AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
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AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃOAS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃOPOLÍTICAPOLÍTICA
O PROCESSO DE MUDANÇA DE LIDERANÇAS POLÍTICAS EM FORTALEZA
VALMIR LOPES
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAAS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAO PROCESSO DE MUDANÇA DE LIDERANÇAS POLÍTICAS EM FORTALEZA
VALMIR LOPES
Tese apresentada à Coordenação doPrograma de Pós-Graduação emSociologia, da UniversidadeFederal do Ceará, como requisitoparcial para obtenção do grau deDoutor em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr.Jawdat Abu-El-Haj
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VALMIR LOPES
AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAAS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAO PROCESSO DE MUDANÇA DE LIDERANÇAS POLÍTICAS EM FORTALEZA
Tese apresentada à Coordenação doPrograma de Pós-Graduação emSociologia, da Universidade Federaldo Ceará, como requisito parcialpara obtenção do grau de Doutor emSociologia.
Aprovada em ____/ ____/ _____
BANCA EXAMINADORA
________________________Prof. Dr. Jawdat Abu-El-Haj - (Orientador)
Universidade Federal do Ceará – UFC
________________________________Profa. Dra. Maria Auxiliadora LemenheUniversidade Federal do Ceará – UFC
__________________________________________Prof. Dr. Francisco Horácio da Silva Frota
Universidade Estadual do Ceará – UECE
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_________________________________Prof. Dr. Josênio Camelo Parente
Universidade Estadual do Ceará – UECE
_________________________________ Profa. Dra. Marilde Loiola de Menezes Universidade de Brasília – UnB
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AGRADECIMENTOS
No Livro das mil e uma noites as narrativas são contadas para sefugir da morte. Em cada história contada havia a expectativade se adiar a morte. A teoria do eterno retorno,brilhantemente descrita por Borges, relembra a fábula decírculos que não se fecham jamais, pois a cada início, setrata na verdade de uma continuidade; o fim é outro nome parao começo. Pensando nisso, lembro-me da minha trajetóriaintelectual intimamente relacionada ao Departamento deCiências Sociais da UFC. Sempre me imaginei, num certomomento, concluindo um ciclo de formação. Ao longo desteperíodo foram tantas as pessoas que passaram e imprimirammarcas fortes nesta trajetória que não poderia lembrar detodas. De algum modo, porém, todas elas foram, em seu tempo,importantes.
Da minha formação inicial guardo a forte lembrança deduas pessoas importantes: Mirtes Amorim e Roberto Oliveira.Dois professores que marcaram minha trajetória, mesmo semsaber. Dos meus primeiros professores, gostaria de deixarregistrado o impacto significativo de Rejane Accioly sobre meumodo de encarar a teoria social; de Helene Velay, que nopassado soube como ninguém me incentivar; de André Haguette,por quem nutro especial apreço e respeito intelectual.
Agradeço ao colegiado do Departamento de Ciências Sociaisque me concedeu tempo suficiente para poder me dedicarunicamente à elaboração deste trabalho. E aos órgãoscolegiados da UFC, pela minha liberação.
Sou grato, ainda, aos colegas do Departamento. Emparticular menciono Auxiliadora Lemenhe, figura emblemática daminha geração no Departamento. A ela, meu reconhecimento eagradecimento por tudo. Desde a época em que era estudante numprojeto de pesquisa sobre a elite cearense. Obrigado, também,a Estevão Arcanjo, a quem devo muito das observaçõespertinentes e importantes para o aperfeiçoamento destetrabalho.
Ao colega e amigo Domingos Sávio, que mesmo distante,contribuiu nesta fase final. À amiga Geralda de Almeida, queme proporcionou momentos de total reclusão em seu abrigo deFortaleza.
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À amiga Geisa Mattos, com quem maturei algumas idéiasusadas em nossas teses. À Andréa Borges, por momentos dedebate intelectual importante.
Às lideranças comunitárias, participantes deste trabalho,em cujo intrincado universo contei com o apoio dos líderes dobairro Vila Velha, Elizete Garcez, Cláudio Silva e ÁureaBrito. Com eles compartilhei momentos de suas organizaçõessociais.
Aos ex-vereadores, especialmente José Edmar Barros deOliveira, Ivone Melo, Maria José de Oliveira e Herval Sampaio.Obrigado pelas informações sobre os políticos e a forma defazer política em Fortaleza, em diversas épocas.
Ao meu orientador Jawdat Abu-El-Aj, pelos debates ereflexões. Uma parte considerável deste trabalho se deve à suainsistência.
Ao Fred Lustosa, pelas discussões sobre a estruturação datese. E à Isabel Lustosa, pelas sugestões ao primeirocapítulo.
Ao Seu Chico e Dona Salvelina, meus pais, pela crença nofilho rebelde, e pelas preocupações com meu envolvimentopolítico. Agora estou numa posição mais confortável,refletindo sobre a arte de fazer política.
A Clélia Lustosa, minha esposa, você merece não somenteagradecimentos, mas desculpas por tanto tempo de afetoroubado. Espero não tê-la decepcionado em todo nosso percursojuntos.
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Todas as coisas que há neste mundoTêm uma história (F. Pessoa)
Para Clélia
Para Otonio Lopesem memória
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ABCR – Associação Beneficente de ReabilitaçãoARENA – Aliança Renovadora NacionalCAGECE – Companhia de Água e Esgoto do Ceará COHAB – Companhia de Habitação CIC – Centro Industrial do CearáCM – Câmara MunicipalCMF – Câmara Municipal de FortalezaCONEFOR – Companhia de Eletricidade de FortalezaDCE – Diretório Central dos EstudantesMDB – Movimento Democrático BrasileiroMR8 – Movimento Revolucionário 8 de OutubroPC – Partido ComunistaPCB – Partido Comunista BrasileiroPCdoB – Partido Comunista do BrasilPDC – Partido Democrático Cristão PDDU – Plano Diretor de Desenvolvimento UrbanoPDS – Partido Democrático SocialPFL – Partido da Frente LiberalPL – Partido LibertadorPLADIF – Plano de Desenvolvimento Integrado de FortalezaPLANDIRF – Plano de Desenvolvimento da Região Metropolitana deFortalezaPLANDIRF – Plano Diretor de FortalezaPMDB – Partido do Movimento Democrático BrasileiroPMF – Prefeitura Municipal de FortalezaPNL – Programa Nacional do LeitePR – Partido RepublicanoPRC – Partido Revolucionário ComunistaPROAFA – Programa de Assistência aos Favelados de FortalezaPRP – Partido da Representação PopularPSB – Partido Socialista BrasileiroPSD – Partido Social DemocrataPSDB – Partido da Social Democracia BrasileiraPSP – Partido Social Progressista PT – Partido dos TrabalhadoresPTB – Partido Trabalhista BrasileiroPTN – Partido Trabalhista NacionalPTS – Partido Trabalhista SocialSENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem ComercialSERVLUZ – Serviço de Luz e Força de Fortaleza
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SESC – Serviço Social do ComércioSFH – Sistema Financeiro de Habitação SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do NordesteTSE – Tribunal Superior EleitoralUDN – União Democrática NacionalUEE – União Estadual dos EstudantesUFC – Universidade Federal do Ceará
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................................9
1.FORMAÇÃO HISTÓRICA DO GOVERNO MUNICIPAL NO
BRASIL........................................14
1.1 O Governo Local na Organização Territorial
Brasileira.................................................................
..................14
1.2 O Município como Lócus
Político ..................................................................
................................................ 16
1.3 Executivo e Legislativo no Poder
Municipal..................................................................
..................................20
1.4 O Governo Municipal na
Colônia .................................................................
...................................................27
1.5 O Governo Municipal no
Império....................................................................
.................................................30
1.6 Autonomia Política e Capacidade Legislativa – As Posturas
Municipais ........................................................32
1.7 O Governo Municipal na
República..................................................................
................................................35
1.8 A Revolução de
1930.......................................................................
.................................................................37
19
1.9 A Constituição de
1988.......................................................................
..............................................................39
2.EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO LEGISLATIVO DE
FORTALEZA.................................................43
2.1 O Município de
Fortaleza ...............................................................
..................................................................43
2.2 Construção do Sistema Político
Municipal .................................................................
.....................................49
2.3 Os Primeiros
Atores.....................................................................
.....................................................................55
2.4 Fortalecimento dos Vereadores de
Bairro ....................................................................
....................................60
2.5 Eleição de 1958: A Compra de
Votos .....................................................................
.........................................64
2.6 Tempo de Fixar as
Bases .....................................................................
.............................................................72
2.7 O Golpe Militar e o
Bipartidarismo.............................................................
.....................................................80
2.8 Quando as Portas se
Fecham ....................................................................
........................................................88
20
2.9 Tempo dos
Incluídos .................................................................
.......................................................................91
2.10 Disputas e Novas Estratégias em Outros
Tempos ....................................................................
......................96
3.TRANSIÇÃO POLÍTICA E RENOVAÇÃO – A DÉCADA DE 1980 EM
FORTALEZA.............1033.1 Redemocratização e Política
Municipal..................................................................
........................................103
3.2 Fortaleza Rebelde – A Eleição Direta de Maria Luiza
Fontenelle ................................................................
.106
3.3 Fim de uma Era – O Governo das Mudanças no
Ceará......................................................................
............113
3.4 Mudanças na Política
Municipal..................................................................
...................................................127
3.5 Ruptura com o Padrão
Clientelista...............................................................
...................................................133
3.6 Renovação Radical - A Degola de
1988.......................................................................
..................................135
4.MUDANÇA POLÍTICA E PADRÕES DE
REPRESENTAÇÃO....................................................1374.1 Elementos do Novo Cenário
Político...................................................................
...........................................137
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4.2 Quem são os Candidatos a Vereador em
Fortaleza................................................................
.........................143
4.3 Como se faz um Vereador de
Fortaleza .................................................................
........................................165
4.4 O Vereador como Agente do Poder
Local ...................................................................
..................................176
4.5 Homens de Bairro - O Vereador Comunitário (Tradição e
Carisma).............................................................179
4.6 Conquista e Manutenção de uma Base
Eleitoral ...............................................................
.............................180
4.7 Vida e Morte do Vereador
Comunitário .............................................................
............................................186
4.8 Homens de Partido: o Vereador Ideológico (Ética da
Convicção)...............................................................
..189
4.9 Homens de Governo: o Vereador Institucional (Ética de
Responsabilidade).................................................189
4.10 O que Representa um Vereador
Institucional..............................................................
..................................193
4.11 O Novo Mercado de Votos............................................................................................................................1974.12 Trocas Políticas: Barganha de Bens Públicos...............................................................................................2014.13........................................Vereador faz Obras, Votos e
Prepostos........................................................................................................209
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5.A NOVA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA MUNICIPAL ..............................................................2145.1 O Fim da Política de Clientela .......................................................................................................................2145.2 Clientelsmo Urbano e "Rede Social" .............................................................................................................2215.3 Chuvas de Leite Bom - O Programa do Governo Sarney...............................................................................2305.4 Casas Feitas com as Mãos – O Programa de Habitação
Popular ...................................................................233
5.6 A Emergência das Novas Lideranças comunitárias........................................................................................2355.7 Nova Estrutura de Lideranças Comunitárias...................................................................................................2505.8 O Jogo de Confiança entre as Lideranças.......................................................................................................266
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................269BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................................277
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INTRODUÇÃO
Minhas primeiras impressões da política passam pela
figura do vereador. No final da década de 1970, ainda sob o
regime militar, não havia eleições diretas para presidente,
governadores e prefeitos das capitais. As eleições municipais
eram “solteiras” e, em Fortaleza, só se votava para eleger os
vereadores. A campanha eleitoral resumia-se aos comícios e à
propaganda no horário gratuito da TV, que consistia na
apresentação da foto do candidato e na leitura do seu
currículo. Votava-se em quem se conhecia. Dessa época, muitos
ainda guardam na memória os nomes de Sandoval Bastos, Mário
Nunes, Eurico Matias, Agostinho Moreira, Maria José de
Oliveira, Gerôncio Bezerra, Gutenberg Braun, Narcílio Andrade.
Eram lideranças de bairro que conheciam a maioria dos seus
eleitores. Cada bairro - ou conjunto de pequenos bairros -
tinha seu vereador, que se apresentava como tal. A Câmara
Municipal era uma espécie de assembléia distrital ou conselho
de representantes de bairros. Assim se fazia a escolha dos
representantes locais.
Foi em meio a essas lembranças remotas que me dei conta
de que só muito recentemente a vida política local, a
representação municipal e o funcionamento dos seus corpos
legislativos voltaram a merecer da Ciência Política observação
atenta e estudos empíricos aprofundados. No caso brasileiro,
isso se deve à crescente democratização da sociedade, que faz
do município o lócus privilegiado da ação política e do
parlamento uma das principais arenas de disputa de interesses
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em conflito, quer seja em São Paulo, quer em Fortaleza ou
Caicó.
Esta tese se constitui numa modesta contribuição nesse
sentido. Ela se propõe a analisar a dinâmica da política
municipal de Fortaleza, identificando a natureza das disputas,
os tipos de liderança e a representação social dela emergente.
Pretendo demonstrar o impacto da redemocratização nos
processos de formulação e implementação de políticas públicas
e, conseqüentemente, na transformação do quadro das elites
políticas municipais, sobretudo a partir da década de 1980.
Vale dizer que a circulação de elites pode ser explicada pelas
mudanças na formação de políticas públicas. Ou seja, a
legitimidade das lideranças muda conforme a lógica de
distribuição de benefícios públicos e sua inserção nesse
processo.
Com efeito, ao longo do período da transição política,
saída do regime autoritário e retorno à democracia, as
mudanças sociais e políticas verificadas na sociedade
brasileira tiveram naturalmente largo impacto sobre a vida
política de Fortaleza. A renovação das elites políticas
brasileiras será impulsionada pela nova ordem municipal
egressa da Constituição de 1988. Essa Carta representa um
marco na história do poder municipal brasileiro, pois, pela
primeira vez, foram dadas as condições institucionais
concretas para poder o princípio da autonomia municipal de
fato se efetivar. Com a descentralização política e
administrativa propiciada pela nova Carta, o governo
municipal, fortalecido, passou a concentrar mais atribuições.
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Ao mesmo tempo, as necessidades urbanas emergentes permitiram
ao poder público uma ação mais centralizadora no âmbito
municipal.
A disputa para o governo municipal em 1988 provocou
importante inflexão eleitoral em Fortaleza - a Câmara
Municipal sofreu extraordinária renovação com a derrota de
políticos que mantinham assento no legislativo municipal por
mais de uma década ininterrupta. Foi uma eleição atípica, pois
implicou a renovação de 70% do legislativo municipal,
proporcionando a ruptura com o quadro político tradicional, e
criou as condições para que a ordem política municipal pudesse
se estabelecer em novo patamar.
A Constituição de 1988, aprovada no final daquele ano,
não teve nenhum efeito imediato sobre a eleição municipal de
novembro de 1988. Em seguida, no entanto, o terá. Em 1989, ao
se iniciarem os novos mandatos municipais, o governo municipal
já se organiza com base na nova legislação que criava óbices
às antigas práticas clientelistas e assistencialistas. A
administração municipal passa a deter recursos e atribuições
para a implementação de programas sociais que vão, em certo
sentido, minar a base de sustentação das lideranças
tradicionais.
Entre outras conseqüências, o fortalecimento do governo
municipal provocará a modificação do perfil das lideranças
políticas do legislativo, possibilitando o surgimento de uma
categoria específica de líder político: o político
institucional. Marcado pela sua origem – quer seja da
burocracia estatal quer da gestão empresarial - ele aparece
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como a expressão da nova forma de organização do poder
municipal em Fortaleza. Sua eleição se faz dentro de uma
orientação pragmática, com uso de recursos financeiros e da
máquina da administração pública ou privada. Em contraste com
os políticos tradicionais que mantinham redutos eleitorais em
territórios nos bairros, o político institucional não tem
ligação com seu lugar de origem, mas se vincula a uma rede de
lideranças comunitárias e empresariais dispersas por toda a
cidade. No entanto, a relação de confiança entre ele e seu
eleitor é menor do que a do político tradicional. Não tendo
uma base eleitoral, o político institucional conquista seu
eleitorado por meio das lideranças comunitárias e garante o
apoio destas a partir de trocas simples e monetarizadas.
Gradativamente, desaparecem os laços de lealdade e fidelidade
política, marcas dominantes do político tradicional.
O vereador institucional trata de manter sua vinculação
com o sistema de lideranças, porém não mais com agrupamentos
identificados com os bairros. Sua ação é predominante na época
das eleições, enquanto fora dessa época o sistema de
lideranças é ativado apenas por demandas do próprio governo
municipal ou estadual e pela política eleitoral. Sua estreita
vinculação com o poder executivo não é apenas uma questão de
sobrevivência política posterior, mas reflexo da inexistência
de uma base social de sustentação política.
Ao compararmos a prática política efetiva daqueles
vereadores tradicionais com a dos atuais, constataremos o
declínio progressivo dos líderes com origem e vinculação
direta com as comunidades locais. O trabalho político daquelas
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lideranças era fazer com que o poder executivo encaminhasse
recursos e obras para o seu bairro. Numa atuação tão voltada
para o local, o debate sobre a política da cidade como um todo
acabava sendo relegado a segundo plano. No entanto, o fim da
política de clientela em comunidades de bairro não significa
seu desaparecimento. O que se verifica é o surgimento e a
consolidação de um novo padrão de representação política
municipal que convive ainda com a eleição de alguns dos
antigos líderes de outra época.
Atualmente o voto em Fortaleza encaminha-se para o novo
padrão, embora ainda existam posições ocupadas pelos
vereadores de comunidade de bairros. Mas enquanto no passado
um vereador de base territorial tinha a certeza de que somente
atuando em torno da sua residência asseguraria sua reeleição,
neste momento, a tarefa imediata do vereador eleito por seu
bairro é assegurar a ampliação daquela base eleitoral. A
dificuldade de se reeleger contando com a mesma base
eleitoral, pela qual foi eleito pela primeira vez, é um
problema enfrentado por todos os vereadores. Todavia, este
problema é mais dramático para o vereador com base em
comunidade de bairro. Sua sobrevivência em base eleitoral tão
limitada em virtude das transformações sociais e políticas é
extremamente difícil.
Em contraste, as lideranças políticas institucionais
não operam com a montagem de uma base eleitoral fixa no
bairro; elas apenas se servem do “sistema de lideranças
comunitárias”. Este sistema foi constituído depois da
redemocratização como forma de participação e conexão da
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sociedade civil com o Estado para a implementação de políticas
públicas. São estas lideranças comunitárias, formando um
sistema disperso pela cidade, que servem de elo entre a
aspiração e o desejo do candidato e o eleitorado.
Ao longo dos anos, o vereador tradicional mantinha
estreito contato com sua comunidade, dispensando-lhe
atendimento e resolvendo pequenos problemas fora do tempo da
política. A base do seu voto era a gratidão por um favor
prestado em qualquer momento. O vereador institucional atua
principalmente na época da eleição mediante o atendimento de
todo tipo de favor. Nesse caso, porém, esse favor é uma troca
explícita de voto. O voto comprado e negociado não ocorre em
retribuição a um favor prestado no passado, mas em decorrência
de algo que se obtém por causa da eleição. Tal padrão de
comportamento eleitoral, apesar de não ser exclusivo para
assegurar a reeleição, é aplicado desde o primeiro mandato.
O desenvolvimento do argumento ora exposto permite
demonstrar que o sistema político municipal de Fortaleza de
fato se modificou depois da Constituição de 1988 e que, no
processo da sua reestruturação, deu-se a emergência de um novo
padrão de representação política. Esse novo ator político
municipal não é aqui julgado de maneira valorativa, mas como
uma correspondência da nova ordem municipal. Ele emerge em
grande parte por causa das transformações políticas e sociais
ocorridas ao longo da década de 1980, como expressão desse
novo modelo institucional. Concomitantemente verifica-se o
desaparecimento gradativo do líder tradicional vinculado ao
seu bairro. A ordem política municipal emergente exige
29
representantes políticos no legislativo que obtenham sua
legitimidade eleitoral não mais do controle de pequenas
paróquias eleitorais. O surgimento do sistema de lideranças
comunitárias explica justamente o suporte da ação eleitoral
dos novos representantes.
Antes de apresentar e discutir a realidade atual da
política municipal de Fortaleza, convém inseri-la no contexto
histórico do poder local na organização territorial
brasileira. Assim, os assuntos abordados nesta tese foram
apresentados em forma de capítulos. O primeiro capítulo trata
do governo municipal na Colônia, no Império e nas diversas
fases da República brasileira; detém-se particularmente na
ordem emergente com as constituições.
O capítulo seguinte trata especificamente da vida
política de Fortaleza e, especialmente, do legislativo
municipal, a partir da legislatura iniciada em 1948. Optei por
delimitar o estudo tendo como início a redemocratização de
1945 porque oferece, pelo menos em relação ao município, uma
continuidade histórica que permite estabelecer comparações
pertinentes, o que seria impossível se se tomasse como
referência o município da República Velha.
O terceiro capítulo é uma continuação do anterior, mas
se concentra nas grandes transformações ocorridas na política
de Fortaleza a partir do processo de redemocratização e,
sobretudo, da Constituição de 1988.
No quarto capítulo, é apresentado o principal argumento
dessa tese, e explicada a dinâmica política emergente, os
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novos processos de legitimação política, os tipos de
liderança, os seus modos de operação e a lógica de barganha e
distribuição de benefícios – e seu eventual retorno na forma
de votos.
O quinto e último capítulo descreve o funcionamento da
nova estrutura de apoio dos chamados vereadores institucionais
– a rede de lideranças comunitárias, sua organização, suas
relações com a máquina pública.
Os fatos relatados e as análises procedidas são
pertinentes unicamente ao universo da política municipal de
Fortaleza. É provável que algumas das descobertas realizadas
sejam encontradas em outras cidades, principalmente capitais.
Entretanto, como esse levantamento não foi feito, nada
autoriza a extensão destas conclusões para outras realidades.
Quando tratamos de uma realidade tão familiar à maioria
das pessoas, não é tarefa fácil convencê-las da existência de
um outro modo de interpretar os dados e os eventos passados. A
sensação de familiaridade com eventos cotidianos já foi
inúmeras vezes ressaltada como forte obstáculo à construção
científica. Os fatos trabalhados em Ciências Sociais são
sempre indícios, isto é, elementos presentes na realidade
exterior, mas só despertados em significado por teorias. Sem
os esquemas teóricos previamente constituídos, orientando e
dando sentidos aos elementos do mundo exterior, o trabalho
parecerá sempre um amontoado de coisas nas quais os sentidos
são derivados do senso comum.
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Alguns fenômenos têm como característica serem melhor
revelados quando dele falamos; outros são o oposto: quanto
mais falamos deles, mais complexos os tornamos. Alguns fatos
são vividos com simplicidade, mas quando tentamos analisá-los
percebemos uma série intrincada de outros fatos relacionados.
Dotados de simplicidade inicial, a consciência analítica tende
a torná-los complexos. Os fenômenos da vida política cotidiana
de uma grande cidade, da qual participamos como cidadãos,
podem ter esta característica.
Após estes comentários, gostaria de argumentar em favor
do estilo deste trabalho. A primeira impressão do leitor será
de uma repetição muito freqüente. Entretanto, em cada
repetição há algo acrescentado. Para melhor perceber o
trabalho, o leitor deverá levar isto em consideração. Preferi,
pois, arriscar a comprometer o estilo.
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1. FORMAÇÃO HISTÓRICA DO GOVERNO MUNICIPAL NO BRASIL
1.1 O Governo Local na Organização Territorial Brasileira
O trabalho de pesquisa sobre a nova configuração
política municipal em Fortaleza conduziu-me a um estudo da
evolução histórica deste poder no Brasil. Por vários anos, o
poder municipal mereceu estudos muito variados. Entretanto,
quase todos os estudos são realizados por juristas e enfatizam
apenas aspectos legais deste poder. Aspectos da autonomia
municipal, caracterização das funções do poder municipal são
tratados à exaustão. Como é habitual, esses estudos deixam de
lado a dimensão sociológica. Afinal, não se pode entender as
mudanças vividas pelo regime de governo local brasileiro sem
levar em consideração as determinações sociais e os interesses
das elites locais. São elas as maiores responsáveis pela
transferência de poderes do Estado federal para as
localidades.
Em cada momento de “refundação” constitucional,
percebem-se grandes transformações no aspecto político-
administrativo do governo local. Ao longo, porém, da vigência
das constituições, outras leis editadas e medidas legais
decretadas restringem ou redefinem funções de poder da
municipalidade, enquanto funções públicas são transferidas num
dado momento, ou retiradas em outro. Conforme se constata,
esse movimento de centralização de poder e descentralização
administrativa faz-se sempre de um modo particular, seguindo
33
um padrão. Em todos os movimentos de elaboração constitucional
democrática, o poder municipal ganha força em suas funções
particulares. Todavia, aos poucos, vai perdendo ou redefinindo
conquistas e autonomias adquiridas. A lógica da política e do
poder é crucial para a diminuição dos poderes das
municipalidades. É possível igualmente afirmar que as duas
dimensões imbricadas no governo local - aspecto político-
administrativo - são tratadas de modo diferenciado pelas
constituições. Pode-se afirmar que grande parte das reformas
do Estado, no tocante à administração e, portanto, de
descentralização da ação estatal, quando se faz no sentido de
ampliar a parcela de poder das unidades do governo municipal,
segue uma estrutura de restrições políticas. Ao se delegar
mais poderes administrativos à municipalidade, processa-se,
simultaneamente, um movimento de diminuição da sua autonomia
política. Muito raramente encontra-se um movimento de
descentralização administrativa com forte transferência de
poderes administrativos para o município concomitante à
ampliação da sua autonomia política. Mecanismos de controle
são criados de modo que afete imediatamente a dimensão
política da autonomia do governo local.
A autonomia política do governo local expressa-se pelo
poder de auto-organização interna e eleições dos seus poderes
constituídos pela população local. Este princípio, presente em
todas as constituições republicanas, sofreu tantas mudanças
que atualmente parece esquecido. Mesmo a Constituição de 1946,
considerada a mais municipalista de todas, não assegurava a
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eleição direta dos prefeitos de todos os municípios. 1 Deixou a
possibilidade de esta função ser ocupada por meio de eleição
indireta ou por nomeação do governador.
A literatura referente à questão municipal até a década
de 1980 tem forte intenção doutrinária afirmava freqüentemente
a posição privilegiada do governo local no sistema político
brasileiro. Lembra ser o município uma entidade do Estado,
gozando, portanto, de atributos de autonomia que não poderiam
ser desrespeitados. Entretanto, quando se analisa mais de
perto e atentamente a história política e administrativa do
município, não se pode chegar à mesma constatação.
Efetivamente, somente a Constituição de 1988 assegura no corpo
do texto federal a presença do município como uma entidade da
federação. Isto não está presente imediatamente nas outras
cartas, embora se faça referência explícita aos municípios. Ao
Estado-membro da federação sempre foi, em grande parte,
atribuído o poder de organização de suas municipalidades. Isto
é importante quanto à atribuição de se criar novos municípios.
Todavia, a organização política e administrativa neste tempo
todo não sofre muita alteração, pois todas as inovações
administrativas foram de incumbência federal.
1 O art.28, que trata da autonomia municipal, diz: “§ 1º - Poderão sernomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos dasCapitais, bem como os dos Municípios onde houver estâncias hidromineraisnaturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União. § 2º - Serão nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios osPrefeitos dos Municípios que a lei federal, mediante parecer do Conselho deSegurança Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcionalimportância para a defesa externa do País” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO DOSESTADOS UNIDOS DO BRASIL – 1946).
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A história da organização política do governo municipal
é extremamente fragmentada e dispersa. Se há uma legislação de
âmbito federal para as unidades locais durante todo o Império,
o mesmo não ocorrerá na República, que transferirá para os
respectivos Estados-membros o direito de organização de suas
unidades municipais. Conseqüentemente se criará uma
disparidade de legislação difícil de se acompanhar. Cada
unidade federativa estabelece de acordo com leis e decretos
estaduais as mudanças que julga procedentes. A variação de
designação para o cargo de executivo municipal, intendente,
prefeito, chefe do executivo é apenas expressão desta
diversidade de legislação. A uniformidade de legislação sobre
as atribuições municipais somente volta a ocorrer depois de
1930, quando sofre drástica ruptura com o Estado Novo e sua
centralização e volta a ter uma legislação de natureza
estadual, novamente, depois de 1946. De todos os períodos
referidos, o da Primeira República é certamente o mais difícil
de acompanhar, pois há, para cada unidade federativa, uma
história específica da sua organização municipal.
1.2 O Município como Lócus Político
Capistrano de Abreu atribuía a João Francisco Lisboa a
divulgação da tese, que considerava infundada, de que as
câmaras municipais teriam gozado de grande autonomia no Brasil
Colonial. Como vimos, de fato, a organização política das
unidades municipais sempre foi definida por um poder central,
seja da Coroa portuguesa seja do poder Imperial. Neste
sentido, como bem percebeu Victor Nunes Leal, o aspecto mais
importante da autonomia municipal era a eleição dos seus
36
representantes à Câmara Municipal. Era essa dependência do
eleitorado local que ameaçava o poder central da Coroa
portuguesa ou brasileira. Não basta controlar as esferas de
atuação em nível nacional, pois a sobrevivência política se
faz com os votos da localidade.
Não seria incorreto afirmar que a autonomia do
município brasileiro sempre foi mais formal do que real. Dada
a impossibilidade de efetiva autonomia por meio de
independência financeira, os municípios viveram sob a
constante dependência política de outras esferas do Estado. O
que é concedido pela legislação desaparece na prática pela
incapacidade de implementação efetiva desta autonomia. Isto
ocorre de forma mais acentuada em alguns períodos.
Em 1990, um renomado jurista escrevia - referindo-se à
autonomia municipal e ao nosso regime de Cartas Próprias (em
que ao município cabe a elaboração de sua lei orgânica) - que
o atual regime municipal brasileiro “confere um exagerado
poder de auto-organização, para o exercício da qual a maioria
das Municipalidades não está preparada” (MEIRELES, 1993, p.
77).
A Constituição de 1934, por exemplo, definiu uma forma
de distribuição da renda nacional de modo que o município
pudesse, de fato, assegurar sua autonomia com uma dotação
orçamentária mínima, obtida por meio de transferências de
impostos federais ou estaduais. No entanto, leis
complementares foram feitas no sentido de restringir a parcela
de impostos destinada aos municípios.
37
Sem a autonomia financeira, a autonomia política e
administrativa nada representa. Neste sentido, toda a história
municipal brasileira anterior à Constituição de 1946 é apenas
uma pré-história, pois anteriormente, em momento algum, foi
concedida esta autonomia aos municípios. Se 1946 é um marco na
efetiva municipalização da vida política brasileira, em 1934
uma distribuição financeira mais equilibrada entre as esferas
de governo foi estabelecida. Na prática, porém, com o
interregno do Estado Novo, a autonomia financeira dos
municípios somente vai ser implementada a partir de 1946.
A idéia da autonomia municipal no Brasil originou duas
teses opostas. A primeira, defendida principalmente por
juristas do passado, não reconhece o município como unidade
política e sustenta que o sistema político brasileiro reserva
a esse apenas a condição de uma circunscrição territorial da
administração pública. Conforme eles acreditam, pelo fato do
município não deter um poder judiciário, isto tornaria este
ente federativo subordinado ao Estado e à União, portanto, um
elemento apenas da administração. O poder político estaria
reservado aos dois outros níveis de poder do Estado. Segundo
essa visão, a unidade municipal, mesmo tendo território,
contingente populacional considerável e renda própria, possui
somente o direito de se organizar administrativamente naquilo
que for do seu peculiar interesse. Sendo a natureza da unidade
municipal administrativa, seria mesmo incorreto e exagerado,
segundo defensores desta tese, chamar de governo ao poder
municipal.
38
Para os defensores da tese oposta, o regime municipal
brasileiro é dotado de uma particularidade não encontrada em
nenhum outro país, pois aqui o município não é apenas uma
parte da unidade administrativa do Estado; ele guarda uma
parcela do poder político do Estado. Os defensores do
município como entidade política afirmam que não existe uma
hierarquia de leis dentro do regime federativo brasileiro,
isto é, as leis de regulação municipal não são inferiores às
de nível estadual ou federal. O município é uma instância de
governo semelhante aos Estados e à União, não havendo razão
para subordinar sua capacidade política aos demais membros do
Estado. Neste caso, o município é um organismo do Estado e
retira sua autonomia diretamente da Constituição.
Os defensores do município como entidade puramente
administrativa costumam se basear em juristas internacionais
para justificar a presença e o modo como as unidades
municipais são tratadas em outros Estados, quer sejam
unitários ou federados. Entre nós, Levi Carneiro (1922) é um
defensor do município como unidade administrativa sem nenhuma
conotação política localizada. O Estado para este autor
somente existe quando goza da prerrogativa de editar leis. Do
mesmo modo, Castro Nunes (1920), em Do Estado federal e a sua
organização municipal, defende o município como elemento de
governo local no sentido de unidade administrativa localizada
do Estado federal.
No Brasil, a ambigüidade no trato com o governo local
aparece também no modo como a noção de política é vivenciada
nestas sociedades. É corrente a distinção entre ações
39
administrativas e ações políticas. Administrar significa fazer
com que a máquina pública possa responder aos anseios e
expectativas da população local mediante serviços públicos e
benfeitorias. A idéia de política está fundamentalmente
relacionada com a conquista e manutenção do poder. Enquanto a
administração deve agir de forma impessoal e anônima no trato
com o cidadão, a política procura privilegiar e agradar certos
segmentos sociais com vistas ao apoio para a permanência no
poder.
Ao ser tratado como uma unidade administrativa do
Estado federado, o município recebe atribuições de natureza
administrativa para resolver os problemas originados nesta
dimensão do Estado. Os interesses localizados serão
atribuições da administração local, mas não se trata de uma
entidade com capacidade para legislar sobre tudo e qualquer
coisa referente ao seu peculiar interesse. Recebendo delegação
do Estado que lhe é superior, o município tem o dever de
organizar sua administração para atender ao cidadão do modo
mais eficiente.
Desde o tempo colonial as comunidades brasileiras
viveram isoladas e organizadas sem nenhum tipo de contato e
relação entre si. Todos os núcleos de povoamento mantinham
relação direta com a Metrópole. Este era o modo inclusive
cultivado pela Coroa portuguesa para impedir o desenvolvimento
de algum tipo de governo central que estabelecesse aliança
entre os municípios isolados. As municipalidades brasileiras
se desenvolveram contando com forte poder local pela ausência
de um Estado central capaz de organizar e impor a ordem
40
pública. A única presença do Estado nas comunidades era a do
juiz-de-fora, um servidor do Estado português, responsável
pela aplicação da lei.
Atualmente, a autoridade municipal não recebe delegação
de outra entidade política do Estado federado, mas retira sua
atribuição diretamente da Constituição. Desta forma, embora a
fonte de autoridade do governo municipal não esteja dependendo
da autoridade constituída em outros níveis do Estado, todos os
governos retiram diretamente da Constituição a fonte de
legitimidade e competência para agir em seu espaço de atuação.
Não se trata, como pode ser bem entendido, de um poder
delegado e autorizado para funcionar num regime de delegação,
pois toda a autoridade do poder municipal para cuidar dos seus
assuntos é retirada diretamente da Constituição, portanto, é
nela que todos devem se basear para definir as áreas de
atribuição mútua ou de conflito de competências entre as
instâncias de governo.
Segundo se acredita, equivocadamente, existe no Brasil
uma hierarquia de leis. Nesta, a lei federal é mais
importante. Na verdade, trata-se de abrangências distintas dos
níveis de leis que são elaboradas por cada entidade do Estado,
embora a competência e autoridade para formularem novas leis
venham da Constituição. Portanto, não há hierarquia de leis,
mas de abrangências de poder definido anteriormente em cada
nível de organização do Estado.
Nossa particularidade está justamente no tipo de
federalismo que constituímos. Um federalismo cooperativo deve
estar permanentemente agindo de tal modo que as instâncias
41
distintas do Estado não se sobreponham às demais. Desde o
início, o sistema federativo brasileiro reconheceu o município
como uma entidade política membro da Nação.
Ter o governo local como um membro do Estado federado é
uma particularidade do regime federativo brasileiro porque, em
todos os outros Estados nacionais, o município existe apenas
como uma entidade da descentralização administrativa. Mesmo
gozando de certas autonomias para bem desempenhar suas funções
administrativas, estas atribuições não chegam jamais ao ponto
de delegar poderes políticos. Logo, ser um membro da federação
torna o município no Brasil um caso único de tríade
governamental. Depois da Constituição de 1988, somos uma
federação de municípios com Estados subnacionais
intermediando, ainda, algumas atividades entre a União e os
governos locais. As ações atuais do governo federal são mais
orientadas diretamente para os municípios do que para os
Estados.
No regime republicano brasileiro, sempre existiu o
reconhecimento legal do município como uma entidade
politicamente autônoma, embora isto não se efetive. Para
muitos autores, nosso sistema de governo municipal deveria ser
idêntico ao existente em outros países onde o governo local é
uma instituição meramente administrativa do governo superior
estadual ou federal, jamais uma instância de poder político.
O município brasileiro não é apenas uma entidade
administrativa, um desdobramento da administração central
distribuída em departamentos para melhor administrar e levar o
poder público a todos os lugares do território nacional. Mesmo
42
agindo como uma forma administrativa descentralizada, o
município possui autonomia para aplicar sua própria política e
definir suas prioridades locais. Tudo isto, porém, de acordo
com os preceitos constitucionais.
O município tem poder político não somente porque tem
problemas locais resolvidos via instância produtora de leis
locais para regular funções e serviços públicos locais. A
autonomia municipal não se dá apenas pela capacidade de eleger
sua direção política e a formação de um corpo de legisladores
com atribuição legislativa, representando diretamente a
população local. Esta autonomia consiste basicamente no poder
do governo local de eleger os órgãos de governo municipal, na
organização dos serviços públicos locais, na decretação e
arrecadação dos tributos de sua competência e na aplicação de
suas rendas. Isto constitui a autonomia do governo local
naquilo que é do seu peculiar interesse.
O âmbito de competência da legislação municipal, isto
é, sobre o que pode ser objeto de regulação de uma lei
municipal, está definido pela lei federal. Esta atribuição
pode variar desde que o legislador federal entenda que deve
passar para o âmbito municipal a regulamentação de uma série
de atividades. Outras regulamentações, principalmente as
atividades realizadas em todo o território nacional, passam a
ser objeto de legislação unicamente federal. Deste modo, o
âmbito e a competência de legislar sobre qualquer atividade, e
a instância governamental à qual cabe criar legislação para
tal, dependem da natureza e da abrangência da atividade ou do
serviço ofertado.
43
1.3 Executivo e Legislativo no Poder Municipal
Na implantação da República, a diferenciação de funções
políticas no governo local altera-se profundamente. A
diferenciação de poderes neste nível de governo pode ou não
levar ao conflito entre estas funções no desempenho das suas
respectivas atribuições.
A diferenciação de poder na esfera municipal é uma
inovação do Estado republicano, pois ao longo do Império este
poder foi exercido de modo unitário por um Conselho da Câmara
Municipal que designava um, entre seus membros, para ocupar
simultaneamente a função de presidente da Câmara e chefe do
executivo municipal. Com o advento da República estas duas
funções - corpo deliberativo e função executiva ou
administrativa - foram claramente diferenciadas. Dois órgãos
foram criados para cumprir as funções diferenciadas. Surge aí
a função do intendente responsável pelo exercício do poder
executivo.
A criação de uma nova função executiva poderia causar
conflito com a anteriormente existente. Entretanto, neste
caso, inicialmente, esta não ocorre. Não ocorreu porque as
duas instituições não agiam de forma concorrente; elas
procuravam auxílio mútuo. Isto porque a função de intendente,
apesar de explicitamente diferenciada, tinha total
subordinação ao poder das Câmaras. O intendente era eleito de
forma indireta entre os membros da Câmara. Era um encargo que
alguém deveria receber pelo prazo de um ano, podendo ser
reeleito para mais um ano. Para cumprir esta função
administrativa, a princípio não estava previsto nenhum tipo de
44
remuneração, mas logo em seguida foi alterada a lei e
permitido que os municípios facultassem o pagamento de
remuneração ao intendente de acordo com o desempenho das suas
funções. A mudança tão imediata da lei sugere que não havia
quem quisesse assumir as obrigações de chefe da administração
local, sendo necessária a criação de um estímulo para a
ocupação desta nova função.
A subordinação da nova função de intendente ao poder da
Câmara manifestava-se não somente pela autoridade de elegê-lo
entre seus membros vereadores, mas principalmente pelo tempo
de desempenho da função.2 O fato do intendente ser um membro
orgânico da Câmara Municipal, deslocado apenas,
temporariamente, para cumprir uma missão administrativa,
impediu, certamente, o surgimento de conflitos entre as duas
funções. Se o arranjo institucional idealmente impedia
conflitos, na prática, ao longo dos anos, estes aconteceram.
Isto ocorrerá principalmente quando o governo estadual decide
ampliar e fortalecer o poder executivo municipal em detrimento
do legislativo.
O conflito entre as duas funções somente começa a
existir quando uma lei estadual retira o poder dos vereadores
de elegerem o intendente. Esta atribuição foi transferida para
o Presidente do Estado que nomeia, entre os vereadores, um
para ocupar a função de intendente. O movimento de
fortalecimento da função de intendente a torna mais
prestigiada e dotada de mais poderes. Entretanto, o conflito
2 A diferença de tempo de mandato do intendente e dos vereadores era algoimportante, pois enquanto o primeiro tinha um mandato de, no máximo, doisanos, os vereadores eleitos tinham mandato de quatro anos.
45
aberto passa a se manifestar somente quando uma outra lei,
alterando definitivamente a primeira, concede ao Presidente do
Estado o poder de nomear para intendente qualquer cidadão fora
da Câmara. Neste momento tratava-se de uma função claramente
diferenciada e concorrente, em parte, com o exercício dos
vereadores.
O fortalecimento da função do intendente, executivo do
governo local, ocorreu por causa do conflito entre a
autoridade fiscal estadual e as Câmaras Municipais. Ao longo
dos primeiros anos da República, o conflito mais freqüente
entre o poder estadual e o governo municipal concentrava-se na
questão das finanças e no poder de tributação. As leis
referentes à nomeação da função de intendente são tomadas como
parte da estratégia de controle do Estado dos governos
municipais. Para manter suas finanças em ordem, o Estado não
poderia permitir que parcela de suas rendas fosse arrecadada
pelas municipalidades. Somente com a indicação direta de um
intendente de confiança do Presidente do Estado, foi possível
controlar a rebeldia orçamentária das Câmaras Municipais.
A base do conflito entre o governo estadual e o
municipal sobre a questão do orçamento derivava da base de
existência de cada instância. Enquanto a base de manutenção
financeira do governo estadual eram, principalmente, as rendas
oriundas do setor exportador, para a sobrevivência financeira
dos governos municipais restava a tributação de atividades
locais. A inexistência ou diminuta movimentação econômica
local implicava o extrapolamento da autoridade do orçamento
municipal, que entrava nas rendas do governo estadual. Além
46
disso, como a fonte de manutenção fiscal do governo local eram
as atividades locais, esta tributação recairia sobre os
membros dirigentes locais. A forma de não autotributar era
invadir as finanças pertencentes ao governo estadual. Desse
modo, o conflito fiscal origina o fortalecimento da função
executiva no governo municipal.
A diferenciação das funções do poder público local
entre a Câmara Municipal e o intendente foi lentamente sendo
desenvolvida. Num dado momento, esta diferenciação mais
acentuada significaria a possibilidade da inexistência de um
único grupo social controlando e monopolizando o poder local.
Enquanto o poder do governo local esteve todo concentrado numa
única instituição – Câmara Municipal – não havia como ocorrer
qualquer tipo de desenvolvimento municipal. Na discriminação
de rendas tributadas, ficaram para o município os impostos
cobrados dentro da sua jurisdição territorial. Ora, como os
encarregados de aplicar e fiscalizar o recolhimento dos
impostos locais eram os mesmos produtores econômicos, não
haveria como taxar suas próprias riquezas. Isto explica por
que uma função pública municipal - vereador - não remunerada
podia atrair o interesse dos proprietários e comerciantes
locais. Na verdade, a ocupação desta função política era uma
forma de se protegerem contra os tributos que podiam recair
sobre suas atividades econômicas. Quando a autoridade política
é de tal modo pouco diferenciada da autoridade econômica, nada
impede se beneficiar desta condição.
Como para a manutenção do município as rendas
municipais dependem do direito de continuar a manter um
47
governo local e estas não poderiam recair diretamente sobre a
elite política e econômica, a solução seria ampliar a base
territorial do município ou considerar tributo devido ao
município aquilo que pertence ao governo estadual. Estas
seriam as formas para o município permanecer com o direito de
existir e organizar o governo local e ao mesmo tempo não
onerar com impostos as atividades econômicas da elite
econômica. Era uma equação difícil de ser resolvida porque o
governo estadual, por sua vez, dependia destas rendas para a
manutenção do seu poder. Portanto, não podia dispensar parte
das suas rendas em favor dos municípios. A criação da função
de intendente, sob a alegação de melhorar a administração dos
municípios, na verdade, significou uma forma do poder estadual
controlar, em parte, as atividades das Câmaras Municipais, ao
obrigar segmentos econômicos a pagar impostos.
A idéia de uma função diferenciada para executivo
municipal já estava presente no Império, mas jamais teve
independência, pois o chefe da administração local foi sempre
eleito de forma indireta pelos próprios membros da Câmara
Municipal, e, ao mesmo tempo, ocupava as duas funções
(presidente da Câmara e chefe da administração local). Quando
na República procura diferenciar esta função, o faz em nome da
melhoria da administração local, criando um cargo responsável
unicamente pela administração da municipalidade. A função de
intendente, que nasceu já diretamente dependente da Câmara,
com o tempo passa a ter maior importância, sendo prestigiada
pela autoridade estadual. Entretanto, ainda demoraria para que
esta função pudesse ter o aspecto competitivo pelo poder
48
local. Isto, na verdade, somente vai ocorrer depois de 1925,
quando os prefeitos e os vereadores serão eleitos
simultaneamente, mas com períodos de mandatos distintos. Até
1946, a Câmara Municipal continuará a gozar do principal poder
no município.
Somente depois da Constituição de 1946, o poder
legislativo municipal e o executivo aparecem com a mesma
autoridade expressa na sua eleição e tempo de mandato. Aqui
começa uma nova história para o governo local com a criação de
instrumento competitivo entre duas funções públicas. Depois de
estabelecida a competição entre as duas funções,
coincidentemente é o momento de decadência do poder da Câmara
Municipal. O poder não mais passa a ser exercido diretamente
por ela, mas sim pela figura do prefeito, monopolizador da
função pública local.
Esta impossibilidade de manutenção de duas funções
competitivas no governo local parece ser explicada pela
inexistência de uma base social que sustente outra parcela do
poder público. O poder legislativo não concentra recursos para
utilizar em sua manutenção de base clientelista, enquanto o
executivo os concentra. Esta desigualdade de recursos para
desempenhar a função de competição política no governo local
impede a manutenção de um dos grupos sem o auxílio da máquina
pública.
Após a República, o governo local, mais do que outra
esfera do poder público estatal, convive com duas atividades
aparentemente excludentes e contraditórias: política e
administração. Política, quando contraposta ao administrativo,
49
evoca uma atividade de distribuição de benefícios em função de
interesses imediatos, esperando um retorno eleitoral. A
distribuição de benefícios segue uma regra de concessão em
função da aproximação adesista e compartilhamento de
interesses. Em oposição a este mesmo sentido do ato político,
a atividade administrativa é entendida como uma ação de
natureza racional, pois busca beneficiar os mais necessitados
do bem distribuído. Não há nenhum retorno exigido no
cumprimento desta ação, apenas a execução de uma lei. O ato
administrativo, visto neste sentido, beneficiaria sempre os
que de fato estão necessitando, e o ato político somente
beneficia os que prometem sustentação eleitoral ao concedente.
A política é aqui entendida como política patrimonialista,
pois monopoliza os recursos públicos, e os distribui por meio
de critérios privados.
A descrição da instituição municipal feita até este
momento leva-nos a concluir que a Câmara Municipal vai
adquirindo uma função política de governo local, enquanto sua
dimensão administrativa vai sendo restringida. A separação das
funções entre o poder deliberativo concentrado na Câmara
Municipal e a função administrativa, entregue, inicialmente, a
um membro da própria Câmara – intendente, foi um ponto
importante, senão o mais importante, nesta separação entre os
poderes.
Entretanto, neste primeiro momento, estas duas funções
não se diferenciavam totalmente, pois o intendente, apesar de
cumprir funções diferentes e específicas do corpo
deliberativo, ocupante deste novo órgão do poder municipal,
50
ainda era eleito internamente pelos membros do poder
deliberativo. O poder eleitoral ainda estava concentrado nas
mãos dos vereadores. Estes, ao tomarem posse, podiam indicar
um entre eles para administrar o município. A Câmara
Municipal, mesmo depois da criação da intendência, continuou
sendo o principal órgão político do governo local. Controlando
este poder, os vereadores não permitiram se criar outra fonte
de poder local concorrente com a já constituída. Isto vai ser
possível pela diferenciação de funções entre o corpo
deliberativo e uma função meramente administrativa.
A criação institucional é algo extremamente complexo,
pois envolve inicialmente a intenção de um agente social de
realizar uma ação para atingir fins precisos. Ao praticar o
ato, este tem um desdobramento histórico inimaginável.3 Não se
pode afirmar, seguindo os traços da instituição, que um agente
social preciso tenha sido o maior responsável pelo que
ocorreu. Nenhum dos antigos Presidentes do Estado pretendia
que a Câmara Municipal perdesse o poder a ponto de ficar, num
dado momento, subordinada à prefeitura. Do mesmo modo, não
tinham a intenção de fortalecer a nova função executiva,
independente, de modo que isto possibilitasse a ruptura com as
antigas estruturas de poder concentradas numa única
instituição local. Esses atores políticos, no intuito de
solucionar um problema fiscal, provocam a emergência de uma
instituição diferenciada que vai ao longo dos anos adquirindo
mais e mais poderes.
3 A teoria dos efeitos perversos tem longa tradição nas Ciências Sociais,mas ainda restam elementos obscuros. A principal questão é concernente aoestatuto de racionalidade atribuída aos atores sociais.
51
Na administração municipal no Brasil sempre se fez
clara distinção entre alguns municípios que deveriam ter seu
executivo local nomeado pelo governo estadual. As capitais
sempre sofreram maior restrição na sua eletividade do governo
local. Da Proclamação da República (1889) a 1925, os
administradores do poder executivo eram escolhidos pelo
Presidente do Estado entre os vereadores eleitos. De 1925 a
1930, os intendentes passam a ser eleitos diretamente pelo
povo, com mandatos diferenciados. Com a Revolução de 1930,
estes passam a ser nomeados pelo interventor estadual. De 1937
a 1947, continuam nomeados pelos interventores estaduais. De
1947 a 1967, os prefeitos de todas as cidades voltam a ser
eleitos pelo povo. De 1967 (Ato Institucional n.5) até 1985,
as capitais passam a ter os prefeitos nomeados pelo
governador, que também era nomeado pelo Presidente da
República. Com a abertura política em 1985, os prefeitos das
capitais voltam a ser escolhidos por eleição direta.
A designação do termo prefeito para indicar o chefe do
poder executivo municipal somente passa a ser corrente depois
de 1947. Antes, conforme mencionado, havia a designação mais
genérica de intendente, o responsável pela administração
local.
O que se pode concluir com um estudo parcial? As novas
regras constitucionais de 1988 abriram possibilidades reais
para o governo municipal. Nenhuma outra carta tinha alterado
desta forma o ordenamento jurídico, o que possibilitou ao
governo local o surgimento de novas experiências
governamentais.
52
Se isto é correto, em que momento o prefeito passa a
deter maior parcela de poder? A inferioridade hierárquica do
chefe do executivo municipal em relação à Câmara Municipal
fica evidenciada pelo tempo de mandato destes cargos públicos.
Somente depois de 1930, os prefeitos se igualam com a Câmara
Municipal, quanto à forma de eleição (direta), o tempo de
mandato (4 anos) e as atribuições legais diferenciadas. Depois
deste período, as Câmaras Municipais não puderam mais
recuperar sua importância como principal instituição do
governo local. O fortalecimento de um pilar do poder local - o
executivo, em detrimento do esvaziamento das prerrogativas do
legislativo municipal, coincide também com a criação da
justiça eleitoral.
Até meados de 1940, a Câmara Municipal foi a
instituição mais importante e monopolizava o poder no governo
local. Exercia a concentração de poder de modo colegiado e com
diversidade política, mesmo pequena. Entretanto, este poder
foi deslocado para o chefe do executivo municipal, e exercido
de forma unitária e singular. A Câmara passa a ser um apêndice
do poder executivo e nem de longe lembra o poderoso organismo
de governo municipal do passado, controlado pela elite local.
O desequilíbrio de poder entre os dois órgãos de
governo municipal acentua-se ao longo dos anos 1960. Após
1967, um outro pilar do governo municipal enfraquece. O chefe
do executivo passa a concentrar maiores atribuições, relegando
a Câmara Municipal a papel secundário. Ao longo do período de
1967 a 1988, a Câmara vai perdendo o poder deliberativo no
governo municipal.
53
Nos anos 1980, quando se restabeleceu o funcionamento
das instituições democráticas, a esfera de atuação do governo
municipal tinha se transformado significativamente. Não havia
mais como recuperar a força do órgão colegiado. A nova
situação social marcada pela dinâmica e crescimento dos
problemas sociais e urbanos exigia, cada vez mais, a presença
ativa de um dirigente executivo, concentrando um maior número
de poderes.
Conforme constatado na evolução histórica, o poder
municipal no Brasil, passou por diversas fases. Começa como
única autoridade pública constituída em solo brasileiro,
tornando-se em seguida, com a criação do Estado nacional, uma
forma secundária e reduzida de poder. Na República, recupera
uma parcela do antigo poderio, pelo desempenho da importante
função (eletiva) que jogara o município como circunscrição
eleitoral. O poder municipal se fortalece mediante aliança com
as esferas estadual e federal, mas não no seu aspecto legal. A
Revolução de 1930 reduz o poder municipal a unidade meramente
administrativa de cada Estado da federação, apesar da
Constituição de 1934 ter sido a primeira a estabelecer o
princípio de autonomia municipal, definindo rendas para as
três esferas do Estado.
A década de 1930 será marcada pela redução drástica do
poder municipal, e o cargo do executivo municipal passa a ser
de competência do governo estadual. As instituições municipais
começam mesmo a florescer após a redemocratização de 1946. Até
então, a Constituição de 1946 será, na história republicana
brasileira, a mais municipalista, apesar de constar a nomeação
54
do prefeito para o município capital do Estado. Mesmo na onda
municipalista de 1946, a Lei Orgânica não será elaborada pelo
próprio governo municipal. Mas, de maneira geral, os
princípios para escolha (da eleição) da composição do poder
municipal são estabelecidos em 1946, e desde então não houve
mudança. O regime militar interrompe o processo de
fortalecimento do poder municipal. Todavia não impede a
continuidade das eleições nas cidades. Até nas capitais, a
Câmara Municipal continuará sendo eleita diretamente, enquanto
o prefeito passa a ser nomeado pelo governador do Estado.
Somente em 1988, cria-se realmente a experiência
democrática do poder municipal no Brasil. Nos momentos
anteriores, havia limitações ou uma autonomia puramente
formal, em virtude da falta de recursos próprios ou
impossibilidade de transferência. O governo municipal, ao se
constituir verdadeiramente como um membro do Estado nacional,
estrutura-se de maneira análoga ao poder central, formado por
uma instância do poder executivo e uma do legislativo. O
legislativo tem o papel de legislar sobre a política
municipal, regular atividades de âmbito municipal e,
principalmente, o de fiscalizar e controlar o poder executivo.
Entretanto, a função exclusiva do poder legislativo
fica comprometida pelo papel extra-oficial exercido pelo
vereador como canal de interlocução da população com o poder
executivo. O papel de intermediário, encaminhador de soluções
dos problemas da cidade, acaba dificultando o cumprimento da
função constitucional do vereador. Portanto, o fortalecimento
do poder institucional da Câmara Municipal deveria levar o
55
vereador a reduzir sua função de intermediário, o que poria em
risco sua continuidade eleitoral.
Conforme tudo indica, as condições de funcionamento do
governo municipal não possibilitam a convivência harmoniosa e
complementar de duas fontes de autoridade pública sem que uma
não tenda a monopolizar o poder local. Segundo a história
demonstra, no âmbito local tende a imperar a lógica da
concentração e de pouca diferenciação das fontes de poder. A
tendência é uma única instituição a se legitimar como
representante dos interesses locais.
1.4 O Governo Municipal na Colônia
A idéia da organização de pequenas e médias localidades
sob a forma de município ocorreu pela primeira vez no Império
Romano. Para assegurar o controle sobre as terras mais
distantes, permitiu-se que algumas das cidades conquistadas
tivessem um poder local autônomo, embora subordinado ao poder
central de Roma. Essa autonomia assegurava uma forma
relativamente descentralizada de administração. O município
nasceu, pois, como uma solução política e administrativa para
assegurar a manutenção da ordem pública e a integração de um
império extenso. Tratar unidades políticas locais com certa
autonomia administrativa permitiu aos romanos a construção de
um vasto sistema de autarquias municipais. Estas, depois da
decadência do Império, evoluíram para as cidades-Estado. Tal
forma de administração municipal chegou até nós por meio de
Portugal. O modelo, na Europa, já estava em franca decadência.
Mas como se tratava de administrar um território tão amplo
como era o caso do Brasil, recorreu-se a ele.
56
Ampla extensão territorial impõe, inevitavelmente, adescentralização política e administrativa e graças a essasexigências as autonomias locais se desenvolvem menos por umaimposição da lei do que por uma exigência das própriascondições geográficas (CAVALCANTI, 1956, p. 107).
A Câmara Municipal – também chamada de Senado da Câmara
– foi a primeira forma de organização política praticada no
Brasil. A autoridade pública local era exercida pela Câmara
Municipal, composta por dois juízes ordinários, servindo um de
cada vez, ou de um juiz-de-fora (representante do rei), três
vereadores, dois almotacés e um escrivão. Somente quando
elevados à categoria de vila os agrupamentos populacionais
tinham direito à organização de um governo local, a ser
exercido pela Câmara Municipal, composta de membros eleitos
diretamente por aquela parte da população formada pelo que se
chamava então de “homens honestos e de boa vontade”. Os
vereadores e os juízes ordinários eram todos eleitos, entre os
“homens bons”, por um período determinado. O critério para ser
considerado um “homem bom” era a renda.
Nas municipalidades onde havia juiz-de-fora, a ele
cabia a presidência da Câmara. Este era um cargo público sem
remuneração. É possível encontrar na lei que regia a
competência da Câmara Municipal no período colonial e imperial
artigos definindo as sanções para quem se recusasse exercer o
cargo confiado pela coletividade.
Nas Câmaras, a sociedade local era representada pelos
vereadores eleitos pelo voto direto enquanto os outros
funcionários faziam a representação do poder real. Assim, a
administração era dividida entre indivíduos oriundos da
57
própria população e de outros dirigentes nomeados pela Coroa
portuguesa. A estes cabia a aplicação da justiça na
localidade. Isto explica a presença de cadeia no espaço
reservado no prédio do Paço da Câmara Municipal. A Casa de
Câmara e Cadeia era o símbolo do poder local na sociedade
colonial (MEIRELES, 1993).
A autoridade municipal era exercida mediante três
funções distintas: o Capitão-Mor, a Câmara Municipal e a
Ouvidoria. A função do ouvidor era aplicar a justiça e
arrecadar os impostos. A função executiva, ainda não
completamente definida, era, em grande parte, exercida pelo
capitão-mor. A função deliberativa, do poder local, era
exercida, unicamente, pelos vereadores e mais o juiz que
presidia a sessão. A designação deste encontro dos membros do
governo local tinha, inicialmente, o nome de vereação ou
conselho de vereadores. Câmara de vereadores era a designação
inicial para a atividade desempenhada ou desenvolvida por
parte desta autoridade coletiva. Somente depois a designação
da atividade passou a ser estendida ao espaço físico ocupado
pela atividade de vereação.
No período colonial, a atribuição da Câmara Municipal
era enorme, pois toda a vida local era regulada por este
poder: taxar impostos; administrar os bens da municipalidade;
construir e conservar edifícios, ruas, praças e edificações
coletivas; regulamentar as profissões do comércio e os
ofícios; inspecionar a higiene pública, nomear funcionários e
denunciar crimes à justiça, tudo isto era atribuição dos
vereadores. Mas não era atribuição da Câmara o legislar. Ela
58
se limitava a aplicar as normas reguladoras existentes no
Código de Postura e a assegurar o cumprimento das posturas
pela coletividade. A Câmara Municipal na Colônia e no Império
não era órgão de legislatura local porque todas as normas
aplicadas para a administração originavam-se do Código de
Posturas Municipal. As Câmaras, entretanto, praticavam atos
administrativos por serem órgãos auxiliares do poder
municipal.
Portanto, não se pode dizer que as Câmaras Municipais
do Brasil Colonial e Imperial sejam antecessoras da atual
Câmara Municipal. Suas atribuições, como se viu, são bem
diversas. Na Colônia, não havia uma organização definida do
órgão responsável exclusivamente pela administração, pois este
era inicialmente exercido de forma coletiva pelos vereadores,
juízes e capitão-mor. Durante o Império, este mesmo poder
passou a ser atribuído ao presidente da Câmara, que neste
tempo ocupava a mesma função de presidente do governo local. O
vereador mais votado era ao mesmo tempo o presidente da Câmara
e o presidente do governo administrativo da cidade. Durante
todo este período a atribuição de legislar sobre questões
locais foi atribuição do poder supramunicipal.
Nossas primeiras instituições políticas foram
municipais. Por vários séculos, o sistema político brasileiro
teve de conviver com a preponderância do poder municipal que
impunha obstáculos à constituição de um outro poder acima
dele. A base da vida social brasileira foi, durante muito
tempo, uma organização política de natureza municipal.
59
Com a Constituição de 1824, o governo municipal passa a
ser subordinado ao governo da província, e perde parte da sua
autonomia. Ao longo do Império, a luta pela construção de um
poder provincial que, inicialmente, não contava com o apoio
dos senhores rurais, foi se impondo como uma ordem
irreversível. Tratava-se de novas exigências de uma economia
nacional e integrada. As organizações municipais já não
correspondiam aos interesses das forças sociais dominantes.
Contudo, a sombra do poderio local assombrará como um fantasma
por séculos afora. São muitos os movimentos políticos que
contestam a existência de uma ordem nacional, pretendendo a
autonomia dos governos locais e a construção de pacto político
municipal.
Isto não se modifica com a República. A Constituição de
1891 atribuiu aos Estados o poder de organizar seus
municípios, respeitando sua autonomia e seu peculiar
interesse. Isto apenas permitiu aos Estados subordinarem os
municípios ao seu poder, tornando-os uma peça da administração
estadual.
1.5 O Governo Municipal no Império
A colonização portuguesa no Brasil foi responsável pela
estruturação de uma rede de pequenos núcleos de população que
gozavam de relativa autonomia. Economia predominantemente
agrícola, onde o exercício do poder local era extremamente
importante para seu funcionamento, o Brasil Colonial viu
fortalecidos os grupos dominantes locais, cujos interesses
60
mais imediatos realizavam-se por meio do controle do poder
político local, expresso no controle das Câmaras Municipais.
Esse mapeamento do poder não se fazia sem alguma tensão.
Muitas municipalidades rebelaram-se contra a autoridade do rei
pelo direito de se auto-organizar. Mesmo a elevação de algumas
vilas a cidades foi contestada. Ao rei cabia apenas reconhecer
um Estado político já constituído. No entender de Wagner
Cunha, as forças rurais “foram sempre a favor da diminuição do
poder central, em beneficio do seu mundo local” (CUNHA, 1969,
p. 16).
A Constituição Imperial outorgada por D. Pedro I em
1824 asseguraria, na essência, essa autonomia, ao apenas
indicar algumas das competências que caberiam à Câmara
Municipal. Mantinha a eleição dos seus membros, conservava o
governo da economia local, mas perdia totalmente suas funções
políticas, tornando-se peça administrativa. Mesmo assim, seu
poder representativo ainda era tanto que foi chamada a
referendar a Constituição do Império. Eram as únicas
instâncias de poder legítimas.
Com a abertura dos trabalhos do legislativo, em 1826, é
finalmente editada a lei que regulamenta as eleições para as
Câmaras Municipais e que define suas atribuições. No entanto,
o status das Câmaras Municipais sofreria radical alteração a
partir da lei de 1º de outubro de 1828,4 considerada a lei
4 Lei de 1. ° de outubro de 1828 determina que as cidades terão novevereadores. Art. 18 – Os Vereadores podem ser reeleitos, mas poderão escusar-se, se areeleição for imediata.Art. 19 – Ao eleito não aproveitara motiva de escusa, exceto...” Sobre as funções Municipais a mesma lei afirma:
61
institucional do regime municipal. Seu objetivo foi transferir
poderes das Câmaras Municipais para os governos provinciais.
Como os presidentes de província eram todos nomeados pelo
imperador, isto representou maior concentração de poder. O
município tornou-se assim a última fronteira da administração
no Brasil Imperial provincial. O ato adicional de 1834
completaria o trabalho, restringindo ainda mais a autonomia
municipal, com a criação das Assembléias Provinciais. No dizer
de Cavalcanti: “Ao se fortalecerem as Províncias e,
principalmente, as Assembléias provinciais, os Municípios se
debilitaram porque essas assembléias passaram a centralizar,
com grande força, o prestígio político e o poder
administrativo” (CAVALCANTI, 1956, p.108).
Nos documentos da Câmara de Fortaleza no período
imperial, encontra-se sempre uma mesma subordinação desta ao
Presidente da Província: muitas ordens são decretadas por esta
autoridade para serem executadas pela Câmara.
3 de agosto de 1847. O vice-presidente João Chrisostomoordena as Câmaras Municipais que prestem todos osesclarecimentos e franqueiem seus arquivos ao Dr. JoaquimSaldanha Marinho, que pretendia levantar uma carta
Art. 24 – As Câmaras são corporações meramente administrativas e nãoexercerão jurisdição alguma contenciosa.”De acordo com o art. 28, o vereador que faltar às sessões sem justificar osmotivos, “pagará nas cidades por cada 4$rs., e nas vilas 2$rs. para asobras do Conselho...”Art. 39 – As Câmaras, na sua primeira reunião, examinarão os provimentos eposturas atuais para propor ao Conselho Geral que melhor convier aosinteresses do Município; ficando, depois de aprovados, sem vigor todos osdemais.”Art. 40 – Os Vereadores tratarão nas vereações dos bens e obras doConselho, do governo econômico e policial da terra; e de que neste ramo forà prova dos seus habitantes” (PORTO; JOBIM,1996, p.71).
62
topográfica da Província e publicar uma Estatística Geraldela (STUDART, 1924, p.136).
Assim, não sem resistência, a nova ordem política
imperial suplanta as experiências autônomas dos governos
municipais espalhados pelo território brasileiro. A construção
de um poder intermediário, entre o Estado imperial e os
dispersos governos municipais, representado pelo governo
provincial, será o início de longo e conflituoso processo de
tensão entre essas duas instâncias de poder local. O marco
nessa disputa será a criação de uma função independente para a
justiça, com a invenção do prefeito de polícia.
A mudança pode ser constatada por diversos indicadores.
Em 1835, a Assembléia Provincial de São Paulo, por meio da lei
de 11 de abril, institui a chamada Lei dos Prefeitos. Esta
lei, segundo Nunes Leal, foi recomendada a outras províncias
por meio de uma carta. “O governo não duvida lembrar aqui,
como modelo, os prefeitos e os sub-prefeitos criados pela
assembléia legislativa da província de São Paulo, persuadido
que eles preenchem as necessidades da administração da
província” (In, LEAL, 1997, p. 380). A província do Ceará
estava no rol das que aceitaram a sugestão. Tratava-se não de
um cargo executivo, mas de uma função de polícia separada da
função de judiciário. O prefeito seria nomeado pelo Presidente
da Província, tendo poderes de delegado de polícia. Ele não
teria subordinação às Câmaras Municipais. Logo a nomeação de
prefeitos seria implantada em todo o território.
Como se vê, a autonomia municipal brasileira muda no
momento da implantação do Estado nacional. Este se faz com
forte centralização da estrutura político-administrativa. O
63
nível de poder descentralizado passa a ser a Província que
comanda politicamente as unidades menores.
No Império, o poder das Câmaras foi reduzido “a
corporações meramente administrativas impedidas de exercer
qualquer jurisdição contenciosa” (LEAL, 1997, p.380). A
mudança mais significativa, afora a brutal redução de poder,
será a instituição de uma função diferenciada dentro da
corporação que passa ser exercida pelo vereador mais votado.
Este passa a acumular a função de presidente da Câmara e do
poder executivo. Poder executivo aqui deve ser entendido como
parte do poder que tinha atribuições administrativas e
realizadoras de obras públicas.
No período imperial e mesmo depois, na República, o
vereador era muito pouco influente. Seu papel estava
relacionado ao poder de fiscalização e policiamento na
aplicação do Código de Posturas. O mandato durava quatro anos,
e o Código já trazia o conjunto de normas que deveria regular
o funcionamento ordeiro da cidade. Os vereadores, no entanto,
não tratavam de propor adequações em decorrência dos problemas
cotidianos. Tratavam apenas de fazer com que o Código fosse
aplicado. Esta era a principal competência das Câmaras.
1.5 Autonomia Política e Capacidade Legislativa – As Posturas
Municipais
Como visto, as Câmaras Municipais eram regidas pelo
Código de Posturas, mas não formulavam qualquer lei ordinária.
O Código de Posturas da municipalidade é uma lei que
disciplina a relação entre o poder público municipal e os
64
munícipes, mediante estabelecimento de medidas de natureza
político-administrativa. Os Códigos de Postura, reunindo um
conjunto de leis de origem variada, muitas delas herdadas das
Ordenações Filipinas e Manuelinas, funcionavam como a lei
orgânica municipal, regulando as práticas econômicas e
sociais. Era um instrumento puro de organização legal e
policial. Não havia nenhuma particularidade, por exemplo, no
Código de Posturas da Cidade de Fortaleza, pois seus artigos
já estavam definidos por uma lei do Império que regulamentava
as atribuições das Câmaras Municipais. Ao poder público local,
via Câmara, cabia apenas a vigilância, o policiamento, para
que as normas fossem respeitadas.
A existência do Código desincumbia a Câmara de
deliberar sobre normas, limitando seu poder a fazer cumprir
seus artigos. Na visão de Eduardo Campos, as prescrições do
Código de Posturas ajudavam a formar a nova sociedade, pois
esta, a seu ver, quando está se constituindo, deve fazê-lo a
partir de normas bastante rígidas, tal como as constantes nos
Códigos de Posturas. Estas normas, na opinião do mesmo autor,
revelam o espírito de previdência das comunidades que as
conceberam, pois regulavam atividades como o modo pelo qual se
deveria matar os bois; onde este abate deveria ser feito; as
condições adequadas para a preservação das águas. Segundo
Campos, os Códigos de Posturas se justificavam como forma de
solução dos problemas coletivas e locais, para sanar a falta
de alguma tradição ou costume, como também para estabelecer
regras comuns tanto ao mundo rural e do sertanejo quanto ao
ambiente urbano. O Código seria uma lei que forjava a
65
civilização, formava nossa tradição e disciplinava a população
(CAMPOS, 1990, p. 34).
As leis atribuídas às Câmaras eram de natureza
específica e de cunho puramente administrativo. Por esse
motivo encontrarmos referências a projetos de lei que
modificavam nomes de rua. Tratava-se de legislação de natureza
puramente administrativa e muito pouco política. A Câmara
parece ter sua autonomia apenas no referente à nomeação de
ruas e lugares da cidade, como o exposto a seguir.
6 de abril de 1870. A Câmara Municipal de Fortaleza emsessão deste dia altera os nomes de algumas ruas e praças;dando a denominação de rua do Conde D’Eu à rua do mercado;de boulevard Duque de Caxias ao boulevard do Livramento, depraça Marques Herval à praça do Patrocínio e de praça doVisconde de Pelotas à praça denominada antes do Encanamento(STUDART, 1926, p. 201).11 de janeiro de 1879. A CMF em sessão desta data resolveumudar o nome da Praça da Misericórdia para o da Praça dosMartyres, afim de perpetuar a memória dos ilustres patriotasCoronel Andrade, Padre Gonçalho Mororó, Ibiapina, Boão eCarapinima, que aqui foram fuzilados em 1825 e o da Praçados Educandos para a Praça do Senador Figueira de Mello(STUDART, 1926, p. 253).15 de outubro de 1878. A CMF desejando perpetuar o nome deum Cearense a quem a pátria deve gratidão pelos relevantesserviços, que prestou, resolveu em sessão desde dia mudar onome da outrora rua d’Amélia para rua do Senador Pompeu.Nessa rua por longos anos morou e faleceu este ilustrecidadão (STUDART, 1926, p.251).
O Código de Posturas do Município regulava de modo
preciso inúmeras atividades desenvolvidas no âmbito da
municipalidade: o tamanho das casas, a cor que deveriam ser
pintadas, o preço dos gêneros alimentícios produzidos no
local, o dos serviços dos diversos profissionais, etc.
26 de março de 1880. A CMF contrata com Gualter Rodrigues daSilva o fornecimento de placas com nomes das ruas e praças e
66
com a numeração das casas; de conformidade com a leiprovincial n.° 833 de 15 de setembro de 1878 (STUDART, 1926p.276).
Em 1848, até mesmo a cor do interior das residências
chegou a ser objeto de deliberação pela Câmara Municipal de
Fortaleza. Ficou proibido que o interior das casas tivesse
“caiamente branco (ou) encarnado...” (ORIÁ; JUCÁ, 1995, p.26).
Capistrano de Abreu afirma que no CPM de Icó de 1738 fixavam-
se posturas relativas ao plantio de mandioca para farinha e de
carrapateiras para o fabrico de azeite, à proibição de
exportar farinha por causa da carestia, aos salários que
deveriam cobrar os alfaiates, sapateiros e outros oficiais, à
morte de periquitos etc. (ABREU, 2000).
A construção urbana e as atividades diretamente
relacionadas com a vida municipal sempre tiveram um código
orientador. De modo geral, as licenças para edificações eram
concedidas com o devido alinhamento, comprovado com o visto de
fiscal da prefeitura (ORIÁ; JUCÁ, 1995). Os serviços básicos
de limpeza também eram executados pela autoridade municipal,
mas dependiam de lei provincial.
12 de outubro de 1872. O Tenente Coronel Severino Ribeiro daCunha (Visconde de Cauhipe) e Cícero da Pontes contratam como governo provincial o serviço de esgotamento e limpeza dascasas de Fortaleza, como privilegio de 70 anos. Foi aprovadoeste contrato pela lei provincial n.° 1494 de 20 de dezembro(STUDART, 1926, p. 211).
A aplicação de multas pelo descumprimento das normas do
Código de Posturas constituía uma fonte de renda para o
município. Muitas vezes era a única fonte de recursos
financeiros para a manutenção da reduzida máquina
67
administrativa municipal. Segundo Capistrano de Abreu, as
Câmaras Municipais retiravam os recursos para as despesas da
administração das taxas cobradas sobre qualquer atividade que
dependesse da autorização do poder local.
No Código de Postura de Fortaleza de 1870, encontramos
designadas as funções públicas existentes na cidade. A Câmara
Municipal era composta por nove vereadores, e o presidente era
eleito entre um deles ou o mais votado. A maior parte das
funções referia-se ao trabalho interno da Câmara, mas somente
os fiscais tinham incumbências nas ruas da cidade. A equipe de
funcionários compunha-se de: um secretário da Câmara; um
ajudante do secretário; um arquivista; um porteiro; um
contínuo; um procurador; um advogado; um médico; um arquiteto;
três fiscais no distrito da cidade; um zelador do matadouro;
um zelador da feira; um fiscal para o distrito de Arronches e
mais dois fiscais-zeladores para os distritos de Soure e
Messejana. A municipalidade de Fortaleza tinha, portanto, em
1870, exatamente dezessete funcionários públicos. O procurador
não recebia salário, seus rendimentos provinham da cobrança
das multas recebidas. Uma parte dos recursos decorrentes das
multas era destinada ao procurador e a outra às despesas
ordinárias da Câmara.
Os serviços de água, limpeza das ruas, conservação do
patrimônio público eram da competência dos moradores que
deveriam realizá-los de forma rigorosa, sob pena de serem
multados. Quanto aos equipamentos urbanos de água, saúde,
esgotos, iluminação, eram transferidos para empresas privadas
que detinham a concessão dada pelo poder público estadual.
68
Este poder público não detinha a posse de nenhuma empresa
prestadora de serviços públicos, as quais se definiam como
concessões feitas por um prazo de tempo fixado em lei a alguma
empresa privada.
Ao longo de sua história, a capacidade de criação de
normas voltadas para o interesse local dos municípios foi se
ampliando gradativamente. A criação de uma legislação
específica orientada para a vida da própria comunidade
coincide com o aumento da autonomia financeira das
municipalidades. Ao dispor de poder para gerir suas finanças,
o município pode agir de acordo com os interesses locais.
1.6 O Governo Municipal na República
A partir da Constituição de 1891, a República
Brasileira adotou o modelo federalista que garantia maior
autonomia aos Estados-membros, dava a eles o poder para
organizar seus municípios. Recomendava, no entanto, o respeito
aos interesses peculiares. O texto do seu art. 68 dizia: “Os
Estados organizarão os seus municípios de forma que fique
assegurada a autonomia dos municípios em tudo o que respeite o
seu peculiar interesse” (In LEAL, 1997, p.287).
A autonomia municipal no texto de 1891 variaria
conforme a determinação de cada unidade federativa, pois a
cada uma delas caberia o poder de traçar regras para
organização das unidades municipais. Isto, na prática,
significou entregar aos Estados a definição da competência
municipal: as atribuições dos seus órgãos de governo e as
normas de fiscalização das suas finanças. Estas questões
estariam compreendidas na Lei Orgânica dos Municípios, a qual,
69
em cada Estado, serviria para organizar os municípios. Somente
o Rio Grande do Sul determinou que cada município elaborasse
sua própria Lei Orgânica. Outros, como a Bahia, por exemplo,
adotaram um regime de governo especial para o município-sede
da capital do Estado.
O município onde se situava a sede do governo federal
possuía estatuto especial. A partir dos preceitos
constitucionais da Carta promulgada em 24 de fevereiro de
1891, segundo a qual os presidentes do Brasil e dos Estados,
assim como os membros do poder legislativo, em todos os
níveis, seriam eleitos pelo povo, foi sancionada pelo
presidente Floriano Peixoto a Lei nº 85, de 20 de setembro de
1892 - primeira Lei Orgânica do Distrito Federal. Nesta,
conforme ficou estabelecido, o legislativo da capital estaria
a cargo do Conselho Municipal, composto por 27 intendentes
eleitos, um por distrito municipal, e seis cidadãos mais
votados no somatório de todos os distritos.
A lei que permitiu aos Estados organizar os municípios
de acordo com princípios centralizadores, limitando ao máximo
sua autonomia, transformava-os em meros apêndices
administrativos, órgãos locais de aplicação das atribuições
públicas estaduais. Foram separadas as atribuições de
legislativo, deliberativo e executivo do governo municipal. A
eleição do chefe do poder executivo municipal ocorreria apenas
em oito Estados; nos demais doze este era nomeado; outras
vezes, só nas capitais. Portanto, somente oito Estados
asseguravam que a ocupação do cargo do executivo local fosse
eletiva e não uma nomeação do Presidente do Estado.
70
Durante os quarenta anos de vigência da Constituição de
1891, o município, reconhecido como unidade de governo local,
foi tolhido em seu poder de autogestão. Ao longo da Primeira
República, a autonomia municipal foi puramente formal, pois de
fato não havia nenhum tipo de arrecadação que pudesse
sustentar os serviços e a administração pública. Tal foi o
caso de Fortaleza.
Tão logo foi instituída a República, a Câmara Municipal deFortaleza foi dissolvida e, em seu lugar, criado um Conselhode Intendentes nomeado pelo governo estadual, cabendo seusmembros, em número de cinco, escolher o seu presidente(PONTES, 1995, p.38).
Na citação, o termo nomeação dos conselheiros está
grifado para destacar que neste período foi abolida a
representação política da sociedade local na gestão da cidade.
Não somente o cargo de executivo, agora chamado de intendente,
mas também os antigos vereadores, responsáveis pelo poder
deliberativo ou legislativo, passaram a ser igualmente
nomeados pelo poder estadual. Restrição maior à autonomia
municipal não havia até então ocorrido.
A Constituição cearense de 1892, segundo Pontes (1995),
reconhece a autonomia municipal e cria os cargos de intendente
e subintendente - o primeiro para a sede do município e o
segundo para os distritos. Pela Lei nº 93, a escolha do
intendente (necessariamente um dos integrantes da Câmara)
seria feita mediante escrutínio secreto dos vereadores. Mas
uma outra lei de setembro de 1895 modificou esse sistema ao
estabelecer que os intendentes da capital fossem nomeados pelo
Presidente do Estado, “deixando de existir a obrigatoriedade
71
de serem vereadores” (PONTES, 1995, p. 38). A Lei nº 764, de
12 de agosto de 1904, tornou todos os intendentes (denominados
prefeitos por força da Lei n.º 1190, de 5 de agosto de 1914)
de nomeação do governador do Estado. Lei semelhante já existia
na Paraíba e na Bahia (LEAL, 1997).
Depois que Guilherme Rocha assumiu a intendência, em
1892, a Câmara Municipal aprovou, em 9 de novembro de 1893,
novo Código de Posturas para a cidade de Fortaleza. Durante os
vinte anos em que Guilherme Rocha foi intendente de Fortaleza
procurou segui-lo à risca. O Código de 1893 vigorou por toda
a Primeira República e
era de competência da Intendência e da Câmara Municipal,segundo a Lei nº 33 de 10 de novembro de 1892, velar pelahigiene pública da municipalidade, podendo decretar toda equalquer medida voltada para o estabelecimento de umsatisfatório estado de salubridade urbana (PONTES, 1995,p.38).
A modificação mais importante na forma de organização
do poder municipal após a Proclamação da República foi a
criação de um órgão específico para a gestão do executivo:
intendente ou prefeito. Outra novidade é que este cargo não
precisava ser eletivo. Ora o dirigente do executivo saía de
uma eleição dos vereadores, ora era uma pessoa nomeada pelo
governador do Estado. Na legislação cearense, a eleição do
responsável pelo executivo municipal foi gradativamente
perdendo seu vínculo com a eleição pelos munícipes.
1.7 A Revolução de 1930
Com a Revolução de 1930, todas as assembléias estaduais
e municipais foram dissolvidas. Os interventores estaduais
72
estabeleceram uma série de normas a serem aplicadas pelos
interventores municipais (prefeitos nomeados) até a aprovação
da nova Carta Constitucional. Um novo Código de Posturas foi
decretado para a cidade de Fortaleza em 1932. Foram criados um
Conselho Consultivo do Estado e um Departamento dos Negócios
Municipais. Este deveria ser o responsável pela tomada de
contas dos municípios.
Na reorganização administrativa dos municípios cearenses nopós-30, através do Decreto n.º 1200, de 30 de dezembro de1933, o imposto predial passa a ser de competência dosmunicípios. Em contrapartida, os serviços de pavimentação daCapital e a inspetoria de veículos se transferem para aPrefeitura de Fortaleza (SOUZA, 1995, p. 56).
A Constituição de 1934, marco na história municipal
brasileira, estabeleceu como legítimas três esferas de
governo, agindo em harmonia e acordo dentro do território
nacional: União, Estados e Municípios. Apesar de ser dividido
em distritos, a menor unidade política governamental
reconhecida é o município. O município é uma instância do
governo local detentor de poder político com organização
própria de natureza administrativa e política para prestar
serviços. A União, os Estados e os municípios são equivalentes
em sua capacidade de governo, pois gozam todos de
prerrogativas retiradas da Constituição. Formalmente, o
município é o terceiro nível das entidades territoriais da
federação. Ele não é somente uma parte da administração e
prestador de serviços em nível local, mas constitui uma
instância de poder público. A organização administrativa e
política de cada governo é feita mediante o reconhecimento da
natureza da extensão da sua autoridade e competência.
73
Embora a administração pública do Estado nacional se
oriente por princípios gerais, cabe a cada unidade da
federação decidir o modo como esta lei será aplicada. O
município, como terceiro nível de existência do Estado na
sociedade brasileira, é dotado tanto de poder para organizar
sua administração local de acordo com seus interesses, como de
poder político para regular atividades realizadas em seu
âmbito territorial sobre as quais lhe cabe a competência para
legislar e regular. Desse modo, os Estados e os municípios no
Brasil não são meras unidades administrativas; são entidades
federativas, isto é, entes políticos com reconhecimento
público.
No governo local, não há limitações de natureza legal
para uma ação de organização administrativa e política.
Respeitados os preceitos da Constituição, nenhum município
pode decretar sua separação da federação, pois a ela está
vinculado de forma definitiva. Não pode eliminar poder, nem
constituir delegações desprovidas de amparo legal. Todavia
pode definir a melhor organização interna para o seu governo.
É um governo da lei no sentido de que pode muita coisa, mas
tudo segundo a lei existente. O município tem dupla natureza,
pois é núcleo administrativo e político do governo local.
O município passa a ser considerado como uma entidade
descentralizada para uma organização autônoma, como a menor
instância do Estado federado. Passa também a contar com todas
as propriedades e atributos das outras instâncias do Estado em
outros níveis. Isto gera alguns problemas para a federação
74
porque há limites para a autonomia consentida e delegada pelo
poder público central.
A Carta de 1934 retirou dos Estados o poder sobre a
organização dos seus municípios. Pela primeira vez seriam
claramente definidas as competências de cada uma das entidades
da federação. Aspecto inédito da Carta de 1934 é que ela
estabelecia, pela primeira vez, uma base financeira capaz de
assegurar a autonomia do governo municipal. A Constituição
estabelecia também que o chefe do executivo municipal fosse
eleito, mas deixava a possibilidade de eleição indireta via
Câmara Municipal. Em 1936, as cidades são movimentadas por
eleições para o governo estadual e municipal.5 No entanto, os
eleitos não chegaram a tomar posse por causa do Estado Novo.
A experiência democrática de o poder executivo
municipal governar com a mediação de uma Câmara Municipal é
interrompida pela decretação do Estado Novo. O Estado Novo
processa uma reforma política centralizadora e, pelo Decreto
n.º13, de 14 de dezembro de 1937, regula a administração
municipal a fim de adequá-la aos dispositivos do art. 27 da
Constituição de 1937, na parte que trata dos municípios. A
autonomia municipal é retirada, pois pela nova lei a
55 Em Fortaleza, Aroldo Mota diz: “A Constituição do Estado marcou eleiçõesmunicipais para 29 de março de 1936. [...] Com relação a Fortaleza, aConstituição, nas “Disposições Transitórias”, art. 2°, §1°:“A eleição do primeiro Prefeito da Capital se fará na época que a leiorgânica dos municípios determinar, não podendo, entretanto, realizar-seantes de seis meses da vigência da lei”. Continua o autor: “O PSD não se conformou com esse dispositivo e [...]peticionou ao Tribunal Regional Eleitoral, solicitando eleições para aFortaleza no mesmo dia das outras no Estado.O Tribunal, em sessão no dia 10 de fevereiro de 1936, unanimemente, marcoueleições para Fortaleza para o dia 29/3/1936” (MOTA, 1985, p.243-244)
75
administração municipal seria exercida por um prefeito “de
livre nomeação do governo do Estado”. O Decreto-Lei n.º 1.202,
de 8 de abril de 1939, dispõe sobre a administração dos
Estados e municípios brasileiros.6 O governo municipal terá de
esperar pela Constituição de 1946, considerada a mais
municipalista das constituições, que ao restringir o poder dos
Estados ampliou ainda mais a autonomia municipal.
1.8 A Constituição de 1988
Essas conquistas só seriam superadas pela Constituição
de 1988 que trouxe inovações até então jamais vistas na
legislação brasileira. O poder municipal passou a se regular
pela Lei Orgânica Municipal promulgada um ano após as
respectivas constituições estaduais. Este instrumento garantia
a consolidação da autonomia política, administrativa e
financeira dos municípios e o direito de criar sua própria
legislação. A nova Constituição Federal, assegurando a
vinculação de transferências de rendas do nível federal para
as unidades municipais, é a principal garantia da autonomia
dos municípios.
Como afirma Sadek:
O contraste entre os princípios descentralizadoresconsagrados pela Constituição de 1988 e os preceitoscentralistas do passado é tão profundo, que se podesustentar que estamos face a uma modificação de alcanceimprevisível. Trata-se de uma alteração de rota que poderádividir a história político-administrativa do país em duas
6 Art. 4 º – O Prefeito do Município, brasileiro nato, maior de 21 anos emenos de 68, será de livre nomeação e demissão.Art. 5 º – Ao Interventor, ou Governador, e ao Prefeito, cabe exercer asfunções executivas e, em colaboração com o Departamento Administrativo,legislar nas matérias da competência do Estado e dos Municípios enquantonão se constituírem os respectivos órgãos legislativos” (MOTA, 1985,p.116).
76
fases: a que antecedeu a atual Constituição e a que lheseguiu (SADEK, 1993, p. 9).
As subunidades de governo nacional, inclusive os
municípios, não estão obrigadas a adotar as medidas
administrativas implementadas em outros níveis de governo.
Isto proporciona maior diversidade administrativa no
território nacional e permite ao governo local funcionar
realmente como poder de Estado, encontrando suas próprias
soluções para seus problemas específicos. Tal diversidade era
bem menor quando os municípios eram tratados como instâncias
locais administrativas do governo central.
O poder local no Brasil é exercido pela autoridade
municipal que tem no executivo singular e no legislativo
colegiado a forma de manifestação deste poder. O regime
municipal exerce-se de forma assimétrica, pois todas as
unidades políticas locais são autorizadas a se organizar de
acordo com uma lei federal. Uma lei única regula os princípios
gerais da organização do município, o modo de cumprir suas
atribuições e competências, e os órgãos administrativos que as
comporão. No Brasil, o governo local segue o mesmo princípio
organizador do Estado federal, pois conta com os mesmos órgãos
administrativos e a mesma divisão de poder. O município é o
Estado federal em miniatura, age num território definido como
menor do que o de âmbito estadual e federal.
Atualmente, o poder público municipal tem entre suas
atribuições a de editar leis válidas que regulamentem
atividades realizadas no âmbito municipal. Isto se fez por
meio de um Código de Posturas, de um Código de Obras e de
77
outros códigos que regulamentam uma série de atividades e dão
ao poder local certo poder de coerção.
Antes da Constituição de 1946, as Câmaras Municipais
brasileiras eram apenas corporações deliberativas, jamais
legislativas. Discutia-se a forma mais conveniente de se
encaminhar a solução de um problema, mas não havia autoridade
para decidir a criação de uma norma legal apta a suprir
eventuais faltas de legislação supramunicipal.
Todavia o texto constitucional de 1988 inova ao
atribuir ao poder municipal a capacidade de criar normas
legais válidas dentro de sua jurisdição. As Câmaras Municipais
podem editar normas para suprir a inexistência de leis sobre
as atividades julgadas importantes pela municipalidade.
Como o atual parlamento municipal no Brasil não regula
apenas as atividades do seu interesse, age como entidade do
Estado, gozando de atributos do poder público, a vida política
municipal é regida pela Lei Orgânica do Município no
relacionado ao seu interesse imediato e à sua competência. As
demais leis produzidas pela legislação ordinária do parlamento
municipal são analisadas e aprovadas de acordo com as outras
legislações existentes, respeitando a constitucionalidade. Não
há uma hierarquia de leis, mas competências distintas para
legislar sobre assuntos diferentes de acordo com o nível de
atuação do governo. O governo local possui encargos
obrigatórios. Estes, porém, não podem ser imposições de outras
instâncias do Estado. O âmbito competente de atuação do poder
municipal é definido pelo conceito de interesse local.
78
No Brasil, o município não é uma instância local do
Estado ou da União, mas uma instância do poder público
organizado de modo local. Não se constitui, pois, como poder
delegado por outras instâncias do Estado nacional, mas como
expressão do poder público em âmbito local. O município é
membro orgânico do Estado como as outras esferas,
diferenciando-se apenas no nível de atribuição e competência
para agir.
Desse modo, para realizar a atribuição delegada do
serviço público até então de competência do governo nacional,
ao aceitá-la o governo local deve celebrar contrato
especificando a prestação deste serviço. No entanto, os
encargos e as obrigações das esferas de governo não podem ser
transferidas para outras, mas negociadas conforme o interesse
dos governos locais em aceitar esta delegação.
O Brasil é o único país onde a Constituição contempla a
autonomia municipal. Enquanto o governo local é forte, com
autonomia política para decidir sua condução interna, o
município goza de poder normativo, isto é, da possibilidade de
aplicar e criar legislação específica. Portanto, no Brasil
existem três instâncias de poder público com autoridade para
legislar sobre aquilo que lhe é definido constitucionalmente.
A legislação municipal limita-se ao seu território e aos seus
interesses internos. Em outros países, é vetado à autoridade
local o poder de legislar. Cabe-lhe apenas a tarefa de
natureza administrativa, recebendo a delegação de agir segundo
determinadas regras e submetendo-se a ordem legal superior.
79
A justificativa para a organização de um poder local de
modo autônomo e detentor das prerrogativas de poder de Estado
reside na idéia de que o governo não pode estar totalmente
ausente das comunidades locais. Somente mediante a
constituição de pequenos núcleos de poderes públicos locais
seria possível assegurar a manutenção da ordem pública. Com
vistas a este objetivo, os governos locais receberiam
delegações e autonomia para agir de pleno acordo com as normas
constitucionais na solução dos seus problemas locais.
A análise histórica do poder local municipal no Brasil
aponta para a existência de alguns elementos que permanecem
até hoje como problemas.
Entre estes, menciona-se: a centralização excessiva do
processo decisório no nível federal impede que outras esferas
de governo, igualmente responsáveis pela realização do bem
comum, participem de mudanças significativas em âmbito
nacional ou estadual.
Outro problema ainda persistente é a enorme ambigüidade
de competência legal de cada esfera do poder público. A
legislação brasileira é marcada pelas competências
concorrentes, não definindo de modo preciso a responsabilidade
e a atuação de cada esfera do poder do Estado. Deixa para leis
ordinárias o estabelecimento de normas, no momento que ocorra
conflito de competências. O maior problema é, justamente, a
falta de definição precisa do nível de governo responsável
pela realização de obras ou serviços ao cidadão. No passado
este problema era mais acentuado. A Constituição de 1988
80
restringe em parte esse conceito ao trazer em linhas gerais as
definições e atribuições de cada uma das esferas de governo.
81
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO LEGISLATIVO DE FORTALEZA
2.1 O Município de Fortaleza
Para entendermos a dinâmica da representação política
em Fortaleza é importante levantar alguns aspectos das
transformações socioeconômicas e da expansão urbana nas
últimas seis décadas. O tipo de representação política na
Câmara Municipal de Fortaleza vai se alterando em função do
crescimento populacional, do nível educacional dos eleitores,
das relações entre Estado e cidadão, da consciência dos
direitos dos cidadãos, do surgimento de novas lideranças
comunitárias e da organização dos movimentos sociais.
A malha urbana expande-se de forma radioconcêntrica
acompanhando os antigos caminhos, as linhas de bonde e os
ramais ferroviários norte e sul. Na década de 1960, o
município de Fortaleza ainda continha área urbana, suburbana e
rural.
Nos anos 1940, Fortaleza, com uma população de 180.185
habitantes, poderia ser considerada uma cidade de porte médio,
que abrigava 8,61% da população do Estado do Ceará (2.091.032
habitantes.). Enquanto as atividades administrativas e
comerciais respondiam pelo pouco dinamismo da economia
cearense baseada na agricultura comercial e de subsistência, a
população urbana ocupava-se no comércio, na administração
pública, na prestação de serviços e numa atividade industrial
ainda incipiente.
82
No final da Segunda Guerra Mundial, de acordo com o
Serviço Nacional contra a Febre Amarela, a população do
município Fortaleza era de 271.243 habitantes, uma média de
4,4 pessoas por casa. Havia 15.596 mocambos, 38.914 prédios
térreos, 1.454 sobrados e 5.622 residências rurais, num total
de 61.596 moradias. O comércio de exportação de matérias-
primas e importação de produtos industrializados (máquinas,
automóveis, tecidos de lã e linho, ferro e aço) e de insumos
(carvão, chumbo, cimento, drogas, etc.) era realizado por 117
empresas. Todavia, o setor comercial era o “que mais concorria
para acumulação de capital, além de ser o maior empregador de
mão-de-obra existente” 7 (RIBEIRO, 1995 p. 69).
Em novembro de 1947, com o fim do Estado Novo, elege-se
de forma direta pelo Partido Republicano o primeiro prefeito
da capital, Acrísio Moreira da Rocha (1948-1951). Nesta
administração, em 9 de agosto de 1948, ocorreu a
municipalização da empresa inglesa Ceará Tramways Light and
Power Limited. Diante da má qualidade dos serviços, os bondes
são desativados e dada permissão para implantação de linhas de
ônibus.8 Embora o bonde tenha contribuído para expansão da
cidade, o ônibus deu maior flexibilidade ao seu crescimento,
7 Os limites da área urbana de Fortaleza foram estabelecidos pelo decretomunicipal nº 885, de 4.12.1948. Compreendia a conexão dos seguintes pontospartindo no sentido leste-oeste: “Farol do Mucuripe, Av. Pasteur, Av. OlavoBilac, até a Av. Bezerra de Menezes, até a estrada conhecida por Amingas,idem até a rua sem denominação que passava pela Igreja Salete,atravessando, na mesma direção a Av. João Pessoa. Prolongando-se para oleste, passa na parte norte do Sítio Paraíso, até encontrar o ramal daestrada de ferro do Mucuripe e por ele até a Av. Pinto Martins, por estaaté a estrada de rodagem de Fortaleza a Messejana e por ela até encontrar oramal de ferro já referido, até o Porto do Mucuripe (RIBEIRO, 1995, p. 70).8 Em 1948, existiam nove linhas de ônibus em Fortaleza, enquanto no final dadécada de 1950 já eram 56.
83
pois não exigia energia elétrica nem trilhos. Alguns bairros
tornam-se mais acessíveis em termos de transporte e a cidade
continua se expandindo de forma radioconcêntrica, ao longo e
no final das linhas.
Mapa de remodelação e extensão da cidade de Fortaleza. Plano geral – Divisão e nomenclatura dos bairros. Sistema de transporte de avenidas e de espaços livres. Plano de Saboya Ribeiro, 1948. Aprovado pelo prefeito Paulo Cabral.
A crise da agricultura tradicional, a concentração
fundiária e as secas periódicas contribuem para a expansão
urbana, com a fixação da população migrante na capital,
principalmente durante a seca de 1958. Na década de 1950, a
população passa de 270.169, em 1950, para 514.813 habitantes
em 1960, um crescimento intercensitário de 90,5%, quase o
dobro do crescimento da década anterior (1940-50), de 49,9%. O
cenário urbano altera-se, agravando-se os problemas econômicos
84
e socioespaciais, pois a capital não tem empregos, infra-
estrutura, serviços e habitação para atender a este grande
contingente de migrantes. Tal fluxo migratório é responsável
pela formação de favelas (Cercado do Zé do Padre, 1930,
Mucuripe, 1933, Lagamar, 1933, Morro do Ouro, 1940, Varjota,
1945, Meireles, 1950, Papoquinho, 1950, Estrada de Ferro,
1954, Pirambu, Poço da Draga e Cinza, 1955) e de bairros nas
periferias urbanas (COSTA, 2005).
Em 1961, o governador Parsifal Barroso solicitou ao
Instituto Joaquim Nabuco um estudo sobre as causas do êxodo
sertanejo para Fortaleza.9
Particularmente, em Fortaleza, no grupo etário de 5-14 anos,a taxa de alfabetização, que era de 57,6% em 1940, desceupara 39,4% em 1950, resultado por certo da migração decontingentes rurais não alfabetizados e não absorvidos pelarede escolar da Capital. É uma das conseqüências do rápidocrescimento demográfico da Capital não preparada paraabsorver os aumentos da população (CEARÁ, 1967, p. 29).
Conforme consta no relatório, a origem do grande
contingente de migrantes vindos para Fortaleza eram oriundos
de áreas próximas da capital. “A presença de grande massa de
pessoas vindas do interior do Estado tem determinado a
criação, em Fortaleza, de associações – chamadas de Centros
Municipais – congregando elementos naturais dos mesmos locais
ou áreas” (Idem, ibidem, p. 42). Segundo o relatório,
existiam, em 1959, em Fortaleza quatorze centros municipais.
“São entidades que reúnem elementos, em geral, de fracas
9 A pesquisa foi finalizada em 1963 na gestão do governador VirgílioTávora, e o relatório publicado como livro em 1967, na gestão do governadorPlácido Castelo.
85
possibilidades financeiras...”. Entretanto, essas entidades,
“com todas as suas deficiências, [têm] se transformado em
entidades de assistência social e em instrumento de
readaptação social dos migrantes...” (Idem, ibidem, p. 48).
O problema de habitação vai se tornando grave de acordo
com a elevação do contingente de população egressa do
interior. Como evidenciado em levantamento feito por Hélio
Modesto em 1961, existiam 59.300 pessoas morando em favelas na
capital.
Conclui o estudo: “É visível em Fortaleza, seja qual
for o ângulo sob que se examinarem as condições do seu
crescimento, a desproporção entre o volume das necessidades a
atender e o das necessidades realmente atendidas” (Idem,
ibidem, p. 72).
Com o novo sistema de transporte urbano, ônibus que
substitui os bondes elétricos, amplia-se a malha urbana. Novos
bairros se formam ao longo e no final das linhas de ônibus.
Para ter acesso a estes bens de consumo coletivo, os
moradores destas áreas mais carentes dependem da intermediação
de uma liderança, de um político. Isto fortalece os vereadores
com base territorial, pois, além de atender às reivindicações
individuais (assistência médica, material de construção,
etc.), estes intervirão junto ao executivo municipal para
implantação destes bens em suas bases eleitorais. Durante as
campanhas políticas, calçamento e iluminação serão os bens
públicos mais procurados. Mais adiante, com a chegada da
energia elétrica de Paulo Afonso, que melhora a distribuição
86
de energia elétrica e, com a descentralização urbana, outras
demandas surgem voltadas para a implantação de serviços
urbanos nos bairros, como escolas, postos de saúde, posto
policial, creche. Com o aumento do déficit habitacional, a
crise do Sistema Financeiro da Habitação, e conseqüente
extinção das Companhias de Habitação, as demandas se voltam
para habitação, construção de casas em regime de mutirão, nos
anos 1980 e 1990.
Na década de 1960, inaugura-se a experiência de
subprefeituras, dividindo-se a cidade em cinco áreas:
Mucuripe, Barra do Ceará, Messejana, Parangaba e Antônio
Bezerra. As três últimas áreas, além do Mondubim,
correspondiam a antigos distritos de Fortaleza. Estas
subprefeituras localizavam-se em bairros nos extremos da
cidade, vivendo uma experiência urbana isolada.
Graças aos incentivos da Sudene, a atividade industrial
se desenvolve concentrado-se na zona oeste e sul da cidade, ao
longo da avenida Francisco Sá, nos bairros Antônio Bezerra e
Parangaba, nas proximidades das rodovias e ferrovias; e a
leste, na zona portuária do Mucuripe (moinhos de trigo,
indústria da pesca, depósito de combustíveis, fábrica de
asfalto), atraindo para sua proximidade a população de baixa
renda.
Depois do golpe militar de 1964, o governo federal
passou a concentrar mais recursos financeiros e a controlar
política e administrativamente todo o aparelho de Estado,
reduzindo a autonomia dos Estados e municípios. Os prefeitos
das capitais são nomeados pelo governo estadual. A política da
87
habitação e dos transportes passa para a administração
federal. Empresas públicas foram criadas, estabelecendo o
controle do governo estadual sobre a exploração dos serviços
de água e esgoto (Saagec/Cagece), energia (Coelce) e telefonia
(Teleceará).
A condição de centro político-administrativo do Estado
confere a Fortaleza forte poder atrativo, pois estas
atividades são responsáveis pelo direcionamento de fluxos
migratórios, tanto de população de baixa renda como da classe
média, as quais vêm em busca de melhores condições de vida e
de investimentos.
Fortaleza, além de sede do governo estadual, abriga
representações de instituições públicas e filiais de empresas
privadas. A criação das universidades (UFC, em 1955, UNIFOR,
em 1973 e UECE, em 1977, e a instalação de filiais de empresas
públicas e privadas, de sedes dos órgãos federais (DNOCS e
Banco do Nordeste) e de instituições estaduais e municipais,
ampliam o número de empregos e permitem a constituição de novo
segmento de classe média, formado de professores
universitários, executivos, técnicos e funcionários públicos
(COSTA, 1988, p. 94-95).
Na década de 1970, com base na política do Banco
Nacional de Habitação, que utilizava recursos do FGTS para
financiar habitações populares a baixo custo, no intuito de
reduzir o déficit habitacional e responder às pressões
populares, vários conjuntos habitacionais foram edificados em
Fortaleza (Prefeito José Walter, Nova Assunção, Cidade 2000,
Ceará, etc.) e em municípios da região metropolitana. Estes
88
conjuntos, localizados em áreas distantes, foram fatores
fundamentais para a expansão da cidade. Os moradores
organizados exigiam do poder público infra-estrutura e
serviços, os quais favoreciam a valorização de vazios urbanos.
Nos anos 1980, os conjuntos habitacionais ultrapassam a
fronteira do espaço fortalezense e são implantados em
municípios da Região Metropolitana de Fortaleza (Nova
Metrópole, em Caucaia, Timbó e Jereissati em Maracanaú, etc.).
A extinção do Banco Nacional da Habitação levou à redução do
ritmo de construção de habitações populares. Com o aumento do
número de ocupações, as administrações municipais, apoiadas
por Organizações não-Governamentais, investem nos mutirões
habitacionais, usando a mão-de-obra dos mutirantes para
reduzir o custo das habitações. A construção deste grande
número de habitações populares alterou substancialmente a
organização espacial da antiga malha urbana das redes
municipais.
A migração campo-cidade acentua-se na década de 1980.
Com os elevados preços dos imóveis e dos seus aluguéis além
das altas taxas de desemprego, ocorre o aumento no número de
ocupações em áreas urbanas da RMF. A partir de então, os
vazios urbanos e a periferia foram sendo ocupados por favelas.
A abertura política, com eleições diretas para
prefeitos da capital e Presidente da República, e os períodos
de grande inflação, que punem principalmente a população de
baixa renda, foram fatores importantes para a mobilização de
milhares de trabalhadores e associações da sociedade civil na
89
luta por emprego, melhores salários, habitação, infra-
estrutura e serviços urbanos.
Neste contexto de mobilização da sociedade civil, é
eleita a prefeita Maria Luiza Fontenelle (1986-1988),
candidata pelo Partido dos Trabalhadores envolvida nos
movimentos sociais urbanos de Fortaleza. Verifica-se também
uma renovação na Câmara Municipal, destacando-se
representantes de diversos segmentos sociais, categorias
profissionais, associações de moradores, etc.
Na administração do prefeito Juraci Magalhães,
Fortaleza foi dividida em cinco regiões administrativas. Como
mostra o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de
Fortaleza por Bairros, que leva em consideração a taxa de
alfabetização, o número médio de anos de estudo dos chefes de
família e o rendimento médio mensal dos chefes de família em
salários mínimos, são profundas as desigualdades econômicas e
sociais nas diferentes regionais.
As zonas oeste e sul do município foram as que
apresentaram os menores IDHM. As regionais com o maior número
de bairros com IDHM baixo foram a V, onde dos dezessete
bairros existentes dez apresentavam IDHB menor de 0,500; e a
VI, onde isto se dava em quinze dos 27 bairros (PDDUA, 2003).
Os piores IDHB (abaixo de 0,400) foram apresentados nos
bairros Pirambu (0,391), Regional I; Cais do Porto (0,386) e
Dunas (0,391), Regional II; Autran Nunes (0,380), Regional
III; Genibaú (0,378), Parque Presidente Vargas (0,377),
Siqueira (0,377) e Granja Portugal (0,394), Regional V; Curió
90
(0,338), Pedras (0,352), Paupina (0,397) e Ancuri (0,398),
Regional VI. Por estes dados, conforme se observa, populações
com baixas condições de vida estão espalhadas por toda a
cidade, porquanto bairros ricos e de classe média são vizinhos
de bairros miseráveis (PDDUA, 2003).
Em 1995, a capital era considerada a quinta cidade mais
populosa do país, quarta colocada em déficit habitacional
absoluto e terceira em déficit relativo (19,10%). Em
Fortaleza, o déficit habitacional era da ordem de 85 mil
unidades, e na RMF, de 111.509 habitações (IPLAM, 1998).
Em 1998, a Proafa mapeou a distribuição de favelas e
núcleos favelados por bairro em Fortaleza e constatou que
19,3% do total de favelas encontram-se localizadas em quatro
bairros, sendo a maior concentração no bairro de Antônio
Bezerra, quase 5,8% do total, e Quintino Cunha, com 5,1%.
Cerca de 48% das favelas localizam-se em apenas quinze
bairros. Já o restante das favelas, 52,1% do total, distribui-
se por 64 bairros, caracterizando maior disseminação pela
malha urbana. Dos 114 bairros componentes da cidade de
Fortaleza, apenas 31, ou seja, 27,2% do total, não têm em seu
interior nenhuma favela ou núcleo favelado (PDDU-FOR, 2003).
De modo abreviado, esse é o percurso urbano da cidade
de Fortaleza nestas cinco décadas em que se observa profunda
transformação urbana e populacional, com reflexos na sua
representação política.
2.2 Construção do Sistema Político Municipal
91
No passado o eleitor era consciente. Votavapelo favor que fazia. Era pelo agrado. Agoranão, só vai comprando (Esposa do ex-vereadorJoaquim Pinheiro de Almeida).Eu saí candidato do Acrísio porque não tinhaprestigio nem dinheiro. Aliás, foi a únicaeleição que vi sem dinheiro. Não se compravavoto. Eu fui eleito porque falava em todos oscomícios do Acrísio. (Ex-vereador José CláudioOliveira).
Na análise da história das instituições do governo
local e seus problemas, conforme constatou-se, até a
Constituição de 1946 as Câmaras Municipais eram corporações
deliberativas. Com as mudanças introduzidas, o governo
municipal passa a ter um regime uniformizado, com
representantes do legislativo e executivo eleitos no mesmo
pleito, para igual tempo de mandato. Pode-se dizer que o atual
regime municipal tem início neste período.
Esta seção analisará as transformações no legislativo
municipal a partir da trajetória dos políticos (candidatos,
suplentes e vereadores), desde a eleição de 1947 (quando eles
passam a ser eleitos), até a de 1988, visando classificá-los
segundo suas características e bases eleitorais. Para efeito
de classificação, estou discriminando os vereadores em tipos
ideiais em três categorias: vereadores de comunidade de
bairros, vereadores ideológicos e vereadores institucionais.10
As informações colhidas sobre os membros da Câmara Municipal
10 Essa classificação em tipos ideais de vereadores será explicitada ediscutida mais adiante no capítulo 4.
92
de Fortaleza,11 em depoimentos de alguns ex-vereadores,
políticos contemporâneos e familiares e em documentos
disponíveis, foram sistematizadas objetivando, quando
possível, caracterizar cada legislatura e identificar as bases
eleitorais e atuação política dos vereadores. Mas em virtude
da escassez de informação a respeito dos antigos membros, isto
nem sempre foi possível.
Em 2 de dezembro de 1945, deveriam ocorrer eleições
gerais em todos os níveis. Entretanto, segundo o Tribunal
Superior Eleitoral determinou, nesse dia verificou-se apenas
para a Constituinte Federal e para Presidente da República.
Foi eleito Eurico Gaspar Dutra. Somente no dia 19 de janeiro
de 1947 – foram realizadas as eleições para constituintes
estaduais e governador, elegendo-se Faustino Albuquerque. As
eleições para as Câmaras Municipais e para prefeito
aconteceram no dia 7 de dezembro. A população de Fortaleza
escolheu para governá-la Acrísio Moreira da Rocha.
A história contemporânea da política e das eleições
municipais em Fortaleza começa em 7 de dezembro de 1947,12 com
11 Há uma enorme lacuna nesta reconstrução dos membros do parlamento emFortaleza. Alguns vereadores que participaram em determinada legislaturaressurgem muitos anos depois, indicando que abandonaram temporariamente acarreira política ou simplesmente ficaram na suplência, em disputasanteriores, sem assumir a função de vereador.12 A legislatura municipal de 1948-1950 foi de curta da duração, poisocorreu um ajuste do calendário em 1950, havendo eleições em todos osníveis (OLIVEIRA, 1986, p.382).
93
a eleição de Acrísio Moreira da Rocha13 e de 21 vereadores.14
Nela havia a chamada “bancada popular” por ser constituída de
oito vereadores do Partido Comunista do Brasil. Acrísio
Moreira da Rocha foi eleito para prefeito de Fortaleza pelo
Partido Republicano, juntamente com onze vereadores da sua
legenda, entre eles os ligados ao PC. Além dos onze
republicanos, a bancada de sustentação do governo era composta
por quatorze vereadores, dois dos quais egressos do PTB.15
No dia 1º de janeiro de 1948, os vereadores eleitos
tomaram posse. Era uma experiência nova para a cidade de
Fortaleza, que não contava sequer com uma sede para o poder
legislativo municipal. As sessões funcionaram,
provisoriamente, por quase um ano no Teatro José de Alencar.
Como não havia nenhuma estrutura institucional, dois
funcionários do poder municipal foram cedidos para servir na
Câmara Municipal e em seguida, mais dois foram nomeados
diretamente pelo presidente da casa.
A primeira legislatura durou três anos (1948-1951). A
composição da CMF refletia o Estado de redemocratização,
contando com grande influência dos comunistas. Variados
13 Acrísio Moreira da Rocha, filho do antigo líder político na PrimeiraRepública, deputado Manuel Moreira da Rocha, formava juntamente com seuirmão, Crisanto Moreira da Rocha, uma ala do PSD no Ceará. Ocupou o cargode Interventor Federal no Ceará entre 14 de janeiro de 1946 a 9 defevereiro de 1946. 14 Dos vereadores eleitos para essa primeira legislatura, estão vivos JoséJúlio Cavalcante, Edival Távora, José Cláudio de Oliveira e J.C. AlencarAraripe. 15 A representação dos partidos ficou distribuída da seguinte forma: PartidoRepublicano (11 vereadores), União Democrática Nacional (4 vereadores),Partido Social Democrata (3 vereadores), Partido Trabalhista Brasileiro (2vereadores) e Partido da Representação Popular (1 vereador).
94
segmentos estavam representados, sendo majoritários os
professores, profissionais liberais, funcionários públicos,
jornalista e locutor de rádio. Ao lado destes havia a bancada
popular, representada por líderes de categorias profissionais
(motoristas, operários, padeiros, carpinteiros, metalúrgicos).
Havia dois representantes com vínculos no universo dos
esportes: Gutenberg Braun e Edival Távora. Gutenberg havia
sido goleiro de futebol e Edival Távora era um esportista do
Clube Náutico. Havia também um capitão da polícia – Leôncio
Botelho,16 e um antigo integralista, Denizard Macedo, eleito
pelo PRP, com votação ligada aos círculos operários. Do ponto
de vista social, pode-se falar de ser uma Câmara constituída,
em sua maioria, por setores da classe média e representantes
genuínos das camadas populares.
O debate ideológico girava em torno de duas figuras que
polarizavam as atenções no interior da CMF: Américo Barreira e
Denizard Macedo. O primeiro representava as posições de
esquerda, enquanto o segundo, as forças conservadoras do
antigo integralismo.
A primeira legislatura é apontada pelos que dela
participaram como de “altíssimo nível intelectual”, pela
presença de professores, jornalistas, advogados,
representantes profissionais, desportistas, etc. Dos que
iniciaram a carreira política neste período pela CMF, quatro
obtiveram êxito como deputado estadual (Aldenor Nunes Freire,
16 Leôncio Botelho era capitão da Polícia Militar e havia sido ajudante-de-ordens do governador Faustino Albuquerque. Foi eleito pelo PR, sendo oprimeiro presidente da Câmara Municipal. Depois de ficar na suplência naeleição seguinte, volta à Polícia Militar (OLIVEIRA, 1986, p.195).
95
Edival Távora, Edmilson Pinheiro e Expedito Costa). José
Cláudio de Oliveira candidatou-se a deputado estadual, mas não
foi eleito. Alísio Mamede retornou às atividades como médico
pediatra e em outra eleição candidatou-se a prefeito pela
legenda dos comunistas. Quatro vereadores foram reeleitos para
a legislatura posterior: Américo Barreira, Lauro Brígido,
Gutenberg Braun e José Alves Albuquerque. Três vereadores não
se reelegem, ficam na suplência e assumem a legislatura
algumas vezes (José Diogo, Leôncio Botelho e Sebastião
Gonçalves). Destaca-se o vereador José Batista Barbosa, que
embora ocupe a suplência, permanecerá na política municipal,
sendo reeleito nos pleitos seguintes. Assim, da legislatura de
1948, dos 21 vereadores eleitos, 13 permanecem com ligações ao
sistema político formal, ora em continuidade à carreira
política, ora em atuação como vereadores ou suplentes de
vereadores. Oito retornaram às atividades privadas.
Segundo afirmou o ex-vereador José Júlio Cavalcante, em
entrevista a este pesquisador, ele não pôde entrar na cota dos
comunistas abrigados na legenda do Partido Republicano, pois
já havia “os sete candidatos de Prestes”. Por insistência do
seu irmão Adahil Barreto,17 político de prestígio na cidade,
saiu candidato pelo Partido Republicano na cota do Acrísio
Moreira da Rocha.
Adahil Barreto, meu irmão, chegou pra mim e pergunta se eunão gostaria de ser candidato a vereador. E eu disse quepela UDN, não, mas se ele conseguisse legenda no PR, euseria capaz de aceitar. Em seguida ele falou com o Acrísio e
17 Adahil Barreto foi deputado constituinte em 1947, candidato ao governo estadual em 1962 e membro importante da UDN posteriormente foi cassado peloAI-1. Faleceu em 1982 (OLIVEIRA, 1986).
96
o Crisanto18 e conseguiu. Quando ele conseguiu minhaindicação, eu fui à direção do Partido Comunista e consulteio partido que estava pretendendo ser candidato apoiado noprestígio do Adahil somando também meu prestígio de locutorde rádio. Eu talvez seja o primeiro vereador locutor eleitocom apoio de massa de ouvintes do rádio. O Partido disse queeu poderia me candidatar, mas só não poderia retirar voto doPartido (Depoimento do ex-vereador José Júlio Cavalcante,2003).
Os candidatos do Partido Comunista foram indicados pela
categoria profissional a que pertenciam: Manuel Feitosa pelos
marceneiros; Issac Maciel, pelos metalúrgicos; Lauro Brígido,
como empregado da rede ferroviária; Teófilo Cordeiro, pelos
motoristas; e Joaquim Valentim, pelos padeiros. Como disse o
ex-vereador José Júlio Cavalcante, “eram candidatos definidos
pelos próprios partidos”.
As várias facções que lá existiam eram disciplinadas,obedeciam aos seus partidos. Eu reputo a Câmara maisdemocrática e de mais substância que até hoje apareceu.Nunca vereadores foram eleitos tão descompromissados com asoligarquias, com os coronéis do que aquela Câmara. Era umaCâmara ligada ao povo, intrinsecamente ligada ao povo. Nósnão obedecíamos absolutamente a nenhum coronel. Era umaCâmara de posições independentes (Depoimento do ex-vereadorJosé Júlio Cavalcante, 2003).
Ao refletir sobre o processo eleitoral desta época,
José Júlio afirma: “A eleição não era feita na base de
dinheiro, mas do prestígio popular”. Sua candidatura foi
sustentada basicamente no seu prestígio de locutor de rádio e
do irmão político.
Conforme explica José Júlio, houve uma guinada política
esquerdista no PC e isto fez com que os discursos dos
18 Crisanto Moreira da Rocha, irmão do prefeito eleito, era deputado federal, residente no Rio de Janeiro e líder do PR no Ceará.
97
candidatos fossem se radicalizando e perdendo o apoio
inicialmente conquistado no primeiro mandato. Os comunistas
passaram a dar pouca importância ao trabalho parlamentar.
A base social de representação desta primeira
legislatura era constituída por lideranças de categorias
profissionais: quatro advogados, três professores, um
representante orgânico dos militares, um empresário, um
funcionário dos Correios, um líder de bairro, um desportista,
um jornalista e um radialista. A faixa etária dos vereadores
variava muito, pois havia o vereador mais jovem do Brasil, com
21 anos, e o mais velho, com 81 anos. Entretanto, a média de
idade era menos de 30 anos. Muitos deles estavam tendo sua
primeira experiência política. Entre os mais velhos
encontrava-se Leôncio Botelho, eleito primeiro presidente da
Câmara Municipal, Américo Barreira e Teófilo Cordeiro, este
com 81 anos. Américo Barreira é apontado por muitos como o
mais experiente da Casa pois, apesar de não ter participado de
nenhum parlamento, é identificado como membro do Partido
Comunista.
Uma grande disputa instala-se entre legislativo e
executivo. Em parte, devido a experiência inédita de um
legislativo e executivo oriundos das urnas, e também, pelo
comportamento populista do prefeito. Por gozar de muito
prestígio com a massa, Acrísio Moreira da Rocha mantinha-se
imune às críticas do legislativo, em função do seu
comportamento, desde a época em que foi interventor.
O Interventor instaurou em Fortaleza um governoeminentemente popular e ainda, na posse, abriu as portas doPalácio da Luz, literalmente, e todos adentravam pelas
98
dependências oficiais sem qualquer tipo de restrição....Para popularizar ainda mais sua administração, Dr. Acrísiorecebia em audiência quem o procurasse. Assim é que só nodia 29 de janeiro de 1946 conversou com mais de 200 pessoas,encaminhando seus problemas para os outros setores daadministração. Tudo isto, tornava o Interventor um políticoidentificado com a população, principalmente a camada maisbaixa que morava nos subúrbios de Fortaleza (MOTA, 2001, p.97).
José Cláudio de Oliveira, líder do prefeito na Câmara
Municipal na legislatura de 1948-1950, traça o perfil do
líder: Desportista, ex-craque da Seleção Cearense de Futebol, meia-direita do Fortaleza, gozava de grande simpatia. Tirou umretrato com a camisa tricolor e isso foi o bastante paramostrá-lo como homem simples, freqüentava o Café Baturité,bebia caldo de cana na Gruta e pega-pinto no Mundico, jogavano bicho e participava de rodinhas à porta da Livraria doComercial (OLIVEIRA, 1986, p. 387).
Dois episódios merecem registro nesta primeira
legislatura. No auge da campanha dos comunistas, para cassarem
o prefeito por falta de prestação de contas, Acrísio manda um
carro despejar todos os balanços da sua administração em
frente ao teatro José de Alencar, sede temporária do
legislativo municipal. Numa sessão de análise das contas do
executivo, Acrísio manda cortar a energia do recinto onde os
vereadores realizavam esta tarefa. Dizem que mesmo assim eles
continuaram os trabalhos à luz de vela. Estes dois episódios
retratam a disputa entre legislativo e executivo, e o modo
como os atores envolvidos percebiam seu próprio desempenho.
Condições adequadas de trabalho eram praticamente
inexistentes. As sessões se realizavam provisoriamente no
Teatro José de Alencar, contando com apenas cinco funcionários
99
cedidos pelo executivo. Por causa das dificuldades financeiras
do município, os vencimentos dos vereadores estavam
constantemente atrasados, mesmo tendo sido fixado o salário em
Cr$ 3.000 (três mil cruzeiros), um terço do que ganhava um
deputado estadual. No entanto, as finanças estavam sendo
organizadas (Depoimentos do ex-vereador Edval Távora, 2003).
Desta primeira legislatura, apenas dois vereadores
continuaram mantendo carreira política unicamente no plano
municipal. Gutenberg Braun, com base eleitoral na Aerolândia,
e José Batista Barbosa, na região do Seminário da Prainha,
permaneceram na vida política municipal até a década de 1980.
Os ex-vereadores falam de uma campanha política baseada
no convencimento sem compra de votos ou troca de benefícios.
Muitos se elegeram usando o prestígio pessoal que gozavam na
sua categoria profissional, como foi o caso dos comunistas.
Outros se apoiavam em personalidades políticas a eles
vinculadas. Dada a inexistência de vida política partidária
municipal, não é de estranhar que os primeiros representantes
do legislativo municipal tenham sido eleitos em parte devido
ao prestígio já conquistado entre determinados segmentos
sociais.
A primeira legislatura da Câmara Municipal de Fortaleza
tem poucos vereadores com representação de comunidades de bairros. A
preferência eleitoral, expressa nesta legislatura, não segue a
tendência de votação marcada pelos laços de moradia,
vizinhança e confiança, característicos dos vereadores que
detinham forte aglutinação de votos em áreas geográficas da
cidade. A única exceção a essa regra foi o vereador José
100
Batista Barbosa, que teve expressiva votação na área
residencial do Outeiro, região do entorno do Seminário da
Prainha, mas que conjugava uma base eleitoral advinda do mundo
do trabalho, pois era funcionário da fábrica Filomeno Gomes. A
maioria era constituída de representação de segmentos
organizados de trabalhadores, de profissionais, de comunidades
de interesses.
Numa cidade ainda pequena tanto espacialmente quanto em
número de habitantes, a eleição de 1947 pode ser vista como
uma exceção, em face do perfil social destes representantes.
Naquela época, a presença do rádio como veículo já era
importante para a construção da reputação política, como
ilustra o caso do vereador José Júlio e posteriormente, do
prefeito Paulo Cabral.
2.3 Os Primeiros Atores
Depois da derrota [na eleição de 1954], eu nãoquis mais me envolver, porque era muitodesagradável a pessoa estar pedindo voto. Fuicuidar da minha vida profissional (Ex-vereadorAlencar Araripe).Era preciso haver uma revolução para impedirque tanta gente incapaz, tanta gente ignorante,tanta gente que mal assina o nome chegasse acargos de direção política, seja no Município,seja no Estado (Ex-vereador Alencar Araripe).
Em 3 de outubro de 1950, a população foi novamente às
urnas para votar em eleição geral de presidente a vereador. No
Ceará, é vitoriosa a coligação PSD-PSP-PR, em quase todas as
esferas (governador, vice-governador, senador, Câmara Federal
e Assembléia Legislativa). Getúlio Vargas é eleito Presidente
101
da República e Raul Barbosa, governador do Ceará. Na capital,
houve uma coligação entre UDN, PDC e PTB. As eleições para
prefeito foram bem disputadas: a UDN lançou como candidato o
radialista Paulo Cabral; o PSD, o deputado Antônio Gentil; o
PR, o deputado Erestides Martins; o PTN, o médico Paulo
Machado e os comunistas, o médico Alísio Mamede (MOTA, 1998).
O vitorioso prefeito Paulo Cabral, com apenas 28 anos,
inexperiente na política, pois foi eleito em virtude de sua
projeção na Ceará Rádio Clube, esclarece as circunstâncias da
sua indicação e as razões da sua vitória eleitoral, em
depoimento a Aroldo Mota.
Na verdade, eu não escolhi a UDN para me candidatar aPrefeito de Fortaleza, pois a indicação cabia ao PTB. [...]Fui convencido a aceitar a candidatura a Prefeito, indicado,formalmente pelo PTB, pelos jovens integrantes doDepartamento Estudantil da UDN. Não tenho dúvidas de que acampanha da Santa Casa e aquela para socorrer as vítimas daenchente no Rio Jaguaribe (1948 e 1949, respectivamente)contribuíram fortemente para aumentar a minha popularidadede homem de Rádio e para minha eleição a Prefeito (MOTA,1997, p. 43-44).
A segunda legislatura foi empossada no dia 4 de janeiro
de 1951. Mais uma vez a eleição proporcional assegurou maioria
para o prefeito. A UDN elegeu seis vereadores (Alencar
Araripe, José Martins Timbó, Antônio Mendes, Francisco de
Paula Holanda, Luciano Magalhães, Secundiano Ferreira
Guimarães); o PTB, três (Francisco Edvar Pires, João Alves
Albuquerque, Raimundo Oseas Aragão); o PSP, três (Raimundo
Gomes Tavares, Valdemar Rodrigues Figueiredo, Sebastião
Baima); o PSD, três (Antônio Azin, João Ramos de Vasconcelos
César e Raimundo Ximenes); o PR, quatro (José Barros de
102
Alencar, Enoc Furtado Leite, Gutenberg Braun e Eulália Odorico
de Morais) e o PL, dois (Américo Barreira e Lauro Brígido).
Entre os eleitos, quatro haviam conquistado a reeleição:
Américo Barreira, Lauro Brígido, Gutenberg Braun e João Alves
Albuquerque.
João Alves Albuquerque e Lauro Brigido já haviam mudado
de partido. A CMF, oriunda da eleição de 1950, era
praticamente inexperiente, pois 80,95% dos vereadores estavam
no primeiro mandato. Além dos quatro reeleitos, Alencar
Araripe e João César já haviam participado da legislatura
anterior como suplentes, assumindo algumas vezes. Entretanto,
o que parece ser uma renovação muito grande se explica pelo
fato de muitos vereadores terem se candidatado a deputado
estadual. Praticamente, recomeçava toda a experiência
legislativa. Além destes fatos, nesta legislatura, ocorre a
cassação de mandato dos vereadores Américo Barreira e Lauro
Brígido. Como houve uma coligação entre o PR e o PL, as duas
vagas foram assumidas pelos vereadores do PR.
Na eleição de 1950, os comunistas do Ceará fundaram umasecção do Partido Libertador – PL – de origem gaúcha eliderada pelo Deputado Raul Pilla de formação conservadora.A direção nacional do PL cientificada da manobra comunistadirigiu impugnação perante o Tribunal Superior Eleitoral econseguinte êxito extinguindo a secção cearense do partido.Com esse abusivo ato os vereadores Américo Barreira e LauroBrigido Garcia, da Câmara Municipal de Fortaleza, perderamseus mandatos (MOTA, 1997, p. 118-119).
Nesta eleição, o fato mais relevante para o estudo da
representação política foi o surgimento de vereadores com base
eleitoral aglutinada em torno do bairro. Na CMF de 1948,
apenas o vereador José Batista Barbosa, líder comunitário,
103
tinha forte identificação com uma área territorial da cidade.
Em 1951, outros vereadores com o mesmo perfil de votação
concentrada surgem: Enoch Furtado, Raimundo Ximenes, José
Martins Timbó e José Barros de Alencar.
José Barros de Alencar, o imperador da Messejana
Merece destaque nesta legislatura José Barros de
Alencar, por sua longa trajetória na CMF, tendo base eleitoral
no distrito de Messejana, onde nasceu em 1923 e sempre morou.
Ingressou na política em 1948 na função de subprefeito deste
distrito. Em 1950, foi eleito vereador de Fortaleza pela UDN.
Sua vitória foi atribuída ao desempenho administrativo, pois
teve grande concentração de votos em Messejana. Ocupou por
diversas vezes a presidência da Câmara de Vereadores, em 1958
e 1959, e no período de 1961 a 1969.
Como outros vereadores de base territorial, Barros de
Alencar enfrentará, ao longo dos anos 1950 e 1960, a disputa
com outro vereador. Ambos atuavam na região da Messejana, mas
Raimundo Ximenes tinha maior controle da área correspondente
ao atual bairro Lagoa Redonda. Em nenhum momento sua eleição
foi fortemente ameaçada, apesar dos altos e baixos nos
resultados eleitorais. Somente na eleição de 1970 ficou nas
últimas posições da chapa da Arena, e em 1976 ficou na última
posição, com apenas 51 votos de diferença do primeiro
suplente. A partir da década de 1970, suas eleições já não são
mais tão folgadas como em décadas passadas. Manteve uma
carreira no legislativo, iniciada em 1950, e interrompida por
104
acidente automobilístico, vindo a falecer, em 1983, pouco
antes de assumir a cadeira na CMF.
A base eleitoral do vereador José Barros de Alencar não
se construiu imediatamente, mas ao longo dos seus trinta anos
como vereador de Fortaleza. É o vereador com mais tempo na
Câmara Municipal. Sua base de sustentação era mantida mediante
prestação de favores os mais diversos, do trabalho incansável
de assistência ao eleitorado e do bem estruturado mecanismo de
alistamento eleitoral. Há quem diga que Messejana inteira foi
alistada por seu intermédio.
Segundo um dos seus contemporâneos, José Edmar Barros
de Oliveira, ele “era uma figura inteligente de nascença,
muito observador. Homem que não era de tribuna, mas comedido
nas palavras e que impressionava pelo porte, gestos, ações
delicadas, aparência física e inspirava uma confiança”. Ao
longo da sua vereança, tornou-se uma peça-chave e “figura
necessária à Câmara pela sua têmpera, sua serenidade. Sabia
ouvir de um lado, sabia ouvir de outro”.
Dia de sábado Zé Barros ia para Messejana, cinco horas damanhã amanhecia lá e terminava dez, onze horas da manhãsomente atendendo. O que mais se usava era o cartão paranomeação, emprego, conseguir calçamento, posto, tudo quefosse possível à intermediação do vereador (Depoimento doex-vereador José Edmar).
Era um típico representante de comunidade de bairro,
pois em sua longa trajetória política nunca se candidatou a
outro cargo público e obteve sempre sua expressiva votação na
região da Messejana. Não tinha ambição em fazer carreira
política. Sem dúvida, foi o vereador de comunidade de bairro
105
mais importante que Fortaleza já teve pela sua capacidade de
manutenção de sua posição. Era designado pelos colegas e
jornalistas de “Imperador da Messejana”. Deixou como legado
político pessoas que ainda desfrutam do seu espólio eleitoral.
Na eleição de 1988, seu primo Solinésio Alencar foi eleito com
os votos oriundos da região de Messejana. Em 2000, o candidato
coronel Leonel Alencar, seu sobrinho, teve expressiva votação
neste mesmo local.
Jornalista Alencar Araripe e os votos da classe média
Para alguns, o envolvimento com a política ocorria em
decorrência da origem familiar. Este é o caso de Alencar
Araripe, de importante família do Cariri. Apesar da política
ser um caminho natural, a projeção que adquiriu no jornal O
Povo, como homem de imprensa, foi fundamental para sua carreira
política, que teve o seguinte slogan de campanha: “O
jornalista vive os problemas do povo”. Ele atribui a este fato
grande parte da sua eleição. “A reputação foi construída no
jornalismo. A minha projeção política foi pari passu com minha
projeção do trabalho no Jornal”. O ex-vereador assinala o
momento em que inicia seu envolvimento com a política:
Quando veio a reconstitucionalização, trabalhava num jornalque defendia a mesma política que defendia minha família.Meu irmão Antônio havia inclinação para a política.Participei da primeira eleição. Perdi por quatro votos, masfui convocado por certo período. Ao terminar estalegislatura, recebi elogios de Américo Barreira e LauroBrigido. Candidatei-me na eleição de 1950. Minha entãomulher trabalhou bastante. Eu obtive uma votação espetacularpara a época, 1196 votos (Depoimentos do ex-vereador AlencarAraripe, 2003).
106
Alencar Araripe, o mais importante vereador desta
legislatura, relembra sua trajetória até o momento em que se
elegeu pela primeira vez: “A política atrai e a gente, tenho a
impressão que a política é um dos instrumentos para servir ao
povo, à comunidade”. Porém a política não era vista apenas
como meio de atender aos interesses do povo, constituía também
como fonte de renda.
A política era também um meio de aumentar o poder desustentação da família. Eu já tinha muitos filhos. Eu mecasei em 1945 e em 1952 eu já tinha três ou quatro filhos.Eu via na política um meio de aumentar o sustento familiarporque o jornalismo compensava muito modestamente. Orendimento de vereador não era grande, mas era bem superiorao obtido na redação de um jornal (Depoimento do ex-vereadorAlencar Araripe, 2003).
Este depoimento de Alencar Araripe pode ser extrapolado
a outros membros do parlamento municipal. O ex-vereador José
Edmar Barros de Oliveira chama a atenção para o fato de que
nesta época Fortaleza era uma cidade muito pequena, com poucas
oportunidades de emprego. A política municipal, portanto, não
deixava de ser um atrativo importante. Muitos viam na condição
de vereador uma oportunidade de aumentar seus vencimentos.
Assim como na legislatura passada, esta também contava com
alguns edis sem muito envolvimento com o universo da política.
Na Câmara Municipal, Alencar Araripe se projeta como
líder da UDN e principal aliado do prefeito Paulo Cabral,
também radialista, como ele. O prestígio decorrente da
profissão de radialista garantia uma votação dispersa por toda
a cidade e em diversos setores da sociedade. Não mantinha
compromisso direto com nenhum segmento organizado e servia
107
como porta-voz apenas do que considerava de interesse público.
Quando se verifica sua atividade política, chama a atenção a
diversidade de segmentos a que se dirige. As ações políticas
mais diretamente relacionadas à sua condição de vereador, que
esperava ser reconduzido, eram orientadas para a construção de
chafariz, iluminação, construção de moradia popular, escolas,
calçamento em vários bairros da cidade.
A falta de uma base eleitoral organizada prejudica a
eleição de Alencar Araripe no pleito seguinte. Ele dedica-se a
dirigir o setor de imprensa da campanha a governador de Paulo
Sarasate, seu patrão no jornal O Povo, e dispensa pouca atenção
a sua própria campanha. Como ele afirma, sua derrota decorre
de um erro:
Eu não soube trabalhar. Eu fazia minha propaganda daseguinte forma: colocava um anúncio no Jornal com aidentificação da chapa e dizia que quem tivesse interesse emreconduzir o vereador Alencar Araripe à CMF, deveriarecortar o anúncio e enviar pelo correio para o endereçoespecificado. Pois bem, recebendo os recortes de jornal eume encarregaria num determinado momento de enviar as chapas.Eu recebi um grande número, mas acabei não enviando aschapas em tempo hábil. Quando fui cuidar, o correio jáestava superlotado com as entregas. Então muita gente deixoude votar. A chapa já era feita pelo próprio candidato. Mesmotendo as chapas em cada sessão, muitos tratavam de retirarou misturar para atrapalhar a eleição. Era difícil encontrara chapa de seu candidato no meio de tantas. Se eu tivessetrabalhado, corretamente, eu teria ganho (Depoimento do ex-vereador Alencar Araripe, 2003).
Neste momento, é comum a manutenção de laços
profissionais que rendem votos, aliada a uma base territorial.
Entretanto, para os vereadores que mantêm dupla base
eleitoral, a eleição não é fácil, em virtude de os eleitores
de bairro monopolizarem a representação. Ou seja, os
108
vereadores são forçados a concentrar seu trabalho unicamente
em um bairro, não podendo sequer ampliar sua área de atuação
para bairros vizinhos, pois geram descontentamento e correm o
risco de não serem eleitos. Isto cria um problema, porque ao
concentrar todo o esforço num único segmento, também podem
perder as eleições. Este problema vai se acentuar ao longo das
diversas legislaturas. Nem todos os vereadores, no entanto,
conseguem manter facilmente base eleitoral muito heterogênea.
Isto ocorre com mais freqüência com professores e funcionários
públicos, como era o caso do Edward Pires (Depoimento do ex-
vereador José Edmar, 2003).
Nesta legislatura, muitos são os vereadores com mais de
uma base de sustentação eleitoral. Todavia, alguns poucos
destes já se firmaram em uma única base eleitoral. Foram
identificados “segmentos” relacionados com base territorial,
categorias profissionais (funcionários públicos, militares,
professores e estudantes) e “prestígio social” (famílias
tradicionais, jornalistas, radialistas). Na legislatura
anterior, a CMF contou com um vereador com forte identificação
com a corporação militar - Leôncio Botelho, e nesta com outro
- coronel Holanda.
Na segunda legislatura da Câmara Municipal de
Fortaleza, começa a se estruturar um sistema de lideranças
centradas nos bairros mais periféricos da cidade. Estes
vereadores foram os que asseguraram com mais facilidade suas
reeleições.
Do ponto de vista político, ao contrário da legislatura
anterior, essa se caracterizou por maior tranqüilidade, menos
109
debates ideológicos e maior cordialidade com o prefeito. A
única exceção ocorreu na votação da mensagem do prefeito sobre
a criação da Serviluz.19
Na disputa política para a sucessão de Paulo Cabral,
Acrísio Moreira da Rocha era o mais forte candidato. A
oposição ao prefeito era feita justamente pelos “acrisistas”,
desejosos de retornar ao controle do executivo municipal.
2.4 Fortalecimento dos Vereadores de Bairro
Cada um tem seu modo de trabalharpoliticamente. Se prometer muito aquilo que nãopode fazer pode ganhar a primeira eleição, masa segunda não ganha mais. Tem aquilo que sepode fazer, senão se fica desmoralizado (Ex-vereadora Ivone Melo).Eu tenho uma cadernetinha que todo favor que eufaço eu anoto ali. Isto é importante (Ex-vereadora Ivone Melo).
Em 3 de outubro de 1954, ocorreram eleições gerais para
as três esferas do executivo e legislativo, tendo sido eleito
para presidente Juscelino Kubitschek (PSD) e vice João Goulart
(PTB), para governador Paulo Sarasate (PSD) e para prefeito
19 Em 1954, na administração do prefeito Paulo Cabral, foi instalada umatermoelétrica no bairro do Mucuripe, e criada a Autarquia Municipal deServiço de Luz e Força de Fortaleza, cuja função era a distribuição etransmissão de energia para a capital. Em 1962, a Serviluz passou adenominar-se Conefor – Companhia de Eletricidade de Fortaleza. Somente nosanos 1960, chega ao Ceará energia fornecida pela Companhia Hidroéletica doRio São Francisco, durante a administração do Governador Virgílio Távora(1964-1968) (COSTA, 2003).
110
Acrísio Moreira da Rocha (PR). Esta importante liderança
popular retorna à administração da capital.
Nestas eleições, o prefeito Paulo Cabral não conseguiu
fazer seu sucessor, o candidato pela UDN Raimundo Girão.20 A
Câmara Municipal ficou assim constituída: cinco vereadores
foram eleitos pela UDN (José Barros de Alencar, José Martins
Timbó, José Batista de Oliveira, Roberto Carvalho Rocha e René
Dreyfruss); quatro pelo PSP (Agamenon Frota Leitão, Manuel
Lourenço dos Santos, Raimundo Gomes Tavares e Djalma
Eufrásio); quatro pelo PSD (Mauro Benevides, Dorian Sampaio,
João Cavalcante e Walter Cavalcante Sá); quatro pelo PR
(Bezaliel Teixeira, Pedro Paulo Moreira, Raimundo Ximenes e
Valdemar Pedro dos Santos); três pelo PTB (Ademar Arruda, José
Ribamar Vasconcelos e Raimundo Oseas Aragão) e um pelo PRP
(Antônio Fernando Bezerra). Os eleitos foram empossados em
janeiro de 1955.
Esta legislatura, do ponto de vista histórico, tem uma
característica particular. Um grupo de vereadores é eleito,
conservando-se nesta função por diversos mandatos: José Barros
de Alencar, José Batista de Oliveira, Raimundo Ximenes, José
Martins. Dois deles se destacam: José Barros de Alencar, um
típico vereador de base territorial, por permanecer na Câmara
Municipal de Fortaleza por trinta anos ininterruptos; e José
Batista de Oliveira, pelo envolvimento político da família.
20 O historiador e advogado Raimundo Girão (1900-1988) foi prefeito deFortaleza (1932-1934), secretário de urbanismo de Fortaleza (1931-1932) nagestão de Tibúrcio Cavalcanti e primeiro secretário estadual de cultura.
111
Como oconteceu no último pleito, apesar de muitos
vereadores tentarem se manter na CMF, a taxa de renovação foi
muito alta (71,42%). Apenas seis conseguiram reeleição.
Até esta legislatura, observa-se uma taxa de renovação
muito elevada, dando a aparência de pouca continuidade e
estruturação em relação à anterior. Entretanto, já se
constatava a presença de um núcleo de vereadores com base
territorial firmando sua liderança no atendimento ao eleitor e
no mecanismo de alistamento eleitoral. O alistamento eleitoral
já começava a se configurar como mecanismo crucial. Nos anos
1970, torna-se o instrumento mais eficaz para reeleição usado
pelos vereadores com votos concentrados em bairro. Na
legislatura em exame, existem vereadores com identificação
territorial, mas ainda não se constituíam núcleo dominante. O
segmento de educação continuava possibilitando a construção de
reputação política com mais facilidade.
Mais uma vez, Fortaleza tinha um legislativo
inexperiente, pois a maioria dos seus membros cumpria o
primeiro mandato. A novidade nesta eleição será a presença de
vereadores com firme base eleitoral encravada em bairros,
constituindo em torno de si uma liderança fundamentada na
troca de favores. A CMF de 1955 contava com nove vereadores
com base territorial. Cinco foram reeleitos (José Barros de
Alencar, José Martins, Raimundo Ximenes, Raimundo Tavares,
Oséas Aragão e Pedro Paulo Moreira) e três estavam no primeiro
mandato (Ademar Arruda, José Batista de Oliveira e Djalma
Eufrásio).
112
O incremento populacional, resultante das migrações
rural-urbana, favorece a expansão da cidade, ampliando o
déficit habitacional e de infra-estrutura e serviços urbanos.
A população de Fortaleza salta de 270.169 habitantes, em 1950,
para 514.813, em 1960, um crescimento intercensitário de
90,5%, e o número de eleitores passa de 87.205, em 1950, para
79.483, em 1955, e para 110.990 em 1958. Proporcionalmente
acompanha o crescimento populacional.
Estes novos moradores de Fortaleza, de bairros mais
carentes, pressionam seus representantes no legislativo e no
executivo por trabalho, moradia e serviços públicos.
Inicialmente a demanda é por calçamento, pois para a
instalação das linhas de ônibus é preciso haver calçamentos.
Posteriormente, a solicitação é por energia elétrica, que era
fornecida pela Light até a sua municipalização pelo prefeito
Acrísio Moreira da Rocha, em 1948.
Esta intermediação com a administração pública é feita
por vereadores. Ao conseguir benefícios para os bairros, eles
fortalecem suas bases eleitorais territoriais.
No levantamento realizado sobre o perfil dos vereadores
desta legislatura, segundo se observa, mais uma vez a
representação na Câmara é relativamente heterogênea, pois
contempla a expressão de vários segmentos sociais. Convivem
vereadores com base territorial em bairros populares,
representantes de segmentos sociais não organizados, de
profissionais liberais, de sindicatos, etc. A composição
social não se altera muito. Maria Eulália, a única
representante feminina presente na legislatura passada, não se
113
reelege, ficando a Câmara composta exclusivamente pelo sexo
masculino.
Nesta legislatura, a idade média dos vereadores é de 30
anos, embora alguns tenham apenas 23, 24 e 25 anos. No
entanto, nenhum havia ultrapassado 50 anos, como ocorrera na
legislatura anterior. Todos estavam abaixo de 40 anos. Não
havia médicos. Predominavam advogados, contadores, educadores
(professores) e funcionários da prefeitura. Muitos destes
profissionais obtinham sua votação da classe média.
Neste momento da política municipal, muitos vereadores
já começam a montar estrutura de alistamento eleitoral. Com o
tempo, esse mecanismo torna-se imprescindível para a renovação
do mandato, como se pode observar no histórico dos vereadores
que se mantiveram mais tempo na CMF. Era este mecanismo que
assegurava ao vereador uma boa colocação em relação aos demais
concorrentes. As exceções são Dorian Sampaio, Agamenon Frota
Leitão, José Edmar Barros de Oliveira e Roberto Carvalho
Rocha, que não se baseavam neste instrumento, mas também não
tiveram uma vida longa no parlamento municipal, pois eram
vereadores que poderiam se classificar como institucionais,
ideológicos, com base em segmentos profissionais e de classe
média.
Os Oliveiras: base eleitoral territorial e familiar
Nesta legislatura sobressai a entrada da família
Oliveira na Câmara.
114
José Batista de Oliveira entrou na vida política em
1954, como vereador de base territorial, sendo substituído
pela esposa Maria José de Oliveira por mais de trinta anos, e
finalmente pelo filho Casimiro Neto, a partir de 2000.
José Batista de Oliveira nasceu em Pacatuba, no dia 26
de outubro de 1927. Foi eleito vereador de Fortaleza por três
mandatos consecutivos (1955-58, 1959-62 e 1963-66). Em 1996,
candidatou-se à Assembléia Legislativa do Ceará, foi eleito
por quatro vezes seguidas. Quando entrava no seu quarto
mandato no legislativo estadual, foi indicado para o Tribunal
de Contas dos Municípios. Em 1972 a esposa Maria José de
Oliveira o substitui na Câmara Municipal, e aí permanece por
mais de três décadas. Em 2000, a vereadora abandona o
legislativo, e apóia o filho Casimiro Neto, que é eleito para
a CMF em 2000, mas não consegue se reeleger em 2004.
Logo após ser nomeado para um cargo na administração
estadual, José Batista de Oliveira candidata-se a vereador,
poucos dias antes de encerrar o prazo, por insistência dos
“moradores do bairro” Bela Vista, que gostariam de ter um
representante na CMF capaz de lutar por seus interesses.
Elege-se, então, pela primeira vez em 1954, pouco tempo depois
de chegar ao bairro da Bela Vista, onde o irmão padre Alberto
Oliveira era vigário. A campanha foi feita basicamente por
familiares, principalmente pelo irmão padre, que gozava de
grande prestígio na paróquia.
A base eleitoral da família Oliveira é territorial e
familiar, contemplando a Bela Vista e bairros vizinhos. A
permanência da família na mesma residência desde 1953 ressalta
115
os vínculos afetivos, sociais e políticos com a região e os
eleitores (Depoimento da ex-vereadora Maria José de Oliveira,
2003).
O caso da família Oliveira é paradigmático para os
políticos que entraram na vida pública naquela época. Depois
de 1954, ela mantém ininterruptamente um representante na CMF.
116
2.5 Eleição de 1958: A Compra de Votos
Nosso escritório político é neste alpendre.Nosso atendimento sempre foi aqui. Nós nuncadeixamos de atender nossos eleitores. Deste otempo de José Batista de Oliveira que nossoatendimento sempre foi assim e aqui. Todo santodia nós damos nosso atendimento aqui até9h30minh, 10horas da noite (Ex-vereadora MariaJosé Oliveira).O poder legislativo é só pra legislar mesmo,embora num município pobre como o nosso, oeleitorado se aproxime muito do candidato, doeleito, pra pedir tudo. E o candidato não podedeixar de estar próximo ao prefeito, porqueprecisa atender às reivindicações do subúrbio(Ex-vereador Fiúza Gomes).
As eleições gerais de 1958 são marcadas por um período
de grande seca, miséria, desestruturação econômica e fortes
migrações para a capital. O contexto social e econômico
favoreceu a compra de votos,21 principalmente com o dinheiro
público vindo para ajudar as vítimas da seca, investir nas
frentes de trabalho. O PSD, partido do governo federal,
ampliou sua base eleitoral. Para Presidente da República foi
escolhido Jânio Quadros (UDN) e para governador do Estado do
Ceará, Parsifal Barroso (PTB).
O coronel Manuel Cordeiro Neto,22 do PL, apoiado por
forças conservadoras, elegeu-se prefeito em 3 de outubro de
1958. Em janeiro de 1959, tomam posse o prefeito e os21 Em depoimentos, atores políticos da época fizeram referência à compra devotos com dinheiro público nesta eleição. 22 Cordeiro Neto foi eleito com o apoio de setores da classe média e dosricos, mas sustentado principalmente pelo voto popular. Fez sua campanhabaseado na imagem do “homem da lata”, uma referência ao seu tempo de chefede polícia, quando determinou que os presos trabalhassem em construção deobras públicas.
117
vereadores: Quatro vereadores do PRT (José Ribamar
Vasconcelos, Raimundo Nonato de Morais, José Aluísio Correia e
José Batista Barbosa), quatro do PTB (José Barros de Alencar,
Antônio Ademar Arruda, José Araújo de Pontes e Hermenegildo
Barroso de Melo), três da UDN (José Batista Oliveira, Antônio
Costa Filho e José Martins Timbó), três do PSD (Walter
Cavalcante Sá, Dorian Sampaio e Pedro Pierre Lima), três do
PSP (Agamenon Frota Leitão, Mozart Gomes de Lima e Carlos
Cavalcante (Caio Cid), três do PL (Djalma Eufrásio Rodrigues,
Maria Mirtes Campos e José Edmar Barros de Oliveira), três do
PR (Raimundo Ximenes, José Maria Marques e Fiúza Gomes) e um
do PRP (Raimundo Rodrigues Pinto).
Fruto da alteração legal, nesta eleição ocorreu uma
mudança importante no legislativo: o aumento de três cadeiras,
passando de 21 para 24 vereadores.
Esta legislatura vai contar com vereadores mais
experientes, pois a taxa de renovação foi bem menor do que nos
outros pleitos (58,33%). Foram reeleitos: Ademar Arruda, José
Barros de Alencar, José Batista de Oliveira, José Martins
Timbó, Raimundo Ximenes, Djalma Eufrásio, Walter Cavalcante
Sá, Agamenon Frota Leitão, Dorian Sampaio e Raimundo
Vasconcelos.
Dos vereadores de primeiro mandato, muitos jamais
haviam pensado em se candidatar a um cargo eletivo quando a
oportunidade apareceu. Para os pertencentes a famílias com
envolvimento político, esta oportunidade se apresenta mais
cedo. Para os sem patrimônio político familiar, as relações de
amizade são motivadoras do mesmo intento. Outros ainda
118
entraram na política por relações de trabalho, ou como os
tradicionais vereadores de base territorial.
Ao refletir sobre a composição da legislatura de
1959, José Edmar afirma:
Na CMF de 1959-1963 ninguém era rico. O que tinha umasituação financeira melhor era o Aluisio Correia, AgamenonFrota era advogado já tinha uma situação financeiraindependente, Raimundo Pinto era médico tinha uma boasituação. Todos eram de classe média. Quem tinha maisdestaque financeiro era mesmo o Aluisio Correia que erafilho do Álvaro de Castro Correia que era um grandecomerciante em Fortaleza (Depoimento do ex-vereador JoséEdmar, 2003).
Nesta legislatura, destacam-se outros candidatos que
ficaram na suplência mais de uma vez: Paulo Mamede, Gutenberg
Braun, Luiz Aragão, Abel Pinto, Mário Nunes, Walter Cabral,
Fernando Bezerra, Antônio Azin, Pedro Paulo Moreira e Ernesto
Gurgel. Ressalto a presença destes vereadores porque alguns
deles serão protagonistas importantes em legislaturas futuras.
A trajetória dos vereadores Fiúza Gomes e José Edmar
Barros de Oliveira merece destaque. Mediante seus depoimentos
pode-se recuperar a forma de fazer política nesta legislatura.
Fiúza Gomes e a diversidade de base eleitoral
Fiúza Gomes nasceu em Caucaia, em 27 de fevereiro de
1925, filho de um grande proprietário rural, pessoa de
prestígio na região. O pai de Fiúza Gomes foi convidado, pelo
chefe do PSD coronel Fausto Santos, para se candidatar à
Câmara Municipal de Caucaia, mas não aceitou. Entretanto,
acabou indicando o filho Fiúza Gomes, que gostava “muito desse
negócio de conversar e tal”.
119
Em 1954, o jovem Fiúza, pequeno comerciante da cidade
de Caucaia (bodega), “ganhou a eleição, mas quebrou o
negócio”, por pura inexperiência.
Despertado pela idéia da política, veio para Fortaleza.
Graças a laços familiares com os Moreira da Rocha conseguiu um
emprego como fiscal de posturas23 da prefeitura. Neste emprego,
visitava os bairros periféricos, onde foi construindo uma base
de apoio, pois pretendia continuar na política como vereador
por Fortaleza.
Nesta primeira eleição na capital, Fiúza usou sua
condição de fiscal da prefeitura, e mais o apoio dado pelo
prefeito Acrísio Moreira da Rocha.
Comecei a trabalhar nos subúrbios de Fortaleza, juntamentecom o pessoal mais humilde. Fiscal de postura era mais estenegócio de fiscal de obra, fiscal de mercearia e coisa tal.E aí, comecei a fazer um bom relacionamento. Depois, passeia fazer um bom relacionamento com aquela intenção de sercandidato. E quando se aproximou a eleição, me candidatei etrabalhei muito no subúrbio de Fortaleza, conseguindo meeleger, nessa época, através Partido Republicano (do PR),que era o partido dos Moreira da Rocha (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).
Ninguém acreditava nas chances eleitorais deste jovem
recém-chegado a Fortaleza, sem nenhum conhecimento na cidade.
Apesar da descrença de todos, Fiúza Gomes foi eleito com 827
votos, o terceiro da lista do PR.
Em 1959, foi aprovado no vestibular para o curso de
Direito da UFC.
23 Fiscal da prefeitura era encarregado de vigiar o cumprimento do Código dePosturas. Fiscalizava as irregularidades na construção de obrasparticulares.
120
Fiúza, desde a eleição de 1958, tinha a intenção de
prosseguir na carreira política, acalentando o sonho de ser
prefeito de Fortaleza. Por isso, na Câmara Municipal,
trabalhava o nome para se tornar conhecido. Apesar de eleito
por partido de oposição (PR), Fiúza Gomes afirmava que tinha
boas relações com o prefeito, que antes de enviar mensagens à
Câmara, o consultava.
Eu fazia parte de um partido de oposição, mas não era umaoposição doentia. Era uma oposição sadia. E com estetrabalho que fazia a minha intenção não era mais servereador, já queria ser deputado estadual. E de deputadoestadual, então, alçar vôo pra prefeitura ou outra coisaassim (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).
No passado, a política era feita dentro de marcos
restritos, de uma base eleitoral definida e claramente
identificada com segmentos sociais ou com uma área de trabalho
determinada. A base eleitoral pressionava o vereador “a cair
necessariamente nos braços do poder executivo” para atender à
sua clientela política.
Fiúza compara a campanha do passado, feita na base
pessoal, direta com o eleitorado com a atual, via meios de
comunicação (televisão, rádio), de forma indireta. Hoje o
eleitorado escolhe o candidato por meio de suas propostas, não
havendo mais aquela necessidade de prometer resolver os
problemas de cada um (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes,
2003).
A campanha eleitoral era feita à base de visitas
pessoais aos eleitores, visitando, conversando e prometendo
muito. “De casa em casa, com um grupo trabalhando, aquela
121
coisa toda. Promessas e promessas vãs. Muita promessa se
fazia”, afirma Fiúza Gomes.
Nesta época, os pedidos mais freqüentes eram de poste
de iluminação. “Todo mundo pedia poste para rua”. Como não era
possível atender a todos e cumprir as promessas, o candidato
acabava não se reelegendo. Para compensar os votos perdidos, o
vereador deveria manter uma estrutura de alistamento
eleitoral, um dos mecanismos mais importantes para alcançar a
reeleição. Entre uma eleição e outra, o candidato perdia de
30% a 40% dos eleitores. Fiúza Gomes explica as formas de
conquista de votos:
A gente atendia os filhos dos eleitores com as bolsas deestudos da prefeitura. Então, quando não tinha mais estasbolsas ou acabava, a gente encaminhava para estasorganizações que recebiam subvenção da prefeitura. Dependiado bom relacionamento do vereador com o prefeito para que opedido de liberação de verbas, a abertura de crédito emfavor de uma entidade pudesse ser feito. São estesinstrumentos que asseguravam ao vereador certa visibilidadeno seu trabalho, pelo prestigio que podia ter, junto aoprefeito (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).
Ainda conforme Fiúza Gomes, “era exatamente por causa
deste sistema de atendimento que o vereador ficava na mão do
prefeito”. Para o vereador era difícil manter-se
oposicionista, pois dependia do executivo para atender aos
pedidos do eleitorado. Desta forma, era impossível manter
independência em relação ao prefeito. E segundo Fiúza, isto
ocorria porque não queriam prejudicar os seus eleitores.
Na eleição de 1958, Fiúza não tinha uma base eleitoral
previamente estabelecida, investindo unicamente nas imediações
122
de sua residência. Além desta base territorial, ele contou com
o apoio do grupo Rosa Cruz.
Os bairros em que mais tive voto foi o Campo do Pio, SãoGerardo, Monte Castelo, Jardim América. Depois que eu saí daBezerra de Meneses fui morar no Jardim América. [...] Entãofiz minha base aí. Também nessa época quem já me deu uma boaajuda foram os Rosa Cruz. Eu sou membro Rosa Cruz. Eu tinhaaquela ligação. Não que eles trabalhassem, mas contei com ovoto deles, porque eu cheguei a ser mestre da Maçonaria. Fuivenerável na Maçonaria e Mestre na Rosa Cruz. Eles já tinhamum número relativamente bom de membros. E aquele número seexpandia para outros familiares. O reflexo do voto(Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).
Como evidenciado, Fiúza Gomes não pode ser
caracterizado como um vereador que mantinha uma base
exclusivamente territorial. Na verdade, a base eleitoral no
bairro era acionada unicamente na época da eleição. Era
preciso cultivar e manter os laços com outros setores que
assegurassem uma base de representação eleitoral mais
consistente. No caso dele, este segmento era o funcionalismo
público municipal, pois foi presidente da associação dos
funcionários da prefeitura.24 Entretanto, ele não estava
sozinho nessa disputa, pois outros vereadores eram igualmente
funcionários da prefeitura e buscavam a mesma representação
eleitoral.
Além do voto conquistado na visita pessoal, o candidato
tinha apoio de grupos sociais com vinculação não política,
quer seja de natureza profissional quer de outra natureza. O
24 “Eu tive muito voto na prefeitura, era funcionário de lá e presidente daAssociação dos Funcionários da Prefeitura. Eu tive uma base muito boa defuncionários da prefeitura que votaram comigo” (Depoimento do ex-vereadorFiúza Gomes, 2003).
123
trabalho inicial era transformar estes tipos de vinculação com
uma adesão à campanha política.
A base eleitoral de Fiúza Gomes vinha de diversos
segmentos: dos funcionários da prefeitura, dos eleitores dos
bairros do subúrbio, do trabalho político nos bairros do
subúrbio, dos sindicatos, da maçonaria e dos Rosa Cruz.
Fiúza Gomes não mantinha uma estrutura de alistamento
eleitoral. Em virtude do elevado custo para ter acesso ao
título eleitoral, muitos vereadores, que montavam estrutura de
alistamento, se beneficiavam justamente destas dificuldades
para prestar este serviço importante e necessário ao eleitor.
Nesta legislatura, conforme afirmou em entrevista um ex-
vereador eram muito poucos os que não se serviam deste
mecanismo para assegurar uma quantidade de voto cativo.
Deputado estadual eleito em 1962 e cassado depois de
1964, Fiúza Gomes considera-se injustiçado, pois não era um
homem de esquerda, apenas ligado ao deputado Moisés Pimentel.
Para acabar a carreira deste deputado do PTB, os militares
cassam os políticos a ele vinculados. Depois desta experiência
política, retorna às suas atividades privadas. Em 1982, volta
à vida pública, e é eleito vereador pelo PMDB. Encerra sua
carreira política depois de 1988. Nesta eleição, segundo ele,
devido aos escândalos freqüentes, decepciona-se com a política
e não mais se candidata.
José Edmar Barros de Oliveira e o voto de prestígio familiar
124
José Edmar Barros de Oliveira nasceu em Baturité, em 15
de dezembro de 1936. Foi eleito vereador de Fortaleza em três
pleitos: em 1958, pelo PL, em 1962, pelo PR e em 1966 pelo
MDB. Em 1970, candidatou-se a deputado estadual, ficando na
segunda suplência. Como havia impedimento de licença para
deputados, ele nunca assumiu o mandato. Retorna à vida
pública, em 1988, como candidato a deputado estadual pelo PFL,
e fica na suplência, com 1.245 votos.
Filho de Edmílson Barros de Oliveira, médico de grande
prestígio na cidade, candidato a deputado estadual pelo PSB,
em 1954, que mesmo obtendo boa votação não se elegeu, pois a
legenda não atingiu o coeficiente eleitoral para levar nenhum
parlamentar à Assembléia Legislativa, a oportunidade para José
Barros de Oliveira entrar na vida pública ocorreu com a
criação do PL no Ceará em 1953:25 partido novo e com chapa
eleitoral a ser composta pela indicação de nomes de
candidatos. Desgostoso com a UDN, o líder político Miguel
Gurgel, ligado a Fernandes Távora, filia-se ao PL. Também
participa da criação deste partido, o dr. Edmilson Barros de
Oliveira
No momento da composição da chapa para a disputa
municipal, ocorreu o seguinte fato:
Véspera da composição da chapa. O Partido é novo, a chapaainda não está composta e são tantas cadeiras! Eu disse:“Papai porque o senhor não me bota?”. Ele disse: - “Meufilho, você vai é estudar”. - “Mas não papai, eu tenho meusamigos e o senhor, os seus clientes”. Enfim, papai meindicou para compor a chapa. Eu me desdobrei. Ele vendo que
25 Em 17 de novembro de 1945, o TRE manda registrar o diretório estadual doPartido Libertador, mas em 1950, Jáder de Carvalho pede o cancelamento detodos os membros do diretório estadual. Em 1953, Miguel Gurgel pede oregistro junto ao TRE do PL, em sua segunda fase (MONTENEGRO, 1980, p.150).
125
eu estava tomando gosto, se empenhou na minha candidatura eme elegeu. Papai pediu aos clientes, fez correspondência eme elegeu (Depoimento do ex-vereador José Edmar B. deOliveira, 2003).
A maior demanda dos eleitores era por postes de
iluminação, calçamento de ruas. Mas o eleitorado de José Edmar
era mais esclarecido, distribuído por toda a cidade, fruto do
prestígio profissional do pai médico, das suas relações.
Portanto, o voto de José Edmar não pode ser caracterizado como
de natureza ideológica, mesmo sendo disperso. Era constituído
na base do prestígio do pai como médico.
A mentalidade anterior era de se buscar um poste de luz,pois a cidade era pequena. Eu gostaria que você mandassecalçar minha rua e coisa e tal. Mas não deixava de ter,mesmo entre esses, pessoas lúcidas que viam que erapreferível um vereador que tivesse independência narepresentação a um calçamento transitório. Eu fazia partedeste eleitorado, não digo eleitorado de elite, porque nãoera elite. Era um eleitorado mais esclarecido, embora gentemodesta. Basta dizer o seguinte: eu me lembro que Fortalezaera muito pequenininha... Salvo não me engano, 470 sessõeseleitorais. Eu era votado em 420 sessões, quase 100%. Emquase todas, um voto, porque ali estava um cliente do papai,uma pessoa ligada a ele. Isto na primeira eleição. Nasegunda, multiplicou por três. Por que multiplicou? Porqueeu tive um desempenho que correspondeu ao daquele pessoalque votou comigo. Não foi porque andei arranjandocalçamento, nem poste, nem nomeação de professora, nadadisto! (Depoimento do ex-vereador José Edmar B. de Oliveira,2003).
Na primeira eleição, em 1958, José Edmar obteve 798
votos. Na seguinte, 2.800 votos. Este êxito eleitoral,26 em
26 “Na Câmara de 1958, eu comecei a apresentar um requerimentozinho aquioutro acolá, um nome de rua... Essas coisinhas que fui fazendo e ganheiexperiência. Quando chegou em 1962, eu tinha, na eleição de 1958, apenas798 votos. Quando foi em 1962 já obtive 2.800 votos. Fiz com que aexpectativa fosse correspondida. Quem recebe 700 e depois recebe mais detrês vezes, era sinal de reconhecimento” (Depoimento do ex-vereador JoséEdmar B. de Oliveira, 2003).
126
1962, ele atribui ao fato de ter correspondido às expectativas
do seu eleitorado, que era mais esclarecido. Portanto, sua
votação expressiva era sinal de reconhecimento por seu
trabalho na Câmara e não por troca de favores.
Eu tinha não um eleitorado de elite, mas um eleitorado maisesclarecido que achava que um poste de iluminação ou ocalçamento de uma rua não era a coisa mais importante.Porque por uma obra deste tipo, o vereador se comprometiacom os projetos do prefeito (Depoimento do ex-vereador JoséEdmar B. de Oliveira, 2003).
A formação de uma base eleitoral fixa tornava o
vereador refém do seu eleitorado, porque ele devia
constantemente estar beneficiando sua área de atuação. Os
benefícios demandados geralmente eram obras públicas
construídas por decisão do executivo. Para sua área de atuação
receber o benefício, o vereador devia se curvar aos interesses
do prefeito e perder sua independência,
A maioria dos vereadores da época de José Edmar
mantinha uma clientela e se submetia a este sistema de
dependência. Ao constituir uma base eleitoral definida e
reconhecida como tal, acabava comprometendo completamente sua
independência no legislativo. O vereador passava a agir não
mais como um agente representativo dos interesses de toda a
sociedade, mas unicamente dos seus eleitores.
As trocas mais freqüentes entre os vereadores e o
prefeito eram obras nos bairros, principalmente calçamento. No
início da década de 1960, os bens mais trocados por voto eram
postes de iluminação pública e contratos de emprego. Este tipo
de negociações entre prefeito e vereadores levava “a qualidade
127
da representação lá pra baixo. Porque ficava absolutamente
negociado, manietado. Ou vota nos projetos ou não nomeio sua
professora. Isto era comum”, afirma José Edmar.
Arranje quatrocentos metros de calçamento para tal rua,outros tantos metros para outro. E ficava preso aquelepessoal, botava dentista para aquele pessoal. Botava estascoisas bestas assim. E fugia da independência do parlamento.Quando o prefeito mandava sua mensagem, eles tinham quevotar do jeito que estava senão o calçamento não saía(Depoimento do ex-vereador José Edmar B. de Oliveira, 2003).
A política, a eleição é uma loteria, um jogo, uma
oportunidade. Esta é a imagem que melhor sintetiza o
entendimento de José Edmar Barros de Oliveira sobre a
política. “Uma eleição é uma loteria. Quando o candidato
perde, se sente extremamente desmotivado a tentar uma nova
eleição”. Apesar de contar com regras definidas, existe uma
grande margem de manobra que permite os atores se movimentarem
livremente, o que acaba provocando sempre resultados
inesperados para os demais jogadores.27
No início do seu primeiro mandato na Câmara em 1958,
José Edmar se comportava apresentando “um requerimentozinho
aqui outro acolá, um nome de rua”, e com isto foi ganhando
experiência.
O primeiro momento na Câmara foi de observação,estabelecendo bom relacionamento com os pares. Enfim,vivenciando o que seria a Câmara porque eu não sabia nem doque se tratava. Sabia apenas que era uma casa derepresentação popular. Mas quais eram suas tarefas, as
27 Uma eleição é uma situação típica de um sistema de interação interdependente emque os atores sociais, mesmo sendo atores racionais e desenvolvendoestratégias para alcançar seus objetivos, não têm assegurado o resultadoesperado porque é uma ação cujo resultado depende do desempenho dos outrosatores envolvidos no sistema.
128
comissões técnicas, estas coisas nada eu sabia. No primeiroano eu fui eleito para a Comissão de Urbanismo, era umaComissão muito apagada, quase inexpressiva. O vereadorconsiderado de maior experiência era José Barros de Alencar.Havia vereadores que eram bons de tribuna. Entre eles DorianSampaio, Agamenon Leitão, Raimundo Vasconcelos (Depoimentodo ex-vereador José Edmar B. de Oliveira, 2003).
José Edmar foi eleito pelo Partido Libertador, o mesmo
do prefeito coronel Cordeiro Neto,28 mas logo acabou rompendo
com o poder executivo, por discordar da não renovação dos
contratos de 400 ou 500 professoras primárias. O prefeito
estava criando a Guarda Municipal e só tinha recursos para
recontratar umas 200 professoras. José Edmar cria uma
indisposição com o prefeito, ao fazer seu primeiro discurso
oposicionista, que tem certa repercussão. “Como um sujeito
troca educação por botas”.
A trajetória dos partidos deve ser sempre analisada, a
cada momento, em função das decisões individuais. Em 1958,
Edmar Barros foi eleito pelo PL, mas logo em seguida o
prefeito que havia sido eleito pela legenda abandona o
partido, e este vai se esvaziando. Na eleição de 1962, José
Edmar mudou para o PR dos Moreira da Rocha.
28 O líder do prefeito na época era o vereador Antoni Costa.
129
2.6 Tempo de Fixar as Bases
Fizemos uma reunião de família e eles aceitarama gente explorar o povo que morava nos terrenosdos Carvalhos. Vovô fez uma cartinha para osmoradores. Aí eu montava no cavalo e a gentesaía de porta em porta, não existia rua, eraumas veredinhas. As reuniões da gente eram comuma lamparina na cabeça (Ex-vereadora IvoneMelo).A decisão de ser candidato foi minha, masrecebia estímulos dos grupos organizados dosestudantes aos quais eu era vinculado (Ex-vereador Manuel Arruda).
A eleição de 1962 ocorreu em um contexto histórico,
político e econômico bastante conturbado. Jânio Quadro, eleito
pela coligação UDN-PL-PTN-PDC, em 1960, renuncia em 25 de
agosto de 1962. Depois de muitos impasses, assume a
Presidência da República em 7 de setembro de 1962, no regime
parlamentarista, o vice João Goulart, eleito pelo PTB,
político identificado com a esquerda trabalhista. O primeiro
ministro era Tancredo Neves, deputado do PSD mineiro. De
acordo com o plebiscito, foi aprovada a volta ao
presidencialismo.
Neste governo populista, os movimentos sociais no campo
(ligas camponesas) e na cidade (movimento sindical,
estudantil, etc.) eclodem e crescem as reivindicações e lutas
por reformas sociais. Ampliam-se os conflitos entre patrões e
empregados, e as greves gerais são deflagradas, gerando um
regime de instabilidade política.
130
Apesar do incipiente processo de industrialização do
Ceará, Fortaleza é um pólo de atração das populações
migrantes. Esse crescimento aumentou a defasagem entre o
tamanho da população, a oferta de emprego e as condições de
infra-estrutura e serviços urbanos. Nas periferias alojam-se
estes migrantes, que se mobilizam e pressionam o poder público
por trabalho, moradia e serviços públicos. Nas décadas de 1950
e 1960, na vizinhança do Centro, surgiram as favelas da
Estrada de Ferro, Pirambu, Morro do Ouro, Poço da Draga e
Cinza. Agravam-se os problemas sociais.
A população de Fortaleza passou de 270.169, em 1950,
para 514.813 habitantes em 1960, um incremento populacional de
244.649 habitantes, ou seja, um crescimento intercensitário de
90,5%. O crescimento migratório foi de 158.629 habitantes,
quase o dobro do crescimento vegetativo - 86.020 habitantes
(PLANDIRF, 1972).
Neste contexto, foram realizadas as eleições para as
esferas estadual e municipais de 1962, tendo sido eleitos por
voto direto o governador Virgílio Távora e o prefeito Murilo
Borges Moreira.
Na capital, enfrentam-se as forças progressistas e
conservadoras. O bloco de esquerda tinha dois candidatos: o
presidente do Sindicato dos Bancários, Moura Beleza (PST), e o
irmão do ex-prefeito e deputado estadual, Péricles Moreira da
Rocha, PR e PRP. O grupo conservador tinha também dois
candidatos, o general Murilo Borges, eleito prefeito pelo PL,
mas oficiosamente apoiado pela UDN, PSD e PTN, e o ex-vereador
José Cláudio de Oliveira, pelo PSP e PRP.
131
Os partidos ficaram assim representados na Câmara
Municipal: o PTB elegeu cinco vereadores (Mário Nunes, José
Barros de Alencar, Ademar Arruda, Gutenberg Braun e José
Araújo Pontes); o PR, cinco (Evaldo Ximenes, René Dreyffus,
José Edmar Barros de Oliveira, José Maria Marques e José
Aluísio Correia); o PSP, quatro (Lauro Rodrigues, José
Carvalho Melo, Walter Cavalcante Sá e Edwar Arruda); o PSD,
quatro (Walter Cabral, Sebastião Praciano, Maria Mirtes Campos
e Pedro Pierre Lima); o PRT, três (José Ribamar Vasconcelos,
José Batista Barbosa e José Lima Monteiro); o PTN, três
(Mardônio Botelho, Edwar Pires e Roberto Carvalho Rocha); o
PST, três (Luciano Barreira, Sandoval Bastos e Tarcisio
Leitão); a UDN, dois (José Batista de Oliveira e José Martins
Timbó); o PDC, dois (Manuel Aguiar de Arruda e Edmilson
Bindá); o PSB, um (Arlindo Sá) e o PRP, um (Antônio Fernando
Bezerra).
Na Câmara Municipal, houve uma elevação de 24 para 36
vagas. A ampliação de doze cadeiras no legislativo municipal é
significativa, pois expressa, já na época, o grau de
acirramento das disputas políticas.
Do ponto de vista da caracterização do legislativo
municipal, havia a formação de uma bancada com mais
experiência, no total de quinze vereadores que estavam pelo
menos no segundo mandato. A taxa de renovação desta eleição
foi de 57,14%, contra 41% que foram reeleitos, o que
possibilitou significativa estabilidade política. Existia um
grupo constituído por nove vereadores. Estes, desde o final
dos anos 1950, asseguravam a renovação do mandato: Ademar
132
Arruda, Evaldo Ximenes, Aluísio Correia, Araújo de Pontes,
José Barros de Alencar, José Batista de Oliveira, José Batista
Barbosa, Ribamar Vasconcelos e Walter Cavalcante Sá.
Esse núcleo era constituído pelos vereadores com forte
atuação nos bairros, os quais praticavam uma política de
assistência ao eleitorado, mas mantinham a renovação do seu
mandato sempre usando do mecanismo de alistamento eleitoral.
Quase todos os vereadores com base em bairro adotam este
mecanismo de alistar os novos eleitores. Alguns, porém, se
especializaram neste instrumento como modo de assegurar um
eleitorado cativo do primeiro voto. Deste grupo dos mais
experientes e com bases fincadas em comunidades de bairro, é
preciso excluir Aluísio Correia e Ribamar Vasconcelos. Aluísio
Correia não tinha uma votação centrada em assistencialismo.
Segundo depoimentos de antigos colegas, sua votação procedia
de ligações familiares, típico de classe média, enquanto
Ribamar Vasconcelos, como já referimos, tinha sua base
eleitoral centrada na natureza da sua atividade profissional
como professor.
Depois da quinta eleição municipal sucessiva, já se
pode afirmar que o acesso e seleção ao legislativo municipal
se fazia de forma gradual. Ou seja, raramente um candidato
ganhava um pleito eleitoral na sua primeira tentativa. Dos
vereadores, 36% aparecem como tendo seu primeiro mandato, mas
muitos dos que aparecem como novatos na verdade já foram
candidatos em outras eleições. Dois exemplos sobressaem:
Manuel Arruda e José de Carvalho Melo, candidatos na eleição
133
anterior, ficando na suplência, sem oportunidade de assumir a
função de vereador.
Até este momento, o acesso ao legislativo municipal
passava por uma campanha satisfatória, boa votação que
assegura uma suplência, podendo ou não ser convocado, e na
eleição seguinte ocorria a conquista da cadeira. A vitória não
assegurava a consolidação da base política eleitoral, pois
muitos são os exemplos de vereadores que depois da primeira
vitória voltam à condição de candidatos potenciais. Destacam-
se em cada eleição como candidatos com grande votação, mas
insuficiente para garantir a cadeira no parlamento. Há o caso
do vereador Gutenberg Braun, que depois de conquistar uma
cadeira na Câmara em 1948 permaneceu ao longo de vários
pleitos, alternando a vitória com a suplência. Este é um
padrão de comportamento eleitoral relativamente comum. Outros
conquistam uma única vez uma cadeira no legislativo e depois
não conseguem se reeleger. Disputam todas as eleições
seguintes, mas sua votação vai sempre decaindo.
Nesta legislatura, chama a atenção o fato de haver um
expressivo número de vereadores de partidos com posições
ideológicas de esquerda. Isto se explica pela natureza da
campanha política de 1962, na qual as forças de esquerda
estavam divididas entre os candidatos Péricles Moreira da
Rocha e Moura Beleza. Menciona-se, também, o contexto nacional
de crescente acirramento ideológico por causa das posições de
João Goulart.
O golpe militar de 1964, instalando um regime político
ditatorial, altera as relações políticas no país, com reflexos
134
em todos os níveis de governo. Uma resolução aprovada em 7 de
abril de 1964 levou à cassação dos mandatos dos vereadores
Tarcísio Leitão (PST), Manuel Arruda (PDC) e Luciano Barreira
(PSB). Em decorrência dessas cassações e de outras, muitos
suplentes assumiram cadeiras na CMF, inclusive vereadores não
reeleitos.
Para situar o modo como ocorreu a eleição de 1962,
sirvo-me das informações de três vereadores desta legislatura:
José Carvalho de Melo, de base territorial, que deixa
herdeiros na CMF; Manuel Arruda, professor de ensino médio, um
vereador ideológico, com base no movimento estudantil, e
Sandoval Bastos, um prenúncio de vereador institucional. Ao
ressaltar a trajetória destes três vereadores, não os estou
tomando como representativos do universo da política na época,
mas chamando a atenção para a diversidade de práticas
existentes.
A família Melo e o controle de uma nova área da cidade
Eleito pelo PSP, o vereador José Carvalho de Melo29
nasceu em Fortaleza de uma família rica. Era neto do coronel
Carvalho, grande proprietário de terras da região da Barra do
Ceará. Candidatou-se pela primeira vez em 1958, por incentivo
do então vereador Haroldo Jorge Vieira. Acreditava que poderia
receber os votos dos moradores do seu avô. Com o apoio e carta
do coronel Carvalho solicitando voto para o neto, José
Carvalho e a esposa Ivone Melo visitavam os moradores a
29 Ivone Melo, esposa do vereador José de Carvalho Melo, diz que a escolhado PSP foi porque o líder deste partido no Ceará, Olavo Oliveira, eraadvogado do coronel Carvalho.
135
cavalo, pois não havia estrada (Depoimento da ex-vereadora
Ivone Melo, 2003).
A família Carvalho possuía em Fortaleza uma légua
quadrada de terra.
Ali da Dr. Theberge (era rua do Travessão)... Da Dr.Theberge até o rio na Barra do Ceará; e das Goiabeiras até aSargento Hermínio. Tudo era da família Carvalho, do avô domeu marido. Estes terrenos todinhos... Essa gleba deterra... era uma gleba quadrada de terra... O vovô, ocoronel Carvalho era um homem muito bom de coração. O JorgeVieira incentiva: “Por que você não se candidata a vereador?Você pega este povo todinho que o coronel Carvalho deuterra. Visita todos e pede pra votar em você!!”. Aí aquelacoisa ficou na cabeça do Zeba. Aí nós perguntamos ao vovôCarvalho se ele consentia. Ele disse que era uma boa(Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).
O eleitorado do candidato José Carvalho de Melo
constituía-se unicamente dos moradores das terras do seu avô e
mais os familiares da família Carvalho. Este contingente
eleitoral não foi suficiente para elegê-lo em 1958 entretanto,
ficou na primeira suplência e chamou a atenção dos políticos
locais, pois havia conseguido uma votação expressiva sem
nenhum apoio.
Em 58, a campanha foi feita somente por mim e ele e oseleitores eram os moradores e as famílias. A minha família,meus tios, minhas tias, os tios dele, as esposas, osesposos, só família já foi nosso alicerce (Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).
Depois da primeira tentativa eleitoral em 1958, é
incentivado pelos amigos a permanecer na política e se
preparar para as próximas eleições. O casal assim faz,
contando não apenas com os votos dos moradores do coronel
Carvalho, mas do bairro Padre Andrade, região mais habitada,
136
para onde haviam mudado dois anos antes da campanha política
de 1962.
Em 1962, nós já tivemos o apoio dos grandes. Naquela épocaera a União pelo Ceará. Então aí nós já tivemos a proteçãodo Parsifal Barroso, que era o governador, que era PSD. AUnião pelo Ceará uniu UDN e PSD. Aí, botaram o Virgílio(Távora) governador e Murilo, prefeito (Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).
A base eleitoral em 1962 foi constituída dos moradores
do coronel Carvalho mais o eleitorado do bairro.
A minha casa era aberta pra todos. Eles começaram a nosvisitar e foram surgindo os pedidos. Nas reuniões, não eracomício, eram reuniões fechadas. Então nós marcávamos areunião com o Murilo (Borges) e algumas com Virgílio Távora.As reuniões juntavam em torno de vinte a trinta pessoas. Nósconvidávamos os líderes, as pessoas que nos acompanhavam nasreuniões e que sabiam falar (Depoimento da ex-vereadoraIvone Melo, 2003).
O trabalho eleitoral de 1962 começou bem antes, pois
logo que chegaram ao bairro, alugaram uma casa e montaram uma
escolinha. Esta escola é a primeira “obra social” da futura
vereadora Ivone Melo. Implantada a escola, Ivone Melo assegura
que de imediato conseguiu salas de aula e professores pagos
pelo governo do Estado do Ceará. O contato político com
Virgílio Távora foi extremamente proveitoso, pois ainda na
campanha de 1962 houve a promessa de construção de um chafariz
para o bairro. O chafariz foi construído, sendo esta a
primeira obra inaugurada quando José Carvalho já era vereador.
Os outros benefícios vieram em seguida: iluminação pública,
calçamento e construção de uma escola.
A iluminação foi até o fim da linha do Padre Andrade, porqueantes só tinha iluminação até onde eu morava. Quandoatravessava o trilho de ferro era tudo escuro. A iluminaçãochega ao fim da linha de ônibus do Padre Andrade e foi
137
construída uma escola de 1º Grau, lá pra dentro, nas areias.Algumas pessoas acharam ruim, porque ao invés de teremconstruído a escola ali no Padre Andrade, não, foramconstruir lá dentro. O meu trabalho era pra o povo não ficarcom raiva: “Minha gente, essa escola indo lá pra dentro vailevar calçamento, vai levar telefone e vai levar luz”. Essasforam as promessas que eles fizeram e cumpriram todas(Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).
Como afirma Ivone Melo, mesmo na época quando seu
esposo era vereador, o povo procurava mais ela do que ele.
Porque geralmente quem fazia o trabalho comunitário era eu,de assistência era eu. Ele ia pras repartições arrancar oque o governo tinha prometido e eu em casa fazia aquelaassistência todinha. Eu dava leite, dava remédio. Eu tinhadois lactados. Eu tinha farmácia que fornecia remédios. Eutinha clube de mãe pra dar de tudo. (já na administração emque ele era.) O povo começava a conversar todo tempo comigo.Nem fazia questão de conversar com ele (Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).
Já na campanha para prefeito, Murilo Borges havia
prometido o cargo de superintendente da Fundação Social de
Fortaleza para um vereador, de modo que fosse convocado seu
suplente. Edwar Arruda assume por pouco tempo, e é substituído
por José Carvalho de Melo. A esposa Ivone Melo assumiu o papel
de secretária do superintendente
Entre outros encargos, a Fundação era responsável pela
compra e instalação de televisores nos bairros. No local onde
houvesse um chafariz, poderia ser instalada uma televisão
pública. E assim foi feito em vários bairros, de acordo com a
solicitação do vereador. O prefeito encaminhava a solicitação
para a fundação providenciar. Graças ao trabalho na Fundação,
Ivone Melo se elegeu vereadora para a legislatura seguinte,
1966.
138
Manuel Aguiar de Arruda: vereador de base ideológica
Manuel Aguiar de Arruda nasceu em Massapê em 24 de
novembro de 1931. Morou em várias cidades do interior, onde
fez seus estudos, e veio em 1943 para Fortaleza. Em 1947 foi
aprovado no exame de admissão ao Liceu do Ceará. Em 1960
concluiu o curso de Direito na UFC. Em seguida fez cursos de
Geografia e Filosofia. Militante do movimento estudantil desde
a época do Liceu, chegou a dirigir o Centro Estudantil
Cearense e a presidir a União Estadual dos Estudantes.
Sobre o início da sua vida política, afirma:
Em 1954 eu apoiei e trabalhei para um colega de movimentoestudantil João Amadeu Vasconcelos, cujo slogan era:estrague seu voto, votando em João Amadeu Vasconcelos.Porque a política estava tão desmoralizada com promessas epara chamar a atenção. Ele foi candidato pelo PSB. Tevemaior votação, mas não se elegeu porque não atingiucoeficiente eleitoral partidário. Em 1958 pensei em sercandidato a vereador. Eu tinha um irmão que era do PSP.30 Fuicandidato por este partido, mas não tinha nenhum vínculoideológico e programático com o partido, era apenas parausar a legenda. Fui candidato e perdi por apenas doze votos.Eu não gosto nem de falar disto porque é tão longe de tudoque eu pensava (Depoimento do ex-vereador Manuel Arruda,2003).
Manuel Arruda, diante do caso do amigo João Amadeu, que
apesar da boa votação não foi eleito, pois o partido não
atingiu o coeficiente eleitoral, resolveu se filiar ao PSP.
Para garantir sua eleição, ele precisava de uma legenda forte.
Militante e fundador da ala esquerda do Partido Democrático
Cristão, participou ativamente da campanha do líder sindical
30 Manuel Arruda é irmão do ex-deputado Francisco Vasconcelos de Arruda, umdos fundadores do Centro Estudantil Cearense em 1931. É considerado porseus contemporâneos o maior líder estudantil do Ceará.
139
Moura Beleza à prefeitura de Fortaleza e do líder nacionalista
e de esquerda Adahil Barreto para o governo do Estado.
Quando dirigente da União Estadual dos Estudantes,
Manuel Arruda já tinha o plano de ser vereador. Enquanto isto,
vários outros candidatos atuavam no segmento universitário,
como Tarcísio Leitão e Tarcísio Leite. Obteve, entretanto, uma
votação expressiva no bairro Carlito Pamplona, mas sua
principal base era o segmento estudantil. Eleito pelo PDC foi
cassado em 1964.
Até 1966, as eleições eram realizadas dentro de um
calendário único, quando se escolhiam simultaneamente os
representantes do legislativo e do executivo nas esferas
municipais, estaduais e federais. Esta situação inibia
enormemente os políticos a concorrer a cargos majoritários ou
em outra esfera do governo. Muitos não se arriscavam a lançar-
se candidato em outra esfera eleitoral. Alguns que ousavam
conseguiam fazer carreira política em outras esferas e outros
acabavam prejudicando sua trajetória e não conseguiam mais
retomar o mandato de vereador. Portanto, a regra de eleições
coincidentes inibia a participação de vereadores em pleitos
estaduais.
A última eleição conjunta foi a de 1970, quando se
elegeram de forma direta vereadores, deputados estaduais,
deputados federais e senadores. Neste momento, o Presidente da
República e os governadores dos Estados eram eleitos de forma
indireta enquanto os prefeitos das capitais eram nomeados. O
desmembramento das eleições municipais das estaduais e
federais, em 1972, permitiu aos políticos com mandatos
140
municipais se candidatar a outros cargos eletivos. Vereadores
que antes não se arriscavam a uma candidatura estadual passam
a pleitear com mais freqüência sua ida para a Assembléia
Legislativa. De modo geral, os vereadores, antes de serem
eleitos, passaram pela experiência de suplente. As derrotas os
levam a pensar em abandonar a vida política, mas acabam
permanecendo e mudando a estratégia partidária ou de campanha
e se elegendo.
Sandoval Bastos, o prenúncio de vereador institucional
Manuel Sandoval Fernandes Bastos nasceu em Saboeiro, em
1932. Concluiu o curso básico e técnico de comércio. Filho de
família de pequeno agricultor, trabalhou como frentista de um
posto de gasolina nas vizinhanças da Cidade da Criança, em
Fortaleza. Posteriormente, tornou-se corretor na rua dos
comerciantes atacadistas (rua Governador Sampaio). Ali
conheceu Moisés Pimentel, de quem se tornou amigo e
correligionário político. Amparado pelo prestígio político do
líder do PTB, elegeu-se vereador em 1962.
Em 1966, não concorre às eleições. É nomeado diretor da
Iluminação Pública e depois secretário municipal de Serviços
Urbanos na gestão José Walter Cavalcante. Em decorrência desta
atividade, cria bases eleitorais em alguns bairros da cidade,
principalmente no Conjunto José Walter. Retorna ao legislativo
na eleição de 1970.
Entretanto, na eleição de 1972, considerada por muitos
como a mais difícil, sofre um revés eleitoral, e perde a
eleição por apenas um voto. Com a convocação do vereador
141
Antônio Azin para a Secretaria de Administração do Município,
assume a cadeira de vereador. Em 1974, assume o mandato de
modo definitivo com a eleição do vereador Antônio Costa Filho
para deputado estadual. Em 1976, é reeleito com boa colocação
na chapa da Arena.
Depois de assumir a presidência da Câmara Municipal, em
1978, candidatou-se a deputado estadual, mas não foi eleito.
Segundo consta no Anuário do Ceará de 1979-80, ele assumiu
suas funções na Assembléia Legislativa. O certo é que depois
de 1978 não volta à Câmara Municipal. Em 1982, candidatou-se a
deputado estadual, tendo a inexpressiva votação de 7.712
votos.
A eleição de 1982 foi decisiva para muitos vereadores
porque coincide com a eleição estadual.31 Não havia como
arriscar uma candidatura a deputado sem expor o mandato já
conquistado e quase certo de ser reeleito. Sandoval Bastos
toma a decisão de concorrer à Assembléia Legislativa depois de
ter sido presidente da Câmara Municipal. A ocupação deste
cargo pode ser fator importante para a tomada de decisão em
prosseguir a carreira política.
Ao candidatar-se a deputado estadual, Sandoval Bastos
compromete sua carreira política. Político com atuação
restrita na esfera do governo municipal, imaginou, depois de
presidir a Câmara, uma candidatura a cargo mais elevado. Perde
a eleição no momento em que a renovação da Câmara Municipal
31 Com a mudança da legislação, o mandato de vereador é ampliado de quatropara seis anos, com o objetivo de que os pleitos municipais não coincidamcom os pleitos estaduais e federais. Portanto, só haverá outra eleição paraa Câmara Municipal em 1988.
142
coincide com a da Assembléia Estadual e tem de amargar seis
anos sem eleição, pois a seguinte somente ocorrerá em 1988.
Era tempo demais para ficar sem um mandato parlamentar. Ele
não tinha liderança suficiente para resistir tanto tempo fora
da esfera do poder.
O ano de 1988 é emblemático na renovação dos
vereadores. Existe uma grande visibilidade da atividade do
legislativo, e isto faz com que nesta eleição haja uma taxa de
renovação de mais de 50%. É a maior renovação de mandatos da
história política de Fortaleza. Vereadores com forte base
eleitoral, que estavam na Câmara desde os anos 1960, como
Ademar Arruda e Herval Sampaio, perdem as eleições.
Sandoval Bastos não mantinha uma base eleitoral fixa em
bairro, tendo votação espalhada na cidade. Entretanto, em
decorrência da sua atuação na condição de dirigente de órgãos
municipais, mantinha vínculos eleitorais com comunidades de
bairro, destacando-se um pequeno reduto no Conjunto José
Walter.
2.7 O Golpe Militar e o Bipartidarismo
Todo dia tinha alguém pedindo algo na minhaporta. A comunidade pedia tudo: do enterro aocasamento (Ex-vereador José Sidou).Tinha um empreiteiro que fazia os calçamentossó pra mim... Tudo vinha através da ligação como Virgílio Távora, da figura maior (Ex-vereadora Ivone Melo).
143
As eleições de 1966 ocorrem após o golpe militar de
1964, momento de desestruturação das forças políticas,
instalando-se um regime de exceção, com extinção dos partidos
e muitos conflitos sociais que culminaram com o AI 5.
A sexta legislatura acontece em outro contexto
político. O Ato Institucional 2, editado em 1965, extingue os
partidos e decreta eleições indiretas para o executivo
federal, estadual e municipal das capitais. Extintos os
partidos existentes, foi criado o bipartidarismo. Dois
partidos são instituídos: a Aliança Renovadora Nacional,
partido da situação, e o Movimento Democrático Brasileiro,
partido da oposição.
Os prefeitos das capitais e de áreas consideradas de
segurança nacional são nomeados pelo governo federal. Para o
legislativo federal, estadual e municipal e para prefeitos de
cidades do interior do país há eleições. Plácido Castelo e
Humberto Ellery são nomeados para governador e vice-
governador, respectivamente, e José Walter Cavalcanti, para
prefeito de Fortaleza.
Nova situação é vivenciada na Câmara Municipal de
Fortaleza, pois enquanto os vereadores são eleitos diretamente
pela população da cidade, o chefe do executivo é nomeado pelo
governador.
Nesta eleição, houve a renovação de 52,77% do
parlamento municipal. A Arena obtém dezenove cadeiras e o MDB
dezessete. Por ordem de votação, são eleitos pela Arena: René
de Dreyffus, José Barros de Alencar, Luís Ângelo, José Lima
144
Monteiro, Gerôncio Bezerra, Maria Mirtes Campos, Walter
Cavalcante Sá, José Ribamar Vasconcelos, José Batista Barbosa,
Haroldo Jorge Vieira, Raimundo Linhares, Jeremias Lobo,
Roberto Carvalho Rocha, Joaquim Pinheiro Almeida, Ivone Melo,
Ubiratan Aguiar, José de Lima Castro, Luís Aragão Carvalho e
Agostinho Moreira. O MDB elegeu: Djalma Eufrásio, José Edmar
de Barros de Oliveira, Ademar Arruda, Herval Sampaio, José
Araújo de Pontes, Eurico Matias, Fausto Arruda, Raimundo
Brandão, José Flávio Teixeira, Pedro Pierre Lima, Everado
Sobreira, Walter Cabral, Seridião Montenegro, José Sidou,
Pedro Nunes, Antônio Morais e José Araújo de Castro.
Do ponto de vista da Câmara, estava formada uma bancada
de dezesseis vereadores que detinham vários mandatos
sucessivos. Destes, doze tinham mais de três mandatos, isto é,
todos com mais de dez anos servindo de forma ininterrupta como
vereador de Fortaleza. Estes políticos experientes preferiam
recandidatar-se ao parlamento municipal a se arriscar a
concorrer em outra esfera legislativa. Apenas três vereadores
com longa experiência na CMF se lançaram na disputa estadual e
se elegeram: José Batista de Oliveira, José Martins e Mário
Nunes. Curiosamente os três tinham forte base eleitoral em
bairro. Alguns vereadores com mais de três mandatos
consecutivos não concorreram ou não se reelegeram.
Além das bases eleitorais construídas a partir do
trabalho de assistência à comunidade (base territorial) e do
alistamento eleitoral, existiam outras formas de acesso à
representação no legislativo já presentes em outras
legislaturas. Alguns candidatos expressavam um movimento
145
social. Raramente um candidato vencia na sua primeira eleição,
e quando isto ocorria, sua vitória era muitas vezes o
coroamento da participação em algum tipo de movimento
coletivo.
Outro caminho de acesso ao legislativo era mediante
prestígio profissional ou familiar e favores realizados aos
eleitores pelo gestor de órgãos públicos. Dois membros da
gestão Murilo Borges - Gerôncio Bezerra e Luís Ângelo, eleitos
em primeira candidatura pela Arena, podem ser considerados
como representantes deste segmento da gestão pública.
Alguns candidatos herdam a base eleitoral construída
pela família. Neste pleito, dois foram eleitos sucedendo
familiares que ocupavam a cadeira de vereador na legislatura
passada: Ivone Melo e Pedro Nunes.
Além destes, destacam-se cinco dos vereadores eleitos,
que já haviam participado de pleitos anteriores, como
suplentes, mas assumindo em alguns momentos o mandato; e a
ampliação da representação feminina, pois pela primeira vez a
CMF contou com duas mulheres: Mirtes Campos e Ivone Melo,
ambas da Arena.
Nesta legislatura, foram selecionados quatro vereadores
pela importância deles no legislativo municipal e o tipo de
base eleitoral: Herval Sampaio, com votação na corporação dos
comerciários; Ivone Melo, vereadora de bairro, mulher e
herdeira da base eleitoral do marido, com longa trajetória
política; Gerôncio Bezerra, que deixará os filhos José Maria
Couto e Hélder Couto no parlamento municipal até a última
146
legislatura de 2004-2007; e o enfermeiro Joaquim Pinheiro de
Almeida, um dos primeiros a trocar votos por serviços de
saúde/ambulatorial. Estes vereadores têm perfis distintos, mas
algo em comum: a liderança construída na base da troca de
favores e de serviços prestados ao eleitorado.
Herval Sampaio e os comerciários
José Herval Sampaio nasceu em Baturité, em 1936.
Técnico em Contabilidade, entrou para a política em 1962,
sendo reconduzido sucessivamente. Deixou a Câmara Municipal no
final dos anos 1980, quando perde as eleições de 1988, ficando
na décima quarta suplência.
Durante muitos anos, sua trajetória política foi
atrelada à de Mauro Benevides. Em 1954, quando se elegeu
vereador de Fortaleza, Mauro Benevides era secretário do SESC,
uma grande e importante escola de comércio. Herval, aluno do
SESC, trabalhou pela eleição de Mauro a vereador e
posteriormente para deputado estadual, em 1958; e depois
torna-se o secretário político de Mauro. Em 1962, pretende-se
candidatar a vereador, mas o deputado apóia Mirtes Campos.
Finalmente, em 1966, Herval Sampaio é eleito pelo MDB.
Esta experiência como secretário de um político
contribui muito para a organização da sua base eleitoral.
Na realidade desde que eu fui incentivado a entrar na vidapública, já comecei a me organizar. Toda pessoa que eu tinhacontato, pedia logo os dados, o nome da pessoa, a data denascimento e o endereço. Ia anotando num caderno e depoispassava para umas fichas... Usava sempre estas fichas emtrês períodos, por ocasião da páscoa, do aniversário e doNatal, independente de idade. Até pessoas de 5 anos(Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).
147
Na sua primeira campanha política como candidato a
vereador, Herval Sampaio não teve muitas despesas, pois contou
com o apoio de Mauro Benevides e seu escritório. Construiu sua
base eleitoral junto aos comerciários associados ao SESC e
SENAC e aos trabalhadores do Mercado São Sebastião.
A campanha foi diferente das outras porque, como simplesfuncionário do SENAC, enfrentei a campanha contando com osvotos dos alunos do SENAC, com os votos dos comerciários[...] E com os votos do Sindicato dos Fruteiros eVerdureiros e dos bairros onde eu dava assistência.Assistência essa que por questão de justiça eu não possonegar, eu dava através do deputado Mauro Benevides, pois eujá trabalhava como secretário dele. Qualquer pessoa prafalar com ele naquele tempo, deputado estadual, tinha quepassar por mim. Através dele eu fiz muito favor à população.Então foi uma eleição bonita, brilhante, sem gastos porquealém de não ter, não havia necessidades (Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).
Eleito, imediatamente Herval Sampaio trata de organizar
uma rede de assistência ao seu eleitorado criando pontos de
apoio.
Eu dava assistência na minha casa. Eu atendia no SENAC, nãosó aqueles que iam atrás de vaga pra estudar, mas tambémaqueles que iam atrás de algum benefício, bolsa de estudo.Atendia no escritório do então deputado Mauro Benevides epassei a atender também na Câmara Municipal. Mas eu mereservava o direito de atender em casa, já que eu morava emfrente ao mercado, somente o pessoal da Praça São Sebastião(Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).
Depois de dois anos, com o crescimento do número de
eleitores, o espaço modesto foi se transformando numa grande
estrutura de atendimento a seu eleitorado. Escritórios foram
instalados em pontos estratégicos para fortalecer sua base
eleitoral, mantendo o atendimento em casa reservado apenas aos
fruteiros e verdureiros do Mercado São Sebastião.
148
Foi necessário instalar um escritório na travessa Itapajé 53(altos) para atender de uma maneira geral. O meu volume deeleitores foi crescendo. Então eu fui obrigado a fazertambém um outro escritório, no Otávio Bonfim, na rua AntônioPompeu, 1705. E alugar um prédio no Centro, já pra atenderos comerciários na rua Perboyre e Silva, 111, sala 702(Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).
Outro instrumento utilizado para manter a fidelidade do
eleitor foi a ampliação da assistência com a compra de um
consultório dentário instalado em seu escritório na travessa
Itapajé.
A fidelidade eleitoral se mantinha por meio do atendimentodo pedido. Eu cheguei a comprar um consultório dentáriozerado e instalei onde era meu primeiro escritório, travessaItapajé, 53 (altos). Entreguei o consultório a um dentistapra que ele trabalhasse um expediente pra mim e dois praele. Pra aumentar a assistência... Então a assistência queeu dava no Otávio Bonfim era colocar os alunos pra estudarno SENAC, no SESC, fruteiros, verdureiros e talhadores decarne e por último essa assistência dentária. Era assim queeu me mantinha no Otávio Bonfim (Depoimento do ex-vereadorHerval Sampaio).
Atuando numa área da cidade com forte concorrência
eleitoral, Herval Sampaio consolida sua base eleitoral no
Otávio Bonfim mediante assistência direta de serviços,
distribuição de bolsas de estudo, uma das maiores demandas, e
uma estrutura de alistamento eleitoral.
Naquele tempo para tirar o título precisava o políticoconceder o registro civil. Depois vinha mais a exigência dacarteira de identidade, das fotografias e levar o eleitorpara o cartório eleitoral, dar a merenda e depois de tudofeito, dar entrada no título. O protocolo não ficava com ofuturo eleitor. Ele entregava ao vereador e atrás colocava:“autorizo... [a gente colocava o nome do cabo eleitoral]...a receber meu título”. Esse título só era entregue aoeleitor próximo das eleições já com uma capa e o número docandidato (Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).
149
A base política do vereador Herval Sampaio,
inicialmente, foi constituída em torno do SESC, situado na
praça do Mercado São Sebastião. Depois de eleito, o vereador
transfere sua residência do bairro de Fátima para o Otávio
Bonfim, mais próximo da sua base eleitoral. Trabalhava no
SESC em frente ao Mercado São Sebastião. Conforme ele diz:
“Meus eleitores estavam dentro do SESC e em frente, na praça”.
O vereador Herval Sampaio teve uma das carreiras mais
longas no legislativo de Fortaleza, passando 21 anos
ininterruptos como vereador. Depois de participar da mesa
diretora da Câmara na legislatura de 1983-1988, perde a
eleição na degola popular e abandona a vida pública. Sua
trajetória é exemplar na forma de fazer política, pois
consolida sua base eleitoral no setor dos comerciários e
também no bairro. Parte considerável dos seus votos advinha
das suas ligações com o deputado Mauro Benevides, patrono na
montagem de uma estrutura de assistência social ao eleitorado.
Ivone Melo, a vereadora dos calçamentos
Ivone Melo nasceu em 1927, em Jucás. Elegeu-se para a
Câmara Municipal, pela primeira vez, em 1966. Foi secretária
do presidente da Fundação do Serviço Social de Fortaleza de
1965 a 1966. Na eleição de 1970, ficou na oitava suplência. Em
1972, retorna à CMF, onde permaneceu até 1988.
Ela tem uma história de família ocupando funções no
legislativo municipal O marido, José Carvalho Melo, havia sido
vereador de Fortaleza nas legislaturas de 1963-1967 e
presidente da Fundação do Serviço Social de Fortaleza, na
150
gestão de Murilo Borges. Por conselho de amigos, Ivone Melo
sucede o marido na Câmara Municipal. Diziam que ele poderia
ter o registro cassado por irregularidades na Fundação.
Em 1976, é eleita como o sétimo vereador mais votado da
Arena. Reelege-se, com 4.821, em quinto lugar na lista do PDS,
em 1982. Em 1988 é candidata pelo PTB, ficando na quarta
suplência. Em 1992 e 1996, não consegue se eleger. Na eleição
de 2000, não mais se candidata.
Ela considera que sucedeu o marido na condição de
parlamentar do legislativo. Este, ao sair para a atividade
administrativa, perdeu a eleição em 1970. Ivone Melo teve
quatro mandatos, mas se considerar o mandato do marido, a
família ocupou cinco vezes a função de vereadora na Câmara
Municipal, num total de 24 anos.
Ivone Melo fez uma carreira política centrada no
atendimento à comunidade do Jardim Iracema. Mudou-se para o
bairro Padre Andrade com o firme propósito de realizar
trabalho político, preparando-se para a eleição de José
Carvalho em 1962.
O marido José Carvalho, como presidente da Fundação de
Assistência Social de Fortaleza, e ela, secretária, garantem
poder e prestígio em um órgão responsável pela distribuição de
bens às comunidades carentes, principalmente televisores
comunitários e máquinas de costura. “Cada eleitor contemplado
com uma máquina tinha ali o voto da família e de outros
familiares”. Assegura com muita facilidade a eleição, ao se
candidatar no lugar do esposo. Entretanto, na gestão José
151
Walter já não tem a mesma facilidade de acesso aos bens
públicos, o que prejudica a sua atuação, não conseguindo se
reeleger em 1970. Ivone Melo atribui esta derrota, em grande
parte, “ao despeito dos colegas que prejudicaram a campanha,
já quando era vereadora, porque ficaram contrariados com o uso
que fazia das verbas da Fundação”.
Vereadora com perfil típico de comunidade, atuou ao
longo dos 24 anos na mesma região do Jardim Iracema e Autran
Nunes. Suas ligações com Virgílio Távora permitem o acesso a
uma série de benefícios para a população desta área. Entre
suas atividades, segundo assegura, a pavimentação de várias
ruas do bairro foi obra do seu empenho junto à administração
municipal.
Gerôncio Bezerra, outra família na Câmara Municipal
Gerôncio Bezerra nasceu em Russas, em 1921. Tinha curso
de Técnico em Contabilidade e exercia a atividade de coletor
municipal e agente de tributos municipais. Desde 1959, se
envolvia em atividades políticas. Exerceu a função de
subprefeito do distrito de Antônio Bezerra. Em 1966, foi
eleito pela primeira vez, pela Arena. Reelegendo-se em 1970,
1972, 1974 e 1976, recebeu 10.578 sufrágios e o título de
“vereador mais votado de toda a História Política de
Fortaleza”. Em 1970 é eleito presidente da Câmara. Elege-se a
deputado estadual, em 1978. Na eleição de 1982, enquanto
Gerôncio Bezerra tenta a renovação do mandato de deputado
estadual, o filho José Maria Couto se candidata a vereador.
Embora o filho tenha sido eleito, o pai obtém inexpressiva
votação para deputado estadual, ficando numa suplência. Essa
152
experiência negativa de Gerôncio Bezerra pode ter feito José
Maria Couto nunca se candidatar a deputado estadual. Sua base
eleitoral sempre foi concentrada na área do Antônio Bezerra.
No pleito de 2004, substituindo José Maria Couto, elege-se
vereador o irmão Hélder Couto. Desde 1966, a família Bezerra
detém um acento na CMF.
A base eleitoral da família Bezerra sempre ficou
restrita ao Antônio Bezerra. No início da década de 1970 houve
uma expansão em direção ao bairro Quintino Cunha. Era uma área
também disputada pelo vereador Antônio Costa e depois por seu
filho Sérgio Costa. Entretanto, já na “gestão” José Maria
Couto, houve uma expansão da sua votação, passando a não mais
depender, para sua eleição, dos votos originados somente do
Antônio Bezerra e adjacências.
O ambulatório do vereador Joaquim Pinheiro de Almeida
Joaquim Pinheiro de Almeida nasceu em 1912, em
Quixeramobim. Fez curso de Enfermagem e mantinha um
ambulatório onde atendia seus eleitores.
Desde 1962, está na atividade política, na qualidade de
suplente de vereador, tendo assumido várias vezes. Foi eleito
vereador em 1966. Em 1970, disputou, sem êxito, uma cadeira na
Assembléia Legislativa e perdeu a chance de se eleger
vereador. Em 1972 volta a se eleger novamente vereador. Em
1976 não consegue a reeleição, mas fica na quarta suplência,
assumindo uma cadeira no legislativo municipal, em 1978, em
virtude da eleição dos vereadores Gerôncio Bezerra e João
Quariguasi para deputado estadual e do convite a Luís Ângelo
153
para secretário de governo. Em 1982, atinge apenas 2.403
votos, e fica na sétima suplência. Em 1988, candidata-se pelo
PSD, em um quadro partidário já fragmentado. Obtém 632 votos,
ficando na nona suplência. Em 7 de julho de 1996, ele morre,
com 84 anos.
Na esfera política, Pinheiro de Almeida era de poucas
letras, nunca fez discurso e encaminhava via prefeito as
demandas miúdas para sua comunidade (um telefone para uma área
determinada, em troca da promessa de votar com o prefeito).
Sua eleição era baseada em dois pilares distintos, mas de
mesma natureza, a prestação de favor: o atendimento em seu
ambulatório, e a assistência prestada às comunidades por
Chiquita do Almeida, sua esposa.
No ambulatório, o enfermeiro atendia pacientes, faziacurativos e pequenas cirurgias, além de fornecer remédios,numa época em que o “medicamento era difícil de obter”. Nacondição de enfermeiro e dono do ambulatório, fazia operaçãode fimose nos eleitores que o procuravam.
“Enquanto, um médico cobrava 45 cruzeiros por uma operaçãode fimose, ele fazia para os pobres por 5 cruzeiros, e combons resultados. Tratava os homens com doenças venéreas equalquer problema ele resolvia com umas injeções”(Depoimento de Chiquita do Almeida, esposa do ex-vereadorPinheiro de Almeida, 2003).
Pela natureza da sua atividade profissional, permanecia
boa parte do tempo no ambulatório. Era este tipo de atividade
que assegurava suas ligações eleitorais. Enquanto isto, sua
esposa era quem atendia o eleitorado.
Segundo seus contemporâneos na Câmara Municipal, a
pessoa forte na campanha política era a esposa dele Dona
Chiquita, que juntamente com uma sobrinha encarregava-se de
154
atender o eleitorado que buscava sua casa para resolver todo e
qualquer tipo de problema, como tirar o registro civil,
certidão de casamento, etc. Tanto que em 1992, quando Pinheiro
de Almeida desiste da política, Dona Chiquita é convidada por
César Neto a se candidatar, mas recusa. Embora tenha
incentivado os filhos a entrar na política, nenhum demonstrou
vocação.
Eles moravam no Centro, mas seu eleitorado estava no
José Walter e no Pirambu.
Os eleitores gostavam muito dele porque ele fazia muitacaridade às crianças e gostavam muito de mim também. Opessoal me atendia muito porque eu distribuía lata de leite,vestidos, feijão, tudo. Eu arranjava tudo. Eu ia deixar.Nunca ninguém veio aqui na minha casa. Somente no dia daeleição era que eu atendia. No tempo das eleições, euatendia os eleitores era lá fora (Depoimento de Chiquita doAlmeida, esposa do ex-vereador Pinheiro de Almeida, 2003).
Pinheiro de Almeida sai do PDS e entra no PSD, em 1982.
Esse movimento de troca partidária se deveu ao comando do
senador César Cals, chefe do seu grupo político. Tal ligação o
ajudava muito no trabalho eleitoral, pois as certidões
(casamento, nascimento, óbito, etc.) que tirava eram por conta
do numerário que recebia para pagar o cartório. “Havia um
cartório, João de Deus, onde se tinha abatimento. Nós casamos
muita gente”, afirma Dona Chiquita do Almeida.
Outra fonte de eleitores ele conseguia graças a um
modesto sistema de alistamento eleitoral.
Pra fazer qualificação eleitoral a gente tinha uma Kombi eum Jeep. Na Kombi sempre ia 30 e tantas pessoas, no Jeep 18.Todos de uma vez. Passava a noite toda na fila guardando oslugares dos eleitores que vinham no dia seguinte (Depoimentode Chiquita do Almeida, esposa do ex-vereador Pinheiro deAlmeida, 2003).
155
Pinheiro de Almeida não era o tipo do político que
mantinha uma base eleitoral na assistência constante ao
eleitorado, pois ele não atendia fora da época da campanha. O
comitê montado em sua própria casa atendia o eleitorado apenas
neste período. No resto do ano fora da campanha, dedicava-se
ao trabalho no ambulatório.
Que tipo de representação de interesse ele expressava
no mandato? Não era um vereador com votação exclusivamente
restrita e concentrada na área de residência, pois recebia
votos das pessoas que o procuravam pela natureza do seu
trabalho profissional. A estrutura eleitoral do vereador
Pinheiro de Almeida não era de base territorial. Ele era um
político de clientela sustentado pelo atendimento dispensado
aos pacientes que o procuravam.
Não se pode falar rigorosamente na representação de
interesses neste caso porque era um político que mantinha
laços de favores com as pessoas por meio da sua atividade
profissional e esperava ser reconhecido no dia da eleição,
pelo voto do seu paciente/cliente ou de quem havia recebido
algum favor.
A instabilidade eleitoral do vereador Joaquim Pinheiro
de Almeida explica-se em parte pela forte disputa com o
vereador Luís Ângelo, morador nas vizinhanças. Como ocorria
com outros vereadores com atuação em bairro, um concorrente
atuando na mesma base eleitoral poderia significar completa
inviabilidade eleitoral. No caso de Pinheiro de Almeida, isto
não ocorria porque sua sustentação eleitoral não vinha toda do
156
lugar onde morava. Aliava votos de comunidade de bairro com
votos de assistência de serviços de enfermagem (médico-
farmacêutico). Ao que tudo indica, a votação advinda dos seus
laços territoriais podia ser decisiva para sua eleição. Mesmo
assim, ele não pode ser caracterizado como vereador de
comunidade de bairro em virtude da ausência de estrutura
residencial, característica deste tipo de vereador.
2.8 Quando as Portas se Fecham
Eu chegava ao Mercado às cinco horas da manhã.Fazia a visita dando a mão a um e a outro.Perguntava se tinha algum problema,independente de eleição. Eu passava os quatroanos trabalhando pra não passar vexame naapuração (Ex-vereador Herval Sampaio).O que elege mesmo um vereador é tirar título.Eu colocaria sem medo de errar que 95% dosvereadores tinham seu mandato asseguradoatravés do alistamento eleitoral (Ex-vereadorHerval Sampaio).
A sétima legislatura é constituída no período de
endurecimento do regime militar. O número de vereadores é
reduzido drasticamente de 36 para 21. Na legislatura passada
já havia ocorrido a diminuição dos vencimentos dos vereadores,
considerada grave, principalmente para os que davam
atendimento às comunidades.
Em 1970, realizam-se eleições para o legislativo
municipal e prefeitos do interior e são nomeados os
governadores dos Estados e os prefeitos das capitais. Para o
Ceará foi indicado o governador César Cals e para Fortaleza o
157
prefeito Vicente Cavalcante Fialho, ambos da Arena, o partido
do governo federal, para o período de 1971-1975.
Fortaleza tinha 857.980 habitantes (censo do IBGE,
1970) e um Colégio Eleitoral de 229.151 eleitores. Nesta
eleição, compareceram 175.611 eleitores, abstiveram-se 53.540,
11.897 anularam o voto e 12.910 votaram em branco. A taxa de
alienação eleitoral chegou a 34%, número relativamente
elevado.
Disputaram as 21 cadeiras da Câmara Municipal de
Fortaleza 120 candidatos, ou seja, havia uma concorrência de
5,7 candidatos por vaga. A Arena elegeu treze vereadores (João
Quariguasi, Gerôncio Bezerra, Abel Pinto, René Dreyffus,
Sandoval Bastos, Antônio Costa Filho, José Lima Monteiro,
Gutemberg Braun, Pedro Pierre Lima, José Hermano Martins, José
Araújo de Pontes, José Barros de Alencar e Luís Ângelo) e o
MDB elegeu oito (Herval Sampaio, Ademar Arruda, Eurico Matias,
Pedro Nunes, José Araújo de Castro, Antônio Morais, Aluísio e
Cirenio Cordeiro).
Um grupo de veteranos reelege-se. Há uma taxa de
renovação de 38%. Mas esta taxa seria menor se se levasse em
consideração o grupo competitivo que domina a política
municipal, formada pelos eternos candidatos, por recentes
suplentes, ex-vereadores ou familiares de vereadores,
recuperando o mandato do parente próximo. Com a exclusão
destes que tinham contato direto com o sistema político
municipal, houve apenas a introdução de dois novos atores
políticos - Aluísio Fontenelle e João Quariguasy. Entretanto,
estes dois já participaram do sistema político municipal, em
158
1962, quando ficaram na suplência. Desta forma, ninguém estava
fora da elite política municipal.
A idéia de círculo de competição municipal envolve a
existência de um número pequeno de lideranças políticas com
reais chances de ocupar um cargo eletivo. Neste momento, o
círculo de competição municipal se fecha, pois a possibilidade
de inserção de novas lideranças é reduzida, em decorrência do
sistema político repressivo e da redução do número de vagas no
parlamento municipal.
A eleição de 1970 significou o fechamento completo do
sistema político municipal à entrada de um novo membro. Este
fechamento foi conseqüência da redução drástica do número de
vereadores na Câmara, favorecendo os veteranos, com máquinas
eleitorais assistencialistas nas suas bases territoriais. A
renovação que ocorrerá nas legislaturas seguintes será mínima,
privilegiando os que já estão integrados de alguma forma no
círculo político de competição municipal. Esta eleição reduz
drasticamente a representação e expele para fora do sistema
até mesmo políticos veteranos.
Neste período de repressão, não se destacam lideranças
específicas, predominando as assistencialistas e de base
territorial, a exemplo dos vereadores Abel Pinto e José
Hermano Martins, ou de João Quariguasy, o representante mais
fiel das forças da ordem.
Fortaleza, segundo o jornalista Lustosa da Costa, em
artigo de 30 de julho de 1972, reproduzia o modo clientelista
de fazer política semelhante ao existente no sertão, tanto que
159
até então nenhum político importante havia sido eleito
contando unicamente com os votos urbanos. Isto refletia a
pouca importância política da capital nos destinos da política
estadual.
À exceção de primeira legislatura de após o Estado Novo,onde o nítido dissídio ideológico levou à Câmara Municipalnomes expressivos de direita e de esquerda, sempre se arguicontra o baixo nível de nossa representação municipal. Porquê? Inicialmente, em termos globais a política fortalezenseem nada difere da mesma atividade desenvolvida no interior.Acha-se marcada pelo clientelismo, paternalismo eempreguismo. Se o deputado federal foi, durante muito tempo,um despachante de luxo do eleitor na metrópole, o vereadorfuncionou como o despachante pobre. Sobre ele, geralmentepesam e pesam encargos financeiros e de atividade quasesobre-humanos. Não se lhe requeria apenas o gasto com oalistamento de eleitor, o preparo da documentação requerida,bem como a satisfação de suas pequenas necessidades domomento. De par com a luta pela extensão de serviços urbanos(ampliação da linha de energia, iluminação pública,calçamento), ainda sobre ele incidia a obrigação dedistribuir bolsas de estudo, empregos, boxes e bancas nomercado, afora a libertação de eleitores e cabos eleitoraispreso pela Policia, como autores de pequenos delitos. Enfim,a caracterização do quadro da política clientelista,transporte para o asfalto (LUSTOSA DA COSTA, 1977, p. 45).
Abel Pinto e os dois pilares da base eleitoral: territorial e
assistência médico-odontológica
Abel Pinto nasceu em Belo Horizonte, em 8 de dezembro
de 1912. Entrou na vida política em 1958, como primeiro
suplente na legislatura de 1959-1963. Durante quase toda a
década de 1960 ocupou interinamente algumas vezes a função de
vereador, mas somente em 1970 consegue seu primeiro mandato
efetivo. Embora só tenha sido eleito em 1970, sua trajetória
de suplente o credenciou a ocupar a presidência da Câmara
Municipal, algumas vezes, assumindo interinamente a função de
160
prefeito. Em 1972 é reeleito, mas em 1976 fica na segunda
suplência, assumindo depois, com a ida de alguns integrantes
do legislativo para cargos administrativos. Em 1982 se reelege
com uma votação muito apertada. Mesmo não tendo participação
direta nos escândalos da Câmara Municipal, não se candidata na
eleição de 1988.
Sua base eleitoral tinha dois pilares: uma territorial,
na região de Parangaba, Pan-Americano e Jóquei Clube, e outra
oriunda do trabalho realizado como presidente de uma
associação que oferecia assistência médica e odontológica,
localizada na rua Assunção esquina com a Pedro Pereira. Mesmo
não sendo médico, criou um plano de saúde ou uma associação
pela qual seu eleitorado recebia assistência médica. A disputa
na sua área de atuação, Pan-Americano, bairro contíguo ao Bela
Vista, com os vereadores José Batista Oliveira e depois Maria
José de Oliveira, explica sua inconstância eleitoral. Esta
região não tinha votos suficientes para eleger dois
representantes e a base eleitoral oriunda da associação não
bastava para compensar as perdas da base territorial.
2.9 Tempo dos Incluídos
Antigamente o povo tinha muita gratidão. Eles nãodesviavam voto para ninguém. Aí foi chegando essanova geração, foi chegando a televisão. De primeiroo povo era muito agradecido com certas coisas, hojeem dia não. É obrigação! Eles dizem isto (Ex-vereadora Ivone Melo).Só há duas formas de fazer política. A obrabeneficia a comunidade, portanto pode ter maisvotos. O favor pessoal é pra você manter a votaçãodaquele cidadão e da família dele (Ex-vereador JoséSidou).
161
Um dia chegou um eleitor lá em casa e disse: “SeuAgostinho, me dê seu número que meu pai me pediu emsonho que eu votasse no senhor” (Esposa do ex-vereador Agostinho Moreira).
A eleição realizada em 15 de novembro de 1972 acontece
apenas dois anos após a última, na qual foram escolhidos
representantes para as três esferas governamentais. Esta
eleição antecipada teve a finalidade de dissociar o calendário
eleitoral municipal do estadual e federal. A oitava
legislatura tomou posse em 31 de janeiro de 1973, tendo como
prefeito nomeado de Fortaleza, em 1971, o engenheiro Vicente
Fialho. Neste período, governava o Ceará o coronel Virgílio
Távora.
O eleitorado apto a votar era de 207.084 eleitores, mas
59.118 se abstiveram. A taxa de alienação eleitoral foi de
34,56%.
Esta eleição não altera a distribuição de cadeiras
entre partidos da última legislatura. A Arena elegeu treze
vereadores (Maria José de Oliveira, João Quariguasy, Gerôncio
Bezerra, Antônio Costa Filho, José Lima Monteiro, Abel Pinto,
Antônio Azin, Gutemberg Braun, José Barros de Alencar, Luís
Ângelo, Joaquim Pinheiro de Almeida, Ivone Melo e Hermano
Martins); e o MDB elegeu oito vereadores (Pedro Nunes, Herval
Sampaio, Ademar Arruda, Bianou de Andrade, Fausto Arruda,
Mário Nunes, Aluísio Fontenelle e Djalma Eufrásio). Esta
oitava legislatura tomou posse em 31 de janeiro de 1973.
Algumas lideranças retornaram e novas entraram na
disputa municipal. A taxa de renovação foi de 38 %. Na
162
história da CMF, a eleição de 1972 aparece como a de menor
renovação, mesmo considerando a entrada de oito novos
vereadores que não participaram da legislatura anterior.
Entretanto, ao se observar a natureza da participação,
conforme se constata, não há um único estranho ao sistema
político local. Dos “novos”, apenas Maria José de Oliveira é a
grande novidade, segundo a imprensa. Mas não se pode
considerar que ela estivesse fora do sistema político local,
pois seu esposo José Batista Oliveira foi vereador por quatro
mandatos consecutivos, tendo se candidatado deputado em 1966.32
Teve uma votação surpreendente, quase inviabilizando a eleição
de Hermano Martins,33 aliado do seu marido. Ivone Melo retoma
seu mandato. Antônio Azin pode ser considerado um membro do
sistema, porque já havia sido eleito em legislatura anterior.
Do lado do MDB também não há uma renovação, pois quase
todos os eleitos já haviam sido vereador, com exceção de
Bianou de Andrade, que na eleição passada obtivera uma
expressiva votação, ficando na segunda suplência.
Esta eleição evidenciou de maneira mais significativa o
grau de fechamento ao qual foi submetido o sistema de
lideranças municipais. A redução drástica das cadeiras em
disputa no legislativo, aliada ao sistema bipartidário,
propiciou as condições para o surgimento de uma oligarquização32 Em 1970, a família Oliveira apóia a candidatura do filho de um ex-vereador e agora também deputado estadual José Martins Timbó, HermanoMartins. Dada a insatisfação gerada com esta candidatura, Maria José passaa questionar seu esposo se o correto não seria ela mesma se candidatar.José Batista reluta em aceitar a sugestão, não somente porque não gostariade ver a esposa diretamente envolvida na política, mas também para nãocontrariar o amigo a quem emprestara apoio eleitoral.
33 Sandoval Bastos perdeu por um voto para Hermano Martins.
163
no sistema político local. Nesta oligarquia, os vereadores que
detinham sólidas bases eleitorais em bairros, sustentadas no
assistencialismo e alistamento eleitoral, passaram a ser
dominantes. Reduz-se o número de lideranças política com
chances de ocupar um cargo eletivo - o círculo de competição
municipal.
Na memória dos ex-vereadores há unanimidade em apontar
esta eleição como a mais difícil. Alguns políticos já haviam
se submetido ao fechamento e redução de cadeiras e viram como
fora disputada a eleição em 1970. Os que estiveram fora desta
legislatura se prepararam para retomar o mandato.
O tempo foi exíguo para produzir frutos eleitorais
daquilo que é o mais importante instrumento de renovação de
mandato: o alistamento eleitoral. Este precisa de certo tempo
para ter o efeito esperado, pois do eleitorado “qualificado”
há uma média de 60% que votam com quem o auxiliou na retirada
de título. Portanto, tanto mais tempo, mais eleitores
qualificados, mais as chances de uma boa votação. Nesta
eleição, os vereadores que mantinham um mecanismo de reeleição
muito dependente do alistamento eleitoral se prejudicaram
porque não houve tempo suficiente para qualificar muitos
eleitores. Esse foi o caso do vereador Eurico Matias.
Os políticos que são vereadores, que já foram
vereadores e os sempre candidatos em boa posição fazem parte
do círculo de influência eleitoral municipal.
Destaquemos nesta legislatura Maria José Albuquerque de
Oliveira, vereadora de base territorial, que permaneceu por
164
longo tempo na Câmara, e Bianou de Andrade, um típico
representante do segmento do setor educacional.
A família Oliveira é representada por uma mulher
Maria José Albuquerque de Oliveira, com 42 anos, foi
eleita pela primeira vez em 1972, tendo sido a vereadora mais
votada, com 6.732 votos. Em 1976, obtém 9.764 votos. É
herdeira da base política do marido o ex-vereador José Batista
de Oliveira, que se elegeu deputado estadual. Deu
prosseguimento ao trabalho de assistência ao eleitorado no
bairro Bela Vista. Sustentou sua permanência no legislativo
por meio do clientelismo e de uma forma eficiente de
alistamento eleitoral. Entretanto, já próximo do final da sua
última candidatura, demonstrava fragilidade na manutenção
desta base eleitoral.
Apesar de atuar numa área da cidade com concorrentes ao
lado – Eurico Matias, Abel Pinto e posteriormente Narcílio
Andrade, a vereadora assegura seu mandato por longos anos.
Sobre a administração da prefeita Maria Luiza, diz que foi a
pior de todas, pois não havia nenhum metro de calçamento que
tenha conseguido. Demonstrando cansaço no atendimento ao
eleitorado, lança seu filho Casimiro Neto na eleição de 2000.
Nas eleições de 1974, a população brasileira votou para
escolha de senadores, deputados federas e estaduais. É nomeado
para governar o Ceará o coronel Adauto Bezerra, uma liderança
do Cariri cearense, e o engenheiro Evandro Aires de Moura,
para administrar a capital (1975-1978). Mas a legislatura de
1976-1980, além deste prefeito, conviveu com dois outros
165
administradores à frente de Fortaleza: o engenheiro Luiz
Gonzaga Nogueira Marques (1978-1979) e o médico Lúcio Gonçalo
de Alcântara (1979-1982).
A partir deste pleito, as eleições municipais são
dissociadas das eleições para as esferas federal e estadual e
passam a ocorrer em anos diferentes, permitindo que vereadores
concorressem a deputados, e, se eleitos, indicassem familiares
a candidatos à CMF. O mandato dos vereadores desta legislatura
passou de quatro para seis anos, sendo prorrogado até 1982.
No dia 15 de novembro de 1976, quando foram eleitos os
representantes para a nona legislatura, 430.992 eleitores
estavam aptos a votar. A taxa de alienação eleitoral de 31,1%,
indicava uma maior participação eleitoral.
O mesmo equilíbrio político das eleições passadas
manteve-se nesta, com o partido da situação elegendo o maior
número de parlamentares. A Arena ficou com doze vereadores
(Gerôncio Bezerra, Maria José de Oliveira, João Quariguasy,
Maurílio Assêncio, Luís Ângelo, José Hermano Martins, Ivone
Melo, Sandoval Bastos, José Lima Monteiro, Sergio Costa,
Antônio Azin e José Barros de Alencar); e o MDB com nove
vereadores (Eurico Matias, Mário Nunes, Bianou de Andrade,
Herval Sampaio, José Araújo de Castro, Narcílio Andrade,
Aluisio Fontenelle, Pedro Nunes e Ademar Arruda).
Na eleição municipal de 15 de novembro de 1976, ocorreu
uma pequena taxa de renovação na Câmara Municipal. Em toda a
história da Câmara, esta foi a mais baixa taxa de renovação,
(28,57%). Apenas seis novos vereadores surgem no cenário
166
parlamentar. Considerando que quatro dos “novos” já haviam
ocupado a função de vereador em legislaturas anteriores e que
um dos “novos” foi eleito ocupando a vaga do pai ex-vereador,
vitorioso como deputado estadual, em 1974, somente um dos
eleitos não fazia parte do sistema político municipal -
Narcílio Andrade, o único a furar o sistema de poder local.
Foi eleito na primeira vez em que se candidatou graças ao
prestígio adquirido pela condição de rei momo do carnaval de
Fortaleza. O prestígio momentâneo permitiu-lhe furar o
sistema, e se incorporar ao núcleo dos atores políticos, mas
foi preciso montar uma máquina de sustentação política capaz
de viabilizar a renovação do mandato. Essa parece ser de
maneira geral uma forma de acesso ao sistema de liderança
local.
Narcílio, O Rei Momo vira vereador
Narcílio Andrade, rei momo do carnaval fortalezense de
1974, é incentivado pelo prefeito Evandro Ayres de Moura a se
lança candidato à Câmara Municipal. Ligado às atividades do
Clube Romeu Martins, conta, para sua primeira eleição, com
bases profissionais devido ao seu trabalho em diversas áreas
do comércio de Fortaleza.
O vereador Narcílio Andrade nasceu no município de
Quixadá no dia 10 de março de 1941, filho de pequeno
comerciante. Os pais mudam-se para Fortaleza em 1951, fixando
residência na região da Pirocaia, atual bairro Montese, onde
ele começou a participar de organização de eventos, criando
sua base eleitoral. Era comerciário. Foi eleito pela primeira
vez em 1976 com expressiva votação, tornado-se um vereador com
167
forte identificação com o bairro onde atuava. A respeito da
primeira eleição descreve:
Nessa primeira campanha, Narcílio Andrade saía todas asnoites com seus amigos Edson Pio, José Urbano, Maciel dosSantos e Valdir Aguiar, em caminhada pelo bairro. Andavam decasa em casa, apresentando propostas e pedindo o voto. Nofinal da noite, faziam reunião na farmácia do Seu Mauri eavaliavam a receptividade do povo. Uma campanha modesta, masvitoriosa! Consagrado com cinco mil e sessenta votos, cercade duzentos votos por urna no bairro (Perfil Parlamentar,2003).
Nesta legislatura, além do rei momo Narcílio, destacam-
se o advogado Sérgio Costa, filho do ex-vereador e deputado
estadual Antônio Costa (Antony Costa), que se elegeu com 5.336
votos aproveitando as bases eleitorais familiares, Maurílio
Assêncio, que apesar de candidato desde a década de 1960, sem
obter êxito eleitoral, elegeu-se pela primeira com 6.964
sufrágios; e Bianou de Andrade, reeleito.
Ressalta-se também a presença de vereadores de
esquerda, eleitos pelo MDB, partido da oposição. Eurico
Matias, comerciante, seguidor de Fausto Arruda, retorna à
Câmara depois de ter perdido o mandato em 1972; professor
Barros Pinho, primeiro suplente de vereador, entra no
exercício de função em 1978, com a eleição de Bianou de
Andrade para a Assembléia Legislativa; e o professor Juarez
Leitão, segundo suplente, assume a vaga do vereador Pedro
Nunes, que se torna deputado estadual com o falecimento de
Paulino Rocha, em 1979.
Na eleição estadual de 1978, alguns vereadores de
Fortaleza se lançaram na disputa por uma vaga na Assembléia
Legislativa. Gerôncio Bezerra, que em 1976 se consagrou como o
168
vereador mais votado na história política de Fortaleza, tem
uma boa votação para deputado estadual. Além dele, o vereador
João Quariguasy também se elege deputado estadual. Já Antônio
Costa, ex-vereador, não consegue reeleger-se à Assembléia
Estadual. Outros vereadores candidatos também não obtiveram
êxito, como Pedro Nunes, Bianou de Andrade e Sandoval Bastos.
Com a morte do deputado Paulino Rocha, o suplente Pedro Nunes
assume em 1979.
169
2.10 Disputas e Novas Estratégias em Outros Tempos
A missão do vereador não é só dar atendimentoao eleitorado. Mas muitos eleitores nãoentendem (Ex-vereadora Ivone Melo).Para cada votação de interesse direto doexecutivo há negociação para que as obras sejamfeitas nos bairros (Ex-vereador Fiúza Gomes).
Em 15 de novembro de 1982, volta a ocorrer eleições
simultâneas para o legislativo e o executivo municipal,
estadual e federal, exceto para Presidente da República e
prefeito das capitais. Para governador, o Ceará elegeu Gonzaga
Mota, enquanto José Aragão e Albuquerque Júnior foi nomeado
prefeito, permanecendo no período de 1982-1983, sendo
substituído pelo engenheiro César Cals de Oliveira Neto (1983-
1985), filho do ex-governador César Cals. Em 1985, o vereador
José Maria Barros Pinho assume a administração municipal até
as eleições diretas para prefeito, quando é eleita pelo PT
Maria Luiza Fontenelle (1986-1989).
A eleição para a décima legislatura ocorre num quadro
de multipartidarismo ainda não consolidado. Ampliam-se as
vagas para a CMF, de 21 para 34, o que permite a entrada de
novos atores na cena política municipal.
Na década de 1980, os ventos sopram contrários às
tradicionais lideranças dos antigos vereadores. As mudanças
sociais e políticas ocorridas no país e na capital do Ceará
exigem novas lideranças, mais sintonizadas com as ideologias
que florescem com a abertura política e com os interesses das
classes trabalhadoras, sufocadas no período ditatorial. Já não
era mais o tempo da dominação territorial que assegurava o
170
controle da base eleitoral por meio de uma vasta máquina
assistencialista. As fronteiras de cada comunidade são
extremamente porosas, deixando passar todo tipo de candidato.
Neste momento, acirra-se a competição eleitoral, e
amplia-se o número de candidatos e de partidos. Para cada
candidato não basta somente ter votos disponíveis e
controlados, mas saber se dentro de cada organização
partidária ou da coligação existem votos suficientes para lhe
assegurar a eleição. O raciocínio do número absoluto vai
deixando de ter importância, pois as divergências e a
demonstração de capacidade de manter uma base eleitoral são
extremamente caras e trabalhosas.
O sistema eleitoral municipal é formado por atores que
detêm um mandato (vereadores), suplentes e ex-suplentes de
vereadores, ex-vereadores que perderam ou se afastaram da
política e voltam a se candidatar, e por aqueles que pleiteiam
pela primeira vez uma cadeira na CMF.
A eleição de 1982 caracteriza-se pela presença de
vereadores pertencentes ao sistema político, mesmo que alguns
em posição bastante secundária (antigos atores políticos). Ao
lado destes, há os vereadores (novos atores políticos)
realmente inseridos no sistema. O sistema político eleitoral
municipal dava os primeiros sinais de abertura, permitindo a
incorporação de membros completamente estranhos a ele.
No grupo dos novos, estão os vereadores Antônio
Fernandes de Oliveira, Emanuel Telles, Francisco Lopes, Marcus
Antônio Fernandes de Oliveira, Paulo de Tarso Facó Bezerra e
171
Zequinha Aristides Pereira. Além destes, tem José Maria Couto
e Nildes Alencar, que apesar de estarem se candidatando pela
primeira vez não poderiam ser considerados estranhos, pois
faziam parte do sistema político e sucedem vereadores da
família que se tornaram deputado estadual, como foi o caso de
Gerôncio Bezerra e Bianou de Andrade.
A grande sensação eleitoral foi a eleição de um
paraplégico para o parlamento municipal, Antônio Fernandes de
Oliveira, que fez sua campanha explorando a condição de
deficiente físico, com o slogan “O deficiente eficiente”.
Apesar dos surpreendentes 21.237 sufrágios, ela ficou restrita
a determinados bairros (Piedade, Aerolândia, Fátima e Dionísio
Torres). Na eleição de 1988 candidatou-se pelo PFL, obtendo
257 votos. É o mais inusitado exemplo de fenômeno e
desaparecimento eleitoral registrado pela política municipal.
Neste grupo também podem ser citados os que já
pertenciam ao sistema político numa posição secundária, por já
terem sidos candidatos, mas não eleitos: Iria de Almeida
Ferrer, Juarez Leitão, Raimundo Ferreira de Araújo e Samuel
Morais Braga.
Portanto, apesar do aumento do número de vagas na CMF,
poucas lideranças realmente novas se destacam. Talvez isto se
deva ao fato da legislação permitir inúmeras reeleições,
garantindo a cadeira de alguns políticos. Outras lideranças,
familiares de vereadores, também inseridas no sistema
político, não podem ser consideradas novas, pois herdaram as
bases eleitorais, assegurando um lugar no legislativo.
172
A presença de parlamentares experientes que dominam o
conhecimento do funcionamento do legislativo é importante do
ponto de vista da instituição, mas do ponto de vista político
pode ser negativa, por não estimular o surgimento de novas
lideranças.
Feitos estes esclarecimentos e analisando os resultados
eleitorais de 1982, constata-se uma renovação de 42,42% nesta
eleição. Mas considerando o pertencimento anterior de alguma
maneira ao sistema político municipal, esta renovação cai para
18,18%, correspondente ao número dos vereadores novatos como
atores políticos municipais.
Ante a presença destes vereadores no sistema político,
pode-se dizer que houve um acréscimo significativo em termos
de novas lideranças. Na legislatura passada, ocorreu a
incorporação de um único novo ator político – Narcílio
Andrade. Além de razões resultantes de mudanças políticas e
econômicas na sociedade, isto se deve também ao aumento de
cadeiras na CMF, de 21 para 33, que possibilitou a renovação e
a entrada de novos atores na cena política municipal.34
Neste pleito foram eleitos para deputado estadual
Barros Pinho, Bianou de Andrade, Sandoval Bastos e Pedro
Nunes. Barros Pinho, na verdade, já não era vereador porque
tinha assumido a cadeira do deputado Paulino Rocha. A surpresa
34 Considero este fato relevante. Devemos tomar com cautela a recentedecisão (2004) do TSE de redução significativo do número de vereadores pormunicípio. Se o que constatamos aqui tem valor, podemos aferir que aredução do número de cadeiras em disputa para o legislativo municipal alémde acirrar a disputa por uma vaga acaba favorecendo os já incluídos nosistema. Os incluídos e com mais chances de eleição são precisamente osvereadores tradicionais.
173
foi a derrota de Gerôncio Bezerra, que ficou na décima
terceira suplência.
Apesar das mudanças verificadas na estrutura de votação
em Fortaleza, ainda têm surgido vereadores de base territorial
nesta legislatura: Raimundo Araújo, com votação concentrada na
região da Lagoa Redonda, anteriormente controlada
politicamente pelos Ximenes; Iria Ferrer, com votação na zona
leste (Pirambu, Colônia e Jardim Iracema), comerciante, eleita
uma única vez em 1980, não se reelegendo depois dos escândalos
na Câmara; Zequinha Aristides, comerciante do ramo de padaria,
cuja votação se concentrava nos bairros Serrinha, Parque Dois
Irmãos e José Walter; Paulo Facó, funcionário público
estadual, com votação concentrada nos bairros Jardim das
Oliveiras, Cidade dos Funcionários e Luciano Cavalcante.
Entre estes, destaca-se ainda o vereador José Maria
Couto, advogado, com forte concentração de voto no bairro
Antônio Bezerra, herança da atuação paterna (filho do ex-
vereador e ex-deputado estadual Gerôncio Bezerra). Ao longo
dos mandatos, foi rompendo com seu perfil inicial de vereador
de comunidade de bairro, em decorrência da sua ligação com o
esporte (presidente da Federação Universitária Cearense de
Esportes e diretor da Superintendência do Desenvolvimento dos
Desportos de Fortaleza). Deixa a política depois de cumprir o
mandato de presidente da Câmara Municipal de Fortaleza,
elegendo o irmão Hélder Couto, em 2004.
Chama a atenção o grupo de vereadores ideológicos
identificados com segmentos da atividade educacional, com
votos dispersos em vários bairros da cidade.
174
Francisco Lopes, formado em Pedagogia e professor de
grandes colégios da rede estadual, foi eleito pela primeira
vez pela legenda do PMDB. Candidatura tipicamente ideológica,
era sustentada por militantes do PCdoB, partido ilegal.
Posteriormente, como primeiro suplente de vereador pelo PCdoB
na eleição de 1988, assume uma vaga na CMF deixada por Inácio
Arruda, eleito deputado estadual, em 1990. Em 1992 tem
reeleição assegurada e em 1994 é eleito deputado estadual.
Wellington Soares, professor de literatura, quando é
eleito em 1982, não era um neófito na política, pois há tempo
militava no MDB, tendo sido candidato em 1976. Na eleição
seguinte, teve uma derrota acachapante, depois de ser o centro
de escândalo ocorrido na Câmara, na época em que era seu
presidente. Entretanto, volta à vida política municipal com a
eleição da sua filha Germana Soares, em 2000.
Juarez Leitão, formado em Filosofia e História,
professor de vários colégios da capital, participou da direção
de entidades estudantis. Na eleição de 1976, fica na segunda
suplência e em 1980 assume a cadeira de vereador.
Nildes Alencar, formada em Pedagogia, proprietária do
colégio Instituto Alencar, insere-se na política como
militante estudantil da Juventude Universitária Católica,
ainda na década de 1960. Irmã do preso e exilado político Frei
Tito Alencar, engaja-se no movimento feminino pela anistia no
Ceará. Casada com o ex-vereador Bianou de Andrade, o substitui
na CMF, em 1982, após a eleição deste para deputado estadual
em 1978.
175
Além destes, tem Samuel Braga, que concentrava sua
votação nos bairros Piedade, Centro e Joaquim Távora, apesar
de não ser caracterizado como vereador de base territorial.
Formado em Pedagogia, proprietário de escola, teve dois
mandatos municipais, um deles pelo PDT. Dedicou-se ao tema da
defesa do meio ambiente.
Dois odontólogos foram eleitos nesta legislatura.
Emanuel Telles, dentista da Secretaria da Saúde do Estado do
Ceará, teve uma votação considerável na área do Jardim América
e Rodolfo Teófilo, mas não pode ser considerado vereador de
comunidade de bairro. Sua maior votação é oriunda da sua
atividade profissional. É um dos primeiros vereadores da área
de saúde, o que se tornará comum na década seguinte.
Já Marcus Fernandes, apesar de odontólogo, professor da
UFC e ex-dirigente da União Estadual dos Estudantes da
Paraíba, tem sua votação ligada a diversos segmentos dos quais
participa (teatro, associações profissionais, esporte),
principalmente ao halterofilismo, como proprietário de uma
academia.
Segundo revelou o levantamento da trajetória dos
vereadores que ocupam posição importante no sistema político
municipal em Fortaleza desde a década de 1940, aos poucos foi
se constituindo uma representação política centrada no
interesse de comunidade de bairro. A manutenção desta base
política é muito cara e trabalhosa, exigindo assistência
permanente e, em linhas gerais, a eterna condição de
governista. Era difícil manter oposição ao prefeito, pois as
176
bases eleitorais exigiam benefícios do poder executivo, e,
portanto, um constante alinhamento político.
O fato de não haver limites no parlamento para
reeleição cria a possibilidade de existir uma situação na qual
os que estão integrados no sistema, e em virtude da natureza
do seu voto fica completamente impedida a renovação e entrada
de novos vereadores. Se completarmos esta característica com a
redução do número de cadeiras em disputa e a existência do
bipartidarismo, regra predominante no regime militar, teremos
uma situação de completo fechamento político do sistema de
lideranças municipais a novos membros.
Outra característica importante, merecedora de atenção
e reflexão, é os vereadores com base eleitoral em bairros
normalmente disputarem eleição de maneira majoritária, isto é,
raramente um mesmo bairro consegue eleger mais de um
representante. Quando emerge um novo vereador numa antiga base
política, significa a decadência inevitável do antigo líder. A
região do bairro Lagoa Redonda pode servir como exemplo.
Durante a década de 1960 foi monopolizada pelo vereador
Raimundo Ximenes. Depois da sua cassação política, ficou sob
domínio do vereador José Barros de Alencar. Entretanto, na
década de 1980, surge uma nova liderança local que se elege,
Raimundo Araújo, mas não se reelege em 1988. Em seguida, na
década de 1990, surge a liderança do vereador José Carlos
(Cacá), que a mantém até o presente, sofrendo recentes
mudanças, como veremos a seguir, na sua representação. Outro
caso exemplar se passa nas regiões do Carlito Pamplona e
Pirambu. Agostinho Moreira e José Lima Monteiro somente por
177
uma legislatura conseguiram se eleger simultaneamente porque
ainda atuavam em bases dispersas. Quando ambos passaram a
concentrar sua atividade política inteiramente no bairro, já
não havia como eleger os dois. Tanto que o vereador Agostinho
Moreira somente voltará à CMF com a derrota de Lima Monteiro.
A grande renovação observada na eleição de 1988 não se
deve unicamente à série de escândalos na Câmara Municipal
neste período, mas também ao fato de ser a primeira eleição
num quadro partidário extremamente fragmentado. A fragmentação
dos partidos não permitia ainda aos concorrentes saber mais
apurado da melhor sigla para disputar uma eleição. Este saber
vai se produzindo ao longo dos anos 1990, deixando de ocorrer
muita surpresa em decorrência da relativa estabilidade do
quadro partidário. Não propriamente a estabilização das forças
políticas em partidos, mas o entendimento melhor das regras
aplicadas na eleição municipal permite que cada vereador
candidato tenha um ano antes de renovar seu mandato uma
movimentação absolutamente esperada porque se faz no sentido
de manter seu mandato.
Muitos dos que foram postos para fora do sistema
político local não conseguiram mais retornar. Não puderam
voltar à cena política porque os partidos passaram a ser
detentores de um poder grande de veto de certos candidatos
capazes de eventualmente ameaçar os que já estão dentro do
partido e com fortes chances de ser eleito. Os expelidos do
sistema ficam como “zumbis”, em cada eleição, pousando num
partido ou coligação e esperando que desta vez possam retomar
sua vida política. Uma vez expelido do sistema de poder local,
178
o candidato tem mais dificuldades porque a derrota sofrida não
foi simplesmente pela ausência de votos, mas pela incapacidade
de entender que as regras haviam se modificado muito e que
seria necessário uma nova forma de agir na cena política. Os
retardatários tiveram de dar lugar aos novos, que fundavam e
controlavam os partidos, enquanto os antigos caciques dos seus
esclerosados partidos iam aos poucos perdendo sua condição de
disputar de forma séria os postos perdidos.
De maneira mais genérica, algumas observações se fazem
necessárias sobre a trajetória das lideranças municipais.
Quanto ao aspecto ideológico, é curioso constatar que os
católicos sempre contaram com um representante em diversas
legislaturas, começando em 1948 com o vereador Denizard
Macedo, até recentemente, com Paulo Mindello. Entretanto,
nunca passaram de um representante. Membros de outros credos
religiosos, todavia, não tiveram o mesmo êxito. Há somente o
caso do vereador Belizário Teixeira na década de 1950, com uma
votação eminentemente evangélica. Se no passado os evangélicos
se fizeram pouco ou quase inexistentes em sua representação
política, atualmente é o segmento social organizado que tem
mais representantes políticos.
Ainda comparativamente a legislaturas passadas, salta
aos olhos a pouca presença de médicos no legislativo,
contrastando, igualmente, com o que ocorre hoje. Dada a
expansão do sistema de saúde após a criação dos SUS na década
de 1980, encontramos a explicação para esse fenômeno. Enquanto
os médicos eram poucos, os representantes oriundos da educação
eram muitos. Desde a primeira legislatura, a CMF tem no mínimo
179
três professores entre seus membros. As corporações também
detinham espaço na CMF. Destas, se destacam os militares, que
têm um representante identificado com eles desde os anos 1940,
e ao longo dos tempos, sempre mantiveram um ou dois
representantes.
180
3. TRANSIÇÃO POLÍTICA E RENOVAÇÃO – A DÉCADA DE 1980 EM FORTALEZA
3.1 Redemocratização e Política Municipal
Este capítulo pretende traçar um quadro das principais
mudanças políticas ocorridas na sociedade ao longo dos anos
1980 e que tiveram relação direta com acontecimentos no
legislativo municipal de Fortaleza.
Tais mudanças guardaram sua origem no relaxamento
progressivo do regime militar depois da eleição de Geisel,
considerada o início da mudança na vida política nacional.
Desta forma, por ter de usar de maneira incisiva todos os
instrumentos proporcionados pelo regime militar, o Presidente
foi assegurando o retorno da vida política à sua normalidade
gradativamente. Promulgou, então, em 1976, a Lei Falcão
contendo restrições à propaganda política. Segundo esta lei,
os candidatos não poderiam mais aparecer ao vivo na televisão.
Uma foto três por quatro era exibida e um locutor lia o
currículo do candidato. Assim se processaram as eleições
municipais de 1976.
Sucessivas alterações na legislação não foram
suficientes, no entanto, para garantir vitória ao partido do
governo. Sob o pretexto de implementar uma reforma no
judiciário, o regime autoritário pôs o Congresso em recesso e
decretou o “pacote de abril” em 1977, cujas medidas mais
importantes foram: a ampliação do mandato de Presidente para
seis anos; as eleições indiretas dos governadores pelos
deputados estaduais e delegados das Câmaras Municipais; um em
181
cada três senadores eleitos seria eleito indiretamente – o
chamado senador biônico; a Constituição poderia ser modificada
com quórum de maioria simples; a Lei Falcão passava a ser
aplicada a todas as eleições diretas. Com o “pacote de abril”,
as regras das eleições municipais de 1980 foram alteradas.
Como no antigo calendário deveria ocorrer eleição municipal em
1980, estes vereadores teriam um mandato de apenas dois anos,
para poder haver nova eleição em 1982, coincidindo, novamente,
a eleição municipal com a federal e a estadual. Entretanto, em
1980, editou-se uma nova lei adiando para 1982 a eleição
municipal e prorrogando o mandato dos eleitos em 1976.
As alterações legais implementadas pelo regime
autoritário visavam assegurar a manutenção do poder com os
generais. Na eleição de 1978, a estratégia foi bem-sucedida. A
despeito de perder nos maiores centros urbanos do país, o
governo assegurou maioria mediante uso de manobras
casuísticas.
Em 1979, depois da posse do general Figueiredo na
Presidência da República, o governo, com vistas ao processo de
abertura política, cogitou uma fórmula para impedir a eleição
municipal do ano seguinte. Assim, em outubro de 1979 foi
extinto o bipartidarismo e instituído o pluripartidarismo.
Então, com a aprovação da “emenda prorrogacionista”, o cenário
da eleição de 1982 começou a ser traçado já em 1980. Além
disso, o projeto de lei instituindo a vinculação total do voto
em 1982 foi a norma decisiva para que o PP tomasse a decisão
de retornar ao PMDB. Tal projeto vinculava o voto total de
182
vereador até senador no mesmo partido e impedia qualquer tipo
de coligação partidária.
Essas medidas foram decisivas para a vitória do governo
nos Estados. A eleição de 1982 fez-se dentro de um quadro de
abertura política. A estratégia do governo é vencedora,
principalmente no tocante ao aspecto da divisão das oposições.
Porém, apesar de todas as limitações e casuísmos eleitorais
propostos com o “emendão”, a oposição foi vencedora para a
Câmara Federal, o PDS fez a maioria no Senado e assegurou doze
dos vinte e dois governadores eleitos. Entretanto, a oposição
elegeu os governadores dos três Estados mais importantes da
federação: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Em março de 1983, foi apresentada uma emenda do
deputado Dante de Oliveira, votada em 25 de abril de 1984, a
qual restabelecia as eleições diretas para Presidente da
República em 1985. No início atraiu pouca atenção, mas aos
poucos foi despertando o interesse, fazendo com que o PMDB a
visse como um importante meio de mobilização popular. No mesmo
ano realizou-se em Goiânia, com a presença de 5.000 pessoas, o
primeiro de uma série de comícios pedindo o retorno à eleição
direta para presidente.
A emenda foi derrotada por uma diferença de apenas
vinte e dois votos, causando enorme frustração aos
participantes das jornadas pelas “Diretas Já!” Todavia, depois
da campanha das Diretas, a sucessão do general Figueiredo não
se daria mais da mesma forma. Via mobilizações populares, a
oposição havia conseguido provocar dissidências no governo. A
batalha seguinte concentrou-se na decisão de ir ao Colégio
183
Eleitoral e eleger, mesmo indiretamente, um dos lideres da
campanha pelas Diretas. O dia 15 de março de 1985 marca
oficialmente o período de fim do processo de transição
democrática com a eleição, no ano anterior, de um civil à
Presidência da Republica pelo Colégio Eleitoral. Em 15 de
janeiro de 1985 é eleito Tancredo Neves, pelo Colégio
Eleitoral, contando com a abstenção do PT. Tancredo Neves não
assume e José Sarney, o vice que tinha rompido com o PDS e
fundado a Frente Liberal, criando em seguida a Aliança
Democrática com a aliança com o PMDB, toma seu lugar na
Presidência, iniciando o processo de redemocratização do país.
No mesmo ano ocorreram eleições diretas nas capitais, em que o
governo perdeu em alguns Estados importantes como São Paulo,
Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza e Pernambuco. A
temporalidade política nacional está marcada por este longo
processo de “distensão política”.
Pouco a pouco a situação econômica do país vai ruindo
com o surgimento da inflação ao longo de toda a década de
1980. Toda a política econômica é voltada para o combate à
inflação e à estabilidade da moeda. Os anos de maior
transformação política da sociedade brasileira são justamente
estes de alta inflação e de fortes movimentos sociais urbanos
e rurais. A inflação anual atinge níveis altos: em 1985 foi de
237,7%, em 1986, durante o Plano Cruzado, chegou a 57,5%, mas
voltou a se descontrolar em 1987, quando atinge 365,7%; em
1988, chega a 933,6% e no final do governo, em plena campanha
sucessória, alcança a marca de 1.764,9%.
184
A transição democrática vai de 1984 até 1988 – neste
momento começam a se definir regras que orientam o novo padrão
de eleição mais competitiva nos anos seguintes. No Ceará,
renova-se, então, parte da elite política com a mudança do
padrão anterior centrado na figura do chefe político municipal
controlador de votos. Um evento político como foi a derrota do
esquema da política tradicional ainda exige uma explicação
mais aprofundada. No entanto, é rara a inclusão de eventos
ocasionais como mecanismo de explicação de eventos políticos
de alta importância. Isto porque este evento não é produzido
por acaso, mas intencionalmente. Foi projetado para gerar
determinado efeito. Todavia, de maneira secundária, produziu
efeito sobre outras realidades a ele ligado, modificando sua
dinâmica. Isto poderia ocorrer repetidas vezes e motivado por
qualquer outro fato, pois desdobramentos de efeitos podem
provocar uma modificação numa situação até aquela data vista
como inalterada. A lógica da mudança social precisa ser
revista e teorizada, levando sempre em consideração que as
expectativas dos atores com seus atos nem sempre se realizam,
mas podem de maneira surpreendente provocar a erosão de uma
situação que não se pretendia modificar.
No caso específico do Ceará, o desdobramento de eventos
políticos ocorridos no plano nacional trouxe modificações
muito significativas entre os atores políticos locais.
Ressaltar que parte das mudanças ocorridas na década de 1980
no Ceará se deve ao impacto de uma situação política gerada
fora das fronteiras do Estado não significa desconhecer que
185
elementos da dinâmica política local não tenham contribuído
para apressar processos de mudanças já em curso.
Rejane Carvalho (1998), em seu livro Transição democrática
brasileira e o poder midiático publicitário da política, apresenta uma
explicação para a eleição de Maria Luiza usando argumentos que
envolvem imagens, marqueteiros políticos e sentimentos
populares por mudanças. Um cenário onde atores ocupam papéis
previamente definidos pelas estruturas. Ela afirma:
As eleições diretas e “solteiras” para os prefeitos dascapitais em 1985 inserem-se neste cenário, transcorrendo emum momento do ciclo de desesperança de que as mudançaspudessem vir da “Nova República”, condensada nas imagensrapidamente envelhecidas do presidente Sarney e do PMDB.O sentimento disseminado e sugerido de rejeição aos“usurpadores da esperança” molda em 1985 uma outra pulsão: abusca de personagens que reencarnem a mudança (CARVALHO,1998, p.110)
A derrota do padrão tradicional da política no Ceará em
1986 ocorre em função dos ventos soprados de Brasília com o
advento do Plano Cruzado, que beneficiou todos os candidatos
do PMDB naquele momento, tanto que nos 23 Estados fizeram 22
governadores, 46 senadores dos 72 e 260 dos 487 deputados
federal. A onda de mudança na política veio de Brasília e se
dava em decorrência da nova situação criada pelo plano
econômico e pela enorme mobilização nos primeiros meses. Nessa
situação, os candidatos que encarnavam melhor este sentimento
de confiança de que as coisas iam dar certo tinham mais
chances de sair vencedores. No entanto, o ciclo da dominação
tradicional não se esgotou por desdobramentos de uma situação
local, agravamento de contradições internas, mas pela
186
existência de uma situação nacional que objetivamente
beneficiava uns candidatos e desfavorecia outros.
3.2 Fortaleza Rebelde – A Eleição Direta de Maria Luiza
Fontenelle
As mobilizações políticas dos anos 1980 são decisivas
para se compreender a nova conjuntura política gerada pelo fim
do regime autoritário. São anos de forte participação política
e de retorno à normalidade política.
Ao longo dos anos 1980, a política municipal em
Fortaleza sofre profunda transformação. Os membros da Câmara
Municipal foram eleitos em 1982, juntamente com deputados
estadual e federal, senador e governador. Mesmo tendo ocorrido
em regime de pluripartidarismo, o resultado das urnas
beneficia unicamente o PMDB e o PDS. A aliança dos três
coronéis (Virgílio Távora, Adauto Bezerra e César Cals) selava
a sorte das forças conservadoras herdeiras do regime militar:
Gonzaga Mota, eleito governador, indicado pelo grupo
virgilista, e César Neto, indicado prefeito de Fortaleza pelo
grupo cesista.
O desdobramento da sucessão do general Figueiredo foi
decisivo para os acontecimentos políticos locais, enquanto a
implosão interna do PDS facilita a candidatura de Paulo Maluf,
rachando o partido, por formadores da Frente Liberal que
agregariam força contrária à candidatura do PDS. No Ceará, o
jovem governador Gonzaga Mota é o primeiro a aderir à tese
187
antimaluf. Rompendo com o partido PDS e com todo o grupo que
lhe dava anteriormente sustentação, Gonzaga Mota vai para o
PMDB e passa a apoiar Tancredo Neves. De imediato, o
rompimento com o grupo do PDS implicou a destituição do
prefeito de Fortaleza, César Neto, substituído pelo deputado
estadual e ex-vereador Barros Pinho.
Com a aprovação de eleições diretas para as capitais e
outras cidades até então impedidas de eleger diretamente seus
prefeitos, o processo de transição democrático entrava num
novo ritmo. Os vereadores tiveram uma prorrogação de mandatos,
pois a eleição seria unicamente para o executivo municipal.
Em Fortaleza foram lançados os candidatos apoiados pelo
grupo adautista: o PFL indicou Lúcio Alcântara; o PMDB lançou
Paes de Andrade; uma frente de partidos progressistas tendo o
PT como força majoritária lançou Maria Luiza Fontenelle e
outros candidatos de menor expressão. A campanha se desenrolou
em torno da disputa entre o candidato do PMDB e o do PFL,
considerados os favoritos do pleito. Ao longo da campanha,
sucessivos ataques de ambos os lados permitiram que uma
candidatura até então aparentemente sem chances fosse
crescendo, enquanto os outros se digladiavam politicamente.
Uma campanha de televisão criativa, feita com poucos recursos,
mas contando com uma militância ativa, acabou sendo a
beneficiada da disputa entre os candidatos favoritos. A
eleição de Maria Luiza foi uma surpresa tanto para os
adversários quanto para as forças vencedoras, que deveriam
agora organizar um programa para a administração municipal.
188
A eleição de 1985 para a prefeitura de Fortaleza seria
o primeiro teste das forças que militavam nas jornadas das
Diretas Já e que depois foram participar da eleição no Colégio
Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Naquele ano, a aliança
para a constituição do governo da Nova República foi testada
com a eleição municipal. No Ceará as forças políticas que
haviam apoiado a eleição indireta se dividiram na indicação do
candidato a prefeito em Fortaleza. O governo estadual e o PMDB
apóiam o deputado Paes de Andrade; as forças conservadoras
aliadas do vice-governador apóiam Lúcio Alcântara. Em virtude
do boicote ao Colégio Eleitoral, as forças progressistas que
não participaram da eleição indireta formam uma aliança em
torno da deputada estadual Maria Luiza.
Maria Luiza venceu as eleições em todas as zonas, mas
seu principal êxito ocorreu nos bairros mais ricos. A classe
média de Fortaleza votava favorável ao projeto mais
progressista do PT. Na 94ª zona, onde estão situados os
bairros mais pobres da cidade, a diferença entre Maria Luiza e
Paes de Andrade foi de apenas 341 votos favoráveis à futura
prefeita.
Considerada a grande surpresa, fenômeno e sensação da
eleição municipal realizada em 1985, Maria Luiza não teve uma
administração tranqüila. Sobressai o quadro institucional do
funcionalismo público completamente desorganizado. Os 40 mil
contracheques de servidores foram reduzidos para 24 mil. Este
tipo de decisão não poderia passar sem reação dos opositores a
esta medida. O estado de desmando administrativo herdado da
administração anterior era flagrante quanto ao atraso de
189
pagamento e endividamento do município. Não havia minimamente
como administrar uma cidade com este grau de problemas.
Partindo daí, ao assumir a administração do poder municipal em
Fortaleza, Maria Luiza Fontenelle encontrou uma situação
financeira caótica. As despesas superavam em muito as receitas
mensais. Somente com atrasos de pagamento de funcionários a
prefeitura acumulava dívida de US$ 10 milhões. Gastava-se US$
5,5 milhões enquanto se arrecadava nada mais do que US$ 4,1
milhões por mês.
Como não houve renovação da CMF na eleição de 1985, a
administração popular assumiu o poder executivo com uma CMF
ainda eleita em 1982. Começou o enfrentamento político com os
vereadores quando a prefeita tentou reduzir o empreguismo
existente na prefeitura e moralizar os gastos públicos. A
situação de atraso no pagamento do funcionalismo municipal
tornou-se corrente porque a arrecadação municipal era
insuficiente até para cobrir a folha de pagamento do
funcionalismo. Além disso, o lixo se acumulava pelas ruas, a
malha viária estava esburacada, o saneamento precisava ser
feito, etc. A situação era de caos urbano. Na CMF a prefeita
não contava com um grupo coeso que lhe desse sustentação
política. Relativamente isolada tanto no plano estadual quanto
no plano nacional, ainda teve de enfrentar as dificuldades no
primeiro ano com a eleição para governador e deputados
constituintes.
Derrotas do executivo em seus projetos no legislativo
tornaram-se comuns. A prefeitura propôs, por exemplo, a
criação de uma autarquia com responsabilidade pela coleta do
190
lixo da cidade, mas o projeto não foi aprovado pelos
vereadores. Os atritos foram freqüentes não somente quanto à
natureza de projetos, mas também por causa de repasses de
verbas para a manutenção do legislativo. Como havia uma crise
financeira crônica no município, o repasse nem sempre ocorria
no tempo devido. Isto seria outro motivo de desgaste entre os
dois poderes. Já não se tratava de uma administração na qual o
vereador podia tudo conseguir. Segundo depoimento de uma ex-
vereadora na época da prefeita Maria Luiza, foi o período pior
que viveu na Câmara. Não conseguia nenhum metro de calçamento,
nada saía para aplacar a ira dos vereadores que precisavam das
ações do executivo para contentar sua clientela eleitoral.
A experiência da administração popular era igualmente
nova, quer para o grupo político que assume a direção do
executivo quer para os membros do legislativo. Da
inexperiência administrativa ao sectarismo político do grupo
político que cercava a prefeita, lentamente a administração
começa a apresentar resultados moralizadores para a
administração. Os membros do governo tinham a impressão de
experimentar a construção de um novo modelo de gestão pública
para a política brasileira. Tal era a pretensão dos membros
dessa organização.
As dificuldades enfrentadas pela nova administração não
poderiam ser menores, porquanto o resultado das urnas foi
surpresa para os próprios eleitos. Não contando nem com
experiência nem com quadros administrativos importantes teve
de organizar o governo fazendo-o andar. Do lado da população a
surpresa não fora menor, pois a administração popular se
191
apresentava levada por enormes expectativas. Diante de um
caótico quadro financeiro para o município, logo viriam a
decepção e a frustração eleitoral. A situação da limpeza
urbana, marcada como o símbolo da gestão Maria Luiza, era
apenas a ponta de um despreparo completo. O enfrentamento com
as forças clientelistas e empreguistas derrotadas nas eleições
se fará no confronto com o poder legislativo.
Para a Câmara Municipal não interessava nenhuma
administração diferente das anteriores. A cada vereador que
mantinha clientela e apoio eleitoral em bairro, exigia-se do
executivo acesso aos bens públicos com vistas a contemplar seu
eleitorado com calçamentos e benefícios coletivos e
individuais.
A gestão da prefeita Maria Luiza não seguiu este
traçado. Conseqüentemente, obteve imediata oposição por parte
dos vereadores mais tradicionais. Contava com oposição de
setores à esquerda e à direita. Ideologicamente a
administração popular relegava para segundo plano a
instituição de representação política existente e pretendia
criar Conselhos Populares. Não se deve atribuir em momento
algum à Câmara Municipal as trapalhadas e ineficiência
administrativa dos petistas, pois os vereadores desta época
são unânimes em afirmar que o executivo mandava poucas
matérias para serem votadas. Como estava mais preocupada em
usar a prefeitura como meio para organizar os pobres,
conscientizá-los dos seus direitos, administrar uma prefeitura
seria estar tentando solucionar a crise provocada pelo sistema
capitalista nas cidades. A prefeita era militante de um grupo
192
político que acreditava na revolução socialista, sendo
necessário pensar estrategicamente o que fazer com a
administração de uma cidade. A saída encontrada não era
atender aos anseios de mudanças e seriedade no trato com o
dinheiro público. Isto era secundário diante da urgência de
organização dos movimentos populares.
É comum que os participantes vitoriosos de embates
políticos desejem enaltecer sua coerência, esperteza, justeza,
competência intelectual e política na condução do processo do
qual se consagraram vencedores. Nada demais nisto, pois é
injusto não se atribuir parcela significativa do resultado da
vitória à sua própria competência. Entretanto, raramente isto
é verdade e não é fácil encontrar as explicações e atribuições
individuais nos acontecimentos coletivos, mas muitas vezes o
processo se desdobra em formas imprevisíveis e inevitáveis em
certo momento. Maria Luiza, ao explicar sua vitória, primeiro
reconhece ter sido beneficiada com as brigas entre os dois
candidatos favoritos, mas julga que isto não ocorreu por
acaso. Alguns acontecimentos de movimentação social comandados
por pessoas ligadas à candidata provocaram desgaste na imagem
do governo. Greves de professores, de motoristas de ônibus,
ações de trabalhadores rurais foram movimentos de
reivindicações que contavam com a simpatia da população e que
foram reprimidos pelo governo estadual. Isto tudo foi
explorado pela candidata do PT.
Assim como a vitória eleitoral lhe caiu no colo, a
prefeita Maria Luiza não sabia o que fazer com uma
administração pública municipal, não havia se preparado para
193
salto tão elevado, pois ninguém concebia a vitória. Mais
preocupados em formar uma base municipal de oposição política
à Nova República, estavam pouco voltados para o dia-a-dia de
administrar uma cidade.
O insucesso da administração Maria Luiza não deve ser
atribuído ao cerco das forças conservadoras que não aceitavam
uma alternativa política popular em Fortaleza. Esse fracasso
deve ser buscado na origem das forças políticas vencedoras da
eleição. Primeiramente, a eleição foi uma surpresa para todos.
Mas o fato de não estarem preparados com quadros políticos
para a administração não teria gerado o caos se não existissem
problemas partidários. Maria Luiza era filiada a um partido
político clandestino (PRC), mas se elegeu pelo PT. Dentro da
administração houve constante tensão entre estes dois grupos.
À esquerda, a administração era pressionada pelas forças dos
comunistas do PCdoB, PCB e MR8, que apoiaram a candidatura de
Paes de Andrade, e dentro do PT havia a luta pelo controle
político da prefeitura. Completou este quadro de disputa
política a eleição para governador no primeiro ano da sua
administração. Uma eleição é sempre um momento de decisão
forçada de posicionamentos das forças políticas. Essa não
poderia ser diferente.
Não há dúvidas de que a década de 1980 é plena em
novidades políticas e renovação de práticas e elites
políticas. Entretanto, quando se observa mais detidamente a
composição dos órgãos legislativos, não se tem a mesma
percepção. Nestes, mantém-se a predominância de um
representante político que não sofreu tantas mudanças quanto
194
os membros executivos. O novo ar político trazido pelo fim do
regime militar e pela redemocratização afetou de maneira mais
lenta os membros do legislativo.
No legislativo municipal de Fortaleza, segundo já
observamos, foi extremamente complicada a administração
popular. Todavia, as dificuldades não decorreram apenas da
inabilidade política, inexperiência administrativa e
sectarismo político do grupo político que comandava a
administração local. A formulação de Conselhos Populares, por
exemplo, afrontava diretamente os interesses da Câmara
Municipal, pois se pretendia transferir parte do poder de
representação dos interesses da população para estes órgãos de
controle da administração pela população. Dos obstáculos, o
mais difícil de ser superado foi a escassez de recursos porque
a nova reforma tributária não havia ainda sido promulgada e os
municípios sofriam asfixiados em dívidas, empreguismo e
inabilidade administrativa.
Na análise explicativa de Carvalho (1998) sobre a
eleição de Maria Luiza sobressai o uso pioneiro do marketing
político por um grupo de militantes do partido. A autora
atribui em parte à campanha na televisão a vitória eleitoral
da candidata. Isolada de todo o contexto real explicativo dos
eventos, a propaganda eleitoral adquire uma força inexistente
na prática. Afinal, o resultado eleitoral dependeu não somente
do desempenho do candidato vencedor, mas também e
principalmente do desempenho dos demais concorrentes. Isolando
a análise unicamente na campanha do vencedor, incorre-se no
erro de atribuir virtudes gloriosas ao vencedor em decorrência
195
da sua simples vitória. No entanto, a reconstrução da
importância do programa eleitoral na campanha municipal de
1985 não pode ser tida como definitiva porque peca
principalmente pela situação já dada de um vencedor, a
reconstrução torna-se necessariamente complexa e até mesmo
difícil. Os atores desta conjuntura política colocaram-se a
posteriori como sabedores das estratégias usadas para atingir os
objetivos desejados, quando se sabe que isto é reconstrução pos
facto.
O padrão de competição eleitoral passou a ser comandado
não mais por atores concretos decidindo as possibilidades das
suas decisões se efetivarem, mas por algo chamado
genericamente de comunicação de campanha eleitoral, sem levar
em consideração as condições concretas sobre as quais as
decisões dos atores são tomadas, suas expectativas e mesmo
experiências como eleitor. Na análise centrada nas imagens de
campanha não há eleitor racional com capacidade para decidir
aquilo que lhe parece melhor representar seus interesses, e o
eleitor passa a ser uma figura facilmente capturada em seu
desejo e manipulada pelos criadores de belas imagens. Desta
forma, não admira pensarem que uma eleição é algo fácil de se
ganhar.
A reconstrução racional dos acontecimentos políticos de
1986 no Ceará leva muitos autores a remeter á data de 1978 na
reconstrução do CIC como o marco decisivo de algo a ter
efetivação quase uma década depois. Os atores são enquadrados
numa lógica racional de busca de objetivos precisos ao longo
de tantos anos que até parecem destinados a realizar seus
196
desejos. Quem conhece a política na sua estrutura menor de
decisão e contrafatos sabe que esta versão dos acontecimentos
é no mínimo fantasiosa ou mítica.
A análise retrospectiva dos atores políticos leva
necessariamente à mitificação do lugar que ocuparam no cenário
político e no desdobramento da situação seguinte. Isto não
teria nenhum problema caso os analistas propusessem demonstrar
o aspecto puramente mítico da narrativa do lugar e da missão
política que se auto-impuseram. Embora não se trate de
averiguar a veracidade da visão mítica de que se servem os
atores, a análise das imagens para eles projetadas sobre si
acaba comprometendo completamente a explicação dos eventos
históricos. Nesse sentido, a explicação fornecida pelos atores
para seus atos está muito distante do momento em que tiveram
de tomar as decisões geradoras de outros eventos. Impedidos de
fazer isto, ficamos apenas com a visão mítica e narrativa dos
próprios atores participantes dos acontecimentos e com a
análise política, que deveria fornecer explicação para os
fatos, mas se insere na lógica da mitificação das figuras
envolvidas. Parte da propaganda dos novos atores, o analista
deixa de tentar explicar os eventos porque se compromete
imediatamente com uma construção racional destes eventos.
3.3 Fim de uma Era – O Governo das Mudanças no Ceará
197
Segundo afirma Carvalho (1998) até a década de 1980 a
política no Ceará se caracteriza pela presença do chefe
político como principal agente da política tradicional. Este
chefe reúne características para o comando de um grupo de
indivíduos a ele ligado que atua na época da eleição em total
confiança e solidariedade às suas definições. Há uma
hierarquia de controle dos votos de determinada área,
município ou distrito sob o controle de um chefe político
local, o qual, por sua vez, mantém laços de filiação grupal
com um chefe político superior a ele que, por sua vez, mantém
com outros chefes políticos do mesmo nível laços de
solidariedade e confiança em torno de um único grande chefe
político que define e controla a política estadual. Os chefes
políticos municipais controlam suas áreas municipais formadas
por um ou mais município, enquanto o chefe político do grupo
político controla a distribuição e o contato com todos os
outros chefes políticos municipais para a definição de
candidatos e chapas eleitorais. Já os colégios eleitorais são
rigorosamente definidos de acordo com o controle existente por
parte de cada chefe político local.
A política tradicional de chefes políticos controlando
redutos eleitorais com votos certos rui depois da eleição de
1982. Até esta eleição a regra dominante era a da absoluta
política tradicional com acordo dos chefes políticos coronéis
que fazem o “Acordo de Brasília”, selando a aliança e divisão
patrimonialista do Estado entre os três líderes políticos.
Afinal, o que fez com que ao longo de quatro anos
pudesse a política tradicional sofrer uma derrota tão grande?
198
Na análise de Carvalho (1998), simplesmente a transformação
das eleições em competitivas e mediáticas passou a fragilizar
a base de sustentação da política tradicional. Os acordos e a
fidelidade eleitoral não podiam mais se sustentar em eleições
sucessivas e, desse modo, possibilitaram o surgimento de um
candidato que poria fim à era da política dos coronéis e da
política tradicional girando em torno de esquemas de grupos
políticos controlados por chefes e chefetes políticos.
O padrão mediático da política solapou as bases
tradicionais da política até então mantida com eleições pouco
competitivas.
No caso da campanha de 1986 a conjunção de todos os astros,no cenário nacional e local, mostrava-se favorável àcandidatura de Tasso Jereissati.No cenário nacional o tema das mudanças foi intensamentevivido nas grandes mobilizações de rua e de modo especial nosonho de estabilidade econômico, trazida pelo Plano Cruzado(CARVALHO, 1998, p.187).
Segundo a interpretação corrente sobre o movimento
eleitoral na década de 1980, os candidatos que representassem
mudança seriam eleitos. Assim, Maria Luiza foi eleita porque
representava o papel de mudança, enquanto Tasso o foi em 1986
porque simbolizava exatamente a esperança e a mudança
desejadas pelo povo. A disputa com os coronéis apenas
expressava melhor a luta do atraso contra o moderno, do velho
contra o novo. A novidade era a entrada do padrão mediático de
campanha eleitoral. Enquanto os coronéis apelavam para a
fidelidade política local dos chefes políticos, a campanha
moderna usa as mensagens vinculadas pelos meios de comunicação
199
para penetrar nos corações das pessoas e fazê-las romper com
os antigos laços de servidão ao político dominante.
Em todas as interpretações existentes, os anos 1980
foram de grandes mudanças e quem se apresentasse no cenário
político com este tipo de característica teria sido eleito,
pois a conjuntura era favorável à emergência de novas forças
políticas. O slogan da campanha de Tasso em 1986 era o
seguinte: “Mudou o Brasil, mude o Ceará”. Era um apelo e um
chamado direto a cada eleitor que decidisse pela sintonia
entre as mudanças ocorridas no plano nacional e a situação de
miséria reinante no Ceará. Esse slogan extraía o máximo de
vantagens da situação positiva pela qual passava o País com a
implementação do Plano Cruzado e sua euforia popular. Para se
ter uma idéia desta euforia, basta lembrar que o Presidente
Sarney obteve em janeiro de 1986 no Rio de Janeiro aprovação
popular de 22% e em março, com o lançamento do Plano Cruzado,
esta aprovação chega a 71%. O impacto da nova situação
política e econômica criada com o novo plano econômico na
campanha política deste ano não é negado por nenhum analista.
No entanto, essa situação favorável nacionalmente às forças do
PMDB poderia não ser totalmente aproveitada politicamente em
cada Estado. No caso do Ceará, os atores políticos em condição
de aproveitar a onda de mudanças constituíam-se de um grupo de
jovens empresários com militância na crítica ao governo
autoritário.
Outra arma antiga, mas ajustada às características domercado político estadual a que se recorreu foi o apoio dogovernador Gonzaga Mota: a possibilidade de atender asolicitação de pleitos municipais favorecia o processo dedesbaratamento das “bases políticas” que integravam o
200
“patrimônio políticos” dos três coronéis firmados ao longode carreiras políticas que no caso dos Távoras remontava àdécada de 30 (CARVALHO, 1998, p.192-193).
A inovação política produzida no Ceará depois da
redemocratização foi a introdução de um novo padrão de
política centrada não mais na forma tradicional, mas no uso
intensivo da campanha mediática. Tratava-se de uma nova
maneira de fazer política usando códigos de contato direto com
a população eleitora, furando as estruturas tradicionais dos
chefes políticos. A força atribuída ao uso de marketing
político como fator decisivo para a vitória de Tasso em 1986
parece um exagero. Mas a vitória eleitoral teve um elemento
inusitado porque derrotou uma estrutura tradicional de líderes
políticos com esquemas políticos bem enraizados na tradição
política.
A onda de mudanças, de desejo de alcançá-las, expresso
pelas vitórias do PMDB em outros Estados, faz com que se
relativize a vitória tassista. Apesar do uso dos meios de
comunicação, e de estratégias de marketing político adotadas,
isto não seria suficiente para coibir a vontade de votar no
mesmo candidato. A eleição para o executivo tem suas regras
específicas, apresenta mais surpresas do que as eleições
proporcionais.
Ressaltar o aspecto da inovação mediática da campanha
de 1986 parece importante, mas, é preciso lembrar, na mesma
eleição, o governo executivo não fez maioria na Assembléia
Legislativa, que permaneceu majoritariamente conservadora e
dominada pelas “forças do atraso”.
201
Carvalho (1998) não propõe uma explicação para as
mudanças ocorridas nas esferas políticas na sociedade cearense
na década de 1980, mas aponta para uma transformação na
maneira como se fará política após o retorno à normalidade
democrática. Depois da transição política e do período de
redemocratização, a política passa a ser feita com outros
códigos de relacionamento entre o eleitor e seu representante
político. A idéia é que o padrão de política tradicional
centrado na idéia de reduto eleitoral, Colégio Eleitoral e
chefe político que controla uma base eleitoral definida teria
desaparecido em decorrência da introdução de um novo padrão de
fazer política. A política teria agora aspectos puramente
imagéticos. Ganharia uma disputa eleitoral no campo da
política quem fosse capaz de convencer o eleitorado de ser o
candidato o produto que atende aos seus interesses e
sentimentos. O marketing político passa a ser valorizado como
algo extremamente importante, pois por meio dele se faria
reputação e destruição de candidatos. A era da imagem da
política seria inaugurada no Ceará já em 1985 na campanha
vitoriosa da prefeita Maria Luiza. Em seguida, o mesmo
entendimento da nova maneira de fazer política passa a ser
adotado para a mudança do padrão da política tradicional.
Embora, na conclusão da sua análise, Carvalho (1998)
alegue que o estudo das campanhas majoritárias de 1985 e 1986
não representa um estudo de explicação causal, isto é, não
pretende afirmar que a vitória de ambos os candidatos se deveu
ao uso de estratégias de marketing político, não se trata
disto, mas de estabelecer que surge neste momento um novo
202
modo, um novo padrão de realização de campanhas políticas
majoritárias que não podem mais dispensar a imagem como
elemento fundamental.
A campanha de 1986 ofereceu a oportunidade de demarcardiferenças entre um novo padrão de campanha e a arte dapolítica tradicional na qual os mestres eram os chefespolíticos espacialmente distribuídos em territórios onderedes de “lealdades” políticas podiam ser acionadas de modoespecial nas quadras eleitorais. Os chefes políticosestaduais encabeçavam os principais grupos políticosexercendo complexas funções de articuladores de acordos ouarranjos que minimizassem os conflitos internos egarantissem novos aliados que ampliassem suas forças.A imposição do padrão publicitário midiática certamenteafetou o fazer político tradicional em sua exigência deoutros saberes, habilidades e atributos que não faziam partedo anterior exercício de chefes políticos (CARVALHO, 1998,p. 253).
A tese de Carvalho sobre a ruptura política no Ceará
contém uma ambigüidade: ela pretende não estar preocupada com
a explicação para o rompimento do padrão tradicional na
política do Ceará e sim querer fazer um estudo analítico e
descritivo do surgimento de um novo padrão político de
campanhas eleitorais realizadas depois da redemocratização do
país. Entretanto, em muitos momentos, a autora tenciona
demonstrar que o moderno grupo de empresários venceu a
estrutura política tradicional centrada na figura do chefe
político porque naquele momento se instalava definitivamente
um novo padrão de política não mais baseada no contato direto
e no atendimento eleitoral de cada chefe político, mas na
reprodução e manutenção de uma imagem do candidato. Já não se
tratava de uma política clientelista e assistencialista, mas
de forjar uma imagem permanente de alguém que está se
preocupando com o povo e que quer o bem do povo. A mediação do
203
poder político não mais passava pela figura do chefe político
controlando votos em determinado município, e sim nos
dispositivos mediáticos operados permanentemente como uma
fábrica de produzir boas notícias.
Tanto ela acredita estar dando uma explicação causal
para a vitória de Tasso em 1986 que afirma em determinado
instante saber que outros fatores agiram para poder a política
da imagem penetrar no coração do eleitor sertanejo.
Em 1986 a dizimação dos chefes políticos tradicionais noCeará operou-se em uma batalha de imagem na qual os seusopositores detinham perfeito domínio do terreno e das armas.O que não quer dizer que outros fatores e condições nãotenham operado para tornar possível tal resultado entre elesdestaco a desorganização da economia rural centrada nacultura do algodão e nas culturas de subsistência que teciavínculos entre dependência econômica e política da massarural e parceiros e pequenos proprietários aos donos deterra e de usina de beneficiamento do algodão(CARVALHO,1998, p.255-256).
Na opinião de Carvalho (1998), em 1986 se cria uma nova
era na forma como se conduz a política no Ceará. Surge a Era da
Política Publicitária Midiática. Essa nova realidade na forma como se
conduz a política terá repercussão imediata nas disputas entre
as forças eleitorais. O padrão de política de imagem não mais
depende do uso dos mesmos esquemas tradicionais de chefes
políticos, controle de território e fidelidade política por
parte dos liderados e eleitores. Ao longo da dominação da era
Tasso, as redes de solidariedade tradicional foram destruídas.
É interessante a constatação de Rejane Carvalho de que
a política se transverte de política de imagem, mas isto pode
ter sido a especificidade da época. O uso inédito de um
instrumento até então não utilizado de maneira ostensiva em
204
campanha permite a determinado candidato se beneficiar deste
instrumento. No entanto, o uso do mesmo instrumento num embate
seguinte não terá mais o mesmo efeito porque os atores já se
preparam para o uso das mesmas armas. Aquilo que foi novidade
num embate anterior torna-se algo comum e de uso compartilhado
pelos competidores. Assim como na vida econômica, na vida
política a disputa e a competição exigem a inovação de novos
instrumentos capazes de surpreender seu adversário.
A análise da conquista do poder por um grupo não deve
obscurecer a sua luta posterior para a manutenção desta
posição conquistada. Isto porque a vitória eleitoral pode
ocorrer por uma conjugação de fatores favoráveis à vitória
momentânea, entretanto, mais importante mesmo são as condições
de reprodução do poder conquistado. Neste aspecto, a vitória
da forças modernas em 1986 foi não somente um abrir momentâneo
da guarda das forças tradicionais; significou também a
capacidade de se manter no poder. As armas para a manutenção
do poder não são as mesmas da conquista do poder. Para a
conservação pode-se até se servir de antigas práticas,
contanto que tenham resultados. Não houve tanta mudança no
mecanismo de chefes políticos municipais nem de colégios
eleitorais controlados por políticos importantes, tanto que
muitos deputados foram eleitos sem saberem sequer onde ficava
seu distrito eleitoral.
Há divergências sobre o modo como se analisa a ascensão
política do empresariado ao poder político do Estado do Ceará.
Uns o interpretam como se fora uma revolução burguesa com a
ascensão do grupo industrial ao controle do Estado, enquanto
205
outros, deixando de lado a caracterização do que representa a
nova força política, detalham as mudanças na estrutura
econômica do Estado que possibilitaram a ascensão deste grupo
moderno. Entre os defensores de que se trata de um grupo de
elite com projeto de controle político, alguns sustentam
existir no Ceará ao longo da década de 1970 a formação de um
segmento de industriais menos dependentes do Estado, os quais
são os responsáveis pelas transformações recentes. As forças
tradicionais até então controladoras do Estado ficam
debilitadas com a decadência da sua base econômica de apoio, a
economia do algodão. A decadência desta cultura, em parte
decorrente da seca de 1979-1983, será decisiva para entender
as mudanças recentes da configuração política das forças
emergentes.
Muitas análises são centradas nas condições de
emergência do grupo empresarial ao poder, destacando as
estratégias de aliança e modo de ação na campanha eleitoral.
Isto certamente é relevante, mas é preciso mencionar os meios
posteriores para a conservação do poder pelo novo grupo.
Somente por causa da manutenção do poder se teve a impressão
de se tratar de um projeto político de um grupo com intenção
clara de controlar e manter o poder.
Circunstâncias pontuais de vitória política não podem
ser elevadas à norma geral de disputa. Observemos os
acontecimentos pós-vitória da Maria Luiza à prefeitura de
Fortaleza. Ela não conseguiu assegurar a eleição do seu
sucessor. Não havia nenhum projeto político com capacidade
para sustentar a ação administrativa. Obra do acaso, abertura
206
dentro de uma conjuntura particular permitiu a ascensão de um
grupo ao controle da máquina administrativa municipal, mas
como não tinham nenhum projeto foram rapidamente suplantados
pelos acontecimentos e pela incapacidade de administrar bem a
cidade.
Ao refletir sobre o surgimento do novo ciclo político,
Lemenhe (1995) ressalta elementos de novidade política com
Tasso, mas identifica igualmente elementos da antiga tradição
oligárquica. A percepção destes traços ocorre no uso dos
mesmos mecanismos de manutenção do controle político e de
práticas políticas patrimonialistas. Mesmo considerando que
uma elite burguesa industrial passa a controlar e dirigir o
poder público, a sua marca de distinção se aplica ao fato de
serem forças urbanas e industriais, enquanto seus opositores
representavam as forças agrárias e o tradicionalismo na
política. Embora a nova elite dirigente exija outros códigos
de conduta política, pelo menos publicamente, na realidade
efetiva da condução do poder, renova maneiras corriqueiras de
fazer política.
O novo ciclo do poder iniciado com Tasso Jereissati não
é tão novo assim para Lemenhe (1995), pois renova práticas
antigas da política tradicional como meio de se manter no
poder. Depois da vitória de 1986, tratou imediatamente de
consolidar seu poder pelo uso de mecanismos clássicos de
manutenção do poder. Neste aspecto, não houve muita inovação
dos novos donos do poder.
Conforme apontado por estes autores, meados da década
de 1980 constituem o momento de nascimento de um novo ciclo na
207
vida política cearense. Este momento significou, do ponto de
vista político da sociedade, a vitória de uma política moderna
sobre outra tradicional, das forças urbanas e industriais
sobre as forças rurais e agrárias. Os empresários passaram a
ser as figuras dominantes neste novo cenário político como
elementos investidos de uma racionalidade e uma determinação
de combate à injustiça e à fome, generalizada por todo o
sertão.
Segundo Lemenhe (1995), a tese da ruptura do padrão
político anterior é menor do que supõem seus próprios atores
políticos e seus intérpretes intelectuais, pois tanto na
conquista quanto na manutenção do poder político instrumentos
clientelistas foram utilizados de forma despudorada.
Por meio da análise das condições socioeconômicas e
políticas é possível entender e explicar quando e por que a
elite política tradicional deixou de ser intermediária dos
interesses do segmento industrial. Se isto é verdade,
pressupõe-se que as novas forças industriais detêm alguma
especificidade de interesse que precisa ser revelada.
As condições econômicas da diferenciação da elite
cearense ocorrem principalmente em decorrência da expansão
industrial consolidada na década de 1970. Esta expansão
industrial provoca a criação de diferenciação de interesses
dentro do segmento industrial. Diferenciação não apenas por
ramos de atividade, mas também pelo montante de capital
empregado. Isto possibilita o surgimento de um setor
industrial autônomo no Estado. Ao mesmo tempo, o setor agrário
amarga franca decadência econômica por causa da seca e da
208
crise do algodão. As contradições começam a surgir em função
da conjuntura de crise econômica nacional que já não permite o
uso de mecanismos clássicos de intermediação política
individualizado dos recursos públicos.
O cenário é de crise econômica e os atores industriais
vão lentamente tomando consciência de que as antigas
lideranças tradicionais já não são capazes de intermediar os
interesses do setor industrial.
Na década de 1980, a entidade da sociedade civil mais
importante foi o Centro Industrial do Ceará, organizando os
interesses dos jovens empresários cearenses com fóruns de
discussão permanentes sobre as soluções dos problemas
cearenses. O grupo de empresários reunidos no CIC inicia um
projeto de conquista do poder do Estado contra a dominação dos
setores tradicionais.
Motivada pela organização nacional do empresariado, a
elite industrial do Ceará mobiliza-se inicialmente com o
intuito de exigir maior participação de investimentos públicos
na região. Gradativamente passam a tomar consciência da
incapacidade das antigas elites de intermediar seus
interesses. Desta constatação nasce o projeto de ascensão ao
poder político do Estado. Ao contrário do que muitos pretendem
apresentando o empresariado do CIC como a vanguarda do
empresariado moderno, tratava-se de defensores dos interesses
regionalistas.
O grupo de empresários do CIC passa a atuar na esfera
política partidária por causa da crise e da falta de
209
crescimento econômico. Por não ter mais como obter recursos na
esfera federal em decorrência da crise fiscal, resta ao
empresariado voltar-se para o controle do poder estadual como
meio de implementar políticas capazes de criar um novo modelo
de desenvolvimento estadual.
Lemenhe (1995) defende a tese da ruptura relativa da nova
liderança política empresarial em relação à elite tradicional
de base agrária. Para ela, esta ruptura do antigo padrão de
dominação política tradicional ruiu por causa da falta de
estrutura para sua reprodução, principalmente porque sua maior
sustentação se dava na atividade produtiva do algodão. A crise
da cultura do algodão foi o prenúncio da crise de sustentação
da lealdade tradicional da política clientelista.
A crise da cotonicultura vem desde meados da década de
1970 e acentua-se na década seguinte, com anos de seca. O
colapso da economia algodoeira é apontado como um dos
principais fatores explicativos para a impossibilidade de
reprodução do poder tradicional ou pelo menos para sua crise
de reprodução. Como era um setor econômico que empregava muita
gente e mantinha uma cadeia de extensa dependência, sua crise
significou igualmente a liberação dos indivíduos para outros
setores de atividade e sua autonomia política. As outras duas
grandes mudanças ocorridas na sociedade agrária foram a maior
penetração de relações capitalistas no campo e a modificação
dos laços trabalhistas com a introdução da expansão da
pecuária e da agroindústria de produção de frutas. Como afirma
Lemenhe (1995, p.261), “esses diferentes movimentos convergem
para a desarticulação dos sistemas de controle dos principais
210
agentes da dominação tradicional sobre as massas rurais: os
proprietários de terra e os beneficiadores de algodão”.
A oligarquia de base agrária perde seu poder político
no momento em que suas bases materiais de reprodução deste
poder entram em crise. A crise da economia algodoeira é
fundamental para explicar de que maneira a alteração no padrão
de dominação política do Estado passa pelas mudanças
decorrentes na ordem social e econômica. Depois das mudanças
na base material da sociedade, o poder político será
contestado pelos novos representantes da nova ordem, os quais
seriam representados pelos empresários que encarnam a força
urbano-industrial.
Se a conjuntura política nacional favoreceu a eleição degovernadores do PMDB na maioria dos Estados, a derrota dacoligação PDS-PFL no meio rural do Ceará, deve sercompreendida também e, sobretudo, à luz da conjunturapolítica específica do Estado, do aprofundamento da criseeconômica agrícola e do capital político conquistado pelasforças emergentes (LEMENHE, 1995, p. 220-221).
Conforme inúmeras análises sobre as mudanças políticas
verificadas em meados da década de 1980 no Ceará, uma mudança
geral havia ocorrido na estrutura socioeconômica ao longo de
mais de uma década e somente neste momento forças políticas
podiam ser os instrumentos destas mudanças. A ordem econômica
havia se transformado, mas o Estado ainda continuava sob o
controle e a direção de lideranças tradicionais de feição
clientelista, exigindo lealdade política em troca da “política
de favor”. A crise econômica aliada à seca e o declínio da
economia do algodão puseram em risco a perpetuação da
dominação tradicional.
211
A grande transformação na ordem política estadual no
Ceará acontece com a eleição de Tasso Jereissati. Mas a
percepção de que se tratava do surgimento de um novo ciclo
político e não meramente da emergência de uma nova elite
política ao comando do Estado vai se fixando com o passar do
tempo e com as medidas adotadas ao longo de todo o governo. O
modo como foi tratado o ajuste fiscal do Estado, ordenamento
das contas do setor público, eliminação do empreguismo e
combate ao clientelismo foram marcas do primeiro governo das
mudanças. Tudo indicava não ser meramente uma alteração de
elites políticas; algo mais profundo havia ocorrido com as
forças políticas do Ceará.
Paradoxalmente, o retorno à normalidade política,
caracterizado pela competitividade eleitoral, proporcionou a
ascensão ao poder de um grupo político empresarial que tinha
no combate ao político profissional sua maior marca,
caracterizando-se por ser um grupo autoritário e afastado da
tradição dos políticos profissionais. Rompia-se com práticas
políticas enraizadas na tradição patrimonialista de divisão e
acesso aos cargos públicos em troca de apoio político. Este
não era senão uma forma de conservação do poder e não incluía
nenhum projeto de desenvolvimento econômico e social para o
Estado.
A idéia amplamente difundida de exaltação política do
grupo oriundo do CIC dava conta de uma determinação e
voluntarismo na ordem política nunca vistos. Pretendia-se na
reconstrução da trajetória dos membros deste grupo uma
afinidade e decisão de um projeto racional jamais constatado
212
em outros momentos da sociedade. É muito mais provável que o
conjunto de decisões tidas como parte do projeto do “governo
das mudanças” tenha sido tomado em decorrência do
enfrentamento de situações concretas para administrar um
Estado carente, pobre e cercado por uma elite política ávida
por acesso aos recursos públicos.
A simples determinação de ser coerente com o apregoado
em campanha eleitoral já bastasse para mudar a atitude em
relação à administração pública. O projeto vai se gestando no
enfrentamento com as forças derrotadas e com o desejo de
implementar as propostas vencedoras nas urnas. Não quero dizer
que esta nova elite política não soubesse o que estava fazendo
ou que não tivesse projeto algum. Talvez apenas a decisão de
sanear as contas e moralizar os gastos públicos já fosse
suficiente para deslanchar a eficiência do Estado em outros
setores. Ao chegar ao poder, a percepção das dificuldades
aumenta e a ênfase sectária em implementar as propostas de
campanha amplia os atritos e conflitos com os antigos
detentores do poder.
Como já nos referimos, em meados da década de 1980 em
Fortaleza, a transição política para a democracia encontrou
sua primeira grande expressão na eleição direta para prefeito
da cidade, com a vitória de uma candidata até então sem estofo
político para sustentar as dificuldades administrativas. Os
tempos, portanto, exigiam novas lideranças com capacidade para
interpretar os anseios por mudança e melhoria de vida. Há uma
crise política generalizada expressa pela recusa em aceitar as
antigas lideranças políticas herdeiras do regime militar,
213
indicando com isso uma mudança significativa no padrão
eleitoral e político. Parecia que a política tradicional e
clientelista, “política do favor”, teria chegado ao seu
limite.
Os abalos na dominação tradicional começam com a
eleição da Maria Luiza em Fortaleza e continuam posteriormente
com a mais retumbante vitória de um neófito na política. Tasso
Jereissati vence as forças políticas tradicionais do Estado,
abrindo uma fratura na sociedade, uma nova elite que ascende
ao poder com um projeto de transformação das condições de vida
da população mais pobre. Mas, uma parte das promessas é
prática discursiva, tentativa de justificar ações que
legitimem suas próprias ações.
De qualquer modo, a despeito de divergências sobre a
natureza da transformação política ocorrida com a eleição de
Tasso em 1986, se houve ruptura e construção de um padrão
moderno na política ou continuidade com as práticas anteriores
de patrimonialismo, independente da interpretação para os
novos atores políticos, eles expressam uma novidade no cenário
nacional e estadual. A ascensão deste grupo empresarial foi
uma ruptura significativa no poder político. Com a
consolidação do novo ciclo de poder, essa mudança no padrão da
política vai se desfazendo lentamente. Acomodando-se às forças
existentes e à incorporação de antigos adversários, as
práticas anteriormente condenáveis passam a ser toleradas. Os
tempos já não são de ruptura, mas de consolidação do poder e
de formação de um grupo com capacidade para agir e transformar
a realidade social do Ceará.
214
A reconstrução da trajetória de poder desse grupo
induziu à criação de uma mítica em torno deles, como se fossem
portadores da novidade política, e como se apenas eles
tivessem a habilidade de desmontar as estruturas tradicionais
e clientelistas do poder. Reforçar a idéia de ação racional
intencional e orientada para a construção de uma nova ordem
política estadual é ainda um efeito discursivo.
Conforme asseguram as explicações mais importantes para
as transformações ocorridas na década de 1980, no Ceará há uma
lenta mudança na ordem econômica e social que vai se expressar
em determinado momento na ordem política. A política, no
entanto, foi a última instância a ser transformada. Enquanto a
indústria já havia se consolidado, formando uma elite
industrial diferenciada do setor mais tradicional, a atividade
econômica sofre, ao longo dos primeiros anos da década de 1980
profundo abalo em virtude da crise da seca que afeta e
determina o colapso da economia algodoeira.
O ano de 1986 foi o marco fundamental para o fim do
período de “transição democrática” encerrado com a eleição
direta para prefeitos das capitais em 1985. A eleição de uma
nova constituinte seria o marco para a construção da nova
ordem social. Essa disputa pela direção na nova ordem foi
feita sob a pressão de mobilizações populares, arranjos
políticos das elites e um plano de estabilidade econômica
destinado a debelar o “dragão da inflação”. Neste ano, o Plano
Cruzado foi a grande novidade, e sob seu impacto positivo de
euforia cívica generalizada ocorrem as eleições para o governo
dos Estados e a dos constituintes.
215
No Ceará a ordem social do período de transição
democrática já havia dado sinais de que não se sustentaria por
muito tempo sob o comando dos mesmos atores políticos. O acordo
dos coronéis indicava o fim da convivência, no mesmo bloco de
poder, entre o grupo tradicional da política cearense. A
eleição de Gonzaga Mota é peça decisiva para se entender o
processo seguinte de derrota da elite tradicional que
controlava e dirigia o Estado.
Ainda no período de “transição democrática”, as forças
políticas tradicionais do Estado do Ceará se dividiram quanto
ao apoio ao candidato da Aliança Democrática. No Ceará, além
do governador Gonzaga Mota, o ex-governador Adauto Bezerra
estruturou a legenda do PFL, ficando ao lado das forças
vitoriosas no Colégio Eleitoral com a eleição de Tancredo
Neves contra Paulo Maluf. A derrota nacional dos dois coronéis
foi importante porque indicou desde já uma mudança nas forças
políticas que tiveram repercussão na sucessão de 1986. O elo
mais significativo neste momento foi a manutenção do controle
político do governo estadual por parte de Gonzaga Mota, que
tentou formar seu próprio grupo político, mas não encontrou
espaço suficiente nem força para tanto. Então, acomodou-se
dentro do PMDB, de onde comandará sua sucessão.
Ao analisar a vitória das forças políticas que haviam
conquistado o governo do Estado em 1986, na eleição de 1988,
Parente (1992) afirma que nesta eleição estava em jogo a
conquista da hegemonia por parte do grupo dos empresários
contra o grupo tradicional e o grupo progressista da esquerda.
A vitória foi possível primeiro porque houve uma enorme
216
divisão de forças entre os grupos, tanto dos tradicionais
quanto da esquerda, beneficiando o grupo que controlava o
Estado.
A conquista do governo estadual pelo grupo moderno do
empresariado local teve seu primeiro teste na eleição
municipal de 1988 na qual foi posta à prova sua força
eleitoral. Nesta eleição, mesmo com a vitória nos grandes
centros urbanos como Fortaleza e Juazeiro do Norte, perdeu
para as forças que havia derrotado em 1986. O PFL e o PDS
foram os vencedores do pleito municipal no Estado em 1988,
portanto, indicando que a eleição de 1986 não tinha ocorrido
em razão de transformações tão significativas na estrutura
social e econômica para que fossem liberadas de vez das formas
tradicionais de voto clientelista.
Como afirma Parente (Idem, ibdem, p.26),
Estes casos são aventados apenas para percebermos que não háuma quebra na estrutura tradicional de poder com a chegadado moderno. A estratégia, então, não era trabalhar nospequenos e médios municípios, mas naqueles maiores comsignificativo poder de irradiação.
Ainda de acordo com este autor (Idem, ibdem, p.27-28), Com esses dados apresentados sobre as eleições no interiordo Estado, concluímos, provisoriamente, que, apesar dacrise, o modelo clientelista e a compra de voto permanecemcom significativo vigor. Não se pode, no momento, secontrapor a essa evidência.
Esta constatação é importante porque reforça a idéia de
que com o fim da transição democrática se criou um novo padrão de
fazer política eleitoral, o denominado padrão mediático da
política (CARVALHO, 1998). É preciso ressaltar, porém, que
este jeito novo de fazer política tem seus limites e funciona
melhor nas disputas para o executivo estadual e federal.
217
Quando a luta política ocorre em cenário municipal onde se
usam menos estes novos instrumentos de comunicação, as forças
e os meios utilizados são os tradicionais clientelistas e
compra de votos. O discurso da modernidade política funciona
quando se refere ao governo estadual, fincando-se numa
poderosa máquina de marketing político permanente, mas incapaz
de agir na política municipal.
Assim, como esta modernidade apregoada não passa de
truques de marketing político, dependendo do nível da disputa
política, usa-se ou não deste instrumento de comunicação para
convencer o eleitorado das novas propostas. Nas pequenas
cidades, no entanto, isto não ocorre e o que conta mesmo no
final é a estrutura tradicional do voto clientelista e da
compra de votos, pois estas cidades de porte médio não dispõem
de televisão local e as rádios são controladas por forças
políticas locais. Desse modo, não há como usar este
instrumento na disputa eleitoral.
É preciso, portanto, relativizar a tese do novo padrão
midiático da política. A introdução deste novo padrão político
em contraposição ao tradicional sem uso de uma economia de
imagem tem razão apenas quando se refere ao poder estadual,
mas de modo algum quando se trata de candidatos do
legislativo. A política midiática deve se restringir a duas
situações: onde se disputa o poder executivo e nos grandes
centros urbanos.
Nas eleições municipais somente as capitais têm uma
política inteiramente orientada pelo padrão midiático. No
Ceará, o capitalismo se desenvolve e atinge seu apogeu na
218
década de 1980 quando o grupo de empresários organizados no
CIC assume posição estratégica importante dentro da política
estadual, derrotando os grupos tradicionais que controlavam o
poder público. Os novos atores políticos empresários surgem em
decorrência do desenvolvimento de relações capitalistas.
Nas palavras de Parente (1990, p.31),
A burguesia, nessa nova conjuntura, que sempre foi fraca elevada a reboque, consegue arregimentar forças e desenvolverum projeto burguês dentro desse processo de construção deuma hegemonia burguesa. Essas transformações incomodam osgrupos tradicionais, mas também forçam a esquerda a reverposições.
Ao valiar as ações dos “governos das mudanças”,
Gondim (1998, p.422), afirma:
Ainda que os “governos das mudanças” tenham feito esforçosconsideráveis para melhorar as condições de vida dapopulação no que diz respeito à educação básica e a açõespreventivas de saúde, os resultados do modelo dedesenvolvimento adotado não diferem significativamente, emtermos de justiça social, dos apresentados por governosneopatrimonialistas. Ressalte-se, porém, que as mudanças nagestão do Estado permitiram a utilização mais eficiente dosrecursos públicos.
Todos os estudos da década de 1980 sobre as mudanças
políticas e econômicas ocorridas neste período são unânimes no
reconhecimento de mudanças na ordem política. As divergências
começam quanto à identificação dos principais atores e sobre a
natureza desta mudança, pois alguns acreditam que as mudanças
socioeconômicas já vinham se processando bem antes da ascensão
política dos empresários ao poder. Estas na verdade são frutos
destas transformações estruturais ao longo de duas décadas de
industrialização promovidas pelo poder público federal. O
choque que ocorrerá em meados da década de 1980 entre os dois
grupos da elite, representados de um lado pelo que se
219
convencionou chamar de coronéis e de outro pelos modernos
empresários, significava o enfrentamento de duas forças com
bases sociais distintas. As estruturas de base agrária
finalmente estavam ruindo solapadas por anos de crise e
divergências internas entre seus dirigentes políticos.
Essas análises levam sempre em consideração a
existência de uma forma de dominação tradicional predominante
no sertão, sustentada por laços de lealdade política e
cooptação de lideranças políticas locais em troca de
benefícios econômicos. O enraizamento desta tradição havia
sido testado já no início do período de transição democrática
e havia dado provas de solidez. Entretanto, o golpe eleitoral
comandado pelo grupo dos novos empresários foi suficiente para
banir esta elite tradicional do poder e iniciar um novo ciclo
na vida política cearense. Mesmo os autores que consideram
haver pouca ruptura no padrão da política cearense após a
eleição de Tasso Jereissati são unânimes em reconhecer que o
golpe eleitoral não poderia ter provocado a destruição da
elite tradicional se mudanças profundas na base de sustentação
desta elite não viessem acontecendo desde os fins da década de
1970. O golpe eleitoral não era, portanto, um raio num dia
ensolarado, mas resultado da desestruturação lentamente
atuando nas mudanças econômicas cearenses.
O cientista político Jawdat Abu-El-Haj sintetiza esteentendimento da seguinte forma:Não foi apenas num golpe eleitoral que ruiu uma estrutura depoder em 1987. A ascensão do empresariado do CIC (CentroIndustrial do Ceará) ao Governo estadual foi proporcionada peladesestruturação de condições sociais que sustentaram o regime doscoronéis (ABU-EL-HAJ, 2002, p. 85).
220
A acusação mais freqüente feita ao governo das mudanças
era a de não dialogar com seus opositores. Havia até mesmo uma
forma estigmatizada de tratar os opositores ao projeto mudancista.
Estes eram vistos como representantes das forças do atraso,
defensores do corporativismo. Em dois momentos esta imagem
ficou cristalizada: na saída do Secretário de Educação Paulo
Elpídio e na do Procurador da Justiça, Vasco Wayne. Ambos
acusaram o governo de intransigência em relação às suas
oposições ao projeto definido pelo grupo do CIC.
Os elementos da ruptura com um antigo padrão político
patrimonialista e clientelista podem ser observados na maneira
como o novo líder político se relaciona com o estamento
político profissional. Existia uma pregação constante contra
os políticos segundo a qual estes eram os responsáveis pelo
estado de miséria do povo do Ceará.
Na maioria das vezes, a tentativa de se explicar certos
eventos sociais incorre no erro de inventar conceitos
genéricos como se estes tivessem a propriedade de explicar
acontecimentos, quando na verdade acabam obscurecendo o que
deveriam esclarecer. É uma perversa tendência de uma dialética
do obscurecimento confundida com esclarecimento. Eventos
sociais são produzidos por indivíduos em posições
determinadas, que agem conforme objetivos a serem alcançados,
trilhando obstáculos e servindo-se de situações concretas,
muitas vezes não criadas por eles, mas impostas como parte da
luta por outros atores sociais. São estes os elementos que
221
deveriam ser ressaltados na explicação de eventos sociais e
não a mitificação conceitual.
Ruptura ou continuidade diferenciada, o governo das
mudanças terá impacto decisivo sobre uma série de eventos
importantes na política cearense. Do ponto de vista das forças
políticas abrigadas em Fortaleza, foram cruciais.
3.4 Mudanças na Política Municipal
A legislatura iniciada em 1983 foi a mais conturbada de
todas aquelas assistidas pela CMF, pois nela não somente houve
muitas mudanças de comando do executivo, como também o retorno
à eleição direta para o chefe do executivo. O longo período
sem eleição foi apontado por alguns vereadores como algo
prejudicial ao vereador, pois a natureza do apoio político
destes atores centrada na troca constante de favores exige uma
eleição periódica como meio de aferir o grau de fidelidade
conquistado. Mas o acirramento político, a constituição de
grupos com atuação marcadamente ideológica contrasta com uma
maioria clientelista de vereadores.
Dessa forma surgem alguns eventos políticos
significativos que marcaram a trajetória de desgaste político
da CMF na época da gestão Maria Luiza Fontenelle.
No ano de 1987, fevereiro, ocorreu a eleição para
presidência da Mesa Diretora da CMF. Wellington Soares vence
Nildes Alencar, ambos do PMDB, por 21 a 12 votos. Ainda em
fevereiro de 1987, os vereadores aprovam um pedido de
intervenção na PMF em decorrência da não liberação dos
222
recursos correspondentes ao duodécimo do legislativo
municipal, em atraso há dois meses. A prefeitura enfrenta
grave crise financeira.
Em setembro de 1987, o Conselho de Contas dos
Municípios rejeita as contas da Mesa Diretora da CMF
referentes ao exercício de 1984. No parecer pede a devolução
aos cofres públicos da importância de 1 bilhão, 029 milhões,
611 mil e 162 cruzados. Em dezembro do mesmo ano, a CMF e a
PMF não chegam a um acordo sobre o orçamento do poder
legislativo para o ano seguinte. A proposta da prefeitura foi
então desaprovada pelos vereadores.
No ano de 1988, a Câmara Municipal começa a sofrer
forte desgaste político perante a opinião pública. Denúncias
de empreguismo e mal uso do dinheiro público passam a ser
difundidas insistentemente pelos veículos de comunicação de
massa. Por diversos momentos, em confronto aberto com o
executivo, em virtude da crise financeira municipal e do não
repasse das verbas devidas ao legislativo, há mesmo um pedido
de intervenção do executivo estadual no executivo municipal. A
proposta não foi adiante por interferência direta do
governador que não desejava ver a prefeita Maria Luiza saindo
da prefeitura como vítima dos “corruptos vereadores”. Nesta
situação, o governador pediu à Procuradoria Geral do Estado um
parecer sobre um decreto de intervenção na Mesa Diretora da
Câmara Municipal. Com o parecer favorável, o decreto foi
enviado à Assembléia Legislativa e aprovado. Conforme o
argumento apresentado pelo decreto, a Câmara Municipal
encontrava-se sob auditagem do Conselho de Contas dos
223
Municípios em decorrência de denúncias de corrupção praticada
por seus dirigentes. Foi também aberto um inquérito policial
para apurar práticas lesivas ao patrimônio público. A
gravidade da situação é ampliada pelo clamor da opinião
pública, exigindo providências urgentes.
Com este ato, a Câmara Municipal de Fortaleza sofreu
seu maior abalo político. Apesar de a CMF já ter uma imagem
associada à corrupção, empreguismo e ineficiência, o ato de
intervenção cristaliza esta imagem negativa dos vereadores.
Num ano eleitoral, não havia propaganda mais negativa para os
vereadores que pretendiam renovar seus mandatos. A intervenção
caiu como uma bomba na cabeça de todos eles, não afetando
apenas os membros da Mesa Diretora, mas todos os vereadores
componentes da Câmara.
Gradativamente, a trajetória da natureza do voto na
década de 1980 passa de um voto clientelista e preso ao padrão
tradicional de dependência econômica para um voto mais
disperso e menos controlado. Parente (1995, p.13), em análise
do panorama eleitoral desta década afirma: “Existe [no setor
urbano] um eleitorado mais independente, embora não tenha
deixado de existir o voto clientelista”.
Houve mudanças na natureza do voto. Mesmo assim,
conforme se constata, o alistamento de novos eleitores
continua sendo apontado por todos os vereadores como o meio
mais importante para assegurar uma votação cativa. No passado,
o alistamento era não somente difícil, mas seus custos
inteiramente arcados por conta do vereador. Parte dos custos
era dividida com outros políticos, deputado estadual e
224
federal, com quem se mantinha relações políticas. Um vereador
mantém sempre com outros políticos deputado estadual ou
federal laços de apoio mútuo usados para dividir os custos
destes serviços prestados ao eleitorado. Alguns vereadores
fazem parte mesmo de agrupamentos políticos, mais ou menos
definidos, de apoio constante a determinado deputado federal.
No ano eleitoral intensificava-se o alistamento. A
vereadora Ivone Melo descreve o modo como fazia o alistamento:
Levava à noite umas dez pessoas que ficavam na fila dotribunal eleitoral. Levava jantar e café para eles. Pelamanhã cedo, levava mais dez pessoas, que iriam retirar otítulo, e os dez que pernoitaram na fila eram deslocadospara o fim da fila, esperando, uma outra chegada deeleitores que estavam vindo do seu comitê.
Desta forma, segundo assegura, alistava aproximadamente
250 novos eleitores por dia. O alistamento eleitoral
constituía um gasto de campanha elevado. Por isto mesmo era em
parte bancado pelos deputados.
O vereador de comunidade de bairro presta diariamente
atendimento social à sua comunidade, isto é, atende todos os
dias pessoas que o procuram solicitando algum tipo de ajuda.
Auxiliando individualmente cada eleitor, em sua necessidade, o
vereador espera ser retribuído com o voto de gratidão. O
trabalho de auxílio e ajuda no pagamento da conta de luz,
água, telefone, compra de remédio, retirada de certidão de
nascimento e outros documentos é rotineiro na casa do vereador
comunitário de bairro. Na época da eleição, este movimento de
eleitores pedintes se intensifica, principalmente em torno de
trocas materiais. Esta é uma das razões para o desaparecimento
225
do vereador de comunidade de bairro. Já não basta o
atendimento cotidiano, esperando na época da eleição o voto de
gratidão. Isto porque na época da eleição a troca deve se
intensificar, já não se pode contar unicamente com os favores
prestados fora do tempo de eleição.
Entretanto, nem todos os vereadores de comunidade de
bairro atuavam unicamente com o auxílio e assistência direta
ao eleitorado. Ivone Melo, a exemplo de outros vereadores que
tiveram base eleitoral em bairro, mantinha um trabalho de
assistência individualizada, mas, ao mesmo tempo, trabalhava
pela conquista de benefícios públicos para o bairro. Os
chafarizes, as escolas, os postos de saúde, praças,
iluminação, calçamento, drenagem de córregos, aterramento de
lagos, etc. Todos os benefícios caracterizados como obra
pública eram realizados por intermédio do vereador.
Muitos vereadores falam da necessidade de se conjugar
estas duas formas de ação política: atendimento ao eleitorado
individualmente e injunções perante o poder público para a
realização de obras no bairro. O padrão de vereadores que
buscavam obras coletivas para a comunidade e ao mesmo tempo
atendiam individualmente às carências do eleitorado era algo
extremamente comum.
Como se pode observar, ao longo deste levantamento de
eventos importantes e interpretações, a imagem desta década é
de grandes mudanças sociais e políticas. As mudanças
econômicas ocorridas ao longo da modernização conservadora
estavam finalmente tendo repercussão na esfera política. A
introdução de um novo padrão político capaz de orientar as
226
forças nos embates eleitorais indicava que uma nova época
política estava mesmo surgindo e se consolidando. A eleição
seguinte, com a vitória de Ciro Gomes ao governo do Estado,
representou a consolidação do modelo do governo das mudanças e
o impedimento do retorno das antigas forças políticas
derrotadas em 1986. No Ceará, a retórica da mudança durou
muitos anos, com alguns efeitos concretos e outros apenas
aparentes.
O novo ciclo da política cearense caracterizou-se pelo
controle político em nível estadual do grupo político social
democrata, enquanto na prefeitura de Fortaleza se formou um
novo grupo em torno da figura do prefeito Juraci Magalhães.35 O
governo estadual começa a perceber que o “projeto das
mudanças” vai pouco a pouco permitindo que antigos adversários
sejam incorporados a um padrão moderno da política, enfim, que
o projeto mudancista vai se esgotando e tendo menos empenho.
Isto tudo a despeito do elemento discursivo continuar apelando
para a mesma retórica do atraso e do retrocesso político. Já
na administração municipal, depois do saneamento das finanças
promovido pela administração Maria Luiza e, posteriormente,
pela reforma tributária na qual as administrações municipais
tiveram suas atribuições de políticas públicas e aumento de
participação nas verbas do governo federal, ampliou-se com o
35 A administração do prefeito Juraci Magalhães mereceria um estudoaprofundado. Ela se caracteriza por forte expansão da malha urbana comimpacto significativo na vida da cidade. Do ponto de vista político,articula uma prática de cooptação de segmentos da classe média, masprincipalmente o controle de vasta rede de lideranças comunitárias sob sualiderança. Entretanto, em algumas regiões da cidade sofre concorrênciadireta de membros da administração estadual que usam dos mesmosinstrumentos de cooptação dessas lideranças comunitárias. capítulo 5,discuto mais detalhadamente este aspecto.
227
passar dos anos a capacidade de investimento da prefeitura. O
aspecto mais visível da administração municipal em Fortaleza
não é tanto sua dimensão política, pois praticamente nenhuma
inovação institucional foi implementada, mas sim a mudança no
perfil urbano da cidade.
No vendaval político da década de 1980, as mudanças na
forma de condução da administração pública foram produzindo
efeitos perceptíveis na qualidade da representação política.
Aqui interessa-nos determinar em que medida as mudanças
políticas ocorridas ao longo da década de 1980 produziram
efeito no padrão de representação política da Câmara Municipal
de Fortaleza.
Segundo vimos, ao longo dos anos o sistema político
municipal foi praticamente dominado por uma oligarquia de
lideranças políticas com forte vinculação ao território de
bairros e uma rede de assistência ao eleitorado como forma de
assegurar a fidelidade eleitoral. O impacto na representação
política municipal não ocorreu em função das mudanças
políticas da década de 1980, mas principalmente em decorrência
da primeira derrota verificada em 1988 e sucessivamente ao
longo dos anos 1990, quando vai emergindo um padrão de
representação política municipal no legislativo não mais
identificado com lugares e bairros. A profunda mudança na
representação expressa-se pela ampla presença de vereadores
médicos, vereadores evangélicos, vereadores ideológicos e por
fim esta nova representação que denomino de vereador
institucional. O vereador tradicional com padrão centrado na
política de bairro está em franca decadência. Em Fortaleza, o
228
voto transformou-se, deixou de ser centrado em laços de
lealdade, e passou a basear-se na troca simplesmente.
Entretanto, devido às carências sociais de parte da população
de bairros periféricos, ainda encontramos vereadores atuando
na base de antigas práticas da lealdade política, da
camaradagem, esperando a gratidão, mas mesmo eles já não
confiam tanto neste eleitorado cativo e partem em busca de um
eleitorado disperso, carente e, portanto, com forte incentivo
à venda do voto.
Na era da mídia e da publicidade, a política se faz
dentro de outro padrão de competição no qual a imagem é o
elemento mais rico, mais valorizado e importante. Todavia,
como já afirmei, deve se relativisar o impacto deste padrão
midiático na política eleitoral do legislativo. Isto porque há
claramente uma distinção entre o voto que se atribui ao cargo
executivo e o voto para o vereador. A imagem do vereador como
um político que deseja apenas explorar sua função em benefício
próprio ainda existe. Diante disto, verifica-se freqüente
negociação do voto. Esta negociação não é somente em termos
financeiros; ainda se atribui muito voto ao prestígio da
liderança comunitária.
A relevância do padrão midiático publicitário aplicado
à política possui valor relativo, pois se aplica mais à
situação de competição majoritária em circunscrição eleitoral
estadual. Quando a competição se passa em pequenos municípios
e, principalmente, em toda disputa para o legislativo, os
instrumentos midiáticos são de pouca relevância.
229
A origem da força que modifica a sociedade rural tem
conseqüências sobre a natureza das mudanças implementadas.
Nesta sociedade, as transformações são introduzidas de fora,
vindas diretamente do poder estadual, que implementa políticas
públicas alterando a correlação de forças entre as elites
locais. Como as mudanças produzidas que afetam a condição de
vida da população, a exemplo da melhoria na qualidade de vida,
saúde, educação, essa mudança não gera efeitos econômicos.
Assim, cria-se uma contradição entre as melhorias sociais e a
estagnação econômica do município.
A sociedade modificou-se não por seus esforços
internos, ou dinâmica das forças locais, mas pela
interferência no jogo político local de atores externos que
alteram a base do poder, desestabilizando os antigos
dominantes. Todavia, o desequilíbrio criado com a intervenção
de forças externas pode provocar mais problemas do que
solucionar os já existentes.
A ruptura política com a eleição de Tasso é mais
significativa do que a eleição da Maria Luiza. Naquele
momento, a eleição inesperada do PT ao governo municipal
expressou uma repulsa ao modelo tradicional de fazer política,
mas não teve conseqüências imediatas na ordem política
municipal porque havia um fator inibidor, qual seja, a
prefeitura governa ainda com uma Câmara Municipal eleita em
1982, sem renovação, o que dificultou o entendimento entre o
legislativo e o executivo. Depois da campanha das Diretas, as
novas forças políticas emergentes não tinham ainda expressão
230
no legislativo municipal. Essa contradição vai se acentuando
com o passar da administração.
Se a eleição da Maria Luiza não provoca mudanças
imediatas, não expressa uma mudança, o mesmo não ocorre com a
eleição de Tasso. Esta já expressa o clima de mudanças da
época. Por isto suas transformações foram mais intensas,
decisivas e irreversíveis, marcando um novo ciclo na política
estadual. A transformação provocada pela prefeitura popular
origina-se na natureza da própria administração e no sucessivo
confronto com o legislativo municipal, motivo de desgaste
político para ambos.
O ano de 1988 foi enfim aquele da ruptura política no
município de Fortaleza, representado não somente pela total
derrota do candidato da prefeita, mas também dos vereadores
que lhe faziam oposição na Câmara Municipal. A eleição
municipal de 1988 significou a ruptura do padrão existente até
então na política local. Entrava Fortaleza finalmente em
sintonia com as mudanças apregoadas na esfera estadual. Assim
como em 1986, 1988 não teve retrocesso político, pois o tempo
foi responsável pela criação de novos atores políticos no
legislativo capazes de agir com mais eficiência neste novo
ambiente institucional.
A crise freqüente do executivo com o legislativo na
“administração popular” ocorreu precisamente por causa da
idéia já veiculada na época da campanha eleitoral de se
governar com Conselhos Populares, mesmo que até o término da
administração não se tenha sequer definido o que seriam
exatamente estes conselhos, sua natureza e atribuições. Havia
231
uma discussão envolvendo o formato e a origem do Conselho. O
grupo político ligado à prefeita não concordava com a idéia de
a própria administração pública criar os conselhos. Estes
deveriam nascer de modo espontâneo da luta do povo e da sua
organização e somente depois passariam a manter relações com a
prefeitura. Tratava-se de não confundir a organização do povo
como parte do Estado, por isto a idéia de autonomia política,
mesmo dos partidos políticos.
Os principais alvos desta proposta foram os vereadores,
pois eram vistos como instituição da política tradicional e
clientelista, responsável pela miséria da população pobre.
3.5 Ruptura com o Padrão Clientelista
A eleição municipal de 1988 em Fortaleza expressou o
confronto das forças políticas deslocadas do comando da
administração estadual e dos novos detentores do poder que
viam nesta eleição a confirmação do seu projeto político para
a mudança do Estado do Ceará. Neste momento, as forças
políticas à esquerda perdiam-se num confronto interno entre os
que apoiavam e os que criticavam o “projeto popular
socialista” da administração de Fortaleza.
Em âmbito estadual, as forças derrotadas em 1986, mesmo
agora divididas em três partidos – PFL, PDS e PSD, ainda
conseguem obter uma vitória eleitoral significativa na
conquista de prefeituras de cidades importantes. Mas, em
Fortaleza, a disputa eleitoral teve como marca decisiva uma
administração municipal marcada pelo signo da incompetência e
ineficiência política. A eleição contou com nove candidatos,
232
dispersando as forças ideológicas tanto de esquerda quanto de
direita. Os partidos de direita lançaram três candidatos:
Gidel Dantas, PFL; General Torres de Mello, PDS; e Marcos
Cals, PSD, e ainda obtiveram 23,56% dos votos válidos. Também
os partidos de esquerda lançaram três candidatos: Edson Silva,
PDT; Mário Mamede, PT; e Dalton Rosado, PH, obtendo juntos
31,84% dos votos. O candidato das novas elites políticas
oriundas da eleição estadual de 1986 lança-se Ciro Gomes, que
obteve 25,79% dos votos válidos. É certo que o resultado desta
eleição para as políticas de centro decorreu da divisão da
esquerda, que não chegou a um acordo sobre o lançamento de um
candidato único. A divisão destas forças que representavam o
espectro político mais progressista favoreceu a vitória do
PMDB em Fortaleza.
Desde a redemocratização em 1946, a eleição para a
Câmara Municipal foi a mais competitiva, contando com 1.069
candidatos, para 33 vagas, ou seja, uma média de 32,39
candidatos por vaga. Diante do grande número de candidatos, os
suplentes pressionaram o Tribunal Eleitoral a ampliar o número
de vagas na Câmara Municipal. Foram atendidos e passou para 41
o número de cadeiras. Com a ampliação de oito novas cadeiras
praticamente todos os partidos foram contemplados com um
vereador a mais em sua bancada.
A principal novidade desta nova conjuntura política de
meados dos anos 1980 foi o surgimento de lideranças
comunitárias. Nessa década, a transformação na maneira de se
fazer campanha política vai aparecer de modo mais cristalino
com a emergência de um novo tipo de representante político no
233
legislativo. As condições de sustentação desse novo
representante estão baseadas na existência de lideranças
comunitárias que se alimentam e são incentivadas em suas ações
pela atividade eleitoral freqüente desde o processo de
redemocratização.
A ruptura política ocorrida na eleição de 1988 foi um
desarranjo temporário das forças políticas que vinham tendo
condições estáveis de se reproduzirem sem grandes
dificuldades, provocadas pela incorporação de novos atores
políticos ou - quem sabe - trata-se de algo mais profundo,
criando e inaugurando um novo padrão na representação política
local. A questão posta deste modo exige respostas exclusivas,
pois caso a ruptura tenha sido apenas parcial, provocada por
elementos conjunturais, não se pode pretender qualquer
constituição de um novo padrão. Quanto à segunda resposta,
indica uma inflexão política profunda e enraizada, com
mudanças que vão provocando transformações ao longo de um
período.
Todavia, não foi exatamente a eleição da prefeita Maria
Luiza, isoladamente, que desencadeou as mudanças verificadas
no meados dos anos 1980. O principal responsável foi o
posicionamento administrativo em face do sistema tradicional
de troca de favores existentes entre o executivo e o
legislativo. Foi esse sistema que se rompeu e que levou a
tantos atritos entre os dois poderes. O evento eleitoral de
1985 foi decisivo como fator em seu desdobramento na
formulação do poder e na forma como agiu por três anos. Não se
pode também esquecer que esse período é marcado pela
234
expectativa em relação ao Plano Cruzado e posteriormente pela
frustração ante o estelionato eleitoral decorrente. Ao mesmo
tempo, a situação financeira da prefeitura não sofreu grandes
mudanças positivas, pois a crise fiscal assolou praticamente a
administração popular enquanto durou seu mandato.
3.6 Renovação Radical - A Degola de 1988
A expressão apropriada para o que ocorreu com a eleição
de 1988 é precisamente essa: “degola popular”, pois a
administração popular teve impacto direto sobre a trajetória
dos vereadores pelo confronto estabelecido ao longo de toda a
gestão da prefeita Maria Luiza.
Os vereadores da época da Maria Luiza são unânimes no
julgamento sobre as razões da derrota sofrida por muitos deles
naquelas eleições. Primeiro, há a natureza da administração
popular que não permitia mais o acesso até então mantido pelos
vereadores na liberação de obras e pequenos favores ao
eleitorado via secretários municipais. Havia uma situação de
elevada carestia financeira a dificultar ainda mais os
alistamentos e a ajuda ao eleitorado ficava mais inacessível.
Se a ausência de acesso ao poder municipal impediu o
uso privado do poder público, houve também uma campanha
sistemática de desgaste político feita pelos meios de
comunicação. Por fim a intervenção na Mesa Diretora expôs toda
a situação de desgaste ao qual já vinha se submetendo ao longo
dos anos.
235
Na nossa opinião, a eleição direta da prefeita Maria
Luiza não foi o fator decisivo para a constituição do novo
quadro político municipal, não somente pela natureza da
eleição, uma vitória inesperada que desnorteava as forças
políticas locais, que, ao contrário, acentuou muito a disputa
política no interior das correntes ideológicas de esquerda. A
prefeita contou com poucos aliados na Câmara Municipal porque
a maioria dos vereadores era remanescente da legislatura
anterior, principalmente do PMDB, partido derrotado nas
eleições para prefeito. Além disso, a natureza do voto de
muitos vereadores que mantinham vinculação com votação de
bairros dependia, para seu apoio, de acessos à máquina
administrativa do município. Mas a crise financeira então
vivenciada pela prefeitura impedia qualquer política de
cooptação e de aceitação de política clientelista.
Conseqüentemente, os vereadores com esse perfil se viam
marginalizados em seus pedidos para suas comunidades. Enquanto
o confronto político das forças populares que sustentavam a
administração popular se situava em parte do movimento popular
organizado internamente, na Câmara Municipal havia pouca base
de apoio. Por isto o confronto freqüente entre os dois
poderes. Temporariamente, os vereadores que detinham base em
bairros viram sua reprodução ameaçada pela ausência de acesso
ao setor público e à troca de apoio político por obras e
benefícios individualizados ao eleitorado.
A explicação corrente para esse abalo na renovação da
representação política no legislativo de Fortaleza foi
atribuída à desmoralização sofrida pela Câmara ao longo da
236
gestão Maria Luiza, culminando com a intervenção na Mesa
Diretora, acusada de corrupção. A série de acusações aos
vereadores ao longo da gestão petista é um fato importante.
Entretanto, há um novo quadro partidário surgido desde a
última eleição municipal em 1982, qual seja, o aumento de
partidos e de candidatos teve um efeito institucional maior do
que qualquer outro fator para a derrota de grande número dos
vereadores que pleitearam a reeleição. Muitos destes
candidatos foram motivados pelo próprio desgaste dos
vereadores. Conforme já assinalamos, houve expressivo aumento
de candidatos ao cargo de vereador, muitos motivados pelo
desgaste político dos atuais. A competição eleitoral levou à
renovação da Câmara Municipal de forma jamais vista em outras
eleições. Há ainda o fato de que nesta eleição os candidatos
enfrentavam um quadro institucional novo de multipartidarismo
onde a posição dentro de uma coligação é fundamental para
assegurar o quociente partidário. É preciso lembrar que Rosa
da Fonseca obteve na época 3.093 votos, representando a décima
votação entre os vereadores. Mesmo com esta votação, não foi
eleita porque seu partido não obteve quociente eleitoral.
237
4. MUDANÇA POLÍTICA E PADRÕES DE REPRESENTAÇÃO
4.1 Elementos do Novo Cenário Político
Depois de sofrer marcante mudança no final dos anos
1980, a representação política de Fortaleza caminhou
progressivamente para um novo padrão. Pela análise do modo
como se faz campanha em duas eleições (1996 e 2000), pretendo
mostrar a ocorrência de alteração nos instrumentos que
permitem a eleição de um candidato. Para isto, o mais decisivo
não é a presença de recursos midiáticos, nem a superexposição
do político, mas a decadência progressiva do vereador de
comunidade de bairros, o qual deixa espaço para a emergência
de uma nova categoria de vereadores.
A redução do número e a pouca relevância dos atuais
vereadores de comunidade de bairros se expressam pela sua
presença em cargos-chave na CMF. Fortaleza deixa de centrar
sua representação em figuras de solidariedade de bairro e
passa a se constituir em vínculos de interesses gerais. O
apoio em organizações sociais de diversa natureza começa a ser
o elemento mais fundamental numa eleição. Ao se manter
vinculações institucionais com um número considerável de
pessoas, entre as quais o candidato se faça reconhecer como
liderança, ele encontra as condições para a eleição.
Em época de eleição, a classe política municipal busca
a identificação com segmentos organizados e não mais com
segmentos de bairros. Essa maior expressão de representantes
com vinculações organizadas de interesses ou valores sociais
238
exprime obviamente a maior presença do Estado e o maior
controle dos recursos públicos por parte da sociedade. Já não
há mais como distribuir impunemente benefícios em troca de
apoio político na CM.
Conforme expus em capítulos anteriores, a cidade de
Fortaleza sofreu uma ruptura política institucional no final
dos anos 1980. Essa ruptura política foi explicada pela
ocorrência da mudança de um padrão institucional de competição
política, representada pelo aumento do número de partidos e
aliada aos eventos políticos da época, indicativos da presença
de forte sentimento coletivo de expectativa por mudanças
políticas.
Os anos 1980 foram de mudanças generalizadas na ordem
política brasileira, culminando com a promulgação da nova
Constituição de 1988. Em Fortaleza, no mesmo ano, em parte
devido a fatores internos à dinâmica da sociedade local,
ocorreu nossa ruptura. A administração da prefeita Maria Luiza
é responsável por esse evento político.
Designa-se, neste trabalho, ruptura política de Fortaleza o
evento político verificado na eleição de 1988 com a derrota de
muitas lideranças políticas tradicionais. Mudança brusca na
representação do legislativo municipal da cidade, a eleição de
1988 foi um marco na história política de Fortaleza e se
constituiu no primeiro confronto eleitoral baseado nas regras
anteriormente existentes, antes do golpe militar de 1964.
Retornou o padrão de eleição direta para o executivo
juntamente com o legislativo para mandatos de quatro anos.
239
Nesta eleição aconteceu o primeiro confronto entre um
candidato apoiado pelas novas forças políticas estaduais,
representante de uma nova elite dirigente, e uma dissidência
destas mesmas forças. O confronto político municipal de 1988
em Fortaleza foi entre as forças políticas renovadas e não
mais entre as forças decadentes e a nova elite. Vence a
estrutura e o poderio em formação do governo estadual. Dada a
diferença de votos entre os dois candidatos, foi uma vitória
com gosto de derrota.
Quanto à eleição do legislativo, a primeira grande
diferença em relação às eleições anteriores foi o número de
candidatos a uma das 41 cadeiras na Câmara Municipal. O
perfil político da Câmara Municipal era francamente
conservador, mesmo contando entre eles com parlamentares
progressistas: Chico Lopes, Nildes Alencar, Samuel Braga e
Juarez Leitão. Todavia essa pequena presença de voto
ideológico não era suficiente para modificar seu
comportamento. Em certo sentido, os membros mais à esquerda já
vinham assegurando desde os anos 1970 três lugares na Câmara,
oriundos principalmente de bases educacionais como professores
e ligações com o setor educacional.
Essa legislatura foi abalada ao longo de seis anos de
desgaste político com acusações de corrupção e malversação de
dinheiro público. Como havíamos retomado plenamente a
democracia, os meios de comunicação cobrem de maneira mais
sistemática os poderes locais. Os escândalos ocorridos na
Câmara são amplamente divulgados. Uma jornalista da cidade
lança pelo rádio o slogan “Para vereador, não vote em
240
vereador”. Havia um profundo acúmulo de desgaste
institucional, revelando inadequação na conduta do legislativo
municipal com as novas condições políticas e debate na
sociedade.
As mudanças sociais e políticas ocorridas desde a
campanha das “Diretas Já”, passando pela eleição da prefeita
Maria Luiza e em seguida pela eleição de Tasso Jereissati em
1986, e os desgastes políticos da Câmara Municipal, aliados à
modificação do quadro institucional da competição política
eleitoral com a ampliação do número de partidos e de
candidatos, serão os responsáveis pela derrota de importantes
representantes políticos que detinham assento no legislativo
há anos, de modo ininterrupto: Abel Pinto, Ademar Arruda,
Aluísio Fontenelle, Ernesto Gurgel, Eurico Matias, Gutenberg
Braun, Haroldo Jorge Vieira, Hermano Martins, Herval Sampaio,
Iria Ferrer, Ivone Melo, José Araújo de Castro, José Lima
Monteiro, José Sidou, Luís Ângelo e Sérgio Costa.
Entretanto, nem todos os vereadores com base eleitoral
em bairro com algum tipo de estrutura de assistência social ao
seu eleitorado sofrem derrota. Maria José de Oliveira, Mário
Nunes, Maurílio Ascênsio e Narcílio Andrade mantêm-se no
poder. A mudança mais significativa ocorrerá com os que
escapam da guilhotina popular de 1988. Inicia-se, então, a
renovação de geração destes representantes políticos. Muitos
deles já, nesta eleição, indicaram seus filhos para concorrer
em seu lugar.
Após a ruptura política local com a ascensão de novas
lideranças políticas ao legislativo municipal, constata-se uma
241
mudança no comportamento político dos vereadores. Conforme se
percebe, já não mais seria possível atuar diretamente no
parlamento como fora feito até aquele momento, contando como
troca do apoio político ao executivo a realização de pequenas
obras em sua área de atuação política nos bairros. A
manutenção da condição de liderança política no bairro
dependia essencialmente da capacidade do vereador carrear
obras coletivas e assistência imediata aos seus eleitores.
Para muitos vereadores, a combinação destes dois elementos foi
decisiva. Segundo revelou a eleição de 1988, a competição
política nos anos seguintes seria sempre muito acirrada e
exigiria novas estratégias diante do novo cenário político. A
escolha do partido pelo qual disputara a eleição tornou-se um
elemento inquestionável. Constata-se também que a manutenção
de uma mesma quantidade de votos somente pode assegurar sua
permanência no legislativo aliada a um bom posicionamento
dentro de um partido menor ou médio. Gradativamente, a noção
de coeficiente partidário vai se tornando evidente como uma
regra a ser levada em consideração, responsável pela vitória
ou derrota do candidato. Estes são alguns novos elementos
existentes depois de 1988 e que passaram a orientar a decisão
política dentro do novo cenário.
No novo cenário eleitoral pós 1988 aparecem três
elementos decisivos para assegurar uma eleição: manutenção de
uma base eleitoral sólida em algum segmento social definido do
qual possa se apresentar como liderança política inconteste;
dispersão de votos via mediação de lideranças comunitárias
atuantes diretamente com a população mais carente na periferia
242
da cidade e uma estratégia partidária eficiente capaz de
assegurar, com os votos disponíveis, uma boa colocação na
lista partidária. Sem a conjugação destes três elementos não
será mais possível garantir uma eleição para vereador em
Fortaleza.
Diante da nova configuração das disputas eleitorais
proporcionais nas quais estes três elementos assumem papel
decisivo, ocorreu uma mudança no perfil político da
representação legislativa. Não somente os candidatos tendem a
se identificar cada vez mais com segmentos específicos,
apresentando-se como porta-voz de suas lutas e interesses
particulares, como há uma dispersão de votos em pequenos
nichos eleitorais não controlados mais diretamente pelo
próprio candidato. O apelo imprescindível às lideranças
comunitárias em campanhas eleitorais é outra novidade da
década de 1990.
As lideranças comunitárias serão objeto de discussão no
próximo capítulo. Elas são partes de um recente movimento de
transformação social em que o poder público solicita o apoio e
a participação direta de estruturas da sociedade civil para a
realização de algumas políticas públicas.
A mudança mais significativa no padrão da representação
política ocorrida na década de 1990 em decorrência direta dos
fatos da década de 1980 foi a eminente decadência das
lideranças políticas com base social em bairros. O
deslocamento da representação sai de uma base em grupos
sociais centrados nos laços de confiança e gratidão direta com
o líder político e passa a ser feita em segmentos sociais
243
particularistas com forte apelo ao pertencimento profissional ou de
outra natureza. O território, lugar de moradia, já não é o
principal indicador para definir o voto da população
periférica. Os segmentos sociais com perfil particularista são
os mais aptos a conquistar uma vaga no legislativo municipal,
pois são capazes de mobilizar internamente recursos dos laços
de contatos de maneira ampla. As identidades religiosas,
afetivas em relação a um time de futebol, ao pertencimento a
uma corporação profissional, comunidade de valores mobilizam e
asseguram apoio eleitoral maior do que o lugar de moradia.
Somente para exemplificar minha afirmação, Eurivá Matias,
vereador desde 1988, quando assume a candidatura deixada por
seu pai, ex-vereador Eurico Matias, inicialmente constitui sua
votação de maneira semelhante à de seu pai. Vinculava-a à área
dos bairros Parque Araxá e Rodolfo Teófilo, mas já na eleição
de 1996, constata-se uma mudança no seu perfil de votação. A
dispersão dos seus votos indicava 56,70% de votos concentrados
em dez bairros contíguos. Ele passou a se apoiar no segmento
social ligado aos pequenos times de futebol da periferia.
Se há redução da base de sustentação política para os
vereadores com apoio em bases comunitárias de bairro, cresce
ao mesmo tempo o número de vereadores com perfil
institucional. O vereador institucional – egresso da
burocracia pública ou privada – é um ex-dirigente de alguma
instituição pública ou privada importante que por conta da
superexposição é incentivado a se lançar na vida pública
eleitoral. Conta para sua primeira eleição com o trabalho
realizado na instituição que o projetou na cena pública
244
municipal ou estadual. É esse tipo de vereador que mais se
serve do sistema de lideranças comunitárias existente na
cidade. Ao mesmo tempo em que não mantém com nenhum segmento
social organizado vínculos orgânicos mais definidos para poder se
apresentar como candidato desse segmento, aparece disputando
uma vaga no legislativo em decorrência do trabalho realizado
em sua antiga função. Esse tipo de candidato pretende se
legitimar pelo que já fez à frente de uma instituição e não
pelo que fará.
O resultado eleitoral de um candidato, não se deve
esquecer, é produto heterogêneo de diferentes inserções em
agrupamentos sociais. É raro um candidato ter uma inserção
exclusiva ou obter sua votação unicamente num segmento social.
Quando isto ocorre, normalmente, se trata de um candidato em
primeira eleição. Depois da eleição, é preciso assegurar
rapidamente a ampliação da sua base inicial. Isto decorre não
somente do descontentamento natural em face de expectativas
não correspondidas, mas também porque alguns meios usados na
primeira eleição já não surtem o mesmo efeito empregado na
condição de vereador.
A dispersão da votação de um candidato indicaria sua
inserção ampliada em vários segmentos sociais e maior tempo de
mandato. Isto é tão verdadeiro que encontramos maior dispersão
eleitoral entre os vereadores com maior número de mandatos
consecutivos e, entre os novatos, maior concentração eleitoral
num único segmento. Isso em geral ocorre, não em virtude da
quantidade de mandatos, mas pela natureza da base eleitoral.
Assim, Paulo Mindello é vereador com três mandatos e pela
245
regra mencionada deveríamos encontrar sua votação mais recente
de maneira dispersa. Quando analisamos sua votação de 1996,
constatamos uma concentração de votos de 54,21%, considerando
dez bairros contíguos. Isto acontece em parte, mas nem tanto
quanto ele mesmo gostaria. Como sua base social de sustentação
eleitoral nunca se modificou e permanece centrada no
agrupamento religioso dos carismáticos, em cada pleito há
sempre enorme risco de não assegurar sua reeleição. O dilema
deste tipo de candidato é ampliar sem perder sua anterior base
eleitoral. Mas a natureza religiosa dessa base política impede
muitas vezes a ampliação para outros setores sob pena de
perder sustentação em sua base inicial. Entre o risco de
fraturar sua base com descontentamento eventual pela ampliação
para outros segmentos, não tem alternativa e permanece
sustentado na mesma base inicial, mesmo correndo sério risco
de não se reeleger.
O vereador elege-se a primeira vez tendo como base de
mobilização e apoio um segmento social bastante definido com o
qual já mantém vínculos de identificação como liderança. A
natureza desta vinculação será determinante para sua eleição,
pela capacidade de agregar interesses em torno de si. Um fato
se passa com quase todos os candidatos assim eleitos. Na
eleição seguinte, sofrem contestação de sua liderança por meio
do lançamento de candidatos que pretendem igualmente a disputa
de liderança do segmento social. Isso leva inevitavelmente o
vereador a procurar dispersar sua base de apoio inicialmente
conquistada e apoiada. Entre uma e outra eleição, é preciso
ampliar a base de sustentação política. A competição política
246
se situa exatamente nesta tensão entre a necessidade de
ampliação da base inicial e o desejo de conservar aquela já
conquistada.
No passado, o padrão de comportamento dos vereadores da
Câmara Municipal era caracterizado pela troca de apoio. Ao dar
apoio político ao executivo, exigia em troca o atendimento de
favores para as áreas de atuação política. O gestor municipal
distribuía parcela significativa de cargos dentro da
administração para seus aliados com vistas a assegurar uma
aliança política e uma base de sustentação política.
Antigamente eram empregos, principalmente os de menor
remuneração, atribuídos aos vereadores que detinham bases
políticas na periferia da cidade. Além dos empregos, havia os
benefícios públicos, como os equipamentos coletivos instalados
no bairro. Ruas pavimentadas e asfaltadas, enfim, qualquer
atribuição imediata de serviço municipal era intermediada
pelos vereadores. A distribuição dos bens públicos era mediada
por políticos os quais agiam na área do bairro de modo que
toda ação pública aparecia como tendo sido intermediada pela
ação e pelo prestígio do vereador. Asfalto, calçamento,
consultas médicas, serviços gerais eram sempre apresentados
como resultado da inferência da ação do vereador. Da sua ação
diligente e determinada dependia a ocorrência ou não de obras
públicas no bairro. A ampliação das atribuições do poder
municipal na execução de políticas públicas tornou a alocação
de bens públicos menos sujeita à vontade arbitrária do
governante.
247
A constatação inicial de estarem os candidatos com base
em comunidades de bairro deixando aos poucos suas bases
iniciais e ampliando sua área de influência política baseia-se
na verificação do apoio eleitoral recebido de uma eleição para
outra. Assim, Luís Arruda, filho do ex-vereador, por trinta
anos ininterruptos, Ademar Arruda, em 1996 tinha 60,71% dos
seus votos obtidos numa base de dez bairros contíguos, sendo
sua maior concentração de voto na área do Centro e Praia de
Iracema. Maria José de Oliveira, com 59,60%, sobre a mesma
base; assim como Narcílio Andrade, com 59,60%; Eurivá Matias,
com 56,70%, e José Carlos Carvalho, com 53,26%. Em todos estes
casos, observa-se a pequena diminuição da base de concentração
dos votos numa única base territorial. Este dado é melhor
entendido se o compararmos com o grau de contração atingido na
mesma eleição de 1998 pelos vereadores campeões de
concentração de votos: Maurílio Assêncio (86,35%) e Agostinho
Moreira (85,67).
A expansão de uma base política ocorre normalmente por
meio de segmentos semelhantes. Isso explica por que é mais
fácil a expansão de uma base política conquistada numa
categoria profissional do que num segmento religioso. A base
política religiosa é identificável com certos valores
exclusivos, não permitindo, pela sua natureza exclusiva, a
ampliação para outros segmentos sociais, principalmente para
os que possam entrar em conflito valorativo com o primeiro. A
base política em segmentos profissionais é a mais expansiva,
pois permite com facilidade a incorporação de outros segmentos
248
sociais, não somente profissionais, mas de consumidores,
cidadania, educação, saúde, moradia, etc.
Enquanto há certos segmentos sociais com potencial de
expansão eleitoral, outros são extremamente restritos. Os
grupos religiosos são exemplos do tipo restritivo à expansão e
incorporação de novos segmentos na mesma representação
política. O segmento social de bairros, que nos interessa
particularmente neste estudo, tem uma natureza restritiva por
razões diferentes do ideológico. A expansão de uma base
política em comunidade de bairro deve se fazer, como ocorre
com outras, orientada pela semelhança da demanda política.
Neste caso, a demanda oriunda das comunidades de bairro é
relativamente onerosa e o vereador não pode expandir sua
atuação usando os mesmos instrumentos da sua primeira base
social. Não somente esta expansão tem um custo muito elevado,
mas há também a possibilidade real de se inserir agora em
outras comunidades sem o custo direto da prestação de serviços
e atendimento eleitoral.
4.2 Quem são os Candidatos a Vereador em Fortaleza: Candidatos
e Estilos de Campanha Legislativa
Antes da apresentação de alguns candidatos à eleição de
2000, destacaremos alguns dados existentes sobre o perfil mais
genérico dos concorrentes. Estes dados foram obtidos junto ao
TRE e constam de um questionário a ser respondido pelos
candidatos como forma de obter o registro da candidatura.
Analisando estes dados podemos concluir o perfil médio do
candidato. O fato de uma eleição ser disputada por 646
249
candidatos não significa que todos tenham o mesmo peso
eleitoral. Isto é importante para podermos distinguir os
candidatos realmente fortes e aqueles que simplesmente acabam
preenchendo a lista partidária.
O Código Eleitoral em vigor define os critérios formais
de participação do cidadão na disputa eleitoral. Para o cargo
de representante político não há concurso público capaz de
medir a competência do candidato. O concurso existente é uma
eleição disputada com outros com vistas à mesma posição. A lei
não define o nível desta competição, apenas regula a
competição, as normas e procedimentos a serem usados para se
atingir o objetivo.
De modo geral, os requisitos legais são de duas ordens:
um limite mínimo para se participar como candidato, que no
caso coincide, para a função de legislador municipal, com a
idade mínima de 18 anos. Qualquer pessoa não incluída na
sociedade como um eleitor está privada deste direito. Estão
excluídos os que não ainda atingiram esta idade mínima.
Além da idade mínima, o postulante deve ser filiado a
um partido conforme um tempo definido em lei. Isto é, nosso
sistema político só permite a representação política via
partidos políticos, mesmo que a sociedade possa se expressar
por vários outros meios. Unicamente o sistema partidário é
legitimado para tratar da ordem pública. Os partidos são
detentores do direito à mediação política entre a sociedade e
o Estado. O tempo mínimo de filiação partidária é uma forma de
evitar o uso do partido para fins de interesse pessoal.
250
Estes são dois critérios legais que um cidadão cumpre
facilmente. Mas quais são as condições concretas que
possibilitam a alguém ser autorizado a se lançar candidato? Ou
seja, o que faz um líder de um segmento da sociedade tomar a
decisão de ocupar um cargo na representação política da
sociedade?
A competência intelectual não parece ser algo
importante, pois afinal não se trata de um concurso para
averiguar as competências técnicas dos candidatos. Mesmo que
alguns ajam e pensem deste modo, a disputa eleitoral não prima
por uma seleção dos candidatos mais competentes em suas
carreiras profissionais. A meritocracia não é utilizada no
universo da disputa por uma função de liderança política.
Na opinião de muitos, esta função é ocupada de acordo
com o poder econômico. Quem tiver dinheiro será capaz de ser o
escolhido como líder político. A demonstração de uma
experiência bem-sucedida na sua vida privada como empresário é
exemplo de ser uma pessoa determinada e capaz de fazer muito
pelos outros. Dependendo do tipo de eleição, este tipo de
candidato apoiado em recursos financeiros leva vantagem. Para
os cargos legislativos, aparentemente ter apenas dinheiro não
elege ninguém. Outras vezes, não compensa o gasto muito
elevado para se ocupar esta função visto que as decisões no
parlamento serão de natureza coletiva. É preferível
influenciar os representantes de fora.
O recurso mais decisivo para a conquista de uma posição
de líder político eleito é mesmo o cultivo de uma rede de
relações e vínculos sociais passiveis de ser atualizados
251
durante o período eleitoral. São estas relações aliadas às
outras e o reconhecimento de uma posição de destaque do
candidato que o credenciam a se tornar um líder político e
pleitear uma vaga como representante político.
Os vínculos sociais múltiplos ou profundos em um único
segmento social permitem que alguém possa se lançar candidato,
mas mesmo assim é preciso a mobilização de outros recursos.
Entre estes recursos, o financeiro não é desprezível e torna-
se tanto mais necessário quanto os forem os círculos de
relacionamento social disponíveis ao candidato. Apoiando-se
nestes círculos de pessoas, formando redes de apoio e
sustentação da candidatura, muitas vezes o dinheiro passa a
ser secundário. Em outros momentos, candidato com muitos
recursos financeiros são incapazes de mobilizar apoios
importantes para sua candidatura. Na eleição de 2000, o
candidato Magno Muniz, ligado ao segmento imobiliário, mesmo
mobilizando uma equipe profissional irrigada com muito
dinheiro, não obteve êxito. O apoio de uma rede social pode
substituir o recurso financeiro de acordo com o perfil
ideológico do candidato. Entretanto, as campanhas para o
legislativo municipal estão exigindo cada vez mais recursos
financeiros. Segundo dados do TRE, o custo da campanha de 2000
para cada vereador girou entre R$ 4 mil e R$ 200,00 mil.
Todo candidato deve dispor no seu ativo político de um
número considerável de pessoas com quem possa contar para
divulgar e trabalhar em defesa da sua candidatura. Esta rede
intermediária de divulgação e propagação da liderança do
candidato é que assegura uma eleição quase sempre bem-
252
sucedida. Das candidaturas que acompanhei mais de perto,
visitando praticamente uma vez por semana seus comitês, a de
Nelson Martins mantinha uma estrutura organizacional quase
profissional, pois era composta de funcionários do seu
gabinete da Câmara e mais outras pessoa contratadas
expressamente para trabalhar na campanha. Luizianne Lins, por
sua vez, fez sua campanha centrada num núcleo de pessoas mais
dispersas, mas contou com a participação direta dos
funcionários do seu gabinete na Câmara, além de jovens e
estudantes que foram se agregando em torno do seu Comitê.
Willian Correia, um vereador típico de bairro, não contava com
nenhum grupo de apoio fixo. Mobilizou-se praticamente, durante
toda a campanha, contando apenas com uma assessora
parlamentar. Ele mesmo fazia todo o resto. Somente para
eventos maiores, como uma concentração na Barra do Ceará,
mobilizou apoiadores do entorno da sua casa. Paulo Mindello
visitou os grupos de orações carismáticos e algumas
comunidades, sempre sozinho. O trabalho gerencial da sua
campanha era feito no seu gabinete da Câmara pelos assessores
parlamentares. Neste aspecto há uma diferença muito acentuada
entre os concorrentes, pois os atuais mandatários
habitualmente se servem da estrutura institucional da Câmara
para sua campanha de reeleição.
Quais são os atributos mais ressaltados pelos
candidatos a vereador em Fortaleza?
Ao analisar o material recolhido de fitas gravadas de
programa eleitoral da eleição de 1996 e em maior número da de
2000, segundo evidenciado, a identificação mais importante é o
253
pertencimento profissional. O pertencimento como membro de uma
categoria profissional é algo extremamente ressaltado pelos
candidatos. A condição de membro de uma comunidade, morador de
um bairro periférico da cidade, faz-se como critério
diferenciador dos demais candidatos. Chamar a atenção para seu
pertencimento religioso não é tão freqüente como poder-se-ia
esperar; os evangélicos são os únicos que fazem este tipo de
apelo baseado em valores religiosos. Não basta ressaltar
somente seu pertencimento a um agrupamento profissional,
principalmente se este for uma categoria de prestígio, mas
também seu potencial numérico. Os candidatos com envolvimento
em alguma luta popular enfatizam este fato como um critério de
legitimação da posição a ser ocupada.
Se o pertencimento profissional parece algo tão forte
na demarcação de diferença dos que podem e dos que não podem
legitimamente pertencer à categoria de liderança política,
supõe-se que os candidatos que não o fazem revelam um não
pertencimento a este universo. Estes são normalmente líderes
comunitários e para se diferenciar ressaltam seu devotamento
ao interesse do povo.
Os candidatos com profissão definida e detentores de
prestígio na sociedade, como médicos e advogados, por exemplo,
não deixam de ressaltar este pertencimento. De algum modo, a
formação profissional parece servir como um filtro para os
candidatos a representantes políticos. Os impossibilitados de
assumir sua condição de pertencer a uma prestigiada comunidade
profissional buscam outras estratégias de identificação.
Entretanto, mesmo os que enfatizam seu pertencimento por
254
formação acadêmica ou profissional a uma profissão não o fazem
no sentido de pedir voto para a comunidade profissional as
quais pertencem. Destacam seu pertencimento profissional
apenas como critério de diferenciação em relação aos demais
candidatos. Outros, quando são menos qualificados
profissionalmente, ao ressaltar seu pertencer a uma dada
profissão, fazem isto como pedindo para serem seus
representantes no legislativo. A referência a uma instituição
onde trabalham é uma forma não de se diferenciar, mas de pedir
apoio aos seus colegas de profissão. Um candidato identificado
como membro da corporação da polícia militar pede voto usando
exatamente o critério de pertencer a esta corporação e querer
representá-la no legislativo.
Somente apresentando-se como membro de uma organização
social, o candidato parece sentir que abre possibilidade para
se legitimar a ocupar a função de liderança política. Muitos
acreditam que pelo simples fato de pertencerem a determinada
profissão ou corpo institucional estão, automaticamente,
autorizados e legitimados como líderes políticos. Outros, não
tendo o apoio de uma organização profissional, uma corporação
à qual possam fazer referência para sua identificação, falam
da sua própria trajetória de luta em defesa dos interesses de
moradores de determinado bairro. Para estes, a luta em defesa
dos interesses destes moradores é aquilo que os autoriza a
participar de uma eleição e conquistar a função de liderança
política. Este tipo de candidato costuma normalmente afirmar
que já são vereadores na prática, isto é, já exercem a função
de auxiliador das pessoas mais humildes de certas comunidades.
255
Atender as pessoas em suas dificuldades parece para estes
candidatos a principal função do vereador. E isto eles já
fazem como líderes de uma associação de bairro ou de uma
agremiação esportiva.
Mas, no processo da campanha, o que aparentemente seria
algo regulado por uma legislação que diz quem pode e quem não
pode ser um candidato e quais os atributos a serem comprovados
para ser candidato, não é tão simples. Neste momento, conforme
vemos, nem todos os candidatos são iguais e nem todos dispõem
dos mesmos recursos de capital político para melhor legitimar
seu nome na disputa. A autorização para participar de uma
eleição é apenas uma formalidade cumprida com o registro da
candidatura no Tribunal Eleitoral, apresentando os documentos
exigidos pela legislação em vigor.
O elemento mais importante desta autorização para
participar com condições de chances de vencer a disputa
eleitoral está no campo do pertencimento a organizações
sociais. Ou seja, mesmo os candidatos com muito dinheiro não
são facilmente eleitos para uma cadeira na Câmara de
Vereadores. O gasto financeiro mais elevado e que traz mais
retorno eleitoral é para cargos do legislativo estadual e
federal. Para o legislativo municipal, o número de lideranças
comunitárias apresentadas como candidatos é muito grande. Isto
impede o uso da sua própria capacidade de mobilização para
outros candidatos, como ocorre com disputas eleitorais
estaduais e federal. Isto significa pulverizar muitas vezes os
votos de determinado bairro ou região da cidade,
impossibilitando a eleição de um único candidato.
256
Para o legislativo municipal, o maior capital eleitoral
de que deve dispor o candidato é seu poder de mobilização de
um número considerável de pessoas em torno do seu nome. Quando
afirmo que o dinheiro não é o principal recurso numa eleição
municipal quero dizer que ele isoladamente não é capaz de
eleger um candidato a vereador. É preciso aliar recursos
financeiros com capacidade de mobilização de pessoas. Quando
se tem dinheiro, pode-se contratar pessoas temporárias, mas
não se pode comprar as lideranças locais porque estas já estão
de certo modo comprometidas, ou com candidatos ou como
candidatos. Há um limite no uso de cabos eleitorais de
lideranças locais nas comunidades. Isto explica por que em
muitos casos mesmo com muito dinheiro não se faz um candidato
a vereador.
Ao aparecer na tela da televisão, o candidato deve se
apresentar para um eleitor que embora ele não veja pode estar
do outro lado. Neste momento, é preciso transmitir ao eleitor
algo sobre si. Para isto, o recurso mais usual é a referência
profissional ou outro pertencimento ideológico, moral, de
valores sociais, até mesmo de pertencer a uma determinada
família considerada importante. Procura, então, atrair para si
o prestígio de associação profissional, pertencimento a uma
crença religiosa, valores morais. É preciso encontrar
referências profissionais e de trabalho para que suas
afirmações possam autorizá-lo a ser representante político.
É possível distinguir claramente dois tipos de
representação buscada numa eleição. De um lado, existem os
candidatos que falam e apelam para segmentos sociais,
257
claramente definidos, pois se trata de uma instituição social,
uma empresa, uma corporação de empregados, uma categoria
profissional. Neste tipo de representação, à qual chamaremos
de representação de interesses, identificamos bancários,
comerciários, balconistas, operários de setores de indústrias,
garis, trabalhadores taxistas, moradores de conjuntos
habitacionais, membros de grupos religiosos, moradores de
bairros designados pelos candidatos. Nela é possível fazer uma
distinção entre candidatos que buscam o mesmo tipo de
representação, mas não de forma definida uma comunidade. Por
exemplo, aqueles desejosos de representar os jovens,
funcionários públicos, estudantes, aposentados e pensionistas,
esportistas, mulheres, cristãos; os defensores da educação, da
saúde, da moradia, da segurança pública e emprego.
Outro tipo de representação que designamos de valores
não se orienta para nenhuma comunidade organizada. Os
candidatos não chegam a se referir a nenhuma forma de
agrupamento social definido que queiram representar, mas falam
de modo vago sobre valores que defendem, como melhoria da
saúde, da educação e da vida do povo.
A ação da primeira forma de representação é orientada
para conquistar o apoio e a simpatia de um segmento social
definido com o qual o candidato tem um tipo de pertencimento
orgânico. Não se concebe um candidato defensor de aposentado
que não seja ele mesmo um aposentado. Isto ocorrerá também com
candidatos comerciários, bancários, militares e líderes
comunitários. Ser membro do segmento social organizado que
pretende representar é condição indispensável para desejar
258
esta representação. O reconhecimento do seu pertencimento é
demonstrado com relato das suas lutas na defesa dos interesses
deste segmento.
Esta condição de pertencer ao segmento social a ser
representado é definidora desta primeira forma de
representação. A característica de pertencer é um atributo
fundamental para quem quer ser representante de comunidade de
interesse organizado. Pertencer como membro orgânico é o que
legitima sua participação como representante.
Não se imagina um candidato bem jovem aparecendo como
defensor dos aposentados. Isto não ocorre porque, mesmo sem
haver uma regra para dizer quem pode e quem não pode
representar ou se apresentar como defensor de determinado
segmento social, somente é autorizado a representar os membros
desta organização os que recebam algum tipo de autorização
pela ligação com a organização social. Um advogado de
trabalhadores que se apresenta como candidato na busca da
representação dos interesses dos trabalhadores urbanos ou
rurais, mesmo não sendo um trabalhador rural, sua ligação na
defesa destes interesses o autoriza a se apresentar como um
legítimo representante deste segmento. A representação neste
caso está baseada numa reprodução de peculiaridades daquele que
se representa. Somente pode representar este segmento social
aquele quer tiver características existenciais do próprio
agrupamento social representado. Possuindo estas
características do grupo que pretende representar, ele pode,
no parlamento, evocar com sua simples presença a organização
social de onde é egresso.
259
Este fato da busca pela representação dentro de
segmentos organizados e definidos pode explicar por que é tão
incômodo para muitos candidatos assumir que são candidatos não
por vontade, mas por indicação de um grupo de amigos. Não há,
mesmo dentro de um grupo social definido, autorização para que
um dos seus membros se destaque e assuma o desejo de ser
candidato ou representante deste segmento social. A decisão de
lançar-se candidato cabe sempre a um outro anônimo sobre o
qual recai o peso da decisão de lançar um membro de uma
organização na disputa pela representação política.
Os candidatos sem nenhum tipo de filiação institucional
forte apelam para uma representação de valores. Este tipo de
candidato obviamente reside num bairro, mas não tem uma
presença muito ativa na vida comunitária que o permita se
lançar como candidato à liderança da representação por este
segmento. Ocupa uma função dentro de uma empresa pública ou
privada, mas igualmente não tem envolvimento suficiente com os
problemas trabalhistas que o permita apresentar-se como
candidato a líder da categoria profissional. Desde modo, o
candidato com este perfil tende a ressaltar seu pertencimento
a instituições profissionais, mas não faz dela sua base de
apoio. A saída, então, é apelar para uma representação de
valores em geral, ou também assumir os valores do seu próprio
partido.
A campanha política para o legislativo é a única que
não permite nenhuma forma de colaboração entre os candidatos.
É extremamente comum a existência de dobradinhas eleitorais
entre candidatos em determinados municípios onde um deputado
260
estadual e um federal casam a chapa eleitoral. Isto não se faz
nas campanhas legislativas municipais. A impossibilidade de
qualquer tipo de colaboração entre candidatos induz o
comportamento de priorizar os setores sociais nos quais já se
tem força eleitoral.
A estratégia eleitoral mais usual é possuir uma base
central de apoio eleitoral num determinado segmento social,
mesmo para os que já se apresentam como representando
segmentos mais diversos. Nelson Martins, por exemplo, foi
eleito em 1996 com os votos majoritariamente na categoria dos
bancários. Entretanto, devido ao seu desempenho parlamentar na
Câmara Municipal na campanha de 2000, ele não se limitou aos
bancários, embora estes tenham continuado sendo a base mais
importante. A votação dele expandiu-se basicamente para dois
novos setores: os comerciários e os estudantes. Os
comerciários passaram a fazer parte do interesse dele a partir
do exercício do mandato, principalmente na defesa dos
interesses dos opositores à proposta do sindicado dos lojistas
de abertura do comércio aos domingos. O voto vindo dos
estudantes decorria mais uma vez do desempenho parlamentar que
o projetou como um vereador ideológico.
A eleição é apenas um momento de um processo político
anterior. Aquilo que assistimos nas campanhas políticas e a
performance dos candidatos são baseados em acúmulo de capital
político já existente. De certa forma, uma campanha política
legislativa municipal envolve mais aspectos de laços já
consolidados do que propriamente desempenho pessoal. Dizer que
todos os candidatos de uma eleição são teoricamente iguais não
261
tem sentido. A simples divisão entre os atuais parlamentares,
ávidos pela reeleição, e os demais candidatos se diferencia
substancialmente. Entre estes últimos podemos distinguir um
pequeno grupo de candidatos que já disputou em anos anteriores
outras eleições. Estes normalmente acumularam não somente
experiência, mas também vasta representação que os permite
competir em várias eleições. Por fim, há os neófitos na arena
eleitoral.
É preciso aprofundar a pertinência de quais identidades
são atualmente mais usadas por candidatos ao legislativo
municipal. Numa assembléia legislativa municipal, contamos
apenas com dez representantes que se assumem como tendo uma
base política em um bairro da cidade coincidente com seu lugar
de residência. Outros, apesar de manter um núcleo no bairro,
procuram expandir seu trabalho para outros segmentos da
sociedade. A identificação religiosa e profissional, isto é,
apresentar-se como membro de uma comunidade de idéias ou valores ou
determinada categoria profissional é usada, pelos candidatos,
como um recurso a ser capitalizado na eleição.
Este pertencimento a uma comunidade já constituída é o
capital político de que dispõem. Em alguns casos, ele é o
único. É preciso fazê-lo render muito. Mas, mesmo quando se
apresentam como filiados a um segmento profissional, não são
suficientemente reconhecidos pelos demais membros da categoria
para terem seu voto dado em virtude deste pertencimento. Os
candidatos que asseguram maior identificação com segmentos
sociais organizados precisam já ter provado manter uma
vinculação muito estreita com a categoria social que pretendem
262
representar e que têm legitimidade para se apresentar já como
um candidato do segmento organizado. Uma campanha política
para o legislativo municipal é curta e muito dispersa, não dá
tempo para se construir um nome como identificado a certo
segmento da sociedade. Esta identificação já deve existir. A
campanha eleitoral é apenas o momento de difundir a condição
de candidato e não de construir um perfil de candidato. Os que
passam a campanha construindo esta identificação normalmente
são perdedores.
Em Fortaleza um fenômeno vem se repetindo nas últimas
eleições para o legislativo municipal. Em cada disputa
eleitoral tivemos um candidato vitorioso que representava o
segmento social da corporação dos militares. Inicialmente foi
o general Torres de Mello; na legislatura seguinte foi o
capitão Amilton Gomes e nesta última eleição o vencedor foi
Leonel Alencar. O mais surpreendente é que somente um
representante é eleito, apesar de, em todas as eleições, mais
de um candidato se apresentar como membro da corporação.
Apenas um é eleito e todo aquele que estava representando
naquele momento os militares perde para um outro, igualmente
militar. Tudo se passa como se a corporação somente pudesse
assegurar um único representante e em cada momento vai
substituindo um por outro, até chegar à representação
perfeita. Mas por que o general Torres de Mello perdeu sua
função de representante dos militares para o capitão Amilton e
por que este perdeu a mesma função par o coronel Leonel
Alencar?
263
Um candidato não é jamais candidato de si, ou seja,
jamais encontramos um candidato fazendo referência unicamente
ao seu desejo de ser candidato. É preciso apresentar-se como
membro de algum tipo de movimento social, organização ou
trabalho social existente que o credencie, legitime a ocupar
esta posição de candidato. A posição de candidato não é vazia
de representação, ela já está permeada por uma imagem dos que
podem ocupá-la. Qualquer um pode, ao se filiar a um partido,
pleitear sua candidatura. Mas estes são apenas requisitos
legais para participar da disputa eleitoral. Os candidatos,
isto é, os verdadeiros agentes diretos na competição eleitoral
são os que já desenvolvem algum tipo de atividade de trabalho
social e isto lhes permite ser reconhecidos como alguém
capacitado para ser candidato. Muitos candidatos mencionam o
trabalho comunitário como aquilo que os legitima a ocupar esta
posição. Outros, simplesmente pelo fato de terem um nome
conhecido na cidade, julgam-se capacitados para assumir esta
condição de candidato. Na última eleição tivemos o caso de um
ex-juiz de futebol que depois de aposentado pretendeu assumir
a condição de candidato. O discurso era recorrente à sua
antiga condição de árbitro de futebol e aos valores
relacionados ao exercício desta função. A seriedade é algo
importante, a não corrupção outra marca. Isto era apresentado
como algo necessário ao bom desempenho parlamentar. Estes
valores da sua profissão o credenciam, legitimam sua atitude
de se lançar candidato. É preciso justificar sua condição de
candidato.
264
Numa eleição, o que se busca é o “direito” de
representar os interesses de segmentos sociais organizados,
defendendo idéias e valores compartilhados por um número
considerável de eleitores. O desejo de representar obriga o
candidato a dirigir sua campanha para segmentos definidos.
Nesse caso, o público alvo torna-se seu objetivo, e ele fala e
faz campanha orientada para sensibilizar a simpatia deste
segmento. Neste aspecto, um candidato precisa ser oriundo de
algum movimento coletivo, alguma instituição, alguma
organização social. Ou seja, sem a identificação anterior com
um grupo social, mesmo que seja “grupo de amigos”, torna-se
difícil o candidato se apresentar para o eleitor. A
legitimidade deste ato de pleitear a representação política
passa necessariamente por uma participação em algum tipo de
engajamento em movimento social, organização social. O tempo
da política é apenas o instante em que vai capitalizar, usar o
capital político, acumulado na sua atividade antes da eleição.
Esta ação realizada anteriormente não precisa ser identificada
como de natureza política, mas precisa, durante a campanha,
ser convertida e transformada em apoio político para sua
candidatura. Nisto reside a habilidade do líder político,
saber convencer “sua representação”, isto é, demonstrar que é
importante para a organização ter um representante no
legislativo municipal. Que ocupar esta posição de líder
político fortalece o sindicato ou a associação da qual é
membro.
Para os candidatos que se apresentam em defesa de
causas ou interesses de categorias organizadas, a
265
representação política é tida como um atributo de defesa de
algo. Os candidatos que disputam a função de representantes
buscam defender algo; vão desde a defesa de interesses
bastante particulares – por exemplo, nesta campanha analisada,
um candidato se apresentava como transplantado e defendia a
ampliação dos transplantes de rins. A possibilidade deste
candidato eleger-se é pequena. Não apenas porque o número de
eleitores transplantados é pequeno, como o desafio de
convencer que este problema merece uma representação política
é grande. Provavelmente, os problemas experimentados por uma
pessoa transplantada não chegam a adquirir a dimensão de causa
política nem sensibilizam os portadores destes problemas a se
identificar com um candidato capaz de defender sua causa. A
causa das pessoas transplantadas pode ser absorvida pelos que
lutam por saúde e melhoria no atendimento do sistema de saúde
público. Se alguns candidatos se apresentam ao eleitor como
defendendo causas tão restritas que somente aos poucos poderia
sensibilizar, outros defendem causas tão amplas que também
deixam de prender a atenção do eleitor. O discurso normal de
candidato é buscar sempre defender educação, saúde, moradia e
segurança... Eles pretendem fazer o Estado agir na formulação
de políticas orientadas para estas demandas sociais. Mas
igualmente não sensibilizam os eleitores porque como eles
muitos outros apelam para a defesa das mesmas causas.
Quanto ao voto comunitário, este somente pode ser
pedido e dado ao membro da própria comunidade. Não se concebe
um representante político disposto a defender os interesses
dos moradores de um bairro da cidade se nela não reside ou tem
266
qualquer tipo de ligação. É esta filiação ao grupo social que
o autoriza a ser representante e falar como se fosse um membro
que pretende ocupar um cargo na defesa dos interesses deste
segmento.
Uma candidata a vereadora apresenta-se como membro de
uma comunidade e está na luta do dia-a-dia na defesa dos
interesses desta comunidade. A defesa dos interesses da
comunidade não pode ser feita por alguém de fora; deve ser por
alguém de confiança e de dentro da própria comunidade. A
confiança exigida do representante requer dele provas da
capacidade de estar na luta em defesa dos interesses desta
comunidade. Somente um membro orgânico poderá ter este tipo de
compromisso de defesa.
Conforme mencionamos, algumas categorias profissionais
apresentam candidatos com vistas à eleição e à representação.
Destas, as principais são: comerciários, motoristas de táxi,
bancários, funcionários públicos, policiais e militares. Os
professores se apresentam como defensores da educação e não da
categoria profissional, pois muitos se representam como
funcionários públicos.
Existem também candidatos que pretendem representar
valores, embora seu público alvo não seja eleito, como é o
caso dos que falam na defesa das crianças e dos adolescentes.
Este candidato não pretende representar os interesses deste
segmento com os votos oriundos deles, mas de adultos que
concordem ser preciso desenvolver trabalhos para a melhoria
desta situação. Ele pretende defender os interesses das
crianças e dos jovens não com os votos destes, mas com os
267
votos dos que votam por valores. A representação no caso não é
de pessoas, de um grupo organizado, mas de uma proposta e um
valor social. Aqueles que concordam devem votar.
Entretanto, mesmo neste caso, não é qualquer candidato
que pode se apresentar como defensor dos interesses dos
jovens, porta-voz deste público. Somente alguém que na sua
atividade profissional tenha algum tipo de relacionamento com
este problema possui autoridade para falar em nome deles. Ele
não é um jovem, mas alguém familiarizado com o problema porque
trabalha com essas pessoas em determinada instituição social
de apoio ou, como eles dizem, “desenvolve um trabalho”.
A representação de comunidades com interesses definidos
é bastante evidenciada numa eleição. Nenhum candidato esconde
sua vinculação com certos segmentos, ao contrário, todos
ressaltam e procuram capitalizar esta ligação.
A representação de comunidades latentes ou de valores é
um pouco mais confusa porque não se encontra um apoio
definido, nem se sabe qual o contingente de pessoas defensoras
destes valores. Esta comunidade não tem uma organização
prévia, não dispõe de nenhuma estrutura organizativa. Os
membros existem, pois podem se sentir identificados com os
mesmos atributos, mas não são capazes de qualquer tipo de
concentração e organização. Ficam em muitos casos apenas como
uma comunidade ou um grupo latente, puramente nominal, mas não
se efetivam de forma alguma.
Tia Zuleide é uma líder comunitária do grande Bom
Jardim, filiada ao PTB e candidata a vereadora em 1996.
268
Segundo afirma, é candidata porque sendo líder comunitária por
vários anos e “não encontrando o apoio necessário para
resolver os problemas” da sua comunidade, toma a decisão de
candidatar-se a vereadora. A candidatura não é uma decisão
sua, mas de anos de luta infrutífera. Ao candidatar-se,
acredita que poderá “lutar pelos direitos” dos moradores da
sua comunidade.
O destaque, no caso da candidata comunitária, como ela
mesma se refere, é o fato de anunciar que para ser candidata
teve um longo trabalho anterior que a credenciou a pleitear
esta posição de candidata. Mais uma vez encontramos a
referência de não ser este um lugar legítimo para qualquer um,
mas somente para os que tiveram um “trabalho anterior na
comunidade”. Lança-se candidata apoiada por estes anos de
trabalho e dedicação aos problemas da comunidade. Como
acredita que estes problemas existentes na sua comunidade
podem e devem ser resolvidos, candidatou-se. Ao se candidatar,
sua pretensão é resolver os problemas do bairro, os quais,
segundo ela, são problemas causados pela falta de direito dos
moradores. Conforme demonstrou a candidata, a permanência dos
problemas é devido ao não respeito aos direitos dos moradores
e estes direitos somente serão respeitados quando existir um
representante que conheça estes problemas e possa lutar para
solucioná-los.
As razões e a natureza da candidatura de Tia Zuleide
parecem evidentes. Diante de uma situação de problemas
experimentados na sua comunidade pelo não respeito aos
direitos dos moradores, acredita que somente como vereadora
269
será capaz de solucionar tudo isto. É pensando no seu bairro e
nos problemas dos moradores do Grande Bom Jardim que a
candidata pretende ser vereadora.
À semelhança de Tia Zuleide, existem outros exemplos.
Francisco Manuel é candidato pelo PSDB a vereador de Fortaleza
na eleição de 1996. Começa “pedindo a oportunidade de ser da
Câmara Municipal de Fortaleza”. Este é seu desejo explícito.
Mas para quê? Segundo ele, “para apresentar projetos que
tenham a participação de todos os segmentos da sociedade”. E o
que o credencia a ser vereador? O candidato responde que é
“morador de Fortaleza há 26 anos” e trabalha na grande área
carente da cidade. Em seguida define área carente como sendo
“onde o povo necessita da ajuda daqueles que fazem a Câmara
Municipal”. Logo o candidato está propondo uma troca
simbólica: Ele pede que o eleitor o ajude a chegar à Câmara
Municipal e, quando lá estiver eleito, promete ajudá-los.
Embora a lógica seja pareça simples, é expressa de uma forma
que o candidato parece querer dizer o que diz, mas não tem
coragem de assumir completamente.
Aparecida é candidata a vereadora pelo PMDB. Conforme
afirma em seu programa, sua finalidade ao ser candidata é
“lutar com o povo e doutor Juraci para melhorar os bairros
Serviluz, Praia do Futuro e Castelo Encantado”. Ela se
apresenta como uma candidata identificada apenas com alguns
poucos bairros da zona leste da cidade. Diz que quer lutar
“por hospitais, saneamento básico, segurança, escolas de 1º e
2º graus”.
270
Marilda Alves é candidata a vereadora pelo PTB. Na
opinião dela, é o momento de mudança e o povo deve votar “em
quem tem compromisso com nossa cidade”. Ela diz que é uma
líder comunitária e que quer ser vereadora “para continuar
trabalhando junto com o prefeito em defesa dos menos
favorecidos”. Em seguida torna mais precisa sua luta. Afirma
ser favorável à “moralização dos gastos públicos e contra a
discriminação das mulheres”. Ela é a favor de algumas coisas e
contra outras. Justifica sua candidatura por ser líder
comunitária e já estar trabalhando em defesa dos menos
favorecidos.
Totó é candidato pelo PSDB. Apresenta-se como o
“candidato líder comunitário”. Esta parece ser sua distinção
nas comunidades onde atua. Afirma que é líder comunitário,
pois “há oito anos faço um trabalho comunitário no José
Walter, Palmirim, Pantanal”. Em seguida, lista suas
realizações como líder comunitário: “Em 92 consegui água para
o Palmirim, consegui a reforma da agência de correios do José
Walter, eletrificação do Pantanal, unidade sanitária.” Mesmo
com todas estas realizações de líder comunitário, segundo
afirma, “ainda falta mais, ainda falta o sanear do José
Walter, creche e projeto de mutirão”.
Dizendo-se unicamente líder comunitário não é capaz de
dizer por que afinal quer ser vereador, nem por que estes
projetos apresentados por ele não podem ser executados, como
os outros, sem sua condição de vereador. Este provavelmente é
um candidato que para a comunidade é mais interessante
permanecer como líder comunitário.
271
De acordo com uma idéia corrente entre os lideres
comunitários, estes são vereadores sem mandatos, pois já
exercem na prática, mesmo sem ter um mandato, o trabalho que
desenvolveriam como vereador. A vereança é apenas um estágio
seguinte na atuação de um líder comunitário, elevação máxima
almejada. Na condição de vereador, terão como dar continuidade
ao trabalho realizado, ajudar maior número de pessoas, obter
uma estrutura mais sólida para o trabalho de assistência à
população mais carente.
Elza Gurgel é candidata a vereadora. Na opinião dela, é
preciso refletir muito e valorizar o voto e o eleito deve
apostar em novos valores na Câmara Municipal. Ainda segundo
Elza, só se deve depositar “confiança em quem tem trabalhado
pelas comunidades”. Somente quem tem trabalhado pode merecer o
voto e somente ele poderá ajudar sua comunidade. Ela se diz
representante do Bom Jardim, mas quer representar todas as
comunidades carentes de Fortaleza.
Modernamente nas campanhas políticas as palavras menos
ouvidas são promessa e prometo. Mesmo “voto” e “pedir seu
voto” são pouco usadas. Entretanto, as mais escutadas são
“apoio” e “defesa”. O termo defesa na terminologia política
remete imediatamente à idéia de representação. Quando se diz
que “eleitor quero defender os interesses dos mais carentes,
quero ser o defensor das comunidades...” estas expressões
designam o desejo de representar os interesses destes
segmentos.
272
Quanto mais direcionado o discurso para um segmento
definido, menos o candidato ressalta outros atributos não
pertinentes ao eleitorado a ser conquistado.
Isto explica por que os candidatos de feição
comunitária ressaltam quase apenas este critério, seu
pertencimento a uma dada comunidade, a luta de muitos anos em
defesa dos interesses de tais bairros, a obtenção de
melhorias, etc. O representante profissional fala do seu
pertencimento ao corpo profissional e do trabalho que já
desenvolve na defesa dos interesses deste segmento organizado.
Esta redução dos atributos significa a busca do monopólio da
representação política de um segmento definido da sociedade.
Um indivíduo não abandona sua condição de membro de uma
organização profissional, comunitária, sindical ou de outro
gênero e passa imediatamente a se apresentar como candidato.
Ele apresenta-se inicialmente como membro de uma organização
social e pretende representar este segmento que tem vinculação
profissional na Assembléia Legislativa municipal. Ele pode
também apelar simplesmente para os amigos e as pessoas
conhecidas. O apelo, obviamente vago, não lhe rende nenhum
voto. Muitos apelam para seus vínculos profissionais e também
para os “companheiros” da sua empresa ou ramo de atividade,
que votem nele para poder defender os interesses deste
segmento.
A busca da representação mais comum é do tipo do
candidato que simplesmente se apresenta sem uma identificação
definida e clara, pois pretende ter uma base de apoio difusa.
Apela para seus colegas de trabalho, seus amigos do bairro,
273
seus colegas de associações... Não há um único segmento do
qual se disponha a ser o representante.
O candidato que busca uma representação difusa e
capilar em vários segmentos sociais contrasta com aquele que
pretende o monopólio da representação. Este se dirige
unicamente a um tipo de eleitor já definido como possível, e
investe no segmento social onde já tem engajamento. A campanha
serve apenas para potencializar e reafirmar os compromissos
assumidos em outros momentos. Este candidato do monopólio da
representação apresenta-se de forma bastante definida, sem
ambigüidade na base de sustentação.
Um terceiro tipo de candidato é aquele que não tem uma
base social para se dirigir de forma exclusiva. Apela
simplesmente para lugares comuns e como defensor de causas
genéricas. Fala em defender saúde, educação, moradia e
melhoria das condições de vida para o povo. Nesta mesma
categoria, situam-se os defensores de valores sociais e
apologistas de certos valores como pilares de sustentação da
ordem social.
Há um tipo de candidato voltado não a segmentos
profissionais organizados, movimentos sociais definidos,
valores ou causas precisas. São candidatos de segmentos
sociais ou culturais, ou mais precisamente, são candidatos que
pretendem representar as categorias sociais – jovens,
mulheres, idosos, crianças abandonadas, homossexuais... Este
tipo de candidato possui um perfil definido porque ou ele é
membro ativo do segmento social que pretende representar ou
tem uma ligação por filiação profissional.
274
Na visão de políticos e analistas, cada eleição é uma
eleição. Mesmo assim não se pode desconhecer que apesar das
especificidades de cada pleito eleitoral e não obstante a
existência de regras, há sempre elementos comuns em cada
eleição. Os traços comuns podem ser ressaltados pela
existência de candidatos, discursos que sempre predominam.
Alguns aspectos presentes na campanha para vereador
precisam ser destacados porque possibilitam entender o modo
como o candidato compreende sua função de representante
político. Todos compreendem a eleição como um modo de defender
interesses ou valores. Mas nem todos precisam de defensores,
somente os que estão em situação de indefesos são ressaltados
como necessitados de ajuda e defesa. O eleitorado ao qual o
vereador pretende dedicar seus esforços não tem condições de
atender seus próprios interesses, portanto, precisa de alguém
que fale por ele, que lute para estes serem atendidos. O
vereador é alguém que se coloca como aquele agente político
responsável pela defesa dos interesses da população mais
humilde, carente, etc. A forma como este grupo é referido
varia muito, mas há sempre o entendimento de que é a ele que
deve ser destinado principalmente o trabalho do vereador.
Mesmo quando este fala de maneira genérica para todos os
eleitores da cidade, enfatiza que seu trabalho deve ser
orientado para a defesa dos mais necessitados.
Quando se analisa o discurso dos candidatos a vereador,
sobressai imediatamente a noção do poder público na sociedade
brasileira: existe para servir aos pobres, aos mais
desassistidos, aos que não tiveram oportunidade. O Estado é
275
uma agência de inclusão social e toda política pública é para
firmar uma aliança política entre os que estão de fora e os
que estão dentro, para juntos resolverem os problemas. Ajudar
aos mais necessitados parece ser a missão do governante. Neste
aspecto, é comum a imagem tão constante do político como
aquele indivíduo que ajuda às pessoas que procuram auxílio e
principalmente aos mais carentes.
O candidato se apresenta como pretendendo ser o
defensor dos interesses de um grupo social definido ou de uma
atividade existente na sociedade e que merece ser apoiada,
ampliada. Em defesa da educação, da saúde, como atividades
relevantes das quais o governo municipal se ocupa e que o
candidato se compromete a dar especial atenção.
O eleitor é chamado a escolher um candidato para
defender os interesses dele. Entretanto, como cada eleitor
individualmente tem, ao mesmo tempo, mais de um interesse,
como definir que este e não aquele interesse deve orientar sua
escolha do candidato?
De modo geral, os candidatos apresentados como membros
de instituições ficam intimamente ligados a elas e pretendem
obter voto unicamente nesse segmento social. Algumas
instituições parecem exigir uma identificação completa, não
permitindo qualquer trabalho do seu representante em defesa de
outros interesses. A mais evidente instituição agindo com esse
padrão é a militar. Os candidatos que se apresentam como
pretendendo a representação dos interesses dos militares falam
de maneira exclusiva, orientados unicamente para o seu grupo
276
de pertencimento, pedindo sua autorização para falar e agir em
seu nome.
Eu prometo combater... O candidato pretende se opor a
práticas existentes, consideradas nocivas ao interesse da
sociedade... Defender os direitos de.... Lutar pelos direitos
de... Candidato-me a vereadora com o intuito de defender
causas importantes...
Vou defender a classe dos detetives particulares...
Peço seu voto de confiança para trabalhar pela comunidade...
Um candidato trabalhador do setor têxtil de Fortaleza lembra
da importância deste setor na economia nacional e defende
maior qualificação profissional dessa mão-de-obra. O discurso
é orientado totalmente para o segmento de pessoas com
envolvimento nesse setor econômico. Mas na sua condição de
vereador, nada poderá fazer para atender às expectativas dos
trabalhadores do setor. Apelo inócuo.
Em toda campanha existem deficientes físicos como
candidatos. Em geral, são pessoas portadoras de alguma
deficiência física que se apresentam postulando a condição de
candidatos dos deficientes. Prometem lutar em defesa dos
direitos dessas pessoas, julgam-nas normalmente discriminadas,
sem direito, e carentes de um representante político para
lutar por seus interesses. Esse segmento tem um representante
não deficiente, que se apresenta como uma pessoa ligada ao
problema da reabilitação motora porque trabalha há tempos em
uma instituição encarregada deste problema. Qualquer candidato
que se proponha defender o interesse dos deficientes físicos
terá de enfrentar a barreira inicial do vereador Machadinho.
277
Quero trabalhar e lutar pelo social... Um médico
obstetra se apresenta como candidato, afirmando que deseja
realizar projetos ligados às crianças e às mulheres. Propõe a
construção de unidades de UTIs para os recém-nascidos.
A imagem mais ressaltada pelos candidatos é de
proximidade, de amizade, de confiança... são estes os valores
que orientam uma boa escolha de um candidato. Aquele que já
deu provas de trabalhar em defesa dos mais carentes, em defesa
da justiça e que se compromete a continuar agindo sob os
mesmos princípios.
Para os candidatos a vereador parece evidente em seus
discursos que a Câmara Municipal é uma instituição importante
não somente para ajudar o prefeito a governar, ênfase dos
candidatos governistas, mas principalmente para poder realizar
ações concretas em defesa dos interesses do segmento social
com o qual mais se identifica e do qual se dispõe a
representar os interesses.
Um candidato se apresenta como defensor dos interesses
dos aposentados e pensionistas. Segundo afirma, a categoria
dos aposentados é relegada e não tem quem defenda seus
interesses. Por isto coloca-se como candidato a representar
esses interesses na Câmara Municipal.
Trabalhando sempre pelos mais humildes e carentes... O
candidato se apóia na campanha em círculos ou grupos
defensores da sua campanha. Um candidato delegado pede o apoio
para ser vereador: dos colegas delegados, dos policiais civis,
dos agentes penitenciários. Esse grupo inicial é formado pelos
278
vínculos de trabalho, pelas pessoas que de alguma forma mantêm
relação com o candidato em decorrência da sua função
profissional. Em seguida fala de “amigos” e “gente sofrida da
periferia”. As bases de apoio à candidatura começam no seu
grupo de pertencimento profissional, os delegados de polícia,
buscando em seguida outro grupo imediatamente ligado, os
policiais civis, e por fim um outro grupo formado pelos
agentes prisionais. São três categorias profissionais que ele
pretende representar, ele mesmo membro de uma delas. O apelo
aos “amigos” é a forma de sair do círculo profissional e se
apresentar para além dos compromissos com os colegas de
profissão. Por fim, a identificação mais genérica com as
pessoas sofridas da periferia. O candidato orienta sua fala
para agrupamentos sociais determinados e não para o
convencimento de propostas ou valores que defende.
O candidato ressalta sua condição de membro de
determinado segmento social e pede a este o voto, não para
poder representar seus interesses na Câmara Municipal, mas
para defender certos valores comungados pelo grupo social.
Há candidatos que se apresentam simplesmente, destacam
sua profissão e seus diversos vínculos profissionais, mas não
se referem e nem se dirigem a nenhum agrupamento em
particular. Também não pedem apoio a nenhum agrupamento
social. Pretendem a representação de valores, princípios
gerais e não a defesa de interesses em particular de qualquer
agrupamento social definido. Ele mesmo não deve ser membro de
um agrupamento a ponto de se apresentar como liderança
279
expressiva capaz de reivindicar a condição de candidato com
pretensão de líder político do segmento social.
O vereador é uma liderança política escolhida por um
grupo de pessoas dispersas ou organizadas as quais o elegem
para “defender seus interesses”. Pensando assim, segundo o
candidato acredita, a Câmara Municipal pode “ajudar as
pessoas”. O poder público municipal concentra grande
quantidade de recursos passíveis de ser distribuídos de acordo
com os representantes existentes. Quando uma comunidade não
conta com um representante na Câmara Municipal, acaba não
sendo beneficiada com bens públicos porque não tem ninguém
para defender seus interesses. O interesse das comunidades
parece evidente para estes candidatos, ou seja, benefícios e
melhorias que a prefeitura possa fazer em suas comunidades.
Alguns candidatos se apresentam como defensores de
grupos sociais constituídos ou apenas latentes. Um candidato
se diz defensor dos líderes comunitários e da classe dos guias
turísticos do Ceará. Certamente estes dois agrupamentos de
indivíduos existem concretamente, mas não a ponto de se
mobilizarem em apoio institucional a uma candidatura. Esse é o
ponto fraco de muitas candidaturas que se propõem defender os
interesses e os direitos de categorias, mas sem que as
categorias existam estruturadas e possam se mobilizar em apoio
à sua pretensão de liderança política.
O funcionalismo público federal, estadual e municipal é
alvo de apelos constantes desse tipo de candidatos.
Freqüentemente os aposentados e pensionistas são evocados
280
solicitando o voto para candidatos que se apresentam como
defensores desses interesses e direitos.
Nas eleições municipais, os comerciários apresentam
candidatos que não conseguem o voto desta classe, apesar do
grande número de comerciários. Mais de 70% dos trabalhadores
do comércio são mulheres e os candidatos, até o momento, foram
todos masculinos. Essa pode ser uma das razões do malogro das
candidaturas. Há também o fato de ser uma categoria frágil do
ponto de vista da auto-imagem.
O candidato enfatiza aquilo que lhe parece mais
aceitável publicamente como atrativo para receber o voto.
Primeiro de tudo, ressalta sua condição profissional, quando
esta já tem prestígio, como médico, advogado, administrador,
professor... Caso seja membro de uma categoria profissional
que tenha problemas ou enfrente dificuldades, apresenta-se
como um defensor desta categoria e contra a injustiça
cometida. Os candidatos líderes comunitários ressaltam sempre
seu engajamento na defesa dos interesses dos moradores. Quando
são apenas moradores, destacam sua simples condição de morador
de certo bairro.
Um candidato afirma: “Meu propósito é defender o povo
carente e marginalizado”... Muitos candidatos pretendem se
empenhar em ações voltadas para resolver problemas pontuais:
construção de um hospital, melhoria das escolas, retirar os
meninos das ruas, escolas profissionalizantes para jovens,
apoio às ações voltadas para as mulheres gestantes, construção
de UTIs.
281
É possível compreender o papel desempenhado pelo
vereador a partir dos discursos dos candidatos. Esses
discursos são heterogêneos porque há entre eles vereadores com
mandatos, outros que já exerceram e, a grande maioria, de
candidatos a vereador pela primeira vez. De maneira geral, os
candidatos entendem a função do vereador do ponto de vista
institucional como um importante auxiliar para o prefeito
governar e cumprir suas promessas eleitorais. Os de partido de
oposição colocam-se inicialmente como os fiscalizadores do
poder municipal. Entretanto, a quase totalidade dos candidatos
se dizem mediadores e representantes de interesses de causas
ou de segmentos sociais para a defesa de direitos ou de
interesses. Apenas um número reduzido de candidatos enfatizam
o aspecto de criação legislativa, atribuição relevante do
legislador. O essencial é que o candidato ao legislativo
municipal enfatiza aspectos que em sua maioria não fazem parte
propriamente da sua atribuição política institucional. Ele
pretende realizar ações efetivas na defesa de interesses de
grupos ou de causas sociais. O paradoxo é que numa instituição
dessa natureza a ação institucional ocorre sempre por meio de
colaboração com os outros vereadores, de maneira que sua
intenção torna-se efetiva contando com o apoio e a colaboração
dos outros vereadores.
A força de atração do eleitorado periférico aos
candidatos institucionais continua sendo a miséria e a enorme
carência material dessa população. Esse elemento estrutural da
situação não se modifica imediatamente, vai agindo lentamente
em sua dissolução. Mas enquanto persistir essa força, uma
282
parcela significativa de eleitores continuará a cair nos
braços dos candidatos com recursos disponíveis e dispostos a
negociar seu mandato.
Quando existe negociação e intermediação no voto, não
há compromisso eleitoral do candidato com o eleitorado. A
conexão eleitoral de alguns candidatos eleitos com seu
eleitorado é quase nula porque foi feita na base da
intermediação entre eleitores e lideranças comunitárias. Mesmo
com as lideranças comunitárias não há compromissos futuros, e
sim o engajamento numa atividade política remunerada, sem
conseqüências. Se de um lado se constata a existência dessa
representação por intermediação de lideranças comunitárias, há
de outro os que devem fidelidade não ao seu eleitorado
constituído, mas à sua organização partidária. Ao final, os
únicos representantes políticos locais que ainda mantêm
conexão eleitoral são os políticos com atuação em bairros. Só
eles são capazes de identificar as necessidades e os anseios
do seu eleitorado, agindo para solucioná-los ou minimizá-los.
De acordo com a representação política municipal,
existem três grupos distintos: aqueles que se elegem tendo a
intermediação de lideranças comunitárias, mas sem compromissos
políticos com seu eleitorado; os que se elegem em virtude da
sua ação partidária, tendo uma ação voltada principalmente
para os agrupamentos organizados, embora sua maior
responsabilidade seja com a orientação partidária e menos com
seu eleitorado ao qual pretende convencer da justeza das
posições partidárias. E por fim, os eleitos ainda por pequenas
comunidades de bairros, expressando o sentimento de unidade em
283
torno de uma liderança local. Mais uma vez, sua maior ligação
é com o eleitorado presente à sua porta, fazendo-o um mensageiro
dos anseios dessa população.
A noção de representante político possível de se
extrair da análise dos discursos dos candidatos a vereador
indica que, para o candidato, o representante é natural. Um
membro do “grupo de pertencimento” precisa ser destacado para
advogar, numa outra instituição, a proteção, a defesa dos
valores e interesses dos que ficam. Sem esta representação,
feita unicamente na base da confiança, os outros que estão lá
podem elaborar atos, votar leis que prejudiquem os que lá não
têm representante. Somente um representante autêntico,
genuíno, próprio do grupo é capaz de ser o mensageiro das
propostas do grupo.
Esse tipo de entendimento da representação é mais comum
entre os integrantes de agrupamentos com identidade já
formada.
Os membros de agrupamentos amplos, mas sem laços de
identificação definidos, voltam seu discurso para a
necessidade de existir alguém para defendê-los. É o que estou
chamando de candidato defensor público, pois identifica um
grupo abstrato ou concreto supostamente necessitado de
proteção e que não possui condições de ter um dos seus membros
como representante. Então, ele se apresenta para defender os
seus direitos ou conquistar novos direitos.
Pede o voto, uma ajuda em forma de voto, para poder
fazer algo que julga ser benefício para muita gente. A Câmara
284
Municipal, de modo geral, é vista como um lugar ocupado por
políticos desinteressados no bem-estar do povo, mas que
precisam mudar. Os candidatos habituais desse discurso se
dispõem a modificar esta situação. A Câmara Municipal é também
vista como o lugar de produção de direito. Irei para a Câmara
para defender os seus direitos e os seus interesses.
A função do vereador é defender os interesses de
categorias profissionais, a melhoria de vida para os mais
carentes. Lutar pela efetividade das ações do poder público
no atendimento das necessidades de certos grupos sociais ou de
interesses de todos os cidadãos, é ajudar as pessoas mais
necessitadas. Por isto o cargo é importante.
Mas como se explica o desaparecimento recente do
vereador de comunidade de bairro?
Até recentemente, os círculos sociais em torno do
bairro, lugar de moradia, eram círculos que agregavam muitas
pessoas. No entanto, com a ampliação e formação de novos
agrupamentos, os indivíduos passaram a pertencer a mais de um
agrupamento social. Como membro efetivo de vários agrupamentos
sociais, é possível se lançar candidato contando com apoios
nestes diversos segmentos organizados. Anteriormente o
controle em apenas um segmento social já seria suficiente para
assegurar sua eleição.
Para poder o segmento social de bairro ter o peso de
elegê-lo isoladamente, é preciso um trabalho muito intenso.
Mesmo assim, com o passar do tempo, há sempre a contestação
desta autoridade local.
285
Candidatos a vereador já dispõem de algum tipo de
capital político, isto é, algum tipo de inserção social como
liderança. A candidatura deve reforçar essa posição apoiando-
se em outras lideranças menores e dispersas. A votação de um
candidato é resultante dessa influência pequena de pequenos
grupos.
Os candidatos que se apresentam com maior inserção
social profissional são fortes concorrentes, ou seja, são
candidatos com sólidas chances de vitória eleitoral.
Entretanto, algumas categorias profissionais, mesmo numerosas
e organizadas, não foram ainda capazes de se fazer representar
politicamente na Câmara Municipal. O caso mais evidente,
conforme mencionamos, é o dos comerciários. Desde a década de
1980, eles se organizam em sindicato politizado, lançam
candidatos identificados com a categoria, mas não obtêm êxito
eleitoral.
De modo geral, os candidatos se apresentam na arena
eleitoral defendendo interesses, propondo-se a defender
determinados interesses de agrupamentos sociais definidos com
os quais mantêm laços de filiação ou com grupos de valores.
Ressaltam sua condição de defensores de certos valores sociais
e apelam para a importância da defesa pública desses valores.
Pedem apoio do eleitorado em sua luta em defesa destes
princípios. Candidatos de valores morais com sustentação
institucional como uma igreja evangélica têm fortes chances de
eleição.
Alguns candidatos prometem lutar pela defesa de uma
causa social ou pela construção de algum equipamento público.
286
Outros prometem se dedicar à defesa dos interesses ou à defesa
dos direitos de segmentos sociais.
Há duas concepções de vereador que emergem dos
discursos dos candidatos à Câmara Municipal. De um lado,
predomina a idéia do vereador como canal de acesso ou
intermediário de interesses coletivos e privados. De outro, a
do vereador como defensor público. Na primeira concepção,
privilegia-se o aspecto do atendimento concreto de assistência
social ao eleitorado; na segunda, enfatiza-se a idéia de
direitos. Os vereadores que exercem o mandato pautado pela
primeira concepção tendem a ser freqüentemente aliados do
poder executivo, enquanto os segundos são freqüentemente
críticos e fiscalizadores deste poder.
4.3 Como se faz um vereador de Fortaleza
Nenhum candidato se lança numa campanha política sem
respaldo de um grupo social. Os grupos que legitimam os
candidatos com pouca expressão são normalmente designados como
“um grupo de amigos resolveu me lançar como candidato”. “Eu já
tinha um trabalho na comunidade, e os amigos me procuraram e
decidiram que eu deveria me candidatar”. Nenhum candidato
independente de partido assume a candidatura como se fora uma
iniciativa pessoal. A candidatura ou a história da candidatura
passa sempre pela referência ao grupo social ao qual pertence
ou com o qual se identifica. Um vereador de esquerda,
identificado com o segmento dos bancários em Fortaleza,
explica as razões da sua candidatura pelo trabalho
desenvolvido como líder do sindicato dos bancários e, no
momento, a decisão de lançá-lo candidato foi uma determinação
287
do grupo político ao qual pertence ou com o qual se
identifica. São grupos organizados que resolvem lançar um
indivíduo candidato. Jamais o candidato decide voluntariamente
se lançar numa disputa eleitoral. Afinal, o que constrange um
indivíduo a se apresentar como tendo ele mesmo tomado esta
decisão, por acreditar nas suas condições de se lançar como um
candidato numa eleição?
A natureza da representação do lugar de representante
político não parece contemplar esta possibilidade do indivíduo
se assumir como um candidato de si mesmo. Ao querer a
representação de segmentos da sociedade, ele já, de partida,
coloca-se como um membro de algum agrupamento social
constituído. O interesse não pode ser dele. Isto poderia
parecer desejo de vantagem pessoal por meio da política. É
preciso legitimar esta vontade de participar da política. São
os outros que legitimam. De certo modo, ele é chamado para
participar da vida política, ele se coloca como alguém que tem
vocação, mas para isto é preciso ser solicitado por outros a
ocupar uma posição. Ele vai para a representação política para
defender os interesses e os valores sociais destes que de
algum modo o indicaram com esta finalidade.
Nelson Martins é um exemplo desse tipo de candidato.
Ele afirma que em 1994 trabalhou na campanha para deputado
federal do deputado José Pimentel, mas não pôde se engajar
muito por ser diretor do sindicato. Como era uma pessoa muito
ligada às bases, poderia ter continuado como diretor desta
entidade, mas havia decidido voltar para o trabalho e concluir
um curso. No entanto, em virtude das suas qualidades, um grupo
288
de pessoas sugeriu-lhe se candidatar. Ele, como recém-diretor
do sindicado, teria muita chance de se eleger. Segundo afirma,
foi chamado para ser candidato, e reconhece os atributos que
lhe permitem lançar-se candidato – havia sido presidente do
sindicado dos bancários, tinha forte ligação com as bases
sindicais – portanto, não seria difícil ser eleito. A figura
do deputado Pimentel aparece aqui como aquele que intermedia
sua entrada no universo da política parlamentar. A aceitação
em participar da política eleitoral não é de forma alguma uma
decisão de natureza pessoal; tem a ver com o reconhecimento de
um desempenho à frente do sindicato evidenciado, neste
momento, por meio do convite para ser candidato pelo próprio
deputado federal do seu partido. É preciso ressaltar que as
candidaturas dentro de partidos ideológicos nascem nas
instâncias partidárias. No PT é extremamente comum
encontrarmos candidaturas surgidos dentro das tendências
políticas organizadas que decidem lançar candidaturas com
potencial de voto.
A candidatura de pessoas envolvidas em movimentos
sociais tem sempre uma origem na passagem por um engajamento
político anterior. O engajamento o credencia, caso queira, a
se lançar candidato, mas isto normalmente não acontece, pois
há sempre um grupo dando sustentação à sua candidatura.
Como afirma Nelson Martins, depois de presidente do
sindicado dos bancários, ele desejava simplesmente voltar à
sua condição de bancário e continuar sua formação acadêmica.
Mas houve o convite para ser candidato. Em depoimento, o
289
vereador, perguntado por que se candidatou, deu a seguinte
resposta:
Mas aí em 96 algumas pessoas que queriam lançar acandidatura a vereador, (...) o próprio Pimentel nosprocurou, então algumas pessoas se reuniram e acharam que agente devia lançar algum candidato a vereador. Como eu era,eu sempre fui uma pessoa, como eu falei pra você, muito detrabalhar com a base, permanentemente com a base, o pessoaltava vendo que eu era uma pessoa que tinha chance deeleição, mas aí eu nem queria ser candidato, então acabeiindo, sendo candidato, e acho, eu digo hoje com todasinceridade, acho que foi a coisa que eu já fiz melhor naminha vida... (Depoimento do vereador Nelson Martins, 2000).
A vereadora Luizianne Lins, do PT, tem uma trajetória
semelhante à de Nelson Martins. Ela vem de uma forte
participação no movimento estudantil, como presidente do DCE
da UFC. Quando ela era presidente do DCE, surgiu o boato de
que seria candidata em 1992, logo depois de assumir a direção
da entidade estudantil. De acordo com a avaliação de
Luizianne, dentro da sua tendência política, ela não deveria
se lançar candidata neste momento porque pareceria oportunismo
e a eleição do DCE pareceria apenas um trampolim para a
carreira política. Neste momento ela já pertencia à tendência
política DS. Se em 1992 era muito precipitado o lançamento da
candidatura, em 1996 já não havia impedimentos de nenhuma
natureza.
Quando chega 96 assim, aí a gente vem amadurecendo, nósqueremos lançar, nós precisamos de um mandato parlamentar emFortaleza, nós queremos mexer com essas questões que ninguémmexe, então nós precisamos do mandato pra isso, vamos dizerquem é que pode ser o candidato ou a candidata, aí meu nomedepois de um processo de debate, de discussão na conferênciadecidimos que o nome seria o meu, então sempre quando digo queeu sou candidato de um grupo, não sou de mim mesmo é porqueisso aí é uma coisa concreta. A partir disso em 96 a genteresolveu, como a gente não tinha experiência nenhuma de
290
campanha, a gente resolveu direcionar... (Depoimento davereadora Luizianne Lins, 2000).
A intenção do mandato era influir no debate político e
na definição de políticas públicas voltadas para determinados
setores da sociedade dos quais ela se sentia representante.
Entre estes setores se destacavam a juventude e as mulheres.
Estes foram os dois segmentos básicos fixados como
fundamentais para conquistar adesão eleitoral. Alguns temas
relacionados passaram a interessar, pois estavam diretamente
ligados e podiam ser focados como parte de um mesmo movimento
eleitoral. Desta maneira a “questão da sexualidade” passou a
fazer parte da sua plataforma eleitoral, um pouco como
desdobramento tanto do enfoque na juventude quanto nas
mulheres. A educação e a cultura passaram igualmente a fazer
parte do seu eixo de campanha. Juventude, mulheres,
sexualidade, educação e cultura constituíram o núcleo da
plataforma de adesão eleitoral da candidata Luizianne Lins.
Segundo acreditava, centrada nestes temas estaria
representando um segmento importante da sociedade que ainda
não se expressava no parlamento municipal. Como afirma a então
vereadora: “Então nós fizemos a campanha de 1996 nesses 5
eixos direcionados para esses 5 públicos alvos, nós agregamos
o mandato além mesmo da concepção de vereador de forma mais
global...”.
A concepção de mandato político para a vereadora
Luizianne está intimamente ligada à sua ideologia de
organização dos movimentos sociais. Tanto o dos jovens quanto
o das mulheres são definidos por ela como setores importantes
291
na transformação social e, portanto, precisam estar
organizados. O mandato político é um mecanismo que facilita
esta organização.
Luizianne Lins, assim como Nelson Martins, ao longo do
exercício do mandato vão pouco a pouco se afastando da sua
origem inicial, pois na condição de vereadores percebem maior
engajamento e representação mais ampla. A trajetória dos dois
é exemplar para o que ocorre com muitos outros vereadores que
necessitam, para a conquista do mandato, de uma forte base
eleitoral, mas no exercício do mandato vão se desprendendo
desta base de apoio, ampliando seus horizontes de
representação. Não abandonam este segmento, mas ampliam sua
representação mantendo em parte sua base eleitoral inicial. Na
dinâmica do exercício do mandato, descobrem setores com
potencial de voto, principalmente quando assumem cargos de
presidente de comissões importantes na Câmara Municipal.
Paulo Mindello é um vereador com monopólio da
representação de um segmento organizado da sociedade. Ele se
identifica integralmente como membro do movimento religioso
renovação carismática. É como membro deste movimento que ele
se constitui como candidato. Em 1990, pela primeira vez ele
foi candidato a deputado estadual.
Mindello narra sua trajetória até a conquista do
mandato eletivo de vereador em 1992. Participante do Movimento
Renovação Carismática há oito anos, em 1990, toma a decisão de
se candidatar a deputado estadual.
As razões da sua decisão são apontadas por ele neste
depoimento:
292
Nunca me passou na minha cabeça a idéia de ter um mandato eletivo(...) não foi uma coisa planejada, então o que aconteceu, eucomecei a me engajar, a me preocupar com a vida dos empobrecidos,eu comecei a ler, comecei a me engajar realmente, comecei aescrever no jornal e de repente constata, porque não umacandidatura política, então nesse aspecto eu acho que até em nívelnacional eu fui pioneiro, por que como eu falei no início havia umfechamento um pouco do movimento, essa questão tinha receio e euaté entendo e compreendo esse fechamento, mas aí eu ia mostrando,não era um fechamento à minha pessoa que eles gostavam muito, masera um receio de misturar, mas eu acho que realmente se mistura,fé e política se misturam, é para se misturar mesmo, fé erealidade são coisas que você não pode viver hoje a sua fé se vocênão se engajar politicamente, engajar-se politicamente não é terum mandato, é estar engajado na vida comunitária do povo.(Depoimento do vereador Paulo Mindello, 2000).
A viabilização da candidatura ocorreu porque já havia
outro candidato carismático em Minas Gerais que serviu em
certo aspecto de incentivo e de apoio para sua pretensão de
ser candidato. Afirma Paulo Mindello:
Então dentro desse contexto de preocupação social foi que surgiu aminha candidatura, ainda com certas desconfianças, com fechamento,com muita dificuldade, eu tive uma boa votação para deputadoestadual, eu tive sete mil votos mais ou menos não, aqui emFortaleza 4.600, no interior 1.400. Eu era uma pessoadesconhecida, pra mim foi uma vitória. Depois tive analisando,claro que eu era um pouco ainda ingênuo, achava até que podia sereleito, mas vi que não tinha a menor condição, mas a votação de4.600 votos naquela época aqui em Fortaleza mesmo pra deputadoestadual, que a gente sabe que é maior do que pra vereador memostrou que eu tinha ampla condição de me eleger vereador.(Depoimento do vereador Paulo Mindello, 2000).
A candidatura de Paulo Mindello é visivelmente parte de
um projeto pessoal, a despeito de ao longo da campanha ir
conquistando apoio da comunidade carismática. O público alvo
da sua campanha, como não podia deixar de ser, foi o grupo da
renovação carismática. A campanha fez-se basicamente de
encontros, conversas nos grupos de orações que lhe permitiam
293
falar. Havia já uma estrutura organizada com finalidade
religiosa que servia perfeitamente ao propósito político de
encontrar as pessoas e debater, mesmo por poucos minutos, suas
propostas políticas. O acesso a este tipo de organização
social é do maior interesse do candidato, pois são estes
grupos pequenos que sustentam uma eleição. Na campanha de
Mindello, percebe-se perfeitamente uma homogeneidade do voto,
isto é, o público para quem ele fala é eminentemente formado
pelo segmento do movimento carismático. A dispersão de esforço
em outros segmentos somente ocorreu na campanha de 2000
quando, por conta do lançamento já em 1996 de outros
candidatos que buscavam a identificação do voto carismático,
teve de ampliar sua base de sustentação. A estratégia de
diversificação à sustentação eleitoral não é uma decisão
isolada. Ela é pressionada pela concorrência interna em sua
própria base de apoio anteriormente construída.
Se na primeira campanha de que participa o trabalho de
visita e convencimento político é feito basicamente nos grupos
de orações, na campanha de 2000 já precisa contar com apoio
mais amplo, visitando associações de moradores por meio de
amigos e de lideranças.
Algumas vezes existe resistência em ampliar a base de
apoio eleitoral, em parte explicada pela expansão de gastos
financeiros que isto implica. Quando amplia sua base política,
os gastos na campanha aumentam porque imediatamente tem de
lidar com segmentos sociais muito diversos que exigem
tratamentos diferenciados. Por exemplo, quando fazia campanha
visitando os grupos de orações, praticamente não havia muito
294
custo financeiro com material de propaganda. Havia material
básico de divulgação do nome do candidato e suas propostas ou
visão de mundo. O forte da campanha mesmo era dado pela
presença física do candidato e pelo discurso nas reuniões. No
entanto, ao ampliar sua base eleitoral e visitar associações
de moradores e regiões mais carentes da cidade, não pode usar
o mesmo material. É preciso levar brindes úteis para as
pessoas, desde uma capa plástica para colocar o título
eleitoral, lápis, régua, porta-moeda... Todos com os símbolos
do candidato.
Atuando num segmento organizado, o destaque como
vereador despertaria imediatamente o interesse de outros
membros do movimento carismático. Foi precisamente isto que
ocorreu na campanha de 1996 e posteriormente na de 2000.
Mindello já não podia contar unicamente com os votos obtidos
dentro do movimento carismático e devia necessariamente
diversificar sua base de apoio político.
Sobre a divisão de votos dentro do movimento
carismático, Mindello afirma: “O meu trabalho na Câmara
despertou o interesse de outras pessoas do movimento. Não
pessoas de lideranças maiores, mas pessoas avulsas, digamos
assim, participantes do movimento que de vez em quando
resolvem se candidatar”.
Segundo Mindello, o movimento carismático tem um
potencial de voto bastante limitado, não permitindo a eleição
de mais de um candidato pelo mesmo segmento. Para ele, todo e
qualquer candidato, independente da quantidade de votos
extraídos dentro do movimento, enfraquece seu apoio e põe em
295
risco sua eleição. “Como agora surgiram algumas candidaturas
avulsas, pessoas que vão ter certamente 300 votos, 500 votos,
que não vão ter a mínima possibilidade de se eleger, mas vão
tirar alguns votos meus, sem dúvida”.
Ainda de acordo com Mindello, as candidaturas inviáveis
eleitoralmente existentes dentro do movimento
oneram um pouco a campanha da gente. Por quê? Porque, como háessas outras candidaturas, eu tenho de buscar voto fora, fazermais publicidade do que eu faço, do trabalho que eu faço e issorepresenta custo. E então é isso, houve um engajamento mas haviaainda um certo fechamento por parte da Renovação nesse assunto.Depois, não, até de uma forma muito acelerada hoje a Renovação templena consciência dessa necessidade, de termos pessoas dentro dosparlamentos, essa consciência realmente existe.
Alguns candidatos se originam do movimento popular de
bairros de Fortaleza. Entre estas candidatas temos Eliana
Gomes, do Partido Comunista do Brasil. Presidente da Federação
de Bairros e Favelas de Fortaleza, militante comunista, em
2000 acontece sua primeira candidatura a vereadora de
Fortaleza. Como militante de um partido ideológico, a decisão
de ser candidata é parte de uma tarefa imposta pelo partido ao
militante. Em depoimento sobre as razões e condições da sua
candidatura, ela afirma:
Foi assim uma grande discussão com vários seguimentos sociais, asONGs, as associações, dentro do partido. Então houve umaresistência porque nessa trajetória nunca me preparei pra sercandidata, eu sempre estive assim, o que eu sempre fiz e vou fazere vou continuar, ganhando ou perdendo, é dar continuidade a essaluta. Então, eu nunca me preparei pra ser candidata, me prepareisim pra luta, pra tá numa ocupação de terra, pra tá lutando pelamelhoria das outras pessoas, das outras comunidades, mas realmentepra ser parlamentar, isso nunca tinha passado pela minha cabeça.Então, a partir do momento que eu tive que tomar uma decisão, masfoi uma decisão muito coletiva, eu ouvi minha família, acomunidade, a associação, as ONGs, pessoas amigas da universidade.Eles disseram “É importante a sua presença e mais importante é ...
296
ter parlamento em defesa do povo”. Porque não adianta nada você tálutando se não tiver dentro do orçamento, e isso não é dito prapopulação. Então fez com que as pessoas dissessem: “Vá lá, assuma,tenha essa responsabilidade, acredite que ser candidata popular éum grande desafio, mas é possível”. Então, assumi issocoletivamente, não foi uma decisão particular, nem isolada, masfoi discutido coletivamente”. (Depoimento da candidata ElianaGomes, 2000).
Os vereadores colocam sua relação com a política sempre
em decorrência de algo. O envolvimento em algum tipo de
movimento social, greve, sindical, religioso, o indivíduo diz
que se sente autorizado a participar da política de modo
institucional. A decisão de sair candidato nunca é assumida
como pessoal. É sempre um outro que de certo modo autoriza sua
participação ou pelo menos explica sua entrada no universo da
política partidária.
Se isto ocorre com tanta freqüência nos discursos dos
mais diversos candidatos não é por acaso. Com se pode explicar
este fenômeno?
Um candidato vereador ideológico explica aqui sua forma
de aproximação com o universo da política até o momento em que
decide participar como candidato.
Um dado curioso do vereador ou candidato ideológico é o
fato de todos eles virem para a política por meio de
participação em movimentos sociais de diversas naturezas. Em
todas as entrevistas realizadas, conforme a opinião de todos,
a participação em movimentos sociais foi decisiva para sua
entrada na política parlamentar e na disputa de uma
representação. O movimento do qual participam de certo modo
teve como conseqüência “empurrar” para uma candidatura. É uma
297
ação anterior cuja conseqüência é a candidatura. De algum
modo, isto que ocorre no momento anterior legitima no futuro
isto que se passou.
Durval Ferraz é vereador do PT. Foi eleito pela
primeira vez em 1988. Formado em Teologia, segundo afirma,
tinha uma concepção de “Igreja sentimista” e aos poucos,
ensinando religião em colégios de classe média em Fortaleza,
foi tomando consciência das injustiças sociais e mudando sua
visão da religião. Aproximou-se mais da doutrina da teologia
da libertação. Começou sua militância sindical em 1983 via
movimento de valorização do professor e esteve engajado numa
primeira tentativa de eleição no sindicato dos professores de
escolas privadas. Mesmo não sendo eleito para o sindicato,
continua no movimento até a deflagração de uma greve nas
escolas particulares em 1984. Como conseqüência da
participação neste movimento grevista foi demitido de alguns
colégios onde lecionava.
Filiado ao PT desde 1985, na campanha de 1988 para
vereador, diz ter sido procurado por um grupo de ex-alunos que
lhe sugeriram fosse candidato.
Aí eu topei, tudo bem, foram os ex-alunos mesmo que seorganizaram, fizeram comitês na casa deles, os pais se envolveramtambém, muitos pais me conheciam, quer dizer, eu tinha uma relaçãocom eles muito bonita, muito afetiva, muito forte, éimpressionante, até hoje esses ex alunos votam na gente, fazcampanha, telefonam.
Em 1988, Durval foi eleito a vereador com 1.955 votos.
Os votos vieram basicamente de suas ligações com alunos,
colegas e pais dos alunos que se engajaram na sua campanha.
298
Representava naquele momento um segmento social específico
ligado à educação e defendia valores religiosos progressistas,
etc. A base eleitoral dele permaneceu até 2000,
particularmente concentrada na grande região da Aldeota.
Os candidatos que se lançam na disputa eleitoral com
mais chances de vitória no campo ideológico têm um perfil
muito definido: vêm de movimento social ainda recente e,
portanto, pegam a força de todo o movimento de participação e
engajamento em torno de certa causa ou valor. Esta é a
principal força deles. Se não estão presentes em algum
movimento social em atuação, precisam estar apoiados não mais
num movimento, mas numa instituição já consolidada e que dê
apoio ao candidato no sentido de que ele possa aparecer como
identificado com a instituição.
Sobre o vereador institucional oriundo dos meios de
comunicação como rádio ou televisão, ele surge como candidato
exatamente pelo mesmo efeito de exposição num veículo de
comunicação, o qual o legitima a se apresentar como candidato.
Somente com um nome já bastante conhecido por causa de
algum tipo de participação em movimento social é que o
indivíduo pode se credenciar a pretender se candidatar. Apesar
da legislação – respeitados os critérios – permitir a qualquer
um se candidatar, entre um candidato e um eleito há uma
distância muito grande. A diferença reside exatamente no grau
de penetração deste candidato em algum setor da sociedade. Sem
este envolvimento e participação com um número considerável de
pessoas capazes de ser transformadas em eleitores, é preciso
299
construir um nome na base da compra de votos. Isto requer
muito dinheiro.
Antônio Machado Neto, conhecido como Machadinho,
vereador do PFL na eleição de 2000 conquistou seu segundo
mandato. Ligado à Associação Beneficente de Reabilitação,
entrou na política partidária depois que uma outra dirigente
da ABCR, Gorete Pereira, tornou-se deputada estadual, deixando
vaga sua cadeira na Câmara Municipal. O slogan da sua campanha
eleitoral, “Machadinho, a força da reabilitação”, é uma
alusão à sua condição de dirigente desta instituição que cuida
de pessoas com transtornos motores.
A necessidade de renovar o mandato parlamentar empurra
o vereador para os braços de uma base eleitoral fixa. Desde
sua primeira eleição orienta sua atuação parlamentar
unicamente para um segmento determinado da sociedade.
Machadinho tem sua atividade inteiramente voltada para atender
aos interesses e expectativas dos deficientes físicos. Ele se
apresenta como o único defensor deste grupo, seu legítimo
representante na Câmera Municipal e também junto ao poder
executivo. Não há uma única lei votada na Câmara e que possa
beneficiar de forma exclusiva os deficientes físicos que este
vereador não apresente uma subemenda protegendo ou estendendo
direitos não cogitados pelo autor do projeto original para sua
clientela eleitoral. Machadinho atende às expectativas da sua
base eleitoral mediante benefícios concedidos por meio de
legislação orientada em forma de benefício público. Isto,
entretanto, somente é possível pela natureza da sua base
eleitoral, constituída de pessoas e familiares portadoras de
300
algum tipo de deficiência física, as quais se sentem
desprotegidas em seus direitos, e têm na atividade do vereador
seu defensor institucional.
O vereador Machadinho representa-se de tal modo
monopolizador dos interesses e expectativas dos portadores de
deficiência física que mesmo quando ocupa a presidência de uma
comissão importante de direitos humanos, não deixa de voltar à
atividade unicamente para atender às expectativas dos
excluídos da cidadania de locomoção.
No jornalzinho de prestação de contas do seu mandato e
da campanha para reeleição, consta: “Como médico, Presidente
da ABCR e Vereador, Machadinho destaca-se pela sua ação
parlamentar como o político que mais legislou pela causa das
pessoas portadoras de deficiência. Seu mandato produziu mais
leis em benefícios dos deficientes do que em todos os mandatos
anteriores juntos”. No final da página, afirma que apresentou
63 projetos de lei e 56 requerimentos. Em outro material de
campanha, Machadinho lista alguns destes projetos. Das 25
atividades legislativas citadas, retiramos apenas dez para se
ter uma idéia do compromisso monopolizador na defesa exclusiva
da causa da reabilitação como ele mesmo se refere.
Passe livre para deficientes; Acesso aos edifícios públicos paradeficientes; Adaptação dos flats aos deficientes no município deFortaleza; Reserva obrigatória de 5% das unidades residenciaisadaptadas para deficientes físicos em conjunto habitacionais;Concessão de vagas prioritárias para deficientes nas escolas;Transporte alternativo para deficientes; Criação da Avenida 24horas, adaptadas para deficientes; Disciplinar estacionamento ZonaAzul para deficientes; Reservar 5% das vagas de creches paradeficientes; Cardápio em Braile nos bares e restaurantes para usode cegos”.
301
Estas são apenas algumas das propostas apresentadas e
aprovadas pelo vereador em seu mandato. Constata-se uma defesa
exclusiva dos interesses dos portadores de deficiência. Não é
estranho, pois numa rápida conversa este vereador me disse que
a Câmara de Vereadores deveria ser organizada por defensores
de segmentos. Ao chegar à Câmara a pessoa já saberia a quem se
dirigir, como se tratasse de um órgão público em que cada
setor haveria interesses tratados de forma exclusiva.
Em carta dirigida ao eleitor, Machadinho diz:
Você sabe que o grande problema de nosso Brasil, hoje, é a faltade respeito à cidadania e o desprezo aos aposentados. É por issoque sofremos as deficiências dos serviços de SAÚDE, EDUCAÇÃO,SEGURANÇA, entre outros.O poder Municipal, cada vez mais, vem assumindo a prestação dessesserviços, além de contribuir para a geração de emprego e renda dapopulação que o modelo de progresso tecnológico e odesenvolvimento econômico que esquece o social deixamarginalizada.Precisamos de uma nova Câmara Municipal, mais atuante, mais séria,com mais compromisso com o social, para que possamos melhorarnossa vida.Por isso, precisamos eleger pessoas como o MACHADINHO, cujotrabalho, dentro e fora da política, é sério, cheio de resultadospositivos para os cidadãos de Fortaleza, especialmente os maispobres.
O vereador-candidato aparentemente pretende fazer um
discurso menos centrado num segmento específico por ele
defendido. Mas deixa transparecer seu compromisso unicamente
com a reabilitação, pois é este seu slogan de campanha: “A
força da reabilitação”. Todo o material iconográfico da sua
campanha apresenta um grupo de seis jovens, quatro deles
portadores de alguma deficiência.
302
O núcleo principal da campanha de Machadinho centra-se
no controle da direção da ABCR, entidade da qual é presidente,
contando com onze núcleos de atendimentos espalhados pelos
bairros mais periféricos da cidade.
O vereador Machadinho enfrentava a disputa no seu
segmento exclusivo de defensor da causa dos deficientes com o
surgimento de dois outros candidatos que se apresentavam
igualmente como defensores dos interesses dos deficientes. O
candidato Jorge Luiz, concorrendo pelo PL, apresentava-se em
cartazes de campanha numa cadeira de rodas, mas não usava
nenhum slogan chamando a atenção para sua deficiência e que
isto poderia autorizá-lo a fazer a defesa dos interesses dos
portadores de deficiência. Seu slogan era; “O amigo de
sempre”. O outro candidato era uma mulher, Ana Zilma,
igualmente portadora de deficiência, que aparecia em cadeira
de roda. Concorrendo pelo PTB, ela apresenta-se com o slogan
“Mulher de luta e coragem, o desafio de uma mulher”. O slogan
faz clara referência à sua condição de deficiente motora, mas
ela não se apresenta explicitamente como defensora deste
segmento do eleitorado. Em sua mensagem aos eleitores podemos
ler o seguinte: “Amigos Eleitores – Acreditamos em uma melhor
qualidade de vida para todos nós, e sabemos que só com o suor
do nosso rosto é que podemos contar, é que convido você
trabalhador que derrama suor durante toda a sua vida, a juntar
sua força a juventude e coragem de ANA ZILMA”.
Não há explicitamente nenhuma referência à sua condição
de deficiente física nem ao desejo de pleitear a representação
dos interesses deste segmento social.
303
Outro candidato com deficiência que poderia
eventualmente apresentar-se ao eleitorado como buscando a
identificação para ser o representante dos seus interesses é
Emanuel Ernani, do PDT. Ernani já foi candidato em outras
vezes e sempre se apresenta como “O deficiente visual que
enxerga longe”, mas jamais como defensor da causa dos
deficientes em geral.
4.4 O Vereador como Agente do Poder Local
O fato mais significativo da eleição municipal de 2000
em Fortaleza, para a Câmara de Vereadores, foi a consagração
do fim do declínio do vereador comunitário. Além das
desistências de vereadores mais antigos, como Willame Correia,
Alberto Queiroz e Mário Maia, nenhum dos que na eleição de
1996 obtiveram mais de 70% dos seus votos numa única
comunidade local conseguiu renovação de mandatos. Os dados
eleitorais da eleição de 1996 já indicavam uma diminuição do
prestígio eleitoral dos candidatos com vinculação muito
estreita a comunidades territoriais.
A seguir, discuto a base social de representação dos
vereadores de Fortaleza desta eleição. Para melhor situá-los,
classifiquei-os conforme sua base de monopólio de
representação. Ela nos permite ter uma idéia do grau de
representação social do parlamento municipal de Fortaleza.
Analisando os números e distribuindo os vereadores dentro da
classificação tradicional, quer seja como comunitário, quer
304
como ideológico, ou de representante de corporações e
institucional, pude chegar à seguinte constatação.
A presença mais importante nesta campanha foi o
acentuado destaque de lideranças locais que agem como porta-
vozes do candidato na comunidade da qual pretendem representar
os interesses. Enfatizo este aspecto porque ele parece dar a
chave para se entender o surgimento de um tipo de liderança
política dominante atualmente no cenário da Câmara Municipal
de Fortaleza. Quanto à classificação, trata-se de uma forma de
reunir os membros de determinada instituição, levando em
consideração certos aspectos. Tem, como toda classificação,
algo de arbitrário, mas, em certo aspecto, tomei indicações
dos próprios vereadores para construir o primeiro tipo-ideal.
Tanto o vereador comunitário como o corporativo tendem a se
auto-identificarem com as características apresentadas. O
terceiro tipo – vereador institucional – pretendo que seja uma
criação analítica, logo, de difícil identificação pelos
próprios envolvidos.
A vida política no governo local não se faz na base da
organização partidária, mas no uso clientelista dos recursos
disponíveis pelo governante. Ele pode facilmente compor sua
base de sustentação parlamentar. O alinhamento político com as
posições do poder executivo é uma questão de sobrevivência
política para o vereador, pois sem o uso político da estrutura
da administração municipal, não há como contemplar seu
eleitorado e manter sua complexa rede de atendimento e
prestação de serviços. A troca de favores, atendimento de
pequenas demandas coletivas, faz a atuação do vereador se
305
voltar unicamente para a manutenção dos laços de confiança
junto ao eleitorado. Ele desempenha seu mandato parlamentar na
expectativa de tirar algum tipo de proveito para seus
representados.
Os vereadores tradicionais, de comunidade local ou
comunitários, como preferem ser chamados, são tributários de
uma prática de mediador dos interesses coletivos e
representantes de um eleitorado definido. Seu desempenho
parlamentar é orientado inteiramente para satisfazer aos
interesses do seu eleitorado. Muitos são incapazes de manter-
se como liderança política local pelo excesso de demanda
apresentada pela comunidade e pelo eleitorado isolado.
Preferem criar estruturas intermediárias de poder comandadas
por lideranças locais. Estas estruturas mediadoras são de mais
fácil controle. Recursos financeiros para a realização de
pequenos eventos na comunidade são suficientes para manter a
posição de líder local. O vereador clientelista mora num
bairro de periferia, tem formação escolar precária e uma vida
modesta, mantém relações de aproximação muito grande com seus
representados e possui grande dependência do seu eleitorado.
Uma observação atenta à política municipal, desde os
primeiros anos da década de 1980, constatará que o sistema de
liderança, diretamente exercido pelo vereador numa comunidade,
tende a desaparecer. Dos atuais vereadores tradicionais,
alguns já abandonaram seu reduto, lugar de moradia, e passaram
a residir em bairro mais nobre da cidade. A liderança desse
vereador estava baseada no convívio cotidiano com a comunidade
que representava. Havia uma impossibilidade real de distinção
306
entre lugar de moradia e lugar de trabalho porque estas duas
funções se confundiam. A diferenciação e a mudança somente são
possíveis quando se assegura uma estrutura de liderança local
fiel, de modo que o representante pode se ausentar
fisicamente, mas deixa alguém da família que o representa
diretamente. Dois exemplos recentes em Fortaleza: o vereador
José Maria Couto deixou de residir no bairro Antônio Bezerra,
mas seu pai, ex-vereador e ex-deputado, continua exercendo
forte liderança local, substituindo a presença física do filho
por meio de uma intervenção direta na área onde mora. O
vereador Eurivá Matias é outro exemplo. Recebendo o colégio
eleitoral do pai – vereador Eurico Matias, eleito
sucessivamente pela região do Parque Araxá e Rodolfo Teófilo,
passa a residir em outro local após a sua separação familiar,
mas mantém o escritório no antigo endereço. Conforme se
percebe, estes vereadores, ao saírem das suas respectivas
áreas de influência, passam a conquistar votos de modo mais
disperso. Entretanto, continuam tradicionais no comportamento
parlamentar, embora com uma votação de forma diferenciada. São
lideranças locais de naturezas diversas, encarregadas do
trabalho de atendimento dos problemas das comunidades
assistidas; líderes políticos presos aos interesses do poder
executivo, que trocam uma submissão ao eleitorado por uma
relação de total dependência ao detentor do poder executivo;
gozam de um mandato sem nenhuma autonomia.
Segundo indicavam os dados do resultado eleitoral da
disputa pelas vagas de vereadores em Fortaleza em 1996 e 2000,
a Câmara de Vereadores tem forte concentração de
307
representantes políticos que pautam sua atuação pelo
clientelismo. Há um dado surpreendente indicando que os
vereadores mais antigos com áreas políticas consolidadas
passam, com o fluir do tempo, a dispersar mais seus votos,
fazendo claro apelo aos líderes comunitários de outras regiões
da cidade. Estes casos ficam evidenciados com o estudo da
votação de três vereadores situacionistas: José Carlos
Carvalho, Narcílio Andrade e Eurivá Matias. Apesar de serem
vereadores de tradição clientelista, eles passam a ampliar sua
base de votação. O primeiro e o terceiro se mudaram das suas
áreas de atuação inicial.
Engana-se quem pensa que o eleitorado destas lideranças
tradicionais não sabe reconhecer seus interesses. Ao
contrário, este eleitor da periferia força o representante
político a tomar posição, normalmente, favorável ao prefeito,
e desta aproximação obter benefícios imediatos para a
comunidade ou para a distribuição de bens individuais. O
comportamento deste vereador é baseado na constante troca
entre seus eleitores e seu representante. Esse vereador sabe
que depende estreitamente do eleitorado da sua área. E a
manutenção da lealdade política baseia-se na troca constante
de favores e serviços. Não há política possível fora deste
universo entre representantes e representados. O voto é apenas
uma das relações que o eleitor mantém com seu líder local,
além de sistema de troca de favores, empréstimos, prestação de
serviços por parte do poder público. O eleitorado é disperso,
mas pode ser controlado por um capilar sistema de lideranças
locais identificadas como representantes do político tal.
308
Estas lideranças não são políticas, mas pessoas que atuam
junto dos moradores e em momentos de eleição procuram
atualizar estes contatos para render votos para um candidato.
A vida política municipal em Fortaleza criou um sistema
de lideranças comunitárias não identificado imediatamente com
qualquer político, mas livre para agir, profissionalmente, na
defesa do seu interesse. O surgimento desta camada
intermediária entre o eleitorado, que não está mais formando
sua sociabilidade nos laços de vizinhanças, e as lideranças
políticas formais permite se compreender a continuidade de uma
prática clientelista sem base tradicional. O vereador retira
uma votação expressiva em vários lugares da cidade,
significando uma liderança não tradicional, mas não efetiva
esta votação por apoio da sociedade civil ou pelos meios de
comunicação. A conquista desta votação dispersa ocorre pela
rede capilar de lideranças comunitárias dispostas, na época de
eleição, a trabalhar para o candidato que lhes pagar valor
mais expressivo.
4.5 Homens de Bairro - O Vereador Comunitário (Tradição e
Carisma)
Dentro da classificação ora proposta, o vereador
comunitário é aquele caracterizado pela alta concentração de
votos, normalmente numa dimensão territorial do bairro, tem
vínculos muito estreitos de afetos com seus eleitores, a
exemplo de: Luciano Rodrigues – membro orgânico, pois
residente na base eleitoral do bairro onde obteve 90% de votos
conquistados na própria área de atuação local depois de
sucessivas tentativas malogradas. Maurílio Assêncio – membro
309
orgânico, residente na base eleitoral, teve 83% de votos na
própria área de atuação local, conquistados na base de um
trabalho comunitário de um centro social de prestação de
serviços, vereador mais antigo com mandato. Francisco
Mangueira – membro orgânico, residente na base eleitoral, teve
76% de votos conquistados na própria área de atuação local,
assim como Luciano Rodrigues, que obteve êxito eleitoral
depois de várias eleições disputadas. Augusto Moreira – membro
orgânico, residente na base eleitoral, teve 75% de votos
conquistados na própria área de atuação local. Este vereador é
caracterizado como comunitário pela concentração de votos
obtidos e por ter recebido o mandato da liderança do seu pai,
Agostinho Moreira, que morreu durante o exercício do quinto
mandato consecutivo. Francisco Dummar – membro orgânico,
residente na base eleitoral, teve 68% de votos conquistados na
própria área de atuação local. Igual a outros, tentou várias
vezes a eleição, mas somente conseguiu êxito com a estratégia
de mudança para um pequeno partido e contando com alta
concentração de votos no seu bairro. Lavoisier Férrer – membro
orgânico, residente na base eleitoral, teve 68% de votos
conquistados na própria área de atuação local. Está no segundo
mandato, com forte atuação assistencial no bairro do Joaquim
Távora. Martins Nogueira – membro orgânico, residente na base
eleitoral, teve 62% de votos conquistados na própria área de
atuação local. Perfil político tradicional em sua atuação no
bairro da Parangaba, mas atuando em torno do lazer para jovens
e mecanismos clássicos de assistencialismo. Perde força local,
310
pois na eleição de 1996 não conseguiu se eleger e assumiu a
cadeira, posteriormente, como suplente.
A seguir reúno os vereadores num grupo em separado
porque são tradicionais pela origem e concentração dos votos,
mas, desde 1996, obtêm uma votação mais dispersa em sua
votação. Não se configuram mais como detendo uma base
eleitoral concentrada numa região da cidade. Dito de outra
maneira, eles detinham um perfil político tradicional,
entretanto, depois da eleição de 1996, passaram a apresentar
um mapa de desempenho eleitoral disperso, compatível com
vereadores não tradicionais.
Luís Arruda – está no segundo mandato e substitui o
pai, ex-vereador Ademar Arruda; obteve 55% de votos ainda numa
base local do bairro onde reside. Casimiro Neto – foi deputado
estadual, mas atualmente substituiu a mãe como candidato. Sua
mãe, Maria José de Oliveira, recebeu o colégio eleitoral,
ainda na década de 1970, do seu marido, vereador José Barros
de Oliveira. Era vereadora com 24 anos de atuação como
liderança local no bairro da Bela Vista. O filho recebeu
aproximadamente a mesma votação de sua mãe em 1996, 45% dos
votos vieram do próprio lugar de moradia. Walter Cavalcante –
está no segundo mandato; começou com uma votação fortemente
ligada ao segmento dos mutirões habitacionais da prefeitura,
mas se fixou com uma base eleitoral no próprio bairro, onde
obteve 45% dos votos. José Carlos – Cacá – este vereador
começou com forte votação concentrada na região da Lagoa
Redonda, onde residia. Desde 1996, começou a abandonar sua
base eleitoral de bairro, pois mudou-se para uma região mais
311
valorizada da cidade. Mesmo assim, permanece com uma
concentração de votos no mesmo bairro, em torno de 43%. Eurivá
Matias – este é provavelmente o caso mais exemplar dos
vereadores tradicionais. Está no quarto mandato. Recebeu o
Colégio Eleitoral do seu pai, ex-vereador Eurico Matias, mas
desde 1996 vem diminuindo sua concentração de votos na região
da sua base eleitoral – Parque Araxá e Rodolfo Teófilo. Não
mora mais no bairro e obteve ali apenas 26% da sua votação
total.
Observando o primeiro grupo dos vereadores
comunitários, constata-se, nessa eleição, que a renovação
dentro desta categoria foi de 57%. O mais interessante é que
os vereadores Luís Arruda, Walter Cavalcante, José Carlos
Carvalho e Eurivá Matias, ainda na eleição de 1996, mantinham-
se como vereadores comunitários por causa da votação bastante
concentrada. Verifica-se, porém, surpreendente mudança no
perfil do seu eleitorado. Os casos mais importantes são mesmo
dos vereadores José Carlos Carvalho e Eurivá Matias. Este
último modifica seu perfil em virtude da ocupação da Primeira
Secretaria na Mesa Diretora da Câmara Municipal.
4.6 Conquista e Manutenção de uma Base Eleitoral
Ao contrário do que muitos pensam, o vereador
comunitário, em época eleitoral, não é o típico candidato
comprador de votos. Não só porque não dispõe de recursos
financeiros para entrar no sistema de compra de votos, mas
pelo fato de realizar uma atividade constante junto à sua
comunidade eleitoral. Este trabalho mantido via estruturas
locais de assistência social à população lhe assegura um
312
retorno eleitoral em forma de voto de confiança e gratidão.
Tal prática é mantida por meio de um grande sistema de
controle de atuação política na sua área. Estruturar uma rede
social de apoio eleitoral constante fundada na troca
permanente não é suficiente para assegurar a reeleição. Isto
porque não têm como impedir a presença em sua área de trabalho
de candidatos, chamados por eles pára-quedistas. Um candidato
pára-quedista é aquele que pertence ao mesmo “campo
ideológico”. Um vereador comunitário não considera um vereador
de esquerda como pára-quedista, mas unicamente os que são ou
do seu partido ou de partidos aliados. Contudo, o pára-
quedista disputa votos dispersos do eleitorado presente na
área não subordinado mais à liderança do vereador comunitário.
Na eleição de 1996, o vereador Eurivá Matias deslocou-se um
pouco da sua área de atuação, localizada do bairro do Rodolfo
Teófilo, em direção à Bela Vista, reduto eleitoral da
vereadora Maria José de Oliveira. Este tipo de “invasão”
ocorre durante o período eleitoral, e normalmente com
candidatos que estão abandonando sua antiga base eleitoral.
Mas elas não estruturam sistemas de atendimento e assistência
social no local porque sua ação é puramente eleitoral.
O clientelismo é uma relação política de dependência
entre os membros, baseada na troca de favores, onde a
dependência dos envolvidos é mútua. Assim como o eleitor
depende de favores do líder local, ou vereador, este também se
mantém numa forte dependência do seu eleitorado. O
clientelismo defendido abertamente por muitos vereadores é
apenas o reconhecimento da sua condição de dependente das
313
lideranças locais. É o mecanismo para assegurar sua posição de
líder político local.
O controle local dos recursos públicos, que chegam às
comunidades por via de vários programas sociais do Estado, por
meio de lideranças locais, é o mecanismo para assegurar a
criação de uma rede de dependência entre os beneficiados
destes programas e seus promotores diretos. O uso político
destes recursos ocorre justamente no elo menor da cadeia da
sua implementação. Manter o controle sobre a distribuição
destes recursos é fundamental para as lideranças locais, pois
todo seu poder advém deste controle. Qualquer mudança na
natureza da distribuição, criação de regras impessoais provoca
forte reação por parte deles, justamente porque afeta seu
poder de liderança.
Em muitos casos, a rede de lideranças locais em que se
apóia o vereador é comandada diretamente por ele, mas em
alguns casos isto se faz de forma indireta, por intermédio dos
seus assessores parlamentares. São estes muitas vezes
lideranças locais que também atuam no parlamento municipal. O
vereador pode comandar pessoalmente a rede de distribuição de
favores e prestação de serviços ou pode criar um sistema de
atendimento coordenado por auxiliares diretos. Normalmente os
vereadores médicos dão assistência à comunidade durante algum
dia da semana, quando atendem gratuitamente. É uma forma de
prestar um serviço na própria atividade profissional. Caso não
possam resolver os problemas, têm uma rede de amigos médicos,
situados em diversos pontos hospitalares, com os quais podem
contar. É uma rede extremamente complexa de obrigações
314
mutuamente estabelecidas. Aquele médico que faz um favor ao
colega médico-vereador sabe que numa eventualidade poderá
contar com o auxílio do edil amigo. Para a população assistida
por ele, resta a esperança na gratidão de um atendimento
prestado sem nenhum tipo de obrigação e possível de ser
recompensado no momento devido com um voto de confiança. A
relação do representante político com seu eleitor não é de
forma alguma uma representação de interesses, mas um pacto de
ajuda mútua.
Muitos dos atuais vereadores apelam para os serviços de
lideranças locais em épocas de eleição. São líderes locais de
naturezas diversas que trabalham na conquista de voto para seu
candidato. Isto explica a dispersão de votos de muitos
candidatos. Os detentores de votos muito concentrados são
lideranças que ascenderam à condição de vereadores e ainda não
dispuseram de tempo e recursos para a montagem do mecanismo de
rede de lideranças locais. A rede de auxílio e atendimento
mantida por um vereador determina seu poder eleitoral.
Nem sempre o líder local que consegue um mandato de
vereador é capaz de mantê-lo se não souber estruturar esta
rede de atendimento e assistência social local. Willame
Correia, líder comunitário do bairro Reino Encantado,
candidato por duas vezes a vereador até ser eleito em 1996,
com uma altíssima concentração de votos – mais de 90% da sua
votação foram retirados em sua área residencial – talvez seja
o caso evidente de um líder local que conseguiu sua eleição
depois de várias tentativas. Todavia, na eleição seguinte, não
foi capaz de manter seu mandato. Não teve tempo, por causa de
315
uma eleição muito competitiva, de estruturar sua base
eleitoral. Somente as lideranças mais antigas que têm
assegurado uma rede de assistência aos seus eleitores são
capazes de preservar sua liderança. Os mais novos enfrentam
forte concorrência e, não dispondo de recursos financeiros
suficientes, não se mantêm como líderes locais. Mas os
vereadores que conquistam o mandato com o uso de lideranças
locais estão sujeitos a rompimentos de acordos. Não há
lealdade política entre as lideranças locais e os
representantes políticos, pois se trata de um negócio de
risco. Estes políticos, porém, não têm alternativa, dada a
natureza da sua representação. Ficam nas mãos das lideranças
locais. É um jogo e apostam na confiança estabelecida entre
eles.
A estrutura de clientela é estabelecida entre
indivíduos que ocupam posições assimétricas e que dependem
econômica e politicamente de outros. Para muitos deles as
relações são sempre diretas. Mas o vereador que utiliza o
mecanismo da liderança local não busca este tipo de contato
direto com a comunidade. Ele raramente vai ao encontro dos
seus representados e deixa o trabalho de convencimento e de
assistência para os amigos e auxiliares. A cadeia de relações
intermediárias na qual a liderança local ocupa um papel
importante não pode ser quebrada e precisa ser mantida. A
manutenção deste vínculo com a comunidade vai desde a presença
do vereador numa festa local, aniversário, ao apoio aos
eventos realizados na área.
316
A relação clientelista exige do vereador fornecer bens
e serviços para seus representados. Os serviços são
normalmente públicos, mas aparecem como se tivessem sido
conquistados pelo vereador por causa do seu empenho em
encaminhar as reivindicações das comunidades aos órgãos
responsáveis. Os serviços prestados pelo vereador à sua
clientela incluem levar os jovens para tirar o título de
eleitor, obter uma consulta médica, um medicamento,
regularizar uma escritura, conseguir um emprego para um filho,
uma bolsa de estudo, um enterro, uma ajuda para uma viagem de
um parente, o pagamento da conta de luz e água –pedidos
comuns, mas tudo pode ser objeto de pedido.
O clientelismo não pode mais ser entendido como se
pensava: uma relação praticada no campo tradicional e de
subjugação dos atores sociais envolvidos. Ao contrário, esta é
uma prática corrente no meio urbano onde eleitores têm acesso
às informações e por isso mesmo praticam o ato de negociar o
voto. O voto somente é objeto de negociação porque se tem uma
representação correta da sua importância e se procura obter os
benefícios privados desta relação. O clientelismo urbano
exercitado nos grandes bairros periféricos atinge um
eleitorado livre, ativo e que negocia abertamente seu poder de
escolha eleitoral. Portanto, a sedução do eleitor numa base
clientelista não pode ser feita apenas no período eleitoral.
Todo vereador, independentemente da classificação aqui
adotada, desenvolve atividades de representante do legislativo
municipal dentro da Câmara e uma atuação fora da instituição.
Muitos vereadores designam esta primeira atividade como ações
317
institucionais, pois se relaciona com o cumprimento do seu
papel de vereador, atuando nas comissões e no Plenário. As
atividades fora da Câmara dependem da natureza da
representação ou do mandato. Os vereadores comunitários atuam
no atendimento aos seus eleitores, em peregrinação pelos
gabinetes de secretários e dirigentes de órgãos públicos, na
busca de soluções para os problemas das comunidades que dizem
representar; na ação de mediador das demandas sociais de uma
comunidade junto ao poder público. Já os vereadores
ideológicos costumam participar de atividades relativas às
questões públicas mais abrangentes, manifestações públicas,
atos de protestos, etc. Não há atendimento ao eleitor
individualmente. O vereador de comunidade atua como um
despachante que atende aos pedidos do seu eleitorado pelo uso
de influência direta ou indireta de relações com diversas
autoridades. O vereador faz uma peregrinação por órgãos
públicos, buscando a solução para as demandas coletivas da
comunidade. Secretarias e agências municipais, diretorias de
hospitais públicos, casas de saúde são passagens obrigatórias
para estes “profissionais do pedido”. Aquele que um dia esteve
num ponto da rede de atendimento das demandas comandadas por
um vereador tende num dado momento a se aventurar a tentar ele
mesmo um mandato parlamentar.
A questão é como explicar o comportamento parlamentar
do vereador comunitário. A marca da política desenvolvida
pelos vereadores é o clientelismo. O governo municipal não é
constituído sobre base partidária, mas na troca de favores dos
representantes do executivo em relação aos membros do
318
legislativo. Este tipo de relacionamento é justificado pela
natureza do poder do legislativo, o que explica a necessidade
de constante alinhamento de um vereador em relação aos
interesses do poder executivo, abdicando na maior parte das
vezes de cumprir sua função de fiscalizador do poder
executivo.
A sobrevivência política, a necessidade de manter uma
base eleitoral sempre alimentada em serviços e bens exige do
representante um tipo de comportamento de dependência política
em relação ao chefe do executivo. Parte da demanda do seu
eleitorado não pode ser atendida diretamente por seu próprio
financiamento. Por isto, é preciso usar o dinheiro público de
forma privada.
Neste sentido, uma função importante a ser
regimentalmente cumprida pelo vereador é a de fiscal do poder
executivo. Mas esta função raramente pode ser exercida pelos
vereadores tradicionais, pois, para manter sua base, precisam
do apoio do prefeito. Deixam de acompanhar as ações
fiscalizadoras do poder executivo porque assim asseguram
benefícios para seu eleitorado. Acompanhar as ações do poder
executivo exige independência do mandato. Qualquer laço de
dependência material do representante com o eleitor pode
pressioná-lo a agir em oposição ao que determina a lei. Não se
pode imaginar uma ação parlamentar presa aos interesses
“paroquiais” de uma comunidade qualquer de interesses.
Por todas estas observações, posso assegurar que em
Fortaleza se assiste ao abandono da identificação local,
territorial de bairro, como critério para o desempenho
319
eleitoral. Os representantes locais estão buscando cada vez
mais formas dispersas de representação. Isto exige da parte
deles mais condições materiais para esta independência do
eleitorado. Os muito dependentes de uma base eleitoral
concentrada estão sujeitos aos interesses imediatos dos
eleitores dispersos e sempre ávidos por algum benefício. O
custo da manutenção de uma base eleitoral é muito alto, pois
requer constante presença na área. Todos os problemas da
comunidade devem passar por ele. Este custo não é somente
material e financeiro, em parte coberto pelo poder executivo,
mas principalmente de empenho permanente.
Representar segmentos diversos parece ser a forma mais
corrente de os vereadores atuarem, pois a representação de
única região da cidade, uma comunidade determinada, é muito
perigosa e sempre sujeita ao descontentamento do eleitorado.
Para evitar a estreiteza da representação que aumenta
enormemente o trabalho do representante, opta-se por uma
representação mais difusa de segmentos variados. São poucos os
vereadores que atualmente retiram seus votos de fonte única.
Os que no passado a obtinham do segmento comunitário ampliam
hoje sua área de atuação, enquanto outros buscam a
identificação com segmentos profissionais ao longo do mandato,
com vistas a votos futuros.
Os vereadores que se apresentam ao eleitorado
representando valores precisam ter uma base institucional
organizada para assegurar-lhes apoio sólido. Machadinho,
vereador do PFL, apresenta-se como o defensor dos deficientes
físicos. O slogan de sua campanha é “a força da reabilitação.”
320
Mas isto só não basta. Ele vale-se de outros recursos, como a
estrutura institucional, usada durante o período eleitoral
para organizar e mobilizar um eleitorado potencial, que são os
que passam e passaram pelos centros de reabilitação.
O trabalho de um candidato, independente do seu perfil
político ideológico, é feito a partir da sua trajetória de
vinculação a uma organização social, a qual permite uma base
de mobilização eleitoral. Tanto maior e mais identificado seja
com o segmento, mais chances de conseguir ser eleito com os
votos de único segmento. A probabilidade de eleição está
relacionada com o poder de representação do segmento que ele
pretende representar e de quantos candidatos reivindicam o
direito de representá-lo. Um candidato que se apresenta
unicamente como representante dos motoristas de táxi pode ser
eleito caso não haja um concorrente disputando a mesma
identificação e ele seja reconhecidamente autorizado a ocupar
esta função. Mas se o segmento social não se identificar com
ele, não há eleição possível.
Os vereadores de comunidade estão sujeitos aos
interesses da sua comunidade sentimental e isto os impede
realizar um mandato independente. Os candidatos que buscam uma
identificação com uma área de atuação geográfica discursam
sempre como aqueles que passaram a atuar como mediadores entre
os interesses da comunidade e o poder público. A promessa é
sempre a mesma: lutar por investimento e melhoria das
condições de vida da população da área. O vereador de
comunidade é o mais prisioneiro dos interesses do eleitorado,
pois se submete a uma espécie de ditadura do eleitor.
321
4.7 Vida e Morte do Vereador Comunitário
Na sua atividade parlamentar, o vereador exerce uma
ação relativa à legislação e criação de normas, regulação de
atividade de competência regulatória do município. Em parte,
sua atividade limita-se à denominação de ruas, logradouros
públicos, nomes de praças e trechos de área da cidade. Mas há
também a concessão de títulos de cidadania ou medalhas a
personalidades escolhidas por eles maneiras usadas para
contemplar sua clientela e seu eleitorado.
Os vereadores exercem também uma atividade social. Esta
varia profundamemente, de acordo com o perfil ideológico do
parlamentar. Eles podem se dizer preocupados com os problemas
da cidade; que trabalham para a cidade e seu povo; que
representam os interesses do povo. Tudo isso de forma
abstrata.
Alguns vereadores são membros ativos políticos, isto é,
acompanham o processo de organização de comunidades e procuram
auxiliar os movimentos sociais. Este auxílio pode ser
material, com algum tipo de ajuda financeira. Outras vezes
eles usam a tribuna e o espaço de que dispõem na imprensa como
parlamentares para chamar a atenção do povo sobre algum
problema que afeta setores ou segmentos da sociedade. Não é
apenas um membro do parlamento local que pede uma audiência
com a autoridade do executivo, responsável pela solução do
problema. Ele serve de canal e mediador entre as necessidades
das comunidades e o poder público. Esta ação não é direcionada
para a conquista do voto, nem se volta para um eleitorado da
322
sua base parlamentar. O contato do representante com seu
eleitorado varia conforme sua natureza política. Um vereador
de comunidade tende a não se afastar jamais da sua base de
sustentação, pois precisa estar sempre presente e disposto a
resolver os problemas da sua área de atuação. Aqueles cujo
mandato é mais voltado para um segmento social profissional
também procuram manter um contato constante, mediante boletins
e jornais que possam informar os seus eleitores sobre seu
trabalho na Câmara. Hoje se usa muito a Internet para prestar
conta do mandato ao eleitor.
Por causa das exigências do atual trabalho legislativo
a categoria do vereador comunitário entra em declínio. Exige-
se, também, mais preparo técnico da sua equipe de assessores
parlamentares, impedindo a elevação muitas vezes do auxiliar
eleitoral à condição de assessor parlamentar. A cobrança e o
controle deste vereador, por parte da opinião pública,
impossibilitam-no ter uma ação direcionada unicamente para sua
base eleitoral. Além disso, a amplitude da ação do poder
público, circulação maior de informações e a definição de
regras para concessão e acesso de benefícios públicos
dificultam a manutenção de estruturas locais de
assistencialismo por parte destas lideranças.
A fragilidade e provável declínio de liderança do
vereador comunitário se expressaram na eleição passada, quando
um deles, liderança das mais antigas do bairro Antônio
Bezerra, desiste de ser candidato; outra passou a candidatura
para o filho, ex-deputado estadual, e, por fim, a não-eleição
de um dos mais antigos vereadores comunitários de Fortaleza.
323
Ao mesmo tempo, verificamos o abandono de bases comunitárias
de algumas antigas lideranças. Tudo isto ocorre concomitante
ao fortalecimento do vereador do tipo institucional. A mudança
de liderança tradicional comunitária, que parece estar
ocorrendo em Fortaleza neste momento, pode ainda ser entendida
pelo esgotamento desta própria liderança, dinâmica de
circulação de elites, mas também pelo efeito da mudança
institucional na descentralização administrativa recentemente
implementada na prefeitura de Fortaleza. Não se pode negar
também a modernização de procedimentos na atuação pública, que
incapacitou estas antigas lideranças de atender às novas
demandas do seu eleitorado. Embora estes fatores apontados
para o declínio da liderança do vereador comunitário não sejam
excludentes, podem ser complementares e agir numa mesma
direção.
O vereador com identificação em segmento de interesses
e que retirou seu voto de grupos organizados tende a usar mais
na sua atividade parlamentar os instrumentos legais facultados
pela ocupação do cargo. Estes desempenham de forma mais
interna seu mandato por meio de uma atuação constante na
tribuna, nas sessões legislativas e nas comissões técnicas da
Casa. Esta é uma forma de agir usando os instrumentos legais
disponíveis no cumprimento do seu mandato parlamentar.
No entanto, o vereador tradicional atua de forma
oposta. Tem pouco apreço pelo trabalho parlamentar, de
plenário e comissões técnicas. Acredita que seu trabalho é
feito fora da Câmara junto às comunidades locais que dizem
representar. Segundo uma vereadora afirmou em entrevista, às
324
vezes tinha muita dificuldade em abandonar sua residência onde
atendia seus “paroquianos” (expressão usada por ela) e ir para
as sessões na Câmara. Tomava esta parte do desempenho
parlamentar do vereador como um fardo.
Os vereadores desempenham seu mandato de acordo com a
natureza da sua base parlamentar. Aqueles que tiveram votação
dispersa e representam interesses de comunidades ideológicas
agem usando os instrumentos legais disponíveis na Casa
Legislativa; os que representam interesses “paroquiais” de
pequenas comunidades locais desempenham seu mandato
diretamente na sua área de atuação e influência. Os vereadores
representam interesses de várias naturezas, desde uma pequena
comunidade local até comunidades de valores. Mas a natureza da
sua representação e o modo como fizeram a campanha determinam
em grande parte o tipo do seu desempenho no legislativo
municipal.
Desse modo, a natureza do voto do vereador comunitário
reflete-se na sua atuação parlamentar, pois ele pauta sua
atuação institucional pelas regras da convivência pacífica e
troca de favores com o poder executivo. A posição de vereador
não é senão uma forma de exercer uma profissão bem remunerada.
Não há outro propósito em seu desempenho parlamentar. Os
vereadores tradicionais que atuam numa comunidade de área
reduzida estão constantemente em busca de melhorias para sua
área e se preocupam pouco com o debate mais geral sobre os
problemas da cidade. Voltam sua atenção principalmente para a
comunidade de interesse ou área onde foram bem votados.
325
Exercem seu mandato orientados pelo eleitorado desta área ou
pela comunidade de interesse restrito.
Já o vereador ideológico tem um mandato mais
independente, pois é normalmente eleito por uma comunidade de
indivíduos com escolaridade mais elevada, com renda mais alta
e que não dependem de favores de uma liderança política. Esta
só recorre a um representante parlamentar em caso de um
problema coletivo que exija a mediação de um parlamentar.
Os vereadores tradicionais costumam criar algum tipo de
instituição que permite realizar o trabalho social de
assistencialismo à população da sua área. Esta rede de
assistência inclui normalmente ambulâncias e carros para o
transporte das pessoas. A força de um líder local e de um
vereador é expressa pela capacidade de atrair recursos e
investimentos do poder público para sua área. O vereador
tradicional precisa convencer o prefeito a efetuar obras
coletivas em sua área; são os dividendos que procurará
explorar na sua campanha seguinte. Sem o mecanismo de troca de
favores, o vereador tradicional está sujeito a perder seu
mandato.
4.8 Homens de Partido: O Vereador Ideológico (Ética da
Convicção)
O segundo grupo de vereadores é caracterizado por
pertencimento ideológico a organizações partidárias ou
profissionais. Mesmo sem me deter na determinação aprofundada
326
dos vínculos de cada vereador deste grupo, gostaria apenas de
mencionar esquematicamente aquilo que julgo ser sua fonte de
votação. José Airton – sustentação de base ideológica
partidária e mídia. Nelson Martins – corporação bancária e
mídia. Luizianne Lins – corporação estudantil e mídia. Lula
Morais – corporação partidária. Gelson Ferraz – membro da
Igreja Universal. Jaziel de Souza – membro de uma Igreja
Evangélica. Rogério Pinheiro – corporação sindical e
partidária. Pastor Alexandre - membro da Igreja Universal.
Paulo Mindello – membro do Movimento Católico Carismático.
José Maria Pontes – médico com trabalho disperso. Coronel
Leonel – corporação militar. Machadinho – rede de atendimento
da ABCR.
De acordo com a observação sobre o grupo dos
ideológicos e de corporações, eles tiveram uma renovação muito
próxima da dos comunitários, em torno de 58%. Como os
vereadores de corporação e os comunitários são os que detêm
mandatos eletivos mais próximos do padrão imperativo, são eles
os mais sujeitos a não terem seus mandatos renovados pelas
respectivas comunidades de interesses. Neste aspecto, mais uma
vez, os vereadores corporativos se assemelham aos
comunitários.
4.9 Homens de Governo: O Vereador Institucional (Ética da
Responsabilidade)
A figura do representante político institucional não é
certamente uma novidade nem na política nacional nem na
municipal. Não se trata de encontrar a novidade política desta
327
categoria de representantes. O técnico que serve à
administração pública e depois, apoiado pelo líder político a
quem serviu, lança-se na disputa por um cargo eletivo, tem
longa história no Ceará e no Brasil. Na história mais recente
do Estado, há uma geração inteira de técnicos formados no
Banco do Nordeste que depois servem ao governo estadual e,
posteriormente, seguem o caminho da política eleitoral. No
âmbito municipal, a meu ver, isto somente vai ocorrer na
década de 1990. Os quadros dirigentes da administração pública
municipal em Fortaleza, ao longo de muitas décadas, foram
recrutados entre pessoas indicadas por políticos partidários.
Raramente encontramos indivíduos que depois de assumirem
funções de secretário municipal lançam-se na vida política
eleitoral. Somente recentemente este fenômeno está ocorrendo.
Há maior circulação de funções do legislativo municipal para o
executivo e da máquina administrativa para a função
legislativa.
Na eleição, o vereador institucional não é detentor de
um segmento social no qual atua. Esse grupo de vereadores tem
sido dominado por médicos, mas que não representam a categoria
médica. Na campanha eleitoral, habitualmente, procuram
associar sua imagem à do candidato majoritário. A presença
mais acentuada de médicos na categoria de vereador
institucional deriva justamente da sua condição anterior de
dirigente ou ocupante de posto na administração pública na
área de saúde.
O fenômeno da clientela e das relações de clientelismo
refere-se a estruturas sociais tradicionais, embora em
328
sociedades que se modernizam, existe igualmente a dificuldade
de romper com os vínculos remanescentes de uma época quando a
dominação não passava pelo aparelho público, mas pela
intervenção direta do líder político. A dependência de alguns
indivíduos de outros com posição e recursos mais elevados
significava uma relação que se estendia para a dominação
política. No entanto, a mudança significativa das condições de
vida em diversas áreas de dominação tradicional vai corroendo
a base da dominação local do vereador tradicional. Eis o
paradoxo do vereador tradicional – ele não pode assegurar sua
dominação sem trazer melhorias de vida para a sua área; ao
fazer isto, ele permite uma autonomia destas pessoas e sua
dominação estará em colapso no futuro. Todavia, não pode ser
de outro modo, caso contrário, não mantém sua liderança no
presente. As lideranças tradicionais devem fazer melhorias de
vida na área onde vivem, mas não a ponto de comprometer sua
dominação clientelista.
Isto permite entender por que algumas lideranças
tradicionais antigas deixam aos poucos sua dominação
tradicional em uma área e passam a agir em toda a cidade. O
controle de área única é arriscado e pode ser minado por outra
liderança mais importante. Para assegurar, então, sua
sobrevivência política, apelam para a ampliação da sua
dominação política. Aqui, porém, já não atuam diretamente, mas
por intermediários locais, seus representantes diretos nestas
comunidades.
Embora as relações clientelistas sejam típicas de
sociedades tradicionais, a modernidade e as sociedades em
329
transição podem ainda conviver por algum tempo com este
fenômeno. O clientelismo é um mecanismo de proteção social
contra a rapidez das mudanças operadas na sociedade.
Relações tradicionais e aparelho administrativo
centralizado não combinam e entram em colisão. Em cada região
da cidade, as lideranças tradicionais tratam de sobreviver no
novo ambiente e assegurar a manutenção das formas
preexistentes. O vereador da área precisa continuar como
mediador e alocador privilegiado dos recursos públicos
canalizados para esse espaço.
As novas formas de comando moderno tendem a pressionar,
modificar e romper os antigos vínculos de dominação local.
Entretanto, a ruptura da rede de vínculos entre moradores de
uma área da cidade e seu representante político local – o
vereador comunitário – não se faz sem conflito. Esta ruptura
nem sempre é completa, pois pode ocorrer apenas a mudança de
liderança local ou uma acomodação de novas formas de relação
às antigas.
A descentralização administrativa da prefeitura de
Fortaleza deveria ter provocado forte ruptura na rede de
vínculos clientelistas com o vereador da área. Isto
aparentemente só ocorreu no bairro do Montese. Entrementes,
quando em outros bairros, houve mutação da liderança
tradicional.
Desse modo, o sistema de rede de vínculos clientelistas
espalhado pela cidade e comandado por vereadores não foi
destruído, mas adaptado, coligado com as novas forças
330
emergentes. Nesse contexto, as antigas lideranças passaram a
ocupar uma posição de subordinação dentro da nova ordem
municipal, continuam dentro da rede clientelista, mas perderam
muito poder. Como assinalei, a desistência do vereador Edgar
Mendes de se candidatar novamente, a morte do vereador
Agostinho Moreira, a substituição da vereadora Maria José pelo
filho Casimiro Neto, a não- eleição do vereador Narcílio
Andrade, o abandono, aos poucos, da liderança localizada nos
bairros Parque Araxá e Rodolfo Teófilo, do vereador Eurivá
Matias, e o mesmo fenômeno com o vereador Antônio Carlos, na
Lagoa Redonda, são exemplos do declínio das antigas lideranças
comunitárias da cidade.
A dominação em rede de clientelas torna-se cada dia
mais difícil de se manter. É preciso muito esforço, trabalho
constante para preservar uma base eleitoral em forma de área
geográfica. Hoje a maneira mais usada é conjugar uma parcela
da dominação local na área e dispersar sua liderança por
outras esferas de relações.
Atualmente, a figura mais importante na dominação local
é o vereador institucional. Ele tem um vínculo apenas
momentâneo com algumas comunidades organizadas, portanto, não
mantém uma vinculação orgânica. Aparece como representante e
deixa um representante orgânico presente na comunidade, de
modo que pode assegurar a dominação usando intermediários. A
base territorial não deixa de existir, muda apenas o agente
controlador.
Por ser membro residencial, o vereador tradicional é um
líder orgânico da sua comunidade. Atualmente, quase a metade
331
da Câmara de Vereadores é formada de representantes com
vinculação orgânica ao grupo social com o qual se identificam.
Eles são representantes orgânicos no sentido de que sua maior
base de apoio eleitoral se deve à sua vinculação com
determinado grupo social.
Segundo afirmei, muitos desses grupos sociais
organizados não têm interesses imediatos no trabalho do
legislativo. Como enfatiza Nelson Martins, em entrevista, sua
base eleitoral dos bancários não depende das decisões do
legislativo municipal. Isso porque as leis que regulam a
atividade do sistema bancário não são atribuições do poder
municipal. O mesmo fato se verifica com os grupos religiosos.
As atividades destas comunidades não são afetadas diretamente
por legislação oriunda do poder legislativo municipal.
Sua vinculação orgânica será, então, apenas um meio de
ascensão política de um grupo ao legislativo? É o mesmo Nelson
Martins que, na entrevista, orienta quando assinala que os
bancários, depois de terem sucessivos candidatos apresentados
como identificados com a categoria, só se mobilizaram para a
eleição de um bancário para o legislativo no exato momento de
crise, demissões e forte pressão sobre os empregos.
Com a representação da Igreja Universal verifica-se a
mesma situação. Eles não devem estar lá somente para assegurar
uma posição de poder na sociedade. Por serem perseguidos,
acumulam força na disputa eleitoral e decidem ampliar seu
poder social no controle do governo por meio de uma
participação mais efetiva no jogo político municipal.
332
Podemos afirmar que a Câmara de Vereadores de Fortaleza
constitui um espelho da sociedade? Ela é, como ressalta em
recente entrevista um membro da Casa, “uma miniatura da
sociedade”. O vereador que deveria representar o povo passa na
verdade a ser representante do governo, deixando de
representar as categorias e os segmentos sociais de onde
obteve expressiva votação.
Esta foi a constatação de um vereador sobre o
comportamento parlamentar dos seus colegas. Conforme ele
assegura, o vereador não representa nem os interesses do povo
nem os dos segmentos sociais onde foi mais votado. O vereador
representa o poder executivo, o prefeito dentro da Câmara.
O certo é que se distinguem as duas formas de ação de
um parlamentar local: institucional e social. A primeira e
mais importante atividade do vereador é comprometida em seu
exercício no cumprimento da segunda, enquanto a segunda, para
muitos vereadores, é praticada na base do clientelismo. Para
que isto se faça, uma função institucional básica deve deixar
de se cumprir: fiscalizar as ações do poder executivo, do qual
provém parte dos recursos utilizados para dispor de serviços
para sua clientela.
4.10 O que Representa um Vereador Institucional
Outro tipo de vereador é o institucional. Se os dois
grupos de vereadores, o comunitário e o ideológico, são de
fácil identificação, os institucionais são de difícil porque
mantêm um comportamento parlamentar conservador, tendo,
paradoxalmente, uma votação dispersa. A característica deles é
333
o fato de entrarem na política por meio de uma instituição
pública ou privada, a exemplo de; Iraguassu Teixeira – médico;
Heitor Férrer – médico; Adelmo Martins – médico; Gláuber
Lacerda – médico; Lucívio Girão – médico, direção hospitalar;
Magaly Dantas – médica e rede de atendimentos; Elpídio
Nogueira – médico; Nelba Fortaleza – Regional VI – prefeitura.
Idalmir Feitosa – segmento de ônibus; Francisco Caminha –
assistência de comunidades; Germana Soares – serviço eleitoral
de lideranças; Régis Benevides – máquina da prefeitura; Ageu
Costa – meios de comunicação e prefeitura; José Maria Couto –
prefeitura; Marcus Teixeira – máquina da prefeitura; Carlos
Mesquita – máquina da prefeitura; Marcilio Catunda –
assistência comunitária.
Nesta categoria encontra-se o maior número de
vereadores médicos e muitos que atuaram como dirigentes de
hospitais públicos. Este bloco de vereadores foi o que menos
passou por mudança. Houve uma renovação de apenas 27% em suas
lideranças e o bloco ampliou sua base de sustentação para
outros segmentos sociais.
A ação parlamentar de um vereador é feita de duas
formas. Uma é o trabalho legislativo propriamente dito, o
cumprimento do exercício do seu mandato confiado pelo eleitor.
Outra é uma atividade externa ao trabalho legislativo. O modo
como se desincumbe desta tarefa depende enormemente da
natureza da base social que representa. O de perfil
tradicional e que mantém reduto eleitoral definido em uma área
da cidade possui uma rotina de atendimento aos eleitores e uma
peregrinação aos órgãos do governo, encaminhando as
334
solicitações dos eleitores. O de perfil ideológico e
progressista atua nos diversos setores organizados da cidade
por intermédio da participação em assembléias, reuniões de
discussões com grupos variados que lutam e reivindicam algo ao
poder público. Observa-se nítida distinção entre as duas
categorias de representantes no entendimento do modo como
devem desempenhar o mandado eletivo. O vereador de perfil de
voto tradicional e concentrado tende a ter pouco desempenho no
trabalho institucional, preferindo a atuação nos bairros,
agindo como intermediário na solução de problemas de natureza
individual e, às vezes, coletiva. Enquanto isso, o
representante ideológico atua na defesa de prerrogativas de
natureza institucional, isto é, procura desempenhar função
dentro da estrutura legislativa.
A democracia partidária tende a induzir o representante
político a se submeter ao princípio da fidelidade partidária.
Isto criaria de forma indireta o mandato imperativo, pois o
partido deteria o direito de cassar o mandato do parlamentar
caso ele discordasse das suas posições programáticas.
Entretanto, de alguma forma, encontra-se a presença de um
mandato imperativo sendo exercido, embora a lei não permita,
pelos representantes das comunidades locais. Não há
explicitamente um vínculo jurídico que faculte ao eleitorado a
revogação do mandato do representante, mas temos, na prática,
com a reeleição, esta possibilidade e assim aconteceu nestas
comunidades locais. O vínculo do representante com seus
representados se romperia quando aquele não gozasse mais da
335
confiança destes e não correspondesse mais às suas
expectativas.
Desde o início, o representante político local que
deveria gozar de liberdade de ação nas suas deliberações
legislativas está preso a uma série de interesses e procurando
sempre manter seu lugar. O representante político, que se
apóia num corpo político eleitoral limitado, sente-se
igualmente responsável apenas pelo que se passa com este
segmento social que julga representar e defender. Não se
percebe mais como representante de toda a coletividade, mas
daqueles dos quais retirou sua investida na função.
O retorno do mandato imperativo, constatado na
representação política local, pode ser explicado pela
fragilidade das organizações partidárias e a necessidade de
assegurar a manutenção da sua posição de líder político local.
Atualmente, o vereador-delegado é representado na
Câmara por dois tipos de vereadores: os comunitários e as
corporações profissionais, correspondentes às comunidades
sentimentais. Estes vereadores são delegados no sentido de que
“foram indicados por uma entidade que já tem opinião formada
sobre todas as questões a serem tratadas, incumbindo-os de
representá-las, de falar, se necessário, e de votar em defesa
dos seus pontos-de-vista”. (FIELD, 1959, p. 160). Segundo este
autor, que contrapõe o delegado ao representante no governo
representativo, o representante é aquele escolhido como o
melhor para a missão de representar, mas está completamente
livre para discutir e votar de acordo com suas convicções.
336
Quanto maior o número de pessoas envolvidas na escolha
de representantes e menor o conhecimento dos eleitos, maior o
risco deste representante orientar-se unicamente pelo seu
interesse, não dando a mínima atenção para a função
representativa. Neste sentido, os vereadores comunitários e os
de corporações estão mais aprisionados à sua representação
política, exercendo um mandato imperativo, na prática.
Enquanto isso, os vereadores institucionais poderiam exercer o
mandato de forma livre, mas não o fazem precisamente por causa
da sua sustentação eleitoral no poder executivo. Em certo
sentido, todos os vereadores da Câmara Municipal de Fortaleza
exercem um mandato imperativo com pouca margem de poder
autônomo.
Um vereador institucional é destituído de uma base
social de representação política. Sua atuação, desde a época
da eleição, é forjada como representante do poder executivo.
Atua em decorrência do prestígio da administração no poder,
retirando sua força eleitoral desta aproximação. Para este
tipo de vereador, o alinhamento com o executivo é uma questão
de sobrevivência política. Amplia seu poder não em virtude de
inserção na sociedade, mas na defesa aguerrida dos interesses
do poder executivo e também por forte atuação dentro do
legislativo municipal. É surpreendente a atuação de dois novos
vereadores de Fortaleza – Agostinho Moreira e Ageu Costa – os
quais, nos debates na Câmara, assumem uma postura de defesa
dos interesses da prefeitura muitas vezes mais virulenta do
que os líderes do prefeito. Outro caso exemplar é o do
vereador Eurivá Matias que, depois de assumir a Secretaria da
337
Câmara, na legislatura passada, foi aos poucos se desprendendo
da sua antiga base eleitoral nos bairros.
É justo dizer que o fortalecimento do município - como
unidade de governo - ocorrido com a Constituição de 1988 e a
implementação da descentralização e transferência financeira
para estas unidades consolidou a força do poder executivo
local. Em seguida, na década de 1990, a reforma do Estado,
implementada nacionalmente, implicou a modernização de alguns
procedimentos na esfera pública. Ao lado de tudo isto, em
Fortaleza assistiu-se a uma reforma administrativa, com a
criação de secretarias regionais, dividindo a cidade em seis
zonas. Tudo isto veio a fortalecer o poder do prefeito. Estas
mudanças institucionais são importantes fatores na explicação
do declínio do poder tradicional do vereador comunitário, pois
este se verifica concomitante ao fortalecimento do vereador
institucional.
A meu ver, o poder do vereador com maior dependência da
máquina da prefeitura se amplia. Agora não se trata mais de um
processo de cooptação, ocorrido após o pleito, para composição
de uma base de sustentação parlamentar para o prefeito, e sim
do esforço para assegurar esta dependência e representação
direta, já durante o período eleitoral, com candidatos
fortemente vinculados ao poder executivo. A origem do poder do
vereador institucional denota que o poder executivo é hoje
detentor de quase todo o poder local, não dando mais margem
para atuação autônoma de vereadores de feição tradicional e
comunitária. A conseqüência mais imediata para uma
representação política constituída na base de vereadores
338
institucionais são o comprometimento absoluto da autonomia do
poder legislativo e a conseqüente impossibilidade de cumprir
um dos pilares da divisão do poder: a fiscalização constante
dos atos do executivo.
Se existe o declínio de um tipo de liderança
tradicional no legislativo municipal de Fortaleza, isto não
decorre unicamente das dificuldades de se continuar mantendo
um reduto eleitoral fechado, mas, principalmente, da expansão
de oferta de bens públicos. Em grande parte, esta expansão se
dá na base de programas dos governos federal e estadual nos
quais as regras de concessão dos benefícios já estão
definidas. Isso estreita a margem de atuação de políticas
clientelistas. Diminuir os espaços do arbítrio pessoal na
concessão do bem público apenas um dos elementos deste
complexo processo de transformação social ora vivido pela
sociedade; ainda não significa, definitivamente, sua extinção.
A complexidade da atuação exigida pelo novo quadro
institucional criou uma figura correspondente no plano
político. Conforme evidencia a atuação da liderança
institucional, as formas clássicas de clientelismo não podem
mais existir abertamente, pois ampliando-se os espaços
democráticos e competitivos na sociedade, haverá,
inevitavelmente, o declínio de formas tradicionais de atuação
política.
A dinâmica eleitoral raramente coincide com o
desempenho parlamentar. Um candidato a vereador sabe que, para
assegurar sua eleição, necessita ter uma comunidade de
identificação explícita, aquela para quem fala e trabalha. Mas
339
já não pode situar esta comunidade numa base territorial
porque os laços de identificação e as exigências deste
eleitor-morador são, muitas vezes, de alto custo financeiro.
Outro elemento precisa ser ressaltado para se poder entender o
que se passa no universo da política municipal de Fortaleza.
Como o retorno à vida democrática permitiu uma freqüência de
eleições a cada dois anos, isto forjou uma camada de
lideranças comunitárias intermediárias que são a base de
sustentação eleitoral do vereador institucional. Esta
liderança comunitária não é o tradicional cabo eleitoral, pois
detentora de poder e controle de certos benefícios ofertados à
sua comunidade. Entre o eleitorado disperso e o político em
busca de voto e apoio político, encontra-se estruturada uma
rede de lideranças comunitárias pronta para servir ao primeiro
que chegar e aceitar a proposta financeira mais tentadora.
Trata-se de um círculo de líderes sustentados com as eleições
periódicas.
O líder institucional é fruto de maior diferenciação
social. Ele representa o estado de desenvolvimento em que a
sociedade se encontra; permite a emergência de uma
representação do tipo burocrática que trata a representação
não mais com laços tradicionais, mas com forte ênfase em
trocas mercantis. Não sugiro que sua base eleitoral seja toda
sustentada na troca monetária, mesmo porque ele não teria
recursos suficientes para este ônus. Contudo, uma parte
considerável deste encargo com a manutenção desta base de
sustentação é feita pelo controle da máquina pública. Alguém
poderia, com justeza, dizer que este fenômeno não tem
340
absolutamente nada de novidade na política brasileira. O
Estado cartorial foi caracterizado pelo controle sobre
recursos públicos disponíveis e sua distribuição de acordo com
critérios pessoais. Afirmo apenas que existe a criação de um
círculo de dominação mais estreito entre o poder instituído e
uma parcela muito ampla da população periférica. O governo
populista do PMDB em Fortaleza sustenta-se nesta vasta rede de
apoio eleitoral, calcada na miséria e na reprodução de
pequenos interesses. No comando desta vasta rede de
interesses, está um grupo de vereadores que denomino de
institucionais.
A história do poder municipal no Brasil é atravessada
pela contradição entre ser este poder de natureza política ou
administrativa. De um lado, os defensores de uma limitação do
espaço de política municipal com a constituição de governos
administrativos; de outro, os que acreditam ser preciso
constituir no município a primeira escola da democracia. O
atual mecanismo de vereadores institucionais não deixa de
indicar uma forma de superar o impasse pela introdução da
política, controlada, no entanto, por representantes gerados
no interior da máquina partidária e administrativa.
4.11 O Novo Mercado de Votos
As trocas eleitorais no tempo das eleições não são
idênticas às práticas fora deste tempo. É muito raro encontrar
um candidato que retire sua representação de interesses de uma
única forma. Quase todos se utilizam dos meios disponíveis
para extrair o voto do eleitor. Não se busca na maior parte do
tempo uma representação do interesse na qual ele se apresente
341
como um simples canal de expressão dos interesses organizados.
Mesmo os parlamentares de feição mais corporativista não
mantêm uma sólida base de sustentação eleitoral no sentido de
cultivarem contatos freqüentes e corriqueiros com seu
eleitorado. As idas às festas de categorias expressam muitas
vezes o seu pertencimento à categoria e são tidas como uma
forma de contado, pois aí sempre se discutem os principais
problemas da cidade e se procura saber a opinião do seu
representante.
Outros parlamentares agem de forma dispersiva nas
eleições, pois mesmo dominando uma rede de representação
preferem atuar por fora, porquanto não há certeza de serem
plenamente aceitos na eleição. Um parlamentar local já
detentor de vários mandatos sustenta-se numa rede ampla de
apoio ao esporte amador nos bairros. É um trabalho que não se
expressa jamais como representação de interesses, pois estas
ligas esportivas não agem em nenhum momento como grupos
sociais estritamente falando, não chegam a se constituir em
atores sociais propriamente ditos. Desta impossibilidade, o
parlamentar pode ser o elo entre os interesses dispersos, mas
não expressos em interesses definidos.
Vereador de bairro são os candidatos que recebem uma
votação concentrada de votos, proporcionalmente elevada, numa
mesma área geográfica que coincide com seu lugar de moradia.
Com os eleitores que o procuram, estabelecem laços de amizade
e de troca, atendimento de favores diversos. Tudo isso sem
horário reservado. Sua casa está sempre aberta ao atendimento
do eleitorado. Engajam-se em relação ao poder público,
342
principalmente na defesa de benefícios concretos para esta
área e pelo auxílio aos que o procuram em busca de solução
para pequenos problemas.
Vereador de segmento social são candidatos que se
apresentam como defensores de categorias profissionais
organizadas ou de causas sociais como educação, saúde,
transporte, trabalho. Estas são atividades que encontram na
Câmara Municipal defensores de seus interesses coletivos.
Esse tipo de candidato recebe uma votação expressiva
diretamente da categoria social à qual pertence,
principalmente quando já exercem liderança. Lula Morais, por
exemplo, recebeu uma grande quantidade dos seus votos dos
funcionários da Cagece porque foi médico e membro do sindicato
dessa categoria. Sua votação não pode ser considerada
monopólio dessa representação política porque Sérgio Novais
também disputa no mesmo segmento a liderança política. Outro
vereador, Carlos Mesquita, tem boa aceitação entre determinada
categoria profissional dos eletricitários da Coelce por ter
sido funcionário dessa instituição. Na condição de membro de
uma instituição apresenta-se como canal para defender os
interesses coletivos dessa categoria. As organizações
sindicais e profissionais ou de outros segmentos sociais
mantêm ligações com estes representantes.
Como uma subcategoria dos representantes de segmentos
sociais não poderia deixar de mencionar a forte presença de
votos concentrados de natureza religiosa. Parlamentares que se
apresentam como defensores de certos interesses religiosos
ocupam atualmente expressivo número. A identificação religiosa
343
é um critério importante ao se escolher o candidato a
vereador, mas isto pode ser menos pela identificação
propriamente dita e mais por se preferir eleger alguém com
maior proximidade afetiva. Menos que um voto baseado na
identificação religiosa, expressando seus valores religiosos e
a preferência por uma política orientada por estes valores,
pode ser mais a oportunidade de acesso por meio deste
político.
Na Câmara Municipal de Fortaleza na eleição de 2000,
havia cinco vereadores que proclamavam seu pertencimento a
agrupamentos religiosos. Paulo Mindello, Alexandre de Jesus,
Gelson Ferraz, Elpídio Nogueira e Jasiel Pereira são os
vereadores com filiação religiosa ou com base eleitoral em
movimentos religiosos. São votos dados numa proporção muito
elevada em virtude do pertencimento a certa religião.
Os vereadores institucionais são os que atualmente
ocupam grande parte dos acentos no legislativo municipal.
Alguns não exercem unicamente a função de vereador, políticos
profissionais, pois continuam exercendo atividades
profissionais anteriores. A grande diferença destes em relação
aos demais é que não mantêm ligações com corporações
profissionais, nem bairros, pois moram em áreas mais nobres da
cidade e têm uma votação dispersa em pequenos núcleos. Mantêm,
no entanto, forte dependência da máquina administrativa de
obras do executivo.
Estas são as três modalidades ou padrões de
representação política atualmente existentes no legislativo de
Fortaleza.
344
As lideranças comunitárias com mandato parlamentar
precisam ser fiéis aos seus eleitores. Neste tipo de liderança
predomina uma característica mais marcante: sua submissão à
vontade do eleitor. Há nela uma autonomia mínima. O vereador
torna-se um meio de atrair benefícios para a comunidade e para
indivíduos isolados. Por isto, a manutenção desta posição de
liderança depende diretamente do seu poder de continuar
fornecendo os bens exigidos pela comunidade. A expectativa dos
eleitores é que o político mantenha sempre um canal de acesso
constante com o poder executivo de modo que possa estar sempre
atendendo aos seus pedidos. Cultivar a posição de líder
político numa comunidade de bairro é submeter-se a uma
engrenagem de troca constante e expectativa de retribuição em
forma de voto.
Cada vereador que mantém o mandato por muitos anos sem
sofrer abalo em sua liderança possui sua base política, uma
maneira de servir àqueles que o procuram. Como atendia todos
os eleitores diretamente em sua residência, principalmente os
moradores da vizinhança, exercendo atividade de atendimento
constante ao longo de anos, esse tipo de vereador não
precisava correr tanto na época de eleição, pois tinha como
certo o voto de gratidão pelo que fora feito. Tal expectativa
já não existe mais de parte dos atores deste sistema. Tanto o
político não confia que somente atendendo terá uma eleição
assegurada, como o eleitor busca mesmo na época de eleição
diversos candidatos que lhe propiciem algum benefício
imediato. O vereador de comunidade de bairro tem muito contato
e acesso ao poder público. Isto favorece o encaminhamento dos
345
pedidos da sua comunidade naquilo diretamente dependente de
decisão do poder municipal. Outros pedidos exigem outras
intermediações, com outras pessoas, membros da rede de contato
do parlamentar, normalmente um deputado, com acesso num nível
mais elevado no poder estadual ou federal.
O parlamentar com base em bairro tem um comportamento
político extremamente discreto dentro do parlamento. Raramente
se expõe ou cria inimizade, tem sempre uma posição ao votar as
mensagens do executivo, entretanto, sem muita discussão ou
envolvimento nas discussões internas de mérito.
De modo geral, ele é normalmente um morador muito
antigo no bairro e desse fato retira muito do seu prestígio, e
usa com freqüência como argumento para preferi-lo “aos que vêm
de fora”. Sempre esteve presente, nunca se afastou da defesa
dos interesses da comunidade. O pertencimento à comunidade é
tido como o maior capital político destes vereadores, sua
marca e seu trunfo eleitoral. Morador antigo, aliado ao fato
de estar sempre disponível para o atendimento, firma laços de
confiança entre a comunidade local e seu representante.
Na periferia da cidade de Fortaleza, em decorrência da
pobreza e do rompimento de laços clientelistas, a
mercantilização do voto vai ocorrendo. Em época de eleição, a
ampliação das agências fornecedoras de benefício aos pobres
gera uma situação de independência relativa deste eleitorado
ante o político. Já não é mais possível manter laços de
dependência fixa porque dentro de uma situação de competição
eleitoral acirrada não há como assegurar a fidelidade
eleitoral deste eleitor contemplado com um favor. Por isto, o
346
candidato aposta mais em laços de transferência de prestígio
para as pequenas lideranças locais que se encarregam de
assegurar este voto disperso e negociado. Na ausência de
lealdade política, resta a compra do voto. Lealdade e gratidão
já não são os valores correntes no meio desta população pobre
que aprendeu rapidamente que na época da política o “rico olha
para o pobre”.
A despeito de mudanças recentes na Justiça Eleitoral, a
qualificação eleitoral ainda é um mecanismo muito utilizado
para assegurar uma votação cativa por parte dos vereadores. Há
casos de vereadores que no passado tinham sua reeleição
garantida usando unicamente este método. Atualmente está um
pouco mais complicado e ele deve mesclar este meio com outros
para aumentar sua segurança eleitoral. No ano eleitoral é
quando mais se utiliza deste mecanismo, mas para os que mantêm
alguma estrutura de escritório político, o alistamento é feito
ao longo dos anos, sem nenhuma interrupção.
Na década de 1980 ocorreu a expansão gradual da rede de
atendimento primário de saúde, criando as condições objetivas
para emergir o parlamentar médico. Não é por acaso que hoje
esta é a categoria de profissionais com maior número de
representantes no legislativo municipal em Fortaleza.
A rede de atendimento clientelista mantida por um
vereador inclui desde ônibus para conduzir pessoas para
enterros, a assistência de transportes para postos de saúde e
hospital. O eleitor tudo solicita ao vereador e este deve
prestar pronta assistência. Somente em casos extremamente
difíceis ou dependentes de alto investimento, o vereador deixa
347
de atender ao pedido do eleitor. Muitas vezes o cálculo não é
puramente eleitoral, como ocorreu com uma candidata vereadora.
Pediram-lhe um telefone. Na época, o preço deste era muito
alto. Ela atendeu nem tanto por causa do retorno eleitoral,
mas pelo simples fato de ter prometido e não podia mais voltar
atrás.
4.12 Trocas Políticas: Barganha de Bens Públicos
O modelo de governo que construímos tem como
pressuposto a ação autônoma dos agentes políticos. Destes, o
principal é o eleitor, pois dele tudo dependeria na escolha
dos seus candidatos, dos seus representantes políticos. No
entanto, conforme constatado pelos observadores da cena
política, o eleitor normalmente dá pouca atenção à sua escolha
eleitoral, como se não houvesse nenhuma conseqüência neste
ato. Do ponto de vista geral, a escolha individual tem efeito
sobre a forma como a política será conduzida, mas quando se
reflete mais especificamente sobre as convicções do eleitor
isolado, não há como perceber se ele tem tanta consciência
desse fato.
O eleitor isolado pode desejar melhoras na sua vida e
na de outras pessoas, mas não tem consciência de que isto
possa decorrer de um gesto tão simples quanto o de escolher
uma pessoa para ser representante político. Entre o desejo de
melhoras na vida e o ato de escolher um candidato não há
relação de causa e efeito. Não porque a relação seja complexa,
abstrata e de difícil entendimento, mas porque é preciso algum
tempo para que um ato individualmente praticado possa provocar
348
a ocorrência de uma situação desejada. Além do tempo de espera
para poder o efeito do ato individual surtir o efeito
esperado, há a probabilidade dele não se produzir tal qual
esperado. Num universo de incerteza tão grande não seria
ilógico esperar que um eleitor isolado, tendo possibilidade,
submeta-se a uma troca imediata e justa da sua capacidade de
voto por um benefício qualquer. Nesta troca, não deve ser
entendido que esse ator individual é sem consciência, sem
nenhuma noção de responsabilidade, pois em virtude das
condições concretas nas quais ele deve decidir, uma das
alternativas é justamente a de se servir imediatamente de algo
ofertado.
Em face da natureza da base social do vereador de
comunidade, ele se expressa de maneira mais genérica, mesmo
tendo ações voltadas para a defesa de interesses particulares
do seu grupo de pertencimento. O comportamento político
parlamentar é voltado para uma luta constante em torno do
cumprimento das normas legais inerentes à função do vereador.
Há nessa convicção o claro entendimento de que as leis
instituídas, os recursos legais postos à sua disposição para o
exercício da sua função lhe são favoráveis, enquanto os
vereadores com base social em agrupamentos restritos e
territoriais normalmente relegam esses instrumentos legais,
usando elementos informais no seu desempenho.
A política tradicional tem cabo eleitoral, esquema de
uso da máquina administrativa, enquanto a esquerda tem a
militância política, grupo de pessoas dos mais diversos
segmentos sociais que atuam politicamente porque acreditam
349
existir uma forma diferente de fazer política e desejam
contribuir para esse projeto. De um lado, pessoas que agem
pensando e defendendo interesses, e de outro, pessoas movidas
pela paixão política.
Como esperado, a campanha eleitoral municipal de 2000
em Fortaleza foi competitiva no tocante à disputa majoritária.
Todavia, a concorrência para o legislativo fica sempre
obscurecida diante da disputa pelo cargo de prefeito, a qual
merece mais atenção do eleitor e da mídia.
Freqüentemente o candidato de oposição se utiliza da
idéia de que seu opositor usa o dinheiro público de maneira
indevida e sem transparência. A acusação mais constante é a de
falta de transparência e de ausência completa de controle por
parte da sociedade dos seus representantes.
Para os vereadores que buscam a reeleição, a
dificuldade financeira é apontada como o maior obstáculo a ser
superado na campanha eleitoral. O candidato à reeleição
enfrenta problemas relacionados à sua condição de atual
vereador. Muitos se queixam do fato de seus concorrentes
espalharem boato sobre a suposta eleição garantida. Nelson
Martins é um dos que reclamam deste tipo de boataria, cujo
intuito é obter votos de eleitor de esquerda. A campanha do
“já está eleito” prejudica o candidato porque acaba retirando
votos já assegurados.
O vereador em campanha eleitoral precisa divulgar seu
nome como candidato. Para isto, se serve de cartazes
espalhados pela cidade. Prioriza as áreas onde seu nome é
350
conhecido. Depois, em pequenas reuniões, procura convencer os
eleitores a votarem nele por aquilo que representa. A eleição
é uma forma de apoio a esta representação. Quando um vereador
com identificação religiosa se elege é porque uma parcela
significativa do eleitorado religioso acredita ser importante
a Câmara Municipal contar entre seus membros com vereadores
com princípios religiosos.
Entretanto, a eleição de um candidato não pode ser
atribuída unicamente a um segmento social, tornando esse
candidato o representante desse segmento. Alguns candidatos
eleitos conseguiram monopolizar a representação de um setor da
sociedade, mas isto é raro. O padrão normal da votação de todo
candidato é uma heterogeneidade de origem do voto. Mesmo
quando ele se apresenta como o candidato dos evangélicos, do
servidor público, dos bancários, dos estudantes, das mulheres,
dos jovens, etc., não se pretende que esse candidato terá voto
unicamente nesse segmento com o qual se identifica ou busca a
identificação. Como a diferença de votos entre os candidatos é
muitas vezes pequena, a dispersão na representação é
fundamental. Todo candidato precisa contar com uma pequena,
média ou grande base sólida de apoio eleitoral. Somente com
uma sustentação de voto cativo, o candidato pode expandir sua
busca de voto para outros setores da sociedade. Quando se
entra em setores novos, corre-se sempre o risco de não se
obter eleitoralmente o esperado.
O que há em comum entre Nelson Martins, Narcílio
Andrade e Paulo Mindello? Todos são vereadores em busca de
reeleição e todos se queixam do problema do custo financeiro
351
da campanha eleitoral. Todos, igualmente, apontam a escassez
de recursos financeiros como um entrave ao desenvolvimento da
campanha. Mesmo para Nelson Martins, que tem no segmento dos
bancários forte base de apoio financeiro, a queixa existe.
Narcílio Andrade reclama do assédio do eleitor por emprego e
bolsa de estudo, e lembra que não há como obter emprego
público atualmente.
A campanha é um jogo de definição de posições dentro do
campo político, mas a posição conquistada por cada concorrente
nem sempre é a desejada. Todos anseiam por uma campanha na
qual a posição desejada seja a ocupada por ele e mantida.
Entretanto, para a conquista política, a ação dos outros
concorrentes é não somente definir sua posição, mas fazer com
que a posição ocupada neste momento por outros seja deslocada.
A disputa é por posições, jogo de acusações. De acordo com
estas, muitas vezes, perdem posição já conquistada e outros
ocupam novas posições. O resultado do posicionamento de cada
candidato depende não somente do seu desejo e esforço para se
deslocar no meio dos demais, mas também da defesa destas
mesmas posições cobiçadas por outros.
Para muitos candidatos, a campanha eleitoral é apenas o
momento de difundir sua imagem, pois esta já existe, e
consolidada. Mas para muitos outros, trata-se de tempo inicial
para se fazer conhecido. Há uma grande diferença entre os
candidatos, pois estão partindo de momentos de ligação com o
eleitorado completamente distinto. Em alguma eleição, o fato
de não se ter uma imagem já consolidada pode ser algo
positivo, mas em outra, o importante é justamente o contrário.
352
Tanto mais conhecido seja o candidato, melhor para ele. O
candidato a vereador, independente de já ter ou não um
mandato, enfrenta as mesmas dificuldades. Sua tarefa inicial é
fazer-se candidato para o eleitor. E não é para qualquer
eleitor. Trata-se do eleitorado que julga ser “eleitorado
potencial”, esse com quem ele já mantém ligações de diversas
formas e que devem ser capitalizadas na campanha.
Os candidatos a vereador podem se distinguir de acordo
com seu grau de inserção institucional. A princípio, há os
atuais detentores de mandato eletivo, os vereadores. Esses são
obviamente os mais fortes candidatos. Em seguida há os
suplentes que estiveram em boa posição em eleição passada e
são novamente candidatos, são fortes candidatos. Entre estes
suplentes, alguns já exerceram mandatos e perderam eleição,
mas continuam com sólida base eleitoral, sempre ameaçando
voltar à Câmara Municipal. Em terceiro lugar, há os candidatos
apoiados por antigos vereadores que se elegeram deputado
estadual na eleição anterior. Esses são muitas vezes fortes
candidatos, pois o deputado ainda conta com sua antiga base
eleitoral, mais solidificada na época da eleição para
deputado. Existe, ainda, o candidato novato, com forte apoio
institucional em movimentos sociais ou organizacionais de
expressão, e o restante dos candidatos sem estas
características. Na maioria das vezes, são candidatos de si
mesmos, sem forte sustentação eleitoral anterior, e embora
muitos disponham de dinheiro, isto não é suficiente para
assegurar a eleição. Numa eleição, o capital mais importante é
o político. Os recursos financeiros potencializam o nome do
353
candidato, mas quando se tem apenas os recursos financeiros,
não contando com inserção política em grupos sociais, é
difícil se eleger.
Na eleição de 1996, os vereadores que ficaram em
suplência e assumiram efetivamente depois da eleição de 1998,
foram os seguintes: Martins Nogueira, Demétrio Carneiro, PMDB;
Tin Gomes, PSBD; Mário Maia, PSB; Augusto Gonçalves, PCdoB, e
Carlos de Oliveira Neto, PTB. Dos seis vereadores que
assumiram mandato em 1999, apenas Martins Nogueira conseguiu
se reeleger. Todos os outros ficaram novamente como suplentes.
A trajetória do voto passa do voto de cabresto, no qual
havia algum tipo de laço de submissão e dominação material de
um dos membros da relação, ao voto de gratidão, em que mesmo
não havendo dominação material, existe o atendimento de
solicitação de ajuda por parte de uma pessoa a outra,
retribuição paga em época de eleição com o voto; por fim, há o
voto mercantilizado,segundo o qual as relações se estabelecem
entre parceiros absolutamente iguais e independentes e um
solicita algo em troca da sua escolha eleitoral. Quem tem mais
recursos financeiros pode perfeitamente conquistar um mandato
eletivo usando apenas esse mecanismo da “compra de voto”. Na
opinião de muitos analistas, a situação de privação material e
o analfabetismo são apresentados como os causadores da
situação de risco do eleitorado pobre impossibilitado de
resistir ao poderio econômico na época da eleição.
Laços de subjugação direta de indivíduos sobre outros
praticamente inexistem na cidade; mas laços de confiança
motivadores de laços de gratidão por favores prestados são
354
mais comuns. Predominam, porém, os laços frouxos entre
indivíduos despossuídos, presa fácil para os aliciadores de
votos. Conquistam o voto deste eleitor sem nenhum esforço de
convencimento, apenas em troca de alguma ajuda material.
Normalmente, as trocas eleitorais são estabelecidas por
lideranças comunitárias que mantêm laços de confiança e de
influência num círculo de eleitores.
Se considerarmos a distinção entre os três tipos de
votos mencionados, é raro um candidato obter uma votação pura
de um único tipo de voto. Mesmo o candidato habituado ao uso
do mecanismo de voto comprado tem entre seus eleitores voto
consciente e voto de gratidão. Da mesma forma, o candidato que
recebe voto consciente não tem a totalidade dos seus votos
obtida unicamente desta mesma fonte, pois complementa estes
com votos de gratidão. Como o candidato atua em circuitos
sociais distintos, pode obter votos heterogêneos. O voto de
segmento social organizado de igreja ou organização
profissional é um tipo de voto consciente, mas pode
eventualmente envolver algum tipo de auxílio pessoal. Isso
porque a eleição é representada como o instante em que mais há
trocas entre os desejosos de voto e os que o detêm.
Existe profunda disparidade e diferenciação entre as
pessoas que se apresentam ao eleitorado como candidatos à
Câmara Municipal. Um grande contingente é composto de
indivíduos sem experiência política de qualquer natureza para
os quais a candidatura é uma oportunidade de terem boa
remuneração financeira. Esses candidatos são áreas de
influências de membros de partidos organizados que incentivam
355
a pessoa a se lançar na disputa eleitoral, mas não contam com
nenhuma estrutura partidária e individual para realizar a
campanha. Levam a campanha à frente de maneira individual,
recebendo no máximo o apoio de alguns membros da família;
outros, nem com estes podem contar na sua jornada eleitoral.
O candidato totalmente desconhecido lança-se por
impulso próprio, movido pelo desejo de aproveitar a
oportunidade propiciada pela eleição. Outros são funcionários
públicos interessados em se afastar do emprego enquanto dura o
processo eleitoral.
Muito candidato mesmo viabilizado a legenda pela qual
disputa o mandato não conta com nenhuma estrutura organizada
para fazer campanha, nem com recursos financeiros ou apoio em
grupos de amigos capazes de dar sustentação política.
Ana Zilma é candidata a vereadora pelo PTB. Resolveu se
candidatar porque acredita que os deficientes físicos têm
poucos direitos na sociedade. Sua luta, portanto, caso seja
eleita, é para se votar na Câmara Municipal leis destinadas a
beneficiar diretamente as pessoas portadoras de deficiência
física. A candidata é deficiente física, vive da venda de
bilhetes de loteria no Centro de Fortaleza, numa cadeira de
rodas motorizada. Sua campanha eleitoral é toda centrada na
idéia do deficiente físico e dos seus direitos, ela mesma uma
legítima representante deste segmento social por ser
diretamente afetada pela discriminação e ausência de direitos.
Na eleição de 2000 para o legislativo em Fortaleza
havia vários candidatos disputando o voto do segmento social
356
dos deficientes físicos, embora esse setor já tenha Machadinho
como representante no legislativo.
Esse segmento social mais organizado é capaz de
assegurar a manutenção do seu representante no poder
legislativo municipal. Todos os outros candidatos portadores
de deficiência física buscam a identificação com esse
segmento, mas esbarram nas organizações já existentes.
O outro segmento social organizado que conta com
representante no legislativo de Fortaleza é o militar. O
segmento social militar aqui está contemplando os membros das
diversas corporações militares: polícia militar, exército e
corpo de bombeiros. Os policiais civis normalmente apresentam
candidatos identificados com seu segmento. Não é diferente do
que ocorre com outros segmentos sociais organizados. Os
candidatos são sempre membros orgânicos da corporação, ativos
ou aposentados. A representação para estes segmentos sociais
tem uma idéia de identificação orgânica direta, não se confia
em candidato que não seja um membro do segmento. Somente
alguém com experiência neste segmento tem autoridade para se
apresentar como reivindicando sua condição de legítimo
representante.
O segmento dos trabalhadores de maneira geral lança
candidatos, mas muitos não são bem-sucedidos. Das categorias
de trabalhadores organizados em Fortaleza que disputaram
eleição nas últimas eleições sem êxito, sobressaem os
comerciários.
357
Até recentemente, os comerciários contavam com uma
representação tradicional na Câmara Municipal, centrada
principalmente na liderança do vereador Herval Sampaio, que
por sua vez havia sucedido a liderança mista do vereador
Hermenegildo. Depois da década de 1990, os comerciários se
organizaram de maneira mais combativa em sindicato, mas não
foram capazes de emplacar um candidato do seu próprio
sindicato. Todos os vereadores que passaram a ser porta-vozes
dos interesses dos comerciários na Câmara Municipal vieram de
outras bases socais. Chico Lopes, por exemplo, tem uma base de
apoio no funcionalismo municipal e na educação; Nelson Martins
vem de uma base de sustentação bancária.
O segmento social com mais crescimento na sua
representação na Câmara Municipal é o de natureza religiosa. A
eleição de 2000 teve quatro vereadores com base social
exclusiva no segmento religioso, enquanto três outros
vereadores tiveram expressiva votação pelo seu pertencimento
religioso. Mas a presença maior de membros do legislativo
municipal com identificação religiosa é um fenômeno recente.
Fortaleza teve seu primeiro vereador eleito exclusivamente por
um culto religioso ainda na década de 1960, Belizário Bezerra,
apesar de existir outros com forte apoio em setores da igreja
católica mais conservadores. Entretanto, essa representação
religiosa era pequena.
Nelson Martins faz campanha aos domingos na Praia do
Futuro, mas nunca foi visto fazendo panfletagem na Praia da
Barra do Ceará. Willame Correia faz carreata e concentração de
apoiadores políticos na Barra do Ceará, mas nunca foi visto
358
fazendo o mesmo na Praia do Futuro. Os dois vereadores são
exemplos da segmentação do trabalho político. Nelson Martins
tem seu eleitorado situado basicamente na grande Aldeota,
eleitores bancários e de classe média. O lugar de freqüência
deste eleitorado aos domingos é justamente a Praia do Futuro.
O eleitorado do vereador Willame Correia concentra-se no
bairro Álvaro Wayne, lugar da sua residência e sua base
eleitoral territorial. A Barra do Ceará é uma extensão da sua
área de atuação, centrado num eleitorado de baixo poder
aquisitivo. Em ambos o trabalho político é concentrado nas
áreas consideradas mais aproveitáveis. Inicialmente, o
trabalho da campanha consiste em divulgar o nome do candidato,
sua condição de candidato, pois muitos dos seus eleitores
podem ainda não saber que ele é novamente candidato, portanto,
trata-se de pôr o nome na rua para indicar esta condição. A
estratégia eleitoral da lembrança pressupõe um perfil de
eleitorado mais escolarizado, que aceita o panfleto contendo
informações, denúncias e posicionamento do candidato. Isso
contrasta completamente com a campanha do vereador Willame
Correia, que não tem material de propaganda impresso. A
campanha no domingo de sol quente na Praia da Barra do Ceará
consiste basicamente em posicionar moças e rapazes exibindo
largas bandeiras com o nome e o número do candidato. Essa é a
maneira de divulgar seu nome.
O vereador de comunidade de bairro conta com poucos
apoiadores. Estes, de modo geral, são pessoas que ou mantêm
vínculos empregatícios com o vereador ou estão trabalhando,
359
“dando uma força”, esperando ser recompensados caso o
candidato seja eleito.
De acordo com o perfil do candidato, os apoiadores nas
campanhas se diferenciam totalmente. Muitos candidatos
contratam rapazes e meninas, indicados por lideranças
comunitárias para trabalhar na campanha, distribuindo
panfletos ou sustentando bandeiras nos cruzamentos dos sinais.
Os vereadores que já gozam de prestígio perante o poder
executivo e detêm alguns cargos na administração, normalmente
contam com a colaboração destas pessoas em sua campanha. Isto
fica mais evidente na realização de carreatas pela cidade.
A debilidade da campanha de um candidato expressa-se na
capacidade de mobilização de “amigos e apoiadores” em
atividades de campanha. Os candidatos lançados pela primeira
vez estão visivelmente em desvantagem, pois precisam contratar
pessoas para a realização de “serviços de campanha”.
Analisar a trajetória política dos políticos municipais
é uma tarefa difícil porque muitos deles não se deslocam da
sua posição inicial. Eleitos uma vez, permanecem na mesma
posição por várias legislaturas, seguidamente reeleitos. O
sistema democrático incentiva os políticos municipais a
trilhar uma carreira política. Nos anos recentes, mais
vereadores tentaram se lançar na arena eleitoral por um
mandato estadual ou federal. Muitos que não se aventuram não é
por comodidade eleitoral da sua base política ou ausência de
ambição, mas por estarem ligados politicamente a outras
pessoas em hierarquia superior. Isso no passado era uma regra
360
mais constante e inibidora de carreira política. Havia um
chefe político orientador do grupo político que ocupava um
posto de deputado estadual ou federal e do qual dependia a
manutenção do vereador em sua área de atuação política. O
sistema de posições política funcionava na base da aceitação e
reconhecimento dos recursos disponíveis por cada membro do
grupo.
4.14 Vereador faz Obras, Votos e Prepostos
Os vereadores participam e influenciam nas
formulações de políticas públicas criadas e executadas pelo
executivo municipal não apenas por meio de apoio político na
Câmara Municipal, dando sustentação política aos projetos e
programas do prefeito. Além desta participação direta como
ator responsável pela aprovação dos projetos, agindo na
defesa da sua função parlamentar, os vereadores participam de
decisões do executivo por indicações diretas de colaboradores
e pessoas, que lhe são leais politicamente, para ocupar
funções dentro da máquina administrativa do governo local. A
influência de um vereador não depende mais do número de votos
recebidos, mas da capacidade de articulação interna na Câmara
Municipal para ocupar as funções mais relevantes. A guerra de
posições dentro da Câmara é algo completamente à parte da
disputa e do prestígio político. Nesta ocupação está muitas
vezes sendo jogada a sobrevivência política do parlamentar
pela sua demonstração de força em influir na decisão dos
demais colegas.
361
Atualmente se observa um padrão de comportamento
parlamentar caracterizado por dois momentos, de acordo com o
núcleo de atração e de repulsão. No primeiro momento, ocorrido
logo em seguida às eleições, os parlamentares individuais
aumentam sua ação no intuito de formar a base política de
sustentação parlamentar do executivo. A legislação lhe permite
permanecer livre, pois não existe constrangimento de normas de
fidelidade partidária. Isto serve de incentivo para ser
atraído para a base de sustentação do governo. O outro momento
ocorre com a aproximação das eleições, quando tem de renovar
seu mandato. Conforme a popularidade do governo, o parlamentar
permanece ou não na sua base de sustentação política. A ação
que orienta as atitudes do parlamentar é sua sobrevivência
eleitoral, o cálculo mais importante, o grau de influência
exercido pelo governo ainda no eleitorado. Caso tenha sido até
então base política do governo e este esteja desgastado
politicamente, a primeira atitude é romper com o governo,
aparecer ao eleitorado como um parlamentar independente que
vota de acordo com sua consciência.
Os dois grandes momentos de movimentação individual dos
parlamentes, depois das eleições e antes das eleições,
explicam-se em grande parte pela inexistência de normas
partidárias rígidas que permitam determinar suas ações. Na
ausência deste parâmetro de ação partidária, os parlamentares
se sentem tão soltos que podem flutuar em função do ponto
forte de atração que é o poder instituído com suas recompensas
imediatas e a própria sobrevivência política. Para o
parlamentar, a capacidade de atuação mais influente nas
362
decisões do governo executivo vai depender da sua decisão de
ser ou não base política do governo. Há certa inadequação do
papel do legislador para muitos parlamentares. Em muitos casos
isto ocorre devido à pressão da sua própria base eleitoral
constituída e referida como tal. Detentor de votos numa
comunidade identificável, torna-se difícil ao parlamentar agir
de maneira que possa simplesmente cumprir sua função
legislativa. O papel a ele reservado pelo sistema político
municipal é extremamente cruel, pois tenderia a ficar sempre
numa posição de eterna vigilância em relação ao poder
executivo constituído. A tendência então é querer ser também
poder executivo. Esta tendência ao executivo, presente em
muitos parlamentares, é explicada pelas cobranças e
expectativas do eleitorado.
Não passa pela cabeça desse eleitorado uma divisão de
tarefa adequada na qual o legislador cumpre uma tarefa
importante simplesmente controlando as ações do executivo e
propondo novo ordenamento legal para atividades existentes ou
criando novas. A lei como bem coletivo é difícil de ser
implementada. Isso induz com que o parlamentar ao impulso de
ser executivo pela maior participação dentro do governo com a
indicação de membros da sua confiança para ocupar funções
importantes.
A manutenção de uma base eleitoral sem a existência de
trocas esporádicas fora do tempo da política é muito difícil.
De acordo com o perfil eleitoral do político, a necessidade de
parecer sempre ativo é a regra de ouro para ele. A existência
de escritórios políticos onde o parlamentar atende seu eleitorado é
363
algo extremamente comum. O político atende o eleitorado, como
um médico atende seus pacientes. A diferença é que nos
escritórios políticos chegam sempre pedidos de ajuda os mais
diversos. Em inúmeros destes casos não se trata precisamente
de ajudar diretamente, mas de facilitar a solução do problema.
Em alguns casos a solução do problema pode ocorrer sem muito
custo porque se trata de algo decorrente da ausência de
informação. Na maioria das vezes, as demandas eleitorais mais
difíceis de serem atendidas são as que implicam gastos
elevados. Mesmo neste caso, às vezes o vereador possui uma
rede de amigos que possibilitam esse atendimento. O mecanismo
da rede de amigos dispersa o custo individual de um bem que
poderia ser impraticável para o parlamentar sozinho.
Um parlamentar municipal não tem acesso direto a fontes
de recursos públicos que possa carrear para sua base
eleitoral. Ele precisa do vínculo com o executivo. São
estruturas de poder desvinculadas de acesso a recursos por
canais previamente definidos, orientando a ação parlamentar
para que, caso tenha interesse em participar da festa, se
posicione. As regras para acesso a recursos públicos são
regidas pela lógica de executivos, isto é, tudo passa pela
organização dos poderes executivos. Ao poder legislativo,
resta gravitar em torno deste poder executivo para poder
assegurar sua sobrevivência eleitoral e política.
É difícil saber se a representação que muitos
vereadores têm da sua função como simples intermediários na
solução de problemas é decorrência direta das exigências dos
eleitores ou faz parte de outros fatores. Há problemas da
364
comunidade relacionados à melhoria da infra-estrutura do
bairro, construção de equipamentos coletivos, tidos como
extremamente importantes em favor da comunidade. Aliado ao
trabalho pela melhoria das condições gerais de vida da
comunidade, os vereadores entendem igualmente serem obrigados a
servir à população. Servir à população, ajudar aos eleitores que
os procuram é na linguagem do político municipal prestar auxílio ou
qualquer tipo de ajuda aos necessitados. A ação de ajudar a
quem os procura não é orientada pela lógica eleitoral, pois
afirmam que jamais tentam saber a procedência da pessoa
ajudada. Segundo estes candidatos, a ação se justifica baseada
na noção de bondade cristã. A ajuda e o favor prestados ao
eleitor não entram na contabilidade eleitoral. Elas são
entendidas como parte inerente ao exercício da sua função
política. Ajudar aos mais necessitados é tido como um dogma
político.
O vereador como liderança agrega interesses e comanda uma
rede de interesses dispersos. Somente alguns poucos expressam
forças de interesses de grupos organizados. Embora o mais
comum seja encontrarmos expressão desta agregação de
interesses muito dispersos, o vereador consegue servir de elo
de referência ou de intermediação. Se falamos de rede de
interesses e não de grupo de interesses é porque a
representação de um vereador é mais expressiva como
articulador e agregador de interesses muito dispersos do que
de um único grupo. Há vereadores que buscam uma identificação
profunda com um único grupo de interesses, passando a ser
365
considerados porta-vozes. Esta, todavia, não é a forma mais
habitual da representação política.
Os laços de dependência estabelecidos fora do âmbito da
política são fundamentais para se entender a permanência de
certos mecanismos. Laços de gratidão por favores prestados sem
nenhuma contrapartida a não ser a retribuição em forma de voto
são meios que não se destroem imediatamente, pois não há uma
decisão para transformar a situação destas pessoas que se
nutrem de laços de dependência.
Mas os indivíduos não estão submetidos à situação de
ceder seu voto apenas porque se sentem na obrigação de ofertar
aquilo que julgam ser importante para quantos dele dependem.
Trata-se de um sistema que se alimenta de ambas as partes,
pois tanto o que dá o voto de gratidão quanto o que dele se
beneficia são mantidos dentro de um sistema de troca
extremamente complexo.
Os favores prestados pelos políticos ao eleitor
pressupõem uma obrigação de retribuição, de reciprocidade na
troca. Mesmo o eleitor que sabe que o político presta o favor
por interesse, usando recursos alheios, não deixa de se sentir
obrigado a retribuir.
Parte considerável dos candidatos atua precisamente
nesta situação, procurando de diversas maneiras levar o
eleitor a ter com ele algum tipo de dívida de gratidão somente
possível de ser saldada com o voto. O voto de gratidão é dado
em função de um benefício recebido em uma época fora do
retorno eleitoral, portanto, um tempo no qual o eleitor não
366
precisaria saldar imediatamente. Se assim age, o político
adquire aos olhos deste eleitor uma aura de alguém confiável
porque antecipa em certo sentido o benefício desejado,
apostando que aquele que recebeu saberá honrar o compromisso
estabelecido naquele instante.
De modo genérico é possível distinguir os candidatos
políticos que trabalham ajudando as pessoas fora e muito antes
do período eleitoral e aqueles que somente trabalham neste
período. As trocas realizadas entre os primeiros candidatos e
seu eleitorado baseiam-se em laços de confiança e na
reciprocidade, pois “desinteressadamente” ajudam as pessoas
que os procuram. Entretanto, estes candidatos não podem
simplesmente contar com o trabalho já realizado fora da época
da política e esperar pelo reconhecimento e gratidão das
pessoas ajudadas. É preciso não somente intensificar, mas
também usar de estratégias para ampliar sua base de
sustentação eleitoral.
Os candidatos que já são políticos com mandatos, mas
não montam nenhum esquema de auxílio pessoal aos que o
procuram, intensificam seu trabalho de troca mais imediata na
época eleitoral. A estratégia é claramente de compra do voto,
pois se está ofertando um benefício que o eleitor está
solicitando em troca de seu consentimento eleitoral.
A presença de um eleitorado independente ocorre em
qualquer cidade. Ele é constituído pelos segmentos dos jovens
e dos profissionais liberais que não mantêm vinculação de
dependência em relação aos políticos. Suas necessidades são
367
arcadas à própria custa, não transferem o ônus para outros,
criando laços de dependência e obrigações desnecessárias.
Há atualmente canais diversos de acesso a recursos para
ajudar as pessoas. Enquanto um grupo político pode controlar e
monopolizar todos os recursos oriundos da administração
municipal, outro grupo pode ter acesso a recursos de origem
estadual ou federal. Essa existência de fontes distintas de
recursos tem um impacto importante na dinâmica política local
porque permite a consolidação de um grupo de eleitores
independentes. Não basta a manutenção de parcela significativa
do eleitorado sob seu controle mediante irrigação constante de
favores e benefícios individualizados. Em determinado momento
existe uma ruptura de fidelidade entre o eleitor e os
candidatos, pois ele pode perfeitamente saldar parcela da sua
dívida via votação no candidato a vereador, mas não fazer o
mesmo em relação ao cargo majoritário. Não há nenhuma
infidelidade aí. Como a eleição diz respeito à escolha de
pessoas para ocupar determinadas posições, é possível entender
que esta escolha se passa entre dois atos.
A decisão de realizar determinadas obras coletivas
depende do empenho pessoal de quem as assume. Neste aspecto,
os políticos quando reivindicam para si o esforço em ter a
obra executada ali naquele momento não estão de todo mentindo,
pois a obra poderia perfeitamente não ser feita ali nem
naquele momento. Em parte a obra é executada de acordo com a
deliberação do agente diretamente responsável. Explorar
politicamente isto parece apenas parte do jogo político.
Todavia, não parece procedente é acreditar que a obra sairia
368
de forma obrigatória, como se existisse um mecanismo
automático com capacidade de impulsionar o gestor público a
realizar as obras. Tanto a política mais geral como a mais
cotidiana são feitas de decisões individualmente tomadas por
pessoas que ocupam posições de mando e estão em condição de
decidir o quê fazer e quando fazer.
369
5. A NOVA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA MUNICIPAL
5.1 O Fim da Política de Clientela
Espero ter fornecido elementos suficientes para se
entender que o traço mais acentuado do sistema político
eleitoral municipal em Fortaleza foi o fechamento progressivo
ao recrutamento de novas elites. Progressivamente, o sistema
político foi girando em torno de uns poucos membros já
incluídos ou que se qualificavam como membros pelo
pertencimento ao sistema. Com o ressurgimento da competição
eleitoral, sinalizado pela ampliação do número de partidos e,
conseqüentemente, elevação do número de candidatos, se pôde
perceber alteração na incorporação de novos membros. Para o
legislativo, essa acentuada competitividade é o principal
fator de destruição progressiva das bases sociais de
sustentação da política de clientela eleitoral, representada
pelos vereadores de comunidade de bairro. Não se pretende
afirmar que esse padrão de sustentação eleitoral clientelista
tenha desaparecido completamente. Todavia há uma nova
configuração política, tornando este mecanismo menos usado e
mais arriscado politicamente. A partir dos anos 1980 a
manutenção de uma base eleitoral territorial vai se tornando
de elevado custo, e com resultados eleitorais pouco
confiáveis.
Se a persistência de práticas políticas
assistencialistas e clientelistas pode ser explicada pela
existência de interesses compartilhados entre os que trocam
370
bens e serviços por voto, a manutenção de uma organização fixa
e permanente de atendimento de favores por parte dos políticos
tradicionais diminui. A incorporação desses interesses não
precisa ser realizada na base da manutenção constante de laços
pessoais, porque a troca de natureza material permite ao
político prescindir de uma base organizada para trocas
constantes. Ao deixar de conter elementos afetivos e
expectativa de reconhecimento na época da eleição, a mudança
na natureza das trocas explica a desestruturação das máquinas
de assistência privada controlada por políticos com interesses
eleitorais. Agora a troca envolve mais acordo e menos relações
pessoais, pois a competição eleitoral criou esse novo padrão
de relacionamento do candidato com o eleitor. O
desaparecimento das máquinas de assistencialismo comandadas
por políticos ocorre não somente por causa da competição entre
os candidatos, mas também pela freqüência de eleições.
A ampliação do número de candidatos, distribuídos de
forma diversa por partidos com chances distintas na competição
eleitoral, é um elemento essencial para explicar a diminuição
do padrão de assistencialismo residencial controlado pelo
político local. A disponibilidade de novos concorrentes na
mesma área gera um efeito desagregador das bases tradicionais
da política clientelista.
Quando não havia competição eleitoral intensa nos
bairros periféricos, a identificação do eleitor como membro do
agrupamento do líder político local era importante, haja vista
que isto era o modo de assegurar seu acesso aos bens e
serviços disponíveis. Mas quando há concorrência maior entre
371
os atores políticos e fornecedores destes bens e serviços nos
bairros, a situação se modifica. Conseqüentemente o morador já
não necessita se identificar com um candidato específico. Ao
contrário, a competição pelo voto pode até gerar uma situação
de incentivo à desvinculação afetiva ao líder local. Em alguns
casos, outrora a identificação era importante porque dela
dependia o acesso dos eleitos aos limitados bens e serviços
ofertados por candidatos sem concorrentes. Neste momento, a
identificação tornou-se um obstáculo, pois o eleitor precisa
estar o mais disponível possível para negociar em melhores
condições.
No antigo sistema político municipal, havia a
possibilidade de acordo entre candidatos concorrentes. Com
número menor de candidatos em disputa, era possível a
realização de acordos, enquanto os candidatos atuavam em áreas
relativamente distantes uma das outras. A paz eleitoral entre
os concorrentes não existe mais porque estes passaram a ser
cada vez mais orientados por uma disputa de caráter
majoritário. Tal característica do sistema já não possibilita
a eleição de mais de um representante dentro do segmento de
eleitorado que disputam.36
O sistema proporcional, em lista aberta, gera
competição intrapartidária e fragmentação. Contribui também
para o aumento da competição eleitoral entre os candidatos.
Nesse contexto, a eleição proporcional se passa como se fosse
36 Lembro aqui dois casos típicos tratados no segundo capítulo desta tese:José Barros de Alencar e Raimundo Ximenes, na região da Messejana, e LimaMonteiro e Agostinho Moreira, no Carlito Pamplona, os quais disputavam deforma majoritária sua indicação para o legislativo.
372
uma disputa majoritária, isto é, o candidato que detém uma
base eleitoral territorial ou em segmento organizado precisa
assegurar sua dominância em votos e compartilhar poucos votos
com outros candidatos. Nesse caso, a estratégia mais usada é
compartilhar votos em bases dispersas e ser dominante em uma
base eleitoral. Entretanto, o dilema de todo candidato é lidar
com esta dupla atuação: fortalecer uma base eleitoral central
e ampliar seu potencial de compartilhamento de votos em outros
segmentos. Isto porque, conforme a natureza da representação
do vereador, ele não tem acesso a outras bases eleitorais e
mesmo fortalecendo onde já é dominante, não é capaz de se
eleger porque sua eleição depende da votação dentro da lista
partidária. Se, para complicar mais ainda suas dificuldades de
reeleição, houver um outro candidato do mesmo partido atuando
no mesmo segmento que o seu, ele terá de compartilhar esta
votação. Isto poderá ser prenúncio de derrota. O certo é que o
atual sistema eleitoral é destruidor de bases eleitorais
territoriais, foco principal de clientelismo e
assistencialismo.
Gradativamente, o eixo dinâmico da política municipal
vai deixando de ter como centro os laços de clientelismo e o
controle eleitoral baseado no território e passa a se centrar
na identificação de interesses. A tendência eleitoral é
predominantemente de comunidade de interesses e interesses
pessoais. Tal mudança ocorreu em função da consolidação do
sistema proporcional, forçando e incentivando campanhas dentro
de padrão majoritário. Consolida-se um padrão de competição
eleitoral para o legislativo que enfraquece o político
373
paroquialista, mas coloca em seu lugar um parlamentar defensor
de interesse próprio sem nenhum compromisso com bases
eleitorais.
Enfim, pode-se afirmar seguramente que a política
paroquial está em franca decadência por causa da consolidação
do sistema proporcional em lista aberta. As evidências
empíricas para sustentar semelhante argumento são contrárias
ao já evidenciado em escala nacional. Em pesquisa sobre o
padrão de voto em duas eleições, Nelson de Carvalho37 chega a
conclusão oposta. O sistema permite a expansão do padrão
nordestino de voto, isto é, de base paroquial. Se isto é
verdade, é preciso explicar esta diferença. O sistema
proporcional provoca padrão de voto diferente de acordo com o
nível da eleição. Enquanto no plano federal pode provocar a
ocorrência de uma representação completamente distante de
comunidades eleitorais definidas, no âmbito municipal, provoca
efeito contrário, trazendo a destruição das bases tradicionais
da política local.
Segundo Carvalho (2003), o sistema proporcional em
grande distrito eleitoral faz com que haja uma sub-
representação de áreas eleitorais importantes como as
capitais. No atual sistema, um candidato pode ir comprando dos
caciques políticos locais uma quantidade de votos aqui e ali,
até formar um total de votos que o elege, retirando sua
eleição sem nenhum compromisso com uma base eleitoral
definida. Um político eleito dessa maneira não representa
nenhum interesse organizado, segmento social ou território.37 CARVALHO, Nelson Rojas. E no início eram as bases – Geografia política do votoe comportamento legislativo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
374
Ele extrai a representação usando instrumentos permitidos pela
legislação eleitoral, uma votação dispersa, compartilhada em
vários distritos eleitorais, mas sem compromisso efetivo com
nenhuma comunidade de eleitores.
Se para a eleição dos deputados federais o sistema
eleitoral provoca a emergência de um tipo de representante
menos comprometido com suas bases eleitorais, nas eleições
legislativas municipais os candidatos disputam a eleição tendo
o bairro como base política fundamental e enfrentam uma
competição dentro de um sistema distrital uninominal, pois,
pelas condições em que se realiza, somente um candidato pode
ser eleito. Muitos candidatos devem lidar com este dilema do
sistema eleitoral: contrabalançar eventuais perdas eleitorais
em seu “distrito informal” dominante com votos oriundos de
outras áreas de influência. Os candidatos com pouca chance de
atuar em outros segmentos sociais são forçados a investir
tempo e dinheiro numa única área, correndo o enorme risco de
não alcançar o resultado esperado.
Se a constatação de Carvalho é verdadeira no plano
federal, o mesmo não pode se dizer do plano municipal.
Conforme tudo indica, neste plano o sistema proporcional em
lista aberta vem destruindo a dominação eleitoral paroquial,
base do clientelismo e do assistencialismo. Sem condições de
disputar eleição com controle e monopólio da liderança
política na área, surge um novo tipo de representante
originado da burocracia38 cujo padrão de votação é distribuído
em diferentes áreas da cidade. Semelhante a uma votação mais38 Na terminologia por mim usada, denomino este candidato de político institucional, conforme já foi explicitado no capítulo 4.
375
ideológica, este parlamentar institucional age como seus pares
deputados federais, os quais já não asseguram uma base
eleitoral fixa em certos municípios, mas atuam de maneira
dispersa, usando os serviços de lideranças locais.
No entanto, a eleição de um vereador não depende
unicamente do seu esforço pessoal. O voto preferecial com
transferência leva o candidato a depender de outras variáveis
para assegurar sua eleição. Em parte a votação do candidato
vai depender da lógica de transferência do voto ocorrida na
eleição, isto é, “o tamanho do quociente eleitoral, o número
de votos em branco, as coligações eleitorais e o desempenho
dos demais candidatos” (SANTOS, 2003, p.47).
Um candidato a cargo eletivo sabe que precisa contar
inicialmente com apoio de um grupo com o qual compartilhe
valores, interesses e objetivos. Todo candidato envolvido em
diversos círculos de relacionamento social distingue
facilmente em qual deles tem mais potencial de votos, isto é,
qual o grupo apto a lhe garantir mais sólida base eleitoral. A
primeira tarefa do candidato é fazer-se conhecido no círculo
de pessoas que julga capazes de influir. Em seguida vem o
trabalho de multiplicação desta adesão política. Os candidatos
com inserção em grupos organizados ou que contam com o apoio
de alguma organização são os mais beneficiados e se distinguem
dos demais pela natureza da sua campanha. Apoiando-se numa
estrutura organizacional existente, precisam apenas ampliar a
adesão às suas propostas. Muitas vezes, dada a natureza coesa
do grupo de pertencimento, basta a divulgação do nome e o
376
apelo aos valores correntes em sua organização para obterem
êxito.
Se a campanha feita mediante organização não impõe
obstáculo, pode não ser suficiente o potencial de votos. Esse
é um dilema para o candidato: pela regra eleitoral, ele pode
obter boa aceitação de voto dentro da sua organização, e isto
não ser suficiente para elegê-lo. O desempenho dos outros
candidatos do mesmo partido é algo definidor da sua eleição.
Nestas circunstâncias, um candidato pode ter total interesse
em um baixo desempenho dos seus colegas de partido, sem,
porém, desejar que este desempenho seja tão mal, a ponto de
prejudicar a totalidade dos votos do partido.
A representação inorgânica é essa segundo a qual o
parlamentar se elege contando com votos vindos de diferentes
áreas isoladas que ao final contabiliza sua votação total.
Conforme indica o perfil de voto deste candidato, ele não
mantém nenhum compromisso de responsabilidade sobre seu
desempenho parlamentar com nenhum círculo eleitoral. A não
formação de um distrito eleitoral, de uma base eleitoral
definida, propicia ao parlamentar prescindir de compromissos
com segmentos sociais específicos.
Atualmente não mais se duvida que o sistema eleitoral
tenha efeito sobre o sistema partidário e conseqüentemente
sobre a estabilidade governamental. As dúvidas residem na
forma deste efeito, pois para alguns o sistema eleitoral
caracterizado por ser proporcional em lista aberta em distrito
de grande magnitude é o mesmo praticado desde 1946. O
principal problema apresentado por este sistema é o fato de
377
provocar fragmentação e desorganização partidária. Pelas
regras proporcionais, a competição deixa de ser entre partidos
e passa a ser intrapartidária. Daí decorreriam a fragilidade
partidária e a ausência completa de disciplina partidária.
Tudo indica existir uma relação entre o sistema
eleitoral proporcional em lista aberta e a extinção paulatina
da dominação territorial pelos políticos tradicionais. Isto
pode explicar como uma regra eleitoral definida no plano
nacional pode afetar a competição partidária nos municípios.
Ela provoca dois efeitos deletérios à vida partidária,
quais sejam: a competição interna aos partidos e o
individualismo político. Os candidatos primam pela disputa com
seus companheiros de partidos ao invés de disputarem com
outros partidos, além de gerar uma política de reputação
pessoal.
Diante deste quadro legal que rege a disputa eleitoral,
a estratégia mais usual para um candidato é concentrar-se num
eleitorado no qual já mantém liderança. A vitória eleitoral de
um candidato passa pela conquista e dominação num determinado
segmento social. No entanto, a concentração de voto numa base
eleitoral estreita é arriscada porque nada impede surgir numa
próxima eleição fortes candidatos competitivos na área. Para o
candidato manter suas chances de vitória, ele necessita de uma
dispersão de votos dentro do município. Caso contrário, ele
põe em risco sua reeleição.
A atual literatura sobre o padrão de voto nas eleições
brasileiras indica uma forma híbrida de votação. Encontramos
378
tanto o padrão concentrado quanto o disperso: a tipologia do
voto concentrado como sendo de caráter conservador e o
disperso como sendo de matriz ideológica. Há mesmo uma
oposição evidente entre a votação do eleitorado das capitais
em relação ao voto oriundo de pequenas cidades. O voto das
capitais gera parlamentares ideológicos e universalistas,
enquanto os originados com votação em pequenas cidades baseiam
sua atuação na conquista de benefícios para os distritos onde
o candidato obteve votação expressiva. Estes parlamentares
participam pouco do debate dos temas nacionais, pois estão
mais interessados na intermediação de interesses capazes de
assegurar sua reeleição. Freqüentemente a imprensa caracteriza
este tipo de parlamentar como um mero “despachante de luxo”,
dada sua atividade eminentemente de intermediário.
Parlamentares com padrão de votação dominante em determinado
distrito eleitoral têm origem nas regiões mais pobres e menos
desenvolvidas do país.
No plano municipal, também encontramos parlamentares
com perfil semelhante de votação. Como falamos na
caracterização dos tipos de liderança política municipal, os
vereadores de comunidade de bairro costumam obter uma votação
em bairros próximos, o que com freqüência indica a presença de
algum equipamento de distribuição de benefícios. A proximidade
física com o eleitorado é um dos grandes diferenciais destes
candidatos. Eles costumam dizer que não podem prometer o que
não podem fazer. Como moram no distrito onde recebem o voto,
caso não cumpram o prometido, correm o risco de serem
desmoralizados na eleição seguinte. Não prometem e compensam a
379
ausência de promessas futuras com trocas constantes, aliadas à
realização de algum tipo de serviço prestado por seu
escritório político. Para este político, caso não tenha
liderança baseada em outro princípio, é preciso ser agente de
algum tipo de prestação de serviço.
Entre o político e sua base territorial de bairro, há
mais identidade e compromisso. Ele presta mais conta dos seus
atos realizados na Câmara Municipal e é mais independente dos
partidos porque precisa ser leal aos interesses do seu
eleitorado. O vereador tradicional exerce rigorosamente um
mandato parlamentar manietado pela sua base política, sem
nenhuma independência.
No nível municipal, a existência do multipartidarismo
fragmentado não é obstáculo à governabilidade, pois a
concentração de poder no executivo exerce suficiente atrativo
sobre os membros do legislativo para cooperarem. A
inexistência de partidos fortes possibilita a negociação
direta entre o vereador e o chefe do poder executivo. Todavia,
o padrão desta negociação não parece ser outro a não ser o
clientelismo e o patronato. Qualquer observador atento da vida
política municipal constata facilmente que o surgimento de
novos “partidos municipais” segue uma trajetória de interesses
pessoais. Candidatos que não conseguiram se eleger, disputando
dentro de agremiações partidárias fortes, as quais exigem uma
votação muito elevada, se vêem incentivados a migrarem para
pequenos partidos. Nestes, a votação conquistada passa a ser
expressiva e, portanto, suficiente para atingir o coeficiente
eleitoral.
380
A dinâmica política para sustentação parlamentar do
executivo depende exclusivamente de decisões individuais dos
vereadores. Para isto ocorrer, é preciso contar com estruturas
partidárias frágeis, as quais não exercem nenhuma coerção
sobre seus partidários. Os partidos sem nenhuma força sobre
seus filiados, bem como a proliferação de legendas de aluguel,
tornam o padrão de comportamento político no legislativo
extremamente dependente de decisões individuais. Entretanto, a
capacidade de convencimento não ocorre nunca por conta da
natureza do projeto, mas pelas trocas efetivas propostas pelo
executivo. Nomeações para cargos, liberação de obras para
áreas de influência política do vereador são os instrumentos
usuais de persuasão política.
No plano federal, o diagnóstico do formato do nosso
sistema político não é muito animador. Como afirma Carvalho
(2003, p. 16-17), a combinação
entre dispersão de poder e baixa efetividade de governo:partidos fragmentados, pouco institucionalizados, com altasensibilidade às demandas de natureza local e regional,presidencialismo e federalismo robustos, constituiriam abase de um sistema institucional que teria dificultado asreformas no período posterior à transição.
5.2 Clientelismo Urbano e “Rede Social”
Clientelismo urbano é a expressão usualmente empregada
para se referir à permanência de práticas políticas correntes
na sociedade brasileira, herdeiras do mandonismo e do
patrimonialismo. A evolução política deveria forjar cidadãos
capazes de agir de modo independente. Estes seriam
representados por interesses de classe ou partidário.
381
Entretanto, no nosso caso, o Estado continua distribuindo
serviços e bens públicos não pelo critério da impessoalidade,
mas em troca de voto e apoio político. As citações a seguir
dão idéia do pensamento crítico a esta prática clientelista
presente no nosso sistema político:
Na relação clientelista, é essencial o papel do políticoenquanto mediador entre as demandas e as decisões capazes deatendê-las. Os mecanismos impessoais e universalistas decanalização e processamento de demandas cedem lugar avínculos de cunho pessoal entre líderes e sua rede deindivíduos ou grupos subordinados. [...] Essa mediação comoque privativa a obtenção de um bem público, na medida em queo patrocínio de um político influente aparece como requisitonecessário para o acesso a serviços públicos fornecidos peloEstado ou para a solução de questões específicas (Apud,DINIZ, p.140).O clientelismo é um problema do ponto de vista democrático,pois opera sob o princípio da dádiva, implicando sentimentosde lealdade e empenho individual. O eleitor, ao invés de seidentificar com seu grupo ou classe, como trabalhador ecidadão, se identifica como beneficiário de um políticoinfluente, tornando a política “inacessível sem ainterferência das relações pessoais”. Tanto para o políticoquanto para o eleitor envolvido, esse tipo de relaçãopolítica é legítima e positiva (KUSCHNIR, 2000, p.140-141).
Aceitando a definição de “relação clientelista” como
uma forma de intermediação personalista entre o político e
grupos ou indivíduos que se beneficiam de recursos públicos,
não podemos negar a persistência desta relação na sociedade
brasileira. Mas, como vimos, a manutenção de uma base
eleitoral de natureza puramente clientelista torna-se cada dia
mais difícil. O vereador que age de maneira unicamente
clientelista está correndo sérios riscos de não voltar a
eleger-se. Por isto mesmo ele diversifica sua atuação política
por vários grupos.
382
Atualmente o agente político mais característico em
Fortaleza é o que chamo de liderança política institucional. Esta,
apesar de ter sua base de sustentação no poder público, não
mantém vínculos com comunidades organizadas ou facilmente
identificadas. Por preferir agir mediante uma grande
capilaridade de atuação em pequenas redes sociais, não precisa
estar constantemente agindo no sentido de atender a demandas
localizadas.
A atuação do político não se dá no sentido de
viabilizar uma demanda ilegal, mas apenas de permitir o mais
rápido acesso àquilo se tem direito. O direito passa a ser
sempre mediado por meio de uma autoridade capaz de agilizar um
processo. O cidadão tem por direito determinado benefício
público, no entanto não sabe quando chegará a sua vez. A
atuação mediadora do político não é no sentido de romper as
barreiras da legalidade, e sim de agilizar a efetivação de um
direito.
Afinal, por que, a despeito de avanços modernos
consideráveis na sociedade brasileira nas últimas décadas,
ainda persistem traços tão acentuados de clientelismo?
O sistema de representação política, baseada na
democracia e no governo da lei, somente pode agir dentro de
uma situação social onde haja uma igualdade material mínima
entre seus membros. A desigualdade material impede serem os
membros da sociedade vistos como independentes e com direitos.
Numa realidade social marcada pela desigualdade entre seus
membros, o mecanismo do direito e o regime da lei parecem não
existir. Nela, os direitos são sempre mediados, intermediados
383
por relações pessoais. Mas esta não é uma exclusividade da
implementação do direito. A relação pessoal entre os desiguais
em todos os planos propicia a existência de condição de se
estabelecer uma relação de contrato entre o que pleiteia o
direito e o agente encarregado de fazer o direito se efetivar.
A relação assimétrica entre quem deseja algo e quem pode
fornecê-lo faz com que aquilo que é direito seja efetuado sem
custo por um dos membros da relação. Por não ter como pagar
pela produção de um bem do direito, este indivíduo sente-se
endividado. Como a ação do outro de efetuar a aplicação da lei
teve um custo, e o requerente não possui condições de arcar
com este custo, o encarregado pratica os atos e depois pode
cobrar a conta. Não se pode falar em cidadania plena numa
sociedade onde os membros convivem com profunda desigualdade
de acesso aos bens públicos e benefícios individuais. Existem
contratos apenas entre indivíduos reconhecidos como iguais. De
outro modo, estamos diante de formas variadas de hierarquia e
dominação.
Como assinalamos, a posição política de um
representante clientelista é mantida em função de uma rede
social de colaboradores que fornecem algum tipo de bem ou
serviço. Temos ainda uma segunda rede social, composta por
indivíduos que recebem algum tipo de ajuda. Eles são
integrados a partir de critérios de carência. A contrapartida
da sua manutenção na rede social se dá justamente no momento
da eleição quando o líder político – coordenador das duas
redes sociais – solicita sua contribuição em forma de voto.
Neste instante, as duas redes sociais se imbricam e demonstram
384
toda sua dependência. Não se trata propriamente de dominação,
mas de participação numa rede de ajuda mútua capaz de trazer
benefícios para seus membros. Um vereador solicita a um
empresário do transporte coletivo o empréstimo de um ônibus
para conduzir pessoas da sua comunidade a um enterro. O
empresário faz parte, no sentido ora analisado, de uma rede
social de ligações na qual o vereador é o elo dominante.
Uma rede social é uma integração de pontos e posições
dentro de uma estrutura de interação. A estrutura de rede
facilita fundamentalmente a redução dos custos de produção de
determinado bem. Muitos bens trocados dentro de uma rede não
são equivalentes a mercadorias, pois um bem pode ser produzido
como mercadoria, mas na outra ponta da rede de troca aparecer
como um favor. A equivalência das trocas nem sempre é feita
entre bens de valor semelhante.
As trocas efetuadas dentro de uma organização são mais
definidas e têm um custo superior em comparação com as feitas
em rede social. Numa organização, as posições já estão
relativamente definidas, implicando relações de obrigação com
custos definidos.
Como a estrutura de rede social tem posições distintas
para pessoas, os ocupantes de posições privilegiadas ganham
mais. As pessoas participam de rede e como membros desta se
beneficiam de acordos e contatos com um número considerável de
outras pessoas.
Uma rede social estruturada tem um limite para a
produção dos seus benefícios? A regra do limite para membros
385
participarem somente funciona para organizações e associações?
Por não se estruturar na base de algum tipo de organização,
uma rede social não cria igualmente qualquer tipo de mecanismo
de incorporação ou integração de novos membros. Mas um novo
membro integrado à rede social é sempre bem-vindo, pois
fortalece e amplia o poder de ação da rede, produzindo um
efeito suplementar para quantos dela fazem parte. A lógica da
associação e da organização é justamente o contrário.
Organizada com o objetivo de produzir um bem coletivo, a
associação implica necessariamente a distribuição de custos
individuais entre seus membros. Em certas situações, o
benefício produzido pela associação pode não mais ser
compatível com a quantidade de participantes. Logo, é preciso
limitar os membros. Isto cria forte tensão entre os
interessados em participar e os que já estão dentro da
associação. Por exemplo, uma associação que distribui ajuda
material para seus filiados, mas dispõe de um limite
financeiro para este fim, tanto maior o número de associados,
menos será sua parte financeira. Esse tipo de estrutura cria
uma tensão entre os já filiados e os que desejam se filiar.
Por sua natureza, uma rede social não experimenta este
tipo de problema. Além do mais, faz algo que a associação e a
organização não são capazes de fazer. Ela permite serem as
pessoas partes de uma rede e terem benefícios quase como se
não tivessem custos. Este custo para obter o benefício pode
ser “pago” com uma mercadoria de equivalência desigual. A
troca se estabelece numa estrutura de rede social sem que os
386
membros aparentemente tenham custo algum na obtenção dos seus
benefícios.
Uma organização possui um custo elevado para a
manutenção das suas relações de interdependência e de produção
do bem coletivo. Por esse motivo, muitos preferem a
participação em redes sociais a grupos organizados. Uma rede
social não é uma formação social de grupo latente nem semi-
organizado. Rede social é um conjunto de pessoas que trocam
entre si bens ou serviços valendo-se da sua posição numa dada
estrutura social. Uma estrutura social é composta de
indivíduos que ocupam posições distintas na ordem social.
Estas posições podem ser interconectadas umas com as outras
com vistas a produzir resultado. Alguém numa determinada
posição deve ser responsável pela estruturação destas posições
dispersas para produzir o efeito esperado. Um membro isolado
pode receber um bem desejado ou um serviço solicitado de forma
gratuita. Entretanto, para ele poder receber este favor,
alguém, em algum momento e posição da rede social, foi
mobilizado para poder disponibilizar este bem ou serviço. A
rede social funciona como um vasto sistema de posições de
auto-ajuda entre indivíduos que não se conhecem nem têm
relações pessoais, mas acabam indiretamente contribuindo uns
com os outros para que uma vasta máquina de posições e ações
possa ser conectada em diversos pontos.
A circulação de bens e serviços é o objetivo de toda
rede social, mas esta jamais é criada unicamente com esta
intenção, pois uma rede social nunca é criada. Ela pode, no
máximo, ser articulada, isto é, pontos distintos são
387
conectados com outros para poderem fluxos de bens e serviços
circular e ser transacionados entre os membros. Uma rede
social funciona sob a expectativa de troca freqüente entre
seus membros. As ações são praticadas por membros isolados da
rede com o intuito de mais adiante serem retribuídas pelo
voto. Isto deverá ocorrer, embora não se saiba quando.
A rede social é uma forma de diminuir o custo de
produção de qualquer bem necessário a uma sociedade, apesar de
não possuir recursos que garantam sua disponibilidade para
todos. As relações de fidelidade e lealdade aos membros mais
influentes da rede encarregados diretamente da obtenção do
benefício são apenas um aspecto desta vasta interdependência
entre indivíduos e posições variadas.
Um aspecto importante da situação de rede poucas vezes
ressaltado é serem os membros destas redes absolutamente
atores racionais, isto é, sua ligação com a rede de contatos
existe em função da retribuição possível de advir desta
adesão. Não há fidelidade sentimental, mas ação utilitária de
se servir do que está disponível. A fidelidade política dentro
de uma rede social política se mantém pela troca constante;
ela não existe fundada em outro valor que não seja a troca e o
interesse. Não há controle dos membros de uma rede social
exercida por membros diferenciados, ao contrário do verificado
na forma social organizacional onde se diferencia uma função
com a finalidade exclusiva de controlar as demais partes do
agrupamento. Enquanto numa organização social há sempre algum
tipo de coerção reconhecido como válido para os que rompem a
regra da solidariedade, numa rede social chama a atenção a
388
inexistência de qualquer mecanismo deste tipo. Nesta não se
criam forças de coerção para os membros retribuírem aquilo que
receberam, apenas se espera que o façam. Como há uma grande
disponibilidade de redes sociais, os indivíduos são
incentivados à total falta de retorno. Se não há forças de
coerção exigindo a contrapartida, há em quase todos os casos a
retribuição, ou seja, independente da existência de coerção, o
eleitor ainda é grato pelo favor recebido. Mas isto apenas por
causa da liderança comunitária e não do político.
Na periferia de Fortaleza é generalizada a concordância
entre eleitores: o bom político ajuda as pessoas necessitadas;
o mau político trabalha apenas para si, esquecendo os que o
ajudaram na eleição. Ajudar para o eleitor periférico
significa estar disponível a “quebrar o galho” em algum tipo
de problema. Não há muita distinção entre esfera de problemas
públicos e privados. Todos exigem a intermediação do político
e somente por sua intermediação o bem é ofertado.
O clientelismo é uma forma de ação política marcada
pela alocação desigual de recursos públicos, uma forma de
assegurar a sobrevivência política de políticos tradicionais.
No entanto, não é só uma ação orientada do político; conta com
a demanda do eleitorado, pois o político age como
intermediário na defesa de interesses de determinada
comunidade. O clientelismo é uma forma de ação racional de
acumular e concentrar poder e riqueza. Todavia, os membros do
sistema clientelista não têm uma hierarquia, estão todos ali
para se beneficiarem de algo que o político pode alocar.
Determinada comunidade recebe benefícios individualizados. O
389
beneficio pode ser um bem coletivo – uma escola, um posto de
saúde, um chafariz, uma rua asfaltada – qualquer coisa que não
traga benefício privado para nenhum membro da comunidade.
Este tipo de ação feita por um vereador pode ser
considerado clientelismo? No sistema representativo, os
vereadores são representantes de parcelas de cidadãos junto ao
poder público. Eles devem representar os interesses do seu
eleitorado.
Conforme tudo indica, o sistema clientelista pode ter
sido fortalecido pelo sistema político de representação. Como
o político representa parcela dos membros da sociedade, ele
pode oferecer compensação material ou de outra ordem pela
lealdade política desses membros. Para poder o vereador
continuar representando este grupo ou esta comunidade de
interesses, é preciso negociar sempre as formas desta
representação. Com o tempo, o eleitorado exige mais para
permanecer fiel ao mesmo político. Isto ocorre tanto mais a
eleição seja competitiva. Não há como assegurar um número de
votos cativos.
Existem relações clientelistas quando há indivíduos
mantendo relações de dependência mútua constituída na base da
troca de favores. Os vereadores comunitários são os que
expressam melhor esta relação de dependência com seu
eleitorado.
Atualmente, porém, este não é mais o comportamento
dominante dos vereadores de Fortaleza. A dependência do
eleitorado se expressava pela impossibilidade de abandonar seu
390
lugar de moradia. Como a relação era mantida essencialmente na
base da confiança e na assistência constante, não havia como
se afastar dos seus representados.
A qualidade da representação do vereador institucional
muda completamente esta forma de atuação. Ele já não precisa
comandar diretamente sua rede social de assistência, nem
precisa morar no mesmo bairro onde tem como núcleo seu
trabalho comunitário. Estruturar uma rede de líderes
comunitários dotados de certa independência garante sua
presença nas áreas de trabalho sem precisar manter uma
dependência mútua com este eleitorado. A construção de uma
rede social de apoio como um núcleo duro de colaboradores
somente é possível quando se impede o interesse destes mesmos
líderes em se candidatar.
A presença do poder público municipal já não depende de
aceitação das lideranças locais para agir. Este poder público
não, igualmente, é capturado pelo líder político local de modo
que possa favorecer seus protegidos. Os diretores de escolas
são um bom exemplo desta situação: como não são indicados por
políticos (mas eleitos pelos pais, alunos e professores) podem
vir a prestar algum serviço para o político atuante na área,
mas sua permanência no cargo não depende imediatamente da
vontade do vereador. Este funcionário pode apoiar-se em outras
redes de poder e não favorecer o mencionado político.
A rede de relações pessoal e direta entre indivíduos em
posições assimétricas significa o pertencimento a uma rede de
clientelismo. Dispondo de recursos diferentes, o líder
391
político fornece aquilo que o eleitor tem necessidade e este
fornece à rede seu apoio pelo voto.
Depois da década de 1950 o sistema político coronelista
entra em decadência. Em seu lugar, no entanto, se estrutura
uma outra forma de atuação política de caráter clientelista. A
marca deste novo sistema político clientelista é sinalizada
pela dificuldade em controlar uma base eleitoral. A esta
dificuldade, alia-se a maior presença do Estado. Tudo isto
modifica a base de atuação da política clientelista.
Na periferia os indivíduos gozam de mais liberdade.
Desse modo, podem negociar melhor seu voto. Expande-se, pois,
a mercantilização do voto. Ao lado disto, o sistema de
pequenas lideranças comandando pequenas redes de influência
passa a ter maior peso. Esta rede de colaboradores diretos
pode ser permanentemente ligada ao vereador, ocupando funções
de assessores, ou pode ser requisitada apenas nos períodos
eleitorais. Atualmente estes líderes são os indivíduos mais
atuantes na época das eleições para os cargos proporcionais. A
quantidade de candidatos que se servem dos seus serviços é
cada vez maior. Esta intermediação eleitoral é de natureza
puramente profissional. Não há relação de subordinação, de
gratidão ou confiança. O candidato está comprando uma
quantidade de votos. Ao líder comunitário cabe providenciar a
mercadoria voto. Tal fenômeno explica a elevação do custo de
campanha eleitoral, principalmente das proporcionais.
Na nossa classificação dos vereadores, o institucional
é o que mais se serve do expediente de líderes comunitários
que comandam pequenas redes sociais de influência pessoal.
392
Existe profunda diferença quando um político vereador
controla diretamente e pessoalmente sua rede social de
favorecimento e quando uma parte deste controle é transferida
para assessores ou para lideranças locais. Estas lideranças
comunitárias vivem na dependência de políticos, mas podem
gozar de certa autonomia, pois a atual situação econômica e
social da cidade permitiu a criação de uma estrutura
diferenciada de lideranças atuando nas comunidades com essa
autonomia, a qual, em parte, responde ao aparecimento desta
nova figura do vereador institucional: um vereador sem uma
base geográfica definida e agindo por meio de um sistema de
clientelismo extremamente disperso intermediado por lideranças
locais.
A principal distinção na política municipal da década
de 1990 é certamente a criação de uma estrutura complexa de
pequenas redes sociais comandadas por líderes comunitários.
Com o passar do tempo, estes foram se tornando autônomos,
verdadeiros profissionais da intermediação de interesses de
pequenas redes. Todavia, não se trata de agrupamentos sociais
definidos por interesses, mas de um indivíduo que ocupa uma
posição de destaque numa localidade e goza de prestígio entre
os outros moradores. Sua autonomia é relativa porque não
dispõe de acesso direto aos recursos públicos e por isso mesmo
não é capaz de montar uma rede social estruturada em forma de
instituição possível de assegurar assistência contínua a uma
clientela. Por não dispor de recursos, está sujeito à
dependência constante de líderes políticos que já conquistaram
393
mandatos. Presta serviços de intermediação para os vereadores
institucionais, mas não unicamente para estes.
Os vereadores tradicionais que se servem vastamente
deste mecanismo também nas eleições apelam para os serviços
destes profissionais da intermediação de interesses. Isto se
faz normalmente como forma de contrapeso a perdas eventuais em
suas áreas de atuação clientelista tradicional. É uma forma de
compensação, mas não retiram toda a votação deste mecanismo,
ao contrário do ocorrido com o vereador institucional, que se
mantém no poder mediante uso deste mecanismo. Isto pode
explicar o fato deste tipo de vereador ter um padrão de
votação bastante disperso.
A autonomia destas pequenas redes sociais de
intermediação dos interesses comandadas por lideranças
comunitárias é certamente o aspecto mais importante da forma
de extração da representação dos anos 1990. Esta autonomia se
efetua num cenário de forte presença do poder público. Ao
contrário do suposto, não é resultante de uma mercantilização
do voto, pois os que estão ligados às pequenas redes sociais
de intermediação de interesses não o fazem na base da compra
de voto, mas por meio de trocas desiguais. O mecanismo e o
fluxo nestas pequenas redes são idênticos àquela comandada
pelo político tradicional, baseada fundamentalmente na troca
de favores e na prestação de pequenos serviços.
Este que caracterizo como líder comunitário não está
vinculado a nenhuma associação de morador ou de qualquer outra
natureza, ou seja, ele não comanda nenhum tipo de organização
voltada para realizar alguma finalidade. O líder comunitário
394
ora descrito não se filia a qualquer tipo de estrutura
associativa, ele age em função de um tipo de influência
pessoal. A rede social à qual se filia este líder comunitário
pode ser de parentesco, de amizade, de vizinhança, etc. Um bom
exemplo deste tipo de liderança pode ser visto no responsável
por um time de futebol. Ele organiza o time, participa dele e
não retira nenhum tipo de benefício material desta atividade.
Tudo muda de figura no período das eleições, pois nesta época
ele dispõe de um agrupamento informal de pessoas que pode
sofrer sua influência.
O comício ilustra também esta situação. Ele é um
momento de reunir pessoas, mas o político sabe que neste caso
os indivíduos ali reunidos não formam nenhum tipo de
comunidade, pois não têm vínculos já constituídos entre si.
Buscar lideranças comunitárias é justamente buscar comunidades
de relações constituídas entre indivíduos em torno de algum
interesse ou afinidade.
Todo indivíduo mantém com outros uma variedade de
relações de expectativas de ações presentes e futuras. Muitas
vezes, estas interações não são constituídas na base de
direitos e obrigações. Mesmo assim, os membros de uma rede
social sentem-se como se fossem obrigados a efetuar certas
ações. Uma rede social não é um grupo ou um tipo qualquer de
associação, mas uma forma de interação social em que os
membros se reconhecem como tendo algum grau de pertencimento
definido por algum laço de direito ou obrigação mútua. A estas
formas de relações sociais espontaneamente criadas entre os
membros de uma coletividade chamamos de comunidade de
395
sentimentos. Este é o fundamento da rede social, pois embora
não sejam relações propositalmente criadas para produzir tais
efeitos, podem por sua natureza produzir este efeito.
Numa campanha política, o que se busca não são as
formações de interações entre indivíduos, mas as interações já
constituídas entre os indivíduos e que possam ser atualizadas
no sentido de mobilizadas para produzir o efeito desejado:
voto num determinado candidato. A busca destas estruturas
capilares de interações entre os indivíduos formando pequenas
comunidades de sentimentos constitui a principal tarefa de um
candidato. Isto diferencia candidatos ideológicos e
tradicionais, pois enquanto os primeiros pretendem usar o
momento da campanha política para melhor organizar o povo,
projetando uma ação futura, os segundos apenas procuram se
servir das organizações já existentes.
Boa parte do trabalho do vereador durante a campanha
política é identificar agrupamentos de indivíduos já dotados
de certa interação de expectativas mútuas (times de futebol,
grupos religiosos, etc.) que não estão, no entanto, baseados
em estruturas custosas como corporações, associações e outras
instituições de caráter formal. As redes de relações informais
são os núcleos privilegiados de atuação dos políticos, pois
eles sabem que mediante mobilização do líder desta rede social
é possível atrair os outros para uma ação coletiva. O normal é
estas entidades sociais em forma de redes terem pouca
estrutura interna organizacional. Isto facilita o trabalho e
diminui o custo da sua manutenção.
396
Em Fortaleza a dinâmica política sofreu grande
alteração depois da redemocratização: o apoio político não
está mais centrado nos agrupamentos sociais definidos, mas em
redes sociais. Com o passar dos anos, a novidade vai se
acentuando e sucessivos pleitos eleitorais vão fortalecendo
esta tendência à estruturação de atuação em rede social e não
mais em grupos sociais. A questão agora é saber o momento em
que se começa a estruturar essa nova configuração política.
5.3 Chuvas de Leite Bom - O Programa do Governo Sarney
Os elementos de novidade social e política apontados
até esse momento nas campanhas políticas da década de 1990 são
centrados na eliminação progressiva da dominação territorial,
por meio do controle de bases eleitorais de bairros, criação
de um padrão de sustentação política em base de rede social, e
não mais em organizações sociais, e o surgimento de um sistema
de lideranças comunitárias que atua como elo entre os
detentores do poder e os candidatos a cargo eletivo. A origem
deste sistema remonta à década de 1980 e ao fim do processo de
transição democrática.
Quando se analisam processos sociais muito complexos,
nos quais existe intensa participação de atores muito
diversos, é corriqueiro desejar encontrar atores coletivos com
capacidade de ação idêntica aos indivíduos. Confere-se a
agentes coletivos como entidades sociais atributos exclusivos
de indivíduos isolados. Quando estes atributos se manifestam
em grupos organizados, há uma dificuldade muito grande em se
usar o mesmo modelo analítico. O modelo de ação de grupos
397
institucionais é tomado como sendo idêntico ao modelo de ação
individual.
Um indivíduo pode desejar o controle de determinada
situação e isto só será obviamente possível se caracterizar
com precisão a natureza deste controle e recursos disponíveis
para assim proceder ou conseguir realizar seu intento. Para um
grupo social poder agir semelhante a um indivíduo e, portanto,
poder expressar interesses por meio de uma ação coletiva, são
necessários elementos mais complexos do que os que se
manifestam e são exigidos para uma ação individual.
De acordo com Braga (1995), em seu trabalho sobre a
política habitacional na Nova República, a prática do mutirão
habitacional teve uma conseqüência nefasta para o movimento de
associação de bairros. Isto porque, como a organização dos
moradores precisou assumir a responsabilidade pela
administração direta e construção das casas, surgiram inúmeros
conflitos quando determinada associação teve de assumir, sem
nenhuma experiência, tarefas de enormes responsabilidades.
Nossa história da relação do poder político de
vereadores com lideranças comunitárias começa precisamente na
Nova República. O elemento mais importante ocorre com a
criação de uma Secretaria Especial de Ação Comunitária
responsável pela vinculação da destinação de verbas públicas
para as comunidades. Para isto, toda e qualquer organização de
moradores interessada em receber verbas de programas do
governo federal deveria ter um registro legal em cartório. O
efeito do registro de associação foi imediato, pois da noite
398
para o dia verificou-se uma onda de registro de associações
com capacidade para receber projetos do governo.
Não somente a rede de associações comunitárias
registradas aumentou o número de associações espalhadas pela
cidade, mas também surgiu o Programa de Agentes de Mudança, que
seriam agentes comunitários com vinculações ao governo Tasso
Jereissati. Não há registro efetivo da existência deste
programa desenvolvido pelo governo, mas de qualquer modo não
parece totalmente estranho, pois se tratava de lideranças com
forte aceitação nas comunidades, as quais, mesmo sem sua
associação, influenciariam os destinos da comunidade.
O marco temporal e institucional deste processo
analisado é 1985, com a criação pelo governo federal da
Secretaria Especial de Ação Comunitária para “desenvolver os
programas sociais na área de alimentação, nutrição, creches
comunitárias e incorporou, posteriormente, o setor de moradia
popular, desenvolvendo programas destinados às famílias de
renda com até 3 salários mínimos” (BRAGA, 1995, p.102).
Segundo ressalta a autora, os programas sociais do
governo da Nova República “utilizam uma metodologia na qual o
governo, ao resgatar a lógica do trabalho comunitário,
trabalhava diretamente com as comunidades dos bairros
populares” (Idem, ibidem, p.102).
As organizações de moradores existentes na década de
1980 pautavam suas reivindicações basicamente no eixo da
moradia popular, pois este aparecia como o principal problema
enfrentado pela população de baixa renda. Entretanto, se a
399
moradia parece ser a demanda mobilizadora dos interesses dos
segmentos populares, o governo desenvolve outros programas
sociais com objetivo de “resgate da dívida social”.
Antes do desenvolvimento do Programa de Moradia Mutirão
Habitacional, o governo implementa um programa diretamente
relacionado com a área de alimentação e nutrição, o Programa
Nacional do Leite, o qual, segundo Braga (1995, p.104), “tinha
como estratégia política subjacente penetrar na lógica das
organizações de moradores, sobretudo, aquelas com penetração
dos setores de esquerda e progressistas.”
Conforme enfatiza esta autora, mesmo que o PNL tenha
sido criado voltado unicamente para o atendimento no combate à
subnutrição, ele vai ter efeito sobre o Programa de Habitação
Popular criado em seguida. De acordo com estas evidências, na
opinião de Braga havia uma estratégia subjacente de controle
na implementação destes dois programas.
Ainda conforme Braga (1995), desconsiderando esta
lógica controladora do governo, com vistas a controlar os
setores organizados da sociedade, o desenvolvimento deste
programa provocou profundas modificações na organização
popular dos moradores. A ocorrência desta mudança no padrão
organizacional destas comunidades serve como indício para a
autora supor a existência de uma lógica controladora por trás
das ações do governo federal.
Como afirma Braga (1995, p.104),
a forma como o programa (PNL) foi desenvolvido, a partir de1985, revelou a existência de uma estratégia política dogoverno federal destinada a contrapor-se à expansão dosmovimentos sociais urbanos. Desta maneira, quando foi criado
400
o Programa Nacional de Mutirões Habitacionais, o movimentopopular já apresentava sinais de mudanças ocasionadas entreoutros fatores pelas estratégias desenvolvidas através doPNL.
Reconhece a autora que a introdução dos dois programas
sociais do governo federal depois de 1985 é fundamental para
explicar a alteração do movimento de organização comunitária.
Os movimentos de moradores perdem aos poucos seu caráter mais
ideológico, pois deixam de se ocupar apenas com as grandes
transformações na estrutura da sociedade e passam a atender
igualmente à política miúda do cotidiano. A mudança do perfil
das lideranças comunitárias deve ser muito significativa ao
longo dos anos 1990, pois estas encontram um solo
organizacional não mais ideológico, mas marcadamente
clientelista.
A mudança mais significativa verificada na
representação política das forças locais em Fortaleza ocorre
na década de 1980, porquanto dois programas sociais
desenvolvidos diretamente pelo governo federal – Programa do
Leite e Mutirão de Casas – afetarão diretamente o padrão de
organização comunitária. Estes dois programas modelam o tipo
de organização comunitária e a natureza das suas
reivindicações. O tipo de liderança que emerge desta
transformação estrutural tem um perfil completamente
diferenciado daquele visto na virada da década passada. Nele o
engajamento político é menor no sentido ideológico e passa a
agir como intermediário local nas comunidades dos serviços
oriundos do poder público estadual ou municipal. São as
401
lideranças comunitárias que servem de primeiro elo de
intermediação de interesses e de alocação de benefícios para
as comunidades.
O desenvolvimento deste tipo de organização comunitária
afeta a base de legitimidade dos vereadores tradicionais, os
quais se apresentavam como o elo mais importante na cadeia de
intermediação dos anseios comunitários junto ao poder
decisório. Desse modo, gradativamente vai surgindo a figura do
vereador sem mandato, referindo-se especificamente ao líder
comunitário que atua diretamente nas comunidades. A existência
desse líder significa uma grande transformação na
intermediação do poder local, pois já não se permite um
vereador tradicional com uma base comunitária fixada numa
única comunidade. O padrão preferível será de atuação
dispersa, usando os elos existentes e já construídos entre as
lideranças comunitárias e os moradores.
Uma diferença marcante entre a forma de organização
comunitária atual e as outras do passado advém da mudança na
forma de organização federativa do Estado. Depois de 1988,
criaram-se espaços políticos relativamente autônomos nas três
esferas de poder público. A alteração jurídica vai provocando
mudança na estruturação do poder local e estadual. Do ponto de
vista das lideranças comunitárias, esta alteração significou a
diversidade de fontes de poder legítimo. Já não precisam se
manter na dependência única e exclusiva de uma fonte de
recursos de projetos para suas comunidades. São tantas as
fontes de acesso, umas mais fáceis outras mais difíceis, que
permitem a existência de uma competição entre as fontes de
402
financiamento. Um líder comunitário agindo num ambiente
institucional onde há diversidade de poder para implementar os
programas tende a se representar como uma figura relativamente
autônoma diante das fontes. Ele já não depende diretamente de
nenhuma fonte específica porque o poder político não organiza
de forma monolítica todas as fontes de poder existentes na
cidade. A percepção da improbabilidade de fechar todas as
portas, centralizando o acesso a uma única organização
política, permite se desenvolver a consciência de certa
autonomia organizativa da associação e isto tem profundo
significado.
5.4 Casas Feitas com as Mãos – O Programa de Habitação Popular
O Programa do Leite associa-se ao Programa de Mutirões
Habitacionais porque em ambos há a descentralização das
atividades. No caso do Leite, proporcionou o surgimento de
entidades comunitárias unicamente para servirem de núcleos de
distribuição dos tíquetes às famílias. A proliferação destas
associações comunitárias aparentemente com um perfil
completamente diferente das que existiam em associações de
moradores, formadas em função da luta pela conquista de
melhorias urbanas, será decisiva para o Programa de Habitação.
Assim como o Programa do Leite, o de Mutirões exigia a
constituição de uma Sociedade Comunitária de Habitação. Mais
uma vez tratava-se de disseminar associações por todo o
território com vistas a implementar os projetos sociais. As
antigas associações sofreram, então, a concorrência em virtude
do atendimento dos interesses dos beneficiados comunitários.
403
Nos dois casos, as associações comunitárias passaram a
ter um registro jurídico no CNPJ, e a partir daí poderiam
celebrar convênios com órgãos públicos. Diante disto, os
benefícios coletivos que chegam agora às comunidades não são
mais intermediados por lideranças políticas, vereadores e
deputados, mas por uma extensa rede de agentes comunitários
que atuam na intermediação direta entre os interesses de bens
coletivos da comunidade e o poder público municipal ou
estadual.
Com a difusão de associações comunitárias por toda a
cidade ocorre a competição por benefícios e o acesso aos
benefícios prestados pelo poder público. Em termos políticos,
haverá uma diminuição do poder do vereador comunitário porque
este passa a ser apenas um entre outros com poder de
intermediação. Entretanto, a ascensão à condição de vereador é
algo importante porque significa acesso ampliado a recursos
públicos, pois surgem novos canais de intermediação ao
atendimento dos interesses da comunidade.
Todavia, a manutenção de um vereador com base
comunitária, portanto, um líder comunitário com mandato, exige
a rápida transformação deste em um vereador do tipo
institucional. Isto simplesmente porque na condição de líder
comunitário ele acaba tendo de disputar com outras lideranças
comunitárias menores, sobre as quais não tem domínio, o acesso
aos benefícios que traz para a comunidade. A presença física
na própria comunidade é igualmente um elemento de atrito
gerador de descontentamento. Enfim, tudo leva a crer que o
surgimento de uma estrutura de lideranças comunitárias
404
dispersa pela cidade permite ao vereador não mais ter contato
direto com as comunidades, mas se servir destas lideranças
como intermediários.
A ampliação das associações comunitárias gera efeito
sobre a intermediação do sistema político, pois para o partido
já não importa a manutenção de uma base eleitoral territorial
fechada ou o monopólio da base da representação do interesse.
Isto porque se há outro meio de assegurar sua reeleição, o
político tende a não mais privilegiar a ação direta na
articulação com comunidades territoriais. Os interesses
imediatos das comunidades transferem-se para lideranças
comunitárias, agentes comunitários, que passam a agir na
intermediação destes benefícios.
A existência de uma rede de lideranças comunitárias é
um dado imprescindível para se entender a discussão política
sobre partidos, pois são estas redes que sustentam a reeleição
dos políticos.
Na década de 1980, as mudanças mais significativas em
relação ao poder público e os movimentos sociais urbanos são a
criação de canais de negociação e a formação de parcerias na
elaboração de novos projetos sociais. Com o passar do tempo, a
gerência dos projetos de habitação popular passou a ser feita
diretamente pelas associações de moradores mediante criação de
uma Sociedade Comunitária de Habitação. Finalmente, o poder
público estava transferindo uma parcela da sua
responsabilidade diretamente para as lideranças comunitárias,
pois estas deveriam assumir em grande parte o ônus pela
implementação da política.
405
Das mudanças verificadas na década de 1990 com a
consolidação da redemocratização política, a principal é o
desaparecimento gradativo de relevantes atores sociais que
atuaram de forma decisiva nos anos anteriores. Mas o
deslocamento de função dos movimentos sociais urbanos não é
somente fruto da abertura da esfera pública à participação;
novas demandas estavam sendo colocadas na ordem do dia e o
movimento contra o poder público já não respondia a esta
expectativa de vitórias. O surgimento de ONGs será o momento
decisivo para diminuir definitivamente a importância dos
atores políticos urbanos, pois elas passam a atuar diretamente
com as entidades comunitárias de cunho assistencialista no
intuito de viabilizar a resolução de problemas enfrentados
pela comunidade, os quais também se expressam como demandas
privadas.
Definitivamente, parece que o tempo da conquista de
benefícios coletivos mediante ações coletivas organizadas em
grandes movimentos sociais havia acabado. O padrão de
organização social reinante nos bairros está mais próximo das
associações de natureza puramente assistencialistas. Para
limitar o espaço das políticas da ação reivindicatória ao
poder público, ocorreu a necessária ampliação de canais de
intermediação entre as decisões do poder público municipal e
estadual e os interesses comunitários.
5.6 A Emergência das Novas Lideranças Comunitárias
406
Extremamente complexo, o sistema de lideranças
comunitárias é uma rede de pessoas atuando em cada comunidade
com algum tipo de influência sobre outras pessoas e moradores
de uma mesma localidade. Cada associação tem um número de
pessoas ligadas à sua associação. Elas podem ser filiadas em
torno de um projeto de moradia popular ou para receber outro
tipo de benefício. Cada associado fará parte automaticamente
do que o líder chamará de minha comunidade, isto é, as pessoas
sob sua responsabilidade ou influência direta.
De modo geral, as associações se formam em torno de
projetos de casas ou posteriormente em torno dos laços de
vizinhança e da necessidade de buscar melhorias para a
comunidade. O líder comunitário é aquele que arca com a maior
responsabilidade de trazer os benefícios para a comunidade,
mesmo que não seja diretamente o mais beneficiado. O argumento
dele será sempre a necessidade de fazer algo pelas pessoas,
pois é visto como responsável pela melhoria das condições de
vida dessas comunidades.
A comunidade é uma associação muito restrita de pessoas
ligadas a um líder do qual esperam algum tipo de benefício.
Embora as pessoas filiadas à associação acabem não tendo
nenhum tipo de obrigação, ficam em certo sentido na
expectativa de conseguirem algum beneficio. No cadastro das
pessoas filiadas consta uma espécie de repertório de
necessidades destas famílias.
Na época da eleição, o político busca o trabalho do
líder comunitário porque sabe que este goza de contato e
confiança com um número de pessoas a ele filiadas em
407
associação. O candidato deseja precisamente este contato, pois
assim pode expandir sua expectativa de eleição.
Entre os líderes comunitários existe rivalidade. Desta,
a maior ocorre por causa da área de influência. Uma liderança
pode ter uma associação de pessoas ligadas a ela e não buscar
benefícios para a comunidade. Isto cria tensão porque outras
podem desejar entrar na área. Mas as lideranças que mantêm
vínculos apenas com projetos de moradia não são pressionadas
no sentido de estarem invadindo a área de outras lideranças
porque seus filiados estão dispersos por vários bairros.
A dinâmica da associação é sempre a criação de uma
associação nova no local onde ocorreu o assentamento da
moradia. Quando a própria liderança vai também para a área
onde se constrói o mutirão, ela permanece como liderança ali
também. O normal, no entanto, é outro membro da associação
criar outra associação, agregando os antigos filiados, que
passam a ser membros de uma nova associação.
A “associação para projetos” provoca a mobilização do
líder comunitário unicamente em torno do benefício que pode
conquistar para sua comunidade. Como cada grupo de morador
está cadastrado em uma associação e somente em uma, espera que
cada líder busque os benefícios para o grupo. Já as melhorias
coletivas para o bairro, que afetam a vida de todos os
moradores, independente de fazer parte de uma “associação para
projeto”, acabam tendo enormes dificuldades de serem
realizadas. Como as associações de moradores estão todas
transformadas em “associações de projetos”, os benefícios de
408
natureza coletiva ficam sem lideranças responsáveis pela sua
provisão.
Atualmente, as associações de moradores são as mais
disseminadas na periferia e não são mais nos moldes daquelas
existentes na década de 1980, quando os moradores de
determinado bairro se organizavam para a conquista coletiva de
melhorias urbanas para o bairro. Esse tipo de organização
ainda existe, e continua tendo um peso relevante em suas
atividades, mas outras atividades foram sendo incorporadas. As
associações de moradores agregam pessoas com expectativa de
conquista individual, normalmente se reúnem com o intuito de
obterem do poder público uma moradia doada pelo governo. São
os projetos de moradia populares os que mobilizam as
lideranças comunitárias nas periferias das cidades.
Espontaneamente em todo agrupamento ou agregação de
pessoas surge imediatamente, em face dos inúmeros problemas
coletivos, a figura de líderes, pessoas que se destacam por
determinação e interesse de resolver problemas. Nos ambientes
dos conjuntos habitacionais não seria diferente. A cada novo
agrupamento formado em torno das moradias, novos laços são
criados, novas necessidades aparecem, novas lideranças surgem
para atendê-los.
Para se referirem ao conjunto de pessoas sob sua
influência direta ou indireta, as lideranças usam alguns
termos, como “minha comunidade”, “meus associados”, “meu
povo”. Estes são os mais empregados pelas lideranças
comunitárias para se referirem às pessoas sob as quais mantêm
vínculos de liderança, isto é, pessoas sob as quais detêm
409
algum tipo de vinculação de expectativa, pois elas,
normalmente, estão reunidas em torno da liderança, esperando
receber algo. A vinculação se dá em torno da expectativa da
casa própria por meio de algum programa governamental.
Normalmente, a associação comunitária possui um
cadastro no governo estadual e apresenta projetos de
habitação, isto é, pedidos de moradias para seus associados.
As pessoas se filiaram à associação com o propósito de obter a
moradia. Mas como esses associados ficam dispersos por várias
áreas da cidade, encontrando-se apenas esporadicamente em
reuniões, a liderança cria outras estratégias de ligação com
as pessoas em seu entorno. Desenvolve trabalhos variados, traz
benefícios para estas pessoas, de maneira que acabam se
formando “duas comunidades” sob sua liderança. Há uma
formalizada, com registro, constituída pelas pessoas com
expectativa de moradia doada pelo governo, que se encontram de
maneira regular, mas os laços são de compromisso e expectativa
de um bem pelo qual se está transferindo autoridade de um
coletivo para uma única pessoa representá-las junto ao
governo. Espera-se serem seus anseios e expectativas atendidos
pelos governantes.
Entretanto, no seu próprio lugar de moradia, é preciso
se apresentar também como liderança. Para isto, outro tipo de
atividade é exigido. São problemas coletivos ou serviços que
podem ser trazidos para a comunidade de maneira que sua
posição de liderança não seja contestada. A posição de
liderança pode ser contestada em face da não correspondência
410
de expectativa das ações de um líder comunitário. Ele deve
trazer benefícios para “seu povo”.
Essas duas atividades são independentes e feitas com
públicos distintos. Dos associados para a moradia, ele espera
que participem das reuniões informativas em relação ao
processo em andamento e paguem regularmente sua contribuição
para a manutenção da associação. Na segunda forma de
associação, não há um cadastro de pessoas, mas vínculos
informais entre elas em decorrência do grau de atenção que lhe
atribui a liderança. Quando se organiza uma festa das crianças
com donativos vindos das regionais ou de particulares, não se
escolhe as crianças que podem e não podem participar. Todas
são bem-vindas, mas há um público certo com o qual se pode
contar, as pessoas com as quais mantém contatos constantes.
As lideranças conseguem trazer para o bairro ações
desenvolvidas pelo governo municipal ou estadual. O serviço
público será proporcionado a todos os presentes, mas as
lideranças procuram mobilizar as pessoas do seu conhecimento,
com quem mantêm vínculos mais estreitos. Uma atividade
coletiva será capitalizada por cada liderança de acordo com
sua clientela ou público. De imediato se saberá quais as
lideranças não envolvidas na realização deste evento. Estas
passam a ser contestadas pelo simples fato de não terem se
envolvido com o trabalho conjunto com vistas à realização da
atividade no bairro. As pessoas ligadas à liderança e que nada
fizeram para o evento vir para o bairro sentem-se de certo
modo desprestigiadas porque sua liderança nada fez. Essa
insatisfação pelo trabalho não feito vai aos poucos se
411
materializando na aceitação de uma nova liderança, pois quando
têm necessidade de algum tipo de favor não recorrem à sua
antiga liderança, mas à nova, esta agora reconhecida como sua
“protetora” na área. Desta forma, as lideranças estão
vinculadas e obrigadas a se submeterem às exigências dos seus
“filiados” de maneira que possam sempre contar com eles.
Assim como os bairros não são fechados, as comunidades
não são isoladas uma das outras, conectadas apenas por
intermédio das suas lideranças. Numa mesma área geográfica há
formação de agrupamentos de pessoas que se identificam como
pertencendo ou seguindo a orientação de uma liderança. Essas
pessoas são vistas como sendo “sua comunidade”. Mas isto é
extremamente impreciso, pois se há responsabilidade desta
liderança em trazer permanentemente benefícios e serviços para
sua comunidade, não há por parte dos membros da comunidade
nenhum tipo de contrapartida.
O que estas lideranças comunitárias fazem é criar
vínculos de favores em rede de pessoas de modo que em certo
momento possam usar sua influência ou simplesmente o serviço
prestado e exigir uma retribuição. Quando esse serviço foi
ofertado não houve nenhuma explicitação sobre a natureza da
relação que se estava criando. Entretanto, conforme todos
sabem, em algum momento isto será cobrado. Mas como o
benefício foi ofertado de modo coletivo, nem todos se sentem
na obrigação de atender ao pedido.
As relações sociais não institucionalizadas, isto é,
que não recebem sua atribuição de um estatuto legal, são
sempre sujeitas a mudanças. As lideranças comunitárias, por
412
exemplo, não recebem sua atribuição de nenhum sistema
formalizado. Por isto mesmo, ficam sempre na dependência da
aceitação da sua liderança por parte dos moradores. A
comunidade que lhe serve como referência para se dizer
“liderança comunitária” é formada por um conjunto de pessoas
vinculadas a ela de maneira informal. Para essa vinculação
permanecer, isto é, para as pessoas continuarem considerando
fulano como líder, é preciso demonstrar trabalho em benefício
da comunidade.
Ao se falar desta maneira, pode haver a impressão de
existir uma entidade chamada “comunidade”. Na verdade, trata-
se de um termo que serve como referente para designar uma rede
de pessoas que se reconhecem como tendo fulano como sua
liderança, embora não se encontrem, nem tenham relações
específicas em torno desta liderança. Sendo assim, perder
prestígio como liderança nunca será um ato concreto de
destituição desta posição. A posição de liderança não é algo
formalizado capaz de num determinado momento, por um único
ato, destituir o ocupante desta função. Como se trata de
relação de uma posição constantemente negociada, pode ocorrer
a erosão desta liderança por longo tempo até que todos se dão
conta de não mais existir aquela liderança. No entanto, não
houve, em momento algum, a decretação do fim do seu reinado de
liderança. Tudo se passou lentamente sem que ninguém
destituísse ou lutasse abertamente para ocupar seu lugar. Aos
poucos cada morador vai se desinteressando de ter este fulano
como liderança e passa a recorrer mais a outra pessoa. Com o
413
tempo, haverá o fortalecimento do poder e prestígio desta
outra pessoa.
As lideranças comunitárias são pessoas de destaque
dentro das comunidades dispostas a solucionar problemas de
toda natureza. Não são apenas os problemas de ordem coletiva,
como o asfalto ou a pavimentação da rua, mas também problemas
individuais dos moradores. Nem sempre a liderança comunitária
é uma pessoa com mais recursos, mas alguém que se propõe a
buscar solução para problemas. O poder destas pessoas vem
diretamente do número de moradores que reconhecem seus
esforços para realizar determinadas tarefas.
Fato muito comum ocorre nas áreas de construção
habitacional popular. Os moradores ocupam essas casas em
decorrência da sua ligação a uma associação comunitária. Sob
orientação de um líder, são cadastradas pessoas com carência
de moradia. Ao se deslocarem para a região, nem sempre a
liderança está entre as contempladas com moradia. Nesse caso,
sua comunidade fica desprotegida. Longe fisicamente dos seus
liderados, abre-se um vácuo de poder e rapidamente um dos
membros se destaca como candidato a liderança comunitária.
No Brasil, os partidos conservadores obtêm sua base de
sustentação eleitoral não nas camadas da sociedade mais
elevadas, mas nos estratos de renda mais baixos e nas camadas
com menor escolaridade. Representar este segmento da sociedade
significa a prática constante do clientelismo generalizado.
O elo entre esses políticos conservadores e seu
eleitorado passa constantemente pela assistência concentrada
414
em equipamentos de serviços. As lideranças comunitárias
agregam em torno da sua associação uma pequena quantidade de
pessoas com as quais mantêm laços de proximidade e de
interesse concentrados na expectativa da habitação popular.
São essas lideranças que sustentam a capilaridade da votação
dispersa de vários candidatos, principalmente os oriundos do
aparelho institucional do Estado.
A proliferação de associações comunitárias pelos
bairros de Fortaleza é facilmente constatada pelas próprias
lideranças comunitárias mais antigas, e também pelo número de
cadastros na Secretaria de Ação Social do governo estadual.
De acordo com os militantes neste setor, este fato já
vinha se processando há algum tempo, mas recentemente o que
era uma tendência se materializou numa prática recorrente.
Segundo afirma uma líder, da noite para o dia surge em cada
esquina de uma área habitacional de mutirão nova associação. A
dinâmica de criação é normalmente simples. A liderança não tem
como manter por muito tempo sua autoridade e isto gera muita
insatisfação por parte dos associados. Esta insatisfação
decorre da não contemplação com benefícios trazidos pela
liderança. Como deve haver critérios mínimos para a
distribuição daquilo que se conseguiu, muitos acabam ficando
de fora. Os de fora são os primeiros a gritar, reclamar sobre
a qualidade da sua liderança. Abre-se um campo fértil para que
novos líderes possam questionar a autoridade constituída. Não
há, pois, liderança e autoridade sustentada sem a troca
constante e o aporte de benefícios para sua comunidade.
415
Essa situação de tensão e questionamento da autoridade
da sua liderança é mais acentuada em áreas de conjunto
habitacional, em virtude da natureza da sua ocupação. Como
foram transferidos de outras áreas da cidade para um lugar
definido de moradia, muitos já têm ligações com outras
pessoas. Reunir as pessoas em torno de qualquer festividade
promovida pela liderança é uma maneira de demonstração de
poder da liderança. Algumas vezes ela faz isto com outra
parceira de liderança, mas esta não é a prática comum.
A liderança comunitária aqui caracterizada representa-
se como um elo intermediário entre as necessidades da
comunidade e o setor público. Ela é o primeiro elo entre os
anseios, necessidades e expectativas da população pobre e os
órgãos responsáveis pelo atendimento destas carências.
Reconhecem um sistema de direitos da população, mas ao mesmo
tempo estas pessoas “não têm aquele conhecimento”. Por isto,
por sentir-se responsáveis pelo destino destas pessoas, estas
lideranças se encarregam de lutar em defesa dos seus
interesses. Em muitos casos trata-se de um impulso de
solidariedade voltado ao atendimento da carência do outro,
dentro das suas limitações.
A liderança comunitária tem envolvimento
individualizado ou coletivo com seus liderados, pois ora pode
estar em busca da solução de um problema específico de alguém,
ora de algo que servirá a muitos na comunidade.
A expressão comunidade referida em entrevistas das
lideranças deve ser lida como uma rede de contatos entre pessoas
intermediadas por outra pessoa: o líder. A posição ocupada por
416
este dentro da sua rede depende da aceitação, concordância,
consideração por parte das outras pessoas. É algo bastante
informal, não se constituindo numa estrutura fixada em
regulamentos escritos que possa definir as atribuições dos
demais membros da rede. O que se espera do líder é que
trabalhe com vistas à melhoria das pessoas da comunidade. Em
troca, receberá o reconhecimento ou a consideração de ser o
chefe local.
Como não existe um estatuto fixando a relação entre os
membros da comunidade e sua liderança, esta fica sempre na
dependência da troca constante, do atendimento dos benefícios
a ser trazidos para seus liderados. A condição de liderança
comunitária é totalmente dependente da aceitação e
consentimento dos outros, os seguidores da sua liderança. Como
é uma posição não fixada em termos de um estatuto regendo as
atribuições dos membros participantes da rede social de
solidariedade, está sempre sujeito a ter sua autoridade
contestada. O modo de alimentação da sua condição é a troca
constante, em forma de benefício para os membros da sua rede
de apoio. Caso não se empenhe neste propósito e outra
liderança o faça, sua autoridade estará seriamente
comprometida perante seus liderados.
Na situação de forte competição entre as lideranças,
sem condições de um acordo sobre o modo como deveriam se
comportar ante sua rede social de assistência, os ocupantes da
posição de liderança têm a sensação de serem chantageados. Nem
todos suportam a pressão para trazer benefícios. Acordos
temporários entre as lideranças podem ocorrer, pois isto
417
alivia a tensão e diminui o descontentamento generalizado.
Tudo vai depender da existência ou não de potenciais
lideranças que podem aproveitar o vácuo de poder e assumir
essa condição. A relação mais freqüente entre esses moradores
é a necessidade de transferir a solução das suas dificuldades
para outra pessoa. Sentem-se incapazes para enfrentar suas
dificuldades e por isto recorrem com freqüência ao auxílio de
terceiros.
A noção de comunidade remete a algum compartilhamento
de caracteres que identifica seus membros como pertencentes ao
mesmo agrupamento. Embora o território seja uma condição
necessária, não é suficiente para definir o pertencimento
comunitário porque hoje é possível se falar de comunidades que
não compartilham de nenhum território, entretanto sabidamente
se identificam como um grupo social definido.
Os laços mantidos pelos moradores com sua liderança
comunitária em grande parte se sustentam no compartilhar
territorial ou na proximidade de vizinhança de moradia,
porquanto a vizinhança permite a troca constante de afetos,
sentimentos e interesses decisivos no momento de resolver a
quem será destinado determinado benefício conseguido pela
liderança comunitária. Os mais próximos afetivamente serão
sempre os primeiros contemplados, a despeito de no discurso o
líder sempre se referir a critérios racionais de carência como
aqueles que definem a escolha dos que receberam os benefícios.
Na prática não ocorre bem assim.
A densidade na relação das lideranças comunitárias com
os políticos se baseava na existência de pouca alternativa,
418
pois praticamente cada político detinha o monopólio de certa
área geográfica da cidade. Além disso, a ligação estreita
mantida com o político se expressava também com as demais
pessoas sob seu comando, pois era uma troca mais intensa.
Gradativamente, o processo de diferenciação, aumento da
competição pelos serviços das lideranças vai minando essa
relação densa, sendo cada vez mais pontual e específica, a
ponto de algumas lideranças se relacionarem com os candidatos
exclusivamente durante o tempo da eleição e nada mais. Servem
unicamente como intermediários e isto já é suficiente.
Todavia, essa não é a situação desejada por essas lideranças.
Elas pretendem exatamente o contrário. Todas se queixam do
fato de o político não mais manter sua liderança por tempo
indeterminado, fazendo apelo apenas durante as campanhas.
Reclamam de falta de atenção e desvalorização. Muitas explicam
que isto ocorre porque as lideranças comunitárias foram
infiéis aos seus candidatos, ou recebiam dinheiro para
trabalhar para determinado candidato, mas acabavam fechando
acordo com outros também. Tanto os políticos que buscam o
apoio e auxílio das lideranças quanto as lideranças sabem que
o jogo de confiança é mínimo. É uma relação de aposta segundo
a qual aquele que foi contratado trabalhará unicamente para
ele. Não há como ter certeza disto.
A condição de liderança comunitária não é um papel que
se adquire participando de um jogo competitivo, orientado por
regras precisas; é uma posição que vai com o passar do tempo
obtendo reconhecimento por parte de outros. Nesse jogo de
reconhecimento entram não somente os próprios associados que
419
passam a reconhecer determinada pessoa como sua liderança, mas
também outras lideranças atuantes na mesma área. É um processo
lento e gradual de aceitação por parte das outras lideranças
que vão ampliando seu espaço de atuação e legitimidade.
A liderança comunitária controla apenas parcialmente
uma quantidade de votos de eleitores que mantêm com ela
filiação de interesse. No entanto, não é capaz de assegurar
com certeza se estes votos serão mesmo destinados ao candidato
por ela apoiado. Há uma grande margem de incerteza nesta
transferência de voto, pois todas as lideranças afirmam a
impossibilidade de controle sobre o voto dos seus associados.
Apenas podem indicar o candidato, deixando ao eleitor a
liberdade de decidir.
Um candidato que atua baseado no controle de lideranças
comunitárias sabe que deve deter sobre seu domínio um número
razoável delas para poder garantir a eleição. Mesmo assim,
está sempre inseguro, pois mesmo que a liderança verbalmente
afirme uma quantidade expressiva de votos, a rigor não há como
saber se terá o prometido. Numa família é cada vez mais
freqüente os filhos escolarizados caminharem politicamente
independentes dos pais. Apesar da idéia de que divididos não
valem nada, os filhos já não se rendem ao desejo dos pais. Se
não há controle familiar do voto, há menos ainda do restante
dos agrupamentos do qual a pessoa participa.
Essas pequenas estruturas de filiação individuais de
pessoas em torno de lideranças são as células mais importantes
mobilizadas em épocas de eleições. São elas que asseguram aos
candidatos uma “eleição tranqüila”. As associações voltadas
420
para interesses não políticos são transformadas inteiramente
em máquinas eleitorais. O maior ou menor controle deste
“sistema de lideranças comunitárias” é decisivo para uma
eleição de vereador. Ressaltar a autonomia relativa deste
sistema implica assegurar condições de sobrevivência em
decorrência do calendário eleitoral que atualiza a cada dois
anos estas microestruturas de associações comunitárias.
O aspecto mais contrastante entre o padrão de liderança
comunitária atualmente existente e as antigas lideranças é
relativo à manutenção da sua posição. Ao se deteriorar os
laços de lealdade, fidelidade e reconhecimento “pelo que já
foi feito”, resta o trabalho constante de troca incessante de
favores diversos. Em alguns casos, ainda persiste o padrão do
vereador tradicional que atende pessoalmente o eleitor e
escuta seu pedido. Entretanto, o mais comum é a distinção
muito precisa de lugar de trabalho e lugar de residência do
vereador. Há mesmo um caso de um vereador que proíbe
expressamente qualquer uma das suas lideranças lhe encaminhar
eleitor diretamente para sua residência. A troca é mais
intensa entre os moradores e as lideranças comunitárias e
menos entre estas e os vereadores.
Quem são os membros de uma associação comunitária?
As pessoas desta associação são aquelas oriundas do
mutirão, juntamente com o líder e outras retardatárias.
Ocorre, então, uma Sociedade de Habitação quando se constroem
as casas e as pessoas continuam sob sua liderança por algum
tempo. São membros da sua comunidade. Deste modo é possível
encontrar um líder de determinado bairro com uma comunidade em
421
outro bairro, formada pelas pessoas, mutirantes, que vieram
por causa do seu projeto de habitação. Os mutirantes de uma
área formam naturalmente uma comunidade reunida sob a proteção
deste líder comunitário que os trouxe. Este fala abertamente
da minha comunidade, como se as pessoas que lá estão
mantivessem com ele um vínculo de gratidão. Entretanto, o
presidente de uma associação não pode dar assistência à sua
comunidade se morar em outra área. Isto vai gerando
insatisfação com seu líder, e vai fazendo com que ele passe a
ser base de apoio de outra liderança que está atuando na área.
Assim como as instituições religiosas disputam fiéis para
congregar na sua igreja, o mesmo parece ocorrer em relação às
lideranças comunitárias que procuram aliciar moradores
filiados a outra liderança.
Os moradores de habitação de mutirão já vieram para a
área vinculados a uma Sociedade de Habitação, que lhes
proporcionou uma casa. Estes mutirantes são naturalmente
vinculados ao líder. Depois, porém, chegam os novos moradores
da área que não vieram no mutirão, mas compraram a chave de
outros mutirantes. Essa clientela dos novos moradores é uma
reserva fácil para os líderes que estão formando sua
associação.
O risco de todos os líderes de mutirão é o surgimento
de uma nova liderança no lugar onde serão construídas as casas
para sua comunidade. E isto acontece precisamente porque a
liderança não se muda com seus associados, deixando terreno
fértil para as novas lideranças. O descontentamento dos
mutirantes sempre ocorrerá porque as casas são entregues sem
422
nenhuma melhoria coletiva. Caso o líder não se empenhe em
providenciar luz, água, calçamento, o mutirão pode ficar sem
estes benefícios. O mais freqüente é a liderança que não
acompanhou a comunidade se afastar, entregando a comunidade à
própria sorte. Este vácuo de liderança é o campo fértil para a
atuação das novas lideranças que procuram seduzir os novos
mutirantes com trabalho e empenho.
Inicialmente, a comunidade de moradores mutirantes
passa a exigir outros tipos de benefício a serem buscados pelo
líder. Cria-se uma estreita relação de dependência entre o
líder e seus liderados e, estando numa área com vários
líderes, a competição se instala. Há uma oferta variada de
liderança disposta a tê-lo como associado. A comunidade de
cada liderança é demarcada pelo cadastro que tem e a
identificação com a área onde atua. Aparentemente não há
invasão de área de controle de cada liderança.
A associação é formada por um grupo de cinqüenta
pessoas inscritas para um programa de moradia. Este total é o
máximo que uma associação pode possuir para um projeto de
moradia. Os outros são independentes e não têm número fixado,
“quantos vierem a associação abraça”. A associação não ligada
diretamente ao projeto de moradia reúne as pessoas em torno de
outros interesses, como ações com os jovens, ações relativas à
segurança pública. A associação promove algumas atividades com
jovens, como palestra e recreação, e também com os idosos. Um
exemplo dessas atividades foi um passeio, por iniciativa da
Regional, para os idosos conhecerem os principais pontos
turísticos da cidade. Essa atividade é dirigida aos associados
423
da sua comunidade. A associação não presta nenhum tipo de
serviço nem dispõe de qualquer estrutura para oferecer
autonomamente uma atividade na comunidade. Isto fica na
dependência dos projetos criados em cada órgão do governo.
Áurea, líder comunitária de Vila Velha, cita o exemplo de
palestras e oficinas realizadas na comunidade, promovidas pela
associação, mas dadas pelos órgãos do governo.
A função do líder comunitário é descobrir onde existem
as oportunidades e trazê-las para a comunidade. Segundo Áurea,
as pessoas da comunidade não sabem nem procuram saber onde tem
vacina, onde se faz planejamento familiar, nada disto. Desse
modo, compete ao líder comunitário tomar estas iniciativas. A
função do líder em relação aos membros da comunidade é
paternalista. Estes são vistos de forma negativa, pois não
buscam individualmente seus interesses, deixando ao líder esta
tarefa. Aparentemente este trabalho é reconhecido pelos
moradores como se fosse a tarefa, a obrigação mesmo do líder.
Não importa se ele não é pago para isto. Ou melhor, para os
moradores, os líderes se beneficiam com seu trabalho. Logo, os
encargos a eles atribuídos pela população são mais do que
merecido. Ao não procurarem saber como realizar seus desejos,
as pessoas acabam transferindo para os líderes esta tarefa de
ser sempre o ponto de referência do atendimento de qualquer
necessidade.
Para demarcar sua relação com o restante da população,
o líder comunitário age da seguinte forma: as pessoas precisam
das coisas, mas não sabem ou mesmo não querem saber como
conseguir. Fica ao encargo do líder, que tem mais
424
conhecimento, obter o benefício necessário. Como o líder
participa de várias reuniões, acaba sabendo da existência de
projetos desenvolvidos pelos diversos órgãos públicos. A líder
comunitária Áurea afirma que participou recentemente da
conferência de medicamentos promovida pela regional. “Pra
gente é uma riqueza de conhecimento, vai conhecendo e vai
trazendo para comunidade, pois eles não sabem, não têm
conhecimento.” A fonte de poder das lideranças é não somente o
conhecimento, a informação da existência de programas e
projetos desenvolvidos pelos órgãos públicos, pois elas servem
como elo intermediário entre os órgãos e os moradores.
Quando eu trago esse conhecimento, esse projeto, eu não tenho aquela pessoa fechada, porque eu moro numa comunidade que outras pessoas construíram, eu vou restringir aos que moram aqui, segurar, não, eu espalho. Para quem der, venha (Entrevista com a líder Áurea, da Vila Velha, 2003).
A disputa entre as lideranças comunitárias ocorre por
causa das lideranças que se beneficiam diretamente com um
projeto de casa e acompanham seus mutirantes, fixando-se na
área também como morador. Mas há o exemplo de mutirantes
trazidos por outra liderança que não veio morar na área porque
não necessitava de casa. Neste caso, o normal é alguém da
comunidade dos mutirantes assumir a direção da comunidade como
liderança. Como eles dizem, como o cabeça. A disputa não
acontece, portanto, na própria área, mas apenas no meio das
lideranças que ficam sabendo que uma liderada agora formou sua
própria associação, mesmo quando fazia parte de outra
associação.
425
A associação não tem nada de pertencimento coletivo, de
união de moradores onde todos participam e contribuem
diretamente, com seu esforço individual, para a conquista de
um benefício. A associação é uma firma, uma agência
encarregada de mediar os benefícios para determinada
comunidade. Cada associação é uma firma individual comandada
por uma liderança que tem sobre si o encargo de trazer os
benefícios necessários à comunidade que lhe é sujeita. Esses
associados não são mobilizados no sentido de qualquer ação
para a conquista de benefício. A liderança procura arcar com
todos os custos dos benefícios coletivos e privados a serem
providos para a comunidade.
A lógica desta associação comunitária é que os membros
recebam os benefícios solicitados, mas sem nenhum custo para
sua conquista. O papel dos líderes comunitários é justamente
de arcar com a responsabilidade e os encargos de trazer os
benefícios para a comunidade. Goza de condição de liderança os
que forem capazes de causar o mínimo de aborrecimento à sua
comunidade e satisfazê-la sem nenhum tipo de custo.
Entre o líder comunitário e sua comunidade existem
laços de liderança identificados como de subordinação e troca
constante. Caso o líder não trabalhe devidamente pela
comunidade, é imediatamente substituído por outro com mais
empenho e disposição para tomar estas providências.
Pode-se caracterizar o trabalho comunitário como de uma
pessoa que dispõe de acessos e conhecimento dos direitos e se
encarrega de trazer para os outros, sua comunidade, aquilo que
julga ser o direito deles. O trabalho do líder comunitário é
426
essencial para intermediar as urgentes necessidades coletivas
e individuais dos moradores de áreas carentes.
Segundo a visão do líder comunitário, a comunidade da
qual ele representa os interesses delega-lhe, de certa forma,
o papel de trabalhar, de ir buscar benefícios para eles. De
algum modo, essa posição de líder comunitário tem retribuição
ou contrapartida dos liderados. Se o recurso ao acesso aos
órgãos é que decide a alocação dos benefícios, a intermediação
de uma outra pessoa, no caso, um político com quem mantém
vínculos, assegura o atendimento dos pedidos dos seus
constituintes.
Em depoimento uma liderança comunitária afirma que o
normal no comportamento de muitas lideranças comunitárias está
sendo não mais trabalhar pela sua comunidade, mas criar
obstáculos para outros também não fazerem nada. As comunidades
ficam sem assistência de nenhum líder. Na opinião desta
liderança, estes líderes querem apenas deter o título de
lideranças comunitárias para na época da política poder
negociar com os candidatos benefícios pessoais. Segundo
afirma, existe uma descaracterização das lideranças com
vinculação com políticos. O que se verifica atualmente é um
rodízio muito grande de lideranças apoiando numa eleição um
candidato e numa outra, outro candidato. Não há mais lealdade
ao político. Conforme esta liderança ressalta, mesmo quando o
político ajuda a liderança, ainda assim ele corre o risco de
não ter o apoio dela.
Ela confirma uma hipótese deste trabalho sobre o
sistema político municipal em vigor em Fortaleza, que tem no
427
sistema de lideranças comunitárias um ator importante, mas sem
nenhum controle rígido por parte dos políticos. A fluidez como
os líderes apóiam um candidato e outro em eleições diferentes
denota o grau de independência em relação aos políticos. Se
ela caracteriza o sistema de lideranças com relativa
autonomia, ao mesmo tempo se refere a este fato como algo
negativo ou indesejável. Acredita que o ideal seria mesmo
existir maior lealdade ao político, tendo um conjunto de
lideranças vínculos específicos com políticos determinados.
A expressão mais usada pelas lideranças em relação ao
apoio recebido dos políticos é ajuda. Assim, em relação ao
apoio que dá à sua comunidade, é usada a mesma expressão:
ajudar as pessoas que necessitam, que estão em dificuldades.
Ainda segundo afirma esta liderança, ela já ouviu falar de um
político que ajudou uma liderança num programa de casa. Ela
diz que tem um pedido de casa no governo estadual e outro no
governo municipal. Portanto, é extremamente comum uma
liderança buscar os projetos onde eles existem, independente
de ser do Estado ou município.
Prejudicadas por partidários, por políticos capazes de
interferir na liberação de casa, as lideranças comunitárias
devem ter vínculos explícitos e reconhecidos com algum
político? Ou a vinculação e identificação com políticos
atrapalha o trabalho comunitário?
Como afirma Áurea Brito, de Vila Velha:
A ligação de uma liderança com um político não desvaloriza aliderança, mas a liderança é que desvaloriza o político. Seuma liderança diz que é uma liderança de tal político e esteestá de fato ajudando ela em suas necessidades, então eu
428
vejo um respeito da líder comunitária ao político. Hoje opolítico não respeita a líder comunitária porque aslideranças não respeitam eles também.
A forma como ocorre atualmente a relação entre o
político e as lideranças comunitárias é uma ausência completa
de compromisso com estas. Elas são simplesmente contratadas, o
trabalho e sua liderança numa comunidade são alugadas
temporariamente na época da política em prol daquele
candidato. Passando o tempo da política, não há nenhum tipo de
vínculo com o político para quem ela trabalhou. Há um contrato
de trabalho, um aluguel temporário da condição de liderança
para se dispor a agir em função do interesse do político, mas
não se está envolvendo nenhuma expectativa de laços de futura
ajuda, caso seja eleito.
Em cada eleição, o sistema de lideranças é acionado
para a defesa dos interesses de candidatos. Esse tipo de
relação acarreta crítica de algumas lideranças, pois não gera
compromisso por parte do político. Segundo Áurea Brito, era
para ter um compromisso tanto a líder com aquele políticoquanto aquele político com a líder. Porque não ia existirele chegar aqui e catar voto para ele. Se ele tivesse umadeterminada associação, que a liderança fizesse aqueletrabalho. Eu vejo que os votos seriam exclusivamente dele,quando ele viesse, pois ele ajudou aquela comunidade. Tavaali precisando dele. Porque aí acaba tanto ela se sujandocomo ele também.
Em seguida ela menciona um fato ocorrido na eleição
passada. Um grupo de lideranças tomou a decisão de trabalhar
para um político sem que ele mesmo soubesse, decidiram apoiar
determinado candidato. Isto foi feito, segundo ela, para ver
se o sistema que existe hoje do político vir e comprar, alugar
429
o trabalho da liderança comunitária, é algo que ocorre por
causa das lideranças ou eles também têm culpa nisto.
Segundo ela afirma, “eles trabalharam muito para o
político, e as outras lideranças disseram que a gente era
besta! Quando terminou a eleição, ele não veio nem aqui. Nem
sabe que nós existimos”.
Áurea Brito diz que trabalharam voluntariamente para o
candidato para ver se era um círculo vicioso e atribui a
compra de lideranças não somente às próprias lideranças, mas
ao fato dos políticos mesmos fazerem isto.
Nós trabalhamos de graça para o político, o político ganhoue aí nem voltou para agradecer e nem deu foi nada, nãosabemos nem onde mora. Ninguém sabe é de nada. Mas a gentefez que era para ver se era só porque ele não confiava naliderança, porque não tem compromisso. É porque ele não temcompromisso mesmo hoje com a líder comunitária nem com acomunidade. Ele não tem compromisso com ninguém.
A liderança comunitária é pião de eleição. Em cada
eleição os políticos contratam um número delas para trabalhar
para eles. Terminadas as eleições não há nenhum tipo de
compromisso deles com as lideranças, pois o trabalho foi todo
feito na forma de contrato de trabalho temporário. As
lideranças comunitárias trabalham na época da política pelo
dinheiro.
Na opinião da líder comunitária Áurea, quando se
trabalha para um político não é apenas pelo dinheiro. Na
verdade, o dinheiro é pouco, serve somente para ajuda de
custo. Há o compromisso de que quando ele for eleito fará
alguma coisa pela comunidade. Ainda segundo ela todos
430
acreditam que isto vai ocorrer. Não há, portanto, uma relação
puramente mercantil no trabalho comunitário do líder na época
da política. Acredita-se que haverá trabalho de melhoria
posteriormente.
5.7 Nova Estrutura de Lideranças Comunitárias
Geisa Mattos (2004), em pesquisa realizada sobre as
eleições legislativas de 2000 em Fortaleza, acompanhando a
vida política num bairro periférico, constatou a presença de
mudanças muito significativas nas práticas políticas. Ela
acredita que a ação do poder público estadual e municipal
concorrendo ou agindo para atender aos interesses da população
da periferia teria provocado a ocorrência de um fenômeno não
intencional. Os eleitores desta região tornaram-se
independentes dos políticos e líderes locais. Já não dependem
mais de um único fornecedor de suas demandas individuais e
coletivas, pois há uma concorrência muito grande pelo voto.
Esta maior assistência do poder público nas comunidades torna
indispensável os indivíduos se filiarem a uma rede social de
proteção comandada localmente por uma liderança, a qual, por
sua vez, está ligada a um vereador que tem trabalho na área.
No passado recente, havia a prestação de serviços por parte do
poder público, mas este era controlado por funcionários
indicados pelas lideranças políticas com atuação na área. A
posição de funcionário diretamente dependente de uma indicação
política impedia qualquer tipo de atuação independente deste
funcionário. Com a nomeação não mais por critérios políticos,
este funcionário torna-se mais independente. Isto não
431
significa que ele não possa mais servir a uma liderança
política, mas há uma diferença: sua independência. Ele pode ou
não trabalhar para o candidato. Numa outra eleição, pode
perfeitamente trabalhar para outro. A rede na qual estava
preso o dirigente de uma escola o impedia de qualquer
independência. Quando existe disponibilidade maior de ofertas
de serviços por parte de concorrentes, a submissão do
indivíduo a uma única rede social de proteção se reduz.
Todavia, há profunda diferença entre este indivíduo que recebe
favor de uma rede de proteção ligada a um vereador e um outro
que vai pedir ao vereador um auxílio. Este que pede algo ao
político está automaticamente entrando em negociação sobre uma
ação futura a ser realizada em benefício de quem está lhe
concedendo o benefício.
Nenhum candidato ou político profissional é capaz de
manter uma base eleitoral fixa. Uma base eleitoral é uma rede
social ampla na qual, de alguma forma, seus membros se
beneficiam da posição de destaque ocupada por seu líder. Mas a
maior penetração do Estado em serviços públicos para a
população impede a esta rede continuar agindo. No passado, os
recursos públicos chegavam à comunidade sempre intermediados
por uma liderança local. Atualmente, a maior presença do poder
público agindo, conforme a lógica da impessoalidade, impede
serem estes serviços monopolizados por uma liderança local,
podendo retirar benefícios políticos desta ação.
Se não há mais uma rede ampla de sustentação
clientelista, não estão completamente ausentes práticas de
assistência à população local. Se não se pode assegurar a
432
manutenção de uma vasta rede de clientelas, pode-se, no
período eleitoral, contar com o apoio de vasto sistema de
pequenas redes. Estas pequenas redes não são integradas num
único esquema nem exigem os mesmos benefícios. A manutenção
das pequenas redes é uma espécie de terceirização do
clientelismo. Com estas pequenas estruturas de assistência,
estes pequenos líderes locais conseguem manter sob seu
“controle” um pequeno número de pessoas que pode acompanhá-lo
na sua decisão política. A diferença está na natureza desta
liderança e na quantidade de pessoas que consegue ter sob seu
controle eleitoral. No entanto, o tipo de benefício nunca é de
natureza material, e sim um tipo de favor que não custa muito
e tem em troca a gratidão de quem o recebe.
No antigo sistema clientelista, o próprio político
ocupava-se de uma vasta rede de assistência a seu eleitorado.
Mas atualmente a manutenção de uma rede social em forma de
base eleitoral não é segura. Por isso, é preferível contratar
o serviço destas lideranças no período eleitoral. Estes
pequenos líderes são os responsáveis pela manutenção da base
de sustentação da sua liderança.
Em depoimento, um vereador comunitário de bairro se
referiu ao que ele chama de candidatos de “quatro meses”, isto
é, os que surgem em seu bairro unicamente em época de campanha
com promessas e depois desaparecem com ou sem mandato.
Segundo este vereador, a distinção mais importante está
no reconhecimento da comunidade do trabalho de apoio às
diversas atividades. Este trabalho contínuo é variado, pois
inclui a manutenção de escolas em consórcio com a prefeitura,
433
creches, auxílio a programas de lazer para idosos, além de
equipes de futebol... Estas são algumas das suas atividades
desenvolvidas na comunidade. São todas de natureza de
prestação de serviços. Este mesmo vereador não enfatizou
nenhum tipo de envolvimento com trabalho de saneamento básico
para as ruas, trabalho em favelas, auxílio para retirar
documentos e regularizar situação. A natureza do seu trabalho
concentra-se na prestação de serviços em torno de escolas e
creches, mas igualmente na manutenção de apoio aos grupos de
lazer. Posso supor que parte desta atividade é desenvolvida
com apoio logístico da própria prefeitura. Sua ação como
vereador não é uma atividade relacionada com a reivindicação
de direitos. Na condição de líder comunitário tratava-se de
buscar a reivindicação de direitos para os moradores da sua
comunidade, mas na condição de vereador, este papel não cabe
mais a ele. Tendo acesso ao poder executivo é capaz de fazer
com que as reivindicações possam ser atendidas, sem a
necessidade de intermediação, com base nas exigências legais.
O fato manifesto na última eleição para vereador em
Fortaleza é que a liderança identificada com uma rede social
tradicional com votação concentrada em torno da sua área de
moradia e baseada na troca de favores teve um declínio. A meu
ver, este declínio já vinha se manifestando desde a eleição de
1996, mas a de 2000 revelou a mudança deste padrão de
liderança atuando nas comunidades periféricas da cidade. Este
é um fato com significativas conseqüências políticas para o
funcionamento do poder público municipal. Desaparece um agente
tradicional que sempre se serviu do mecanismo de clientelismo
434
para a permanência no poder, mas não desaparece o mecanismo,
pois este representa uma realidade mais profunda que remete a
um estado de abandono social. O modo clientelista de atuar por
parte dos vereadores não desapareceu, mas houve uma renovação
no tipo de liderança que se serve deste mecanismo. Embora o
vereador institucional sirva-se do mecanismo de clientelismo,
não pode ser identificado como um vereador tradicional que tem
atendimento no bairro e está sempre presente na comunidade.
Sua ação é mais dispersa e com o uso de uma rede maior de
assessores espalhados pela cidade, assegurando uma liderança
difusa. Ao agir desta forma, não mantém mais como o seu colega
tradicional uma base eleitoral restrita ao lugar de
residência, não se submete imediatamente ao eleitorado, nem
depende dele. Goza de certa liberdade ante este porque mesmo
sendo clientelista retira sua base de apoio principalmente nas
alianças com o poder executivo.
A grande diferença entre esta nova liderança e o
vereador tradicional é sua total submissão ao poder executivo,
enquanto o vereador tradicional mantinha certa distância e
independência da fonte do poder executivo porque tinha uma
aliança mais forte com sua comunidade e com uma rede social de
influência espalhada por vários lugares da máquina pública.
A imaginação popular sempre supõe que as coisas ocorrem
na sociedade por meio do comando de uma vasta rede de pessoas,
coordenadas para produzir determinado resultado. Entretanto, a
noção de comunidade como a expressão é empregada por político
refere-se a um conjunto de pessoas com características comuns.
O que permite pôr as pessoas dentro de um mesmo agrupamento
435
social é justamente o fato de todas elas demonstrarem algum
tipo de carência. Os membros de uma comunidade são todos os
que precisam de um favor, de uma ajuda qualquer. Ou seja, são
indivíduos desprovidos de recursos suficientes para dispor de
alguns bens ou serviços e recorrem a pessoas que sabem ter
estes recursos. A comunidade, conjunto destas pessoas que
procuram o político, não se identifica como tal, isto é, seus
membros não tomam jamais consciência de formarem um
agrupamento social com necessidades semelhantes. O ponto da
sua unidade é dado pelo político e não por eles mesmos. A
noção de comunidade é um pertencimento de identificação
externa usada pelo político de modo que possa identificar quem
são aqueles aos quais auxilia. Embora a comunidade seja um
grupo latente, não possui nenhum ponto de unidade entre seus
membros. Eles são identificados por um critério externo de
agrupamento. Neste sentido, unidade comunitária, sem a figura
central de um líder político capaz de servir de referencial
para poder este agrupamento se ver como pertencendo a uma
unidade social. A liderança fortalece este pertencimento
difuso, mas não incentiva nenhum tipo de organização ou de
autonomia política. Ao contrário, numa comunidade a figura
central continua sendo aquele que dá unidade aos elementos
dispersos, ponto de confluência de necessidades, com
possibilidades e recursos para atender às demandas coletivas e
individuais.
Uma comunidade de interesse é um conjunto de relações
individuais em contatos diretos uns com outros e que podem
obter algum tipo de benefício deste relacionamento. Existe um
436
interesse mútuo na manutenção dos contatos de relacionamentos.
Estes, porém, não se fazem por causa do interesse. De alguma
forma o interesse subjacente ao relacionamento deve ser
secundário para que a rede de relacionamento continue agindo.
Para o político clientelista, a noção de comunidade
remete a um conjunto de pessoas com características
semelhantes de carentes e necessitados. São pessoas
dependentes de ajuda do poder público ou privado. A posição na
qual o político se situa é precisamente na intermediação do
atendimento destas necessidades. Sua ação, sua prática
política é justificada em relação à comunidade que necessita
de algo e que ele, pelo fato de dispor de acessos e contatos,
pode fornecer. A comunidade tem vários sentidos. Mas é
fundamentalmente um agrupamento social de pessoas carentes e
que serve de referência para o tipo de prática política
desenvolvida. O vereador comunitário tem plena consciência de
que os membros da comunidade precisam do seu trabalho, do seu
apoio. No entanto, ao mesmo tempo reconhece que este apoio
somente pode vir caso eles também lhe dêem apoio numa eleição.
Sem a troca de apoio não há como realizar os interesses
mútuos. A troca desigual estabelecida entre ambos possibilita
a manutenção da relação.
O clientelismo tradicional era mantido na base da
liderança fundada na troca de favores entre indivíduos de
posições hierárquicas diferentes. Havia uma dependência entre
os membros da rede clientelista. Um favor prestado hoje seria
pago com um apoio político num momento seguinte. Mas estas
relações não eram de forma alguma explícitas. As pessoas se
437
ajudavam porque se sentiam moralmente no dever, em virtude de
estarem em melhor situação, de atenderem aos mais
necessitados. A relação de troca afetuosa entre bens, serviços
e apoio político era o elemento circulante nas redes de
clientelismo tradicional.
O clientelismo praticado no ambiente urbano diferencia-
se do tradicional porque aqui raramente o líder político
ocupa-se pessoalmente da manutenção da sua rede de apoio
político. Cria-se uma camada intermediária entre o líder
político e os eleitores, formada por lideranças comunitárias
de natureza difusa. A constituição de uma camada intermediária
de lideranças comunitárias que atua diretamente junto aos
eleitores dispersos é a principal característica do
clientelismo urbano. Este líder comunitário não pode ser
confundido com o tradicional cabo eleitoral. A figura do cabo
eleitoral era um simples instrumento de transmissão das ordens
do grande líder político. Ele vivia atrelado e na dependência
exclusiva do seu chefe político. Um prefeito de uma cidade
interiorana era um cabo eleitoral de um deputado federal.
O líder comunitário tem uma característica diferente.
Ele é autônomo e atua não na dependência exclusiva da sua
função política. Ele é líder de uma rede de pessoas que mantêm
entre si alguns laços de afinidades e interesses comuns. São
círculos de interesses e afinidades muito variados. Não se
trata de uma pessoa identificada com um político ou que age
como político. Esta, no tempo da política, pode atualizar suas
ligações afetivas, transformando-as potencialmente em votos
para um candidato, mas não é um trabalhador da política,
438
embora existam alguns que ocupem esta função de forma
exclusiva.
É possível se pensar na emergência, no ambiente urbano,
da articulação de uma forma tradicional de clientelismo, mas
não mais fundada nos mesmos princípios e sim na autonomia das
redes de círculos de afinidades. São estes círculos de
afinidades que se atualizam de modo a agir na defesa de um
candidato no tempo da política. A razão da conversão destes
laços ocorre por causa da forte influência exercida pelo líder
do círculo. Se a construção de uma rede de círculos de
afinidades e sentimentos foi possível em função da decadência
do líder comunitário que agia comandando diretamente as
pessoas da sua relação, mais do que isto ocorreu um aumento do
custo da manutenção de uma organização clientelista no
ambiente urbano. O líder político tradicional tendia a formar
sua comunidade como um agente político unificado, isto é, como
uma organização centralizada. Isto somente seria possível na
base de vastos recursos disponíveis para poder contemplar
inúmeros membros. Ante a competição decorrente da escassez de
recursos o líder tradicional precisou migrar para uma
sustentação não mais direta, mas numa rede dispersa e difusa
de pequenas redes de afinidades que se espalham pela cidade e
são mantidas em torno de pequenas atividades. Estas redes
sociais de afinidades são autônomas e podem, na época da
política, ser contatadas com vistas a servirem a objetivos
políticos.
Somente os partidos são agremiações sociais políticas.
Todas as outras formas de agrupamentos sociais das quais os
439
indivíduos participam são baseadas em outros objetivos. E são
estes objetivos não políticos que formam a solidariedade e
afinidade dos indivíduos entre si.
Homens materialmente desiguais numa ordem legal
igualitária parece ser a fórmula perfeita para a reprodução de
relações clientelistas. Na vida política, todo vínculo pessoal
duradouro e mantido na base de confiança mútua, na troca de
favores e lealdade, é tido como laço clientelista. Alguém se
beneficia desta relação, como se o outro fosse ingênuo. O
problema já tantas vezes assinalado não é a recorrência de
laços e vínculos pessoais e de confiança no universo político,
mas o uso ou o desvirtuamento da ordem pública, a apropriação
privada de recursos públicos para destinação individual. Se
políticos querem usar recursos privados para a conquista e
manutenção de uma posição política, não se pode proibir, mas
não lhes é permitido o uso do dinheiro público.
A ampliação do fenômeno da compra de votos ocorre num
ambiente onde se constituem individualidades sem vínculos de
lealdade com as lideranças locais e não há proibição moral
para esta prática. Vê-se como positivo e indício de sabedoria
alguém “passar a perna num político”. Segundo o adágio, ladrão
que rouba ladrão merece cem anos de perdão. Esta é a ética
orientadora das relações do eleitor com os candidatos. Retire
e peça o máximo que puder e depois pense no que fazer.
A expansão deste tipo de prática política da
comercialização do voto coincide com o enfraquecimento dos
laços de pertencimento tradicional. Gradativamente, os
indivíduos abandonam os seus grupos de referências e círculos
440
de pertencimentos naturais e passam a migrar sem destino.
Diante disto, sentem-se isolados e abandonados, sem nenhuma
ligação forte com agrupamentos ou grupos de pertencimentos,
com uma identidade fragmentada. A venda da sua capacidade de
escolha por meio do voto é apenas uma expressão do Estado de
abandono em que já se encontram.
Embora o voto seja obrigatório, o objeto da escolha não
o é. Desse modo, o eleitor pode negociar o destino da sua
escolha. O importante é que ela não se faça sem algo em troca.
A recompensa para o gesto deve ser de ordem material e não
simbólica. Somente quem já possui condições de vida decente é
capaz de escolher de forma livre e independente, sem pensar em
trocar sua opção política por algo qualquer.
A proliferação da negociação eleitoral do voto ocorre
apenas nas condições em que os vínculos tradicionais de
pertencimento e de círculos de convivência social são
desfeitos. Isolados e sem pertencer a outros agrupamentos
capazes de impor uma ordem de conduta, os indivíduos recuam ao
pertencimento aos seus grupos sociais tradicionais. O grupo de
parentesco parece ser extremamente importante, pois é ele que
assegura para muitos indivíduos sua inclusão em outras esferas
da sociedade.
O clientelismo político é definido não somente por uma
desigualdade econômica e social dos agentes sociais, mas por
vinculações estabelecidas em torno de pertencimentos
comunitários que são atualizadas no sentido político. De
acordo com Mattos (2004), três agentes sociais atuam na rede
441
social clientelista: políticos, intermediários e eleitores
comuns.
Fala-se de transformação do clientelismo, mas em que
sentido esta mudança ocorre? Ao tomar cada agente social
isolado, observando em que sentido está ocorrendo sua
transformação, a prática do político deve ser orientada pelo
desejo do eleitor; enquanto isso a camada intermediária das
lideranças orienta-se igualmente pelos interesses dos
eleitores. A meu ver, uma mudança muito significativa acontece
no agente intermediário que atua diretamente a serviço do
político e pretendendo atender aos interesses do eleitorado.
No passado recente, encontramos em muitos bairros a presença
de lideranças políticas que atuavam controlando diretamente
suas redes de atendimento a uma vasta clientela.
Na minha opinião, para um eleitor independente poder
agir de forma racional, trocando e monetarizando sua relação
política com o voto, deveria ter havido uma grande mudança na
sociabilidade destas comunidades. Ele se sentir de tal modo
livre, independente e desamparado que usaria como último
recurso a venda pura e simples da sua capacidade de escolher.
E para que isto fosse possível, as redes de proteção
social ou de filiação e pertencimento social deveriam ter sido
completamente desfeitas. Na ausência de redes e
relacionamentos sociais estabelecidos em círculos de
pertencimento social, os indivíduos se sentiriam absolutamente
à vontade para disporem da sua capacidade de escolha como bem
quisessem.
442
É isto mesmo que está ocorrendo na atual sociedade de
Fortaleza? Ou, ao contrário, as redes de pertencimento social
continuam agindo e orientando as ações e escolhas individuais.
Mas não são mais as mesmas do passado. Agrupamentos religiosos
que orientam o voto dos seus membros não podem ser vistos como
resquícios clientelistas. Uma parte significativa do
eleitorado escolhe conforme uma orientação determinada pelo
seu grupo de pertencimento afetivo. Não se pode em momento
algum considerar que este voto dado aos candidatos das igrejas
evangélicas seja de natureza clientelista. Ao contrário, estão
inseridos nesta nova lógica de pertencimento de afetividade
presente nas periferias dos grandes centros urbanos.
Uma rede de colaboradores de um político, como nos
referimos, pode ser exemplo deste tipo de relacionamento do
poder público com uma sustentação em rede privada. Indivíduos
que participam desta rede de sustentação política não ocupam a
mesma função e nem têm a mesma importância, mas todos podem em
qualquer momento se servir desta rede para solucionar algum
problema. A solução do problema pode ser a alocação de um bem
ou serviço que passa a ser realizado sem que o membro da rede
tenha de necessariamente pagar diretamente pelo bem ou
serviço. Num sistema de rede de sustentação política de
determinada posição política não se pode imediatamente falar
de corrupção política, pois na verdade parte das trocas e do
favorecimento mútuo verifica-se entre particulares e fora da
esfera do Estado ou da política.
A única retribuição esperada dos membros desta rede de
sustentação política é sua resposta imediata em forma de apoio
443
político eleitoral. Não se pretende que os membros menos
favorecidos de uma rede social contribuam com mais, apenas com
apoio e conquista de mais adeptos para a rede social. A
expectativa de retribuição de uma ação futura é o que sustenta
a teia da rede de troca.
No passado, a modalidade do clientelismo mais usada era
ter acesso aos recursos públicos e disponibilizá-los de forma
pessoal. Neste tipo de relação, patrimonialismo se confundia
com clientelismo, ou melhor, o clientelismo se fazia na base
do patrimonialismo. Este, porém, não é o único modo de
sustentação do clientelismo. Atualmente pode-se mesmo dizer
que a base de acesso aos recursos públicos para o
clientelismo, clientelismo de base patrimonialista, está
desaparecendo. Desaparece o patrimonialismo e contudo não
desaparece o clientelismo porque este se estrutura de outro
modo. Sua razão de ser não era o controle dos bens públicos e
sua alocação de forma personalista, mas a manutenção de uma
posição na base de expectativas futuras. O clientelismo
atualmente estruturado na sociedade brasileira é todo ele de
natureza privada e em base de sustentação ampla, numa rede
social complexa. Como o patrimonialismo deixou de ser
praticado diretamente por recursos públicos via
patrimonialismo, muitos dizem que ele desapareceu ou está em
declínio. A mudança na ação do Estado e a expansão da rede de
atendimento e serviços públicos impedem se atuar de forma
patrimonialista. Entretanto, haverá sempre muita importância
nas posições de mando do Estado. A rede social clientelista é
sustentada em grande parte por membros privados com auxílio de
444
membros do poder público, embora a alocação de bens seja
fundamentalmente de natureza privada.
A tendência em querer fechar numa única gramática
política todas as relações políticas existentes entre o Estado
e a sociedade brasileira esbarra no obstáculo da complexidade
de relações existentes. Relações sociais do tipo clientelista,
corporativista, insulamento burocrático e universalismo de
procedimento podem conviver em cada governo sem haver exclusão
e a predominância de uma única gramática. Mesmo que no plano
federal possa se demonstrar existir em cada governo a
composição de gramáticas utilizando algumas disponíveis e
deixando outras de lado, não se pode afirmar que este arranjo
gramatical seja o mesmo aplicado em cada unidade da federação.
O clientelismo é um mecanismo de que se servem os
estratos mais baixos da população para ter acesso aos
benefícios públicos. Os políticos controlam este mecanismo
intermediário de acesso e apresentam-se como os únicos
mediadores – intermediários – legítimos entre os interesses
dessa população e os detentores dos recursos públicos. Favores
e benefícios de toda ordem são trocados por promessas de apoio
eleitoral. Os envolvidos no sistema de favorecimento esperam
que os melhor posicionados continuem olhando para eles e
atendendo aos seus pedidos. Os melhor posicionados, sabendo
que dependem do apoio destes beneficiados, agradam e procuram
atendê-los.
Mas a modernização da sociedade mediante
industrialização e urbanização criaria uma estrutura social na
qual a ordem econômica subordinaria as outras esferas da vida
445
humana. A ordem política e social desta sociedade perderia sua
autonomia e passaria a se orientar pela lógica econômica do
mercado. Vida social e vida política seriam regidas por uma
única lógica controladora das determinações sociais.
Este processo social de criação de individualidades
ocorreu em grande parte da Europa e Estados Unidos, mas na
periferia do capitalismo não se deu na mesma dimensão. Nestas
sociedades houve uma resistência maior à penetração da lógica
econômica sobre as outras esferas da sociedade.
Segundo Nunes (1997), a sociedade brasileira estrutura
uma organização social que tende ao entrelaçamento social. É
muito alta a intolerância à divisão social nítida de grupos
baseados em critérios étnicos e culturais. A sociedade
brasileira teria um padrão de pouca tolerância em relação aos
grupos organizados e separados.
A novidade na forma de fazer política está na
estruturação de uma rede de lideranças comunitárias que se
organizam de forma independente e autônoma. Estas lideranças
são dirigentes de associações de várias espécies ou não
controlam nenhum tipo de associação. Parte da ação dos
serviços públicos chega ao cidadão não mais diretamente de um
órgão ou agência pública, mas por intermédio destas
associações pertencentes à sociedade civil.
Diante disto, os políticos profissionais que apelavam
para o clientelismo puro deixam de manter uma base eleitoral
fixa e passam a se servir desta rede de lideranças
comunitárias mobilizadas na época das eleições ao serviço da
446
sua candidatura. Ao contrário do clientelismo clássico, nesta
relação não há obrigação e dívida moral contraída a ser
saldada na época da eleição com o apoio ao candidato. As
lideranças comunitárias são heterogêneas e vivem, de certa
forma, fora do período eleitoral, de pequenos expedientes,
controlando a associação, fazendo convênios com órgãos
públicos. O fundamental é que no período eleitoral disponham
de um tipo de liderança que os faça ter poder de negociação
com líderes políticos dispostos a pagar pelo seu apoio
político.
O vereador institucional ou burocrático é o que mais se
serve desta rede de lideranças comunitárias. A grande
diferença entre estes vereadores e os clientelistas
tradicionais está no comando direto da rede de assistência e
troca clientelistas, pois o vereador institucional apenas
assegura a manutenção de algumas lideranças ao longo de todo o
mandato. Mesmo assim, precisa estar sempre ampliando sua rede
de colaboradores diretos.
A grande novidade da política local é a emergência de
uma estrutura de lideranças comunitárias controladoras de
recursos públicos por meio destas instituições transformadas
no período eleitoral em pessoas que trabalham para candidatos.
Elas não formam uma base eleitoral de um candidato, mas se
dispersam na defesa dos interesses daquele que comprar seu
serviço. O serviço que vendem é seu prestígio na comunidade
que representam. São profissionais que vendem de alguma forma
o seu poder de contato e os laços com pessoas em determinada
área da cidade.
447
Os laços clientelistas clássicos são preservados
mediante uma troca constante de favores que mantém as pessoas
em constante interação com base na obrigação contraída
moralmente e que deve ser retribuída em algum momento. No
vínculo com lideranças comunitárias, o político não está
comprando nada mais do que sua capacidade de influenciar
pessoas. Não há, neste caso, a consolidação de vínculos de
clientelismo no sentido de não poderem abandonar a relação em
que se envolvem. Neste padrão de funcionamento da relação
política, os eleitores não são mais mantidos numa dependência
de bens fornecidos pelo líder político. Os vínculos são
atualizados apenas no período eleitoral.
A dominação coronelista e seu complexo sistema de
intermediação de cabos eleitorais são substituídos por algo
mais adequado ao ambiente urbano. As bases sociais do
coronelismo ruem, mas não o clientelismo. No lugar do
coronelismo e do mandonismo, diretamente comandados por uma
figura identificada como o chefe político local e controlador
dos acessos aos recursos públicos e privados, criou-se um
sistema ainda mais complexo fundado no clientelismo.
Como afirma Linda Gondim (1998, p. 22):
A urbanização e o incremento dos meios de comunicação, com aabertura de estradas e a difusão do rádio de pilha, começama minar as bases sociais do coronelismo. Este passa a darlugar a um sistema político também fundado no clientelismo,mas de caráter mais complexo, seja pela maior dificuldade dese controlar os estratos subordinados por meio de mecanismosde submissão pessoal, seja pela presença mais efetiva doEstado.
448
Ainda sobre a decadência do coronelismo, Gondim (Idem,
ibidem, p. 23) afirma que: “A mercantilizaçao do voto e a
conseqüente ascensão dos cabos eleitorais enfraquecem o poder
dos coronéis, que progressivamente perdem lugar num sistema
político mais complexo, o qual começa a sofrer a influência de
correntes ideológicas”.
No sistema coronelista, o patrão era ao mesmo tempo o
chefe da política local. Sua clientela política não era apenas
um eleitorado disperso, mas moradores e pessoas que dependiam
dos seus favores para continuar vivendo em suas terras. A
dependência destas pessoas em relação ao dono da propriedade
as transformava em subordinados na escolha eleitoral, pois
votavam nos candidatos indicados pelo patrão.
A ruptura ou mudança social e econômica que mina as
bases de sustentação social do sistema coronelista é de
natureza urbana e decorrente, também, dos avanços dos meios de
comunicação. Nas cidades já não se configuram laços de
dependência tão acentuados como no campo. Entretanto, laços de
fidelidade e confiança continuam a existir entre os líderes
políticos e sua clientela eleitoral. O sistema coronelista de
dominação e controle direto do eleitorado foi substituído por
um sistema clientelista mais complexo de base muito mais
fluida. Este novo sistema mais fluido é comandado na cidade
por uma rede de lideranças comunitárias que agem como
intermediários políticos, embora não haja uma dependência
direta dos membros da base eleitoral e os políticos. Os
empregos podem ser alocados precariamente por meio de um
sistema deste tipo, mas este não é capaz de gerar laços de
449
dependência e lealdade tão fortes que impeçam a ruptura e sua
independência.
Suponho que há uma ruptura muito significativa entre a
forma de dominação do clientelismo tradicional, comandado
diretamente e pessoalmente pelo político, e a liderança
política que atuava na área. Estes laços de dependência não
deixam de existir, mas foram certamente enfraquecidos e as
relações não são mais de natureza pessoal e direta. O político
pode servir de intermediário entre as demandas de determinada
comunidade de interesses, mas não precisa ter laços pessoais
com estes eleitores. Cria-se um complexo sistema de relações
no qual o líder político ainda controla recurso e os destina
para suas bases de apoio político. Todavia, os que recebem os
benefícios e os favores muitas vezes nem sequer conhecem o
político nem jamais tiveram contato direto com ele. As
relações são estruturadas na base da intermediação por laços
dos líderes comunitários, que formaram anéis de confiança
entre os membros da comunidade e o chefe político.
Atualmente, a diferença existente é que não se pode
mais identificar com muita precisão as bases eleitorais de um
candidato clientelista. Isto porque criou-se um complexo
sistema de redes de lideranças comunitárias que servem de
intermediários entre os políticos e a população. Não há
fidelidade previamente estabelecida. Ela depende de quanto
esteja sendo ofertado para que este líder comunitário trabalhe
ou preste serviço eleitoral para o candidato.
Este novo tipo de político está fundamentando seu apoio
eleitoral numa base de sustentação ampla em comunidades
450
espalhadas por toda a cidade. Diferencia-se completamente do
político tradicional, que comanda diretamente sua rede de
assistência ao eleitorado e controla apenas uma área de
atuação onde pode prestar assistência, manter a troca de
favores e cultivar laços de confiança com seus amigos,
vizinhos e colaboradores.
Para muitos, o clientelismo foi identificado com atraso
e sociedade não moderna de relações capitalistas e de troca
monetária. Mas, conforme constatamos, o clientelismo continua
existindo mesmo em sociedades que tiveram avanços capitalistas
e na implementação de relações capitalistas. A base do
clientelismo é fundamentalmente a pobreza e a desigual
distribuição de recursos e riquezas. Os possuidores de
recursos podem criar vasto sistema de trocas que não tenha
como retorno imediato bens, mas serviços de apoio eleitoral. A
manutenção de posição de liderança implica necessariamente a
capacidade de distribuir parte daquilo que obtém com a
ocupação da função de liderança política.
Nas palavras de Avelino Filho (1995, apud GONDIM, 1998,
p. 27):
O coronelismo é um compromisso entre o poder público e umaordem privada caracterizada, fundamentalmente, peloexercício do poder pessoal dos “notáveis” locais, permeadopor relações efetivas e, ao mesmo tempo, violentas. Já oclientelismo “moderno” constitui um mecanismo de cooptaçãopolítica baseado na utilização de recursos do patrimôniopúblico para fins privados dos detentores do poder, onde asrelações entre o(s) patrono(s) e sua(s) clientela(s) assumemum caráter acentuadamente mercantil.
O vereador institucional ou burocrata apóia-se
fundamentalmente numa vasta rede social formada por pequenas
451
lideranças comunitárias detentoras de certo prestígio oriundo
do controle de alguma instituição ou aparelho de prestação de
serviços a um número reduzido de pessoas. Tais pessoas
beneficiadas por esta prestação de serviços fazem parte da
microrede social de sustentação desta liderança comunitária.
Nem todos os líderes comunitários comandam diretamente algum
tipo de associação ou instituição de prestação de serviços,
pois há uma outra gama de lideranças comunitárias forjadas na
base de laços informais e que cultivam intenso ativismo na
defesa dos interesses de um número considerável de pessoas.
São estes dois tipos de lideranças que formam a base flutuante
de apoio político deste tipo de vereador que designo por
vereador institucional ou burocrático.
Esta vasta rede de microredes de laços diretos
comandada diretamente pelos líderes comunitários tem uma
posição intermediária entre o eleitor isolado e o político
profissional. Os assessores destes vereadores são lideranças
cooptadas para sua rede mediante recursos públicos. O acesso à
máquina administrativa é extremamente importante no sentido de
poder beneficiar e contemplar as amplas demandas da sua base
eleitoral. Uma diferença muito acentuada entre o vereador
clientelista tradicional e o clientelista patrimonialista é
que este último se serve muito freqüentemente de relações
mercantilistas nas relações políticas. O vereador clientelista
tradicional media sua relação com seu eleitorado de forma
direta, sem usar intermediários e dispondo na maior parte do
tempo de serviços originados da sua rede social privada de
colaboradores ou de acesso aos recursos públicos.
452
O sistema político em vigor na política municipal em
Fortaleza é marcado pela inclusão periódica de uma camada
social de intermediários formada por lideranças comunitárias
heterogêneas que prestam serviços eleitorais para os políticos
profissionais. A novidade não está no uso dos serviços dos
intermediários, mas na relativa autonomia e quase
profissionalização da intermediação política local. Criou-se
ao longo de anos uma camada intermediária de lideranças
comunitárias que em épocas eleitorais se dispõem a prestar
serviços de contato e influenciar o voto daqueles sob seu
controle. Este controle não é mais, como existia com o cabo
eleitoral passado, fundada em laços de confiança e lealdade
política e endividamento moral por algum favor recebido ou
prestado. Os laços entre estes controladores de pequenas redes
sociais não são fundados em qualquer tipo de lealdade, mas em
serviços prestados em favor da comunidade que no momento da
eleição são atualizados.
A meu ver, formou-se um sistema de lideranças
comunitárias intermediando não mais diretamente a ação do
Estado, do governo. Elas estão dispostas a servir àquele
político que melhor pagar pelos seus serviços de intermediação
ou de contatos na sua área de atuação. O que se está comprando
não é mais a lealdade de um intermediário, e sim o poder de
multiplicar os contatos e os laços pessoais ao alcance deste
líder comunitário. Como relação de compra de vínculos, o
esperado pode não acontecer, isto é, o líder comunitário por
ter vendido uma imagem falsa sobre sua capacidade de
influenciar outras pessoas.
453
Atualmente, não se encontra mais uma base eleitoral
definida e com uma identificação precisa. O sistema de
dominação direta e controlada por uma base política não é o
recurso mais usual de manutenção da condição de líder
político, pois o uso de um sistema de lideranças
intermediarias possível de ser mantido por meio de um salário
pago como assessores parlamentares evita a atividade da ação
direta do vereador com sua base eleitoral. O vínculo de
lealdade com o político pode ser forte ou fraca, o mais
importante é que esta vinculação ao vereador impede ou
neutraliza sua capacidade de lançar-se como candidato
independente. O vereador institucional está não apenas
comprando a intermediação com uma comunidade de indivíduos aos
quais de outro modo ele não teria acesso, mas, principalmente,
cooptando esta liderança para sua esfera pessoal. Esta
cooptação assegura-lhe não ter concorrentes fortes na mesma
área na eleição seguinte. Pensando no futuro, o vereador
institucional age de modo a assegurar a manutenção de certas
áreas sob seu controle, mas não por meio da estruturação de
uma máquina local de atendimento clientelista. Em parte isto é
feito por lideranças comunitárias que estão a seu serviço.
O clientelismo assemelha-se a qualquer tipo de relação
de troca entre pessoas com status distintos, as quais cedem bens
ou serviços em troca de apoio político futuro. No entanto, a
expectativa de ser retribuído pelo favor prestado não vem em
função de um outro bem, e sim do simples apoio eleitoral.
Quanto à origem do recurso usado para a prática do
clientelismo, ele pode ser privado, coletivo, de rede de apoio
454
privado ou público. Quando o clientelismo é feito na base do
uso indiscriminado dos recursos públicos, temos o clientelismo
patrimonialita. A bolsa de estudo paga com recursos públicos,
e distribuída por cota para cada vereador aliado do prefeito,
é exemplo de clientelismo patrimonialista.
A origem dos recursos para a prática da clientela é
muito importante porque a fonte de seu financiamento determina
o tipo de inserção na comunidade que representa.
Outra forma de clientelismo é o neopatrimonialismo.
Segundo Gondim (1998, p.28), trata-se de uma
forma de dominação política por um determinado estratosocial cujo poder não deriva de sua posição no sistema depropriedade e de prestígio social, mas do seu controle sobreo aparelho do Estado, que é visto como um patrimônio a serexplorado. Tal controle permite a obtenção de recursos(emprego, verbas, etc.) necessários à cooptação daqueles queconstituem a base de sustentação do regime, estabelecendovínculos de dependência entre os que detêm o poder e aslideranças emergentes.
Neste contexto, perguntamos: Existe uma nova modalidade
de clientelismo urbano atuando na realidade de Fortaleza?
Quais os mecanismos usados por este sistema? Qual a função
neste novo arranjo clientelista do sistema de lideranças
comunitárias controlador de associações comunitárias de várias
naturezas?
É possível demonstrar que existe um novo tipo de
liderança política atuando em nível municipal e não mais
orientado pela política tradicional de formação de base
eleitoral fixa. Ao não ter uma base eleitoral fixa formada
pela clientela de pessoas com as quais mantém relações
455
pessoais constantes fundamentada na confiança, de que modo
assegura sua reprodução política ou a manutenção da sua
posição de liderança política local?
Segundo afirmam alguns analistas, o voto nas periferias
das grandes cidades tornou-se frouxo e sem dono. Este padrão
de comportamento eleitoral permite a compra do voto. A
mercantilização do voto seria expressão da mudança
significativa de relações pessoais existentes nestas
periferias, pois as pessoas já não estariam mais presas a
círculos de proteção clientelistas formados na base do apoio e
mútua ajuda. Os laços clientelistas estudados indicam sempre a
necessidade da manutenção de laços constantes firmados na
confiança e na troca de favores. Para estes, não há direito,
apenas favores. A inexistência de uma regra formal que oriente
certos procedimentos de distribuição de bens e serviços
possibilita ser a autoridade controlada por meio de pedidos de
favor. Se todos dependem de favores, não há espaço para
conflito. Hoje alguém não foi contemplado, mas seguindo a
mesma regra, amanhã poderá sê-lo.
Na compra do voto não há nenhuma relação duradoura de
confiança entre os participantes. Se houvesse, a autonomia
destes indivíduos seria relativamente prejudicada porque o
clientelismo funciona na base de um sistema de assistência e
proteção de uma rede de amigos.
É preciso distinguir o eleitor comum, disperso e sem
nenhuma identidade de pertencimento com grupo social ou rede
social de amigos, e as lideranças comunitárias.
456
Está havendo uma mobilização autônoma dos eleitores?
Portanto, mais liberados para escolher por não estar preso
numa rede de compromissos contraídos na base de favores?
Também distinta é a criação de um sistema de pequenas
redes sociais de auxílio de pessoas tendo o líder comunitário
como centro e controlador desta rede. Mas a função
intermediária já existia no passado – o cabo eleitoral
clássico. A diferença reside na autonomia desta rede de
lideranças intermediárias que sustentadas em diferentes fontes
de recursos podem ter autonomia relativa na manutenção de uma
estrutura assistencialista.
A forte diferenciação de recursos – municipal,
estadual, federal ou de organização social privada – permitiu
a estas pessoas se tornar autônomas. Trabalhar para a
comunidade significa conseguir benefícios públicos e privados
para atender às suas necessidades. Ao dispor de mais recursos,
estas associações ganham sua autonomia política ante seus
fornecedores de benefícios.
A freqüência eleitoral é um fator decisivo para
explicar o modo como foi possível a emergência de estruturas
intermediárias desta natureza agindo em época eleitoral, mas
sem vinculação precisa com políticos profissionais.
Se o eleitor tornou-se dono do seu voto, não estando
mais preso a compromissos assumidos por dívidas contraídas e
pagas em forma de apoio político, isto significa a extensão de
uma rede de assistência pública direta sem a intermediação de
líderes comunitários que controlem estes recursos.
457
Ou seja, para o eleitor poder vender seu voto é
necessário ser dono deste poder e não ter compromisso com
alguma dívida de favor eleitoral. Para isto ocorrer, é preciso
o Estado prestar mais serviços a esta população ou não mais
funcionar o esquema clientelista clássico de atuação
constante.
Esta rede de atendimento de uma clientela fixa está
desaparecendo. Mas ela desaparece porque o custo da sua
manutenção é muito elevado ou porque não demonstra ser mais
eficiente sua manutenção. Diante dos riscos, foi preferível
terceirizar a rede de assistência clientelista. Esta rede não
é mais mantida e controlada por políticos profissionais, e sim
diretamente por pessoas da comunidade de interesses.
Embora o Estado brasileiro tenha expandido seus
serviços aos cidadãos, não o fez mediante ampliação da máquina
estatal pública. Os serviços passaram a ser prestados não
diretamente por agências públicas estatais, mas por entidades
da sociedade civil organizadas. Apensar do financiamento
continuar sendo público, a assistência direta à população é
controlada por entidades não públicas.
5.8 O Jogo de Confiança entre as Lideranças
Rotineiramente encontramos nos discursos das lideranças
comunitárias a idéia de união entre elas para uma puder se
apresentar como candidato. Mas isto não ocorre porque as
lideranças não têm confiança uma nas outras. A falta de
confiança explica por que não existe uma ação unificada e pode
ser justificada pelo fato delas agirem como donas de firmas –
458
as associações – que detêm uma clientela restrita para seus
produtos – benefícios que podem conseguir junto aos órgãos
governamentais e privados. Ao agir numa mesma área restrita,
competem entre si pela confiança desta clientela dos
moradores, que podem simplesmente se desgostar da sua
liderança e ter sempre à sua disposição outras firmas que
ofertam os mesmos benefícios. Não havendo condições de
monopolizar a representação dos interesses destes associados,
fazendo com que somente sua firma possa fornecer os
benefícios, acabam gerando muitos conflitos. A competição
entre as lideranças, cada uma agindo em sua respectiva firma
associada, acaba favorecendo os moradores. Para estes, o
interesse maior é existir muitas firmas associadas, pois
aumenta a competição entre elas pela sua associação, e
conseqüentemente há um número maior de benefícios trazidos
para a comunidade.
Enquanto os moradores têm interesse no maior número de
firmas associações para que disputem entre si sua atenção, os
políticos em campanha também têm interesse nesta diversidade
de firmas associações, pois podem a cada eleição contar com
lideranças diferentes, não mantendo laços fixos com nenhum
conjunto de lideranças. Somente as lideranças teriam interesse
em reduzir o número das firmas associações, mas nenhuma delas
tem poder para impor esta redução, que significaria diminuir a
pressão sobre seu trabalho comunitário.
Sobre a confiança existente entre elas, uma líder
comunitária do bairro Vila Velha, Elizete Garcez, afirma:
459
Eu não sei. É porque elas acham que se uma entrar vereador,já com a desconfiança dos políticos lá de fora, acha que seuma daqui for (eleito) vai fazer a mesma coisa que a de lávai. Eu penso que seja assim. Se um entrar vereador não vaifazer as coisas que é pra fazer. Eu penso que seja por contadisto.
Ela cita também o caso de outras lideranças não
acreditarem ser possível a eleição de uma liderança
comunitária. “Elas não acreditam que se ele ganhar possa
trazer para a comunidade o que buscam em outros políticos pra
trazer”.
A função do político é explicitamente de mediar os
interesses das comunidades da área, isto é, trazer benefícios de
que estão necessitando as pessoas daqui. Ele deve servir de
canal para que as coisas cheguem às comunidades.
Atualmente, um dado importante para se pensar a relação
das lideranças comunitárias e o sistema político é a
existência de diversos acessos aos mais variados benefícios
para suas comunidades. Tanto o governo federal quanto o
estadual e o municipal são fontes distintas de acesso capazes
de trazer benefícios para as comunidades. A situação de
pluralidade de fontes de acesso é uma situação que provoca
maior ou menor autonomia da liderança comunitária? Essa
estrutura diversa de poder não gera uma situação de menor
dependência das lideranças aos políticos?
O papel da liderança comunitária é encaminhar aos
órgãos competentes as reivindicações dos moradores das suas
comunidades, ir a estes órgãos e exigir a solução dos
problemas. Outra liderança comunitária, Áurea Brito, insiste
460
nesta função de líder como aquele mais destacado na
comunidade, que toma a frente das coisas, pois embora todos
estejam necessitando, não se movimentam, e muitos não sabem
aonde ir e como fazer.
A vida cotidiana dos moradores de bairros periféricos é
repleta de dificuldades, pequenos e grandes problemas, dramas
individuais ou coletivos. Muitos destes problemas chegam às
lideranças locais seja por sua iniciativa ou porque os
moradores procuram ajuda, ao se sentirem incapazes de
solucioná-los sozinhos. Ocorre, então, constantemente, a troca
de apoio. Para esses moradores, a política é o momento de
saldar dívidas contraídas com as lideranças comunitárias. É
preciso dar prova de lealdade, aceitando a indicação dos
candidatos, permitindo se afixar na porta da casa o cartaz
deles, comprometendo-se a convencer outros membros da família
a apoiá-los também. Em troca dos favores e da ajuda concedida,
não assumem o compromisso de sufragar o nome de determinado
candidato. Para muitos, esse é um gesto demasiadamente
simples, indiscutível.
461
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No dia 25 de outubro de 2003, o jornal Diário do Nordeste
estampou em suas páginas o anúncio de determinado partido
político convocando cidadãos para se filiarem e se lançarem
candidatos ao pleito municipal. Curiosamente, o anúncio
ressalta os aspectos negativos do vereador. Aqueles que tenham
esta concepção de vereador não poderiam requerer a filiação.
Diz a nota:
Lembre-se de que NÃO É representante do povo o VEREADOR que se torna: Intermediador de interesses individuais; Despachante de bairro; Receptor de queixas individuais; O dono da Câmara Municipal; Um provocador de conflitos; Um todo poderoso fora ou dentro de sua área; Alguém que conseguiu chegar ao poder sozinho; Cúmplice da criação e elevação de impostos e taxas; Esperto, em todas as eleições só faz promessas; Assistencialista, impedindo o desenvolvimento da cidadania.
A nota denuncia aquilo que expressa. Deve ser lida como
sendo precisamente o que é. Ou seja, retiremos a expressão NÃO
É, e veremos que o mandato de vereador é exercido precisamente
assim. De modo geral, ser vereador é justamente ser tudo isto
que eles dizem não se deve ser, embora nenhum vereador
preencha todas estas prerrogativas e alguns sejam
especializados em certas práticas.
A imagem do representante político municipal nem sempre
teve este aspecto tão negativo. Se lançarmos um olhar
histórico veremos o governo municipal no Brasil, uma
transposição institucional semelhante à já existente em
Portugal. Ao longo de muitos séculos, a Câmara Municipal era a
única autoridade pública nas cidades, cuidava principalmente
da manutenção da ordem pública e da administração dos bens
462
coletivos. Os encarregados imediatos dessa tarefa eram
vereadores eleitos diretamente, os quais seriam incumbidos de
aplicar o Código de Posturas do município. Por ser uma
instituição recente, reunia várias funções num único órgão
municipal.
Vivendo época importante de autoridade plena, a Câmara
Municipal sofre duro golpe com a independência nacional. Como
conseqüência imediata, o regime imperial brasileiro obrigou-se
à criação do governo administrativo em cada província,
deixando seu aspecto político para as respectivas assembléias
legislativas. Isto implicou a redução e total limitação do
poder das Câmaras Municipais que passaram a conviver com uma
autoridade imediatamente superior, centrada na Assembléia
Legislativa. As decisões das Câmaras foram submetidas à
autoridade do Presidente da Província.
Se o Império foi o calvário para o governo municipal, a
República não lhe modificou a situação de desprestígio e a
subordinação até mesmo se agravou, pois a federação reacende
desejos de autonomia das localidades. Novamente o País viverá
longos anos de acomodação da autoridade central ante as
demandas locais. Nas unidades provinciais transformadas em
Estados, a Constituição de 1889 assegurava a regra formal da
autonomia municipal, à qual o governo estadual deveria
obedecer naquilo que fosse do seu peculiar interesse local.
Expresso de maneira vaga, o princípio da autonomia municipal
foi sempre desrespeitado. No Estado do Ceará, a Lei de
Organização dos Municípios enfrentou sérios obstáculos dos
governos locais que desejavam manter sua autoridade sobre
463
finanças e administração local. A disputa entre o governo
municipal e a autoridade do Presidente do Estado encontrava
eco na Assembléia Legislativa estadual, tendo sucessivamente
impedido a aplicação da Lei n. 33, que determinava a
reorganização do território cearense em municípios. Essa lei
dava direito de autoridade municipal apenas aos capacitados de
cumprir exigências elementares tais como número mínimo de
população, rendas e administração própria. As divergências
entre os interesses do governo estadual e os dos governos
municipais se expressam por meio de leis de criação da
intendência municipal.
Ao longo da Primeira República, o governo municipal
terá sobre seu controle a realização das eleições. Esse fato é
importante e explica a tensão constante entre a autoridade
estadual e a municipal porque se reservou à autoridade
municipal o direito de organizar as eleições gerais. O governo
municipal sofre, portanto, ao longo de muitos séculos um
esvaziamento político na sua autoridade, mas, ao mesmo tempo,
vai ganhando, com a implantação do regime eleitoral, cada vez
mais autoridade na organização das eleições. Esse aspecto
paradoxal do governo municipal perdura por muito tempo, até a
instituição da Justiça Eleitoral na década de 1930.
A Revolução de 1930 submete o governo municipal a um
regime mais drástico de redução de autoridade com a nomeação
do chefe do executivo pelo interventor estadual e a formação
do Conselho Municipal, cujos membros não seriam mais eleitos.
Somente depois de 1946, inicia-se o regime democrático
no governo municipal. A Constituição deste ano é tida como a
464
mais municipalista de todas, pois mantém o princípio de
autonomia do governo municipal, assegurando, acima de tudo,
condições efetivas para se exercer a autonomia pela
discriminação de renda entre as três esferas de governo. Mais
do que assegurar autonomia financeira, já prevista na
Constituição de 1934, estabelecem-se as condições para a
existência da vida democrática nos municípios com a
diferenciação entre a função legislativa e a executiva. Ao
contrário de tudo ocorrido até então, estas duas funções estão
agora diferenciadas e com papéis explicitamente definidos. A
história do atual governo municipal começa exatamente neste
período.
Na cidade de Fortaleza, ao se tecer a trajetória
histórica do poder legislativo e a natureza da sua
representação, é forçoso se constatar que se tratou de um
poder sempre sem muita autonomia e refletindo o Estado da
política clientelista, predominante nesta época. Além disso, o
fechamento do sistema político ao longo do regime militar fez
com que esta representação fosse cada vez menos expressiva da
diversidade social da cidade, chegando ao limite de na década
de 1970 haver o fechamento parcial do sistema local, pois a
cada eleição eram somente os já integrados que tinham acesso à
representação política. Isto se transforma com a
redemocratização e as mudanças políticas ocorridas na política
estadual e local.
A década de 1980, tida como perdida do ponto de vista
econômico, deve ser sempre lembrada politicamente, pois é um
período extremamente importante para a organização da
465
sociedade brasileira. Não somente pela reorganização do Estado
democrático, mas porque se verificam frustrações coletivas em
relação às mudanças esperadas. Em certo sentido, as mudanças
na ordem geral do país se refletem nas mudanças da ordem
municipal. Em Fortaleza – acredito ter demonstrado a
ocorrência deste fato – a novidade será o declínio progressivo
das forças conservadoras que retiravam sua legitimidade
explorando laços clientelistas. Como o resultado desta
mudança, surge um ator político na escala municipal com outro
perfil e padrão de atuação político. O vereador tradicional
com bases eleitorais em bairros vai gradativamente
desaparecendo e em seu lugar não aumenta o número de votos
ideológicos. Entretanto surge a figura do vereador
institucional, de origem burocrática. Esse é o novo personagem
da política municipal da década de 1990 em Fortaleza. Esse
novo ator político é produto das novas configurações do poder
municipal em Fortaleza e suas novas lideranças políticas. A
política na nova ordem municipal.
A natureza da força que modifica a sociedade tem
conseqüências sobre o aspecto da mudança implementada.
Transformações introduzidas de fora para dentro da sociedade,
como por exemplo, vindas diretamente do poder estadual, por
meio de políticas públicas ou leis federais, alteram a
correlação de forças entre as elites locais. As políticas
públicas alteram as condições de vida da população. Todavia,
essas mudanças raramente são acompanhadas de transformações na
estrutura econômica. Assim, cria-se uma situação nova com
466
novas contradições originadas destas mudanças na ordem social
e estagnação na ordem econômica.
A transformação por meio de agentes externos, sem apoio
nas forças sociais locais, provoca apenas mudança nas elites
dominantes e pouca transformação efetiva para toda a
sociedade. O desequilíbrio criado com a intervenção externa
pode mesmo gerar problemas ainda mais complexos.
Em Fortaleza, a política municipal era centrada numa
organização tradicional, segundo a qual os líderes políticos
estavam concentrados nos bairros. Em cada bairro se organizava
uma força política arregimentada por este líder. Líder
político porque controlava o acesso aos benefícios oriundos do
poder municipal, o vereador era a principal figura deste
sistema de alianças que mantinha a dominação política na
cidade.
Com o passar dos anos e ante os efeitos das
transformações institucionais, políticas, econômicas e sociais
verificadas na cidade, a base social e organizacional do poder
político dos vereadores se altera. As antigas lideranças que
tinham base territorial definida, controlando diretamente sua
estrutura de trocas e recompensas de aliados leais, vão se
desfazendo lentamente sob os efeitos da força desta nova
situação criada institucionalmente.
Fruto das mudanças sociais, os territórios dos bairros
deixam de ser o lugar privilegiado de controle, enquanto as
redes de clientela são pouco a pouco desmontadas. O resultado
destas pequenas mudanças é percebido já na década de 1980 com
467
a introdução de novo padrão de organização comunitária,
caracterizado pela organização, de forma independente, de
pequenos núcleos comunitários em estruturas de pequenas redes
de controle. A cada liderança caberá um pequeno poder de
influência restrito a uma rede de relações com laços múltiplos
e variados, mantidos na base da troca constante.
O sistema de lideranças comunitárias existente,
produzido pela organização de políticas públicas,
principalmente de habitação popular, provoca o surgimento e ao
mesmo tempo a decadência de uma figura clássica da
representação do vereador. O comportamento do vereador de
comunidade com controle direto sobre seus liderados deixa de
existir, passando a se constituir um padrão de dominação e
controle, forjado na base do uso profissional, ação racional
instrumental em relação aos fins, na qual será importante o
uso dos laços sociais conquistados e mantidos fora do tempo de
movimentação política.
Quando as bases da dominação tradicional são rompidas,
a política municipal não se modifica no sentido de uma
representação política mais ideológica ou fundamentada em
valores sociais. Ao contrário, a base dos laços clientelistas
permanece sob uma nova forma, agora mais difícil de ser
desmontada porque alimentada a cada dois anos pela atualização
da política eleitoral. A simples ocorrência de eleições gerais
para renovação dos poderes a cada dois anos permite às pessoas
orientarem suas expectativas para ganhos imediatos e futuros
de acordo com o evento da próxima eleição.
468
Até então, os laços de controle da vontade consciente
do eleitorado tradicional não se faziam pontualmente, mas
constantemente. A indicação de um candidato para ser votado
era apenas um momento dos laços de confiança estabelecidos
entre estas pessoas. Não se intensificava nem havia maior
gasto na época de eleição porque a permanência e o auxílio
constante e direto à comunidade faziam se dispersar a atenção
ao longo dos anos. O contato não era apenas na época de
eleição, embora este se intensificasse, pois havia laços de
confiança a assegurar que determinada pessoa que recebeu um
benefício, uma ajuda não votaria em outro candidato. A
política era vivida como um instante de “ajuste de débitos”.
Em certo sentido, muitas das redes de ajuda sistemática
foram transferidas para os líderes comunitários, mesmo sem os
recursos de uma posição política privilegiada na ordem
municipal. Entretanto, os líderes contam com o reconhecimento
das pessoas da comunidade mediante trabalho, contatos e
possíveis benefícios.
Na cidade de Fortaleza, a base da organização política
tinha na força da liderança de cada vereador seu apoio mais
importante. No passado, a organização de cada base política
era imprescindível para assegurar a manutenção e reprodução da
sua condição de líder político em seu respectivo território.
Não havia controle direto sobre outros indivíduos; a situação
de desamparo social era o motor de aproximação e subjugação
destas pessoas ao líder político. Nunca se tratava de ajuda de
grande vulto, mas diante das condições de privação reinante
era sempre melhor do que nada. Além disso, não havia uma troca
469
imediata, e sim o compartilhamento de um sentimento de
gratidão pelo ato praticado. As ajudas vinham não diretamente
da riqueza acumulada pelo líder, pois este se servia muito
mais da estrutura distributiva paternalista do governo.
Na estrutura de controle do poder municipal, o vereador
desempenhava um papel extremamente relevante, pois controlava
diretamente os votos deste eleitorado mais necessitado. Havia
neste tempo menos elo de intermediação entre o líder político
e os moradores do bairro. A posição do vereador era mesmo de
agente intermediário e distribuidor de recursos e benefícios
diretamente para a comunidade que representava.
Após o período de redemocratização política, eventos
sociais significativos ocorreram na sociedade. O surgimento de
movimentos sociais de bairro criou uma fonte de poder nas
comunidades. Esta passou a concorrer com o líder político na
competência de proporcionar benefícios para o povo. Os métodos
são completamente diferentes, pois os políticos continuam
agindo com base nos laços afetivos e sentimentais, adotando
atos paternalistas em benefícios individualizados. Todavia,
enquanto não ocorria a competição eleitoral ou a disputa - não
pela posição de agente paternalista, mas como intermediário de
benefícios coletivos, - o líder político exercia dominação sem
contestação. As associações de moradores são agências
competitivas, em cada bairro onde atuam, do trabalho realizado
pelo vereador. Porém com a criação do Programa do Leite do
governo Sarney ocorrem grandes mudanças. Essa política do
governo federal de distribuição de tíquete de leite incentivou
a criação de uma vasta rede de associações comunitárias sem
470
nenhum tipo de luta anterior em defesa dos interesses das
comunidades. As novas associações nascem com perfil de
agências intermediárias de ações públicas.
São estas novas associações comunitárias inicialmente
ligadas ao Programa do Leite que serão incentivadas mais uma
vez em outro grande programa do governo federal, Programa de
Moradia Mutirão Habitacional, o qual, no Ceará, terá forte
repercussão. Trata-se da política de habitação popular em
regime de mutirão. Mais uma vez a organização comunitária se
mobiliza inteira em torno destes benefícios.
São esses fenômenos, não diretamente relacionados com a
política, que provocarão a mudança no perfil da representação
dos vereadores: o desaparecimento dos representantes que
mantinham diretamente uma base eleitoral em seu próprio lugar
de residência, deixando de cuidar diretamente do eleitorado,
passando agora a fazer uso do serviço de ligação e
intermediação do líder comunitário com os seus moradores.
Os vereadores comunitários deixam a cena por causa das
mudanças ocorridas na década de 1980, as quais, somente na
década de 1990, começam a desempenhar papel significativo na
vida política municipal. A sociedade fortalezense não é
suficientemente organizada para, na decadência da liderança do
vereador comunitário, ver surgir um padrão de liderança mais
identificado com valores organizacionais de trabalho ou
pertencimento religioso, afetivo, etc. O vereador que
substitui a liderança tradicional é o vereador institucional.
Este, pela sua origem, não tem uma identidade própria, mas
471
assume posições políticas profissionais na defesa da política
municipal.
O surgimento da liderança do vereador institucional
aconteceu em virtude da modificação verificada na década de
1970 que fechou o sistema político local para novas
lideranças. Já não se utilizava o sistema de recrutamento das
lideranças políticas originadas de associações da sociedade
civil. As associações de moradores ou de outra natureza não
desempenhavam o mesmo papel. Sua maior transformação ocorreu
como mecanismo de seleção de novas lideranças. Eram
associações onde se permitia a incorporação de novas
lideranças que experimentavam estreita aproximação com o poder
executivo.
No entanto, já não se utiliza deste mecanismo, porque
uma mudança na sociedade forçou a mudança de mecanismo de
incorporação. As transformações recentes na ordem
administrativa da prefeitura abriram e deram maior acesso às
novas lideranças. A ampliação destes novos acessos ao
executivo colocou em xeque a antiga função de intermediário
entre as demandas da comunidade e a oferta de bens do
executivo. Ao permitir maior acesso, cria-se maior pressão
pelas ofertas. Mas até que ponto o poder executivo é capaz de
resistir à pressão pelas novas demandas!
O movimento de ampliação e fechamento de novos canais
de acesso ao executivo baseia-se em estratégias para diminuir
a pressão de certos segmentos sociais organizados ou
simplesmente de pleitos e demandas de indivíduos bem
472
posicionados. Por receio de perder apoio político, não há como
resistir a estas pressões.
Quais as conseqüências da descentralização política
ocorrida depois de 1988 quando o governo municipal passou a
existir como um dos elos de governo dentro do federalismo
brasileiro? Criou-se uma nova elite política municipal
representada principalmente por médicos, em decorrência da
proliferação da prestação de assistência médica por parte do
governo municipal à população. Enquanto isto, os antigos
vereadores que detinham estruturas de assistencialismo
montadas no bairro não conseguem resistir ao avanço da
competição política. Já não basta a adesão ao antigo sistema
de voto de gratidão; é preciso sair das limitações estreitas
de uma base política homogênea e centrada nos mesmos
princípios. A unicidade do voto é um obstáculo quando se tem
uma arena eleitoral competitiva. Tanto que praticamente todos
os candidatos buscam estruturar uma base eleitoral mais
diversa, apelando para modalidades distintas de inserção em
agrupamentos sociais.
A competição eleitoral torna a manutenção de uma base
eleitoral fixada no bairro custosa e arriscada politicamente
porque não há garantia de retorno eleitoral. Tendo o “sistema
de lideranças comunitárias” disponível para operar como
mediadores entre as expectativas da população, não há por que
manter esta custosa estrutura de assistência no bairro. As
lideranças comunitárias atuam de maneira fragmentada, com
pequenas estruturas não mais de auxílio direto aos mais
473
necessitados, porém carreando obras e benefícios para suas
comunidades.
São estes os herdeiros do voto de gratidão, agora
“negociado politicamente” com o candidato institucional. O
atual quadro de representação política no legislativo
municipal é marcado pela presença de muitos médicos e
vereadores com base eleitoral em pequenos agrupamentos
sociais. Os antigos vereadores de comunidade de bairro estão
em extinção. Resultou deste processo um eleitorado mais
independente, menos sujeito ao voto de gratidão, entretanto
seduzido por benefícios pessoais e imediatos na época das
campanhas eleitorais.
Atualmente tornou-se moda criticar a democracia
representativa. Todas as nossas dificuldades parecem
imaginariamente oriundas desta estrutura política. Quando não
é a democracia objeto de crítica, pois forja cidadãos apáticos
e mobilizados unicamente no período eleitoral, atentamos para
o fim da política. A sociedade brasileira parece entrar numa
trajetória de redução do espaço e importância do debate
político. E isto, para muitos, é visto como negativo e
temerário. A meu ver, porém, as mudanças recentes ocorridas na
década de 1990 são irreversíveis e levam inevitavelmente a uma
diminuição da política ideológica. Ou seja, ao consolidarmos
as instituições do Estado, permitimos que o debate e as
discussões dos nossos graves problemas sejam travados numa
arena mais pragmática, levando em consideração as realidades
existentes e o conjunto de forças constituídas. Em nosso
sistema político, a cada dia, a ética da responsabilidade
474
parece ganhar mais adeptos. Isto faz com que a política,
universo do arbítrio e império da força, vá pouco a pouco
perdendo sua condição hegemônica.
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