Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentin

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Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino Mário Maestri * El drama de la historia argentina seguía en pie: no había ninguna clase con interés en hacer del país una gran nacion capitalista. La historia no brindava ninguna salida pera este circulo de hierro. Milcíades Peña, El paraíso terrateniente. O caráter da colonização ibero-americana De forma explícita, dois autores marxistas, Décio Frei- tas, no Rio Grande do Sul, em 1980, e Milcíades Peña, vinte anos antes, na Argentina, defenderam o caráter capitalista da produção pastoril da bacia do Prata. O primeiro, em polê- mica marginal ao centro de sua produção e investigação his- toriográfica, relacionado com a escravidão colonial brasileira, o segundo, em uma interpretação geral sintética da formação social argentina. Um debate de certo modo suspendido com a regressão das pesquisas sobre o caráter das estruturas socio- econômicas das formações sociais no contexto do descrédito lançado sobre esses estudos pela maré neoliberal triunfante de fins dos anos 1980.

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Círculo de ferro:

Milcíades Peña e o capitalismo

pastoril argentino

Mário Maestri*

El drama de la historia argentina seguía en pie: no había ninguna clase con interés en hacer del país una gran nacion capitalista.

La historia no brindava ninguna salida pera este circulo de hierro.

Milcíades Peña, El paraíso terrateniente.

O caráter da colonização

ibero-americana

De forma explícita, dois autores marxistas, Décio Frei-tas, no Rio Grande do Sul, em 1980, e Milcíades Peña, vinte anos antes, na Argentina, defenderam o caráter capitalista da produção pastoril da bacia do Prata. O primeiro, em polê-mica marginal ao centro de sua produção e investigação his-toriográfica, relacionado com a escravidão colonial brasileira, o segundo, em uma interpretação geral sintética da formação social argentina. Um debate de certo modo suspendido com a regressão das pesquisas sobre o caráter das estruturas socio-econômicas das formações sociais no contexto do descrédito lançado sobre esses estudos pela maré neoliberal triunfante de fins dos anos 1980.

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Décio Freitas e o capitalismo pastoril

sul-rio-grandense

Em 1980, polemizando com parte da historiografia tradi-cional sul-rio-grandense, que defendia, de forma acanhada, a importância do trabalhador escravizado na produção pastoril, o historiador Décio Freitas apresentou o ensaio “O capitalis-mo pastoril”, introdutório a livro homônimo. Nele publicou textos históricos referentes ao debate e sua defesa do caráter capitalista do pastoreio extensivo sul-americano e dos estan-cieiros como “burguesia pastoril” no período colonial e pós-colonial.1

No trabalho, assinalou que inúmeros autores latino-americanos compartiam a mesma visão, citando a Sérgio Bagú , em Estructura social de la colônia, de 1952; Ruben H. Zorrilla , em Extracción social de los caudillos: 1810-1870, de 1972, que se apoia em Sérgio Bagu; e Nahuel Moreno, em Quatro tesis sobre la colonización española y portuguesa, de 1954.2 No geral, o último autor reproduziu, de forma redu-cionista, as propostas do historiador Milcíades Peña para a Argentina. Décio Freitas apoiou sua tese em passagens de O capital, de Marx.3

Décio Freitas nasceu no Rio Grande do Sul, em 1922, e faleceu em Porto Alegre, em 2004. Quando estudante, em meados dos anos 1940, militou no PCB, mantendo-se a seguir como intelectual marxista, politicamente próximo ao traba-lhismo. Nos anos 1940, trabalhou como jornalista nos perió-dicos sul-rio-grandenses Correio do Povo, Diário de Notícias e Tribuna Gaúcha, este do PCB. Formou-se em Direito pela UFRGS, dedicando-se à advocacia. Participou do governo

1 FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. _______. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: Est, 1980. p. 9-52.

2 BAGÚ, Sergio. Estructura social de la colônia: ensayo de historia comparada de América Latina. Buenos Aires: Ateneo, 1952; ZORRILLA , Ruben H. em Ex-tracción social de los caudillos: 1810-1870. Buenos Aires: La Pleiade, 1972.

3 FREITAS, op. cit., p. 11.

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João Goulart (1961-1964). Foi cassado pelo regime militar e refugiou-se por breve tempo em Montevidéu, após 1964, onde escreveu estudo historiográfico sobre a confederação dos qui-lombos de Palmares, publicado em 1971 e 1973, respectiva-mente, naquela cidade e em Porto Alegre.

Escravidão e luta de classes

A edição em português de seu livro, Palmares: a guer-ra dos escravos, conheceu diversas edições, corrigidas e am-pliadas, e repercussão historiográfica, cultural e política. De forma relativamente original, o estudo destacava o caráter escravista da sociedade brasileira e os quilombos como forma de luta de classes.4 Nos anos seguintes, Décio Freitas publi-caria outros livros sobre a escravidão e sobre a luta de classes na Colônia e no Império, sem igual repercussão.5

Freitas foi fortemente marginalizado e hostilizado por ideólogos conservadores e pela historiografia acadêmica, so-bretudo sulina, que consolidara sua institucionalização e se profissionalizara durante a ditadura militar. Veto ideológico que se apresentou comumente como crítica a uma narrativa historiográfica dirigida ao grande público. Freitas escrevia de forma elegante, sintética e despreocupado com as normas da historiografia acadêmica, como a citação em notas das fontes que apresentava, de forma geral, na conclusão do trabalho.

Em O capitalismo pastoril, Freitas citou exaustivamen-te, em notas, suas referências, restritas à documentação pri-mária e secundária publicada. Sob a pressão da maré neoli-

4 FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973.

5 Cf., entre outros: FREITAS, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre: Movi-mento, 1976; Escravos e senhores-de-escravos. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: UCS, 1977; Escravidão de índios e negros no Brasil. Porto Alegre: EST/ICP, 1980; O escravismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980; O ca-pitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. Os guerrilheiros do imperador. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

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beral de fins dos anos 1980, como tantos outros intelectuais, rendeu-se às posições conservadoras na historiografia, na so-ciedade e na política. Então, como editorialista e colunista do jornal Zero Hora, da RBS, tornou-se um dos mais ativos, des-tacados e criativos pensadores conservadores sulinos. Nesses anos publicou livros de pouco valor, de forte cunho ficcional, memorialístico e conservador, que apresentava como historio-grafia.

Em 1980, em Capitalismo pastoril, Décio Freitas dedu-zia o caráter capitalista da produção pastoril sulina dos sé-culos 18 e 19 apoiado em dois grandes argumentos. Primei-ro, o latifúndio pastoril era propriedade “alodial” e, portanto, “isenta de quaisquer vínculos ou dependência, podendo o dono dispor dela como bem entendesse, para a compra e a venda, [...] etc.” Nisso tinha absoluta razão, ainda que esta não fosse condição suficiente para a definição de produção rural capi-talista. Segundo, pelo fato de a fazenda pastoril, segundo ele, apresentar “aquilo que” era o “traço específico do capitalismo: não apenas a produção de mercadorias, de resto presente em outros sistemas, mas a transformação da própria força-de-trabalho em mercadoria, como outra qualquer”.

Trabalhadores livres

Décio Freitas defendia que, nos séculos 18 e 19, no Sul, a “massa de trabalhadores rurais” fosse composta “de homens juridicamente livres que, não possuindo a nenhum título os meios de produção”, tinham “que vender sua força-de-traba-lho para prover à sobrevivência”. Afirmava que o trabalho “escravo ou semi-servil” apareceria de forma “esporádica e isoladamente nessa produção pecuária”, onde preponderava “em forma absoluta” o “trabalho assalariado”. Definia os “pos-teiros”, categoria social secundária da exploração pastoril, como relação semifeudal, pelo fato de não receberem salários

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por suas funções, mas apenas o direito de explorar a terra, e por dependerem do arbítrio dos proprietários. A fazenda pas-toril sulina seria “sistema de produção social baseado no tra-balho assalariado, o que importa dizer sistema capitalista”. Ainda que “impuro, dependente e subdesenvolvido”.6

O próprio esforço de Freitas para enquadrar a produção pastoril extensiva sulina nas categorias analíticas marxianas referentes à produção capitalista circunscreve a fragilidade da sua proposta. Nesse trabalho, define o “gado alçado”, “pi-lhado” nas “arreadas ou vacarias”, como “capital constante e circulante”, que teria constituído a base inicial do desen-volvimento da “empresa pastoril capitalista”, e apresenta o mesmo gado como “mercadoria-boi”, surgida no processo da produção.7 Tenta, inutilmente, superar a contradição de pro-dução pastoril extensiva determinada fortemente pelo “tempo de produção [sic] natural” diante do baixo aporte do “tempo de produção social”.8

Maior ainda é a dificuldade de adequar a mão de obra pastoril extensiva sulina desse período ao leito de Procustro da proposta “mão de obra livre e assalariada”. Freitas reduz a contribuição do trabalhador escravizado na estância às tare-fas domésticas, agrícolas e auxiliares, descartando-o das fun-ções pastoris propriamente ditas por razões lógicas – o cativo custava caro; fugiria, se tivesse um cavalo à disposição; o afri-cano não conhecia o pastoreio e era caro treiná-lo nessa ativi-dade, etc.9 Reserva as funções pastoris exclusivamente para os trabalhadores assalariados, com destaque, nos primeiros tempos, para a população indígena ou de origem indígena, vista como “trabalhadores ideais para a produção pecuária”.10

6 FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 10-11. 7 Idem, p. 16.8 Idem, p. 18.9 Idem, p. 35.10 Idem, p. 29.

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Relações pré-capitalistas

Ao discutir a informação sobre os trabalhadores livres no pastoreio que reúne, Freitas foi obrigado a registrar obje-tivamente as características pré-capitalistas dessa força de trabalho. Destaca, por um lado, o emprego não permanente do produtor direto nas estâncias e, por outro, sua remunera-ção sob a forma de alimentação, de moradia, etc., complemen-tada por “algum salário” monetário. “[...] o estancieiro não pa-gava totalmente em dinheiro o salário. Parte deste era pago em espécie, ou seja, diretamente em meios de subsistência.”11

Meios de subsistência dos trabalhadores provenientes, por um lado, da esfera de produção natural da estância e, por outro, de parte da produção da esfera mercantil da mesma propriedade que não era escoada ao mercado. O fato de que o gaúcho, na função de peão, pudesse se empregar e se afastar periodicamente das tarefas pastoris assinalava já não esta-rem dadas as condições de separação plena dos produtores diretos da reprodução autônoma dos seus meios de existência, ou seja, não existiam as condições necessárias para a forma-ção de exército de trabalhadores de reserva.12

A própria documentação primária editada consultada por Freitas sugeria e assinalava que as grandes estâncias se serviam necessariamente da mão de obra escravizada nas tarefas auxiliares e pastoris propriamente ditas – “cati-vos campeiros” –, devido à incapacidade dos estancieiros de garantir de forma ininterrupta a produção apoiando-se em homens livres, sem se servir de meios coercitivos usados no Prata. Realidade comprovada exaustivamente por investi-gações posteriores apoiadas, sobretudo nos inventários post-

11 FREITAS, O capitalismo pastoril, p. 31, 44.12 MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda

pastoril sul-rio-grandense. MAESTRI, Mário (Org.). O negro e o gaúcho: estân-cias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. p. 169-271.

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mortem das grandes fazendas pastoris dos séculos 18 e 19.13 A importância do cativo campeiro fora proposta, apoiada em documentação primária, por membros da historiografia tradi-cional quando da polêmica com Décio Freitas que originou o ensaio “O capitalismo pastoril”, como assinalado.

Milcíades Peña: um esboço geral de crítica

da formação social argentina

Milcíades Peña passou meteoricamente pelo cenário cultural argentino. Nasceu em 1933, em La Plata, falecen-do em 1965, aos 32 anos. Com mãe mentalmente doente, de saúde frágil na infância, foi criado por tios mais velhos, des-cobrindo acidentalmente aos 11 anos seu nome de batismo, sua verdadeira mãe, seus três irmãos mais velhos. Sofrendo, possivelmente, de depressão, realizou tentativas autocidas na adolescência. Casou-se e teve um filho, em 1964, morrendo no ano seguinte por ingestão de pílulas.14 Em seu breve tempo de intervenção social, política e cultural, militou na corrente marxista-revolucionária morenista, da qual se afastou, sem jamais romper com o marxismo-revolucionário (trotskismo), para se dedicar à historiografia, desenvolvendo refinada inter-pretação da história argentina, da colonização ao peronismo.

Disposto a escrever uma história geral da Argentina, Milcíades Peña alcançou apenas a apresentar o esboço de

13 Cf., entre tantos outros: ZARTH, P. A. História agrária do planalto gaúcho. 1850-1920. Ijuí: Edijuí, 1997. DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul. (1780-1889). Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Passo Fundo, novembro de 2008 (mestrado); EIFERT, Maria Beatriz Chi-ni. Marcas da escravidão nas fazendas pastoril de Soledade: 1867-1883. Passo Fundo: EdiUPF, 2007; PALERMO, Eduardo Ramón Lopez. Tierra esclavizada: el norte uruguaio en la primera mitad del siglo 19. PPGH, Passo Fundo, 2008. (mestrado).

14 D’AMICO, Ernesto. Milcíades Peña: una história trágica. Disponível em: http://www.tomasabraham.com.ar/ seminarios/ 2008damico.pdf. Acesso em: 10 abr. 2010.

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sua interpretação, em seis breves livros, redigidos nos anos 1955-1957: Antes de Mayo: formas sociales del transplante español al Nuevo Mundo (1500-1810); El paraíso terratenien-te: federales y unitarios la civilización del cuero (1810-1850); La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia (1850-1870); De mitre a Roca: consolidación de la oligarquia anglocriolla. (1870-1885); Alberdi, Sarmiento y el 90 (1885-1890); Masas, caudillos y elites (1890-1955).15 A partir de cur-so que ministrou na Escola de Engenharia de Buenos Aires, em 1958, foi publicada sua Introducción al pensamiento de Marx, de importante caráter renovador.16

A leitura de Milcíades Peña, mais de meio século após a sua morte, revela escritor e pensador de invulgar sensibi-lidade e talento. Os inevitáveis limites de sua interpretação, em parte devidos ao breve tempo de sua produção e ao de-senvolvimento da historiografia e das ciências sociais de en-tão, sobretudo latino-americanas e argentinas, não diminuem a enorme importância dessa literatura. Ainda mais porque uma das características de sua reflexão é que desnudava, de forma consciente ou inconsciente, as suas grandes contradi-ções analíticas, não raro sugerindo possíveis soluções para as mesmas.

Milcíades Peña é considerado por muitos como um dos mais argutos historiadores marxistas argentinos. No Brasil é autor praticamente desconhecido, não contando, salvo enga-no, com traduções, mesmo que parciais. Em sua pátria, suas obras não foram reeditadas nos últimos anos, segundo pare-ce por proibição de seu filho, político tradicional menor, que porta o mesmo nome que o pai. Seus trabalhos são facilmente

15 PEÑA, Milcíades. Antes de mayo: formas sociales del transplante español al nuevo mundo. 1500-1810. Buenos Ayres: Fichas, 1973; El paraíso terratenien-te: federales y unitarios la civilización del cuero. 1810-1850. Buenos Aires: Fi-chas, 1972; La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 1850-1870. 3. ed. Buenos Aires : Fichas, 1975; De mitre a Roca: consolidación de la oligarquia anglocriolla. 18701885. 2 ed. Buenos Aires: Fichas, 1972.

16 D’AMICO, Milcíades Peña: una história trágica.

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disponíveis em reproduções na internet. É difícil imaginar os avanços interpretativos a que esse autor chegaria se não ti-vesse desaparecido tão jovem.

Antes de maio

O primeiro ensaio de Milcíades Peña, Antes de Mayo: for-mas sociales del transplante español al Nuevo Mundo, dedica-do ao período histórico sobretudo argentino que vai de 1500 a 1810, aborda, com certo vagar, os acontecimento da Revo-lução de Maio, realizando dessacralização das apologias his-toriográficas que apresentaram e apresentam aquele evento como “revolução social”, “revolução democrático-burguesa” e “movimento de base popular”. O autor lembrava que a “Revo-lução de Maio” foi processo que se materializou sobretudo na esfera política, não revolucionando minimamente a organiza-ção social e econômica regional, que se manteve no essencial idêntica à colonial, ao igual do que ocorreu no Brasil em 1822, quando do rompimento com Portugal.17 Peña assinala: “El movimiento que independizó a las colonias latinoamericanas no traia consigo un nuevo régimen de producción ni modificó la estructura de clases de la sociedade colonial. Las clases dominantes continuaron siendo las terratenientes y comer-ciantes hispano-criollos, igual que en la colonia.”18

As primeiras grandes iniciativas da “Revolução de Maio” foram o defenestramento do vice-rei Baltazar Hidalgo de Cis-neros e a extinção da burocracia administrativa ibérica que governava o vice-reinado em nome do soberano espanhol, de-posto pela intervenção napoleônica. Peña lembra que o movi-mento sequer fora inicialmente autonomista e republicano,

17 MAESTRI, Mário. A escravidão e a gênese do Estado nacional brasileiro. In: Seminário Internacional “Além do apenas moderno”, 2001, Recife. ANDRADE, Manuel Correia de (Org.). Além do apenas moderno. Brasil séculos XIX e XX. Recife: Massangana, 2001. v. 1. p. 49-77.

18 PEÑA, Antes de mayo, p. 75.

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sendo fortes os carlotistas entre os principais líderes crioulos. A declaração cabal de independência da Argentina seria feita apenas em julho de 1816, no congresso de Tucumán. Em O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do Prata, o historiador brasileiro Moniz Bandeira assinala que a pretensão de Carlota Joaquina, esposa de dom João 6º, ao vice-reinado do rio da Prata, após a abdicação de seu pai e a prisão de seu irmão, recebera o “apoio de vastos setores das classes dominantes de Buenos Aires, tradicionalmente li-gadas aos interesses do comércio português, e alguns líderes, como Juan Martín Pueyrredon , Manoel Belgrano , Saturnino Rodrigues Peña ”, que a “quiseram proclamar Regente [...] ou a coroar imperatriz da América”.19

Milcíades Peña destaca que os sucessos de Maio foram obra, sobretudo, das classes proprietárias, com destaque para a “burguesia comercial”, ou seja, para os comerciantes porte-nhos crioulos, associados aos grandes criadores bonaerenses. Assinala que a revolução não contou com a participação ativa dos subalternizados, mesmo livres, que nada tinham a ga-nhar e, não raro, algo tinham e perder com a iniciativa.

Produzindo para vender

Milcíades Peña propõe, igualmente, que os gauchos, o principal segmento plebeu da campanha bonaerense e do Pra-ta, foram mantidos e mantiveram-se estranhos ao movimen-to, e que a radicalização da liberdade comercial, sobretudo em proveito da oligarquia mercantil crioula, ligada ao comércio britânico, tendeu a destruir o artesanato e a produção peque-no-manufatureira das províncias de Buenos Aires, do litoral e do interior, com graves sequelas sociais. Quanto aos cativos negros, foram enviados um grande número para os exércitos

19 BANDEIRA, L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do Plata: Argentina, Uruguai e Paraguai. Da colonização à guerra da Tríplice Aliança. 2. ed. Brasília: EdUnB, 1995. p. 58.

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revolucionários, a fim de substituir os patriotas poucos dis-postos a morrer pela liberdade. Essa seria uma das razões da forte queda da população afro-descendente nessa região.

A proposta de Milcíades Peña sobre a inexistência de classes populares modernas, capazes de influenciar a direção política dos sucessos, mantida sob o controle dos segmentos dominantes crioulos, que dessem eventualmente um cará-ter democrático àqueles acontecimentos, apoia-se numa das maiores contradições analíticas de sua interpretação da anti-ga formação social argentina: a caracterização da colonização hispânica como capitalista, em razão do seu “conteúdo” e das seus “objetivos”, que eram, segundo ele, essencialmente, “pro-ducir en gran escala para vender en el mercado y obter una ganancia”.20

A produção para o mercado, com o objetivo do lucro, não é determinação suficiente para a definição do caráter econô-mico do mundo colonial como capitalista, como lembravam, nos anos 1960, ao questionar essa tese, ideólogos ligados ao Partido Comunista Brasileiro, ao se referirem ao Brasil, pois aquela caracterização e polêmica abarcavam a América Ibé-rica como um todo. Marxista sensível, Milcíades Peña intuiu o limite e a contradição de sua proposta. Procurou superar a contradição da dedução do caráter da colonização de es-fera não atinente à produção com a definição dos criadores de Buenos Aires como classe burguesa produtora completa, ainda que de caráter colonial, proposta que estendeu a toda a América ibérica. “Clase productora más importante de la colônia - estancieros en la Argentina, y en general, en toda América Latina, productores para el mercado mundial – son a no dudarlo capitalista, sus intereses son capitalista, pero un capitalismo colonial [...].”21

20 PEÑA, Antes de Mayo, p. 22, 23.21 Idem, p. 87.

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Raízes e sentidos político de um debate

historiográfico

Desde antes da II Guerra, a historiografia marxista or-todoxa apoiava no proposto caráter feudal ou semifeudal da colonização americana a necessidade de etapa democrático burguesa da revolução na América Latina. Isso exigiria a su-bordinação dos trabalhadores à “burguesia nacional progres-sista” em frentes populares para, apenas cumprida a etapa democrático-burguesa da revolução, ser avançado o programa socialista. Uma orientação que teve importância determinan-te na vida política da América Latina.

No Brasil, a política de revolução democrático-burguesa contribuiu para o desastre das propostas populistas e nacio-nal-desenvolvimentistas, quando do golpe militar de 1964, apoiado por toda a “burguesia progressista” nacional. Segun-do o receituário proposto pelos partidos comunistas, esta últi-ma deveria ter se mobilizado contra o latifúndio semi-feudal e o imperialismo e não comandar o ataque geral aos trabalha-dores e ao padrão de desenvolvimento capitalista autônomo.

A mesma proposta de revolução por etapas, democrático-burguesa e a seguir socialista, foi enfatizada pelos partidos comunistas e seus intelectuais nas décadas pós-stalinistas. No Brasil, a interpretação foi defendida por importantes pen-sadores ligados direta e indiretamente a essa orientação polí-tica, entre os quais se destacaram Alberto Passo Guimarães (1908-1993) e Nélson Werneck Sodré (1911-1999).

Capitalista desde a origem

Em fins dos anos 1940, a interpretação feudal do passa-do latino-americano e a consequente proposta de necessária etapa democrático-burguesa anterior às tarefas socialistas, avançadas pelos partidos comunistas, foram impugnadas por

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estudiosos de orientação socialista revolucionária. De forma mais ou menos desenvolvida, eles propuseram a definição do caráter capitalista das formações coloniais americanas, em alguns casos, desde a origem da colonização europeia!

Entre esses autores destacaram-se os sociólogos argen-tino Sérgio Bagú (1911-2002),22 teuto-estadunidense André Gunder Frank (1929-2005)23 e brasileiro Ruy Mauro Marini (1932-1997).24 No Brasil, essa interpretação seria também perfilhada pelo célebre historiador marxista dissidente Caio Prado Júnior, antigo integrante do PCB, em, entre outros tra-balhos, A revolução brasileira.25

Entretanto, o debate sobre o caráter feudal ou capitalis-ta da colonização não surgira inicialmente determinado pelo confronto político-ideológico assinalado. Em História econô-mica do Brasil, de 1937, o economista Robert C. Simonsen (1889-1948) criticara a ênfase no “aspecto feudal do sistema das donatarias” luso-brasileiras e definira a clara orientação capitalista da colonização lusitana, precisamente em virtude da orientação das atividades para o lucro.26

Orientação mercantil

Aos defensores da tese das origens capitalistas à Amé-rica, o corolário indiscutível da definição de uma colonização capitalista desde os primeiros tempos, devido à sua intencio-nalidade e orientação mercantis, eram a vigência e a urgência na América Latina da revolução socialista. A partir dos anos 1940, quando se estabeleceu essa polêmica, era indiscutível

22 Cf., sobretudo, Economía de la sociedad colonial, de 1949, e Estructura social de la colonia, de 1952.

23 Cf., sobretudo, FRANK, A. G. Capitalismo e subdesarrollo en la América Lati-na, de 1967.

24 Cf., sobretudo, MARINI, R. M. El subdesarrollo y la Revolución, de 1969, e Dialéctica de la dependencia, de 1973.

25 PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.26 SIMONSEN, R. C. História econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Edito-

ra Nacional, 1977.

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que sobretudo as principais formações sociais latino-america-nas – Argentina, Brasil, Chile, México, etc. – conheciam or-ganização socioeconômica capitalista dominante. Porém, era certamente arbitrariedade recuar essa definição para o início da colonização.

Além da proposta de sociedades que teriam conhecido, do século 16 a inícios do século 20, apenas crescimento quan-titativo e jamais qualitativo, a definição capitalista das for-mações latino-americanas coloniais propunha contradições epistemológicas insolúveis. Entre elas destacava-se o desen-volvimento capitalista das colônias americanas antes das me-trópoles europeias, ou seja, a transposição para as Américas, por classes dominantes europeias ibéricas feudais e mercan-tilistas, de formas de produção superiores e em contradição com as que se apoiavam nas metrópoles.

Nesse sentido, tinha razão um dos mais brilhantes crí-ticos da proposta de Sérgio Bagú sobre o “capitalismo colo-nial”, abraçada por Milcíades Peña, quanto à Argentina, e Décio Freitas, no relativo ao Brasil, entre outros autores. Em 1963, em Quatro séculos de latifúndio, Alberto Passos Gui-marães escrevia que a orientação e a produção para a ven-da no mercado eram “peculiares, em proporções crescentes, a toda a longa história vivida pela economia mercantil [...]”. Defendia, pertinentemente, que, se tomássemos “como ponto de referência, para definir e classificar os regimes econômi-cos, os fenômenos inerentes à circulação”, teríamos de aceitar a “absurda igualdade entre todos os sistemas sociais por que passou a Humanidade, a contar do momento em que abando-nou a vida primitiva”.27

27 GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. In: STEDILE, J. P. A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 41.

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O criador e a criatura

Eram igualmente pertinentes os reparos avançados por Passos Guimarães sobre a transposição feudal de ordem ca-pitalista. “Percebe-se o conteúdo apologético dessa concepção errônea, pois com ela se admite que o sistema colonial, em vez de transportar para o território conquistado os elemen-tos regressivos do país dominante [...] selecionaria os fatores novos determinantes da evolução social e deles se serviria para fundar [...], sociedade de um tipo mais avançado que as metropolitanas.”28 Porém, Passos Guimarães incorria em crasso erro analítico ao propor, em vez da transposição capita-lista precoce, instalação regressiva, ainda que ad hoc.

Arrancando de pressuposto epistemológico correto, a im-possibilidade da transposição de modo de produção superior, Passos Guimarães defendia, contra as evidências históricas, que à Metrópole “não” teria restado “outra alternativa polí-tica senão a de transplantar para a América Portuguesa o modo de produção dominante no além-mar” – o modo de pro-dução feudal. Para o autor, tal transposição teria sido feita, sobretudo, com a concessão do “monopólio feudal da terra” para os homens bons.

Estabelecida a propriedade feudal no Brasil, sempre se-gundo Passos Guimarães, teria faltado o servo para explorá-la. Assim, os novos feudalistas apoiaram a transposição supe-restrutural da forma de produção, em superação na Europa, na mão de obra escravizada, primeiro indígena, a seguir afri-cana, em verdadeira regressão histórica à escravidão clássi-ca, no que se refere à força de trabalho. “Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feudalismo colonial [sic] teve de regredir ao escravismo [...].”29

28 GUIMARÃES, quatro séculos [...], op. cit., p. 36.29 Idem, p. 43.

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Construção arbitrária

A proposta interpretativa de Passos Guimarães consti-tuía construção arbitrária, do ponto de vista factual e meto-dológico. As sesmarias eram propriedades de cunho alodial, como assinalara Décio Freitas, podendo os proprietários vendê-las, alugá-las, doá-las, etc. Os sesmeiros não possuíam direitos eminentes e restritos sobre elas, como no feudalis-mo. Passos Guimarães criticava corretamente a dedução de modo de produção da orientação e circulação mercantil, mas deduziu a forma de produção de inexistente instância super-estrutural, o feudalismo.

O próprio Passos Guimarães lembrara que, em inter-pretação marxista, o “básico num regime econômico é o siste-ma de produção, isto é, o modo por que (ou seja, pelos quais), numa determinada formação social, os homens produzem os bens materiais de que necessitam viver e que determina todos os demais processos econômicos e sociais, inclusive os processos de distribuição ou circulação de bens”.30 Em A ideo-logia alemã, Marx e Engels lembravam que o que os homens são depende “das condições materiais de produção”, refle-tindo-se tanto no que “produzem quanto” na “maneira como produzem”.31

Na leitura marxiana da sociedade defendida formalmen-te por Passos Guimarães, a forma de propriedade constitui decorrência tendencial da forma de produção. Como na tese capitalista da colonização ibero-americana, a contradição es-sencial do proposto caráter feudal ou semifeudal encontrava-se na esfera da produção, em geral, e nas relações sociais de produção objetivadas, em particular. Incorriam em contradi-ção insolúvel as propostas de ordem feudal ou capitalista fun-cionando, respectivamente, em trabalhadores escravizados e

30 GUIMARÃES, quatro séculos [...], op. cit., p. 42.31 MARX; ENGELS. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 12.

108108 Mário Maestri

assalariados, ou seja, em relações sociais de produção escra-vistas e capitalistas.

Salto regressivo

A contradição mais gritante da interpretação feudal da produção americana era seu apoio substantivo na mão de obra escravizada. Quanto à interpretação capitalista, sua contra-dição mais aparente era a inexistência de produtor direto, produtor de mais valia, no uso de maquinarias e métodos de produção modernos. Trabalhador obrigado a vender, de forma tendencialmente ininterrupta, a totalidade de sua força de trabalho como mercadoria, devido à incapacidade de produzir seus meios de subsistência.

Marx era claro sobre as determinações essenciais do trabalhador subsumido ao modo de produção capitalista. “Ci voglion secoli perchè il ‘libero’ lavoratore si adatti volontaria-mente, in conseguenza dello sviluppo del modo capitalístico de produzione, cioè sai socialmente costreto a vender per il prezo dei suoi mezzi di sussistenza abitualia l’intero suo período at-tivo di vita, anzi, la sua capacita stessa di lavoro [...].”32

Ainda após a Revolução de Maio (1810), por longas dé-cadas, os estancieiros do Prata lançaram mão da compulsão extraeconômica para manter o gaucho como peão na estância, ou serviram-se da mão do trabalhador escravizado, como em boa parte do Uruguai, com destaque para os departamentos setentrionais.33 No relativo ao Rio Grande, as fazendas pas-toris começaram a substituir os trabalhadores escravizados por livres apenas nos últimos anos da escravidão, abolida em 1888.

32 MARX, K. Il capitale. Roma: Riuniti, 1994. p. 306. 33 Cf. PALERMO, Tierra esclavizada: el norte uruguaio em la primera mitad del

siglo 19, 2008.

109109Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

Falsa disjuntiva

Se, por um lado, a historiografia stalinista e pós-stali-nista defendia a dominância do feudalismo colonial na origem da colonização, em boa parte com trabalhadores escravizados e sem servos, em propriedade de claro caráter alodial, para impugnar a luta pelo socialismo, por outro, historiadores mar-xistas defendiam capitalismo colonial sem operariado, para avançar o programa socialista. No frigir dos ovos, nos dois ca-sos negavam a determinação do modo de produção pela forma específica de produzir os bens sociais, condicionada pelo de-senvolvimento das forças produtivas materiais e das relações sociais de produção que se estabeleciam a partir das mesmas, base essencial numa interpretação social marxista.

Apenas nos anos 1960 seria superada a vulgata stali-nista e pós-stalinista do necessário e consecutivo trânsito de todas as sociedades dos cinco grandes modos de produção, de-finidos por Marx e Engels quando do estudo das formações sociais europeias – “comunismo primitivo”, “escravismo clás-sico”, “feudalismo”, “capitalismo” e “socialismo”. Uma supera-ção em boa parte devida a retorno à leitura livre da literatura marxiana, que facilitou às ciências sociais reconhecerem as múltiplas formas e modos de produção conhecidos pela hu-manidade.34

Essas investigações revelariam o caráter sui-generis da colonização nas Américas, sem as transposições mecânicas feudal e capitalista propostas. Um movimento que, no Brasil, com destaque para as investigações de Jacob Gorender e Ciro Flamarión Cardoso, abriu caminho à compreensão do caráter dominante do escravismo colonial na constituição da antiga formação social do Brasil. Muito forte a partir dos anos 1960,

34 Cf., entre outros, SOFRI, Gianni. Il modo di produzione asiático. Torino: Ei-naudi, 1969; SOFRI, O modo de produção asiático: história de um controvérsia marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; GODELIER/MARX/ENGELS, So-bre el modo de producción asiatico. Barcelona: Martínez Roca, 1977.

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esse movimento científico praticamente se interrompeu após a maré neoliberal de fins dos anos 1980, como assinalado. 35 Em razão do seu falecimento, em 1965, Milcíades Peña não pôde participar dessa verdadeira revolução epistemológica.

A estância pastoril colonial e pós-colonial

como forma de produção pré-capitalista

No Uruguai, equipe de historiadores ligados ao Partido Comunista Uruguaio, numa ampla e sistemática investigação historiográfica, terminaria dissociando-se das teses sobre o caráter feudal ou semifeudal da produção pastoril para enfa-tizar seu caráter pré-capitalista. Em de La oligarquia orien-tal en la Cisplatina, de 1967, Rosa Eloy, Lucia Sala Touron, Nelson De La Torre e Julio Carlos Rodrigues foram explícitos no relativo a essa definição da produção pastoril ao lembrar que, “en las regiones ganaderas”, “al expirar la dominación colonial no se había completado todavia la apropriación de los medios de producción ni el sometimiento al peonazgo de las masas rurales”.36

Em El Uruguay comercial, pastoril e caudillesco, esses autores descrevem situação que se manteve décadas após o fim da colônia, não apenas na Banda Oriental, realidade que dificultou a transformação do gaucho em peão, ou seja, do campeiro sem posses em trabalhador assalariado permanen-te: “Dueños de caballo, lazo y cochillo, no estaban privados de sus instrumentos de trabajo y tampoco de médios de vida, ya que podrían porporcionárselos com facilidad faenando ani-

35 Cf. MAESTRI, Mário. O escravismo colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender. A gênese, o reconhecimento, a deslegitimação. Cadernos IHU, São Leopoldo: Unisinos, ano 3, n. 13, 2005, 42 p.

36 ELOY, Rosa; TOURON, Lucia Sala; TORRE, Nelson de la; RODRIGUES, Julio Carlos. La oligarquia oriental en la Cisplatina. Montevidéu: Pueblos Unidos, 1970. p. 10.

111111Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

males que poblaban la campana casi deserta, sin cercos ni custodia efectiva.”

É uma situação que, no Uruguai dos inícios dos anos 1830, levou don Fructuoso Rivera (1784-1874), em resposta à reivindicação dos criadores orientais (em boa parte, sul-rio-grandenses estabelecidos no norte desses territórios), a realizar ampla campanha militar e policial para reprimir a população rural independente – changadores, faeeneros, gaú-chos, posseiros, charruas, guaranis, etc. – a fim de obrigá-la a se assalariar como peão. Um processo que seria concluído apenas décadas mais tarde, no final do século 19.37

Na Europa e nos Estados Unidos

Esses mesmos autores lembravam que, em inícios do século 19, a produção capitalista, ainda reduzida às “zonas atlánticas europeias” e aos Estados Unidos, buscava “colocar sus producciones em América Latina”, onde predominavam “en las distintas formaciones relaciones sociales de producci-ón precapitalistas”. Avançam no mesmo sentido que, nas duas margens do Prata, nas décadas posteriores à Independência, dominavam ainda as oligarquias comerciais, os estancieiros, os charqueadores “basicamente precapitalistas”. Realidade que permitiu “acumulación originaria” que apoiaria a consti-tuição e dominância posterior de relações capitalistas de pro-dução a partir de inícios do século 20.38

Foi importante passo analítico a definição geral da fa-zenda pastoril, como forma de produção mercantil pré-capi-talista, a partir de suas características essenciais, sobretudo no que se refere às forças produtivas materiais e às relações sociais de produção. Esse processo superou, nesse domínio, o

37 TOURON, Lucia Sala de; ELOY, Rosa Alonso. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Tomo II: sociedad, política e ideologia. Montevidéu: Banda Orien-tal, 1991. pp. 83, 139.

38 TOURON, ELOY, op. cit., p. 18 et seq.

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impasse posto pela disjuntiva feudalismo & capitalismo, nas-cida de forte acomodação de realidades sociais singulares a esquemas teóricos estranhos a elas, em boa parte devido a pressupostos político-ideológicos, como proposto.

É uma caracterização geral daqueles autores que não elide a ainda necessária definição categorial-sistemática das formas de produção assumidas pela produção pastoril exten-siva pré-capitalista, de importante dinamismo e longevidade no sul da América. Definição que precise de forma mais aca-bada as leis internas tendenciais dessa forma de produção, por séculos hegemônica nesses territórios. Neste ensaio nos limitaremos a descrever apenas algumas características es-senciais da produção pastoril pré-capitalista extensiva.

Algumas características essenciais

Após o ciclo extrativista do couro, durante anos, as es-tâncias chimarrãs, orientadas sobretudo à produção do couro, organizaram-se com a apropriação-expropriação extraeco-nômica: 1) da terra, meio de produção sem valor, mas desde sempre com preço, devido à sua monopolização privada ga-rantida pelos Estados coloniais ibéricos; 2) do gado chimarão, nascido da reprodução selvagem dos rebanhos introduzidos na região sobretudo pelos espanhóis. Terra e gado expropria-dos em boa parte ao domínio de comunidades nativas. Um movimento apoiado na força de trabalho dos estancieiros e de seus familiares e, sobretudo, de peões e de trabalhadores escravizados.

A fazenda chimarrã, comumente de grandes dimensões, exigia pouco trabalho, em geral limitado à reunião dos ani-mais para a produção do couro, realizada em geral sur place. Mantinha, habitualmente, um número de trabalhadores su-perior às necessidades produtivas, que protegiam a proprie-dade dos ataques e garantiam a posse da mesma. Essa mão de obra excedente era paga, em boa parte, pela produção das

113113Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

estâncias não transformada em mercadoria – carne, couro, sebo, etc.

Nos anos 1780, com o advento das charqueadas no Rio Grande do Sul e na Banda Oriental, a fazenda chimarrã deu lugar, de forma crescente, à fazenda crioula ou de rodeio, em geral de menor porte em relação à anterior, dedicada à cria-ção do gado mais ou menos costeado, pelo couro, carne, sebo, graxa, cabelo. Apesar de exigir trabalho mais intensivo – cas-tração, marcação, rodeio, etc. –, essa forma de produção ex-pulsou tendencialmente a população excedente, devido à va-lorização dos gados, ainda que transformados não totalmente em mercadoria.

As fazendas chimarrãs e de rodeio utilizavam a força de trabalho dos proprietários e seus familiares, de cativos, de posteiros, de moradores, de agregados, de peões permanentes ou temporários. Essa mão de obra era remunerada com os meios de subsistência (trabalhadores escravizados), com os meios de subsistência e algum salário monetário (peões), com o direito ao uso da terra (posteiros e moradores), etc. Durante décadas, a coerção social foi importante meio de submeter os homens livres ao trabalho nas estâncias.

Renda fundiária

A renda do estancieiro, obtida sobretudo pela venda do couro, carne, sebo, etc. dos animais, subdividia-se em renda da terra e renda do trabalho. A primeira, de caráter pré-capi-talista, originava-se de outras esferas da produção e era apro-priada pelo estancieiro, devido ao monopólio da terra, con-dição especial de produção de caráter finito. Ao contrário, a renda do trabalho provinha do trabalho excedente produzido pelos produtores diretos – trabalhadores escravizados; traba-lhadores livres remunerados; posteiros e moradores, etc.

As tarefas pastoris eram realizadas por trabalhadores livres e escravizados, através de atos produtivos isolados ou

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coordenados, apoiados na habilidade do manejo de meios de produção (cavalo, laço, etc.) e instalações produtivas (galpões, bretes, etc.) muito simples, de fácil confecção e, durante longo tempo, de fácil apropriação. Na fazenda de rodeio, as princi-pais práticas produtivas limitavam-se à domesticação, à mar-cação, à castração, à cura rudimentar dos animais. A matura-ção do produto dependia fortemente das condições ambientais – chuvas, temperatura, aguadas, pastos nativos, etc.

Nessa forma de produção, eram limitadas as possibili-dades de aumentar o sobretrabalho dos produtores diretos estendendo o tempo e a intensidade da jornada produtiva. De forma geral, por longo tempo a expansão da produção das fa-zendas chimarrã ou de rodeio deu-se quase exclusivamente pela incorporação de novas áreas produtivas, novos rodeios e novos trabalhadores. As grandes, médias e pequenas pro-priedades pastoris praticamente não diferiam no relativo às práticas produtivas e à produtividade.

No Rio Grande do Sul, apenas em inícios do século 20, em atraso em relação ao Uruguai e a Argentina, a atividade pastoril começou a introduzir-se na esfera de produção capi-talista. Então, no contexto de uma crescente divisão do traba-lho (cabanha; criadores; invernadores, etc); desenvolvimento das forças produtivas (banheiros; pastagens artificiais; cer-cas de arame; centro de manejo; inseminação artificial, etc.); especialização dos trabalhadores (peões; alambradores; inse-minadores; veterinário; tratoristas, etc.), a renda do capital começou a se sobrepor à renda da terra, que se manteve e mantém, porém, seu peso significativo.

Esse processo se realizou lentamente, tanto que ainda hoje subsistem estâncias dedicadas à criação semiextensiva, através do pastoreio contínuo. A fazenda pastoril propiciou parte importante da acumulação originária de capitais que na Argentina, no Uruguai e no Rio Grande embasou o processo diferenciado de industrialização conhecido por essas regiões,

115115Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

hegemônico apenas a partir das primeiras décadas do século 20. Mesmo que a estância tenha alimentado a produção ma-nufatureira e industrial capitalista, os estancieiros não foram os principais protagonistas dessa metamorfose.

Milcíades Peña: impasse da formação

nacional Argentina

Em El Paraíso terrateniente, Milcíades Peña retomou a crítica à proposta feudal e semifeudal para a Argentina, propondo que o peão fosse já um assalariado claramente ca-pitalista. “Feudal, o de rasgos feudales, podía ser la modali-dad con que el patrón estanciero castigaba o recompensaba a sus peones. Pero la esencia económica de essa relación era capitalista, era la relación contractual entre el proletario ca-rente de medios de producción y el propietario de la estancia que alquilaba la fuerza de trabajo del peón a cambio de un salario.”39

Destaque-se que formas de coerção física à produção ca-racterizam relações servis ou semisservis de produção, não necessariamente escravistas ou feudais. E não podemos es-quecer que uma característica básica do gaucho era sua capa-cidade de subsistir por longos períodos sem vender sua força de trabalho. Isso devido à incapacidade dos proprietários da Argentina, do Uruguai e do Rio Grande de separá-lo radical-mente das condições necessárias à produção dos seus meios de subsistência – o cavalo, o laço, as boleadeiras, o gado chi-marrão, os campos não cercados, etc.

Naquele trabalho, lembra que, mesmo no relativo aos vice-reinados, a unidade da América Hispânica colonial era exterior e artificial, produto de ação política determinada pe-las necessidades da defesa e do monopólio comercial metro-

39 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 59.

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politano. O próprio vice-reinado do rio da Prata (1778) reunia um enorme território, transpassado social e economicamente por fortes tendências centrífugas – atuais Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. Peña define como mito histórico a narra-tiva sobre a unidade hispano-americana perdida, que propõe como inevitável, devido à falta de laços econômicos comuns. Porém, lembra que, no processo de independência, poderiam ter nascido nações mais portentosas. Propõe a gênese de um Estado federativo poderoso, os Estados Unidos da América, quando da ruptura das colônias britânicas da América, como produto dos interesses de uma “indústria” que, mesmo inci-piente, criara mercado interno que necessitava conservar e expandir.40 A essa razão juntaríamos outras, como a neces-sidade de suas classes dominantes de defrontar a poderosa ex-metrópole e subjugar as classes subalternizadas.41

Segundo Milcíades Peña, na América Hispânica, ao con-trário, dominavam “interesses capitalistas” orientados ao mercado mundial – a oligarquia comercial e os produtores de matérias-primas: couros, minerais, etc. Porém, lembra que os grandes comerciantes portenhos (que define como “burguesia comercial” em sentido estrito) interessavam-se, sim, pela for-mação de mercado nacional, para uma mais ampla introdu-ção de bens estrangeiros, não para a realização da produção nacional de qualquer tipo. “Lo trágico [...] era que los elemen-tos del desarrollo capitalista baseados en el mercado interno, es decir, en el desarrollo interior de la nación, eran nulos, ya que todos los intereses capitalistas se orientaban hacia la ex-portación y eran esencialmente portuários.”42 Uma visão da impossibilidade de construção de uma grande nação ibero-americana, devido à “inexistência de las bases materiales y

40 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 7 et seq. 41 Cf. MAESTRI, A escravidão e a gênese do Estado nacional brasileiro, ob. cit.42 PEÑA, op. cit., p. 17.

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espirituales” concorrente com a dos historiadores uruguaios Lucia Sala de Touron e Rosa Alonso Eloy.43

As classes ibero-americanas interessadas no mercado interno seriam, sobretudo, “pequeños productores atrasados, destinados a desaparecer ante la competencia de las muy su-periores industrias europeas”, como era o caso da “industria artesanal del interior argentino”. Uma das teses centrais do brilhante ensaísta foi a inexistência até o século 20 de classe apontando para a industrialização da Argentina.44 Ele criti-cava, igualmente, a tese de independência ibero-americana prematura, em vista da incapacidade das nações surgidas da ruptura com a metrópole de se industrializarem. Propunha que a ordem colonial era já parasitária, nada mais tendo a oferecer às colônias. Segundo ele, em 1810 a Independência ensejaria a única forma como a Ibero-América “podia evolu-cionar”, ou seja, como “apéndice económico da Europa, abas-tecedor y consumidor de la industria inglesa”. Propunha que haveria progresso na transição de “colônia” em “semicolonia económica”.45

Milcíades Peña liquida a possibilidade de desenvolvi-mento autônomo, apresentando a dependência da ex-colônia à indústria inglesa como avanço histórico, mesmo sendo esta agente da destruição da produção artesanal, doméstica e pequeno-manufatureira americana. Uma leitura que define como marxiana: “Marx consideraba progresiva esa subordi-nación.” Lembra que os EUA conheceram tal dependência, para superá-la, a seguir. Apoia-se nas páginas clássicas onde Marx descreve o processo avassalador, no plano humano, mas progressivo e inevitável, em sentido histórico geral, da pene-tração dos tecidos ingleses no mercado indiano, com a conse-quente destruição da produção artesanal tradicional do país,

43 TOURON; ELOY, El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco, 1991. p. 45.44 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 15.45 Idem, p. 16.

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incapaz de concorrer com os produtos industrializados.46 Mais tarde, como veremos, Milcíades Peña matiza sua proposta so-bre a inexorabilidade da dependência como caminho para a independência econômica.

Progresso e regresso

Milcíades Peña defende que, devido ao “primitivismo de sus métodos de producción”, o artesanato e a pequena manu-fatura tinham “escasa posibilidad de supervivencia” diante das mercadorias importadas, que realizaram obra progressi-va ao destruí-la.47 Propõe que uma política de defesa alfande-gária seria nociva ao desenvolvimento social e histórico regio-nal; que não existia na América Ibérica “indústria moderna”, quando da Independência, mas apenas “indústria doméstica”, como a do interior argentino e da província de Buenos Aires. E ela não seria um “resorte propulsor de cultura sino de atra-so, ya que sólo podia sobrevivir a condición de frenar el desar-rollo capitalista de las industrias agropecuárias del litoral, las únicas que en las condiciones de entoces podían permitir una rápida acumulación de capital nacional”.48 Destaque-se que sua proposta se apoia e se sustenta na caracterização como capitalista da produção agropecuária dos anos da Colô-nia e da Independência, como já destacado.

Milcíades Peña liquida, inapelavelmente, com a propos-ta protecionista da produção artesanal e pequeno-manufatu-reira do interior argentino: “La protección a las industrias artesanales del interior hubiera sido ajustar el galope tendido del litoral hacia la acumulación capitalista al lento paso de mula de la industria del interior.”49 Desqualifica a valorização dessa produção, empreendida pelo historiador Abelardo Ra-

46 PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 17.47 Idem, p. 18.48 Idem, p. 17.49 Idem, p. 18.

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mos, em América. “[...] no hay ni una molécula de verdad en la afirmación de que la industria artesanal del interior tendía ‘a crear un estado histórico y económicamente nacional’”. 50 Ape-sar do sentido demiúrgico dado à produção pastoril do litoral, não realiza apologia desta última e enfatiza a importância da industrialização propriamente dita. Para ele, a “función de la industria” como “resorte propulsor de la cultura moderna” não necessitava ser demonstrada. Critica a apologia do mun-do rural de José Hernandez no célebre poema Martín Fierro.51

Para Milcíades Peña, as classes que, mesmo limitadas historicamente, realizaram a “acumulação capitalista” no litoral, que defendia como progressista, em relação à pro-dução “artesanal do interior”, historicamente regressista, eram, como proposto: a “burguesia comercial” e a “burgue-sia ganadera”. Na Argentina, na visão de Milcíades Peña, a “burguesia comercial” era formada pelos grandes comercian-tes portenhos, após a Independência sobretudo crioulos, que lutavam para manter, na nova ordem, o monopólio do porto de Buenos Aires sobre o Prata, antes assegurado pelo exclusi-vismo colonial. Seria uma classe voltada para o exterior, pois dependente da venda dos manufaturados que interiorizava e das matérias-primas que exteriorizava. Porém, a ela, interes-sava a formação de mercado nacional, através da submissão das províncias argentinas do litoral e do interior ao porto de Buenos Aires, para mais ampla e rendosa distribuição das mercadorias inglesas e exportação das nativas. Era um seg-mento social incondicionalmente liberal e livre cambista, sem vinculações com a produção, como já visto.

50 PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 21. 51 Idem, p. 17.

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Capitalismo pastoril

Para Milcíades Peña, era sobretudo a “burguesia ga-nadera” que impulsionava a acumulação capitalista, ligada estreitamente à produção. Portanto, não se tratava de mera “acumulação originária de capitais”, de cunho pré-capitalista, mas de produção capitalista propriamente dita. A “burguesia ganadera”, mesmo participando das visões livre-cambistas da “burguesia comercial”, não comungava a proposta desta últi-ma de conformação de mercado nacional, insatisfeita com os gastos que a política exigiria, sem lhe trazer vantagens, pois vendia seu charque e couros no exterior. “Pero aquella (bur-guesia comercial) pretendia unificar a todo trapo el país para ensanchar así el mercado interno con el cual ella lucraría co-locando las mercadorias que importaba de Europa, sin preo-cuparse demasiado de la suerte de los ganaderos bonaeren-ses. Los estancieiros, en cámbio, no tenían interés en ariesgar un solo centavo de sus ganancias en prol de la unificación nacional.” Estavam mais interessados em reprimir os índios pampas, para expandir suas estância em direção ao interior.52

Em oposição à burguesia comercial e pastoril-charquea-dora da província de Buenos Aires, definidas como capitalis-tas, levantavam-se, sobretudo, as classes ligadas às formas de produção pré-capitalista do interior, com destaque para a produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira e para as populações gaúchas, que se mobilizavam contra o liberalismo portuário e a produção charqueadora que des-truíam suas formas de produzir e viver. “La política de la oli-garquía porteña era, en síntesis, ampliar y profundizar su acumulación capitalista, mientras que todo el resto del país deseaba proseguir tranquilamente reproduciendo el modo de producción y de vida existentes.”53

52 PEÑA, La era de Mitre, p. 23.53 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 28.

121121Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

Segundo Milcíades Peña, os grandes estancieiros do Li-toral, com destaque para os de Entre Rios e Corrientes, apoia-vam e se apoiavam nas facções sociais do interior, contra a oligarquia comercial e pastoril de Buenos Aires, que impunha o monopólio portuário e se negava a nacionalizar as rendas alfandegárias. O privilégio portuário valorizava a produção charqueadora da província de Buenos Aires, em detrimento dos charqueadores das províncias do litoral. O monopólio das rendas portuárias deixava literalmente as províncias do inte-rior à mingua, pois o export-import era a única grande renda pública. A contradição entre as principais classes sociais do litoral-interior e de Buenos Aires, por um lado, e entre cria-dores-charqueadores e comerciantes desta última província, por outro, originaria as duas grandes correntes políticas que determinaram, no essencial, os confrontos sociais e a forma-ção do Estado argentino: os Unitários e os Federalistas.

Em 1810, a Revolução de Maio nasceu e se consolidou sob a hegemonia da oligarquia comercial portenha, que se mo-bilizou, como assinalou Juan Bautista Alberdi (1810-1884), para se libertar da autoridade metropolitana de Espanha e de seus tributos e contra a “autoridad de la Nación Argenti-na”, que pretendia substituir o “coloniaje español” pelo por-tenho. Milcíades Peña assinala igualmente que a Revolução de Maio fora literalmente uma “doble declaración de guer-ra”: pela independência, contra a Espanha e pelo domínio do vice-reinado do rio da Plata, contra as províncias, como assi-nalado.54 Durante o primeiro período pós-1810, a “burguesia comercial” portenha comandou o processo de conformação do Estado nacional, contra os interesses provinciais, que exi-giam a proteção da produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira e a nacionalização das rendas portuárias. Ela contou com o apoio dos estancieiros e saladeiristas bonaeren-ses, igualmente favoráveis ao livre câmbio e ao monopólio do

54 PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 21.

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grande porto. “Había [...] un claro antagonismo entre Buenos Aires y el Litoral por un lado, interesados en exportar los pro-ductos de su ganaderia y comprar en cambio los productos extranjeros, y por lo tanto librecambista, y del outro lado el Interior, carente de productos exportables, pero poseedoer de una rudimentária industria abastecedora del mercado inter-no, para quien la libre introduccion de productos extranjeros significab a la ruína.”55

O advento do Rosismo

Para Milcíades Peña, durante esses anos de convergên-cia, “burguesia comercial” e “burguesia ganadera” de Buenos Aires impulsionaram a acumulação e a estrutura capitalis-tas argentinas nascentes, fazendo recuar as sobrevivências pré-capitalistas. “La oligarquia porteña, comerciantes y es-tancieros coincidían – con diferencias de táctica – en afian-çar la estructura capitalista de la nación a costo de todos los elementos precapitalista. Su proposito era liquidar al gau-cho privandolo de libre usufructo de la carne y obligandolo por la fuerza a proletarizarse, empleándose en estancias o saladeros.”56 Portanto, reconhece que a proletarização do gaú-cho, transformado em peão, era um objetivo perseguido pela “burguesia ganadera” e ainda não consumado.

Essa orientação histórica, ou seja, a destruição da pro-dução pré-capitalista das províncias do interior, pela produ-ção dita capitalista do litoral, apesar de ser, na visão do autor, historicamente progressista, causava imensos sofrimentos à população do interior: “[...] la política de la oligarquía porteña era la política de la ‘civilización’ es decir, tendía a construir una civilización basada en la producción de alimentos y mate-rias primas para el mercado mundial, con todas las restantes

55 PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 22.56 Idem, p. 28.

123123Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

actividades del país subordinadas a esta. La mayoría del país no tenía nada que ganar y sí mucho que perder con el adve-nimiento de tal civilización, y es comprensible su oposición a ella.”57

O que ensejaria, para Milcíades Peña, por longas déca-das, uma oposição histórica verdadeiramente regressista das massas populares do interior, sobretudo através das montone-ras, forma de luta das massas gaúchas subalternizadas. “La montonera conjugó en su seno al gauchaje del litoral, privado de su tradicional modo de vida por la valorización de la carne que trajo consigo el comercio libre, con los más variados secto-res de la población del interior, destruidas sus fuentes de sub-sistencia por la competencia inglesa.” Dirigidas por caudilhos das classes dominantes, as montoneras seriam, para Peña, movimentos restauradores que, apesar de democráticos, por representar a maioria do país na luta contra a oligarquia de Buenos Aires, não possuíam cunho democrático-burguês, ao não se mobilizarem pelo domínio e expansão da ordem ca-pitalista. Uma contradição entre “movimento democrático” e “democrático-burguês” que se deveria, para o autor, ao fato de que a “estrutura de la colônia había sido decisivamente capitalista (Buenos Aires), pero con grandes sectores preca-pitalista (Interior)”. Portanto, deduzia também o caráter não progressista da luta das classes subalternizadas da definição como capitalistas das oligarquias comercial e pastoril da pro-víncia de Buenos Aires.58

Milcíades Peña não via qualquer possibilidade de supe-ração social das massas urbanas do interior, incorporadas à pequena produção mercantil doméstica, artesanal e manu-fatureira dos pequenos burgos, ou às comunidades gaúchas da campanha. “Las masas montoneras querían, desde luego, pan. Y precisamente engrosaban la montonera porque las

57 PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 28.58 Idem, p. 24.

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antiguas modalidades de producción estaban destruidas y no podían ya ganarse su pan como tradicionalmente lo hacían. Pero ‘tierra’ no buscaban ni les interesaba. A los gauchos del Litoral ofrecerles una parcela hubiera sido insultarlos.”59

Uma proposta que se justificaria, ainda que muito par-cialmente, se consideramos “parcela de terra” como um lote destinado exclusivamente à agricultura, produção relativa-mente à margem da experiência social de parte da população gaúcha. Efetivamente, uma pequena horta de subsistência fazia parte comumente do “modo de produção gaúcho”.60 Po-rém, a proposta de Milcíades Peña mostra-se profundamente contraditória, considerando-se o dinamismo social que pode-ria ter assumido a mobilização das massas gaúchas, no caso do oferecimento não de um “lote de terra”, mas de uma “suer-te de estância”, como proposto, em fins do século 18 e inícios do século 19, na Banda Oriental, quando do chamado “arreglo de los campos”.

Revolução artiguista

A proposta democrática de legalização e distribuição de terras entre a população subalternizada (gaúchos, índios, crioulos pobres, negros livres, etc.) objetivava estrutural pro-dução pastoril de subsistência, capaz de produzir o suficiente para o consumo e para a venda para a manutenção de uma unidade familiar. Ela foi avançada pela administração colo-nial e implementada, de forma limitada, no fim do período colonial, sobretudo na Banda Oriental. O principal agente desse projeto reformista da administração hispânica foi o militar, engenheiro, naturalista e geógrafo espanhol Félix de Azara (1742-1821). Esse projeto pretendia criar um cinturão de pequenos proprietários que pusesse fim à expansão luso-

59 PEÑA, El paraíso terrateniente, 1972, p. 27. 60 TOURON; ELOY, El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco, p. 75.

125125Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

brasileira. Quando da luta pela Independência, por longos anos essa proposta galvanizaria de forma radical e ampla os deserdados dos campos na Banda Oriental.

A democratização da propriedade da terra foi parte in-tegrante da luta pela independência federativa das provín-cias do Prata. Combate dirigido por José Artigas (1764-1860) contra a oligarquia comercial e fundiária oriental e portenha, até ser derrotado pela conjugação das forças dos grandes proprietários da Banda Oriental, da Argentina e do Império. Lamentavelmente, Milcíades Peña não aborda essa questão, amplamente desenvolvida em um sentido inovador no outro lado do rio da Prata, pelo grupo Práxis, formado por brilhan-tes historiadores ligados ao Partido Comunista Uruguaio.

Em Artigas: tierra y revolución, trabalho sintético de 1967, aqueles autores propõem sobre o célebre “Reglamen-to provisório de la Província Oriental para el fomento de su campaña y segurida de sus hacendados”, de 10 de setembro de 1815: “El reglamento aparece pues, como el programa eco-nómico-social de la revolución, enderezado a cortar el nudo principal de las contradicciones que atenazaban la sociedad criolla: el problema de la propriedad de la tierra y el de la producción ganadera. Y al mismo tiempo, se dirige a asentar sobre la tierra a los pobres del campo, creándoles las condicio-nes para su benestar y trabajo libre, y a erradicar las viejas y ahora parasitarias y contrarrevolucionárias formas de exis-tencia marginales de la producción: bandidismo, contrabano, corambre, etc.”61 “[...] el Reglamento Provisório de 1815 fue la más avançada y gloriosa ley que tuvieron los orientales. La confluencia en un solo haz de la revolución nacional anticolo-nial, democratica, republicana y federalista con la revolución social dispoensadora de tierras y enaltecedora de la dignidad humana transformó a la montonera oriental en el más formi-

61 TORRE, Nelson de la; RODRÍGUEZ, Julio C.; TOURON, Lucía Sala. Artigas: tierra y revolución. Montevideo: Arca, 1967. p. 56.

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dable y peligrosos de los ejércitos: el de los hombres que viven y mueren por un ideal.”62

Uma revolução nacional-democrática que, ao se apoiar nas necessidades objetivas de amplos segmentos sociais su-balternizados – gaúchos, negros, cativos, índios, etc. –, soube-lhes ganhar a confiança e o apoio, acaudilhando-os na longa e dolorosa resistência diante das classes proprietárias (pré-capitalistas) associadas da Banda Oriental, de Buenos Ai-res e do Império do Brasil.63 Em La oligarquia oriental em la Cisplatina, os autores citados lembram, precisamente, que a síntese entre uma liderança consequente, o programa de-mocrático-burguês de distribuição de terras aos deserdados do campo e às camadas sociais plebeias, aos quais interessa-vam aquelas medidas revolucionárias, resultaria num outro “modelo de montonera”. Uma montonera que estabeleceria um “novo modo de relaciones entre caudillos y massas: las relaciones libres entre hombres livres trabajadores directo de la tierra”.64 As razões da derrota de revolução democrático-radical na Banda Oriental e da sua frustração na Argentina são históricas, não havendo empecilho ou impasse estrutu-ral para esse movimento. Segundo os autores uruguaios ci-tados, essa derrota fez retroceder a revolução democrática radical, impondo a hegemonia sobre a Banda Oriental dos setores oligárquicos comerciais de Montevidéu, representan-tes dos grandes capitais europeus e dos grandes proprietários fundiá rios, impedindo a hegemonia de sociedade e produção capitalista por décadas.65

62 ELOY; TOURON; TORRE; RODRIGUEZ, La oligarquia oriental en la Cispla-tina, 1970. p. 19.

63 TOURON; TORRE; RODRÍGUEZ, Artigas y su revolución agraria: 1811-1820. México: Siglo XXI, 1978.

64 ELOY; TOURON; TORRE; RODRIGUEZ, La oligarquia oriental en la Cispla-tina, 1970. p. 19.

65 TOURON; ELOY, El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco, tomo II, p. 43.

127127Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

Para Milcíades Peña, tamanho seria o caráter retrógrado da produção artesanal, doméstica e pequeno-manufatureira interiorana que ameaçaria a própria unidade argentina em formação. Visão que deixa nas mãos da burguesia comercial e pastoril o futuro nacional argentino, apesar do alcance histo-ricamente restritivo dos projetos dessas classes. No contexto da interpretação que desenvolveu, Milcíades Peña não encon-tra saída dialética para a história da antiga formação social argentina, pois a ordem capitalista que propõe não produzia e reproduzia antagonicamente a classe que explorava, desti-nada historicamente a lhe servir de coveira. Em momento al-gum o autor aponta o proletariado rural, ou seja, os peões, na sua interpretação surgidos da produção capitalista pastoril, como classe protagonista na história argentina e portadora de projeto democrático e revolucionário.

“Era una verdadera tragedia que las industrias criollas, notoriamente atrasadas, para conservar sus reducidos mer-cados locales, debieron fragmentar al país renunciando así a construir el gran mercado nacional. Porque éste debía fatal-mente ser controlado por la burguesía porteña, y ello signifi-caba el librecambio, es decir, entregar el mercado nacional a la industria inglesa.” “La historia no brindaba ninguna sali-da para este circulo de hierro.”66 Já no século 19, quando se estabeleciam objetivamente tais contradições, haveria plena consciência da oposição entre os interesses do interior e das classes liberais importadoras. Ideólogos federalistas lembra-vam que a vitória de Buenos Aires sobre o interior significa-ria a estagnação e “miles y miles” de indivíduos sem nenhu-ma ocupação. Entretanto, para Milcíades Peña, não havia solução para essa contradição: “[...] el desarrollo de la acumu-lación capitalista – de la civilización capitalista en la única forma en que podía darse en aquel momento en la Argentina, es decir, como capital semi-colonial, atrasado y agropecuario

66 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 24.

128128 Mário Maestri

y comercial, determinaba fatalmente una política oligárquica y antidemocrática. El desarrollo capitalista en la Argentina no conducía a la democracia, sino a la oligarquía.”67

Como lembraria Marx, “Inglaterra aspiraba a ‘convertir a todos los demás países en simples pueblos de agricultores, reservándose ella el papel de fabricante’”. Seria a profunda concordância de interesses entre a indústria e as finanças inglesas e esse padrão de desenvolvimento capitalista semi-colonial argentino, meramente importador de manufatura-dos e exportador de matérias-primas, que permitiria a “pe-netración y la influencia británica en el país”.68 Movimento interpretado diretamente por Bernardino Rivadávia (1826-1827), primeiro, e por Juan Manual de Rosas (1793-1877), a seguir. Milcíades Peña assinala o caráter explorador dessa fase pré-imperialista do capitalismo, na qual a dominação se dava pela venda de manufaturados e compra de matérias-pri-mas, por meio de trocas desiguais. Os couros argentinos eram comprados, nos campos, por uns 3,5 peniques por libra, para serem vendidos em Buenos Aires por 5,5, três meses mais tar-de. Passado meio ano da produção, o produto era arrematado, em Londres, curtidos, por 9 a 10 peniques. No torna-viagem, uma bota, feita com o couro bonaerense, custava, em Buenos Aires, em torno a vinte novilhos!69

Couros e charques

Os criadores bonaerenses, ligados à produção, exporta-vam couros e charque e importavam manufaturados e ali-mentos, em parte do interior. Eram livre-cambistas e não possuíam visão nacional. Os comerciantes portenhos, repre-sentantes do capital comercial e industrial inglês, desligados da produção, mobilizaram-se desde 1810 pela reconstrução do

67 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 22 e 30.68 Idem, p. 31.69 Idem, p. 33.

129129Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

vice-reinado, para restabelecer o monopólio da exportação e importação de mercadorias. Portanto, necessitavam unificar o país. Representante dessas forças, o unitarista Rivadávia, na presidência do país, pretendeu colonizar o pampa e de-senvolver a agricultura para impulsionar o comércio interno, pois a fazenda pastoril pouco consumia. Ele sempre respeitou religiosamente os interesses ingleses, entregando imensas terras públicas em enfiteusis, para garantir o emprestado pe-los banqueiros ingleses. 70

A política geral de Rivadávia desagradava aos criado-res bonaerenses. Ele se voltava para o futuro, enquanto, no presente, os “indios conquistaban la provincia de Buenos Ai-res y el gauchaje se alzaba más que nunca contra la obliga-ción de conchabarse en estancias y saladeros”. Porém, nesses anos se acelerou a apropriação privada das terras públicas. Entre 1822 e 1930, “538 proprietarios obtuvieron por lo me-nos 8 millones seiscientos mil hecares”, pagando ao Estado pouco mais de cinco mil pesos, ao todo. No frigir dos ovos, lembra Milcíades Peña, o “unitarismo significaba disponer de los fondos de la aduana porteña para una política nacional manejada desde Buenos Aires. [...] aumentar los impuestos que recaían sobre los estancieros. Por otra parte, el progra-ma de centralización, en la medida en que prometía eliminar las aduanas interprovinciales y hacer accesible a los artículos extranjeros todo el mercado interno, expresaba en términos políticos los intereses de todos los vinculados a la expansión del comercio interno y externo”.71

Ao ditar a lei da capitalização, o unitário Rivadávia en-sejou que os estancieiros se transformassem em federalistas. “Y los estancieros y saladerista bonaerenses eran enemigos irreductibles de los impuestos en general y de los impuestos a la exportación en particular.” “Además, era probable que en

70 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 40.71 Idem, p. 41-44.

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un régimen unitario el gobierno central dedicaria su tiempo y recursos al desarrollo del interior”, isso para “expandir los mercados internos y ligarlos a Buenos Aires y a otros puer-tos”, “más que a continuar el programa de expansíon territo-rial hacial el Sur”, como necessitavam os criadores de Buneos Aires, sob a impulsão da produção charqueadora. Os criado-res opunham-se também à imigração colonial-camponesa.72

As províncias do interior defenderam-se do exclusivismo portuário estabelecendo tarifas especiais, alfândegas de trân-sito, taxas diferenciais, etc. Essa ação autonomista foi apoia-da pelos estancieiros bonaerenses, que queriam o federalismo para manter sob controle o porto e a oligarquia comercial. A aliança entre os estancieiros bonaerenses e as províncias po-ria fim ao governo quase exclusivo da oligarquia bonaerense, que procurava mercado nacional e empobrecia o interior. As classes subalternizadas, entre elas os gaúchos, que resistiam à proletarização e ao arrolamento militar, apoiavam a resis-tência federalista ao liberalismo portuário invasor. Milcíades Peña lembra que, nessa aliança, dominaram os estancieiros de Buenos Aires, segundo ele, capitalistas.73 Desse processo surgiria a ditadura. “Rosas constituye una etapa decisiva en el desarrollo del capitalismo argentino, tal cual es, vale decir, capitalismo atrasado, semi-colonial, esencialmente agropecua rio.” “Rosas pertenecía – y era uno de los más po-derosos integrantes – a esa clase capitalista nacional; capita-lista, pese a toda la charlatanería que pretende asignarle un carácter ‘feudal’.” “[…] Rosas contribuyó a desarrollar e hi-pertrofiar – como convenía a su clase – la principal actividad capitalista del país, es decir, la estancia y el saladero.”74 Ha-veria, portanto, unidade essencial entre os períodos da histó-ria argentina, antes, durante e após o rosismo – todos seriam etapas do desenvolvimento do capitalismo no país.

72 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 42-44.73 PENA, La era de Mitre, p. 4774 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 58-60.

131131Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

Preocupados com o que interessava

Segundo Milcíades Peña, Rosas e os estancieiros não se preocupavam em criar um mercado nacional, mas em desen-volver, como apenas proposto, a produção capitalista pastoril-saladeira dominante. Não havia razão para seguirem outro caminho. O governo rosista impulsionou a monopolização do gado para o saladeiro; impediu tributação da propriedade fundiária; escorraçou os nativos pampas, para permitir a ex-pansão da fazenda; acelerou a transformação do gaúcho em peão. O primeiro saladeiro de Rosas iniciou seus trabalhos em novembro de 1815. No mesmo ano, ditava-se o decreto: “Todo hombre de campo que no acredite tener propiedades legítimas o tierras de qué subsistir, será reputado sirviente, y obligado a llevar papeleta de conchabo de su patrón, visada cada tres meses por el juez de paz, so pena de declarársele vago y castigado con cinco anos de servicio militar obligatorio, o, si no sirviera para ese destino, con dos años de conchabo obligatorio a cargo de un patrón, la primera vez y de diez anos la segunda, en caso de reincidencia.”75 Medida orientada a criar, pela coerção extraeconômica, mercado de trabalho livre, devido à falta de condições históricas para que os produtores diretos fossem obrigados a vender a força de trabalho por ra-zões meramente econômicas, como assinalado.

Para manter o monopólio do porto de Buenos Aires, que produzia rendas e vantagens diferenciais para os saladeiros bonaerenses, Rosas lutou contra a França, que pretendeu im-por seu poder mercantil desde Montevidéu. O bloqueio fran-cês do porto de Buenos Aires favoreceu a economia das pro-víncias litorâneas e a produção manufatureira do interior. Em 1849, Rosas acertou com os ingleses o respeito ao monopólio de Buenos Aires e à navegação dos rios interiores, lançan-

75 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 63.

132132 Mário Maestri

do o litoral na miséria.76 Milcíades Peña assinala que “Rosas fue el primer gobernante argentino que sustentó su poder con una hipertrofia de ejército de línea, que es el enemigo nato del gaucho, de sus correrías y sus montoneras. Las rentas de la aduana porteña le permitieron mantener en pie de guerra cuatro ejércitos de línea”.77 Isso permitia aos criadores bona-erenses uma administração menos contemporizadora em re-lação às populações gaúchas da província que se refugiavam, numerosas, entre os nativos pampas e na Banda Oriental.

Peña destaca, igualmente, o “temperamento caverní-cola” de Rosas, definindo-o como reacionário até a medula, lembrando sua militância contra “la enseñanza libre, contra el divorcio, contra el liberalismo, [...]”.78 Um perfil que des-toa fortemente de líder burguês-capitalista, mesmo colonial. Para o autor, o “antiliberalismo, el clericalismo, el oscurantis-mo” de Rosas era, sobretudo, “política ideológica para mante-ner el orden y evitar trastornos a lo poseyentes”.79 Intuindo a contradição de sua proposta, procura impugnar os argumen-tos daqueles que estranhavam governo capitalista que não apoiava minimamente a indústria. “Y si sólo calificásemos como capitalista a los gobiernos que contribuyeron a desar-rolar el capitalismo industrial, entonces resultaría que hasta 1900 no hubo entre nosotros ningún gobierno que estimulase el desarrollo capitalista del país”,80 o que, diga-se de passa-gem, para além da data apenas referencial, é correto para a Argentina assim como para o Brasil.

76 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 74.77 Idem, p. 64.78 Idem, p. 69.79 Idem, p. 70.80 Idem, p. 60.

133133Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

Mercado interno e industrialização

Milcíades Peña polemiza com a historiografia que via a oligarquia comercial portenha como uma classe que se es-forçava para industrializar o país e, na enfiteuses, estratégia para controlar o avanço dos estancieiros. Lembra que, para os comerciantes, industrializar o país era se liquidar como im-portadores. Uma solução de caráter lógico para uma questão histórica. Nas Américas, comerciantes usaram comumente o controle dos mercados e a acumulação mercantil de capitais (pré-capitalista) para produzir e vender as mercadorias que antes importavam.

Aquele historiador ajunta que os comerciantes que-riam unificar o país apenas para melhor introduzir mono-policamente os produtos estrangeiros, não lhes interessando “conquistar o deserto”, pois a expansão da produção pastoril pouco lhes seria vantajosa. Para Peña, se o viés nacional da “burguesia comercial” era anti-industrialista, o industria-lismo da “burguesía estanceril” seria antinacional: “[...] los estancieros y saladerista bonaerense, clase indudablemente nacional por su vinculación a la producción del país [sic], en la cual se basaba su poderío, era cerradamente localista y en tanto conservaba su puerto único con su correspondiente adu-ana privilegiada, se desentendía del resto do país siempre y cuando éste vegetara pasivamente sin pretender quebrar el monopolio porteño del puerto y de producto de la aduana.”81

Por sua vez, os “productores artesanales”, a única classe que almejaria o desenvolvimento da produção interna, mobi-lizavam-se pelo “estancamiento protegido de sus atrasadas empresas”. Uma situação que teria determinado, segundo o autor, verdadeiro impasse histórico: “El círculo estaba cerra-do y no había dentro del país ninguna fuerza que tendiera a romperlo, aunquando el interés en la producción nacional a

81 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 50.

134134 Mário Maestri

la creación de un mercado interno nacional.” Porém, o autor propõe salto para a frente da produção capitalista pastoril-charqueadora com o fim do rosismo, que teria expressado a autonomia dos grandes criadores, já capitalizados. O porto e a campanha de Buenos Aires, cada vez mais inseridos e sub-metidos ao mercado mundial, exigiriam avanços significati-vos na produção pastoril, além dos exigidos e permitidos pelo saladeiro. “La ganadería se diversifica, apareciendo nuevos intereses al margen de los vinculados al saladero.”82

Em 1845, inicia a introdução do alambrado, que primei-ro é usado para proteger as chácaras e plantações e, a se-guir, para cercar as estâncias.83 Os banheiros carrapaticidas, a melhoria genética, as invernadas, as áreas de manejo, a ovinocultura, a construção de ferrovias e, finalmente, o ad-vento dos frigoríficos deixavam para trás a “fazenda criou-la”, o peão agauchado e o saladeiro, formas de produção que sustentavam a ditadura rosista. Já controlando a terra, os estancieiros abriam-se, igualmente, para a colonização, que valorizava as propriedades, tornava mais baratos os meios de subsistência, fornecia a mão de obra crescentemente exigida pelos avanços produtivos, com destaque para a ovinocultura, sequiosa de mão de obra especializada.

Milcíades Peña assinala a própria transformação nos costumes, fortemente influenciada pelos ingleses, realidade muito visível, já que as modificações produtivas se impu-nham de forma desigual. Em 1847, Mc Cann escrevia: “Los propietarios de campos pueden dividirse en dos categorías: los que quieren adoptar hábitos europeos, cuyas modalida-des imitan, y los que prefieren conservar las costumbres del país.”84 As transformações profundas que ocorriam na produ-

82 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 78, 50, 97.83 SBARRA, Noel H. Historia del alambrado en la Argentina. Buenos Aires: Edi-

torial Universitaria de Buenos Aires, 1964.84 MAC CANN, William. Viaje a caballo por las provincias argentinas. Buenos

Aires: Hyspamerica, 1986. p. X.

135135Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

ção exigiriam novas formas de domínio político, superando, inexoravelmente, a ditadura rosista, que regera o país duran-te décadas: “Al llegar Caseros, lo único que restaba del fren-te rosista de 1830 eran las masas bonaerense y los caudillos mediterráneos, quiénes, por si solo nada podían decidir [...].” Milcíades Peña propõe que, se Rosas não tivesse caído, have-ria, possivelmente, a separação do litoral, como ocorrera com o Paraguai.85

Nova ordem

Para Milcíades Peña, a nova ordem político-social que nascia em uma Argentina ainda mais ligada ao comércio exterior ensejava uma ainda maior dependência ao capital mundial, situação que radicalizava, e não contraditava, mo-vimento construído durante a ditadura rosista. “El saladero era menos dependiente del capital extranjero que el frigo-rífico [...] pero se trata de la diferencia que media entre la crisálida y la mariposa, es decir, la economía ‘independiente’ del rosismo llevaba todos los gérmenes de la economía de-pendiente sin comillas que se estructuró después.” 86 Ou seja, havia avanço de quantidade, mas jamais salto de qualidade nessa transposição.

La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple In-fâmia, denso e original momento da interpretação de Peña sobre a formação histórica argentina. O trabalho aborda o candente período que vai da queda de Rosas, em 1852, à in-tervenção da Argentina de Mitre na Guerra do Paraguai, em 1864-70. Para o autor, essa guerra constitui momento con-clusivo da imposição pela “burguesia comercial” portenha da conformação estatal liberal-unitária à nação argentina. O ensaio retoma a proposta da queda de Rosas, derrotado pelo

85 PEÑA, El paraíso terrateniente, p. 96 et seq. 86 Idem, p. 102.

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unitarismo, da “burguesia comercial portenha”, sob a direção de Mitre, unida ao federalismo das províncias do litoral e do interior, comandadas pelo general José Justo Urquiza (1801-1870). A fácil vitória de Monte Caseros, em fevereiro de 1852, expressaria a dissolução do rosismo, com a perda de sua base de sustentação, a estância e o saladeiro capitalistas tradicio-nais, como visto.

Milcíades Peña aponta o programa federalista de Urqui-za como “aportes progressivos” importantes à “organización definitiva del país para facilitar su desarrollo capitalista”: su-pressão das aduanas internas, nacionalização das aduanas exteriores, livre navegação dos grandes rios, criação da Bolsa de Comércio, fundação de Departamento de Estatística, aboli-ção da pena de morte, fim do confisco por razões política, etc.87 Não discute a contradição posta por programa nacional avan-çado defendido por forças sociais e políticas das províncias do interior, segmentos, segundo ele, regressivos. Programa progressivo em contradição direta com as propostas localistas e atrasadas defendido pela “burguesia comercial” portenha e pelos “criadores” e “saladeiristas” de Buenos Aires, que defi-nia como os segmentos capitalistas de ponta da nação.

Foi um projeto democrático nacional abortado, em 11 de setembro de 1852, com o rompimento com a Confederação Argentina da província de Buenos Aires, comandada pelos unitários de Mitre, expressão da “burguesia comercial” por-tenha, dos criadores bonaerenses e dos interesses ingleses. Rompimento nascido da negativa de nacionalizar as rendas portuárias de Buenos Aires, que avantajavam a província em relação ao resto do país e à bacia do Prata, movimento que Juan Bautista Alberdi definiu como retorno “ao rosismo sem Rosas”. Foi política imposta pela violência e pela força que levaria o mitrismo a prever a constituição da província de

87 PEÑA, La era de Mitre, p. 9.

137137Círculo de ferro: Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

Buenos Aires em nação independente, caso não se impusesse à nação – República del Plata.88

Fracos e fortes

Milcíades Peña analisa detidamente a fragilidade econô-mica da Confederação Argentina, mesmo após a liberdade de navegação dos grandes rios, diante de Buenos Aires, centro inconteste do capital mercantil, que recebia o apoio indiscutí-vel do grande comércio mundial, com destaque para o inglês. Aponta, sobretudo, como responsável pela vitória portenha a fragilidade do bloco político-social que sustentava a Confede-ração, que teria nos “ganaderos entrerrianos”, representados pelo general Urquiza, o único setor “capaz de enfrentar a la oligarquia perteña”. Peña lembra que não haveria contradi-ções essenciais entre criadores e saladeiristas de Buenos Ai-res e do litoral que impedissem uma acomodação final entre eles.89

A vitória indiscutível de Urquiza sobre Mitre na batalha de Cepeda, em 23 de outubro de 1859, sem impor definitiva-mente a unificação e o poder nacional à província de Buenos Aires, expressaria o impasse social, político e histórico do fe-deralismo, vergado mais tarde também devido à defecção do grande caudilho provincial na batalha de Pavón, em 17 de setembro de 1862. “[...] Urquiza representaba a los estanciei-ros entrerrianos” aliados da oligarquia portenha durante a ditadura de Rosas, até que se inimizassem com ele devido ao “monopolio aduanero y de los ríos”, inaceitáveis pelos pro-prietários das províncias do litoral diante das novas oportu-nidades oferecidas pelo comércio mundial. Fora devido a essa contradição que se acaudilharam as forças sociais provinciais do interior, com contradições essenciais com a ditadura por-

88 PEÑA, La era de Mitre, p. 12, 19. 89 Idem, p. 25.

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tenha, com destaque para a indústria artesanal e pequeno-manufatureira e as massas gaúchas.

Não havia questão essencial que impedisse que os cria-dores entrerrianos abandonassem à sua sorte os antigos alia-dos plebeus na busca de acordo com as forças portenhas e bo-naerenses, sobretudo diante de impasse que os prejudicasse economicamente.90 Eles, como os criadores de Buenos Aires, abominavam o protecionismo industrial e a independência econômica.91 A vitória em Pavón e a acomodação das classes hegemônicas litorâneas permitiram a imposição da ditadura unitarista ao federalismo das províncias do interior. Movimen-to no qual Mitre associou a força das “bayonetas porteñas” ao apoio fornecido pelos núcleos raquíticos das oligarquias libe-rais locais, apesar da forte oposição da população, com desta-que para as classes plebeias urbanas e sobretudo rurais, que comumente se sublevaram através das montoneras.

Para Peña se manteria o impasse histórico vivido pela Argentina na época: “Dentro del país no existían clases capa-zes de imprimir outra orientación a la evolución nacional.”92 A inconsequência histórica da “indústria doméstica” e do modo de viver e produzir gaúcho ensejariam que a oposição à pe-netração da ditadura liberal-mercantil portenha, sobretudo sob a forma das montoneras, que reconhece como movimen-to popular de resistência, não tinha “absolutamente ningún porvenir”. Isso porque essa oposição carecia de “conteúdo so-cial progresivo” ao não aportar “la posibilidade de ningún or-den social novo”. Tratar-se-ia de “defensa moribunda de una estructura social sin posibilidades de evolución acendente”, como visto. O progresso estaria, ao contrário, com a “oligar-quia porteña”, mesmo não democrática, pois sua “política” “elevaba la economía nacional a una etapa superior en la cual a las masas que integraban las montoneras habría de tocarles

90 PEÑA, La era de Mitre, p. 31.91 Idem, p. 39.92 Idem, p. 40.

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la peor parte”. Isso porque “aportaba algunos escasos elemen-tos de civilización industrial, con cuenta gotas y para bene-ficiar en primer término al capital extranjero y en segundo termino a la oligarquía porteña y sus socias menores del resto del país, con entera desidia por la creación de los cimientos de una gran nación”.93

O unitarismo dominou o país com a liquidação da Con-federação Argentina, impondo a ordem liberal-mercantil às províncias do litoral e do interior e às suas populações, massa-crando as montoneras e seus caudilhos. Porém, tratava-se de uma hegemonia frágil e instável, sobretudo devido à oposição essencial à dominação liberal-comercial portenha dos blancos da ex-província oriental e da enorme, poderosa e rebelde ex-província do Paraguai. O governo daquele país, dependente de uma saída para o mar e, portanto, contrário à hegemonia portenha ou imperial sobre o Prata, era um aliado do federa-lismo argentino capaz de desequilibrar a correlação de forças apenas construída. Milcíades Peña lembra: “La guerra contra el Paraguay fue la continuación lógica y la última etapa de la guerra de a oligarquía mitrista contra el Litoral e las provin-cias interiores argentinas […].”94

Destruição geral

Ponto alto do ensaio La era de Mitre, sobretudo devido ao momento em que foi produzido, é a análise, ainda que sin-tética, da formação social paraguaia e do sentido da interven-ção do governo imperial brasileiro naquele conflito, interven-ção que ensejou que os exércitos da Argentina mitrista e do Império destruíssem aquele país “con una minuciosidad que el mismo Hitler no logro hacer con ningún pueblo”.95 Nesse processo, Milcíades Peña discute os resultados sociais profun-

93 PEÑA, La era de Mitre, p. 44-45.94 Idem, p. 47.95 Idem, p. 49.

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dos do processo de resistência paraguaio e retoma a discussão sobre os grandes objetivos da Revolução de Maio, analisados nos dois primeiros ensaios: “[...] emancipar el país de Espana y someter todo el virreinato a Buenos Aires.”96

O autor lembra que a luta paraguaia pela independência ensejara a repressão dos segmentos oligárquicos antinacio-nais espanholistas e portenhistas, com destaque para a aris-tocracia administrativa, para os grandes proprietários espa-nhóis e para os comerciantes ligados ao comércio de Buenos Aires e inglês. Em nome da “clase dominante del Paraguay integrada por medianos propietarios agrários”, o movimen-to capitaneado por José Gaspar de Francia (1776-1840) se materializaria em uma “economía defensiva, basada en el monopolio estatal de la propiedad del principal instrumen-to de producción – la tierra – y de la comercialización de los productos fundamentales de exportación [...]”. Solução que ensejaria à nação guarani, apesar da pobreza do país e da ex-propriação imposta pelo porto de Buenos Aires, “capitalizarse acelerdamente”.97

Milcíades Peña assinala que, por não possuir o país clas-ses tão ricas como os “estancieiros e a burguesia comercial porteña”, surgira um “Estado que por su poderio económico y centralización política” competiria com aqueles segmentos sociais, entre os “más poderosas y prósperas de América del Sur”. Em sensível interpretação de cunho materialista, assi-nala que a “sociedad paraguaya, pesa a la dictadura estatal personalizada y de formas casi monárquicas”, era um país democrático, já que não era “un Estado parasito, sino ligado íntimamente a la producción y la comercialización de la pro-ducción”, em que “todas las clases eran realtivamente débiles e iguales”.98 Uma debilidade e fragilidade das classes proprie-tárias que, agregaríamos, resultou no Estado interpretando

96 PEÑA, La era de Mitre, p. 49.97 Idem, p. 50.98 Idem, p. 51.

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fortemente os interesses dos médios e pequenos camponeses proprietários e arrendatários, dos pequenos comerciantes, do artesanato e produção pequeno-mercantil, etc. Concordando com o autor, ajuntaríamos que essa realidade manteve-se muito presente durante a ditadura francista (1813-1840) e passou a conhecer gradual, mas inexorável transformação, em favor dos grandes proprietários nos dois governos seguin-tes, de Carlos Antônio López (1844-1862) e Francisco Solano López (1862-1970). Movimento que não alcançou a realizar salto de qualidade, interrompido pela Guerra Grande, que rea lizaria radical metamorfose liberal-mercantil do país, sob a hegemonia do capital exterior e o tacão da ocupação militar.

Uma saída inesperada

Apoiando-se em Juan Bautista Alberdi e em outros au-tores coevos, Milcíades Peña assinala, sem os exageros então já habituais, o desenvolvimento relativo em que se encontra-va o Paraguai nos anos 1860 – ferrovias, manufaturas, me-talurgia, telefone, telégrafo, etc. Iniciativa de modernização apoiada essencialmente em capitais estatais, enquanto o Im-pério e a Argentina, muito mais ricos, eram obrigados a se endividar para tal junto ao capital mundial. Nesse processo interpretativo, conclui, em clara contradição com teses sobre a Argentina defendidas anteriormente: “Paraguay, en cam-bio, en virtud del poderío capitalista [sic] de su estado y de la homogeneidad de su clase gobernante demostró inmediata-mente que era capaz de asimilar la civilización industrial y orientarse hacia ella, pero bajo su contra, sin perder su sobe-ranía.” “Paraguay evolucionaba independientemente hacia la civilización capitalista industrial [...].”99

Ao encerrar discussão muito sintética sobre a formação social paraguaia, Peña recapitula sua tese central sobre a Ar-

99 PEÑA, La era de Mitre, p. 53.

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gentina do período em análise: as províncias do interior não tinham proposta alternativa superior à do liberal-mercanti-lismo portenho. A organização social das principais classes das províncias do litoral era igual no essencial às da provín-cia de Buenos Aires, o que configurava o impasse, ou anel de ferro, nas suas palavras. Entretanto, agrega apontando em outra direção: “Paraguay, en cambio, ofrecía una alternativo distinta a la de la oligarquía porteña y superior a ella, como que se basaba en el desarrollo autónomo de la economía na-cional en base a todas las conquistas da civilización, indus-trial y capitalista.”100 Uma economia nacional que se dera à margem das trocas internacionais e apoiada fortemente na produção artesanal, pequeno-manufatureira e camponesa, produção que enfatizara e desqualificara, respectivamente, no relativo à Argentina.

Na segunda parte do ensaio, Milcíades Peña explica a guerra como iniciativa do liberal-mitrismo para, por um lado, “liquidar aquel foco que en cualquier momento podía agluti-nar a las derrotadas provincias del Interior y a los estancie-ros de lo Litoral” e, por outro, “extender su influencia hasta el mercado paraguayo, rompiendo las barreras de su mono-polio estatal y su rígida centralización”. Quanto ao Estado e às classes dominante imperiais, lembra que sua economia se sustentava no “trabalho esclavo”, padecendo das crises desse sistema de produção, “cada vez más costoso e ineficien-te”, necessitando para tal de “expansión territorial a expen-sas de los vecinos, con tendencia a dominar toda la zona del Plata”.101 Em outra sensível interpretação, nega terminante-mente que a Argentina mitrista e o Brasil Imperial fizeram “la guerra del Paraguay por encargo de Inglaterra, aun que al terminar la guerra el principal beneficiario [...] fue el capital londinense.”102

100 PEÑA, La era de Mitre, p. 57.101 Idem, p. 63.102 Idem, p. 61.

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Lembra que o ataque do Império, associado à Argenti-na, contra o Paraguai começou efetivamente com a agressão orquestrada por aqueles países ao Uruguai, “el último alia-do que le quedaba” à nação guarani, “después de la derrota del Interior argentino y la neutralización del Litoral por el acuerdo de Urquiza con Mitre”.103 Destaca as ambições mais amplas do Império na República Oriental, da qual parte de seu território era “una prolongación del Estado brasileño do Rio Grande do Sul”, com grande “cantidad de estacieros (rio-grandenses)” estabelecidos nas regiões setentrionais do país oriental, que sonhavam com sua anexação ao Império. Assi-nala a vontade dos criadores sulinos de continuarem se com-portando no Uruguai como em sua terra, despachando o gado livremente para o Rio Grande, recebendo de volta os cativos homiziados no Uruguai, que abolira a escravidão.104

O sentido da guerra

Milcíades Peña assinala o apoio de Mitre e do Império à invasão do Uruguai por Venancio Flores (1808-1868) até a deposição do governo independente e legal blanco. Cita carta de Mitre a Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) comprovando a utilização da necessária travessia das tropas paraguaias de Corrientes como forma de levar o Paraguai à guerra contra a Argentina: “Por aquí son (los paraguayos) impotentes. Por tierra tendrían que violar el territorio argen-tino y se encontrarán en guerra contra nosotros aliados con el Brasil.”105 Citando o jornal mitrista Nación Argentina, de 3 de fevereiro de 1865, assinala o projeto de destruição da ordem autonômica em vigor no Paraguai, em nome do libe-ralismo mercantil, portanto, também dos interesses ingleses, antes da declaração de guerra entre a Argentina e este país.

103 PEÑA, La era de Mitre, p. 63.104 Idem, p. 69.105 Idem, p. 71.

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“La República Argentina [...] está en el imprescindible deber de formar alianza con el Brasil a fin de derrocar esa abomi-nable dictadura de López y abrir al comercio del mundo esa expléndida región.”106 Desnuda a retórica patriótica argenti-na e imperial, servindo-se de declaração do próprio Mitre, so-bre a guerra como orientada a derrubar a ditadura bárbara paraguaia. Quando a guerra terminava, Mitre escrevia: “Los soldados aliados, y muy particularmente los argentinos, no han ido al Paraguay a derribar una tiranía [...]. Han ido [...] sirviendo intereses argentino y lo mismo habrían ido se en vez de un gobierno monstruoso y tiránico [...] hubiéramos sido insultados por un gobierno más liberal y civilizado.”107 Assi-nala o atraso militar paraguaio diante dos antagonistas e a defesa intransigente da sua população da liberdade.108

Milcíades Peña chama a atenção para que, mesmo sendo a guerra contra o Paraguai parte fundamental da ofensiva final contra as forças federalistas das províncias do litoral e do interior, como assinalado, sobretudo diante da resistência guarani, “debilitó el frente interno de la oligarquía y permi-tió un último estertor de las masas” daquelas regiões “contra a oligarquia porteña”. Assinala que a população plebeia ar-gentina “votó contra la guerra del Paraguay desertando em masa, insurreccionándose, cooperando con los paraguayos donde pudo y resistiéndose pasivamente al mitrismo en todas partes”.109 Destaca como parte desse movimento as montone-ras do interior, dirigidas por Felipe Varela, parte mais signi-ficativa da situação de insurreição intermitente que dominou os seis anos de governo de Bartolomé Mitre.110

Conclui o trabalho ressaltando o pouco entusiasmo dos estancieiros bonaerenses pela guerra, devido, sobretudo, aos

106 PEÑA, La era de Mitre […], p. 72.107 Idem, p. 77.108 Idem, p. 80.109 Idem, p. 86.110 Idem, p. 90.

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gastos financiados com os impostos de exportação, ao contrá-rio da oligarquia comercial portenha, a grande interessada no conflito, que conformou a nação no sentido liberal preten-dido, estendendo seu raio de ação e lhe garantindo negócios fabulosos. Grande defensor do comércio, Mitre afirmaria: “En la guerra del Paraguay ha triunfado no solo la República Ar-gentina sino también los grandes principios del libre cambio, que son los que vivifican al comercio. Para el comercio se han derribado las fortalezas que amenazaban las costas; para el también se han roto la cadenas que obstruían el rio Para-guay; para él se ha conquistado también la paz presente y futura de estas regiones [...].”111

Termina narrando a situação de destruição e saque do Paraguai após a guerra, sob o tacão da ocupação militar. As-sinala que já em 1870 o país contraía seu primeiro emprés-timo, de um milhão de libras, que terminou integralmente nas mãos dos vencedores. Lembra que a oligarquia portenha não alcançou plenamente seus objetivos, pois o Império de-fendeu a integridade territorial do Paraguai, para que a re-gião não escapasse para as mãos argentinas, assim como os ingleses protegeram o status nacional daquele país contra os dois grandes agressores, preocupados na recuperação de seus empréstimos.112

“De todo esto o único que queda en pie es que la oligar-quía porteña, contra la voluntad de toda la Nación Argentina, entró por derecho propio en la historia universal del impudor con una de las más épicas canalladas que registra la historia del mundo. Con semejante hazaña Mitre impuso el predomi-nio indiscutido de la oligarquía porteña sobre el resto del país, incluso sobre los otrora rebeldes ganaderos entrerrianos, y destruyó también, en beneficio de la burguesía europea y de su servil intermediario cita en las orillas del Plata, el primero

111 PEÑA, La era de Mitre […], p. 101.112 Idem, p. 104.

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y único intento de evolución independiente hacia el capitalis-mo industrial que conoció América Latina hasta hoy.”113 Uma valorização de processo que não se materializou na Argenti-na e no Uruguai, não por destino histórico, mas pela força e vitória das classes mercantis e pastoris pré-capitalistas da província de Buenos Aires, em processo que atrasou substan-cialmente a gênese da produção capitalista e das classes tra-balhadoras fabris, processo que valorava como único caminho em direção a emancipação social e política regional.

113 PEÑA, La era de Mitre […], p. 106.