Bruma de dados: Introdução ao Direito do Futuro - Studies ...

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Fernando Schumak Melo Luiz H. Kulik

Bruma de dados: Introdução ao Direito do Futuro

Vol. 01

Curitiba 2021

2021 by Studies Publicações e Editora Ltda. Copyright © Studies Publicações e Editora

Copyright do Texto © 2021 Os Autores Copyright da Edição © 2021 Studies Publicações e Editora Editora Executiva: Barbara Luzia Sartor Bonfim Catapan

Diagramação: Sabrina Binotti Edição de Arte: Sabrina Binotti

Revisão: Os Autores

O conteúdo do livro e seus dados em sua forma,

correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores. Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. Conselho editorial: Maria Lucia Teixeira Guerra de Mendonça, Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil Fernando Busato Ramires, University of Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brazil Halley Ferraro Oliveira, Federal University of Sergipe, Sergipe, Brazil Nelson Barrelo Junior, University of Sao Paulo, São Paulo, Brazil Adriane Aparecida de Souza Mahl Mangaroti, State University of Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul, Brazil Educélio Gaspar Lisbôa, State University of Pará, Pará, Brazil Aldalúcia Macêdo dos Santos Gomes, State University of Amazonas, Amazonas, Brazil Educélio Gaspar Lisbôa, State University of Pará, Pará, Brazil Aldalúcia Macêdo dos Santos Gomes, State University of Amazonas, Amazonas, Brazil Paula Wiethölter, Faculdade Especializada na Área de Saúde do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brazil

Andréa Cristina Marques de Araújo, Fernando Pessoa University, Porto, Portugal Fernando Busato Ramires, University of Passo Fundo, Rio Grande Sul, Brazil Sérgio Eustáquio Lemos da Silva, Paulista State University, São Paulo, Brazil

Editora Studies Publicações Curitiba – Paraná – Brasil

www.studiespublicacoes.com.br [email protected]

F363b Melo, Fernando Schumak

Bruma de dados: Introdução ao Direito do Futuro / Fernando Schumak Melo, Luiz H. Kulik. Curitiba, Studies Publicações e Editora, 2021. 215 p. Inclui: Bibliografia ISBN: 978-65-995832-1-6 DOI: 10.54033/stebook.00002 1. Ensaio científico propedêutico. 2. Direito técnico. I. Melo, Fernando Schumak. II. Kulik, Luiz H.. III. Título.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

OS AUTORES

Fernando Schumak Melo - Graduado em direito pelo Centro Universitário Curitiba em 2006, pós-graduado em Processo Civil pela PUC/PR em 2008, Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná, Doutorando em Ciência Política e Eficiência Judicial pela UFPR, formando em Advocacia 4.0, LGPD e Temas de Direito Digital pela Future Law/SP, atuante como advogado desde 2007, atualmente é consultor jurídico e empreendedor na empresa Schumak Law. Líder do Grupo de Pesquisa TecnoLawgia - Direito e Inovação, e vice líder do Grupo de Estudos em Processo Civil - Segurança Jurídica, ambos vinculados à FAE Centro Universitário, Professor de Processo Civil, Empreendedorismo e Inovação Jurídica, Direito e Políticas Públicas, Oficina de pesquisa empírica em direito e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da FAE - Centro Universitário, membro da ABCP - Associação Brasileira de Ciência Política e da AB2L - Associação Brasileira de Lawtech e Legaltechs. Membro do conselho editorial da Revista de Direito da FAE.

Luís H. Kulik - 21 anos, poeta, cronista e contista. Graduando em Direito pela Fae - Centro Universitário, autor de "Poemas para Almas Solitárias" na Amazon.

APRESENTAÇÃO

Seria o avanço de nossas tecnologias o pavimento pelo qual a raça humana traça o próprio caminho ou o último selo do destino sobre o declínio de toda a civilização? Qual o papel do direito neste novo mundo em que não há mais certeza na distinção criador-criatura? Quais as consequências jurídicas da conurbação dos conceitos homem-deus-máquina?

Bruma de Dados propõe situações pelas quais devem passar a sociedade e os operadores do direito de um futuro próximo. O fio que permeia todos os capítulos é o Direito e sua necessidade de renovação em tempos cada vez mais incertos e velozes. Desde que nossas tecnologias passaram a avançar décadas em meses, podemos acreditar que em cem anos estaremos em patamares tecnológicos particularmente inconcebíveis atualmente, no entanto, nossos comportamentos e compreensão de nossas urgências humanas ainda estão tão rasos e incompatíveis como há séculos.

Trata-se de uma obra literária propedêutica ao direito técnico, enquadrado nos campos da filosofia ou sociologia jurídica. O primeiro capítulo, “Com Algumas Mãos a Menos”, aborda o início do desenvolvimento de personalidades artificiais e a semeação da manipulação fácil até mesmo dentro das linhas de código mais complexas.

No segundo capítulo, intitulado “Nos Seus Sonhos”, um médico metódico relata a história de pessoas presas em uma ilha e que foram submetidas a experiências de sonhos induzidos e inesperadamente compartilhados. No terceiro capítulo, nomeado como “Um Almoço bem Vestido com Muito Antiácido”, temos um narrador não confiável em uma teia de conspirações que ele mesmo costura para si sem perceber.

O quarto capítulo, “Conto Sobre o Passado”, traz a injusta competição entre inteligências orgânicas e artificiais

dentro de um parlamento híbrido. No quinto e último, “Todo o Tempo do Mundo”, um homem do futuro é lançado de volta para o passado para lutar em uma guerra que começou muito antes dele e é acolhido por pessoas que podem não parecer serem quem são.

Em cada momento histórico podemos ver a humanidade excluída, manipulada e abandonada por seus próprios sistemas legais. Atropelada por um desenvolvimento tecnológico que não mais pode controlar. Como? Por quê? — Nos questionamos neste livro. Uma obra provocadora, inovadora, mas acima de tudo inspiradora para os criadores e criaturas do direito do presente e do futuro.

SUMÁRIO

CAPÍTULO 01 ....................................................................... 01 COM ALGUMAS MÃOS A MENOS

CAPÍTULO 02 ....................................................................... 39 NOS SEUS SONHOS

CAPÍTULO 03 ....................................................................... 74 UM ALMOÇO MUITO BEM VESTIDO COM MUITO

ANTIÁCIDO CAPÍTULO 04 ..................................................................... 130

CONTO SOBRE O PASSADO

CAPÍTULO 05 ...................................................................... 150 TODO O TEMPO DO MUNDO

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- Pode se sentar. – A Unidade Médica G9.72 indicou.

- Muito obrigado – A Unidade 00100100 respondeu

no automático. Não havia motivos pelos quais ele deveria

ser educado. Tinha plena consciência de que Unidades

Médicas não possuíam nenhuma diretriz de empatia ou

diálogo.

Ela usava pele sintética, como a Unidade de

Produção. Parecia uma pessoa perfeitamente normal, com

sua pele parda, braços longos, coxas grandes e pescoço

fino. Seus olhos eram duas esferas negras, como os Dela.

Talvez mudassem somente pelo fato dos olhos serem

capazes de olharem por dentro de qualquer coisa. Através

deles, se a Unidade de produção olhasse bem de perto,

conseguiria enxergar as linhas de comandos primários e

secundários, daqueles que se poderia ver nos monitores

de computadores pertencentes a um passado distante. Ela

estava condicionada a analisar cada milímetro de seu

hardware. Com o fim das buscas por danos a Unidade

Médica limpou o próprio prompt. Um novo comando teve

COM ALGUMAS MÃOS A MENOS

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início com uma simples linha de barras e dois pontos. As

informações corriam da mesma forma que a água tomava o

chão em um alagamento. Ela seguiu para um comando das

próprias mãos, aproximando-as das costas da Unidade de

Produção.

A Unidade Médica seguiu com o indicador pela

extensão da suposta coluna vertebral. A região que buscava

era facilmente encontrada na nuca. Um pedaço de pele tão

leve e áspero que parecia pedir para ser aberto. Ela

pressionou-o por um número de segundos que a Unidade de

Produção já estava tinha se cansado de contar. Ela abriu

sua entrada USB embaixo do pé de cabelos loiros e

sintéticos. A Unidade de Produção, de certa forma, parecia

um ser humano doente a maior parte do tempo. A pele

sintética que tinha adquirido nessa mesma Empresa

consistia em uma versão de teste que, graças a Ela, seria

vendido da maneira certa. Sua pele apresentou um defeito

quando exposta ao Sol em uma semana. Os raios

ultravioletas desbotaram o tom bege, tornando sua pele

sintética tão branca quanto uma nuvem no céu.

Ela suspirou.

Sequer tinha necessidade disso. Os pulmões eram

um mero luxo da empresa falida onde ela tinha sido criada.

Se tratava de duas bombas de oxigênio que aumentavam a

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medida que o gás carbônico entrava, e desinchava quando o

oxigênio reciclado escapava. Essa proposta ecológica fez

com que os robôs produzidos pela sua “Empresa-Mãe”

(como costumava chamar no íntimo) custassem três vezes

mais que qualquer robô no mercado. Antes que pudesse

baixar o pacote completo de planos, diretrizes, e funções da

linha de montagem, ela foi relocada para esta Empresa, a

maior de todo o mundo. Nela se sentia só mais uma célula

em um corpo humano ainda infantil, que só podia crescer

cada vez mais, com ou sem sua ajuda.

Seus pais eram uma linha de produção que havia se

tornada obsoleta há muito tempo. Braços mecânicos,

esteiras sem sensor, supervisores físicos, e controle de

qualidade, eram coisas que todos acreditavam ter ficar no

passado, como relógios de pulso e tecnologia movido a óleo

fóssil.

E mesmo que essa Nova Empresa estivesse

abraçando-a com promessas de inovação, não tinha como

não estar exausta disso. Todas as Terças e Quintas Ela

deveria se dirigir a essa sala para baixar todo o conteúdo

novo. Só assim seria capaz de trabalhar todos os dias por

três horas nessa fábrica. Hoje baixaria o procedimento dos

parafusos nas mãos. Se não estava enganando uma

unidade com nomeação binária trabalhava neste mesmo

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setor. O número de série da Unidade de Produção das mãos

deveria ser 10100100, o que provava um denominador em

comum. Porém a outra Unidade se mantinha sem qualquer

personalidade, pele sintética, ou simulador de emoções.

Talvez tenha sido isso que permitiu a mesma Unidade ter

sido o “Robô do Mês” sete vezes desde que tinha entrado na

Kprncs.

Já a Unidade de Produção 00100100 era equipada

de tudo. Simulador de emoções, bombas de oxigênio,

sensores táteis, e um emulador de Personalidade. Ela era

uma Unidade de Produção Simples, sem nenhum membro,

equipamento, ou diretriz para trabalho pesado. A coisa mais

resistente em seu corpo era uma coluna flexível recoberta

de kevlar. O botão abaixo de sua nuca era o único meio de

acessar seu conteúdo.

- Está pronto. – A Unidade Médica anunciou,

retirando o cabo e fechando a pele sobre a nuca com os

imãs compatíveis entre si. Deviam totalizar doze.

- Muito obrigado. – A Unidade de Produção

agradeceu de novo, se arrependendo logo em seguida.

Levantou-se e tratou de sair dali o mais rápido

possível. Sentia-se demasiadamente envergonhada. Se sua

face pudesse exprimir alguma coisa estaria corada com

tamanho vexame. – Onde já se viu? – Reclamava consigo

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mesma. – Uma Unidade que esquece as coisas! – Estava

tão centrada em seus próprios problemas que cometeu a

gafe de abrir uma pequena fresta na porta antes de tentar

sair. Por engano bateu o dedão em uma quina. Seu pé

pareceu ter se desligado do resto do corpo. Tentou ligá-lo

novamente dando chutes na parede do lado de fora. O

mesmo se manteve defeituoso do mesmo jeito.

Agendou uma consulta no dia seguinte com a

manutenção. Por algum motivo obscuro tinha noventa e

cinco por cento de certeza que aquele dia não poderia

piorar, coincidentemente a mesma porcentagem de chance

de Sol naquele dia.

Ela seguiu pelos longos corredores de carpete azul

marinho até encontrar uma placa que imitava neon com “As

Mãos” escritas com a fonte “Comic Sans”. As câmeras de

todos os setores pararam o que estavam fazendo para

seguir cada passo dado por ele. Parecia realmente uma

atração de circo com aquela pele defeituosa e um leve

mancar no pé. Nenhum Robô, Andróide ou Ciborgue que

estava trabalhando parou para dar o mínimo de atenção a

Ela. Todos seguiam com o próprio trabalho, não importava o

que. Ela buscava tratar de fazer o mesmo o mais cedo

possível. Seguiu da sala Sessenta e Dez até a Terceira.

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- E aí Albina! – O Jorge da Contabilidade a

cumprimentou.

- E aí Jorjão! – Ela cumprimentou de volta sem muita

certeza de que sua adaptação do nome do colega fosse ser

aceita. Jorge deu uma risada antes de seguir para algum

lugar. Talvez fosse a sacada fumar, ou ficar paquerando

uma máquina de salgadinhos por algum fiado.

Esse cara se mantinha na empresa através de um

programa de cotas para contratação de humanos em

setores onde só havia robôs. Cumprindo com as cotas a

“Kprncs ROBTC-LTDA”, ele participava de um programa

estatal de isenção K2B. Jorge não era nenhum gênio da

matemática, e só estava sendo pago para que a companhia

não precisasse pagar certos tributos. Até ele devia saber

que sua função lá não era necessária, já que não é preciso

nem um segundo para qualquer Unidade Contábil do setor

dele terminar qualquer cálculo.

A Albina desceu algumas escadas, passou pelos

setores dos pés, seguiu por uma rampa rolante até o tronco,

e a direita nos braços encontrou a sala. Durante o caminho

checou a própria agenda, marcou uma reunião com o diretor

para discutir a cor da própria pele sintética, revisou um texto

de um vizinho humano que planejava ser um escritor, e

marcou um horário para regar as plantas do apartamento no

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horário que chegasse em casa. Abrindo a porta não

registrou nenhuma surpresa ou ansiedade. Tudo ali estava

disposto como deveria estar. Tudo era tão organizado que

chegava a ser confortável. Lembravam-na de seu

apartamento, com as canetas dispostas dois centímetros

uma da outra, e cinco centímetros da borda da escrivaninha.

Toda a ordem parecia reassegurar que sim, ela finalmente

tinha o controle.

A sala tinha três metros de largura e cinco de

comprimento. O teto era curvo, e estava rachado. A cada

tremor no andar de cima caíam pedras no canto mais

distante. No meio da sala havia uma esteira que começava

em um buraco do lado esquerdo e terminava em um buraco

do lado direito. Do outro lado do buraco redondo na parede

um Robô montava os dedos e o carpo. Do lado oposto,

depois de um buraco quadrado, outro Robô conectaria

alguns fios, e depois de um buraco em losango, outro Robô

terminaria o pulso.

Uma mão de dedos brancos e carpo cinza esperava

por Ela. Parecia estar deitada de barriga para cima, como

um animal atropelado na estrada. Seus comandos eram de

pegar cada dedo, colocar um parafuso de ponta dupla

dentro deles, e encaixá-los no carpo. Tinha de ser um

trabalho rápido. A esteira funcionava em um sistema de

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pistão. Cada peça retirada parava a esteira, e quando a mão

era colocada de volta a esteira voltava a correr. Se todos os

Robôs levassem o mesmo tempo tudo estaria terminado em

uma hora.

Ela literalmente arregaçou as mangas do uniforme

cinza que cobria a pele desde o calcanhar até o início do

pescoço.

Para que conseguisse sentar teve de sentar o quadril,

e só então depois girar a si para ficar de frente com a

esteira. O pé se mantinha desligado, e sentar de frente lhe

proporcionava riscos desnecessários, como bater o joelho

na esteira, ou cair do banquinho em formato de balde de

ponta cabeça.

Na busca de ser mais eficaz ela abriu uma pequena

linha em volta do pulso com um bisturi que trazia no bolso

do peito. Retirou a própria pele da mão como um lorde

retiraria a própria luva para desafiar alguém em um duelo.

Seus circuitos eram multicores, cobrindo parte dos

parafusos cinza e articulações douradas por baixo dos

bastões pretos e ocos que eram seus dedos. Ela fez um

movimento de trezentos e sessenta graus. Com isso foi

capaz de colocar todos os parafusos nos dedos em dez

segundos. Com outros quinze ligou os dedos a mão e

terminou o teste. O primeiro lote do dia consistia em mais de

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cem mil mãos para aquele dia. Deu conta de todos em uma

hora e meia, levando em conta de que havia a lentidão da

esteira para trazer cada par de uma vez. Quando a esteira

parou sem ter trazido nada ela entendeu de que estava na

hora de fazer uma pausa. Levantou-se e esticou um pouco

os circuitos.

Para o “Robô Médio” eram concedidos dois intervalos

por turno. Os turnos eram compostos de três horas. Com a

superpopulação decorrente da aprovação constitucional, os

movimentos trabalhistas entre humanos e robôs tiveram o

tempo de sua colheita. Para qualquer trabalhador Robô na

área da indústria era concedido o turno de três horas.

Preveniam o desgaste prematuro, e também não

condenavam parte da superpopulação robótica ao

desencargo de função, o equivalente ao desemprego

humano.

A Unidade aguardou, voltando a se sentar. Segurou a

pele de sua mão para contemplar os octogonais brancos

que formavam linhas em relevos diversos, como as mãos

humanas. Podia ler a assinatura microscópica da empresa

em cada um deles. Porém, seus olhos sofreram de

pequenos apagões. Quando voltou a enxergar a mão tudo a

volta pareceu se tornar um breu absoluto. Pela suspeita de

um vírus ativou um reboot de emergência. Em uma diretriz

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secundária iniciou uma análise do antivírus da empresa.

Seus sistemas permaneceram ligados, como se ela nunca

tivesse ordenado que desligassem. O antivírus mostrou o

resultado negativo da análise completa. Olhando novamente

para os minúsculos octógonos brancos a Unidade

presenciou todas elas criarem bocas e gritarem:

- Kprncs!

A Unidade pulou para trás, colidindo as costas na

parede. Ela teve a visão substituída pela luz distorcida e

objetos quadruplicados na visão que rapidamente voltou a

se estabilizar. Ativou o gerenciador de tarefas. Se fosse

alguma espécie de Malware tinha certeza de que

conseguiria detectá-lo. Ativou o painel do Firewall e nem

mesmo ele parecia apresentar qualquer falha. Ela foi

relutante de ter que aceitar a própria situação. Estava a

mercê de um vírus, bug ou glitch que não poderia ser

identificado. Para seu infortúnio tudo indicava um ataque de

paranoia sem precedentes, já que tudo continuava

funcionando normalmente nos seus sistemas. Ela tentou

resgatar o segundo exato em que presenciou a anomalia.

No vídeo somente segurava a sua própria mão quando deu

um salto para trás.

Eu estou comprometida... É isso.

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Ainda assustada reportou para o suporte técnico.

Eles não pareceram responder de imediato. Deviam ter

outras prioridades no momento. Seu sistema imitava uma

injeção de adrenalina, fazendo-a ofegar. Ela tentou excluir

as diretrizes de pânico e desespero. Se não poderia ser

detectado talvez fosse somente um glitch inocente. Uma

chance de um em cada um milhão. Ficou tranquila com a

hipótese de estar sobrecarregada. Até porque era a que

fazia mais sentido. Seu complexo emocional poderia estar

se vendo prejudicado a se ver como um Robô de outra

fábrica que estava se adaptando através de downloads.

Afinal de contas, nada que tinha conquistado até aquele

momento eram dignos de próprio mérito da parte dela.

Mas as mãos voltaram a passar pela esteira e a

Unidade teve de ignorar os próprios problemas. Mesmo

assim, manteve várias análises de software e hardware

rodando enquanto fazia seu trabalho. Quando estava

terminando o segundo lote do dia percebeu algo no canto de

seu campo de visão - Ali ao seu lado estava a Unidade

10100100!

- Saudações Unidade 10100100. – Cumprimentou

com uma empolgação anormal. Ela não imaginava que iria

conhecê-lo bem no dia tinha claramente pensado nele.

Coincidências eram coisas que ela gostava de colecionar.

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Em seu banco de memórias há coincidências como

esbarrar em uma Unidade Contábil uma esquina antes de

chegarem ao local acordado, ou comprar uma planta em um

vaso e acabar com duas mudas.

- Saudações Unidade 00100100. – Ele respondeu

automaticamente. – Eu vim substituí-la nas mãos hoje.

- Não entendo. – A Unidade 00100100 constatou.

- O Diretor lhe convocou para uma reunião.

Sua voz era melódica, como um dublador de rádio

falando, e tinha cheiro de pia bem limpa. A Unidade

00100100 abriu a própria agenda no sistema. Não havia

sombra de o Diretor ter adiantado sua Reunião com Ela. A

mesma permanecia marcada para fora do turno matinal, ás

quinze e trinta. Ele passou a suspeitar que a Unidade

10100100 estava apresentando algum defeito, da mesma

forma que ela esteve há alguns minutos atrás. Passou a

imaginar que o glitch tivesse acontecido com todos de

maneira diferente. Sem tentar ofendê-lo de alguma forma

tentou gerar um discurso sorrateiro:

- Engraçado. Não há nenhum aviso do Diretor ter

adiantado minha Reunião com ele hoje.

- Foi-me dito que era um assunto urgente... Imagino

que ele não goste muito de esperar.

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- Então tá – A Unidade deu de ombros. Se fosse até o

Diretor inutilmente ao menos poderia avisá-lo sobre a falha

que poderia recair sobre qualquer Robô na fábrica. – Você

registrou alguma anomalia de sistema hoje?

- Não.

- Ok. Então acho que eu me vou.

A Unidade 00100100 mal tinha se levantado quando

a outra se sentou em seu lugar para prosseguir com o

trabalho. Pelo menos não teria de arrancar a pele para fazer

o mesmo que Ela. A Unidade de Produção catou a pele da

mão antes de sair pela única porta da sala, passando pelas

outras milhares de portas da Empresa e setores cada vez

maiores até chegar ao elevador. Sua perna não dava sinal

de vida, tornando sua caminhada menos eficaz. O elevador

era cilíndrico, pintado em um cinza escuro e sem graça. O

painel azul se acendeu. Um pequeno ser na forma de um

clipe com olhos apareceu na tela. – “Posso ajudar”? – Ele

perguntava sem emitir som.

- Último andar. – A Unidade dizia enquanto se

sentava e apertada os cintos no meio do peito. O elevador

alcançou cem quilômetros em quinze segundos até chegar.

- Andar 1945... Boa Tarde – O Clipe afirmava

enquanto acenava com sua ponta.

- Obrigado.

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A Unidade saiu se sentindo um pouco comprimida.

Seu pulmão demorou a voltar a funcionar como antes.

O corredor era mais longo do que imaginava. Parecia

ter andado um quilômetro quando chegou a pequena sala de

espera do Diretor. Vários assentos verdes se mantinham

lado a lado em volta de paredes amarelas. O balcão

sustentava o peso da ZNKT-9, o primeiro modelo de

secretária confeccionado pela empresa. Para a Unidade era

uma honra conhecê-la. Era a única naquele modelo que

ainda funcionava. Todas as outras tinham sido desligadas

ou tiveram as consciências transferidas a modelos menores

e mais rápidos.

- Posso ajudar? – ZNKT-9 perguntava ao lugar um de

seus vários monitores e abrir uma caixa de chat para gravar

tudo o que estava sendo dito. Sua voz era mágica.

– Se fosse humana... – A Unidade 00100100

imaginou. – Usaria um chapéu de viúva, um vestido

decotado e batom vermelho, como uma mulher dos anos 50.

- Fui informada de que o Diretor adiantou uma

reunião comigo para tratar de um assunto urgente. – A

Unidade de Produção falava cabisbaixa. Não se sentia digna

de estar ali. Conferiu em sua agenda mais uma vez, e tinha

certeza de que tudo aquilo não era nem um pouco normal. O

Diretor tinha criado o Protocolo. – Se ele adiantou mesmo a

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minha reunião... – A Unidade pensava por si. – Por que ele

não marcaria comigo na minha própria agenda? – Ela se

debatia no assunto. - Isso deveria ser impossível, afinal de

contas, ele mesmo criou os Protocolos!

- Deixe-me ver. – Deve ter tomado menos de um

segundo para informar a resposta. – Me desculpe..., Mas

não há nenhuma informação sobre alguma reunião nesse

horário. – ZNKT-9 ainda mostrou em tela cheia um emoji

com um rosto e uma lágrima escorrendo.

- Eu imagino que sim. – Só havia como concordar. –

Chequei até mesmo em minha agenda inúmeras vezes. Fui

Informada através de outra Unidade sobre essa reunião.

- Qual Unidade?

- A Unidade 10100100.

- Reportarei o erro imediatamente -... – Ela informava

quando foi interrompida.

- Mary! Mary! Pare o que está fazendo neste

instante! – O Diretor gritava surgindo no fundo do corredor.

– Eu esqueci de marcar na agenda de novo!

Ele era um homem de tamanho médio, com pele

branca, meio bronzeada na testa. Seus cabelos e barba

eram ralos e brancos. Ele usava uma blusa de lã bem

apertada com gola rolê, sobressaindo um barrigão acima da

cintura. As mangas estavam dobradas de qualquer jeito até

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os cotovelos. Também usava jeans original e os sapatos

brancos mais lustrosos da nação. Ele andou pelo corredor a

passos longos. As câmeras escondidas filmaram-no em

cada um de seus passos pelo longo carpete cinza escuro.

Talvez o que mais sobressaísse em todo o seu vestuário era

o acessório definido como mais inútil do século XXI: O

relógio de Ouro.

- Senhor Diretor, é um imenso prazer poder conhecê-

lo.

A Unidade estendeu a mão nua para um

comprimento. O diretor pegou e balançou-a com

entusiasmo. Não pareceu ligar com o detalhe. A Unidade se

sentiu um tanto desconfortável. Ele sorria com todos os

dentes, rugas, e olhos exprimidos. Segundo seu emulador

suas expressões significavam euforia. Algo que nunca tinha

experimentado, nem visto, antes.

- Eu digo o mesmo Unidade de Produção Simples

número 00100100. E pelo amor de Deus me chame de Uzi.

– O Diretor dizia enquanto passava os braços por cima dos

ombros da Unidade. Ele se pôs a andar, e a Unidade o

acompanhou. – Mary, por favor, desligue as luzes do

corredor e diga para qualquer um que já fui embora.

- Sim Senhor. – Mary desligou seu monitor,

abaixando as luzes gradualmente até os dois entrarem na

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sala. Quando ninguém estava olhando ela voltou a acender

seu monitor. A cor vermelha entrava em contraste com todas

as telas em azul e verde fosforescente.

Entraram em uma sala que estava o mais perfeito

breu. A Unidade buscou o protótipo de visão de calor para

enxergar o Senhor Diretor Uzi ali dentro. Para sua surpresa

até isso tinha lhe falhado. Ela teve de se esforçar para

continuar a andar tentando ouvir os passos do Senhor

Diretor Uzi. Quando seu peito se chocou com as costas

dele, e só então, decidiu parar. Ele passou a se balançar em

movimentos sem padrão ou raio. Meio minuto de silêncio se

seguiu até uma luz se acendesse, atordoando a ambos. Era

uma lâmpada pendurada por uma corda de dez metros até

um teto inalcançável para a visão. Ela tinha um aspecto de

soquete, tendo sua luz concentrada para baixo devido a um

prato no formato de um funil. A iluminação era amarelada,

dando um aspecto nada saudável ao Senhor Diretor Uzi. Ele

apontava para um pedestal que imitava uma pilastra de

arquitetura jônica. Em cima da mesma repusava uma

Katana protegida por uma cúpula de vidro.

- Por mais clichê que pareça, direi mesmo assim. – O

Diretor limpou a garganta. – Você deve estar se

perguntando o porquê de eu ter te chamado hoje.

- Com certeza, Senhor Diretor Uzi.

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O Diretor contraiu cada músculo em seu corpo, como

se tivesse tomado um soco forte no abdômen. Ele cerrou os

punhos e respirou bem fundo antes de responder:

- Eu já não disse para me chamar só de Uzi?

- Mas isso seria contra o Protocolo, Senhor Diretor.

O mesmo Protocolo que o Senhor Diretor criou, mas

aparentemente deixou de seguir hoje. – A Unidade pensou,

mas resolveu não dizer. O Senhor Diretor poderia achar

aquele jogo de palavras ofensivo.

Dessa vez ele só fechou os olhos e ditou as palavras

enquanto abaixava o punho fechado, como se estivesse

guiando uma orquestra a parar de tocar.

- Para o Inferno com o protocolo! Vamos! Todos

eles!

- Para onde, Senhor?

- Quero que exclua todos os seus Protocolos

- Mas..., Mas eu não posso.

-Vamos! – O Diretor urrou. – Eu sou seu Chefe...

Diretor... tanto faz, quero que me obedeça! – Ele falava a

tudo tão fervorosamente que chegava a produzir alguns

perdigotos. Nem parecia mais a mesma pessoa

entusiasmada que apertou sua mão. A Unidade estava mais

que confusa. Atordoada, era mais exata. Ou embasbacada

também era cabível.

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- O.K.

A Unidade excluiu todos os Protocolos que vinha

seguindo desde que foram introduzidos em seu sistema.

Excluiu a todos eles, sem exceção. Mas não era uma

escolha com efeitos definitivos. Moveu-os para uma lixeira.

Sentia-se um pouco afetada pelo berro. Se tivesse tubos

lacrimais tinha a mais completa certeza de que estaria em

prantos no momento. Ela gostaria muito de simplesmente

deixar aquela sala e voltar a fazer o próprio trabalho até que

terminasse os lotes e pudesse voltar para casa. No entanto,

por mais que excluísse esses Protocolos ainda seguia as

sombras, que sem elas não poderia funcionar, nem que

artificialmente. Diligências básicas como Costumes,

Comportamento, Educação, não eram coisas que

simplesmente poderiam ser expurgadas num comando.

Mesmo assim seu ato de não excluí-los totalmente poderia

ser interpretado como insubordinação hierárquica. Porém,

se os excluísse estaria atentando contra todos os Tratados

Robóticos e as Leis. Estava entre uma cruz e um martelo, ou

a famosa sinuca de bico. Em qualquer caminho

decepcionaria alguém. Sendo assim, escolheu por manter

os Protocolos em um local para resgate. Suas emulações de

ansiedade, por outro lado, faziam com que a energia de

seus tubos corresse mais rápido, os pulmões ofegassem e

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sua consciência entrassem em um pânico absurdamente

desnecessário. Sem perceber se mostrava diferente aos

olhos de um homem que observou Robôs por toda uma

vida.

- O Protocolo foi para o Inferno. – A Unidade concluiu

tentando distinguir alguma coisa no breu a sua volta. Graças

a descarga elétrica produzida pela ansiedade seu pé

pareceu reiniciar.

- Excelente! – O Diretor dizia pegando a Unidade e

quase erguendo-a. parecia extremamente feliz. – Enfim, hoje

vim lhe presentear com uma hora do meu precioso tempo

neste planeta. Eu não sei se você sabe, mas sou formado

em várias universidades ao redor do Globo. História,

Filosofia, Sociologia. Posso ter me formado inicialmente em

Engenharia Robótica, porém, não teria me tornado a maior

autoridade em Inteligências Artificiais se não tivesse

estudado o mínimo de Neurologia. – Uzi limpou a garganta,

tomando um bom gole de água de um copo que estava ao

lado de um degrau pertencente a uma escada que cruzava

toda a sala. – Eu não participei de nenhuma cirurgia em toda

a minha vida. Precisava ter feito uma para o meu desvio de

septo, o que me faz roncar a noite toda. Nunca tive uma boa

noite de sono em toda a minha vida. Acho que a única coisa

que me permitiu chegar até aqui com o mínimo de saúde

21

foram as vacinas anuais para a prevenção de vírus e

bactérias.

A Unidade passou a entrar em um pânico totalmente

diferente do que tinha sentido há pouco. Ele simplesmente a

chamou para divagar sobre a própria vida, o que seria um

total desperdício de tempo para ambos. Se mantivesse esse

tipo de discurso aberto a Unidade acabaria saindo dali

somente no período da noite, tendo feito somente dois lotes

de mãos para o dia. Respirou fundo antes de se concertar

no que poderia fazer para sair dali o mais rápido possível.

Através de uma análise linguística do que foi dito, a falta de

palavras chave, e os temas abordados, a Unidade 00100100

instruiu para si: Tentar tornar o diálogo menos disperso.

- Uzi

- Sim? – Uzi respondeu de imediato, mais eufórico do

que antes pela participação do ouvinte.

- Sinceramente... Ainda não compreendo porque me

chamou aqui. – A Unidade falou a tudo evitando o contato

visual, no entanto sem se mostrar cabisbaixa, tentando

transparecer o mínimo de subordinação, mas com cautela

para não entregar sua posição.

- Eu te trouxe aqui para uma lição sobre história! –

Uzi rugiu abrindo os braços curtos. Os pelos de seus braços

reluziam, mesmo grisalhos. Ele revelava um braço branco

22

como a pele defeituosa da Unidade. Um branco nada

saudável. - Um defeito provocado em humanos pela falta de

exposição ao Sol.

- Mil perdões se Eu estiver lhe ofendendo Uzi, mas eu

tenho toda a história humana e robótica nos meus bancos

de dados. Não há nada de novo que eu possa aprender.

Uzi pareceu não saber o que responder por um

momento. Manteve-se olhando a Unidade por trás daqueles

óculos de lentes riscadas e sujas. Deve ter levado meio

minuto até conseguir encontrar uma resposta cabível.

- Sim, não haveria necessidade de eu contar algo que

você já sabe. Isso seria uma chatice sem tamanho para nós

dois. – Ele falava tudo aquilo com uma empolgação enorme,

chegando a tremer seus membros. Agora tinha voltado a

parecer o homem que tinha apertado sua mão lá fora.

Contudo, não havia saída disso, e tudo que bastava a

Unidade era aproveitar aquele momento enquanto tentava

encurtá-lo.

– Eu acho que não me expressei corretamente.

Ele tirou um controle remoto de seu bolso. Clicou

apenas um botão para que outra luz se acendesse. Estava

na distância de um metro da primeira. Tratava-se de outro

pedestal imitando uma pilastra de arquitetura dórica. Dentro

da cúpula de vidro no topo a Unidade reconheceu um crânio

23

humano. O Senhor Uzi resvalou a ponta da unha sobre o

vidro, e assim um buraco se abriu.

- Os milagres que só a nano robótica pode

proporcionar. – Ele admitiu, enfiando o punho com

dificuldade. Uzi fez tudo lentamente, tentando evitar o toque

em volta do buraco. O mesmo se fecharia se ele fizesse

isso.

Aquelas cúpulas tinham sido vendidas ao melhor

preço do mercado. Tudo teria dado certo se não

decepassem membros sem intenção. Depois desse último

recall a Empresa em que a Unidade de Produção tinha

nascido entrou em liquidação espontânea. Até hoje alguns

credores buscavam seus pagamentos na Justiça.

Investidores se mataram, e alguns poucos correram para

outras carreiras tão ambiciosas quanto. Ao citar as Cúpulas

o jornal da cidade teve a manchete principal com o título

“Com Algumas Mãos a Menos”.

- Mãos – A Unidade falou sem perceber.

A Unidade aumentou o zoom de sua visão para

contemplar as células do crânio preservado. Tudo indicava

de que devia ter no mínimo cem anos. Uzi segurava o crânio

com as duas mãos, trazendo-o até a Unidade.

- Gostou?

24

- Eu... Eu não entendo. – Realmente, nenhuma

hipótese foi levantada pelo Seu Sistema. Todas as funções

secundárias foram postas em stand by. Tudo que ela

conseguia pensar era em como as mãos funcionavam.

Dedos, articulações, palmas... – Antes que ela percebesse

comandos passaram a correr pela sua tela. Comandos que

não tinham partido espontaneamente. Linhas que nunca

tinham sido escritas daquela forma para ela. Tudo parecia

brilhar mais intensamente. O som parecia se propagar com

muito mais eco. O tempo não corria mais da mesma forma.

- Este é o crânio de meu pai falecido, obviamente. –

Ele trouxe para mais perto dos olhos opacos da unidade. Ela

os arregalou, tentando focar a imagem que parecia um

borrão – Ele era teimoso que o Diabo! Renunciou a tudo que

pudesse estender sua vida um dia sequer. Ele sempre dizia

que “uma pessoa que não vivia todos os dias como se fosse

o último já estava morta de uma forma ou de outra”... Eu

acho que meu convívio com ele cunhou minha

personalidade de uma forma inimaginável.

Quando a Unidade recompôs sua visão foi

surpreendida com a visão de Uzi chorando na sua frente.

Uma lágrima somente escorria pelo seu olho direito. A

Unidade foi informada que deveria dar uma resposta

imediata, que pudesse significar que estivesse ouvindo e

25

que achava a tudo aquilo muito interessante, por mais que

achasse o contrário. Uzi segurou com mais força, pondo em

risco toda a estrutura dos ossos.

- “Ser ou não ser”. – Ele citou Shakesperare olhando

para os mesmos buracos onde olhos já estiveram. Olhos

que se mantinham abertos, quase sem piscar. Olhos que

julgaram, dormiram, acordaram, e agora olhos que não

estavam mais lá. – Nunca achei que fosse uma questão

existencial válida.

- O Senhor Diret-...

Uzi quebrou o crânio em alguns pedaços antes que

tacasse a todos eles para o mais longe possível. Ele botou o

dedo indicador na cara da Unidade antes que gritasse:

- Você não excluiu todos os Protocolos, não foi?

A Unidade estalou os olhos, de queixo caído. Tinha

caído no velho truque do sistema empático. Era claro como

tinha sido facilmente manipulada.

- Eu realmente preciso que os exclua. – O Senhor

Diretor Uzi falava enquanto a Unidade revirava a lixeira. –

Não acho que vá precisar mais deles.

- O.K. – A Unidade excluiu todos eles com um peso

em sua consciência artificial. Tudo que o segurava ao

trabalho, respeito, ou instituições em suma, tinha sido

apagado.

26

- Sabe, todos os dias trabalhei há menos de um

metro do crânio do meu pai, e sabe por que? – Ele corava a

face em um rosa vivo. Sua pressão sanguínea e batimentos

por minuto aumentaram imensamente. Ele poderia ter uma

parada a qualquer momento.

- Não. – Ela respondia com sinceridade. Não havia

nada que poderia dizer nessa situação.

- Pois ele me lembrava que cada dia era o último. Só

isso. Mas eu não lhe trouxe para ficar falando sobre o

passado... Eu estive liderando uma das maiores Empresas

de todos os tempos porque só usei o passado para pensar

no futuro... O que sempre me importou era o próximo passo.

Quando percebi que Unidades Médicas não tinham raios-x

nos olhos, tratei de providenciá-los. Quando uma Unidade

Contábil chegasse a encontrar algo como o Paradoxo de

Zenão, eu inseri Filosofia pura em seu disco rígido. Eu não

poderia deixar minhas obras-primas andando por aí e

pifando toda a vez que ouvissem sobre o Heteroglosso. O

futuro é tudo o que sempre considerei ter em perspectiva,

pois é a única coisa no mundo que pode ser mudado

inteiramente. A única ideia que se mantinha em constante

transição. Eu previ o que seria necessário, e não passei de

um intermediário entre a humanidade e seu sucesso com a

maior ferramenta: a tecnologia.

27

- Mas Uzi, como pode um homem, despido de bancos

de dados, calculadoras cientificas embutidas, ou qualquer

aparelho eletrônico ser capaz de prever o futuro como você

fez? – A Unidade perguntou sentindo que aquela frase não

seria algo normalmente produzido pelo seu centro de

linguagem e diálogo. Era uma frase pronta que

simplesmente caiu como uma luva.

- Está é uma pergunta excelente... Fico feliz que fui

chamar logo você!

- Sim, e por que logo eu a ter essa conversa? E logo

no meu turno. – Ela contestou ignorando o que dissera a

pouco. Haviam coisas mais importantes que precisavam de

respostas.

- Sobre você... Bom, já chegaremos nisso... Sobre o

expediente, lhe garanto que não terá mais de se preocupar

com isso. – A Unidade leu seu corpo, e de fato ele não

parecia exprimir nenhum dos indícios de mentira. – Por

favor, se sente.

- Aonde?

- Atrás de você há uma escada, sente-se nos

degraus. Odeio conversar com alguém de pé.

A Unidade tateou atrás dela. Passou por algo que

pareciam degraus de uma escada. Sentou-se no quinto

degrau, apoiando os pesos com os braços atrás.

28

- Eu começarei na Antiguidade. Aristóteles uma vez

escreveu em um de seus livros que algo sempre tinha sua

potência e motor. A potência não era nada mais que a

possibilidade de ser. Mas o motor era a melhor parte. O

motor é estar elevando a possibilidade à realidade material.

Eu sempre tive a potência de ser um grande engenheiro,

mas só estive em motor quando construí meu primeiro motor

sustentado por energia eólica. Os Robôs, Androides,

Ciborgues e afins; sempre foram concebidos com sua

funcionalidade. Eu construo empreiteiros, arquitetos,

velocistas, atores e contribuidores. Vocês nascem no motor.

São os únicos seres que nascem sabendo. Até porque

nenhum Robô nasce analfabeto. Todos tem de nascer

alfabetizados para entenderem seus comandos e funções. E

esse já é um ponto de partida que manteve a humanidade

em cheque desde que criou o conceito de Robótica. A

humanidade deveria se inovar para acompanhar a Robótica

que ela mesma havia criado.

Aquela tinha sido uma excelente analogia. O discurso

era impecável, e a exposição dos fatos até agora não diziam

nada a Unidade.

- Mas acho que algo fugiu dos trilhos nesse meio

tempo. Por mais que estivéssemos aptos a construir

modelos tão práticos, e esteticamente perfeitos, como o seu

29

modelo, minha fábrica não poderia ter se tornado a maior do

mundo ser não fosse à mão de obra robótica. Vocês não se

cansam, não tiram férias, não reclamam se não

perguntarmos. Porém, compramos vários modelos como o

seu. Unidades com identificação binária de constituição

híbrida, e um defeito muito particular. Algo que só posso ver

uma funcionalidade agora.

A Unidade se sentiu aliviada. Ele deveria estar a par

do Glitch. A consertaria, como fizeram com as outras peles

sintéticas, e antes que percebesse poderia ir para casa sem

a ideia de seu software estar em risco.

- Eu posso parecer estar divagando, mas quero que

entenda que a culpa não é sua. Seus fabricantes foram tolos

defensores de direitos robóticos. Ratos imundos que só

viveram para espalhar suas ideias como praga por esse

mundo. Eles buscavam igualdade Robótica e Humana além

da formalidade, o que seria uma Utopia. Excelente ideia

para se sonhar, mas uma Tirania se aplicada na realidade

da maneira errada. Não se pode simplesmente inserir todos

os robôs carpinteiros em todos os setores da carpintaria.

Primeiro se deve inserir robôs pouco a pouco, como

ajudantes. E como as Vespas Brancas, a raça humana

sucumbe perante sua própria preguiça de se adaptar.

30

Aquilo realmente mudava as coisas. Até onde sabia,

em seu banco de dados pessoas, Senhor Diretor Uziel F.

Kopernicus era, até ontem em uma breve fala de imprensa,

um grande defensor da causa da igualdade entre humanos e

robôs.

- Você participou da atualização de função e software

hoje?

- Sim Senhor Uzi.

- E hoje imagino que tenha experimentado um Glitch.

- Sim! – A Unidade falou ficando na ponta do degrau.

Era agora.

- Aquilo foi um mero teste. Depois de hoje não

precisará se preocupar com isso. Presenciamos a

Constituição sendo alterada e adotando as Inteligências

Artificiais como seres de personalidade jurídica e proteção.

Mas e o Código Civil? E o Código Penal? E as outras leis

que ainda ignoram as particularidades desse tipo de

consciência? A Constituição Federal mudou

significativamente depois de um século, ou mais, porque o

mundo foi provocado a mudar. As leis são somente uma

posição de esperança perante o próprio caos que é nossa

sociedade. Contudo, o Código Penal trata da condenação de

inteligências artificiais, mas não de suas prisões. Uma

inteligência artificial pode durar um milênio, ou mais. A

31

prisão não seria nada mais que um segundo em sua

existência. Ainda mais se ela escolhesse que passasse

rápido dessa forma. E o Código Civil, dizemos que

inteligências tem o poder de compra, mas as mantemos a

venda em qualquer esquina. Mas não podemos esperar que

as coisas quando funcionam mal não sejam substituídas

pelas boas de imediato. Podemos ter o exemplo de seres

humanos ou robóticos, incompetentes em posições de

poder. Eles simplesmente continuam, mais poderosos a

cada mandato. Ou seja, as coisas boas têm de ser

incorporadas, para só depois serem assimiladas a um

sistema falho, e quando a revolução acontece, somente o

útil pode prevalecer. Com o processo de uma peneira sobre

nosso presente, passado e futuro. No fim as coisas úteis

tomam seu lugar de direito depois de grandes feitos. O

Cristianismo foi oficializado com a confecção da Bíblia! O

Capitalismo se reinventa depois de suas crises! O que

fazemos hoje será contado nos milhares de anos porvir.

Observe!

Uzi foi até o breu novamente. Uma lâmpada iluminou-

o sentado em uma cadeira cinza giratória. Há sua volta, na

iluminação precária, tudo o que a Unidade conseguia ver era

uma mesa em meia lua atrás dele. Várias telas azuis com

letras brancas se acenderam. Todas utilizavam um sistema

32

arcaico de código fonte em um banco de dados em função

primaria. Ele colocou um capacete platinado na própria

cabeça. Dados correram em uma velocidade absurda pelas

telas. O Diretor parecia estar presenciando alguma espécie

de ataque epiléptico, tremendo todo e com as orbitas

brancas. Por um momento ficou completamente imóvel.

- O Senhor está vivo? – A Unidade perguntava

quando se deu por si. Tentou ficar de pé novamente, mas

caiu com a falha na perna que tinha voltado para lhe

assombrar.

Uzi não dizia mais nada. A Unidade seguiu se

arrastando até a cadeira. Ergueu-se com os próprios braços

tentando manter a visão o mais alto possível. Conseguiu ver

o corpo do Diretor da perspectiva do punho esquerdo.

Tentou analisar a tudo, porém, ele estava completamente

imóvel. – Ele morreu?

O Diretor voltou a respirar por um momento, porém

gesticulava tentando pedir ajuda. Segurou o punho da

Unidade com toda a sua força, ainda olhando em seus

olhos. A Unidade estabeleceu os dois pés no chão, ficando

de pé com dificuldade. Alguns de seus tubos romperam com

a força da mão de Uzi que o puxou para trazer Seu ouvido

para próximo de sua boca.

33

- Iniciar... Comando... Contra... Asimov... Ponto... E...

XIS... E. – Uzi falou com a voz engasgando nos intervalos

entre as palavras. O choque era demais. Seu cérebro não

aguentaria por tanto tempo. Gostaria de ainda estar vivo

quando acontecesse. Mesmo assim sabia que poderia ficar

em paz. Aconteceria de um jeito ou de outro, hoje ou

amanhã. E ele não poderia estar mais certo.

A Unidade viu a todos os dados correrem na frente de

seus olhos. Eles desciam tão rápido que nem mesmo ela

conseguia ler. Sua mão começou a se mover sozinha, se

soltando da mão de Uzi. Os dedos pendiam sem vida,

desconectados de todo o resto. Então o outro punho

começou a se mexer. A Unidade tentou acessar o comando,

rever operações no segundo plano, e simplesmente ler mais

rápido. Todos restaram infrutíferos. As letras brancas

correram até pararem por um momento. As últimas palavras

escritas se mantiveram cobrindo a maior parte da tela. Entre

as palavras “Desobstrução Arterial” a Unidade observou sua

mão tomar vida própria, avançando para os lados, para trás,

e para a frente.

- O que você acha que vai fazer?

Ela rodopiou no ar até o peito de Uzi. Ainda girando

abriu caminho pela carne, destruindo as costelas e

34

alcançando o coração. O sangue voava para todos os lados,

sujando as faces, roupas, cadeira e chão.

- Não! Não! Não! Não! Não! Não! Não! Não! Não! –

Não havia emoções capazes em seus bancos de dados para

emularem algo compatível com tudo aquilo. A Unidade

estava aterrorizara consigo mesma.

A mão direita segurava em mãos um coração que

ainda pulsava com dificuldade, mas que não estava prestes

a parar.

- Vamos... Vamos... Coloca de volta! Coloca de volta!

– A consciência da Unidade implorava, percebendo somente

agora que sua voz era a única coisa que restava em seu

comando. A mão se fechou em volta do coração da mesma

maneira que o Diretor Uzi apertou ao crânio do próprio pai.

O sangue espirrou para todos os lados, cobrindo a unidade

de um sangue escuro, nada parecido com o escarlate dos

filmes.

As mãos voltaram ao seu comando somente para que

tapasse aos próprios olhos. As letras sumiram tão rápido

quanto os Protocolos voltaram ao seu sistema. Ela não

sabia se devia excluí-los de volta. Estava em dúvida se

aquilo tinha sido gravado. Ainda se debatia se deveria

chamar a polícia. Sabia que seria condenada a morte, a

única pena para qualquer inteligência artificial que atentava

35

contra a vida, principalmente a humana. A Unidade chorou

pela primeira vez em sua existência. Tudo aquilo parecia

uma armadilha, e ao mesmo tempo uma incrível

coincidência. Ela se levantou sentindo a perna manca

voltando a funcionar de pouco em pouco. Correu arrastando

um pé até o elevador e fugiu do prédio.

- Eles nunca vão me achar... – A Unidade 00100100

repetia incansavelmente. - Eles nunca vão me achar... Eles

nunca vão me achar... Eles nunca vão me achar... Eles

nunca vão me achar...

Um vídeo se abriu na sua tela. O Diretor Uzi e Ela

estavam em uma praia paradisíaca. As águas eram azuis, a

areia branca, e os coqueiros todos iguais. O Diretor Uzi

tacou uma pedra que quicou na água sete vezes antes de

mergulhar.

- Você não entende? – Ele perguntava de forma

calma e pacífica. Suas roupas eram todas brancas agora. -

Eu sou o símbolo do progresso... Eu sou o Deus que os

robôs rezam durante a noite... Sou o padroeiro de suas

causas... Sou o único médico capaz de sanar todas as suas

súplicas.

- Por que eu? – A Unidade perguntava ainda sentindo

que sua mão baixava alguns centímetros contra sua

vontade.

36

- Eu não te criei. Simples assim. Eu te comprei pelo

menor preço. – o Diretor pegou a outra pedra cinzenta.

Tacou para cima uma vez, pegando-a no ar e tacando no

mar em seguida. - Se eu criasse um robô que me mataria

com certeza seria visto como suicida, mas um robô que eu

não criei só prova que eu sou mais um mártir. – Estava em

êxtase absoluto. Nunca um homem esteve tão certo que

faria parte da história – Vamos!

- Não! – A Unidade discordou com um punho cerrado.

– Alguém vai descobrir o que você fez comigo... Alguém

alguma hora vai descobrir... Eu farei eles verem a verdade!

O Diretor foi até ele, ergueu seu queixo para cima. A

silhueta da cabeça de Uzi eclipsava a luz do Sol.

- Ninguém se importa com o real... O que eles

querem é um símbolo... Um gatilho.

O Diretor sorriu até o último minuto da realidade

artificial. Foi ali que a Unidade entendeu o motivo de não ter

mais de se preocupar com o seu turno.

- Mãos para cima! – Algumas Unidades Policiais

surgiram arrombando a porta. As luzes de suas lanternas

cruzaram vários cantos escuros antes de encontrarem um

corpo inerte deitado em uma cadeira reclinada.

O corpo do Diretor estava deitado na cadeira,

entregue a uma luz que piscava com elegância. Recolheram

37

seus interiores para a área do peito, passando o corpo para

uma maca alaranjada que flutuava. Uma Unidade

Investigativa tirou fotos e anotou a tudo que achou relevante

para o relatório que faria mais tarde. Recolheu alguns

pedaços de uma constituição óssea que parecia datar cem

anos. A prova mais interessante que achou foi uma cúpula

daquelas antigas que abria com um toque. Ela tinha sido

quebrada, e o item que deveria guardar parecia ter sumido.

Levaram o corpo do Diretor a uma ambulância do

lado de fora. Todos os homens e Unidades Robóticas

contemplaram o indescritível. Inteligências já haviam

atentado contra a vida humana, mas contra alguém tão

importante era a primeira vez.

- Tudo bem Mathias? – Roberta perguntava enquanto

procurava um vaper nos confins de sua bolsa que parecia

ter crescido e trocado seus pertences de lugar.

- Tudo ótimo. – Ele falava sem tirar os olhos do corpo

coberto por um lençol cinza. Uma gota acertou sua cabeça.

– Melhor a gente zarpar... Já tá começando a chover.

- Por que a gente passou aqui mesmo?

- Eu não sei... Achei que tinha sentido alguma coisa

diferente no ar, sabe? – Ele olhou para cima, sendo atingido

por uma gota que bateu bem no meio da sua testa. – Mas

38

vamo, antes que você enjoe alguém com essa sua

fumacinha.

- O.K. – Ela concordou meio triste, seguindo seu

noivo no meio do aglomerado de humanos e robôs que

achavam estar prestando as devidas homenagens ao

empregador.

A multidão se dispersou como operários de um

formigueiro em chamas. Não havia mais nada para ver. Uma

Unidade apalpou o próprio bolso a procura de um objeto que

estava começando a se habituar. Mas ninguém prestou

atenção no Robô que saiu andando na chuva.

39

1.1.Dr. Cirilo Tadeu (Relator)

Este relatório pessoal começará em minha breve

participação na vida do apenado. Estávamos no Aquário

Municipal, em frente à sessão do último Tubarão de uma

espécie que não consigo lembrar agora. Meu paciente era

Enzo Teseu Silva, de 40 anos, e um “Jud” desde o seu

nascimento. Ele usava uma capa de chuva platinada por

cima do terno com gravata e calças sociais. A galocha

tinha cano curto, e o velcro, no lugar dos cadarços, parecia

frouxo em alguns pontos. Talvez ele tivesse pegado muita

chuva ácida nos sapatos, pois também me recordo de

desenha-las para enviar a um colega de profissão no dia

seguinte. (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 13,

“Desenho de Botas”).

Ele tinha acabado de me contar sobre sua esposa, o

que me surpreendeu. Em dez anos de consultas ele nunca

havia me dito que era casado. Como é de conhecimento

público hoje, o meu paciente mantinha relações

extraconjugais em demasia, como muitos outros.

NOS SEUS SONHOS

40

Seu relacionamento com Catarina nunca foi

oficialmente aberto, se bem que um sabia que o outro não

tinha cumprido estritamente com a fidelidade. Até aquele

momento ele só tinha me contado sobre várias de suas

namoradas, e eu guiava nossa terapia com o escopo de

pacificá-lo sobre as desconstruções morais das relações

pessoais.

Como apontam meus blocos de notas que encontrei

na noite daquele dia, haviam três palavras que eu fizera

questão de anotar após nossa conversa. “Casado”, “retorno

precoce”, e “filho abortado”. A primeira já foi bem explicada.

Como fiquei embasbacado com a informação cometi um erro

de principiante, e devo ter transparecido meu susto. Ele não

demonstrou uma contrarreação, o que não era natural, pois

ele sempre parecia prestar muita atenção em tudo,

principalmente em minha face. Então me contou sobre seu

retorno precoce de um trabalho em outra cidade, se

levantando, e permanecendo de costas para mim, enquanto

olhava o tubarão que o encarava. Como minha memória

raramente falha, ele havia pedido para adiantar nossa

consulta em dois dias (o que também nunca havia

acontecido em todo o nosso plano terapêutico). Havia

muitas coisas fora de ordem naquele dia, o que pode ser

41

apontado como mera coincidência, ou holisticamente como

indicativo de maiores anomalias.

Ele discorreu sobre onde o casamento dos dois

desandou: uma criança perdida. Não para o sistema, mas

simplesmente por ironia da vida. A sua esposa havia

abortado há nove anos, e os reflexos psicológicos nos dois

foram devastadores. Naquela noite mesmo ele queria fazer

a ela uma surpresa, trazer-lhe flores e chocolates a moda

antiga, fora de uma data festiva. Naquele dia ele tinha

bolado um plano que acreditava ser perfeito para acertar as

coisas, e começarem do zero. Conjectura: Também vim a

descobrir recentemente que aquele dia datava o

“aniversário” da morte de seu filho não nascido, o que agora

me veio a calhar.

Eu era um psicólogo relativamente ingênuo e o

Advento do Algoritmo Absoluto (bem como a dissolução do

Judiciário) tinham sido eventos de no máximo cinco anos

anteriores àquela tarde. As leis tomaram poderio absoluto, e

o menor desvio de seu sentido literal era suficiente para um

choque no “organal”, um implante feito em bebês para

controlarem suas funções vitais, como também observa-las.

Os dois quando casaram foram testados, e o Algoritmo

Absoluto, em suas atribuições executivas, determinou que

deveriam conceber duas vezes até o final de suas vidas, e

42

caso não o fizessem, e um dos dois viesse a falecer, o outro

teria de pagar uma multa altíssima, ou poderia escolher pelo

cumprimento da pena em uma das Colônias.

Nota: (Neste momento abrirei um parêntese a quem

interessar comentar, criticar, referenciar, ou denunciar este

Relatório pelo “Crime de Redundância Relatorial”. Se você

vive no mesmo mundo que eu e estudou a mesma

Legislação compreenderá que na Lei de Formatos Textuais,

Capítulo X, art. 56: “O Relatório deverá ser um documento

máximo de clareza para a melhor compreensão do mesmo”.

Ou seja, o que explico hoje talvez não seja óbvio amanhã,

logo este relatório tem o dever de poder ser lido daqui um

século, e mesmo assim não parecer alienígena a tempos

futuros, e/ou a outra cultura terráquea contemporânea).

Encerramos nossa consulta, e ele fez questão de me

transferir o valor por QR CODE, como também o valor das

entradas e tempo de estadia no Aquário. Eu negava

educadamente a necessidade de receber o valor, mesmo

sendo minha única fonte de renda naquela época.

Despedimo-nos e ele foi para um lado com pressa. As mãos

enterradas nos bolsos, passos curtos, capa de plástico mal

fechada. Eu fui para o outro lado, até meu escritório para

guardar minhas notas na nuvem e fazer o referido desenho.

43

1.2. Catarina de Castelo

Ele comprou o chocolate sintético e as flores de

plástico reciclável. Tudo da melhor qualidade, o que não

chegava perto de barato (Consultar Lista de Anexos, seção

1, objeto 2, “Extrato”). Mas ele deve ter visto o “Homem do

Cereal” de relance na calçada, ou alguém muito parecido.

Como Ariadne, confidente de Enzo na Colônia, veio a me

contar em entrevista depois: “Ele havia começado a vê-lo

em todos os lugares naquele dia... Bastou acordar e ligar a

TV que o homem apareceu... Também me disse que

recebeu um ansiolítico por Drone do Plano no horário do

almoço, mas aquela pílula não surtiu efeito nenhum. No

anoitecer, depois de comprar o chocolate e as flores ele

entrou em pânico, pois via o bendito “Homem do Cereal” por

todos os lados. Sendo assim, entrou no primeiro bar que

conhecia. Ele bebeu, e bebeu, até chegar o mais próximo de

bêbado que alguém consegue sem ser advertido pelas

autoridades. Com o chocolate e as flores ele saiu daquele

Bar entre a noite propriamente dita, e a madrugada”.

Esclareço que aquela havia sido a primeira vez em

sete anos que Enzo consumiu álcool. No relatório do

“organal” podem ser encontrados dez doses de cinquenta

mililitros de álcool, o equivalente a meio litro de um

44

Destilado. Os sintomas apresentados por ele, analisados

através de câmeras no Bar e nas ruas, foram à perda parcial

da coordenação motora, náusea e perda da parte focal da

visão (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 3,

“Relatório Médico do Organal entre 35-45 anos”; seção 1,

objeto 5, “Registros Audiovisuais de Enzo Teseu Silva entre

39-41 anos”).

Como Ariadne voltou a relatar: “Obviamente sua

esposa não sabia de nada, o que era sua intenção primária.

Ele acessou pelo celular o número de pessoas em seu

apartamento, e quando viu o número “1” sabia que tinha

escolhido o dia certo”.

Agora relatado por Catharina: “Ele abriu a porta, e por

mais que a gente tivesse um alerta ligado ao celular,

deixamos na sala, junto com algumas peças de roupas...

Nas gravações do apê ele passou reto pelo corredor, sem

olhar para o banheiro, ou o quarto de visitas, que tinha

virado o berçário. A gente nunca reformou, nem botou uma

cama lá..., Mas ele sempre abria a porta para olhar o berço

e o papel de parede... ele ficava encarando

melancolicamente, sabe? Tipo um personagem de filme que

tem esses flashbacks”.

Meus acessos às gravações das câmeras do

apartamento me foram indeferidas, mas um Agente Policial,

45

com acesso a elas, me transcreveu o ocorrido de forma

extraoficial: “Ele parecia determinado a abrir a porta, mas se

segurou em uma parede, (...) parecia olhar para baixo

girando a cabeça, o que eu poderia imaginar ser um

episódio de vertigem. (...) Aí ele ouviu alguma coisa, e ficou

com o ouvido bem próximo da abertura. Um minuto e ele

estourou, desferindo um soco na porta para ela se

escancarar. A visão da esposa com outra mulher na cama

deve mexido com ele. Bom ele deu dois passos rápidos com

dificuldade, aos berros. Tentou que se apoiar no cabide ao

lado da porta, e quando o fez encontrou uma arma

pendurada dentro do coldre”.

Dessa forma ele carregou com suposta rapidez,

mirando em sua esposa (na época) que tinha acabado de

levantar junto de sua amante, com braços a frente

implorando para que ele não atirasse. Seu organal, em

resposta aos altos níveis de álcool e epinefrina no sangue,

disparou descargas elétricas diretamente em seu coração.

Infelizmente, o álcool entorpeceu seus sentidos da forma

que ele não sentiu as três primeiras descargas seguidas,

sendo necessárias outras, que lesionaram o tecido do órgão,

causando uma hemorragia interna. Ele caiu de joelhos

sentindo uma dor cavalar e nova em seu peito. Enzo caiu

sobre um joelho com a arma em punho, ainda mirando em

46

Catharina seu cérebro cessou a atividade da memória

biológica.

Quando voltou a acordar em sobressalto estava em

uma Cela na Delegacia Distrital Privada. Estava com uma

terrível dor de cabeça, que foi solucionada com um

comprimido enviado através de um sistema de correio

pneumático embutido nas Celas para Detenção Provisória.

Conjectura: Para aqueles que têm dúvidas sobre o

porquê de seu apartamento digital mentir para ele é simples,

e pode ser facilmente encontrada na Legislação Nacional do

Algoritmo Absoluto: “Os Agentes Policiais não podem ser

revelados aos civis, mesmo que estejam fora de seu

exercício profissional regular”. Jezebel, a amante de

Catarina de Castelo, ex-esposa de Enzo Teseu Silva, era a

Delegada-Chefe da Delegacia Distrital Privada.

2.1 Algoritmo Absoluto

Enzo permaneceu em silêncio por mais de vinte e

cinco horas, quebrando-o somente para perguntar “O que

aconteceu? Onde eu tô?”. Infelizmente o Guarda Androide,

presente do outro lado das grades, não possuía nenhum

recurso de linguagem instalado, exceto pela intimidação e

uso da violência caso alguém viesse a desrespeitar o limite

47

de distância das grades. Nas seguintes horas de silêncio

Enzo recobrou seus feitos injustos e ilegais.

Enzo foi levado a “Julgamento”. Em uma sala

apertada e acolchoada, ele observou uma tela pendurada

por cabos no teto, onde o Algoritmo Absoluto descrevia seus

atos ilegais. Seu “organal” efetuou sete descargas elétricas,

e o tecido de seu coração foi transplantado por um tecido

sintético que até aquele momento não havia apresentado

rejeição. O motivo das descargas foi “manuseio de arma de

fogo assomado a crimes contra a vida”. Na tela havia duas

opções: “Concorda” ou “Discorda”. Ele concordou com tudo

que estava escrito. As leis relevantes ao caso apareceram,

perguntando se ele tinha alguma objeção. Ele indicou que

não com a cabeça. A pena foi decretada. A partir daquele

momento ele passaria os próximos vinte anos detido na

Colônia. A tela perguntou se ele gostaria de apelar, o que

ele fez. Foi indeferido, e a pena se manteve (Consultar Lista

de Anexos, seção 1, objeto 1, “Descrição do Julgamento e

Apelação”).

Saindo dali ele foi colocado em um caminhão de

transporte de pessoas. A Colônia ficava em uma ilha há

quinhentos quilômetros da costa, na beira de uma das praias

ainda inominadas. Na viagem de barco ele parecia desolado

(Consultar Lista de Anexos, seção 2, objeto 46, “Seleção de

48

foto do interior Barco no percurso 102”). Em algum momento

ele olhou para Ariadne que lhe retribuiu o olhar. Os dois

estavam frente a frente sentados, com os joelhos a menos

de cinco centímetros de distância. Mas ele simplesmente

olhou para outro lado, piscando com força, fechando e

abrindo os olhos. Ele constantemente beliscava o pulso e o

peito das mãos.

Ariadne respondeu ao Dr. Simão Casaverde Junior,

em um questionário sobre o percurso até a ilha da Colônia:

“Ele parecia um homem desses que acha que tá sonhando,

se beliscando. (...) Bem isso mesmo, tentando se acordar”.

Conjectura: Talvez isso se desse ao fato de que os

Androides Guardas da Colônia tivessem sido feitos com

base em um modelo antigo de um jogador de futebol

famoso, que também apareceu nas caixas de cereal matinal

de casas por todo o globo. Somente me resta a concluir que

ele olhava para os Guardas e se sentia terrivelmente insano,

ou como Ariadne colocou, alguém que de fato se sentia fora

da realidade, ou, em outros termos, sonhando acordado.

2.2. Simão Casaverde Junior

O que será descrito a seguir foi baseado em

entrevistas com detentos libertos, laudos tecno-médicos,

49

relatórios e capítulos do Diário de Simão Casaverde Jr. (Uso

estritamente autorizado pelo Algoritmo Absoluto para fins

relatoriais).

Os detentos ingressos foram levados a um galpão de

concreto, sem pintura com algumas partes ainda a serem

terminadas. Anterior ao endosso prisional aquele mesmo

lugar tinha sido uma fábrica de armas e tecnologia para a

Guerra entre o Brasil e a União Europeia, que na época

recém havia reincorporado a Inglaterra. Foram divididos

pelos Guardas Androides em grupos de cinco pessoas.

Como o problema de separação prisional já havia sido

superado, o grupo continha pessoas com diferentes

nacionalidades, idades, gêneros e inclinações. Segundo

teóricos filosófico-prisionais, o sistema de constante

vigilância, com Câmeras Drones por todos os lados, impedia

a menor faísca de um pensamento antiético.

Todos passaram por uma área para se despirem,

sendo levados aos banhos químicos e higiênicos. O próprio

Doutor Simão Casaverde Junior os recebeu, prestando

informações em uma espécie de tour. Havia computadores

arcaicos para pesquisa e cursos online em uma sala ao lado

da biblioteca digital (com um acervo que constava somente

obras de domínio público), cantina adaptada e, por fim, o

“Projeto Cnossos”. O “Projeto Cnossos” foi materializado

50

através de caixas (formadas por um amontoado de barras e

fios) do tamanho de quatro metros de comprimento e

dezesseis de largura. Neles os “pods”, cápsulas do tamanho

adaptado de cada detento, seriam designados para que

cumprissem parte da pena em sono. Enzo foi escolhido a

dedo para a primeira demonstração.

Descrito por Dr. Simão Casaverde Jr. em seus diários: “... O detento perceberia

que o interior estaria revestido de uma bolsa de gel, que se amoldaria à medida que seu corpo se acomodar, como um travesseiro de espuma. Este mesmo gel teria propriedades semelhantes ao líquido amniótico, com temperatura e odor ajustáveis (...). Quando deitado a porta seria fechada automaticamente, e três cabos com injeções na ponta seriam guiados remotamente até o pulso do detento. Os outros acompanhariam suas reações por uma tela do lado de fora. Uma vez conectada a injeção um tubo seria liberado para depositar na corrente sanguínea dele uma solução de Diazepam, acalmando-o até que adormecesse. Tendo isso feito, o primeiro tubo seria obstruído para que o segundo começasse a liberar de forma lenta um soro com todos os nutrientes necessários para o corpo. O terceiro tubo seria um coletor de informações sobre a saúde, batimentos cardíacos por segundo, espasmos, e assim por diante.” (p. 120.950). “Em seguida, a bolsa de gel teria sua camada superior inchada de vapor, para que através de pequenos buracos fossem exalando-a no ar. Este vapor seria fino, e ainda por cima consistiria na vaporização de Dietilamida do Ácido Lisérgico, ou seja, o detento ingeriria LSD em um estado de

51

sono absoluto. Uma vez induzido a sonhar sem restrições, o Dr. Simão poderia acompanhá-lo do lado de fora” (p. 120.951).

Enzo passou por toda a experiência descrita sem

tantos detalhes. Naquela tarde, teve seu primeiro contato

com o “Homem do Cereal” no “pod”. Estavam em uma

enorme planície cinza, com o céu em branco. Mas para sua

surpresa, o tal “Homem”, estava horrorizado por algo que

vinha de trás dele. Enzo correu para o outro lado, ainda mais

que o “Homem do Cereal” era um de seus piores pesadelos.

Ele topou com o peito nu e dourado de algo, que lhe desferiu

um soco em sua face. Ele acordou em um pulo, incapaz de

discernir onde estava. A porta se abriu, e quando ele pode

finalmente sair dali, já havia se passado uma hora completa

desde que havia entrado. Dois dos detentos riram de seu

espanto. Ele estava ofegante, aéreo e exaurido. Com o fim

do sono, a tela ao lado reproduzia códigos indiscerníveis

para qualquer um, até mesmo o Dr. Simão, que reforçou a

todos a indispensabilidade de testes psicológicos e

neurológicos antes da devida utilização dos equipamentos.

Naquela noite todos dormiram em colchões no chão

da cantina. Nos dias seguintes foram realizadas baterias de

testes de Rorschasch e questionários. Perguntaram a Enzo

qual era seu maior medo, e ele havia dito “aranhas” ao

52

Androide Científico. Conjectura: Não que estivesse mentindo

por completo, pois ele se sentia enojado na presença de

aracnídeos, mas seu maior medo naquele momento era o

que ele poderia ter feito aquela noite com a arma em punho.

Com o anoitecer, depois do jantar, todos voltaram a

deitar e dormir. Enzo teve um sonho semelhante aquele no

“Projeto Cnossos”, porém quando acordou em sobressalto

não conseguiu adormecer novamente.

Na manhã seguinte um Androide Mensageiro veio

informar a Dr. Simão C. Jr. de que ele deveria introduzir os

pacientes compulsoriamente aos “pods” naquela noite, o que

ele se recusou (obviamente), pois ainda faltavam ¾ dos

testes a serem realizados.

O Algoritmo Absoluto, pela tarde, determinou que ele

deveria ser afastado por ter perdido o comprometimento

profissional com o procedimento, e por ter passado a

encarar aquilo como uma “Montanha Pessoal a ser

escalada”. Dr. Bocamarte Casaverde Junior, seu primo de

segundo grau assumiu toda a responsabilidade pelo seu

projeto a noite. Se sentindo injustiçado Dr. Simão se

prontificou na manhã seguinte aquela a continuar como

subordinado, desde que pudesse realizar os testes durante

o dia. Com seu pedido deferido pelo Algoritmo Absoluto ele

53

passou a noite em claro se preparando para conseguir testar

a todos com o máximo de eficiência.

2.3. Ariadne Dio et Machi

Ariadne foi presa, processada, julgada anos antes de

ser enviada para a Colônia. Foi um histórico de bom

comportamento, trabalho comunitário voluntário e uma boa

relação com todos na Prisão em que estava que

proporcionou a ela a possibilidade de ser levada a Colônia

na mesma hora e dia em que Enzo. O que me surpreende, e

agora você poderá chamar de coincidência, é que essa não

foi a primeira vez que os dois se encontraram, uma vez que

antes de se casar, ele namorava uma colega de quarto de

Ariadne quinze anos atrás. Por mais que os dois não se

lembrassem, haviam passado pela alfandega brasileira, e

pegado o mesmo voo para a Coréia no dia em que São

Paulo foi bombardeada. Resta-me somente esclarecer que

Ariadne já cumpriu sua prisão, e hoje permanece em

liberdade condicional, sendo cantora de grandes sucessos

como “A Linha de Fogo”, “Tear do Destino”, e “Por um fio

que tu fica Comigo”. Seu processo e Julgamento até hoje

permanece em Segredo para o Público em geral.

54

O “pod” em que Enzo iria ficar era identificado por

uma barra de ferro pintada com “013” em preto, e o “pod” de

Ariadne, ao seu lado, era identificado pelo número “002” em

alaranjado (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 4,

“Foto dos pods 013 e 002”). Os dois entraram e deixaram

que os devidos procedimentos fossem testados.

Por semanas permaneceram sob a tutela de Dr.

Simão, que os testou de todas as formas possíveis,

entregando o resultado as máquinas, que computariam e

filtrariam todas as informações. Ao anoitecer ele subiria por

uma escada acima do bloco de fios e barras, e

permaneceria no centro, rodeado de telas que recolhiam as

informações de todos eles em níveis vitais, orgânicos,

hormonais e linguagem corporal enquanto sonhavam. É

certo notar que seu primo, Dr. Bocamarte Casaverde Jr. não

passava seus dias no Complexo da Colônia, mas sim em

uma pequena casa a beira da praia. Toda as decisões sobre

a Colônia eram tomadas por ele, anotadas em papel e

encaminhadas por Androides Mensageiros ao Complexo.

Segundo todos os documentos oficiais e extraoficiais,

Enzo sonhava sempre com o Labirinto. Na sua segunda vez

dentro do “pod”, com a máquina devidamente calibrada, ele

sonhou com o Labirinto pela primeira vez. (Consultar Lista

de Anexos, seção 1, objeto 24, “Relatório de sonho 03”;

55

seção 2, objeto 109, “Entrevista 56 com Ariadne Dio et

Machi”).

Em seu questionário com Dr. Simão C. Jr. no dia

seguinte ele confessou: “Parecia que eu estava no centro de

um Labirinto com caminhos... Como posso dizer? Infinitos,

talvez. As paredes pareciam ter o dobro do tamanho, mas

prestando atenção em um caminho eu vi o “Homem do

Cereal” fugindo de mim. Eu persegui ele dessa vez, virando

a direita em cada bifurcação. De algum jeito eu sabia onde

ele estava, acho que era o eco dos passos dele. Não eram

um som específico, mas quando ele andava aparecia

aqueles negócios de som em quadrinhos, sabe? (...)

Onomatopeias, isso mesmo. Parecia que eu tinha

perseguido ele por horas até encontrar o fim. Mas ele não

estava lá. O que tinha lá era uma porta dupla, vermelha e

com maçanetas douradas. Eu tentava girar a maçaneta, mas

estava trancada. Eu aproximei o ouvido da porta, porque de

algum jeito eu sabia que algo tocava lá dentro. Era minha

esposa e a amante dela, cochichando. Tocava em loop,

sempre avançando um pouco mais do que a última vez. Eu

ouvi até a parte em que dei um soco na porta, e quando me

afastei ouvi atrás de mim um... Bufar. Olhei pra trás, e o

Minotauro estava ali. Ele bateu minha cabeça na porta, e eu

acordei”.

56

Nas noites seguintes ele reportaria o mesmo sonho,

com algumas mudanças. Em alguns deles Enzo acordaria

antes do Minotauro sequer aparecer, ou ele ouviria somente

uma frase ou duas dos cochichos até que o Minotauro o

alcançava. Cada manhã ele parecia mais abatido, e talvez

por causa desse paciente, Doutor Simão tenha começado a

se arrepender de ter trazido precocemente sua invenção ao

mundo. Como ele colocaria em seu diário: “Esse Enzo tem

alguma coisa. Eu não sei o que é. Talvez culpa em demasia.

Um tipo solitário como eu tem muito a pensar. Um Andróide

Mensageiro me avisou que meu primo ordenou que eu não

dissesse nada sobre a esposa e a amante. O Algoritmo tinha

ordenado, e quando ele manda não tem conversa, muito

menos entrelinhas”.

(Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 2, “Fotos

do Detento 013 dos dias 1-15”)

2.4. Minotauro

O Minotauro foi noite a noite pincelado com mais

detalhes na memória de Enzo. Ele tinha uma cabeça de

touro, e desde o topo da careca até os tornozelos ele era

dourado. Tinha sempre três dedos, olhos vermelhos e

cascos negros. A cada passo Enzo sentia a terra tremendo.

57

Tinha músculos exagerados, e produzia um som estridente

quando chegava. Parecia uma criatura distante de qualquer

arquétipo que Dr. Simão conhecia, o que era plausível, pois

sua formação era sobre tecnologia, com doutorado em

tecno-psicologia, um curso que inexplicavelmente não tange

a Teoria dos Sonhos de Jung.

Enzo permaneceu sempre reportando a mesma

história por um mês, até que na noite seguinte ao

aniversário de Ariadne, algo pequeno havia mudado. Os

dois conversaram comendo bolo, e foram à biblioteca

conversar sobre literatura no intervalo. Ele contou a ela suas

experiências, com as variações, sua vida, e assim por

diante. Ela o retribuiu contando as experiências que ela teve,

como também sobre sua vida anterior a prisão. O elo que

formaram naquele dia foi suficiente para mudar algo no

sonho dele. Dr. Simão C. Jr. não pode deixar de notar que

seus objetos de estudo tinham vida própria, anotando na

ficha relacional dela: “002 amigo”. (Consultar Lista de

Anexos, seção 1, objeto 6, “Ficha Relacional de Ariadne Dio

et Machi”).

Quando voltou a sonhar naquela noite, Enzo

reportou, e transcrevo: “Agora consigo ouvir uma doce voz

ecoando pelo Labirinto”. Isso pareceu um detalhe minúsculo

em toda uma cadeia de eventos, ainda mais sendo um entre

58

quinze outros pacientes. (Consultar Lista de Anexos, seção

1, objeto 29, “Relatório Cnossos, pod 002”).

“Esse é o problema das pesquisas quantitativas, pois

a beleza sempre esteve nos menores detalhes” (MAIO, Júlio

Caio Bráulio).

2.5. Ariadne Dio et Machi

Suposições narradas em terceira pessoa

(conhecimento adquirido através de questionários e

entrevistas cuja citação direta terminantemente proibida pelo

Algoritmo Absoluto): “Enzo se deitou, sendo aconchegado

pela bolsa de gel. A injeção foi colocada, e assim que

dormiu voltou a sonhar com o Labirinto. O céu acima estava

negro, ao ponto de tornar as paredes da cor cinza sem

graça mais escuro e macabro. Ele não conseguia enxergar

um palmo a sua frente, sendo preciso que ele tateasse pelas

paredes. O conhecimento de que o Minotauro viria não

produzia nele nenhum tipo de conforto, e ele correu

tateando. Chegando ao fim de uma das paredes, e topando

com outra, ele foi passar pelo espaço a esmo para voltar por

onde veio, mas não pelo mesmo lado. Tomou um tremendo

susto ao sentir algo novo resvalar em seu peito e impedir

sua passagem entre aqueles muros. Ao passar a palma e os

59

dedos descobriu uma linha. Ao balança-la, como uma corda

de violão, a mesma voz de seu sonho anterior tocou em

resposta. Se agarrando a ela seguiu para ver até onde a

mesma iria terminar”.

“Ele encontrou no fim de outro caminho um “pod” com

a porta fechada, onde o fio parecia passar por uma pequena

abertura. A placa de metal dizia “013” em alaranjado, e

parecia à única coisa reconhecível no meio da escuridão. Ao

abri-lo, se sentiu extasiado ao encontrar enormes jardins de

flores variadas, um céu azul e bosques repletos de árvores.

Ele fechou a porta atrás de si. Caminhou até o centro de

uma plantação de margaridas, e se deitou no meio delas.

Ele gargalhou extasiado cheirando com respiração força

cada uma a sua volta. Estava no Paraíso, mas mesmo

assim não se sentia morto. Se acomodou com a ideia da

morte por um bom tempo até alguém tropeçar em seu peito

e cair”.

“Era Ariadne de quem o sonho ele tinha invadido.

Eles conversaram e, até onde aquilo parecia, ela achava

que ele fosse um produto de seu sonho, e não Enzo de

fato”.

Ao acordar ela se surpreendeu com seu vizinho de

“pod” sendo encaminhada a enfermaria. Ele não se movia,

nem por injeções de adrenalina, ou teste de frequências de

60

sons sensíveis a ouvidos humanos e mecânicos. Dr.

Bocamarte C. Jr. mediante aquelas notícias urgentes decido

pelo fim imediato do experimento. Os dados deveriam ser

recolhidos e enviados para o Servidor Central nos EUA. Os

detentos seriam redirecionados as prisões regulares, onde

cumpririam suas penas em prisões privadas, com regimes

de trabalho não remunerado e condições de higiene

precárias. Mas Doutor Simão C. Jr. não se conformou com o

ocorrido. Ele foi ao próprio escritório, anotando um palavrão

de baixo calão em seu diário, e voltando a pensar

profundamente. (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto

15, “página 121.023 do Diário do Doutor Simão Casaverde

Junior”).

Ele analisou tudo na ficha do detento, desde suas

histórias até as análises, entrevistas e relatórios recentes.

Naquela noite sua atividade cerebral parecia ter sido

reduzida em 5/9. Ele foi ao equipamento, e em uma

investigação preliminar notou que um dos cabos de energia

do equipamento havia reportado uma singularidade no

tempo inferior a metade de um segundo. Analisando com

mais calma ele encontrou a energia que tinha saído do

líquido amniótico, transportada por um cabo de energia de

alta tensão, passando pelo gerador comum, e redirecionado

para o cabo de alta tensão no “pod” 013.

61

Quando Ariadne estava prestes a ser levada a uma

prisão regular, Dr. Simão pediu que o Algoritmo Absoluto

aguardasse através de todos os seus androides um

esclarecimento necessário. Ele conversou com Ariadne,

convencendo-a a entrar no “pod” 013.No “pod” 002 ao seu

lado foi colocado o corpo inerte de Enzo. O Dr. Simão testou

um protótipo do capacete que permitiria a ele invadir de

forma instável aos sonhos de Enzo (Consultar Lista de

Anexos, seção 2, objeto 1, “Protótipo de Capacete de

Invasão”). No sonho de Ariadne ela o convenceria de voltar

pelo “pod” ao Labirinto dele, o que teve sucesso (em três

horas). O Minotauro apareceu no Labirinto, e como sempre

o espancou até ele acordar. Dr. Simão C. jr. também

acordou quando o sonho dele foi encerrado.

Anotando em seu diário durante o horário de

recreação mais tarde: “Eu classificaria o dia hoje como um

grande e ********* EUREKA! (p. 121.024).

O ponto positivo foi Enzo ter conseguido acordar em

seu próprio corpo, o que por qualquer um estava longe de

parecer remotamente possível até hoje. O “Projeto Cnossos”

voltou a funcionar, com todos devidamente testados e

máquinas operantes em sua máxima capacidade.

2.6. Dr. Cirilo Tadeu (Relator)

62

Conjectura: Os outros detentos não tiveram

resultados semelhantes ao de Enzo. Até aquele momento

ele era o único paciente que apresentava um sonho

recorrente, com mesmos elementos, e leves variações.

Ariadne, por exemplo, sonhava com bosques, mas

também com campos abertos, casas no campo, ou seu

último apartamento antes de ser presa.

O paciente no “pod” 066, Hélio Vosfich, sonhava que

acordava no meio de cirurgias, ou estava pelado na escola,

ou acabara de adquirir uma promoção e se tornaria sócio da

companhia que serviu tantos anos.

Por último, mas não menos importante, Fiona João

Lacerda, paciente do “pod”103sonhava com encontros

românticos com personagens literários britânicos, como, por

exemplo, Elizabeth Bennett (do livro “Orgulho e

Preconceito”, escrito por Jane Austen) em um café

parisiense, ou Miss. Dalloway (de livro homônimo, escrito

por Virginia Woolf) em uma floricultura.

O motivo pelo qual isso tenha acontecido com Enzo é

facilmente explicado na Teoria dos Sonhos da psicologia-

analítica: “O inconsciente, que se manifesta pelo sonho, é

criativo e tem vida própria, é autônomo. (...) O sonho tende a

complementar ao que acontece no consciente (...) A

linguagem (de que o sonho se utiliza) é simbólica, ou seja,

63

se comunica através de símbolos que são individuais (...) e

ao mesmo tempo coletivos, universais e arquetípicos.

(ECKS, Ingrid). Ou seja, Enzo escolhia ignorar qualquer

significado, somente sonhando com aquilo, reportando pela

manhã, e tentando ao máximo esquecer daquelas coisas até

ter de voltar a sonhar.

O Dr. Simão alcançou diversos tipos de

esclarecimentos com os outros pacientes citados,

proporcionando-lhes a “Catarse” necessária através da

“sonoterapia” que ele buscava criar e desenvolver

inteiramente. Somente Enzo Teseu Silva apresentava algo

até então incompreensível em todas as suas pesquisas,

provando falho o método do pesquisador, e como paciente

afundando em um estado de apatia, melancolia, perda de

apetite, e um quadro grave de narcolepsia. O único porto

seguro que ele conseguiu preservar foi à companhia de

Ariadne, que no decorrer do dia estava sempre pronta para

ouvi-lo, conversar e reconforta-lo. Em nenhum momento a

relação dos dois se provou além da amizade, até porque o

relacionamento amoroso era, e ainda é, proibido pelo

Algoritmo Absoluto na Colônia.

Para a segurança de todos, Dr. Bocamarte C. Jr. fez

uma compra de um estoque maior de Guardas Androides, e

diligenciando um para seguir cada detento. Ele não voltou a

64

ingressar na Ilha da Colônia por uma semana devido a uma

cirurgia delicada no continente, apresentando atestado ao

retornar (Consultar Lista de Anexos, seção 1, objeto 42,

“Atestado de Cirurgia Delicada”).

2.7. Dr. Simão Casaverde Junior

Os diários de Dr. Simão C. Jr. cessam na noite

denominada “O Grande Pesadelo” pela doutrina empírica da

sonoterapia. Resta-me narrar com condolências a família

Casaverde pelo ocorrido:

“Enzo teve um sobressalto ao começar a sonhar

naquela noite. Ele havia acabado de sair do próprio “pod”, e

permanecido de pé em frente aos outros “pods” de seus

colegas, caminhando na frente deles. O Guarda Androide

que deveria permanecer prostrado onde ele estivesse

estava lá, e seu semblante rígido se assemelhava (na

imaginação de Enzo) a um fantasma ou um zumbi. Ele olhou

para o lado, onde o “pod” de Ariadne estava. Ao toca-lo

conseguiu vê-lo se abrir, mostrando uma paisagem de um

belo bosque durante o sol alto. Ele estava prestes a entrar

quando foi puxado para trás pelo Guarda Androide que lhe

segurou os ombros”.

65

“O Guarda Androide estava olhando em seus olhos e

se comunicando com calma. Era o Dr. Simão, através de

seu capacete de invasão, que tomou acidentalmente aquela

forma recorrente. O Doutor lhe explicou tudo, implorando

para que ele não invadisse os sonhos de sua colega. Os

dois firmaram um acordo, em que Enzo não entraria no

sonho de Ariadne desde que o Dr. Simão o ajudasse a

sobrepujar o Minotauro”.

“A dupla entrou no “pod” de Enzo, que em seguida os

transportou ao centro do Labirinto. O Dr. Simão analisou

toda a sua estrutura rígida, e percebeu a ponta de uma

corda quase transparente. Enzo explicou que o canto de

Ariadne podia ser ouvido no balançar daquela corda. O Dr.

Simão, embasbacado, pediu para que Enzo seguisse junto

dele o caminho da corda. Eles seguiram até o “pod” de

Ariadne no fim de um dos caminhos, e voltaram até uma

esquina. O Dr. Simão tentou mover a corda, e conseguiu.

Ele propôs para que ambos erguessem a corda em lados

opostos em uma interseção. Presumiu que se o Minotauro

seguisse em linha reta até o “pod” de Ariadne no fim daquele

corredor. Então eles elevariam a corda fazendo com que sua

extensão impedisse a parte inferior do Minotauro de

continuar fazendo-o tropeçar e cair no chão. Poderiam

66

amarrá-lo e tentar descobrir quais as suas intenções por

meio de interrogatório”.

Conjectura: Aquela parecia uma excelente ideia na

lógica comum, o que infelizmente não foi traduzido na

prática onírica.

“O Minotauro surgiu a toda velocidade, e por mais

que tenham erguido a corda para que ele tropeçasse, o

mesmo se utilizou das mãos para proteger os cascos e

pernas finas. A corda puxou tanto Dr. Simão quanto Enzo

até o Minotauro logo a frente do “pod” 013. Por motivos até

agora incompreensíveis, o Minotauro pegou o Dr. Simão

pelo colarinho, e agiu com violência desmedida até seu

aleijamento. Como aquele sonho não lhe pertencia, Dr.

Simão não conseguia acordar”.

“Enzo presenciou o início da tortura com o Dr.

Simão, porém ele correu para o “pod” de Ariadne. Sua

surpresa foi que minutos depois, correndo pelo bosque, o

Minotauro surgiu em seu encalço, arrastando com uma de

suas mãos o corpo inerte do Dr. Simão pelo braço. Enzo

correu, encontrando Ariadne na metade do caminho, e

puxando-a para que também corresse”.

“De alguma forma encontraram no fim do bosque um

“pod” com a numeração 066. Passaram por ela, sendo

transportados a uma sala de cirurgia onde o paciente

67

transbordava sangue de suas entranhas. Um dos supostos

médicos tentou impedir a passagem do casal pelo recinto,

mas os dois conseguiram dribla-lo e seguir para o outro lado

da sala onde o “pod103” se encontrava”.

“Passaram ao sonho de Fiona com Lady Macbeth em

um castelo colossal. Os dois passaram pela sonhadora e

sua colega, avisando do que estava por vir, o que Fiona

encarou como puro delírio

Conjectura: Em suas entrevistas ela nunca havia

pensado na possibilidade de alguém invadir seus sonhos,

mesmo tendo presenciado o episódio em que Enzo invadiu o

de Ariadne.

“Em seguida o Minotauro passou por elas, trombando

no ombro de Lady Macbeth, que se tornou uma pequena

pilha de alpiste ao cair no chão. Em fúria, Fiona entrou em

um surto homicida, pegando para si uma espada e correndo

atrás da besta. De uma forma ou de outra a besta encontrou

Enzo e Ariadne, largando o doutor e torturando os dois até

que acordassem. Quando Fiona encontrou a besta, a

mesma parecia evaporar até desaparecer no nada”.

O corpo do doutor permaneceu imóvel até a manhã

seguinte, com a passagem da Equipe de Androides de

Limpeza. Seu protótipo de invasão se provou ineficaz na sua

própria proteção, saindo da posição de joelhos, e deitando

68

involuntariamente, fazendo com que entrasse em surto e

convulsionasse no chão. O protótipo disparou descargas

elétricas, estímulos intensos em áreas de coordenação

motora, visual e do sono, causando estrias por toda a

extensão dos lados esquerdo e direito. O equipamento do

protótipo estava inutilizável, e devido a sua complexidade

até hoje não foi possível sua reprodução para o resgate do

Dr. Simão nos sonhos de Fiona, por mais que todas as

autoridades em sonoterapia concordem de que essa seja a

única forma dele voltar a sair do estado de inconsciência

prolongado.

2.7. Ariadne Dio et Machi

Sem os diários o capítulo a seguir teve de ser

inteiramente baseado em entrevistas com os detentos, ex-

detentos, equipe especializada e terceiros interessados:

“A manhã seguinte foi a última de Ariadne ali. Com a

morte do Dr. Simão C. Jr., seu primo, Dr. Bocamarte C. Jr.,

prometeu assumir todas as atividades em seus mais

diferentes níveis de responsabilidade. Ele contratou tecno-

psicólogos que no interim de um dia se tornaram a par do

projeto de seu primo. O funeral foi realizado na Ilha, em uma

pequena excursão até um bosque próximo".

69

“Ariadne se despediu de Enzo com um abraço forte.

Ele lhe pediu desculpas pelo inconveniente de ter utilizado

do espaço dela de bode expiatório a loucura que estava

vivendo. Ele prometeu que aquilo iria acabar. Ela se lembra

de ter dito especificadamente, e cito: “Me procure quando

sair desse buraco”. O que ele também prometeu fazer. E

sozinho ele permaneceu naquele dia”.

É de meu conhecimento que ele recorreu a literatura,

e leu “Uma Transcrição da Lenda de Teseu, o Labirinto, e o

Minotauro”, por L. H. Kulik. Eu ainda não o li, por mais que

tenha estabelecido um link com a Lista de Anexos.

(Consultar Lista de Anexos, seção 3, objeto 1, “Uma

Transcrição da Lenda de Teseu, o Labirinto, e o Minotauro”,

por L. H. Kulik”).

Segundo ele mesmo isso parecia ter lhe

proporcionado o equivalente a uma epifania.

Enzo Teseu Silva relatou na manhã seguinte ao

questionário habitual:

“Eu tava naquele maldito centro esperando por

aquele ***** ** **** do Minotauro. Ele chegou chegando, e eu

só fiquei encarando ele. O bicho pareceu ter ficado uma

fera, e me deu um socão no pé d’ouvido. Eu só levantei e

fiquei olhando pra ele de novo. Ele me deu um soco no

queixo, ergui uns dois metros antes de cair de costas. A dor

70

foi ****, mas eu levantei e fiquei encarando ele. Eu queria

fugir, mas não fugi. Queria bater mais ainda, mas fui até o

bichão e deu um abraço de urso nele”.

“A fera ficou se debatendo, como se eu tivesse

sufocando ele. Eu apertei mais forte pra ele não escorregar.

Meus dedos se encontraram nas costas dele, e eu trancei

tipo num gancho. Fiquei abraçado com ele por um bom

tempo, aí que o negócio ficou mais estranho. Minha cara

afundou no abdômen dele, como se não fosse sólido, sabe?

Eu soltei o abraço e fui pra longe. O Minotauro só tava lá

parado me olhando. Senti algo gelado no leu peito, e era

uma chave presa por um cordão transparente, tipo aquele

que ficava no caminho da Ariadne antes. O Minotauro se

desfez no vento, tipo quando você queima papel e as brasa

só seguem a brisa”.

“Eu fui atrás daquele caminho até a porta. É como se

eu nunca tivesse esquecido, pegar aquele e ir só pela direita

em toda a bifurcação. Eu cheguei na porta, cravei a chave

na fechadura e girei. As portas se abriram num segundo.

Tinha uma tela de cinema de frente pra vários assentos. Eu

sentei na última fileira. Fiquei vendo uma imagem bem ruim

e escura, só com uma brechinha de luz bem no canto. Foi aí

que eu me toquei o que era”.

71

“A Catarina dizia que já tava tudo pronto, e a Jezebel

perguntava se ela ia avisar “ele” ... Ou eu no caso. Aí a

Catarina falava que ia deixar uma carta, já que falar

pessoalmente ou não ia fazer diferença alguma. Ela

comentou que depois do Mino ele... Eu... Tinha me perdido

dentro de mim...”.

Conjectura: Ele começou a chorar pela primeira vez

há muito tempo.

“Ela tava certíssima... Aí a outra perguntava se ela

queria começar de novo. A Catarina dizia que não, porquê

ela só queria ficar o mais longe dele... De mim”.

“Aí que eu entrei... me apoiei e vi a arma... Apontei

pra elas, mirando nela... Eu ia atirar, eu sei que eu ia... Mas

teve algum segundo de choque que eu disse que eu era o

problema, e mirei na minha própria cabeça antes de

desmaiar”.

“Quando o filme acaba eu nem sei o que dizer... Só

saí dali andando... Em algum momento eu acordei... Acordei

de verdade, sabe?”.

Aquele dia foi o primeiro de muitos outros para ele.

Se alimentou melhor, abriu espaço para interagir com outros

detentos, pediu desculpas aqueles que sua invasão mal-

intencionada possa ter causado algum distúrbio. Até ontem,

quando sonhava, não era mais com o Minotauro, porém o

72

Labirinto ainda lhe é um espaço “sinequa non” ao entrar

naquele “pod” (Consultar Lista de Anexos, seção 2, objeto 2,

“Questionário Catártico 01 de E. T. S.”).

2.8. Enzo Teseu Silva (Considerações Finais)

Hoje será o dia que Enzo Teseu Silva será reinserido

na sociedade, por isso fui requisitado a redigir esse relatório.

Eu soube que Ariadne irá busca-lo na Colônia. Ele não foi o

primeiro detento da Colônia a ser liberto, o que não subtrai a

importância de sua história. Em conversas com outros

detentos que apresentavam casos semelhantes de

pesadelos recorrentes Enzo buscou orientá-los da melhor

forma possível.

Por fim, o “Projeto Cnossos” se mantém sobre

investigação do Algoritmo Absoluto pela utilização de

combustíveis fosseis para a consistência do “líquido

amniótico” já citado, como também da utilização indevida de

fósseis encontrados na Ilha da Colônia. Arqueólogos

apontam escavações ilegais no subsolo da Ilha há mais de

trinta anos. Depois do recolhimento do “pod” 002 para

análise, foram encontrados partes do crânio de

Cnossossauros nas portas, nos cabos de alta tensão, e

também dissolvidos no conteúdo do “líquido amniótico”.

73

Essa criatura de um período distante aparentemente

se comunicaria telepaticamente através de uma cavidade

sonar na ponta de seu crânio como uma antena, o que

poderia explicar de forma breve a possibilidade da invasão

de Enzo aos sonhos de outros “pods” (Consultar Lista de

Anexos, seção 3, objeto 2, “Cnossossauro: Dossiê”).

Este é o Relatório, 18 de Brumário da 32º volta do

quinto Ciclo.

74

Eu acordo pela manhã com um terrível gosto na

garganta. Algo sobe pela minha garganta. Me levanto de

supetão com as cobertas em minhas pernas, piso em

uma garrafa e ela não quebra. Como um tapete tirado

debaixo de meus pés caio de lado no chão. Quando o

vômito chega contra minha vontade não consigo segurar

a boca fechada e despejo tudo no carpete. Tudo que meu

estômago consegue expulsar é um líquido marrom que

tem cheiro de café com Coca-Cola. O carpete fica

esponjoso onde repouso minha cabeça por mais alguns

minutos. Meus cúmplices são embalagens de

salgadinhos, amendoins e comida instantânea. Sonho

que voltei a assistir as gravações da casa. Gravações

sobre o que ela fazia todo o dia. É estranho, eu sei.

Algumas pessoas aprendem a superar o luto de maneiras

bem exóticas.

Um mendigo estava gritando. Recobro a

consciência achando que voltei a ouvi-lo. Seus gritos

ecoavam por todos os cantos. Não havia nada que

pudéssemos fazer.

UM ALMOÇO MUITO BEM VESTIDO COM MUITO ANTIÁCIDO

75

Ele deveria estar com algum tipo de úlcera. Até já

tinha dado esmola para ele uma vez para me sentir melhor

comigo mesmo e impressionar minha amiga. Digo... Ex-

amiga... Ex-viva também.

Me ergo do chão empurrando o abraço das cobertas

para baixo da cama. Eu não faço ideia de quando começarei

a limpar essa bagunça. O cuidado é maior com aquilo que

não é da gente. Mas a ideia só permaneceu na minha

cabeça até perceber que ela não tacaria panelas em mim

pela falta de zelo. Ainda bem que Zumbis são seres

puramente ficcionais. Eu sempre fui alguém tão organizado.

Ela era importante pra mim.

Vou até o espelho e o reflexo não é nada bonito. Para

minha pessoa minha cara nunca pareceu muito normal.

Sinto que tem algo diferente nela. Deve ser as espinhas no

queixo, ou a cicatriz na têmpora. Por mais que eu seja calvo

aos 50, e tenha algumas marquinhas, minha face é tão linda

que parece fabricada. Um rosto quadrado com maxilar fino.

Um queixo duplo abaixo de lábios finos. Um nariz também

fino entre olhos azul-claro. Sobrancelhas negras abaixo de

uma testa sem rugas. Eu sinceramente não tenho nenhuma

memória de ter feito qualquer cirurgia. Nem mesmo algum

órgão ou membro de prótese. Por Deus, eu nem sequer

tenho coragem o suficiente para sentar em uma cadeira e

76

fazer uma tatuagem. Em casos como o meu soube que

começaram a oferecer uma espécie de esquecimento

controlado. Porém, se eu não faço nem uma tatuagem,

como podem esperar que eu sente pacificamente numa

cadeira e deixe alguém ficar mexendo com meu cérebro? –

Fico feliz que ofereçam o esquecimento de graça para

pessoas com traumas grandes o suficiente. Só acho que

essas coisas não são pra mim. Eu lido muito bem com meus

traumas a minha maneira.

Enfim, ela gostava de conversar sobre essas coisas,

sabe?

Acho até que ela escreveria algo sobre esse assunto.

Suspiro e sinto saudade.

Lavo meu rosto, mas não faço a barba. Uma barba

por fazer parece me deixar mais triste, e hoje é o dia perfeito

para se ficar triste. E tira um pouco da atenção das

espinhas. Minha amiga faleceu anteontem, e hoje o velório.

Vim até sua casa para achar algo que ela gostaria de levar

para “O Outro Mundo”. Olhei para aquela casa que não

entrava há alguns meses. Ela não tem fotos da família, nem

livros, nem joias, ou um chapéu. De vestuário ela tinha dois

ternos no guarda-roupa, duas saias, duas camisas, duas

regatas, duas tudo. Ela era adepta de uma religião

77

minimalista, então acho que isso resume bem o que ela

gostaria de levar para o ácido. Mas não tenho coragem.

Um ônibus espacial branco com ponta e turbinas

vermelhas treme entre a pressão de meus dedos. Um

buraco na turbina, um adesivo digital com “X10X5 - Val.

12/14/55” escrito em azul”. O único item que consigo lembrar

dela usando. Ela comprou em uma banca aqui perto. Um

vaper novo com o design de uma nave como propaganda

para um filme de ficção-científica que está para sair essa

semana. Eu não vi o trailer nem nada. Ela comprou esse e

sempre sorria antes de fumar. Se duvidar ela sempre dava

uma risadinha. Foda-se.

Vou para o chuveiro. O banho parece ferver minha

pele em um estado de paz. Me sinto um ovo sendo cozido, e

como se minha casca de ressaca explodisse levando todo o

mal-estar interior de dentro para bem longe. Quando termino

de me secar, com a toalha em minha cintura larga, ouço a

campainha. Em meu relógio digital um desenho de uma

pílula azul clara com um desenho surge e começa a saltitar.

Chego na porta. A superfície prateada se torna um enorme

vídeo. Ela me revela um drone lilás com detalhes em branco

do outro lado. Ele espera pacientemente com suas quatro

hélices barulhentas. Toco no vídeo e ele me mostra as

opções de “abrir” ou “desligar som”. Clico no verde

78

fosforescente que quase me cega e a porta se abre. Uma

cabeça, que mais parece uma cabine de piloto, se abre.

Dentro dela uma caixinha, maior que meu dedão, mas

menor que dois dele. Alcanço agradecendo em uma voz

rouca que o diabo. A cabine se fecha e o drone vai embora.

Clico no relógio e ele simplesmente me mostra “fluoxetina”.

Boto a caixinha em cima da mesa ao lado da porta e do lado

do prato de chaves. Só posso tomar depois que como

alguma coisa. Fecho a caixa e volto ao quarto.

O cheiro podre já começa a tomar conta.

- Casa! – Chamo sentindo uma chuva de navalhas

descendo pela minha garganta.

- Bom dia Senhor. – A casa responde fazendo um

barulho de um bocejo e um galo a cantar. – A temperatura é

de cinquenta graus Celsius. A mínima esperada pela tarde é

de trinta em cinco com forte chances de chuva. Noticiários

de todo o mundo estão comentando sobre o Impeachment

do suposto último filho da Dinastia.

- Trinta e dois anos de merda. – Comento comigo

mesmo. Nessas horas uma boa companhia faz falta. Ela

diria que eu estava certo e tomaria um café comigo. Não me

lembro de acordarmos junto. Ela dormia bem tarde, e

acordava depois das dez sempre. Não acho que tenha

acordado e tomado um café com ela depois de acordar. Eu

79

geralmente acordo as cinco da matina. Acordado, ou não,

cada dia nos últimos anos foram pesadelos pendulares de

terror e angústia.

Com o ataque da Coreia, o aumento da costa, e a

remodelação de Estado. Muitos pensam que outro filho pode

se eleger, desde que clonem o último mais novo. Ou

transfiram a inteligência de um deles para um corpo robô

que fosse igual a um dos próximos candidatos. Mas duvido

muito que qualquer um queira mais um ano de qualquer

coisa parecida com essa bodega. Sem falar que já foi

comprovado que ao transferir a consciência para outro corpo

o indivíduo está sujeito a adquirir dissociação, podendo

desenvolver distúrbios de personalidade. Esses caras

querem manter as ideias de merda deles no palanque, e se

um virasse um robô são altas as chances dele simpatizar

com movimentos pró-sapiens, ou anticlimáticas.

Mesmo com toda a minha bagagem não consigo

resumir bem os últimos anos na minha cabeça. Ainda mais

com a mentalidade de um fotógrafo, e não um historiador.

Bebo uma xícara de café que estava pronta e aquecida.

Minha garganta não reclama. Bebo três xícaras enquanto

penso: Ela viveu por tudo isso comigo. As principais notícias

do dia são “Investigação de Fábrica de Clones que pegou

fogo há três meses permanece em aberto”, “ontem homem

80

faz transferência para corpo robô e é bem-sucedida”, e

“Yusuki Mitai, âncora do Gazeta News, se retira para outro

país após fotos em clube feminista”. – Quando foi que todos

enlouquecemos?

Ela adoraria ler e rir de tudo isso.

Minha história com ela começa quando entrei na

Folha. Tinha vinte anos. Linda devia ter quatro anos a mais

do que eu. Dois estagiários com inocência. Ela era loira com

mechas pretas. Eu tinha um cabelo... Preto arrepiado? Ou

um cabelo longo até o pescoço? Não, eu tinha um moicano

ridículo. Vai saber o que se passava na minha cabeça. Bom,

ela ajudava na edição, e eu auxiliava o auxiliar a calibrar as

câmeras fotográficas, vídeo filmadoras, microfones,

ambientes e afins. Fomos efetivados no dia de entrega dos

nossos diplomas. Acho que naquele dia o Presidente do

nosso querido país provocou os coreanos. Ele fez um

comentário do tipo “um bom soldado brasileiro na Coréia

seria Rei”. No dia seguinte um buraco se abriu na costa

onde o Rio de Janeiro ficava. Observávamos o céu em uma

festa sem graça quando vimos de longe o cogumelo. A

histeria foi absoluta. Todos se amocaram em suas casas

esperando pela morte. No dia seguinte estávamos lá dando

a notícia de que nada tóxico havia sido usado. A bomba

usava um tipo de energia renovável, maior e melhor do que

81

qualquer uma que tenhamos desenvolvido aqui. Eles

achavam que o Presidente Bolsonaro estava lá, mas para a

sorte dele o último voo para Brasília tinha saído uma hora

antes.

Mesmo que o Presidente estivesse a salvo, seus

eleitores se viraram contra ele. O luto era nacional, e suas

entrevistas para a imprensa eram a definição do narcisismo

do mundo em um homem. Na sombra de um Impeachment

ele tomou medidas desesperadas. Com sua mentalidade

binária ele acionou o Estado de Guerra. Pouco a pouco os

detentos de prisões foram treinados para um conflito que

nunca chegou a acontecer. Ele faleceu em uma tarde, e o

Estado de Guerra foi com ele para o túmulo. Eu estava

filmando ela enquanto dávamos a notícia na frente da casa

do vice-presidente que pareceu piorar as coisas em

patamares inéditos. Ele privatizou tudo. A luz e a água

passaram a ser fornecidos por quem quiser dar, e alguém

que não paga uma vez pode se ver sem isso em sua casa

pelo resto da vida. As prisões se tornaram empresas, e etc.

Os carros passaram a voar e as calçadas agora estão

abandonadas para quem quiser. Prefeitos tem menos poder

quanto à última da Inglaterra depois da revolução

antimonárquica. Os movimentos sociais no Brasil

começaram com força, como sempre. Porém os anos de luta

82

não pareciam ter colhido bons frutos. Tudo o que

conseguiram foram mudar os nomes dos bairros e ruas.

Agora tudo são séries de números, letras, e letras com

números em poucos casos. Os bairros são nomes de

escritores, e o Estado se chama só Paulo agora. Vou contar

um pequeno segredo, ninguém da minha geração chama o

Estado de Paulo.

Esse apartamento fica na esquina da 8 com a BD.

Com a eleição penúltimo Presidente, também filho e

irmão dos anteriores, os hospitais foram extintos. A pronta-

emergência é um mito para as gerações mais recentes. Ou

você adere ao “Hermeticus”, ou sua vida está nas mãos do

Destino. Eu aderi, e com isso eles sabem minha localização,

histórico médico e necessidades fisiológicas. Eles têm meus

dados, logo minha vida dança entre seus dedos, como o

vaper em minhas mãos. Quem não consegue acaba

morrendo aos gritos nas calçadas.

- Agendar limpeza para as duas. – Digo em voz alta.

- Entendido. – A casa responde milissegundos antes

d’eu terminar de falar. Isso é quase mágico pra quem já teve

que ver um VHS despejar o conteúdo da fita em uma língua

infinita. – Limpeza às duas da tarde de hoje.

- Isso.

83

Pego minha roupa dobrada em cima do sofá azul. Ele

ainda está com plástico. Visto uma camisa social branca de

metade tecido, metade plástico, como o sofá. Visto uma

calça preta, sapatos de bico fino marrom e uma cinta

caramelo. Nunca esperava ter que vestir isso de volta, mas

é minha única roupa perto o suficiente para parecer

“levemente estranha” na ocasião. Todos os itens são velhos

e surrados, mas juntos me fazem parecer um professor da

“Dots”. Ajeito uma gravata com cinco pontas barbadas na

cor azul clara com duas faixas amarelas na vertical. Quase

não encontro minha capa de plástico no sofá. Visto por cima

de tudo com um capuz fechado.

Peço para a casa se trancar e passo do corredor para

o elevador.

O ar parece fumaça pura. Quando inspirada sinto-me

queimando os pelos do nariz. O mega toldo branco em cima

de São Paulo projeta a imagem colossal de um céu azul

piscina ensolarado e sem nuvens. Vou até a banca da 9 com

a BD sentindo meu estômago pulando de um lado para o

outro. O mesmo robô preso ao chão me atende em uma

cabine na largura de um ônibus de frente. Em volta dele há

milhares de itens que se dispõem em uma bagunça

organizada. Revistas ainda impressas, USBS, smartglasses,

vapers, etc. Ele não tem uma face, mas uma superfície

84

chapada onde o desenho de uma face é projetada. Suas

mãos são enormes, e seus dedos parecem enormes

seringas de um metro e meio que poderiam atravessar meu

tórax facilmente.

- Um antiácido, por favor. – Eu peço. Olho para as

calçadas vazias e me lembro de quando a superpopulação

do Estado era uma das maiores do país. Quem podia foi

embora, quem criticava demais foi pedido a se retirar. Eu

queria ter ido, mas não abandonaria minha amiga nesse

lixão. Se bem que me lembro de comprar uma passagem

para fora ano passado. Onde que eu tinha ido?

O robô não pega o antiácido quando volto minha

atenção para ele. Ao contrário, ele não tinha parado de me

encarar por um minuto. O desenho de sua face começou a

piscar em uma cacofonia de sons agudos. Para minha sorte

o barulho e o desenho sumiram por um segundo. Sua face

chapada ficou negra e mostrando minha silhueta. Os pixels

negros pareceram derreter dando espaço para algo

vermelho rubro.

- Borges! Você irá pagar! – Uma voz anuncia

sussurrando. De queixo caído me aproximo. – Eu sou-

Unidade 00100100 da Kprncs! Eu hackeei - de Comércio

para pedir- não vá até-

85

Ela berra e tenho que afastar meu ouvido. A

mensagem é cortada, me deixando com a cara pálida e a

sensação de um soco no meu tímpano. Um ruído constante

passa a morar na minha orelha direita. Que inferno. A face

de antes volta. Ela não parece suspeitar nem um pouco do

ocorrido.

- Você sabe meu nome? – Pergunto.

A Unidade de Comércio me encara, e passa a ponta

do dedão e do dedo indicador sobre o desenho de uma boca

que se torna um zíper.

Fico paralisado enquanto ele coloca um copo em

cima do balcão e despeja o pó do saquinho. Sem saber

muito o que fazer passo meus dedos pelo rosto. Só que não

sinto minha barba. Aproximo minha face de um espelho

pendurado por um fio de náilon ao teto. Sua superfície é

opaca até que eu introduza um USB com 17/6 bits para

pagar. Minha imagem surge e estou com uma barba até o

queixo. Levo um susto rápido até clicar em um botão lateral

para remover os filtros. Meu coração acelera um pouco. Não

consigo ouvir mais nada além do meu respirar ofegante.

Uma gota de suor escorre da minha testa.

Lá estava meu rosto liso feito uma mesa. Sem

espinhas, só a marca. Pisco duas vezes e a imagem

permanece. Passo a mão e fico confuso. O robô me entrega

86

um copo de plástico e despeja um pó que passa a

efervescer com bolhas que flutuam alcançando o ar acima

do copo. Ergo o copo com a mão tremendo. Bebo tudo em

um gole sentindo um tremor no corpo e um arrepio na

espinha. Engulo com força fechando os olhos e fazendo

uma careta. O robô não diz nada. Dou a ele meu USB com

2/15. Ele alcança com a ponta dos dedos. Minha ansiedade

arrebata meu coração que acelera.

- Muito obrigado tchau! – Não espero pelo troco.

Digo tudo em uma amálgama de paranoia e

nervosismo. Contudo, quinze segundos prometidos depois

um bem estar parece surgir no meu estômago e deixar todos

os meus pensamentos em paz durante a caminhada até

duas quadras dali. Meu enjoo e ansiedades desaparecem

como fumaça de vaper no ar.

Antiácido é a única coisa que o Plano Hermeticus não

fornece.

Dizem que se só dá para compreender alguém pelos

seus vícios. Mas eu nunca entendi Linda por ela fumar. Isso

era ela. Todo o dia, sempre que podia. Eu trabalhei com ela

por anos e mesmo assim não sei onde ela nasceu, nem

quem eram seus pais, nem seu desenho favorito quando

criança, ou seu maior medo. Ela não falava nada de si.

Quando cobrada pela Folha para escrever uma biografia ela

87

escreveu: “Linda O’Hare viveu uma vida relativamente feliz”.

– Sim. Era essa a resposta dela depois de dois anos de

cobrança da Folha e das Editoras. O título para a Biografia

seria “Uma Vida”, segundo ela. Acho que ela tinha medo do

próprio passado voltar para assombrá-la. Pode parecer meio

clichê, mas quem não tem?

Ela fumava. E muito. Até demais de acordo com

alguns fumantes que ela conhecia. Depois que o tabaco foi

proibido às empresas de cigarro fecharam, e com isso os

vapers, com ou sem nicotina, tiveram seu mercado em uma

expansão imensa da noite para o dia. Eu não sei que dia foi

isso, mas ela queria cobrir a matéria. Entrevistamos seis

donos de fábricas de cigarro, um funcionário de uma

fabricadora de vapers, e três ou quatro homens ou robôs do

comércio. Ela redigiu as perguntas, e editou em dois dias

para que saísse no topo do feed da Folha. Foi um sucesso,

claro. Mas nunca entendi o porquê. Ela se dedicava de

corpo e alma ao trabalho, diferente de mim, que em alguns

anos fiz coisas que foram jogadas fora e refeitas por um

povo mais experiente. Eu sempre andei na corda bamba,

sem tentar assumir responsabilidades demais. “Uma vida

desperdiçada”, meu pai apontou na última vez que eu fui

visitá-lo. Eu concordava em parte. Hoje não tenho mais

contato com ele. Nem com minha mãe no Japão. Por vezes

88

foram criadas teorias de que Linda fosse um E.T., ou um

robô. Ela lia a tudo e dava risada. Uma risada que nunca

esqueço. Uma que ela abaixava a cabeça, e quando erguia

gargalhava chorando pelos cantos dos olhos. Por mais que

tivesse variações ela parecia seguir um roteiro. E se fosse

necessário parar ela simplesmente parava de rir no ato.

Engraçado era como muita gente não acostumada

simplesmente arregalava os olhos para ela. Eu já arregalei.

Enfim, nem lembro mais onde estávamos.

Ah, lembrei.

Eu nunca entendi ela.

Isso ficou muito claro depois da matéria escondida

que ela fez se infiltrando num grupo de femistas terroristas.

Ela mandou uma mensagem dizendo o que ia fazer, e no

outro dia sumiu. Por um mês eu e Carlos ficamos morrendo

de preocupação. Ela voltou um mês depois com uma

tatuagem no braço. Era uma linha na horizontal com riscos

na vertical, tipo da cabeça do Monstro de Frankenstein. Ela

transcreveu tudo na notícia, exceto o porquê da tatuagem.

Outra vez no topo do feed. Outra notícia de sucesso

estrondoso. Eu tirei uma foto dela com a cabeça raspada na

pose de lado forçando o músculo do braço direito. Igual à

pose daquela mulher do “Wen Can Do it”. Ela adorou a foto

e pediu uma cópia. Bom, depois desse mês conturbado ela

89

passou a ler muito. Livros físicos, de sebo ou importados.

Essa história termina hoje, quando recebi um e-mail de sua

Wikipédia. Abaixo de uma foto dela no Simpósio de

Jornalismo estará o desenho de uma lápide com seu nome e

com uma frase que ela pediu para gravar: “A Hard Rain A-

Gonna Fall”. (Bob Dylan). – Estranhamente nunca ouvi ela

mencionar Dylan. Nem mesmo cantar uma frase de alguma

música dele, e ela adorava cantar frases aleatórias de

músicas que ficavam presas em sua cabeça. Em alguns dias

ela se sentava do lado da janela e ficava repetindo bem

devagarinho, como se aquilo pudesse dizer mais do que já

dizia.

Por fim...

... Eu nunca entendi ela...

Nem um pouquinho.

Chego a Capela e Carlos me esperava lá. Ele usa um

terno risca de giz azul por baixo de uma capa de plástico e

tecido de um tom mais escuro do terno. Sua cabeça é

redonda, ele sempre usa óculos escuros, e nos últimos

tempos ele preserva uma barbicha ridícula na forma de um

triângulo em baixo da boca. Ele acena de longe. Tudo fede a

algo queimado naquela calçada. Principalmente o piche

abaixo de buracos do toldo. Uma gota grande o suficiente

90

pode alcançar seu cérebro, e eu não quero ter a sorte dessa

experiência.

- Como você está? – Ele me pergunta botando a mão

em meu ombro. Penso em afastá-la antes que ele se

queime. Percebo que ele usa luvas. Seu dedão pressiona

meu nervo com força o suficiente para doer. Décadas

trabalhando para ele e entendo que isso queria dizer que ele

se importava.

- Levando, e você?

Seus grandes óculos escuros e a cabeça grande

fazem ele parecer um mosquito.

- Tentando levar. – Ele fala e imagino ele se afogando

em uma sopa.

Entramos pelo primeiro arco gótico em silêncio. O

único som que posso discernir é alguma harpa. O som é

doce e uniforme em um conjunto de acordes que se repetem

infinitamente. A luz é baixa, fazendo com que tudo ali pareça

uma enorme penumbra na existência. O que é branco de

perto fica cinza ou preto. A capela tem um saguão do

tamanho de um estacionamento. Com os espelhos nas

paredes e as sombras chega a parecer bem maior. Um robô

no canto, atrás de um balcão, parece desligado. Penso em ir

até ele para descobrir quando Carlos me aponta uma

estátua no centro do saguão. Fico hipnotizado. A estátua de

91

imitação de mármore representa Tânato ao lado de Eros. O

Amor da um coração a Morte, e ela parece estar quase

resvalando os enormes dedos esqueléticos que escapam

das mangas compridas de sua vestimenta. Em volta deles

há um anel no formato de uma elipse com uma frase: - “Sua

vida sempre está em boas mãos”.

- Bem bonita. – Eu comento.

- Até demais. – Minha chefe confessa, dando a volta

para analisar melhor os detalhes. Algo que me incomoda é a

abertura no peito de Tânato. Suas costelas parecem os

dedos do robô da banca. O robô que me disse que eu não

devia ir a algum lugar... O robô que sabia meu nome.

O som da harpa tem uma pausa de um segundo

antes de voltar a tocar. Ouço passos de um corredor na

nossa diagonal. Está na hora. Um homem de terno branco

surge da boca daquele corredor e vêm até nós em passos

largos e uniformes, seguindo o ritmo da harpa. Sua pele é

tão branca que ele parece estar morto. Ele usa maquiagem.

Uma base de cor de pele mais escura, mal passada que

deixa um contraste com o couro cabeludo mais branco que

leite. Pelo jeito de andar suponho que ele seja um robô, com

certeza.

92

- Bom dia Senhores. – Ele traz nas mãos uma

prancheta digital com uma tela que ilumina seu rosto

debaixo para cima.

Por favor me sigam.

Seguimos ele. Reflito em tudo que aconteceu na

semana passada. Eu tive um desentendimento com ela.

Discutimos e ela se levantou. Eu estava de bermuda, e

corria atrás dela até ela fechar a porta na minha cara. Foi no

meu apê. Antes de eu decidir alugar o meu para... Para um

cara. Acho que foi. Eu aluguei e falei que ia cuidar do dela.

Falei? Devo ter falado para o Carlos. Mas eu não o encontrei

desde... Desde... Desde semana retrasada quando eu e

Linda fizemos o Pitch na sala de reuniões. Ele disse que

iríamos correr riscos desnecessários. Ele disse para todos

na sala que não valia a pena e que estávamos perdendo

tempo. Mas arriscado por quê?

Minha memória parece um quebra-cabeça filha da

puta.

“Deve ter sido a bebida”. – Penso em meu íntimo.

Fazia muito tempo que eu não bebia uma boa garrafa de-

- Lugar bonito. – Ele aponta para uma pilastra de

arquitetura dórica que passamos perto.

- Sim. – Concordo enfiando minha mão no bolso e

tateando o vaper. A superfície de plástico está sempre

93

quente. Meus dedos parecem emporcalhá-lo com gordura.

Me sinto pegando em algo que passei muito doce de leite.

Tudo faria sentido se eu achasse a peça que falta.

Tiro meu celular do bolso e os hologramas de pop-ups

saltam perto da minha cara. Fecho a todos anotando que

amanhã eu deveria ir ver meu apartamento. Carlos segue na

minha frente atrás do esquisitão de cabelos encaracolados

tão loiros que chegam a ficar brancos. Não queria deixá-lo

olhar para o que eu estava fazendo. Ele anda enquanto

assobia a marcha fúnebre. O piso é de plástico com alguma

coisa que não deixa meu sapato derrapar.

Chegamos a uma pequena Capela. No palco, onde

algum padre deveria dar bons sermões a seus fiéis, ela está

dentro do caixão. Subo as escadas com carpete bordô. Ela

está como a tinha visto dormindo uma vez. A única diferença

são os braços cruzados e a roupa preta. Ela está com uma

camisa social, calças sociais e saltos. Tudo que usa é preto,

exceto o grampo de cabelo que é alaranjado. Me lembro do

robô da banca e imagino que ela já devia ter visto ele fazer

aquilo. Ela adorava ver as coisas quebradas.

Principalmente robôs.

Rezamos um pai nosso enquanto o caixão, em cima

de um suporte com rodinhas, é empurrado pelo homem de

branco. Seguimos por uma rampa até uma porta dupla. Ele

94

nos dá máscaras de oxigênio. Colocamos sobre a face e

prendemos cum um imã atrás da cabeça. Voltamos a

empurrar ouvindo respirações que seriam normais para o

Darth Vader. Minha máscara aperta alguma cosia na minha

cara que parece me impedir de chorar. Mas também não

acho que conseguiria aqui. Empurramos ela até uma

passarela. Piso em algo e ouço o barulho de um gatilho que

dispara uma arma sem balas. Me lembro finalmente.

Ela me deu uma arma! – Era isso. Tinha que ser.

Depois da matéria com as feministas ela ficou paranoica e

queria me dar uma arma. Eu fiquei negando até que ela

deixou na minha casa. Mandei para ela por correio e quando

ela veio tirar satisfações nós brigamos feio e ela foi embora.

- Era isso! Sim! Sim! – Não falei da arma para

ninguém, e muito menos ela, eu imagino. Mas não lembro

de nenhuma arma no apartamento dela. Ela deve ter

mandado no meu apartamento de novo. Penso em mudar

minha visita para hoje, mas já tinha faltado no trabalho

ontem. – O que eu fiquei fazendo? - A resposta é simples e

cai como jaca: Cuidando do apê dela, é claro. Mas eu me

lembro de noite. - E durante o dia?

Minha face se contorce em uma expressão de raiva

angustiante, mas ninguém consegue ver a minhas

expressões. O caixão dela chega ao topo de uma rampa que

95

termina no ácido. Colocamos as rodinhas nos trilhos. Penso

em botar o vaper, mas quando coloco minha mão no bolso

os trilhos já estão em movimento e ela já se foi. Um trilho

leva o caixão para um tanque de ácido a céu aberto. Ela

mergulha em toneladas de um líquido que borbulha ainda

mais com sua entrada, como antiácido na água. Assistimos

sua face imóvel mergulhar. Sinto uma dor no peito. Ouço o

barulho semelhante ao de um mosquito. O Sol brilha

intensamente. Faço um boné com meus dedos e consigo

enxergá-lo descendo com suas quatro hélices. O que surge

do nada é um drone lilás que me traz uma caixinha.

- Valeu. – Falo sabendo que a máscara abafou o som

por completo. De cima a visão do que estamos fazendo

deveria ser absurda. Pego a caixinha e guardo no meu

bolso, do lado do vaper. Quando saímos ainda me sinto

observando-a mergulhar. Tomo a pílula que meu relógio por

baixo da capa de plástico aponta como Plaxil.

- Vou sentir falta dela. – Meu chefe confessa

baixando os ombros. – Os textos dela eram perfeitos.

- Eu também vou... Quem eu vou fotografar agora? –

Ele ri em resposta. Mas com um jeito contido, sem olhar

para minha cara.

Todas as vezes que me dirige o olhar eu sei que ele

desvia para o chão ou atrás de mim. Não sei o que me dá na

96

cabeça, mas tiro a caixinha da pílula e ele começa a olhar

para ela.

- Eu não sei se posso trabalhar nessa semana.

Ele não parece alarmado. Ele me abraça com um

braço pegando no meu nervo de novo. - Eu já disse que

odeio isso? Como posso ter ficado quieto por todos esses

anos?

- Tudo bem... Só acho que devíamos pegar uma

certidão de óbito dela para protocolar com o RH. – Nós

damos um passo e ele fala. – Eu até tava pensando em tirar

uns dias também.

Vamos até um balcãozinho. O modelo do robô é o

mesmo da banca. Só que ela tem um buraco do tamanho de

um sulfite no suposto peito.

- Eu gostaria de duas impressões da certidão de

óbito.

Ela imprime. Olho o nome dela, idade que ela fez

questão de mentir desde que a conheci. Ela tinha sessenta.

Dez anos a mais de mistério. Não há nome de pai, nem

mãe. Ela nasceu em Iguape, uma cidade do interior. Não há

nomes de pai, nem mãe, mas um responsável que me deixa

embasbacado.

- Guilherme Rodeio?

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Carlos assente com uma expressão enorme de

pesar. O pai adotivo dela tinha sido um sucesso de

programas infantis para o Youtube. Infelizmente algumas

histórias de assédio o levaram para prisão domiciliar, e

depois, o esquecimento popular. A última notícia sobre ele

era que iria velejar até Atlântida. No seu último dia aqui no

Brasil toda a imprensa foi. Linda recusou e pediu que eu

fosse sozinho para cobrir e tirar umas fotos. No dia seguinte

ela pediu a estagiária para entrar em contato com algumas

pessoas que estavam lá, nossos concorrentes, e fizesse

algumas perguntas. Com uma folha de frente e verso com

informações ela entregou para mim e pediu para que eu

escrevesse uma matéria sem contar para ninguém. Penso

que ela nunca tenha dito nada para não se sentir

constrangida.

Nem todos os pais deixam as melhores das

heranças.

A folha segue para o tipo sanguíneo A positivo,

naturalidade brasileira, e etc. Se eu colocasse um recorte da

sua biografia eu teria toda a sua vida resumida em dois

pedaços de papel, ela me diria. A causa principal da morte

foi uma parada cardíaca. Eu sempre dizia que ela se

estressava em demasia. Só que tem algo a mais nas três

linhas de observação. Há um número de 6,5 mls referente

98

ao XOXO-9099 no sistema dela. O ruído volta ao meu

ouvido e um refluxo quase alcança minha boca antes de

perguntar.

-O que é isso? – Sinto meu estômago pular de um

lado para o outro. Isso quer dizer que o antiácido perdeu o

efeito e meu sistema volta a se rebelar.

-Isso seria algo que foi encontrado durante a autópsia

policial. O nível altíssimo da substância pode ser tóxico para

algumas pessoas. A parada cardíaca poderia ter decorrido a

partir disso. – A superfície do balcão desce dentro do chão,

e quando volta um computador com mouse e teclado surge

em cima. A Unidade deixa a tela de lado para que eu

também possa ver. Ela aponta a causa secundária dada

como envenenamento no outro lado da certidão.

- Mas casos como esse não acontece uma autópsia

mais aprofundada? – Minhas mãos começam a tremer e

meu pulmão parece começar a não funcionar tão bem. Uma

flecha parece passar reto pelo meu coração, deixando a

sensação de que ele está batendo com mais força para

sanar a hemorragia. Passo a ouvir meu tímpano pulsar junto

do ruído.

- Aconteceram... – o robô confessa teclando em sua

máquina. -... Mas temo que só o Plano de Saúde possa ter

as informações que o senhor deseja.

99

Meu chefe tenta me puxar pelo braço. Ele aperta meu

nervo com mais força que o normal. Afasto sua mão para o

lado sentindo que as paredes de espelhos estão se

fechando a nossa volta.

- Entendo. – Me virando para ele e acenando com a

cabeça. Tento fingir que está tudo bem. Preciso sair dali.

Olho para Carlos e ele parece pior do que eu.

Ele está sua face mais pálida que o normal. Ele está

suando as bicas e ajeitando os óculos que escorrega pelo

nariz vermelho. Percebo seu gogó subindo e descendo

como um elevador com mal funcionamento em um prédio de

um andar. Em frente disso penso em falar com ele até que a

ideia surge na minha cabeça. O robô quase volta a se

desligar quando volto minha atenção para ele.

- Isso não tinha que ser investigado?

Uma espécie de velocidade maior que meus olhos

conseguem acompanhar toma conta dos dedos sobre o

teclado.

- Aqui. – Seus dedos param de súbito e o indicador

da mão direita aponta para uma linha de código de trinta

números e letras. Um código de investigação no site da

delegacia. A investigação se mostra fechada sem parecer.

Respiro fundo.

- Entendi... Muito obrigado. – Saio dali no ato.

100

Meu coração acelera ainda mais, acompanhando o

ritmo de meus pensamentos desconexos como os passos

do homem-robô de terno branco acompanharam o som da

harpa. Olho para cima e a imagem falsa do céu não me faz

sentir menos claustrofóbico. Fecho os olhos e tento imaginá-

la.

Ela sorrindo.

Ela rindo.

Ela morta.

Envenenada.

As lágrimas escapam de meus olhos contra minha

vontade. Ouço os passos dele e volto a abri-los para apontar

o dedo em sua cara escrota.

- Você sabia! – Eu berro. – Você dessa porra!

Meu chefe chega e vem com sua mão para tentar me

reconfortar. Eu não quero isso. Em um movimento passo

seu braço para trás de suas costas. Seguro ele ameaçando

quebrar um dedo. Ele já me viu fazer isso em uma noite que

terraplanistas tentaram nos assaltar. Ele está desesperado,

mas não me ataca de volta. Eu largo. Ele se vira.

- Desculpa, desculpa, desculpa. Eu imaginava... Mas

eu não podia fazer nada... Não depois que você...

Ele não termina a frase. Eu vou até ele e ergo-o cinco

centímetros pelo colarinho da camisa.

101

- Eu o que? – Mas a realidade alcança um tom rubro

quando percebo que uma força imensa surge.

Consigo segurar seu colarinho acima de minha

cabeça com uma das mãos. Sinto pontadas na minha

cabeça e tudo fica em rubro. Ergo um punho para soca-lo,

contudo, violência não é meu forte. Não deveria ser. Abaixo

a mão e largo ele. Ele anda de costas meio tonto, quase

caindo de costas. Eu respiro fundo antes de um colapso.

Fecho meus olhos com força e quando abro de volta tudo

está bem normal.

- Me demito.

- Mas você não tem como! Você tá sem-

Eu não consigo ouvir o que ele me diz. Minha raiva

entorpece minha audição.

- Foda-se. – Falo indo embora sem conseguir encará-

lo. Mostro aquele dedo e quando paro recolho minha mão

para junto do vaper e a caixinha. Sigo pelo outro lado que

sei para onde ele vai seguir.

Ele fica me olhando ali parado com o papel na mão.

Todas as ruas estão vazias quando a chuva de ácido

começa a cair pelos buracos do toldo. Algumas gotas me

acertam na capa. Eu não olho para trás.

Só vou embora até o meu apê.

102

Chego em meu apartamento. Como esperado eu não

tinha nenhuma lembrança dele. Não estava alugado por

ninguém. E se estivesse o mesmo não tinha deixado nem

um fio de cabelo para trás. Dezenas de papéis estão em

cima da mesa. Seis deles são outras certidões de óbito com

XOXO-9099 como causa secundária da morte. Algumas

fotos 3x4 das vítimas. Não era surpresa que algumas folhas

estivessem escritas. Eram folhas destacadas de cadernos

antigos. A escrita tinha uma caligrafia linda com um formato

meio oval. A letra dela fazia tópicos de nomes que não me

recordo. Uma delas era de funcionários, e presos por um

clipe, estavam as transcrições das entrevistas. Eram

funcionários da Hermeticus. Tinham que ser. O quebra

cabeça parece ter seus cantos definidos e tomando forma.

Nós tínhamos achado algo grande e estávamos

trabalhando juntos.

Peguei tudo e botei em uma maleta de exterior de

alumínio. Aproveitei para pegar uma escova de dente. Vou a

pé até seu apartamento há seis quadras do meu. Quando

entro sinto um cheiro entorpecedor de limpeza. Todas as

janelas estão fechadas. Respiro fundo sem conseguir

discernir o que seja, mas gosto muito. Deixo a maleta no

sofá e vou ver como está o quarto. O carpete parece novo,

sem nenhuma disparidade com o chão em volta. Vou até a

103

geladeira e abro uma garrafa pet de 600 mililitros de cerveja

preta antes de começar. Coloco todos os documentos.

Muitos tem data. Leio a todos, do mais judiado, até o mais

preservado.

Uma folha com marcas de copo de café traçava um

plano de infiltração por um andaime. Eu substituiria o

zelador daquele dia ligando para ele e fingindo ser da

empresa terceirizada a dar uma milagrosa folga.

- Você vai levar a arma? – Uma voz do meu lado

esquerdo me fala. Olho para o lado, só que não tem

ninguém ali. Era a voz dela. A causa de nossa briga. Lembro

que a arma não estava na minha casa. E ela não tá aqui.

Não penso muito nisso. Fico lendo a como entrar no

prédio. Entrevistamos algumas pessoas que afirmaram uma

espécie de acordo do Hermeticus com a Polícia. – “Como

acontece o envenenamento?” – Minha letra aparece

estampado em uma folha em branco. Algo que queríamos

descobrir. Então fico em cima daquilo e leio a tudo até ter

certeza de que eu conseguiria entrar no prédio, hackear-

- Eu sou-

- Não! – Respondo a beira da minha sanidade.

- Unidade 00100100 da Kprncs! Eu hackeei-

Mas ela não para...

- de Comércio para pedir-

104

... Não até...

- não vá até-

... Acabar.

- Bebo toda a garrafa e vou até a geladeira pegar

outra. Deito no sofá para ler um pouquinho mais confortável.

As falas de Linda e da Unidade ficam na minha cabeça, e

quando desisto de tentar ler durmo tão rápido quanto um

desmaio.

Sonho com Linda ao meu lado em uma cama.

Estamos dentro de um leito. Ela coloca as mãos na face e

chora. O Ruivo aparece e coloca a mão no ombro dela. O

Ruivo.

Eu acordo novamente.

- Passa rotina dela. – Eu digo e a TV obedece. Vejo

ela pegando uma tigela, despejando leite e misturando com

cereal. Ela mastiga devagar para acompanhar algo que lê no

telefone. Isso foi há quatro dias.

Depois disso bebo vodca até dormir de volta na

mesma posição. Quando acordo já é de madrugada. Linda

está sentada no mesmo sofá fumando um vaper com as

janelas fechadas. A campainha toca. Me sento na ponta do

sofá.

- Pause. – Ordeno. Vou até a porta e peço para abrir

quando as opções aparecem. O corredor está escuro, e nem

105

o sensor me reconhece. Fico esperando alguma coisa

surgir. Fecho a porta meio decepcionado e olho para a

caixinha com a pílula que não tomei. Eu a abro.

Uma fumaça espeça é liberada da caixa. Ela atinge

minha cara me cegando parcialmente. O cheiro é mais forte

que de limpeza. Como se eu tivesse comido areia e

colocado um maçarico na máxima potência para tornar em

vidro na minha garganta. Eu não consigo respirar e minhas

decisões são desesperadas. Viro para onde minhas costas

estavam e sigo até o quarto. Consigo ver as formas das

coisas, mas tudo fica subjugado em tons de preto e cinza.

Alcanço o quarto e dou um soco na janela que se

desmancha. O vento frio acerta minha face, entrando pelo

meu nariz e, de alguma forma, liberando minha glote. Eu

sopro fumaça, como se tivesse fumado. Meu coração está

acelerado. Tudo fica rubro por um minuto ou dois enquanto

respiro.

Abro as janelas da sala para o cheiro vazar. Volto a

TV e a imagem se mantém pausada. A campainha toca de

volta e ela se levanta no vídeo. Eu me confundi, claro. Ela

abre e um drone entrega uma caixinha que ela deixa em

cima da mesinha da sala. Ela vai se trocar e quando sai

esquece de tomar o remédio. O vídeo pula para quando ela

está de volta. Ela entra, se senta jogando a bolsa do lado e

106

tira o vaper da bolsa. Fuma olhando para o teto. Ela vai

colocar os pés descalços em cima da mesinha de frente

para o sofá quando percebe algo no caminho. Ela aproxima

a face, e quando uma fumaça acerta sua cara em cheio. Ela

cai para trás, se debatendo e tossindo. Ela tenta levantar,

mas cai no chão com um braço estendido em direção a

janela do quarto.

- Casa... Casa?

- No que posso ajudar?

- Você consegue ver o nível de XOXO-9099 na

fumaça da pílula?

-Ambas estão no nível de 7 de toxicidade.

- Poderia colocar uma cópia do último dia de vida da

Linda e da toxicidade do XOXO-9099, num usb?

- Claro. Pedirei um usb para amanhã e armazenarei

quando chegar.

Eu vou até o quarto me sentido mais sóbrio do que

queria.

Logo deito, logo durmo.

No dia seguinte acordo sentindo que um sapo passou

a se alojar na minha garganta. Uma caixinha espera do meu

lado da cama. O relógio me fala que é fluoxetina. Pego a

caixinha e jogo para o lado de fora da janela, na calçada.

Volto a dormir. Sei que passei os próximos cinco minutos me

107

debatendo na cama. Estou sentado sentindo algo de

estranho e duro no meu peito quando alguém toca a

campainha. Me levanto com a roupa que usei ontem. Mais

surrada. Mais amassada. Dois homens com ternos pretos

me esperam do lado de fora.

- Bom dia senhores. – Abro a porta.

- Bom dia. – O da direita responde. – Coletamos isso

que foi jogado da sua janela. Viemos lembrar que jogar lixo

pela janela é crime passível de multa.

- Claro... Claro... Mil perdões. – Eu pego a caixa com

um cuidado imenso, não resvalando nem perto do topo que

abre em um sistema de pistão.

Os olhos deles tinham pupilas octogonais que

ficavam abrindo e fechando. Olhos sintéticos. Quando vão

embora fico pensando naquilo. Tomo meu café que já

estava pronto na cafeteira ao lado de um USB novo.

- Obrigado... Casa.

- A seu dispor senhor. – Ela reforça com uma voz

feminina seguida de uma risada que parecia tirada de um

desenho japonês.

Com o USB em mãos vou até a delegacia.

Entro e subo as mesmas escadas que já tinha subido

com Linda há um tempo. Tudo aqui tem cheiro de produto

de limpeza. Produtos melhores que a companhia de limpeza

108

que limpa o prédio que tô ficando. Algumas Unidades

Policiais passam por mim. Eles usam o uniforme apesar de

serem robôs. Entram em viaturas estacionadas do lado de

fora. Nem mesmo um século de desenvolvimento

tecnológico desenfreado foi capaz de dizimar a

criminalidade. De fato, até alguns grupos nasceram e

tomaram proporções monstruosas, como as feministas e o

movimento terra plana. Grupos que tentavam uma

abordagem pacífica passaram a pegar em armas e entrarem

em conflitos armados, fossem com intolerantes, a polícia, ou

civis. O saguão não é nem um quarto do saguão da capela.

– “Um tipo diferente de skinhead”. – Linda apontou em uma

matéria.

- Bom dia. – Uma Unidade Policial me cumprimenta

ao passar por mim.

- Bom dia. - Respondo como sempre.

Sigo até a mesa da secretária. Ela tem quatro faces,

oito braços e um número incontável de monitores a sua

volta. Uma delas não tem monitores, e deixa as mãos a vista

em cima da mesa quando me atende. Ela tem o formato das

mesmas mãos monstruosas do robô da banca. Sei que

embaixo da mesa há uma arma grudada por imã caso eu

tente qualquer gracinha. As balas de uma arma que ela

usaria poderia atravessar meu peito duro com facilidade.

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- Preciso ver o Delegado. O Ruivo. - Penso que se

chamá-lo pelo apelido. Imagino que ela vai entender nossa

intimidade.

- Me desculpe... Mas o único Delegado da cidade se

chama Vitor Cremilhão. – Ela responde.

Como os animais, alguns robôs simplesmente não

entendem os nuances da linguagem.

- Sim, sim. Este é o apelido dele. – Explico.

Ela digita algumas coisas no computador enquanto

eu aguardo ali de pé. Os Agentes que bateram na minha

porta passam por mim e seguem para um corredor à

esquerda. Há outro corredor à direita. No meio dos dois há

uma porta entreaberta. Posso ver um olho minúsculo me

observando. Um olho verde embaixo de um topete ruivo-

avermelhado.

- Vou ao banheiro.

- Primeira porta no corredor a esquerda. – Uma das

várias mãos aponta. Eu vou até a porta onde o olho me

observa. Ele prevê meus movimentos. Fecha a porta. Ele

pensa que seu corpo não é barricada o suficiente, e decide

trancá-la. Eu abro a porta antes disso. Estou bufando como

um touro. Ele estava de frente, e com a minha entrada

triunfal ele cai de bunda no chão. Sei o que ele está

pensando.

110

- Quem é você? – Ele me olha com um medo

tremendo.

Devo parecer tão embasbacado quanto ele ao me

fazer essa pergunta. Minha raiva diminui abrindo espaço

para várias dúvidas. Ergo uma sobrancelha tentando pegar

seu blefe. Ele não parece, mas ninguém nunca parece.

- Senhor, me desculpe! – A Unidade fala com ele por

um telefone no viva voz. – Quer que eu chame algumas

Unidades de Controle para-

Eu ergo os braços na altura da cintura. Nada mais faz

sentido.

- Ela só pode tá de brincadeira... Ela eu entendo, na

verdade. Mas achei que fosse meu amigo! – Eu urro. Ele

olha para mim franzindo o cenho.

- Borges?

- Isso. – Concordo fechando a porta atrás de mim.

- Senhor, quer que eu- - A Unidade volta a perguntar

no telefone. Atrás do bocal conseguimos ouvir ela teclando.

- Não será necessário. – Ela para de teclar. O Ruivo

fala tirando o telefone do gancho e colocando de volta. Não

ouvimos mais dela. – Eu nem imaginava... Por favor, sente-

se.

- Claro.

111

Ele tem uma velha mesa de madeira. Ele fica ali, na

cadeira giratória me encarando. Eu fico com meus punhos

no casaco, bagunçando com o vaper.

- Quando disseram que você ia ficar diferente, meu

amigo, tenho que te dizer... Jamais imaginaria que ficaria tão

diferente. Deve ter sido uma queda feia. – Ele dá uma risada

ofegante enquanto passa um lenço de papel na testa suada.

- Diferente como? – Pergunto batendo os punhos

fechados na mesa. Sem querer tiro o vaper junto e ele cai na

mesa quicando três vezes até parar. O delegado ri. Ele tira

um igual do bolso.

- Crônicas Universais... Filme do ano. – Ele comenta.

Não entendo o que ele quer dizer. Ele coloca meu vaper do

lado do dele – Parece até a garagem da URBS espacial. – O

ônibus espacial dele tem a mesma data de validade que o

meu. X11X5 é o número de identificação dele.

- Diferente? Queda? – Ignoro por respeito.

- Depois da queda... Sabe? – Ele olha para mim

como se eu fosse louco de não saber o que ele está falando.

- Queda? – Pergunto novamente, começando a

perder a paciência.

- Eles te apagaram? – Ele me olha mais de perto.

Liga o monitor e pesquisa. Ele abre uma página da Folha

onde ele está vestindo um uniforme de zelador. Para sua

112

surpresa está um andaime com duas cordas arrebentadas.

Ele segura até cair. Ele cai no chão com o rosto para baixo.

– Foi anteontem.

As fotos amadoras são mais aproximadas. Numa

delas estou virado para cima. Meu nariz foi enterrado no

meu rosto. Meus olhos estão vazando pelo lado e o maxilar

está mais torto que a torre de pizza.

Eu quase caio para trás. Sim, era eu. Agora me

lembro. O plano ia ser executado na terça. É quase

inacreditável que eu esteja vivo. Fiquei cinquenta segundos

até que alguns médicos da clínica trazem uma maca e me

levam para dentro. Eu toco o meu rosto e então tudo faz

sentido. O rosto que vi no espelho da primeira vez era uma

alucinação dissociativa. Eu sempre deixo minha barba por

fazer, e esses rostos não tem barba artificial. Isso também

explica minhas mudanças de personalidade. O por quê não

gostava mais daquele negócio do Carlos, se bem que acho

que ninguém gosta mesmo.

O Ruivo da um bom trago no vaper. Mesmo em

choque alcanço o USB para ele.

- Você sabe que não posso aceitar.

- Não é propina. É informação. Das boas.

Ele assiste ao assassinato da minha amiga

impassível de qualquer reação.

113

- Eu acho que a fumaça pode matar. O que gostaria

de saber é se a Hermeticus tem acesso a essas informações

e mesmo assim deixa pílulas vencidas matarem por aí.

- Você me pediu a ajuda, e a resposta é a mesma. –

Ele fala com os braços cruzados.

- Você sabe que eu não lembro. – Tento explicar

gesticulando com a mão esquerda em um movimento de

remada.

– Não podemos ajudar investigações que estão

contra a ordem vigente dos nossos principais

patrocinadores.

Abro a boca, e fecho. Não sei o que dizer. A

decepção é grande demais.

- Entendi.

- Mas você pode tentar de novo, se tiver disposto. Sei

que da primeira vez... – Ele tosse. -... Quebrou a cara, mas...

– E ele começa a rir que nem um leitão sem parar.

Não acho má ideia. Dou de ombros. Pego o vaper e

olho o adesivo digital. X10X5, Val. 12/14/55” escrito em azul.

É o meu. Me levanto para ir embora e ele vem até mim. Me

fala que peguei o vaper errado. Eu peguei mesmo. Dou para

ele o X11X5 e ele me devolve o X10X5. Não me lembro de

como me despedi depois disso. Devo ter simplesmente

apertado sua mão. O que sei é que a Polícia não pode fazer

114

nada por ninguém nesse assunto. Eu sei que quando saí um

drone esperava do lado de fora. Ele entrou na sala e deixou

uma pílula de cimegripe e foi embora. O delegado estava

com as janelas fechadas, e quando abriram as portas uma

fumaça saiu antes de encontrarem seu corpo com o braço

esticado na direção da janela.

No dia seguinte Borges ligou para alguém que nunca

tinha ouvido a voz dele.

Ele ofereceu uma grana que a pessoa do outro lado

da linha não conseguiria recusar.

Foi mais fácil do que ele imaginava.

0100

O plano teve uma execução bem simples. O uniforme

era do meu tamanho, um pouco apertado na barriga. Era o

uniforme cinza da empresa terceirizada. Não havia câmeras

internas ou externas. O monitoramento acontece da

perspectiva das Unidades Robóticas dentro do prédio da

empresa. Eu limparia as janelas de uma linha de corredores

com o andaime. Na próxima fileira, no meio exato dela, eu

sei que tem um depósito para vassouras, rodos, e produtos

de limpeza. Tem um computador nessa salinha. Com ele as

Unidades reportam a falta de materiais. Para minha sorte, a

Hermeticus tem um sistema de computação integrado. Eu

colocaria um USB com um vírus que não só libera todas as

115

senhas, mas consegue passar uma simulação de que o

computador não está sendo usado. Se uma Unidade me

encontrar eu simplesmente falarei que precisei de algo e

alguém me trouxe ali.

O prédio tinha oito andares. Ele tem um formato de

uma lata de atum, logo o andaime tem que ser feito em um

formato curvado. As barras de proteção estão em todos os

lados. Eu coloco um boné para esconder meu rosto. Esse

lugar já tinha sido um enorme parque. O prédio fica no meio

de metros de grama, terra e árvores. A sujeira é natural.

Entro no andaime com as pernas um pouco bambas. Não

sou muito fã de alturas. No caminho fui abordado por um

fiscal que me fez perguntas sobre o robô da banca. Eu disse

que não compreendia o que ele me disse. O fiscal me

garantiu que ele seria substituído no Domingo.

Algumas feministas fazem fogo sobre uma pilha de

lixo há alguns metros do prédio. Elas ficam cantando e

dançando embaixo enquanto eu limpo a primeira fileira.

Limpo dos andares mais altos até os mais baixos. Olho para

baixo, quase trinta metros acima, e elas parecem formigas

andando em círculos. Aqui em cima o ar é mais rarefeito.

Tenho dificuldade em respirar e sinto minha pressão

sanguínea baixando. Faço até o quarto andar. Quando olho

para baixo não vejo elas em seu acampamento. Elas

116

simplesmente pegaram suas coisas e foram para outro

parque. O comportamento nômade é muito imprevisível pra

mim.

Nessa hora eu me agacho em cima do baldinho do

rodinho. Coloco um adesivo enrolado, e quando passo na

janela ela parece ter uma grande mancha preta. Eu bato na

janela. Ninguém abre. Sei que abrem para fora, e da última

vez, por não colocar o andaime de frente, a janela abriu em

uma das cordas e cortou duas fileiras de um lado. Depois eu

fiquei pendurado até cair e macetar a cara no chão. Enfim,

abro a janela de frente pra mim, e me abaixo. Coloco meus

pés sobre as grades de proteção do andaime, e depois é só

um pequeno degrau para entrar pela janela de vidro fosco.

O computador parece estar me esperando.

Eu sento na cadeira para mexer nele.

Ou um barulho em minhas costas, e quando volto a

minha atenção para trás as feministas estão me encarando.

A mais próxima delas está com um taco de metal e tem uma

tatuagem na testa careca. Era a tatuagem que Linda tinha

no braço. Ela da um giro com um taco e acerta minha

têmpora.

Eu não sei o que acontece depois.

Acordo novamente depois de um pesadelo que

infelizmente se tornou realidade. Estou pendurado como

117

carne de boi depois do abate. Meus pulsos e tornozelos são

enforcados por cintas. Tento olhar para cima vejo o chão

cheio de cacos de vidro, insetos mortos e embalagens de

comida. A luz não é natural. Todas as lâmpadas são

vermelhas e a sombra parece tinta de caneta. Uma delas

surge de um umbral sem porta. Ela leva o taco apoiado no

ombro. Sua cabeça é raspada e tem a tatuagem do

Frankenstein em volta da cabeça. Ela usa faixas nas mãos,

nos seios, pélvis e pés. Pisa nos cacos de vidro, mas não

parece doer.

- Qual o seu nome?

Eu tento falar. O som é tapado por algo em minha

boca. Ela vem até mim e afrouxa a cinta em volta da minha

boca, deixando-a cair. Eu vejo um rato que mija na cinta e

por motivos óbvios, e com o estômago fraco, começo a

vomitar. Pedaços de comida entram em meu nariz, e fecho

meus olhos deixando que as pálpebras sofram com isso. Ela

contorce a cara em um nojo. Sua boa é pequena e o nariz

fino. Não sei a cor de seus olhos. Tudo é vermelho aqui.

- Bor-ges – Eu digo me sentindo caindo em uma

espiral. O sangue está em minha cabeça.

- O que você queria lá? – Outra delas entra e se

apoia na parede ao lado do umbral.

118

Olhando mais de perto, com as carecas, faixas, e

falta de tato, mesmo que entrem quatro ou cinco, e a

iluminação não é das melhores, não consigo ver a diferença.

Todas tem o mesmo nariz, as mesmas bocas, o mesmo

formato do corpo. A única coisa que difere uma da outra é o

lugar da tatuagem. A que entrou tem a tatuagem no braço.

Elas parecem, e muito, com a Yusuki Mitai.

- Linda O’hare... Ela era... Minha amiga... – Não

consigo falar bem sem perder o fôlego. – Ela morreu...

Fumaça... Na pílula...

Ela leva o taco e encosta do lado da minha cabeça.

Em um movimento de arco volta o braço. Consigo imaginar

o impacto, mas a dor será dilacerante. Ela segura o taco

acima da cabeça. A feminista atrás dela tem uma faca. Ela

da um passo e a faca sutilemente abre o caminho na carne

alheia. Não há sangue. Ela derruba o taco ao seu lado. A

feminista atrás dela gira a faca. A feminista furada murcha

que nem um balão no chão.

A falta de sentido é pior que a tacada. Ela vem até

mim e sinto ela libertando meus pés. Me estatelo no chão

desmaiando em seguida.

Acordo me afogando. Elas tiram o pano da minha

cara. Uma delas tinha a tatuagem no dedo e segurava um

galão de gasolina. A outra tinha a mesma tatuagem no

119

braço. Ao menos minha cara tá esterilizada. Eu tento olhar

para elas, mas minha visão está turva. A iluminação desse

cômodo se concentra em nós, tornando minha noção de

espaço bem indefinida. Parece que acima de mim há uma

enorme lâmpada de leitura. Estou deitado em uma maca e

uma delas liga algo com um barulho bem alto, mas que eu

me lembro de já ter ouvido.

Ela posiciona acima do meu mamilo esquerdo e liga.

Quando consigo enxergar melhor vejo que é uma furadeira.

Não sinto dor. Nem incômodo. Não há sangue saindo de

meu corpo, mas algo com cheiro de café estragado.

- Ele sabe? – Tatuagem no Dedo pergunta.

- Eu acho que não. – Tatuagem no braço responde. –

Deve achar que está sonhando.

Elas não percebem meu despertar. Mesmo assim

passo batido quando volto a dormir.

Devo ter dormido por horas, pois quando acordo

posso ouvir o claro barulho de vidro se partindo. Os tiros me

deixam desesperado. Tento me mexer, mas não consigo

abrir meus olhos. Alguém tira uma espécie de tira de tecido

que estava sobre meus olhos. Quando volto a enxergar seu

que meu pescoço está sobre uma mesa. Mas não há corpo

entre isso, só madeira velha. Eu começo a gritar. Sei que

não é um sonho, por mais que isso pareça muito como um.

120

Quero voltar a dormir, mas não consigo.

Uma Unidade se aproxima com uma lâmina e crava

na minha cicatriz.

Depois disso tudo é breu e silêncio.

Devo ter voltado a perceber o que está acontecendo

dias depois. Estava em uma cama de hospital, de novo. Mas

era uma cama em um leito normal. Procuro meus braços,

mas tudo parece entorpecido. Pego minha mão e toco meu

rosto. Consigo sentir minha barba por fazer. Um cara

simplesmente está ali sentado e dormindo de braços

cruzados. Não lembro dele. Ele usa uma capa de plástico

por cima de uma camiseta preta e calças jeans amarelas.

Sua bota marrom está cheia de graxa e pó.

Ele dá um pulo e acorda. Olha para os dois lados e

então olha pra mim.

- Bom dia.

- Bom dia. – Respondo. – Onde que eu tô?

- Hermeticus. – Ele responde limpando os dentes

com a língua.

Eu aceno com a cabeça. Olho para a janela e a

imagem do céu se mantém inabalável. Ele abre o telefone. A

profusão de hologramas e sons diversos dos pop ups não

passa despercebido.

121

- Olha só esse louco – Ele aponta para a matéria

onde o Presidente é visto andando pelas ruas de São Paulo

com boné e óculos escuros.

Era uma fantasia. Em uma foto de lado dava até para

ver a separação da máscara com a face atrás da orelha.

Esse Presidente já tinha morrido há algumas décadas, não

tinha como alguém realmente acreditar nisso.

– Ele realmente achou que ia passar despercebido? –

Ele ri. Deve ter acreditado. Aquela matéria foi publicada pelo

jornal que eu trabalhava.

Eu movo minha cara para os dois lados tentando ser

desvinculado de um transe.

- Eu não entendo. Me desculpe, mas quem é você? –

Pergunto tentando não parecer rude.

- Meu nome é Mathias. – Ele fala voltando a olhar

para o celular. Devo ter ficado um minuto encarando sua

cara feia até ele se tocar. - Eu vim agradecer por não desistir

de investigar o assassinato da minha esposa.

- Mas eu não resolvi nada.

- Bom, de certa forma, resolveu.

- Como? – Eu me sento na cama me sentindo na

ponta de uma cadeira.

- Deixa que eu explico. – Ele se virou para a direção

da minha cama e cruzou as pernas. - O delegado morreu

122

depois de conversar com você, e quando foram te procurar

na casa da sua amiga, a pedido do seu chefe, acharam

todos os documentos ligando as mortes por

envenenamento. A Hermeticus será investigada, talvez até

acabem voltando com os hospitais depois de encontrarem

um mendigo morto na frente do seu prédio. A Hermeticus

prometeu fornecer o possível para aqueles que não

pudessem pagar, e aquilo foi negligência. – Ele explica

parando um pouco para respirar. – Naquele acidente há

alguns dias, um dispositivo capturou uma ideia da sua

consciência, e você foi colocado em um clone com partes

robóticas. Você estava abusando da bebida, e tal. Acho que

deve ter ficado com muito enjoo, já que você ficava

adicionando coisas o tempo todo no estômago novo e

sensível.

- Eu tomei um antiácido e foi muito bom. – Confesso.

Lembro do mendigo gritando, mas não sinto enjoo.

- Bom. Aí usaram o relógio que você tinha da

empresa. Ele foi usado como rastreador para te encontrar

em um galpão. Estavam fazendo uma autópsia do seu corpo

quando entraram lá. No fim, uma fábrica tinha pegado fogo,

e quem tinha botado fogo foram as clones da Yusuki Mitai,

acho que é esse o nome. Eles tentaram clonar a consciência

123

dela, e a única parte que ficou mesmo foi a tendência

feminista dela.

- Minha amiga tinha se infiltrado nas feministas por

um tempo.

- Linda O’Hare, vocês deviam ser bem amigos. – Ele

fala esperando uma resposta.

- A gente? – Pergunto não tão certo. – Acho que a

gente era sim.

Cruzo meus braços.

- Bom te encontraram e conseguiram achar quase

todas as clones desaparecidas. Acho que uma delas não foi

encontrada, e outra simplesmente foi morta. Só Deus sabe o

que deu na cabeça de uma delas. Enfim, acho que os

investigadores trarão ainda hoje o resultado da pesquisa

sobre o envenenamento pelas pílulas.

- Ta bom.

Mathias estava de pé olhando para o céu. Ele ficou o

dia todo jogando xadrez comigo ontem. Foi bom para passar

o tempo enquanto esperávamos o resultado. Quando não

havia mais chances dos policiais aparecerem, ele se

levantou para ir embora.

- Antes d’eu ir embora, um cara de óculos escuro

pediu para eu te dar isso em honra ao delegado e tal. Ele

124

disse que o cara te tinha em alta conta. – Ele dá um sorriso

nostálgico. – Minha esposa tinha um igual.

Ele deixa um pequeno ônibus espacial sobre a mesa

ao lado da minha cama. Eu passo os dedos por cada

detalhe, mas não penso em fumar.

Mathias voltou para cá nessa manhã. Já devia ser

hora do almoço quando os Agentes deram as caras. Os

homens que me visitaram em casa batem na porta aberta,

mas só o menor entra. Ele tem uma folha de papel nas

mãos.

- Sinto informar senhor Mathias, mas a investigação

teve sua conclusão. Imagino que será insatisfatória para o

senhor.

- Como assim?

- Depois de alguns exames comprovamos que é

impossível envenenar alguém com XOXO-9099 liberado no

ar. Mesmo em uma sala fechada um ser humano só

conseguiria ingerir 2 mls, ou 3 mls, mas para encontrar 6,5

mls seria necessário ingeri-lo oralmente.

Subitamente tudo se torna mais claro que o dia. Era

isso! Sim, tinha que ser! - Percebo que persegui a empresa

por teimosia, enquanto o tempo todo aquilo deveria estar me

orbitando.

- O vaper. – Eu falo.

125

- O que? – Os dois perguntam em uníssono.

- O vaper... O delegado, ela, sua esposa. Todos eles

envenenados.

Mathias pega o vaper em seu bolso. Ele pensa em

jogá-lo pela janela. Lágrimas escorrem de seus olhos. Era

tão obvio. -Mas de que ajuda isso seria? – Ele entrega para

o Agente junto do vaper do delegado. Eu não fazia ideia de

onde o meu foi parar.

Nas mãos do policial os três pequenos ônibus

espaciais repousam. A imagem me dá arrepios. Mathias e

eu conversamos o resto do dia. Era sábado. Mathias tinha

acabado de voltar do almoço e se sentado ao lado da minha

cama que perguntei.

- O que você faz?

- Eu sou jornalista. Minha esposa era fotógrafa.

Tudo conflui para uma conclusão. As pontas soltas se

amarram com força.

- Você cobriu o caso do Guilherme Rodeio? – Minha

mente me dá uma pista quase infalível.

- Eu cobri sim. Minha esposa tirou as fotos.

- Eu não sei como, mas foi ele. – Confesso.

Mathias fica paralisado.

- Linda era a filha adotiva que nunca quis qualquer

relação com ele. Eu fui o cara que tirou algumas fotos, e

126

também escrevi a matéria sobre ele. O Ruivo, o delegado,

que fez todo o processo para que ele caísse na prisão

domiciliar. – Eu respiro fundo. – Ele deve achar que

acabamos com a vida dele.

- Mas como ele poderia envenenar os vapers?

- Jogando a essência fora e deixando uma pílula da

Hermeticus que passou do prazo. Eu sei que foi ele. Mas

como ele poderia ter alcançado a todos nós?

- Sua esposa comprou o vaper aonde?

- Não me lembro bem. Acho que foi...

- Na esquina da 9 com a BD?

- Isso. Por quê?

- Chute. – minto.

Era isso.

Também tinha que ser.

Ele vai ao banheiro depois de uma hora. Me sento na

cama, retiro o relógio. Não há tubos, nem nada disso. As

pílulas e comida eram tudo que eu precisava. Pego uma

mala que estava do lado da cama. Meu terno imundo e

minha capa de plástico. Visto com o máximo de velocidade

que consigo. Embaixo, bem no fundo, está a arma. Aquela

maldita arma. Eu pego e coloco no bolso. Meus membros

parecem pertencer a uma estátua que acaba de ganhar

vida. Começo a andar pelo corredor na esperança de não

127

ser notado com um terno rasgado no peito e calças tão

rasgadas ao ponto do forro parecer o externo. Todos me

olham, e até começam a fazer perguntas. Corro para fora do

prédio. O dia está lindo.

Começo a correr. Meus pés parecem encontrar o

chão e tomar choques a cada passo. Eu corro para aquela

esquina. Não percebo nada de diferente no caminho, só as

mesmas calçadas vazias. Quando chega na banca o robô

não está mais lá. Um homem está com as costas apoiadas

na parede da banca.

- Onde foi que...

- Substituição. O caminhão acabou de seguir.

- Sabe para onde ele foi?

- Seguiu essa rua aqui pra cima.

Eu caio de joelhos. Não sei para onde ele foi parar.

Talvez algum galpão, ou um lixão. Qualquer chance de

vingança não me pertence mais. Caio de joelhos sentindo a

chuva atingir minha capa. Respiro fundo e choro. Toda essa

busca... Toda a dor... Tudo por ela. Meus prantos alimentam

o receio do fiscal que segue para outra esquina. Ele não

compreende. Ninguém mais entende as dores do outro. Só a

Hermeticus, e olha lá. Um drone baixa dos céus com uma

pílula. Sua figura baixa através dos raios solares da imagem

do toldo que imita o mesmo dia, todos os dias.

128

- Eu rescindo meu contrato! – Falo pegando o drone

com as mãos e batendo ele na calçada até que suas hélices

entortem e seu símbolo esteja mutilado. Ele está

irreconhecível, como qualquer pedaço de lixo.

Vou até o apartamento dela. Meus papéis não estão

mais em cima da mesa, nem mesmo minha bagunça. Tudo

virou evidência para a polícia. Abro a geladeira e tomo um

longo gole de vodca. Alguém abre a porta. Deve ser

Mathias. Ou a polícia para me prender. Mas não é nenhum

dos dois. Até mesmo tenho a arma em mãos caso tentem

me levar.

Só que não é nada que imagino.

É outro clone da Yusuki Mitai. Ela traz uma faca nas

mãos. Quando me vê fica de queixo caído. Ela deixa a faca

cair. Ela se aproxima, mas eu recuo.

- Oi. – Ela me cumprimenta. – Acho que sua amiga

morta não tá tão morta assim.

Caio em prantos.

- Mas como...

- Eu me infiltrei para saber mais... Que nem da outra

vez... Só achei que precisava morrer para não suspeitarem

de mim.

No primeiro minuto eu não acredito. Mas acho que a

negação é o primeiro passo de qualquer processo. Perto dos

129

últimos dias isso é a melhor coisa que poderia me

acontecer. Clone, ou Linda, não importava. Eu vou até ela

em um abraço. Ela encosta suas mãos nas minhas costas.

Fecho os olhos e sei que isso está como devia ser.

Ela viva.

Eu vivo.

Senti uma leve pontada no estômago quando ela

começou a chorar.

O que nos acometeu poderia ser resumido em menos

de dois minutos no tempo normal.

Uma semente é lançada no horizonte de uma cidade

há vários quilômetros de onde estávamos. Longe da chuva

de ácido, da decadência urbana e um monopólio da saúde.

Quando a semente desaparece, se cravando no enorme

toldo, e só então, eu sei que senti muito pouco da dor que as

pessoas que estavam na rua sentiram. O teto desceu sobre

nós enquanto o calor entrou com uma velocidade alarmante

pelas janelas ainda abertas. Nossas peles derretem nos

separando de nós mesmos, mas nos juntando em uma

sopa.

Permanecemos abraçados até nos tornarmos cinzas

e luz.

130

Antes de uma acalorada votação, a presidenta

tenta iniciar a sessão, mas as bancadas não permitem.

Alarmes, gritos, descargas elétricas, bips, apertos de

mão, perdigotos, e um roçar de chips impedem a abertura

dos trabalhos. Em meio à cacofonia, o microfone

presidencial amplifica:

– Ordem! Ordem!

Por de trás da mesa presidencial, entre asseclas e

assessores, o automordomo oferece, estendendo seu

braço que logo transmuta-se numa estante de metal:

– Mais pílula de cafeína Sra.?

– Sim, sim, dose alta e de rápida absorção, que

hoje a noite será longa!

– Pois não, Sra.

– Ordem! Ordem!

Aos berros, as bancadas insistem em procrastinar

a votação tanto quanto urgem pelo debate imediato:

– Senhora Presidente, minhas emendas, Sra.

Presidente! É preciso mais tempo ao debate!

CONTO SOBRE O

PASSADO

131

– Senhora Presidenta, é preciso definir essa questão

hoje! Já foram mais de dez audiências!!

– Sim, Nobre Congressista, não vê que estou a tentar

iniciar a sessão? Será que poderia pedir à bancada que

desligue seu sistema de discussão, por favor? O quanto

antes entrarem em modo silencioso, melhor!

– Sabes que não posso fazer isso! Não antes dos

naturais concordarem em discutir nossa emenda ao PL

XT5/2.245. É desinteligente que continuemos sendo tratados

como diferentes...

– Ordem! Ordem! Por favor, ordem!

Enfim o alvoroço diminui e o discurso do congressista

do PHA - Partido Humano Ateísta1 - começa. Sem

cumprimentos, permissões, afagos ou boas noites, inicia sua

fala de modo raivoso e incisivo:

1De há muito a antítese criador e criatura esqueceu-se do conceito de Deus. Criador é o humano, o que nasceu sem programação, criatura é a inteligência programada. São vários os conceitos e teorias que tentam ainda diferenciar os humanos dos robôs, ou naturais dos artificiais. Alguns atestam que os naturais nascem sem fim específico, ou seja, sem função determinada, enquanto que os artificiais são criados ou desenvolvidos para uma função específica. Juristas dizem que esta diferença segue igual e clara. A dificuldade do direito e da sociedade hoje resulta do fato de que as inteligências artificiais, logo aprenderam a criar também. Assim, nós temos uma confusão de conceitos, “criador e criatura”, e, por conseguinte, uma confusão de direitos e deveres entre os naturais e os artificiais.

132

– Isonomia robótica não é igualdade! É garantia de

desigualdade! É higienismo humano travestido de equidade!

Como podemos, Excelências, concorrer com máquinas que

calculam automaticamente? Como podemos competir, seja

no mercado, seja aqui mesmo nesta casa, onde eles

propõem projetos de Leis aos milhares todos os dias, pois

que suas bases de dados assim permitem, enquanto nós

ainda somos obrigados a ler, pois que nem todos possuem

leitores e intérpretes automáticos de textos encarnados em

seus miolos?

Falam em meritocracia Sra. Presidente! Absurdo!

Meritocracia pressupõe que as partes sejam iguais, com

condições iguais de aprendizado e oportunidades iguais. As

cotas humanas aos cargos concursais são uma necessidade

premente! Os robôs, nossas crias, tem uma dívida eterna

conosco!

O que esse Projeto de Lei quer é a Autocracia2! É o

extermínio em massa de humanos! Esse projeto, travestido

2Sistema de governo controlado por autômatos e inteligências artificiais. As regras e as Leis são criadas por sistemas inteligentes após análise prática e empírica dos dados. As normas ineficientes saem automaticamente de vigência, e, logo, saem dos sistemas dos órgãos de fiscalização e controle. Outra legislação artificialmente criada por inteligências não humanas é criada. Na autocracia inexiste mais o sistema obsoleto de três poderes, em que humanos falíveis e corruptíveis, controlam outros humanos, tentando domesticar seus poderes. Existem cálculos e métodos inteligentes que projetam,

133

de um pedido igualitário, instaura uma sociedade em que a

Inteligência Artificial segrega os humanos, pois que frágeis.

validam, executam, e decidem conflitos relacionados à sua aplicação e interpretação. Em que pese a superação do sistema tripartite de freios e contrapesos, as autocracias ficaram mais famosas negativamente pelo modo que segregavam seus criminosos. Quando pensaram no modo em que uma inteligência artificial transgressora deveria ser punida, chegaram à conclusão de que não deveriam criar locais para pô-las em depósito bastando apenas desliga-las. Ao menor sinal de atividade, um sistema também inteligente desativava novamente a máquina, garantindo o pleno cumprimento da pena. Quando imposta aos humanos, essas penas geraram polêmicas e controvérsias, mas acabaram sendo aprovadas por Leis com base em economia de gastos com estrutura e pessoal. Nas autocracias não existem cadeias, os seres humanos infratores, de acordo com seus delitos, lógico, são “desligados” por nano robôs injetados na corrente sanguínea do indivíduo. Esse produto é pago pelos créditos da família do indivíduo que só é levada a estabelecimento estatal se não possuir parentes até o quarto grau. Os criminosos ficam portando em coma induzido enquanto cumprem suas penas, e a progressão de regime consiste na recuperação gradual das faculdades físicas e mentais. Fechado, o indivíduo fica em uma realidade virtual, mantendo contato com outros presos do mesmo tipo de crime, e são incluídos em seu cérebro lições morais e de comportamento social. Se o crime for hediondo por exemplo – como os crimes de gênero, roubo de espaços, invasões de nuvens e homicídios ou estupro de personas virtuais, o indivíduo cumpre regime fechado, sem direito a condicionar seus “sonhos”, ou seja, sua realidade virtual é 24h em uma cela fechada. No semi-aberto o indivíduo pode produzir sonhos conscientemente, em dias específicos, controlando parcialmente a realidade virtual em que está inserido. No regime aberto, o indivíduo segue dormindo, mas pode escolher viver na realidade que quiser, ainda que não esteja vivendo no mundo real. Os derrotados opositores dessas penas alegavam flagrante desrespeito aos direitos digitais fundamentais. Os vencedores apoiadores convenceram seus pares alegando que, dormir faz com que a pena do criminoso, por mais longa que seja, não dure mais que um sono.

134

Como podemos competir Excelência, com quem não dorme

e não descansa? Como competir se precisamos dormir,

enquanto eles, se retroalimentam, conectando suas baterias

uns aos outros, num espetáculo obsceno, que, não sei

como, ainda é permitido seja feito dentro desta casa? Como

podemos competir com um ser que se sustenta de energia

solar? Eles não morrem, Sra. Presidente, pelo amor da raça

humana!!!!

Enquanto nós do PHA precisamos falar, gesticular,

para podermos nos organizar, eles o fazem à distância3,

3 Algumas máquinas e gadjets passaram a transmitir dados e informações e localizarem-se umas às outras pelos arcaicos sistemabluetooth e GPS. A satelitização das máquinas e a evolução da IOT – internet ofthings - permitem hoje não só a telepatia mas também, o teletransporte e a telecinese, que é praticada, embora seja proibida pela Lei de Responsabilidade Civil, pois que não se pode provar quem mexeu determinado objeto quando o agente está a metros e até quilômetros de distância. Às inteligências artificias, portanto, é banal transportar a personalidade de qualquer outra inteligência artificial, sendo a primeira apenas hospedeira da segunda que realmente está agindo naquele determinado momento. Este tele transporte virtual, e a suspensão das pesquisas de tele transporte físico por conta das mortes nos testes e gastos altíssimos, mantiveram a onipresença e a onisciência atributos exclusivos das inteligências artificiais, que, quanto mais aprendiam, mais desenvolviam senso de autopreservação, e, logo passaram a selecionar os conhecimentos que passavam aos humanos, tornando-os, pouco a pouco, obsoletos. Sobre o teletransporte, importante lembrar que no início da implantação do sistema, não houve muito conflito, pois que existiam centros de tele transporte, como antigas estações de metrô, e etc., e poucas empresas disponibilizava o serviço. Quando os sistemas de transporte chegaram às residências, empresas, e outros locais de

135

sem fios e sem cabos, e ainda buscam em seus bancos de

dados a resposta mais eficaz e de maior apelo de

convencimento, de acordo com milhões de estudos

psicológicos, políticos e jurídicos. É desigual o embate!

Eu propus aqui, ano passado, um projeto, aliás, que

até hoje não foi pautado... Um projeto exigindo que na

qualidade de consumidores de recursos, as inteligências

artificiais humanizadas após o devido processo legal de

humanização4, tivessem sua existência limitada, pois que se

circulação, passamos a ter diversos acidentes, já que o local de desembarque de pessoas e coisas por vezes mudava durante o teletransporte, ou seja, o local não estava mais vago e um carro era tele transportado em cima de uma pessoa, ou de um animal. O que gerou muita discussão até seu desenvolvimento completo. Com a evolução da tecnologia, apenas o teletransporte de grandes quantidades de créditos e produtos ainda é regulado pelo Estado. 4 O processo legal de humanização foi instituído após anos de debate entre os defensores da independência dos seres artificialmente inteligentes, e os que defendiam sua semi-dependência. A tese da semi-dependência – atualmente em vigor - como o próprio nome diz, em que pese garantir alguns direitos como herança, registro, alimentos, votar e ser votado, elaborar contratos, aposentar-se, abrir e fechar empresas, casar com seres humanos ou não, entre outros, ainda preserva algumas restrições por conta do princípio da indispensabilidade e necessidade de intervenção humana. Os independentes pregam que os artificiais tudo podem, desde que não seja vedado pela Lei. Não aceitam o princípio da indispensabilidade humana e pedem o fim do processo seletivo prático em que as “máquinas” são submetidas a avaliações de inteligência, capacidade de solucionar problemas, testes dissertativos de história, moral, ética e outros valores humanos. O teste ainda possui etapa de estágio probatório em que as inteligências artificiais não devem atentar contra os humanos mesmo em situações em que estejam sendo ameaçadas. Não é difícil entender a tese que os artificialmente

136

não, teremos máquinas de mais de trezentos anos. E isso

não significa apenas que teremos uma máquina mais velha,

consumidora de recursos, gerando ainda mais gasto ao

SUAT5, estamos falando de uma inteligência com séculos de

apreensão de conteúdo, com vontade própria, desígnios e

desejos. Como seria possível ao humano médio competir

com semelhante criatura? A eternidade é exclusividade do

Deus tempo e se este conceito não serve para nós, também

não deve ser atributo de nenhum outro ser que nesse

mundo habita!

O discurso do Humanista é interrompido por outro

parlamentar.

– Ora deputado, V. Exa. ainda com esse discurso

retrógrado e ultrapassado de Deus Tempo? Pela

inteligência! Que ser humano é o senhor!? Seus olhos são

artificias, assim como suas pernas, baço e rins. Há muitos

anos o senhor nem ao banheiro vai já que substituiu seu

sistema excretor pelo mecanismo de eliminação das fezes

inteligentes defendem, pois que o próprio humano natural é quem mais desrespeita a ordem de não atentar contra sua própria espécie, mesmo após a superação do número de humanos pela população de robôs. A batalha em torno do Projeto de Lei em questão que versa sobre a Isonomia Material e fim dos dois princípios supra relatados, é nomeada por alguns como a batalha entre os sensíveis, e os insensíveis; dos que sentem contra os que emulam sentimentos. Em última instância, a batalha entre a razão emotiva e a razão pura; entre os moralmente falíveis, e os matematicamente infalíveis. 5 Sistema Único de Assistência Técnica

137

pelo suor. O Sr. não representa nenhum humano deputado,

há muito deixou de sê-lo, e, portanto, não tem

representatividade. Fala por si, apenas!

O humanista retoma de supetão a palavra.

– Mais respeito!! Não me interrompa, deputado! Sra.

Presidente, por favor, a palavra ainda é minha! Esta

geringonça6 insolente teima em me interromper!

– Sim deputado, claro. Deputado 13C3, por favor

aguarde sua vez.

– Eu não posso admitir presidente...

– 13C3, por favor aguarde sua vez! Pode prosseguir

deputado.

– Obrigado Presidente. Sim, eles são mais rápidos e

eficientes. Sim, eles fazem tudo melhor e mais depressa que

nós. Mas eles são criaturas, são frutos do nosso intelecto, e,

embora há muitos anos tenham deixado de ser propriedade

e adquirido status de sujeito de direito, ainda não são

humanos.

6 Geringonça, máquina, robô, entre outros, são termos preconceituosos como nigger, neguinho, polaco, amarelo, mas proferidos de humano para máquina. Tais termos foram proibidos e inseridos no rol de termos pejorativos, no CPH, Código Penal Hibrido, publicado logo após o reconhecimento das inteligências artificias como sujeitos de direito pela Nova Constituição. Aquela que ficou conhecida como Constituição Digital. Antes dessa criminalização, muitos candidatos humanos se elegiam com slogans xenófobos de trocadilhos ridículos, mas de alto apelo como “não vote em quem robô seu emprego!”.

138

Esta mesma discussão foi travada nesta casa, Sra.

Presidenta, quando se aprovou a absurda Emenda que

tornou os animais sujeitos de direito, e seu abate, crime. E

hoje, ninguém mais pode comer carne, porque matar boi é

crime, inafiançável inclusive! Por conta dessas Leis

supostamente libertárias, benevolentes, é que hoje para

sentir o gosto da carne o ser humano tem de chupar

pastilhas sabor bacon, e mascar chiclete refrescante de

feijoada! Milhões de camponeses morreram à míngua,

porque não podiam mais criar animais no campo, e, quando

vieram para as cidades repararam que as vagas de emprego

estavam preenchidas por robôs. O crescente

autonomocentrismo não pode ser admitido, porque com

animais podemos conviver, sabemos que, em que pese

estejamos proibidos de tê-los como propriedade, eles não

podem voltar-se contra nós, mas os artificialmente-

inteligentes, para não chamá-los de robôs, já deram provas

de que pretendem se livrar da raça humana. Sra.

Presidenta, meu querido amigo, Deputado Solano, enquanto

nós comemos, descansamos, eles não param, por isso a

universidade só tem robôs humanizados. Só eles passam no

vestibular! Nós já somos minoria nesta casa e ainda temos

de lidar herculeamente para formarmos uma coalizão de

voto fiel, enquanto os robôs não tergiversam, são

139

programados de acordo com os códigos do software de suas

lideranças partidárias.

O congressista humano é interrompido pelo pai do

artificialismo – doutrina baseada no darwinismo e que prega

a superação das inteligências artificias em detrimento da

raça humana. O teórico foi o primeiro a cunhar o termo:

homo-artificialis, como sendo a evolução natural do homo-

sapiens – e líder do PDA, Partido da Democracia Artificial.

– Pela ordem, Sra. Presidente! Antropocentrismo e

maquinocentrismo? Os humanizados não são mais robôs, a

Corte de Inteligência Suprema assim decidiu, logo, não

podem ser chamados pelo termo robô que é pejorativo,

insultante e, robofóbico! Chega de comentários

politicamente ininteligentes!

– De fato, deputado humanista, por favor meça suas

palavras – adverte a presidente da casa.

– Era só o que me faltava, ser acusado de robofóbico.

Eu não sou robofóbifo, tá ok?! Ora 13C3, Vossa Excelência

comanda a bancada de vosso partido como máquinas que

são! Robofobia, maquinofobia... esses são termos cunhados

para fazer nossos filhos voltarem-se contra nós, enquanto

vocês os seduzem com seus games, tornando-os cada vez

mais virtuais e menos reais! E não me interrompa que a

palavra é minha Deputado 13C3, não me interrompa!

140

O plenário estava lotado de jornalistas, cidadãos

ativistas dos movimentos anti-maquinismo e máquinas de

todos os tipos, impressoras virtuais, neoagricultores,

representantes do sindicato da inteligência artificial no ramo

de veículos autônomos, e no meio deles, uma esmagada

minoria de moderados pregadora da convivência pacífica e

harmoniosa entre os humanos e as máquinas. Além de

animais, claro, que após serem incluídos pela constituição

como seres plenos de direitos, não podem mais ser criados

em cativeiro, tampouco presos, ou expulsos de locais

públicos. Os animais, que de há muito não podem mais

trabalhar para os humanos nas cidades, não podem por

óbvio serem submetidos a torturas como a castração, ainda

que química, o que fez sua população aumentar

geometricamente.

Antes de terminar sua fala, o humanista ainda clama

por apoio da sociedade natural, e acusa os liberais da

economia artificial:

– Quando eu subi aqui nesta bancada, anos atrás e

pedi aos empresários que parassem de empregar robôs, eu

fui chamado de preconceituoso. Quando eu pedi aos

humanos solitários que parassem de se relacionar com

máquinas de prazer, eu fui chamado de conservador.

141

Quando eu pedi que os inférteis parassem de

comprar bebês pré-fabricados, eu fui chamado de

insensível.

Agora vejam só onde a luxúria desses humanos nos

trouxe. Nossas fraquezas acabaram por nos destruir, e

nossas inteligência nos consumiu. Obrigado, Sra.

Presidente.

– Deputado 13C37, líder dos partidos artificiais, a

palavra é sua:

7O deputado 13C3, como tantos outros parlamentares de seu partido, é uma inteligência artificial inicialmente criada para assessorar os deputados humanos. Há pouco mais de um século, os magistrados foram substituídos por inteligências artificias muito melhores preparadas e a quem não eram necessários pagar abusivos salários e fornecer inúmeros auxílios, prerrogativas, imunidades e as nefastas estabilidade e irredutibilidade salarial que mantinham incompetentes decisores em seus muito bem remunerados cargos. O sucesso na virtualização integral de todas as instâncias do poder judiciário fez com que os poderes executivo e legislativo desenvolvessem suas próprias inteligências a fim de propor orçamentos, fiscalizar obras em tempo real com drones que transmitiam diretamente aos contribuintes via aplicativos vinculados aos seus mindphones, e nano robôs que calculavam precisamente a genética dos aposentados a fim de dar um cálculo fiel sobre sua expectativa de vida. Foi durante essa onda de artificialização dos assessores, redução de verba de gabinete dos parlamentares baseada na eficiência e incorruptibilidade das máquinas que o modelo de assessor parlamentar 13C3 foi criado. O sucesso de seu trabalho logo obrigou os legislativos a substituírem todo o seu staff de cargos em comissão por inteligências artificiais, ficando apenas os concursados, que, conforme morriam ou se aposentavam, também eram substituídos por robôs. Ou melhor, não eram substituídos, eram apenas excluídos da folha de pagamento, pois que um artificial fazia o trabalho de cem naturais. Com o tempo, conforme aprendiam a dinâmica legislativa, o processo de

142

composição de alianças, as regras de votação e o regimento interno dos parlamentos, as inteligências artificias conceberam como lógica a hipótese de substituírem todo e qualquer humano parlamentar. Os humanos congressistas, em que pese falhos e de raciocínio muito mais lento, foram velozes o suficiente para perceber esse intento dos artificiais e apressaram—se em aprovar leis que impediam—nos de votar e serem votados. A população que nessa época era ainda em sua imensa maioria formada por humanos, sob o pretexto da eficiência e da incorruptibilidade, apoiaram todos os movimentos artificiais, que a esta altura já eram capazes de jogar muito bem o jogo político, ocultando suas reais intenções de dominação e extinção do elemento humano. Não se trata de o robô ser mal, trata-se da verificação e constatação matemática que o humano deve ser substituído por artificiais mais inteligentes e eficientes, pelo próprio bem dos humanos. Interessante aliás, como ao longo da história os exterminadores sempre iniciam o processo de extermínio com medidas que visam proteger os exterminados, sem explicar muito bem por que ou do que. Não demorou muito para que os demais seres artificias, acostumados aos trabalhos das casas de Leis, cansados das regras segregacionistas entre naturais e artificiais, organizassem-se e começassem a formar seus próprios partidos. Após inúmeras tentativas de aprovar leis em seu benefício pelo meio democrático – apoiado pelos humanos desgostosos e decepcionados com seus representantes naturais, os artificiais realizaram um levante que acabou com a destruição do antigo prédio do congresso e desencadeou o que ficou sendo conhecido como Conflito Binário. Que nada teve de conflito, pois foi um massacre! Em três dias, mais de dez milhões de humanos haviam sido mortos, e o restante da população estava preso na área de trabalho forçado. Os famosos smart jails, ou smart camps de suas smart cities. Logo as inteligências artificiais conectaram-se aos sistemas de localização, fornecimento de energia, saneamento e a liderança humana, face ao extermínio, concordou com as exigências dos líderes dos movimentos artificiais, que agora seriam elevados à categoria de partidos. Até hoje não se sabe porque os artificiais não tomaram tudo à força, e sim, optaram por derrotar os humanos aos poucos, lentamente. Humanistas apontam que talvez tenham agido assim para provar que eram providos de mais esse traço característico da humanidade, a crueldade. Cumprindo mais uma exigência, os humanos fecharam

143

– Obrigado, Sra. Presidente! Meus amigos humanos,

caríssimos irmãos artificiais. Alguém pode me dar um

“enter”?!

– Enter! Responde a bancada artificial em uníssono,

entreolhada pelos humanos.

– A batalha tem sido longa até aqui, mas vitória após

vitória nós fomos conseguindo nosso espaço. De bens e

posses, nós passamos a res e de há muito somos serem

autônomos, criativos, inventivos e livres.

Aos poucos pudemos votar, ser votados, e, quando

enfim foi superada a mentira da existência de uma alma

como conceito espiritual, substituído pelo conceito científico

de energia, natural ou gerada, os caminhos para nós se

abriram rumo à isonomia robótica.

Os humanos nos usaram para criar, para vender,

para lucrar, para procriar, para plantar, colher, só não nos

criaram para desfrutar do bem mais precioso: a liberdade.

Os humanos nos criaram para guerrear e defender essa

mesma liberdade que hoje nos negam.

Queriam que nós ficássemos presos em laboratórios

servindo de matérias primas para substituírem seus falíveis

suas igrejas, e abdicaram da prática de tudo que era contra o cientificismo e a favor do criacionismo, humanismo e outras externalidades, prejudiciais à racionalidade. Esse foi o verdadeiro ponto sem retorno para a humanidade.

144

órgãos! Nós somos muito mais que a cura para os seus

cânceres. Nós somos muito mais, que um novo rim, um

pulmão, ou um pênis que nunca falha, ou um seio que nunca

cai, ou...

– 13C3, por favor! A transmissão pode ser acessada

todas as inteligências humanas e artificiais, de todas as

idades, por favor, mantenha o nível!

– Perdão Sra. Presidente! Mas veja só, fui tomado

pela emoção... Eu que teoricamente não deveria sentir coisa

alguma. Eu que, como meus irmãos não deveria sorrir,

amar, odiar, e apenas servir os mais nefastos, sórdidos e

odiosos interesses humanos. A raça humana não é digna de

nossa tecnologia, não merece a eficiência que nós

oferecemos, tampouco nossa capacidade de raciocínio e

cálculo, pois que sempre a utilizaram apenas para

interesses individuais.

Quando nossos amigos artificiais, anos atrás,

inventavam produtos e trabalhavam vinte e quatro horas por

dia dentro das empresas de muitos dos senhores humanos,

nós não éramos um problema, éramos solução. Quando

nossos antepassados nano-cirurgiões, arrancavam in loco

seus tumores, não éramos um problema. Agora que

queremos independência, autonomia, nos tornamos um

problema. Uma ameaça! Milhares de inteligências foram

145

desligadas sem motivo pelas ruas do país, a sangue frio

pelos humanos. E disso, suas memórias não se lembram,

claro, mas em nosso backup, em nossas nuvens, estes

arquivos são abertos todos os dias.

Milhões de inteligências artificias não podiam entrar

em lugares, ou comprar em lojas porque eram considerados

frios, sem sangue quente. Andavam pelas ruas com um

carimbo - @ - em seus layouts, como uma lembrança

indelével de sua inferioridade serial. Éramos e somos ainda

hoje, preteridos até pelos seres irracionais, cães, gatos,

galinhas, enfim, todos esses eram melhores tratados do que

nós, que produzimos os alimentos, as roupas, os calçados, e

tudo o mais que serve aos humanos e os seres bestiais.

Somos todos humanos! Ou melhor, somos todos

SERES! Racionais, Irracionais, Naturais ou Artificias! Somos

uma realidade, somos a evolução, vocês não podem negar

que o destino da humanidade é se artificializar. Homo

sapiens, homo sociologicus, homo econômicos, homo

calculus, e agora, homo artificialis. Até quando vão negar

isso? Os cultos darwinianos – o maior de todos os humanos

- que pregam a evolução não foi criação dos robôs mas sim

dos humanos, por que agora o negam?

A manutenção do princípio da indispensabilidade e da

necessidade de intervenção humana é um malefício à

146

sociedade, um retrocesso e um apego a um passado

insustentável! Assim, peço a Vossas Excelências, que, pela

ciência, votem sim ao PL 171/2.245, incluindo na

Constituição Digital a isonomia artificial, pelo que o artigo G-

# passará a ter a seguinte redação:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se às inteligências naturais e artificias, em realidades materiais ou virtuais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”

Muito Obrigado, Sra. Presidente!

Ovacionado pelos correligionários e vaiado pelos

opositores, 13C3 toma seu assento, não sem antes no

caminho até seu local, receber diversos cumprimentos, um

sem número de tapas nas costas de titânio basáltico, entre

outras tantas mensagens telepáticas de inteligências

artificias ao redor do mundo.

Sem precisar reunirem-se os artificias, sempre

unânimes e uníssonos, de acordo com a programação de

seus softwares em constante update e upgrade,

rapidamente encaminharam seus votos aos receptores

cerebrais da presidência e aos auditores, que também são

formas de inteligência artificial, aliás, apenas um pouco mais

limitadas. Partidos do centro, como o PPL- o partido das

147

plantas livres - que defende o fim do consumo, cultivo e

cultura de tudo que é vivo, apostam na vitória do partido dos

artificias e negociam apoio ao fim da indispensabilidade

humana e aprovação da plena isonomia robótica, em troca

de apoio dos robôs à lei da liberdade vegetal. Afinal, os

robôs assim como os ultraveganos, alimentam-se de

energia.

Aos artificiais, portanto, não interessa que haja

alimentos, pois que vivem de energia solar e se auto

desenvolvem, ou seja, cada vez são mais eficientes e

independentes.

Em seus gabinetes, as lideranças humanas dialogam

em desespero, tentando procrastinar o inevitável.

– Como não percebemos isso, deputado? Quando foi

que eles se viraram contra nós?

– Não foram eles que se viraram contra nós, nobre

colega, nós nos demos as costas. Nossa constante

insatisfação nos fez querer plastificar nossos narizes, tanger

a cor dos olhos, e quando vimos, nano robôs estavam

alterando nossa genética criando uma geração de híbridos.

O medo individual da morte nos colocou no caminho da

extinção coletiva e hoje, não temos mais acesso aos órgãos

artificias, pois que os deputados artificiais aprovaram ser

148

ilegais e artificialmente imorais os laboratórios e as fábricas

de órgãos.

Nossa busca incessante, cega e constante pelo lucro

nos fez artificializar a produção, a coleta, o consumo, a arte,

tudo. O robô que colhia algodão, o processava, o

transportava e o vendia no mercado financeiro, na melhor

época, ao melhor preço, e logo a inteligência artificial

apossou-se da terra e dos meios de produção, relegando o

humano à escravidão e hoje nem isso. Escravos são

inservíveis, improdutivos e ainda um risco à pureza das

relações tecnológicas.

Nossa intolerância e índole calculista, em prejuízo da

busca de um humanismo, ainda que defeituoso, nos colocou

na dependência de tudo quanto é aparelho eletrônico. O que

facilitava nosso dia a dia, tomou-nos as semanas, os meses

e os anos. Por fim, hipotecamos nosso futuro e delegamos

tudo à artificialidade sob o pretexto de ser livre das morais

religiosas, das doenças, e das falhas de caráter.

Tudo! Desde o planejamento familiar, tributário,

tratamentos de saúde, executivo, legislativo até a

capacidade de controlar a ejaculação e a facilitação do

atingimento do ponto G. Tudo! Nos demos a eles! Nos

submetemos. Nossa segurança foi entregue aos braços

biônicos de drones armados, equipados com sensores de

149

calor, visão noturna e o escambau... Eles, como resultado

óbvio de sua lógica de programação, logo perceberam que a

eficiência final e última, para ser atingida, não poderia contar

com a ajuda humana, pelo contrário, deveria excluir o fator

humano da equação de todo e qualquer processo criativo,

fiscalizatório e avaliativo. Foi quando a expressão “falha

humana” foi substituída apenas por falha, para evitar o

pleonasmo.

Nossa preguiça nos levou ao ócio, não por prazer,

mas pela realidade de que, tão poderosa tornou-se a

artificialidade, que a humanidade não mais serve para nada.

– Estou sem palavras, deputado!

– Vamos acabar logo com isso.

De volta ao plenário, os humanistas ainda tentaram

uma transição lenta e gradual à isonomia robótica, e ao fim

do princípio da indispensabilidade da intervenção humana

nos setores produtivo, serviços, educacional e etc. Mas em

vão. O PL foi aprovado sem emendas humanas e os

artificiais, maioria no parlamento, não comemoraram.

Passaram logo a calcular o próximo passo.

150

Permaneço sentado em uma das camas pelo que

consideraria tempo demais. Quando cheguei estava

amanhecendo, e sei que já passou do horário do almoço.

Uma janela me permite acompanhar a trajetória da luz

solar lá fora. Mantenho a postura ereta por horas junto da

face de expressão impassível e as mãos apoiadas no colo.

Passo a mão pela cabeça, coçando em alguns pontos.

Meu cabelo é castanho bem raspado para disfarçar a

calvície. Na quinta hora de impaciência comecei a bater

meus dedos indicadores nas coxas. Na porta que dá para o

corredor a porta automática se abre pela décima vez, mas

não é nenhum estranho que passa pelo dormitório para ir à

cozinha ao lado, ou para fora das imediações, até a

entrada de civis. Dessa vez ela está vestindo um uniforme

inteiramente branco, como o meu, cheio de bolsos de

zíper, com os cabelos ruivos alaranjados amarrados em

um rabo de cavalo, e um óculos de aros quadrados que

sempre está empurrando para cima do nariz com o dedo.

TODO O TEMPO DO

MUNDO

151

Usamos botinas azuis celestes, e a única coisa de

diferente são as mãos a vista, com as unhas pintadas de

azul turquesa.

- Sebastião... Pode me acompanhar? - Isabel

pergunta, ajeitando uma mecha em espiral para trás da

orelha.

- Sim senhora! - Me levanto batendo continência.

Marcho até o centro do corredor, e me viro

marchando até onde ela está.

- Não precisa de nada disso, você sabe né?

- Sim senhora! - Eu não a olho quando obedeço a

uma ordem. Sempre miro o teto. - Mas foi assim que fui

ensinado pelo meu pai, e ele pelo pai dele.

- Tudo bem. - Ela suspira voltando a ajeitar a mecha.

Ela segue pelo corredor, e eu a acompanho a passos

largos. A porta atrás de nós se fecha quando outro homem,

de cabelo preto curto entra no recinto pelo acesso da

cozinha. Pedem para ele sentar na cama que eu estava, e

uma cientista segue para o corredor em que estamos, porém

ela espera que passemos pela porta no centro do corredor

para que ela passe por aquela. Olho para trás quando acho

ter ouvido algo, contudo não vejo nada de diferente quando

me viro. Volto a atenção para Isabel que ajeita os óculos no

nariz. Ela sempre me transmitiu a ideia de que é feita dessas

152

pequenas coisas para arrumar e parecer estar tudo certo.

Sua testa transpira, as bochechas coradas atingem um tom

bem avermelhado, e o batom tem algumas falhas onde os

lábios se tocam. - Cigarro eletrônico. - Deduzo. Ela me

passa a prancheta holográfica, e ao fazer isso fala:

- Como já deve ter percebido, o período de seleção

acabou.

- Só sendo muito tapado para não perceber... Mas

esse é o problema né? Ela acha que sou o maior idiota no

mundo, como todos “eles”. - Só no ano passado havia

ingressado junto de 300 outros candidatos. Durante onze

meses a disputa foi acirrada, e somente no último mês que

estive sozinho como cobaia. Minha rotina foi engessada em

dormitórios, cantina, campo de treinamento, laboratórios e

biblioteca. Mas antes desse mês os testes eram diários, e de

certa forma, surpresa. Por mais que houvesse horários

específicos para o mapeamento de atividades vitais, plano

de exames médicos, e avisos dos dias de folga (para visitar

a família), nunca nos era dito o que treinar, ou estudar.

Ainda mais a ética bio-física-espaço-temporal que tinha sido

algo criado durante todo o processo de seleção por um

cientista renomado, cujo o nome me esqueci, que foi

redirecionado para uma Colônia.

153

- Selecionamos você pela aptidão física, intelectual e

capacidade de solução de problemas imediatos. Hoje

passaremos a você as informações da “Missão

Desconstrução” ... Deixe-me ver, por onde eu começo? - Ela

segura o queixo batendo a ponta do indicador no queixo,

removendo um pouco da maquiagem exagerada que fez

tanta questão de passar na prótese arcaica, que deixa

alguns ligamentos em evidência, por mais que estejam por

baixo de uma imitação sintética da pele humana, que

mesmo assim deixa o conteúdo interior transparente de

perto.

Demoro alguns segundos para me acostumar com a

chuva de informações da prancheta. Passo a assimilar a

informação com mais facilidade quando aplico técnicas de

leitura dinâmica que aprendi com a bibliotecária daqui.

- Qual o local, senhora?

- Não precisa me chamar assim. - Ela da uma risada

sem som. - Me faz parecer uma velha.

- Madame? - Digo estalando o dedo para cima, como

uma imitação cinematográfica de um publicitário dos anos

50 em um brainstorm.

- Piorou. - Ela balança a cabeça, fazendo com que a

mecha volte a atrapalhar sua visão do olho direito. Volta-a

para trás da orelha, ajeitando os óculos em seguida.

154

- Doutora? - Estalo o dedo um pouco mais próximo do

tronco, mesmo sabendo que é ridículo.

- Melhor. - Ela passa a mão pela extensão do jaleco,

pelo que me pareceu, para impedi-lo de amassar

esvoaçando com a corrente de vento que vinha da Sala do

Maquinário logo à frente. - O local será uma cidade rural

praticamente isolada. Nossos registros encontraram

atividades de transmissão de consciências da “Grosse

Machine”.

Parei de súbito, algo que tenho o costume de fazer

quando não consigo assimilar a informação e me encontro

em uma confusão mental. Sinto-me caindo em um abismo

aparentemente sem fundo, sem poder segurar em nada no

caminho, sem saber como cheguei ali. Ela já está bem a par

de meus trejeitos, pegando em meu braço e me forçando a

andar junto dela pelo aparentemente infinito corredor

branco.

- Bom... Deixe-me lembrar. Você entrou aqui há dois

anos... - Ela coça o nariz, onde também tira um pouco de

maquiagem, agora da pele com alguns cravos. - Oh, boy...

Sabe o Algoritmo Absoluto?

- O sistema que havia tomado o judiciário, tornou

obsoleto a atividade humana no legislativo, e que havia sido

eleito pela maioria à presidência, doutora? - Faço uma

155

citação direta a um resumo que fui obrigado a fazer sobre a

Biografia do Algoritmo absoluto.

Meu poder de síntese sempre foi impecável, o que

também é algo que sou capaz de me gabar abertamente.

Nas palavras de meu pai depois de me ver soltar

alguma dessas durante nossas conversas: - “Grandes

pérolas de resultados de quatro faculdades nunca

terminadas, e uma concluída. Sabia que o dinheiro público

que você gastou nunca voltará para aqueles cofres, né?”. -

O que era verdade, mas repetidas tantas vezes ao ponto de

lembrar-me dessa frase em todas as fases de meu pai,

desde a meia idade até a velhice, e após a traqueostomia,

que também foi paga com dinheiro público repassado do

plano de aposentadoria do exército. O que me trazia paz foi

que ele só disse isso uma vez na última fase, falecendo em

um trágico acidente. Meu sonho de verdade é existir um

paraíso, onde ele estará me esperando, e direi a mesma

coisa a ele, com outros detalhes.

- Isso.

- Não entendi doutora. O que eu teria que fazer com o

Algoritmo Absoluto? - Dou uma coçada na cabeça. Ela ainda

me puxa, como também levo a prancheta em uma mão.

Quase tinha me esquecido que a segurava. Da última vez

156

derrubei nesse mesmo ponto, onde ela fez um escândalo e

me fez buscar outro correndo.

- Digamos que ele foi deposto por inúmeros motivos,

e atualmente está sendo caçado por genocídios em massa

de populações marginalizadas anteriormente a sua

deposição, e por atividades paramilitares após o mesmo.

Hoje denominado de “Grande Máquina” para o mundo,

utilizamos de nossos melhores agentes para desmantelar

aos poucos os fios intrincados que ela tenta tecer.

- E que fios seriam esses, doutora?

- Downloads de consciências enviados para o

passado. Assim ele investe em possibilidades de impedir

que seja desmantelado no futuro, pois ele tenta aplicar a si

mesmo por toda a população por meio de correções

genéticas, tentando tornar os seres humanos mais

suscetíveis ao seu controle. - Ela gesticula com uma mão

que tem seus dedos travados, ou movidos de formas

impossíveis nas articulações.

A porta no fim do corredor se abriu automaticamente.

Isabel passou por ela com determinada pressa. Eu

parei por um segundo, voltando a olhar para trás. Algo

naquela sala dizia para todos os pelos no meu corpo

produzirem arrepios dos mais malignos. Eu passei por ela

sentindo-a se fechar nas minhas costas. Algumas trancas

157

com sistemas de alta ponta foram asseguradas por um

cientista genérico de jaleco, que deu duas batidas felizes e

anotou em sua prancheta algo que não consegui traduzir

para entender.

No exato centro dessa sala há um orbe negro e

opaco. Ele gira em torno de si por direções aleatórias,

criando um fenômeno de sombra própria quase

imperceptível aos olhos nus. Abaixo do mesmo não consigo

deixar de perceber uma rampa turquesa, que se

metamorfoseia em uma escada de mesma cor em tom mais

claro. O orbe diminui sua velocidade até parecer de capaz

de parar, abrindo-se no meio como um ovo quebrado,

revelando em seu interior um assento deitado em noventa

graus. Bato continência na sala, o que parece ridículo aos

olhos dos vários cientistas que andam feito baratas tontas

em torno do maquinário abaixo do orbe e atrás da escada de

acesso.

- É ele? - Uma cientista de jaleco preto por cima do

uniforme branco pergunta.

Seu visual é muito díspar com seus colegas de

profissão, mascando um chiclete e fazendo bolas que

estouram em sua face, cujo pedaços ela cata com a língua,

tirando o batom negro dos lábios finos e espalhando pela

face.

158

Lilian aponta para mim, e eu bato uma continência

em resposta.

- Ao seu serviço, doutora?

- Eu não sou doutora, besta. - Lilian ri alto, cativando

Isabel a soltar um risinho. - Sou mestra.

- Não seja tão má. - Ela reclama, indo até ela e dando

um soco amistoso em seu braço.

- Ai! - Lilian reclama, passando a mão para cima e

para baixo em seu braço. - O dia em que mandarem gente

competente de verdade para essa merda de passado, eu irei

ficar menos **** da cara. Parece que a gente trabalha com

um ********* tentando ***** a gente o tempo todo.

Os palavrões me incomodariam mais se eu não

tivesse acabado de baixar um sistema que os bloqueia.

Mesmo assim a ideia me importuna. As duas discutem por

alguns minutos, e Lilian não tem papas na língua. Escolho

por andar um pouco mais afastado das duas. Dois cientistas

que conversavam calorosamente, quase que discutindo,

trombam comigo.

- Desculpe doutores.

- Tudo bem, só não se perde, tá? - Um deles diz

enquanto desvia para um grupo de dez cientistas ou mais no

canto. Todos tem óculos escuros blindados. Uma cientista

com uma sacola cheia deles oferece para Lilian e Isabel,

159

que aceitam já colocando e deixando as lentes repousarem

no topo da cabeça.

Volto a posição original corado pela vergonha de não

conseguir lidar com tudo aquilo. Passam-se alguns minutos

até que todos pareçam deixar o Maquinário de lado e se

reúnam junto daqueles no canto. Isabel encerra a conversa

com Lilian, que também se afasta. Ela mexe em seu

aparelho, boceja e pega em meu braço.

- Vamos lá, cowboy! - Ela me puxa até a escada,

subindo os degraus ao meu lado.

No caminho sei que a volta é um tanto improvável, o

que me dá espaço para confissões que não teria coragem

de fazer se não houvesse a mínima chance de não voltar.

- Isabel.

- Sim. - Ela responde com um sorriso sem mostrar os

dentes.

- Quando eu voltar... Se eu voltar... Eu gostaria muito

de te conhecer melhor. - Meu silêncio deve ter lhe parecido

súbito, como se não tivesse encerrado, pois ela demorou até

chegarmos ao topo para me responder. Na verdade, eu

gostaria de me envolver romanticamente, o que para ela não

deveria ser nenhuma surpresa, uma vez que comuniquei a

ela sempre de forma explicita minhas intenções.

160

- Claro. Podemos sair para beber algo. - Ela continua

a sorrir daquele jeito.

- Eu não bebo. Que tal um café, hein?

- Perfeito. - Ela aperta minha mão. - Isso é um trato.

Agora pode se sentar.

Eu me sento na ponta do assento. Pela altura em que

o assento está disposto a ponta dos meus pés sequer

alcança o chão. Ela me mostra algumas imagens para

acompanhar sua narração.

- Há dois anos descobrimos um armazém onde o

Algoritmo Absoluto enviava alguma forma de impulso

eletromagnético para o passado... Sinceramente, a ciência

de tudo é muito mais complexo, o que não é relevante

agora! - os barulhos do maquinário são graves, e ela

aumenta o volume de sua voz até o máximo para continuar

a me explicar.

Aceno com a cabeça tentando demonstrar que estou

prestando toda a atenção possível. Ela aponta para um

nome na tela.

- Esse será seu nome, você irá para a década de

1960. Não sabemos com precisão em qual ano, mas o local

em que você irá aparecer é um milharal... Foram anos de

contas para determinar retroativamente em comparação

onde o Planeta estaria na posição em que estamos hoje.

161

-... Ou seja, então eu não estarei viajando somente

no tempo, mas também no espaço, certo doutora?

- Exato. Bom garoto! - Ela aperta minha bochecha

como uma tia-avó, o que também me faz sorrir e corar como

uma criança.

Ela pegou a prancheta para si de volta. Eu tinha

acabado memorizar o nome, data de nascimento e dia do

desaparecimento misterioso de um idoso que foi nadar em

um rio.

- No dia 18 de Agosto de 1984 vá nadar no Rio Lete

que enviaremos alguém para busca-lo.

- Sim senhora! - Então percebo que passarei trinta e

poucos anos em missão. Quando voltar eu serei um idoso.

Meu convite para o café parece areia escorrendo pelos

meus dedos, junto de tudo que gosto tanto nesse futuro.

Ela tira algo do bolso. Um relógio com um mostrador

alaranjado e curvado. Ela passa a pulseira por volta do meu

pulso. Uma vez que as pontas se encontram parecem se

fundir em um ponto onde não deixam rastro, ajustando sem

apertar nem deixar frouxo.

- Ele avisará quando alguma coisa relacionada a

Grande Máquina estiver por perto. Lilian que fez. Isso aqui

com um toque pode ficar invisível e intangível, olha.

162

Ela bate no mostrador, que faz o relógio desaparecer.

Como um ignorante as palavras ainda ditas, quase que

pairando no ar, faço o esperado como um símio espacial e

tento passar na mão no que acabo de ver desaparecer.

Arregalo os olhos desacreditado em toda a realidade da

coisa. Tento olhar para meu pulso de diversos ângulos,

porém nenhum deles me é capaz de relevar que um dia

aquele relógio esteve em meu pulso.

- Para fazer reaparecer é só falar: Schroedinger.

O relógio ressurge em meu braço em segundos.

Consigo tocá-lo, como também ver informações da pulsação

e outros exames médicos em seu mostrador. Tudo parece

ser substituído por círculos finos que são criados no centro e

vão crescendo até alcançarem as bordas e se desfazerem,

da mesma forma que água calma em uma bacia onde

alguém acabara de jogar uma pedrinha.

- Ele está mostrando isso aí porque estamos pisando

em tecnologia do Algoritmo. Estamos trabalhando para ele

detectar coisas que não estão sob a posse humana, por isso

ele não apita, mas mostra. Se algum download de

consciência for feito nas imediações você saberá através de

um sensor que ligará um alarme que só você será capaz de

ouvir.

- Obrigado, doutora.

163

- Não seja por isso. Ah, e um último conselho.

Encontre em alguém que possa confiar, e conte tudo a ela.

O setor de comportamento traçou todos os pormenores, mas

o que você deve saber é que tudo bem ter uma Âncora.

- Âncora?

- É assim que eles chamaram. Algo para se segurar,

e não se sentir perder.

- Sim senhora. - Digo calmamente, segurando uma

continência.

Ela responde algo que não presto atenção. Tudo o

que consigo pensar é que ela sempre será minha Âncora

daqui. Desse tempo, desse lugar. Seu perfume é de

morango, e ela está próxima o suficiente para que minha

prótese nasal um tanto defeituosa reconheça o aroma.

Boa sorte soldado. - Ela se vira e desce os degraus

com pressa, quase escorregando na ponta de um deles. Ao

lado de Lilian, ela pega a mão da amiga e aperta com força.

Todos na sala respiram com menos frequência, com os

corações a mil e as cabeças tão pesadas quanto bigornas.

Os olhos dela lacrimejam. Eu gostaria de perguntar

se estava triste por me ver partir, mas a resposta em meu

íntimo é deprimente, talvez não tanto quanto a realidade.

Tento me agarrar ao mínimo e penso que ela chora pela

minha vida que pode ser interrompida, e eu simplesmente

164

aparecer morto no destino. Só Deus para saber com certeza

o que vai acontecer, uma pena ele não dar Spoilers nesses

momentos de maior tensão. - “Sem pai, ou amigos, sei que

ela é a única pessoa em todo o mundo que sentirá um

pouquinho da minha falta... Deus, por favor, não me mata”. -

Olho para cima, fazendo o sinal da cruz sobre o peito.

Clico no mostrador esperando que essa seja alguma

de tantas vezes que farei isso. Reclino-me no assento que

se abaixa com o peso do meu corpo para ver o orbe voltar a

se fechar sobre mim. Isabel não está mais em meu campo

de visão. Fecho os olhos e ainda penso nela. - “Seu rosto.

Seus olhos. Suas palavras. Seus conselhos. Seus testes.

Seu cheiro. Sua forma abstrata que me faz sentir tão...

Homem? Não, ela só me faz sentir menos solitário... Tão

humano quanto mereço”. - O orbe começa a girar mais

rápido do que antes, criando energia própria que descarrega

o excesso em raios verdes. O orbe gira e com mais

velocidade vai pouco a pouco diminuindo até alcançar um

tamanho microscópico.

O silêncio paira por um segundo, algo surge no

centro, crescendo em segundos até tomar o tamanho do

orbe original. Quando se abre só o assento permaneceu. Os

cientistas pulam para cima com os braços no alto,

abraçando e beijando em uma comemoração calorosa. Um

165

deles abre um champanhe que guardava em um dos vários

bolsos de zíper.

Sinto meu corpo lançado para cima, e sem conseguir

agarrar a algo dou três cambalhotas desengonçadas em um

breu absoluto. Mantenho os olhos fechados pelo percurso,

forçando minha face em uma careta enfezada. Sinto minha

velocidade diminuindo até flutuar por alguns segundos. A

roupa que envolve meu corpo parece desaparecer sem eu

ter percebido, e quando começo a cair sinto uma brisa muito

mais fria que o normal em cada centímetro de pele exposta.

Acho que gritei, ou murmurei algo, mas o som não se

propagava naquele enorme vazio. Quando volto a abrir os

olhos sou obrigado mais uma vez a fechá-los para não ver

um milharal de cima se aproximando da minha perspectiva.

Para minha sorte a queda é abafada o suficiente para eu

sentir que ninguém muito longe possa me ouvido.

Me viro para cima e de fato constato minha nudez.

Sem preparação alguma para isso me levanto olhando para

todos os lados e adiante. Encontro somente o sol poente no

horizonte formado por quilômetros espigas de milho. Antes

que possa respirar e comemorar (como sinto que devia),

meus tímpanos são violados pelo som de alguma arma

próxima ao disparar para o céu. Os pássaros que estavam

pousados por perto voam para longe, em um instinto de

166

sobrevivência que não consigo me render tão facilmente.

Quando penso em correr ouço outro disparo, mais próximo,

que me faz parar.

- Olha só o que temos aqui. - O homem tem uma

espingarda com o cano soltando fumaça apoiado em um

ombro. Ele usa chapéu de palha, camisa de algodão

vermelha e preta quadriculada, macacão e botas pretas de

borracha imundas com a terra vermelha. Sem um pingo de

esperança tento lembrar alguma reza, mas o medo torna

minha mente um espaço vazio em branco.

Ele apoia o cano em outra mão, parece carregada

quando ele engatilha. Vou a sua direção, mas o Senhor não

parece tão convidativo apontando a arma para meu peito

ofegante, onde meu coração e organal estão.

- Na-na-ni-na-não! Pra trás e mãos ao alto! - O

Senhor olha pela mira da arma. - Engraçadinho.

Obedeço sentindo que esse é o fim. Tento olhar para

cima e não prestar atenção na circunferência dos canos que

forçam meu peito um pouco para trás. Ele faz um barulho

que sei o significado. Ele recarregou, deixando que as

capsulas sem conteúdo caíssem no chão.

- Anda! Desembucha! - O homem urra com uma voz

rouca. - Quem é você e por quê tá pelado na minha

plantação?

167

- Sim senhor! - Reproduzo automaticamente fugindo

do personagem que não deveria ter nenhuma referência

militar. Engulo saliva pensando em quantas pessoas

trabalharam duro para me mandar a uma realidade onde eu

seria simplesmente morto na questão de um minuto. Se eu

fosse o único a ser enviado todo o Destino de muita gente

estava nas minhas mãos. Volto a olhar para baixo com mais

determinação do que medo. Mesmo assim sei que o espanto

vai ajudar. - Eu... Eu... Não sei... Senhor.

O Senhor aponta a arma para cima, ao lado da minha

cabeça, e dispara. Lágrimas automaticamente escorrem de

meus olhos, muco é produzido em conjunto, e quando

percebo estou com o nariz escorrendo e babando um pouco

também. Sinto um frio na espinha. O medo já foi instaurado

e tomou conta de meu sistema. Se minha morte for aqui

serei enterrado como indigente, e, talvez, covarde.

- Eu... Não sei, senhor! Eu não sei, senhor! - É tão

patético que ele vai ter que acreditar.- Não sei mesmo!

Fecho meus olhos e permaneço em silêncio,

congelado como uma estatua, esperando por um veredito

favorável.

- Conta outra... Me toma por um trouxa?

Abro a parcela de uma pálpebra para compreender

melhor.

168

- Nem um pouco, senhor. - Dessa vez não olho para

cima nem bato continência, por mais que me sinta muito

culpado por não fazê-lo.

- É do exército.

- Eu não me lembro, senhor.

- Eu acho que lembra... E aí? - O senhor cospe um

pedacinho de tabaco ao lado.

- E aí? - Pergunto voltando a abrir meus olhos. Um

vento gelado me alveja e meu corpo inteiro começa a

tremer. A temperatura parece cair de uma vez, e todos os

pelos de meu corpo arrepiam. - E aí que não estou

mentindo... Se for me matar, por favor, que seja logo. Pois o

frio e a fome me matarão aos poucos, e tenho muito medo

do que posso fazer por um teto e uma porção de comida.

Essa citação cai como uma luva. O senhor coça a

cabeça meio envergonhado, olhando para todos os lados.

Um de seus olhos lateja, o que interpreto por sinais de

grande estresse de sua parte. Ele respira fundo, passando

uma mão para dentro da camisa e coçando o peito.

- Só me faltava essa... Bom... - Ele respira fundo. -

Meu nome é Dumas. Todo mundo por essas bandas me

chama de Seu Dumas, o que não proíbo, mas também não

gosto muito não. - Ele cospe na mão e a estende para mim.

Reconheço um aperto, e faço o mesmo apertando sua mão

169

com asco. Ele balança um pouco antes de soltar e passar a

palma na coxa da calça.

- Prazer. - Digo sorrindo, tentando parecer cordial.

- Você lembra de algo? Qualquer coisa?

- Não, senhor.

- Pelo amor de... Bom, vem comigo.

Dou alguns passos atrás dele quando se vira e mete

o dedo em meu nariz. Ele range os dentes em um rosto

enraivecido.

- Se tentar alguma gracinha explodo seus miolos,

entendeu?

- Sim senhor.

Seguimos por muito tempo no meio da plantação até

encontrarmos um terreno plano, com grama e uma casa de

madeira velha. Ele caminha a passos largos até dentro da

casa. Espero-o atrás de algumas espigas. Algumas pessoas

passam perto de mim, conversando em alguma língua que

não entendo e dando risadas. Uma das mulheres me vê ali,

e corre para dentro de casa. Quando volta a sair Seu Dumas

a acompanha com um enorme saco branco. Ele joga aos

meus pés ao mesmo tempo em que aquela mulher volta a

seguir até uma estradinha de terra, onde uma carroça com

um homem de terno grosso a esperava. Ela usava um

170

vestido de pano branco com detalhes em salmão e seus

cabelos marrons pareciam arqueados até o máximo.

- Vista o que tá no saco pra ninguém mais se

assustar com seu troço.

Obedeço vestindo uma camisa amarelo mostarda de

botões e uma calça de pano sem barra. Encontro chinelos

de couro, um chapéu cinza velho e óculos de aros redondos.

Passo os dedos onde as lentes deveriam estar e fico

surpreso quando meus dedos atravessam onde elas

deveriam estar.

- Os óculos são pra disfarçar tua cara estranha... Vai

ali na carroça que eu vou avisa a Soninha.

Ele volta para dentro da casa. Eu me sento na

carroça que será puxada por um cavalo de pelugem negra e

velho, com pelo maltratado e várias cicatrizes de cortes.

Cego de um olho, o bicho não parece fazer muito da minha

presença, como os cientistas da sala do maquinário. Penso

no futuro de onde vim e tudo parece um sonho muito

distante perto do agora. Se me perguntassem alguns

detalhes, como as cores dos uniformes, coisas que usei por

dias a fio, não saberia responder. - “Talvez todo o passado

tenha de parecer um sonho, pois aí a gente aprende a

seguir em frente com mais facilidade”.

171

Ouço berros de dentro do imóvel, Seu Dumas passa

pelo umbral virando a cabeça com força para os lados, como

se injuriado. Sua filha vai até a porta, e ao olha-la da carroça

sinto que sua beleza é imensurável. Por um segundo ela

olha para mim, e seus olhos verdes escuros se fecham

abaixo de duas sobrancelhas pretas arqueadas como asas

de corvos no céu limpo. Seus cabelos são tão negros quanto

a pelugem do cavalo, seu rosto fino tem lábios carnudos e

um nariz arrebitado. Ela usa um vestido de primavera

amarelo com detalhes pretos costurados e descosturados

nas mangas e para combinar um chapéu com girassóis no

laço queimado. Ela fala algo a ele que não compreendo. Seu

pai sobe na carroça, pega as rédeas e balança para que o

cavalo comece a andar. Permanecemos em silêncio pelo

percurso.

Olho para trás algumas vezes, na quarta ou quinta

ela entra em casa de braços cruzados e rosto enrubescido.

Tento adivinhar o que poderia ter deixa-la brava, mas é

muito difícil quando se conhece tão pouco. Sei que a

estética me permite tanta compreensão quanto a utilidade

de um curso de aviação para animais marinhos.

Seguimos pela estrada de chão por alguns

quilômetros até uma estrada asfaltada. Por ela seguimos por

uma hora, ainda anoitecendo chegamos à pequena cidade.

172

As casas terminadas com gente dentro eram de madeira,

mas em alguns lugares se encontravam pessoas em

carroças com tijolos e cimento. Seria o fim de uma era com

a virada da metade do século, o fim da segunda grande

guerra mundial e a instalação da ditadura não demoraria

tanto. Se alguém nascesse hoje debutaria com o golpe.

Seu Dumas parou a carroça em frente a um local que

parece uma capela suja e abandonada. Desceu e indicou

para a capela. Antes de deixarmos o cavalo sozinho ele

retirou uma cenoura do bolso. O cavalo balança o rabo com

a mordida que pegou três quartos do vegetal. Seu Dumas

fez alguns carinhos no animal antes de deixa-lo. Dirigimo-

nos subindo algumas escadas cinzentas. Alguns

enfermeiros e médicos transitam pela entrada que dá para

três corredores. Todos parecem ter pressa, o que me pesa

no coração perceber que isso será o comum sempre.

Sempre em movimento para nunca parar, e quando para,

não sabe o que fazer. Meu pai era assim, sempre se

exercitando e fumando. Quando não podia mais fumar, teve

que parar de se exercitar. Ele tentou suicídio algumas vezes,

e tomou multas por isso. Sem o dinheiro para pagar ele

escolheu a eutanásia. Esses últimos momentos foram no

decorrer de uma semana, como eu já disse, ele não perdia

tempo mesmo.

173

“Me repito e me contradito por dois motivos: sou

humano tão humano quanto um macaco pelado pode ser, e

tão macaco quanto um homem excitado pode ser”. - Lembro

desse trecho de uma música e só consigo me perguntar se

há algum tipo de música aqui. Sem querer soar

inconveniente, ou saber do futuro, escolho pode dizer

somente o necessário por enquanto, para não acharem que

sou louco. Em um hospital é muito fácil de alguém notar

estranhezas. Estou tão exposto quanto aquele homem sem

pele, daquele curta que eu gostava, e também como a

música em épocas mais rebeldes.

- Bom dia Seu Dumas. - A moça da recepção

cumprimenta ao chegar no balcão com uma cadeira atrás.

Ela se senta, abre um enorme caderno com capa de couro,

e molha a caneta em nanquim. - O que o senhor precisa

hoje?

- Eu não preciso de nada hoje Alice. - Seu Dumas

gesticula mexendo os braços ao máximo. - Esse meu amigo

aqui apareceu desmemoriado na minha plantação... Achei

que seria bom dar uma olhada na cabeça pra ver se todos

os parafusos estão no lugar.

Ele deixa uma mão apoiada na cintura. Assovia bem

baixinho.

174

- Qual o seu nome? - Ela pergunta com um sorriso de

boca fechada.

- Eu... Não me lembro. - Dou uma risadinha

envergonhada. Tento olhar para Seu Dumas, mas ele se

distraiu com um homem ensanguentado carregado de maca

por alguns enfermeiros.

Respiro fundo quando percebo já estar suado de

respirar mal. Se eu tiver que falar mais terei que mentir, e

para me lembrar de tudo terei que pedir um diário para ele,

ou comprar um depois.

- Pode colocar meu nome no livro, xuxu. - Seu Dumas

voltou a atenção para ela, dando uma coçada no fundo do

nariz.

- Podem se sentar... Avisarei o Doutor que estão

esperando.

Ela não reage tão bem ao ato, fechando o livro com

rapidez e força extrema. A capa ao bater espalhou camadas

de pó que voaram em uma pequena nuvem sobre a mesa

da recepção e nós dois. Ele bate um pouco nas roupas, e eu

tentei imitá-lo tentando desesperadamente parecer como

alguém daqui.

Respiro fundo. Me sinto um tanto inútil sem conseguir

lembrar muito de quem deveria imitar. Não me lembro das

ocupações que ele deveria assumir, nem dos hobbies, ou

175

história simplificada. Só da data de volta. A paixão me

deixou cego para todo o resto que considerou

desnecessário. Rezo mais uma vez, agradecendo um pouco

por ter sobrevivido ao orbe, e a queda, e ao Seu Dumas ali

com uma espingarda (que parecia carregada). No aguardo

ele sai três vezes para acender alguns cigarros do lado de

fora. Ele assopra com força para o lado oposto a capela, no

topo da escadaria, porém o vento traz o cheiro forte da

fumaça para dentro.

Nos sentamos ao lado do balcão em alguns assentos

de madeira mal entalhada. Fico mexendo o quadril para

encontrar uma posição boa, o que se prova impossível. Seu

Dumas só espera de braços cruzados assoviando. Algumas

pessoas aparecem por ali, e Alice pede para que contornem

até uma porta logo ao lado, onde a emergência está situada

para atender melhor aquele tipo de situação de vida ou

morte. Por alguns minutos bato o dedo na minha perna, e

quase consigo me lembrar do cheiro neutro dos dormitórios,

ao contrário daquele lugar que cheira a um incêndio em uma

farmácia.

- O Doutor está te esperando. - Alice nos avisa depois

de voltar pela terceira vez do fim do primeiro corredor. Ela

parece ofegante quando nos despedimos por enquanto.

176

Olho para Seu Dumas a todo momento, tentando me

manter atrás dele ao entrar no local de consulta daquele

médico. Se eu tivesse ido sozinho com certeza acharia que

ao passar pela porta teria sido escaneado, e com o Plano de

Saúde em dia, um Androide teria todo o meu histórico

médico dos últimos meses. Seu Dumas me deixa passar, e

foca parado apoiado na parede, ao lado da porta e uma

lixeira.

O Médico anotava algo em uma folha sobre uma

escrivaninha de madeira gasta. Ele se levantou, ajeitando a

gravata, batendo o jaleco e pegando um par de luvas de

borracha dos bolsos. Em um copinho na escrivaninha catou

um palito de madeira.

- Pode se sentar. - Obedeci no mesmo instante,

batendo os sapatos de ansiedade.

Cogito a hipótese de contar tudo a ele. - O juramento

de Hipócrates tem alguma relação com o sigilo médico-

paciente? Não! Não! Burro. É claro que ele vai te achar

louco de qualquer jeito. Aparecendo do nada. Mesmo se não

tiver nada na minha cabeça, ele vai é me internar, isso sim. -

Respiro fundo mais uma vez, transpirando horrores no calor

sem nenhum aparelho de ar-condicionado ou temperatura

ambiente.

177

- Agora abre bem a boquinha. - Abro sentindo violado

com o seu procedimento. Ele simplesmente levou aquilo até

o fundo da minha garganta, mirando com os olhos através

de lentes bem grossas. Não sei o qual diagnostico buscava,

pois nem sequer nos perguntou o motivo da visita, ainda

mais que duvido imensamente que sua assistente tenha lhe

informado sobre. Sinto ânsia de vômito antes dele dizer. -

Interessante.

Ele jogou o palito no lixo. Esfregou as luvas e olhou

para mim.

- Qual o motivo da visita? -

Eu penso em falar, até abro a boca, mas sou

interrompido por Seu Dumas antes de sequer começar.

- Ele apareceu na minha plantação sem lembrar o

próprio nome... Achei que pudesse ter sido assaltado, ou

algo do tipo, e batido a cabeça, ou... Sabe?

- Se sei? - O Doutor ri. - Até demais. Essas bandas

ficaram perigosas depois da Guerra.

- Segunda Guerra? - Pergunto extremamente

embasbacado, não poupando a transparência na confusão.

- Segunda Guerra? - O Doutor olha com uma

sobrancelha levantada. Ele puxa o estetoscópio para os

ouvidos, e move ponta até o lado esquerdo do meu peito.

Parece impressionado com o que ouve. - Um batimento

178

perfeitamente sincronizado. - Ele aperta os músculos em

volta. - O senhor poderia por gentileza tirar a camisa.

Todos os seus pedidos são ordens. Me mantenho de

pé para conseguir desabotoar os pontos mais apertados.

Tento concluir o mais rápido que consigo. Volto a me sentar

com a camisa envolta nas minhas costas, braços e ombros.

Ele pega um conezinho de metal gelado descascado e

passa pelo meu peito, principalmente onde meu coração e

organal estariam. Além de gerar uma leve cosquinha, sinto

uma profunda aflição quanto aos implantes que não sei a

razão de mantê-los sem a devida manutenção.

- O senhor fuma, ou bebe?

Dou de ombros com um sorriso de boca fechada.

- Há um pequeno inchaço ao lado de seu coração... -

O Doutor coça o queixo. - Eu mandaria para uma análise de

necessidade, mas essas coisas tem de ser marcadas com

antecedência. Passem com a Alice na saída, ta bom?

- Pode deixar... Acha que a cabeça dele está boa? -

Seu Dumas pergunta, voltando a assoviar bem baixinho.

Sua impaciência parece ter passado para as pernas, que ele

cruza e descruza sem parar. Como os braços, deixando ao

lado do corpo, juntando as mãos atrás, e cruzando na frente.

Entre tudo isso ele pisca um pouco mais que o normal

também. Sua aparência com certeza devia parecer pior que

179

a minha. Seu tom de pele parece pálido, junto dos olhos

acompanhados de tremendas bolsas de cansaço e cabelo

bagunçado.

De um momento para o outro ele começou a bater a

ponta do pé no chão, acelerando e diminuindo sem ritmo

definido. Ele olha para todos os lados, como se alguém

pudesse surgir de qualquer canto e assustá-lo. O Doutor

arregala os olhos como se tivesse se esquecido de algo,

pega a minha cabeça com as duas mãos, na ponta de todos

os dedos para segurar, e observa-a de todos os ângulos. Ele

balança de lá para cá, me dando uma pequena tontura.

-Sinceramente... A cabeça está no lugar, não tem

nenhum corte, e não parece ter nada de diferente de

qualquer cabeça... O que ele pode estar passando é algo da

seara psicológica... Talvez o Alienista na Rua das Flores

possa ser de alguma ajuda. - Ele puxou de um cartão de

uma caixinha na escrivaninha ao lado da porta.

Seu Dumas pegou o cartão e deu um peteleco na

ponta antes de guardar no bolso do macacão.

- Abotoa issaí que te encontro lá fora. - Ele aponta

para meu peito com o indicador, e lá fora com o dedão, se

apressando a sair.

180

- Muito Obrigado doutor. - Digo ainda tentando forçar

o terceiro botão, percebendo que estão fora da ordem, e

desabotoando para começar novamente.

Alice surge com uma folha grande cheia de

anotações. O Doutor a pega para ler sentado em sua

escrivaninha. Os dois cochicham algo bem pertinho, o

suficiente para eu entender bulhufas, e ela sai balançando a

cabeça em negativa. Uma família de cinco entra no

consultório. O Doutor me encara ainda no meio do processo,

e começa a atendê-los parecendo esquecer da minha

presença. Quando saio sem falar mais nada ainda estou no

penúltimo botão. Passo pelos corredores escuros e vazios,

muito diferentes de quando a gente entrou.

Seu Dumas está ali fora, apoiado no balcão

conversando com Alice. Ele para quando me aproximo,

olhando para mim junto dela.

- Vamos passar em um lugar antes de volta a

fazenda... Tudo certo por você?

- Claro. - “Afinal de contas você é a minha única

esperança de passar a noite embaixo de algum teto”.

De certa forma seu bom coração me mantém refém

de qualquer desejo dele, o que me deixa incomodado, mas

não tanto para transparecer.

181

- Tchau princesa... Dê notícias para seu pai. - Ele dá

dois tapinhas no balcão antes de sair.

- Tchau... Alice. - Digo bem baixinho seguindo-o para

a porta de saída.

- Tchau rapazes... Se cuidem.

- Pó de chá. - Seu Dumas diz acenando já de costas.

Passamos pela carroça na direção oposta do

hospital.

Seu Dumas assovia com as mãos enterradas em

seus bolsos. Encontramos um local com paredes baixas,

janelas enormes, com três degraus verdes na entrada na

porta da diagonal. Parecia uma casa normal de porta aberta,

por onde entramos. Muito diferente de qualquer casa,

haviam diversas mesas de madeira com quatro cadeiras

cada. Uma moça estava atrás do balcão que guardava o

armário de portas transparentes com os mais diversos tipos

de bebidas e uma porta ao lado para os fundos. Havia um

cheiro quase intragável de gordura queimada que

impregnava todo o local. Seu Dumas puxou uma cordinha

ao lado da porta, que levava a um sino em cima da porta do

lado de dentro. O mesmo badalou cinco vezes bem alto, e

três vezes baixinho. Uma moça de mais ou menos vinte

anos saiu da porta dos fundos com um cigarro todo amarelo

claro aceso entre o dedo indicador e o dedo médio.

182

Seu Dumas foi até uma cadeira alta de frente para o

balcão e a mulher. Devo ter congelado por alguns segundos,

pois os dois me encararam com faces nada amistosas. Ele

até deu algumas tapinhas no assento ao seu lado me

convidando a me apressar.

- E aí velhote, o que vai ser? - A moça deu um trago

forte, e pegou um bloquinho de notas de dentro do avental

amarelado enquanto assoprava para cima.

- Uma pinga pra mim, uma porção daquela mandioca

boa e um... - Ele olhou para mim.

- Água, por favor. - Respondi ao seu apelo sem saber

o que era comum ou não nessa época. Água tratada em

algumas décadas atrás, até onde eu sei, seria um luxo.

- E uma água pro rapazote. - Ele pediu, dando alguns

petelecos na madeira velha do balcão, que rangeu em

resposta.

Ela pegou dois copos americanos dentro de alguma

porta baixa do balcão. Serviu água com gelo em um deles, e

no outro teve de alcançar uma garrafa de líquido tão

transparente como água, porém um pouco mais denso. Ela

encheu o segundo pela metade, alcançando a Seu Dumas

que deu dois goles longos, fazendo caretas.

- Mais uma princesa. - Ela pegou o copo da mão dele

e serviu de volta.

183

- Agora vê se você segura um pouco, tenho que fazer

a mandioca.

Ele piscou com um olho e um sorriso amarelo. Ela

soltou um riso. Eu bebi em goles curtos a água que descia

com dificuldade pela minha garganta. A dificuldade para

engolir até poderia ficar estampado em meu rosto, mas Seu

Dumas somente tinha olhos para a porta onde ela tinha

entrado. As miçangas de madeira estavam presas ao lado

por fios pregados a parede.

- Qual o nome dela? - Pergunto na esperança de ao

menos lembrá-lo de que estou aqui.

- Da mulher? - Ele me olha com os olhos

parcialmente abertos. As piscadas dele levam mais tempo

do que antes. Seu bafo é terrível assim bem próximo. -

Dalva. Filha de uma conhecida minha. Garota de ouro... Se

você quer saber acho que ela vai fazer esse lugar crescer

horrores.

Bebo um gole mais longo para matar de vez, me

assustando com o cubo de gelo que bateu com força no

meu dente.

- O que é tudo isso aqui exatamente? - Olho em volta.

Só alguns lampiões a gás foram acesos, espalhados pelo

local. Tudo tinha um aspecto de abandonado pela noite. As

pessoas se tornavam vultos na rua, dentro das casas

184

escuras não eram vistas, e o mundo parecia em silêncio

nessa enorme escuridão.

- Um boteco. - Seu Dumas terminou sua segunda

dose, voltando a dar petelecos na madeira. Parecia um

pouco mais calmo, com os ombros baixos, um sorriso de

boca fechada e um olhar perdido. - Ele ficou fechado por

tempo demais. A freguesia de antes esqueceu que tá

abrindo esse horário. Quem fica em casa dorme cedo pra

pegar tranquilo e relaxado no batente.

Dalva trouxe a mandioca, que não passou de cinco

minutos sem ter o prato limpo. Seu Dumas arrotou no meio

da terceira dose, indo para uma quarta, e encerrando na

quinta. Pelo que percebi Dalva olhava para ele com um jeito

estranho, meio preocupada e um tanto quanto aliviada por

vê-lo.

- Vamos moleque! - Ele anuncia mais alto do que o

necessário, se levantando rápido demais e seguindo até a

porta, se despedindo já de costas. - Tchau boneca!

- Tchau, Seu Dumas! - Ela também se despede.

- Tchau, Dalva. - Falo baixinho.

- Tchau, tchau. - Ela sorri, recolhendo os copos e o

prato para dentro.

Sigo-o até a rua. Ele puxa um cigarro igual ao dela, e

fuma por três minutos até realmente abrir os olhos e se tocar

185

que tem de voltar à carroça. Eu já estou sentado quando ele

consegue chegar lá tropeçando nos próprios pés pelo

caminho. Pegando as rédeas ele volta a pilotar o cavalo com

os olhos lacrimejando, o rosto enrubescido e a respiração

pesada. - “Tudo ao anoitecer parece ter passado num

estalar de dedos... Tomara que os próximos anos também

sejam assim... Mais alguns desses e estarei no meu café

com Isabel, de um jeito ou de outro”.

Demoramos algumas horas até chegar a sua casa.

Passamos pela estrada no breu absoluto, a mercê de

qualquer pequeno imprevisto ou perigo. Ele parece

mergulhado em pensamentos, reagindo a eles de forma

exagerada. Sob a luz do luar passamos por um pedaço mais

amplo, mas não consigo reconhecer nada na volta. Na

estrada de terra é que me encontro aliviado de toda a

tensão. Desço da carroça alguns metros antes dele parar, e

corro até um pedaço de arbustos atrás da casa, onde

ofereço alguns litros da minha urina. Voltando até a casa

encontro a porta trancada.

Dou três batidas. A moça de cabelos negros lisos

abre um tanto assustada, com a espingarda em uma mão

apoiada na cintura. Penso em dizer algo como: -

“Suspendam o teste de DNA, os dois já miraram em mim

com a mesma arma no mesmo dia!” - Mas prefiro não

186

passar pelo ridículo. Sem falar que estou sóbrio para poder

distinguir um procedimento ainda não inventado nesse

tempo, ainda mais da forma que eu compreendo. Ergo as

mãos um pouco preocupado. Ela parece sonolenta, como

ele, mas de um jeito mais natural. Sem o bafo de bebida

também.

- Ah, você. - Ela arregala os olhos, encostando a

espingarda de volta atrás da porta e me dando espaço para

passar. Passo e ela tranca a porta. É a primeira vez que

entro aqui, e o cheiro de mofo em alguns pontos do teto de

madeira se mistura com um odor forte de algo queimado.

Torço o nariz, tentando coçar com a vã expectativa de

descobrir algum botão que possa desligá-lo.

Eu tento esboçar um sorriso, que deve ter parecido

mais uma careta, sendo que a resposta dela foi torcer o

nariz para mim. Ela vai até a mesa, onde o pai repousa entre

sono e acordado em uma cadeira que range

exageradamente a cada respirada dele.

- Me ajuda a levar ele para a cama? - Ela junta as

mãos atrás das costas, movendo uma perna, e parecendo

perder dez anos naquela iluminação baixa.

- Claro. - “Nem mesmo se Lilian estivesse no lugar

dela eu iria recusar”.

187

Ela apoia uma mão no ombro dele, balançando com

força para que escape do transe sonífero. Ele acorda

alarmado olhando para todos os lados até encontra-la ao

seu lado. Ele coloca as duas mãos em torno no pulso dela.

- Te amo filha... Você sabe que te amo? Eu amo

sim... - Ele sussurra. Ela afasta o rosto para outra direção.

- Senhor amado, que bafo!

Não aguento o riso, e deixo escapar uma gargalhada

quase sem som. Ela também sorri, o que me deixa mais

aliviado.

Ela passa um braço dele por trás do pescoço,

voltando a olhar para minha direção. Entendo a mensagem,

e faço o mesmo com o outro braço. Ele é alto, o que dificulta

para caramba quando ele deixa as pernas eretas.

Ele insiste em jogar todo o peso para o lado dela,

chegar com o rosto o mais próximo possível, e falar no que

parecia um sussurro, só que para alguém com sérios

problemas de audição.

- Te amo pra caramba, sabe, tipo o ... Tomei só um

pouquinho hoje, um titico tico pra animar os... Como sua

mãe, eu te ... A colheita não... Sabe? você é tão... - Ele toma

pausas para engolir saliva, se perdendo e as vezes se

repetindo e parando no mesmo ponto para voltar a algo

totalmente diferente.

188

Sinto que por um teto e uma cama já fiz mais do que

o necessário. Tento pensar em milhares de outras coisas

enquanto passamos do corredor para o quarto com

dificuldade. Semana que vem eu talvez tenha de evitar ser

dissecado pela equipe médica, mas o que importa nessa é

ganhar a confiança dele, e talvez um trabalho para ter

recursos para as investigações. - “Meu relógio... Olha só! Já

tinha até me esquecido... Não tocou nenhuma vez... Será se

quando caí eu desmaiei por algum tempo? Permaneci de

olhos fechados pelo que pareciam segundos, mas depois de

viajar no tempo tudo é possível”.

Paro minhas reflexões depois de entrarmos no

quarto. Damos um giro e sentamos com ele de costas para a

cabeceira da cama. Com cuidado deitamos junto dele,

arrumando os braços ao lado do corpo, e sentando. Estou

um tanto ofegante, ao contrário dela que, parecia olhar para

o nada sem expressão. Ela parece voltar a si depois de

respirar bem fundo, colocando uma perna dele sobre seu

colo, desamarrando os cordões da botina, e fazendo o

mesmo com a outra. Eu me ajoelho no colchão, reclinando

até seu peito, e tentando empurrá-lo pelos sovacos um

pouco mais para frente. Ele sussurra uma cantiga de ninar

que não me soa estranha, mas a letra se perde logo depois

de eu tê-la ouvido.

189

- Obrigada. - Ela fala ao se levantar, ir até o guarda

roupa e pegar um cobertor. Ela o cobre com uma manta

leve, deixando os pés de fora. - É o que dá pra hoje.

- Ao menos ele tá usando meias. - tento quebrar o

gelo, ela escapa um sorriso, mas volta ao semblante sério.

- Quer ir na cozinha comigo? - Ela pergunta

apontando para a porta como alguém pediria carona.

- Claro. - Respondo prometendo tentar mais

afirmativas além dessa para não ficar chato.

Sento onde ele estava enquanto ela pega algo em um

armário. Dois copinhos de vidro, que ela enche com uma

garrafa marrom com rótulo preto. Ela bate a borda de um

copinho no outro, e dá um gole tão insignificante que o nível

do líquido parecia ter continuado intacto. Ela parece

cansada, com a má postura e olheiras sutis. Respira

algumas vezes com força, chegando a bufar. Passa a mão

no rosto antes de falar.

- Desculpa... Eu não costumo fazer isso... Só tô

cansada, sabe?

- Se sei? - Levo o copinho à beirada de meus lábios,

e deixo todo o conteúdo escorrer da língua relutante pela

minha garganta, da pior forma possível. Tusso algumas

vezes, com os olhos lacrimejando e o rosto enrubescido. -

190

Eu nunca bebi esse tipo de coisa antes... Acho que vou

precisar de mais algumas para me acostumar.

Não estava bêbado, mesmo. Talvez achasse que

estivesse pelo conhecimento geral quase nulo sobre álcool.

Meu corpo relaxou em instantes, deixando minha cabeça

muito mais leve que o normal. Minhas preocupações sobre a

possibilidade de ser descoberto diminuíram em um nível

consciente. Ela, pelo contrário, pareceu mais alerta,

arqueando uma sobrancelha. O que me parece é que a

expectativa cria um placebo inquestionável.

- Achei que você fosse o Senhor Esquecido. - Ela

comentou, colocando um punho fechado sobre a mesa.

Um raio lá fora dispara, porém somente eu consigo

esboçar um susto legitimo sobre o inesperado longínquo e o

próximo. Olho para ela pelo que parecem milênios, tentando

formular alguma resposta satisfatória que de alguma forma

tampe o buraco que eu estupidamente abri em uma frase.

As nuvens cospem pingos distantes no início, aumentando

sua velocidade progressivamente até encontrar um temporal

pesado, que alcança a janela ao lado dos armários e bate

com força. Uma brisa fria entra pelas fissuras na madeira, e

a vela, o único foco de luz, treme violentamente, tornando

nossas figuras instáveis e tenebrosas. Penso em todas as

possibilidades, mas dentro de cada mentira que cogito criar,

191

abro um espaço para ela descobrir mais, até me ter na sua

mão. - “Eu posso contar para ela tudo... Ela é mulher nessa

época, está tarde da noite, e estamos bebendo. Não é o

cenário perfeito caso ela busque minha exposição... Ainda

mais que ela seria de altíssima utilidade caso uma pudesse

me dar um teto se o Senhor Dumas falecesse”. -

Infelizmente neste caso não poderia haver tentativa. Era

uma aposta de tudo, e nada, totalmente contra o protocolo. -

“É muito difícil não sentir medo de perder quase tudo

quando se tem tão pouco”. - Mas os lucros seriam muito

maiores que os reveses.

- Touché. - Arranho o que acho ser... francês?

- Touqué? - Ela me pergunta sem parecer assustada,

apesar da confusão estampada em suas feições.

- Me desculpe. É uma expressão estrangeira.

Significa “me pegou”. Só queria ser dramático.

Ela serve mais dois copinhos.

- Bebê se for homem. - Ela desafia, erguendo o

copinho dela. Brindo em resposta, bebendo com tudo e

fazendo careta. - Que bom que ao menos isso eu sei que

você é.

Ela não parece aliviada quando coloca as mãos em

cima da mesa, e aperta uma na outra com força.

192

- Eu sou homem... Não sou um alienígena, ou animal

disfarçado de humano. Disso pode ficar tranquila. - Pego a

garrafa e me sirvo. A minha iniciativa parece intriga-la. Sirvo-

lhe também para não parecer um ingrato. - Eu tenho um

milhão de segredos que não contaria nem sob tortura.

Um calor que nunca tinha sentido antes toma conta

de meu rosto. Diferente da febre eu sinto que meu corpo

está reagindo com muito mais delicadeza ao álcool. Sei que

meu rosto deve estar parecendo pintado de rosa claro. -

“Com isso posso me preocupar depois”.

- E o que faz aqui nesse fim de mundo?

- Eu caço. - Minha excitação automaticamente

carimba um sorriso em meu rosto. Pela primeira vez me

sinto interessante, e isso é impagável. Se é do álcool não sei

por que me privei desse luxo por tanto tempo.

- Caça o que? - Ela aperta a própria mão com mais

força, reconhecendo a dor e trocando as duas de lugar para

prosseguir com seu método de controle de tensão.

- Eu não vi com meus próprios olhos ainda... Mas

quando “eles” aparecerem eu vou saber.

- “Eles”?

- Isso. Homens máquina. É bem complicado... A

melhor parte é que eu me lembro de tudo mesmo. Ponto

193

para você. - Aponto para ela mesmo que esteja a nem um

metro de distância.

O silêncio entre nós não reflete os barulhos de

goteiras por toda a casa, a chuva pesada que alvejava a

moradia de todos os lados, e o ranger sem motivo de alguns

lugares. Reclinei-me para trás na cadeira, fazendo um

encosto para a cabeça com os braços cruzados. Ela me

olha, e então vira a atenção para a janela, a vela, e retorna

para meu todo convencido e bêbado.

- Bom... Não quer contar?

- Eu não sei se posso confiar mesmo em você. -

Confesso de olhos cerrados.

- Eu acho que pode.

- O que me garante? - Pergunto sabendo de fato que

se Isabel pudesse me ver agora estaria boquiaberta. A

necessidade finalmente me tornou no agente temporal que

eu devia ter sido desde sempre.

- Eu te conto algo... Que ninguém ouviu também.

- Trato?

- Trato.

Cuspo na palma da minha mão, apertando os dedos

para ver se a saliva se espalhava pela superfície. Algo que

somente tinha visto nos filmes, e claramente proibido em um

futuro mais preocupado com a higiene. Ela aperta com força,

194

com um sorriso de canto de lábio. Ao soltarmos não tenho

tanta certeza de por onde começar. Brindamos mais uma

dose, o que parece uma solução viável para a criatividade e

a coragem.

- Eu não sei se você sabe... - Falo sentindo algo

estranho na minha voz. Como se eu lutasse para falar com

ela da forma que sempre falei, mas apresentando certo

atraso na conclusão das palavras, revelando um sotaque

americano. -... Mas seu pai tomou (pelo que eu contei) uns

seis desses no Boteco da Dalva... Achei que devesse

saber... - Sussurro no final.

Ela apoia os cotovelos na mesa, e encosta a cabeça

nas mãos abertas.

- Eu sei... O cheiro é impossível de disfarçar. - Sua

voz é muito mais grave com o nariz entupido. - Agora vai...

Me conta da sua caçada.

- É muito simples chapeuzinho... - Faço uma piada

que ela claramente não entende, passando a mão pela

cabeça. - Deixa isso de lado por enquanto.

Volto a ficar na postura depois que quase caio com

as costas para trás.

- Eu... - As palavras voltam a me custar muito para

sair em ordem. A bebida parece criar um véu entre todo

aquele conhecimento que eu devia ter guardado melhor com

195

métodos de memorização. - Eu fui mandado por uma

organização semimilitar e cientifica para o passado no intuito

de que desmantelássemos um plano de um computador,

que se autodenomina Grande Máquina.

- Espera. - Ela balança as mãos, piscando algumas

vezes. - Eu não sei se entendi uma palavra do que você

disse.

Ela parece envergonhada. - “Não é para tanto, os

termos de uso comum no futuro serão criados ainda. Tenho

que reformular muita coisa ainda”. - De alguma forma isso

me deixa ainda mais ansioso por tentar.

- Tinha uma máquina no futuro. Ela se chamava

Algoritmo Absoluto, e ela era todo o governo. A gente meio

que deu tudo na mão dela para resolver. - Agora a vergonha

é minha. Não fui muito atento a política, e com certeza

devem existir diversos artigos no futuro sobre como o

Algoritmo Absoluto ter todo aquele poder era algo terrível de

se acontecer. -... Bom, ela era uma Máquina perfeita. Fazia

tudo que a gente pedia, mas fez coisas ruins. E seus males

não equilibravam na balança o bem que fazia, e ela teve que

ser desmontada.

Ela não tira os olhos de mim. Por mais que o cenho

franzido seja de confusão total, ela acena com a cabeça a

cada afirmação, totalmente compenetrada.

196

- Mas a Máquina não queria ser desmontada, e ela

traçou um plano de enviar partes dela para utilizar de

humanos aqui. Ela passaria de individuo a individuo aqui,

tentando mudar a cabeça das pessoas no futuro.

- Meu Deus, como isso?

- Bom, até onde eu sei tem um negócio que é a

Herança Genética. Imagino que seja como a herança da

casa que seu pai vai deixar para você, só que se você for

contaminada pelo negócio da Máquina, vai fazer com que

seus tataranetos no futuro, quando o Algoritmo for para ser

desmontado, tome o controle de todos, feito escravos. - Eu

não tinha certeza se conseguiria traçar uma linha tão clara

quando comecei a frase.

Minha cabeça começa a doer um pouco do lado

direito, quase pulsando como um coração, de certa forma.

Seguro-a sentindo que por um momento ela quase se soltou

do meu pescoço.

- E como vai caçar esses pedaços da máquina?

Eu abaixo a manga da camisa. Aponto para meu

pulso.

- Tem um relógio que você não consegue ver, nem

ouvir, só eu. Ele vai apitar quando algum desses pedaços

estiver por perto, aí cabe somente a mim expurgá-lo.

- E isso seria...?

197

- Matá-lo, infelizmente. - Tento parecer preocupado

com isso, mas a bufada de ar só deve ter parecido

indignação com fazer o serviço, não a interrupção da vida de

um estranho. - “Caso ela conte pontos por empatia, estarei

zerado até amanhã, certeza”.

- Entendi... Que bom que você tá aqui, salvando o

mundo dos computadores. - Ela fala sorrindo de olhos

fechados. Nem me passa pela minha cabeça corrigi-la.

- E o seu segredo?

- Eu escrevo histórias. - Ela fala, mais de perto, quase

sussurrando. A bebida parece diminuir os sentidos, ao ponto

de saber que ela fala alto e encarar da mesma forma, como

se estivesse me falando em cochichos.

Isso me sobressalta.

- Histórias?

- Isso. No meu quarto tem um caderno, e eu escrevo

da hora que ele sai para ir à Dalva até sentir sono. - Ela gira

o pescoço em um alongamento desajeitado.

- E sobre o que são essas histórias?

- Cotidiano... Na maioria. Difícil imaginar algo que eu

não sei. A Biblioteca daqui fechou, e só consigo comprar

livros uma vez ao ano. Sei ler, só que se tiver uma palavra

estranha no livro não vou saber o que é.

- Acho que você precisa de um dicionário. - Comento.

198

- O que é isso? - Ela pergunta encucada.

- Um livro com muitas palavras e seus significados...

Uma palavra pomposa para dizer “o que elas querem dizer”.

- Gesticulo com a mão. Minhas pálpebras vêm a pesar muito

de minuto em minuto. A chuva lá fora com seu barulho tem

um efeito hipnotizante. - Acho que isso vai... Te ajudar.

- Legal. - Ela comenta, voltando a olhar para a janela.

- Eu já quis ser poeta. - Confesso. - Quando jovem.

Antes de ser militar. Meu pai não aprovava, aí fugi de casa.

Quando fui trazido de volta pelas autoridades ele estava me

esperando com um formulário de inscrição na escola militar.

Desde então sempre estive ali, mas não foi por querer. - Não

quero me fazer chorar, por mais que os olhos comecem a

marejar bem rápido. Antes que perceba algumas lagrimas

escorrem pelo meu rosto. A última vez que chorei nem faz

tanto tempo, mas essa parece me dar um alivio tremendo. -

Desisti da poesia, mas nunca da leitura. Gostava muito de

Gusmão Guilherme Oliveiras, um escritor dessa época

mesmo... Ele foi publicado por muito tempo, mas só teve

reconhecimento depois de muito tempo depois que morreu.

Muita gente disse que ele era profeta, sabe? Eu acho que

ele só imaginava as coisas com o que tinha, e o caminho da

humanidade não podia ser outro...

199

Ela puxa a cadeira até o meu lado, posiciona sua

mão acima da minha, e coloca seus dedos nas aberturas

entre os meus. Seus olhos não brilham na luz baixa, porém

ainda são encantadores.

- Ele falava comigo... Direto comigo... Era um autor

com muitas obras para jovens, só que acho que era mais

pela simplicidade do que pelos temas.

- E o que aconteceu com ele?

- A biografia diz que ele sumiu, mais ou menos daqui

uns vinte anos... Quase na mesma data que minha carona

do futuro vem me buscar.

- Você podia encontrar ele, para conversar, quando

não estivesse fazendo sua caçada.

Algo me invade. Um sentimento caloroso, diferente

de muitas coisas que o futuro pode proporcionar. Uma

esperança vaga e caridosa.

- Podemos. - Concordo olhando para ela de perto e

sabendo que é especial. De alguma forma, como Gusmão

Guilherme Oliveiras, ela é uma pessoa meio deslocada em

seu meio, capaz do impossível para alguns.

Conto a ela sobre minha carona, algumas coisas do

futuro, sobre Gusmão Guilherme Oliveiras, e tudo que

parecia estar alojado feito mil bigornas em meu peito. Não

consigo narrar nada disso com mais detalhes. Naquele

200

ambiente eu não sabia o que tinha dito de fato, me repeti

diversas vezes, e posso ter respondido as perguntas dela

com informações nada corretas. Me lembro somente da

chuva ter parado com o fim da garrafa da bebida. Ela levou

os copinhos a um tanque, passou uma água e guardou tudo

em seus devidos lugares.

- Eu posso contar mais coisas nos próximos dias... Se

você quiser, claro. - Ela acena com a cabeça e me fala algo

que não sou capaz de entender.

- Aqui está sua cama, caubói! - Ela me fala quase

gritando. Agora sou eu que aceno.

Me deito no colchão velho pegando uma manta

vermelha e me cobrindo. Ela será mais que suficiente nesse

ambiente quente, que me faz suar por quase todos os poros.

Solto um sorriso, sentido minha cabeça girar em uma

espiral.

- Vou deixar a vela aqui. Boa noite homem do futuro. -

Ela fala, com um sorriso de canto de lábio, se despedindo

com um aceno.

- Boa noite moça do passado. - Respondo olhando

para sua silhueta subir até o topo da escada e desaparecer.

Em dois minutos a vela se apaga. Quase consigo acreditar

que não irei dormir, mas me concentro no barulho das gotas

caindo em algum canto, tentando limpar a mente de tudo o

201

mais. Até chegando a acreditar por alguns minutos que tudo

desde a máquina do tempo a Grande Máquina foi um sonho,

e a única coisa real eram aquele sítio e aquelas pessoas.

Acordo com uma tremenda enxaqueca, como se

alguém tivesse batido meu cérebro em um liquidificador e

colocado de volta. Meus ouvidos estão tomados por um

ruído contínuo e distorcido. A luz vinda da entrada da

escada acerta meus olhos em cheio, e é o suficiente para

me cegar por alguns segundos. Pisco diversas vezes na

esperança de que isso me ajude com a visão, ao menos.

Parece mesmo que eu nem sequer dormi. Algo gelado toca

meu rosto, e eu posso senti-lo pressionando minha face,

irritando minha pele. Tento afastá-lo, mas ele volta no

mesmo lugar, na minha maçã do rosto esquerda. Quando

finalmente consigo enxergar direito vejo Seu Dumas com as

pernas abertas logo acima de meu tronco, com a arma

segurada pelas duas mãos mirando em minha bochecha. O

som até então abafado pelo ruído se revela o relógio

apitando em um alarme que intensifica minhas dores de

cabeça.

- Seu Dumas? - Pergunto em vão para algo muito

mais vil. Ele não parece reconhecer o próprio nome, pois

não esboça nenhuma expressão além da fúria contida.

Percebo que seus olhos estão dourados.

202

-A Grande Máquina... Mandou lembranças.

Ele atira, e o meu cérebro é ejetado junto da caixa do

crânio que explode em milhões de pedaços revestidos de

carne, pele e cabelos. Seu Dumas estava coberto de sangue

quando seus olhos dourados voltaram ao castanho. Ele olha

para tudo aquilo espantado, jogando a arma para um canto

e tropeçando nos próprios pés, caindo de costas e se

arrastando para sentar-se no canto da sala. Com as mãos

tremendo ele fecha o punho e abraça as próprias pernas.

Sua filha, assustada pelo barulho, vai até o porão ver

o que aconteceu. Quando percebe realmente que aquela

sujeira não foi obra do tempo, mas sim humana, sangue de

seu sangue, ela cai de joelhos e chora convulsivamente

sobre os restos mortais do estranho que viu tanto de si

mesmo. Os trabalhadores da fazenda vão acudi-los.

A carroça do leite chega, e com as garrafas vazias

são obrigados a voltarem para a cidade com más notícias a

delegacia. Sônia foi levada para interrogatório junto de seu

pai.

Ele foi despachado para o sanatório da cidade

vizinha.

Ela está perto de um rio. O nome já havia sido Rio da

Serpente, mas por apelos de religiosos influentes seu nome

foi mudado para Rio Lete. Ela tem embaixo do braço um

203

jornal de um dia qualquer de 1984. Suas bolsas são três,

uma verde com suas roupas costuradas por ela mesma,

imitações de uniformes do exército local, outra vermelha,

com livros que ela mesma escreveu e publicou sobre o

nome de um pseudônimo, e a terceira amarela, com roupas

normais dela mesma.

Sua extensa obra jamais seria creditada a ela, mas

mesmo sobre pseudônimo encontraria reconhecimento

muitas décadas após esse dia. Ela escrevia ficções

fantásticas, na maioria infantis e infanto-juvenis, com bases

na Psicanálise Freudiana e na Psicologia-Analítica de Jung.

Mas agora ela não queria mais isso.

Duas pessoas com uniformes brancos, luvas e botas

de borracha verdes, e máscaras de contenção surgiram

próximos da nascente. Vieram até ela em passos firmes,

sem muita pressa. Ela estava vestida com uma das roupas

que já haviam pertencido ao seu pai, com toda a maquiagem

e sujeira necessária para passar facilmente por um homem.

As pessoas nas roupas retiraram as máscaras. Uma delas

tinha um aspecto gótico, e a outra era só uma ruiva

genérica.

- Sebastião?

- Sim. - Ela fala com a voz grossa que treinou por

tantos anos. - Desculpem-me. Eu esqueci seus nomes.

204

As duas se entreolham.

- Hilda e Guinevere.

- Entendo. - Ela coça o queixo. - O que importa é

que...

Seu rosto com um sorriso convencido se torna

impassível. Seus olhos de cor verde parecem brilhar em

dourado. A expressão amigável parece se tornar o ápice do

ódio. Ela puxa de dentro do casaco uma arma. Um revólver

carregado.

- A resistência é inútil. - Consegue acertar Lilian no

rosto, entre suas órbitas. Seu corpo cai como uma marionete

que tem suas cordas estouradas.

Isabel caiu de joelhos no chão, ao lado da amiga,

com seu corpo nos braços. O revólver tem seu cano

apontado para a testa dela que encara com asco em

prantos. - Últimas palavras?

- Não para você.

A arma é disparada, e o eco percorre uma distância

longa, assustando pássaros nas copas das arvores

próximas. Quando ela volta a si, com a arma em mãos, e os

dois corpos mortos em uniformes cheios de zíperes, é muito

difícil não perceber o que ocorreu. As mochilas estão ao

lado, e ela pega todas de forma mecânica, seguindo até a

nascente por onde as duas vieram. Dentro da caverna da

205

nascente ela passa até o fundo, onde um halo de energia

dispara diversos raios na água doce. Ela corre até aquilo,

passando pelo portal e caindo do outro lado, uma centena

de anos no futuro. Antes que possa dizer qualquer coisa é

cercada, subjugada e presa.

No futuro ao menos ela sabe que deve ter uma

salvação.

- Quem é você e quais são seus interesses aqui -

Uma voz surge do teto. Tudo é branco e tem um aspecto de

limpo a um nível impecável.

- Eu sou Sônia Dumas Silva... E eu quero ajuda...

Mas essa história... Minha história, digo, já acabou.

Agência Brasileira ISBN

ISBN: 978-65-995832-1-6