Boca de luar - Carlos Drummond de Andrade.pdf

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CARLOSDRUMMONDDEANDRADEBOCADELUAR

POSFÁCIO

FranciscoBosco

Sumário

VisitantenoturnoAcompanhiaindesejávelBelanoitadaAestranha(eeficiente)linguagemdosnamoradosAconteceuemLondresMilhocozidoOcarro,ajardineira,acalçadaTemcadaumanavidaUmcão,outrocãoIlhasdeMinas,novoodaspalavrasBocadeluarCasamentoDepoisdaquartadoseFilósofoMúsicanotáxiOVelhoSermãodaplanície(paranãoserescutado)TrezenailhaJosé,doMucuriMandulaMarietaOratoeocanárioDiálogodospessimistasAgorapenseiemRosaComlicença:abarataAquelamanhãedepoisDeclaraçõesàcolegialqueveioentrevistar-meArteecasamentoAsecretáriamecontouElesnuncamaisforamvistosGovernadoreleitoAleidoverãoBobeodicionário

CartadeamorNãofaçamaisisso,donaOcaminhodaluzCoisaslembradasAmanhãdoDiadoPoetaAmizadenomorroAmoçaemMarajóAmoçadisse:altolá!Emida,emadaApranchaNãosepagamaisnadaOcozinheiroOVIPsemquererOfrívolocronistaOreformistaemcasaParticipaçãodecasamentoProfissão:banqueiroÚltimoatoNotadaediçãoPosfácioAofim,nomeiodocaminhodaescrita,FRANCISCOBOSCO

LeiturasrecomendadasCronologia

BOCADELUAR

—Vocêtembocadeluar,disseorapazparaanamorada,eanamoradariu,perguntouaorapazqueespéciedebocaéessa,orapazrespondeuqueéumabocatodaenluarada,dedentesmuitoalvoseleitosos,entende?

VISITANTENOTURNO

O inseto apareceu sobre a mesa como todos os insetos: sem se fazeranunciar.Esemqueseatinasseporquemotivoescolheraaquelepouso.Nãopareciabichodanoite,dessesquenãopodemver lâmpadaacesa,e logoseaproximam, fascinados.Erauma coisinha insignificante, encolhida sobre opapelealidisposta,aparentemente,apassarorestodesuavidamínima,semexplicação,semsentidoparaninguém.Ninguém?Ohomem,quetemohábitodeficaraltashorasentrepapéise

livros,sentiu-lheapresençaepensouimediatamenteemesmagarointruso.Chegouamoveramão.Nãoomatariacomosdedos,mascomoutrafolhadepapel.Deteve-se.Nãoseriahumanoliquidaraquelebichinhosóporqueestavaem

lugar indevido, sem fazer mal nenhum. Inseto nocivo? Talvez. Mas suaignorânciaementomologianãolhedavachancededecidirentreasegurançae a injustiça. E na dúvida, eramelhor deixar viver aquilo, que nem nometinhaparaele.Comquedireitoaplicariapenademorteaumdesconhecidoinfinitamente desprovido de meios sequer para reagir, quanto mais paraexplicar-se?O inseto parecia pouco ligar para ele, juiz autonomeado e algoz em

perspectiva. Dormia ou modorrava sobre a mesa literária, indiferente,simplesmente.Chegaraporacaso, sumiriadaíapouco;deixá-loviveraseumodo, que era um viver anônimo, desligado de inquietações humanas,invariáveldentrodanatureza:curtoepobre.Umaternuraimprevistabrotounohomempeloanimálculoquemomentos

antespensaraemdestruir.Comosealguémviessedelongeparavê-lo,fazer-lhecompanhia,emsuanoitedetrabalho.Nãoconversava,nãoincomodava,eraumaquestãoapenasdeestaràsuafrente,imóvel,emsecretacomunhão.Ele fora o escolhido de um inseto, que poderia ter voado para outroapartamento,ondehouvesseoutravigíliadeescrevedordecoisas,masaquelaforaacasadesuapreferência.Amenosqueoacasodeterminasseaqueleencontro.Erapossível.Oinseto

voaraaesmo.Ohomemquisaferrar-seaestahipótese,bemplausível.Jáseenvergonhava de ter envolvido o estranho numa aura de sensibilidade, etalvez voltasse ao impulso inicial de eliminação.A essa altura, espantou-se

com a mobilidade de suas reações. Passava de verdugo a sentimentalão,depois a observador cético e crítico, finalmente perdia-se na confusão dasváriasatitudesquepodemosassumirdiantedeuminsetoinstaladonamesadeumescritório,aumahoraqueaindanãoémadrugadamasjáénoitealtaedesonoprofundo.Aquietou-se,afinal,nacontemplaçãodo“bichodaterratãopequeno”.Era

algumacoisaparecidacomumbotãomarromrombudo,quetivesseolhoseumprojetodeasas—osuficienteparadeslocar-senoespaçoemaventurasbreves. Enão erauma aventura simples: a altura do edifício exigia esforçogrande para chegar da árvore até o décimo primeiro andar. Entretanto, obotão vivo o fizera, e ali estava, tranquilo ou cansado, àmercê do giganteindeciso, que procurava entender, não propriamente sua presença, mas aturbaçãoíntimaqueessapresençadespertavanogigante.O homem não pensou em recorrer às enciclopédias para identificar o

visitante. Ainda que chegasse a identificá-lo como espécie, não avançariamuito no conhecimento do indivíduo, que era único por ser entre todos oqueovisitava.Enamultidãodeinsetos,imagináveiseinimagináveis,sólheinteressava aquele, companheiro noturno vindo de não se sabe onde, acaminhodeignoradorumo.Já não escrevia. Olhava. Mirava. Sentia-se também olhado e mirado,

quandooinsetofezligeiromovimentoqueocolocoudiretamentesobofocodeluz.Seriaexageroencontrarexpressãonaquelesdoispontinhosnegrosereluzentes,maso fatoéquedelespareciavirparaosolhosdohomemumsinaldeatençãooucuriosidade.Eosdois,homeme inseto, assim ficaramlongotempo,namudainspeção,ouconversa,quenãoconduziaanada.A nada?Muitas conversas entre homens também não levam a resultado

algum,mashá sempre a esperançadeumentendimentoquepode vir daspalavrasoudeuma trocadesprevenidadeolhares.Eoolharpodepenetrarmais fundo que as palavras. O homem sabia disto. Mas aí notou que,sabendo falar alguma coisa, não era perito em ver diretamente o real. Afigura do inseto dizia-lhe pouco.Dos dois, talvez fosse ele, homem, o quemenoshabilitadoseachavaparaumaformadecomunicação,aquém—oualém—doscódigostradicionais.Distraiu-seavaliandoessaslimitaçõese,aovoltaràobservaçãodovisitante,

estehaviadesaparecido,decepcionadotalvezcomaincomunicabilidadedosgigantes. Não é todas as noites que um inseto nos visita. E, se consegueinsinuar-nos alguma coisa, esta nunca jamais foi captada para os homens

que merecem crédito; só os ficcionistas é que costumam registrá-la, masquemlevaasérioficcionistas?

ACOMPANHIAINDESEJÁVEL

A moça é daquelas que dão duro no trabalho, como chefe de órgãoimportante, e depois vão para casa cuidar de si mesmas. Chamemo-laAndreia. Vive só, o que émais inteligente do que viver comum apêndiceimportuno.Semempregada,tendoapenasfaxineira,cuidapessoalmentedesuadieta-da-lua,desuasroupas,desuascontas,desuamúsica,deseutudo.E ao apagar a luz, finda a jornada cheia de responsabilidades para com apátria e a vida, seu sono é o dapurezade alma.Quebomviver só, semapresença do Outro, o terrível Outro, que é sempre (ou quase) um Eurabugentoouchatíssimo!Semana passada, Andreia acordou disposta como sempre a lutar, e foi

tomarseuchazinho-de-jasmim.Amesa,arranjadadevéspera,eraprimordeordemeasseio,dequeamoçafazquestão:umdeseustraçospessoais.EqueviuAndreia,alémdaxícara,dosapetrechos,dalatinhadechá,datoalha,dosfinosbiscoitos?Viuquealguémpassaraporalietomaracháantesdela!Quetomarachá,propriamente,não,masqueusaraamesaedeixarasinais,

eraevidente.Ascoisasestavamdesarrumadas,acolher forade lugar,haviarugas na toalha, um biscoito fora trincado, e até, para horror de Andreia,pequenaeestranhasubstânciasedepositarasobreamesa!Amoçacorreuàsportas,asocialeadeserviço,eachou-astrancadascomo

asdeixara.Pelavarandafechadanãopoderia terentradoninguém.Quesermisteriosoconspurcaraasuamesa?Mal indagouistoasimesma,viuumaformavelozdeslizarpelotapeteeesconder-seatrásdeumapoltrona.Eessacoisa chispante, branco acinzentada, era um camundongo. Ir correndo àcopa, brandir uma vassoura e atacar o bichinho foi obra deummomento.Emvão,éclaro.Nãohácamundongoquesedeixepegarpormoçanervosaedemápontaria.OtempodeAndreiaeracurto,nãodavaparaempreendercaçadaemregra,

com o auxílio do gato do porteiro; ela deixou o apartamento e foi muitoabaladaparaoserviço.DelátelefonouparaaComlurb,pedindoquefossempegaroratoemsuacasa.Marcadaavisitaparaodiaseguinte,Andreiafaltouao trabalho para atender ao matador de ratos, que apareceu com a suainstrumentália, viu, não achou sinal de rato nenhum e pediu maioresesclarecimentos:

—Asenhorapodemedizerotamanhodele?— Vi só um momentinho, acho que tem uns noventa milímetros de

comprimentoeoutrostantosderabo.Ohomemsorriu:—Ah,entãooqueasenhoraviufoiumcamundongo.—Quediferençafaz?Eleróidamesmamaneiraeeumesintoameaçada.—Adiferençaéquenóssócuidamosderatos,dessesratõesouratazanas,

quemedemvintecentímetrosdecomprimentoepoucomenosderabo.Esseratinhodasenhoraécafé-pequenopranós.Jáexperimentouratoeira?—Oporteiromeemprestouuma,queatéagoranãopegounada.— Vai ver que o danadinho sentiu cheiro de ratoeira usada, que não

engana,enãofoibestadearriscar.Elestêmumfaro!Compreumaratoeiranobazar.— É o que vou fazer já. E se ela não pegar? Se o ratinho for bastante

inteligenteparaperceberqueaquiloédemorte?— Bem, nunca se pode garantir nada a respeito do comportamento dos

camundongos.Eumesmojá luteicontraeles láemcasa,epegavauns trêspor dia.Mas sabe o que aconteceu? Ficava sempre uma fêmea para parircincovezesporanoumamédiadeoitoadezfilhotesdecadavez.—Oquê?—Andreiateveomaiorarregalodeolhosdesuavida.—Eeu

vouteremcasaessacambadatodainfernizandoaminhavida?—Calma.Nãoestoudizendoqueoseucamundongo…—Meu,não!—Queocamundongodestacasasemultiplique.Seéumsó,comoéque

vai se multiplicar? Procure manter a serenidade, nem eu vim aqui paraassustarmaisasenhora.Vimemmissãodepaz.—Eentão?—Então,achoquetenhoumasoluçãoparaoseucaso.—Diga,diga.—Temumpreparadoaíquedizemqueéumbarato.Eunãoexperimentei,

masumamigomeuafiançouqueétiroequeda.OnomeéCatitoline.Nãosabequeopovochamacamundongodecatito?Poisé.—Ah,obrigadapelaindicação!VourezarparaqueessetaldeCatitolinedê

certo.Bem,meesquecidequenãorezo,masDeuségrande.Oqueeunãoposso é viver em companhia de um ratinho, emuitomenos se ele for defamílianumerosa.Pelotelefone,Andreiacomprouimediatamenteoraticida.

—Agoravamosàluta—exclamoucomvozdecombate.Pegou da bula, que era vasta, alastrada em duas páginas de tipomiúdo,

com ilustrações. Sem tempo a perder, procurou o essencial; dosagem, ecomoprepararaisca.Espalhoupelacasa,doquartodedormiratéaáreadeserviço, as pequenas porções de pó róseo impregnadas em pedacinhos defolhasdechicória—ah,esperança!ah,incerteza!porqueAndreiaconfiavaedescriaaomesmotempo.Suacabeçanãosossegava,comopensamentodejánãomorarsó,deterumacompanhiaqueelanãoconvidaranemdesejava—a mísera, assustadora, incontrolável companhia de um ratinho mais oumenosinvisível.Suas noites eram povoadas de ratinhos que bailavam sobre a escova de

dentesouseescondiamnosutiã.Despencavam-sedolustre,embrincadeiraperversa,indocairdentrodoschinelos.Eaténochuveiroelessemostravam,envolvidosemágua.Andreiatinhamedodedormir;passouaterpesadelosacordada.Umdia,abriuolivrodeManuelBandeira,poetadesuadevoção,eum camundongo saltou do interior, entre duas folhas. Será que Catitolineresolve?Andreia lera, afobada, que era preciso insistir de quatro a seis dias na

aplicação;sefosseocaso,atédez.Pelamanhã,passavaemrevistaasporções,que diminuíam de tamanho. O ratinho cevava-se. Andreia, ao renovar asiscas,chegouapensarque,nofundo,estavacriandoealimentandoumrato,emvezdeexterminá-lo.Erapreciso terpaciênciaepersistência.Nodiaemquenenhumafolhadechicóriaaparecessemexida,aguerraestariaganha.Oratinhocontinuavacirculandopeloapartamento,circulandoecomendo.

Foramdiaspenososde incerteza,quandoquemmenosounada comia eraAndreia, receosa de que, depois da refeição de Catitoline, o danado fossedegustarsobremesadequeijo,namesadejantar.Todososlugares,móveis,vasilhaseutensíliosdacasaestavamsobsuspeita.Poluídos?Nãopoluídos?Quemsabe!Nadúvida,tocavaomínimopossívelnosobjetos.Comapontadosdedos.As amigas, a quemAndreia contara o problema, indagavam da evolução

dos acontecimentos. Aconselhavam dobrar, triplicar a dose de Catitoline.Fazer novena para santa Ludvígia, protetora contra animais daninhos.Recorrer àmacumba doMorro dosCabritos. Contratar um segurança quepermanecesse indormido no interior do apartamento. Apelar para opresidenteFigueiredo,porquenão?Tãofértil,aimaginaçãodaspessoas!—Comoé:oratãoestáengordandocomasmordomias?—telefonouum

amigo,eAndreiadesligou,indignada.Ébrincadeiraquesefaça?Pouco a pouco, as iscas foram se mostrando intactas. Assim ficaram

durante cinco dias. Tempo bastante para Andreia confiar no veredicto dasamigas:—Esse,nuncamais.Podecrer.Nenhuma notícia do ratinho. Procura-que-procura em toda parte,

esconderijo,ângulo,nada.Comopodiadesaparecerassim?Porqueocadávernão ficara exposto, certificante? Afinal, um rato é um rato, não umaabstração.De qualquer maneira, Andreia dedicou um pensamento de gratidão ao

Catitoline, veneno milagroso e sutil, lento e misterioso. Leu comaprazimentoabula,antespercorridaderelance.Acuriosidadeaincitava:Porquemotivoocadáverdesaparecera?Abulainformou-lhequeoratinhonãoapodrecianemcheiravamalporque

se recolhera ao lugar de origem e aí quedara morto, mumificado. É dasexcelênciasdeCatitoline:fulminaeimpedeomaucheiro.— Mas que é que ele tem de especial para fazer a mumificação? Que

substânciagostosaéessa,quemantémaguladoratinhodurantetantosdias,semprovocar-lhecólicaseatéoincitandoacomermais?Abula,copiosaeilustrada,respondeu,emexataspalavras,queoelemento

químicoresponsávelpelamorteepelaconversãodocamundongoemmúmiainodora era segredo de fabricação, protegido pelas leis de propriedadeindustrial,mantidonosúltimosquinzeanospelamultinacionalproprietáriada fórmula, bolada por eminente cientista holandês, especializado emraticídio.Quantoaosabordacomida,abulariuenãoescondeu:— Ora, o ratinho não é levado pela fome, mas pelo desejo sexual. A

substânciaempregadaproporciona-lhegrandeprazereatémesmoorgasmo.O camundongo morre feliz, depois de uma temporada erótica da maiorintensidade.Nãoéoalimentoquemoveosbichosetantossereshumanos;éosexo.—Vivendoeaprendendo—concluiuAndreia,voltandoàpazeàventura

de morar sozinha. O que — acrescente-se — não é sinônimo de viversozinha.

BELANOITADA

I

FoiumjantarmemoráveloqueocasalGelsêmiumSempervírensofereceusexta-feirapassada,emsuamansãodaGávea,aopríncipeCocúlusÍndicus.Memorável por tudo, a começar pela presença do que demais fino tem asociedadecarioca,desdeosr.AgraphisNútans,queacabadetrocarohábitodemonge daOrdem daÁctea Racamosa pela pasta de executivo da BóraxVeneta(suaexperiênciareligiosa,comosecomentava,durounadamenosdecincoanos)atéamagníficasra.VerátrumÁlbum,marechaladeelegâncianacortedeBruxelas.Entre cinquenta outros convidados, desfilaramChelidôniumMájus e seu

novopar,asra.LachésisMútus,obachelorRanúnculusBulbósus,asirmãsPulsatilla(RhusvaidirigirumcursodemeditaçãoultrassensorialemRiodasOstras, para quinze privilegiados), o deputado pedessista KallinusBichrômicum,adiretoradaHéparSúlfur,sra.NátrumMuriáticum,radiantepor haver firmado contrato com o governo iraniano para fornecer dezmilhõesdetoneladasdechocolatehifrargírico(ohockydra,desuafábricaemDrosesa de Sul), o artista gráfico e ator de TV Sembúcus Nigra, os casaisSpigéliaAnthelmia,ThúyaOccidentális,PedéphillumPeltátum.Eoutros.O príncipe Sempervírens, em uma de suas melhores noites, depois de

submeter-seàmaratonadefestasemsuahonra,demonstroumaisumavezque para ele não há segredos na arte de devassar substâncias espessas:adivinhouoqueasra.UrticaÚrenstrazianointeriordeumcamafeu,nadamenosqueuma inscriçãoemlínguasilícea,destinadaaafugentarenergiasnegativas, substituindo-as por positivas. Deste camafeu só existem trêsexemplaresnomundo.Sempervírensnãosó identificouapeçacomo leuotextomágico.Os assuntos que animaram a reunião foram variadíssimos. A situação

política foi considerada tranquila, uma vez que a candidatura do ex-governador EupátrumPerfoliátum à presidência é a que apresentamelhorperfil para o cargo, nos termos prefixados, e, contando com a simpatiapopular,dispensanãosóaeleiçãodiretacomoatéaindireta:elepodejáserconsiderado o Pré da República. A seu lado, o deputado Férrum

Phosphoricum recebia cumprimentos; é quase certo que será o futuroministro da Justiça. O do Planejamento será possivelmente AzáricusMuscárius,senão forAntimôniusCrúdum, tambémpresentese fartosemsorrisos.China Sempervírens, a anfitriã, esplendia num vestido plúmbios

metállicum, assinado por Spôngia, e as convidadas não faziam pormenosem toaletes que atestavam o talento de costureiras como Tabácum,Glonoínum e Fórmica Rufa. Já o cardápio, testemunhando a grife dePhetelácea, simplesmente ébaíu os convivas com ummédaillon da arnicamontanaqueserá lembradodurantequinzeanos.Ochefemostrouaindaasuagarra subscrevendoa sobremesadeharmális virgínicagelada,quepelaprimeiraseserviuaopontonoRiodeJaneiro,efoisaudadacompalmas.Gelsêmium,aoladodeChina,foioanfitriãoperfeitoquecomprovoumais

umavezsuareputaçãodegrandseigneurdostemposdaIlhaGrande.Negouque esteja pensando em vender seu complexo industrial da baixada deCápuum,poisjustamentedesejatransformá-loemcondomíniocomseus3,5mil empregados, além de contratar mais 2,6 mil como contribuição paradesfazerabaleladequehácrisededesempregonopaís.Estadeclaraçãofoiaplaudidacomentusiasmo,eojornalistaCóccusCáctilançoulogoaideiadeGelsêmium ser aclamado o Homem de Hipervisão de 1983, pois enxergamaislongeemaisaltodoqueocomumdosempresários.Homemencantador,opríncipeCocúlusconvidouatodosparaesticadano

Mercúrius,oquefoiaceitosemdiscussão.Comoele jamaisusoucartãodecrédito, mesmo porque essa instituição é proibida em seu reino do ÍrisVersicólor,enãocarregadinheironobolso,porseranti-higiênico,adespesafoi rateada por uma vaquinha entre todos os presentes e mais algunsmotoristas que serviam aos convidados, tudo na maior alegria edescontração.Cocúlus Índicus viaja hoje de regresso para Íris, com escalas em várias

capitais da América Latina, onde, como aqui, tem numerosos amigos. Aúnicanotadesagradáveldanoite foiodesaparecimentodeumajoiadasra.VerátrumÁlbum,quesesentouaoladodopríncipenoMercúrius,maseleconsolou com um beijo nos lábios a perdedora, que logo esqueceu oincidente.Belanoitada,emúltimaanálise.

II

Estecronistasedeumalaoexcursionarpelo jetsetparacontaroque foiojantardosGelsêmiumSempervírensemhonradopríncipeCocúlusÍndicus.Recebeuváriascartasderetificaçãoeprotestoque,pordeverdeofício,aquivão reproduzidas no essencial. Peço desculpas pelos erros de informaçãocontidosnacrônica-reportagem.Devoconfessarquenãoparticipeidojantar(aliás,nemfuiconvidado)equeomeurelatosebaseouemfontesatéentãodignasdecrédito;hojenãovalemnada,àvistadosdesmentidos,que,emboradivergentes,concordamnumponto:nãohouve jantar,ou,sehouve,nãosesabeondenemquando.Passoàscartas.“PrezadoCDA:Bemsevêquevocênuncafrequentoucolunáveis,bichodo

matocomoé.Suanarrativanãofazsentido.OcasalSempervírensdesfez-seno ano passado, e, portanto, não ofereceu jantar algum, mesmo porqueChinaBremen, ex-Sempervírens, assistianaocasião aoFestivaldeCannes,escoltada pelo cineasta Hayama Imamura, primo de Shohey Imamura,ganhadordaMandrágoradeOuro.Hayamanãoconcorreu,masconsidera-sepremiado por ter conhecido China, que ele pretende lançar comoprotagonistadeseupróximofilme,Aamigaíntimadodragão,aserrodadoem Búzios em 1984. E Gelsêmium, ex-marido de China, há mesesdesapareceudascolunas.Portanto,papo-furado,evêsenãoserepete.IsaíasArrigo.”“Carocronista.ConvidadoquefuiaojantardosSempervírens,dequevocê

falouhádias, começocorrigindooseuprimeiroengano:chama-seTecla,enãoChina,aesposadomeuamigoGelsêmium.Ojantarseriaoferecido,nãoao ‘príncipe’ Cocúlus, que aliás foi desmascarado como reles farsante, nogênero daquele pseudoeconomista que chegou a lecionar na FundaçãoGetulio Vargas em São Paulo, mas ao conde Laboulaye de Choderlos,representante daDevil Inc., deNashville, a última palavra em eletrônica aserviço do progresso dos países em semidesenvolvimento. Sua alteza,acometidodemalsúbitopelamanhã,nãopôdecompareceraoágape,eestefoicanceladoatéqueohomenageadosetenharecuperado,apósseuregressodos States, onde se internou em clínica especializada. A sra. Verátrum

Álbum não podia queixar-se do desaparecimento de uma joia no jantarmalogrado.Elaévezeiraemdenunciarperdadebrilhantesemfestasdeelite,quando na verdade usa apenas joias de cutiliquê, adquiridas na rua daAlfândega.EpossogarantirquejamaisseriaconvidadapelosSempervírens.MartinicoBertoni.”“Senhor. Há coisas, mesmo afiançadas por um cavalheiro da sua

confiabilidade,emquenãopodemosacreditar.OsSempervírens,conhecidostrambiqueiros, oferecendo festas régias a um fidalgo? Essa não. O sr.Gelsêmium está sendo processado por mim, sua credora, a quem devecinquentamil dólares, importância da venda, que emmá hora lhe fiz, daminhapartenocondomínioArethusa,naBarra.Eaesposadele(serámesmoesposa?), convido o jornalista a indagar das butiques de Ipanema qual ocréditodequeelagoza.Peçopublicarestaparaconhecimentodosincautos.LolaXimene,porseuadvogadoOldericoTelêmaco.”“Ilmo.colunista.Vivendoeaprendendo.Caídasnuvenslendovossorelato

dojantarchezSempervírens.Li-oparaodistintíssimopríncipeCocúlus,quenãoadmitiuouviratéofim.Jamaiselefrequentouaquelagentenemsabedesuaexistência.SeuprimeiroimpulsofoilevarosSempervírensaostribunais,porabusaremdoseunomeeprestígiosocial.Masistoacabariaenvolvendoocolunista,iludidoemsuaboa-fé,e,apesardenãoconhecerpessoalmenteV.Sa.,seiqueéhomemdeboamoraleapenasagiucomcerta leviandade,aoveicular notícia falsa. Assina esta a amiga dedicada do príncipe Cocúlus,JanetaAssunçãoVanderLoo.”“Ao jornalista do Caderno de Variedades. Sofreando a minha justa

indignação, venho reclamar de sua consciência ética a retificação dopublicadoarespeitodojantarqueeueminhaesposateríamosoferecidoaopríncipeCocúlus.Antesdemaisnada,aíse insinuagravesuspeitaaomeupassadodegrandseigneurdostemposdaIlhaGrande,dandoaentenderquevivinopresídioeládeifestasmemoráveis,acusaçãoabsurda,poisestivealidoismeses,nãonego,nãocomocriminosocomum,masvítimadeenganodasautoridadesdoDOPS,aoacreditaremnafalsadenúnciadealguémaquem

protegi e que se virou contramim quando desfizemos a infeliz sociedadeimobiliária em que entrei com o capital e ele com a lábia. E festas…Quefestaspoderiaeudaremtão incômodaposição?Coisasdavida.NuncanosvangloriamosdanossaamizadeaopríncipeCocúlus,mesmoporquenãoédonosso feitio discreto. Se algumdia o levamos a algum restaurante ouotivemosemalmoço informal emnossa casa, isto é coisaquenão interessaaos jornais e prefiro não elucidá-la.Minha esposa e eu ficamosmagoadoscomafantásticareconstituiçãodeumjantarimaginárioemqueteriahavidoatéroubodejoia.Magoadoserevoltados.Sejávivíamosdistantesdosociety,agoraentãoéquenãoqueremosnemouvir falarnisso,epretendemosnosmudarparabemlongedoRiode Janeiroedesuas fofoquices.GelsêmiumSempervírens.”

AESTRANHA(EEFICIENTE)LINGUAGEMDOSNAMORADOS

—Oi,meuberilo!—Oi,meuanjobarroco!—Minhatanajura!Minhaorquestradecâmara!—Quebomvocêmechamarassim,meupessegueirodaflórida!—Vocêgosta,minhacalhandra?—Adoro,meuteleféricoiluminado!—Eutambémgostomuitodesertudoissoquevocêmechama!—Deverdade,meujaguaretêdepaina?—Juro,meucavalinhodeasas!—Entãodizmais,dizmais!—Meuoitavo,décimo,décimoquintopecadocapital,minhajanelasobrea

Acrópole, meu verso de Rilke, minha malvasiara, meu minueto deVersailles…—Mais,agapantomeu,tempestademinha!—Minhafolliaconvariazoni,deCorelli,meuisto-e-aquiloenguirlandado,

meueuanterioramim,meusdiálogoscomPlatãoePlotinoaoentardecer,minhaúlceramaravilhosa!—Ai que lindo, liiiiindo,meu colar de cavalheiro inglês num retrato de

Ticiano!Meufundo-do-mar,vocêmepõelouca,loucadeamaraspedras,depatinarnasnuvens!—Eeuentão,minhagórgone,minhagárguladeNotreDame,eeu,minha

sintaxedeDeus?—VocêfalacomofalamosbalõesdejunhodePortinari,asjoiasdacoroa

do reino de Samarcanda, você, meu imperativo categórico, você, minhaespadamaçônica,vocêmemata!—Evocêtambémmetrucida,medegola,medevolveaoestadodemúsica,

meutambordemina!—Todos os incentivos oficiais reunidos emultiplicados não valem a tua

alquimia,meuministrodofogo!—Tuaspaisagens,teusubsoloinfernal,teuslabirintossãosuperioresem

felicidadeaqualquerdeclaraçãodosdireitosdohomem!—Aprimeiravezqueeuvivocênaquelebardocrepúsculoeusentiqueas

pirâmideseascataratasnãovaliamatuaunhadodedomindinho!—PorquevocêéoBancodasEstrelas,epodecomprartodasascoisasdo

mundo,inclusiveaságuaseosanimais,pararestituí-losàvidaemliberdade!— Como posso ouvir outras palavras senão as tuas, meu almanaque do

céu? Minha ciência do insabível? Meu terremoto, meu objeto voadoridentificado?— Não nascemos um para o outro, nascemos um no outro, e estamos

nessadesdeantesdocomeçodosséculos,meunenúfar!— E estaremos mesmo depois que os séculos se evaporarem, ó meu

desenhorupestre,meuformigãoatômico!—Mandala,raiolaser,sextina!Tudomeu,éclaro!—Pomba-gira!—Clepsidra!—Sequoiaminhaminhaminha!Diálogo aparentemente louco, mas que dois namorados de imaginação

mantêm todos os dias, com estas ou outras palavras igualmente mágicas.Nãoinventeinada.Apenascolecioneiexpansõesouvidasaquieali,equemepareceramespontâneas,istoé,ninguémdeveterpreparadoantesoqueiriadizer, de talmodo as palavras saíam entrecortadas de risos, interrompidasporafagos,brotandodasituação.Oamoré inventivoeanulaospostuladosdalógica.Eletemsualógicaprópria,tãoválidaquantoaoutra.Eosamantesseentendemsobosignodoabsurdo—nãotãoabsurdoassim,comopareceaosnãoamorosos.JáouvinointeriordeMinasalguémchamarseuamorde“meubicho-do-pé”ereceberemtrocaomaiscálidobeijodeagradecimento.Estacoletâneadefrasesdeamorestáaquicomointroduçãoaoprojetonão

comercialdecomemoraçõesdoDiadosNamorados.Nãoparaqueelassejamrepetidas mecanicamente. Todo namorado que se preze deve inventar asbesteiraslíricasedeliciosasqueagentenãodizparaqualquerpessoa,sóparauma,esóemmomentosdepuradelícia.Funcionam?Ecomo!

ACONTECEUEMLONDRES

—Queéisso?Queéqueosenhorestáfazendoaqui?—Perdão,Majestade,eu…—Dispensoexplicações.Retire-se.—VossaMajestademe fez uma pergunta, e eu, como súdito obediente,

devoresponderantesdemeretirar.— Tem razão. Mas o que foi mesmo que eu perguntei? O senhor me

pregouumsusto!—Eraoqueeumenosdesejavanestavida.Preferianãoacordá-la,juro.—Mas acordou, e isso não se faz. Em todo caso, diga como chegou até

aqui.—VossaMajestadequerqueeurespondaprimeiroàsegundaperguntaou

dêpreferênciaàprimeira,pelaordemnaturaldascoisas?— Primeiro que tudo, exijo que o senhor saia imediatamente daminha

cama,ondeestranhonenhumjamaisousousentar.—Desculpe,masestousentadosónabeiradinha.Precisotomarfôlego,e

noquartodeVossaMajestade,comgrandepesarmeu,nãotemsequerumapoltrona.—Éverdade.Nãoseioquefizeramdaminhapoltrona.Ficaramdeestofá-

ladenovo, fazduassemanas,eatéhojenada.PrecisofalaraoPhilipsobreessaeoutrascoisinhas.Bem,respondacomoacharmelhor.—Possocontinuarsentadonacama?—Queremédio.Admitoqueosenhornãoqueirasentar-senochão.Mas

preferiaquenãoestivessenemsentadonemempé.Quefosseembora.—Entãovoucomeçar,masacaboderefletirqueaordemnaturaldascoisas

recomendaqueeurespondaprimeiroàsegundapergunta,asaber,comofoiquechegueiaqui.Sódepoisdissoéquetemcabimentoaexplicaçãodoqueestoufazendoaqui.Cadacoisaemseutempo,etodoassunto,paraserbemconsiderado,deveserdecompostoempartes,ordenadamente.—Osenhormeparecebastantecartesiano.Vamoslá.—Entãolhedireiquechegueiaquipulandoomurodopalácio,porqueno

portãonãomedeixariamentrar.Elesbarramtudo.— O muro tem três metros e cinquenta centímetros de altura, e está

recobertodecacosdevidroecabeçasdeprego.Admiraqueosenhorotenha

galgado.— Com a devida licença de Vossa Majestade, ouso dizer que não sou

desprovidodepreparofísicoedehabilidadenatural.—Estouvendo.Edepois?—Depois, subipelaparede, agarrando-meà calha,que,VossaMajestade

nãoleveamal,estáumtantoenferrujadaemerecesersubstituída.—Falareitambémameumarido.Obrigadapelacolaboração.—Nãotemdequê.Masapartedacalhafoiamaisdifícil.Tevemomentos

em que eu receei cair no cimento, e Vossa Majestade pode avaliar asconsequênciasdeumaquedanessascondições,semfalarnoincômodoqueeudariaàguardadopalácio.—Continue.—Daí por diante foi simples, poisVossaMajestade é bastante cautelosa

paranãofecharpordentroaportadoquartodedormir.Ninguémsabeoquepode acontecer quando se tem uma indisposição, por exemplo, e até umdesmaio,eopessoaldecasaficaimpedidodeprestarsocorro.Então,eis-meaqui.— Espero que não tenha vindo para socorrer-me de qualquer coisa. Eu

dormiatranquilamente.—É verdade.Mas que sono leve temVossaMajestade!Não fiz omenor

ruído, emesmo assim a despertei. Lamentomuito. Bem, que é que estoufazendoaqui?Nada.— Como assim? O senhor escala o muro do palácio, sobe pela calha,

atravessacorredoresesalas,chegaaomeuquarto,senta-senaminhacamaenãoestáfazendoabsolutamentenada,depoisdefazertantascoisas?—Exatamente,Majestade.Anãoserestediálogoqueempreendemospor

iniciativasua,nãoerroaoafirmarquenãoestou fazendocoisaalgumaemsuacâmarareal.—Faleaverdade.Nãopretendiacometerumatentado?—Jamais.VeneroaminharainhaeestousatisfeitocomaMonarquia,que

aindaagora,nasMalvinas,deuboacontadorecado.—Euficariadesoladasesoubessequeosenhorveioaquicomoladrão.—Majestade,estoudesempregadomassouumhomemlimpo.—Então,oquedeseja,afinaldecontas?— Um cigarro. Estou sem dinheiro para comprar sequer um maço, e,

perambulando em Saint James, com vontade imperativa de dar umastragadas…

—ConfundiuBuckinghamcomumatabacaria.— Longe demim um absurdo desses,Majestade. Além domais, a esta

horatodasastabacariasdeLondresestãofechadas.Penseiapenasqueacasadarainhadevetercigarrosexcelentes.—Poisolhe:nestequartonãohánemcinzeiro.Deixeidefumaremvirtude

depromessaparaaGrã-BretanhanãoserhumilhadanaquelabriguinhadoAtlânticoSul.—Quepena.—Mas vou lhe satisfazer o desejo. Sei o que é um fumante inveterado,

impedidodetirarumafumaça.Porfavor,toqueacampainhaparachamarocriado.Nãopossosairdacamanessestrajes.—Perfeitamente,Majestade.Agradeço-lhedecoração.Trrrim.Chegaocriado.— John, conduza este senhor até a rua, mas dê-lhe antes ummaço de

cigarros. E mande chamar imediatamente aqui o sr. Whitelaw. Queroconversar com ele sobre a altura domuro do palácio e a conservação dascalhas.

MILHOCOZIDO

Aprimeiravezqueeuvialguémnaruacomermilhocozido,confessoqueme espantei. A segunda, não estranhei tanto. A terceira, tive tentação depedir-lhe:—Desculpe,moça.Possoprovarumtiquinho?Porque era moça, por sinal bem-apanhada. Não pedi, infelizmente. Ou

felizmente,porqueelanãosómerecusariaopedidocomopoderiamesmoestranhá-lo, achando-me atrevidão. Refleti logo como havia entre nós adistância infinita de algumas gerações, pois ela fazia o que eu gostaria defazer e não tinha coragem, nemmesmonunca pensara nisso: saborear naruaumatentadoraespigademilhoverde.Edaí,quemsabesetoparia?Garotamoderna,desinibida,comendoquando

lheapetecia,naturalquecompreendesseodesejodealguém,despertadopelavisãodomilhobomdecomer.Senãotopasse,adistânciaentrenósnãoseriatãograndeassim:apenasmoçapreconceituosa,incapazdecompreenderqueminha intençãoera simplesmenteprovardomilho,enãoarranjarpretextoparaaproximação,comfinsobscurosesuspeitos.Embaraçado, limitei-me a olhá-la com o rabo do olho, pois íamos no

mesmofrescão,elaaomeulado,eeraimpossívelnãotomarconhecimentodaquele pausado e delicado comer ummilho que vinha de antiquíssimasfazendas da minha lembrança… um milho tão recuado, tão perdido embrumasdoséculo, semmaisnemmenosviajandocomigonaqueleônibus,trincado pelos dentes damoça, que o comia commuita desenvoltura e aomesmotempocommuitaclasse.Ela, é claro, nem se dignava tomar conhecimento de mim, com essa

faculdade admirável que têm as mulheres de estarem ausentes na maisindubitávelpresença.Edavaumamordidinhaeparavaerecomeçava,atentaao ritmoe àsboasmaneiras.Nadamaisnatural,mais civilizado, semgulaostensiva, sem provocação aos últimos defensores da teoria de que comernumcoletivoéfaltagrosseirade“berço”.Aespigaconsumia-se.Eusemprecomvontadedeprovar,emudoequedo

naminha inibição.Não tinhaolhosdecãopedinte,nãoousaria tanto,mascomeceiaduvidardainteligênciaedocoraçãodamoça.Entãoelanãoviaqueaseuladoestavaumsenhorcarenteedesejantedecomerdaquelemilho,e

que lhe custaria renunciar aunspoucosgrãos,para satisfazer tãohumildecarência?Eueraumdesconhecido,sim,masodesconhecidodeixadesê-loaumrápidoolhardebenevolênciaeduasoutrêspalavrasreveladoras.Só em Botafogome ocorreu que podia repugnar-lhe a ideia de a espiga

passar por duas bocas. Em Copacabana, perto de dois terços de espigatinham-sedesnudado;noLeblonterminariaarefeição,peloesgotamentodapeça. Não pude deixar de admirar a competência da moça, que nem seatrasavanemseafobava.Pareciaatéquecronometraraoatodecomerpeladuraçãodaviagemdeônibus.SemorasseemSãoConrado,destruiriaduasespigas?Ofatoéquedegustavacalmaedelicadamenteoglúten,oamido,asproteínas,ou,parafalaraverdade,osabordamistura,semidentificaçãodeelementos.Omilho deixava-se papar, talvez agradecendo a delicadeza comqueerapapado.Escaparadocarrinhodovendedorambulanteparacairnosdentes de uma bela moça egoísta que nem sequer se lembrava de quepertinho dela um senhor de origens rurais passara a ter subitamenteimperiosa necessidade de comermilho verde,milho assado,milho cozido,qualquervariedadeoumodalidadedemilho,eelassãomilhares…Ah, por que não fiz o que era tão fácil de fazer, passar na carrocinha e

comprar a minha espiga, mostrar à moça que também eu apreciava essacomidinha despretensiosa e amável?Mas como, se eu não tinha,minutosantes,amenortentaçãodecomermilho,esóasentiraaoveramoça?Seriaautênticaessatentação,oueumecomportavacomorelesimitadordegestosalheios, sem correspondência com a massa dos meus gestos habituais,normalmente programados? Na dúvida, arrisquei-me a olhá-la semcerimônia, direto, quase provocador. Não deu sinal de perceber minhaindiscrição. Comendo estava, comendo continuou, na mesma toada. E omilhoacabando.Eeusentindoqueaessaalturajánãoadiantavapedirnadaàmoça.Namelhorhipótesemeestenderiaosabugodespojado,comumoudois grãos de sobejo, irônicos. E já ia passandominha vontade de comeraquelemilho daquela espiga, Deus (ou o Diabo) sabe lá por quê. Em vãoprocurarameiludir,pensandonummilhoanônimo,genérico,universal.Seamoçaretirassedabolsaoutraespigaeaoferecesseàminhagula,nãomeapeteceria.Aquelaéquedespertaraemmimodesejomanducativo,ligadoafortes e escondidas subjacências temporais.Amoça desceu antes demim,depoisdeembrulharcuidadosamenteosabugoempapelfinoeguardá-lonabolsa.Continuei, jáagoradeestômagosaciado.Eucomeratodaaespigademilho.

OCARRO,AJARDINEIRA,ACALÇADA

Nomomento, a situação nas calçadas de Copacabana estámais oumenosrefletidanestediálogodemilvozes:—Ei,tiraessajardineiradaí.—Prabotarcarronolugardela?—Tiratambémocarro,ué.—Prabotaraonde?Noutracalçada?—Melhordeixarajardineiraeocarro,cadaumnasuafatiadecalçada.—Eopedestre?—Essejáfoitiradohámuitotempo.—Eporquenãoocarro,ajardineiraeopedestre,comlugaresmarcados?—Precisadeixarespaçoproscarrinhosdebebê.Bebêaindanãoépedestre.—Masbabáé.—Entãovamosrepartiracalçadaentreocarro,ajardineira,opedestre,o

bebêeababá.—Deixandoumaáreaprascadeirasdosbaresdepraia,nocalçadão.—Assimnãodá.Sósehouverrevezamento.— E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver

necessidade?—Afinaldecontas,acalçadaéounãoédopovo?— Não. É dos bacanas que moram nos edifícios e não deixam a gente

estacionarnacalçada.—Masocarrotambémédosbacanas.—Sóquedeoutrosbacanasquenãomoramnosedifíciosdaquelacalçada.—Entãoéumaguerraentrebacanas.—Eu não sou bacana. Sou povo e estou pagandomeu carro financiado.

Ondeéqueeuvouestacionar?—Emcimadasflores.—Osenhorparecequenãogostadeflor.Preferegasolina.—Ora,meuamigo,quemgostadeflorplanteelasnovaso,dentrodecasa.

Eutambémgostodemúsica,masnãovoucurtirmeusomnacalçada.—Ajardineiraémedonha,ocarroéfuncional.—Semessa.Ocarropolui,etodaplantaélegal.— Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras. Os próprios carros

liquidamcomelas.—Sefossesócomasjardineiras.Umdeles,emcimadopasseio,mandou

minhatiaparaohospital.—Eunãodigoquecalçadaémuitoperigoso?Omaisseguroénãosairde

casa,sobpretextoalgum.—É,mascarronacalçadatemumavantagem.Nãodeixabicicletaatacar.

Bicicletaéfogo:olhasóestacicatriznaminhacanela.—Não estou interessado na sua canela.Quero saber é quem vence esta

parada:amáquinaouohomem?— A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do

corpodele.Ohomemestádosdoislados,brigando,chateando-se.—Nãoteráumterceirolado,oladodapaz?—Temsim,vovó.TemaPraçadaPaz,queficaemIpanema.—Engraçadinho.VêlásetempaznaPraçadaPaz.Temécarro.—Viu?Foi a conta de fundir o estadodoRio comoRio, e os carros de

BarradoPiraívêmatocharnossascalçadas.Sócariocaéquenãotemdireito.—Separatista!Ascalçadastambémdevemserfundidas!— Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras! Nossas

folhagens!Nossosminiespaçosverdes!—Numahoradessas,comorapalevandoasjardineiras,síndiconenhumé

bobodeaparecer!—Asjardineirasestãoimpedindooprogressodopaís!—Amanhãplantarãobosquesnacalçadaebotarãoleõesetigres,jacarése

cascavéisládentro,pradevoraragente!—Sempreacheiqueessenegóciodeflornacalçadaésabotagemcontraa

indústriaautomobilísticanacional!—Perdão,masalecrimeespada-de-são-jorgesãomuitomaisnacionaisdo

queosautomóveisfabricadosporaí!—Pelovisto,aconfusãoégeral.—Aconfusãojáera.Istoéasuperconfusão.—Qual,oRiodeJaneironãoexiste.—Agoraéquevocêpercebeuisso?

TEMCADAUMANAVIDA

Jamaisentendereiporqueamoçameprocurouparafazerumpedido:queria(quer)serartistadenoveladassete.—Maseu…—tenteiinformar.Elanãomedeixouconcluirafrase:—Atéquenãoestoupedindomuito.Sepedisseparaanoveladasoito,iam

dizer que era pretensão. Tambémnão desejo a novela das seis. Quando agenteémodestademais,botampraescanteio.—É,mas…—Entãoeuachoquenomeioestáavirtude,comogostavadefalarovovô.

Vovôeraentendidoemcoisasmil.Osenhorconheceuvovô?ElefoiumcaraimportantenoMEC.—Devoterconhecido.Qualeraonomedele?— Vovô Marreco. A gente chamava ele assim porque tinha uma cara

gozada,carademarreco.Umaocasião…Bem,depoiseuconto.Osenhorvaimeajudar,nãovai?Mais uma vez tentei explicar (não consegui) que não tenho nada com

televisão,apenassouamigodoOttoLaraResende,naRedeGlobo,enãomeconsta que o Otto selecione artistas. Mas a moça prosseguia, vivendo osonho, que não era sonho, era projeto amadurecido. Os pais aprovavam.Mesmoquenãoaprovassem,estavadecidida:— Força do destino. Minha tia-avó fugiu de casa pra trabalhar na

companhiadeLeopoldoFróis.Naquele temponãohavia televisão, imaginecomoasopçõeseramlimitadas.MinhamãefezpartedocastedenovelasdaRádio Nacional, deixou o brodecaste pra casar. Meu pai impôs condição.Felizmente,evoluiu,hojeatéfazgosto.—Eonamorado?—perguntei,desistindodeesclarecerqueelabatera à

portaerrada.— Namorado? Então o senhor acha que eu vou pedir consentimento a

namorado,pratrabalharemnovela?Agentetáem1980,pô.—Láissoé.— Inclusive meus namorados são todos descartáveis. Não me amarro a

nenhum,porquemeufuturonãotánoshomens.Tánaarte.—Muitobem.—Nãoéqueeunãoqueiranegóciocomhomem,vejabem.Deusmelivre

eguarde.Sóqueminhavocação,minhacarreiraficamacimadetudo.—Vocêtemexperiência?—Queéqueosenhorchamadeexperiência?— Experiência mesmo. Já transou cinema, teatro, expressão corporal,

laboratório,essascoisas?Pensoupararesponder.Afinal:—Simenão.—Simenão,como?—Quer dizer, transei com gente ligada,mas nãome deram chance pra

começar.—Evailogocomeçardenovela?—Olha,abasedanovelahojeénaturalidade.Soumuitonatural,osenhor

távendocomoeusounatural.Semecontrataremeutirodeletra.Aliás,eutreinosozinha.—Como?—Euensaioláemcasa,nomeuquarto.Jáfizváriospapéis,enãoerapapel

mole,defigurante.FizumacenadaGlóriaMenezes,queseelavisseficavabobadeadmiração.Nãoépramegabar.Meconsiderotarimbada.—Ótimo.—Otempoqueeupassoestudandoasatrizesnatevênãoestánogibi.Esó

praelasqueeuolho.Conheçotudo,olhar,sorriso,franzirdoslábios,caradetristezaecaradedesejodeMariaCláudia,JoanaFomm,LúciaAlves,DéboraDuarte…Querver?—Nãoprecisa,minhafilha.Euacredito.—Sóumaamostrinha,praprovarquenãoestoumentindo.—Estásevendoquevocênãomente.Obrigado.—Poisé.Oueuentronanoveladassete—qualquernovela,dequalquer

época, eu sou como a Lucélia Santos, papel de escrava, de estudante, degarotafútil,eutopo—ou…—Ouoquê?—Senãoentrar,nãoseioqueserádeminhavida.—Nãodigaisso!—Digo.Minhavidadependedosenhor,nestemomento.Umapalavrinha

sua,e…—E?—Toucontratada.Vamos,nãomenegueumacolherdechá.Euseique

vocêpodefazerissopormim.Desculpeotratamento,saiusemquerer.Por

que você não diz logo que vai me ajudar? Por que não telefona logo propessoaldatevê?Porqueficouassim,duro,engasgado,seilásedescrentedeminhaspossibilidades?Porquenãoconfiaemmim?Diga,digapeloamordeDeus!Vocêéruim,homem!VocêéíntimodoDanielFilhoenãoquermoverumapalhaemfavordeumapobreartistaempotencial!Tinhase levantado,noardorda interpretação, agitouosbraços,deixou-se

cairnapoltrona,exausta,pelaprimeiravezsilenciosa.Sóentãopude jurar-lhe, também por Deus, que não conheço Daniel Filho. Olhou-me comdesprezo:—Ah,éassim?Eporquenãomefalouissologodecomeço?Meenganar

esse tempo todo! E eu, feito boba, falando coma pessoa errada!Tem cadaumanavida…

UMCÃO,OUTROCÃO

“Vovô triste procura seu cachorro pointer, Toy, desaparecido. Boarecompensa para quem devolvê-lo ou souber onde ele se encontra. Tel.287…”—Alô!ÉoVovôTriste?—Como?—NãoéoVovôTristequemestáfalando?Aquelequeperdeuumcachorro

deestimação?—Ah,sim.Soueumesmo.Estoutãotristequenemmelembreidonome

quepusnojornal.OsenhorachouomeuToy?— Antes de mais nada, meu caro senhor, quero cumprimentá-lo com

respeito. Estou falando com um homem de sensibilidade, um homem decoraçãogrande,quesofrecomaperdadeumacompanhiaanimal.Eudividooshomensentreosqueamamaconvivênciadosirracionais,eaquelesque…—Obrigado.MasosenhorachouomeuToy?— Um momento. Não posso deixar de me inclinar diante das pessoas

sensíveis,realmenteidentificadascomomundonatural.Issoétãorarohojeemdia.—Nãoé tanto assim,o senhor exagera.Todomundoque temumcão é

porquegostadele,egostando,sentefaltaquandoelesome.—Éoqueosenhorpensa.MuitagentedágraçasaDeusquandosevêlivre

do animal doméstico, quenãoquer ficar sozinho emcasa e impedequeodonosaiadeviagemoumesmoparajantarfora.Conheçocasos…—Estábem.AgoramedênotíciasdoToy.—Poisnão.Eleépointer,nãoé?—Exatamente.—Inglêsoualemão?—Inglês,commuitahonra.—Porqueosenhordiz“commuitahonra”?Sefossealemão,ahonraera

menor,ounenhuma?—Absolutamente,cavalheiro.PrezotantoaInglaterracomoaAlemanha,

mas omeu cão é inglês, eu gosto domeu cão, então eu digo commuitahonraqueeleéinglês.Háalgummalnisso?—Entendi.OseuToyépretooubranco?

—Branco,manchado.—Depreto,delaranja,dequecor?—Depreto.O senhor achou, o senhor viu em algum lugar omeuToy?

Digalogo,estoutãoansioso!— Tenha calma, Vovô Triste. Estou lhe perguntando porque tem tanto

cachorroporaí,de tantasvariedadesdamesmaraça,quesóagentevendoumretratobemnítidodoanimaléquepodeidentificá-lo,né?—Eu conheço omeu Toy a léguas de distância. Conheço pela ligeireza,

pelo aprumo, pela individualidade,mais do quepela cor oupelo tamanho.Conheço de cor e salteado, sou capaz de distingui-lo entre mil pointersiguaizinhosunsaosoutros.— Mas eu não, é lógico. Outra coisa. O senhor prometeu uma boa

recompensa.—Exato.—Dequanto?—Bem,euachoquedoismilcruzeirosparaquemmetrouxeroToy,ou

milparaquemindicaroseuparadeiro,éumaboarecompensa,osenhornãoacha?—Quermesmoqueeudiga?Achopouco.—Poucoporquê?Sabequalopreçomáximodeumpointeringlês?Dois

milequinhentos.—Sim,éopreçodemercado,paracãesdepedigree,mastemumacoisa

mais importante do que pedigree: o amor a um animal de estimação. Seuamorestácotadoemdoismil?— Ah, o senhor não deve falar assim, o senhorme tortura. Quisera eu

dispordecincomil,dedezmil,decinquentamilcruzeiros,pararesgataromeu querido Toy.Mas sou um simples inativo doMinistério da Justiça, àesperadeclassificaçãonocargoinicialdacarreira,osenhorentende?—Sendo assim…não se falamaisnisso.Desculpe.Nãoquero aumentar

suaaflição.Mas jáqueentramosnessas intimidades,querocorresponderàsuaconfiançaedizer-lheumacoisa.—Qual?—NãoconvémosenhorseamofinarporcausadoToy.—Como?Querdizerqueelemorreu?!—Deusmelivre.Eununcaseriaportadordeumanotíciadessas.—Eentão?— Então, é que numa cidade imensa como esta, commilhares de cães

perdidos, a probabilidade de encontrar o seu bichinho é muito limitada.Enquanto espera, o senhor sofre, o senhor se angustia, o senhor ficamaistristeainda.Porque,emvezdisso,nãoparteparaoutra?—DeixardeprocuraroToy?Seriaumainfâmia!—Quem falou em infâmia?Quero apenas o seu bem, a ordem de suas

coronárias,de sua cuca.Osenhorevitarámuitasdecepções, conservandoamemóriadoToyencarnadaemoutroanimalzinhoadorável.Olhe,eutenhoaqui um filhote de miniatura pinscher que é uma graça, um amor decoisinhaleve.Possolhedarpordoismilcruzeiros,exatamenteaimportânciadequeosenhordispõeequeprovavelmentenãoteráaplicaçãoaoinsistiremprocuraroToy…Assimo senhor,deVovôTriste,na fossa,passaráaVovôAlegre,digomais…aVovôFeliz…—Bandido!Miserável!

ILHASDEMINAS,NOVOODASPALAVRAS

Você conhece a IlhadaMerenda?Nemeu.Masgostode saberqueMinasGeraistemumaIlhadaMerenda.Ondefica?Issoeupossodizeravocê,ficanorioSãoFrancisco,entreafozdocórregodoFradeeabarradorioAbaeté.Ounãoficamais,eacabouporquefizerambarragem,essenegóciodemexercomos riosparaproduzir energia, essa violentaçãodanaturezaquedizemsernecessáriaparasustentarohomem?Bem,nãomemetonessasfunduras,nem vou sair do meu canto para espiar se ainda tem por lá a Ilha daMerenda.Quero só curtir com você esse nome, essa ideia de ilha aonde agente chega só para merendar, então a gente merenda — de preferênciasobrearelva,comonoquadrodeManetounoquadrodeCézanne,edepoisvolta,ninguémmoranaIlhadaMerenda,nãodevemorar.Essailhaéumapausa, as avesde lá, as árvoresde lá sabemdisso,não se importammuitocom as visitas, ninguém vai lhes fazermal, tudo é calma e fugacidade nointervalo.Vocêpensaqueminhaterra,nãosendomarítima,temumpunhadinhoà-

toadeilhas?Estámuitoenganada.NóstemosaIlhadosBugres,quenãotembugres;teve.ÉaliacimadabarradorioCorrentesdeCanoas.Seaomenosdeixassemosbugresficaremporlá,longedeposseiros,deaculturadores,deintegracionistas!Nãodeixaram,mastambémdestenomeeugosto,enofaz-de-conta boto ali uma assembleia altaneira de índios, resistente àmáquinaprotecionista e à cobiça dos invasores, tudo por conta própria, mantendoorgulhosaaderradeirarepúblicanativadoBrasil…Vocêvaipensarqueestoumeiopinel.Estounão,estouévivendoamagiadosnomesdeilhas.Ah,aIlhadaPreguiça!OrioDoce,queémeuriodenascença,sagrou-se

mestreemilhasassim,convidandoaodevaneio.EstaaquificaantesdabarradorioEsplendor,quenabocadopovosearredondaemEsplandor.Umailhadestinada exclusivamente à preguiça, aos preguiçosos jogos de não fazernada ou de fazermuito devagar,muito depois de depois de amanhã, umailha toda ócio, calmeet volupté.Asplantasnão têmpressade crescer; porisso crescem mais docemente, com viço mais tranquilo e também maisduradouro.Osanimaisdormem;seacordaméparatornaradormir,dandoritmoaosono.Aténaspedrasháumapreguiçadereluziraosol,queastornamenosrígidas;sãopedrasquenãofazemquestãodoestadomineral;estãoà

esperadesedefinir,semafobação.ÉassimaIlhadaPreguiça,aondeumdiairemosnósdois,espreguiçar-nosdesociedadecomtudoquecumpreláseudestinoindolente.Agora,vocêjáviucoisamaismineira,caligraficamentesutilebonitacomo

geografia,doqueaIlhadaCabeçadoM, juntoaocachoeirãodoM,umMlíquido, bordado em espuma cadente, inicial-resumo do santo nome deMinas?DovérticedoMcaiaespumarada,aenvolverdenuvensessamaiorilhadeMinas,queéaprópriaMinas,tidacomoconstelaçãodemontanhas,masporissomesmoilhada,altailha,ilhaalterosa,atamanhaalturadoníveldomar,ilhasuspensa.Ensandeço? Não. São as ilhas que subvertem a razão natural,

interrompendo a continuidade do mundo. Elas se isolam, orgulhosas ouprudentes.Mas vamos adiante. Se estamosno rioDoce, cheguemos à ilhairônicadoTalaveira,domaturrango,domaucavaleiro,dobisonhono lidarcom lavoura ou gado. Minas gosta de brincar com o imperfeito. E achanomesengraçadosparasuasilhas,comoadaPindaíba(ouçoaindaavozdosmais velhos: “Estou numa pindaíba danada”), tem a dos Casados e a dasMarias;adoPeriquitoeadoAlferes,nãoseisehomenagemaTiradentesoualusivaaumdonoqualquerdeuniforme.TemadosEstados,adosPombos,a das Antas, a das Batatas e esta outra que faço questão de inventar umahistória para ela: a Ilha Lucrécia, tão bórgia! Onde príncipes, cardeais,assassinoseoutrosfigurantes,entreeles,umaturmailustríssimadepoetaseartistas, se dedicam àsmais diversificadas aventuras em tomo dessa damaegrégia. Furo sensacionalíssimo de reportagem: Lucrécia, amagnífica, emMinasGerais,numailhaparticular,tãoparticularquenelasópodeteracessominha fantasia deste momento e você, se me der crédito e o prazer deacompanhar-meatélá…Não, desisto de surpreender Lucrécia em sua ilha cativa. Minas é

surrealista,concordo,massemexagero;conservoajustamedidadascoisas,aténoabsurdo.Fiquemosporaqui,vocêeeuhabitandoempensamentoasilhas que afloram em Minas, que enfloram Minas, essa ilha maiorbalançandonoaltodosmonteseserras…

BOCADELUAR

—Vocêtembocadeluar,disseorapazparaanamorada,eanamoradariu,perguntouaorapazqueespéciedebocaéessa,orapazrespondeuqueéumaboca toda enluarada, de dentes muito alvos e leitosos, entende? Ela nãoentendeu bem e tornou a perguntar, desta vez que lua correspondia à suaboca,seeracrescente,minguante,cheiaounova.Aoqueorapazdissequeminguantenãopodiaser,nemcrescente,nemnova,sópodiaserluacheia,uai.Aíamoçadissequemineirotemcadauma,ondeéqueseviubocadeluacheia,atéparecebocacheiade lua,umabobice.Orapaznãogostoudeserchamadadebobiceasua invenção,exclamoumeioespinhadoquebocade luar,mesmo sendo de luar de lua cheia, é completamente diferente—insistiu:com-ple-ta-men-te—debocacheiadelua;éumaimagempoéticaedaí issonão temnadaquever commineiro, eleaténemerapropriamentemineiro, nasceu em Minas por acaso, seu pai era juiz de direito numacomarca de lá, mas viera do Rio Grande do Norte, depois o pai deixou amagistratura e se mudou para São Paulo, onde ele passou a infância,mudando-se finalmente para o Rio com a família. Ah, disse amoça, vocêficou zangado comigo, diga, ficouzinho? bobo, te chamo de bobo como techamomeu bem, fica nervosinho não, eu agora estou sentindo que o quevocêfalouéumagraça,bocadeluaré legal,olhaaqui,voutedarumbeijosuperluar,vocêquer?Eleensaiouumacaradequemnãofazquestãodeserbeijado, mas os lábios da moça estavam já assumindo a forma de beijo,avançavam para ele num movimento que parecia comandar e concentrartodoocorpo,comoresistir?Poisresistiu,sebemquecomintençãodeceder:daíapouco.Nãoficavabemdesmancharazangaassimtãodepressa,elaiater a impressão de que ele nem sabia ficar com raiva, a simples oferta debeijo o amolecia, e que seria do casamento deles, se houvesse casamento?Nãoéquepensasseemcasarcomamoça,longedisso,nãopensavaemcasarcom ela nem com moça nenhuma nos próximos dez anos, mas é bommantera linhadedurãomesmosemperspectivade futuramanutençãodeautoridade. É da lei não escrita, homem ficar emburrado e não fazer pormenos. Então é assim? falou baixinho amoça, você não quer omeu beijooferecidodecoração,poisnãovaitermaisnenhumnemagoranemdepoisdeamanhãnemnunca,ouviu,seubolha?Eoslábiosrecuaramtantoquefoi

comosedespregassemdorostoalidiantedomoçozangadoefugissemparalonge, para onde nem sequer fossem vistos, e escusa de procurar, porquebocadebocadesprezadasomenanuvemmaisescura,portrásdaquelaserraparaosladosdeTeresópolis.Eeuvousofrercomisso?omoçonãodissemasfalouconsigomesmo,quebemmeimportaseelanãoquermaismebeijar,eubeijooutras,beijoaprimadela,beijomilhõeseacabou-se.Masamoça,que despachara os lábios para o sem-fim, continuava diante dele, muitosaborosaeséria,sériaesaborosa,aquelapelefinaedourada,aquelesolhões,aquelebusto,aquilotudodeprimeiríssimabeleza,semfalarnabocaausentemaspresente,sabecomoé?Elenãosabia,masavontadedeprovarobeijoreapareceudepoisqueobeijo fora recusadopara todoo sempre, eo rapazavançou o braço direito para pegar docemente no queixo da moça, quemdissequeoqueixocedeu?Elefezumgestomaispositivo,tentandoseguraroombro damoça, o ombro esquivou-se ao toque, embora ela não recuasse.Continuavam próximos um do outro, a uma distância infinita doentendimento.Forçarobeijoseriabesteira,elacerrariaos lábios,abocadeluar não se abriria na aceitação úmida da sua. E que gosto pode ter beijoroubado, se até oquenão é roubado costuma ser insípidoquando asduaspartesnãosemovempelomesmoimpulsodedoaçãoedevoração?Amoçavisivelmente esperava o ataque, ele visivelmente se proibia de atacar, issodurou um tempão, com o beijo parado em potencial entre os poucoscentímetrosdeumabocaaoutra,eissenãoquando—ui!—umaformiga,não mais que uma formiguinha, vinda de não se sabe que subterrâneopreparado para expedi-la, em momentos que tais, começou a subirziguezagueando pelo pescoço damoça, ela deu umgrito, ele se precipitouparacaçaraformiguinha,osrostostocaram-se,oslábiostambém,eobeijodesabrochou, flor na ponta de duas hastes conjugadas, superlunar einevitável,beijofluidoeforte,resultantedaincompreendidaimagempoéticaoudaformiguinhaencomendada,quemsabe,pelorapaz?oupelamoça?

CASAMENTO

AempregadadomeuamigoDorvalpediuumasemanadefériasparacasar.—Tudobem—respondeuele.—Masvocênãocasounoanopassado?—Casei,sim,masocasamentonãoaprovou.Erasódefimdesemana.—Comoassim?—OJorgesóaparecialáemcasasábadodenoite,passavaodomingocom

agente,segundademanhãsemandava.—Evocêaguentouissoumano,Rosemira?—Foitratodagente.OJorgediziaquecasamentosetediasporsemanaé

carrapatonascostas,nãotemjeitodetirar.Euconcordei,masotratonãodeucerto.—Vocêsentiafaltadelenosoutrosdias,eeledevocê,nãoé?— Sentir eu sentia, não voumentir para o senhor. Mas trato é trato, o

senhorsabequeeununcafalteicomapalavra.—Issoéverdade.—EuficavaimaginandocomohaviadeserbacanateroJorgeameulado

todanoite,aquelecarinhocerto,aquelasegurançaemCordovil,edemanhãveromeuhomempreparandoocaféparamim,antesdagentesairparaaluta.Masnãodizianada.—OJorgetambémnãodizia?— Insinuava, sabe como é? De bocamesmo ele não soltava um isso de

proposta. Sóumsuspironahora dadespedida, umpiscarzinhomarotodeolho,umapertãozinhomaisfortedemão,essascoisas.Eubemquepercebia,maseaminhadignidade?—Achoquevocêexagerounorecato.Nãoerafaltadedignidaderesponder

comoutrosinalassim,ecombinarumnovoregime.—Eucombinei.—Nãoestouentendendo.— Fraqueza demulher, doutor. Um dia a casa cai. Ele deu um suspiro

mais fundo apertou mais tempo a minha mão, me fez aquele olharsafadinho.Aieufraquejei,disse:Seéassimquevocêtáquerendo,podevirlogodenoiteetodasasnoites.Foiaconta.—Vocênãoficousatisfeita?— Na hora, fiquei. Mas aí o Jorge começou a dar uma de rei, aparecia

semana inteira, na outra falhava na quarta ou na sexta, no começo davadesculpa,serviçodobrado,patrãoexigindodeleserviçonoturno (opatrãoé,comosedizmesmo?eleévipe),eucaladaescutando.OpioréqueoJorgenãosabementir,abocadiziaumacoisa,acaradiziaocontrário.Enchi.—Ebrigaram?—Maisoumenos.Nãosoudeengrossar,mastivededizeraeleoqueos

homensnão gostamde ouvir. Eu é quemantenho a casa, doutor.O Jorgeentravacomocarinhoeunstrocados.Diziaqueopatrãoesqueciadepagar,equandopagava,umassaltantetomavaodinheiro,outravezeraaavódelenaParaíbaqueprecisavadeauxílio,umairmãdoentequerecebiamesada,seilá.—Evocêcontribuindo.—Mais oumenos. Quando ele dizia que estava na pior, como é que o

coraçãopodiaresistir?MasissonãomechateoutantocomooJorgefaltarnosábado.Foidemais.Aténossábados!Segunda-feiracomacaramaislambidadestemundo, ele veiomentindoque tinha levadoopatrãono carroparaofim de semana em Angra. E a televisão mostrou o patrão numa festa dedomingo,aquinoRio.—Pegoumal,hein?—Aícortei.Nuncamais.Agoraestoupartindoparaumcasamento legal,

dasemana inteira,comomeuhomemjuntodemimnanoitede frioedecalor,noventoenachuva,tambémnadivisãodadespesa.Fizaexperiênciadofimdesemana,chega.Odoutorvaimedarasférias?Paracomeçarbem,agentequercurtirumaluademelemCantagalo,terradoErnesto.OErnestoé omeunovomarido.Qualquer dia ele vemaqui para conhecer o senhor,querdizer,paraosenhorconhecer.—Poisnão,Rosemira.Você vai fazer falta,masomotivoé justo, euma

semanaagentepodeesperar.Masvocêescolheubem,oErnestoémesmolegal?—Seé?Olhe,antesdocompromissoquiscombinartudobemdireitinhoe

conteiaeleaminhatransacomoJorge.Pediqueelepensassebemnoqueiafazer,poispessoascomooJorgeachamqueocasamentoasemanainteiraécarrapato grudado nas costas. Sabe o que ele me respondeu? “Rosemira,queroseroteucarrapatinhodetempointegral!”

DEPOISDAQUARTADOSE

Falavasozinhonobar,diantedetodos:—Eumesujeitoàporcariadomeuempregosóparadefenderoleitedas

crianças. O pior é que as crianças não querem mais saber de leite, elaspreferem refrigerante. Quer dizer, as crianças do vizinho, de todos osvizinhos, porque eu não tenho filhos, nunca tive. Ou tenho? A gente nãopode afirmar certas coisas, quando a vida nos coloca em determinadassituaçõesque…Bem,esteassuntoéparticular,ossenhoresesenhorasaquipresentes não têm nada a ver com isso. Ou por outra, para não serindelicado:nãoseinteressamamínimaporisso,ecomtodaarazão.É,oleitedascrianças.Eudefendooleitedascriançasaceitandoumtipode

serviçoque absolutamentenãomeagrada,maso serviçomiserável que eufaçolevadinheiroparaobolsodosmeuspatrões,quecomtodacertezatêmfilhos e devem alimentá-los produzindo bolachinhas para os filhos dosoutros.Faleibolachinhas?Tanta coisaqueéprecisodarde comeraumacriança

paraqueelacresçacomsaúdeeamanhãsejaumcidadãooucidadãútilàsuapátria,aliásnossa,epagueossacrifíciosquenós fizemosporela, indoporsuavezfabricarbolachinhaseassimsucessivamentenofluxodasgerações.Tambémpoderáfabricaroutracoisa,comobotõesoucanhões,nãoimporta.Amimtocouviveremredordebolachinhas.Porque meu emprego consiste em criar a publicidade das bolachinhas

Vitaflor.Alguémjáprovoudelas,poracaso?Não?Senhorasesenhores,euestouperguntando,eseninguémmerespondeconcluoqueasbolachinhasVitaflorsãoirremediavelmenteignoradasdodistintopúblicoaquipresente,oquenãomeespanta,aliásnadameespantadepoisdaguerradeTroia,quantomais isto. Eu também não conheço as bolachinhas Vitaflor, cujo nomeresulta do casamento de vitamina com farinhas, traduzindo flour por flor.Juro que não colaborei na tradução, estou inocente. Quandome deram oemprego ela já era fato consumado. Bolachinha de farinha de trigovitaminada, a delícia que fará seu filho ser o vitorioso de amanhã. Vendiminha alma a este produto, mas juro que nunca provei dele, por umaquestãodeprincípio.PossomorrerdefomenaFaveladoRatoMolhado,masbolachinha eu não como. Nem a Vitaflor nem outra qualquer. Não posso

dizer se ela é melhor ou pior do que as demais bolachinhas, emboraprofissionalmente tenha de proclamar que ela é a imperatriz, a deusa dasbolachinhasdouniverso.Os bons ouvintes já devem ter percebido omeu drama. As bolachinhas

ocupam na minha vida um lugar indevido, reservado para ocupaçõesartísticas e filosóficas que jamais poderão se concretizar. Tenho inúmerasobras escritas em pensamento, e crio no silêncio da imaginação o quedenomineimúsicasupranatural,porquedesenvolvesonsnãocodificadosatéhojenanaturezaenosinstrumentos.Masentrebolachinhasnãodápé.Fiztudoparaconciliarabolachinhaeosurtocriador;falhou.Sugeriàempresaolançamentodebolachinhasfilosóficas,contendoaforismosdesabedoria,edebolachinhas musicais, que ao serem trincadas emitissem um somrequintado. A empresa me respondeu que me pagava para promover asbolachinhasVitaflor.Não era suficientemente grande para lançar produtosrevolucionários. Nem sequer tinha condições para manter conta numaagênciadepublicidade, tantoquemecontratara individualmente,etc.e tal.Queeuguardasseasminhasideiasparaofuturo.Guardei.Entãocontinuonestadedefenderoleitedascrianças,queelasnãotomam,

nemeu,pois,comoosamigosestãovendo,prefiroaalternativaquemereceoapoiodetodososcavalheirosedamasencontradosnestebar.Meustalentospermanecemintactosnofundodeminhapersonalidadecastrada—ódiabo,nãodeviausarestapalavra,meperdoem—maseunãoseioquefazercomosmeustalentos.Devojogá-losfora?Cuspi-los?Vomitá-los?Estrangulá-los?Acabarãomeestrangulando,osamordaçados?Juroquenãosei,nãosei,nãosei.Garçom,porfavorzinho,meuamigo,trazdepressamaisumadoseparaeunarcotizarminhaspotencialidades.Oleitedascriançaspodeesperar.

FILÓSOFO

Amãodireitaerguiaopapelbemacimadacabeça,comoparasignificarquenão se tratava de pedido de auxílio monetário, mas de proclamação oumanifestodealtonível.Portanto,ninguémprecisavaafastar-se.Eraumpretomagro,alto,decarapinhabranca,barbichaalvejandosobrea

camisadepanoordinário,maslimpa.Chegouaopontodeônibuse,perantetrêsouquatropessoas,esclareceuquenãoeracandidatoanada,salvoaumlugarnocoletivo.Em verdade, queriamais do que isso, pois,mal se acomodou lá dentro,

pediu licença ao respeitável auditório para expor matéria de sumaimportância. Confessou que usava o ônibus para falar, porque na ruaninguém lhe dava mais de dois minutos de atenção. Ali, contava comauditório certopelomenosdurante trintaminutos, podendo chegar aumahorasehouvesseengarrafamentodetrânsito,coisaquenãodesejava.Umououtro passageiro que saísse era compensado pelos que entrassem nopercurso normal, e ele fazia questão de ter ummínimo de doze a quinzeouvintes:—Queadiantou,irmãos,euterelaboradoumafilosofiauniversal,queme

custouanosdeanáliseepesquisa,seninguémmeescuta?Falavaemantinhaaltaafolhadepapel,queleriaoportunamente.Otomda

vozerasuficienteparaimpedirqualquerconversaentrepassageiros,queseresignaramaouvi-lo.Osqueamamosilêncionãopensaramemprotestar,mesmo porque um barulho a mais, que importância tem hoje em dia?Motoristaetrocadormostravam-seimpassíveis,comosenemestivessemali,sóoenvelopedeleséqueestava.Apraxeéninguémsemexernessashoras.E,aparentandonãoouvir,todosouviamofilósofouniversal.—Nãomeconsiderosalvadordomundo,massouumcidadãoquevêas

coisas pelo direito e pelo avesso. Elas estão muito embrulhadas, muitomesmo.Umavezquenemaciêncianemapolíticanemareligiãoconseguedesembrulhá-las,tivededescobriromeiodefazeristosemviolência.Noquedepende de mim, está feito. Agora preciso de colaboração das senhoras esenhores aqui reunidos nesta viagem privilegiada, pois esta é a sedemomentâneadasabedoria.Epassoualeropapel:

—Todasaspessoas, animais,plantase coisasdaTerra têmumdireitoeum avesso, uma fachada e um fundo de quintal, uma aparência e umaessência, um sim e um não. Essas propriedades ou condições seembaralharamdetalmaneira,nahistóriadahumanidadeedanatureza,queocomumhojeéestartudotrocado.Opioréqueatrocanemsefazmaisnoâmbitodecadapessoaoucoisa.Umpolíticotemalmadetigre,estadonzelaparticipa da natureza moral do xisto betuminoso, há elefantes mantendocursos de balé ou de ciências econômicas, abacateiros que na época dafrutificaçãoproduzemdólaresfalsosousambasdebreque,umadoideira.Parouparainterpelar:—OquesepassanoLíbano,ecitoumexemploaoacaso,comopodiacitar

a taxade iluminação cobradaaquemmora emrua sem iluminação,nãoénormal. Mas o que é normal em nosso tempo, me respondam: o que énormal?Ninguémrespondeu.— Se não respondem, é porque não temmais nada normal, está claro.

Depois de pensar muito na situação tragicômica do mundo, o que fiz nagráfica onde trabalhava e onde lia os originais dos doutores, na clínicapsiquiátrica do INPS e até no xadrez ondeme puseram exatamente porqueandatudoerrado,chegueiàconclusãodequetemos,emprimeirolugar,denosvirarpeloavesso,paraverseachamosnossoverdadeiromododeseredeviver.Senãoforsimplesinversãodeatributos,esimapropriaçãoindébitadeatributos alheios, temos de restituir esses elementos estranhos a quem fordonodeles,erecuperarosnossos.Épossívelquemuitagentefeiapasseaserbonita,mastambémmaiornúmerodebonitostenhadeseconfessarfeiodemorrer.Nãotemimportância,secadaumreinstalaracaraqueDeuslhedeuaonascer.Acaraeafisionomiamoral,queéaprimeiracaradenóstodos.Custa um pouco, eu sei, dói até, fazer a troca ou restabelecimento daidentidade.Masseagentenãofizerisso,baseadanomeusistemauniversaldoavessismodinâmico,iremostodosprodiaboquecarregue,eentão…Tivededescer,nãoouvioresto.

MÚSICANOTÁXI

Prazeresdocotidiano.Quandomenosseespera…Vocêpegao táxi,mandatocarparaoseudestino(manda,não,pedeporfavor)eresigna-seaescutardurantevinteminutos,novolumemaispossante,orádiodespejandoassaltosehomicídiosdodia.Ostiros,osgemidos,osdesabamentosoacompanharãoportodoopercurso.Éafatalidadedavida,quandosetempressa.Maseisqueomotoristapegadeumimprevistocassete,coloca-onolugar

devido, liga, e os acordes dos Contos dos bosques de Viena irrompem dofuscaamarrotado,masdigno.Bem,nãoéaNonasinfonianemumtítulomenordagrandemúsica,mas

nãoestamosnaSalaCecíliaMeireles,eissovalecomohomenagemespecialaumpassageirodistinto,quepedeporfavor.Cumpreagradecerafineza:— Obrigado. O senhor mostra que tem satisfação em agradar aos

passageiros,oferecendo-lhesmúsicaenãobarulhoecrimes.—Nãotemdequê.Osenhortambémaprecia?—Oquê?—Strauss.Éumdosmeusprediletos.—Sim,eleéagradável.Osenhorestásendogentilcomigo.—Ora,nãoétantoassim.Pusocasseteporquegostodemúsica.Nãosabia

seosenhortambémgostavaounão.Senãogostasse,eudesligava.Portanto,nãotemqueagradecer.—Ejálheaconteceudesligar?—Ih,tantasvezes.Ficoobservandoafisionomiadopassageiro.Uns,mais

acanhados,disfarçam,nãodizemnada,mastemoutrosquereclamam,nãoqueremouviresse troço.Osenhor jápensou:chamarTchaikóvskide“essetroço”?Poisouviissodeumcidadãodegravataepastadeexecutivo.Eledisseque precisava se concentrar, por causa de um negócio importante, eTchaikóvskiperturbavaaconcentração.— Ele talvez quisesse dizer que ficava tão empolgado pela música que

esqueciaonegócio.—Poissim.Nessecasonãofalaria“essetroço”queéocúmulodafaltade

respeito.—Estouadivinhandoqueosenhortocauminstrumento.Olhou-me,admirado:

—Comoéqueosenhorviu?— Porque uma pessoa que gosta tanto de música, em geral toca. Seu

instrumentoqualé?Virou-secomtristezanavoz:—Atualmente nenhum.O senhor sabe, essa crise geral, a gasolina pela

horadamorte,enãoésógasolina:acomida,osapato,oresto.Tivedevenderprataparunsburacos.Masseascoisasmelhoraremesteano…—Melhoram.Ascoisastêmdemelhorar—acheidomeudeverconfortá-

lo.— Porque clarinetista sem clarinete, o senhor sabe, é um negócio sem

sentido.Clarinetetemestavantagem:dáorecadosemprecisardeorquestra.Um solo bem executado, não precisa mais pra encantar a alma. Masclarinetista,sozinho,ficaatéridículo.—Nãodigaisso.Enãodesanime.Odiaemquearranjaroutroclarinete—

quemsabe?talvezatésejaomesmoquelhepertenceu—seráumafesta.—Massedemorarmuitoeujáestareitãodesacostumadoquenemseise

voltoa tocarrazoavelmente.Porque,osenhorcompreende,eunãosouumartista,minhavidanãodáfolgapraestudarnemmeiahorapordia.—Oimportanteégostardemúsica,teramoredevoçãopormúsica,eestá-

sevendoqueosenhortemdesobra.—Láissotácerto.—Nãoimportaqueosenhornãosejasolistadeumagrandeorquestra,e

mesmo de uma orquestra comum.Ninguém precisa ser grande em nada,umavezquecultivealgumacoisabonitanavida.Seurostoiluminou-se:—Quebomouvirumacoisadessas.Agoravoulheconfessarqueissode

nãoserummúsicodostaisquearrebatamoauditóriosempremedoeuumpouco.Nãoeraporvaidadenão,quemsoupratervaidade?Masumsonhoesquisito, sei lá. Ficava me imaginando num palco iluminado, tocando…Bobagem,osenhordesculpe.Agoraasuapalavradeixoutudoclaro.Bastaeugostardemúsica.Nãoéprecisoquegostemdemim,nemqueelagostedemim.Obrigadoaosenhor.Olheiotaxímetro,tireiacarteira.—Eunemdeviacobrardosenhor.Ficoatéencabulado!

OVELHO

Vocêsnãoacreditam,mastambémestecronistacostumairaoBanco,enãoésóparapagar contasde luz,gás, telefone.Vai conversar comoGerente—umgerentesimpático,dessesquenãocoçamaorelhaquandoagentepropõeuma reforma de título. Mas quem sou eu para pleitear tamanha mercê?Procuro o Gerente para conversar sobre amenidades, e ele me ouve compaciênciaeatenção.Atémecontacoisasdeseufilho,oEscritor.OEscritortem três anos e escreve literalmente em todas as paredes da casa. Farejalivroscomgravurasesemgravuraseaprendecoisasqueeu,possivelmente,ignoro.AcuriosidadeintelectualdoEscritoréinsaciável.AssimfazemosdoBanco, sem prejuízo dos interesses bancários (pois o Gerente é uma ferapara trabalhar no meio das maiores apoquentações), um lugar de gratorepouso.OntemoGerenteestava tãoassoberbadodeclientes,papéis, telefonemas,

recados,quenãotivecoragemdemeaproximar.Fiqueiàesperanapoltrona,ao ladodedoisrapazesque tambémesperavam.Esperavameconversavamsobre política, inflação, Copa do Mundo. Eu ouvindo, por força daproximidade,seminteresse.Acertaaltura,umperguntou:—EcomovaiteuVelho?—MeuVelho?—respondeuooutro.—Aquelevaisemprebem.Melhor

doqueeu,vocêetodomundo.—Qualaúltimadele?— Não tem última. Todas são novas e contínuas. Aos sessent’anos —

sessentaelávaifumaça—nada,corre,entraempelada,monta,jogavôleiesónão remaporquenão encontra companheiros comamesma fibra, paradisputarregata.Enquantoisso,fumaebebe.—E…noresto?— No resto ele ainda é de goleada. Parece mentira, mas as mulheres

adoramoVelho,eelecaprichaparadarcontadoserviço.—Quantasvezeselejácasou?— Perdi a conta. Quatro ou cinco, se não me engano. Ou seis. O

extraordinário é que nenhuma das ex se queixa dele, todas que conheçocontinuaramsuasamigase,deummodooudeoutro,dãoaentenderqueodesempenhodeleécemporcento.Sabedeumacoisa?

—Sei.Vocêteminvejadele.— Tenho. Pra que mentir? Meu primeiro casamento não deu certo, o

segundomenosainda.Entãodesisti,agorasoufreelancer.MascomoVelhoédiferente.Todososcasamentosfuncionaram.—Então,porqueacabaram?—OVelho temuma teoria que casamento não pode esfriar, vira rotina.

Antes que isto aconteça, ele passa uma conversamanhosa na gatona— éespecialista em gatonas— e o último episódio da novelinha é vivido semchoronembriga.Umsábio.—Ummestre.—Écomoeucostumochamá-lo.Elerespondequenãotiroudiplomaeque

todo mundo, se for habilidoso, tira de letra. Tem dias que chego a mepreocupar: “Mestre, olha essas coronárias!”. Ele ri, não dá confiança deresponder. “Mestre,não temmedodenegar fogo?”Aí entãonemsedáaotrabalhodemeolhar;fazquenãoouviu.ONuno,meuirmãomaisvelho—irmão de pai e mãe, do primeiro casamento —, fica besta de ver tantaresistência,edizqueoVelhonãoexiste,quenossopaiéaEnergiaCósmicaempessoa.—Eteusoutrosirmãos?—Osoutros?Deixever…Somosquatorzeirmãos,espalhadosnomundo.

TodosadoramoVelho,aliásoNunotambém.Faleiquatorze,massóDeussabequantoshaveráporaí,desconhecidosdagente.NemoVelhosabe.—Algumdevocêspuxouaelenavitalidade?—Uns fazemforça,nãocreioqueconsigam.Essenegócionãocomporta

imitação.Oubemqueocaranasceucomalegriadeviveregozaravida,ounasceu sem isso, e não tem vitamina que ajude. Claro que sempre hámargemparaperformancesindividuaisbrilhantes,eonormaléagenteserbem-sucedida—atécertoponto,opontoX.MasoVelhoexcedeamarcação.Nunca vi ninguém tão identificado com o mundo, a mulher, as coisasagradáveis da vida. Sem contar vantagem — isso é importante. Não sevangloriadenada.Viveplenamente.—Querdizerqueeledánóatéempingod’água?—Nãofazoutracoisa.Bem,vouindo.NossoamigoGerenteaindanãose

desvencilhoudaquelecara,eeuprefirovoltardepois.—Esperamaisumpouco.—Nãoposso.Tenhodeiraumbatizado.—Essanão!

—OVelhoestámeesperando.Meescolheuparapadrinhodoseurebentomaisnovo.Tenhoumirmãozinhodedoismeses,nãoteconteiainda?Ciao.

SERMÃODAPLANÍCIE

(paranãoserescutado)

Bem-aventuradososquenãoentendemnemaspiramaentenderdefutebol,poisdeleséoreinodatranquilidade.Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao

riscodeassistiràspartidas,poisnãovoltamcomdecepçãoouenfarte.Bem-aventurados os que não têm paixão clubista, pois não sofrem de

janeiro a janeiro, com apenas umas colherinhas de alegria a título debálsamo,ounemisto.Bem-aventuradososquenãoescalam,poisnãoterãosuasmãesagravadas,

seusexocontestadoesuaintegridadefísicaameaçada,aosaíremdoestádio.Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias,

projéteis,contusões,fraturas,emesmodaglóriaprecáriadeumdia.Bem-aventuradososquenãosãocronistasesportivos,poisnãocarecemde

explicaroinexplicáveleracionalizaraloucura.Bem-aventurados os fotógrafos que trocaram a documentação do esporte

peladosdesfilesdemodas,poisnãoprecisamgastartempoinfindávelparafotografarorelâmpagodeumgol.Bem-aventuradosos fabricantesdebolasechuteiras,quenãorecebemas

primeirasnacaraeassegundasnavirilha,comoosatletaseosassistentesocasionaisdepeladas.Bem-aventurados os que não conseguiram comprar televisão a cores a

tempodeacompanharaCopadoMundo,pois,assistindopeloaparelhodovizinho,sofremsempagarvinteprestaçõespelosofrimento.Bem-aventuradosossurdos,poisnãoosatingeoestrondardasbombasda

vitória, que fabricam outros surdos, nem o matraquear dos locutores,carentesdeexorcismo.Bem-aventuradososquenãomoramemruasdetorcidainstitucionalizada,

ou em suas imediações, pois só recolhem50%dobarulhopreparatório oucomemoratório.Bem-aventurados os cegos, pois lhes é poupado torturar-se com o

espetáculo direto ou televisionado da marcação cerrada, que paralisa oscampeões,oudolanceimprevisível,quelhesdestróiainvencibilidade.Bem-aventurados os que nasceram, viveram e se foram antes de 1863,

quandosecodificaramas leisdo futebol,poisescaparamdos tormentosdatorcida, inclusive dos ataques cardíacos infligidos tanto pela derrota comopelavitóriadotimebem-amado.Bem-aventuradososque,entreabolaeobotão,secontentaramcomeste,

principalmente em camisa, pois se consolammais facilmente de perder obotãodaroupadoqueobichodavitória.Bem-aventurados os que, na hora da partida internacional, conseguem

ouvirasonatadeAlbinoni,poisdesteséoreinodoscéus.Bem-aventuradososquenãoconfundemaderrotadotimedaLapôniapelo

time da Terra do Fogo com a vitória nacional da Terra do Fogo sobre aLapônia,poisaestesnãovisitaosentimentodeguerra.Bem-aventuradososque,depoisdeescutarestesermão,aplicaremtodoo

ardorinfantilnopeitomaduroparadesejaravitóriadoselecionadobrasileironestaeemtodasasfuturasCopasdoMundo,comofazovelhosermoneirodesencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razãoquandoofutebolinvadeocoração.

TREZENAILHA

Aindaexistemilhascomtesouro,nabaíadeGuanabara,comoaliásemtodabaía ou mar que se preze. Sabe-se que ouro e pedras preciosas estãoenterrados há centenas de anos, e fala-se vagamente empesquisá-los.Masissoexigiriatantamãodeobra,tantosuor,queagentepreferedeixarcomoestá.Umdiaotesourosemanifestaàflordaterra—oununca.Todailhaéencantada.InclusiveadoRaimundo,naqualospescadoressabemdeciênciacertaquedormeumainexploradariqueza,aquestãoélocalizaroponto,eoRaimundoaindanãoapurou.Na Ilha de Cambambi, pelo que conta um repórter que por lá andou, a

riquezapareceresumir-senosdezfilhosdeumamulher—esquecionome,vou chamá-la deArlete— viúva ou desquitada, ela não explica direito, emvésperadeproduzirumdécimoprimeiro.Porenquantoapenasdois,osmaiscrescidos,ajudamnobatente,masotempoútildosoutroschegará,seaáguapermitir.A água vemdeRamos, no barquinho, eArlete começa a pôr emdúvida a sua potabilidade, ao mencionar as rebordosas intestinais que osgarotoscostumamsofrer.Comotodossealimentamdepeixefresquíssimo,pescado e fritado na hora, a conclusão só pode ser desfavorável à águaimportada,quematouseisfilhosdeArlete.Dezresistematéhoje.OBrasilesperaquecontinuem.Sãotreze,nototal,osmoradoresdeCambambi:Arlete,osdezfilhos,um

irmãoadultoeumasobrinhadequatroanos.Ninguémosincomoda,eestaéuma amenidade das ilhas. Não têm vizinhos nem problemas de tráfegopesado. Sequer aparece por lá uma bicicleta, um rolimã. O ar é musical:coleiros e canários se encarregam do som. É verdade que um bando demaritacasperturbaoconcerto,eporsuavezéperturbadopeloestrondodosBoeings.Masagenteseacostumaatudo.Ofilhomaisvelhodeclara:—Agenteacostumamoscomapobreza.Todos.Semexcluirseteporcos,quevivemdepetiscarsiri,edoiscachorros,

nutridos de peixe. Cães e suínos não dão despesa a Arlete. Eles mesmosprovidenciamosustento.Vãoparaabeiradomarecaçamepescamàsuamaneira. Animais industriosos, compreensivos, simpáticos, sabem que avidaéassimmesmo,enãosequeixam—comoderestoninguémnailha—dasituaçãodobalançodepagamento,nemdoAI-5.

Esquerda ou direita, independência ou morte, Vasco ou Flamengo, sãoopçõesquenãoocorremaArleteeàsuatribo.Paraeles,aalternativaéesta:—Outainhaoucocoroca.Questãodemaré.Tainhana alta, cocorocanabaixa.Oouvido afiadodos

garotoschegaaperceber,ametrosdedistância,oroncodascocorocas,quenãoroncamdesonooudeempáfia,mastalvezporgentileza,avisandoqueestánahora de serempescadas.Quanto às tainhas, ameninada está aflitapor chegar o inverno, quando o cardume vem desovar, e então se comeregaladamenteemCambambioquedemelhorservemrestaurantescariocasvisitados pelo Apicius: ovas de tainha. Lá se distingue a tainha nova outapiara,datainha“viajada”,que,porserdemaisidadeetercorridobastanteaságuasdomar,temmelhorsabor.Seomarestáfurioso,enãosefisgatainhanemcocoroca,ojeitoéesperar

que pescadores mais valentes se lembrem da pequena comunidade e lhetragamode-comer.VisitaemCambambiéacontecimento.Nãoconvémfiarmuitonela.Vem,vai,naincertezadahora,oudomês.Agora chegou a notícia de que a ilha está para acabar. Será aterrada, em

proveitodoAeroportoInternacional,queprecisafazerseuterminaldecarga.Arlete para onde vai? e seus filhos e seus parentes e seus porcos e seuscachorros? Lugarno continente, não tem.Tema ilha doRaimundo, que éboa pessoa, homem sossegado, mas será que o Raimundo consente emrecebê-los?AtéagoranãoseconsultouRaimundo.Masdiz-quenailhadeletem tesouro enterrado, e é possível que os bichos de Arlete, escavando efossando,fossandoeescavando,topemcomocofredeouroebrilhantes,quepor tradição e dever há de estar dormitando no chão de Raimundo. Osmeninos podem ajudar na pesquisa. O décimo primeiro, que se anuncia,serápossivelmenteumbebêrico,nascidoemberçoesplêndido.Otesourodáparaser repartidoentreRaimundoeseushóspedes.Questãode tempo.Asilhas acabam. Ficam as pessoas, os animais, a miséria acostumada a sermísera,desdequehajadebaixodaterraotesouroesperando.

JOSÉ,DOMUCURI

Comosenãobastasseoexcessodepopulaçãodomundo,hámuitoandamoshomens detectando a existência de outros mundos habitados no espaçosideral, e há quem exclame, emocionado: “Não estamos sós”. Mas quemdissequeestamossós,sevivemostãoacotoveladospelasavenidasdaTerra,ehá tamanhafaltade lugarpara todosquequeremviver?Poiscomose tudoistonãofossesuficiente,corremàsmatasdaregiãobanhadapelorioMucuri,lá onde Minas, Bahia e Espírito Santo se confundem, e de suas brenhasretiram José Pedro, o último promeneur solitaire de que havia notícia, ohomem que vivia ao lado de uma fogueira acesa, espantando onças e,sobretudo,gente.—Vem,rapaz!Queremosquevocêparticipedasmaravilhasdacivilização!AoqueJoséteriarespondido:—Vocêsmearranjamcasapramorar?— Bem, isso estámeio difícil, José, aindamais com o fim da denúncia

vazia.—Eemprego?—Sósevocêforconcursadoehouvervaga,dentrodoperíododevalidade

doconcurso.—Comida?—Comida,José,vocêteráqueesperarqueasroçasplantadaspeloministro

Delfim cresçam e apareçam.Não importa, venha assimmesmo, estão noschamando de outras galáxias, está assimde disco voador, e você não podeperderoespetáculodeconfraternizaçãocósmica.José recalcitra. Estava tão bem ali! Não paga aluguel, não preenche

formulárioverdeouazuldo impostode renda,nãoobedeceahorárionempatrão, come carne variada, segunda-feira, paca, terça, peixe, quarta, aveslacustres,quinta,raízesetubérculos,sexta,frutas,sábado…—Maisumarazãoparavir.Estádesfrutandoprivilégios,etodossãoiguais

perantealei,aindamaisagora,comopresidenteFigueiredointeressadoemimplantardemocracia.Outra razão, que se ministrou a José, é que os fazendeiros do Mucuri

reclamamcontraohomemestranho,enfurnadonomato,sabeDeusoquê.Coisa boa não é. Será o último subversivo, maquinando sortidas contra o

gado,paraaliciargenteedestruirasconquistasdaRevolução?InutilmenteJoséalegaqueajudaosrurícolasespantandoonçacomoseu

fachonoturno.Asonçasnãodevemserespantadas,sustentamoquerestadebelezaselvagemnaregião.Esse homem não trabalha na lavoura de mandioca, tal como os outros

homens; não produz, não rende, e, embora não pese a ninguém, pesaglobalmentenoespíritodetodos,comoseumistério.Ofatodenãoproduzirnão é o mais grave, e tolera-se no asfalto e na praia, à luz do dia,civilizadamente; mas no interior do mato? Que ideia faz esse sujeito docontratosocial?Está-seninandoparaocontratosocial.Nãoépossível,dizemoscivilizados.Tragamessehomemparapertodenós,ele temdeaprenderoureaprenderavidaapertadaquelevamos.José tem medo. Os homens, as cidades, os códigos, até os prazeres

intervalaresdavidasociallhecausampavor.Omotordesuavoltaaoestadonatural foi menos o amor à natureza do que o pânico diante dodesenvolvimentourbano.Emcadahomemvêoperigo, emcada situaçãoaameaça,emcadapalavraacondenação.Comárvoresebichos,eleseentende.Nueexperimentado,conheceedominaoambiente,enelevivesemmaioresriscos.Nacidade,nãopraticaraaçãocriminosa,efoiprecisamenteissoqueofezembrenhar-senomato.Inocente,faltavam-lheasprovasnegativasdesuainocência.Secometessequalquermalfeito,poderiamentir e salvar-se,masestando puro e desarmado diante da ordem social, como mentir senãoconfessando a falta imaginária e, portanto, condenando-se? A solução eravirarbicho.Fez.AgoratrazemJoséparaumacapital,eleéfichado,fotografado,carimbado,

numerado, entrevistado, televisionado, condenado a viver, como tantosoutros,emsubcondiçãohumana,massoboamparonominaldalei.DetodasasleisdaRepúblicaedacivilização.Joséestásalvoouperdido?Éperguntadessasdesefazeraopovonasruas,

cadaqualcomsuaopinião,easopiniõessemultiplicam.Háa intençãodeprotegerJosé,ouaintençãodefazerdeJoséumescravoouumpáriacomotantosoutros,porquenãoéjustoescaparàsortedamaioria?Ondejáseviubancaro índiosemser índio?E,alémdomais, índiosolitário, sem ligaçãocom os maxacalis ou os saudosos aimorés? Nada disso. Todos são iguaisperantealei.E,daí,nãoestamossós.Ocertoéquenuncamaisbrilhará,nanoitedasmatasdoMucuri,aquele

foguinhosolitáriodeespantaronça.Egente.Joséserácontribuinte,eleitore

infeliz.

MANDULA

Tempo é este de muito pão de ló e altas benfeitorias — dizia o finadoMandula, que era otimista e nem por isso morreu decepcionado. EscreviMandulaepeçoaoamigorevisorquenãoemendeparaManduca.Verdadeque ninguém se registra Mandula, mas este se chamava Manuel DurãesLadeira,simplificouparaMandula,eMandulaficou.ConheciesseMandulaaípor1948,naareiadapraia,emtornodovendedor

desorvetes.Asatisfaçãocomqueelecompravaedistribuíacasquinhasmedespertou interesse. A princípio imaginei que fora contratado para fazerpropagandadosorvete,maslogomecertifiqueidequeagiaassimporamorde fazer. Um banhista informou-me queMandula gostava de obsequiar eprecisamente na véspera ganhara uns bons cobres na loteria. Pagou osortimentointeiro.DepoisviMandulaàentradadoparquedediversõesoferecendobilheteaos

garotos.Animei-meapuxarconversa:—Gostadeveracriançadafeliz,nãoé?—Felizeusouporcriançatersido.E era feliz, evidente.Mandula amava as pessoas, os animais, as plantas.

Amava a democracia, emesmo quando esta periclitava ou sumia de todo,paraeleeracomoseestivesseviçosa:—Boaéaocultezadoshomensquenemsempreadescobertopodevir.A

todosperdoe-se,econfianteespere-se.—Esperaroque,Mandula?—Signosvejodefartacolheita.Negarnãopodemosquefagueiroseventos

anunciam-sejá.Anunciavam-se para ele,mas os ventos não apareciam.A gente perdia a

esperança. MenosMandula, que tinha fórmulas de governo já preparadasparaquandoseinstaurasseoreinodajustiçaplena.Visitava orfanatos, presídios, associações protetoras disso e daquilo, e se

nãolhedessemapalavra(nuncalhedavam)nemporissoseaborrecia.Faziadiscursosmentais,construtivos.Comorepetisseafrasedopãodelóedasbenfeitorias,perguntei-lheonde

estavamessascoisas,eelemerespondeu:—Verfácilé,desdequeemmentesetenhadainterioridadeosentido.

Compreendi,oujulgueicompreenderqueparaMandulatudosepassanointeriordagente,epoucoimportaotraçadoexternodascoisas.AforçamoraldeMandulanãoestavanoseuotimismo,ootimismoéque

resultava da sua força moral, branda e invencível. Se assistisse a umterremoto, descobriria nele alguma vantagem para as vítimas — a desobreviver,oumesmoademorte-relâmpago,praticamentesemdor.Essehomembomeratidocomolouco,porquenãoambicionavaqualquer

formadedomínio.Recusouacandidaturaavereador,quelheofereceramnopressuposto de que talvez um louco fosse melhor do que os equilibradostradicionais.Provouque tinhaequilíbriomentalperfeito, ao responderqueantesnão ser vereador do que ser, pois assimnão atrapalhava osnegóciospúblicos, que correm tão bem, entregues ao curso natural das coisas,destinadasatornarohomemfeliz.Explicava:—NosprimeirostemposCâmaranãohavia.Esimpleseratudo.Porbens

trocavam-sebens,assimtudomais.—Masseusplanosdegoverno,Mandula,entãoporqueosfaz?— Ocupados sejam os homens, mais cheio o viver, mais serviço terão

datilógrafas,amenaclasseporcerto.—Sóisso?— Pouco é idealizar? por minha vez pergunto. Obrigação não há de

cumprir,sedispostajáestádomundoaordemgeral.Nunca soube de casos de amor em sua biografia anônima, porém sentia

que, para ele, amar era a própria razão das coisas e não carecia localizá-lanessaounaquelapessoa.Jamais o vi queixar-se de doença, maus negócios, desejo frustrado,

decepçãocomalguém.Poroutrolado,nãoriaàtoa,nãofaziaogênerodosquefingemalegriaparanãodaremobraçoatorcer.Eramanso,comum,sempretensãoaoriginal.Passeitantotemposemvê-lo,agorasouabordadoporummoçoquepede

licençaparaumapalavrinha:—Sou filho doMandula, aquele amigodo senhor. Estoudesempregado,

seráqueosenhormedáumarecomendaçãoparaalguémquepossaresolveromeucaso?—Antesdemaisnada,medênotíciasdeseupai.Nãosabiaqueeletivesse

família.—Tinhaenãotinha,porquenuncaprestoumuitaatençãoemnós.Dizia

quesuafamíliaeratodomundo,enãocuidoudagente.Nãoestouacusando,

mas…—Ótimosujeito,oMandula.—Tambémacho,masdeixou a gentenuma situação…Se eupediauma

coisa, ele respondia trocando o lugar das palavras, sabe como é? e dandooutracoisaquenãoeraapedida.—Equaleraessaoutracoisa,porexemplo?—Oprimeiroobjetoqueestivesseàmão,equeàsvezesnemeradele,era

dagentemesmo.ContouqueMandulamorrera atropeladoporumônibus colegial— logo

ele, amigo da garotada — mas tenho para mim que ele morreu foi de,começando pela inversão da ordem convencional das palavras, chegar àinversãodaordemconvencionaldomundo.

MARIETA

Marietafeznoventaanos.NãoresistoàtentaçãoderevelaraidadedeMarieta.Seiqueé faltade educação (maspoucagente sabehojeoquequerdizer

faltadeeducação,oumesmoeducação)falaremidadedemulher.São múltiplas as teorias sobre idade feminina. Citarei algumas: 1) As

mulheres têm a idade que parecem ter. 2) Há tantas idades na mulherquantososvestidosqueelapõeoudespe. 3) Idadeemaquilagemsãoumacoisasó.4)Mulherestásemprecomeçandoacontardenovoamesmaidade.5)Otemponãoexiste,eaprovaédadapelasmulheres.6)Mulhernenhumatemidadealguma.Etc.Euenvelheceriaaindamais,sefosseanotaraquitodososconceitosalusivos

a essamatéria; enquanto isso, asmulheres ficariam cada vezmais jovens.Depois,nãoestouinteressadoemcompendiaraincertasabedoriaemtornodo tema incerto. Meu desejo é só este: contar a idade de Marieta, porestranhoquepareça.E não é nada estranho, afinal.Marieta fazer noventa anos é tão simples

quantoelafazerquinze.Nofundo,estáfazendoseisvezesquinzeanos.Estaé talvez sua verdadeira idade, por uma graça da natureza que assim odeterminoueassimofez.Privilégio.Marieta, amaisnovadasminhasprimas,enãoexagero.Se falo comela,

reverdeço. E não a faço menos verde por lhe salpicar um pouco do meucinza. Quem falou em encinzentar a claridade intrínseca de Marieta? Elanemsedáaotrabalhodeespanarocinza.Elaéoclaro,sobatezmorenadafamília.Uns são dramáticos, outros ensimesmados, outros ainda fogem à

classificação (coisa que acontece a todas as tribos), porémMarieta não lheapeteceassumirnenhumdessespersonagenscatalogadosounão.Elaéumaalegrianormal,umserviço,umdedicar-seaosoutros.Dizê-la solteiranãoacrescenta informação relevante.Solteira, sim, jamais

solteirona,noqueapalavra temdemurcho.Ogeraldaspessoas é casado,solteiro,separado,viúvo,namorado,encrencadoetc.Marietanãocabenessascategorias limitadas.Amaiscorretaseriaadocasamento,masexplique-se:casoucomavida,avidadefamília,osentimentodeintegração.

Irmãos, sobrinhos, sobrinhos-netos, sobrinhos-bisnetos, por que nãosobrinhos-trinetosoutetranetos?Nacasa-grandequeéocoraçãodeMarieta,hásempreumquartodisponívelparamaisumparente.Porissomesmo,elanãotemcasaprópria,nempoderiater.Preferehabitaraomesmotempoemtantos lugaresquea reclamam.Poisestáao ladodosquenascem,dosquecasam,dosqueviajam,dosquemorrem;nãoéatia,avelhasenhora,oserincômodo para o qual é preciso inventar um canto inexistente noapartamento, já que ela não se resolve a sumir. É a companhia querida,amada.Alguémquerepresentaa forçasecular,oriodosanguefluindoemsilêncioemtodasasveias.Marieta e suamemória das coisas que aconteceramhámuito tempo, tão

límpidas,comoguardadasemcaixadesândaloesemprelustradasparaquenãopercamofrescor.Nãoviveabrindoacaixaparaestadearessasriquezas.Quandoconvém,faladopassado,eopassadoéhoje,serenamente.Viverdesaudades,équedejeitonenhum.Lembrançaspreservadas,láisso

é outra coisa. Marieta não se parece com arquivo genealógico, o que nãoimpedequeelasaibamaisqueosarquivistas,emsetratandodecertaregiãomineira,certoclã.Ah, Marieta, que inveja eu sinto de você, menos pelos seus noventa,

perdão,6∑15anos,doquepelosinalqueiluminouoseunascimento.Sinalde alegria serena, de firmeza e constância, de jovial compreensão da vida,quemandachorarquandoéhoradechorar,rirorisocerto,curtirumaformadeamorcomaseriedadeeanaturalidadequetodoamorexige.Vocêteveproblemasesituaçõesgraves,dequeeunãosoube?Foifácilou

difícilsuavitóriasobreascircunstâncias?Queintuiçãoaconduziuporessecaminhofeliz,defelicidadedosoutros,quandoétãoobscurosempreopontodepartida?Seinão,Marieta (debatismoe certidão,MariaLuísa),mas você é amais

agradávelcombinaçãodegentecomgentequeeuconheço.

ORATOEOCANÁRIO

Homemcomfome,oqueécomum;semcomidaparasatisfazersuafome,oquetambémnãoéraro.Aparênciamodesta,masdigna;barbaporfazer;carade necessidade. Levava uma sacola. Passou pelo restaurante tambémmodesto,comqualquercoisadesimpático—acordasparedes,talvez—eentrou.Foidiretoaogerente,nacaixa:—Desculpe…Selhedisserquehácincodiaseunãocomopropriamente,

sóestareifalandoverdade.Masosenhornãovaiacreditar.—Porquenão?—Sintoqueécompreensivo.—Tambémjápasseidiassemlevarumbocadoàboca,eseiquenãoénada

divertido.—Entãoeuquerialhepedir…Nãoprecisouexplicar.Ogerentechamouogarçom:—Sirvaalgumacoisaaessesenhor.Porcontadacasa.Evoltou-separao

recém-chegado:—Hoje é o meu dia de ajudar o próximo. Aniversário da minha santa

mãezinha,queDeustenha.Ohomemsentou-se, comeu lentamente, saboreandooprato simplesque

uma senhora desconhecida e falecida lhe despachava do céu. Acabando,voltouàcaixa:—Claroquenãopossolhepagar,oamigosabe.Masagradecerdecoração,

issoeuposso.—Denada,oraessa.— Mas não vou embora sem lhe provar de alguma maneira minha

gratidão.Tenhoaquiumacuriosidade,queosenhorvaiapreciar.Tiroudasacolaumpianominúsculoeumratinho,edisseaeste:—Toque,Evaristo.Evaristo não se fez de rogado, e executou um trecho de Pour Elise com

bastantesensibilidade.—Éfantástico!—exclamouogerente.—Nuncavicoisaigual.—Temmais.Osenhoraindanãoviuomeucanarinho.Surgiudasacolaumcanário-da-terra,dócilàconvocação.—Aquelamodinha,Sizenando.

Com acompanhamento de piano por Evaristo, Sizenando atacou É a Ti,FlordoCéu,arrancandodiscretalágrimadogerente.— Que beleza! Mas o senhor, não leve a mal eu perguntar, com esse

tesouronasmãos,precisaviverdessejeito?—Ah,meuamigo,nãoposso,nãodevoexploraressesinocentes.Comoé

que iriamercantilizar os dons do Evaristo e do Siza, que consideromeusfilhos,detantoqueeugostodeles?Diante do gerente boquiaberto, o homem retirou-se com a sacola e seu

conteúdo.Foiandandopelarua.Derepenteestacou,preocupado.—Eunãodeviaterfeitoissocomumcaratãogeneroso,quemematoua

fome.Voltouaorestaurante,ondeogerenteorecebeucomsurpresa:—Esqueceu alguma coisa?Não vaimedizer que, cincominutos depois,

estánovamentecomoestômagovazio?Oupensoumelhor,equermevenderosdoisartistazinhosemaisopianito?—Nadadisso.Vimporumaquestãodeconsciência.—Comodisse?—Questãodeconsciência.Osenhorfoitãolegalcomigo…—Edaí?—Daíqueeunãotinhaodireitodefazeroquefiz.—Equefezoamigosenãomeregalarcomoseupardeartistasqueme

fizeramsubiráguaaosolhos?—Porissomesmo.Osenhorsecomoveucomaaudição,masnãoéjusto

quecontinueiludidonumpontofundamental.—Cadavezpercebomenos.Desembuche,homem!—Oseguinte.Eu enganei o senhor.OSizanão canta coisanenhuma, é

um canário bobo, faz aquela figuração toda, mas quem cantamesmo é oEvaristo,queéventríloquo!Este caso me foi contado por amigo merecedor de crédito, mas fico na

dúvida se não será criação de algum escritor, adaptada ao modo de sercarioca.Nestecaso,queoautormeperdoeoavançoemsuaobra.

DIÁLOGODOSPESSIMISTAS

—Ascoisasnãoandamboas.—Éverdade.Acoisanãoandanadaboa.—Porquevocêdiz“acoisa”enãoascoisas?—Porqueascoisasdiminuíram,diminuíram,ehojesórestaacoisa.—Quecoisa?—Euéquesei?Sópossodizerqueacoisaestápreta.—Ojeitoéapertarocinto.—Jáapertei.Nãosobrounenhumfuro.—Fureoutros.Váfurandoatéoinfinito.—Perdão,meucintotemtamanholimitado.Seeufurá-lotodo,elecai.—Émesmo.Dojeitoquevãoascoisas,temosdevoltaraosuspensório.—Vocêacha?Nodia seguinte vema recomendação láde cima: encurtar

suspensórios.—Quetalsuprimirascalças?—Éumaideia.Masviráimediatamenteoimpostodeandarsemcalças.—Nãoseriaumimpostosério.Opovosearregimentariaparaprotestar.—Talvez,masacabariapagandooimpostocomcorreçãomonetária.—Bem,nãoseriapropriamentesemcalças.Seriatanguinha,éclaro.—Já imaginouopreçoda tanguinha?Ninguém iriaparao trabalho sem

umagrifefrancesaemlugarbemvisível.—Esseéqueéomal.Brasileiroquerapertarocintomastemdesercinto

assinado.Ocronistajácaçooudisso,masatéeleaderiuàmoda.—Tambémnãoétantoassim.Háumafaixadapopulaçãoque,emlugar

decinto,amarraumacorda.—Nopescoço?—Não,nacintura.Eháoutrosqueusambarbante.Ascalçascontinuamde

pé,mesmoqueocaracambaleie.Jánotouqueapreocupaçãonãoéalimentarouvestirconfortavelmenteohomem,masevitarqueascalçascaiam?—Nãotinhareparadonisso.Querdizerqueoimportanteé…—Éoquevocêestápensando.Aaparênciaacimadetudo.Aimportância

docintoestánisto.Ocintoescondearealidade.—Mastodomundoandameionu.Naspraias,nosbares,nasruas.—Andameionu,masdecinto,oucomelásticoquefazasvezesdecinto.É

precisosempreesconderalgumacoisa.—Pobrebarriga.Faleiemapertarocinto,masaverdadeéquequemfica

apertadaéela.Ocintonãosente.—Abarrigaéoutroassunto.Quantomaismiséria,maisbarrigaestufada

pelaalimentaçãoimprópria.Nãopensevocêquebarrigonaésinaldefartura.—Eusei.Podeserdecarência.—Pois é.Então, apertar o cintodeuma criançaquenão temcinto, pois

teméfome,nãoresolve.— Certo. Mas apertar o cinto, na recomendação oficial, quer dizer:

renunciaraosupérfluo,pechinchar,gastaromenospossível.—Bonspropósitos.Jáimaginouoqueaconteceriaseelesfossemlevadosà

risca? A indústria dos supérfluos, falida. Privado de diversões atraentes, obrasileiro entrava emparafuso, e era um tal de recorrer à sonoterapia quenão havia overnight que chegasse para pagar a conta. É uma taxa dedesempregoquevou-te-contar.—Querdizerquenãoháremédio.—Remédio,então,équeestácustandomaisdoqueadoença.Oremédio

verdadeiroseriaoregressoàvidaselvagem,masopaíscresceutantoqueavida selvagem acabou, liquidada pelos posseiros e pelas empresas dedesmatamento e reflorestamento. Quando os projetos de desenvolvimentointegradochegamàtocadotatu,nãohámaisnadaafazer.—Senãodizerqueascoisasestãopretas.— Pretas, propriamente, talvez seja fruto de deficiência ótica. As coisas

estão,quemsabe,maispararuças,tirandoapardo,mesmoporqueopretodeverdadeécorsemcor,negaçãodascores,oquenãoserveparadefinirumasituação.Éoquelhedigo:acoisaestáruça.—Àvistadoexposto,ecomonãopodemospintaracoisaderosa,quetal

tomarmosumchope,driblandoessecalorãodapeste?—Poisvamosaochope,enquantoelesdeixarem,porqueamanhã…

AGORAPENSEIEMROSA

AgorademanhãpenseiemRosa.Nãoé todososdiasquepensoemRosa.Isto não quer dizer que a esqueci. Apenas, há lembranças que se deixamguardarnumcompartimentomenos frequentadodamemória,eécomosenãoexistissem.Existem.Eaumpretextoqualquer,oumesmosempretextosefazemnotaremsuapermanênciacalada.Hoje o pretexto foi simples. Dia do aniversário de Rosa. Não guardo de

cabeçaoanodenascimentodaspessoas,guardosóodiadomês.EntãomeveioacuriosidadedeconferiraidadedeRosa.Consulteiosapontamentoseme surpreendi. Rosa podia muito bem estar viva, conversando comigo,recebendoumabraço,meoferecendoumdeseusdocesespeciais.Nãoseria,éclaro,nemamoçanemasenhorade53anos—duasimagens

marcantes deRosa, que a resumemparamim—pois já se passoumuitotempo depois que ela se foi.Mas seria uma velhinha perfeitamente viável,como outras que ainda vejo nas ruas de Copacabana, acompanhadas pelafilha ou neta, quando não se aventuram sozinhas. Não são muitas essasvelhinhas,écerto,mastambémnãoconstituemfenômenodanatureza.Eeugostaria de, ao passar por uma delas, deter-me um instante a olhá-la e,reconhecendo-a,dizer:“EstaéRosa”.Que bom seria se eu visse Rosa, num rosto, num vestido, num andar,

mesmo que a semelhança não fosse completa,mas se impusesse por umtraçobemexpressivo:suapelebranca,deumbrancolembrandocamélia,seutalhe longilíneo, seus longos cabelos repartidos um pouco à direita, e ocaracolnatesta,queafotografiaconservouparaalémdasmodasdotempo.AindanãoencontreiessaréplicadeRosa,ederestonuncaaprocureisenãoagoraquemeveioaideia,digomelhor,odesejodematerializaralembrançadeRosanumlancefortuitoqueexpõeaduplicatadaspessoas.Das duas ilustrações de Rosa que a memória selecionou, é claro que a

primeira,damocidade,tornou-seapredileta.Asegundaémelancólicaenãose confunde com aquela. Rosa tinha fama de ser uma das moças maisbonitasdacidade,senãoamaisbonitadetodas.Nãochegouaserfeia,comotempo e a doença, mas perdeu o viço, o esplendor natural, a expressãosuntuosadeflorhumana.Atéummeninoseriasensívelàsuabelezajovem,e eu eramenino. Se não dizia a ninguém, é certo que poderia dizer, com

orgulho:“ÉdistintoserirmãodeRosa.Eusou”.Decertaforma,possoconsiderá-laminhamadrinha.Madrinhadecarregar

bebênosbraços,acaminhodapiadeáguabentanaigreja.Écuriosocomoumatodequenãopossoteramenorlembrançavisualseinserenateladamemóriaeaíseprojetanitidamente.VejoRosamenina,todagarrida,vestidonovo,levandocommuitagravidadeaquelebonecoinexpressivo.Ascriançasassumem um ar de grande responsabilidade quando lhes é entreguequalquertarefa.Rosaiasériaepausada,commedodequeobebêlhecaíssedasmãos. Se ele chorasse, ela não saberia como fazer para consolá-lo. Osolhos no bebê e na calçada, ao mesmo tempo. Rosa quase tropeçou nocalçamento irregular. Os pais olham para ela, atentos, vigilantes, paraprestar-lhe auxílio caso tivesse dificuldades. Não teve. Entra gloriosa naigreja,conscientedamissãocumprida.Menosumpagãonomundo.Talvez não tenha havido essa tensão, tudo foi simples. Rosa, com o

sentimento inato das mulheres, já pegava no bebê com a mesmanaturalidadecomquemaistardepegarianofilhoúnico.Épossívelrecolherde um acontecimento dois instantâneos divergentes. Quantos não dará oacontecimentoimaginado,mesmoquandosepassouconosco,emidadequeobstava a percepção? Rosa preocupada ou Rosa serena, pouco importa. Ésempre Rosa, vinculada a um rito familial, espécie de sacerdotisa ou anjoprotetor,nesseinstantedequenãomelembro,elembro.Pois é.Com87 anos, bemque ela podia estar aqui, ou emoutra cidade,

recebendoumramoderosas,umpresente,telegrama,cartão,visita,abraço.As palavras não variam muito. Meus parabéns, muitas felicidades. Vocêainda vai viver muitos anos, para dar alegria à gente. Quê isso, você estámuitobem-disposta,nãovenhacomessahistóriadeeczema,queninguémacredita.Seeuprecisasseserbatizadodenovo,achoatéquevocêseriacapazdemecarregarnocolooutravez…Parabéns,Rosa.Estoumedivertindocomigomesmo,pensandoessascoisas.Oleitorpode

estranharecensurar-meoespaçoperdidonumjornalquevivedenotíciasetemamissãosocialdepublicá-las.Estanãoéumanotícia,eusei.Oué?Tudoquesepassanocoraçãodagenteénotícia.Reflitaumpouco,leitor,ehádeachar emsua lembrançaumaRosa,maismoça,mais velha, bonita ounãobonita,queimportânciatemisso?masRosa.

COMLICENÇA:ABARATA

A barata. Por que este velho tema (chamemo-lo assim) volta sempre àmáquinadeescreveredaípassaaojornaleentranacasadetodomundo?Háassuntos graves, eu sei, mas o teclado quer escrever é a palavra “barata”,assuntoquenomáximopedeinseticida.E,seforpossível,certaexpressãodeasco. Se possível. Os emissários submarinos e outros despertadores denáuseareclamamprioridadeemaldãoensejoaquesesintanojodiantedeumabarata.Hámesmo,até,quemcultiveumsentimentozinhodeternurapelabarata.

Pobre que ela é, desamparada, furtiva, aguardando a noite, o sono dosmoradores,paracuidardavida.Àprimeirachinelada,ouàsegunda,poisabarataéfittipáldica,adeusexistência.Então,certaalmapura,comoduasqueconheci, consagra aos ortópteros blatídeos um amor feito de piedade,alimenta-os,deixa-osprosperar,salva-osdoataque indiscriminadodequemcultivaoutropontodevistasobrearelaçãogente-barata:— Essa não! Essa éminha amiga, não posso consentir que você liquide

comela!—Ecomoéquevocêsabequeessaaíéasuaamigaenãooutraqualquer,

setodasasbaratassãoiguais?Oprotetor(ouprotetora)debarataolhacomdesprezoquemlhefazobjeção

tão boba. Há personalidade nas baratas, já não falando na variedade deespécies caseiras: a periplaneta americana, a blatella germanica, a blattaorientalis… Não se deve discutir com ignorantes. Basta mostrar aodesinformado que a baratinha sob nossa especial proteção tem cabeçaalaranjada,comduas listrascastanhas.Asdesuaraçaostentam(ostentarémodo de dizer, barata não gosta de se exibir) cabeça amarela com listraspretas.Entãovocênãovê,nãosenteadiferença?Entenda-se.Nãoestouaquiparapromovercampanhasentimentalemfavor

dasbaratas.Pertençoaogrupoferoquetratadeeliminá-lasdequalquerjeito,etantorecorreàdedetizaçãocomoàpancadadireta,aplastante,comasoladosapato.OnaturalistaVon Ihering recomendavaque fossemcaçadasa águafervendo. Recurso perigoso, que pode afetar tanto a caça como o caçador.Mas o próprio Von Ihering, que, como observou Leonardo Fróis, costumajulgarsobcritériosmoraisocomportamentodeespéciesquejamaislerãoa

Ética de Spinoza, condenando-o à luz desses critérios — ele próprio, aodescrever as baratas, põe de lado o nojo, para admitir: “Há delas de váriascorese tamanho,algumasatébembonitas (se forpermitida talexpressão),verde-gaio ou pintadas”. Assim, esteticamente, a barata pode ser objeto deadmiração, emalgunscasos, e atémesmo, se forbastante colorida,ganharcapadeManchete.Temosdenos defender contra os insetos daninhos, e a barata é dos que

mais fazem jus ao título. Para isto há o inseticida. Já não é tão eficaz aexclamaçãoqueassinalasuapresençanumagaveta:—Nojenta!—Repugnante!—Repelente!—Imunda!—Asquerosa!—Sórdida!—Porcaria!—Vil!Nãolhespareceexcessodeartilhariaparaalvotãomiúdo?Alémdomais,

canhoneio vão. A barata ignora nossos xingos, que não lhe atingem aestrutura. E daí, se formos tão severos com ela, que palavras terríveisguardaremosparaqualificar indivíduos incomparavelmentemaisdaninhos,pois não devastam só uma gaveta,mas regiões inteiras do globo, e fazemrecairseupodermaléficosobreahumanidadeemgeral?Éprudenteeconomizarcertotipodeobjurgatórias,paraquenãonosfalte

muniçãoemhoraadequada.Ebaratanãomerecetanto.Jáé,porsi,animalcondenado à clandestinidade e ao desprezo. Se uma consegue despertarsentimentoamistosonopeitodealguém,maravilhaé,sobremerendermaisestepapocrônica.

AQUELAMANHÃEDEPOIS

Desde aquela manhã perturbadora em que o dia anoiteceu, ou melhor(melhor ou pior?), em que a noite assumiu a função do dia claro, venhotrazendonamãodireitaumalanternadepilha,nobolsoumpacotedevelas,nalínguaumpedidodeinformação:—Quenoiteéesta?Odiapassouaser tão improvávelquenãomeanimoadizer:Bomdia!a

quem encontre por aí. Encontre ou suponha encontrar; a identificação éduvidosa.Secomeçaaenegrecer,odianãopodeserbomnemdia.Masseeudisser: Boa noite! é possível que a noite diurna se torne favorável, e suaclemência atenda ameu voto. À noite… bem, à noite não saúdo ninguém(refiro-me à noite propriamente dita), na dúvida se ela é mesmo a antiganoiteouaextensãoinsólitadanoitematutina.Acordar ficou muito difícil, depois dessa revolução de princípios

meteorológicos.A quehora acordar e,mesmo: deve-se acordar?A questãofica em suspenso, até segunda ordem. Talvez estejamos submetidos a umvestibulardonovotempo,emquedesapareceaancestraldicotomiasombra-claridade, e tenhamos que adaptar nossa vida, costumes e trabalhos a umquadrodetreva,emcaráterpermanente,noqualanoite,durando24horas,duraparasempre.Eudistinguiaosvaloresdodia,emconfrontocomosvaloresdanoite.Não

distingo mais. Pode o sol insistir em seu brilho falso, não adianta, nãoconvence.Esseastrocaducoperdeuacredibilidade.Agora,nãoseimaisquandodevadormir.Seanoçãodesonoestavacasada

ànoçãodenoite,devoconcluirqueestouautorizadoadormiranoiteinteira,issoé,avidainteira?Ou,pelocontrário,aescuridãosemintervaloexigedemimavigilânciacontínua,exaustivaemortalcontraoschamadosperigosemalefíciosdanoite?As autoridades médicas e sociológicas a quem fui consultar sobre o

problemanãopuderamesclarecer-me;umasnãotinhamfósforonaocasiãoparapensarnoclaro (a luz, comohabitualmente, faltava); outras curtiamamesmaperplexidade:eraumfatonovoqueseapresentava,anoiteconvertidaem dia sem deixar de ser noite, e até caprichando em noturnidade. Iamestudarosentidoprofundodofenômeno,equeeuvoltassedaíaumano,ou

jamais.Muitas pessoas ainda não se deram conta do que aconteceu, senão

superficialmente.Continuamdividindoochamadodiaemduaspartes,semperceber que esta divisão acabou. Expõem-se aos maiores desastres, e decertomodo contribuem para tornar a noitemais espessa, ignorando-lhe oacrescentamento. Tenho um amigo que atende por João, e que, na suainfatigável boa vontade, pensa em sugerir (a que poder divino?) oabrandamento da noite por um certo tisnar do dia, chegando-se ao meio-termo, ou a um terço ou quarto de tempo, mas também a João lhe faltaalgumacoisaparafundamentarsuaproposta:faltam-lheaslentesdecontato,caídas(porcausadanoiteimprevista)novasosanitário.Sefalhar,comodecertofalha,elejáalimentaoutraideia,queérequerera

introdução, no ano escuro, de um dia diferente, unzinho só, no qual ahumanidade celebre os ritos da luz, para que de todo não se perca a suaimagem ou conceito: o Dia do Dia. As pessoas abandonariam suasobrigações de rotina para a corrida aos jardins, às fontes e às praças.Ergueriamhinosaessebemarisco,seabraçariameseamariamnaluzplena.Sóentão(dizomeuamigo)saberíamosamaroqueperdemos.Eamando-o,mesmo com amor triste, quem sabe se começaríamos a recuperá-lo, pelosaltosmerecimentosdoamor?Eupormimlevominhalanterninha,minhasvelas,minhainterrogação,a

partirdaquelaestranhamanhãpremonitóriaoudeensaiogeral:—Quenoiteéesta?Desegunda,de terça,dequinta,desábado,de toda-

noite?

DECLARAÇÕESÀCOLEGIALQUEVEIOENTREVISTAR-ME

Tambémsou estudante,mas a vida fez demimaluno repetente.Ounascirepetente, é isso. Torno a fazer sempre o mesmo vestibular, pagoinvariavelmenteamesmacorreçãomonetária,esógostodeescreversobreaseternasmesmascoisas,quesãopoucasemínimas.Ser aluno repetente, viu?, é uma forma de sabermais do que os outros,

emboranãosabendonadadenovo.Oumelhor,nadadenada.Sevocênãoentendeestasabedoriacanhota,nemeu.Masdáparaviver,semasafliçõesecortesdecircuitodoativismo.Olhe,ogafanhotomefascina,sepousanestapoltrona, vindo de onde? e a viagem em redor do mundo me deixainapetente. Nem precisa que o gafanhoto pouse. Basta figurá-lo, pensar ogafanhoto. Entro no escuro, acendo a luz: lá está ele. Tambémpode ser ocontrário:éapagaraluzesintoque,sutil,ogafanhotovemmevisitar.Quando anunciaram aí esses cavalos de Viena, senti certa emoção,

reconstituindoomeucavaloquenãoeravienense,nãofazianadadebarroco,tinhaocomportamentocavalardoscavalos.Jánotouqueosanimaiscomunsse tornam exceção? Não deixa de ser inquietante; daqui a pouco nósperderemos para eles. Seremos exibidos na arena conforme nossashabilidadesnãoespecíficas.E,pessoalmente,sereimaisumavezreprovado…Nãoqueeudetesteareprovação,fiquesabendo.Todasasvezes(raras)em

que alguém me aprovou, experimentei uma espécie de remorso. Estavatraindominhanatureza.Umavezsubidemaneiratãoespetacularnoônibusemmovimento, que os passageiros bateram palmas. Omotorista parou oveículo e veio me cumprimentar. Recuou a tempo. Viu que eu não era ocampeão que ele pensava, tudo obra do acaso, e voltou-me as costas comreprovação.Respireialiviado,nolimitedaautossatisfação,quepodecoincidircomaconsciênciapesada,emesmoserumdeseusprodutos.Como? Às vezes pareço contraditório? É porque não reparam que a

descontinuidade constante da linha de vida forma de certo modocontinuidade,ecomotalsejustifica.Nãohávaidadenemhumildadeemsercomoagenteconsegueser.Osuniformeseosmúltiplosseentrelaçam,eafaltadeprogramaçãovale,euacho,comoprogramação.Confesso que meu trabalho de ser é afetado pela necessidade de dar

satisfações aos outros, seja sob a forma de deveres políticos e sociais, seja

paraexplicarporquenãoadmiro,digamos,osfilmesdeBergman.Cercadodeprazos,papéis,condicionamentos,cortesiaseoutrosempecilhos,nãoseime explicar bem. Donde os juízos críticos: é selvagem, é pueril, éespertíssimo,estáescondendoalgumacoisa.Atalponto,ouviu?quecostumoprocuraremtodaespéciedebolsosquea

gente carrega, e não encontro, aquilo que devo estar escondendo. Aliás,procuro não assumir a posse de objetos (ou preocupações) para não ter oincômododeguardá-los.Escasseiamespaços físicosemoraisparaconteromontãodecoisasquenossolicitameaténosinvadem,acabandoporobstruiralimitadaáreadenossasvidas.Expulsodemimmesmo,despejadoqueneminquilinofaltoso,ondeiriamorar,mediga?Daíessaconcha-suplemento,quelevo para os inevitáveis banquetes, simpósios, manifestações audiovisuaise/ouimpressas;conchaemqueninguémrepara,comosefosseinvisível.Tome nota: jamais em minha alongada existência vi objeto voador não

identificado, talvezporquemeatraíssedepreferência o voodas aves.Umadas falhas deminha biografia,mas que fazer?Não há discos voadores emquantidade suficiente para a percepçãode todos.Tambémaparapsicologiametemrecusadometodicamenteseusfenômenos,erespeito-lhe,discreto,asportasseladas.Nadaentenderdeciênciaspolíticas,econômicasefinanceiras,emboramecredencieparaaltospostos,nãomelevouatéeles.Devoconcluirque há excesso de gente disponível nasmesmas condições? Assim seja, eestareiisentodedurasresponsabilidades.Repetente me declaro, repetente quero conservar-me, sempre naquele

degrau menor, que dispensa de vertigens e quedas. Se os degraus sãocinquenta,propõem,nomínimo,49acidentes, foraossubsidiários.Vamosparar,minhafilha,antesqueeucomeceaadmirar-me,porseralunodotadode tanta faltadeatributosparaserumnotávelentrevistado.Ah,ogravadorestavadesligado?Quepena.Ouquebom.Ciao,garota.

ARTEECASAMENTO

—Viviane,ouvidizerqueoseu romanceconjugal comAdolfoPontevedrachegouaofim.Correto?—Quemquedisse?—Nãopossoidentificarminhafontedeinformação.Gostariadesaberseé

verdade.—Bem,eu…—Vocêsvãosesepararoujásesepararam?—Istoéumassuntomuitoparticular.— Seria, se vocês não fossem artistas. E artistas de ampla cobertura na

imprensavisual,faladaeescrita.— Nossas vidas de artistas não têm nada a ver com as nossas vidas

privadas.— Como não têm? O artista não se pertence, seus tietes têm direito à

informação.Vamos,levanteovéudosegredo.—Bem,nãopossodeixardecederaoseuargumento.Comoéparaprestar

contaaosmeusfãs—prefiroestapalavra—digoquesim.—Entãoocasamentoacabou.Equalomotivo?—Omotivo?…—Evidente,vocêsnãoiamsesepararsemmotivo.Hásempreummotivo

navida.— O motivo é muito simples. Eu e Adolfo nos entendemos

maravilhosamente.Porissonosseparamos.—Quer dizer que vocês se entenderammaravilhosamente na separação,

masantesnãoseentendiam?—Vocês,repórteres,confundemascoisas.Meentendiamaravilhosamente

bem com Adolfo, e continuamos a nos entender maravilhosamente bem.Masonossocasamentonãoresistiuaesseentendimentomaravilhoso.—Comoassim,Vivi?— Eu explico. Mas é tão fácil de compreender. Quando um casal se

identificaatalpontoquenãosesabemaisqualdosdoiséeleouela,acoisaestáaperigo.Então?—Você está fazendo nascer uma suspeita estranha sobre a natureza do

comportamentodosdois.Nãovaimedizerque…

—Queoquê?—Ora,tánacaraquesugeriuuma…ambiguidadedesexos,umatransabi

outrans,issotornaocasomenostrivial.—Pelo amordeDeus,nãodigauma coisadessas.Nãodiganempense.

Adolfoeeusomosduaspessoasnormalíssimas,oquehádemaiscareta,seépossívelchamardecaretaamaisabsolutanormalidade.Eu,hein?— Sim, acredito, mas às vezes, por uma questão de conveniência de

imagem,uminteressepublicitário…—Absolutamente!Adolfoéumgigantenaarteeeu,semfalsamodéstia,

tambémconquisteiomeuespaço.Nãonecessitamosdenoscurvaràmoda,quealiásesperoemDeussejapassageira.— Tá bem, mas a coisa não ficou clara. Se vocês se entendiam

maravilhosamente, suponhoque em tudo,porquediabodesmancharamocasamento?— Exatamente por isso, a gente combinava até demais. Um não queria

viver longedooutro,gamação total.Cadaumtinhasuavidaprofissional,ecadêvidaprofissionalqueaguentaumauniãoassim?— Conheço casais de artistas que se dão muito bem, sem prejuízo dos

compromissosdecadaum.— Não no ponto a que chegamos. A solução seria não trabalhar nunca

mais, e isso iria frustrar os quenos adoram, esse público incrível quenosprestigiaequeéanossarazãodesercomoartistas.Então,cortamos.—Nofimdeummêsdecasamento.—Ummêsque foi lindíssimo,umaglória.Minhanovelaatrasou,apeça

dele interrompeua temporada, todomundoreclamando,umsufoco.Enósnaquelagamação.Tinhaqueacabar.Acabou.—Acaboubem,né?—Espetacular.Naúltimanoite,fomosparaumapraiacujonomenãodigo

porque não queremos romaria lá, e à luz das estrelas selamos a nossaseparação,comasondasmarulhando.Fizemosamorcomamaiorpureza,aáguamolhandonossospés,aareiatornou-seumveludo.Passounocéuumaboladefogo,quenosdeslumbrou.Nãoestoumentindo,aquelabolafoiumaréplica donosso amor intenso, e sumiunohorizonte como absorvidapelomar.Atéchorei.Aliás,eletambémchorou.Defelicidade.—Edepois?—Vocêqueriaquehouvessedepois?Repórteréincontestável,pô.Depois

separamos nossos trapinhos e a vida continua. Eu e o Pontevedra

continuamosamicíssimos.Meuadvogadoestáarreglandoascoisas.Euachomuitopositivoessenossocasamento,foiumaexperiênciapraninguémbotardefeito.Nosacrescentamosmutuamente,né?—Seusplanosdesolteira?—Ah,nãotenho.Meusplanosnãosãodesolteiranemdecasada.Sãode

mulher artista, que vive para sua arte como acabei de dar exemplo.Casamento é bom,mas a arte acima de tudo.Quer dizer, se pintar por aíumarelaçãonãopossessiva,nãocastradora, comespaçoparaaminhavidaprofissional,aíentão…né?

ASECRETÁRIAMECONTOU

Nãopudedaraminhasecretáriaoabraçoeasflorespelapassagemdoseudia,porquenãotenhosecretária.Então,dirigiatodasassecretáriasdoBrasilumpensamentocarinhoso,cheioderosaseabraços.Nãoseisealgumadelascaptouavibraçãodamensagem,masfizoqueestavaaomeualcance,jáqueseriaindiscretorenderhomenagemdiretaàsecretáriadosoutros.Em compensação, ouvi ontem da secretária de um executivo, a quem fuiapresentado,anarrativadecomofoioseuDiadaSecretária:—Primeiro,foiumabeijaçãogeral.Acomeçarpelocabineiro,queumavezporanosedáesseprazer.Ecomobeijaocabineiro!NoDiadoExecutivo,euquero ver ele beijar assim omeu chefe.O boy não fez pormenos. Tendoquatorzeanos,deuumbeijodevinte.Masdeixapralá,todososcolegasmebeijaram, o chefe também, a gente está acostumada, e já estende o rostomaquinalmente, sem sentir nem o prazer nem o desprazer de beijocaçãointensiva.Todamulhersabequeháduasespéciesdebeijo,essequeagentefingequedáousuportaacadaminuto,eaqueledeverdade,gostosodedoer,que…bem,nãoprecisofalardeste,osenhorentende.—Entendo,istoé,achoquesim.—Pois é.Acontece que oDia da Secretária cai no dia 30, e em setembronesse dia o movimento no escritório é uma loucura, tudo deixa paraacontecernoúltimodiadomês.Pareceatéqueosassuntosficamescondidosoudormindoomêsinteiroparaaparecerentão,comcaradeurgência,aflitos,lembrando que no dia 1o de outubro não dá mais pé. Então a pobre dasecretária, que tinha direito a um dia todo acaramelado, aí é que tem debriquitaremdobro,nomeiodalambuzaçãodabeijaria.Ochefe,quenorestodoanoéatéumcarasimpático,ficaimpossívelnodiafinaldomês.Parecequeelemeprestaaquelashomenagensindignadoporeumerecê-lasemdiatão impróprio.Umavezeu lhepropus:“Que talagente festejaromeudianumdia qualquer, de pouco serviço?”. Ele não topou.Respondeu que nãopodealteraraordemdascoisas,queaordeméoprincípiodaestabilidade,que…—Poder,podia.Eraprovidênciadeordeminterna.—Seilá.Eledizsempre,sorrindo,queumexecutivonãopodenada,quempodeéoPoderExecutivopropriamentedito.ElenãoéPoder,ésóexecutivo,

comminúscula,fazquestãodeacrescentar.Bobagem.Sefosseverdade,porqueéqueoministroDelfimtelefonaparaele?—OministroDelfimtelefonamuito?—Devezemquando.EoministroGalvêas também.Entãoéporqueeleéexecutivo do primeiro escalão, na esfera privada,mas com prestígio lá emcima. Não duvido nada que amanhã ou depois, caindo um presidentequalquerdeempresaestatal,ele…—Eleoquê?—Nada,não.PoisosenhoracreditaqueontemtelefonouDelfim,telefonouGalvêas, telefonou um general da pesada, e o tempo todo no gabinete dochefe foi aquela conversinha em voz baixa,meio economês,meio política,meiocódigo,meiotudo?Eopapelórioamontoandonasmesas,eusempoderdespachar,odiafinaldomêsseescoando,asfloresmedandoumenjoodemorte,oscolegasemredoresperandoserviço,eucomvontadedeestrangulá-los, coitados, são tão bons comigo… Tem dias que ser secretária enche. EcomoencheunoDiadaSecretária!—Masànoite?—O senhor imagina que depois de umdia desses, tender is thenight? Émuitabondadesua.Meuchefequisrepararadesatençãoquemedispensoudurante o trabalho, inclusive o humor de cão que o acometeu depois dotelefonemadosministros,levando-meaumrestaurantedoLeblon.—Aíclareoutudo.—Comasenhoradele.Sabequesempre fizemosboa liga,eueasenhoradele?Poisé.MasanoitenãoestavapositivamenteparaDiadaSecretária.Acarapreocupadadohomem,d.Babychamandoaatençãodeleparaabrir acara,acaranãoabria.Sóaboca,maseraparaingerirmaisvinho.Detantoabrireingerir,ele,que,comoeudisse,éumcaralegalnocomum,começouamedarbeliscõesnacoxa.Beliscãoecaraamarrada,osenhorjáviuisso?Eutinha que ficar quieta, mas a certa altura nãome contive: “Dr. Alfredo, osenhorestá trocandode coxa.Aded.Babyémelhorqueaminha”.Aí eladisse: “Vamos embora, Agildo? Quem belisca não petisca”. Saímos, umpivetequisnosassaltarnahoradetomarocarro…—ODiadaSecretárianemsempreédiaparaassecretárias.—É,osenhortemrazão.Masomeuconsolo,ouaminhavingança,équeoDiadoExecutivodeveserpior.

ELESNUNCAMAISFORAMVISTOS

Kátia, quinze anos,moradora emNilópolis, saiu de casa às treze horas deuma segunda-feira, trajando saia azul e blusa branca (uniforme colegial).Nuncamaisvoltou.Valdineia,dezessete,saiudosalãodebelezaemMesquita,dizendoqueia

visitar um irmão. Lá não apareceu e nuncamais foi vista pela família.Naocasiãovestiacalçadebrimazuleblusaamareladexadrez.Vestindo calça de brim azul, blusa estampada, e calçando sandálias

franciscanas cor-de-rosa, Daltiva, dezenove, saiu de casa em Copacabana,rumoaocolégionoRioComprido,ondetrabalhavaeestudava.Sumiu.SumiuVálterLuís,dezenove,residentenoHumaitá,tomouoônibuspara

inscrever-senumcursinhodaTijuca.Elecalçavatênisazul.Roupa:calçadebrimazul,camisademalhabranca.Atéhoje.Caubi,27,desapareceunodiaemqueseformouemDireito,eéprocurado

pelotioveteranodeguerra.ManuelAntônio,cinquenta,saiudacasadeumparente,emInhaúma,na

direção de Pilares, aonde não chegou. Há um mês que se ignora seuparadeiro.Murilo,53,daPiedade,ninguémmaissabedele,depoisquefoiàruaenão

voltou.QuefimterálevadoCassiana,oitenta,comseuvestidodequadrinhos,pois

assimavirampelaúltimavezquandosaiudecasaemQueimados?Esteéoinventáriodeumdia,nocapítulodedesaparecimentodepessoas

que vivem no Grande Rio. O Grande Rio!Merece este nome não só pelaextensão territorial mas também pela soma de problemas humanos,existenciais,quevicejamemseuterritório.De quinze a oitenta anos somem as pessoas. Saem à rua por vontade

própria, namaioria dizendo que vão fazer alguma coisa, e não fazemessacoisaenãosesabequefimlevaram.Osjovensusamritualmentesaiaazuloucalçaazuldebrim;osmadurose

os velhos, não se presta atenção na roupa que levam. Como identificardeterminado rapaz ou moça na multidão de calças e saias azuis queenxameiamnacidade,emtodasascidades?Sãotodosanônimos,uniformes,iguais.Porfora;noíntimo,cadaumcarregaasuaneura,oseutrauma,asua

dificuldadedeviver,asuaincomunicabilidade.Os maduros, os velhos… Também passam despercebidos, todo mundo

passa despercebido na cidade superpovoada, e seria preciso que alguémusasse trajes inimagináveis para despertar ummínimo de interesse. Umaroupadefogooudeestrelas,acalçafeitadefrutasexóticas,ablusadecacosdevidrooudelagartasenlaçadas.Quemsumiu,nãosefalanisto.Nãohátempoparaprocurarosfaltosos,os

desertores,osdesmemoriados,osfugitivos,osraptados,ossequestrados.Ouquandoosprocuramos,ésemesperançadeencontrá-los(quantasmortesjáviveste, Aldo Moro, e quantas mortes em cada uma dessas mortes,anunciadas, adiadas, confirmadas, negadas, negociadas, discutidas,exploradas!Seaindaestiveres fisiologicamentevivoquandose imprimiremestaspalavras,nempor issoestarásmenosespiritualmentemorto, enojadodetudoemtuamorte-vida).Some-seporqueavidacomoestáficouintolerável.Eprocura-seoutra,que

nãoexiste,masdevesermelhor.Some-seporopção,massome-setambémporque outro interfere em nossa vida e quermudá-la para fins que só elesabe.Some-seporquehámatadores tão espertosquenãodeixamrastrodecorpo, mancha de sangue, botão de blusa branca ou trapo de calcinhaarrancada à força. Por vários motivos se some. Também por motivosinsuspeitados,quejamaisserãodescobertos.Éapaisagemda cidadegrande.Tãopejadadehabitantesquenão sepõe

reparonosquedeixamdecircular.Morreuousumiu?Tudoéamesmacoisa.Algumasvozes,raras,sealteiam,reclamandoapuraçãoparaosumiçodestegaroto,daquelamenina,daquelevelho.Anotíciadecinco linhasno jornal,comapequenafoto.Seodesaparecimentoganhahonrasdenovelapolicial,atelevisão entrevista pessoas da família, os amigos, o delegado de polícia.Então arma-se a confusão que serve para tudo, menos para deslindar omistério.Haverá mistério? Ou será um dado da vida cotidiana, fato normal,

corriqueiro,queésumirempessoasenuncamaisseremvistas,nemcadáveraparecer,nemnada?

GOVERNADORELEITO

—Então,quetal?—Quetaloquê?—Asensaçãodesergovernador.—Ah,sim.Porenquantonãopossosaberqualé.Compreende,fuiapenas

eleito,efaltamalgunsmesesparaaposse.— E daí? Governador eleito já é governador, como não? O que está em

exercícioficousendomeiogovernador.Aoutrametade,senãoformais,édoeleito.Dêsuasordens.—Queordenspossodar,senãotomeiposse?—Porissonão.Mandeetodosobedecerão.Estamosaquiparaisso.Nosso

estadonãopodeficaracéfaloousócomametadedacabeça.Vocêfoiounãofoieleito?—Fui,éclaro.—Poisentão.Eoessencialparaoexercíciodopodernumademocracianão

éaeleição?Estáeleito,devegovernarsemperdadetempo.—É,maseaposse?Aposse?—Posseésecundário,meuvelho.Puraformalidadeburocrática.Deixeisso

de posse pra lá, comece a acionar imediatamente a máquina política eadministrativa.Governarépreciso,esperarnãoépreciso.Edaívocêfoieleitocomumavotaçãobelíssima.Setecentosecinquentavotos,não?—Setecentosequarentaenove.—Equalfoiocanalhaquelherecusouoseuvoto,numcolégioeleitoralde

750cidadãos?—Nãofoicanalhanão.Euquepediaelepravotarembranco.Quisque

ficassepatenteocaráterdemocráticodaeleição.Sehouvesseunanimidade,nossosadversáriospoderiamalegarquesetratavadefarsa.—Compreendo.Fezmuitobem.—Agentetemquepensaremtudo.Sabequefoiumalutapraconseguir

esse voto em branco? O eleitor, homem da roça, muito sério, não queriaabsolutamentetrocardevoto.Foiprecisoeudizeraelequeseinsistisseemvotar emmimeu lhe tirava a liderançadaArenano seumunicípio.Aí eleamoleceu.—Está certo. Agorame diga uma coisa. Só pramim, é lógico.Não vou

espalhar,vocêsabequesegredopramimémaisdoquepedratumular,éoprópriointeriordotúmulo.Possoperguntar?—Pode.—Jáescolheuosecretariado?—Como?—Pergunteisejáescolheuosecretariado.— Como é que eu podia escolher o secretariado se ainda nem houve

diplomação?—Nãovámedizerqueaguardaadiplomaçãopraescolherosecretariado.—Equandoéentão,mediga,queeudevoescolherossecretários?—Maséevidente,logoquevocêfoiindicadopeloPaláciodoPlanalto.—Vocêestámaluco.VejaocasodoNatel.— Pois olhe, se o Natel tivesse escolhido o secretariado logo que saiu a

indicação,aessashoraseleseriaogovernadoreleitodeSãoPaulo.—Comoassim?— Bastava ele escolher seus concorrentes principais, inclusive o Maluf,

paraobterunanimidadeemtornodoseunome.—OMalufnãoaceitava.— É o que você pensa. Bastava saber que todos os competidores fariam

partedogoverno, e ele ficaria chuchandoomindinho,pra topar a solução.Aliás,issodeescolhersecretariadonãosignificanada.— Se não significa, por que é que você acha que ele deve ser escolhido

imediatamente?—Ah,umdiaeucansodeensinarpolíticaavocê.Significaporumlado,

nãosignificaporoutro.Eooutroéomaisimportante.Vocênãovaianunciarpela televisãoque já temosnomesdossecretáriosnobolso.Dáaentenderquesim,aopédoouvido,semsecomprometerpublicamente.Conversacomum,sopraaoutro,pedepraguardar reserva.Podeatéconvidardoisparaamesmasecretaria.Oconvidado,ousondado,ouquenometenha,nãoqueroutracoisasenãocontinuarnamoita.Entãoninguémficasabendonadaaocerto, e todos colaboram para que o seu governo tenha um começo feliz.Quandosoarahoradeoficializaracomposiçãodogoverno,aívocêchamaosquetiverdechamar.Ouquepuderchamar,poistudodependedaocasião.—Eosquenãoforemchamadossedanam.— É um direito deles, que diabo. Mas nem sempre ou quase nunca

exercemessedireito.Nãofoiaproveitadoagora?Maistardeserá.Bomcabritonão berra. Isso não quer dizer que o caro governador não tenha os seus

candidatosdopeito…Estousendoindiscreto?—Continue.—Oscandidatosquevocêpretenderealmenteungir,nahoradasagração.

Esses você guarda no santuário do espírito, né? e de jeito nenhum deixatransparecerquesãoospreferidos.Pormaisquehajapressõesparanomeareste ou aquele, você naturalmente reservará para si dois ou três— vamosdizer:umnomedasuaabsolutaconfiançaqueoajudaráacarregaracruzdogoverno.Nãoquero insinuarnada,somosvelhosamigosecorreligionários,mas uma coisa eu lhe digo: pode contar comigo em qualquer situação,qualqueremergência,atémesmocomáguanobarco.Estamosentendidos?Vamos,governejá,governelogo,nãodeixeasopaesfriar!

ALEIDOVERÃO

É uma lei que falta: a lei do verão carioca. Ele ainda não começouoficialmente,oquenãoimpedequeaspraiasepiscinasatestemocontrário.E,sendoinstituiçãopermanente,deveserobjetodeleiqueaorganize,regulee dê outras providências. A seguir, anteprojeto que ouso submeter àilustríssimaCâmaraMunicipal.

Art.1o—TodososmoradoresdacidadedoRiodeJaneiro,ricosoupobres,dequalquerraça,credo,profissãooufaltadeprofissão,convicçãopolíticaouausência damesma, têm direito a curtir as excelências do verão, tambémchamadaestaçãocalmosa,emborasejaamaistrepidantedetodas.§único—Entende-seporverão,noRio,operíodode1odejaneiroa31de

dezembro, com eventuais intervalos para reciclagem, e uma faixa especial,maisbadalada,entre21dedezembroe20demarço.

Art.2o—Asmaneiraslícitasdeexercerodireitoconferidonoartigoanteriorsãotodasasimagináveis,ficandocontudonadependênciadedoisfatores:a)o grau de recursos financeiros domorador ou da pessoa física ou jurídicadisposta à curtição; b) o grau de imaginação criadora, ativa e defensiva, domoradoroudeacompanhantequelhesupraadeficiênciadesseatributo.

Art.3o—Os indivíduosquenãosemostraremhabilitados,na formadestalei, a curtir o verão carioca, devem limitar-se a suportá-lo com umacombinação de heroísmo e espírito filosófico, e abster-se de promoveragitação que perturbe o exercício pacífico dos demais cidadãos, gerandoíndiceimoderadodetemperaturasocial,quejáéelevadonoperíodo.

Art.4o—É lícito à parcela da população, de situação financeira aprazível,própria ou demordomia, curtir o verão carioca in loco, na forma que lheconvier,ouadistância,emterritórionacionalouestrangeiro,pelotempoquejulgarsuficiente,inclusiveacumulandoverões.

Art. 5o—A indústria cuidará de produzir amaior quantidade possível derefrigerantesparaatenderàdemandasazonal,devendoacomercializaçãodos

produtos obedecer a tabelamento ri-go-ro-so, sujeito a imponderáveis quejustifiquememesmoimponhamainfringênciadospreçostabelados,acimaealémda tabelaafixadaemlugaresbemvisíveis,comooPãodeAçúcar,aplataformadoCristoRedentoreoaltodastorrescilíndricasdeSãoConrado.§único—Emhipótesealgumaopreçodochopeexcederáovalordeum

saláriomínimolocal.

Art. 6o—A praia, como a praça, é do povo, isto é, de todos,mas algunsdessestodostêmdireitoaocuparsuperfíciemaiorepreferencialnaareiadapraia,parasededicaremajogosesportivos,tantoempartidasavulsascomoem campeonatos, devendo os banhistas-de-sol, que não são propriamentebanhistas,eporissoocupamáreasdefavor,perderomaucostumedetreinarparaalvodebolas,raquetesepetecas.

Art. 7o — O acesso de banhistas propriamente ditos ao mar não deve demaneira alguma pôr em risco a liberdade de movimentos e a segurançaindividual dos surfistas e windsurfistas, que carecem de proteção contra atendênciaexpansivistadosprimeiros.

Art.8o—Adescidadeasas-deltasnaspraiasdoLeblonedaBarranãodeveproduzir em banhistas tipo-turista o pânico que seria admissível se setratasse de objetos voadores não identificados. Os indivíduos porventuraatingidos em sua integridade física por esse interessante esporte não têmdireito a reclamação policial contra uma atividade moderna praticada porhomensvoadoresidentificados.

Art. 9o — O acesso de animais ditos irracionais à praia é expressamenteproibido,mastoleradoconformeahora,aqualidadedoanimaleaqualidadedodono.

Art.10—Ousodomaiônatural,constituídodepelehumanafeminina,serádesenvolvido gradativamente em cada verão, em sincronia com a aberturapolítica,podendoestender-seàvestecongêneredepelehumanamasculina,desdequenãoconstituaatentadogritanteeassustadoràestéticadasformas.

Art.11—Turistasestrangeirosgozarãodefaculdadesespeciaisparacurtiçãodo verão carioca, destacando-se entre elas o direito de se recusarem a ser

assaltados por marginais de quinta categoria, cuja permanência naproximidade de hotéis, boates e clubes fica absolutamente vedada nodecorrerdaestação,sendooafastamentoreguladopormeiodeobservadoresespeciais,munidosdetelescópio.

Art. 12 — Os preços de utilidades, souvenirs e meios de transporte paraturistas estrangeiros sofrerão desconto especial de 35% sobre a majoraçãotambémespecialde2000%.§único—Nocasodetáxisoperadospormotoristasdefamílianumerosa,é

permitidaamajoraçãoextrade3000%(bandeira3),semdescontoespecial,conciliando-sedestamaneiraojustointeressedacategoriaprofissionalcomanecessidadededesestimularoconsumodederivadosdepetróleo.

Art.13—Osturistasnacionaisterãoliberdadedeefetuarosprogramasquebementenderem,desdequenãoprejudiquemamovimentaçãodosturistasestrangeiros e consequente captação de dólares em benefício da economianacional.§único—Asdiáriasdehotel eo aluguelde apartamentos equartospor

temporada,parausodeturistasnacionais,serãocalculadosàbasedodobroda inflaçãoprevistapara 1990,comvistasàcriaçãodoFundoPró-TurismoInterno,quepermitaacriaçãoda Interturcomoórgãoautônomo,capazdegerar10milempregosanuaisdelivreprovimentopelaCâmaraMunicipal.

Art. 14—O sorvete de frutas naturais e o sorvete sintético terão idênticosabor e aparência, verificados em testes pelo Instituto de Proteção aoConsumidoremTempodeVerão,detalsortequeosegundopossasubstituirvantajosamenteoprimeiro,semqueoconsumidordêporisto,poupando-seas frutas para exportação e consequente melhoria de nossa balançacomercial.

Art. 15—Tendo em conta que só à última hora, quando o calor se tornaincontrolável, é que os novos casais se lembram de adquirir aparelhos derefrigeração e de circulação de ar, já então sem margem para que asempresasprodutoraselaboremcorretamenteseusplanosdeprodução,ficamas ditas empresas autorizadas a fornecer ao consumidor simulacrosartisticamente acabados desses aparelhos, que despertem suave sensaçãovisualderefrigérionointeriordashabitaçõesmaisescaldantes.

§único—Tambémsefacultaàsditasempresasofornecimentodepedaçosisolados de aparelhos, a serem gradativamente montados pelosconsumidores,emverõessucessivos,comaindispensávelassistênciatécnicadoprodutoroudorevendedor.

Art. 16 — O bom humor da população carioca de todas as camadas esubcamadas sociais, como de costume, se manterá invariavelmente alto echispante de anedotas, piadas, trocadilhos, subentendidos, apelidos e a-propósitos,demodoafazerdoverãocariocaumafestaintegral,mesmoquese verifiquem imensas precipitações fluviais, com desabamentos,esmagamentos, afogamentos, paralisação da energia elétrica, suspensão decomunicaçõeseoutrosinconvenientesimprevisíveismas,afortunadamente,passageirosemcomparaçãocomofluxoinfinitodotempo.

Art.17—Ousodeexpressõescomo“puxa,quecalor”,“calorãobravoeste,hein?”, “amanhã vai ser pior”, “isto aqui é a verdadeira fornalha de PedroBotelho”,“váfazercalorassimnosquintosdosinfernos”,eoutrasquetais,seráconsideradocompletamenteout,edeclaradoscaretaseatéinimigosdoregimeaquelesqueaspronunciarem.Poroutro lado,serãocompletamentein expressões como “nunca vi temperatura tão deliciosa”, “os deuses nãoqueremoutracoisanoOlimpo”,“atéqueocalorestábastanterelativo,comoaabertura”,“nãohánadacomoumverãodepoisdooutro,pararefrescaresteagora”,“voutelefonaraCatherineDeneuveparaqueelatragabastanteroupadelã”.

Art.18—Duranteosubperíododocarnaval,osraiossolaresfarãoafinezade aumentar consideravelmente de intensidade, para incutir mais fogo eardor nas escolas de samba credenciadas pela Riotur, enfatizando assim aimportânciasocialeoficialdocalorcomofontegeradoradeemoçãocoletiva.

Art. 19—A população das favelas, em face do privilégio que desfruta, deviveremalturamuitosuperioràocupadapelosdemaismoradoresdoRiodeJaneiro, com refrigeração natural grátis, fica dispensada de recorrer aosmeios convencionaisdedefesa contra a canícula, a começarpelaspiscinas,que se reservam para certa camada da população menos favorecidatopograficamente.

Art. 20—O número de incêndios propositais oumisteriosos não poderáatingirnívelexorbitante,tendoemvistaanecessidadedereservadovolumede água para acudir aos sinistros ocasionais que se verificam na estaçãoestival e que, ao assumirem proporções avantajadas, constituem atraçãosuplementarnopaineldeeventosdeverão.

Art.21—Oscasosdedesidrataçãoseguidosdeóbito,resultantesdaelevaçãoexcessivadetemperaturaemcontrastecomaausênciadereservasorgânicas,notadamente em crianças subnutridas, devem figurar nas estatísticasdemográficassobarubricaForçadoDestino.

Art.22—Divirtam-se,aproveitem.

BOBEODICIONÁRIO

OAurelinho, lançadohápouco,estáprestandobomserviço.Dáoessencialdovocabuláriodequeprecisamospararequerer,implorar,protestar,xingar,adular,negacear,iludir,comover,convencer,amaretc.Oqueenchiamaisde1500páginasdoAureliãoficareduzidoaumestoquemaneirodeutilidadesvisuaisqueoestudanteeohomemdopovo,dispensadosdevoosestilísticos,poderão manipular eficazmente. Tudo bem, em matéria de comunicaçãosumária.Menos, talvez, para uns garotos que acham excessivamente rico o

dicionariozinhodeMestreAurélioBuarquedeHolanda.Foradobaratoedolegal, que são os dois pilares da linguagem falada por eles, constituída demeia dúzia de substantivos e adjetivos (renováveis de seis em seismeses),quefazercomtantapalavradifícildeencaixarnocontextoelementar?Abemdizer, uma página do dicionário mirim daria para cobrir as despesas decomunicaçãooral.Eudisseumapágina?Masparaquebotarnopapeloquesainaturalmentedabocaeasseguraoentendimentoperfeito,àmargemdadesnecessáriainvençãodaimprensa?Precisanão.OBob,quetemquinzeanossegundoaestatísticafamiliar,pertenceaesse

grupo desligado do tesouro léxico de nossos avós, mas bem que sabeaproveitarsuasriquezas.Opaicomprou-lheoAurelião(despesaqueencheudealegriaocoraçãodovelho:Meufilhoabrindodicionário—éfantástico!).Vai daí, o Bob todo dia sai com uma gíria nova, que ele solta com arsuficiente. Ou não solta, mas promete soltar, se a turma entrar com dezcruzeirosacabeça.Nãomenos.SeoBobchegaedizqueoprofessordematemáticaépengó,opessoalfica

alucinado, e passa a dizer que todomundo é pengó.Aí oBob corrige quenão,quetempengóenãopengó,equemchamardepengóalguémquenãoé pengó, por sua vez se revela pongó.Dispõe-se a passar a ciframediantepagamentogeral.Pengóémalvestido, epongóébobo,na linguagemmaisquentedoLeblon—explica,depoisdeembolsado.E assim o Bob faturou alto com zuruó, furdunço, caxixe, meco, nuba e

outras novidades leblonianas. Sempre superior, sempre bem informado.Pudera: acabava de chegar de um papo com a turma do Leblon, que pegaessascoisasnoar.Turminhadapesada:fazquestãodenãovulgarizarseus

recursosexpressionais,eaidaquelequecometerinconfidência.OBobjuravaquesótransmitiaasdicasemconsideraçãoàpatota,eporqueconfiavanela.Mas se o código fosse furado, teria de recorrer a argumentos físicos paraemendar o indiscreto. Ele próprio corria um grande risco, se a turma doLeblon soubesse que andava espalhando joias de vocabulário, privativas deumacomunidadefechadíssima.O negócio corria bem, mas o Bob, na ânsia de faturar, fascinando seus

companheiros ignaros, entrou a colaborar com o idioma, dicionarizado,forçandoosentidodaspalavras.Sextinapassouaserreuniãodegentecareta,ovavaeravesperaldediscotecanodomingo,embudeanotadequinhentos.Assimpor diante.Ninguémdesconfiava, porque ameninada é tão crédulaquanto os velhinhos que acreditam na constitucionalização do país nospróximosseisanos.EoBobéotipodoconvincente,aqueleque,peloolhar,pelavoz,pelaexpressãogeraldorosto,conduzasmassasaqualquerdireção.Mas chegaumdia, ele sedámal.ASelminha,novatanogrupo, embora

comprometida por juramento, não resiste à tentação de dizer, em casa, àmesa do jantar, que achou o Burt Bacharah meio simblefaro. Meio quê?indagaopaioftalmologista.Simblefaro,repeteagarota.Quevemaseristo?o pai inquire novamente. Selminha vacila, o dr. Lopes insiste, olha aSelminha acabando por explicar, encabulada, que simblefaro é careta. Nãodiga besteiras, minha filha, retruca o especialista de cara fechada. Emprimeiro lugar, não é simblefaro que se pronuncia, o correto é simbléfaro.Emsegundolugar,simbléfaronãoénadadistoqueasenhoraestádizendo,simbléfaro, ouça e aprenda, quer dizer aderência da pálpebra com o globoocular. Acho que vou tirar você desse colégio que ensina pelo métodosurrealista.Quevexame,afilhadeumoftalmologistadizerumabarbaridadedessas!ASelminha contouaopessoal, opessoal caiudepauemcimadoBob, e

exigiu dele a restituição demais de 3mil cruzeiros gastos emabsorção degíriaprivativadecírculosherméticosdoLeblon.É preciso ter cautela emusar o dicionário, concluiu o Bob. E para evitar

maioresmales, restituiu o volume ao pai entristecido: Estemeu filho nãoquermesmonadacomalínguaportuguesa!

CARTADEAMOR

Encontradanocarrodometrô,ediziaassim:“Estoupensandoseriamenteemdeclarargrevedemimavocê,portempo

indeterminado.Nãomepergunteosmotivos.Você sabe.Ouémelhorquenão fique sabendo, porque assim a greve é mais completa, e eu querojustamenteserumgrevistamaistotaldoqueosoutrosgrevistasquebrigamporsaláriodecenteecondiçõesdecentesdetrabalho.“Quero que você fique perturbada e confusa, sem saber o que eu estou

fazendooudeixandodefazer,eatodoinstanteaseperguntar:‘Quegreveéesta? Em que consiste?Quando vai acabar?Que coisamais idiota’. É issomesmo:vocêacharáidiotaaminhagreve,porquenãoaentenderá.Então,omenor gesto que eu fizer, a palavra mais sem significação, tudo setransformaráparavocêemenigma,vocêmesentiráocaramaismisteriosodomundo,porquenãodizer:omaistenebroso.“Seupequeninoeencantadorcérebrodecolibridarávoltasa simesmoe

não perceberá o sentido da minha abstenção oculta — de quê? E eucontinuarei firme, inflexível,grevista, semexporminhas reivindicações.Dejeitonenhum.“Entãovocêsedesmancharáemsuspiros,seenrodilharátodaameuspés,

pedirá perdão de faltas não cometidas, e que eu não sabia que você fossecapazdecometer.Confessarátambémascometidas,maseunãodareibolaecontinuarei a tratar você damaneira ambígua que estou anunciando.Vocêserá um poço de petróleo repleto de amor, eu recusarei sondar esse poçoinesgotável,oufinjoqueestousondandomascomvontadedenãoencontraromenor indíciodepetróleo.Esta faseserácurta,poisnãoqueroabusardesuaamorosidadeofertada.Passemosàsegundafase.“Você se irritará comigo e, perdendo a paciência, me dirá duas ou três

coisasácidas. Jogaráumcoponaminhadireção.Ouumaxícara,dessasdotrivialdocafé.Eudesviareiocorpodocopooudaxícara,esevocêmejogasseemcimaumsamovarseriaamesmacoisa:nãodesistiriadagreve.Aívocêadotavaemprincípioaideiadeenlouquecer.Sóemprincípio.Euéqueestoupinel — concluiria você. Conclusão provisória, a ser confirmada pelopsiquiatra,masopsiquiatra,queémeuamigo,lheresponderia:Eleéassimmesmo,issopassa.

“Nãovaipassarnão,talvezminhagrevesejaeterna,enuncamaisseremosaquelesnamoradosqueconquistaramoOscardemelhoridílionoFestivaldeAngradosReis.Continuaremos,sim,doisnamoradosunidosporesse laçoinvisível da greve, como o empresário está cada vez mais preso aoassalariado, ou este àquele, quando entram em conflito de interesses,masestanossacategorianãodáprêmio.“A terceira fase…Haverá terceira fase? Você apelará para nossos amigos

comuns,ouparaoMinistériodaComunicaçãoSocial,quealiásnãoexiste,existe só oMinistério, não aComunicação? E que é que eles podem fazerparaacabarcomumagrevetãofechada,tãosilenciosa,tãosutil,quenemareformadalegislaçãotrabalhista,porengenhosaqueseja,lhedaráremédio?“Bem,sevocêfazmesmoquestãofechada,sesuavidaficardependendoda

elucidaçãodascausasprimáriaseoutras,daminhagreve,entãoeudeixonocarrodometrôumenvelopelacrado,comosseguintesdizeres(noverso):

“Nãoadiantaabrir,nessaemergência?Nemhaveráquemabraoenvelope?

Quemsabe?Semprerestaumsobrevivente,ouvários.ABíbliaodemonstra.Eu não posso revelar o meu segredo nem diante de uma comissão deinquérito parlamentar.Minha greve é absoluta.Tempaciência, garota, nãofaçopormenos,nemadmitointervençõesnomeusindicato.Meusindicato

soueu.“Tem uma coisa. Não deduza de tudo isto que estou declarando guerra.

Guerra é guerra, greve é outra coisa, e a minha então é outríssima. Semquebra,atenuaçãoouextinçãodeamor.Poisvocênãovê,boba,bobíssima,que istoaindaéamor,émaisamordoqueamor,éminha formadeamarvocê,deumjeitosómeu,quenemvocêmesmaécapazdeapreenderemsuamineralabismalidade?‘Dio,comoteamo!Até.’”

NÃOFAÇAMAISISSO,DONA

Emmatériadeassaltos,aúltimaquemecontaramtemestasingularidade:oassaltanterecusou-seaassaltar.Foi o caso que a velha senhora pediu a um desconhecido que a

acompanhasse até à porta da casa. Era noite, a rua escura estavanormalmentecheiadeburacos, como toda ruaqueseprezenoRio,ea talsenhora enxergava pouco. O homem prontificou-se a guiá-la. Os dois iamcomentando o mau estado da rua. Já não se pode mais andar comoantigamente.Ogás,otelefone,aluz,semprefazendoescavações;ostapumesde obras e os carros estacionados na calçada impedindo a passagem. Umhorror,osenhornãoacha?Achosimsenhora,temtodaarazão.Euaténemdeviavoltar tão tardeparacasa, fuivermeusnetinhos,minhafilha insistiucomigo para que eu ficasse mais tempo, o senhor sabe, a gente acabacedendo.Queriame acompanhar na volta, eu recusei.Meu genro trabalhamuito,estavacansado,minhafilhaconvalescendodeumagripeforte,comoéqueeu iadeixarumdeles sairdecasaparameacompanhar,o senhornãoestá de acordo? Perfeitamente, estou vendo que a senhora não gosta deincomodar os outros. Pois é. Graças a Deus encontrei o senhor no meucaminho, vejo que é um cavalheiro, quero até lhe pedir desculpas peloincômodoqueestoulhedando.Incômodonenhum,dona,agentepodendoservir aos outros a gente até fica satisfeito. Obrigada. Então vou pedir aosenhormaisumfavorzinho.Poisnão,asenhoramanda.Mefaçaofavordeabrir a porta paramim, comessa falta de luzna rua eunão acerto comoburaco da fechadura. Com todo prazer. Cadê a chave? Espere ummomentinho,vouabrirabolsa,nãoseiondeboteiestachave,euachoqueosnetos andaram bulindo nela, meu Deus do céu… Desculpe, estou tãonervosa, como é que eu vou fazer se eles tiraramminha chave?Criança éimpossível, osmeus netos então, o senhor nem imagina. Eu adoro eles, éclaro,mas temhorasqueagentenãoachagraçanenhumanasperaltices…Fique calma, dona, procure devagar, capaz da chave estar num dessesbolsinhosfechadosdentrodabolsa,quemsabe?Não,nãopodeser,eubotosempre a chave em cima do lenço e dos objetos de toalete, para não tertrabalho de procurar. Mas se por acaso seus netos esconderam ela numdesses tais bolsinhos?Não custa procurar, vamos lá, eu não tenho pressa,

madame, pode remexer à vontade aí dentro, fico esperando. É, o senhoresperamesmo,nãovaificarimpaciente?Tenhotantomedodeincomodarosoutros! Fui educada assim,meus pais sempre recomendavam que a gentenãodeveatrapalharavidadopróximo,euestoutomandooseutempo,nãotenhoodireito…Ora,queéisso,dona,abraoscompartimentos,medeuumaluzqueachaveestádentrodealgumlugarzinhoescondidodabolsa.É,vouprocurar,quemsabeseosenhortemrazão,àsvezesumacoisaestánolugarqueninguémpensavaqueestivesse.Pronto,nestenãoestá, viu?Temsóoretratinho de minha filha quemora nos Estados Unidos, ando com tantasaudadedela!Quasenãomeescreve,coitada,nãotemtempo,levaumavidaapertadadetrabalhonumescritóriodepropagandadecafé,dizquepassaodiainteirodandoinformação,ensinandocomoéqueocafédevesertorrado,coadoeservido.Dáreceitadebolodecafé,pudimdecafé, sorvetedecafé,chocolate de café… Não pode mais ouvir falar em café nem provar umcafezinho,eéobrigadaapassaravidaconversandosóemcafé,apobrezinha!Quervercomoelaébonita, reparesónorostinho,nosolhos…Umagraça,nãoéporserminhafilha,masaTititaéumamor.Estouaflitaparaelavoltarcasadacomumamericanodessesquesãorespeitadores,gentedeconfiança.Tábem,dona,masquerabrirooutrocompartimento?Ah,émesmo,estavameesquecendo,nesteaquiestãosóasminhasjoias,quandoeuvoltosozinhadenoitecostumotirarosbrincoseoanel,guardoaquidentro.Masnãoestouconseguindo abrir, o fecho enguiçou, ou eu estou nervosa e não acerto…Posso ajudar,madame?Quemsabe se eu acerto?Com licença, vou tentar.Pronto,aquiestásuachave,dona.Muito,muitoobrigada,meufilho!Agoramaisumfavor,gireachavenafechadura.Poisnão.Podeentrar,dona.Agoraumconselhoprasenhora.Nãovoltesozinhapracasa,denoite.Nempeçaaumdesconhecidopraservirdecompanhia.Eusouassaltante,vivodisso,esónãolimpeiassuasjoiasporqueasenhoramechamoudemeufilho.Nuncaninguémmechamoudemeu filho,depoisdeminhamãe,que jámorreu.Boanoite,dona,enãofaçamaisisso,tálegal?

OCAMINHODALUZ

Se teu casamento está em perigo, procura madame Rosalmar e ela teconduziráaocaminhodaluz.Isso dizia o prospecto distribuído pelo garoto na calçada de Marechal

Hermes,eAntônio,esperançoso,procuroumadameRosalmar.Elademoroua aparecerna salinhamodesta, pouco iluminada.Vestia túnicapreta, erampretoselongosseuscabelos,eosanéiscintilavam.Antôniosentiuumacoisaparecidacommedo.Ouaflição.—Quesepassacontigo,irmãodaTerra?—perguntoumadameRosalmar,

comumavozquepareciavirdetrásdaparede,eatédetrásdosubúrbio.—Eu…—balbuciouAntônio.Enãodissemais.Madame não tinha pressa de ouvi-lo. Durante um minuto, era nítido o

barulhodecarrosnarua.Eledecidiu-se:—Eu…Eunão,elaestáquerendomematar.—Enãodestemotivoparaisto,meuirmão?—Credo!Madamesabequeavidadeumhomeméumenrolamentoque

não depende dele.A gente nasce condenado à complicação, tudo complicapromeulado.MaseugostodeEdélsia,sóquerotudodebompraela.Madame tinha os olhos parados nos olhos de Antônio, incomodando.

Queriasaberumaverdadequeelenãoconfessava?Nãopodiaolhardeoutrojeito?disseeleconsigo.—Edequemaneiraelaestáquerendotematar,irmão?—Sei lá.Não é de faca,nemde revólver, nemde veneno.Édemaneira

esquisita.—Esquisita,como?—Esquisita.Seeusoubesse, tiravaessa ideiadacabeçadela.Oqueseié

queelafalacomigosóoquenãopodedeixardefalar,mesmoassimcomvozgelada.Com licençadamadame, a gentenão se encostamais comoantes.Nãoseencostadejeitonenhum.Merepelesecamente.Écomoseeutivessemorrido,entãoconcluíqueelaestámematando,seéquejánãomematoucomomaridoefilhodeDeus.Primeiromatapordentro.Depois…Madame,pensativa.Afinal:— Irmão, teu caso é difícil, mas a luz baixará em tua vida, se a tiveres

merecido. Tua mulher não está te matando. És tu mesmo que te matas

suspeitandodetuamulher.—Mas…—Nãomeinterrompas,irmão.Dissestequetuavidaéenrolada,eprocuras

enrolarnelaavidadatuacompanheira.Issoéterrível.Seelanãofalacontigoéporquenão soubestedialogar comela.Porquehaveriade te falar a todahora, se logo te queixarias do seu falatório, como agora te queixas do seusilêncio?Antônio movia os lábios, na ânsia de emitir um som, porém madame

Rosalmarofuzilavacomosolhos.—Sãosempreassimoshomens.Queremmatarsuasmulheresenãotêm

coragemde confessá-lo. E passam a dizer que asmulheres é que desejammatá-los.Irmão,quemiséria!Houve uma pausa, que Antônio timidamente aproveitou para chegar ao

ponto:—Madame,ealuz?— A luz é para aqueles que a merecem. Saindo daqui, irás dizer a tua

mulherqueduranteumano,ouviste?umano inteiroseráso irmãoda tuairmã,enãoumbodeexcitado.A luz irábaixandopoucoapoucosobre tuavida.Nãoesperes ficardeumahoraparaoutra inundadode claridade.Vaicomcalma.—Bem,eu…—Edeixadedizerquedesejastudodebomparaela.Istonãoéverdade.O

quedesejasétudodebomparati,mesmoquenãosejabomparaela.Queresumamulhergostosaedispostaatesatisfazertodososcaprichosnahoraemquetevieroapetite.Seoapetitedelanãocoincide,poucoestássomando:oteuéqueimporta.—Madame!—Seioqueestoutedizendo.Amimoshomensnãoenganam.—AtéparecequeEdélsiaesteveaquieencheuosouvidosdamadame.—Quem sabe?Mesmo que tivesse vindo,meu sacerdócio espiritualme

impediriadecontar.IrmãodaTerra,conheçoaalmatortadoshomens.Vai,eprocuraportimesmoocaminhodaluz.Émilcruzeiros.Meiotonto,narua,Antônioamarrotouoprospectoquetiraradobolsoda

calça.Lia e relia aspalavrasestimulantese sóentão reparounoqueestavaescrito em letrasmiúdas, na última linha: “Consultas exclusivamente paramulheres”.

COISASLEMBRADAS

Aconversarecaiusobrecoisasqueosantigosnosdeixaram.—Bem—disseobacharel—,elesnosdeixaramtudo:aordemsocial,o

direito,asarteseasletras…—Nãomerefiroaessaherançacolossal—esclareceuopintor.—Estou

falandonosbensdefamília.—Ah,sim,aquiloquenostocouporherança.—Nãoébemporherança.Sãoascoisasquenãoentrameminventário,e

geralmenteasmaisestimadas.—Mais estimadas? Uma casa, as ações de uma empresa não são mais

estimadas?—arriscouoeconomista.— Paramim não são— respondeu o pintor.— E acho que paramuita

gentetambém.—Porexemplo?— Um objeto de nada. Tanto pode ser um canivete como um

daguerreótipo,umacaixinhademadrepérola,umlivrinhodeapontamentos.— Tem razão — concordou uma das moças. — Eu venero — é assim

mesmoquesediz?—ossapatosdecetimdavovó,comqueelasecasou.—Botounumoratório?—ironizououtramoça.—Nãobotei,masguardocomorelíquia.Sãolindos.Comovovótinhapés

pequeninos!Eusintoqueaquelessapatinhosfaziampartedeumamoredeumagrandeesperança.—Poeta!—Antesfosse.Fariaaminhaodeaossapatosdecetim.— Luísa tem razão — comentou o pintor. — Essas coisas estão

impregnadasdesentido,oumelhor,deemoção.Edecertomodosãoeternas.—Como,eternas?—escandalizou-seoeconomista.—Emprimeirolugar,elasdurarammaisdoqueosdonos.Sobreviveram.E

se nós as conservamos com carinho, continuam vivas por tempoindeterminado.Sómorremquandoesquecidasoujogadasfora.—Ouleiloadas.— Não. Leiloadas, continuam a viver. Talvez uma existência contrafeita,

comacargaemocionaldiluída.Masresistem.—Nunca tinhapensadonisso— falouo estudante.Émesmo.As coisas

podemdurarmaisdoqueagente,mesmosendocoisasfrágeis,queagentefez.— E louça? E xícara em que os bisavós beberam, prato em que eles

jantaram, com a pintura azulmeio desbotada?Não é um barato?— disseLuísa.—Tudoéumbarato,sevemdeoutraeraefalaumalinguagem.Ascaixas

de rapé, que tanto podiam ser verdadeiras joias como coisinhas apenasfuncionais.—OsvasosdeSèvres,dasvelhassalasdevisitas.—Nãofalemosdecoisastãorefinadas.Falemosdehumildes.—Olençobordado,ouentãoolençogrande,dexadrez,paraosespirrosdo

rapé.—Opardeesporasdeprata.Ascaçambasdemontaria.—Toumelembrandodaselademeuavô,fazendeiroemCocais,atiradano

porão,emqueagentemontavasemcavalo,fingindogalopar.—Eeudacaneta-tinteiro,dizemquedasprimeirasqueapareceram,vinda

dosEstadosUnidos,comflorõesdourados.Tavanumbaúdeminhatia.—Eminhatia,queguardavaumacoleçãodevidrosdeperfumesfranceses

dosbonstempos,todosdeformatoartnouveau:rosas,lírios,crisântemos?—Coleção jáéexagero.Bastaumapeçadecoisaantiga, ligadaàhistória

familiar.—Ah,quecoisafantásticaoespartilhoqueminhamadrinhaguardavano

armário!Pediparaexperimentar, ela recusou.Euqueriacurtiro séculoXIX

dentrodele.E assim foram passando em revista os binóculos, os carnês de baile, as

luvas,asestampas,ascartolas,osxales,osrelógios,desfilaramcompoteiras,penicos, lorgnons, peles, camafeus, almofarizes, porta-cartões, potes defarmácia, condecorações, laços de fita, surgiram no ar, em palavra,bugigangas, pequenas preciosidades, bagulhos, berenguendéns, bagatelas,coisasfoscasoudebrilho,nonadas,fanfreluches, tudotocadopelotempoepelosmortos,tudoqueésaudadeouaspiraasê-lo.Alguémsuspirou:—“Agrandedordascoisasquepassaram.”Masopintorreagiu:—Agrandecor,agrandeflordascoisasquepassaram.

AMANHÃDODIADOPOETA

Chegoatrasadopara registrarapassagemdoDiadoPoeta,queocorreunaúltimaquinta-feira.Absorvidopelocotidianomiúdo,nemrepareinele.Parao meu amigo Horácio, entretanto, a data não passou em branca nuvem(também, com esse nome…).Horácio já produziu três livros de poemas ecostumaser indigitadoemseucírculoderelaçõescomo“opoeta”.Ganhoumesmo certa notoriedade, a ponto de, uma ocasião, pretendendo assistir aum filme pornô muito badalado, ser reconhecido pela bilheteira, que lhesorriu,dizendo:—Comovaioilustrepoeta?Manhã cedo, três vigilantes associações de poetas telefonaram para ele,

convidando-o a participar de tardes comemorativas, onde leria versos comfundomusicaletomariachácombolinhos:—Omeuamadopoetanãopodefaltar,poisnão?—Reservamosumlugardehonraparaoadmirávelbardo.—Distintoaedo,contamoscomasuapresença.Eram três mulheres, secretárias das três sociedades, o que não é de

estranhar,sabidoque,nafaixadosquinzeaos55anos,onúmerodepoetasfemininos é consideravelmente superior ao de poetas masculinos. Depoisdos55,cresceapercentagemdepoetasvarões.Todos insexualmente,comofezquestãodeacentuarementrevistaàTVEducativa,umainspiradacultoradoverso:—Nãohánempodehaverdistinçãodesexosnapoesia.Essadiscriminação

depoetisa,algodeprimenteparanós,jáera.Horácio não pôde comprometer-se a estar presente em nenhuma das

comemorações:primeiro,porquenãodavaparairatodas;segundo,porquenãosabedizerversos; terceiro,omédico lhe recomendouevitarbolinhosegulodices em geral. Foi pressionado (como acontece aos parlamentares nocasodevotaçãodedecretos-leis).—Nãosejaporisso,meupoeta.Mandaremosumcarroparatrazê-loelevá-

lodevolta.—Como?O vate não sabe dizer suasmagníficas criações?Não acredito!

Mas dá-se um jeito.Qualquer uma de nós se sentirá honrada em ler seuspoemas.

—Ora, quemal faz um bolinho hoje, outro no ano que vem? Tambémteremosbiscoitosdepolvilho, trazidosporumacoleguinhadeItaperuna.Edepois,emúltimocaso,nãocomanada,masvenha.Venha!Horácio acabou prometendo que não faltaria às festividades, uma na

Tijuca, outranoLeme, a terceiranoCentro, todasnomesmohorário.E jámatutava que desculpa daria pela ausência, sempre por motivo de forçamaior(variado),quandotocouorepresentantedageração-xerox:—Poeta,euseiqueoDiadoPoetaétododia,emtodolugar,inclusivena

rua, onde vendo osmeus livros, aliás com tremendo sucesso.Mas hoje émais dia do que outro dia qualquer, entende? E você, irmão mais velho,recebaomeuabraçofraternal…—Obrigado.— Escute, poeta. Queria ler para você o poema que acabei de dedicar à

poesia,nossamãecomum.—Desculpa,mas…—Sóumminutinho.EatacouumdosmaislongospoemasquejáseperpetraramnoBrasil,sem

falar nas Cartas chilenas. Horácio queria interromper, alegando queprecisavatomarbanho,barbear-se,masooutrocontinuava,continuava.Atéqueparou.—Ótimo.Estáumbelopoema,parabéns.—Acabounão,poeta.Caíramumaslaudaseeutivedeapanharnochão.Quandoterminoualadainha,bateramàporta.Eramascriançasdoedifício

que vinham saudarHorácio, por iniciativa comovedora de papai emamãe.Umadasgarotassacoudeumpapele…—Lindo,filhinha.Vocêmesmaqueescreveu?— Foi sim. Copiei do livro de expressão e comunicação. Olha, papai

mandouprosenhorestespoemas,prosenhordarumalidaedizersegostou.Eleestáfazendoumlivro.—Ah.—OpapaidaSuelitambém.Entregapraele,Sueli.Sueli entregou. E também Roberto, o da mãezinha dele. Horácio ficou

sabendoque,alémdele,existiamnoedifíciopelomenostrêspoetas,foraossilenciosos.Aindanãoseretiraraacomissãoinfantileotelefonevoltouatocar:—ÉopoetaHorácio?Aquifalaumseuadmirador.—Obrigado.

—AdmiromuitoasuacoragemdepoetarenquantooBrasilviveatragédiado desemprego, da seca no Nordeste e da dívida externa. Eu, se fosse opresidenteFigueiredo,mandavavocêstodosfazeremamizadecomaFalangeVermelha,naIlhaGrande.Quando o telefone chamou outra vez, era o locutor da Rádio Nova

Esperança,deCabreúnados Índios.Comvozempostada,pediamensagemdopoeta aos radiouvintes sobreopapeldapoesia como fatordeharmoniaentreoshomens(sócincominutos,esclareceu).Horácionãoaguentoumais,explodiu:— Mensagem? Que mensagem? Então você acha que sou homem de

dirigirmensagensaquemquerqueseja?—Mas,poeta,hojeéDiadoPoeta—ponderouolocutor,atônito.—DiadoPoeta,é?Engraçadinho!DiadoPoetaéumsó,orestodoanoé

tododosmilicos,dasmúlti,doimpostoderendaedodiaboqueocarregue!Efez—pá—comotelefone.

AMIZADENOMORRO

—Queremmatarminha porca?Ah, essa não. Primeiro vocêsmematam,depoispassamafacanaporca.—Masdona,asenhoravaireceberumanotafirmeporviadoprejuízo.—Queprejuízonemmanéprejuízo?Vocêspensamqueeutenhominha

porca pra negócio? Eu disse que queria vender? Disse? Tou carecida degrana,queméaquinomorroquenãotá?MasaliviarmeuapertoàscustasdaXironga,poissim,tearrenego!—AgentejáconversoucomopresidentedaAssociaçãodeMoradores,ele

dissequetavabem…—Eledisse,né?Elemandanosporcosdele,naminhaXirongamandoeu,

eelamandaemmim.Nãodoupordinheironenhumumaporcadaminhaamizade.—Masénobemdetodos,apesteafricanataí,naNovaBrasíliajáapareceu

umcaso, então a gente vai comprandoosporcos, pagaumbompreçoporquilo…—Edepois?—Depoissacrifica,ué.—Eusei.Dãoumamarretadanacabeçadeles,esenãoliquidarlogodão

maisoutra.Éassimqueacabamcomapestepraevitaramortedosporcos?Apestevaimatareles,entãovocêsmatamantesdapeste?—Bem,asenhoracompreende…—Compreendonãosenhor.Eusepudessedavaamarretadaénacabeça

dosqueestãomarretando.Bem,elesnãotêmculpa,recebemordens.Entãoeumarretavaacabeçadosquederamordem.— Isso não é comigo, estou só recolhendo os porcos, sei lá como eles

fazem.—Poiseusei.Seosenhorfossecondenadoàmorte,osenhorgostavade

acabar com marretada no cocuruto? Não preferia uma injeção, um troçoassim?—Bem,eu…—Jásei,vaimedizerqueporconãoégente.Masbichotambémnãosofre?

EaminhaXirongapramimégente.Temmuitomalandroemuitocartolaporaíquenãoé tãogentecomoaXironga.Entrenósduasoquevogaéa

amizade,eugostodela,elamegosta.—Interessante.—Interessante,não.Bacana.Souviúva,querdizer,achoquejáfuiviúva,o

pestemetrocouporoutra,acabeimeesquecendodele,conhecioutroscaras,nenhum deles tinha o sentimento da Xironga. Comprei ela novinha,desmamadaàspressas,deileite,deilavagem,crieiela,fizdelaumaporconabonitaquenãovoumostrarprosenhor,vê láseeuentregoaXironga.Umdocedebicho,amansidãoempessoa,mevêdelonge,correpramecarinhar.Souumamulherlimpa,deixoelameencostarporqueseiqueissoécarinho,euretribuoalisandoopelodela,assim…Depoismelavo.—Masasenhoranãopodeterumbichodessesjuntodoseubarraco,tema

pesteafricana,temahigiene,temoperigodascrianças.— Eu não tenho criança, e as crianças daqui tão acostumadas com a

Xironga.Elanãofazmalaninguém,émuitoeducadaerespeitadora.PorquevãomataraXironga?Nãodeixoenãodeixo.—Sãoordens.—Ordensdequem?Eporqueessaordem?AlguémfoientregaraXironga,

mentir que ela tápesteada?AlguémexaminouaXirongapradizerque elaprecisamorrer,poisnãotemtratamentopromaldela?PoiseujuroegarantoqueaXirongatámaisfortedoquemuitocaraporaíquetádandomarretadanosinocentes.—Euacredito,mas…—Olhe,seumoço,agentecomeçaarrebentandocrâniodeporcoeacaba

fazendo o mesmo com crânio de gente. Cria gosto, sabe? Tão caçandocriminososdeguerraquefizerambarbaridadecomjudeu,enãoseaprendenada com isso? A ordem é matar, e matar com selvageria? Não temveterináriopraevitaraespalhaçãodapeste?—Tenhonadacomisso,dona.Asenhoraporquenãovaiconversarcom

eles?— E elesme ouvem? Semandam tomar o que émeu eme obrigam a

receberuns cobrespranãobotar abocanomundo, eles vãoperder tempoemmeouvir?Nãovoufalarcomelesnão.GostodefalarécomaXironga.Elameentende.Umaporcaquenãoéumaporca,égente.Gente,ouviu?—Asenhoramedesculpe,mas…—Desculponão,osenhorsaiadaquiquantoantes,senãovaiter.Eutenho

um sinal combinado com aXironga, ela émansamas não é besta, e se osenhor insistir… Estou defendendo o meu direito de ter amizade a uma

porca, o senhor não entende isso, não compreende que amigo é prasocasiões?Sumajádaminhafrente,medeixaempazcomaXironga!

AMOÇAEMMARAJÓ

OMarajóéumacoisafantástica,sóvocêvendo…Edepoisdever,écapazdenãoacreditar.Vocêvê,sente,viveoMarajó,contarédifícil.Adianta?Entãovocê vai comigo a Salvaterra, coisinha de nada, mas tão verde que é umanúnciodeprimavera.PertoagentedáumaolhadaemCondeixa,nomequedá vontade de comer. É ameixa, fruta-de-conde, sei lá o que as palavrasoferecem aos nossos sentidos. Joanes, tão português-antigamente, vocêgosta? Pois olhe, tem nada de clássico-frei-luís-de-sousa, eu estudei nafaculdade,é (oudeveser)corruptelade juionas,umanaçãode índiosdesteParávelho-de-guerra. Joanes fazpartedeSalvaterra,você reparenas ruínasdelá,édeumamelancolia,umrecuarnotempo.Agora,aquinzeminutosdelanchadeSalvaterra,dêumaolhadaemSoure, isto sim,nominhoportugaatédizerchega,poisvocênãovêquevemdesaurium,eremontaàocupaçãoromanaemterraslusíadas?…Ah, essa minha erudição. Desculpe. Você está no Marajó, não viaja de

carro,careceviajardeaviãoparacurtiressarendacolossalderiosseparandoas terras. Eta arquipélago danado, deslumbrando, perturbando a vistamiudinha da gente!Mas de barco é que você deslumbramesmo, não temconversa.Apeandodonavionolusco-fusco,foioquemeaconteceuumavez— conheci na travessia um senhor fazendeiro, ele me convidou paraconhecer a fazenda, fui. É bom viajarmeio semprograma, topando o quevale ser topado, entende? Na luz fraca do amanhecer, a casa-grande, demadeira, sobre estacas, parecia suspensa no ar, o terraço voltado para asterras.Fazenda marajoara, nem-te-conto… O infinito. O verde. Os bichos

selvagens.Lávocêencontrarestosdeferramentas,restosdecerâmica,avidaantigado índioque falaàalmadagenteeatiça curiosidadedesabermais,mais. Garças e guarás-vermelhos pousando nas lagoas. Jacaré de montão.Tudo.Omundo táacabandodenascer,numainocênciadegênesis.Ôvidacoloridaarco-irisada!Reuniãotãograndeevariadadecoresetonsquevocêficabobo,semsaberseolhaoubebeapaisagem.Passeiedecanoa,vocêtemdepassearadoidadode canoapelos igarapésquenãoacabamnunca.Pelosfuros. A companhia de você é aquela espécie de arbusto pousado à beirad’água,durantetodoopercurso:avesbrancas,róseas,vermelhas,quenãose

assustamcomobarulhodocedosremosouoronronardomotordalancha.Aliestão,aliquedam.Flaminguinhotemlámedodessascoisas?Cuidado?Sim,ocuidadoparavocênãoseperdernolabirintodosigarapés

ficaporcontadocaboclodaregiãoqueconduzacanoa.Podeconfiar.Nofimdo passeio você está em casa comendo queijo fresco de leite de búfala,brincandocomoveadinhodomesticado,umagraça,epensamenteando:EtaBrasilmaioratéqueoBrasil!MastemtambémoleitedoAmapá,remédioforteparaasmaebronquite,

alémdecicatrizarferida;asalva-do-marajó,ervasesementesquecompõemumabruxariasaudávelcontratodososmales.Omelhordoutoréanatureza,médiconenhumpodecomessasplantinhasquenãoestudaram,massabemcurarasmazelasdocorpo…Então,tranquilo,porqueseviermacacoaaterradáumjeito,vocêpodepapearpreguiçosocomsiáDulcinéaeseuJoãoJapão,porexemplo.Debaixodamangueira.Elessabemdascoisas.Nofimdapraia,lá está siá Maria das Cabras, matriarca valente, velhinha, comandando afamília com amor e humanidade. Puxe conversa com ela. Pare diante dacasinhalilásàbeiradapraia,quetemumatabuleta:“Joga-sexadrez”.Senãosouberjogar,nãoentre.Ládentrotemumvelhoamericanocercadodelivros,discos,umaflautaeumtabuleirodexadrez.Eramúsicodeumasinfônicanaterradele,foiparaguerra,voltoumeiolelé,arrumouatrouxa,veioarrancharaqui.OMarajótemtudo.Salvaterra,salvaçãodemuitagentedassetepartidasdomundo.(Sãosete?)

Temaíunsestrangeirosquenãoqueremsairdejeitonenhumdestefim-de-Brasilfeitodeáguaedeverdepulsante.Duranteasférias,gentedopaísedoexterior se reúne lá para a volta à vida simples. Tiram a pele da cidade,entende?eseanonimizamnumaespéciedefusãopanteísta.Ocorporeagepor si, independente de você. A visão dilata-se, as cores avivam-se, ossentidosapuram-se,evocê,libertadodevocê,sente-seaware,penetrandoascoisas e penetrado por elas… Difícil explicar isso. Por mais coisasdesimportantes que você fale, mais verdades essenciais dirá. Por maissilêncioquehaja,maisserácompreendido.Enadadeturismo,ouviu?Essaideiasomenoar.Salvaterraéumsegredo,

um presente fechado, porta-joias, senha maçônica. É preciso respeitarSalvaterra.ÉprecisoamarSalvaterra.Ah,vocênãocalcula…Assim falou amoça, apaixonadadoMarajó, Lívia denome, e está feita a

crônica.

AMOÇADISSE:ALTOLÁ!

—Altolá!Háquantotempoeunãoouviaestafrase.Penseiquetivessesumidopara

sempre. Era tão usada quando duas pessoas discutiam, e uma delas diziaqualquercoisaquedesagradavaprofundamenteàoutra.Porexemplo:—DestavezoRuifaloupoucoeruim.Ooutro,indignado:—Altolá!ORuifaloumuitoefaloumuitíssimobem.E não havia resposta para esta contestação. Alto lá! encerrava a questão,

esmagandoopobrelevianoquefizerarestriçõesaRuiBarbosa.Amenosqueele,porsuavez,nãoseconformassecomoAltolá!etambémaltolasse:—Alto ládigoeu!Atéquevocêmeproveocontrário, eusustentoqueo

últimodiscursodoRuifoiumapinoia.Aí,fatalmente,osdoispartiamparaaargumentaçãodobraço,equemfosse

demaiores recursos físicos exprimiria a opinião final sobre o discurso doConselheiro.Altolá!costumavaseracompanhadode“dobrealíngua”:—Altolá!DobrealínguaantesdepronunciaronomedemadameElzevir.BrigasporcausadoAltolá!eramfrequentes,porquesujeitonenhumgosta

deserhumilhado.Eessainterjeiçãotinhaomesmovalorcortantede“cala-a-boca”.—Cala-a-bocajámorreu,quemmatoufuieu—eraarespostaúnicaaessa

terrívelofensa.Seguidadetiro.Abocadoquemandaracalarabocaàsvezesse calava para sempre. Amenos que ele desse no pé, preferindo amortemoral,quenãoétãoabsolutaquantoaoutra.PoisoutrodiaouvidenovoalguémdizerAltolá!—enãoeranenhumcara

zangado que o pronunciava, era uma garota no jardim. Fiquei pasmo, oupasmado, comoquiserem. (Não voudiscutir qual amelhor forma, as duasservem.)Quefoiqueomoçodisseraàgarota,nãosei,masdeve tersidobobagem

tãogrande,mesmoemtempodegrandesbobagenscomoéonosso,queela,sériaporummomento,lherespondeu:—Altolá,Afrânio!Afrâniopasmou-semaisdoque eu, a julgarpela expressãodo rosto, que

perdeutodaexpressão,ficouumtijoloemformaderosto,ficouumnão-sei-quêdenão-sei-quê.Gastouumminutopararesponder:—Altolá,oquê?Quêqueéaltolá?Elá,onde?Afrânio não sabia.A garota sabia e não quis explicar. PobreAfrânio, era

uma frase tão difícil, tão fora da linguagem de nossos dias, que ele,francamente,nãoatinavaquebicho fosseaquele. “Alto”,Afrânio sabia.Eleeraalto,istofacilitavaacompreensão.“Lá”tambémeradoconhecimentodeAfrânio, pois ele justamente viera de lá, do lado em que ficava o seuapartamento, e viera na direção de cá, do jardim público, onde a moça oesperava.Mas“alto”e“lá”,reunidos,quediabopoderiaser?Editocomumavoztãofirme.— Escuta, bem… Explica direito — desabafou ele, depois de intensa

concentração.—Estámaisdoqueexplicado.Ealindabocafechou-seemmistério.Nãodiriamaisnada,poistudofora

dito,edemaneiracabal,comAltolá!Fiqueipensandoqueaquelamoçanãoeramoça,eraumagramática,umdicionáriodeAulete,naformadeliciosadeumcorpojovem,deblusaebluejeans.Nomínimo,seupaieracatedráticodo Colégio Pedro II e ensinava em casa as boas e severas normas decomunicação verbal, essas que não deixam margem a reticência, dúvida,incerteza, ambiguidade, descrença.ComoAlto lá! e outras quenãoprecisoenumerar aqui, mesmo porque a leitores jovens, se acaso os tenho, nãoadiantaria,ealeitoresprovectos,quemehonramcomasuaatenção,seaindaospossuo,seriaociosorelembraressejustoeprestantevocabulário.Altolá!Nenhumareaçãocorrespondentenacaradomoço,poiseleestavaa

quilômetrosdecaptara forçadeumAlto lá!mesmoditoporumagarotaesem tom de guerra,mas enérgico. Fiquei por instantes parado, assistindodiscretamenteàcena.Criançaspatinavamnojardim.Olambe-lambeesticavaaspernaspor faltade fregueses.Azul,apazdocéu.Alto lá!…Orapaznãocompreendiamesmonada,amoçaafastou-secomumleveaceno,eeufiqueimatutandonoalcanceprofundodafórmula.QuefoiqueomoçodisseàmoçaparaelaresponderAltolá?Eporqueele

nãoentendeuoqueéAlto lá?Eporqueela foiembora?Quemsouber,ouadivinhar,tenhaabondadedecomunicar-me,quelheficareiagradecido.

EMIDA,EMADA

TelefoneiparaoFritz,nãoestava.Suamulherinformou:—Foidarumacirculadanocalçadão.—Equandovolta?—Nãosei.Depois,iadarumaesticadaemBotafogo.—Sabeseelejáfezomeudesenho?—Não.Aindanãopôdedarumalidanotexto.EmseguidameconfessouqueandaapreensivacomoFritz.Eunãonotara

que ele deu uma emagrecida violenta? Não ficou completamente bom dagripe,ecomessetempoécapazdedarumapiorada.Elaqueriasair,paradarumamelhoradanocabelo,mas,enquantooFritznãovoltar,preferedarumaesperadinha.No ônibus, o passageiro declarou em voz alta que é preciso dar uma

controlada nos trocadores, que não trocam, o senhor não acha? Como euficassemudo,elecomentou:Jásei,osenhornãoquersechatear,preferedaruma desentendida. Ou uma silenciada — pensei comigo. Porque a essaalturaeujáaderiraaonovomododefalar,edeiumaagradadaaotrocador,quealiáseratrocadora,dispensando-adepassar-measmoedasdetroco.Aoqueumconhecidomeu,sorrindo,comentou:Aí,deuumasofisticadazinha,hein?Depoisdepousarumaolhadano jornal, sentado,notei comprazerquea

paisagemnoParquedoAterroderaumareverdecidaevidente,masoaviãoderecreioinfantil,aoabandono,mecausouumaassustada.Eseosgarotosládentro fossemvítimasdemarginaisdispostos adaruma inesperada?Maisadiante, sujeitos davam uma dormida na relva, e eu próprio me sentipropensoatirarumacochiladanobanco.Deisóduasbocejadas,eovizinhome observou que os ônibus dessa linha estão sempre cometendo umaatrasadadevinteminutospelomenos.—Quandonão é uma adiantada de quinze— interveio o da frente, que

deraumaescutadanaconversa.Pretendi dar uma desconversada. Estava tentando uma pensada em

assuntos do meu interesse particular, e o diálogo me levaria a umaesquecida,oupelomenosumadispersadamental.Ovizinhoinsistiu:—OsenhordáumaconfiadanaspromessasdoFig?

—QueméoFig?—Ora,éumaachadadoPasquim,umareferidano futuropresidenteda

República.Aí é que o papo não davamesmo uma desenvolvida, e eu apelei para a

distanciada, como fazem os políticos da situação (de qualquer situação)quandoorepórterospegapelopécomumaprovocada:—Nãotivetempodedarumapassadanonoticiário.—Oudeuumaesquecida?—insistiuohomem.—Poisolhe,eudeiuma

guardadanodiscursodelenaConvenção,paradepoisfazerumacobradaemregra. Fiz também uma arrumada nas entrevistas, comigo é tudo naarquivada.Uma aquiescida com a cabeça, e mergulhei em meus negócios: uma

reclamadanaComlurb,queaindanãomecobrouataxa,perdão,atarifadelimpeza urbana. A consertada no aparelho de TV, aliás, a reconsertada,porqueotécnicobotouasimagensdecabeçaparabaixoeosletreirosdetráspara diante. A procurada na estante onde deve estar o livro que meemprestaramequedeuumadesaparecidainexplicável,enquantoodonomeperseguecomumainsistidacontínua.Anegadadeautorizaçãoparaabotadado meu nome em um comercial de liquidificador. A consentida para meincluíremnacomissãoquevaipediraoprefeitoapintada,emnossarua,deumafaixadecinquentacentímetros,nãomais,comainscrição:áreaprivativados pedestres (devo aceitar ou formular uma recusada?). A comprometidaquedeiparacompradeumloteapreçodebananaemEncontrodosVentos,edepoisouviumafaladaquelánãotemloteamentoalgum.Asuspeitadadeque nem exista mesmo no estado do Rio esse Encontro de Ventos.Problemas… Gostaria de dar uma dada geral nos meus, atirando-os pelajanela, e quem quiser que lhes dê uma atendida e consequente resolvida.Masproblemasdagenteseguemcomagentee,aocontráriodoFritz,cadadiadãoumaengordada.Eaqui,umaconcluída.

APRANCHA

Surf, daqui por diante, só na praia da Macumba e em outras praias queninguém sabe onde ficam — certamente no Havaí ou pra lá do fim domundo.Logoagoraquecompreiaminhapranchae iadarumadeNetunonoLeblon,rodeadodeminhascocotas—porquesemcocotasrodeando,quegraçatemumadeNetuno?Antesquevocêseespante,esclareçoquenãocompreinenhumaprancha.

IssoqueestáaíéqueixadoSerginho.Serginhonãoseconforma,chegadeperseguição!Opainãoqueriadardinheiroparaacompra.Serginhochegouapensarna fabricaçãodomésticadaprancha, seduzidopelo artigoda revistaque dizia: “Faça vocêmesmo a sua prancha, com espuma de poliuretano,fibra Burnington, surform”, essas coisas.Mas eram tantos osmateriais, ecada material custava uma nota, além da tecnologia pesada. Serginhoraciocinouque,aterdepedirumanotaparacomprarosmateriaisesuarnafabricaçãodacoisa,quetalveznãoficasseláumprimor,erapreferívelqueadita nota fosse aplicada na compra do produto acabado e garantido. “MeuDeus,comoessegarotoraciocinabem”,exclamoud.Ester,mãedeSerginho,edisseparaoClóvis:“Clóvis,vocênãovêqueSerginhotemrazão?Anda,tiralogo o dinheiro pra ele comprar o demônio dessa prancha e a gente ficarsossegada”.AmãedeSerginhoeraprático-filosófica.A compra foi uma curtição. Serginho fez-se acompanhar de três cocotas.

Tinha convocado sete, mas nem todas eram cocotas só de Serginho, eprecisavamatenderaoutrascurtiçõessimultâneas.Eleleunarevistaqueasprimeiraspranchaseramfabricadascomaassistênciadeumsacerdote,quedepositava oferendas aos deuses do mar, junto à árvore que forneceria amadeira.IssonasilhasdoPacífico,notempodavódavódenossavó,masaquinaZonaSul,diantedeumapranchadematerialsintético,naloja,nãodápéchamarovigáriodaparóquia.EntãoSerginhoresolvesubstituirosacropeloprofanosolene,oufestivo,evaidecocotasadquirirapranchaetrazê-laparacasaemalegreritual.Veio o vestibular, no qual, absurdamente, não havia pergunta nenhuma

sobresurf,campeonatosnaCalifórnia,alturaevelocidadedeondaquenãoencaixotenemfaçaparede—tudo issoqueosurfistaoucandidatoa,devesaber na ponta da língua, e Serginho é craque em literatura especializada.

Nem aomenos perguntaram quem é Peter Troy ou Yllen Kerr, resultado:Serginho, que programara a estreia da prancha para depois da vitória novestibular, tubulou. Coitado de Serginho, é preciso levantar o moral dele;vamos todos para Teresópolis, lá em cima ele descansa. Porque vestibularenche,sobretudoquandoagente levapauecomeçaapensar,chateado,novestibulardoanoquevem.Serginhoprotestou.Estavadeprimidocoisanenhuma,estavaé loucopara

estrear a prancha, e o que é que ele ia fazer em Teresópolis? Maisprecisamente,oqueéqueapranchaiafazeremTeresópolis,asenhorapodemedizer?D.Esternãopodia.Nemsempreeraprático-filosófica.Ficou lá só dois dias. A prancha cá embaixo, virgem. Serginho não

aguentouassaudadesdapranchaeodesejodedominá-lacomaenergiadeanimalidade jovem. Desceu rápido, convocou as cocotas de sua predileçãoexcluindoasquefaltaramaocerimonialdacompra.Amanhãestavaumaluztotal,manhãfeitaespecialmenteparaosurfeaestreiadepranchas.Adeus,pranchaemprestadapordezminutos,adeuscondiçãopuramenteterrestredenadador.AgoraSerginhoéumanovaespéciedeser—marinhoedesafiadordomar.Vaipassearnelecomonocalçadão,comumavolúpiaqueamotocanãodá.Foi botar o pé na areia e receber uma salva de palmas das cocotas. As

palmas atraíram dois PMs, que convidaram Serginho a levar de volta aprancha. Não lera a portaria da Secretaria de Segurança, despachando ossurfistasparaapraiadaMacumbaeoutraspraiasdistantes?Serginhonãolêjornal, cocotas também não. “Mas eu comprei a prancha antes de sair aportaria.Eosdireitosadquiridos?”OsPMsnãoacharamválidooargumento.“Nessecasomedeemumprazoparaeucumpriraportaria,medeemumasemana.Todaleidáprazoprasercumprida,essanãodá?Enemmesmoéumalei,ésóumaportaria…”OsPMscontinuaramnãoaceitandoasrazõesdeSerginho.Ascocotasentraramnodebate,àbasedesom,palmas,assobios.Depois de muita paciência, foi preciso muita habilidade para separarSerginhodesuaprancha,queelebrandiacomoescudoeenlaçavacomosefosseatábuadaleiempoliuretano.PorpoucoSerginhonãoiacomelaparaodepósito.Ascocotassoltaramumúltimouuuu,eosbanhistas,quevivemreclamandocontraaspranchas,apoiaramcomumasalvadepalmasareaçãodascocotas,quebeijavamSerginhonaboca,paraconsolá-lo.

NÃOSEPAGAMAISNADA

—Éocobradordaprestaçãodascortinas.—Digaaelequeapartirdehojeeunãopagomaisaprestaçãodascortinas.

Aliás,nãopagomaisnada.—Eusébio,eunãopossodizerumacoisadessas.—Nãopodeporquê?—Porquetodosnóstemosquepagarasnossasdívidas.Édareligião.Éda

lei.Ascortinasforaminstaladas,estãoaí.Agentedeve,agentepaga.— Pagava. Agora não paga mais. Se as empresas de transporte de

passageiros do Rio, em declaração pública, abandonaram esse costume depagar,porqueéquenósnãopodemosfazeromesmo?Sóqueadeclaraçãonãoseráfeitapelaimprensa.Émaissimples,deboca.—Nãohácomparação.Asempresassequeixamdequeogovernocortouo

subsídioqueajudavaosempresáriosaaguentarabarra.—Poiscommuitomaisrazãonósparticulares,quenuncarecebemosum

centavodesubsídiodogoverno—vocêjárecebeu,mulher?—Eunão.— Nem eu. Nem ninguém que eu saiba, de nossas relações, salvo o

Ludovico.MasoLudovicoédeputado,o subsídiodeleédiferente.Oqueagente recebe do governo é a notificação do imposto de renda, do impostopredial,doimpostosobreserviços.—Masascortinas,homemdeDeus.—Deixeascortinasempaz.Aliás,nãogosteimuitodacor,eupreferiaum

tom bege-claro, deixa pra lá. O importante é que as empresas deram oexemplo, e euprezomuito os exemplos. Semexemplosnãohaveriamoralprática.Estãocanceladostodosospagamentosnestacasa.—Canceladosoususpensos?Asempresasfalaramemsuspender,nãoem

cancelar.— Não me venha com sutilezas. É a mesma coisa. Além do mais,

suspenderépalavraimprópria,emsetratandodepagamentos.Suspenderépendurarno ar, e eununca vi umpagamento suspensono ar, duvidoquehaja. Ele some, evapora-se. Portanto, artigo primeiro e único: não se pagamaisnada.—Vocêachaqueasempresasagiramdireito?

— Acho. Com essa medida, abriram mão de um subsídio imoral, econtemplamdefrentearealidadedascoisas.—Oscredoresnãovãogostar.—Oscredoresquedeixemdepagartambémassuasdívidas.Todomundo

devealgumacoisaaalguém,Leontina.—Mas,então,nemgostodepensaroquevaiacontecer.Seninguémpaga,

ninguém mais quer vender. Você e as empresas de transporte serão osresponsáveisporessacalamidade.—Não,filha,eusereiapenas,historicamente,oprimeiroseguidordeum

princípio econômico lançado pelas transportadoras. Abolido o pagamento,abolidasasdívidas.Umanovaordemsocial emergirádascinzasdodébito.Sóexistiráohaver.Umhavergeral,consentido,proclamado.—Utopia!—Utopia, do ponto de vista capitalista.Mas esse ponto será igualmente

cancelado.Tudovaiserde todos,desdeoônibusatéacasacompiscinanaBarra.Inclusivecortinas.Expliqueaocobrador.—Seráqueelevaientender?—Claroquevai.Falequeele tambémestádispensadodehonrarosseus

compromissos,derestomodestíssimos.Nãoprecisamaispagarluz,gás,pão,leite (se é que cobrador toma leite) e omais que ele costuma comprar. Aprimeira coisa que tem a fazer é voltar de ônibus para casa e não pagarpassagem.—Otrocadorvaiencrencar.—Eleéquenãotemmesmodireitodeencrencar.Seodonodoônibusnão

pagamaisninguém,porquehádecobrardousuáriodoônibus?Semessa.Aaurora da nova ordem vai raiar com todo mundo viajando de graça noscoletivos. O primeiro sinal. Tudo simples, claro, sem Marx nem teoriassocialistas.—MasEusébio…— E dizer-se que uma ideia tão pura, tão genial, não saiu da cabeça de

nenhumsábio:foiboladaporumsindicatodeempresasdetransporte,gentepositiva,gente ligadaaodeve-haverbemcontabilizado!VivaoBrasil, capazdegerarideiasassim!Depressa,Leontina,vádespacharocobradorqueestáesperandoessetempotodo.Seelequiser,podeatélevarascortinas,masnãopara devolver à loja. É para uso e gozo dele, na sua casa.A gente compraoutra,deumbegemaisclaro,enãoprecisapagarnada!

OCOZINHEIRO

Umjantarparaconvidadostemobrigaçãodeseragradável,masnemsempreissoacontece.Àsvezesaculpaédeumdeles,queseexcedeunaslibações,oumesmo de dois, inclinados à discussão, que quase se engalfinham. Umgaffeurpodecomprometerosucessodojantarmaisesmerado.Nãofalandonos casos em que omenu, lamentavelmente, deixa a desejar, quando, pormais polidos que sejam os circunstantes, a decepção gastronômica seestampa nas fisionomias. E as ocasiões em que, imitando a surpresa doúltimo“pacote”político,aluzselembradefaltar?Pode haver de tudo num jantar: comida e conversa deliciosas, entre

convivas especialmente simpáticos.No entanto, como aconteceu na últimasemana,emcasade…não,nãovoudizernomes,direiapenasqueosdonosdaqueletríplexsãopessoasfinas,conhecemepraticamaartedereceber.Comomelhor sorriso, a hostess dispensava a todos as atenções devidas,

nãodeixandoquealgumdospresentessesentisseforadefoco—enenhumse constrangesse sob foco exagerado. O marido acompanhava-a comeficiência na operação, de sorte que não ocorria um desses vácuos desilêncio,quefazemgelaramesa,eogoledevinhoéaúnicasalvaçãoparaafaltadeassunto.Assuntohaviasim,bemtemperado,comoaindaseobservanas casas em que a boa educação, o sentido da atualidade e o savoir-faireamenizam o convívio humano. Não ocupam bairros inteiros, essas casas,massempreexistem.Enfim,eraumanoite impecável,enemsooumalapalavradelouvorque

umadassenhorasdirigiuaogarçom,ouàmesa,referindo-sediscretamenteaogalboesculturaldoservidor:— Noto que o tipo físico do brasileiro vai se tornando cada dia mais

apurado.Osvizinhosconcordaramcomumgestoleve,eadamaemquestãojulgou

queerahorade louvaroserviçoperfeitodacasa.Ahostessagradeceucomgentileza,observandoque,seosconvivaseramagradáveis,todareuniãooeratambém, enãohaviamérito especial em recebê-los, como sucedianaquelanoite:—Achomesmoqueomaisimportanteemsociedadenãoéacasaondese

está, mas as pessoas que aí estão. Elas tornam deliciosa até uma reunião

menos…réussie.Foiavezdetodosagradecerem,sorrindotambémeenaltecendoemcoroas

excelênciasdocasal.Acabaramadmitindoquetodosalieramadoráveis,fosseporqualidadeintrínseca,fosseporimpregnaçãodosbonsfluidosdacasa.Foi então que um convidado lembrou a conveniência de se louvar e

agradeceroamigooculto.—Pode-sesaber-lheonome,senãofordemasiadooculto?—perguntoua

senhoraqueadmiraraogarçom.—Onomeeunão sei,mas certamenteque suapersonalidadeédasque

maisseimpõemànossasimpatia.Nãoadivinha?—Querido, não façamistérios. Gostomuito de louvar, e temo perder a

ocasiãodistosenãosouberaquemdevofazê-lo.—Muitosimples.Ocozinheiro.Todosconcordaram:ocozinheiroquenão“assinara”o jantar,mas forao

seutalentosoautor,bemmereciahomenagemdegratidão.Comotodosselevantassem,ocavalheiroemquestãoperguntouàdonada

casasenãopoderiammanifestarpessoalmenteaocozinheiroasexpressõesdoseuparticularapreço.—Receio que não— respondeu ela.—A esta hora ele está recolhido à

cama.—Nãoquis,pormodéstia,saberdoêxitodasuacriação?—Defato,elenãoesperouqueojantarterminasse.Masasenhoraqueprestaraatençãonogarçomapoiouaideia:—Umgrandeprofissional,nocasoumartistaconsumado,nãopodefugir

aoreconhecimentopúblicodoseuvalor.Vamos,minhacara.Comoelemorano apartamento, não será difícil chamá-lo.Mande bater à porta do quartodele,seráatémaisexciting.Emvolta,osdemaisconvidadosaprovaramasugestão:—Senãoproclamarmosoméritodosbonselementos,queserádofuturo

destepaís?Adonadacasarelutava,juntoaosilênciodomarido:— Vocês compreendem, meus amigos. Eu preferia não perturbar-lhe o

sono, depois damissão cumprida. Claro que a intenção de vocês é amaiscativantepossível,mas…ficocientedoselogioseagradeçopelomeucuca.—Ahnão,querida.Emmatériadehonraaomérito,eunãodesisto.Com

licença—e a admiradoradamelhoriado tipo físiconacionalprecipitou-sepelaportadosfundos,emdireçãoàsdependênciasdeserviço.

Um minuto depois, ouviu-se um grito. Todos se entreolharam,interrogativos. A senhora voltou à sala, daí a instantes, com expressãoindefinível:—Meutesouro,vocêeseumaridonosfizeramjantaresplendidamentea

poucosmetrosdeumdefunto.—Nãofoidepropósito—desculpou-seaanfitriã.—Foiderepente.Mas

que é que nós podíamos fazer à última hora, com vocês já saindo doelevador?Eubemaviseiqueeledormia,cumpridaasuamissão.

OVIPSEMQUERER

JoãoBrandão foiaoAeroportoInternacionalparaabraçarumamigodileto,que viajava com destino ao Paraguai. Pessoa comum despedindo-se depessoa comum. Mas acontecem coisas. Alguém, informado da viagem,pedira ao amigo que levasse uma encomenda a Assunção. A encomendaapareceunahora,entregueporumsenhorquefoilogodizendo:—Odoutornãoprecisase incomodar.Euprovidencioodespachoe tudo

mais.Oaviãoestavaatrasadoduashoras,oquenãoémuito,emcomparaçãocom

outrosatrasosporaí,inclusiveodachegadadoestadodedireito.Osenhordaencomendaprocurouamenizaraespera:— O doutor não vai ficar duas horas sentado numa dessas cadeiras aí,

vendo os minutos se arrastarem. Espere um momento, que eu dou umjeitinho.Saiuparaconfabularmaisadianteevoltoucomaboanova:—Porobséquio,meacompanheatéasalaVIP.—Nãoépreciso—objetouomeuamigo.—Possoesperarperfeitamente

poraquimesmo.—Nãosenhor.Estarámelhorláemcima.—Acontecequeestouaquicomumamigo.—Eletambémvaicomodoutor.Nãohavia remédio senão subir à salaVIP.Seuamigo, encabulado, e João

Brandãomais ainda. Seria indelicado insistir na recusa. E depois, por quenãoiràquelasala?Subiram pelas escadas rolantes, precedidos de um abridor de caminhos,

que com o indicador ia pedindo passagem para os dois ilustresdesconhecidos.NasalaVIP, enormee vazia,poisháumahoranavidaemqueatéosVIP

escasseiam, João Brandão e seu amigo foram convidados por um garçomsolícitoabeberqualquercoisa,alerrevistas,apediroquelhesaprouvesse.—Obrigado—respondeuoamigo.—Nãodesejamosnada.Ouvocê,João,

desejaalgumacoisa?—Tambémnão.Obrigado.Ogarçominsistia:

—Nemumcafezinho,doutor?Válá,umcafezinho.Sorvendo-oalentosgoles,pareciamsorveroespanto

deserempromovidosaVIP.— Veja como são as coisas, João. Nós aqui na maciota, em poltronas

deleitáveis, contemplando quadros abstratos, e lá embaixo o povo concretofazendo fila para conferir as passagens ou esperando em cadeiraspadronizadasahoradoembarque.—Émesmo,sô.— Entretanto eles pagaram imposto como nós, custearam como nós a

construção deste edifício, têm direitos iguais ao nosso, de desfrutar ascomodidades deste salão, mas na hora de desfrutá-las só nós dois é quesomosconvocados.—Nemmefale.Estouficandocomremorso.—Vivemosnumarepública,João.Vocêachaissorepublicano?—Eu?Euachoqueestouaquide intrometido.Vocêaindapassa,porque

estálevandoalgumacoisaaalguém,eporissolheconferiramhonrasdeVIP.MaseusouapenasacompanhantedeumVIP, eacompanhanteporcentoevinteminutos. E agora que vocême disse essas coisas, não aguentomais,vou-meemborajá.Desculpe.— Que é isso, João, estava brincando. Pensando bem, o povão foi

homenageadoemnossashumildespessoas.E,comodizoMiltonCarneironatelevisão,avidaécurta,eistoémuitobom!JoãoBrandãoquis assimilar o sentimentodo amigo, se é que este sentia

realmenteadoçuradasituação,masquandoagenteépromovidaaVIPenãotemestruturadeVIP(éumacoisaquenascecomoindivíduo,ounãonasce,ejamais lhe será consubstancial)…A verdade é que os dois continuaram alisemamenorconvicçãodeseremVIP.Joãochegouadistinguirnaposturadosgarçonscertanuançadedesprezo:—Disfarceeolheacaradeles.Perceberamquesomosunspobres-diabos.—Será?Touaflitoquechegueodanadodesseavião.—Eeuinsistoemirembora.Nãovouesperarmais.— Não faça isso comigo, João. Não me deixe sozinho, como VIP

abandonado!Somosamigosdecolégio!João Brandão envergonhou-se de querer trair o amigo, e as duas horas

custaramapassar.Passaram.João desceu as escadas rolantes, viu-se nomeio damultidão de pessoas,

malas, pacotes, cãezinhos e sobretudos, não atinou com a porta que dava

saída para a área dos simples mortais. Na primeira em que entrou, foibarradoporumfiscaldecarasevera:—Porqueosenhorentrouaqui?Queestáfazendo?—Procuroasaída.—Quesaída?Saídadeaviãoéopainelqueinforma.—Nãoésaídadeavião.Asaída.—O quê? Saída democrática? O senhor está querendo insinuar alguma

coisapolítica?—Não,não.Querosair,irparacasa.—Masdeondeéqueveio?Quemoautorizouaentraraqui?Joãonãoteveoutroremédiosenãodeclinarsuaextintaimportância:— Bem, eu era VIP, sabe? Agora não sou mais. Por favor, me deixe ir

embora!

OFRÍVOLOCRONISTA

UmleitordeMatoGrossodoNorteescrevedeplorandoafrivolidade,marcaregistradadestacoluna.Hojenãoestouparabrincadeira,eretruco-lhenadamenosquecomapalavradeumsábioantigo, reproduzidaporGoetheemItalianischeReisen.Vaiotítuloemalemão,paramaiorforçadoenunciado.Osquenãosabemosalemãotemosomaiorrespeitoporessalíngua.Afraseéesta,emportuguêstrivial:“Quemnãosesentircomtutanosuficienteparaonecessárioeútil,quesereserveemboahoraparaodesnecessárioeinútil”.Éoquefaço,respaldadopelasentençadeummestre,endossadaporoutro.Evoumaislonge.Oinútiltemsuaformaparticulardeutilidade.Éapausa,

o descanso, o refrigério do desmedido afã de racionalizar todos os atos denossa vida (e a do próximo) sob o critério exclusivo de eficiência,produtividade, rentabilidade e tal e coisa. Tão compensatória é essa pausaqueo inútil acabaporse tornardamaiorutilidade,exageroquenãohesitoemcombater,comonocivoaoequilíbriomoral.Nãodevemoscultivaroócioou a frivolidade comovaloresutilitáriosde contrapeso,maspelo simples epurodeleitedefruí-lostambémcomoexpressõesdevida.No casomínimo da crônica, o autorreconhecimento daminha ineficácia

socialdecronistadeixa-meperfeitamentetranquilo.Ojornalnãomechamouparaesclarecerproblemas,orientarleitores,advertirgovernantes,pressionaroPoderLegislativo,ditarnormasaossenhoresdomundo.Ojornalsabia-meincompetenteparaodesempenhodestasaltasmissões.Contratou-me,enãovejoerronisto,porminhaincompetênciaedesembaraçoemexercê-las.Defato,tenhocertapráticaemfrivoleirasmatutinas,aseremconsumidas

comoprimeirocafé.Estecafécostumaseramargo,poissobreeledesabamtodasasafliçõesdomundo,em54páginasoumais.Éprecisoquenomeiodessacatadupadedesastresvenhaderoldãoalgumacoisainsignificanteemsi, mas que adquira significado pelo contraste com amonstruosidade dosdesastres.Podeserumpédechinelo,umapétaladeflor,duasconchinhasdapraia, o salto de um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, oassobiodorapazdalavanderia.Podeserumverso,quenãosejaépico;umacitaçãoliteráriaisentadepedantismooufingindodepedante,masbrincandocomaerudição;umareceitadedoce incomível,emque figuremcantabilesdeHaydnmisturados comaletria e orvalhoda floresta daTijuca.Pode ser

tanta coisa! Sem dosagem certa. Nunca porém em doses cavalares.Respeitemoseamemosessenobreanimal,evitandooexcessodegraça.Atéafrivolidadecarecetermedida,linhasutilquemedeiaentreosorrisoeotédio,peloexcessodetintasoupelarepetiçãodoefeito.Não pretendo fazer aqui a apologia do cronista, em proveito próprio.

Reivindico apenas odireito ao espaçodescompromissado, ondeo jogonãovisa ao triunfo, à reputação, à medalha; o jogo esgota-se em si, pararecomeçar no dia seguinte, sem obrigação de sequência. A informaçãoapurada, correta, a análisede fenômenos sociais, a avaliação crítica, tarefasessenciais do jornal digno deste nome, não invalidam a presença de umcantodepáginaquetemalgumacoisadeilhavisitável,semacomodaçõesderesidência.Comovocêtememsuacasaumcômodooupartedecômodo,ousimplesmente gaveta, oumenos ainda, caixa de plástico ou papelão, ondeguardapequeninascoisassemutilidadeaparente,masemqueosdedoseosolhos gostam de reparar de vez em quando: os nadas de uma existênciaatulhada de objetos imprescindíveis e, ao cabo, indiferentes, quando nãofatigantes.Meu leitor (ou ex-leitor) mato-grossense-do-norte, não me queira mal

porquenãoalimentoa sua fomede conceitosgraves, euquemecanseidegravidade,espontâneaouimposta,epraticoomeunúmerosempretensãodecontribuirparaorestaurodomundo.OsábiocitadoporGoethemejustifica,absolve e até premia. Eudisseno começoquenão estoupara brincadeira?Mentira;foioutrafrivolidade.Ciao.

OREFORMISTAEMCASA

—É,estelivingestámesmoumlixo.Temosdereformá-lo.— Reformar isso aí? Você não vê que o apartamento inteiro é que está

pedindo reforma? A pintura dos quartos descascou, tem um buraco destetamanho na parede do corredor, os garotos escangalharam os tapetes e ascortinas,nãoháumasótorneirafuncionandodireito,opiso…—Calma.Quemouvevocê falar assimpensaqueomelhoré implodiro

apartamento.Vamosfazeroseguinte.Primeiroagenteestudaareformadoliving,depoisexaminaoresto.— Saquei. O cavalheiro é partidário da reforma gradualista, devagar e

sempre.Esteanocoloca-seotacoqueestáfaltando,anoquevemcompram-sedoispingentesparaolustre,nosegundosemestre,conserta-seamaçanetadaporta…—Cada coisano seu tempoe lugar.Reformanãoé revolução.A famosa

Reforma de Lutero não se fez num dia, ele levou tempo para redigir suasnoventa e cinco teses sobre as indulgências, e olhe que não chegou acompletarcem.TambémaContrarreformafoilenta,sóoConcíliodeTrentosearrastoudurantequasevinteanos.Comoépossívelreformardeumahoraparaoutraumapartamentointeirosemabalarasestruturas?—Estábem.Ouantes,estámal,masnãofazdiferença.Pode-sesaberde

quemaneiraoilustrepretendereformaranossaprezadasaladeestar,ondegeralmentenãoestamosporquenãohácondiçõesparaestar?—Bem,umareformatemquesercautelosa,docontrárioficapiordoquea

forma.Seagentemudartudoissoqueestáaí,trocandooestilodosmóveis,que aliás não têm estilo, depois de aumentar o espaço derrubando essaparede aí que atrapalha a circulação mas criando um ambiente grandedemais para as conveniências domésticas, isto não será uma reforma, seráumadeformação.Areformanãodevereformularaforma.Deveconfirmá-la.—Tudocomodantes,noquartel-de-abrantes?— Pegue aí o dicionário. Leia o que está escrito debaixo da palavra

“reforma”.—“Oatodereformar,demudarparaoantigoinstituto.”—Viu?—Estedicionárioévelhoprachuchu.

—Quantomaisvelho,maistino.—Espereaí.Depoisdeinstituto,temvírgulaecontinua:“ouparamelhoro

queiaemdecadênciaoumal”.—Dánomesmo.Agentereativa,rebobinaoinstituto,querdizer,oliving.

Ficaumapeçaagradávelparaasvisitas.Olivingdeveserocartão-postaldacasa.Nocartão-postalvocêcompreendequenãosepodeescreverdezpáginasnem nenhuma novidade: é só o “tudo bem, abraços, até breve”. Aliás, émelhor assim. Nunca se deve escrever demais. Escrever pouco e pensarmuitoantesdeescrever—éasabedoria.—Querdizerqueonossoliving…—Seráreformado.Issonãosediscute.Nãoseráumareformadireta,como

vocêtalvezestejapensando.Serátantoquantopossívelindireta.Porexemplo:muda-se esta poltrona do canto para a porta de entrada. Para entrar, vocêprecisará dar uma volta, porque ela ficará obstruindo a passagem. Isso dámaischarmeàcirculação,maisimprevisto:vocênãoentramaisdireto,entraenviesado.—Compreendo.— Não parece, pela cara. Pois olhe que a teoria, se podemos chamá-la

assim,dasviasdeacessoindiretassóaparentementecomplicaotrânsito.Narealidade,tudocontinuanamesma,asalaéamesma,aspessoasasmesmas.Umareformadessetipodáasensaçãodenovidadeenãoseexpõeaosriscosdonovidadismo,essadoençadepeledostemposmodernos.—Ahn.—Poisé, filha.Vamosreformar isso tudoquevocêestávendono living.

Apresente sugestões. Gosto muito de sugestões, mesmo que não sejamaproveitáveis.Só temumacoisa.Nãovenhacomideiasdereformarnemoedifícionema rua, porque você sabe:nadade incomodaro síndiconemoadministrador regional.Quantomenor for a reforma, tantomais ideal.Éoque nós queremos, os bons reformistas. Para começar, querida, váreformandonãosóosseusvestidosdeverãocomotambémoseuconceitodereforma!

PARTICIPAÇÃODECASAMENTO

Os jovensnamoram; os jovens ficamnoivos; os jovens casam. E, casando,participamdocasamento,oferecendoresidência.Nemtodomundohojefazisso, claro, uns tantos continuam a fazê-lo. O cartão, encorpado e de boaqualidade, formaliza mais uma vez o casamento, depois das cerimôniasrituais. É também um rito social, serve de documento para a história dafamília. Acontece que essa história às vezes dura pouco.Mesmo se durarmuito,quemselembradeguardaraparticipaçãodecasamentodosoutros?Comoocasamento,aparticipaçãoéjogadafora.Esta que tenho entre os dedos é diferente. Menor o cartão (9 ∑ 12

centímetros),comossimplesdizeres:“C.eJ.(deixemosseusnomesemdocesilêncio)dãopartedoseucasamento”.Osnomessãoemgótico,orestodafraseemletrainclinada,terminandoporduaspequenascurvasgraciosas.Noalto,àesquerda,doisraminhosverdes,entrelaçados,comsuasfloresalvas.Otrabalho gráfico é apurado, com o requinte de mínima faixa branca, emrelevo,prendendoosramos.Não diz, mas sei a data do casamento: 1886, 22 de maio. O casal nele

mencionadosãodoismortoshámuitosanos,poucagenteselembrarádeles.Amorteos separoudepoisde45 anosde vida emcomum;não chegaram,assim, às bodas de ouro. Seus filhos também já foram embora, com umaexceção. Também alguns netos já desapareceram. Todo esse viver e essedesviver de gente foram deixando esquecimentos pelo caminho. O cartãocontinua.Tenho motivo para crer que é exemplar único. Veio rolando de uma

geraçãoaoutra,nagavetadealguémque,entredescuidoshabituaisdavidafamiliar, conservou esse amor às pequenas coisas passadas, capaz de fazercom que não passem de todo. Em cada família há (ou devia haver) essealguémdotadodafaculdadedesentirosacontecimentosaindamuitotempodepoisqueelesseproduziram,eatémesmoosacontecimentosdequenãoparticipou. Essas coisas, transitórias como tudo, vivem tanto! Odaguerreótipoesmaecido;ovestidodenoiva;o leque;o relógiodebolsodoavô;cartascomoselodoimperadornosenvelopes,quenãoeramenvelopes,eram o avesso das cartas; flores secas, eternas, ao contrário das pessoas…Tesouroqueninguémfurtanempagaimpostodetransmissão.Belezas.

Olhoatentamenteparaavelhaparticipaçãoeécomoseocasalmoço—anoiva,dezesseteanos;onoivo,26—meaparecessenasuperfíciedopapel.Sorriemparamim.Sóos conhecineste século; agoraos conheçodeantes.Bonito rapaz, bonitamoça, que os traçosmadurosme confirmariam. Nãopossoacreditarqueessecasamentofoihá97anos,sehojeéquemechegouaparticipação.NãoculpooCorreionemaspessoas,poismepareceevidenteaatualidadedessepapelqueas traçasnãocomeram,dessas floresquenãoempalideceram, desse verbo, dessa expressão lacônica e peremptória: “Dãoparte”.Hoje,darparteédenunciar;em1886,eraanunciar,comunicar.Comraminhos de flor, tão discretos e tão líricos que se esvaece qualquerjulgamentodemaugosto.Receboagradecidoocartãoenãoposso,obviamente,agradeceraosrecém-

casadospelaatenção.Elesnãoseimportamcomissoesorriemsempre.Éamagia dos velhos papéis, que continuam novos na medida em quesoubermoslê-los.Em1886,aRepúblicaestavaparaserproclamada.Ignoroseoseráumdia.Osnoivos tambémnãosabiam,que importaaRepúblicaaos noivos de todas as épocas e de todos os países?O reino deles não é onosso.Éespaçodiferenteeilimitado,queentretantocabenumretângulodecartãoeignoraotempo,asconvulsõessociais,asasperezasdavida.Gostaria de conversar com esses dois em estado de mocidade, e na

realidadeestouconversando,mudo,emfrenteàparticipação.Conversocomosolhos,conversocomamemóriadasgerações,comotempoleveeazulde1886,poisassimodecreteinestemomento;agrada-meperceber,nonevoeirodosdias,ojovemcasaltrocandoaliançasnumatardedemaioenãodeoutromêsqualquer;tardecaprichadademaio,temperaturasuaveeazul-claro;atémesmoumasmeninasestãosepreparandoemsuascasasparaacoroaçãodelogomais na igreja.O perfil damontanha desenha-se no horizonte; é umperfilindispensável,semeleacidadeperderiaidentidade.Comotempo,essamontanhaseriadestruída.(Masocartãocontinua.)Acidadenãoégrande,ocasamento é festa de famílias importantes, vai havermuito doce, vinho doPortoedançanosobrado.Anoivaestámaislindadoquenunca,eorapagãoque vai casar vem à frente de luzido cortejo, todos a pé, cercados pelaadmiraçãodasjanelas.OsmaisfinospresentesvieramdaCorte,comoveiocertamenteocartão.Aigrejaestárepleta;osmeninosanseiampelosdoces;1886;umcartãoem1983mefalatudoisso.

PROFISSÃO:BANQUEIRO

—Profissão?—Banqueiro.—Osenhornãoestáfalandosério.Nãoadmitobrincadeira.—Toubrincandonão,doutor.Trabalhomesmodebanqueiro.—Equetrabalhoéesse?—Alugoobancodeminhapropriedade.Douumdurodanado.Sóissode

carregarobanconascostas,ummóvelpesado, ladeiraacimaenomeiodomato…—Alugaparaquê?— Não vá pensar que é pra imoralidade, doutor. Detesto isso, minha

formaçãoécristã,comagraçadeDeus.—Paraqueéentão?—Pradescanso,né?Epracurtirapaisagem,esseRiodeJaneiroincrívellá

embaixo.—Oqueéqueosenhorchamadedescanso?—Ué, descanso é estender as pernas, esquecer as chateações, relaxar.O

carasentaoudeitanobancootempoquequiser.—Etemconforto?—Opossível,né?Forradocomlençol limpo,queeunãotolerosujeira.E

travesseirinho.Praquemais?—Entãoéumacama.Achadireitoumacamaaoarlivre,paraaspessoasse

espojaremnela?—Perdão,doutor,naminhacamaninguémseespoja.Pelojeitodocliente

eumanjoseéumcaralegal.Compintademarginal,nãofaçonegócio.—Como?—Façopreçoexagerado,nomínimodezmil.—Dezmilcruzeirosparadeitarnumbanco?—Dezmil,doutor.Opioréqueumtopou.—Topou,deitou,e…—Nadadisso.Disseaelequetinhadeesperarduashoras,porqueobanco

tavareservadoprumcliente,coisadequenãotinhamelembradoquandodeiopreço.—Eele?

—Elenãogostou,masdesistiu.Nãoépormegabar,opessoalmerespeita.Tambémcomessamusculatura,maisopreparofísico…—Porquenãopreferejogarboxe?— Já joguei.Mas não gosto de socar ninguém nem de ser socado. Faço

exercício pra me defender, só isso. Na minha profissão, lidando comdesconhecidos,ajuda.—Equaléatarifanormaldeocupaçãodobanco?—Depende, né? Tem turista americano, turista latino-americano, turista

interno…Cariocamesmo,éraro.Pudera.MoramnoRio.—ConhecemoRiopordentroeporfora.—O contrário.Não conhecemnem têm vontade de conhecer. Eta gente

comodista. Vivem sempre no mesmo lugar, se acostumaram, não estãoligandoprasbelezas,asnovidades,osencantosdacidade.—Nãomudedeassunto.Querosaberquantovocêcobraparacadaclasse

deturista.—Variadeumacincomilcruzeiros.Ecomotempodeuso.—Cincomilcruzeirosparasentarnumbanco?!Estábrincando!—Avidatácara,doutor.Avidatámaiscaradoqueamorte,quetambém

nãoébarata.Meubancotemcomodidades,etemeuservindodesegurança.Opessoalchegabotandoaalmapelaboca,mesmoporqueeuescolhosempreos sítiosmais altos, não só demelhor panorama. Tem de haver uma boaárvore pra dar sombra, e às vezes até fruta silvestre. Um conforto assimquantocusta?Meupreçoébarato,podeacreditar.—Cincomilporcabeça?—Porcabeça.—Ecasal?— Casal não senta no meu banco de jeito nenhum. Sei lá o que eles

preparam.— Mas é um absurdo. Então vem um casal estrangeiro ou nacional

querendodesfrutaroseubanco,amulhersentaeomarido ficaesperandoempé,ouvice-versa?—Penseinisso,deium jeito.Aquiestá esta cadeirinhadesmontável,pra

quemesperavez.— É, estou vendo que você pensa em tudo. E, quando o cliente está no

banco,vocêfazasegurançasentadonacadeirinha?—Olhe,prafalarverdade,emgeraloclientedispensasegurança.— Como: em lugar ermo, em plenamata, as pessoas se arriscam a ser

assaltadas?—Segurança,doutor,éumserviçodelicado.Eupossoperfeitamentetomar

conta de tudo ficando nas redondezas, sacumé? Também sei ser discreto.Temmuitoclientequeprefere ficar sozinho,achoqueprameditarmelhorenquantodescansa.Ouvendoamaravilhadapaisagem.—Mesmoacompanhado?—Principalmenteacompanhado.Devesermeditaçãoadois,elanobanco,

ele na cadeirinha.Nisto eu nãome envolvo.Desde que haja respeito, doutodaliberdade.Econfionosclientes.Osenhorvaiquerersabermaisalgumacoisa?Foiumprazer.—Oprazerétodomeu.Temcarteiradetrabalho?—Bem,eu…—Jásei.Perdeuacarteira.Então,enquantovocênãotiraoutra,vouautuá-

loporvadiagem.—Ah,doutor,eopãodemeusfilhos?Eodireitoaotrabalho?Eaabertura,

doutor?

ÚLTIMOATO

Omontede rosas avança como se as flores, tomando corpo, caminhassemsozinhas.Rosasrubras,imagemdesangueemmovimento.—Mataramomeuamor!Mataramomeuamor!Dentrodomundodepétalas,amulhermorenaagita-se,ergueosbraços,e

seu grito repetido aumenta o calor do recinto apinhado. Ouvem-se outrosbrados:—Nãodeixaelaentrar,elanãopodeentrar!—Aviúvadofalecidotempreferência!Homensatiram-secontraasrosas,ferem-se,lutamcomamulherquetenta

chegar até o caixão aberto e acaba recuando aos empurrões.Desaparece láfora,inconformada,jogandoasfloresnocimento.—Elanãotemessedireito,ocorpoédamulherdele,depapelpassado—

comentamosexecutoresdaexpulsão.—Hum,quemsabeseelaatétemmaisdireitodoqueamulherdepapel

passado,oupelomenostemomesmodireito—dizumavozmurmuradademulherquenãodesejaseexpor.Curvada sobre o corpo, a viúva não tomou conhecimento da invasora.

Preside o velório, bemà cabeceira, comumador quenão chora, porque ohomemerabravo,nãotoleravalágrimas.Vinteoutrasmulheres,vestidasdebranco,turbantesbrancos,enfileiradasà

esquerdaeàdireita,comadignidadedevestais.Quasenãosemovem.Nãoolhampara o corpo.Nempara os lados.Mulatas, escurinhas, brancas, sãoumasófiguraquesedesdobraepareceplantadaalidesdeonascimentodohomem,paravelarsuamorte.—Comuma coisa a gente não se conforma— diz o chefe, também de

brancorigoroso.—Nãoébemcomamortedele,afinalninguémmorredevéspera,ahoraéahora.Masoúltimoadeusdeviasernaquadra,comorezaatradição.— É, na quadra era uma beleza— aprova um companheiro.—Último

adeussópodesernaquadra.Aquinãotemsentido,perdeamajestade.Alguns divagam sobre o motivo do crime. Cautelosamente. Há tantos

motivospossíveisqueninguémpodegarantir,dededoapontado:“Foieste”.Podeterhavidomesmodoismotivosconjugados.Ninguémsabeaocerto.Ou

todossabem?Sabemdemais,eocadáverestáali,conselheiromudo:ébomnão falar demais.Questõesdepoderna área clandestina, de autoridadenaárea aberta, complicações amorosas: todas as hipóteses volteiam sobre asmãos cruzadas do morto, a cabeça branca do morto. Nenhuma pousa.Zumbidodemoscas,nocalor.—Agentevamostermuitamudançaaqui—sussurraaquele.Tudovolta

aoantigo.—Vaiterenãovai.Pessoalquesaiunãopodedarascarasoutravez,pega

mal. Foi tascado.Mas o novo chefe tem ideias lá dele, e não vai copiar ofalecido.Falecidonãomanda.—Pelosdiscursosagentetiraumalinha.— Homem, não acho bom fazer discurso não. A hora não tá pra

garganteio.—Éhoradedor.Adorpedeapalavra.—Adorécalada.Aconselhomorenonenhumasoltaroverbo.Omovimento para colocar a bandeira sobre o corpo encontra reação da

família. Nada de bandeira! Vai é com a roupa do corpo, que ele mesmocomprouepagou.Masnãoéumabandeirasó,sãotrês, todasimportantes.Então as bandeiras não são dignas de envolver o falecido? Não é isso. Afamília tem seus motivos; não quer revelar as queixas, também não querfingimento.E as entidades irmãs, quenão comparecem todas?Por que atédepoisda

morteessarivalidade?Se faltauma,écomoseasdemais faltassem.Quemveiodaquela,veioporquequis,nãorepresentaaentidade.Hámuitodesgostono ar. Aflição e temor, vontade de acabar logo com isso ou de continuarindefinidamente,naatmosferapesada,queperturbaefascina.— Vai atrapalhar os ensaios. Numa hora dessas, a gente devia de estar

firme na quadra, honrando nossas cores. E se comprometer o desfile, jápensou?—Nãodizumabesteiradessas,companheiro.Carnavalsaidetarjapreta,

saidevelanamão,massai.—Mataramomeuamor…Mataramomeuamor…Quase um gemido, e vem da distância, de um ponto aonde não chega a

energiadosvigilantes.Éumchoro,umsambadeumanotasó,despidodefloreesperança.Daíahoras,oenterro.Umúnicosom:osurdo.

Notadaedição

BocadeluaréoúltimovolumedecrônicaspublicadoporCarlosDrummondde Andrade ainda em vida. A primeira edição saiu pela Record em 1984,sendoreeditadanomesmoanomaisduasvezes.Aessasediçõesseguiram-seoutras,chegando-seà11aem2009pelamesmaeditora.Ovolumetambémfoi publicado algumas vezes pelo Círculo do Livro, sozinho ou com outrotítulodeDrummond,comoaediçãode1989,reunindoBocadeluareArosadopovo.Eem2002,centenáriodonascimentodoautor,foipublicadopelaeditoraDidáticaPaulista.O texto-baseutilizadopara este estabelecimento foi a primeira edição, de

1984. Consultei, ainda, outras edições lançadas em vida do autor — asegunda (1984), a quarta (1985) e a sétima (1987), todas da Record —,verificando que o texto foi mantido sem nenhuma alteração. Por fim,consultei a 11a edição (2009), também da Record, cujo texto contémpequenasalterações.Preservei,contudo,aliçãodaprimeiraedição,poisade2009nãoinformaquaiscritériosnortearamasmudançasefetuadas.

RONALDPOLITO

Posfácio

AOFIM,NOMEIODOCAMINHODAESCRITAFranciscoBosco

Publicado em 1984, ano em que se despede publicamente da atividadeperiódicadecronista,esteBocadeluaréofruto,daperspectivacronológica,deumDrummond invernal, jáao fimdavida (opoetamorreriaem1987).Trintaanosantes,umaamendoeiraochamaradeoutonal,eselarasobestesigno sua atividade de cronista. Maduro, o Drummond que doravantededicar-se-ia ao “ofíciode rabiscar sobre as coisasdo tempo”é aqueleque,pouco antes, recusara a sempiterna Máquina do Mundo, sua totalidadeinapreensível, e seguira “vagaroso, de mãos pensas”, para então abraçar avidaaorésdochão.Octogenário,segundoacronologia;velho,paraosprocessosbiológicos—

Drummond se revela neste livro leve e jovial como a índole do gênero. Aprosa suavemente magistral dessas crônicas prova que a escrita não temidade, pois seu tempo é o do desejo, e este, como o inconsciente, não seinscreve no tempo quantitativo. Na reta final de sua existência, o poeta-cronistaestá,aqui,nelmezzodelcammindaescrita, jáque,daperspectivadodesejo—eéodesejoqueafiaafacadaspalavras—,otextoésómeioemeios,nãoteminício,esobretudonãotemfim.Ao tempocronológicoda idadee à eterna juventudedesejanteda escrita,

junta-se aqui uma terceira temporalidade, o eterno retorno dos temas, dasobsessões e, como não poderia deixar de ser, dos traços profundos depersonalidade identificados por seus leitores — e, antes de todos, pelopróprio poeta — desde o início. A começar por aquela seminalautodeclaração de desajuste (“Vai, Carlos, ser gauche na vida!”), que,impressa na primeira estrofe do primeiro poema do primeiro livro deDrummond, ora reaparece, neste que é um de seus últimos livros, numapequena obra-prima intitulada “Declarações à colegial que veio entrevistar-me”.Nela,asinasopradapeloanjotortoassumeasformasdarepetência,dareprovação, da ineficiência, da inutilidade, em suma, todo um conjuntonegativodeatributoscujasomaresultanumapositiva“sabedoriacanhota”.Éaindaaquiaquela“entradaemcampotriunfaletrôpega”1do“Poemadesetefaces”, aquela “espécie de inclusão excludente do sujeito nomundo”2 quepersiste e insiste, revelando-se, como observou José Miguel Wisnik, “umestigma autoassumido e forte o suficiente para permanecer como marcaindeléveldoseupercurso”:3

Nãoqueeudetesteareprovação,fiquesabendo.Todasasvezes(raras)emquealguémmeaprovou,experimenteiumaespéciederemorso.Estavatraindominhanatureza.Umavezsubidemaneiratãoespetacular no ônibus emmovimento, que os passageiros bateram palmas. Omotorista parou oveículoeveiomecumprimentar.Recuouatempo.Viuqueeunãoeraocampeãoqueelepensava,tudo obra do acaso, e voltou-me as costas com reprovação. Respirei aliviado, no limite daautossatisfação[…].

Nessetrecho,asvelhastintadamelancoliaepenadagalhofasefundeme

se superam no registro sem ênfase da maturidade. Mas o humor maisaberto,traçodoespíritomodernista,tambémsefazpresentenestelivro,emcrônicascomo“AconteceuemLondres”e“Oratoeocanário”.Naprimeira,umsujeitoqualquerinvadeopaláciodeBuckinghameésurpreendidopelarainhaaopédesuacama.Segue-seentãoumaconversatrivial,eentretantoabsurdaparaocontexto, tantomaisengraçadaquantovazadanaproverbialfleuma retórica dos ingleses, que termina com o invasor pedindo umcigarrinhoàVossaMajestadeesendoatendidocomosese tratassedeumaconversadeesquina.Naoutra,umhomemcomfome,emagradecimentoaogerente de um restaurante que lhe oferece uma refeição,mostra a ele umratoeumcanárioque,nopianoenopiar,respectivamente,executamumamodinhaparao“gerenteboquiaberto”.Diantedesuaperplexidade,comdorna consciência, o homem, que já se ia pela rua, estaca e volta, disposto acontaraverdadesobreaquelamilagrosacena:“Euenganeiosenhor”,elediz.“OSizanãocantacoisanenhuma,éumcanáriobobo, fazaquela figuraçãotoda,masquemcantamesmoéoEvaristo[orato],queéventríloquo!”As duas crônicas constroemuma situação estrutural queBergson, em seufamosoestudosobreoriso,identificoucomoaorigemsocialdohumor.Parao filósofo francês, a vida em sociedade exige das pessoas manter-se emestadopermanentedetensãoeflexibilidade.Arealidaderequeratençãoparaexecutar as tarefas necessárias e flexibilidade para se adaptar à mudançaconstantedassituaçõesdavida.Orisoeclodequandovemosalguémfalharnesse estado de atenção e flexibilidade, incorrendonuma rigidezmecânicaavessaaoqueocontextosolicitaeliberandoemnósumaespéciedecatarse,arealização— por identificação, como que sublimada — de um desejo derelaxamento desse princípio de atenção permanente. É assim que oprosaísmo da vontade de fumar de um cidadão qualquer contrasta com apompadopaláciodeBuckingham,eaprosanaturalentreosúditoinvasorearainhadepijamaserevelaartificial, istoé,mecânica,paraocontexto.Demodoanálogo,umratoeumcanárioperformersconfiguramumasituação

absurdaporsisó,queseconverteemhumorquando,paraopersonagemdacrônica, desatento portanto à realidade, o ponto emquestão é a verdadeiracapacidadedecadaumdeles.O estranhamento de procedimentos naturalizados da língua portuguesafaladacotidianamentenoBrasiléoutrotemadrummondianoquereaparecenos textos deste livro. Sua incidência, nas crônicas, pode ser verificada emdiversos volumes anteriores, como emDe notícias & não notícias faz-se acrônicae,emespecial,Osdiaslindos(todosostextosdaseção“Ohomemealinguagem”).E,napoesia,confunde-semesmocomoestatutodepoeta,parao qual a reflexão sobre a linguagemé constitutiva de seu fazer.Aomenosparaacondiçãodopoetamoderno,qualseja,adeescrevernumaépocaemquea literaturaperdeusuasgarantiasedeveprocurar fundá-lasacadavez,obrigandocadaescritorainstaurar,comodiziaBarthes,emsi“oprocessodaLiteratura”.4 Em Drummond, essa metalinguagem filosófica e prática —situadanoregistrodameditaçãosobreanaturezadalinguagemtantoquantonas regrassingularesdeseupróprio fazer—atingealgunsdeseuspontosmaisaltosnosconhecidospoemasqueabremArosadopovo,“Consideraçãodo poema” e “Procura da poesia” (“Penetra surdamente no reino daspalavras./Láestãoospoemasqueesperamserescritos”).Neste Boca de luar, o estranhamento da língua praticada se desdobra emironia divertida sobre a precariedade vocabular dos jovens (“Bob e odicionário”); crítica a construçõespoucoeufônicas e semsentido (“Em ida,emada”);proustianasevocaçõeseimaginaçõesapartirdetopônimos(“IlhasdeMinas,novoodaspalavras”);umcuriosotourdeforcenominal,feitodenomes de princípios vegetais e minerais da homeopatia, e vazado empseudocrônica do high society (“Bela noitada”); entre outros (“Amoça emMarajó”, “Amoça disse: alto lá!”, “A estranha [e eficiente] linguagem dosnamorados”).Em todos, oque sedáéumadesnaturalizaçãoda falaobtidapelameraexposiçãodeseusmecanismos,entretecidaounãoemnarrativasbem-humoradas, mas sempre, e é isso o decisivo, recusando a análise, aexplicação, a hipótese histórica, linguística, psicossocial, em suma, dequalquer natureza teórica. Essa recusa nos permite abordar a próprianaturezadacrônica,tambémelaobjetodereflexão,domodoqueconvémaogênero,nestelivro.Talvez tenha facilitado a Drummond que alguns traços reconhecíveis nogênerocrônicaestivessemdesdeoiníciopresentesemsuapoesia.Acomeçarporaquele“diapasãodefamiliaridade”,5queSilvianoSantiagoidentificouem

seus versos, e que émarca de todo cronista. A crônica é uma voz que sedeseja próxima, que se põe em pé de igualdade com o leitor. Ahorizontalidade é o seuplano.Meditando, oumelhor, pensando alto sobreela neste livro, Drummond a situa inapetente diante da alheia “fome deconceitosgraves”.Acrônicanãotem“pretensãodecontribuirparaorestaurodomundo”(“Ofrívolocronista”).Tambémessareflexãoestápresentedesdeoiníciodesuaatividadecomocronista,naspáginasdeapresentaçãodeFala,amendoeira.Eseestenderáatéoúltimosuspiro,quando,emsuacrônicadedespedida, publicada no Jornal do Brasil, elogiará o gênero porque “nãoobriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posiçãocorretadiantedosgrandesproblemas”.6 Justamente,nadamais estranho àcrônica do que a formalidade, a erudição ostensiva, o levar-se a sério, aprocurada verdadepor argumentos consecutivos, lógicas cerradas eprovasirrefutáveis. Como observou Eduardo Portella: “O ensaio é, de todos osgênerosquepenetramasfronteirasdacrônica,omaisostensivamentehostilà própria índole da crônica”.7 Drummond sabe disso e declara-se, comocronista,“apenasalguémqueprocuraamenizarumpoucooaspectotrágico,sinistro,domundoemquevivemos”.8Esse compromisso com a leveza não o impede, diga-se de passagem, de

mencionar, em diversas crônicas deste livro, a ditadura política que aindapersistia no Brasil, em seu período final. Assim, em “Treze na ilha”mencionaexplicitamenteoAI-5.Emoutrosmomentos,comoem“OVIPsemquerer”, aludede raspão, semprecom ironia, aoestadodeexceçãovigente:“Oaviãoestavaatrasadoduashoras,oquenãoémuito,emcomparaçãocomoutrosatrasosporaí,inclusiveodachegadadoestadodedireito”.E,em“Aleidoverão”,atingeopontodosarcasmo,aoinventarumaparódiadelei,quenofundorevelaomodusoperandidosEstadostotalitários:Os casos de desidratação seguidos de óbito, resultantes da elevação excessiva de temperatura emcontraste com a ausência de reservas orgânicas, notadamente em crianças subnutridas, devemfigurarnasestatísticasdemográficassobarubricaForçadoDestino.

Tambémdefundo,semcomprometeroprincípiodaamenidade,atravessa

olivro,configurandoumadesuasdimensõesmaisimportantes,otemaquepoderíamoschamar,naesteiradeuma formulaçãode JoséMiguelWisnik,deformasdeatuaçãoda“GrandeMáquina”.Espéciedeformulaçãopoética,depois retomadanascrônicas,danoção foucaultianadebiopoder,agrande

máquina, nomeada assim por Wisnik, é “[…] a invenção astuciosa de umpoder que não deixará lugar sem traço de sua intrusão”.9 E, prossegue oensaísta, aproximando-amais da ideia da noção de biopoder, “não como oolhovigilantedoGrandeIrmão, figuradoexternamente,mascomoopoderquesetornaextensão,desdedentro,dosnossosgestosmaiscotidianos”.10Essa teia invisível e onipresente é identificada, ao longo deste livro, sob

várias formas. Enquanto princípio de realidade excessivo, triturador dedesejos, como no caso do personagem de “Depois da quarta dose”, umpublicitário frustrado, que passou a vida vendendo bolachinhas, e concluique “as bolachinhas ocupam naminha vida um lugar indevido, reservadopara ocupações artísticas e filosóficas que jamais poderão se concretizar”(note-sequeogauchismo, emque o desajuste conduz à autenticidade, é oantídotoexistencialaesse fracassodosucessoque se inscrevenomododevida subordinado ao imperativo capitalista). De forma análoga, na crônica“Música no táxi”, em que o motorista, amante da música, ouve de um“cidadãodegravataepastadeexecutivo”queabaixe“essetroço”,referindo-seà música de Tchaikóvski, pois “precisava se concentrar por causa de umnegócioimportante”.Ecomopoderonipresente, integradornopiorsentidoda palavra, totalitário, que pretende reduzir toda a diferença à sua própriaidentidade: “Quando os projetos de desenvolvimento integrado chegam àtoca do tatu, não hámais nada a fazer” (“Diálogo dos pessimistas”). Comefeito,ésobessaformaqueagrandemáquinaapareceno livrocommaiorinsistência,abrindo-seemclarãomuitomaiorqueotolerável,comonatristecrônica“José,doMucuri”:Comosenãobastasseoexcessodepopulaçãodomundo,hámuitoandamoshomensdetectandoaexistência de outrosmundos habitados no espaço sideral, e há quem exclame, emocionado: “Nãoestamossós”.Masquemdissequeestamossós,sevivemostãoacotoveladospelasavenidasdaTerra,e há tamanha falta de lugar para todos que querem viver? Pois como se tudo isto não fossesuficiente, correm àsmatas da região banhada pelo rioMucuri, lá ondeMinas, Bahia e EspíritoSanto se confundem, e de suas brenhas retiram JoséPedro, oúltimopromeneur solitaire de quehavia notícia, o homemque vivia ao lado de uma fogueira acesa, espantando onças e, sobretudo,gente.

—Vem,rapaz!Queremosquevocêparticipedasmaravilhasdacivilização!

Trechoquenosreenviaaesteversodopoema“Osobrevivente”,deAlguma

poesia: “Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado”. E nos permiteobservar que a grande máquina é, por definição, urbana, e isso volta a

produzirumatensãoentreomundoruraleacidade,que,comosesabe,jáestáemDrummonddesdeoinício,quandoessesmundosaindaerammaisequilibrados, e reaparece agora como a inevitável extinção dos poucosespaços feitos “de água e de verde pulsante” (“A moça em Marajó”),assediadospeloprojetomodernoocidentaldedominaçãodanatureza.Muitos outros temas se encontram neste livro, alguns deles também

recorrentes (como o pendor memorialístico, que domina a poesia deDrummonddosanos1970emdiante,equeaquisefazpresenteem“Milhocozido”, “Coisas lembradas” e “Participação de casamento”), outros maiscontemporâneos(comoasironiasfeitasàsociedadedoespetáculo,cadavezmais dominante, desde o célebrepoema “AoDeusKomUnikAssão”, queabreolivroAsimpurezasdobranco,de1973,eaquipresentesnascrônicas“Temcadaumanavida”e“Arteecasamento”).Este comentário já vai entretanto se alongando demais, e não quero

contrariar por mais tempo o tom das crônicas deliciosas que aqui seencontram.Chegade explicações.Voltemos, leitor, à “pausa, [a]odescanso,[a]orefrigériododesmedidoafãderacionalizartodososatosdenossavida”.

1 JoséMiguelWisnik,“Drummondeomundo”. In:NOVAES,Adauto (Org.).Poetasquepensaramomundo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2005.p.27.2Ibid.,p.27.3Ibid.,p.27.4RolandBarthes,Ograuzerodaescritura.SãoPaulo:Cultrix,1971.p.105.5 Silviano Santiago, “Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade”. In:ANDRADE,CarlosDrummondde.Poesiacompleta.RiodeJaneiro:NovaAguilar,2003.p.v.6“Ciao”.JornaldoBrasil.RiodeJaneiro,29set.1994.7EduardoPortella,“Acidadeealetra”.In:DimensõesI.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1958.p.86.8EntrevistaconcedidaaoJornaldoBrasilem26out.1982.9JoséMiguelWisnik,op.cit.,p.45.10Ibid.,p.45.

Leiturasrecomendadas

CANDIDO,Antonio.Recortes.RiodeJaneiro:OurosobreAzul,2004.PORTELLA,Eduardo.“Acidadeealetra”.In:DimensõesI.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1958.SANTIAGO,Silviano.“IntroduçãoàleituradospoemasdeCarlosDrummonddeAndrade”.In:ANDRADE,CarlosDrummondde.Poesiacompleta.RiodeJaneiro:NovaAguilar,2003.WISNIK,JoséMiguel.“Drummondeomundo”.In:NOVAES,Adauto(Org.).Poetasquepensaramomundo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2005.

Cronologia

1902 NasceCarlosDrummonddeAndrade,em31deoutubro,nacidadedeItabiradoMatoDentro(MG),nonofilhodeCarlosdePaulaAndrade,fazendeiro,eJulietaAugustaDrummonddeAndrade.

1910 IniciaocursoprimárionoGrupoEscolarDr.CarvalhoBrito.

1916 ÉmatriculadocomoalunointernonoColégioArnaldo,emBeloHorizonte.ConheceGustavoCapanemaeAfonsoArinosdeMeloFranco.Interrompeosestudospormotivodesaúde.

1917 DevoltaaItabira,tomaaulasparticularescomoprofessorEmílioMagalhães.

1918 AlunointernodoColégioAnchietadaCompanhiadeJesus,emNovaFriburgo,colaboranaAuroraColegial.NoúnicoexemplardojornalzinhoMaio…,deItabira,oirmãoAltivopublicaoseupoemaemprosa“Onda”.

1919 Éexpulsodocolégioemconsequênciadeincidentecomoprofessordeportuguês.Motivo:“insubordinaçãomental”.

1920 AcompanhasuafamíliaemmudançaparaBeloHorizonte.

1921 PublicaseusprimeirostrabalhosnoDiáriodeMinas.FrequentaavidaliteráriadeBeloHorizonte.AmizadecomMiltonCampos,AbgarRenault,EmílioMoura,AlbertoCampos,MárioCasassanta,JoãoAlphonsus,BatistaSantiago,AníbalMachado,PedroNava,GabrielPassos,HeitordeSousaeJoãoPinheiroFilho,habituésdaLivrariaAlvesedoCaféEstrela.

1922 Seuconto“JoaquimdoTelhado”venceoconcursodaNovelaMineira.TravacontatocomÁlvaroMoreyra,diretordeParaTodos…eIlustraçãoBrasileira,noRiodeJaneiro,quepublicaseustrabalhos.

1923 IngressanaEscoladeOdontologiaeFarmáciadeBeloHorizonte.

1924 Conhece,noGrandeHoteldeBeloHorizonte,BlaiseCendrars,MáriodeAndrade,OswalddeAndradeeTarsiladoAmaral,queregressamdeexcursãoàscidadeshistóricasdeMinasGerais.

1925 Casa-secomDoloresDutradeMorais.Participa—juntamentecomMartinsdeAlmeida,EmílioMouraeGregorianoCanedo—dolançamentodeARevista.

1926 Seminteressepelaprofissãodefarmacêutico,cujocursoconcluíranoanoanterior,enãoseadaptandoàvidarural,passaalecionargeografiaeportuguêsemItabira.VoltaaBeloHorizontee,poriniciativadeAlbertoCampos,ocupaopostoderedatoredepoisredator-chefedoDiáriodeMinas.Villa-Loboscompõeumaserestasobreopoema“Cantigadeviúvo”(queiriaintegrarAlgumapoesia,seulivrodeestreia).

1927 Nasceem22demarçoseufilho,CarlosFlávio,quemorremeiahoradepoisdeviraomundo.

1928 Nascimentodesuafilha,MariaJulieta.Publica“Nomeiodocaminho”naRevistadeAntropofagia,deSãoPaulo,dandoinícioàcarreiraescandalosadopoema.Torna-seauxiliarnaredaçãodaRevistadoEnsino,daSecretariadeEducação.

1929 DeixaoDiáriodeMinasepassaatrabalharnoMinasGerais,órgãooficialdoestado,comoauxiliarderedaçãoe,poucodepois,redator.

1930 Algumapoesia,seulivrodeestreia,saicomquinhentosexemplaressoboseloimagináriodeEdiçõesPindorama,deEduardoFrieiro.AssumeocargodeauxiliardegabinetedeCristianoMachado,secretáriodoInterior.PassaaoficialdegabinetequandoseuamigoGustavoCapanemaassumeocargo.

1931 Morreseupai.

1933 RedatordeATribuna.AcompanhaGustavoCapanemaduranteostrêsmesesemqueestefoiinterventorfederalemMinas.

1934 Voltaàsredações:MinasGerais,EstadodeMinas,DiáriodaTarde,simultaneamente.PublicaBrejodasalmas(duzentosexemplares)pelacooperativaOsAmigosdoLivro.Transfere-separaoRiodeJaneirocomochefedegabinetedeGustavoCapanema,novoministrodaEducaçãoeSaúdePública.

1935 RespondepeloexpedientedaDiretoria-GeraldeEducaçãoeémembrodaComissãodeEficiênciadoMinistériodaEducação.

1937 ColaboranaRevistaAcadêmica,deMuriloMiranda.

1940 PublicaSentimentodomundo,distribuindoentreamigoseescritoresos150exemplaresdatiragem.

1941 MantémnarevistaEuclides,deSimõesdosReis,aseção“ConversadeLivraria”,assinadapor“OObservadorLiterário”.ColaboranosuplementoliteráriodeAManhã.

1942 PublicaPoesias,naprestigiosaEditoraJoséOlympio.

1943 SuatraduçãodeThérèseDesqueyroux,deFrançoisMauriac,vemalumesobotítuloUmagotadeveneno.

1944 PublicaConfissõesdeMinas.

1945 PublicaArosadopovoeOgerente.ColaboranosuplementoliteráriodoCorreiodaManhãenaFolhaCarioca.DeixaachefiadogabinetedeCapanemae,aconvitedeLuísCarlosPrestes,figuracomocodiretordodiáriocomunistaTribunaPopular.Afasta-semesesdepoispordiscordardaorientaçãodojornal.TrabalhanaDiretoriadoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional(DPHAN),ondemaistardesetornaráchefedaSeçãodeHistória,naDivisãodeEstudoseTombamento.

1946 RecebeoPrêmiodeConjuntodeObra,daSociedadeFeliped’Oliveira.

1947 ÉpublicadaasuatraduçãodeLesLiaisonsdangereuses,deLaclos.

1948 PublicaPoesiaatéagora.ColaboraemPolíticaeLetras.Acompanhaoenterrodesuamãe,emItabira.Namesmahora,noTeatroMunicipaldoRiodeJaneiro,éexecutadoo“PoemadeItabira”,deVilla-Lobos,apartirdoseupoema“Viagemnafamília”.

1949 VoltaaescrevernoMinasGerais.Suafilha,MariaJulieta,casa-secomoescritoreadvogadoargentinoManuelGrañaEtcheverryevaimoraremBuenosAires.ParticipadomovimentopelaescolhadeumadiretoriaapolíticanaAssociaçãoBrasileiradeEscritores.Contudo,juntamentecomoutroscompanheiros,desliga-sedasociedadeporcausadeatritoscomogrupoesquerdista.

1950 ViajaaBuenosAiresparaacompanharonascimentodoprimeironeto,CarlosManuel.

1951 PublicaClaroenigma,ContosdeaprendizeAmesa.OvolumePoemasépublicadoemMadri.

1952 PublicaPasseiosnailhaeVioladebolso.

1953 Exonera-sedocargoderedatordoMinasGeraisaoserestabilizadasuasituaçãodefuncionáriodaDPHAN.VaiaBuenosAiresparaonascimentodoseunetoLuisMauricio.NacapitalargentinaapareceovolumeDospoemas.

1954 PublicaFazendeirodoar&Poesiaatéagora.ÉpublicadasuatraduçãodeLesPaysans,deBalzac.Asériedepalestras“Quasememórias”,emdiálogocomLiaCavalcanti,éveiculadapelaRádioMinistériodaEducação.Dáinícioàsériedecrônicas“Imagens”,noCorreiodaManhã,mantidaaté1969.

1955 PublicaVioladebolsonovamenteencordoada.OlivreiroCarlosRibeiropublicaediçãoforadecomérciodoSonetodabuquinagem.

1956 PublicaCinquentapoemasescolhidospeloautor.SaisuatraduçãodeAlbertinedisparue,ouLaFugitive,deMarcelProust.

1957 PublicaFala,amendoeiraeCiclo.

1958 UmapequenaseleçãodeseuspoemasépublicadanaArgentina.

1959 PublicaPoemas.GanhaospalcosasuatraduçãodeDoñaRositalaSoltera,deGarcíaLorca,pelaqualrecebeoPrêmioPadreVentura.

1960 ÉpublicadaasuatraduçãodeOiseaux-MouchesOrnithorynquesduBrésil,deDescourtilz.ColaboraemMundoIlustrado.NasceemBuenosAiresseunetoPedroAugusto.

1961 ColaboranoprogramaQuadrante,daRádioMinistériodaEducação.MorreseuirmãoAltivo.

1962 PublicaLiçãodecoisas,AntologiapoéticaeAbolsa&avida.AparecemastraduçõesdeL’Oiseaubleu,deMaeterlinck,eLesFourberiesdeScapin,deMolière,recebendoporestanovamenteoPrêmioPadreVentura.Aposenta-secomochefedeseçãodaDPHAN,após35anosdeserviçopúblico.

1963 ApareceasuatraduçãodeSult(Fome),deKnutHamsun.Recebe,pelolivroLiçãodecoisas,osprêmiosFernandoChinaglia,daUniãoBrasileiradeEscritores,eLuísaCláudiodeSousa,doPENClubedoBrasil.IniciaoprogramaCadeiradeBalanço,naRádioMinistériodaEducação.

1964 PublicaçãodaObracompleta,pelaAguilar.Iníciodasvisitas,aossábados,àbibliotecadePlínioDoyle,eventomaistardebatizadode“Sabadoyle”.

1965 PublicaçãodeAntologiapoética(Portugal);IntheMiddleoftheRoad(EstadosUnidos);Poesie(Alemanha).ComManuelBandeira,editaRiodeJaneiroemprosa&verso.ColaboraemPulso.

1966 PublicaçãodeCadeiradebalançoedeNattenochRosen(Suécia).

1967 PublicaVersiprosa,José&outros,Umapedranomeiodocaminho:biografiadeumpoema,MinasGerais

(Brasil,terraealma),Mundo,vastomundo(BuenosAires)eFyzikaStrachu(Praga).

1968 PublicaBoitempo&Afaltaqueama.

1969 PassaacolaborarnoJornaldoBrasil.PublicaReunião(dezlivrosdepoesia).

1970 PublicaCaminhosdeJoãoBrandão.

1971 PublicaSeletaemprosaeverso.SaiemCubaaediçãodePoemas.

1972 PublicaOpoderultrajovem.Suassetedécadasdevidasãocelebradasemsuplementospelosmaioresjornaisbrasileiros.

1973 PublicaAsimpurezasdobranco,Meninoantigo,Labolsaylavida(BuenosAires)eRéunion(Paris).

1974 RecebeoPrêmiodePoesiadaAssociaçãoPaulistadeCríticosLiterários.

1975 PublicaAmor,amores.RecebeoPrêmioNacionalWalmapdeLiteratura.RecusapormotivodeconsciênciaoPrêmioBrasíliadeLiteratura,daFundaçãoCulturaldoDistritoFederal.

1977 PublicaAvisita,DiscursodeprimaveraeOsdiaslindos.ÉpublicadanaBulgáriaumaantologiaintituladaSentimentodomundo.

1978 AEditoraJoséOlympiopublicaasegundaedição(corrigidaeaumentada)deDiscursodeprimaveraealgumassombras.PublicaOmarginalClorindoGatoe70historinhas,reuniãodepequenashistóriasselecionadasemseuslivrosdecrônicas.Amar-AmargoeElpoderultrajovensaemnaArgentina.APolyGramlançadoisLPscom38poemaslidospeloautor.

1979 PublicaPoesiaeprosa,revistaeatualizada,pelaEditoraNovaAguilar.SaitambémseulivroEsquecerparalembrar.

1980 RecebeosprêmiosEstáciodeSá,dejornalismo,eMorgadoMateus(Portugal),depoesia.PublicaçãodeApaixãomedida,EnRostatFolket(Suécia),TheMinusSign(EstadosUnidos),Poemas(Holanda)eFleur,téléphoneetjeunefille…(França).

1981 Publica,emediçãoforadecomércio,Contosplausíveis.ComZiraldo,lançaOpipoqueirodaesquina.SaiaediçãoinglesadeTheMinusSign.

1982 Aniversáriodeoitentaanos.ABibliotecaNacionaleaCasadeRuiBarbosapromovemexposiçõescomemorativas.RecebeotítulodedoutorhonoriscausapelaUniversidadeFederaldoRioGrandedoNorte.PublicaAliçãodoamigo.SainoMéxicoaediçãodePoemas.

1983 DeclinadoTroféuJucaPato.PublicaNovareuniãoeoinfantilOelefante.

1984 PublicaBocadeluareCorpo.Encerrasuacarreiradecronistaregularapós64anosdedicadosaojornalismo.

1985 PublicaAmarseaprendeamando,Oobservadornoescritório,Históriadedoisamores(infantil)eAmor,sinalestranho(ediçãodearte).LançamentocomercialdeContosplausíveis.PublicaçãodeFranOxenTid(Suécia).

1986 PublicaTempo,vida,poesia.Sofrendodeinsuficiênciacardíaca,passacatorzediashospitalizado.EdiçãoinglesadeTravellingintheFamily.

1987 Éhomenageadocomosamba-enredo“Oreinodaspalavras”,pelaEstaçãoPrimeiradeMangueira,quesesagracampeãdoCarnaval.Nodia5deagostomorresuafilha,MariaJulieta,vítimadecâncer.Muitoabalado,morreem17deagosto.

CarlosDrummonddeAndrade©GrañaDrummondwww.carlosdrummond.com.brGrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.CAPAEPROJETOGRÁFICO

warrakloureirosobrefotografiadeElliottErwitt/MagnumPhotos/Latinstock.FOTODOAUTOR

Fotografiadap.1:retratodeCarlosDrummonddeAndradepertencenteaoArquivo-MuseudeLiteraturaBrasileira,daFundaçãoCasadeRuiBarbosa.ESTABELECIMENTODETEXTO

RonaldPolitoPREPARAÇÃO

SilviaMassiminiFelixREVISÃO

ThaísTotinoRichterAngeladasNevesISBN978-85-438-0187-2TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORASCHWARCZS.A.

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