeiro de modotímido, depois ostensivo, surge a Suprema Corte comoverdadeiro poder moderador da Constituição de 1787.
Palavras-chave: Estados Unidos, Constituição, Inglaterra,jurisdição constitucional, Suprema Corte, Poder Moderador.
Introdução
1 O autor é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário dePesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF); professor da Escolade Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro(UNI-RIO) e do Departamento de Direito Público da Universidade FederalFluminense (UFF).
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Um dos mais fascinantes temas da teoria política é aquele
referente às relações entre os conceitos de soberania popular
e de constitucionalismo que, ao oporem a toda potência
igualitária da massa à proclamada limitação do poder político
em nome da liberdade, conformam uma das mais importantes
antíteses constitutivas da democrática liberal (ARON,
1997:70). Entretanto, os estudos políticos que abordam o
problema daquela antítese conceitual, quando da passagem para
a modernidade política, geralmente se limitam a explicá-la
pela contraposição algo chã e reducionista das teorias liberais
de Locke às democráticas de Rousseau. Essa insistência de uma
análise puramente filosófica e autoral, em detrimento de um
complemento histórico e contextual, deixa de lado uma série de
outros aspectos, concernentes às formas empíricas, concretas,
institucionais, por que aquela antiga oposição foi ou não
resolvida no mundo político real, e consequentemente as
aporias e tensões daí decorrentes. Por isso, alguns estudos
contemporâneos têm preferido se debruçar mais detidamente no
estudo das diferentes soluções e experiências de governo
constitucional e representativo que foram ensaiadas quando da
saída do Antigo Regime, começando pela Inglaterra, pelos
Estados Unidos e pela França, e depois pelo restante da Europa
e da América Ibérica (1789-1848). Em todos os casos até agora
examinados, os resultados têm sido reveladores da complexidade
da transição, em cada realidade nacional, do Antigo Regime
para o Estado democrático liberal, pois ajudam a desvelar as
variadas formas por que transigiram a dimensão especificamente
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política do conceito de soberania com o elemento
caracteristicamente jurídico do conceito de Constituição.
E é justamente nesse espaço intermediário entre soberania
e constituição, como reflexo das aporias e tensões decorrentes
dos esforços de conjugação dos dois conceitos, que deve ser
compreendido o tema momentoso do controle da
constitucionalidade. Por conta da emergência visível do papel
político do Poder Judiciário - fenômeno conhecido como o de
judicialização da política, ou por politização da justiça –, o tema do
controle da constitucionalidade deixou de ser considerado um
tópico estritamente jurídico, confiado à competência dos
juristas e afins, para adentrar triunfantemente na seara das
ciências sociais. Foram justamente esses estudos mais
recentes, resultantes da relativização da abordagem filosófica
pela introdução dos elementos históricos e contextuais, que
permitiram essa avocatória no plano específico da teoria
política, onde o controle da constitucionalidade tem sido
visto tradicionalmente como um assunto secundário; mera
técnica liberal de limitação da soberania popular. Assim, por
exemplo, o exame detalhado efetuado nos anais parlamentares da
Revolução francesa por Marcel Gauchet (GAUCHET, 1995) permitiu
entrever que o tema do controle da constitucionalidade já
tinha lugar no continente europeu no decorrer do século XVIII;
do mesmo modo, procurei demonstrar, em minha tese de
doutorado, que ele se desenvolveu da reflexão republicana
clássica da necessidade de se conciliarem as exigências de um
governo virtuoso regido por leis impessoais, de um lado, e a
de se admitir, excepcionalmente, um poder discricionário que
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pudesse excepcionalmente suspender a legalidade. Essa nova
abordagem me levou a crer, assim, que o controle de
constitucionalidade emergiu do debate político do século XVIII
como uma instituição destinada a legalizar a manifestação da
potência absoluta da soberania, quando circunstâncias
extraordinárias pusessem em perigo a existência da
constituição política do Estado, entendida como expressão
primeira da vontade política de uma comunidade de viver de
modo autônomo.
Naturalmente, a diversidade de panos de fundo ideológicos
e contextuais levou à conformação de tipos distintos de
controle da constitucionalidade. Desenvolvendo argumentações
explicitamente políticas em torno do conceito de soberania e
da necessidade de estabilização do novo governo constitucional
e representativo, no torvelinho da Revolução, os franceses
chegariam à elaboração de uma fina teoria de um controle
estrutural da constitucionalidade. A ele, dar-se-ia o nome de
poder moderador, neutro ou preservador, a ser exercido por um chefe de
Estado imparcial, desvinculado da atividade governativa, com o
fim de preservar o equilíbrio político entre os poderes e,
conseqüentemente, a Constituição em que se plasmava a nova
forma democrática e liberal. Já os norte-americanos, na
esteira da tradição judiciarista britânica, crédulos da
estabilidade política de suas novas instituições, elaboraram
um controle normativo da constitucionalidade, na forma de uma
jurisdição constitucional destinada a circunscrever os
excessos da política, decorrentes do entrechoque dos poderes
soberanos do povo – executivo e legislativo -, dentro de um
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círculo supostamente metapolítico do direito, resguardado pelo
poder judiciário. A ele, dariam o nome de revisão judicial ou
jurisdição constitucional. O poder moderador seria destinado a uma
atuação mais episódica contra os conflitos de natureza e
institucional que ameaçassem as estruturas políticas da
constituição do Estado; a jurisdição constitucional, por sua
vez, era encarregada de preservar a integridade normativa da
Constituição. A mesma função moderadora, portanto, exercida
com diferenças de graus: preservar o Estado liberal desenhado
no documento político que era expressão da vontade soberana: a
Constituição. Isso significa que, ao contrário do que
geralmente se sustenta, o estado de exceção e o controle
normativo da constitucionalidade não são institutos
adversários, mas afins; além disso, a reflexão permite
resolver o lugar do poder moderador na teoria política ou do
Estado, entendido ele como instituição intermediária entre
ambos, na forma de um controle estrutural da
constitucionalidade.
Dando seqüência a essas reflexões, a que voltarei mais
adiante, procederei, neste artigo, a um primeiro reexamine da
gênese e do desenvolvimento da jurisdição constitucional
norte-americana durante o século XIX, de forma a contrapô-los
à gênese e ao desenvolvimento do poder moderado, ocorridos na
França durante o mesmo período – exercício este a que dediquei
em minha tese de doutorado. Este artigo pretende, portanto,
revisitar o tema da gênese da jurisdição constitucional nos
EUA para reforçar o argumento de que o controle normativo de
constitucionalidade pode ser compreendido dentro de uma teoria
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mais ampla que versa sobre o problema do poder discricionário
decorrente do conceito de soberania na formação do Estado
constitucional liberal, entendido aqui como Estado de direito.
Guardando fidelidade à teoria política que me guiou quando
desta última empreitada, reitero minha filiação, no que toca à
forma teórica de se pensar o político, ao espírito da escola
francesa contemporânea, “aroniana”, a que pertencem François
Furet, Claude Lefort, Pierre Rosanvallon e Marcel Gauchet.
Para eles, o fenômeno político deve ser compreendido, na
encruzilhada da filosofia e da história, a partir de uma
interrogação tanto “sobre a origem do poder e sobre as
condições de sua legitimidade; sobre a relação mando -
obediência em toda a extensão da sociedade”, como também
“sobre a religião, sobre os fins respectivos do indivíduo e do
corpo social” (LEFORT, 1991:11). Do ponto de vista da análise
histórica, por sua vez, tentarei me amparar em autores
anglófonos como Gordon Wood, Bernard Baylin, Isaac Kramnick e
John Pocock, que renovaram nas últimas décadas o estudo da
história das idéias políticas norte-americanas no período em
tela em obras como: A Criação da República Americana, As Origens
Ideológicas da Revolução Americana e O Momento Maquiaveliano. Esses
conseguiram abrir uma via intermediária refinada, de gosto
contextual e lingüístico, num debate então esterilizado na
contenda entre os analistas marxistas, para quem a revolução
americana fora elitista e conservadora (PARENTI, 1986:237), e
os estudiosos de expressão liberal e ufanista, para quem
eventos de 1776-1787 teriam constituído, ao contrário, “uma
revolução sem paralelo nos anais da história humana” (MASON,
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1978 23). Como se percebe, trata-se se uma abordagem
histórica e política e não sociológica, puramente filosófica
ou jurídica. Embora verse sobre temas como o da judicialização
da política e a teoria da decisão judicial, o objeto do
controle normativo da constitucionalidade é tratado aqui
exclusivamente a partir da história das idéias políticas e,
portanto, de forma externa ao debate travado, seja no campo da
sociologia do direito, seja no campo da filosofia do direito.
Nestes termos, buscarei desenvolver o argumento de que o
retorno ao ambiente intelectual do período, por intermédio
desses autores, permite compreender a jurisdição
constitucional a partir do débito das instituições norte-
americanas com uma cultura inglesa de precedência do direito
sobre a política e uma tradição colonial de pluralismo
religioso. Essas duas heranças levaram os norte-americanos a
organizar a sociedade política a partir de uma fragmentação do
poder político, não apenas horizontal, pela divisão em
executivo, legislativo e judiciário, mas também vertical, pela
divisão estabelecida entre União e Estados. O resultado foi a
forja de um conceito defensivo de soberania do povo, sem
ênfase na sua unidade ou potência, reservada apenas para o
caso de usurpação do governo por outrem - bastante distinto,
portanto, daquele vigente na Europa continental e, em
particular, daquele consagrado no curso da Revolução Francesa.
No intento de garantir o equilíbrio das diversas partes
componentes, os fundadores da república recorreram à tradição
polibiana do governo misto renovada por Montesquieu para
incumbir o senado de exercer uma função moderadora dessa
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complexa estrutura constitucional – tarefa que, a longo prazo,
ele se revelará, entretanto, incapaz de exercer. È nesse
quadro que, primeiro de modo tímido, depois de forma
ostensiva, enfrentando resistências de toda a ordem,
paulatinamente a Suprema Corte se afirmará como o verdadeiro
poder moderador da Constituição de 1787, no exercício do
controle normativo da constitucionalidade. Depois de examinar
os pareceres dos constitucionalistas americanos do século
dezenove e a forma radicalmente diversa como a jurisdição
constitucional passou a ser percebida cerca de cem anos
depois, o artigo conclui retomando o tema do direito e da
política, representativos das tensões entre o liberalismo e a
democracia.
1. Da jurisdição constitucional como tipo normativo do
controle da constitucionalidade.
No âmbito da teoria política, o tema do controle de
constitucionalidade está umbilicalmente ligado à tensão
constitutiva da organização do Estado moderno como entidade
política. Esta tensão deriva das oposições entre duas idéias-
força em torno dos quais ele foi estruturado, o de soberania
absoluta e o de governo legalmente limitado, nas suas formas
historicamente sucessivas –, soberania monárquica, depois
nacional ou popular, e o de governo misto, depois governo
constitucional representativo ou Estado de direito. A primeira
idéia, encerrada no conceito de soberania, pressupõe a
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existência de um poder uno, indivisível e absoluto, isto é,
discricionário, reunido para preservar a ordem e da segurança
da comunidade por quem detém legitimamente o direito de
governar. Já a segunda idéia, encerrada no conceito de governo
limitado por leis, exprime a divisão eqüitativa do poder entre
as forças da comunidade e sua limitação por leis que assegurem
sua perpetuidade e a liberdade ou autonomia das corporações ou
dos indivíduos que a compõem. Esses princípios antagônicos
começaram a ser conciliados pela doutrina ou teoria do poder
constituinte, para a qual só uma constituição fixada pela vontade
do soberano é legítima a organização institucional e a
limitação do político. Ou seja, que a soberania só é exercida
em sua plenitude no momento constituinte, deixando de ser
ordinariamente exercido quando da entrada em vigência da
constituição que deverá orientar o Estado de direito ou o
governo constitucional. Disse ordinariamente, porque a
manifestação da potência soberana não desapareceu de todo,
depois do advento da ordem constitucional; ela foi canalizada
por três institutos encarregados pela própria constituição de
regular o seu emprego quando nas hipóteses de razão de Estado,
isto é, ocasiões mais ou menos extraordinárias ou excepcionais
de ameaça à sua existência, à sua estrutura política ou à sua
integridade normativa. No fito de responder a cada uma dessas
ameaças, foi constituída uma modalidade diferente de controle,
isto é, de defesa da Constituição.
Exercendo sucessivos tipos de controle constitucional,
portanto, conforme os diferentes graus e espécies de ameaça à
ordem, se acham respectivamente os institutos do estado de
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exceção, do poder moderador e da jurisdição constitucional. Todos eles
regulam o emprego discricionário da força pública desgarrada,
em maior ou menor grau, dos limites ordinariamente impostos
pelo Estado de direito. A faculdade de exercício de cada um
desses institutos foi distribuída eqüitativamente pelos
poderes políticos conforme um critério de relevância. Assim,
coube ao Poder Legislativo a declaração de vigência do
primeiro e mais grave desses institutos, o estado de exceção,
destinado a suspender a constituição no todo ou em parte para
salvá-la ou à comunidade que ela rege. Conforme o país, o
gênero possui diversas espécies ou designações: de guerra, de
sítio, de defesa ou de emergência. O segundo instituto foi conferido
nos países parlamentares ao chefe do Estado, com as
designações de moderador, neutro, régio, preservador ou arbitral,
destinado ao controle das estruturas políticas subjacentes à
normatividade constitucional, ou seja, a velar pelo equilíbrio
entre os poderes políticos. Seu maior doutrinário foi Benjamin
Constant, mas, longe de constitui uma teoria antidemocrática e
superada do século XIX, ela guarda toda a sua atualidade, ao
menos nos países não-parlamentaristas, como fórmula que
possibilita conciliar a estabilidade do Estado com a
permanente contestação aos governos, típica do regime de livre
competição partidária2. Por fim, encarregada de preservar a2 È a questão suscitada por Raymond Aron em Democracia e Totalitarismo. “Comoobter a conciliação entre o entendimento nacional e a contestaçãopermanente?”, ele pergunta. Uma das soluções passaria pela “subtração de umcerto número de funções, de pessoas ou de decisões à contestação dospartidos. Em certos regimes do tipo ocidental – mas não nos paísespresidencialistas - , o presidente da República ou o monarca passa porestrangeiro, superior às lutas partidárias. Dito de outra forma, tenta-seencarnar num homem a adesão unânime dos governados ao regime e à pátria. Omonarca ou o presidente da República é a expressão de toda a coletividade”(ARON, 1965:78).
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incolumidade da Constituição contra as leis, projetos de lei
ou atos normativos editados pelos poderes públicos que
contrariem seus dispositivos normativos, a jurisdição
constitucional foi entregue a um tribunal de natureza e
procedimento judiciários, que exerce controles de diversas
espécies, como o difuso ou concentrado, o abstrato ou concreto, o
preventivo ou repressivo. Circunscrevo-me aqui a esmiuçar o papel
específico da jurisdição constitucional.
O controle normativo da constitucionalidade é exercido por
uma corte ou conselho, à parte ou como cúpula do judiciário,
dotado de autoridade para excluir do ordenamento jurídico
normas produzidas pelos poderes políticos, desde que
considerados incompatíveis com a Constituição. Assim, o juiz
constitucional se faz intérprete da vontade do soberano e, com
base na sua interpretação e em seu nome, toma a decisão que,
ao excluir a norma do ordenamento jurídico, o torna uma
espécie de legislador negativo (KELSEN, 2003). Geralmente,
tais decisões também vinculam a administração pública, que é
obrigada a seguir o mesmo entendimento. Embora os estudos
sobre a natureza desse instituto primem por apresentá-lo como
a antítese do estado de exceção, em nome da conservação dos
direitos individuais ou difusos contra os excessos do poder,
entendo que na verdade são institutos da mesma natureza,
situados nas extremidades opostas de uma mesma balança de
poder discricionário exercido por outras instituições. Ambos
os institutos velam pela preservação da vontade geral, ambos
desempenham papéis eminentemente políticos, ambos fazem uso de
um poder discricionário constitucionalmente regulado. É que a
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jurisdição constitucional ou controle normativo de
constitucionalidade reflete indiretamente a expressão da
vontade geral e, portanto, da soberania popular. Se, conforme
preconiza a teoria que nos rege, a lei votada não exprime a
vontade geral, senão na medida de sua conformidade à
Constituição, é evidente que, na inexistência de um controle
normativo, não haverá garantias de que a lei corresponderá à
expressão da vontade soberana, gerando incerteza sobre a
legitimidade do ordenamento. Assim, o juiz constitucional
também deve ser encarado como intérprete da vontade soberana,
vez que, pelo seu ato de jurisdição, ele enuncia os princípios
contidos na Constituição.
“O juiz constitucional se apresenta, portanto, como o
'representante' encarregado de exprimir a vontade do
soberano inscrita nos textos constitucionais. Ora, esses
textos têm por autor 'o povo soberano (...)', soberano
fictício suposto impor, ao cabo do tempo, sua vontade
constituinte aos poderes constituídos. Esse 'povo soberano
constituinte ' corresponderá ao 'povo eleitoral' que
designa seus representantes políticos? (...) O
constitucionalismo supõe que a vontade do soberano dure;
que ela seja contínua. (...) O juiz constitucional reflete
aos parlamentares a imagem de um representante que deve
respeitar a constituição. (...) O controle de
constitucionalidade permite assim à vontade do 'povo
constituinte' se impor exteriormente aos poderes
constituídos” (BLACHÈR, 2003).
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O estado de exceção, exercido pelo Parlamento, e a
jurisdição constitucional, exercido por um órgão colegiado de
natureza judiciária, se distinguem pelo grau de
discricionariedade de que dispõem. Este é muitíssimo mais
reduzido no caso do controle normativo da Constituição, já que
a decisão jurisdicional impõe a observância de rígidos
procedimentos exegéticos e formais. Essa redução do grau de
discricionariedade se justifica no fato de que, conforme
referido, o estado de exceção e a jurisdição constitucional se
destinam a enfrentar graus distintos de ameaça à Carta – um
existencial; outro, normativo. Pressupõe-se que as ameaças à
vontade soberana, embutidas nos casos submetidos a uma corte
constitucional, são de natureza muito menos gravosa que
aquelas enfrentadas pelo estado de exceção ou pelo poder
moderador. Daí que, inferior o potencial de dano, sua
resolução não requer tanta urgência, nem o mesmo grau de
discricionariedade decisória. Nem por isso, a decisão
jurisdicional perde o seu caráter discricionário. Quem o
reconhece é o próprio Kelsen, criador do modelo de corte
constitucional moderna: quanto mais elevado o topos jurídico a
ser decidido pelo tribunal, mais político e sujeito a
interpretações abertas e discricionárias ele estará:
“O caráter político da jurisdição é tanto mais forte
quanto mais amplo for o poder discricionário que a
legislação, generalizante por sua própria natureza, lhe
deve necessariamente ceder (...). Na medida em que o
legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos
limites, interesses contrastantes entre si, e decidir
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conflitos em favor de um ou de outro, está lhe conferindo
um poder de criação do direito, e portanto um poder que dá
à função judiciária o mesmo caráter 'político' que possui
– ainda que em maior medida – a legislação” (KELSEN,
2003).
Entretanto, o que a jurisdição constitucional perde em
discricionariedade, ganha em periodicidade de seu exercicio
cotidiano, através da possibilidade de ser provocada por parte
de membros legitimados pelo soberano por meio da propositura
de ações específicas ou da interposição de recursos de última
instância. É o que, aliás, explica também a adoção de ritos
mais elaborados, pautados pelo contraditório e do devido
processo legal, próprios do direito e, em particular, do
direito processual. Historicamente, esse instituto encontrou
suas formas sucessivas de exercício nos modelos da Suprema
Corte norte-americana e do Tribunal Constitucional austríaco,
copiados mais ou menos por toda a parte nos últimos dois
séculos. É sobre a gênese do primeiro modelo, americano, que
o artigo discorrerá.
2. A precedência do direito sobre a política: a Constituição
norte-americana como aperfeiçoamento da Constituição da
Inglaterra.
Parte substantiva do repertório conceitual que concorreu
para a elaboração da Constituição norte-americana de 1787 foi
extraída do debate que teve lugar na Inglaterra durante a
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primeira metade do século XVIII. Capitaneado por Bolingbroke
na década de 1720 contra o discurso liberal emergente, o
republicanismo cívico voltou com força total quando Jorge III
ascendeu ao trono e enfim a oligarquia whig foi desalojada do
poder, quarenta anos depois. O retorno dos tories aos conselhos
da Coroa deu a muitos whigs, agora na oposição, a oportunidade
de reencontrar o antigo cânone radical que haviam abandonado
ao subirem ao poder; desta vez, porém, o discurso radical
revestiu-se também de uma série de argumentos jusnaturais e
contratualistas articulados por Locke para fundar a
legitimidade da ordem política. Nessa qualidade, o
republicanismo foi reivindicado pelos que condenavam qualquer
concepção de governo restritiva de direitos políticos,
postulando por isso reformas no sistema eleitoral que só em
1832 começariam a ser efetuadas (POCOCK, 1985:258). Foi essa
tradição republicana revelou-se vivíssima nas colônias
inglesas da América do Norte nos anos que precederam a guerra
da independência. Outra fonte em que foram beber os
fundadores da república norte-americana para justificar a
submissão e a limitação do político ao direito foi o
constitucionalismo antiquário (BAILYN, 2003:49).
Grosso modo, a tradição política inglesa resultava da
conjugação de dois discursos que, desaparecidos do continente,
sobreviveram na cultura política anglófona – o
constitucionalismo antiquário e o republicanismo cívico (ou
clássico). O discurso republicano cívico remonta a Roma antiga
e postula que, amparada na moralidade dos seus costumes e no
culto da lei, a liberdade política do povo era condição
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essencial para o autogoverno da polis. Livre da disciplina
moral, o homem tenderia a se corromper, e essa degeneração dos
costumes traria consigo a decadência do governo e a tirania.
Já o constitucionalismo antiquário pugnava que os direitos dos
cidadãos ingleses remontavam à Idade Média, decorrendo de uma
luta entre o poder arbitrário e a resistência à opressão, cujo
desfecho, na Revolução Gloriosa, culminara com a vitória da
liberdade (POCOCK, 1997). Ambas as ideologias entendiam que o
bem estar da sociedade política dependia de instituições que,
embora representativas do poder popular, fossem limitadas pela
lei. Predominava aí uma concepção pluralista do político, onde
o direito do indivíduo, compreendido como produto da vontade
histórica e fundamento da ordem legítima, formatava a esfera
de manifestação da soberania. Essa concepção foi decisiva na
formatação do liberalismo anglo-americano, com seus postulados
de individualismo e livre iniciativa, e sua condenação da
ingerência do Estado na esfera privada. Do ponto de vista
constitucional, essa concepção das relações de poder se
refletia num respeito quase religioso às formalidades
jurídicas, na supressão quase absoluta do recurso ao poder
discricionário, na divisão dos poderes e no papel do Poder
Judiciário, como moderador político. No entanto, o caráter
fundacional decorrente da independência das treze colônias
impôs importantes diferenças frente à experiência inglesa
institucional, inclusive no conceito de Constituição. Pretendo
destacar alguns dos elementos de ruptura e de continuidade
verificados nesse momento, dentro da tradição anglo-americana
de soberania e de Estado de direito.
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O primeiro ponto é, naturalmente, a posição dos
fundadores da república norte-americana frente ao modelo
institucional representado pela Constituição Inglesa, julgada
então de maneira ambivalente, como tudo relacionado à
metrópole. Aqueles que a acusavam, para justificar a
independência, apontavam-lhe quatro defeitos. Primeiro, ela
seria demasiado complicada, de difícil compreensão; segundo,
ela não consagrava a soberania do povo, almejando uma
injustificada acomodação da democracia com elementos
monárquicos e aristocráticos que lhe deveriam ser subordinados
ou simplesmente eliminados. Desqualificado idealmente, o
governo misto estamental também era condenado in concreto, já que
a prática constitucional se revelara incapaz de coibir as
usurpações dos órgãos da vontade popular pela Coroa (MADDOX,
1989:60). Por fim, a forma costumeira da constituição tornava
precária a defesa dos direitos contra o poder político,
devendo ser escrita e, assim, ter forma visível: a
Constituição Inglesa era “imperfeita, sujeita a convulsões e
incapaz de produzir o que parece prometer” (PAINE, 1973:53).
Por outro lado, mesmo aqueles que criticavam a Carta britânica
ressalvavam que ela encerrava muitas lições que precisavam ser
aproveitadas; com todos os esses defeitos, ela ainda era a
melhor modalidade de organização política conhecida. Embora
Jefferson reconhecesse, pois, que ela era uma “espécie de meio
termo” entre despotismo e o governo livre (JEFFERSON,
1973:19), o próprio Paine reconhecia que “os indivíduos têm
mais segurança na Inglaterra do que nos outros países” (PAINE,
1973:53 e 54). O resultado foi que, embora criticada, a
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própria Constituição da Inglaterra deveria servir de base para
a elaboração de uma organização política superior. “A história
da Grã-Bretanha (...) nos dá muitas lições úteis”, lembrava
Hamilton. “Podemos nos valer da experiência deles, sem ter de
pagar seu custo” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:109). O modelo
britânico serviu assim de principal referência dos
convencionais de Filadélfia, a ponto de um conhecido Jefferson
reconhecer que a Constituição dos Estados Unidos resultara “da
composição dos princípios da Constituição Inglesa com os
outros, derivados do direito natural e da razão natural”
(JEFFERSON, 1973:13). Esse aperfeiçoamento da equilibrada
Constituição britânica envolvia, porém, aspectos muito
delicados, que passavam previamente por reconceitualizar a
soberania do povo norte-americano e depois articulá-la com o
arcabouço institucional do novo estado federativo.
Isto posto, na fabricação da Constituição dos Estados
Unidos, predominaram, ainda que racionalizadas, as premissas
constitucionais antiquárias implícitas no sistema da common
law, que haviam sido levadas para a América inglesa no início
da colonização e vulgarizadas pela obra de Blackstone. Embora
a independência tenha gerado movimentos pela codificação do
direito, a queda de braço travada nas décadas subseqüentes
terminou com a vitória do sistema herdado da ex-metrópole e,
com ela, a influência doutrinária dos juristas ingleses que
tinham Edward Coke como patrono (DAVID, 1996:364).
3. Fragmentação religiosa e direito natural: uma concepção
defensiva da soberania popular.
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Na raiz desse movimento, estava uma concepção de
soberania e de povo muito diferentes daquelas que, naquela
época, predominavam nas obras dos republicanos franceses. A
concepção francesa hegemônica de Estado de direito consagrava
a soberania do povo como princípio ordenador da ordem
política. A lei era aí vista como um instrumento de uma
vontade eticamente definida e, como tal, poderia ser suspensa
ao seu arbítrio. Ou seja, era a política que formatava o
direito, e não o contrário. Do ponto de vista constitucional,
a subordinação da lei à soberania implicava a subordinação do
Judiciário frente aos poderes políticos – Executivo e
Legislativo. Por conseguinte, o Judiciário ficava
impossibilitado de verificar a constitucionalidade dos seus
atos ou de apreciar as ações de que o Estado fizesse parte,
reservados à esfera de uma justiça administrativa. No
entanto, o juscontratualismo anglo-americano considerava a
soberania popular de modo completamente diverso. Para eles,
Estado e representação eram elementos apartados do povo e
soberania. Se estes últimos davam-lhes origem por meio das
eleições, nem por isso estes adquiriam qualquer força
autônoma. Os federalistas entendiam que era da “natureza do
poder soberano uma avidez (...) que dispõe os que estão
investidos de seu exercício a ver com maus olhos todas as
tentativas de limitar (...) suas ações” (MADISON, HAMILTON &
JAY, 1993:163). Assim, ao invés de concentrar o poder soberano
do povo nas mãos de um único representante, como preconizavam
os republicanos franceses, os fundadores da república norte-
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americana preferiram desinstitucionalizar completamente o locus
da soberania, deixando-o nas mãos do povo. Como a dimensão
absoluta do poder soberano era malvista independentemente de
quem fosse o seu detentor, a soberania do povo foi
interpretada, não ofensivamente, como força de ação e criação,
mas defensivamente, como o poder de resistência a qualquer
tipo de absolutismo que violasse os direitos naturais.
Atualizada e consolidada por argumentos iluministas, a
soberania do povo passou a ser identificada a um complexo de
direitos fundamentais conferidos aos indivíduos por Deus, pela
natureza ou pela história.
Essa perspectiva era perfeitamente oposta àquela de
Rousseau, que concebera o povo soberano como potência
legisladora leiga e ativa. A tese de que o pacto de associação
suprimira os direitos naturais, dissolvendo-os no poder
coletivo e soberano da vontade geral, era categoricamente
rejeitada. Não apenas a anterioridade e a perenidade dos
direitos eram as únicas salvaguardas da resistência à tirania
(JEFFERSON, 1973:10), como a própria concepção de uma
soberania, desvinculada do reconhecimento prévio dos direitos
naturais do homem, era considerada base do despotismo eletivo
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:340). Para os norte-americanos,
o papel da lei não era o de criar o direito fundamental, pois
ele já existia na natureza e na divindade; o que ela deveria é
confirmá-lo aos olhos dos homens e garanti-lo no melhor estilo
lockeano (BAILYN, 2003:179). A finalidade do pacto de
associação era melhor salvaguardar o direito, que continuava
essencialmente nas mãos do povo; por isso, as relações entre
20
povo e Estado eram estabelecidas por meio de mandatários
eleitos, cujos poderes decorriam de uma delegação a título
precário. O preconceito contra o poder político em geral,
visto como ameaçador, justificava o apelo de Paine a que os
homens não se descuidassem “no dever e apego mútuos”, pois
“nada, a não ser o céu, é inimpregnável ao vício”. Daí que o
Estado não passasse de “mal necessário” (PAINE, 1973:52). O
político se achava, portanto, em posição subordinada frente ao
direito, devendo pautar-se em conformidade a ele.
No entanto, a principal causa dessa concepção
dessubstancializada do conceito de soberania democrática nos
Estados Unidos, mais profundamente que a herança inglesa, deve
ter sido a cultura protestante das colônias. A tradição
católica francesa motivara os seus teóricos a transferir ao
povo todos os atributos da soberania divina, como a unidade, a
bondade e a onipotência, voltando-a simultaneamente contra a
Igreja e o Trono para criar um absolutismo democrático.
Fragmentada em inúmeras seitas igualitárias e desprovidas de
um intermediário entre o céu e a terra, a tradição protestante
norte-americana, ao contrário da francesa, preservava a esfera
religiosa em toda a sua intensidade e por isso a punha numa
esfera distinta e superior à política, ainda que a moldasse à
sua feição. Assim, ao invés de deslocar os atributos de
soberania de Deus para o povo e voltá-los contra a própria
religião, Deus continuou perfeitamente poderoso e intocado nos
Estados Unidos, velando pelos direitos naturais de seus fiéis
na terra – a liberdade, a igualdade e a propriedade. A Bíblia
tornou-se assim a principal fonte de mobilização política pela
21
defesa dos direitos fundamentais: os libelos de Paine, por
exemplo, apontavam no sentido da fundação de uma “república de
direito divino”. Segundo ele, “a vontade do Todo Poderoso
(...) desaprova expressamente o governo dos reis. (...) A
monarquia, na Bíblia, ocupa o lugar de um dos pecados dos
judeus, pelo que paira sobre eles a maldição” (PAINE,
1973:55/56). O manifesto de independência americana fez quatro
referências a Deus: ele era autor da natureza e das leis
naturais, criador dos direitos individuais, juiz da justiça da
rebelião emancipadora e fonte da divina providência, em cujos
desígnios os revoltosos confiavam (JEFFERSON, 1952:1). Como se
percebe, a precedência do jurídico sobre o político não
passava por uma concepção estritamente laica do direito; muito
pelo contrário, ela se justificava justamente pela conotação
religiosa que perseguia a idéia de justiça embutida no
direito.
4. Da fragmentação religiosa à fragmentação política:
federalismo, representação e divisão dos poderes na
organização constitucional de 1787.
Dito isto quanto à compreensão da natureza da soberania
do povo na Constituição de 1787, outro tanto o merece a
respeito da forma como o poder político representativo haveria
de ser exercido no quadro das novas instituições. Três pontos
aqui são particularmente dignos de atenção. Os dois primeiros
dizem respeito à distribuição espacial ou horizontal do poder
22
político, operada pela criação da estrutura federativa, e à
legitimação das instituições do Estado, articulada pela
representação política. O terceiro ponto a ser abordado
concerne à distribuição vertical do poder político,
viabilizada pela divisão de poderes por critério de
especialidade de competências e por seu equilíbrio aos
mecanismos de freios e contrapesos. Este terceiro ponto se
entrelaça com a questão do controle normativo da
constitucionalidade ou da jurisdição constitucional.
O problema da conciliação da unidade da soberania com a
dualidade de estruturas governativas não era um problema novo
na América do Norte: uma fórmula de soberania dual havia sido
esboçada antes da independência, quando se tentara acomodar a
teoria da supremacia parlamentar com a reivindicação
autonomista das colônias (BAILYN, 2003:202). Rechaçada pelas
autoridades britânicas por criar um imperium in imperio, a idéia
acabou resgatada pelos fundadores da república norte-
americana, depois da independência. Da convenção de Filadélfia
saiu assim um governo federal substantivamente mais poderoso
que o estabelecido anteriormente pela confederação. Mesmo
assim, ele ainda parecia mais fraco do que o de qualquer
monarquia européia, dada o receio que tinham os Estados-
membros de que suas prerrogativas pudessem ser ameaçadas pelo
novo centro de poder. Os Estados consideravam-se entidades
soberanas e naturalmente não desejavam que sua liberdade de
ação acabasse reduzida ou aniquilada com a criação da União
Federal. A fim de evitar problemas teóricos que servissem de
munição aos opositores do projeto constitucional, os
23
federalistas preferiram confirmar, em seus escritos, a teoria
da soberania dos entes federados – o que não os impediu de, na
prática, transferir para a União a maior parte das
prerrogativas inerentes à soberania: a manutenção de relações
internacionais, a declaração de guerra, a mobilização de
exércitos e a cunhagem de moeda (MADISON, HAMILTON & JAY,
1993:281). Nascia assim a célebre doutrina do federalismo
dual, caracterizada por “poderes mutuamente exclusivos,
reciprocamente limitadores, cujos ocupantes governamentais se
defrontavam como iguais absolutos” (SCHWARTZ, 1984:26). A
celebridade dessa doutrina, porém, esteve longe de resolver o
problema teórico da unidade da soberania na prática
institucional norte-americana. Nos Estados Unidos, ela
serviria de argumento para a secessão dos estados do Sul, em
1860, estopim da guerra civil que a sucedeu3.
O segundo aspecto relevante na nova configuração
institucional concerne à representação, concebida como
delegação temporária de poder deliberativo. A vastidão do
território nacional e a multiplicidade de interesses nele
existentes prenunciavam desafios para os quais o
republicanismo cívico, que valorizava os meios diretos de
participação do povo, parecia oferecer poucas respostas. De3 Ainda hoje, “a doutrina da soberania popular não tem tido um significadoclaro para a tradição constitucional americana. O conceito de soberaniapersistiu como problema porque embora a geração fundadora estivesseacostumada a ser parte de um governo que inclui a monarquia, eles eram,sobretudo, republicanos. Esta mesma geração discordava sobre a natureza e alocalização da soberania, mas não sobre a importância deste conceito emsuas novas circunstâncias politicas” (SIFFERT, 2002:60). Até mesmo noBrasil, durante a primeira década republicana, ela geraria uma série decontrovérsias inauguradas no começo da década de 1890 entre Campos Sales eAnfilófio de Carvalho, pacificadas somente quando o Supremo Tribunal, dezanos depois, assentou que apenas a União Federal era soberana.
24
sorte que a representação política já parecia uma necessidade
indeclinável do mundo atual mesmo para os republicanos puros,
admiradores dos modelos da Antiguidade (JEFFERSON, 1973:14).
Essa consciência da ruptura no interior das temporalidades não
significa, porém, uma rejeição em bloco do classicismo: embora
o mundo se tivesse modificado demasiado para que aqueles
modelos pudessem ser imitados de forma acrítica, “os
progressos da ciência política” permitiriam adaptá-los aos
tempos modernos (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:129). A
principal adaptação a ser efetuada era a da teoria do governo
misto, pedra de toque da teoria institucional do
republicanismo clássico e que pressupunha o equilíbrio do
poder político entre duas câmaras, uma ocupada pela
aristocracia, outra pela democracia. A preexistência de uma
camada aristocrática e virtuosa era mesmo um pressuposto
sociológico do republicanismo clássico. Ocorre que os
federalistas se decepcionaram em sua expectativa de que a o
patriciado rural norte-americano pudesse desempenhar aquele
papel e compensar, com suas virtudes cívicas, a carência que
dela tinham as camadas inferiores (POCOCK, 1975:514). Daí que
a questão da representação política adquiriu foros de um
problema magno: além de viabilizar o a república num país de
grandes proporções, ela deveria agora ser organizada de sorte
a filtrar, entre os candidatos, aqueles mais capazes de
administrar a coisa pública; dessa forma, a falta de uma
aristocracia natural seria qualitativamente suprida. Os
efeitos deletérios do poder do número seriam corrigidos,
limitando-se este a plebiscitar a posteriori a gestão de seus
25
mandatários (MANIN, 1996:209). Ao contrário do republicanismo
francês, não era função da representação projetar a unidade
soberana para o interior das estruturas políticas, mas
refletir pluralmente a diversidade numa rede de instituições
eqüipotentes e equilibradas: “A regulação desses interesses
diversos e concorrentes constitui a principal tarefa da
legislação moderna e introduz o espírito partidário nas
operações necessárias e ordinárias do governo” (MADISON,
HAMILTON, & JAY, 1993:135).
Esse ponto nos leva ao terceiro e último aspecto do
arcabouço institucional, relativo à distribuição vertical do
poder pela sua divisão em três, a partir de um critério de
divisão de competências por especialidade, e de seu
equilíbrio, pela inserção de mecanismos de freios e
contrapesos. A necessidade de se garantir os direitos
individuais protegidos pela Constituição exigia fórmulas que
permitissem às facções competirem entre si, sem pôr em risco a
estabilidade sistêmica.
Para os federalistas, haveria apenas dois meios capazes
de operar essa proeza. O primeiro passava pela criação de um
“poder independente (...) da própria sociedade” (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:351). Em tese, esse poder autônomo
poderia ser criado tanto pelo preenchimento de certos cargos
públicos por um critério de hereditariedade, como pela criação
de órgãos que, como as convenções e os conselhos de censura,
previstos na tradição republicana; órgãos que periodicamente
institucionalizavam, em nome do soberano, um poder
discricionário encarregado de examinar a Constituição,
26
reformá-la e anular os atos normativos ou leis que, elaborados
nesse ínterim, fossem considerados incompatíveis com ela
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:343). Disse em tese porque, os
federalistas julgavam os dois mecanismos inviáveis na prática.
A hereditariedade lhes parecia incompatível com o princípio
republicano, que exigia a eleição popular para todos os
cargos. Já as convenções à Mably se lhes afiguravam
tumultuárias e inócuas; e, quanto ao tribunal de censura, a
experiência daquele previsto na Constituição da Pensilvânia
(1776) também não o recomendava4, tendo sido incapaz de
constituir um locus ético de defesa do bem comum. Além disso,
como Montesquieu, os federalistas temiam que institutos como
estes só conseguissem manter a ordem sacrificando a liberdade.
Para eles, abolir a liberdade porque ela nutria lhes parecia
“tão insensato quanto desejar a eliminação do ar (...) porque
ele confere ao fogo sua ação destrutiva” (MADISON, HAMILTON &
JAY, 1993:134).
Todos esses motivos que os levavam a rejeitar as
convenções soberanas e dos tribunais de censura e, com eles, a
própria ambição de instaurar uma instância estatal autônoma da
própria sociedade, poderiam ser reduzidos a um único: a
impossibilidade de se criar um poder eletivo imparcial,
intérprete abalizado do interesse comum. Os federalistas não
acreditavam que o Estado pudesse ser ocupado por legisladores
iluminados, capazes de incutir as virtudes cívicas num povo4 O artigo 46 dessa Constituição determinava que coubesse a esse tribunal decensura examinar “se a constituição tem sido preservada inviolada em cadauma de suas partes; e se os poderes executivo e legislativo têmdesempenhado seus deveres como guardiões do povo, ou arrogado para si ouexercido outros ou maiores poderes, além daqueles conferidos pelaconstituição”.
27
corrompido; logo, achavam que os sistemas de controle fundados
em poderes independentes da sociedade acabavam encapsulados
pelo próprio facciosismo que deveriam combater, podendo “tanto
esposar as aspirações injustas da maioria como os interesses
legítimos da minoria” como “se voltar contra ambos os grupos”
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:352). Toda representação criava
sempre um interesse particular e a politicidade inerente a
esse órgão lhe impossibilitaria de fazer exame imparcial dos
atos cometidos pelos demais poderes, que também eram políticos
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:347). Ademais, a rejeição de um
controle político ou estrutural de constitucionalidade, por
parte dos federalistas, não decorria apenas do seu modo
eletivo de composição; o vício residia na própria natureza
humana que, dominada pelas paixões, raramente conseguia
visualizar o bem comum. A virtude que havia no mundo não era
suficientemente duradoura ou tão estável para que se pudesse
fiar apenas nela para se fundar a república (BAILYN,
2003:327).
Essa descrença num órgão político capaz de assegurar a
supremacia do soberano, por meio do imparcial controle da
ordem constitucional representativa, levava os federalistas a
uma segunda alternativa: a de arquitetar “de tal modo a
estrutura interna do governo, que suas várias partes
constituintes possam ser, por suas relações mútuas,
instrumentos para a manutenção umas das outras em seus devidos
lugares” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:349). O poder político
deveria ser fracionado nas mãos de “um número tão grande de
categorias distintas de cidadãos, que tornaria muito
28
improvável, senão impraticável, o conluio injusto da maioria”
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:351). Evidentemente, a tradição
de uma multiplicidade de seitas religiosas convivendo
harmonicamente num mesmo espaço pesou de forma decisiva nessa
solução de pulverizar o poder político para garantir a
liberdade. Adaptando a Constituição da Inglaterra, tal como
Montesquieu a descrevera, os federalistas preconizavam a
construção de um arcabouço institucional onde os poderes
políticos, embora emanassem da vontade popular, deveriam ser
igualmente divididos por especialização e mantidos em
equilíbrio por freios e contrapesos.
“Enquanto toda a autoridade emanará da sociedade e dela
dependerá, a própria sociedade estará fragmentada em
tantas partes, interesses e categorias de cidadãos, que
os direitos dos indivíduos, ou da minoria, serão pouco
ameaçados por combinações interesseiras da maioria. (...)
As facções ou partidos serão gradualmente induzidos (...)
a desejar um governo que proteja todas as partes, tanto a
mais fraca quanto a mais poderosa” (MADISON, HAMILTON &
JAY, 1993:352).
Tomando como modelo a teoria do governo misto que
norteava a Constituição da Inglaterra, os federalistas
projetaram, com o nome de república, uma monarquia original,
temperada e eletiva. O elemento temperado ficava por conta da
outorga do Poder Legislativo a um outro órgão, que não o
príncipe; já o elemento eletivo, decorria de ser o príncipe
eleito pelo povo para reinados de duração predeterminada:
quatro anos. A este príncipe, deram o nome de Presidente da
29
República. Interessante notar que o esboço de sistema de
gabinete foi rejeitado como fruto da corrupção da Constituição
Inglesa. “Esse 'poder arbitrário dominador, que controla
absolutamente o Rei, os Lordes e os Comuns era composto,
dizia-se, pelos 'ministros e favoritos do Rei' que, a despeito
de Deus e dos homens igualmente, 'estendem sua autoridade
usurpada infinitamente longe' e, abandonando o equilíbrio da
constituição, fazem de sua 'vontade despótica' a autoridade da
nação” (BAILYN, 2003:126). Se o Executivo deveria recair
portanto sobre uma única pessoa, o Poder Legislativo deveria
ser bicameral. Na câmara baixa ficariam os representantes do
povo e, na alta, os dos estados-membros da federação.
Encarregado de preservar os direitos individuais, o Judiciário
seria formado por juízes vitalícios e encabeçado por uma corte
suprema federal. O sistema de freios e contrapesos se compunha
de várias possibilidades de intervenção recíproca entre os
poderes políticos. Destacava-se a faculdade de veto do
Executivo sobre projetos do Legislativo, a nomeação dos juízes
pelo presidente, a possibilidade de declaração de nulidade de
atos inconstitucionais pelo Judiciário, o mútuo papel revisor
das câmaras sobre os respectivos projetos e, finalmente, o
processo de impeachment do Legislativo contra o Executivo. Essa
teia de poderes e suas respectivas interconexões eram
replicadas em número correspondente ao dos estados-membros da
federação, que também a adotariam em seus respectivos
territórios.
5. O Senado e a intervenção federal como mecanismos de
30
equilíbrio constitucional.
A partir dessa idéia de unidade da soberania originária,
fragmentada todavia sua projeção pelos órgãos do Estado, os
fundadores da república norte-americana conseguiram conciliar
a exigência da origem popular de todo o poder, sem constituir
no interior do aparelho do Estado, a supremacia de um
interesse único, tal como preconizado pelo “celebrado
Montesquieu” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:332). Em
particular, evitava-se o perigo de uma câmara popular
demasiado poderosa que, com sua força, desequilibrasse os
poderes públicos e pusesse o governo exclusivamente nas mãos
da multidão. A pedra angular desse sistema, que lhe conferiria
o almejado equilíbrio, residiria na câmara alta, o Senado. Os
argumentos que faziam dele o “regulador estrutural” ou “poder
moderador” das instituições norte-americanas foram três:
primeiro, o da necessidade de um elemento aristocrático, extraído da
tradição humanista; segundo, o do equilíbrio institucional pela oposição
de diferentes interesses, retirado da filosofia moral inglesa; e
terceiro, a exigência de uma representação estadual eqüitativa junto ao
governo da União.
Vimos que sobrevivia na cultura política anglo-americana
uma tradição aristocrática que se nutria do receio da
democracia. Na medida em que, na república, o fundamento do
poder residia essencialmente no povo, a assembléia única que o
representasse ficaria “imbuída de intrépida confiança em sua
própria força”, pois seria “suficientemente numerosa para
sentir todas as paixões que movem uma multidão” (MADISON,
31
HAMILTON & JAY, 1993:339). A concentração das prerrogativas
soberanas numa única instituição resultava “numa das mais
execráveis formas de governo que a insensatez humana jamais
concebeu” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:200); daí que o
sistema legislativo unicameral à francesa apresentava maiores
perigos do que o Executivo único. Nos Estados Unidos, a
tradição e a história indicavam aos federalistas que, sem uma
classe social economicamente independente, educada, livre, e
permanentemente acima do egoísmo mesquinho da multidão, ao
invés de representar a 'infinita diversidade dos interesses
particulares e opiniões dissonantes', ele ficaria prisioneiro
do interesse da maioria ignorante e pobre, levando a um regime
de desordens (BAILYN, 2003:258). Eis por que o Legislativo
deveria ser fracionado em duas câmaras distintas, a fim de
que, nos momentos difíceis, um senado “moderado e respeitável”
pudesse chamar a turba à razão, dissipando os ânimos e
favorecendo o equilíbrio.
O argumento extraído da filosofia moral inglesa
sustentava que não era preciso esperar excessiva virtude dos
senadores para que o salutar efeito moderador do senado fosse
produzido pela câmara alta: bastava recrutá-los de maneira a
que, pela natureza de seus próprios interesses, ele não
pudesse se identificar com o povo representado na câmara
baixa, nem com o governo, dirigido pelo chefe do Estado
(MONTESQUIEU, 1979:151). Na prática, esse “componente seleto e
estável no governo”, que era a câmara alta, (MADISON, HAMILTON
& JAY, 1993:404) poderia ser forjado adotando-se certas
precauções frente aos critérios admitidos para a seleção para
32
a Câmara baixa. Primeiro, os requisitos de elegibilidade
ficariam mais rigorosos, elevando-se a idade mínima para que
os candidatos fossem mais maduros. Segundo, a duração dos
mandatos deveria ser três vezes mais longa, a fim de que a
estabilidade incutisse nos senadores um interesse de longo
prazo. Por último, os senadores não deveriam ser eleitos pelo
povo, mas por cada assembléia estadual. Elas seriam capazes de
fazê-los representar, não as paixões da câmara baixa, mas os
interesses gerais de cada estado que, de si mais serenos, o
ficariam ainda mais pela eleição indireta.
Por fim, na costura do acordo parlamentar sobre a
organização da representação legislativa federal, conhecida
como “o grande compromisso”, a idéia de uma segunda câmara
caiu como luva. Divididos os deputados acerca do critério para
se distribuir as cadeiras de representantes junto à União,
isto é, se deveria ser adotado o critério de proporcionalidade
relativamente ao tamanho da população, ou um critério de
paridade entre os Estados, fundado na igual soberania de cada
qual, a proposta de se criar duas câmaras ao invés de uma
agradou a gregos e a troianos: o primeiro critério serviria
para a composição da Câmara dos Deputados; o segundo critério,
para organizar o Senado (MILLER, 1962:116). Foi assim que o
senado se tornou, aos olhos de uma longeva tradição
constitucionalista norte-americana, “a mais importante e
valiosa parte do sistema e seu verdadeiro ponto de equilíbrio,
que ajusta e regula seus movimentos” (STORY, 1833:182).
Esse modelo de governo plural, que concebia a política
como uma arena de poderes delegados pela representação,
33
fragmentada verticalmente pelo federalismo e, horizontalmente,
pela divisão de poderes, impactou de modo negativo quanto à
possibilidade de manifestação excepcional do poder
discricionário. É verdade que os federalistas recorriam ao
“fato excepcional” para justificar o emprego extraordinário da
força: “a idéia de governar sempre pela simples força da lei
(...) só tem lugar nos devaneios daqueles doutores em
política, cuja sagacidade desdenha os conselhos da
experiência” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:223); “nenhuma
limitação pode ser imposta à autoridade encarregada de
assegurar a defesa e a proteção da comunidade” (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:261). No entanto, esse argumento não foi
utilizado para ampliar a ação do poder excepcional, mas para
criar o próprio poder federal, visto como uma
“superintendência discricionária geral”, contra a oposição
encabeçada pelos antifederalistas (MADISON, HAMILTON & JAY,
1993:161). A referência ao poder discricionário excepcional
tem por fim convencer o leitor da necessária subordinação dos
Estados ao poder da União e não para justificar a eventual
dispensa da lei ou da apreciação judiciária dos atos do
governo. Com efeito, a Constituição de 1787 esteve longe de
contemplar hipóteses como a de sua própria suspensão em caso
de urgência e perigo iminente. Ela só admitiu a mesma hipótese
tímida prevista pela Constituição da Inglaterra previa desde o
Bill of Rights: a suspensão do habeas corpus em caso de rebelião ou
invasão estrangeira (art. 1o. Seção 9). As discussões da
Convenção Constitucional evidenciam que a preocupação em
cercear o poder discricionário da União Federal veio
34
principalmente dos Estados, que temiam que suas eventuais
resistências futuras aos atos inconstitucionais daquelas
pudessem sempre ser interpretadas como rebeliões, ensejando a
suspensão do habeas corpus; entretanto, cedo se chegou a um
consenso de que sob circunstâncias extremas de guerra ou
invasão teria de ser tomada medida semelhante (TURLEY,
2005:154)5.
A lógica da estrutura federativa deu ensejo, todavia, a
uma nova modalidade de ação discricionária regulada - a
intervenção federal. Na condição de “baluarte contra o perigo
estrangeiro, a mantenedora da paz entre nós, a guardiã de
nosso comércio (...) e o antídoto adequado contra a doença das
facções” (MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:153), a cabia à União
Federal intervir nos Estados-membros para combater “o abuso
dos governantes” e “as agitações e arbitrariedades do
facciosismo e da sedição na comunidade” (MADISON, HAMILTON &
JAY, 1993:189). Mas nem sempre a intervenção derivaria da
decisão soberana do governo federal; ela só teria lugar quando
ameaçada a forma republicana de governo ou em caso de invasão
estrangeira ou de outros estados federados. Em todos os demais
casos, a Constituição exigia como requisito da intervenção a
5 Posteriormente, a eclosão de guerras civis ou mundiais não impediu que setentasse alargar o campo de autoridade discricionária do governo federal,por meio de leis ordinárias, doutrinas ou medidas de pura força. Assim, em1917, a lei de espionagem deu origem, pela Suprema Corte, à doutrina do“perigo real e iminente”, com que se tentava limitar a liberdade deexpressão para reprimir os progressistas que protestavam contra orecrutamento para a guerra. No julgamento de Schenck vs. Estados Unidos, aSuprema Corte entendeu que “para que o governo possa punir a manifestaçãode uma opinião, é necessário geralmente que tenha ocorrido em taiscircunstâncias ou sido de tal natureza que criasse um perigo evidente eatual do que decorreriam males substantivos que o governo poderia evitar”(CORWIN, 1986:239).
35
requisição do próprio governo do Estado. Nessas hipóteses, não
tinha o governo federal direito algum de agir por conta
própria, isto é, julgar por si mesmo se os governos estaduais
teriam ou não capacidade de dar conta de seus problemas
sozinhos (art. 4, seção 4a., da constituição). No mais, a
discricionariedade regulada parecia banida do panorama
institucional norte-americano: o senado “moderador” não gozava
de qualquer poder especial, não havia formas de controle
político dos atos normativos (como a censura), admitindo-se
apenas, a título de freio, um controle normativo de caráter
judiciário, difuso e ex post.
6. Do Senado à Suprema Corte: o triunfo do controle normativo
sobre o controle político da constitucionalidade.
No entanto, a prática constitucional veio desmentir as
intenções dos fundadores da república de extirpar do solo da
América a “bolha discricionária”. A primeira intervenção
federal foi decretada já em 1794 para sufocar a insurreição do
uísque na Pensilvânia (JACQUES, 1964:96); além disso, a
restrição dos direitos fundamentais, durante e depois da
Guerra de Secessão, iria bastante mais além do que previra a
Constituição. Nas áreas conflagradas, Lincoln agiria como
autêntico ditador, abolindo a escravidão nos Estados do Sul
por meio de proclamação unilateral, de que o Congresso não
participou. Seguindo a tradição inglesa, a Suprema Corte
entendeu em 1863 que, nos negócios que dissessem respeito às
36
zonas de guerra onde tribunais não funcionassem ou fosse
“impossível exercer a jurisdição criminal”, a lei marcial
poderia ser decretada para substituir a autoridade civil pela
militar, que ficaria encarregada de velar “pela segurança do
exército e da sociedade” (In: SCHMITT, 1968:224). Esse acórdão
não impediu que, dominado pelos radicais abolicionistas, o
Congresso decretasse a lei marcial em cinco diferentes
distritos depois do final da guerra, como mero instrumento de
repressão dos focos de resistência à política adotada no Sul
(MILLER, 1962:202). Quanto à interpretação do Senado como um
poder moderador, popularizada por Story, ela colapsou quando o
processo de democratização tornou evidente o caráter elitista,
politizado e partidário daquela instituição. Tornara-se
problemático sustentar que o Senado constituiria uma câmara de
caráter equilibrado e apolítico, pois que há muito a
instituição se achava sujeita à mesma sorte de pressões
partidárias que a Câmara dos Deputados, recriminada por todos
os lados como sede dos lobbies de todas as oligarquias rurais,
comerciais e industriais do país (ZIMMERMANN, 1999:124). O
debate culminou na promulgação da 17a. emenda constitucional,
em 1913, que alterou a fórmula de escolha de senadores, que
passaram a ser eleitos pelos votantes de seus Estados, ao
invés de o serem pelos Legislativos estaduais. Desde então,
tornou-se impossível, desde então tratá-lo seriamente como uma
verdadeira câmara de representação estadual.
Essas evoluções da prática constitucional norte-
americanas foram acompanhadas da emergência de outra
instituição, cujo papel não havia sido claramente estabelecido
37
pelos federalistas e cuja pretensa apoliticidade havia sido
sempre questionada pelos políticos. Esse órgão foi a Suprema
Corte. O papel desse tribunal nos Estados Unidos deve ser
examinado a partir das conseqüências, já insinuadas aqui, do
modo como os fundadores daquela república encaravam as
relações entre direito e política. Imersos intelectualmente nas
fontes do republicanismo cívico, do contratualismo whig e da
tradição jurídica do constitucionalismo antiquário, os
federalistas cultivavam uma visão dicotômica entre direito e
política que os levava, a exemplo dos ingleses, a compreender
o jurídico como o lugar do não-político, isto é, da força que
limitava o político. Essa visão era diametralmente oposta à
dos republicanos franceses, para quem o direito, embora dele
distinto, extraía sua força precisamente do fato de constituir
a autêntica expressão do político. Encarando o direito como
espaço da despolitização, o discurso anglo-americano tinha por
fim esvaziar o conteúdo ético do conceito de soberania que se
achava no coração da tradição política da Europa continental.
Desaparecido o locus social em que se pudesse ancorar uma ética
de bem comum que servisse de óbice ao espectro do
partidarismo, impunha-se substituí-lo pelo formalismo de um
compromisso constitucional escrito, consagrador dos direitos
individuais e da divisão, autolimitação e equilíbrio dos
poderes estatais. Para tanto colaboraram a experiência das
antigas cartas coloniais e das constituições estaduais
preexistentes, bem como o desejo de pôr os princípios
jurídicos sobre as instituições políticas, a salvo dos embates
cotidianos dos interesses particulares. Como a organização do
38
Estado e os direitos humanos haviam se tornado os princípios
ordenadores da comunidade, o interesse público passava a ser
entendido como o minimum minimorum de eticidade do texto
constitucional (BAILYN, 2003:80). Documento onde o interesse
público encontrava a sua expressão e limitação, a Constituição
precisava forçosamente ser considerada superior às demais leis
existentes no âmbito da União. Esse foi, aparentemente, o
desejo dos convencionais da Filadélfia, que no art. 6º.
daquele documento o qualificaram como “a lei suprema do país”.
Do princípio da supremacia da Constituição, pouco
bastava para se deduzir um segundo princípio, o da supremacia do
Judiciário, insinuado no art. 3o. seção 2a. daquela carta e
solidamente ancorado na experiência inglesa (CAPPELLETTI,
1984:59). A lógica sistêmica era clara: o fato da soberania do
povo impunha, à realidade do sistema representativo,
mecanismos de controle da legitimidade dos atos praticados
pelos representantes, que poderiam sempre extrapolar os
limites de suas respectivas delegações. Esse controle da
legitimidade, que passava pelo poder de “declarar a nulidade
dos atos contrários ao sentido manifesto da Constituição”
(MADISON, HAMILTON & JAY, 1993:480), deveria ser exercido por
um poder distinto daqueles dois, independente como eles, mas
imparcial diante de suas rusgas. Ao contrário do tribunato
rousseaniano, que moderaria somente o executivo para proteger
o legislativo soberano (ROUSSEAU, 1996), nenhum poder político
detinha, nos Estados Unidos, a exclusividade na representação
da soberania popular. Por conseguinte, não havendo qualquer
hierarquia ente eles, a preservação da ordem normativa da
39
Constituição pressupunha um órgão que arbitrasse seus
conflitos.
No entanto, o conteúdo defensivo do conceito de
soberania e a descrença dos federalistas a respeito na
neutralidade de qualquer órgão eletivo na esfera do interesse
público frustraram qualquer veleidade de que o controle
normativo pudesse ser exercido por uma instituição
independente. Madison propusera à convenção que se criasse um
conselho político de revisão judicial, mas a proposta
naufragou, sob as acusações gerais de que ele violaria a
separação e a igualdade dos três poderes políticos (KRAMNICK,
1993:48). Inadmitida qualquer forma autônoma de controle, só
restava delegar aquela função ao Poder Judiciário em geral.
Destarte, ele seria “um intermediário entre o povo e o
Legislativo, de modo a, entre outras coisas, manter este
último dentro dos limites atribuídos a seu poder” (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:481). No conjunto deste poder, a Suprema
Corte ganhava relevo: era ela que decidiria da
constitucionalidade das leis em última instância, ao julgar os
processos judiciais individuais em grau de recurso e os
conflitos entre os entes federados. Na prática, esse poder de
decidir soberanamente sobre a interpretação da Constituição
tornava-na um quarto poder, superior, ao mesmo tempo, aos
demais órgãos judiciários, ao governo e ao congresso. Daí o
surgimento, no lugar do senado, desse poder que o próprio
Washington designara como a “coluna-mestra”, a “chave de
abóbada do nosso edifício político” (In: BARBOSA, 1974:326).
Ocorre que não foi assim como, até pouco tempo, o papel
40
da Suprema Corte no quadro constitucional norte-americano foi
explicado. Ainda que reconhecessem o papel decisivo dos
tribunais na compreensão do alcance e dos limites das normas
editadas pelo poder legislativo6, seus próprios defensores
negavam o caráter político das decisões daquele tribunal e sua
posição de superioridade frente aos outros dois poderes. Os
operadores jurídicos pleiteavam que, ao nulificar leis, o
Judiciário não decidia discricionariamente; apenas exercia uma
atividade hermenêutica que simplesmente declarava a intenção
do soberano, expressa – agora sim – de modo discricionário no
compromisso constitucional. Os federalistas, aliás, foram os
primeiros a corroborar a opinião de Montesquieu, para quem o
Judiciário era um poder politicamente nulo, adstrito que era à
aplicação mecânica das leis (MADISON, HAMILTON & JAY,
1993:479). Ora, na medida em que a organização política dos
Estados Unidos se consolidava, a Suprema Corte precisava
construir e delimitar suas funções institucionais, sem gerar
oposição violenta por parte do Congresso ou da Presidência da
República. Por razões estratégicas, os magistrados preferiram
insistir na neutralidade do Judiciário, que supostamente se
restringiria a aplicar o ordenamento jurídico e resolver as
6 “Todas as leis novas, ainda que redigidas com a maior perícia técnica eaprovadas apos a mais completa e madura deliberação, são consideradas maisou menos obscuras e equivocas até que seu significado seja estabelecido edeterminado por uma série de discussões e julgamentos particulares. Aobscuridade que surge da complexidade dos objetos e da imperfeição dasfaculdades humanas, o meio pelo qual os homens transmitem uns aos outrossuas concepções acrescentam uma nova confusão (...) Nenhuma língua (...) érica o bastante para suprir palavras ou expressões para toda idéiacomplexa, ou tão correta a ponto de não incluir muitas de denotaçãoequivoca (...). E essa inevitável imprecisão será maior ou menor, segundo acomplexidade e a novidade dos objetos definidos” (MADISON, HAMILTON & JAY,1993:268).
41
controvérsias constitucionais, lançando mão do critério
hierárquico. Assim, a justificativa para declarar a nulidade
do texto legislado seria buscada noutra norma legislada, a ela
superior – e não fora do sistema jurídico, em fundamentações
políticas (SOUZA NETO, 2002:62).
Essa linha de argumentação tornou-se majoritária, de
modo que, graças a juristas como Joseph Story e Thomas Cooley,
em meados do século dezenove a doutrina constitucional norte-
americana já construíra uma elaborada interpretação que
confirmava a rigorosa separação que deveria prevalecer entre o
direito e a política, a fim de não violar o princípio da
separação e da igualdade dos poderes. Embora ao Judiciário
coubesse o papel de intérprete máximo da Constituição, ele
ficava proibido de julgar o mérito de questões exclusivas dos
poderes legislativo e executivo, isto é, “questões políticas”,
cuja característica estava no exercício, por parte dos
congressistas e do presidente, de competência discricionária.
Assim, “sobre questões políticas, os tribunais não têm
qualquer autoridade, devendo aceitar a determinação dos órgãos
políticos do governo como conclusivas” (COOLEY, 1898:156).
Mas, como a doutrina não elencava de forma exaustiva que
questões eram essas, ela fornecia argumentos para que o
Legislativo e Executivo desobedecessem a decisões judiciárias,
a pretexto de que o Judiciário se metera em “questão
política”. Na mesma trilha, a doutrina vedava o exame da
constitucionalidade da lei em tese, ou seja, em abstrato,
validando apenas os casos individuais em que a lei acusada de
inconstitucional vulnerasse interesse concreto. Na medida em
42
que, nesses casos, o efeito nulificador da sentença se
limitaria a restaurar os direitos violados dos autores,
preservava-se a ficção de que a lei elaborada pelos outros
dois poderes políticos seguia intocada, restaurando-se o
direito ferido sem violar o princípio da separação de poderes
e o princípio democrático.
“Os diversos órgãos do governo são iguais em dignidade e
em autoridade coordenada e nenhum pode sujeitar o outro à
sua própria jurisdição, nem privá-lo de qualquer porção
de seus poderes constitucionais. Mas o judiciário é a
autoridade última na interpretação da constituição e das
leis, e sua interpretação deve ser recebida e seguida
pelos outros departamentos. (...) Mas os tribunais não
têm autoridade para julgar questões abstratas, nem
questões não suscitadas pelo próprio litígio e que,
portanto, digam respeito exclusivamente às autoridades
executiva e legislativa. Nem há aí qualquer método pelo
qual suas opiniões possam ser constitucionalmente
expressas, de modo a ter força vinculante sobre o
executivo ou o legislativo, quando a questão se
apresenta, não como relativa a uma lei existente, mas
como algo próprio à política, competente para legislar no
futuro. O judiciário, embora juiz último do que a lei é,
não é o juiz do que a lei deve ser” (COOLEY, 1898:159).
Portanto, para aqueles que defendiam a revisão judicial,
a alegação de que ela contrariava o princípio de separação e
eqüipotência dos poderes não passava de um falso problema. Se
haveria que se falar em superioridade de algum poder, ele
43
residia, não no Judiciário, mas no povo soberano; os juízes
apenas teriam sido incumbidos de, por meio da jurisdição
constitucional, garantir que a vontade dos políticos não fosse
além daquela que o povo estabelecera na Constituição (MADISON,
HAMILTON & JAY, 1993:480). No final do século dezenove, ela
acabou repetida por James Bryce em A Comunidade Americana,
reputada o primeiro “clássico” da ciência política moderna, e
obra destinada a ter imensa repercussão no modo de explicar o
funcionamento do sistema político-institucional norte-
americano, até a Primeira Guerra Mundial:
“Os juízes americanos, ao contrário do que usualmente
dizem os europeus, não ‘controlam o legislativo’, mas
simplesmente interpretam a lei. A palavra ‘controlar’ é
enganadora porquanto implica dizer que a pessoa ou órgão
que a usa possui e exerce vontade pessoal discricionária.
Ora, os juízes americanos não têm mais vontade na questão
do que o tribunal inglês quando interpreta as leis do
Parlamento. A vontade que prevalece é a do povo, expressa
na Constituição. Os juízes simplesmente verificam nas
leis qual a vontade do povo, aplicando-a aos fatos de
determinado caso. (...) Faltariam eles ao dever se
expressassem, poderíamos dizer, sequer pensassem, uma
opinião sobre a política que a respalda, exceto na medida
em que tal política contribuir para explicar-lhe a
significação (...). Interpretar a lei, isto é, elucidar a
vontade do povo como legislador supremo, constitui o
princípio e o fim dos seus deveres” (BRYCE, 1959,
I:76/77).
44
Foi desse modo que a doutrina buscou, por mais de um
século, negar a superioridade e a politicidade do Poder
Judiciário, verberando seu papel meramente jurisdicional de
controle, último dos mecanismos de interdependência entre os
poderes.
7. A jurisdição constitucional como poder moderador
reconhecido da Constituição americana.
A primeira manifestação concreta do ativismo judiciário
no exame da constitucionalidade das leis teve lugar em 1803,
quando do julgamento do caso Marbury vs. Madison. No voto do
presidente daquela Corte, John Marshall, foram enunciadas pela
primeira vez as três teses centrais do judiciarismo, isto é, do
movimento de defesa da jurisdição constitucional. A primeira
tese sustentava a superioridade normativa da Carta,
considerada a manifestação máxima da vontade do povo, expressa
na plenitude de seu poder discricionário: era o princípio da
supremacia da Constituição. Marshall explicava que a vontade
soberana só poderia ser respeitada na medida em que se
reconhecesse a Carta como uma lei hierarquicamente superior às
demais; do contrário, “a Constituição escrita não passa de um
esforço inútil” (In: MASON, 1978:41). A segunda tese do
judiciarismo preconizava que, sendo da essência da atividade
judicante que os tribunais interpretassem as normas sobre os
casos concretos, a jurisdição constitucional era corolário
necessário da vontade do povo de se governar por uma
45
Constituição (TEPKER, 2003:131). A terceira tese enunciava
que, em decorrência dos postulados anteriores, os magistrados
ficavam obrigados a, em caso de conflito normativo, preferir
sempre a aplicação do comando constitucional àquele da lei
ordinária. Do contrário, não faria sentido que os países
elaborassem leis constitucionais; elas não passariam de
“tentativas absurdas (...) de limitar um poder ilimitado por
sua própria natureza”. E prosseguia: “Qual é o serviço ou o
objetivo de um Judiciário senão executar as leis de maneira
pacífica e ordenada, sem derramar sangue, criar uma disputa ou
levar os senhores a fazer uso da força?… A quem os senhores
irão recorrer contra uma infração da Constituição, se não
conferirem tal poder ao judiciário? Não há outro órgão capaz
de proporcionar tal proteção” (In: MASON, 1978:41).
Reafirmado pela Corte Suprema quando do julgamento do
caso Fletcher vs. Peck, em 1810, o judiciarismo ganhou cada vez mais
força entre os constitucionalistas e os teóricos políticos -
até que, 23 anos depois, em seus Comentários à Constituição dos
Estados Unidos, o primeiro grande comentarista da constituição
norte-americana, Joseph Story, aduziu que a Suprema Corte era
o “final e comum árbitro fornecido pela própria Constituição,
a que todas as outras decisões ficam subordinadas” (STORY,
1833:347). Pouco depois, ainda na década de 1830, Tocqueville
reconheceria o judiciarismo como uma realidade inconteste em A
Democracia na América: “Os americanos reconheceram nos juízes o
direito de fundamentar seus veredictos na Constituição mais do
que nas leis. Em outras palavras, permitiram-lhes não aplicar
leis que lhes pareçam inconstitucionais” (TOCQUEVILLE,
46
1973:207). Na obra, por fim, escrita com o propósito
deliberado de superar a Democracia na América como guia de exame e
interpretação do sistema político-institucional norte-
americano, já em torno de 1890, James Bryce descreveria o
controle normativo de constitucionalidade em termos já
apologéticos: “Nenhum aspecto do governo dos Estados Unidos
desperta tanta curiosidade à mente européia, provoca tantas
discussões, merece tanta admiração, e menos se compreende do
que os deveres atribuídos ao Supremo Tribunal e as funções por
ele desempenhadas na defesa da Constituição”. Para o Bryce de A
Comunidade Americana, o poder moderador representado pelo
controle normativo da constitucionalidade atribuído a um poder
não-político, neutro, imparcial, como o Judiciário, era um ovo
de Colombo: “Parte alguma do sistema americano mais credencia
seus autores e melhor funciona na prática. Possui a vantagem
de relegar questões não apenas intrincadas e delicadas, mas
especialmente capazes de excitar a paixão política, à fria e
seca atmosfera da decisão judicial” (BRYCE, 1959, I:80).
Isso não quer dizer que o judiciarismo se tenha firmado
sem oposição. Muito pelo contrário, a oposição foi ferrenha,
não sendo exata a observação, também de Tocqueville, de que a
jurisdição constitucional era “reconhecida por todos os
poderes; não se encontra partido que o conteste” (TOCQUEVILLE,
1973:207). Tendo desde cedo rejeitado o papel de colaborador
do governo para afirmar sua independência e promover uma
interpretação unionista - leia-se: federalista - da
Constituição, a Suprema Corte logo foi considerada peça
estratégica do embate político, tendo os republicanos e,
47
depois, os democratas, regularmente combatido como
antidemocrático o poder de revisão judicial que aquele
tribunal se arrogara. Como forma de contrastar a influência da
Suprema Corte, dominada pelos adversários, Jefferson e outros
republicanos passaram a defender o direito correspondente que
os tribunais estaduais teriam de nulificar leis federais que
julgassem inconstitucionais (PINTO FILHO, 2002:28). Já sob o
influxo dos debates da França revolucionária, um íntimo amigo
de Jefferson, Filippo Mazzei, proporia a criação de um
conselho de anciãos, de caráter político, que cumpriria o
papel de um poder moderador7 (MAZZEI, 1798:376). Em 1809,
Jefferson voltou a reclamar que a Constituição não previra
suficientes freios à autoridade da Suprema Corte. Sete anos
depois, ele romperia com os sistemas de freios e contrapesos
consagrado em Filadélfia para pregar uma pura e simples
separação de poderes, todos eles eletivos - inclusive o
judiciário. Ele pensava que, tornando os três poderes
diretamente responsáveis diante do soberano, o “intermediário”
a que se referira Hamilton no artigo 78 de O Federalista - a
Suprema Corte - poderia afinal ser suprimido. Os argumentos
expostos por Jefferson nesse período acerca do caráter
antidemocrático do controle normativo da constitucionalidade
seriam basicamente os mesmos que invocariam, no futuro, todos
aqueles que se oporiam à jurisdição constitucional, como
7 “Nossas constituições declaram com razão que os três poderes, olegislativo, o executivo e o judiciário, devem ser separados e distintos eabsolutamente independentes um do outro, mas elas não indicam a maneira depor fim às diferenças que poderiam nascer entre eles... Admitindo-se oestabelecimento desses seis (anciãos), essas diferenças poderiam ser julgadaspor eles” (MAZZEI, 1798:376).
48
Alexander Bikel8.
Mas essas contrariedades e limitações não foram capazes
de evitar, a longo termo, a sedimentação do judiciarismo e sua
propagação pelo restante do continente. Ele resistiria às
humilhações que lhe infligiram Andrew Jackson, Abraham Lincoln
e o Congresso da Reconstrução; ele resistiria ao próprio
conservadorismo que dominaria a maioria de seus juízes no
final do século dezenove e só seria vencido por Franklin
Roosevelt, na década de 1930. Com a encampação do movimento
pelos direitos civis, vinte anos depois, o caráter político da
jurisdição constitucional acabou reconhecido por todos os
autores, seja para exaltá-lo ou condená-lo. Da mesma forma, a
hermenêutica jurídica contemporânea tanto reconhece a margem
discricionária do poder decisório dos juízes da Suprema Corte,
que parte dela, encabeçada por Dworkin, que se dedica a
encontrar argumentos filosóficos para cerceá-los, sustentando
que é possível extrair princípios políticos da própria ordem
liberal democrática que conduzam o juiz à decisão adequada9. A8“O puro republicanismo (...) somente pode ser mensurado pelo completocontrole do povo sobre seus órgãos de governo. A pedra de toque daconstitucionalidade deve ser, portanto, um apelo ao povo. Cada órgão dogoverno deve ter 'um igual direito de decidir por si mesmo qual é osignificado da constituição nos casos submetidos à sua ação'. A revisãojudicial era 'efetivamente uma doutrina muito perigosa' e incompatível comuma autêntica leitura da constituição, que havia 'sabiamente feito todos osórgãos co-iguais e co-soberanos entre eles” (VILE, 1998:181).9 Embora empregue imprecisamente o conceito de “política” em seus textos, noque se refere à natureza da dimensão judicial (a carga é empregada nosentido negativo, como sinônimo de “discricionariedade”, mas numa chavepositiva, quando “domada” pelos princípios), o fato é que Dworkin aqui fazuma habilidosa defesa da decisão judicial como devendo ser simultaneamentepolítica, mas não-discricionária. Ele sustenta a necessidade de se superara hermenêutica positivista, cujas tentativas de recuperar a intençãohistórica do legislador mal ocultariam a dimensão política da decisãojudicial sob a capa da aparente neutralidade do julgador. Reivindicandoassim a assunção, pelo juiz, de um papel abertamente político, Dworkin
49
atividade interpretativa da Suprema Corte acabou por assumir
uma tamanha proporção na determinação da ordem constitucional,
que um dos principais constitucionalistas contemporâneos
descreveu a Carta norte-americana recentemente como “uma
prática institucional baseada em um texto em que intérpretes
autorizados (isto é, os juízes daquele tribunal) podem criar novas normas
constitucionais” (GRIFFIN, 1998:56). Ou seja, ainda que por
meio de procedimentos judiciários argumentativamente fundados
em princípios, reconhece-se hoje não apenas o caráter político
da decisão judicial como o próprio caráter legislativo da
atividade hermenêutica desenvolvida pelos juízes da Suprema
Corte, por conta da formidável margem discricionária de que
eles. Não deixa de ser uma ironia para um país que criou o
sistema justamente para, por meio dele, banir a política em
nome do direito.
Fontes primárias:
evita, entretanto, recair no puro realismo jurídico esposado nesta matériapelo próprio Kelsen, para quem, nos casos difíceis, o juiz fica livre paradecidir conforme suas preferências pessoais. Para o jurista austríaco, acrença em valores universais de justiça traduziria uma nostalgia do direitonatural, perfeita “ilusão da justiça” (KELSEN, 2000). Para Dworkin, porém,é perfeitamente possível decidir de forma política e não-discricionária, apartir do momento em que o juiz deve recorrer aos princípios políticos quecaracterizam a ordem liberal democrática em que se insere o ordenamentojurídico. Naturalmente, Dworkin não tem qualquer comprometimento comteorias puramente jurídicas, propondo abertamente a integração da atividadejurisdicional à ordem política liberal e democrática. Assim, à perguntasobre a possibilidade de haver uma única resposta certa para os casoscontroversos, ele responde afirmativamente, negando a discricionariedade dojulgador. A decisão judicial é assim simultaneamente política e não-discricionária (DWORKIN, 2001). Seja como for, Dworkin está no terreno dowishful thinking ao propor que a decisão judicial siga os parâmetros por elepropostos, exatamente porque os julgadores, na prática, tendem a agir demodo discricionário.
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