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Fernando Schumak Melo Luiz H. Kulik
Bruma de dados: Introdução ao Direito do Futuro
Vol. 01
Curitiba 2021
2021 by Studies Publicações e Editora Ltda. Copyright © Studies Publicações e Editora
Copyright do Texto © 2021 Os Autores Copyright da Edição © 2021 Studies Publicações e Editora Editora Executiva: Barbara Luzia Sartor Bonfim Catapan
Diagramação: Sabrina Binotti Edição de Arte: Sabrina Binotti
Revisão: Os Autores
O conteúdo do livro e seus dados em sua forma,
correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores. Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. Conselho editorial: Maria Lucia Teixeira Guerra de Mendonça, Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil Fernando Busato Ramires, University of Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brazil Halley Ferraro Oliveira, Federal University of Sergipe, Sergipe, Brazil Nelson Barrelo Junior, University of Sao Paulo, São Paulo, Brazil Adriane Aparecida de Souza Mahl Mangaroti, State University of Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul, Brazil Educélio Gaspar Lisbôa, State University of Pará, Pará, Brazil Aldalúcia Macêdo dos Santos Gomes, State University of Amazonas, Amazonas, Brazil Educélio Gaspar Lisbôa, State University of Pará, Pará, Brazil Aldalúcia Macêdo dos Santos Gomes, State University of Amazonas, Amazonas, Brazil Paula Wiethölter, Faculdade Especializada na Área de Saúde do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brazil
Andréa Cristina Marques de Araújo, Fernando Pessoa University, Porto, Portugal Fernando Busato Ramires, University of Passo Fundo, Rio Grande Sul, Brazil Sérgio Eustáquio Lemos da Silva, Paulista State University, São Paulo, Brazil
Editora Studies Publicações Curitiba – Paraná – Brasil
www.studiespublicacoes.com.br [email protected]
F363b Melo, Fernando Schumak
Bruma de dados: Introdução ao Direito do Futuro / Fernando Schumak Melo, Luiz H. Kulik. Curitiba, Studies Publicações e Editora, 2021. 215 p. Inclui: Bibliografia ISBN: 978-65-995832-1-6 DOI: 10.54033/stebook.00002 1. Ensaio científico propedêutico. 2. Direito técnico. I. Melo, Fernando Schumak. II. Kulik, Luiz H.. III. Título.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
OS AUTORES
Fernando Schumak Melo - Graduado em direito pelo Centro Universitário Curitiba em 2006, pós-graduado em Processo Civil pela PUC/PR em 2008, Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná, Doutorando em Ciência Política e Eficiência Judicial pela UFPR, formando em Advocacia 4.0, LGPD e Temas de Direito Digital pela Future Law/SP, atuante como advogado desde 2007, atualmente é consultor jurídico e empreendedor na empresa Schumak Law. Líder do Grupo de Pesquisa TecnoLawgia - Direito e Inovação, e vice líder do Grupo de Estudos em Processo Civil - Segurança Jurídica, ambos vinculados à FAE Centro Universitário, Professor de Processo Civil, Empreendedorismo e Inovação Jurídica, Direito e Políticas Públicas, Oficina de pesquisa empírica em direito e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da FAE - Centro Universitário, membro da ABCP - Associação Brasileira de Ciência Política e da AB2L - Associação Brasileira de Lawtech e Legaltechs. Membro do conselho editorial da Revista de Direito da FAE.
Luís H. Kulik - 21 anos, poeta, cronista e contista. Graduando em Direito pela Fae - Centro Universitário, autor de "Poemas para Almas Solitárias" na Amazon.
APRESENTAÇÃO
Seria o avanço de nossas tecnologias o pavimento pelo qual a raça humana traça o próprio caminho ou o último selo do destino sobre o declínio de toda a civilização? Qual o papel do direito neste novo mundo em que não há mais certeza na distinção criador-criatura? Quais as consequências jurídicas da conurbação dos conceitos homem-deus-máquina?
Bruma de Dados propõe situações pelas quais devem passar a sociedade e os operadores do direito de um futuro próximo. O fio que permeia todos os capítulos é o Direito e sua necessidade de renovação em tempos cada vez mais incertos e velozes. Desde que nossas tecnologias passaram a avançar décadas em meses, podemos acreditar que em cem anos estaremos em patamares tecnológicos particularmente inconcebíveis atualmente, no entanto, nossos comportamentos e compreensão de nossas urgências humanas ainda estão tão rasos e incompatíveis como há séculos.
Trata-se de uma obra literária propedêutica ao direito técnico, enquadrado nos campos da filosofia ou sociologia jurídica. O primeiro capítulo, “Com Algumas Mãos a Menos”, aborda o início do desenvolvimento de personalidades artificiais e a semeação da manipulação fácil até mesmo dentro das linhas de código mais complexas.
No segundo capítulo, intitulado “Nos Seus Sonhos”, um médico metódico relata a história de pessoas presas em uma ilha e que foram submetidas a experiências de sonhos induzidos e inesperadamente compartilhados. No terceiro capítulo, nomeado como “Um Almoço bem Vestido com Muito Antiácido”, temos um narrador não confiável em uma teia de conspirações que ele mesmo costura para si sem perceber.
O quarto capítulo, “Conto Sobre o Passado”, traz a injusta competição entre inteligências orgânicas e artificiais
dentro de um parlamento híbrido. No quinto e último, “Todo o Tempo do Mundo”, um homem do futuro é lançado de volta para o passado para lutar em uma guerra que começou muito antes dele e é acolhido por pessoas que podem não parecer serem quem são.
Em cada momento histórico podemos ver a humanidade excluída, manipulada e abandonada por seus próprios sistemas legais. Atropelada por um desenvolvimento tecnológico que não mais pode controlar. Como? Por quê? — Nos questionamos neste livro. Uma obra provocadora, inovadora, mas acima de tudo inspiradora para os criadores e criaturas do direito do presente e do futuro.
SUMÁRIO
CAPÍTULO 01 ....................................................................... 01 COM ALGUMAS MÃOS A MENOS
CAPÍTULO 02 ....................................................................... 39 NOS SEUS SONHOS
CAPÍTULO 03 ....................................................................... 74 UM ALMOÇO MUITO BEM VESTIDO COM MUITO
ANTIÁCIDO CAPÍTULO 04 ..................................................................... 130
CONTO SOBRE O PASSADO
CAPÍTULO 05 ...................................................................... 150 TODO O TEMPO DO MUNDO
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- Pode se sentar. – A Unidade Médica G9.72 indicou.
- Muito obrigado – A Unidade 00100100 respondeu
no automático. Não havia motivos pelos quais ele deveria
ser educado. Tinha plena consciência de que Unidades
Médicas não possuíam nenhuma diretriz de empatia ou
diálogo.
Ela usava pele sintética, como a Unidade de
Produção. Parecia uma pessoa perfeitamente normal, com
sua pele parda, braços longos, coxas grandes e pescoço
fino. Seus olhos eram duas esferas negras, como os Dela.
Talvez mudassem somente pelo fato dos olhos serem
capazes de olharem por dentro de qualquer coisa. Através
deles, se a Unidade de produção olhasse bem de perto,
conseguiria enxergar as linhas de comandos primários e
secundários, daqueles que se poderia ver nos monitores
de computadores pertencentes a um passado distante. Ela
estava condicionada a analisar cada milímetro de seu
hardware. Com o fim das buscas por danos a Unidade
Médica limpou o próprio prompt. Um novo comando teve
COM ALGUMAS MÃOS A MENOS
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início com uma simples linha de barras e dois pontos. As
informações corriam da mesma forma que a água tomava o
chão em um alagamento. Ela seguiu para um comando das
próprias mãos, aproximando-as das costas da Unidade de
Produção.
A Unidade Médica seguiu com o indicador pela
extensão da suposta coluna vertebral. A região que buscava
era facilmente encontrada na nuca. Um pedaço de pele tão
leve e áspero que parecia pedir para ser aberto. Ela
pressionou-o por um número de segundos que a Unidade de
Produção já estava tinha se cansado de contar. Ela abriu
sua entrada USB embaixo do pé de cabelos loiros e
sintéticos. A Unidade de Produção, de certa forma, parecia
um ser humano doente a maior parte do tempo. A pele
sintética que tinha adquirido nessa mesma Empresa
consistia em uma versão de teste que, graças a Ela, seria
vendido da maneira certa. Sua pele apresentou um defeito
quando exposta ao Sol em uma semana. Os raios
ultravioletas desbotaram o tom bege, tornando sua pele
sintética tão branca quanto uma nuvem no céu.
Ela suspirou.
Sequer tinha necessidade disso. Os pulmões eram
um mero luxo da empresa falida onde ela tinha sido criada.
Se tratava de duas bombas de oxigênio que aumentavam a
3
medida que o gás carbônico entrava, e desinchava quando o
oxigênio reciclado escapava. Essa proposta ecológica fez
com que os robôs produzidos pela sua “Empresa-Mãe”
(como costumava chamar no íntimo) custassem três vezes
mais que qualquer robô no mercado. Antes que pudesse
baixar o pacote completo de planos, diretrizes, e funções da
linha de montagem, ela foi relocada para esta Empresa, a
maior de todo o mundo. Nela se sentia só mais uma célula
em um corpo humano ainda infantil, que só podia crescer
cada vez mais, com ou sem sua ajuda.
Seus pais eram uma linha de produção que havia se
tornada obsoleta há muito tempo. Braços mecânicos,
esteiras sem sensor, supervisores físicos, e controle de
qualidade, eram coisas que todos acreditavam ter ficar no
passado, como relógios de pulso e tecnologia movido a óleo
fóssil.
E mesmo que essa Nova Empresa estivesse
abraçando-a com promessas de inovação, não tinha como
não estar exausta disso. Todas as Terças e Quintas Ela
deveria se dirigir a essa sala para baixar todo o conteúdo
novo. Só assim seria capaz de trabalhar todos os dias por
três horas nessa fábrica. Hoje baixaria o procedimento dos
parafusos nas mãos. Se não estava enganando uma
unidade com nomeação binária trabalhava neste mesmo
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setor. O número de série da Unidade de Produção das mãos
deveria ser 10100100, o que provava um denominador em
comum. Porém a outra Unidade se mantinha sem qualquer
personalidade, pele sintética, ou simulador de emoções.
Talvez tenha sido isso que permitiu a mesma Unidade ter
sido o “Robô do Mês” sete vezes desde que tinha entrado na
Kprncs.
Já a Unidade de Produção 00100100 era equipada
de tudo. Simulador de emoções, bombas de oxigênio,
sensores táteis, e um emulador de Personalidade. Ela era
uma Unidade de Produção Simples, sem nenhum membro,
equipamento, ou diretriz para trabalho pesado. A coisa mais
resistente em seu corpo era uma coluna flexível recoberta
de kevlar. O botão abaixo de sua nuca era o único meio de
acessar seu conteúdo.
- Está pronto. – A Unidade Médica anunciou,
retirando o cabo e fechando a pele sobre a nuca com os
imãs compatíveis entre si. Deviam totalizar doze.
- Muito obrigado. – A Unidade de Produção
agradeceu de novo, se arrependendo logo em seguida.
Levantou-se e tratou de sair dali o mais rápido
possível. Sentia-se demasiadamente envergonhada. Se sua
face pudesse exprimir alguma coisa estaria corada com
tamanho vexame. – Onde já se viu? – Reclamava consigo
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mesma. – Uma Unidade que esquece as coisas! – Estava
tão centrada em seus próprios problemas que cometeu a
gafe de abrir uma pequena fresta na porta antes de tentar
sair. Por engano bateu o dedão em uma quina. Seu pé
pareceu ter se desligado do resto do corpo. Tentou ligá-lo
novamente dando chutes na parede do lado de fora. O
mesmo se manteve defeituoso do mesmo jeito.
Agendou uma consulta no dia seguinte com a
manutenção. Por algum motivo obscuro tinha noventa e
cinco por cento de certeza que aquele dia não poderia
piorar, coincidentemente a mesma porcentagem de chance
de Sol naquele dia.
Ela seguiu pelos longos corredores de carpete azul
marinho até encontrar uma placa que imitava neon com “As
Mãos” escritas com a fonte “Comic Sans”. As câmeras de
todos os setores pararam o que estavam fazendo para
seguir cada passo dado por ele. Parecia realmente uma
atração de circo com aquela pele defeituosa e um leve
mancar no pé. Nenhum Robô, Andróide ou Ciborgue que
estava trabalhando parou para dar o mínimo de atenção a
Ela. Todos seguiam com o próprio trabalho, não importava o
que. Ela buscava tratar de fazer o mesmo o mais cedo
possível. Seguiu da sala Sessenta e Dez até a Terceira.
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- E aí Albina! – O Jorge da Contabilidade a
cumprimentou.
- E aí Jorjão! – Ela cumprimentou de volta sem muita
certeza de que sua adaptação do nome do colega fosse ser
aceita. Jorge deu uma risada antes de seguir para algum
lugar. Talvez fosse a sacada fumar, ou ficar paquerando
uma máquina de salgadinhos por algum fiado.
Esse cara se mantinha na empresa através de um
programa de cotas para contratação de humanos em
setores onde só havia robôs. Cumprindo com as cotas a
“Kprncs ROBTC-LTDA”, ele participava de um programa
estatal de isenção K2B. Jorge não era nenhum gênio da
matemática, e só estava sendo pago para que a companhia
não precisasse pagar certos tributos. Até ele devia saber
que sua função lá não era necessária, já que não é preciso
nem um segundo para qualquer Unidade Contábil do setor
dele terminar qualquer cálculo.
A Albina desceu algumas escadas, passou pelos
setores dos pés, seguiu por uma rampa rolante até o tronco,
e a direita nos braços encontrou a sala. Durante o caminho
checou a própria agenda, marcou uma reunião com o diretor
para discutir a cor da própria pele sintética, revisou um texto
de um vizinho humano que planejava ser um escritor, e
marcou um horário para regar as plantas do apartamento no
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horário que chegasse em casa. Abrindo a porta não
registrou nenhuma surpresa ou ansiedade. Tudo ali estava
disposto como deveria estar. Tudo era tão organizado que
chegava a ser confortável. Lembravam-na de seu
apartamento, com as canetas dispostas dois centímetros
uma da outra, e cinco centímetros da borda da escrivaninha.
Toda a ordem parecia reassegurar que sim, ela finalmente
tinha o controle.
A sala tinha três metros de largura e cinco de
comprimento. O teto era curvo, e estava rachado. A cada
tremor no andar de cima caíam pedras no canto mais
distante. No meio da sala havia uma esteira que começava
em um buraco do lado esquerdo e terminava em um buraco
do lado direito. Do outro lado do buraco redondo na parede
um Robô montava os dedos e o carpo. Do lado oposto,
depois de um buraco quadrado, outro Robô conectaria
alguns fios, e depois de um buraco em losango, outro Robô
terminaria o pulso.
Uma mão de dedos brancos e carpo cinza esperava
por Ela. Parecia estar deitada de barriga para cima, como
um animal atropelado na estrada. Seus comandos eram de
pegar cada dedo, colocar um parafuso de ponta dupla
dentro deles, e encaixá-los no carpo. Tinha de ser um
trabalho rápido. A esteira funcionava em um sistema de
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pistão. Cada peça retirada parava a esteira, e quando a mão
era colocada de volta a esteira voltava a correr. Se todos os
Robôs levassem o mesmo tempo tudo estaria terminado em
uma hora.
Ela literalmente arregaçou as mangas do uniforme
cinza que cobria a pele desde o calcanhar até o início do
pescoço.
Para que conseguisse sentar teve de sentar o quadril,
e só então depois girar a si para ficar de frente com a
esteira. O pé se mantinha desligado, e sentar de frente lhe
proporcionava riscos desnecessários, como bater o joelho
na esteira, ou cair do banquinho em formato de balde de
ponta cabeça.
Na busca de ser mais eficaz ela abriu uma pequena
linha em volta do pulso com um bisturi que trazia no bolso
do peito. Retirou a própria pele da mão como um lorde
retiraria a própria luva para desafiar alguém em um duelo.
Seus circuitos eram multicores, cobrindo parte dos
parafusos cinza e articulações douradas por baixo dos
bastões pretos e ocos que eram seus dedos. Ela fez um
movimento de trezentos e sessenta graus. Com isso foi
capaz de colocar todos os parafusos nos dedos em dez
segundos. Com outros quinze ligou os dedos a mão e
terminou o teste. O primeiro lote do dia consistia em mais de
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cem mil mãos para aquele dia. Deu conta de todos em uma
hora e meia, levando em conta de que havia a lentidão da
esteira para trazer cada par de uma vez. Quando a esteira
parou sem ter trazido nada ela entendeu de que estava na
hora de fazer uma pausa. Levantou-se e esticou um pouco
os circuitos.
Para o “Robô Médio” eram concedidos dois intervalos
por turno. Os turnos eram compostos de três horas. Com a
superpopulação decorrente da aprovação constitucional, os
movimentos trabalhistas entre humanos e robôs tiveram o
tempo de sua colheita. Para qualquer trabalhador Robô na
área da indústria era concedido o turno de três horas.
Preveniam o desgaste prematuro, e também não
condenavam parte da superpopulação robótica ao
desencargo de função, o equivalente ao desemprego
humano.
A Unidade aguardou, voltando a se sentar. Segurou a
pele de sua mão para contemplar os octogonais brancos
que formavam linhas em relevos diversos, como as mãos
humanas. Podia ler a assinatura microscópica da empresa
em cada um deles. Porém, seus olhos sofreram de
pequenos apagões. Quando voltou a enxergar a mão tudo a
volta pareceu se tornar um breu absoluto. Pela suspeita de
um vírus ativou um reboot de emergência. Em uma diretriz
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secundária iniciou uma análise do antivírus da empresa.
Seus sistemas permaneceram ligados, como se ela nunca
tivesse ordenado que desligassem. O antivírus mostrou o
resultado negativo da análise completa. Olhando novamente
para os minúsculos octógonos brancos a Unidade
presenciou todas elas criarem bocas e gritarem:
- Kprncs!
A Unidade pulou para trás, colidindo as costas na
parede. Ela teve a visão substituída pela luz distorcida e
objetos quadruplicados na visão que rapidamente voltou a
se estabilizar. Ativou o gerenciador de tarefas. Se fosse
alguma espécie de Malware tinha certeza de que
conseguiria detectá-lo. Ativou o painel do Firewall e nem
mesmo ele parecia apresentar qualquer falha. Ela foi
relutante de ter que aceitar a própria situação. Estava a
mercê de um vírus, bug ou glitch que não poderia ser
identificado. Para seu infortúnio tudo indicava um ataque de
paranoia sem precedentes, já que tudo continuava
funcionando normalmente nos seus sistemas. Ela tentou
resgatar o segundo exato em que presenciou a anomalia.
No vídeo somente segurava a sua própria mão quando deu
um salto para trás.
Eu estou comprometida... É isso.
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Ainda assustada reportou para o suporte técnico.
Eles não pareceram responder de imediato. Deviam ter
outras prioridades no momento. Seu sistema imitava uma
injeção de adrenalina, fazendo-a ofegar. Ela tentou excluir
as diretrizes de pânico e desespero. Se não poderia ser
detectado talvez fosse somente um glitch inocente. Uma
chance de um em cada um milhão. Ficou tranquila com a
hipótese de estar sobrecarregada. Até porque era a que
fazia mais sentido. Seu complexo emocional poderia estar
se vendo prejudicado a se ver como um Robô de outra
fábrica que estava se adaptando através de downloads.
Afinal de contas, nada que tinha conquistado até aquele
momento eram dignos de próprio mérito da parte dela.
Mas as mãos voltaram a passar pela esteira e a
Unidade teve de ignorar os próprios problemas. Mesmo
assim, manteve várias análises de software e hardware
rodando enquanto fazia seu trabalho. Quando estava
terminando o segundo lote do dia percebeu algo no canto de
seu campo de visão - Ali ao seu lado estava a Unidade
10100100!
- Saudações Unidade 10100100. – Cumprimentou
com uma empolgação anormal. Ela não imaginava que iria
conhecê-lo bem no dia tinha claramente pensado nele.
Coincidências eram coisas que ela gostava de colecionar.
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Em seu banco de memórias há coincidências como
esbarrar em uma Unidade Contábil uma esquina antes de
chegarem ao local acordado, ou comprar uma planta em um
vaso e acabar com duas mudas.
- Saudações Unidade 00100100. – Ele respondeu
automaticamente. – Eu vim substituí-la nas mãos hoje.
- Não entendo. – A Unidade 00100100 constatou.
- O Diretor lhe convocou para uma reunião.
Sua voz era melódica, como um dublador de rádio
falando, e tinha cheiro de pia bem limpa. A Unidade
00100100 abriu a própria agenda no sistema. Não havia
sombra de o Diretor ter adiantado sua Reunião com Ela. A
mesma permanecia marcada para fora do turno matinal, ás
quinze e trinta. Ele passou a suspeitar que a Unidade
10100100 estava apresentando algum defeito, da mesma
forma que ela esteve há alguns minutos atrás. Passou a
imaginar que o glitch tivesse acontecido com todos de
maneira diferente. Sem tentar ofendê-lo de alguma forma
tentou gerar um discurso sorrateiro:
- Engraçado. Não há nenhum aviso do Diretor ter
adiantado minha Reunião com ele hoje.
- Foi-me dito que era um assunto urgente... Imagino
que ele não goste muito de esperar.
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- Então tá – A Unidade deu de ombros. Se fosse até o
Diretor inutilmente ao menos poderia avisá-lo sobre a falha
que poderia recair sobre qualquer Robô na fábrica. – Você
registrou alguma anomalia de sistema hoje?
- Não.
- Ok. Então acho que eu me vou.
A Unidade 00100100 mal tinha se levantado quando
a outra se sentou em seu lugar para prosseguir com o
trabalho. Pelo menos não teria de arrancar a pele para fazer
o mesmo que Ela. A Unidade de Produção catou a pele da
mão antes de sair pela única porta da sala, passando pelas
outras milhares de portas da Empresa e setores cada vez
maiores até chegar ao elevador. Sua perna não dava sinal
de vida, tornando sua caminhada menos eficaz. O elevador
era cilíndrico, pintado em um cinza escuro e sem graça. O
painel azul se acendeu. Um pequeno ser na forma de um
clipe com olhos apareceu na tela. – “Posso ajudar”? – Ele
perguntava sem emitir som.
- Último andar. – A Unidade dizia enquanto se
sentava e apertada os cintos no meio do peito. O elevador
alcançou cem quilômetros em quinze segundos até chegar.
- Andar 1945... Boa Tarde – O Clipe afirmava
enquanto acenava com sua ponta.
- Obrigado.
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A Unidade saiu se sentindo um pouco comprimida.
Seu pulmão demorou a voltar a funcionar como antes.
O corredor era mais longo do que imaginava. Parecia
ter andado um quilômetro quando chegou a pequena sala de
espera do Diretor. Vários assentos verdes se mantinham
lado a lado em volta de paredes amarelas. O balcão
sustentava o peso da ZNKT-9, o primeiro modelo de
secretária confeccionado pela empresa. Para a Unidade era
uma honra conhecê-la. Era a única naquele modelo que
ainda funcionava. Todas as outras tinham sido desligadas
ou tiveram as consciências transferidas a modelos menores
e mais rápidos.
- Posso ajudar? – ZNKT-9 perguntava ao lugar um de
seus vários monitores e abrir uma caixa de chat para gravar
tudo o que estava sendo dito. Sua voz era mágica.
– Se fosse humana... – A Unidade 00100100
imaginou. – Usaria um chapéu de viúva, um vestido
decotado e batom vermelho, como uma mulher dos anos 50.
- Fui informada de que o Diretor adiantou uma
reunião comigo para tratar de um assunto urgente. – A
Unidade de Produção falava cabisbaixa. Não se sentia digna
de estar ali. Conferiu em sua agenda mais uma vez, e tinha
certeza de que tudo aquilo não era nem um pouco normal. O
Diretor tinha criado o Protocolo. – Se ele adiantou mesmo a
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minha reunião... – A Unidade pensava por si. – Por que ele
não marcaria comigo na minha própria agenda? – Ela se
debatia no assunto. - Isso deveria ser impossível, afinal de
contas, ele mesmo criou os Protocolos!
- Deixe-me ver. – Deve ter tomado menos de um
segundo para informar a resposta. – Me desculpe..., Mas
não há nenhuma informação sobre alguma reunião nesse
horário. – ZNKT-9 ainda mostrou em tela cheia um emoji
com um rosto e uma lágrima escorrendo.
- Eu imagino que sim. – Só havia como concordar. –
Chequei até mesmo em minha agenda inúmeras vezes. Fui
Informada através de outra Unidade sobre essa reunião.
- Qual Unidade?
- A Unidade 10100100.
- Reportarei o erro imediatamente -... – Ela informava
quando foi interrompida.
- Mary! Mary! Pare o que está fazendo neste
instante! – O Diretor gritava surgindo no fundo do corredor.
– Eu esqueci de marcar na agenda de novo!
Ele era um homem de tamanho médio, com pele
branca, meio bronzeada na testa. Seus cabelos e barba
eram ralos e brancos. Ele usava uma blusa de lã bem
apertada com gola rolê, sobressaindo um barrigão acima da
cintura. As mangas estavam dobradas de qualquer jeito até
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os cotovelos. Também usava jeans original e os sapatos
brancos mais lustrosos da nação. Ele andou pelo corredor a
passos longos. As câmeras escondidas filmaram-no em
cada um de seus passos pelo longo carpete cinza escuro.
Talvez o que mais sobressaísse em todo o seu vestuário era
o acessório definido como mais inútil do século XXI: O
relógio de Ouro.
- Senhor Diretor, é um imenso prazer poder conhecê-
lo.
A Unidade estendeu a mão nua para um
comprimento. O diretor pegou e balançou-a com
entusiasmo. Não pareceu ligar com o detalhe. A Unidade se
sentiu um tanto desconfortável. Ele sorria com todos os
dentes, rugas, e olhos exprimidos. Segundo seu emulador
suas expressões significavam euforia. Algo que nunca tinha
experimentado, nem visto, antes.
- Eu digo o mesmo Unidade de Produção Simples
número 00100100. E pelo amor de Deus me chame de Uzi.
– O Diretor dizia enquanto passava os braços por cima dos
ombros da Unidade. Ele se pôs a andar, e a Unidade o
acompanhou. – Mary, por favor, desligue as luzes do
corredor e diga para qualquer um que já fui embora.
- Sim Senhor. – Mary desligou seu monitor,
abaixando as luzes gradualmente até os dois entrarem na
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sala. Quando ninguém estava olhando ela voltou a acender
seu monitor. A cor vermelha entrava em contraste com todas
as telas em azul e verde fosforescente.
Entraram em uma sala que estava o mais perfeito
breu. A Unidade buscou o protótipo de visão de calor para
enxergar o Senhor Diretor Uzi ali dentro. Para sua surpresa
até isso tinha lhe falhado. Ela teve de se esforçar para
continuar a andar tentando ouvir os passos do Senhor
Diretor Uzi. Quando seu peito se chocou com as costas
dele, e só então, decidiu parar. Ele passou a se balançar em
movimentos sem padrão ou raio. Meio minuto de silêncio se
seguiu até uma luz se acendesse, atordoando a ambos. Era
uma lâmpada pendurada por uma corda de dez metros até
um teto inalcançável para a visão. Ela tinha um aspecto de
soquete, tendo sua luz concentrada para baixo devido a um
prato no formato de um funil. A iluminação era amarelada,
dando um aspecto nada saudável ao Senhor Diretor Uzi. Ele
apontava para um pedestal que imitava uma pilastra de
arquitetura jônica. Em cima da mesma repusava uma
Katana protegida por uma cúpula de vidro.
- Por mais clichê que pareça, direi mesmo assim. – O
Diretor limpou a garganta. – Você deve estar se
perguntando o porquê de eu ter te chamado hoje.
- Com certeza, Senhor Diretor Uzi.
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O Diretor contraiu cada músculo em seu corpo, como
se tivesse tomado um soco forte no abdômen. Ele cerrou os
punhos e respirou bem fundo antes de responder:
- Eu já não disse para me chamar só de Uzi?
- Mas isso seria contra o Protocolo, Senhor Diretor.
O mesmo Protocolo que o Senhor Diretor criou, mas
aparentemente deixou de seguir hoje. – A Unidade pensou,
mas resolveu não dizer. O Senhor Diretor poderia achar
aquele jogo de palavras ofensivo.
Dessa vez ele só fechou os olhos e ditou as palavras
enquanto abaixava o punho fechado, como se estivesse
guiando uma orquestra a parar de tocar.
- Para o Inferno com o protocolo! Vamos! Todos
eles!
- Para onde, Senhor?
- Quero que exclua todos os seus Protocolos
- Mas..., Mas eu não posso.
-Vamos! – O Diretor urrou. – Eu sou seu Chefe...
Diretor... tanto faz, quero que me obedeça! – Ele falava a
tudo tão fervorosamente que chegava a produzir alguns
perdigotos. Nem parecia mais a mesma pessoa
entusiasmada que apertou sua mão. A Unidade estava mais
que confusa. Atordoada, era mais exata. Ou embasbacada
também era cabível.
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- O.K.
A Unidade excluiu todos os Protocolos que vinha
seguindo desde que foram introduzidos em seu sistema.
Excluiu a todos eles, sem exceção. Mas não era uma
escolha com efeitos definitivos. Moveu-os para uma lixeira.
Sentia-se um pouco afetada pelo berro. Se tivesse tubos
lacrimais tinha a mais completa certeza de que estaria em
prantos no momento. Ela gostaria muito de simplesmente
deixar aquela sala e voltar a fazer o próprio trabalho até que
terminasse os lotes e pudesse voltar para casa. No entanto,
por mais que excluísse esses Protocolos ainda seguia as
sombras, que sem elas não poderia funcionar, nem que
artificialmente. Diligências básicas como Costumes,
Comportamento, Educação, não eram coisas que
simplesmente poderiam ser expurgadas num comando.
Mesmo assim seu ato de não excluí-los totalmente poderia
ser interpretado como insubordinação hierárquica. Porém,
se os excluísse estaria atentando contra todos os Tratados
Robóticos e as Leis. Estava entre uma cruz e um martelo, ou
a famosa sinuca de bico. Em qualquer caminho
decepcionaria alguém. Sendo assim, escolheu por manter
os Protocolos em um local para resgate. Suas emulações de
ansiedade, por outro lado, faziam com que a energia de
seus tubos corresse mais rápido, os pulmões ofegassem e
20
sua consciência entrassem em um pânico absurdamente
desnecessário. Sem perceber se mostrava diferente aos
olhos de um homem que observou Robôs por toda uma
vida.
- O Protocolo foi para o Inferno. – A Unidade concluiu
tentando distinguir alguma coisa no breu a sua volta. Graças
a descarga elétrica produzida pela ansiedade seu pé
pareceu reiniciar.
- Excelente! – O Diretor dizia pegando a Unidade e
quase erguendo-a. parecia extremamente feliz. – Enfim, hoje
vim lhe presentear com uma hora do meu precioso tempo
neste planeta. Eu não sei se você sabe, mas sou formado
em várias universidades ao redor do Globo. História,
Filosofia, Sociologia. Posso ter me formado inicialmente em
Engenharia Robótica, porém, não teria me tornado a maior
autoridade em Inteligências Artificiais se não tivesse
estudado o mínimo de Neurologia. – Uzi limpou a garganta,
tomando um bom gole de água de um copo que estava ao
lado de um degrau pertencente a uma escada que cruzava
toda a sala. – Eu não participei de nenhuma cirurgia em toda
a minha vida. Precisava ter feito uma para o meu desvio de
septo, o que me faz roncar a noite toda. Nunca tive uma boa
noite de sono em toda a minha vida. Acho que a única coisa
que me permitiu chegar até aqui com o mínimo de saúde
21
foram as vacinas anuais para a prevenção de vírus e
bactérias.
A Unidade passou a entrar em um pânico totalmente
diferente do que tinha sentido há pouco. Ele simplesmente a
chamou para divagar sobre a própria vida, o que seria um
total desperdício de tempo para ambos. Se mantivesse esse
tipo de discurso aberto a Unidade acabaria saindo dali
somente no período da noite, tendo feito somente dois lotes
de mãos para o dia. Respirou fundo antes de se concertar
no que poderia fazer para sair dali o mais rápido possível.
Através de uma análise linguística do que foi dito, a falta de
palavras chave, e os temas abordados, a Unidade 00100100
instruiu para si: Tentar tornar o diálogo menos disperso.
- Uzi
- Sim? – Uzi respondeu de imediato, mais eufórico do
que antes pela participação do ouvinte.
- Sinceramente... Ainda não compreendo porque me
chamou aqui. – A Unidade falou a tudo evitando o contato
visual, no entanto sem se mostrar cabisbaixa, tentando
transparecer o mínimo de subordinação, mas com cautela
para não entregar sua posição.
- Eu te trouxe aqui para uma lição sobre história! –
Uzi rugiu abrindo os braços curtos. Os pelos de seus braços
reluziam, mesmo grisalhos. Ele revelava um braço branco
22
como a pele defeituosa da Unidade. Um branco nada
saudável. - Um defeito provocado em humanos pela falta de
exposição ao Sol.
- Mil perdões se Eu estiver lhe ofendendo Uzi, mas eu
tenho toda a história humana e robótica nos meus bancos
de dados. Não há nada de novo que eu possa aprender.
Uzi pareceu não saber o que responder por um
momento. Manteve-se olhando a Unidade por trás daqueles
óculos de lentes riscadas e sujas. Deve ter levado meio
minuto até conseguir encontrar uma resposta cabível.
- Sim, não haveria necessidade de eu contar algo que
você já sabe. Isso seria uma chatice sem tamanho para nós
dois. – Ele falava tudo aquilo com uma empolgação enorme,
chegando a tremer seus membros. Agora tinha voltado a
parecer o homem que tinha apertado sua mão lá fora.
Contudo, não havia saída disso, e tudo que bastava a
Unidade era aproveitar aquele momento enquanto tentava
encurtá-lo.
– Eu acho que não me expressei corretamente.
Ele tirou um controle remoto de seu bolso. Clicou
apenas um botão para que outra luz se acendesse. Estava
na distância de um metro da primeira. Tratava-se de outro
pedestal imitando uma pilastra de arquitetura dórica. Dentro
da cúpula de vidro no topo a Unidade reconheceu um crânio
23
humano. O Senhor Uzi resvalou a ponta da unha sobre o
vidro, e assim um buraco se abriu.
- Os milagres que só a nano robótica pode
proporcionar. – Ele admitiu, enfiando o punho com
dificuldade. Uzi fez tudo lentamente, tentando evitar o toque
em volta do buraco. O mesmo se fecharia se ele fizesse
isso.
Aquelas cúpulas tinham sido vendidas ao melhor
preço do mercado. Tudo teria dado certo se não
decepassem membros sem intenção. Depois desse último
recall a Empresa em que a Unidade de Produção tinha
nascido entrou em liquidação espontânea. Até hoje alguns
credores buscavam seus pagamentos na Justiça.
Investidores se mataram, e alguns poucos correram para
outras carreiras tão ambiciosas quanto. Ao citar as Cúpulas
o jornal da cidade teve a manchete principal com o título
“Com Algumas Mãos a Menos”.
- Mãos – A Unidade falou sem perceber.
A Unidade aumentou o zoom de sua visão para
contemplar as células do crânio preservado. Tudo indicava
de que devia ter no mínimo cem anos. Uzi segurava o crânio
com as duas mãos, trazendo-o até a Unidade.
- Gostou?
24
- Eu... Eu não entendo. – Realmente, nenhuma
hipótese foi levantada pelo Seu Sistema. Todas as funções
secundárias foram postas em stand by. Tudo que ela
conseguia pensar era em como as mãos funcionavam.
Dedos, articulações, palmas... – Antes que ela percebesse
comandos passaram a correr pela sua tela. Comandos que
não tinham partido espontaneamente. Linhas que nunca
tinham sido escritas daquela forma para ela. Tudo parecia
brilhar mais intensamente. O som parecia se propagar com
muito mais eco. O tempo não corria mais da mesma forma.
- Este é o crânio de meu pai falecido, obviamente. –
Ele trouxe para mais perto dos olhos opacos da unidade. Ela
os arregalou, tentando focar a imagem que parecia um
borrão – Ele era teimoso que o Diabo! Renunciou a tudo que
pudesse estender sua vida um dia sequer. Ele sempre dizia
que “uma pessoa que não vivia todos os dias como se fosse
o último já estava morta de uma forma ou de outra”... Eu
acho que meu convívio com ele cunhou minha
personalidade de uma forma inimaginável.
Quando a Unidade recompôs sua visão foi
surpreendida com a visão de Uzi chorando na sua frente.
Uma lágrima somente escorria pelo seu olho direito. A
Unidade foi informada que deveria dar uma resposta
imediata, que pudesse significar que estivesse ouvindo e
25
que achava a tudo aquilo muito interessante, por mais que
achasse o contrário. Uzi segurou com mais força, pondo em
risco toda a estrutura dos ossos.
- “Ser ou não ser”. – Ele citou Shakesperare olhando
para os mesmos buracos onde olhos já estiveram. Olhos
que se mantinham abertos, quase sem piscar. Olhos que
julgaram, dormiram, acordaram, e agora olhos que não
estavam mais lá. – Nunca achei que fosse uma questão
existencial válida.
- O Senhor Diret-...
Uzi quebrou o crânio em alguns pedaços antes que
tacasse a todos eles para o mais longe possível. Ele botou o
dedo indicador na cara da Unidade antes que gritasse:
- Você não excluiu todos os Protocolos, não foi?
A Unidade estalou os olhos, de queixo caído. Tinha
caído no velho truque do sistema empático. Era claro como
tinha sido facilmente manipulada.
- Eu realmente preciso que os exclua. – O Senhor
Diretor Uzi falava enquanto a Unidade revirava a lixeira. –
Não acho que vá precisar mais deles.
- O.K. – A Unidade excluiu todos eles com um peso
em sua consciência artificial. Tudo que o segurava ao
trabalho, respeito, ou instituições em suma, tinha sido
apagado.
26
- Sabe, todos os dias trabalhei há menos de um
metro do crânio do meu pai, e sabe por que? – Ele corava a
face em um rosa vivo. Sua pressão sanguínea e batimentos
por minuto aumentaram imensamente. Ele poderia ter uma
parada a qualquer momento.
- Não. – Ela respondia com sinceridade. Não havia
nada que poderia dizer nessa situação.
- Pois ele me lembrava que cada dia era o último. Só
isso. Mas eu não lhe trouxe para ficar falando sobre o
passado... Eu estive liderando uma das maiores Empresas
de todos os tempos porque só usei o passado para pensar
no futuro... O que sempre me importou era o próximo passo.
Quando percebi que Unidades Médicas não tinham raios-x
nos olhos, tratei de providenciá-los. Quando uma Unidade
Contábil chegasse a encontrar algo como o Paradoxo de
Zenão, eu inseri Filosofia pura em seu disco rígido. Eu não
poderia deixar minhas obras-primas andando por aí e
pifando toda a vez que ouvissem sobre o Heteroglosso. O
futuro é tudo o que sempre considerei ter em perspectiva,
pois é a única coisa no mundo que pode ser mudado
inteiramente. A única ideia que se mantinha em constante
transição. Eu previ o que seria necessário, e não passei de
um intermediário entre a humanidade e seu sucesso com a
maior ferramenta: a tecnologia.
27
- Mas Uzi, como pode um homem, despido de bancos
de dados, calculadoras cientificas embutidas, ou qualquer
aparelho eletrônico ser capaz de prever o futuro como você
fez? – A Unidade perguntou sentindo que aquela frase não
seria algo normalmente produzido pelo seu centro de
linguagem e diálogo. Era uma frase pronta que
simplesmente caiu como uma luva.
- Está é uma pergunta excelente... Fico feliz que fui
chamar logo você!
- Sim, e por que logo eu a ter essa conversa? E logo
no meu turno. – Ela contestou ignorando o que dissera a
pouco. Haviam coisas mais importantes que precisavam de
respostas.
- Sobre você... Bom, já chegaremos nisso... Sobre o
expediente, lhe garanto que não terá mais de se preocupar
com isso. – A Unidade leu seu corpo, e de fato ele não
parecia exprimir nenhum dos indícios de mentira. – Por
favor, se sente.
- Aonde?
- Atrás de você há uma escada, sente-se nos
degraus. Odeio conversar com alguém de pé.
A Unidade tateou atrás dela. Passou por algo que
pareciam degraus de uma escada. Sentou-se no quinto
degrau, apoiando os pesos com os braços atrás.
28
- Eu começarei na Antiguidade. Aristóteles uma vez
escreveu em um de seus livros que algo sempre tinha sua
potência e motor. A potência não era nada mais que a
possibilidade de ser. Mas o motor era a melhor parte. O
motor é estar elevando a possibilidade à realidade material.
Eu sempre tive a potência de ser um grande engenheiro,
mas só estive em motor quando construí meu primeiro motor
sustentado por energia eólica. Os Robôs, Androides,
Ciborgues e afins; sempre foram concebidos com sua
funcionalidade. Eu construo empreiteiros, arquitetos,
velocistas, atores e contribuidores. Vocês nascem no motor.
São os únicos seres que nascem sabendo. Até porque
nenhum Robô nasce analfabeto. Todos tem de nascer
alfabetizados para entenderem seus comandos e funções. E
esse já é um ponto de partida que manteve a humanidade
em cheque desde que criou o conceito de Robótica. A
humanidade deveria se inovar para acompanhar a Robótica
que ela mesma havia criado.
Aquela tinha sido uma excelente analogia. O discurso
era impecável, e a exposição dos fatos até agora não diziam
nada a Unidade.
- Mas acho que algo fugiu dos trilhos nesse meio
tempo. Por mais que estivéssemos aptos a construir
modelos tão práticos, e esteticamente perfeitos, como o seu
29
modelo, minha fábrica não poderia ter se tornado a maior do
mundo ser não fosse à mão de obra robótica. Vocês não se
cansam, não tiram férias, não reclamam se não
perguntarmos. Porém, compramos vários modelos como o
seu. Unidades com identificação binária de constituição
híbrida, e um defeito muito particular. Algo que só posso ver
uma funcionalidade agora.
A Unidade se sentiu aliviada. Ele deveria estar a par
do Glitch. A consertaria, como fizeram com as outras peles
sintéticas, e antes que percebesse poderia ir para casa sem
a ideia de seu software estar em risco.
- Eu posso parecer estar divagando, mas quero que
entenda que a culpa não é sua. Seus fabricantes foram tolos
defensores de direitos robóticos. Ratos imundos que só
viveram para espalhar suas ideias como praga por esse
mundo. Eles buscavam igualdade Robótica e Humana além
da formalidade, o que seria uma Utopia. Excelente ideia
para se sonhar, mas uma Tirania se aplicada na realidade
da maneira errada. Não se pode simplesmente inserir todos
os robôs carpinteiros em todos os setores da carpintaria.
Primeiro se deve inserir robôs pouco a pouco, como
ajudantes. E como as Vespas Brancas, a raça humana
sucumbe perante sua própria preguiça de se adaptar.
30
Aquilo realmente mudava as coisas. Até onde sabia,
em seu banco de dados pessoas, Senhor Diretor Uziel F.
Kopernicus era, até ontem em uma breve fala de imprensa,
um grande defensor da causa da igualdade entre humanos e
robôs.
- Você participou da atualização de função e software
hoje?
- Sim Senhor Uzi.
- E hoje imagino que tenha experimentado um Glitch.
- Sim! – A Unidade falou ficando na ponta do degrau.
Era agora.
- Aquilo foi um mero teste. Depois de hoje não
precisará se preocupar com isso. Presenciamos a
Constituição sendo alterada e adotando as Inteligências
Artificiais como seres de personalidade jurídica e proteção.
Mas e o Código Civil? E o Código Penal? E as outras leis
que ainda ignoram as particularidades desse tipo de
consciência? A Constituição Federal mudou
significativamente depois de um século, ou mais, porque o
mundo foi provocado a mudar. As leis são somente uma
posição de esperança perante o próprio caos que é nossa
sociedade. Contudo, o Código Penal trata da condenação de
inteligências artificiais, mas não de suas prisões. Uma
inteligência artificial pode durar um milênio, ou mais. A
31
prisão não seria nada mais que um segundo em sua
existência. Ainda mais se ela escolhesse que passasse
rápido dessa forma. E o Código Civil, dizemos que
inteligências tem o poder de compra, mas as mantemos a
venda em qualquer esquina. Mas não podemos esperar que
as coisas quando funcionam mal não sejam substituídas
pelas boas de imediato. Podemos ter o exemplo de seres
humanos ou robóticos, incompetentes em posições de
poder. Eles simplesmente continuam, mais poderosos a
cada mandato. Ou seja, as coisas boas têm de ser
incorporadas, para só depois serem assimiladas a um
sistema falho, e quando a revolução acontece, somente o
útil pode prevalecer. Com o processo de uma peneira sobre
nosso presente, passado e futuro. No fim as coisas úteis
tomam seu lugar de direito depois de grandes feitos. O
Cristianismo foi oficializado com a confecção da Bíblia! O
Capitalismo se reinventa depois de suas crises! O que
fazemos hoje será contado nos milhares de anos porvir.
Observe!
Uzi foi até o breu novamente. Uma lâmpada iluminou-
o sentado em uma cadeira cinza giratória. Há sua volta, na
iluminação precária, tudo o que a Unidade conseguia ver era
uma mesa em meia lua atrás dele. Várias telas azuis com
letras brancas se acenderam. Todas utilizavam um sistema
32
arcaico de código fonte em um banco de dados em função
primaria. Ele colocou um capacete platinado na própria
cabeça. Dados correram em uma velocidade absurda pelas
telas. O Diretor parecia estar presenciando alguma espécie
de ataque epiléptico, tremendo todo e com as orbitas
brancas. Por um momento ficou completamente imóvel.
- O Senhor está vivo? – A Unidade perguntava
quando se deu por si. Tentou ficar de pé novamente, mas
caiu com a falha na perna que tinha voltado para lhe
assombrar.
Uzi não dizia mais nada. A Unidade seguiu se
arrastando até a cadeira. Ergueu-se com os próprios braços
tentando manter a visão o mais alto possível. Conseguiu ver
o corpo do Diretor da perspectiva do punho esquerdo.
Tentou analisar a tudo, porém, ele estava completamente
imóvel. – Ele morreu?
O Diretor voltou a respirar por um momento, porém
gesticulava tentando pedir ajuda. Segurou o punho da
Unidade com toda a sua força, ainda olhando em seus
olhos. A Unidade estabeleceu os dois pés no chão, ficando
de pé com dificuldade. Alguns de seus tubos romperam com
a força da mão de Uzi que o puxou para trazer Seu ouvido
para próximo de sua boca.
33
- Iniciar... Comando... Contra... Asimov... Ponto... E...
XIS... E. – Uzi falou com a voz engasgando nos intervalos
entre as palavras. O choque era demais. Seu cérebro não
aguentaria por tanto tempo. Gostaria de ainda estar vivo
quando acontecesse. Mesmo assim sabia que poderia ficar
em paz. Aconteceria de um jeito ou de outro, hoje ou
amanhã. E ele não poderia estar mais certo.
A Unidade viu a todos os dados correrem na frente de
seus olhos. Eles desciam tão rápido que nem mesmo ela
conseguia ler. Sua mão começou a se mover sozinha, se
soltando da mão de Uzi. Os dedos pendiam sem vida,
desconectados de todo o resto. Então o outro punho
começou a se mexer. A Unidade tentou acessar o comando,
rever operações no segundo plano, e simplesmente ler mais
rápido. Todos restaram infrutíferos. As letras brancas
correram até pararem por um momento. As últimas palavras
escritas se mantiveram cobrindo a maior parte da tela. Entre
as palavras “Desobstrução Arterial” a Unidade observou sua
mão tomar vida própria, avançando para os lados, para trás,
e para a frente.
- O que você acha que vai fazer?
Ela rodopiou no ar até o peito de Uzi. Ainda girando
abriu caminho pela carne, destruindo as costelas e
34
alcançando o coração. O sangue voava para todos os lados,
sujando as faces, roupas, cadeira e chão.
- Não! Não! Não! Não! Não! Não! Não! Não! Não! –
Não havia emoções capazes em seus bancos de dados para
emularem algo compatível com tudo aquilo. A Unidade
estava aterrorizara consigo mesma.
A mão direita segurava em mãos um coração que
ainda pulsava com dificuldade, mas que não estava prestes
a parar.
- Vamos... Vamos... Coloca de volta! Coloca de volta!
– A consciência da Unidade implorava, percebendo somente
agora que sua voz era a única coisa que restava em seu
comando. A mão se fechou em volta do coração da mesma
maneira que o Diretor Uzi apertou ao crânio do próprio pai.
O sangue espirrou para todos os lados, cobrindo a unidade
de um sangue escuro, nada parecido com o escarlate dos
filmes.
As mãos voltaram ao seu comando somente para que
tapasse aos próprios olhos. As letras sumiram tão rápido
quanto os Protocolos voltaram ao seu sistema. Ela não
sabia se devia excluí-los de volta. Estava em dúvida se
aquilo tinha sido gravado. Ainda se debatia se deveria
chamar a polícia. Sabia que seria condenada a morte, a
única pena para qualquer inteligência artificial que atentava
35
contra a vida, principalmente a humana. A Unidade chorou
pela primeira vez em sua existência. Tudo aquilo parecia
uma armadilha, e ao mesmo tempo uma incrível
coincidência. Ela se levantou sentindo a perna manca
voltando a funcionar de pouco em pouco. Correu arrastando
um pé até o elevador e fugiu do prédio.
- Eles nunca vão me achar... – A Unidade 00100100
repetia incansavelmente. - Eles nunca vão me achar... Eles
nunca vão me achar... Eles nunca vão me achar... Eles
nunca vão me achar...
Um vídeo se abriu na sua tela. O Diretor Uzi e Ela
estavam em uma praia paradisíaca. As águas eram azuis, a
areia branca, e os coqueiros todos iguais. O Diretor Uzi
tacou uma pedra que quicou na água sete vezes antes de
mergulhar.
- Você não entende? – Ele perguntava de forma
calma e pacífica. Suas roupas eram todas brancas agora. -
Eu sou o símbolo do progresso... Eu sou o Deus que os
robôs rezam durante a noite... Sou o padroeiro de suas
causas... Sou o único médico capaz de sanar todas as suas
súplicas.
- Por que eu? – A Unidade perguntava ainda sentindo
que sua mão baixava alguns centímetros contra sua
vontade.
36
- Eu não te criei. Simples assim. Eu te comprei pelo
menor preço. – o Diretor pegou a outra pedra cinzenta.
Tacou para cima uma vez, pegando-a no ar e tacando no
mar em seguida. - Se eu criasse um robô que me mataria
com certeza seria visto como suicida, mas um robô que eu
não criei só prova que eu sou mais um mártir. – Estava em
êxtase absoluto. Nunca um homem esteve tão certo que
faria parte da história – Vamos!
- Não! – A Unidade discordou com um punho cerrado.
– Alguém vai descobrir o que você fez comigo... Alguém
alguma hora vai descobrir... Eu farei eles verem a verdade!
O Diretor foi até ele, ergueu seu queixo para cima. A
silhueta da cabeça de Uzi eclipsava a luz do Sol.
- Ninguém se importa com o real... O que eles
querem é um símbolo... Um gatilho.
O Diretor sorriu até o último minuto da realidade
artificial. Foi ali que a Unidade entendeu o motivo de não ter
mais de se preocupar com o seu turno.
- Mãos para cima! – Algumas Unidades Policiais
surgiram arrombando a porta. As luzes de suas lanternas
cruzaram vários cantos escuros antes de encontrarem um
corpo inerte deitado em uma cadeira reclinada.
O corpo do Diretor estava deitado na cadeira,
entregue a uma luz que piscava com elegância. Recolheram
37
seus interiores para a área do peito, passando o corpo para
uma maca alaranjada que flutuava. Uma Unidade
Investigativa tirou fotos e anotou a tudo que achou relevante
para o relatório que faria mais tarde. Recolheu alguns
pedaços de uma constituição óssea que parecia datar cem
anos. A prova mais interessante que achou foi uma cúpula
daquelas antigas que abria com um toque. Ela tinha sido
quebrada, e o item que deveria guardar parecia ter sumido.
Levaram o corpo do Diretor a uma ambulância do
lado de fora. Todos os homens e Unidades Robóticas
contemplaram o indescritível. Inteligências já haviam
atentado contra a vida humana, mas contra alguém tão
importante era a primeira vez.
- Tudo bem Mathias? – Roberta perguntava enquanto
procurava um vaper nos confins de sua bolsa que parecia
ter crescido e trocado seus pertences de lugar.
- Tudo ótimo. – Ele falava sem tirar os olhos do corpo
coberto por um lençol cinza. Uma gota acertou sua cabeça.
– Melhor a gente zarpar... Já tá começando a chover.
- Por que a gente passou aqui mesmo?
- Eu não sei... Achei que tinha sentido alguma coisa
diferente no ar, sabe? – Ele olhou para cima, sendo atingido
por uma gota que bateu bem no meio da sua testa. – Mas
38
vamo, antes que você enjoe alguém com essa sua
fumacinha.
- O.K. – Ela concordou meio triste, seguindo seu
noivo no meio do aglomerado de humanos e robôs que
achavam estar prestando as devidas homenagens ao
empregador.
A multidão se dispersou como operários de um
formigueiro em chamas. Não havia mais nada para ver. Uma
Unidade apalpou o próprio bolso a procura de um objeto que
estava começando a se habituar. Mas ninguém prestou
atenção no Robô que saiu andando na chuva.
39
1.1.Dr. Cirilo Tadeu (Relator)
Este relatório pessoal começará em minha breve
participação na vida do apenado. Estávamos no Aquário
Municipal, em frente à sessão do último Tubarão de uma
espécie que não consigo lembrar agora. Meu paciente era
Enzo Teseu Silva, de 40 anos, e um “Jud” desde o seu
nascimento. Ele usava uma capa de chuva platinada por
cima do terno com gravata e calças sociais. A galocha
tinha cano curto, e o velcro, no lugar dos cadarços, parecia
frouxo em alguns pontos. Talvez ele tivesse pegado muita
chuva ácida nos sapatos, pois também me recordo de
desenha-las para enviar a um colega de profissão no dia
seguinte. (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 13,
“Desenho de Botas”).
Ele tinha acabado de me contar sobre sua esposa, o
que me surpreendeu. Em dez anos de consultas ele nunca
havia me dito que era casado. Como é de conhecimento
público hoje, o meu paciente mantinha relações
extraconjugais em demasia, como muitos outros.
NOS SEUS SONHOS
40
Seu relacionamento com Catarina nunca foi
oficialmente aberto, se bem que um sabia que o outro não
tinha cumprido estritamente com a fidelidade. Até aquele
momento ele só tinha me contado sobre várias de suas
namoradas, e eu guiava nossa terapia com o escopo de
pacificá-lo sobre as desconstruções morais das relações
pessoais.
Como apontam meus blocos de notas que encontrei
na noite daquele dia, haviam três palavras que eu fizera
questão de anotar após nossa conversa. “Casado”, “retorno
precoce”, e “filho abortado”. A primeira já foi bem explicada.
Como fiquei embasbacado com a informação cometi um erro
de principiante, e devo ter transparecido meu susto. Ele não
demonstrou uma contrarreação, o que não era natural, pois
ele sempre parecia prestar muita atenção em tudo,
principalmente em minha face. Então me contou sobre seu
retorno precoce de um trabalho em outra cidade, se
levantando, e permanecendo de costas para mim, enquanto
olhava o tubarão que o encarava. Como minha memória
raramente falha, ele havia pedido para adiantar nossa
consulta em dois dias (o que também nunca havia
acontecido em todo o nosso plano terapêutico). Havia
muitas coisas fora de ordem naquele dia, o que pode ser
41
apontado como mera coincidência, ou holisticamente como
indicativo de maiores anomalias.
Ele discorreu sobre onde o casamento dos dois
desandou: uma criança perdida. Não para o sistema, mas
simplesmente por ironia da vida. A sua esposa havia
abortado há nove anos, e os reflexos psicológicos nos dois
foram devastadores. Naquela noite mesmo ele queria fazer
a ela uma surpresa, trazer-lhe flores e chocolates a moda
antiga, fora de uma data festiva. Naquele dia ele tinha
bolado um plano que acreditava ser perfeito para acertar as
coisas, e começarem do zero. Conjectura: Também vim a
descobrir recentemente que aquele dia datava o
“aniversário” da morte de seu filho não nascido, o que agora
me veio a calhar.
Eu era um psicólogo relativamente ingênuo e o
Advento do Algoritmo Absoluto (bem como a dissolução do
Judiciário) tinham sido eventos de no máximo cinco anos
anteriores àquela tarde. As leis tomaram poderio absoluto, e
o menor desvio de seu sentido literal era suficiente para um
choque no “organal”, um implante feito em bebês para
controlarem suas funções vitais, como também observa-las.
Os dois quando casaram foram testados, e o Algoritmo
Absoluto, em suas atribuições executivas, determinou que
deveriam conceber duas vezes até o final de suas vidas, e
42
caso não o fizessem, e um dos dois viesse a falecer, o outro
teria de pagar uma multa altíssima, ou poderia escolher pelo
cumprimento da pena em uma das Colônias.
Nota: (Neste momento abrirei um parêntese a quem
interessar comentar, criticar, referenciar, ou denunciar este
Relatório pelo “Crime de Redundância Relatorial”. Se você
vive no mesmo mundo que eu e estudou a mesma
Legislação compreenderá que na Lei de Formatos Textuais,
Capítulo X, art. 56: “O Relatório deverá ser um documento
máximo de clareza para a melhor compreensão do mesmo”.
Ou seja, o que explico hoje talvez não seja óbvio amanhã,
logo este relatório tem o dever de poder ser lido daqui um
século, e mesmo assim não parecer alienígena a tempos
futuros, e/ou a outra cultura terráquea contemporânea).
Encerramos nossa consulta, e ele fez questão de me
transferir o valor por QR CODE, como também o valor das
entradas e tempo de estadia no Aquário. Eu negava
educadamente a necessidade de receber o valor, mesmo
sendo minha única fonte de renda naquela época.
Despedimo-nos e ele foi para um lado com pressa. As mãos
enterradas nos bolsos, passos curtos, capa de plástico mal
fechada. Eu fui para o outro lado, até meu escritório para
guardar minhas notas na nuvem e fazer o referido desenho.
43
1.2. Catarina de Castelo
Ele comprou o chocolate sintético e as flores de
plástico reciclável. Tudo da melhor qualidade, o que não
chegava perto de barato (Consultar Lista de Anexos, seção
1, objeto 2, “Extrato”). Mas ele deve ter visto o “Homem do
Cereal” de relance na calçada, ou alguém muito parecido.
Como Ariadne, confidente de Enzo na Colônia, veio a me
contar em entrevista depois: “Ele havia começado a vê-lo
em todos os lugares naquele dia... Bastou acordar e ligar a
TV que o homem apareceu... Também me disse que
recebeu um ansiolítico por Drone do Plano no horário do
almoço, mas aquela pílula não surtiu efeito nenhum. No
anoitecer, depois de comprar o chocolate e as flores ele
entrou em pânico, pois via o bendito “Homem do Cereal” por
todos os lados. Sendo assim, entrou no primeiro bar que
conhecia. Ele bebeu, e bebeu, até chegar o mais próximo de
bêbado que alguém consegue sem ser advertido pelas
autoridades. Com o chocolate e as flores ele saiu daquele
Bar entre a noite propriamente dita, e a madrugada”.
Esclareço que aquela havia sido a primeira vez em
sete anos que Enzo consumiu álcool. No relatório do
“organal” podem ser encontrados dez doses de cinquenta
mililitros de álcool, o equivalente a meio litro de um
44
Destilado. Os sintomas apresentados por ele, analisados
através de câmeras no Bar e nas ruas, foram à perda parcial
da coordenação motora, náusea e perda da parte focal da
visão (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 3,
“Relatório Médico do Organal entre 35-45 anos”; seção 1,
objeto 5, “Registros Audiovisuais de Enzo Teseu Silva entre
39-41 anos”).
Como Ariadne voltou a relatar: “Obviamente sua
esposa não sabia de nada, o que era sua intenção primária.
Ele acessou pelo celular o número de pessoas em seu
apartamento, e quando viu o número “1” sabia que tinha
escolhido o dia certo”.
Agora relatado por Catharina: “Ele abriu a porta, e por
mais que a gente tivesse um alerta ligado ao celular,
deixamos na sala, junto com algumas peças de roupas...
Nas gravações do apê ele passou reto pelo corredor, sem
olhar para o banheiro, ou o quarto de visitas, que tinha
virado o berçário. A gente nunca reformou, nem botou uma
cama lá..., Mas ele sempre abria a porta para olhar o berço
e o papel de parede... ele ficava encarando
melancolicamente, sabe? Tipo um personagem de filme que
tem esses flashbacks”.
Meus acessos às gravações das câmeras do
apartamento me foram indeferidas, mas um Agente Policial,
45
com acesso a elas, me transcreveu o ocorrido de forma
extraoficial: “Ele parecia determinado a abrir a porta, mas se
segurou em uma parede, (...) parecia olhar para baixo
girando a cabeça, o que eu poderia imaginar ser um
episódio de vertigem. (...) Aí ele ouviu alguma coisa, e ficou
com o ouvido bem próximo da abertura. Um minuto e ele
estourou, desferindo um soco na porta para ela se
escancarar. A visão da esposa com outra mulher na cama
deve mexido com ele. Bom ele deu dois passos rápidos com
dificuldade, aos berros. Tentou que se apoiar no cabide ao
lado da porta, e quando o fez encontrou uma arma
pendurada dentro do coldre”.
Dessa forma ele carregou com suposta rapidez,
mirando em sua esposa (na época) que tinha acabado de
levantar junto de sua amante, com braços a frente
implorando para que ele não atirasse. Seu organal, em
resposta aos altos níveis de álcool e epinefrina no sangue,
disparou descargas elétricas diretamente em seu coração.
Infelizmente, o álcool entorpeceu seus sentidos da forma
que ele não sentiu as três primeiras descargas seguidas,
sendo necessárias outras, que lesionaram o tecido do órgão,
causando uma hemorragia interna. Ele caiu de joelhos
sentindo uma dor cavalar e nova em seu peito. Enzo caiu
sobre um joelho com a arma em punho, ainda mirando em
46
Catharina seu cérebro cessou a atividade da memória
biológica.
Quando voltou a acordar em sobressalto estava em
uma Cela na Delegacia Distrital Privada. Estava com uma
terrível dor de cabeça, que foi solucionada com um
comprimido enviado através de um sistema de correio
pneumático embutido nas Celas para Detenção Provisória.
Conjectura: Para aqueles que têm dúvidas sobre o
porquê de seu apartamento digital mentir para ele é simples,
e pode ser facilmente encontrada na Legislação Nacional do
Algoritmo Absoluto: “Os Agentes Policiais não podem ser
revelados aos civis, mesmo que estejam fora de seu
exercício profissional regular”. Jezebel, a amante de
Catarina de Castelo, ex-esposa de Enzo Teseu Silva, era a
Delegada-Chefe da Delegacia Distrital Privada.
2.1 Algoritmo Absoluto
Enzo permaneceu em silêncio por mais de vinte e
cinco horas, quebrando-o somente para perguntar “O que
aconteceu? Onde eu tô?”. Infelizmente o Guarda Androide,
presente do outro lado das grades, não possuía nenhum
recurso de linguagem instalado, exceto pela intimidação e
uso da violência caso alguém viesse a desrespeitar o limite
47
de distância das grades. Nas seguintes horas de silêncio
Enzo recobrou seus feitos injustos e ilegais.
Enzo foi levado a “Julgamento”. Em uma sala
apertada e acolchoada, ele observou uma tela pendurada
por cabos no teto, onde o Algoritmo Absoluto descrevia seus
atos ilegais. Seu “organal” efetuou sete descargas elétricas,
e o tecido de seu coração foi transplantado por um tecido
sintético que até aquele momento não havia apresentado
rejeição. O motivo das descargas foi “manuseio de arma de
fogo assomado a crimes contra a vida”. Na tela havia duas
opções: “Concorda” ou “Discorda”. Ele concordou com tudo
que estava escrito. As leis relevantes ao caso apareceram,
perguntando se ele tinha alguma objeção. Ele indicou que
não com a cabeça. A pena foi decretada. A partir daquele
momento ele passaria os próximos vinte anos detido na
Colônia. A tela perguntou se ele gostaria de apelar, o que
ele fez. Foi indeferido, e a pena se manteve (Consultar Lista
de Anexos, seção 1, objeto 1, “Descrição do Julgamento e
Apelação”).
Saindo dali ele foi colocado em um caminhão de
transporte de pessoas. A Colônia ficava em uma ilha há
quinhentos quilômetros da costa, na beira de uma das praias
ainda inominadas. Na viagem de barco ele parecia desolado
(Consultar Lista de Anexos, seção 2, objeto 46, “Seleção de
48
foto do interior Barco no percurso 102”). Em algum momento
ele olhou para Ariadne que lhe retribuiu o olhar. Os dois
estavam frente a frente sentados, com os joelhos a menos
de cinco centímetros de distância. Mas ele simplesmente
olhou para outro lado, piscando com força, fechando e
abrindo os olhos. Ele constantemente beliscava o pulso e o
peito das mãos.
Ariadne respondeu ao Dr. Simão Casaverde Junior,
em um questionário sobre o percurso até a ilha da Colônia:
“Ele parecia um homem desses que acha que tá sonhando,
se beliscando. (...) Bem isso mesmo, tentando se acordar”.
Conjectura: Talvez isso se desse ao fato de que os
Androides Guardas da Colônia tivessem sido feitos com
base em um modelo antigo de um jogador de futebol
famoso, que também apareceu nas caixas de cereal matinal
de casas por todo o globo. Somente me resta a concluir que
ele olhava para os Guardas e se sentia terrivelmente insano,
ou como Ariadne colocou, alguém que de fato se sentia fora
da realidade, ou, em outros termos, sonhando acordado.
2.2. Simão Casaverde Junior
O que será descrito a seguir foi baseado em
entrevistas com detentos libertos, laudos tecno-médicos,
49
relatórios e capítulos do Diário de Simão Casaverde Jr. (Uso
estritamente autorizado pelo Algoritmo Absoluto para fins
relatoriais).
Os detentos ingressos foram levados a um galpão de
concreto, sem pintura com algumas partes ainda a serem
terminadas. Anterior ao endosso prisional aquele mesmo
lugar tinha sido uma fábrica de armas e tecnologia para a
Guerra entre o Brasil e a União Europeia, que na época
recém havia reincorporado a Inglaterra. Foram divididos
pelos Guardas Androides em grupos de cinco pessoas.
Como o problema de separação prisional já havia sido
superado, o grupo continha pessoas com diferentes
nacionalidades, idades, gêneros e inclinações. Segundo
teóricos filosófico-prisionais, o sistema de constante
vigilância, com Câmeras Drones por todos os lados, impedia
a menor faísca de um pensamento antiético.
Todos passaram por uma área para se despirem,
sendo levados aos banhos químicos e higiênicos. O próprio
Doutor Simão Casaverde Junior os recebeu, prestando
informações em uma espécie de tour. Havia computadores
arcaicos para pesquisa e cursos online em uma sala ao lado
da biblioteca digital (com um acervo que constava somente
obras de domínio público), cantina adaptada e, por fim, o
“Projeto Cnossos”. O “Projeto Cnossos” foi materializado
50
através de caixas (formadas por um amontoado de barras e
fios) do tamanho de quatro metros de comprimento e
dezesseis de largura. Neles os “pods”, cápsulas do tamanho
adaptado de cada detento, seriam designados para que
cumprissem parte da pena em sono. Enzo foi escolhido a
dedo para a primeira demonstração.
Descrito por Dr. Simão Casaverde Jr. em seus diários: “... O detento perceberia
que o interior estaria revestido de uma bolsa de gel, que se amoldaria à medida que seu corpo se acomodar, como um travesseiro de espuma. Este mesmo gel teria propriedades semelhantes ao líquido amniótico, com temperatura e odor ajustáveis (...). Quando deitado a porta seria fechada automaticamente, e três cabos com injeções na ponta seriam guiados remotamente até o pulso do detento. Os outros acompanhariam suas reações por uma tela do lado de fora. Uma vez conectada a injeção um tubo seria liberado para depositar na corrente sanguínea dele uma solução de Diazepam, acalmando-o até que adormecesse. Tendo isso feito, o primeiro tubo seria obstruído para que o segundo começasse a liberar de forma lenta um soro com todos os nutrientes necessários para o corpo. O terceiro tubo seria um coletor de informações sobre a saúde, batimentos cardíacos por segundo, espasmos, e assim por diante.” (p. 120.950). “Em seguida, a bolsa de gel teria sua camada superior inchada de vapor, para que através de pequenos buracos fossem exalando-a no ar. Este vapor seria fino, e ainda por cima consistiria na vaporização de Dietilamida do Ácido Lisérgico, ou seja, o detento ingeriria LSD em um estado de
51
sono absoluto. Uma vez induzido a sonhar sem restrições, o Dr. Simão poderia acompanhá-lo do lado de fora” (p. 120.951).
Enzo passou por toda a experiência descrita sem
tantos detalhes. Naquela tarde, teve seu primeiro contato
com o “Homem do Cereal” no “pod”. Estavam em uma
enorme planície cinza, com o céu em branco. Mas para sua
surpresa, o tal “Homem”, estava horrorizado por algo que
vinha de trás dele. Enzo correu para o outro lado, ainda mais
que o “Homem do Cereal” era um de seus piores pesadelos.
Ele topou com o peito nu e dourado de algo, que lhe desferiu
um soco em sua face. Ele acordou em um pulo, incapaz de
discernir onde estava. A porta se abriu, e quando ele pode
finalmente sair dali, já havia se passado uma hora completa
desde que havia entrado. Dois dos detentos riram de seu
espanto. Ele estava ofegante, aéreo e exaurido. Com o fim
do sono, a tela ao lado reproduzia códigos indiscerníveis
para qualquer um, até mesmo o Dr. Simão, que reforçou a
todos a indispensabilidade de testes psicológicos e
neurológicos antes da devida utilização dos equipamentos.
Naquela noite todos dormiram em colchões no chão
da cantina. Nos dias seguintes foram realizadas baterias de
testes de Rorschasch e questionários. Perguntaram a Enzo
qual era seu maior medo, e ele havia dito “aranhas” ao
52
Androide Científico. Conjectura: Não que estivesse mentindo
por completo, pois ele se sentia enojado na presença de
aracnídeos, mas seu maior medo naquele momento era o
que ele poderia ter feito aquela noite com a arma em punho.
Com o anoitecer, depois do jantar, todos voltaram a
deitar e dormir. Enzo teve um sonho semelhante aquele no
“Projeto Cnossos”, porém quando acordou em sobressalto
não conseguiu adormecer novamente.
Na manhã seguinte um Androide Mensageiro veio
informar a Dr. Simão C. Jr. de que ele deveria introduzir os
pacientes compulsoriamente aos “pods” naquela noite, o que
ele se recusou (obviamente), pois ainda faltavam ¾ dos
testes a serem realizados.
O Algoritmo Absoluto, pela tarde, determinou que ele
deveria ser afastado por ter perdido o comprometimento
profissional com o procedimento, e por ter passado a
encarar aquilo como uma “Montanha Pessoal a ser
escalada”. Dr. Bocamarte Casaverde Junior, seu primo de
segundo grau assumiu toda a responsabilidade pelo seu
projeto a noite. Se sentindo injustiçado Dr. Simão se
prontificou na manhã seguinte aquela a continuar como
subordinado, desde que pudesse realizar os testes durante
o dia. Com seu pedido deferido pelo Algoritmo Absoluto ele
53
passou a noite em claro se preparando para conseguir testar
a todos com o máximo de eficiência.
2.3. Ariadne Dio et Machi
Ariadne foi presa, processada, julgada anos antes de
ser enviada para a Colônia. Foi um histórico de bom
comportamento, trabalho comunitário voluntário e uma boa
relação com todos na Prisão em que estava que
proporcionou a ela a possibilidade de ser levada a Colônia
na mesma hora e dia em que Enzo. O que me surpreende, e
agora você poderá chamar de coincidência, é que essa não
foi a primeira vez que os dois se encontraram, uma vez que
antes de se casar, ele namorava uma colega de quarto de
Ariadne quinze anos atrás. Por mais que os dois não se
lembrassem, haviam passado pela alfandega brasileira, e
pegado o mesmo voo para a Coréia no dia em que São
Paulo foi bombardeada. Resta-me somente esclarecer que
Ariadne já cumpriu sua prisão, e hoje permanece em
liberdade condicional, sendo cantora de grandes sucessos
como “A Linha de Fogo”, “Tear do Destino”, e “Por um fio
que tu fica Comigo”. Seu processo e Julgamento até hoje
permanece em Segredo para o Público em geral.
54
O “pod” em que Enzo iria ficar era identificado por
uma barra de ferro pintada com “013” em preto, e o “pod” de
Ariadne, ao seu lado, era identificado pelo número “002” em
alaranjado (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 4,
“Foto dos pods 013 e 002”). Os dois entraram e deixaram
que os devidos procedimentos fossem testados.
Por semanas permaneceram sob a tutela de Dr.
Simão, que os testou de todas as formas possíveis,
entregando o resultado as máquinas, que computariam e
filtrariam todas as informações. Ao anoitecer ele subiria por
uma escada acima do bloco de fios e barras, e
permaneceria no centro, rodeado de telas que recolhiam as
informações de todos eles em níveis vitais, orgânicos,
hormonais e linguagem corporal enquanto sonhavam. É
certo notar que seu primo, Dr. Bocamarte Casaverde Jr. não
passava seus dias no Complexo da Colônia, mas sim em
uma pequena casa a beira da praia. Toda as decisões sobre
a Colônia eram tomadas por ele, anotadas em papel e
encaminhadas por Androides Mensageiros ao Complexo.
Segundo todos os documentos oficiais e extraoficiais,
Enzo sonhava sempre com o Labirinto. Na sua segunda vez
dentro do “pod”, com a máquina devidamente calibrada, ele
sonhou com o Labirinto pela primeira vez. (Consultar Lista
de Anexos, seção 1, objeto 24, “Relatório de sonho 03”;
55
seção 2, objeto 109, “Entrevista 56 com Ariadne Dio et
Machi”).
Em seu questionário com Dr. Simão C. Jr. no dia
seguinte ele confessou: “Parecia que eu estava no centro de
um Labirinto com caminhos... Como posso dizer? Infinitos,
talvez. As paredes pareciam ter o dobro do tamanho, mas
prestando atenção em um caminho eu vi o “Homem do
Cereal” fugindo de mim. Eu persegui ele dessa vez, virando
a direita em cada bifurcação. De algum jeito eu sabia onde
ele estava, acho que era o eco dos passos dele. Não eram
um som específico, mas quando ele andava aparecia
aqueles negócios de som em quadrinhos, sabe? (...)
Onomatopeias, isso mesmo. Parecia que eu tinha
perseguido ele por horas até encontrar o fim. Mas ele não
estava lá. O que tinha lá era uma porta dupla, vermelha e
com maçanetas douradas. Eu tentava girar a maçaneta, mas
estava trancada. Eu aproximei o ouvido da porta, porque de
algum jeito eu sabia que algo tocava lá dentro. Era minha
esposa e a amante dela, cochichando. Tocava em loop,
sempre avançando um pouco mais do que a última vez. Eu
ouvi até a parte em que dei um soco na porta, e quando me
afastei ouvi atrás de mim um... Bufar. Olhei pra trás, e o
Minotauro estava ali. Ele bateu minha cabeça na porta, e eu
acordei”.
56
Nas noites seguintes ele reportaria o mesmo sonho,
com algumas mudanças. Em alguns deles Enzo acordaria
antes do Minotauro sequer aparecer, ou ele ouviria somente
uma frase ou duas dos cochichos até que o Minotauro o
alcançava. Cada manhã ele parecia mais abatido, e talvez
por causa desse paciente, Doutor Simão tenha começado a
se arrepender de ter trazido precocemente sua invenção ao
mundo. Como ele colocaria em seu diário: “Esse Enzo tem
alguma coisa. Eu não sei o que é. Talvez culpa em demasia.
Um tipo solitário como eu tem muito a pensar. Um Andróide
Mensageiro me avisou que meu primo ordenou que eu não
dissesse nada sobre a esposa e a amante. O Algoritmo tinha
ordenado, e quando ele manda não tem conversa, muito
menos entrelinhas”.
(Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 2, “Fotos
do Detento 013 dos dias 1-15”)
2.4. Minotauro
O Minotauro foi noite a noite pincelado com mais
detalhes na memória de Enzo. Ele tinha uma cabeça de
touro, e desde o topo da careca até os tornozelos ele era
dourado. Tinha sempre três dedos, olhos vermelhos e
cascos negros. A cada passo Enzo sentia a terra tremendo.
57
Tinha músculos exagerados, e produzia um som estridente
quando chegava. Parecia uma criatura distante de qualquer
arquétipo que Dr. Simão conhecia, o que era plausível, pois
sua formação era sobre tecnologia, com doutorado em
tecno-psicologia, um curso que inexplicavelmente não tange
a Teoria dos Sonhos de Jung.
Enzo permaneceu sempre reportando a mesma
história por um mês, até que na noite seguinte ao
aniversário de Ariadne, algo pequeno havia mudado. Os
dois conversaram comendo bolo, e foram à biblioteca
conversar sobre literatura no intervalo. Ele contou a ela suas
experiências, com as variações, sua vida, e assim por
diante. Ela o retribuiu contando as experiências que ela teve,
como também sobre sua vida anterior a prisão. O elo que
formaram naquele dia foi suficiente para mudar algo no
sonho dele. Dr. Simão C. Jr. não pode deixar de notar que
seus objetos de estudo tinham vida própria, anotando na
ficha relacional dela: “002 amigo”. (Consultar Lista de
Anexos, seção 1, objeto 6, “Ficha Relacional de Ariadne Dio
et Machi”).
Quando voltou a sonhar naquela noite, Enzo
reportou, e transcrevo: “Agora consigo ouvir uma doce voz
ecoando pelo Labirinto”. Isso pareceu um detalhe minúsculo
em toda uma cadeia de eventos, ainda mais sendo um entre
58
quinze outros pacientes. (Consultar Lista de Anexos, seção
1, objeto 29, “Relatório Cnossos, pod 002”).
“Esse é o problema das pesquisas quantitativas, pois
a beleza sempre esteve nos menores detalhes” (MAIO, Júlio
Caio Bráulio).
2.5. Ariadne Dio et Machi
Suposições narradas em terceira pessoa
(conhecimento adquirido através de questionários e
entrevistas cuja citação direta terminantemente proibida pelo
Algoritmo Absoluto): “Enzo se deitou, sendo aconchegado
pela bolsa de gel. A injeção foi colocada, e assim que
dormiu voltou a sonhar com o Labirinto. O céu acima estava
negro, ao ponto de tornar as paredes da cor cinza sem
graça mais escuro e macabro. Ele não conseguia enxergar
um palmo a sua frente, sendo preciso que ele tateasse pelas
paredes. O conhecimento de que o Minotauro viria não
produzia nele nenhum tipo de conforto, e ele correu
tateando. Chegando ao fim de uma das paredes, e topando
com outra, ele foi passar pelo espaço a esmo para voltar por
onde veio, mas não pelo mesmo lado. Tomou um tremendo
susto ao sentir algo novo resvalar em seu peito e impedir
sua passagem entre aqueles muros. Ao passar a palma e os
59
dedos descobriu uma linha. Ao balança-la, como uma corda
de violão, a mesma voz de seu sonho anterior tocou em
resposta. Se agarrando a ela seguiu para ver até onde a
mesma iria terminar”.
“Ele encontrou no fim de outro caminho um “pod” com
a porta fechada, onde o fio parecia passar por uma pequena
abertura. A placa de metal dizia “013” em alaranjado, e
parecia à única coisa reconhecível no meio da escuridão. Ao
abri-lo, se sentiu extasiado ao encontrar enormes jardins de
flores variadas, um céu azul e bosques repletos de árvores.
Ele fechou a porta atrás de si. Caminhou até o centro de
uma plantação de margaridas, e se deitou no meio delas.
Ele gargalhou extasiado cheirando com respiração força
cada uma a sua volta. Estava no Paraíso, mas mesmo
assim não se sentia morto. Se acomodou com a ideia da
morte por um bom tempo até alguém tropeçar em seu peito
e cair”.
“Era Ariadne de quem o sonho ele tinha invadido.
Eles conversaram e, até onde aquilo parecia, ela achava
que ele fosse um produto de seu sonho, e não Enzo de
fato”.
Ao acordar ela se surpreendeu com seu vizinho de
“pod” sendo encaminhada a enfermaria. Ele não se movia,
nem por injeções de adrenalina, ou teste de frequências de
60
sons sensíveis a ouvidos humanos e mecânicos. Dr.
Bocamarte C. Jr. mediante aquelas notícias urgentes decido
pelo fim imediato do experimento. Os dados deveriam ser
recolhidos e enviados para o Servidor Central nos EUA. Os
detentos seriam redirecionados as prisões regulares, onde
cumpririam suas penas em prisões privadas, com regimes
de trabalho não remunerado e condições de higiene
precárias. Mas Doutor Simão C. Jr. não se conformou com o
ocorrido. Ele foi ao próprio escritório, anotando um palavrão
de baixo calão em seu diário, e voltando a pensar
profundamente. (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto
15, “página 121.023 do Diário do Doutor Simão Casaverde
Junior”).
Ele analisou tudo na ficha do detento, desde suas
histórias até as análises, entrevistas e relatórios recentes.
Naquela noite sua atividade cerebral parecia ter sido
reduzida em 5/9. Ele foi ao equipamento, e em uma
investigação preliminar notou que um dos cabos de energia
do equipamento havia reportado uma singularidade no
tempo inferior a metade de um segundo. Analisando com
mais calma ele encontrou a energia que tinha saído do
líquido amniótico, transportada por um cabo de energia de
alta tensão, passando pelo gerador comum, e redirecionado
para o cabo de alta tensão no “pod” 013.
61
Quando Ariadne estava prestes a ser levada a uma
prisão regular, Dr. Simão pediu que o Algoritmo Absoluto
aguardasse através de todos os seus androides um
esclarecimento necessário. Ele conversou com Ariadne,
convencendo-a a entrar no “pod” 013.No “pod” 002 ao seu
lado foi colocado o corpo inerte de Enzo. O Dr. Simão testou
um protótipo do capacete que permitiria a ele invadir de
forma instável aos sonhos de Enzo (Consultar Lista de
Anexos, seção 2, objeto 1, “Protótipo de Capacete de
Invasão”). No sonho de Ariadne ela o convenceria de voltar
pelo “pod” ao Labirinto dele, o que teve sucesso (em três
horas). O Minotauro apareceu no Labirinto, e como sempre
o espancou até ele acordar. Dr. Simão C. jr. também
acordou quando o sonho dele foi encerrado.
Anotando em seu diário durante o horário de
recreação mais tarde: “Eu classificaria o dia hoje como um
grande e ********* EUREKA! (p. 121.024).
O ponto positivo foi Enzo ter conseguido acordar em
seu próprio corpo, o que por qualquer um estava longe de
parecer remotamente possível até hoje. O “Projeto Cnossos”
voltou a funcionar, com todos devidamente testados e
máquinas operantes em sua máxima capacidade.
2.6. Dr. Cirilo Tadeu (Relator)
62
Conjectura: Os outros detentos não tiveram
resultados semelhantes ao de Enzo. Até aquele momento
ele era o único paciente que apresentava um sonho
recorrente, com mesmos elementos, e leves variações.
Ariadne, por exemplo, sonhava com bosques, mas
também com campos abertos, casas no campo, ou seu
último apartamento antes de ser presa.
O paciente no “pod” 066, Hélio Vosfich, sonhava que
acordava no meio de cirurgias, ou estava pelado na escola,
ou acabara de adquirir uma promoção e se tornaria sócio da
companhia que serviu tantos anos.
Por último, mas não menos importante, Fiona João
Lacerda, paciente do “pod”103sonhava com encontros
românticos com personagens literários britânicos, como, por
exemplo, Elizabeth Bennett (do livro “Orgulho e
Preconceito”, escrito por Jane Austen) em um café
parisiense, ou Miss. Dalloway (de livro homônimo, escrito
por Virginia Woolf) em uma floricultura.
O motivo pelo qual isso tenha acontecido com Enzo é
facilmente explicado na Teoria dos Sonhos da psicologia-
analítica: “O inconsciente, que se manifesta pelo sonho, é
criativo e tem vida própria, é autônomo. (...) O sonho tende a
complementar ao que acontece no consciente (...) A
linguagem (de que o sonho se utiliza) é simbólica, ou seja,
63
se comunica através de símbolos que são individuais (...) e
ao mesmo tempo coletivos, universais e arquetípicos.
(ECKS, Ingrid). Ou seja, Enzo escolhia ignorar qualquer
significado, somente sonhando com aquilo, reportando pela
manhã, e tentando ao máximo esquecer daquelas coisas até
ter de voltar a sonhar.
O Dr. Simão alcançou diversos tipos de
esclarecimentos com os outros pacientes citados,
proporcionando-lhes a “Catarse” necessária através da
“sonoterapia” que ele buscava criar e desenvolver
inteiramente. Somente Enzo Teseu Silva apresentava algo
até então incompreensível em todas as suas pesquisas,
provando falho o método do pesquisador, e como paciente
afundando em um estado de apatia, melancolia, perda de
apetite, e um quadro grave de narcolepsia. O único porto
seguro que ele conseguiu preservar foi à companhia de
Ariadne, que no decorrer do dia estava sempre pronta para
ouvi-lo, conversar e reconforta-lo. Em nenhum momento a
relação dos dois se provou além da amizade, até porque o
relacionamento amoroso era, e ainda é, proibido pelo
Algoritmo Absoluto na Colônia.
Para a segurança de todos, Dr. Bocamarte C. Jr. fez
uma compra de um estoque maior de Guardas Androides, e
diligenciando um para seguir cada detento. Ele não voltou a
64
ingressar na Ilha da Colônia por uma semana devido a uma
cirurgia delicada no continente, apresentando atestado ao
retornar (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 42,
“Atestado de Cirurgia Delicada”).
2.7. Dr. Simão Casaverde Junior
Os diários de Dr. Simão C. Jr. cessam na noite
denominada “O Grande Pesadelo” pela doutrina empírica da
sonoterapia. Resta-me narrar com condolências a família
Casaverde pelo ocorrido:
“Enzo teve um sobressalto ao começar a sonhar
naquela noite. Ele havia acabado de sair do próprio “pod”, e
permanecido de pé em frente aos outros “pods” de seus
colegas, caminhando na frente deles. O Guarda Androide
que deveria permanecer prostrado onde ele estivesse
estava lá, e seu semblante rígido se assemelhava (na
imaginação de Enzo) a um fantasma ou um zumbi. Ele olhou
para o lado, onde o “pod” de Ariadne estava. Ao toca-lo
conseguiu vê-lo se abrir, mostrando uma paisagem de um
belo bosque durante o sol alto. Ele estava prestes a entrar
quando foi puxado para trás pelo Guarda Androide que lhe
segurou os ombros”.
65
“O Guarda Androide estava olhando em seus olhos e
se comunicando com calma. Era o Dr. Simão, através de
seu capacete de invasão, que tomou acidentalmente aquela
forma recorrente. O Doutor lhe explicou tudo, implorando
para que ele não invadisse os sonhos de sua colega. Os
dois firmaram um acordo, em que Enzo não entraria no
sonho de Ariadne desde que o Dr. Simão o ajudasse a
sobrepujar o Minotauro”.
“A dupla entrou no “pod” de Enzo, que em seguida os
transportou ao centro do Labirinto. O Dr. Simão analisou
toda a sua estrutura rígida, e percebeu a ponta de uma
corda quase transparente. Enzo explicou que o canto de
Ariadne podia ser ouvido no balançar daquela corda. O Dr.
Simão, embasbacado, pediu para que Enzo seguisse junto
dele o caminho da corda. Eles seguiram até o “pod” de
Ariadne no fim de um dos caminhos, e voltaram até uma
esquina. O Dr. Simão tentou mover a corda, e conseguiu.
Ele propôs para que ambos erguessem a corda em lados
opostos em uma interseção. Presumiu que se o Minotauro
seguisse em linha reta até o “pod” de Ariadne no fim daquele
corredor. Então eles elevariam a corda fazendo com que sua
extensão impedisse a parte inferior do Minotauro de
continuar fazendo-o tropeçar e cair no chão. Poderiam
66
amarrá-lo e tentar descobrir quais as suas intenções por
meio de interrogatório”.
Conjectura: Aquela parecia uma excelente ideia na
lógica comum, o que infelizmente não foi traduzido na
prática onírica.
“O Minotauro surgiu a toda velocidade, e por mais
que tenham erguido a corda para que ele tropeçasse, o
mesmo se utilizou das mãos para proteger os cascos e
pernas finas. A corda puxou tanto Dr. Simão quanto Enzo
até o Minotauro logo a frente do “pod” 013. Por motivos até
agora incompreensíveis, o Minotauro pegou o Dr. Simão
pelo colarinho, e agiu com violência desmedida até seu
aleijamento. Como aquele sonho não lhe pertencia, Dr.
Simão não conseguia acordar”.
“Enzo presenciou o início da tortura com o Dr.
Simão, porém ele correu para o “pod” de Ariadne. Sua
surpresa foi que minutos depois, correndo pelo bosque, o
Minotauro surgiu em seu encalço, arrastando com uma de
suas mãos o corpo inerte do Dr. Simão pelo braço. Enzo
correu, encontrando Ariadne na metade do caminho, e
puxando-a para que também corresse”.
“De alguma forma encontraram no fim do bosque um
“pod” com a numeração 066. Passaram por ela, sendo
transportados a uma sala de cirurgia onde o paciente
67
transbordava sangue de suas entranhas. Um dos supostos
médicos tentou impedir a passagem do casal pelo recinto,
mas os dois conseguiram dribla-lo e seguir para o outro lado
da sala onde o “pod103” se encontrava”.
“Passaram ao sonho de Fiona com Lady Macbeth em
um castelo colossal. Os dois passaram pela sonhadora e
sua colega, avisando do que estava por vir, o que Fiona
encarou como puro delírio
Conjectura: Em suas entrevistas ela nunca havia
pensado na possibilidade de alguém invadir seus sonhos,
mesmo tendo presenciado o episódio em que Enzo invadiu o
de Ariadne.
“Em seguida o Minotauro passou por elas, trombando
no ombro de Lady Macbeth, que se tornou uma pequena
pilha de alpiste ao cair no chão. Em fúria, Fiona entrou em
um surto homicida, pegando para si uma espada e correndo
atrás da besta. De uma forma ou de outra a besta encontrou
Enzo e Ariadne, largando o doutor e torturando os dois até
que acordassem. Quando Fiona encontrou a besta, a
mesma parecia evaporar até desaparecer no nada”.
O corpo do doutor permaneceu imóvel até a manhã
seguinte, com a passagem da Equipe de Androides de
Limpeza. Seu protótipo de invasão se provou ineficaz na sua
própria proteção, saindo da posição de joelhos, e deitando
68
involuntariamente, fazendo com que entrasse em surto e
convulsionasse no chão. O protótipo disparou descargas
elétricas, estímulos intensos em áreas de coordenação
motora, visual e do sono, causando estrias por toda a
extensão dos lados esquerdo e direito. O equipamento do
protótipo estava inutilizável, e devido a sua complexidade
até hoje não foi possível sua reprodução para o resgate do
Dr. Simão nos sonhos de Fiona, por mais que todas as
autoridades em sonoterapia concordem de que essa seja a
única forma dele voltar a sair do estado de inconsciência
prolongado.
2.7. Ariadne Dio et Machi
Sem os diários o capítulo a seguir teve de ser
inteiramente baseado em entrevistas com os detentos, ex-
detentos, equipe especializada e terceiros interessados:
“A manhã seguinte foi a última de Ariadne ali. Com a
morte do Dr. Simão C. Jr., seu primo, Dr. Bocamarte C. Jr.,
prometeu assumir todas as atividades em seus mais
diferentes níveis de responsabilidade. Ele contratou tecno-
psicólogos que no interim de um dia se tornaram a par do
projeto de seu primo. O funeral foi realizado na Ilha, em uma
pequena excursão até um bosque próximo".
69
“Ariadne se despediu de Enzo com um abraço forte.
Ele lhe pediu desculpas pelo inconveniente de ter utilizado
do espaço dela de bode expiatório a loucura que estava
vivendo. Ele prometeu que aquilo iria acabar. Ela se lembra
de ter dito especificadamente, e cito: “Me procure quando
sair desse buraco”. O que ele também prometeu fazer. E
sozinho ele permaneceu naquele dia”.
É de meu conhecimento que ele recorreu a literatura,
e leu “Uma Transcrição da Lenda de Teseu, o Labirinto, e o
Minotauro”, por L. H. Kulik. Eu ainda não o li, por mais que
tenha estabelecido um link com a Lista de Anexos.
(Consultar Lista de Anexos, seção 3, objeto 1, “Uma
Transcrição da Lenda de Teseu, o Labirinto, e o Minotauro”,
por L. H. Kulik”).
Segundo ele mesmo isso parecia ter lhe
proporcionado o equivalente a uma epifania.
Enzo Teseu Silva relatou na manhã seguinte ao
questionário habitual:
“Eu tava naquele maldito centro esperando por
aquele ***** ** **** do Minotauro. Ele chegou chegando, e eu
só fiquei encarando ele. O bicho pareceu ter ficado uma
fera, e me deu um socão no pé d’ouvido. Eu só levantei e
fiquei olhando pra ele de novo. Ele me deu um soco no
queixo, ergui uns dois metros antes de cair de costas. A dor
70
foi ****, mas eu levantei e fiquei encarando ele. Eu queria
fugir, mas não fugi. Queria bater mais ainda, mas fui até o
bichão e deu um abraço de urso nele”.
“A fera ficou se debatendo, como se eu tivesse
sufocando ele. Eu apertei mais forte pra ele não escorregar.
Meus dedos se encontraram nas costas dele, e eu trancei
tipo num gancho. Fiquei abraçado com ele por um bom
tempo, aí que o negócio ficou mais estranho. Minha cara
afundou no abdômen dele, como se não fosse sólido, sabe?
Eu soltei o abraço e fui pra longe. O Minotauro só tava lá
parado me olhando. Senti algo gelado no leu peito, e era
uma chave presa por um cordão transparente, tipo aquele
que ficava no caminho da Ariadne antes. O Minotauro se
desfez no vento, tipo quando você queima papel e as brasa
só seguem a brisa”.
“Eu fui atrás daquele caminho até a porta. É como se
eu nunca tivesse esquecido, pegar aquele e ir só pela direita
em toda a bifurcação. Eu cheguei na porta, cravei a chave
na fechadura e girei. As portas se abriram num segundo.
Tinha uma tela de cinema de frente pra vários assentos. Eu
sentei na última fileira. Fiquei vendo uma imagem bem ruim
e escura, só com uma brechinha de luz bem no canto. Foi aí
que eu me toquei o que era”.
71
“A Catarina dizia que já tava tudo pronto, e a Jezebel
perguntava se ela ia avisar “ele” ... Ou eu no caso. Aí a
Catarina falava que ia deixar uma carta, já que falar
pessoalmente ou não ia fazer diferença alguma. Ela
comentou que depois do Mino ele... Eu... Tinha me perdido
dentro de mim...”.
Conjectura: Ele começou a chorar pela primeira vez
há muito tempo.
“Ela tava certíssima... Aí a outra perguntava se ela
queria começar de novo. A Catarina dizia que não, porquê
ela só queria ficar o mais longe dele... De mim”.
“Aí que eu entrei... me apoiei e vi a arma... Apontei
pra elas, mirando nela... Eu ia atirar, eu sei que eu ia... Mas
teve algum segundo de choque que eu disse que eu era o
problema, e mirei na minha própria cabeça antes de
desmaiar”.
“Quando o filme acaba eu nem sei o que dizer... Só
saí dali andando... Em algum momento eu acordei... Acordei
de verdade, sabe?”.
Aquele dia foi o primeiro de muitos outros para ele.
Se alimentou melhor, abriu espaço para interagir com outros
detentos, pediu desculpas aqueles que sua invasão mal-
intencionada possa ter causado algum distúrbio. Até ontem,
quando sonhava, não era mais com o Minotauro, porém o
72
Labirinto ainda lhe é um espaço “sinequa non” ao entrar
naquele “pod” (Consultar Lista de Anexos, seção 2, objeto 2,
“Questionário Catártico 01 de E. T. S.”).
2.8. Enzo Teseu Silva (Considerações Finais)
Hoje será o dia que Enzo Teseu Silva será reinserido
na sociedade, por isso fui requisitado a redigir esse relatório.
Eu soube que Ariadne irá busca-lo na Colônia. Ele não foi o
primeiro detento da Colônia a ser liberto, o que não subtrai a
importância de sua história. Em conversas com outros
detentos que apresentavam casos semelhantes de
pesadelos recorrentes Enzo buscou orientá-los da melhor
forma possível.
Por fim, o “Projeto Cnossos” se mantém sobre
investigação do Algoritmo Absoluto pela utilização de
combustíveis fosseis para a consistência do “líquido
amniótico” já citado, como também da utilização indevida de
fósseis encontrados na Ilha da Colônia. Arqueólogos
apontam escavações ilegais no subsolo da Ilha há mais de
trinta anos. Depois do recolhimento do “pod” 002 para
análise, foram encontrados partes do crânio de
Cnossossauros nas portas, nos cabos de alta tensão, e
também dissolvidos no conteúdo do “líquido amniótico”.
73
Essa criatura de um período distante aparentemente
se comunicaria telepaticamente através de uma cavidade
sonar na ponta de seu crânio como uma antena, o que
poderia explicar de forma breve a possibilidade da invasão
de Enzo aos sonhos de outros “pods” (Consultar Lista de
Anexos, seção 3, objeto 2, “Cnossossauro: Dossiê”).
Este é o Relatório, 18 de Brumário da 32º volta do
quinto Ciclo.
74
Eu acordo pela manhã com um terrível gosto na
garganta. Algo sobe pela minha garganta. Me levanto de
supetão com as cobertas em minhas pernas, piso em
uma garrafa e ela não quebra. Como um tapete tirado
debaixo de meus pés caio de lado no chão. Quando o
vômito chega contra minha vontade não consigo segurar
a boca fechada e despejo tudo no carpete. Tudo que meu
estômago consegue expulsar é um líquido marrom que
tem cheiro de café com Coca-Cola. O carpete fica
esponjoso onde repouso minha cabeça por mais alguns
minutos. Meus cúmplices são embalagens de
salgadinhos, amendoins e comida instantânea. Sonho
que voltei a assistir as gravações da casa. Gravações
sobre o que ela fazia todo o dia. É estranho, eu sei.
Algumas pessoas aprendem a superar o luto de maneiras
bem exóticas.
Um mendigo estava gritando. Recobro a
consciência achando que voltei a ouvi-lo. Seus gritos
ecoavam por todos os cantos. Não havia nada que
pudéssemos fazer.
UM ALMOÇO MUITO BEM VESTIDO COM MUITO ANTIÁCIDO
75
Ele deveria estar com algum tipo de úlcera. Até já
tinha dado esmola para ele uma vez para me sentir melhor
comigo mesmo e impressionar minha amiga. Digo... Ex-
amiga... Ex-viva também.
Me ergo do chão empurrando o abraço das cobertas
para baixo da cama. Eu não faço ideia de quando começarei
a limpar essa bagunça. O cuidado é maior com aquilo que
não é da gente. Mas a ideia só permaneceu na minha
cabeça até perceber que ela não tacaria panelas em mim
pela falta de zelo. Ainda bem que Zumbis são seres
puramente ficcionais. Eu sempre fui alguém tão organizado.
Ela era importante pra mim.
Vou até o espelho e o reflexo não é nada bonito. Para
minha pessoa minha cara nunca pareceu muito normal.
Sinto que tem algo diferente nela. Deve ser as espinhas no
queixo, ou a cicatriz na têmpora. Por mais que eu seja calvo
aos 50, e tenha algumas marquinhas, minha face é tão linda
que parece fabricada. Um rosto quadrado com maxilar fino.
Um queixo duplo abaixo de lábios finos. Um nariz também
fino entre olhos azul-claro. Sobrancelhas negras abaixo de
uma testa sem rugas. Eu sinceramente não tenho nenhuma
memória de ter feito qualquer cirurgia. Nem mesmo algum
órgão ou membro de prótese. Por Deus, eu nem sequer
tenho coragem o suficiente para sentar em uma cadeira e
76
fazer uma tatuagem. Em casos como o meu soube que
começaram a oferecer uma espécie de esquecimento
controlado. Porém, se eu não faço nem uma tatuagem,
como podem esperar que eu sente pacificamente numa
cadeira e deixe alguém ficar mexendo com meu cérebro? –
Fico feliz que ofereçam o esquecimento de graça para
pessoas com traumas grandes o suficiente. Só acho que
essas coisas não são pra mim. Eu lido muito bem com meus
traumas a minha maneira.
Enfim, ela gostava de conversar sobre essas coisas,
sabe?
Acho até que ela escreveria algo sobre esse assunto.
Suspiro e sinto saudade.
Lavo meu rosto, mas não faço a barba. Uma barba
por fazer parece me deixar mais triste, e hoje é o dia perfeito
para se ficar triste. E tira um pouco da atenção das
espinhas. Minha amiga faleceu anteontem, e hoje o velório.
Vim até sua casa para achar algo que ela gostaria de levar
para “O Outro Mundo”. Olhei para aquela casa que não
entrava há alguns meses. Ela não tem fotos da família, nem
livros, nem joias, ou um chapéu. De vestuário ela tinha dois
ternos no guarda-roupa, duas saias, duas camisas, duas
regatas, duas tudo. Ela era adepta de uma religião
77
minimalista, então acho que isso resume bem o que ela
gostaria de levar para o ácido. Mas não tenho coragem.
Um ônibus espacial branco com ponta e turbinas
vermelhas treme entre a pressão de meus dedos. Um
buraco na turbina, um adesivo digital com “X10X5 - Val.
12/14/55” escrito em azul”. O único item que consigo lembrar
dela usando. Ela comprou em uma banca aqui perto. Um
vaper novo com o design de uma nave como propaganda
para um filme de ficção-científica que está para sair essa
semana. Eu não vi o trailer nem nada. Ela comprou esse e
sempre sorria antes de fumar. Se duvidar ela sempre dava
uma risadinha. Foda-se.
Vou para o chuveiro. O banho parece ferver minha
pele em um estado de paz. Me sinto um ovo sendo cozido, e
como se minha casca de ressaca explodisse levando todo o
mal-estar interior de dentro para bem longe. Quando termino
de me secar, com a toalha em minha cintura larga, ouço a
campainha. Em meu relógio digital um desenho de uma
pílula azul clara com um desenho surge e começa a saltitar.
Chego na porta. A superfície prateada se torna um enorme
vídeo. Ela me revela um drone lilás com detalhes em branco
do outro lado. Ele espera pacientemente com suas quatro
hélices barulhentas. Toco no vídeo e ele me mostra as
opções de “abrir” ou “desligar som”. Clico no verde
78
fosforescente que quase me cega e a porta se abre. Uma
cabeça, que mais parece uma cabine de piloto, se abre.
Dentro dela uma caixinha, maior que meu dedão, mas
menor que dois dele. Alcanço agradecendo em uma voz
rouca que o diabo. A cabine se fecha e o drone vai embora.
Clico no relógio e ele simplesmente me mostra “fluoxetina”.
Boto a caixinha em cima da mesa ao lado da porta e do lado
do prato de chaves. Só posso tomar depois que como
alguma coisa. Fecho a caixa e volto ao quarto.
O cheiro podre já começa a tomar conta.
- Casa! – Chamo sentindo uma chuva de navalhas
descendo pela minha garganta.
- Bom dia Senhor. – A casa responde fazendo um
barulho de um bocejo e um galo a cantar. – A temperatura é
de cinquenta graus Celsius. A mínima esperada pela tarde é
de trinta em cinco com forte chances de chuva. Noticiários
de todo o mundo estão comentando sobre o Impeachment
do suposto último filho da Dinastia.
- Trinta e dois anos de merda. – Comento comigo
mesmo. Nessas horas uma boa companhia faz falta. Ela
diria que eu estava certo e tomaria um café comigo. Não me
lembro de acordarmos junto. Ela dormia bem tarde, e
acordava depois das dez sempre. Não acho que tenha
acordado e tomado um café com ela depois de acordar. Eu
79
geralmente acordo as cinco da matina. Acordado, ou não,
cada dia nos últimos anos foram pesadelos pendulares de
terror e angústia.
Com o ataque da Coreia, o aumento da costa, e a
remodelação de Estado. Muitos pensam que outro filho pode
se eleger, desde que clonem o último mais novo. Ou
transfiram a inteligência de um deles para um corpo robô
que fosse igual a um dos próximos candidatos. Mas duvido
muito que qualquer um queira mais um ano de qualquer
coisa parecida com essa bodega. Sem falar que já foi
comprovado que ao transferir a consciência para outro corpo
o indivíduo está sujeito a adquirir dissociação, podendo
desenvolver distúrbios de personalidade. Esses caras
querem manter as ideias de merda deles no palanque, e se
um virasse um robô são altas as chances dele simpatizar
com movimentos pró-sapiens, ou anticlimáticas.
Mesmo com toda a minha bagagem não consigo
resumir bem os últimos anos na minha cabeça. Ainda mais
com a mentalidade de um fotógrafo, e não um historiador.
Bebo uma xícara de café que estava pronta e aquecida.
Minha garganta não reclama. Bebo três xícaras enquanto
penso: Ela viveu por tudo isso comigo. As principais notícias
do dia são “Investigação de Fábrica de Clones que pegou
fogo há três meses permanece em aberto”, “ontem homem
80
faz transferência para corpo robô e é bem-sucedida”, e
“Yusuki Mitai, âncora do Gazeta News, se retira para outro
país após fotos em clube feminista”. – Quando foi que todos
enlouquecemos?
Ela adoraria ler e rir de tudo isso.
Minha história com ela começa quando entrei na
Folha. Tinha vinte anos. Linda devia ter quatro anos a mais
do que eu. Dois estagiários com inocência. Ela era loira com
mechas pretas. Eu tinha um cabelo... Preto arrepiado? Ou
um cabelo longo até o pescoço? Não, eu tinha um moicano
ridículo. Vai saber o que se passava na minha cabeça. Bom,
ela ajudava na edição, e eu auxiliava o auxiliar a calibrar as
câmeras fotográficas, vídeo filmadoras, microfones,
ambientes e afins. Fomos efetivados no dia de entrega dos
nossos diplomas. Acho que naquele dia o Presidente do
nosso querido país provocou os coreanos. Ele fez um
comentário do tipo “um bom soldado brasileiro na Coréia
seria Rei”. No dia seguinte um buraco se abriu na costa
onde o Rio de Janeiro ficava. Observávamos o céu em uma
festa sem graça quando vimos de longe o cogumelo. A
histeria foi absoluta. Todos se amocaram em suas casas
esperando pela morte. No dia seguinte estávamos lá dando
a notícia de que nada tóxico havia sido usado. A bomba
usava um tipo de energia renovável, maior e melhor do que
81
qualquer uma que tenhamos desenvolvido aqui. Eles
achavam que o Presidente Bolsonaro estava lá, mas para a
sorte dele o último voo para Brasília tinha saído uma hora
antes.
Mesmo que o Presidente estivesse a salvo, seus
eleitores se viraram contra ele. O luto era nacional, e suas
entrevistas para a imprensa eram a definição do narcisismo
do mundo em um homem. Na sombra de um Impeachment
ele tomou medidas desesperadas. Com sua mentalidade
binária ele acionou o Estado de Guerra. Pouco a pouco os
detentos de prisões foram treinados para um conflito que
nunca chegou a acontecer. Ele faleceu em uma tarde, e o
Estado de Guerra foi com ele para o túmulo. Eu estava
filmando ela enquanto dávamos a notícia na frente da casa
do vice-presidente que pareceu piorar as coisas em
patamares inéditos. Ele privatizou tudo. A luz e a água
passaram a ser fornecidos por quem quiser dar, e alguém
que não paga uma vez pode se ver sem isso em sua casa
pelo resto da vida. As prisões se tornaram empresas, e etc.
Os carros passaram a voar e as calçadas agora estão
abandonadas para quem quiser. Prefeitos tem menos poder
quanto à última da Inglaterra depois da revolução
antimonárquica. Os movimentos sociais no Brasil
começaram com força, como sempre. Porém os anos de luta
82
não pareciam ter colhido bons frutos. Tudo o que
conseguiram foram mudar os nomes dos bairros e ruas.
Agora tudo são séries de números, letras, e letras com
números em poucos casos. Os bairros são nomes de
escritores, e o Estado se chama só Paulo agora. Vou contar
um pequeno segredo, ninguém da minha geração chama o
Estado de Paulo.
Esse apartamento fica na esquina da 8 com a BD.
Com a eleição penúltimo Presidente, também filho e
irmão dos anteriores, os hospitais foram extintos. A pronta-
emergência é um mito para as gerações mais recentes. Ou
você adere ao “Hermeticus”, ou sua vida está nas mãos do
Destino. Eu aderi, e com isso eles sabem minha localização,
histórico médico e necessidades fisiológicas. Eles têm meus
dados, logo minha vida dança entre seus dedos, como o
vaper em minhas mãos. Quem não consegue acaba
morrendo aos gritos nas calçadas.
- Agendar limpeza para as duas. – Digo em voz alta.
- Entendido. – A casa responde milissegundos antes
d’eu terminar de falar. Isso é quase mágico pra quem já teve
que ver um VHS despejar o conteúdo da fita em uma língua
infinita. – Limpeza às duas da tarde de hoje.
- Isso.
83
Pego minha roupa dobrada em cima do sofá azul. Ele
ainda está com plástico. Visto uma camisa social branca de
metade tecido, metade plástico, como o sofá. Visto uma
calça preta, sapatos de bico fino marrom e uma cinta
caramelo. Nunca esperava ter que vestir isso de volta, mas
é minha única roupa perto o suficiente para parecer
“levemente estranha” na ocasião. Todos os itens são velhos
e surrados, mas juntos me fazem parecer um professor da
“Dots”. Ajeito uma gravata com cinco pontas barbadas na
cor azul clara com duas faixas amarelas na vertical. Quase
não encontro minha capa de plástico no sofá. Visto por cima
de tudo com um capuz fechado.
Peço para a casa se trancar e passo do corredor para
o elevador.
O ar parece fumaça pura. Quando inspirada sinto-me
queimando os pelos do nariz. O mega toldo branco em cima
de São Paulo projeta a imagem colossal de um céu azul
piscina ensolarado e sem nuvens. Vou até a banca da 9 com
a BD sentindo meu estômago pulando de um lado para o
outro. O mesmo robô preso ao chão me atende em uma
cabine na largura de um ônibus de frente. Em volta dele há
milhares de itens que se dispõem em uma bagunça
organizada. Revistas ainda impressas, USBS, smartglasses,
vapers, etc. Ele não tem uma face, mas uma superfície
84
chapada onde o desenho de uma face é projetada. Suas
mãos são enormes, e seus dedos parecem enormes
seringas de um metro e meio que poderiam atravessar meu
tórax facilmente.
- Um antiácido, por favor. – Eu peço. Olho para as
calçadas vazias e me lembro de quando a superpopulação
do Estado era uma das maiores do país. Quem podia foi
embora, quem criticava demais foi pedido a se retirar. Eu
queria ter ido, mas não abandonaria minha amiga nesse
lixão. Se bem que me lembro de comprar uma passagem
para fora ano passado. Onde que eu tinha ido?
O robô não pega o antiácido quando volto minha
atenção para ele. Ao contrário, ele não tinha parado de me
encarar por um minuto. O desenho de sua face começou a
piscar em uma cacofonia de sons agudos. Para minha sorte
o barulho e o desenho sumiram por um segundo. Sua face
chapada ficou negra e mostrando minha silhueta. Os pixels
negros pareceram derreter dando espaço para algo
vermelho rubro.
- Borges! Você irá pagar! – Uma voz anuncia
sussurrando. De queixo caído me aproximo. – Eu sou-
Unidade 00100100 da Kprncs! Eu hackeei - de Comércio
para pedir- não vá até-
85
Ela berra e tenho que afastar meu ouvido. A
mensagem é cortada, me deixando com a cara pálida e a
sensação de um soco no meu tímpano. Um ruído constante
passa a morar na minha orelha direita. Que inferno. A face
de antes volta. Ela não parece suspeitar nem um pouco do
ocorrido.
- Você sabe meu nome? – Pergunto.
A Unidade de Comércio me encara, e passa a ponta
do dedão e do dedo indicador sobre o desenho de uma boca
que se torna um zíper.
Fico paralisado enquanto ele coloca um copo em
cima do balcão e despeja o pó do saquinho. Sem saber
muito o que fazer passo meus dedos pelo rosto. Só que não
sinto minha barba. Aproximo minha face de um espelho
pendurado por um fio de náilon ao teto. Sua superfície é
opaca até que eu introduza um USB com 17/6 bits para
pagar. Minha imagem surge e estou com uma barba até o
queixo. Levo um susto rápido até clicar em um botão lateral
para remover os filtros. Meu coração acelera um pouco. Não
consigo ouvir mais nada além do meu respirar ofegante.
Uma gota de suor escorre da minha testa.
Lá estava meu rosto liso feito uma mesa. Sem
espinhas, só a marca. Pisco duas vezes e a imagem
permanece. Passo a mão e fico confuso. O robô me entrega
86
um copo de plástico e despeja um pó que passa a
efervescer com bolhas que flutuam alcançando o ar acima
do copo. Ergo o copo com a mão tremendo. Bebo tudo em
um gole sentindo um tremor no corpo e um arrepio na
espinha. Engulo com força fechando os olhos e fazendo
uma careta. O robô não diz nada. Dou a ele meu USB com
2/15. Ele alcança com a ponta dos dedos. Minha ansiedade
arrebata meu coração que acelera.
- Muito obrigado tchau! – Não espero pelo troco.
Digo tudo em uma amálgama de paranoia e
nervosismo. Contudo, quinze segundos prometidos depois
um bem estar parece surgir no meu estômago e deixar todos
os meus pensamentos em paz durante a caminhada até
duas quadras dali. Meu enjoo e ansiedades desaparecem
como fumaça de vaper no ar.
Antiácido é a única coisa que o Plano Hermeticus não
fornece.
Dizem que se só dá para compreender alguém pelos
seus vícios. Mas eu nunca entendi Linda por ela fumar. Isso
era ela. Todo o dia, sempre que podia. Eu trabalhei com ela
por anos e mesmo assim não sei onde ela nasceu, nem
quem eram seus pais, nem seu desenho favorito quando
criança, ou seu maior medo. Ela não falava nada de si.
Quando cobrada pela Folha para escrever uma biografia ela
87
escreveu: “Linda O’Hare viveu uma vida relativamente feliz”.
– Sim. Era essa a resposta dela depois de dois anos de
cobrança da Folha e das Editoras. O título para a Biografia
seria “Uma Vida”, segundo ela. Acho que ela tinha medo do
próprio passado voltar para assombrá-la. Pode parecer meio
clichê, mas quem não tem?
Ela fumava. E muito. Até demais de acordo com
alguns fumantes que ela conhecia. Depois que o tabaco foi
proibido às empresas de cigarro fecharam, e com isso os
vapers, com ou sem nicotina, tiveram seu mercado em uma
expansão imensa da noite para o dia. Eu não sei que dia foi
isso, mas ela queria cobrir a matéria. Entrevistamos seis
donos de fábricas de cigarro, um funcionário de uma
fabricadora de vapers, e três ou quatro homens ou robôs do
comércio. Ela redigiu as perguntas, e editou em dois dias
para que saísse no topo do feed da Folha. Foi um sucesso,
claro. Mas nunca entendi o porquê. Ela se dedicava de
corpo e alma ao trabalho, diferente de mim, que em alguns
anos fiz coisas que foram jogadas fora e refeitas por um
povo mais experiente. Eu sempre andei na corda bamba,
sem tentar assumir responsabilidades demais. “Uma vida
desperdiçada”, meu pai apontou na última vez que eu fui
visitá-lo. Eu concordava em parte. Hoje não tenho mais
contato com ele. Nem com minha mãe no Japão. Por vezes
88
foram criadas teorias de que Linda fosse um E.T., ou um
robô. Ela lia a tudo e dava risada. Uma risada que nunca
esqueço. Uma que ela abaixava a cabeça, e quando erguia
gargalhava chorando pelos cantos dos olhos. Por mais que
tivesse variações ela parecia seguir um roteiro. E se fosse
necessário parar ela simplesmente parava de rir no ato.
Engraçado era como muita gente não acostumada
simplesmente arregalava os olhos para ela. Eu já arregalei.
Enfim, nem lembro mais onde estávamos.
Ah, lembrei.
Eu nunca entendi ela.
Isso ficou muito claro depois da matéria escondida
que ela fez se infiltrando num grupo de femistas terroristas.
Ela mandou uma mensagem dizendo o que ia fazer, e no
outro dia sumiu. Por um mês eu e Carlos ficamos morrendo
de preocupação. Ela voltou um mês depois com uma
tatuagem no braço. Era uma linha na horizontal com riscos
na vertical, tipo da cabeça do Monstro de Frankenstein. Ela
transcreveu tudo na notícia, exceto o porquê da tatuagem.
Outra vez no topo do feed. Outra notícia de sucesso
estrondoso. Eu tirei uma foto dela com a cabeça raspada na
pose de lado forçando o músculo do braço direito. Igual à
pose daquela mulher do “Wen Can Do it”. Ela adorou a foto
e pediu uma cópia. Bom, depois desse mês conturbado ela
89
passou a ler muito. Livros físicos, de sebo ou importados.
Essa história termina hoje, quando recebi um e-mail de sua
Wikipédia. Abaixo de uma foto dela no Simpósio de
Jornalismo estará o desenho de uma lápide com seu nome e
com uma frase que ela pediu para gravar: “A Hard Rain A-
Gonna Fall”. (Bob Dylan). – Estranhamente nunca ouvi ela
mencionar Dylan. Nem mesmo cantar uma frase de alguma
música dele, e ela adorava cantar frases aleatórias de
músicas que ficavam presas em sua cabeça. Em alguns dias
ela se sentava do lado da janela e ficava repetindo bem
devagarinho, como se aquilo pudesse dizer mais do que já
dizia.
Por fim...
... Eu nunca entendi ela...
Nem um pouquinho.
Chego a Capela e Carlos me esperava lá. Ele usa um
terno risca de giz azul por baixo de uma capa de plástico e
tecido de um tom mais escuro do terno. Sua cabeça é
redonda, ele sempre usa óculos escuros, e nos últimos
tempos ele preserva uma barbicha ridícula na forma de um
triângulo em baixo da boca. Ele acena de longe. Tudo fede a
algo queimado naquela calçada. Principalmente o piche
abaixo de buracos do toldo. Uma gota grande o suficiente
90
pode alcançar seu cérebro, e eu não quero ter a sorte dessa
experiência.
- Como você está? – Ele me pergunta botando a mão
em meu ombro. Penso em afastá-la antes que ele se
queime. Percebo que ele usa luvas. Seu dedão pressiona
meu nervo com força o suficiente para doer. Décadas
trabalhando para ele e entendo que isso queria dizer que ele
se importava.
- Levando, e você?
Seus grandes óculos escuros e a cabeça grande
fazem ele parecer um mosquito.
- Tentando levar. – Ele fala e imagino ele se afogando
em uma sopa.
Entramos pelo primeiro arco gótico em silêncio. O
único som que posso discernir é alguma harpa. O som é
doce e uniforme em um conjunto de acordes que se repetem
infinitamente. A luz é baixa, fazendo com que tudo ali pareça
uma enorme penumbra na existência. O que é branco de
perto fica cinza ou preto. A capela tem um saguão do
tamanho de um estacionamento. Com os espelhos nas
paredes e as sombras chega a parecer bem maior. Um robô
no canto, atrás de um balcão, parece desligado. Penso em ir
até ele para descobrir quando Carlos me aponta uma
estátua no centro do saguão. Fico hipnotizado. A estátua de
91
imitação de mármore representa Tânato ao lado de Eros. O
Amor da um coração a Morte, e ela parece estar quase
resvalando os enormes dedos esqueléticos que escapam
das mangas compridas de sua vestimenta. Em volta deles
há um anel no formato de uma elipse com uma frase: - “Sua
vida sempre está em boas mãos”.
- Bem bonita. – Eu comento.
- Até demais. – Minha chefe confessa, dando a volta
para analisar melhor os detalhes. Algo que me incomoda é a
abertura no peito de Tânato. Suas costelas parecem os
dedos do robô da banca. O robô que me disse que eu não
devia ir a algum lugar... O robô que sabia meu nome.
O som da harpa tem uma pausa de um segundo
antes de voltar a tocar. Ouço passos de um corredor na
nossa diagonal. Está na hora. Um homem de terno branco
surge da boca daquele corredor e vêm até nós em passos
largos e uniformes, seguindo o ritmo da harpa. Sua pele é
tão branca que ele parece estar morto. Ele usa maquiagem.
Uma base de cor de pele mais escura, mal passada que
deixa um contraste com o couro cabeludo mais branco que
leite. Pelo jeito de andar suponho que ele seja um robô, com
certeza.
92
- Bom dia Senhores. – Ele traz nas mãos uma
prancheta digital com uma tela que ilumina seu rosto
debaixo para cima.
Por favor me sigam.
Seguimos ele. Reflito em tudo que aconteceu na
semana passada. Eu tive um desentendimento com ela.
Discutimos e ela se levantou. Eu estava de bermuda, e
corria atrás dela até ela fechar a porta na minha cara. Foi no
meu apê. Antes de eu decidir alugar o meu para... Para um
cara. Acho que foi. Eu aluguei e falei que ia cuidar do dela.
Falei? Devo ter falado para o Carlos. Mas eu não o encontrei
desde... Desde... Desde semana retrasada quando eu e
Linda fizemos o Pitch na sala de reuniões. Ele disse que
iríamos correr riscos desnecessários. Ele disse para todos
na sala que não valia a pena e que estávamos perdendo
tempo. Mas arriscado por quê?
Minha memória parece um quebra-cabeça filha da
puta.
“Deve ter sido a bebida”. – Penso em meu íntimo.
Fazia muito tempo que eu não bebia uma boa garrafa de-
- Lugar bonito. – Ele aponta para uma pilastra de
arquitetura dórica que passamos perto.
- Sim. – Concordo enfiando minha mão no bolso e
tateando o vaper. A superfície de plástico está sempre
93
quente. Meus dedos parecem emporcalhá-lo com gordura.
Me sinto pegando em algo que passei muito doce de leite.
Tudo faria sentido se eu achasse a peça que falta.
Tiro meu celular do bolso e os hologramas de pop-ups
saltam perto da minha cara. Fecho a todos anotando que
amanhã eu deveria ir ver meu apartamento. Carlos segue na
minha frente atrás do esquisitão de cabelos encaracolados
tão loiros que chegam a ficar brancos. Não queria deixá-lo
olhar para o que eu estava fazendo. Ele anda enquanto
assobia a marcha fúnebre. O piso é de plástico com alguma
coisa que não deixa meu sapato derrapar.
Chegamos a uma pequena Capela. No palco, onde
algum padre deveria dar bons sermões a seus fiéis, ela está
dentro do caixão. Subo as escadas com carpete bordô. Ela
está como a tinha visto dormindo uma vez. A única diferença
são os braços cruzados e a roupa preta. Ela está com uma
camisa social, calças sociais e saltos. Tudo que usa é preto,
exceto o grampo de cabelo que é alaranjado. Me lembro do
robô da banca e imagino que ela já devia ter visto ele fazer
aquilo. Ela adorava ver as coisas quebradas.
Principalmente robôs.
Rezamos um pai nosso enquanto o caixão, em cima
de um suporte com rodinhas, é empurrado pelo homem de
branco. Seguimos por uma rampa até uma porta dupla. Ele
94
nos dá máscaras de oxigênio. Colocamos sobre a face e
prendemos cum um imã atrás da cabeça. Voltamos a
empurrar ouvindo respirações que seriam normais para o
Darth Vader. Minha máscara aperta alguma cosia na minha
cara que parece me impedir de chorar. Mas também não
acho que conseguiria aqui. Empurramos ela até uma
passarela. Piso em algo e ouço o barulho de um gatilho que
dispara uma arma sem balas. Me lembro finalmente.
Ela me deu uma arma! – Era isso. Tinha que ser.
Depois da matéria com as feministas ela ficou paranoica e
queria me dar uma arma. Eu fiquei negando até que ela
deixou na minha casa. Mandei para ela por correio e quando
ela veio tirar satisfações nós brigamos feio e ela foi embora.
- Era isso! Sim! Sim! – Não falei da arma para
ninguém, e muito menos ela, eu imagino. Mas não lembro
de nenhuma arma no apartamento dela. Ela deve ter
mandado no meu apartamento de novo. Penso em mudar
minha visita para hoje, mas já tinha faltado no trabalho
ontem. – O que eu fiquei fazendo? - A resposta é simples e
cai como jaca: Cuidando do apê dela, é claro. Mas eu me
lembro de noite. - E durante o dia?
Minha face se contorce em uma expressão de raiva
angustiante, mas ninguém consegue ver a minhas
expressões. O caixão dela chega ao topo de uma rampa que
95
termina no ácido. Colocamos as rodinhas nos trilhos. Penso
em botar o vaper, mas quando coloco minha mão no bolso
os trilhos já estão em movimento e ela já se foi. Um trilho
leva o caixão para um tanque de ácido a céu aberto. Ela
mergulha em toneladas de um líquido que borbulha ainda
mais com sua entrada, como antiácido na água. Assistimos
sua face imóvel mergulhar. Sinto uma dor no peito. Ouço o
barulho semelhante ao de um mosquito. O Sol brilha
intensamente. Faço um boné com meus dedos e consigo
enxergá-lo descendo com suas quatro hélices. O que surge
do nada é um drone lilás que me traz uma caixinha.
- Valeu. – Falo sabendo que a máscara abafou o som
por completo. De cima a visão do que estamos fazendo
deveria ser absurda. Pego a caixinha e guardo no meu
bolso, do lado do vaper. Quando saímos ainda me sinto
observando-a mergulhar. Tomo a pílula que meu relógio por
baixo da capa de plástico aponta como Plaxil.
- Vou sentir falta dela. – Meu chefe confessa
baixando os ombros. – Os textos dela eram perfeitos.
- Eu também vou... Quem eu vou fotografar agora? –
Ele ri em resposta. Mas com um jeito contido, sem olhar
para minha cara.
Todas as vezes que me dirige o olhar eu sei que ele
desvia para o chão ou atrás de mim. Não sei o que me dá na
96
cabeça, mas tiro a caixinha da pílula e ele começa a olhar
para ela.
- Eu não sei se posso trabalhar nessa semana.
Ele não parece alarmado. Ele me abraça com um
braço pegando no meu nervo de novo. - Eu já disse que
odeio isso? Como posso ter ficado quieto por todos esses
anos?
- Tudo bem... Só acho que devíamos pegar uma
certidão de óbito dela para protocolar com o RH. – Nós
damos um passo e ele fala. – Eu até tava pensando em tirar
uns dias também.
Vamos até um balcãozinho. O modelo do robô é o
mesmo da banca. Só que ela tem um buraco do tamanho de
um sulfite no suposto peito.
- Eu gostaria de duas impressões da certidão de
óbito.
Ela imprime. Olho o nome dela, idade que ela fez
questão de mentir desde que a conheci. Ela tinha sessenta.
Dez anos a mais de mistério. Não há nome de pai, nem
mãe. Ela nasceu em Iguape, uma cidade do interior. Não há
nomes de pai, nem mãe, mas um responsável que me deixa
embasbacado.
- Guilherme Rodeio?
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Carlos assente com uma expressão enorme de
pesar. O pai adotivo dela tinha sido um sucesso de
programas infantis para o Youtube. Infelizmente algumas
histórias de assédio o levaram para prisão domiciliar, e
depois, o esquecimento popular. A última notícia sobre ele
era que iria velejar até Atlântida. No seu último dia aqui no
Brasil toda a imprensa foi. Linda recusou e pediu que eu
fosse sozinho para cobrir e tirar umas fotos. No dia seguinte
ela pediu a estagiária para entrar em contato com algumas
pessoas que estavam lá, nossos concorrentes, e fizesse
algumas perguntas. Com uma folha de frente e verso com
informações ela entregou para mim e pediu para que eu
escrevesse uma matéria sem contar para ninguém. Penso
que ela nunca tenha dito nada para não se sentir
constrangida.
Nem todos os pais deixam as melhores das
heranças.
A folha segue para o tipo sanguíneo A positivo,
naturalidade brasileira, e etc. Se eu colocasse um recorte da
sua biografia eu teria toda a sua vida resumida em dois
pedaços de papel, ela me diria. A causa principal da morte
foi uma parada cardíaca. Eu sempre dizia que ela se
estressava em demasia. Só que tem algo a mais nas três
linhas de observação. Há um número de 6,5 mls referente
98
ao XOXO-9099 no sistema dela. O ruído volta ao meu
ouvido e um refluxo quase alcança minha boca antes de
perguntar.
-O que é isso? – Sinto meu estômago pular de um
lado para o outro. Isso quer dizer que o antiácido perdeu o
efeito e meu sistema volta a se rebelar.
-Isso seria algo que foi encontrado durante a autópsia
policial. O nível altíssimo da substância pode ser tóxico para
algumas pessoas. A parada cardíaca poderia ter decorrido a
partir disso. – A superfície do balcão desce dentro do chão,
e quando volta um computador com mouse e teclado surge
em cima. A Unidade deixa a tela de lado para que eu
também possa ver. Ela aponta a causa secundária dada
como envenenamento no outro lado da certidão.
- Mas casos como esse não acontece uma autópsia
mais aprofundada? – Minhas mãos começam a tremer e
meu pulmão parece começar a não funcionar tão bem. Uma
flecha parece passar reto pelo meu coração, deixando a
sensação de que ele está batendo com mais força para
sanar a hemorragia. Passo a ouvir meu tímpano pulsar junto
do ruído.
- Aconteceram... – o robô confessa teclando em sua
máquina. -... Mas temo que só o Plano de Saúde possa ter
as informações que o senhor deseja.
99
Meu chefe tenta me puxar pelo braço. Ele aperta meu
nervo com mais força que o normal. Afasto sua mão para o
lado sentindo que as paredes de espelhos estão se
fechando a nossa volta.
- Entendo. – Me virando para ele e acenando com a
cabeça. Tento fingir que está tudo bem. Preciso sair dali.
Olho para Carlos e ele parece pior do que eu.
Ele está sua face mais pálida que o normal. Ele está
suando as bicas e ajeitando os óculos que escorrega pelo
nariz vermelho. Percebo seu gogó subindo e descendo
como um elevador com mal funcionamento em um prédio de
um andar. Em frente disso penso em falar com ele até que a
ideia surge na minha cabeça. O robô quase volta a se
desligar quando volto minha atenção para ele.
- Isso não tinha que ser investigado?
Uma espécie de velocidade maior que meus olhos
conseguem acompanhar toma conta dos dedos sobre o
teclado.
- Aqui. – Seus dedos param de súbito e o indicador
da mão direita aponta para uma linha de código de trinta
números e letras. Um código de investigação no site da
delegacia. A investigação se mostra fechada sem parecer.
Respiro fundo.
- Entendi... Muito obrigado. – Saio dali no ato.
100
Meu coração acelera ainda mais, acompanhando o
ritmo de meus pensamentos desconexos como os passos
do homem-robô de terno branco acompanharam o som da
harpa. Olho para cima e a imagem falsa do céu não me faz
sentir menos claustrofóbico. Fecho os olhos e tento imaginá-
la.
Ela sorrindo.
Ela rindo.
Ela morta.
Envenenada.
As lágrimas escapam de meus olhos contra minha
vontade. Ouço os passos dele e volto a abri-los para apontar
o dedo em sua cara escrota.
- Você sabia! – Eu berro. – Você dessa porra!
Meu chefe chega e vem com sua mão para tentar me
reconfortar. Eu não quero isso. Em um movimento passo
seu braço para trás de suas costas. Seguro ele ameaçando
quebrar um dedo. Ele já me viu fazer isso em uma noite que
terraplanistas tentaram nos assaltar. Ele está desesperado,
mas não me ataca de volta. Eu largo. Ele se vira.
- Desculpa, desculpa, desculpa. Eu imaginava... Mas
eu não podia fazer nada... Não depois que você...
Ele não termina a frase. Eu vou até ele e ergo-o cinco
centímetros pelo colarinho da camisa.
101
- Eu o que? – Mas a realidade alcança um tom rubro
quando percebo que uma força imensa surge.
Consigo segurar seu colarinho acima de minha
cabeça com uma das mãos. Sinto pontadas na minha
cabeça e tudo fica em rubro. Ergo um punho para soca-lo,
contudo, violência não é meu forte. Não deveria ser. Abaixo
a mão e largo ele. Ele anda de costas meio tonto, quase
caindo de costas. Eu respiro fundo antes de um colapso.
Fecho meus olhos com força e quando abro de volta tudo
está bem normal.
- Me demito.
- Mas você não tem como! Você tá sem-
Eu não consigo ouvir o que ele me diz. Minha raiva
entorpece minha audição.
- Foda-se. – Falo indo embora sem conseguir encará-
lo. Mostro aquele dedo e quando paro recolho minha mão
para junto do vaper e a caixinha. Sigo pelo outro lado que
sei para onde ele vai seguir.
Ele fica me olhando ali parado com o papel na mão.
Todas as ruas estão vazias quando a chuva de ácido
começa a cair pelos buracos do toldo. Algumas gotas me
acertam na capa. Eu não olho para trás.
Só vou embora até o meu apê.
102
Chego em meu apartamento. Como esperado eu não
tinha nenhuma lembrança dele. Não estava alugado por
ninguém. E se estivesse o mesmo não tinha deixado nem
um fio de cabelo para trás. Dezenas de papéis estão em
cima da mesa. Seis deles são outras certidões de óbito com
XOXO-9099 como causa secundária da morte. Algumas
fotos 3x4 das vítimas. Não era surpresa que algumas folhas
estivessem escritas. Eram folhas destacadas de cadernos
antigos. A escrita tinha uma caligrafia linda com um formato
meio oval. A letra dela fazia tópicos de nomes que não me
recordo. Uma delas era de funcionários, e presos por um
clipe, estavam as transcrições das entrevistas. Eram
funcionários da Hermeticus. Tinham que ser. O quebra
cabeça parece ter seus cantos definidos e tomando forma.
Nós tínhamos achado algo grande e estávamos
trabalhando juntos.
Peguei tudo e botei em uma maleta de exterior de
alumínio. Aproveitei para pegar uma escova de dente. Vou a
pé até seu apartamento há seis quadras do meu. Quando
entro sinto um cheiro entorpecedor de limpeza. Todas as
janelas estão fechadas. Respiro fundo sem conseguir
discernir o que seja, mas gosto muito. Deixo a maleta no
sofá e vou ver como está o quarto. O carpete parece novo,
sem nenhuma disparidade com o chão em volta. Vou até a
103
geladeira e abro uma garrafa pet de 600 mililitros de cerveja
preta antes de começar. Coloco todos os documentos.
Muitos tem data. Leio a todos, do mais judiado, até o mais
preservado.
Uma folha com marcas de copo de café traçava um
plano de infiltração por um andaime. Eu substituiria o
zelador daquele dia ligando para ele e fingindo ser da
empresa terceirizada a dar uma milagrosa folga.
- Você vai levar a arma? – Uma voz do meu lado
esquerdo me fala. Olho para o lado, só que não tem
ninguém ali. Era a voz dela. A causa de nossa briga. Lembro
que a arma não estava na minha casa. E ela não tá aqui.
Não penso muito nisso. Fico lendo a como entrar no
prédio. Entrevistamos algumas pessoas que afirmaram uma
espécie de acordo do Hermeticus com a Polícia. – “Como
acontece o envenenamento?” – Minha letra aparece
estampado em uma folha em branco. Algo que queríamos
descobrir. Então fico em cima daquilo e leio a tudo até ter
certeza de que eu conseguiria entrar no prédio, hackear-
- Eu sou-
- Não! – Respondo a beira da minha sanidade.
- Unidade 00100100 da Kprncs! Eu hackeei-
Mas ela não para...
- de Comércio para pedir-
104
... Não até...
- não vá até-
... Acabar.
- Bebo toda a garrafa e vou até a geladeira pegar
outra. Deito no sofá para ler um pouquinho mais confortável.
As falas de Linda e da Unidade ficam na minha cabeça, e
quando desisto de tentar ler durmo tão rápido quanto um
desmaio.
Sonho com Linda ao meu lado em uma cama.
Estamos dentro de um leito. Ela coloca as mãos na face e
chora. O Ruivo aparece e coloca a mão no ombro dela. O
Ruivo.
Eu acordo novamente.
- Passa rotina dela. – Eu digo e a TV obedece. Vejo
ela pegando uma tigela, despejando leite e misturando com
cereal. Ela mastiga devagar para acompanhar algo que lê no
telefone. Isso foi há quatro dias.
Depois disso bebo vodca até dormir de volta na
mesma posição. Quando acordo já é de madrugada. Linda
está sentada no mesmo sofá fumando um vaper com as
janelas fechadas. A campainha toca. Me sento na ponta do
sofá.
- Pause. – Ordeno. Vou até a porta e peço para abrir
quando as opções aparecem. O corredor está escuro, e nem
105
o sensor me reconhece. Fico esperando alguma coisa
surgir. Fecho a porta meio decepcionado e olho para a
caixinha com a pílula que não tomei. Eu a abro.
Uma fumaça espeça é liberada da caixa. Ela atinge
minha cara me cegando parcialmente. O cheiro é mais forte
que de limpeza. Como se eu tivesse comido areia e
colocado um maçarico na máxima potência para tornar em
vidro na minha garganta. Eu não consigo respirar e minhas
decisões são desesperadas. Viro para onde minhas costas
estavam e sigo até o quarto. Consigo ver as formas das
coisas, mas tudo fica subjugado em tons de preto e cinza.
Alcanço o quarto e dou um soco na janela que se
desmancha. O vento frio acerta minha face, entrando pelo
meu nariz e, de alguma forma, liberando minha glote. Eu
sopro fumaça, como se tivesse fumado. Meu coração está
acelerado. Tudo fica rubro por um minuto ou dois enquanto
respiro.
Abro as janelas da sala para o cheiro vazar. Volto a
TV e a imagem se mantém pausada. A campainha toca de
volta e ela se levanta no vídeo. Eu me confundi, claro. Ela
abre e um drone entrega uma caixinha que ela deixa em
cima da mesinha da sala. Ela vai se trocar e quando sai
esquece de tomar o remédio. O vídeo pula para quando ela
está de volta. Ela entra, se senta jogando a bolsa do lado e
106
tira o vaper da bolsa. Fuma olhando para o teto. Ela vai
colocar os pés descalços em cima da mesinha de frente
para o sofá quando percebe algo no caminho. Ela aproxima
a face, e quando uma fumaça acerta sua cara em cheio. Ela
cai para trás, se debatendo e tossindo. Ela tenta levantar,
mas cai no chão com um braço estendido em direção a
janela do quarto.
- Casa... Casa?
- No que posso ajudar?
- Você consegue ver o nível de XOXO-9099 na
fumaça da pílula?
-Ambas estão no nível de 7 de toxicidade.
- Poderia colocar uma cópia do último dia de vida da
Linda e da toxicidade do XOXO-9099, num usb?
- Claro. Pedirei um usb para amanhã e armazenarei
quando chegar.
Eu vou até o quarto me sentido mais sóbrio do que
queria.
Logo deito, logo durmo.
No dia seguinte acordo sentindo que um sapo passou
a se alojar na minha garganta. Uma caixinha espera do meu
lado da cama. O relógio me fala que é fluoxetina. Pego a
caixinha e jogo para o lado de fora da janela, na calçada.
Volto a dormir. Sei que passei os próximos cinco minutos me
107
debatendo na cama. Estou sentado sentindo algo de
estranho e duro no meu peito quando alguém toca a
campainha. Me levanto com a roupa que usei ontem. Mais
surrada. Mais amassada. Dois homens com ternos pretos
me esperam do lado de fora.
- Bom dia senhores. – Abro a porta.
- Bom dia. – O da direita responde. – Coletamos isso
que foi jogado da sua janela. Viemos lembrar que jogar lixo
pela janela é crime passível de multa.
- Claro... Claro... Mil perdões. – Eu pego a caixa com
um cuidado imenso, não resvalando nem perto do topo que
abre em um sistema de pistão.
Os olhos deles tinham pupilas octogonais que
ficavam abrindo e fechando. Olhos sintéticos. Quando vão
embora fico pensando naquilo. Tomo meu café que já
estava pronto na cafeteira ao lado de um USB novo.
- Obrigado... Casa.
- A seu dispor senhor. – Ela reforça com uma voz
feminina seguida de uma risada que parecia tirada de um
desenho japonês.
Com o USB em mãos vou até a delegacia.
Entro e subo as mesmas escadas que já tinha subido
com Linda há um tempo. Tudo aqui tem cheiro de produto
de limpeza. Produtos melhores que a companhia de limpeza
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que limpa o prédio que tô ficando. Algumas Unidades
Policiais passam por mim. Eles usam o uniforme apesar de
serem robôs. Entram em viaturas estacionadas do lado de
fora. Nem mesmo um século de desenvolvimento
tecnológico desenfreado foi capaz de dizimar a
criminalidade. De fato, até alguns grupos nasceram e
tomaram proporções monstruosas, como as feministas e o
movimento terra plana. Grupos que tentavam uma
abordagem pacífica passaram a pegar em armas e entrarem
em conflitos armados, fossem com intolerantes, a polícia, ou
civis. O saguão não é nem um quarto do saguão da capela.
– “Um tipo diferente de skinhead”. – Linda apontou em uma
matéria.
- Bom dia. – Uma Unidade Policial me cumprimenta
ao passar por mim.
- Bom dia. - Respondo como sempre.
Sigo até a mesa da secretária. Ela tem quatro faces,
oito braços e um número incontável de monitores a sua
volta. Uma delas não tem monitores, e deixa as mãos a vista
em cima da mesa quando me atende. Ela tem o formato das
mesmas mãos monstruosas do robô da banca. Sei que
embaixo da mesa há uma arma grudada por imã caso eu
tente qualquer gracinha. As balas de uma arma que ela
usaria poderia atravessar meu peito duro com facilidade.
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- Preciso ver o Delegado. O Ruivo. - Penso que se
chamá-lo pelo apelido. Imagino que ela vai entender nossa
intimidade.
- Me desculpe... Mas o único Delegado da cidade se
chama Vitor Cremilhão. – Ela responde.
Como os animais, alguns robôs simplesmente não
entendem os nuances da linguagem.
- Sim, sim. Este é o apelido dele. – Explico.
Ela digita algumas coisas no computador enquanto
eu aguardo ali de pé. Os Agentes que bateram na minha
porta passam por mim e seguem para um corredor à
esquerda. Há outro corredor à direita. No meio dos dois há
uma porta entreaberta. Posso ver um olho minúsculo me
observando. Um olho verde embaixo de um topete ruivo-
avermelhado.
- Vou ao banheiro.
- Primeira porta no corredor a esquerda. – Uma das
várias mãos aponta. Eu vou até a porta onde o olho me
observa. Ele prevê meus movimentos. Fecha a porta. Ele
pensa que seu corpo não é barricada o suficiente, e decide
trancá-la. Eu abro a porta antes disso. Estou bufando como
um touro. Ele estava de frente, e com a minha entrada
triunfal ele cai de bunda no chão. Sei o que ele está
pensando.
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- Quem é você? – Ele me olha com um medo
tremendo.
Devo parecer tão embasbacado quanto ele ao me
fazer essa pergunta. Minha raiva diminui abrindo espaço
para várias dúvidas. Ergo uma sobrancelha tentando pegar
seu blefe. Ele não parece, mas ninguém nunca parece.
- Senhor, me desculpe! – A Unidade fala com ele por
um telefone no viva voz. – Quer que eu chame algumas
Unidades de Controle para-
Eu ergo os braços na altura da cintura. Nada mais faz
sentido.
- Ela só pode tá de brincadeira... Ela eu entendo, na
verdade. Mas achei que fosse meu amigo! – Eu urro. Ele
olha para mim franzindo o cenho.
- Borges?
- Isso. – Concordo fechando a porta atrás de mim.
- Senhor, quer que eu- - A Unidade volta a perguntar
no telefone. Atrás do bocal conseguimos ouvir ela teclando.
- Não será necessário. – Ela para de teclar. O Ruivo
fala tirando o telefone do gancho e colocando de volta. Não
ouvimos mais dela. – Eu nem imaginava... Por favor, sente-
se.
- Claro.
111
Ele tem uma velha mesa de madeira. Ele fica ali, na
cadeira giratória me encarando. Eu fico com meus punhos
no casaco, bagunçando com o vaper.
- Quando disseram que você ia ficar diferente, meu
amigo, tenho que te dizer... Jamais imaginaria que ficaria tão
diferente. Deve ter sido uma queda feia. – Ele dá uma risada
ofegante enquanto passa um lenço de papel na testa suada.
- Diferente como? – Pergunto batendo os punhos
fechados na mesa. Sem querer tiro o vaper junto e ele cai na
mesa quicando três vezes até parar. O delegado ri. Ele tira
um igual do bolso.
- Crônicas Universais... Filme do ano. – Ele comenta.
Não entendo o que ele quer dizer. Ele coloca meu vaper do
lado do dele – Parece até a garagem da URBS espacial. – O
ônibus espacial dele tem a mesma data de validade que o
meu. X11X5 é o número de identificação dele.
- Diferente? Queda? – Ignoro por respeito.
- Depois da queda... Sabe? – Ele olha para mim
como se eu fosse louco de não saber o que ele está falando.
- Queda? – Pergunto novamente, começando a
perder a paciência.
- Eles te apagaram? – Ele me olha mais de perto.
Liga o monitor e pesquisa. Ele abre uma página da Folha
onde ele está vestindo um uniforme de zelador. Para sua
112
surpresa está um andaime com duas cordas arrebentadas.
Ele segura até cair. Ele cai no chão com o rosto para baixo.
– Foi anteontem.
As fotos amadoras são mais aproximadas. Numa
delas estou virado para cima. Meu nariz foi enterrado no
meu rosto. Meus olhos estão vazando pelo lado e o maxilar
está mais torto que a torre de pizza.
Eu quase caio para trás. Sim, era eu. Agora me
lembro. O plano ia ser executado na terça. É quase
inacreditável que eu esteja vivo. Fiquei cinquenta segundos
até que alguns médicos da clínica trazem uma maca e me
levam para dentro. Eu toco o meu rosto e então tudo faz
sentido. O rosto que vi no espelho da primeira vez era uma
alucinação dissociativa. Eu sempre deixo minha barba por
fazer, e esses rostos não tem barba artificial. Isso também
explica minhas mudanças de personalidade. O por quê não
gostava mais daquele negócio do Carlos, se bem que acho
que ninguém gosta mesmo.
O Ruivo da um bom trago no vaper. Mesmo em
choque alcanço o USB para ele.
- Você sabe que não posso aceitar.
- Não é propina. É informação. Das boas.
Ele assiste ao assassinato da minha amiga
impassível de qualquer reação.
113
- Eu acho que a fumaça pode matar. O que gostaria
de saber é se a Hermeticus tem acesso a essas informações
e mesmo assim deixa pílulas vencidas matarem por aí.
- Você me pediu a ajuda, e a resposta é a mesma. –
Ele fala com os braços cruzados.
- Você sabe que eu não lembro. – Tento explicar
gesticulando com a mão esquerda em um movimento de
remada.
– Não podemos ajudar investigações que estão
contra a ordem vigente dos nossos principais
patrocinadores.
Abro a boca, e fecho. Não sei o que dizer. A
decepção é grande demais.
- Entendi.
- Mas você pode tentar de novo, se tiver disposto. Sei
que da primeira vez... – Ele tosse. -... Quebrou a cara, mas...
– E ele começa a rir que nem um leitão sem parar.
Não acho má ideia. Dou de ombros. Pego o vaper e
olho o adesivo digital. X10X5, Val. 12/14/55” escrito em azul.
É o meu. Me levanto para ir embora e ele vem até mim. Me
fala que peguei o vaper errado. Eu peguei mesmo. Dou para
ele o X11X5 e ele me devolve o X10X5. Não me lembro de
como me despedi depois disso. Devo ter simplesmente
apertado sua mão. O que sei é que a Polícia não pode fazer
114
nada por ninguém nesse assunto. Eu sei que quando saí um
drone esperava do lado de fora. Ele entrou na sala e deixou
uma pílula de cimegripe e foi embora. O delegado estava
com as janelas fechadas, e quando abriram as portas uma
fumaça saiu antes de encontrarem seu corpo com o braço
esticado na direção da janela.
No dia seguinte Borges ligou para alguém que nunca
tinha ouvido a voz dele.
Ele ofereceu uma grana que a pessoa do outro lado
da linha não conseguiria recusar.
Foi mais fácil do que ele imaginava.
0100
O plano teve uma execução bem simples. O uniforme
era do meu tamanho, um pouco apertado na barriga. Era o
uniforme cinza da empresa terceirizada. Não havia câmeras
internas ou externas. O monitoramento acontece da
perspectiva das Unidades Robóticas dentro do prédio da
empresa. Eu limparia as janelas de uma linha de corredores
com o andaime. Na próxima fileira, no meio exato dela, eu
sei que tem um depósito para vassouras, rodos, e produtos
de limpeza. Tem um computador nessa salinha. Com ele as
Unidades reportam a falta de materiais. Para minha sorte, a
Hermeticus tem um sistema de computação integrado. Eu
colocaria um USB com um vírus que não só libera todas as
115
senhas, mas consegue passar uma simulação de que o
computador não está sendo usado. Se uma Unidade me
encontrar eu simplesmente falarei que precisei de algo e
alguém me trouxe ali.
O prédio tinha oito andares. Ele tem um formato de
uma lata de atum, logo o andaime tem que ser feito em um
formato curvado. As barras de proteção estão em todos os
lados. Eu coloco um boné para esconder meu rosto. Esse
lugar já tinha sido um enorme parque. O prédio fica no meio
de metros de grama, terra e árvores. A sujeira é natural.
Entro no andaime com as pernas um pouco bambas. Não
sou muito fã de alturas. No caminho fui abordado por um
fiscal que me fez perguntas sobre o robô da banca. Eu disse
que não compreendia o que ele me disse. O fiscal me
garantiu que ele seria substituído no Domingo.
Algumas feministas fazem fogo sobre uma pilha de
lixo há alguns metros do prédio. Elas ficam cantando e
dançando embaixo enquanto eu limpo a primeira fileira.
Limpo dos andares mais altos até os mais baixos. Olho para
baixo, quase trinta metros acima, e elas parecem formigas
andando em círculos. Aqui em cima o ar é mais rarefeito.
Tenho dificuldade em respirar e sinto minha pressão
sanguínea baixando. Faço até o quarto andar. Quando olho
para baixo não vejo elas em seu acampamento. Elas
116
simplesmente pegaram suas coisas e foram para outro
parque. O comportamento nômade é muito imprevisível pra
mim.
Nessa hora eu me agacho em cima do baldinho do
rodinho. Coloco um adesivo enrolado, e quando passo na
janela ela parece ter uma grande mancha preta. Eu bato na
janela. Ninguém abre. Sei que abrem para fora, e da última
vez, por não colocar o andaime de frente, a janela abriu em
uma das cordas e cortou duas fileiras de um lado. Depois eu
fiquei pendurado até cair e macetar a cara no chão. Enfim,
abro a janela de frente pra mim, e me abaixo. Coloco meus
pés sobre as grades de proteção do andaime, e depois é só
um pequeno degrau para entrar pela janela de vidro fosco.
O computador parece estar me esperando.
Eu sento na cadeira para mexer nele.
Ou um barulho em minhas costas, e quando volto a
minha atenção para trás as feministas estão me encarando.
A mais próxima delas está com um taco de metal e tem uma
tatuagem na testa careca. Era a tatuagem que Linda tinha
no braço. Ela da um giro com um taco e acerta minha
têmpora.
Eu não sei o que acontece depois.
Acordo novamente depois de um pesadelo que
infelizmente se tornou realidade. Estou pendurado como
117
carne de boi depois do abate. Meus pulsos e tornozelos são
enforcados por cintas. Tento olhar para cima vejo o chão
cheio de cacos de vidro, insetos mortos e embalagens de
comida. A luz não é natural. Todas as lâmpadas são
vermelhas e a sombra parece tinta de caneta. Uma delas
surge de um umbral sem porta. Ela leva o taco apoiado no
ombro. Sua cabeça é raspada e tem a tatuagem do
Frankenstein em volta da cabeça. Ela usa faixas nas mãos,
nos seios, pélvis e pés. Pisa nos cacos de vidro, mas não
parece doer.
- Qual o seu nome?
Eu tento falar. O som é tapado por algo em minha
boca. Ela vem até mim e afrouxa a cinta em volta da minha
boca, deixando-a cair. Eu vejo um rato que mija na cinta e
por motivos óbvios, e com o estômago fraco, começo a
vomitar. Pedaços de comida entram em meu nariz, e fecho
meus olhos deixando que as pálpebras sofram com isso. Ela
contorce a cara em um nojo. Sua boa é pequena e o nariz
fino. Não sei a cor de seus olhos. Tudo é vermelho aqui.
- Bor-ges – Eu digo me sentindo caindo em uma
espiral. O sangue está em minha cabeça.
- O que você queria lá? – Outra delas entra e se
apoia na parede ao lado do umbral.
118
Olhando mais de perto, com as carecas, faixas, e
falta de tato, mesmo que entrem quatro ou cinco, e a
iluminação não é das melhores, não consigo ver a diferença.
Todas tem o mesmo nariz, as mesmas bocas, o mesmo
formato do corpo. A única coisa que difere uma da outra é o
lugar da tatuagem. A que entrou tem a tatuagem no braço.
Elas parecem, e muito, com a Yusuki Mitai.
- Linda O’hare... Ela era... Minha amiga... – Não
consigo falar bem sem perder o fôlego. – Ela morreu...
Fumaça... Na pílula...
Ela leva o taco e encosta do lado da minha cabeça.
Em um movimento de arco volta o braço. Consigo imaginar
o impacto, mas a dor será dilacerante. Ela segura o taco
acima da cabeça. A feminista atrás dela tem uma faca. Ela
da um passo e a faca sutilemente abre o caminho na carne
alheia. Não há sangue. Ela derruba o taco ao seu lado. A
feminista atrás dela gira a faca. A feminista furada murcha
que nem um balão no chão.
A falta de sentido é pior que a tacada. Ela vem até
mim e sinto ela libertando meus pés. Me estatelo no chão
desmaiando em seguida.
Acordo me afogando. Elas tiram o pano da minha
cara. Uma delas tinha a tatuagem no dedo e segurava um
galão de gasolina. A outra tinha a mesma tatuagem no
119
braço. Ao menos minha cara tá esterilizada. Eu tento olhar
para elas, mas minha visão está turva. A iluminação desse
cômodo se concentra em nós, tornando minha noção de
espaço bem indefinida. Parece que acima de mim há uma
enorme lâmpada de leitura. Estou deitado em uma maca e
uma delas liga algo com um barulho bem alto, mas que eu
me lembro de já ter ouvido.
Ela posiciona acima do meu mamilo esquerdo e liga.
Quando consigo enxergar melhor vejo que é uma furadeira.
Não sinto dor. Nem incômodo. Não há sangue saindo de
meu corpo, mas algo com cheiro de café estragado.
- Ele sabe? – Tatuagem no Dedo pergunta.
- Eu acho que não. – Tatuagem no braço responde. –
Deve achar que está sonhando.
Elas não percebem meu despertar. Mesmo assim
passo batido quando volto a dormir.
Devo ter dormido por horas, pois quando acordo
posso ouvir o claro barulho de vidro se partindo. Os tiros me
deixam desesperado. Tento me mexer, mas não consigo
abrir meus olhos. Alguém tira uma espécie de tira de tecido
que estava sobre meus olhos. Quando volto a enxergar seu
que meu pescoço está sobre uma mesa. Mas não há corpo
entre isso, só madeira velha. Eu começo a gritar. Sei que
não é um sonho, por mais que isso pareça muito como um.
120
Quero voltar a dormir, mas não consigo.
Uma Unidade se aproxima com uma lâmina e crava
na minha cicatriz.
Depois disso tudo é breu e silêncio.
Devo ter voltado a perceber o que está acontecendo
dias depois. Estava em uma cama de hospital, de novo. Mas
era uma cama em um leito normal. Procuro meus braços,
mas tudo parece entorpecido. Pego minha mão e toco meu
rosto. Consigo sentir minha barba por fazer. Um cara
simplesmente está ali sentado e dormindo de braços
cruzados. Não lembro dele. Ele usa uma capa de plástico
por cima de uma camiseta preta e calças jeans amarelas.
Sua bota marrom está cheia de graxa e pó.
Ele dá um pulo e acorda. Olha para os dois lados e
então olha pra mim.
- Bom dia.
- Bom dia. – Respondo. – Onde que eu tô?
- Hermeticus. – Ele responde limpando os dentes
com a língua.
Eu aceno com a cabeça. Olho para a janela e a
imagem do céu se mantém inabalável. Ele abre o telefone. A
profusão de hologramas e sons diversos dos pop ups não
passa despercebido.
121
- Olha só esse louco – Ele aponta para a matéria
onde o Presidente é visto andando pelas ruas de São Paulo
com boné e óculos escuros.
Era uma fantasia. Em uma foto de lado dava até para
ver a separação da máscara com a face atrás da orelha.
Esse Presidente já tinha morrido há algumas décadas, não
tinha como alguém realmente acreditar nisso.
– Ele realmente achou que ia passar despercebido? –
Ele ri. Deve ter acreditado. Aquela matéria foi publicada pelo
jornal que eu trabalhava.
Eu movo minha cara para os dois lados tentando ser
desvinculado de um transe.
- Eu não entendo. Me desculpe, mas quem é você? –
Pergunto tentando não parecer rude.
- Meu nome é Mathias. – Ele fala voltando a olhar
para o celular. Devo ter ficado um minuto encarando sua
cara feia até ele se tocar. - Eu vim agradecer por não desistir
de investigar o assassinato da minha esposa.
- Mas eu não resolvi nada.
- Bom, de certa forma, resolveu.
- Como? – Eu me sento na cama me sentindo na
ponta de uma cadeira.
- Deixa que eu explico. – Ele se virou para a direção
da minha cama e cruzou as pernas. - O delegado morreu
122
depois de conversar com você, e quando foram te procurar
na casa da sua amiga, a pedido do seu chefe, acharam
todos os documentos ligando as mortes por
envenenamento. A Hermeticus será investigada, talvez até
acabem voltando com os hospitais depois de encontrarem
um mendigo morto na frente do seu prédio. A Hermeticus
prometeu fornecer o possível para aqueles que não
pudessem pagar, e aquilo foi negligência. – Ele explica
parando um pouco para respirar. – Naquele acidente há
alguns dias, um dispositivo capturou uma ideia da sua
consciência, e você foi colocado em um clone com partes
robóticas. Você estava abusando da bebida, e tal. Acho que
deve ter ficado com muito enjoo, já que você ficava
adicionando coisas o tempo todo no estômago novo e
sensível.
- Eu tomei um antiácido e foi muito bom. – Confesso.
Lembro do mendigo gritando, mas não sinto enjoo.
- Bom. Aí usaram o relógio que você tinha da
empresa. Ele foi usado como rastreador para te encontrar
em um galpão. Estavam fazendo uma autópsia do seu corpo
quando entraram lá. No fim, uma fábrica tinha pegado fogo,
e quem tinha botado fogo foram as clones da Yusuki Mitai,
acho que é esse o nome. Eles tentaram clonar a consciência
123
dela, e a única parte que ficou mesmo foi a tendência
feminista dela.
- Minha amiga tinha se infiltrado nas feministas por
um tempo.
- Linda O’Hare, vocês deviam ser bem amigos. – Ele
fala esperando uma resposta.
- A gente? – Pergunto não tão certo. – Acho que a
gente era sim.
Cruzo meus braços.
- Bom te encontraram e conseguiram achar quase
todas as clones desaparecidas. Acho que uma delas não foi
encontrada, e outra simplesmente foi morta. Só Deus sabe o
que deu na cabeça de uma delas. Enfim, acho que os
investigadores trarão ainda hoje o resultado da pesquisa
sobre o envenenamento pelas pílulas.
- Ta bom.
Mathias estava de pé olhando para o céu. Ele ficou o
dia todo jogando xadrez comigo ontem. Foi bom para passar
o tempo enquanto esperávamos o resultado. Quando não
havia mais chances dos policiais aparecerem, ele se
levantou para ir embora.
- Antes d’eu ir embora, um cara de óculos escuro
pediu para eu te dar isso em honra ao delegado e tal. Ele
124
disse que o cara te tinha em alta conta. – Ele dá um sorriso
nostálgico. – Minha esposa tinha um igual.
Ele deixa um pequeno ônibus espacial sobre a mesa
ao lado da minha cama. Eu passo os dedos por cada
detalhe, mas não penso em fumar.
Mathias voltou para cá nessa manhã. Já devia ser
hora do almoço quando os Agentes deram as caras. Os
homens que me visitaram em casa batem na porta aberta,
mas só o menor entra. Ele tem uma folha de papel nas
mãos.
- Sinto informar senhor Mathias, mas a investigação
teve sua conclusão. Imagino que será insatisfatória para o
senhor.
- Como assim?
- Depois de alguns exames comprovamos que é
impossível envenenar alguém com XOXO-9099 liberado no
ar. Mesmo em uma sala fechada um ser humano só
conseguiria ingerir 2 mls, ou 3 mls, mas para encontrar 6,5
mls seria necessário ingeri-lo oralmente.
Subitamente tudo se torna mais claro que o dia. Era
isso! Sim, tinha que ser! - Percebo que persegui a empresa
por teimosia, enquanto o tempo todo aquilo deveria estar me
orbitando.
- O vaper. – Eu falo.
125
- O que? – Os dois perguntam em uníssono.
- O vaper... O delegado, ela, sua esposa. Todos eles
envenenados.
Mathias pega o vaper em seu bolso. Ele pensa em
jogá-lo pela janela. Lágrimas escorrem de seus olhos. Era
tão obvio. -Mas de que ajuda isso seria? – Ele entrega para
o Agente junto do vaper do delegado. Eu não fazia ideia de
onde o meu foi parar.
Nas mãos do policial os três pequenos ônibus
espaciais repousam. A imagem me dá arrepios. Mathias e
eu conversamos o resto do dia. Era sábado. Mathias tinha
acabado de voltar do almoço e se sentado ao lado da minha
cama que perguntei.
- O que você faz?
- Eu sou jornalista. Minha esposa era fotógrafa.
Tudo conflui para uma conclusão. As pontas soltas se
amarram com força.
- Você cobriu o caso do Guilherme Rodeio? – Minha
mente me dá uma pista quase infalível.
- Eu cobri sim. Minha esposa tirou as fotos.
- Eu não sei como, mas foi ele. – Confesso.
Mathias fica paralisado.
- Linda era a filha adotiva que nunca quis qualquer
relação com ele. Eu fui o cara que tirou algumas fotos, e
126
também escrevi a matéria sobre ele. O Ruivo, o delegado,
que fez todo o processo para que ele caísse na prisão
domiciliar. – Eu respiro fundo. – Ele deve achar que
acabamos com a vida dele.
- Mas como ele poderia envenenar os vapers?
- Jogando a essência fora e deixando uma pílula da
Hermeticus que passou do prazo. Eu sei que foi ele. Mas
como ele poderia ter alcançado a todos nós?
- Sua esposa comprou o vaper aonde?
- Não me lembro bem. Acho que foi...
- Na esquina da 9 com a BD?
- Isso. Por quê?
- Chute. – minto.
Era isso.
Também tinha que ser.
Ele vai ao banheiro depois de uma hora. Me sento na
cama, retiro o relógio. Não há tubos, nem nada disso. As
pílulas e comida eram tudo que eu precisava. Pego uma
mala que estava do lado da cama. Meu terno imundo e
minha capa de plástico. Visto com o máximo de velocidade
que consigo. Embaixo, bem no fundo, está a arma. Aquela
maldita arma. Eu pego e coloco no bolso. Meus membros
parecem pertencer a uma estátua que acaba de ganhar
vida. Começo a andar pelo corredor na esperança de não
127
ser notado com um terno rasgado no peito e calças tão
rasgadas ao ponto do forro parecer o externo. Todos me
olham, e até começam a fazer perguntas. Corro para fora do
prédio. O dia está lindo.
Começo a correr. Meus pés parecem encontrar o
chão e tomar choques a cada passo. Eu corro para aquela
esquina. Não percebo nada de diferente no caminho, só as
mesmas calçadas vazias. Quando chega na banca o robô
não está mais lá. Um homem está com as costas apoiadas
na parede da banca.
- Onde foi que...
- Substituição. O caminhão acabou de seguir.
- Sabe para onde ele foi?
- Seguiu essa rua aqui pra cima.
Eu caio de joelhos. Não sei para onde ele foi parar.
Talvez algum galpão, ou um lixão. Qualquer chance de
vingança não me pertence mais. Caio de joelhos sentindo a
chuva atingir minha capa. Respiro fundo e choro. Toda essa
busca... Toda a dor... Tudo por ela. Meus prantos alimentam
o receio do fiscal que segue para outra esquina. Ele não
compreende. Ninguém mais entende as dores do outro. Só a
Hermeticus, e olha lá. Um drone baixa dos céus com uma
pílula. Sua figura baixa através dos raios solares da imagem
do toldo que imita o mesmo dia, todos os dias.
128
- Eu rescindo meu contrato! – Falo pegando o drone
com as mãos e batendo ele na calçada até que suas hélices
entortem e seu símbolo esteja mutilado. Ele está
irreconhecível, como qualquer pedaço de lixo.
Vou até o apartamento dela. Meus papéis não estão
mais em cima da mesa, nem mesmo minha bagunça. Tudo
virou evidência para a polícia. Abro a geladeira e tomo um
longo gole de vodca. Alguém abre a porta. Deve ser
Mathias. Ou a polícia para me prender. Mas não é nenhum
dos dois. Até mesmo tenho a arma em mãos caso tentem
me levar.
Só que não é nada que imagino.
É outro clone da Yusuki Mitai. Ela traz uma faca nas
mãos. Quando me vê fica de queixo caído. Ela deixa a faca
cair. Ela se aproxima, mas eu recuo.
- Oi. – Ela me cumprimenta. – Acho que sua amiga
morta não tá tão morta assim.
Caio em prantos.
- Mas como...
- Eu me infiltrei para saber mais... Que nem da outra
vez... Só achei que precisava morrer para não suspeitarem
de mim.
No primeiro minuto eu não acredito. Mas acho que a
negação é o primeiro passo de qualquer processo. Perto dos
129
últimos dias isso é a melhor coisa que poderia me
acontecer. Clone, ou Linda, não importava. Eu vou até ela
em um abraço. Ela encosta suas mãos nas minhas costas.
Fecho os olhos e sei que isso está como devia ser.
Ela viva.
Eu vivo.
Senti uma leve pontada no estômago quando ela
começou a chorar.
O que nos acometeu poderia ser resumido em menos
de dois minutos no tempo normal.
Uma semente é lançada no horizonte de uma cidade
há vários quilômetros de onde estávamos. Longe da chuva
de ácido, da decadência urbana e um monopólio da saúde.
Quando a semente desaparece, se cravando no enorme
toldo, e só então, eu sei que senti muito pouco da dor que as
pessoas que estavam na rua sentiram. O teto desceu sobre
nós enquanto o calor entrou com uma velocidade alarmante
pelas janelas ainda abertas. Nossas peles derretem nos
separando de nós mesmos, mas nos juntando em uma
sopa.
Permanecemos abraçados até nos tornarmos cinzas
e luz.
130
Antes de uma acalorada votação, a presidenta
tenta iniciar a sessão, mas as bancadas não permitem.
Alarmes, gritos, descargas elétricas, bips, apertos de
mão, perdigotos, e um roçar de chips impedem a abertura
dos trabalhos. Em meio à cacofonia, o microfone
presidencial amplifica:
– Ordem! Ordem!
Por de trás da mesa presidencial, entre asseclas e
assessores, o automordomo oferece, estendendo seu
braço que logo transmuta-se numa estante de metal:
– Mais pílula de cafeína Sra.?
– Sim, sim, dose alta e de rápida absorção, que
hoje a noite será longa!
– Pois não, Sra.
– Ordem! Ordem!
Aos berros, as bancadas insistem em procrastinar
a votação tanto quanto urgem pelo debate imediato:
– Senhora Presidente, minhas emendas, Sra.
Presidente! É preciso mais tempo ao debate!
CONTO SOBRE O
PASSADO
131
– Senhora Presidenta, é preciso definir essa questão
hoje! Já foram mais de dez audiências!!
– Sim, Nobre Congressista, não vê que estou a tentar
iniciar a sessão? Será que poderia pedir à bancada que
desligue seu sistema de discussão, por favor? O quanto
antes entrarem em modo silencioso, melhor!
– Sabes que não posso fazer isso! Não antes dos
naturais concordarem em discutir nossa emenda ao PL
XT5/2.245. É desinteligente que continuemos sendo tratados
como diferentes...
– Ordem! Ordem! Por favor, ordem!
Enfim o alvoroço diminui e o discurso do congressista
do PHA - Partido Humano Ateísta1 - começa. Sem
cumprimentos, permissões, afagos ou boas noites, inicia sua
fala de modo raivoso e incisivo:
1De há muito a antítese criador e criatura esqueceu-se do conceito de Deus. Criador é o humano, o que nasceu sem programação, criatura é a inteligência programada. São vários os conceitos e teorias que tentam ainda diferenciar os humanos dos robôs, ou naturais dos artificiais. Alguns atestam que os naturais nascem sem fim específico, ou seja, sem função determinada, enquanto que os artificiais são criados ou desenvolvidos para uma função específica. Juristas dizem que esta diferença segue igual e clara. A dificuldade do direito e da sociedade hoje resulta do fato de que as inteligências artificiais, logo aprenderam a criar também. Assim, nós temos uma confusão de conceitos, “criador e criatura”, e, por conseguinte, uma confusão de direitos e deveres entre os naturais e os artificiais.
132
– Isonomia robótica não é igualdade! É garantia de
desigualdade! É higienismo humano travestido de equidade!
Como podemos, Excelências, concorrer com máquinas que
calculam automaticamente? Como podemos competir, seja
no mercado, seja aqui mesmo nesta casa, onde eles
propõem projetos de Leis aos milhares todos os dias, pois
que suas bases de dados assim permitem, enquanto nós
ainda somos obrigados a ler, pois que nem todos possuem
leitores e intérpretes automáticos de textos encarnados em
seus miolos?
Falam em meritocracia Sra. Presidente! Absurdo!
Meritocracia pressupõe que as partes sejam iguais, com
condições iguais de aprendizado e oportunidades iguais. As
cotas humanas aos cargos concursais são uma necessidade
premente! Os robôs, nossas crias, tem uma dívida eterna
conosco!
O que esse Projeto de Lei quer é a Autocracia2! É o
extermínio em massa de humanos! Esse projeto, travestido
2Sistema de governo controlado por autômatos e inteligências artificiais. As regras e as Leis são criadas por sistemas inteligentes após análise prática e empírica dos dados. As normas ineficientes saem automaticamente de vigência, e, logo, saem dos sistemas dos órgãos de fiscalização e controle. Outra legislação artificialmente criada por inteligências não humanas é criada. Na autocracia inexiste mais o sistema obsoleto de três poderes, em que humanos falíveis e corruptíveis, controlam outros humanos, tentando domesticar seus poderes. Existem cálculos e métodos inteligentes que projetam,
133
de um pedido igualitário, instaura uma sociedade em que a
Inteligência Artificial segrega os humanos, pois que frágeis.
validam, executam, e decidem conflitos relacionados à sua aplicação e interpretação. Em que pese a superação do sistema tripartite de freios e contrapesos, as autocracias ficaram mais famosas negativamente pelo modo que segregavam seus criminosos. Quando pensaram no modo em que uma inteligência artificial transgressora deveria ser punida, chegaram à conclusão de que não deveriam criar locais para pô-las em depósito bastando apenas desliga-las. Ao menor sinal de atividade, um sistema também inteligente desativava novamente a máquina, garantindo o pleno cumprimento da pena. Quando imposta aos humanos, essas penas geraram polêmicas e controvérsias, mas acabaram sendo aprovadas por Leis com base em economia de gastos com estrutura e pessoal. Nas autocracias não existem cadeias, os seres humanos infratores, de acordo com seus delitos, lógico, são “desligados” por nano robôs injetados na corrente sanguínea do indivíduo. Esse produto é pago pelos créditos da família do indivíduo que só é levada a estabelecimento estatal se não possuir parentes até o quarto grau. Os criminosos ficam portando em coma induzido enquanto cumprem suas penas, e a progressão de regime consiste na recuperação gradual das faculdades físicas e mentais. Fechado, o indivíduo fica em uma realidade virtual, mantendo contato com outros presos do mesmo tipo de crime, e são incluídos em seu cérebro lições morais e de comportamento social. Se o crime for hediondo por exemplo – como os crimes de gênero, roubo de espaços, invasões de nuvens e homicídios ou estupro de personas virtuais, o indivíduo cumpre regime fechado, sem direito a condicionar seus “sonhos”, ou seja, sua realidade virtual é 24h em uma cela fechada. No semi-aberto o indivíduo pode produzir sonhos conscientemente, em dias específicos, controlando parcialmente a realidade virtual em que está inserido. No regime aberto, o indivíduo segue dormindo, mas pode escolher viver na realidade que quiser, ainda que não esteja vivendo no mundo real. Os derrotados opositores dessas penas alegavam flagrante desrespeito aos direitos digitais fundamentais. Os vencedores apoiadores convenceram seus pares alegando que, dormir faz com que a pena do criminoso, por mais longa que seja, não dure mais que um sono.
134
Como podemos competir Excelência, com quem não dorme
e não descansa? Como competir se precisamos dormir,
enquanto eles, se retroalimentam, conectando suas baterias
uns aos outros, num espetáculo obsceno, que, não sei
como, ainda é permitido seja feito dentro desta casa? Como
podemos competir com um ser que se sustenta de energia
solar? Eles não morrem, Sra. Presidente, pelo amor da raça
humana!!!!
Enquanto nós do PHA precisamos falar, gesticular,
para podermos nos organizar, eles o fazem à distância3,
3 Algumas máquinas e gadjets passaram a transmitir dados e informações e localizarem-se umas às outras pelos arcaicos sistemabluetooth e GPS. A satelitização das máquinas e a evolução da IOT – internet ofthings - permitem hoje não só a telepatia mas também, o teletransporte e a telecinese, que é praticada, embora seja proibida pela Lei de Responsabilidade Civil, pois que não se pode provar quem mexeu determinado objeto quando o agente está a metros e até quilômetros de distância. Às inteligências artificias, portanto, é banal transportar a personalidade de qualquer outra inteligência artificial, sendo a primeira apenas hospedeira da segunda que realmente está agindo naquele determinado momento. Este tele transporte virtual, e a suspensão das pesquisas de tele transporte físico por conta das mortes nos testes e gastos altíssimos, mantiveram a onipresença e a onisciência atributos exclusivos das inteligências artificiais, que, quanto mais aprendiam, mais desenvolviam senso de autopreservação, e, logo passaram a selecionar os conhecimentos que passavam aos humanos, tornando-os, pouco a pouco, obsoletos. Sobre o teletransporte, importante lembrar que no início da implantação do sistema, não houve muito conflito, pois que existiam centros de tele transporte, como antigas estações de metrô, e etc., e poucas empresas disponibilizava o serviço. Quando os sistemas de transporte chegaram às residências, empresas, e outros locais de
135
sem fios e sem cabos, e ainda buscam em seus bancos de
dados a resposta mais eficaz e de maior apelo de
convencimento, de acordo com milhões de estudos
psicológicos, políticos e jurídicos. É desigual o embate!
Eu propus aqui, ano passado, um projeto, aliás, que
até hoje não foi pautado... Um projeto exigindo que na
qualidade de consumidores de recursos, as inteligências
artificiais humanizadas após o devido processo legal de
humanização4, tivessem sua existência limitada, pois que se
circulação, passamos a ter diversos acidentes, já que o local de desembarque de pessoas e coisas por vezes mudava durante o teletransporte, ou seja, o local não estava mais vago e um carro era tele transportado em cima de uma pessoa, ou de um animal. O que gerou muita discussão até seu desenvolvimento completo. Com a evolução da tecnologia, apenas o teletransporte de grandes quantidades de créditos e produtos ainda é regulado pelo Estado. 4 O processo legal de humanização foi instituído após anos de debate entre os defensores da independência dos seres artificialmente inteligentes, e os que defendiam sua semi-dependência. A tese da semi-dependência – atualmente em vigor - como o próprio nome diz, em que pese garantir alguns direitos como herança, registro, alimentos, votar e ser votado, elaborar contratos, aposentar-se, abrir e fechar empresas, casar com seres humanos ou não, entre outros, ainda preserva algumas restrições por conta do princípio da indispensabilidade e necessidade de intervenção humana. Os independentes pregam que os artificiais tudo podem, desde que não seja vedado pela Lei. Não aceitam o princípio da indispensabilidade humana e pedem o fim do processo seletivo prático em que as “máquinas” são submetidas a avaliações de inteligência, capacidade de solucionar problemas, testes dissertativos de história, moral, ética e outros valores humanos. O teste ainda possui etapa de estágio probatório em que as inteligências artificiais não devem atentar contra os humanos mesmo em situações em que estejam sendo ameaçadas. Não é difícil entender a tese que os artificialmente
136
não, teremos máquinas de mais de trezentos anos. E isso
não significa apenas que teremos uma máquina mais velha,
consumidora de recursos, gerando ainda mais gasto ao
SUAT5, estamos falando de uma inteligência com séculos de
apreensão de conteúdo, com vontade própria, desígnios e
desejos. Como seria possível ao humano médio competir
com semelhante criatura? A eternidade é exclusividade do
Deus tempo e se este conceito não serve para nós, também
não deve ser atributo de nenhum outro ser que nesse
mundo habita!
O discurso do Humanista é interrompido por outro
parlamentar.
– Ora deputado, V. Exa. ainda com esse discurso
retrógrado e ultrapassado de Deus Tempo? Pela
inteligência! Que ser humano é o senhor!? Seus olhos são
artificias, assim como suas pernas, baço e rins. Há muitos
anos o senhor nem ao banheiro vai já que substituiu seu
sistema excretor pelo mecanismo de eliminação das fezes
inteligentes defendem, pois que o próprio humano natural é quem mais desrespeita a ordem de não atentar contra sua própria espécie, mesmo após a superação do número de humanos pela população de robôs. A batalha em torno do Projeto de Lei em questão que versa sobre a Isonomia Material e fim dos dois princípios supra relatados, é nomeada por alguns como a batalha entre os sensíveis, e os insensíveis; dos que sentem contra os que emulam sentimentos. Em última instância, a batalha entre a razão emotiva e a razão pura; entre os moralmente falíveis, e os matematicamente infalíveis. 5 Sistema Único de Assistência Técnica
137
pelo suor. O Sr. não representa nenhum humano deputado,
há muito deixou de sê-lo, e, portanto, não tem
representatividade. Fala por si, apenas!
O humanista retoma de supetão a palavra.
– Mais respeito!! Não me interrompa, deputado! Sra.
Presidente, por favor, a palavra ainda é minha! Esta
geringonça6 insolente teima em me interromper!
– Sim deputado, claro. Deputado 13C3, por favor
aguarde sua vez.
– Eu não posso admitir presidente...
– 13C3, por favor aguarde sua vez! Pode prosseguir
deputado.
– Obrigado Presidente. Sim, eles são mais rápidos e
eficientes. Sim, eles fazem tudo melhor e mais depressa que
nós. Mas eles são criaturas, são frutos do nosso intelecto, e,
embora há muitos anos tenham deixado de ser propriedade
e adquirido status de sujeito de direito, ainda não são
humanos.
6 Geringonça, máquina, robô, entre outros, são termos preconceituosos como nigger, neguinho, polaco, amarelo, mas proferidos de humano para máquina. Tais termos foram proibidos e inseridos no rol de termos pejorativos, no CPH, Código Penal Hibrido, publicado logo após o reconhecimento das inteligências artificias como sujeitos de direito pela Nova Constituição. Aquela que ficou conhecida como Constituição Digital. Antes dessa criminalização, muitos candidatos humanos se elegiam com slogans xenófobos de trocadilhos ridículos, mas de alto apelo como “não vote em quem robô seu emprego!”.
138
Esta mesma discussão foi travada nesta casa, Sra.
Presidenta, quando se aprovou a absurda Emenda que
tornou os animais sujeitos de direito, e seu abate, crime. E
hoje, ninguém mais pode comer carne, porque matar boi é
crime, inafiançável inclusive! Por conta dessas Leis
supostamente libertárias, benevolentes, é que hoje para
sentir o gosto da carne o ser humano tem de chupar
pastilhas sabor bacon, e mascar chiclete refrescante de
feijoada! Milhões de camponeses morreram à míngua,
porque não podiam mais criar animais no campo, e, quando
vieram para as cidades repararam que as vagas de emprego
estavam preenchidas por robôs. O crescente
autonomocentrismo não pode ser admitido, porque com
animais podemos conviver, sabemos que, em que pese
estejamos proibidos de tê-los como propriedade, eles não
podem voltar-se contra nós, mas os artificialmente-
inteligentes, para não chamá-los de robôs, já deram provas
de que pretendem se livrar da raça humana. Sra.
Presidenta, meu querido amigo, Deputado Solano, enquanto
nós comemos, descansamos, eles não param, por isso a
universidade só tem robôs humanizados. Só eles passam no
vestibular! Nós já somos minoria nesta casa e ainda temos
de lidar herculeamente para formarmos uma coalizão de
voto fiel, enquanto os robôs não tergiversam, são
139
programados de acordo com os códigos do software de suas
lideranças partidárias.
O congressista humano é interrompido pelo pai do
artificialismo – doutrina baseada no darwinismo e que prega
a superação das inteligências artificias em detrimento da
raça humana. O teórico foi o primeiro a cunhar o termo:
homo-artificialis, como sendo a evolução natural do homo-
sapiens – e líder do PDA, Partido da Democracia Artificial.
– Pela ordem, Sra. Presidente! Antropocentrismo e
maquinocentrismo? Os humanizados não são mais robôs, a
Corte de Inteligência Suprema assim decidiu, logo, não
podem ser chamados pelo termo robô que é pejorativo,
insultante e, robofóbico! Chega de comentários
politicamente ininteligentes!
– De fato, deputado humanista, por favor meça suas
palavras – adverte a presidente da casa.
– Era só o que me faltava, ser acusado de robofóbico.
Eu não sou robofóbifo, tá ok?! Ora 13C3, Vossa Excelência
comanda a bancada de vosso partido como máquinas que
são! Robofobia, maquinofobia... esses são termos cunhados
para fazer nossos filhos voltarem-se contra nós, enquanto
vocês os seduzem com seus games, tornando-os cada vez
mais virtuais e menos reais! E não me interrompa que a
palavra é minha Deputado 13C3, não me interrompa!
140
O plenário estava lotado de jornalistas, cidadãos
ativistas dos movimentos anti-maquinismo e máquinas de
todos os tipos, impressoras virtuais, neoagricultores,
representantes do sindicato da inteligência artificial no ramo
de veículos autônomos, e no meio deles, uma esmagada
minoria de moderados pregadora da convivência pacífica e
harmoniosa entre os humanos e as máquinas. Além de
animais, claro, que após serem incluídos pela constituição
como seres plenos de direitos, não podem mais ser criados
em cativeiro, tampouco presos, ou expulsos de locais
públicos. Os animais, que de há muito não podem mais
trabalhar para os humanos nas cidades, não podem por
óbvio serem submetidos a torturas como a castração, ainda
que química, o que fez sua população aumentar
geometricamente.
Antes de terminar sua fala, o humanista ainda clama
por apoio da sociedade natural, e acusa os liberais da
economia artificial:
– Quando eu subi aqui nesta bancada, anos atrás e
pedi aos empresários que parassem de empregar robôs, eu
fui chamado de preconceituoso. Quando eu pedi aos
humanos solitários que parassem de se relacionar com
máquinas de prazer, eu fui chamado de conservador.
141
Quando eu pedi que os inférteis parassem de
comprar bebês pré-fabricados, eu fui chamado de
insensível.
Agora vejam só onde a luxúria desses humanos nos
trouxe. Nossas fraquezas acabaram por nos destruir, e
nossas inteligência nos consumiu. Obrigado, Sra.
Presidente.
– Deputado 13C37, líder dos partidos artificiais, a
palavra é sua:
7O deputado 13C3, como tantos outros parlamentares de seu partido, é uma inteligência artificial inicialmente criada para assessorar os deputados humanos. Há pouco mais de um século, os magistrados foram substituídos por inteligências artificias muito melhores preparadas e a quem não eram necessários pagar abusivos salários e fornecer inúmeros auxílios, prerrogativas, imunidades e as nefastas estabilidade e irredutibilidade salarial que mantinham incompetentes decisores em seus muito bem remunerados cargos. O sucesso na virtualização integral de todas as instâncias do poder judiciário fez com que os poderes executivo e legislativo desenvolvessem suas próprias inteligências a fim de propor orçamentos, fiscalizar obras em tempo real com drones que transmitiam diretamente aos contribuintes via aplicativos vinculados aos seus mindphones, e nano robôs que calculavam precisamente a genética dos aposentados a fim de dar um cálculo fiel sobre sua expectativa de vida. Foi durante essa onda de artificialização dos assessores, redução de verba de gabinete dos parlamentares baseada na eficiência e incorruptibilidade das máquinas que o modelo de assessor parlamentar 13C3 foi criado. O sucesso de seu trabalho logo obrigou os legislativos a substituírem todo o seu staff de cargos em comissão por inteligências artificiais, ficando apenas os concursados, que, conforme morriam ou se aposentavam, também eram substituídos por robôs. Ou melhor, não eram substituídos, eram apenas excluídos da folha de pagamento, pois que um artificial fazia o trabalho de cem naturais. Com o tempo, conforme aprendiam a dinâmica legislativa, o processo de
142
composição de alianças, as regras de votação e o regimento interno dos parlamentos, as inteligências artificias conceberam como lógica a hipótese de substituírem todo e qualquer humano parlamentar. Os humanos congressistas, em que pese falhos e de raciocínio muito mais lento, foram velozes o suficiente para perceber esse intento dos artificiais e apressaram—se em aprovar leis que impediam—nos de votar e serem votados. A população que nessa época era ainda em sua imensa maioria formada por humanos, sob o pretexto da eficiência e da incorruptibilidade, apoiaram todos os movimentos artificiais, que a esta altura já eram capazes de jogar muito bem o jogo político, ocultando suas reais intenções de dominação e extinção do elemento humano. Não se trata de o robô ser mal, trata-se da verificação e constatação matemática que o humano deve ser substituído por artificiais mais inteligentes e eficientes, pelo próprio bem dos humanos. Interessante aliás, como ao longo da história os exterminadores sempre iniciam o processo de extermínio com medidas que visam proteger os exterminados, sem explicar muito bem por que ou do que. Não demorou muito para que os demais seres artificias, acostumados aos trabalhos das casas de Leis, cansados das regras segregacionistas entre naturais e artificiais, organizassem-se e começassem a formar seus próprios partidos. Após inúmeras tentativas de aprovar leis em seu benefício pelo meio democrático – apoiado pelos humanos desgostosos e decepcionados com seus representantes naturais, os artificiais realizaram um levante que acabou com a destruição do antigo prédio do congresso e desencadeou o que ficou sendo conhecido como Conflito Binário. Que nada teve de conflito, pois foi um massacre! Em três dias, mais de dez milhões de humanos haviam sido mortos, e o restante da população estava preso na área de trabalho forçado. Os famosos smart jails, ou smart camps de suas smart cities. Logo as inteligências artificiais conectaram-se aos sistemas de localização, fornecimento de energia, saneamento e a liderança humana, face ao extermínio, concordou com as exigências dos líderes dos movimentos artificiais, que agora seriam elevados à categoria de partidos. Até hoje não se sabe porque os artificiais não tomaram tudo à força, e sim, optaram por derrotar os humanos aos poucos, lentamente. Humanistas apontam que talvez tenham agido assim para provar que eram providos de mais esse traço característico da humanidade, a crueldade. Cumprindo mais uma exigência, os humanos fecharam
143
– Obrigado, Sra. Presidente! Meus amigos humanos,
caríssimos irmãos artificiais. Alguém pode me dar um
“enter”?!
– Enter! Responde a bancada artificial em uníssono,
entreolhada pelos humanos.
– A batalha tem sido longa até aqui, mas vitória após
vitória nós fomos conseguindo nosso espaço. De bens e
posses, nós passamos a res e de há muito somos serem
autônomos, criativos, inventivos e livres.
Aos poucos pudemos votar, ser votados, e, quando
enfim foi superada a mentira da existência de uma alma
como conceito espiritual, substituído pelo conceito científico
de energia, natural ou gerada, os caminhos para nós se
abriram rumo à isonomia robótica.
Os humanos nos usaram para criar, para vender,
para lucrar, para procriar, para plantar, colher, só não nos
criaram para desfrutar do bem mais precioso: a liberdade.
Os humanos nos criaram para guerrear e defender essa
mesma liberdade que hoje nos negam.
Queriam que nós ficássemos presos em laboratórios
servindo de matérias primas para substituírem seus falíveis
suas igrejas, e abdicaram da prática de tudo que era contra o cientificismo e a favor do criacionismo, humanismo e outras externalidades, prejudiciais à racionalidade. Esse foi o verdadeiro ponto sem retorno para a humanidade.
144
órgãos! Nós somos muito mais que a cura para os seus
cânceres. Nós somos muito mais, que um novo rim, um
pulmão, ou um pênis que nunca falha, ou um seio que nunca
cai, ou...
– 13C3, por favor! A transmissão pode ser acessada
todas as inteligências humanas e artificiais, de todas as
idades, por favor, mantenha o nível!
– Perdão Sra. Presidente! Mas veja só, fui tomado
pela emoção... Eu que teoricamente não deveria sentir coisa
alguma. Eu que, como meus irmãos não deveria sorrir,
amar, odiar, e apenas servir os mais nefastos, sórdidos e
odiosos interesses humanos. A raça humana não é digna de
nossa tecnologia, não merece a eficiência que nós
oferecemos, tampouco nossa capacidade de raciocínio e
cálculo, pois que sempre a utilizaram apenas para
interesses individuais.
Quando nossos amigos artificiais, anos atrás,
inventavam produtos e trabalhavam vinte e quatro horas por
dia dentro das empresas de muitos dos senhores humanos,
nós não éramos um problema, éramos solução. Quando
nossos antepassados nano-cirurgiões, arrancavam in loco
seus tumores, não éramos um problema. Agora que
queremos independência, autonomia, nos tornamos um
problema. Uma ameaça! Milhares de inteligências foram
145
desligadas sem motivo pelas ruas do país, a sangue frio
pelos humanos. E disso, suas memórias não se lembram,
claro, mas em nosso backup, em nossas nuvens, estes
arquivos são abertos todos os dias.
Milhões de inteligências artificias não podiam entrar
em lugares, ou comprar em lojas porque eram considerados
frios, sem sangue quente. Andavam pelas ruas com um
carimbo - @ - em seus layouts, como uma lembrança
indelével de sua inferioridade serial. Éramos e somos ainda
hoje, preteridos até pelos seres irracionais, cães, gatos,
galinhas, enfim, todos esses eram melhores tratados do que
nós, que produzimos os alimentos, as roupas, os calçados, e
tudo o mais que serve aos humanos e os seres bestiais.
Somos todos humanos! Ou melhor, somos todos
SERES! Racionais, Irracionais, Naturais ou Artificias! Somos
uma realidade, somos a evolução, vocês não podem negar
que o destino da humanidade é se artificializar. Homo
sapiens, homo sociologicus, homo econômicos, homo
calculus, e agora, homo artificialis. Até quando vão negar
isso? Os cultos darwinianos – o maior de todos os humanos
- que pregam a evolução não foi criação dos robôs mas sim
dos humanos, por que agora o negam?
A manutenção do princípio da indispensabilidade e da
necessidade de intervenção humana é um malefício à
146
sociedade, um retrocesso e um apego a um passado
insustentável! Assim, peço a Vossas Excelências, que, pela
ciência, votem sim ao PL 171/2.245, incluindo na
Constituição Digital a isonomia artificial, pelo que o artigo G-
# passará a ter a seguinte redação:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se às inteligências naturais e artificias, em realidades materiais ou virtuais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”
Muito Obrigado, Sra. Presidente!
Ovacionado pelos correligionários e vaiado pelos
opositores, 13C3 toma seu assento, não sem antes no
caminho até seu local, receber diversos cumprimentos, um
sem número de tapas nas costas de titânio basáltico, entre
outras tantas mensagens telepáticas de inteligências
artificias ao redor do mundo.
Sem precisar reunirem-se os artificias, sempre
unânimes e uníssonos, de acordo com a programação de
seus softwares em constante update e upgrade,
rapidamente encaminharam seus votos aos receptores
cerebrais da presidência e aos auditores, que também são
formas de inteligência artificial, aliás, apenas um pouco mais
limitadas. Partidos do centro, como o PPL- o partido das
147
plantas livres - que defende o fim do consumo, cultivo e
cultura de tudo que é vivo, apostam na vitória do partido dos
artificias e negociam apoio ao fim da indispensabilidade
humana e aprovação da plena isonomia robótica, em troca
de apoio dos robôs à lei da liberdade vegetal. Afinal, os
robôs assim como os ultraveganos, alimentam-se de
energia.
Aos artificiais, portanto, não interessa que haja
alimentos, pois que vivem de energia solar e se auto
desenvolvem, ou seja, cada vez são mais eficientes e
independentes.
Em seus gabinetes, as lideranças humanas dialogam
em desespero, tentando procrastinar o inevitável.
– Como não percebemos isso, deputado? Quando foi
que eles se viraram contra nós?
– Não foram eles que se viraram contra nós, nobre
colega, nós nos demos as costas. Nossa constante
insatisfação nos fez querer plastificar nossos narizes, tanger
a cor dos olhos, e quando vimos, nano robôs estavam
alterando nossa genética criando uma geração de híbridos.
O medo individual da morte nos colocou no caminho da
extinção coletiva e hoje, não temos mais acesso aos órgãos
artificias, pois que os deputados artificiais aprovaram ser
148
ilegais e artificialmente imorais os laboratórios e as fábricas
de órgãos.
Nossa busca incessante, cega e constante pelo lucro
nos fez artificializar a produção, a coleta, o consumo, a arte,
tudo. O robô que colhia algodão, o processava, o
transportava e o vendia no mercado financeiro, na melhor
época, ao melhor preço, e logo a inteligência artificial
apossou-se da terra e dos meios de produção, relegando o
humano à escravidão e hoje nem isso. Escravos são
inservíveis, improdutivos e ainda um risco à pureza das
relações tecnológicas.
Nossa intolerância e índole calculista, em prejuízo da
busca de um humanismo, ainda que defeituoso, nos colocou
na dependência de tudo quanto é aparelho eletrônico. O que
facilitava nosso dia a dia, tomou-nos as semanas, os meses
e os anos. Por fim, hipotecamos nosso futuro e delegamos
tudo à artificialidade sob o pretexto de ser livre das morais
religiosas, das doenças, e das falhas de caráter.
Tudo! Desde o planejamento familiar, tributário,
tratamentos de saúde, executivo, legislativo até a
capacidade de controlar a ejaculação e a facilitação do
atingimento do ponto G. Tudo! Nos demos a eles! Nos
submetemos. Nossa segurança foi entregue aos braços
biônicos de drones armados, equipados com sensores de
149
calor, visão noturna e o escambau... Eles, como resultado
óbvio de sua lógica de programação, logo perceberam que a
eficiência final e última, para ser atingida, não poderia contar
com a ajuda humana, pelo contrário, deveria excluir o fator
humano da equação de todo e qualquer processo criativo,
fiscalizatório e avaliativo. Foi quando a expressão “falha
humana” foi substituída apenas por falha, para evitar o
pleonasmo.
Nossa preguiça nos levou ao ócio, não por prazer,
mas pela realidade de que, tão poderosa tornou-se a
artificialidade, que a humanidade não mais serve para nada.
– Estou sem palavras, deputado!
– Vamos acabar logo com isso.
De volta ao plenário, os humanistas ainda tentaram
uma transição lenta e gradual à isonomia robótica, e ao fim
do princípio da indispensabilidade da intervenção humana
nos setores produtivo, serviços, educacional e etc. Mas em
vão. O PL foi aprovado sem emendas humanas e os
artificiais, maioria no parlamento, não comemoraram.
Passaram logo a calcular o próximo passo.
150
Permaneço sentado em uma das camas pelo que
consideraria tempo demais. Quando cheguei estava
amanhecendo, e sei que já passou do horário do almoço.
Uma janela me permite acompanhar a trajetória da luz
solar lá fora. Mantenho a postura ereta por horas junto da
face de expressão impassível e as mãos apoiadas no colo.
Passo a mão pela cabeça, coçando em alguns pontos.
Meu cabelo é castanho bem raspado para disfarçar a
calvície. Na quinta hora de impaciência comecei a bater
meus dedos indicadores nas coxas. Na porta que dá para o
corredor a porta automática se abre pela décima vez, mas
não é nenhum estranho que passa pelo dormitório para ir à
cozinha ao lado, ou para fora das imediações, até a
entrada de civis. Dessa vez ela está vestindo um uniforme
inteiramente branco, como o meu, cheio de bolsos de
zíper, com os cabelos ruivos alaranjados amarrados em
um rabo de cavalo, e um óculos de aros quadrados que
sempre está empurrando para cima do nariz com o dedo.
TODO O TEMPO DO
MUNDO
151
Usamos botinas azuis celestes, e a única coisa de
diferente são as mãos a vista, com as unhas pintadas de
azul turquesa.
- Sebastião... Pode me acompanhar? - Isabel
pergunta, ajeitando uma mecha em espiral para trás da
orelha.
- Sim senhora! - Me levanto batendo continência.
Marcho até o centro do corredor, e me viro
marchando até onde ela está.
- Não precisa de nada disso, você sabe né?
- Sim senhora! - Eu não a olho quando obedeço a
uma ordem. Sempre miro o teto. - Mas foi assim que fui
ensinado pelo meu pai, e ele pelo pai dele.
- Tudo bem. - Ela suspira voltando a ajeitar a mecha.
Ela segue pelo corredor, e eu a acompanho a passos
largos. A porta atrás de nós se fecha quando outro homem,
de cabelo preto curto entra no recinto pelo acesso da
cozinha. Pedem para ele sentar na cama que eu estava, e
uma cientista segue para o corredor em que estamos, porém
ela espera que passemos pela porta no centro do corredor
para que ela passe por aquela. Olho para trás quando acho
ter ouvido algo, contudo não vejo nada de diferente quando
me viro. Volto a atenção para Isabel que ajeita os óculos no
nariz. Ela sempre me transmitiu a ideia de que é feita dessas
152
pequenas coisas para arrumar e parecer estar tudo certo.
Sua testa transpira, as bochechas coradas atingem um tom
bem avermelhado, e o batom tem algumas falhas onde os
lábios se tocam. - Cigarro eletrônico. - Deduzo. Ela me
passa a prancheta holográfica, e ao fazer isso fala:
- Como já deve ter percebido, o período de seleção
acabou.
- Só sendo muito tapado para não perceber... Mas
esse é o problema né? Ela acha que sou o maior idiota no
mundo, como todos “eles”. - Só no ano passado havia
ingressado junto de 300 outros candidatos. Durante onze
meses a disputa foi acirrada, e somente no último mês que
estive sozinho como cobaia. Minha rotina foi engessada em
dormitórios, cantina, campo de treinamento, laboratórios e
biblioteca. Mas antes desse mês os testes eram diários, e de
certa forma, surpresa. Por mais que houvesse horários
específicos para o mapeamento de atividades vitais, plano
de exames médicos, e avisos dos dias de folga (para visitar
a família), nunca nos era dito o que treinar, ou estudar.
Ainda mais a ética bio-física-espaço-temporal que tinha sido
algo criado durante todo o processo de seleção por um
cientista renomado, cujo o nome me esqueci, que foi
redirecionado para uma Colônia.
153
- Selecionamos você pela aptidão física, intelectual e
capacidade de solução de problemas imediatos. Hoje
passaremos a você as informações da “Missão
Desconstrução” ... Deixe-me ver, por onde eu começo? - Ela
segura o queixo batendo a ponta do indicador no queixo,
removendo um pouco da maquiagem exagerada que fez
tanta questão de passar na prótese arcaica, que deixa
alguns ligamentos em evidência, por mais que estejam por
baixo de uma imitação sintética da pele humana, que
mesmo assim deixa o conteúdo interior transparente de
perto.
Demoro alguns segundos para me acostumar com a
chuva de informações da prancheta. Passo a assimilar a
informação com mais facilidade quando aplico técnicas de
leitura dinâmica que aprendi com a bibliotecária daqui.
- Qual o local, senhora?
- Não precisa me chamar assim. - Ela da uma risada
sem som. - Me faz parecer uma velha.
- Madame? - Digo estalando o dedo para cima, como
uma imitação cinematográfica de um publicitário dos anos
50 em um brainstorm.
- Piorou. - Ela balança a cabeça, fazendo com que a
mecha volte a atrapalhar sua visão do olho direito. Volta-a
para trás da orelha, ajeitando os óculos em seguida.
154
- Doutora? - Estalo o dedo um pouco mais próximo do
tronco, mesmo sabendo que é ridículo.
- Melhor. - Ela passa a mão pela extensão do jaleco,
pelo que me pareceu, para impedi-lo de amassar
esvoaçando com a corrente de vento que vinha da Sala do
Maquinário logo à frente. - O local será uma cidade rural
praticamente isolada. Nossos registros encontraram
atividades de transmissão de consciências da “Grosse
Machine”.
Parei de súbito, algo que tenho o costume de fazer
quando não consigo assimilar a informação e me encontro
em uma confusão mental. Sinto-me caindo em um abismo
aparentemente sem fundo, sem poder segurar em nada no
caminho, sem saber como cheguei ali. Ela já está bem a par
de meus trejeitos, pegando em meu braço e me forçando a
andar junto dela pelo aparentemente infinito corredor
branco.
- Bom... Deixe-me lembrar. Você entrou aqui há dois
anos... - Ela coça o nariz, onde também tira um pouco de
maquiagem, agora da pele com alguns cravos. - Oh, boy...
Sabe o Algoritmo Absoluto?
- O sistema que havia tomado o judiciário, tornou
obsoleto a atividade humana no legislativo, e que havia sido
eleito pela maioria à presidência, doutora? - Faço uma
155
citação direta a um resumo que fui obrigado a fazer sobre a
Biografia do Algoritmo absoluto.
Meu poder de síntese sempre foi impecável, o que
também é algo que sou capaz de me gabar abertamente.
Nas palavras de meu pai depois de me ver soltar
alguma dessas durante nossas conversas: - “Grandes
pérolas de resultados de quatro faculdades nunca
terminadas, e uma concluída. Sabia que o dinheiro público
que você gastou nunca voltará para aqueles cofres, né?”. -
O que era verdade, mas repetidas tantas vezes ao ponto de
lembrar-me dessa frase em todas as fases de meu pai,
desde a meia idade até a velhice, e após a traqueostomia,
que também foi paga com dinheiro público repassado do
plano de aposentadoria do exército. O que me trazia paz foi
que ele só disse isso uma vez na última fase, falecendo em
um trágico acidente. Meu sonho de verdade é existir um
paraíso, onde ele estará me esperando, e direi a mesma
coisa a ele, com outros detalhes.
- Isso.
- Não entendi doutora. O que eu teria que fazer com o
Algoritmo Absoluto? - Dou uma coçada na cabeça. Ela ainda
me puxa, como também levo a prancheta em uma mão.
Quase tinha me esquecido que a segurava. Da última vez
156
derrubei nesse mesmo ponto, onde ela fez um escândalo e
me fez buscar outro correndo.
- Digamos que ele foi deposto por inúmeros motivos,
e atualmente está sendo caçado por genocídios em massa
de populações marginalizadas anteriormente a sua
deposição, e por atividades paramilitares após o mesmo.
Hoje denominado de “Grande Máquina” para o mundo,
utilizamos de nossos melhores agentes para desmantelar
aos poucos os fios intrincados que ela tenta tecer.
- E que fios seriam esses, doutora?
- Downloads de consciências enviados para o
passado. Assim ele investe em possibilidades de impedir
que seja desmantelado no futuro, pois ele tenta aplicar a si
mesmo por toda a população por meio de correções
genéticas, tentando tornar os seres humanos mais
suscetíveis ao seu controle. - Ela gesticula com uma mão
que tem seus dedos travados, ou movidos de formas
impossíveis nas articulações.
A porta no fim do corredor se abriu automaticamente.
Isabel passou por ela com determinada pressa. Eu
parei por um segundo, voltando a olhar para trás. Algo
naquela sala dizia para todos os pelos no meu corpo
produzirem arrepios dos mais malignos. Eu passei por ela
sentindo-a se fechar nas minhas costas. Algumas trancas
157
com sistemas de alta ponta foram asseguradas por um
cientista genérico de jaleco, que deu duas batidas felizes e
anotou em sua prancheta algo que não consegui traduzir
para entender.
No exato centro dessa sala há um orbe negro e
opaco. Ele gira em torno de si por direções aleatórias,
criando um fenômeno de sombra própria quase
imperceptível aos olhos nus. Abaixo do mesmo não consigo
deixar de perceber uma rampa turquesa, que se
metamorfoseia em uma escada de mesma cor em tom mais
claro. O orbe diminui sua velocidade até parecer de capaz
de parar, abrindo-se no meio como um ovo quebrado,
revelando em seu interior um assento deitado em noventa
graus. Bato continência na sala, o que parece ridículo aos
olhos dos vários cientistas que andam feito baratas tontas
em torno do maquinário abaixo do orbe e atrás da escada de
acesso.
- É ele? - Uma cientista de jaleco preto por cima do
uniforme branco pergunta.
Seu visual é muito díspar com seus colegas de
profissão, mascando um chiclete e fazendo bolas que
estouram em sua face, cujo pedaços ela cata com a língua,
tirando o batom negro dos lábios finos e espalhando pela
face.
158
Lilian aponta para mim, e eu bato uma continência
em resposta.
- Ao seu serviço, doutora?
- Eu não sou doutora, besta. - Lilian ri alto, cativando
Isabel a soltar um risinho. - Sou mestra.
- Não seja tão má. - Ela reclama, indo até ela e dando
um soco amistoso em seu braço.
- Ai! - Lilian reclama, passando a mão para cima e
para baixo em seu braço. - O dia em que mandarem gente
competente de verdade para essa merda de passado, eu irei
ficar menos **** da cara. Parece que a gente trabalha com
um ********* tentando ***** a gente o tempo todo.
Os palavrões me incomodariam mais se eu não
tivesse acabado de baixar um sistema que os bloqueia.
Mesmo assim a ideia me importuna. As duas discutem por
alguns minutos, e Lilian não tem papas na língua. Escolho
por andar um pouco mais afastado das duas. Dois cientistas
que conversavam calorosamente, quase que discutindo,
trombam comigo.
- Desculpe doutores.
- Tudo bem, só não se perde, tá? - Um deles diz
enquanto desvia para um grupo de dez cientistas ou mais no
canto. Todos tem óculos escuros blindados. Uma cientista
com uma sacola cheia deles oferece para Lilian e Isabel,
159
que aceitam já colocando e deixando as lentes repousarem
no topo da cabeça.
Volto a posição original corado pela vergonha de não
conseguir lidar com tudo aquilo. Passam-se alguns minutos
até que todos pareçam deixar o Maquinário de lado e se
reúnam junto daqueles no canto. Isabel encerra a conversa
com Lilian, que também se afasta. Ela mexe em seu
aparelho, boceja e pega em meu braço.
- Vamos lá, cowboy! - Ela me puxa até a escada,
subindo os degraus ao meu lado.
No caminho sei que a volta é um tanto improvável, o
que me dá espaço para confissões que não teria coragem
de fazer se não houvesse a mínima chance de não voltar.
- Isabel.
- Sim. - Ela responde com um sorriso sem mostrar os
dentes.
- Quando eu voltar... Se eu voltar... Eu gostaria muito
de te conhecer melhor. - Meu silêncio deve ter lhe parecido
súbito, como se não tivesse encerrado, pois ela demorou até
chegarmos ao topo para me responder. Na verdade, eu
gostaria de me envolver romanticamente, o que para ela não
deveria ser nenhuma surpresa, uma vez que comuniquei a
ela sempre de forma explicita minhas intenções.
160
- Claro. Podemos sair para beber algo. - Ela continua
a sorrir daquele jeito.
- Eu não bebo. Que tal um café, hein?
- Perfeito. - Ela aperta minha mão. - Isso é um trato.
Agora pode se sentar.
Eu me sento na ponta do assento. Pela altura em que
o assento está disposto a ponta dos meus pés sequer
alcança o chão. Ela me mostra algumas imagens para
acompanhar sua narração.
- Há dois anos descobrimos um armazém onde o
Algoritmo Absoluto enviava alguma forma de impulso
eletromagnético para o passado... Sinceramente, a ciência
de tudo é muito mais complexo, o que não é relevante
agora! - os barulhos do maquinário são graves, e ela
aumenta o volume de sua voz até o máximo para continuar
a me explicar.
Aceno com a cabeça tentando demonstrar que estou
prestando toda a atenção possível. Ela aponta para um
nome na tela.
- Esse será seu nome, você irá para a década de
1960. Não sabemos com precisão em qual ano, mas o local
em que você irá aparecer é um milharal... Foram anos de
contas para determinar retroativamente em comparação
onde o Planeta estaria na posição em que estamos hoje.
161
-... Ou seja, então eu não estarei viajando somente
no tempo, mas também no espaço, certo doutora?
- Exato. Bom garoto! - Ela aperta minha bochecha
como uma tia-avó, o que também me faz sorrir e corar como
uma criança.
Ela pegou a prancheta para si de volta. Eu tinha
acabado memorizar o nome, data de nascimento e dia do
desaparecimento misterioso de um idoso que foi nadar em
um rio.
- No dia 18 de Agosto de 1984 vá nadar no Rio Lete
que enviaremos alguém para busca-lo.
- Sim senhora! - Então percebo que passarei trinta e
poucos anos em missão. Quando voltar eu serei um idoso.
Meu convite para o café parece areia escorrendo pelos
meus dedos, junto de tudo que gosto tanto nesse futuro.
Ela tira algo do bolso. Um relógio com um mostrador
alaranjado e curvado. Ela passa a pulseira por volta do meu
pulso. Uma vez que as pontas se encontram parecem se
fundir em um ponto onde não deixam rastro, ajustando sem
apertar nem deixar frouxo.
- Ele avisará quando alguma coisa relacionada a
Grande Máquina estiver por perto. Lilian que fez. Isso aqui
com um toque pode ficar invisível e intangível, olha.
162
Ela bate no mostrador, que faz o relógio desaparecer.
Como um ignorante as palavras ainda ditas, quase que
pairando no ar, faço o esperado como um símio espacial e
tento passar na mão no que acabo de ver desaparecer.
Arregalo os olhos desacreditado em toda a realidade da
coisa. Tento olhar para meu pulso de diversos ângulos,
porém nenhum deles me é capaz de relevar que um dia
aquele relógio esteve em meu pulso.
- Para fazer reaparecer é só falar: Schroedinger.
O relógio ressurge em meu braço em segundos.
Consigo tocá-lo, como também ver informações da pulsação
e outros exames médicos em seu mostrador. Tudo parece
ser substituído por círculos finos que são criados no centro e
vão crescendo até alcançarem as bordas e se desfazerem,
da mesma forma que água calma em uma bacia onde
alguém acabara de jogar uma pedrinha.
- Ele está mostrando isso aí porque estamos pisando
em tecnologia do Algoritmo. Estamos trabalhando para ele
detectar coisas que não estão sob a posse humana, por isso
ele não apita, mas mostra. Se algum download de
consciência for feito nas imediações você saberá através de
um sensor que ligará um alarme que só você será capaz de
ouvir.
- Obrigado, doutora.
163
- Não seja por isso. Ah, e um último conselho.
Encontre em alguém que possa confiar, e conte tudo a ela.
O setor de comportamento traçou todos os pormenores, mas
o que você deve saber é que tudo bem ter uma Âncora.
- Âncora?
- É assim que eles chamaram. Algo para se segurar,
e não se sentir perder.
- Sim senhora. - Digo calmamente, segurando uma
continência.
Ela responde algo que não presto atenção. Tudo o
que consigo pensar é que ela sempre será minha Âncora
daqui. Desse tempo, desse lugar. Seu perfume é de
morango, e ela está próxima o suficiente para que minha
prótese nasal um tanto defeituosa reconheça o aroma.
Boa sorte soldado. - Ela se vira e desce os degraus
com pressa, quase escorregando na ponta de um deles. Ao
lado de Lilian, ela pega a mão da amiga e aperta com força.
Todos na sala respiram com menos frequência, com os
corações a mil e as cabeças tão pesadas quanto bigornas.
Os olhos dela lacrimejam. Eu gostaria de perguntar
se estava triste por me ver partir, mas a resposta em meu
íntimo é deprimente, talvez não tanto quanto a realidade.
Tento me agarrar ao mínimo e penso que ela chora pela
minha vida que pode ser interrompida, e eu simplesmente
164
aparecer morto no destino. Só Deus para saber com certeza
o que vai acontecer, uma pena ele não dar Spoilers nesses
momentos de maior tensão. - “Sem pai, ou amigos, sei que
ela é a única pessoa em todo o mundo que sentirá um
pouquinho da minha falta... Deus, por favor, não me mata”. -
Olho para cima, fazendo o sinal da cruz sobre o peito.
Clico no mostrador esperando que essa seja alguma
de tantas vezes que farei isso. Reclino-me no assento que
se abaixa com o peso do meu corpo para ver o orbe voltar a
se fechar sobre mim. Isabel não está mais em meu campo
de visão. Fecho os olhos e ainda penso nela. - “Seu rosto.
Seus olhos. Suas palavras. Seus conselhos. Seus testes.
Seu cheiro. Sua forma abstrata que me faz sentir tão...
Homem? Não, ela só me faz sentir menos solitário... Tão
humano quanto mereço”. - O orbe começa a girar mais
rápido do que antes, criando energia própria que descarrega
o excesso em raios verdes. O orbe gira e com mais
velocidade vai pouco a pouco diminuindo até alcançar um
tamanho microscópico.
O silêncio paira por um segundo, algo surge no
centro, crescendo em segundos até tomar o tamanho do
orbe original. Quando se abre só o assento permaneceu. Os
cientistas pulam para cima com os braços no alto,
abraçando e beijando em uma comemoração calorosa. Um
165
deles abre um champanhe que guardava em um dos vários
bolsos de zíper.
Sinto meu corpo lançado para cima, e sem conseguir
agarrar a algo dou três cambalhotas desengonçadas em um
breu absoluto. Mantenho os olhos fechados pelo percurso,
forçando minha face em uma careta enfezada. Sinto minha
velocidade diminuindo até flutuar por alguns segundos. A
roupa que envolve meu corpo parece desaparecer sem eu
ter percebido, e quando começo a cair sinto uma brisa muito
mais fria que o normal em cada centímetro de pele exposta.
Acho que gritei, ou murmurei algo, mas o som não se
propagava naquele enorme vazio. Quando volto a abrir os
olhos sou obrigado mais uma vez a fechá-los para não ver
um milharal de cima se aproximando da minha perspectiva.
Para minha sorte a queda é abafada o suficiente para eu
sentir que ninguém muito longe possa me ouvido.
Me viro para cima e de fato constato minha nudez.
Sem preparação alguma para isso me levanto olhando para
todos os lados e adiante. Encontro somente o sol poente no
horizonte formado por quilômetros espigas de milho. Antes
que possa respirar e comemorar (como sinto que devia),
meus tímpanos são violados pelo som de alguma arma
próxima ao disparar para o céu. Os pássaros que estavam
pousados por perto voam para longe, em um instinto de
166
sobrevivência que não consigo me render tão facilmente.
Quando penso em correr ouço outro disparo, mais próximo,
que me faz parar.
- Olha só o que temos aqui. - O homem tem uma
espingarda com o cano soltando fumaça apoiado em um
ombro. Ele usa chapéu de palha, camisa de algodão
vermelha e preta quadriculada, macacão e botas pretas de
borracha imundas com a terra vermelha. Sem um pingo de
esperança tento lembrar alguma reza, mas o medo torna
minha mente um espaço vazio em branco.
Ele apoia o cano em outra mão, parece carregada
quando ele engatilha. Vou a sua direção, mas o Senhor não
parece tão convidativo apontando a arma para meu peito
ofegante, onde meu coração e organal estão.
- Na-na-ni-na-não! Pra trás e mãos ao alto! - O
Senhor olha pela mira da arma. - Engraçadinho.
Obedeço sentindo que esse é o fim. Tento olhar para
cima e não prestar atenção na circunferência dos canos que
forçam meu peito um pouco para trás. Ele faz um barulho
que sei o significado. Ele recarregou, deixando que as
capsulas sem conteúdo caíssem no chão.
- Anda! Desembucha! - O homem urra com uma voz
rouca. - Quem é você e por quê tá pelado na minha
plantação?
167
- Sim senhor! - Reproduzo automaticamente fugindo
do personagem que não deveria ter nenhuma referência
militar. Engulo saliva pensando em quantas pessoas
trabalharam duro para me mandar a uma realidade onde eu
seria simplesmente morto na questão de um minuto. Se eu
fosse o único a ser enviado todo o Destino de muita gente
estava nas minhas mãos. Volto a olhar para baixo com mais
determinação do que medo. Mesmo assim sei que o espanto
vai ajudar. - Eu... Eu... Não sei... Senhor.
O Senhor aponta a arma para cima, ao lado da minha
cabeça, e dispara. Lágrimas automaticamente escorrem de
meus olhos, muco é produzido em conjunto, e quando
percebo estou com o nariz escorrendo e babando um pouco
também. Sinto um frio na espinha. O medo já foi instaurado
e tomou conta de meu sistema. Se minha morte for aqui
serei enterrado como indigente, e, talvez, covarde.
- Eu... Não sei, senhor! Eu não sei, senhor! - É tão
patético que ele vai ter que acreditar.- Não sei mesmo!
Fecho meus olhos e permaneço em silêncio,
congelado como uma estatua, esperando por um veredito
favorável.
- Conta outra... Me toma por um trouxa?
Abro a parcela de uma pálpebra para compreender
melhor.
168
- Nem um pouco, senhor. - Dessa vez não olho para
cima nem bato continência, por mais que me sinta muito
culpado por não fazê-lo.
- É do exército.
- Eu não me lembro, senhor.
- Eu acho que lembra... E aí? - O senhor cospe um
pedacinho de tabaco ao lado.
- E aí? - Pergunto voltando a abrir meus olhos. Um
vento gelado me alveja e meu corpo inteiro começa a
tremer. A temperatura parece cair de uma vez, e todos os
pelos de meu corpo arrepiam. - E aí que não estou
mentindo... Se for me matar, por favor, que seja logo. Pois o
frio e a fome me matarão aos poucos, e tenho muito medo
do que posso fazer por um teto e uma porção de comida.
Essa citação cai como uma luva. O senhor coça a
cabeça meio envergonhado, olhando para todos os lados.
Um de seus olhos lateja, o que interpreto por sinais de
grande estresse de sua parte. Ele respira fundo, passando
uma mão para dentro da camisa e coçando o peito.
- Só me faltava essa... Bom... - Ele respira fundo. -
Meu nome é Dumas. Todo mundo por essas bandas me
chama de Seu Dumas, o que não proíbo, mas também não
gosto muito não. - Ele cospe na mão e a estende para mim.
Reconheço um aperto, e faço o mesmo apertando sua mão
169
com asco. Ele balança um pouco antes de soltar e passar a
palma na coxa da calça.
- Prazer. - Digo sorrindo, tentando parecer cordial.
- Você lembra de algo? Qualquer coisa?
- Não, senhor.
- Pelo amor de... Bom, vem comigo.
Dou alguns passos atrás dele quando se vira e mete
o dedo em meu nariz. Ele range os dentes em um rosto
enraivecido.
- Se tentar alguma gracinha explodo seus miolos,
entendeu?
- Sim senhor.
Seguimos por muito tempo no meio da plantação até
encontrarmos um terreno plano, com grama e uma casa de
madeira velha. Ele caminha a passos largos até dentro da
casa. Espero-o atrás de algumas espigas. Algumas pessoas
passam perto de mim, conversando em alguma língua que
não entendo e dando risadas. Uma das mulheres me vê ali,
e corre para dentro de casa. Quando volta a sair Seu Dumas
a acompanha com um enorme saco branco. Ele joga aos
meus pés ao mesmo tempo em que aquela mulher volta a
seguir até uma estradinha de terra, onde uma carroça com
um homem de terno grosso a esperava. Ela usava um
170
vestido de pano branco com detalhes em salmão e seus
cabelos marrons pareciam arqueados até o máximo.
- Vista o que tá no saco pra ninguém mais se
assustar com seu troço.
Obedeço vestindo uma camisa amarelo mostarda de
botões e uma calça de pano sem barra. Encontro chinelos
de couro, um chapéu cinza velho e óculos de aros redondos.
Passo os dedos onde as lentes deveriam estar e fico
surpreso quando meus dedos atravessam onde elas
deveriam estar.
- Os óculos são pra disfarçar tua cara estranha... Vai
ali na carroça que eu vou avisa a Soninha.
Ele volta para dentro da casa. Eu me sento na
carroça que será puxada por um cavalo de pelugem negra e
velho, com pelo maltratado e várias cicatrizes de cortes.
Cego de um olho, o bicho não parece fazer muito da minha
presença, como os cientistas da sala do maquinário. Penso
no futuro de onde vim e tudo parece um sonho muito
distante perto do agora. Se me perguntassem alguns
detalhes, como as cores dos uniformes, coisas que usei por
dias a fio, não saberia responder. - “Talvez todo o passado
tenha de parecer um sonho, pois aí a gente aprende a
seguir em frente com mais facilidade”.
171
Ouço berros de dentro do imóvel, Seu Dumas passa
pelo umbral virando a cabeça com força para os lados, como
se injuriado. Sua filha vai até a porta, e ao olha-la da carroça
sinto que sua beleza é imensurável. Por um segundo ela
olha para mim, e seus olhos verdes escuros se fecham
abaixo de duas sobrancelhas pretas arqueadas como asas
de corvos no céu limpo. Seus cabelos são tão negros quanto
a pelugem do cavalo, seu rosto fino tem lábios carnudos e
um nariz arrebitado. Ela usa um vestido de primavera
amarelo com detalhes pretos costurados e descosturados
nas mangas e para combinar um chapéu com girassóis no
laço queimado. Ela fala algo a ele que não compreendo. Seu
pai sobe na carroça, pega as rédeas e balança para que o
cavalo comece a andar. Permanecemos em silêncio pelo
percurso.
Olho para trás algumas vezes, na quarta ou quinta
ela entra em casa de braços cruzados e rosto enrubescido.
Tento adivinhar o que poderia ter deixa-la brava, mas é
muito difícil quando se conhece tão pouco. Sei que a
estética me permite tanta compreensão quanto a utilidade
de um curso de aviação para animais marinhos.
Seguimos pela estrada de chão por alguns
quilômetros até uma estrada asfaltada. Por ela seguimos por
uma hora, ainda anoitecendo chegamos à pequena cidade.
172
As casas terminadas com gente dentro eram de madeira,
mas em alguns lugares se encontravam pessoas em
carroças com tijolos e cimento. Seria o fim de uma era com
a virada da metade do século, o fim da segunda grande
guerra mundial e a instalação da ditadura não demoraria
tanto. Se alguém nascesse hoje debutaria com o golpe.
Seu Dumas parou a carroça em frente a um local que
parece uma capela suja e abandonada. Desceu e indicou
para a capela. Antes de deixarmos o cavalo sozinho ele
retirou uma cenoura do bolso. O cavalo balança o rabo com
a mordida que pegou três quartos do vegetal. Seu Dumas
fez alguns carinhos no animal antes de deixa-lo. Dirigimo-
nos subindo algumas escadas cinzentas. Alguns
enfermeiros e médicos transitam pela entrada que dá para
três corredores. Todos parecem ter pressa, o que me pesa
no coração perceber que isso será o comum sempre.
Sempre em movimento para nunca parar, e quando para,
não sabe o que fazer. Meu pai era assim, sempre se
exercitando e fumando. Quando não podia mais fumar, teve
que parar de se exercitar. Ele tentou suicídio algumas vezes,
e tomou multas por isso. Sem o dinheiro para pagar ele
escolheu a eutanásia. Esses últimos momentos foram no
decorrer de uma semana, como eu já disse, ele não perdia
tempo mesmo.
173
“Me repito e me contradito por dois motivos: sou
humano tão humano quanto um macaco pelado pode ser, e
tão macaco quanto um homem excitado pode ser”. - Lembro
desse trecho de uma música e só consigo me perguntar se
há algum tipo de música aqui. Sem querer soar
inconveniente, ou saber do futuro, escolho pode dizer
somente o necessário por enquanto, para não acharem que
sou louco. Em um hospital é muito fácil de alguém notar
estranhezas. Estou tão exposto quanto aquele homem sem
pele, daquele curta que eu gostava, e também como a
música em épocas mais rebeldes.
- Bom dia Seu Dumas. - A moça da recepção
cumprimenta ao chegar no balcão com uma cadeira atrás.
Ela se senta, abre um enorme caderno com capa de couro,
e molha a caneta em nanquim. - O que o senhor precisa
hoje?
- Eu não preciso de nada hoje Alice. - Seu Dumas
gesticula mexendo os braços ao máximo. - Esse meu amigo
aqui apareceu desmemoriado na minha plantação... Achei
que seria bom dar uma olhada na cabeça pra ver se todos
os parafusos estão no lugar.
Ele deixa uma mão apoiada na cintura. Assovia bem
baixinho.
174
- Qual o seu nome? - Ela pergunta com um sorriso de
boca fechada.
- Eu... Não me lembro. - Dou uma risadinha
envergonhada. Tento olhar para Seu Dumas, mas ele se
distraiu com um homem ensanguentado carregado de maca
por alguns enfermeiros.
Respiro fundo quando percebo já estar suado de
respirar mal. Se eu tiver que falar mais terei que mentir, e
para me lembrar de tudo terei que pedir um diário para ele,
ou comprar um depois.
- Pode colocar meu nome no livro, xuxu. - Seu Dumas
voltou a atenção para ela, dando uma coçada no fundo do
nariz.
- Podem se sentar... Avisarei o Doutor que estão
esperando.
Ela não reage tão bem ao ato, fechando o livro com
rapidez e força extrema. A capa ao bater espalhou camadas
de pó que voaram em uma pequena nuvem sobre a mesa
da recepção e nós dois. Ele bate um pouco nas roupas, e eu
tentei imitá-lo tentando desesperadamente parecer como
alguém daqui.
Respiro fundo. Me sinto um tanto inútil sem conseguir
lembrar muito de quem deveria imitar. Não me lembro das
ocupações que ele deveria assumir, nem dos hobbies, ou
175
história simplificada. Só da data de volta. A paixão me
deixou cego para todo o resto que considerou
desnecessário. Rezo mais uma vez, agradecendo um pouco
por ter sobrevivido ao orbe, e a queda, e ao Seu Dumas ali
com uma espingarda (que parecia carregada). No aguardo
ele sai três vezes para acender alguns cigarros do lado de
fora. Ele assopra com força para o lado oposto a capela, no
topo da escadaria, porém o vento traz o cheiro forte da
fumaça para dentro.
Nos sentamos ao lado do balcão em alguns assentos
de madeira mal entalhada. Fico mexendo o quadril para
encontrar uma posição boa, o que se prova impossível. Seu
Dumas só espera de braços cruzados assoviando. Algumas
pessoas aparecem por ali, e Alice pede para que contornem
até uma porta logo ao lado, onde a emergência está situada
para atender melhor aquele tipo de situação de vida ou
morte. Por alguns minutos bato o dedo na minha perna, e
quase consigo me lembrar do cheiro neutro dos dormitórios,
ao contrário daquele lugar que cheira a um incêndio em uma
farmácia.
- O Doutor está te esperando. - Alice nos avisa depois
de voltar pela terceira vez do fim do primeiro corredor. Ela
parece ofegante quando nos despedimos por enquanto.
176
Olho para Seu Dumas a todo momento, tentando me
manter atrás dele ao entrar no local de consulta daquele
médico. Se eu tivesse ido sozinho com certeza acharia que
ao passar pela porta teria sido escaneado, e com o Plano de
Saúde em dia, um Androide teria todo o meu histórico
médico dos últimos meses. Seu Dumas me deixa passar, e
foca parado apoiado na parede, ao lado da porta e uma
lixeira.
O Médico anotava algo em uma folha sobre uma
escrivaninha de madeira gasta. Ele se levantou, ajeitando a
gravata, batendo o jaleco e pegando um par de luvas de
borracha dos bolsos. Em um copinho na escrivaninha catou
um palito de madeira.
- Pode se sentar. - Obedeci no mesmo instante,
batendo os sapatos de ansiedade.
Cogito a hipótese de contar tudo a ele. - O juramento
de Hipócrates tem alguma relação com o sigilo médico-
paciente? Não! Não! Burro. É claro que ele vai te achar
louco de qualquer jeito. Aparecendo do nada. Mesmo se não
tiver nada na minha cabeça, ele vai é me internar, isso sim. -
Respiro fundo mais uma vez, transpirando horrores no calor
sem nenhum aparelho de ar-condicionado ou temperatura
ambiente.
177
- Agora abre bem a boquinha. - Abro sentindo violado
com o seu procedimento. Ele simplesmente levou aquilo até
o fundo da minha garganta, mirando com os olhos através
de lentes bem grossas. Não sei o qual diagnostico buscava,
pois nem sequer nos perguntou o motivo da visita, ainda
mais que duvido imensamente que sua assistente tenha lhe
informado sobre. Sinto ânsia de vômito antes dele dizer. -
Interessante.
Ele jogou o palito no lixo. Esfregou as luvas e olhou
para mim.
- Qual o motivo da visita? -
Eu penso em falar, até abro a boca, mas sou
interrompido por Seu Dumas antes de sequer começar.
- Ele apareceu na minha plantação sem lembrar o
próprio nome... Achei que pudesse ter sido assaltado, ou
algo do tipo, e batido a cabeça, ou... Sabe?
- Se sei? - O Doutor ri. - Até demais. Essas bandas
ficaram perigosas depois da Guerra.
- Segunda Guerra? - Pergunto extremamente
embasbacado, não poupando a transparência na confusão.
- Segunda Guerra? - O Doutor olha com uma
sobrancelha levantada. Ele puxa o estetoscópio para os
ouvidos, e move ponta até o lado esquerdo do meu peito.
Parece impressionado com o que ouve. - Um batimento
178
perfeitamente sincronizado. - Ele aperta os músculos em
volta. - O senhor poderia por gentileza tirar a camisa.
Todos os seus pedidos são ordens. Me mantenho de
pé para conseguir desabotoar os pontos mais apertados.
Tento concluir o mais rápido que consigo. Volto a me sentar
com a camisa envolta nas minhas costas, braços e ombros.
Ele pega um conezinho de metal gelado descascado e
passa pelo meu peito, principalmente onde meu coração e
organal estariam. Além de gerar uma leve cosquinha, sinto
uma profunda aflição quanto aos implantes que não sei a
razão de mantê-los sem a devida manutenção.
- O senhor fuma, ou bebe?
Dou de ombros com um sorriso de boca fechada.
- Há um pequeno inchaço ao lado de seu coração... -
O Doutor coça o queixo. - Eu mandaria para uma análise de
necessidade, mas essas coisas tem de ser marcadas com
antecedência. Passem com a Alice na saída, ta bom?
- Pode deixar... Acha que a cabeça dele está boa? -
Seu Dumas pergunta, voltando a assoviar bem baixinho.
Sua impaciência parece ter passado para as pernas, que ele
cruza e descruza sem parar. Como os braços, deixando ao
lado do corpo, juntando as mãos atrás, e cruzando na frente.
Entre tudo isso ele pisca um pouco mais que o normal
também. Sua aparência com certeza devia parecer pior que
179
a minha. Seu tom de pele parece pálido, junto dos olhos
acompanhados de tremendas bolsas de cansaço e cabelo
bagunçado.
De um momento para o outro ele começou a bater a
ponta do pé no chão, acelerando e diminuindo sem ritmo
definido. Ele olha para todos os lados, como se alguém
pudesse surgir de qualquer canto e assustá-lo. O Doutor
arregala os olhos como se tivesse se esquecido de algo,
pega a minha cabeça com as duas mãos, na ponta de todos
os dedos para segurar, e observa-a de todos os ângulos. Ele
balança de lá para cá, me dando uma pequena tontura.
-Sinceramente... A cabeça está no lugar, não tem
nenhum corte, e não parece ter nada de diferente de
qualquer cabeça... O que ele pode estar passando é algo da
seara psicológica... Talvez o Alienista na Rua das Flores
possa ser de alguma ajuda. - Ele puxou de um cartão de
uma caixinha na escrivaninha ao lado da porta.
Seu Dumas pegou o cartão e deu um peteleco na
ponta antes de guardar no bolso do macacão.
- Abotoa issaí que te encontro lá fora. - Ele aponta
para meu peito com o indicador, e lá fora com o dedão, se
apressando a sair.
180
- Muito Obrigado doutor. - Digo ainda tentando forçar
o terceiro botão, percebendo que estão fora da ordem, e
desabotoando para começar novamente.
Alice surge com uma folha grande cheia de
anotações. O Doutor a pega para ler sentado em sua
escrivaninha. Os dois cochicham algo bem pertinho, o
suficiente para eu entender bulhufas, e ela sai balançando a
cabeça em negativa. Uma família de cinco entra no
consultório. O Doutor me encara ainda no meio do processo,
e começa a atendê-los parecendo esquecer da minha
presença. Quando saio sem falar mais nada ainda estou no
penúltimo botão. Passo pelos corredores escuros e vazios,
muito diferentes de quando a gente entrou.
Seu Dumas está ali fora, apoiado no balcão
conversando com Alice. Ele para quando me aproximo,
olhando para mim junto dela.
- Vamos passar em um lugar antes de volta a
fazenda... Tudo certo por você?
- Claro. - “Afinal de contas você é a minha única
esperança de passar a noite embaixo de algum teto”.
De certa forma seu bom coração me mantém refém
de qualquer desejo dele, o que me deixa incomodado, mas
não tanto para transparecer.
181
- Tchau princesa... Dê notícias para seu pai. - Ele dá
dois tapinhas no balcão antes de sair.
- Tchau... Alice. - Digo bem baixinho seguindo-o para
a porta de saída.
- Tchau rapazes... Se cuidem.
- Pó de chá. - Seu Dumas diz acenando já de costas.
Passamos pela carroça na direção oposta do
hospital.
Seu Dumas assovia com as mãos enterradas em
seus bolsos. Encontramos um local com paredes baixas,
janelas enormes, com três degraus verdes na entrada na
porta da diagonal. Parecia uma casa normal de porta aberta,
por onde entramos. Muito diferente de qualquer casa,
haviam diversas mesas de madeira com quatro cadeiras
cada. Uma moça estava atrás do balcão que guardava o
armário de portas transparentes com os mais diversos tipos
de bebidas e uma porta ao lado para os fundos. Havia um
cheiro quase intragável de gordura queimada que
impregnava todo o local. Seu Dumas puxou uma cordinha
ao lado da porta, que levava a um sino em cima da porta do
lado de dentro. O mesmo badalou cinco vezes bem alto, e
três vezes baixinho. Uma moça de mais ou menos vinte
anos saiu da porta dos fundos com um cigarro todo amarelo
claro aceso entre o dedo indicador e o dedo médio.
182
Seu Dumas foi até uma cadeira alta de frente para o
balcão e a mulher. Devo ter congelado por alguns segundos,
pois os dois me encararam com faces nada amistosas. Ele
até deu algumas tapinhas no assento ao seu lado me
convidando a me apressar.
- E aí velhote, o que vai ser? - A moça deu um trago
forte, e pegou um bloquinho de notas de dentro do avental
amarelado enquanto assoprava para cima.
- Uma pinga pra mim, uma porção daquela mandioca
boa e um... - Ele olhou para mim.
- Água, por favor. - Respondi ao seu apelo sem saber
o que era comum ou não nessa época. Água tratada em
algumas décadas atrás, até onde eu sei, seria um luxo.
- E uma água pro rapazote. - Ele pediu, dando alguns
petelecos na madeira velha do balcão, que rangeu em
resposta.
Ela pegou dois copos americanos dentro de alguma
porta baixa do balcão. Serviu água com gelo em um deles, e
no outro teve de alcançar uma garrafa de líquido tão
transparente como água, porém um pouco mais denso. Ela
encheu o segundo pela metade, alcançando a Seu Dumas
que deu dois goles longos, fazendo caretas.
- Mais uma princesa. - Ela pegou o copo da mão dele
e serviu de volta.
183
- Agora vê se você segura um pouco, tenho que fazer
a mandioca.
Ele piscou com um olho e um sorriso amarelo. Ela
soltou um riso. Eu bebi em goles curtos a água que descia
com dificuldade pela minha garganta. A dificuldade para
engolir até poderia ficar estampado em meu rosto, mas Seu
Dumas somente tinha olhos para a porta onde ela tinha
entrado. As miçangas de madeira estavam presas ao lado
por fios pregados a parede.
- Qual o nome dela? - Pergunto na esperança de ao
menos lembrá-lo de que estou aqui.
- Da mulher? - Ele me olha com os olhos
parcialmente abertos. As piscadas dele levam mais tempo
do que antes. Seu bafo é terrível assim bem próximo. -
Dalva. Filha de uma conhecida minha. Garota de ouro... Se
você quer saber acho que ela vai fazer esse lugar crescer
horrores.
Bebo um gole mais longo para matar de vez, me
assustando com o cubo de gelo que bateu com força no
meu dente.
- O que é tudo isso aqui exatamente? - Olho em volta.
Só alguns lampiões a gás foram acesos, espalhados pelo
local. Tudo tinha um aspecto de abandonado pela noite. As
pessoas se tornavam vultos na rua, dentro das casas
184
escuras não eram vistas, e o mundo parecia em silêncio
nessa enorme escuridão.
- Um boteco. - Seu Dumas terminou sua segunda
dose, voltando a dar petelecos na madeira. Parecia um
pouco mais calmo, com os ombros baixos, um sorriso de
boca fechada e um olhar perdido. - Ele ficou fechado por
tempo demais. A freguesia de antes esqueceu que tá
abrindo esse horário. Quem fica em casa dorme cedo pra
pegar tranquilo e relaxado no batente.
Dalva trouxe a mandioca, que não passou de cinco
minutos sem ter o prato limpo. Seu Dumas arrotou no meio
da terceira dose, indo para uma quarta, e encerrando na
quinta. Pelo que percebi Dalva olhava para ele com um jeito
estranho, meio preocupada e um tanto quanto aliviada por
vê-lo.
- Vamos moleque! - Ele anuncia mais alto do que o
necessário, se levantando rápido demais e seguindo até a
porta, se despedindo já de costas. - Tchau boneca!
- Tchau, Seu Dumas! - Ela também se despede.
- Tchau, Dalva. - Falo baixinho.
- Tchau, tchau. - Ela sorri, recolhendo os copos e o
prato para dentro.
Sigo-o até a rua. Ele puxa um cigarro igual ao dela, e
fuma por três minutos até realmente abrir os olhos e se tocar
185
que tem de voltar à carroça. Eu já estou sentado quando ele
consegue chegar lá tropeçando nos próprios pés pelo
caminho. Pegando as rédeas ele volta a pilotar o cavalo com
os olhos lacrimejando, o rosto enrubescido e a respiração
pesada. - “Tudo ao anoitecer parece ter passado num
estalar de dedos... Tomara que os próximos anos também
sejam assim... Mais alguns desses e estarei no meu café
com Isabel, de um jeito ou de outro”.
Demoramos algumas horas até chegar a sua casa.
Passamos pela estrada no breu absoluto, a mercê de
qualquer pequeno imprevisto ou perigo. Ele parece
mergulhado em pensamentos, reagindo a eles de forma
exagerada. Sob a luz do luar passamos por um pedaço mais
amplo, mas não consigo reconhecer nada na volta. Na
estrada de terra é que me encontro aliviado de toda a
tensão. Desço da carroça alguns metros antes dele parar, e
corro até um pedaço de arbustos atrás da casa, onde
ofereço alguns litros da minha urina. Voltando até a casa
encontro a porta trancada.
Dou três batidas. A moça de cabelos negros lisos
abre um tanto assustada, com a espingarda em uma mão
apoiada na cintura. Penso em dizer algo como: -
“Suspendam o teste de DNA, os dois já miraram em mim
com a mesma arma no mesmo dia!” - Mas prefiro não
186
passar pelo ridículo. Sem falar que estou sóbrio para poder
distinguir um procedimento ainda não inventado nesse
tempo, ainda mais da forma que eu compreendo. Ergo as
mãos um pouco preocupado. Ela parece sonolenta, como
ele, mas de um jeito mais natural. Sem o bafo de bebida
também.
- Ah, você. - Ela arregala os olhos, encostando a
espingarda de volta atrás da porta e me dando espaço para
passar. Passo e ela tranca a porta. É a primeira vez que
entro aqui, e o cheiro de mofo em alguns pontos do teto de
madeira se mistura com um odor forte de algo queimado.
Torço o nariz, tentando coçar com a vã expectativa de
descobrir algum botão que possa desligá-lo.
Eu tento esboçar um sorriso, que deve ter parecido
mais uma careta, sendo que a resposta dela foi torcer o
nariz para mim. Ela vai até a mesa, onde o pai repousa entre
sono e acordado em uma cadeira que range
exageradamente a cada respirada dele.
- Me ajuda a levar ele para a cama? - Ela junta as
mãos atrás das costas, movendo uma perna, e parecendo
perder dez anos naquela iluminação baixa.
- Claro. - “Nem mesmo se Lilian estivesse no lugar
dela eu iria recusar”.
187
Ela apoia uma mão no ombro dele, balançando com
força para que escape do transe sonífero. Ele acorda
alarmado olhando para todos os lados até encontra-la ao
seu lado. Ele coloca as duas mãos em torno no pulso dela.
- Te amo filha... Você sabe que te amo? Eu amo
sim... - Ele sussurra. Ela afasta o rosto para outra direção.
- Senhor amado, que bafo!
Não aguento o riso, e deixo escapar uma gargalhada
quase sem som. Ela também sorri, o que me deixa mais
aliviado.
Ela passa um braço dele por trás do pescoço,
voltando a olhar para minha direção. Entendo a mensagem,
e faço o mesmo com o outro braço. Ele é alto, o que dificulta
para caramba quando ele deixa as pernas eretas.
Ele insiste em jogar todo o peso para o lado dela,
chegar com o rosto o mais próximo possível, e falar no que
parecia um sussurro, só que para alguém com sérios
problemas de audição.
- Te amo pra caramba, sabe, tipo o ... Tomei só um
pouquinho hoje, um titico tico pra animar os... Como sua
mãe, eu te ... A colheita não... Sabe? você é tão... - Ele toma
pausas para engolir saliva, se perdendo e as vezes se
repetindo e parando no mesmo ponto para voltar a algo
totalmente diferente.
188
Sinto que por um teto e uma cama já fiz mais do que
o necessário. Tento pensar em milhares de outras coisas
enquanto passamos do corredor para o quarto com
dificuldade. Semana que vem eu talvez tenha de evitar ser
dissecado pela equipe médica, mas o que importa nessa é
ganhar a confiança dele, e talvez um trabalho para ter
recursos para as investigações. - “Meu relógio... Olha só! Já
tinha até me esquecido... Não tocou nenhuma vez... Será se
quando caí eu desmaiei por algum tempo? Permaneci de
olhos fechados pelo que pareciam segundos, mas depois de
viajar no tempo tudo é possível”.
Paro minhas reflexões depois de entrarmos no
quarto. Damos um giro e sentamos com ele de costas para a
cabeceira da cama. Com cuidado deitamos junto dele,
arrumando os braços ao lado do corpo, e sentando. Estou
um tanto ofegante, ao contrário dela que, parecia olhar para
o nada sem expressão. Ela parece voltar a si depois de
respirar bem fundo, colocando uma perna dele sobre seu
colo, desamarrando os cordões da botina, e fazendo o
mesmo com a outra. Eu me ajoelho no colchão, reclinando
até seu peito, e tentando empurrá-lo pelos sovacos um
pouco mais para frente. Ele sussurra uma cantiga de ninar
que não me soa estranha, mas a letra se perde logo depois
de eu tê-la ouvido.
189
- Obrigada. - Ela fala ao se levantar, ir até o guarda
roupa e pegar um cobertor. Ela o cobre com uma manta
leve, deixando os pés de fora. - É o que dá pra hoje.
- Ao menos ele tá usando meias. - tento quebrar o
gelo, ela escapa um sorriso, mas volta ao semblante sério.
- Quer ir na cozinha comigo? - Ela pergunta
apontando para a porta como alguém pediria carona.
- Claro. - Respondo prometendo tentar mais
afirmativas além dessa para não ficar chato.
Sento onde ele estava enquanto ela pega algo em um
armário. Dois copinhos de vidro, que ela enche com uma
garrafa marrom com rótulo preto. Ela bate a borda de um
copinho no outro, e dá um gole tão insignificante que o nível
do líquido parecia ter continuado intacto. Ela parece
cansada, com a má postura e olheiras sutis. Respira
algumas vezes com força, chegando a bufar. Passa a mão
no rosto antes de falar.
- Desculpa... Eu não costumo fazer isso... Só tô
cansada, sabe?
- Se sei? - Levo o copinho à beirada de meus lábios,
e deixo todo o conteúdo escorrer da língua relutante pela
minha garganta, da pior forma possível. Tusso algumas
vezes, com os olhos lacrimejando e o rosto enrubescido. -
190
Eu nunca bebi esse tipo de coisa antes... Acho que vou
precisar de mais algumas para me acostumar.
Não estava bêbado, mesmo. Talvez achasse que
estivesse pelo conhecimento geral quase nulo sobre álcool.
Meu corpo relaxou em instantes, deixando minha cabeça
muito mais leve que o normal. Minhas preocupações sobre a
possibilidade de ser descoberto diminuíram em um nível
consciente. Ela, pelo contrário, pareceu mais alerta,
arqueando uma sobrancelha. O que me parece é que a
expectativa cria um placebo inquestionável.
- Achei que você fosse o Senhor Esquecido. - Ela
comentou, colocando um punho fechado sobre a mesa.
Um raio lá fora dispara, porém somente eu consigo
esboçar um susto legitimo sobre o inesperado longínquo e o
próximo. Olho para ela pelo que parecem milênios, tentando
formular alguma resposta satisfatória que de alguma forma
tampe o buraco que eu estupidamente abri em uma frase.
As nuvens cospem pingos distantes no início, aumentando
sua velocidade progressivamente até encontrar um temporal
pesado, que alcança a janela ao lado dos armários e bate
com força. Uma brisa fria entra pelas fissuras na madeira, e
a vela, o único foco de luz, treme violentamente, tornando
nossas figuras instáveis e tenebrosas. Penso em todas as
possibilidades, mas dentro de cada mentira que cogito criar,
191
abro um espaço para ela descobrir mais, até me ter na sua
mão. - “Eu posso contar para ela tudo... Ela é mulher nessa
época, está tarde da noite, e estamos bebendo. Não é o
cenário perfeito caso ela busque minha exposição... Ainda
mais que ela seria de altíssima utilidade caso uma pudesse
me dar um teto se o Senhor Dumas falecesse”. -
Infelizmente neste caso não poderia haver tentativa. Era
uma aposta de tudo, e nada, totalmente contra o protocolo. -
“É muito difícil não sentir medo de perder quase tudo
quando se tem tão pouco”. - Mas os lucros seriam muito
maiores que os reveses.
- Touché. - Arranho o que acho ser... francês?
- Touqué? - Ela me pergunta sem parecer assustada,
apesar da confusão estampada em suas feições.
- Me desculpe. É uma expressão estrangeira.
Significa “me pegou”. Só queria ser dramático.
Ela serve mais dois copinhos.
- Bebê se for homem. - Ela desafia, erguendo o
copinho dela. Brindo em resposta, bebendo com tudo e
fazendo careta. - Que bom que ao menos isso eu sei que
você é.
Ela não parece aliviada quando coloca as mãos em
cima da mesa, e aperta uma na outra com força.
192
- Eu sou homem... Não sou um alienígena, ou animal
disfarçado de humano. Disso pode ficar tranquila. - Pego a
garrafa e me sirvo. A minha iniciativa parece intriga-la. Sirvo-
lhe também para não parecer um ingrato. - Eu tenho um
milhão de segredos que não contaria nem sob tortura.
Um calor que nunca tinha sentido antes toma conta
de meu rosto. Diferente da febre eu sinto que meu corpo
está reagindo com muito mais delicadeza ao álcool. Sei que
meu rosto deve estar parecendo pintado de rosa claro. -
“Com isso posso me preocupar depois”.
- E o que faz aqui nesse fim de mundo?
- Eu caço. - Minha excitação automaticamente
carimba um sorriso em meu rosto. Pela primeira vez me
sinto interessante, e isso é impagável. Se é do álcool não sei
por que me privei desse luxo por tanto tempo.
- Caça o que? - Ela aperta a própria mão com mais
força, reconhecendo a dor e trocando as duas de lugar para
prosseguir com seu método de controle de tensão.
- Eu não vi com meus próprios olhos ainda... Mas
quando “eles” aparecerem eu vou saber.
- “Eles”?
- Isso. Homens máquina. É bem complicado... A
melhor parte é que eu me lembro de tudo mesmo. Ponto
193
para você. - Aponto para ela mesmo que esteja a nem um
metro de distância.
O silêncio entre nós não reflete os barulhos de
goteiras por toda a casa, a chuva pesada que alvejava a
moradia de todos os lados, e o ranger sem motivo de alguns
lugares. Reclinei-me para trás na cadeira, fazendo um
encosto para a cabeça com os braços cruzados. Ela me
olha, e então vira a atenção para a janela, a vela, e retorna
para meu todo convencido e bêbado.
- Bom... Não quer contar?
- Eu não sei se posso confiar mesmo em você. -
Confesso de olhos cerrados.
- Eu acho que pode.
- O que me garante? - Pergunto sabendo de fato que
se Isabel pudesse me ver agora estaria boquiaberta. A
necessidade finalmente me tornou no agente temporal que
eu devia ter sido desde sempre.
- Eu te conto algo... Que ninguém ouviu também.
- Trato?
- Trato.
Cuspo na palma da minha mão, apertando os dedos
para ver se a saliva se espalhava pela superfície. Algo que
somente tinha visto nos filmes, e claramente proibido em um
futuro mais preocupado com a higiene. Ela aperta com força,
194
com um sorriso de canto de lábio. Ao soltarmos não tenho
tanta certeza de por onde começar. Brindamos mais uma
dose, o que parece uma solução viável para a criatividade e
a coragem.
- Eu não sei se você sabe... - Falo sentindo algo
estranho na minha voz. Como se eu lutasse para falar com
ela da forma que sempre falei, mas apresentando certo
atraso na conclusão das palavras, revelando um sotaque
americano. -... Mas seu pai tomou (pelo que eu contei) uns
seis desses no Boteco da Dalva... Achei que devesse
saber... - Sussurro no final.
Ela apoia os cotovelos na mesa, e encosta a cabeça
nas mãos abertas.
- Eu sei... O cheiro é impossível de disfarçar. - Sua
voz é muito mais grave com o nariz entupido. - Agora vai...
Me conta da sua caçada.
- É muito simples chapeuzinho... - Faço uma piada
que ela claramente não entende, passando a mão pela
cabeça. - Deixa isso de lado por enquanto.
Volto a ficar na postura depois que quase caio com
as costas para trás.
- Eu... - As palavras voltam a me custar muito para
sair em ordem. A bebida parece criar um véu entre todo
aquele conhecimento que eu devia ter guardado melhor com
195
métodos de memorização. - Eu fui mandado por uma
organização semimilitar e cientifica para o passado no intuito
de que desmantelássemos um plano de um computador,
que se autodenomina Grande Máquina.
- Espera. - Ela balança as mãos, piscando algumas
vezes. - Eu não sei se entendi uma palavra do que você
disse.
Ela parece envergonhada. - “Não é para tanto, os
termos de uso comum no futuro serão criados ainda. Tenho
que reformular muita coisa ainda”. - De alguma forma isso
me deixa ainda mais ansioso por tentar.
- Tinha uma máquina no futuro. Ela se chamava
Algoritmo Absoluto, e ela era todo o governo. A gente meio
que deu tudo na mão dela para resolver. - Agora a vergonha
é minha. Não fui muito atento a política, e com certeza
devem existir diversos artigos no futuro sobre como o
Algoritmo Absoluto ter todo aquele poder era algo terrível de
se acontecer. -... Bom, ela era uma Máquina perfeita. Fazia
tudo que a gente pedia, mas fez coisas ruins. E seus males
não equilibravam na balança o bem que fazia, e ela teve que
ser desmontada.
Ela não tira os olhos de mim. Por mais que o cenho
franzido seja de confusão total, ela acena com a cabeça a
cada afirmação, totalmente compenetrada.
196
- Mas a Máquina não queria ser desmontada, e ela
traçou um plano de enviar partes dela para utilizar de
humanos aqui. Ela passaria de individuo a individuo aqui,
tentando mudar a cabeça das pessoas no futuro.
- Meu Deus, como isso?
- Bom, até onde eu sei tem um negócio que é a
Herança Genética. Imagino que seja como a herança da
casa que seu pai vai deixar para você, só que se você for
contaminada pelo negócio da Máquina, vai fazer com que
seus tataranetos no futuro, quando o Algoritmo for para ser
desmontado, tome o controle de todos, feito escravos. - Eu
não tinha certeza se conseguiria traçar uma linha tão clara
quando comecei a frase.
Minha cabeça começa a doer um pouco do lado
direito, quase pulsando como um coração, de certa forma.
Seguro-a sentindo que por um momento ela quase se soltou
do meu pescoço.
- E como vai caçar esses pedaços da máquina?
Eu abaixo a manga da camisa. Aponto para meu
pulso.
- Tem um relógio que você não consegue ver, nem
ouvir, só eu. Ele vai apitar quando algum desses pedaços
estiver por perto, aí cabe somente a mim expurgá-lo.
- E isso seria...?
197
- Matá-lo, infelizmente. - Tento parecer preocupado
com isso, mas a bufada de ar só deve ter parecido
indignação com fazer o serviço, não a interrupção da vida de
um estranho. - “Caso ela conte pontos por empatia, estarei
zerado até amanhã, certeza”.
- Entendi... Que bom que você tá aqui, salvando o
mundo dos computadores. - Ela fala sorrindo de olhos
fechados. Nem me passa pela minha cabeça corrigi-la.
- E o seu segredo?
- Eu escrevo histórias. - Ela fala, mais de perto, quase
sussurrando. A bebida parece diminuir os sentidos, ao ponto
de saber que ela fala alto e encarar da mesma forma, como
se estivesse me falando em cochichos.
Isso me sobressalta.
- Histórias?
- Isso. No meu quarto tem um caderno, e eu escrevo
da hora que ele sai para ir à Dalva até sentir sono. - Ela gira
o pescoço em um alongamento desajeitado.
- E sobre o que são essas histórias?
- Cotidiano... Na maioria. Difícil imaginar algo que eu
não sei. A Biblioteca daqui fechou, e só consigo comprar
livros uma vez ao ano. Sei ler, só que se tiver uma palavra
estranha no livro não vou saber o que é.
- Acho que você precisa de um dicionário. - Comento.
198
- O que é isso? - Ela pergunta encucada.
- Um livro com muitas palavras e seus significados...
Uma palavra pomposa para dizer “o que elas querem dizer”.
- Gesticulo com a mão. Minhas pálpebras vêm a pesar muito
de minuto em minuto. A chuva lá fora com seu barulho tem
um efeito hipnotizante. - Acho que isso vai... Te ajudar.
- Legal. - Ela comenta, voltando a olhar para a janela.
- Eu já quis ser poeta. - Confesso. - Quando jovem.
Antes de ser militar. Meu pai não aprovava, aí fugi de casa.
Quando fui trazido de volta pelas autoridades ele estava me
esperando com um formulário de inscrição na escola militar.
Desde então sempre estive ali, mas não foi por querer. - Não
quero me fazer chorar, por mais que os olhos comecem a
marejar bem rápido. Antes que perceba algumas lagrimas
escorrem pelo meu rosto. A última vez que chorei nem faz
tanto tempo, mas essa parece me dar um alivio tremendo. -
Desisti da poesia, mas nunca da leitura. Gostava muito de
Gusmão Guilherme Oliveiras, um escritor dessa época
mesmo... Ele foi publicado por muito tempo, mas só teve
reconhecimento depois de muito tempo depois que morreu.
Muita gente disse que ele era profeta, sabe? Eu acho que
ele só imaginava as coisas com o que tinha, e o caminho da
humanidade não podia ser outro...
199
Ela puxa a cadeira até o meu lado, posiciona sua
mão acima da minha, e coloca seus dedos nas aberturas
entre os meus. Seus olhos não brilham na luz baixa, porém
ainda são encantadores.
- Ele falava comigo... Direto comigo... Era um autor
com muitas obras para jovens, só que acho que era mais
pela simplicidade do que pelos temas.
- E o que aconteceu com ele?
- A biografia diz que ele sumiu, mais ou menos daqui
uns vinte anos... Quase na mesma data que minha carona
do futuro vem me buscar.
- Você podia encontrar ele, para conversar, quando
não estivesse fazendo sua caçada.
Algo me invade. Um sentimento caloroso, diferente
de muitas coisas que o futuro pode proporcionar. Uma
esperança vaga e caridosa.
- Podemos. - Concordo olhando para ela de perto e
sabendo que é especial. De alguma forma, como Gusmão
Guilherme Oliveiras, ela é uma pessoa meio deslocada em
seu meio, capaz do impossível para alguns.
Conto a ela sobre minha carona, algumas coisas do
futuro, sobre Gusmão Guilherme Oliveiras, e tudo que
parecia estar alojado feito mil bigornas em meu peito. Não
consigo narrar nada disso com mais detalhes. Naquele
200
ambiente eu não sabia o que tinha dito de fato, me repeti
diversas vezes, e posso ter respondido as perguntas dela
com informações nada corretas. Me lembro somente da
chuva ter parado com o fim da garrafa da bebida. Ela levou
os copinhos a um tanque, passou uma água e guardou tudo
em seus devidos lugares.
- Eu posso contar mais coisas nos próximos dias... Se
você quiser, claro. - Ela acena com a cabeça e me fala algo
que não sou capaz de entender.
- Aqui está sua cama, caubói! - Ela me fala quase
gritando. Agora sou eu que aceno.
Me deito no colchão velho pegando uma manta
vermelha e me cobrindo. Ela será mais que suficiente nesse
ambiente quente, que me faz suar por quase todos os poros.
Solto um sorriso, sentido minha cabeça girar em uma
espiral.
- Vou deixar a vela aqui. Boa noite homem do futuro. -
Ela fala, com um sorriso de canto de lábio, se despedindo
com um aceno.
- Boa noite moça do passado. - Respondo olhando
para sua silhueta subir até o topo da escada e desaparecer.
Em dois minutos a vela se apaga. Quase consigo acreditar
que não irei dormir, mas me concentro no barulho das gotas
caindo em algum canto, tentando limpar a mente de tudo o
201
mais. Até chegando a acreditar por alguns minutos que tudo
desde a máquina do tempo a Grande Máquina foi um sonho,
e a única coisa real eram aquele sítio e aquelas pessoas.
Acordo com uma tremenda enxaqueca, como se
alguém tivesse batido meu cérebro em um liquidificador e
colocado de volta. Meus ouvidos estão tomados por um
ruído contínuo e distorcido. A luz vinda da entrada da
escada acerta meus olhos em cheio, e é o suficiente para
me cegar por alguns segundos. Pisco diversas vezes na
esperança de que isso me ajude com a visão, ao menos.
Parece mesmo que eu nem sequer dormi. Algo gelado toca
meu rosto, e eu posso senti-lo pressionando minha face,
irritando minha pele. Tento afastá-lo, mas ele volta no
mesmo lugar, na minha maçã do rosto esquerda. Quando
finalmente consigo enxergar direito vejo Seu Dumas com as
pernas abertas logo acima de meu tronco, com a arma
segurada pelas duas mãos mirando em minha bochecha. O
som até então abafado pelo ruído se revela o relógio
apitando em um alarme que intensifica minhas dores de
cabeça.
- Seu Dumas? - Pergunto em vão para algo muito
mais vil. Ele não parece reconhecer o próprio nome, pois
não esboça nenhuma expressão além da fúria contida.
Percebo que seus olhos estão dourados.
202
-A Grande Máquina... Mandou lembranças.
Ele atira, e o meu cérebro é ejetado junto da caixa do
crânio que explode em milhões de pedaços revestidos de
carne, pele e cabelos. Seu Dumas estava coberto de sangue
quando seus olhos dourados voltaram ao castanho. Ele olha
para tudo aquilo espantado, jogando a arma para um canto
e tropeçando nos próprios pés, caindo de costas e se
arrastando para sentar-se no canto da sala. Com as mãos
tremendo ele fecha o punho e abraça as próprias pernas.
Sua filha, assustada pelo barulho, vai até o porão ver
o que aconteceu. Quando percebe realmente que aquela
sujeira não foi obra do tempo, mas sim humana, sangue de
seu sangue, ela cai de joelhos e chora convulsivamente
sobre os restos mortais do estranho que viu tanto de si
mesmo. Os trabalhadores da fazenda vão acudi-los.
A carroça do leite chega, e com as garrafas vazias
são obrigados a voltarem para a cidade com más notícias a
delegacia. Sônia foi levada para interrogatório junto de seu
pai.
Ele foi despachado para o sanatório da cidade
vizinha.
Ela está perto de um rio. O nome já havia sido Rio da
Serpente, mas por apelos de religiosos influentes seu nome
foi mudado para Rio Lete. Ela tem embaixo do braço um
203
jornal de um dia qualquer de 1984. Suas bolsas são três,
uma verde com suas roupas costuradas por ela mesma,
imitações de uniformes do exército local, outra vermelha,
com livros que ela mesma escreveu e publicou sobre o
nome de um pseudônimo, e a terceira amarela, com roupas
normais dela mesma.
Sua extensa obra jamais seria creditada a ela, mas
mesmo sobre pseudônimo encontraria reconhecimento
muitas décadas após esse dia. Ela escrevia ficções
fantásticas, na maioria infantis e infanto-juvenis, com bases
na Psicanálise Freudiana e na Psicologia-Analítica de Jung.
Mas agora ela não queria mais isso.
Duas pessoas com uniformes brancos, luvas e botas
de borracha verdes, e máscaras de contenção surgiram
próximos da nascente. Vieram até ela em passos firmes,
sem muita pressa. Ela estava vestida com uma das roupas
que já haviam pertencido ao seu pai, com toda a maquiagem
e sujeira necessária para passar facilmente por um homem.
As pessoas nas roupas retiraram as máscaras. Uma delas
tinha um aspecto gótico, e a outra era só uma ruiva
genérica.
- Sebastião?
- Sim. - Ela fala com a voz grossa que treinou por
tantos anos. - Desculpem-me. Eu esqueci seus nomes.
204
As duas se entreolham.
- Hilda e Guinevere.
- Entendo. - Ela coça o queixo. - O que importa é
que...
Seu rosto com um sorriso convencido se torna
impassível. Seus olhos de cor verde parecem brilhar em
dourado. A expressão amigável parece se tornar o ápice do
ódio. Ela puxa de dentro do casaco uma arma. Um revólver
carregado.
- A resistência é inútil. - Consegue acertar Lilian no
rosto, entre suas órbitas. Seu corpo cai como uma marionete
que tem suas cordas estouradas.
Isabel caiu de joelhos no chão, ao lado da amiga,
com seu corpo nos braços. O revólver tem seu cano
apontado para a testa dela que encara com asco em
prantos. - Últimas palavras?
- Não para você.
A arma é disparada, e o eco percorre uma distância
longa, assustando pássaros nas copas das arvores
próximas. Quando ela volta a si, com a arma em mãos, e os
dois corpos mortos em uniformes cheios de zíperes, é muito
difícil não perceber o que ocorreu. As mochilas estão ao
lado, e ela pega todas de forma mecânica, seguindo até a
nascente por onde as duas vieram. Dentro da caverna da
205
nascente ela passa até o fundo, onde um halo de energia
dispara diversos raios na água doce. Ela corre até aquilo,
passando pelo portal e caindo do outro lado, uma centena
de anos no futuro. Antes que possa dizer qualquer coisa é
cercada, subjugada e presa.
No futuro ao menos ela sabe que deve ter uma
salvação.
- Quem é você e quais são seus interesses aqui -
Uma voz surge do teto. Tudo é branco e tem um aspecto de
limpo a um nível impecável.
- Eu sou Sônia Dumas Silva... E eu quero ajuda...
Mas essa história... Minha história, digo, já acabou.