AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

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AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA POLÍTICA O PROCESSO DE MUDANÇA DE LIDERANÇAS POLÍTICAS EM FORTALEZA VALMIR LOPES

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AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃOAS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃOPOLÍTICAPOLÍTICA

O PROCESSO DE MUDANÇA DE LIDERANÇAS POLÍTICAS EM FORTALEZA

VALMIR LOPES

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAAS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAO PROCESSO DE MUDANÇA DE LIDERANÇAS POLÍTICAS EM FORTALEZA

VALMIR LOPES

Tese apresentada à Coordenação doPrograma de Pós-Graduação emSociologia, da UniversidadeFederal do Ceará, como requisitoparcial para obtenção do grau deDoutor em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr.Jawdat Abu-El-Haj

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FORTALEZA2005

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VALMIR LOPES

AS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAAS LÓGICAS DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICAO PROCESSO DE MUDANÇA DE LIDERANÇAS POLÍTICAS EM FORTALEZA

Tese apresentada à Coordenação doPrograma de Pós-Graduação emSociologia, da Universidade Federaldo Ceará, como requisito parcialpara obtenção do grau de Doutor emSociologia.

Aprovada em ____/ ____/ _____

BANCA EXAMINADORA

________________________Prof. Dr. Jawdat Abu-El-Haj - (Orientador)

Universidade Federal do Ceará – UFC

________________________________Profa. Dra. Maria Auxiliadora LemenheUniversidade Federal do Ceará – UFC

__________________________________________Prof. Dr. Francisco Horácio da Silva Frota

Universidade Estadual do Ceará – UECE

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_________________________________Prof. Dr. Josênio Camelo Parente

Universidade Estadual do Ceará – UECE

_________________________________ Profa. Dra. Marilde Loiola de Menezes Universidade de Brasília – UnB

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AGRADECIMENTOS

No Livro das mil e uma noites as narrativas são contadas para sefugir da morte. Em cada história contada havia a expectativade se adiar a morte. A teoria do eterno retorno,brilhantemente descrita por Borges, relembra a fábula decírculos que não se fecham jamais, pois a cada início, setrata na verdade de uma continuidade; o fim é outro nome parao começo. Pensando nisso, lembro-me da minha trajetóriaintelectual intimamente relacionada ao Departamento deCiências Sociais da UFC. Sempre me imaginei, num certomomento, concluindo um ciclo de formação. Ao longo desteperíodo foram tantas as pessoas que passaram e imprimirammarcas fortes nesta trajetória que não poderia lembrar detodas. De algum modo, porém, todas elas foram, em seu tempo,importantes.

Da minha formação inicial guardo a forte lembrança deduas pessoas importantes: Mirtes Amorim e Roberto Oliveira.Dois professores que marcaram minha trajetória, mesmo semsaber. Dos meus primeiros professores, gostaria de deixarregistrado o impacto significativo de Rejane Accioly sobre meumodo de encarar a teoria social; de Helene Velay, que nopassado soube como ninguém me incentivar; de André Haguette,por quem nutro especial apreço e respeito intelectual.

Agradeço ao colegiado do Departamento de Ciências Sociaisque me concedeu tempo suficiente para poder me dedicarunicamente à elaboração deste trabalho. E aos órgãoscolegiados da UFC, pela minha liberação.

Sou grato, ainda, aos colegas do Departamento. Emparticular menciono Auxiliadora Lemenhe, figura emblemática daminha geração no Departamento. A ela, meu reconhecimento eagradecimento por tudo. Desde a época em que era estudante numprojeto de pesquisa sobre a elite cearense. Obrigado, também,a Estevão Arcanjo, a quem devo muito das observaçõespertinentes e importantes para o aperfeiçoamento destetrabalho.

Ao colega e amigo Domingos Sávio, que mesmo distante,contribuiu nesta fase final. À amiga Geralda de Almeida, queme proporcionou momentos de total reclusão em seu abrigo deFortaleza.

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À amiga Geisa Mattos, com quem maturei algumas idéiasusadas em nossas teses. À Andréa Borges, por momentos dedebate intelectual importante.

Às lideranças comunitárias, participantes deste trabalho,em cujo intrincado universo contei com o apoio dos líderes dobairro Vila Velha, Elizete Garcez, Cláudio Silva e ÁureaBrito. Com eles compartilhei momentos de suas organizaçõessociais.

Aos ex-vereadores, especialmente José Edmar Barros deOliveira, Ivone Melo, Maria José de Oliveira e Herval Sampaio.Obrigado pelas informações sobre os políticos e a forma defazer política em Fortaleza, em diversas épocas.

Ao meu orientador Jawdat Abu-El-Aj, pelos debates ereflexões. Uma parte considerável deste trabalho se deve à suainsistência.

Ao Fred Lustosa, pelas discussões sobre a estruturação datese. E à Isabel Lustosa, pelas sugestões ao primeirocapítulo.

Ao Seu Chico e Dona Salvelina, meus pais, pela crença nofilho rebelde, e pelas preocupações com meu envolvimentopolítico. Agora estou numa posição mais confortável,refletindo sobre a arte de fazer política.

A Clélia Lustosa, minha esposa, você merece não somenteagradecimentos, mas desculpas por tanto tempo de afetoroubado. Espero não tê-la decepcionado em todo nosso percursojuntos.

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Todas as coisas que há neste mundoTêm uma história (F. Pessoa)

Para Clélia

Para Otonio Lopesem memória

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABCR – Associação Beneficente de ReabilitaçãoARENA – Aliança Renovadora NacionalCAGECE – Companhia de Água e Esgoto do Ceará COHAB – Companhia de Habitação CIC – Centro Industrial do CearáCM – Câmara MunicipalCMF – Câmara Municipal de FortalezaCONEFOR – Companhia de Eletricidade de FortalezaDCE – Diretório Central dos EstudantesMDB – Movimento Democrático BrasileiroMR8 – Movimento Revolucionário 8 de OutubroPC – Partido ComunistaPCB – Partido Comunista BrasileiroPCdoB – Partido Comunista do BrasilPDC – Partido Democrático Cristão PDDU – Plano Diretor de Desenvolvimento UrbanoPDS – Partido Democrático SocialPFL – Partido da Frente LiberalPL – Partido LibertadorPLADIF – Plano de Desenvolvimento Integrado de FortalezaPLANDIRF – Plano de Desenvolvimento da Região Metropolitana deFortalezaPLANDIRF – Plano Diretor de FortalezaPMDB – Partido do Movimento Democrático BrasileiroPMF – Prefeitura Municipal de FortalezaPNL – Programa Nacional do LeitePR – Partido RepublicanoPRC – Partido Revolucionário ComunistaPROAFA – Programa de Assistência aos Favelados de FortalezaPRP – Partido da Representação PopularPSB – Partido Socialista BrasileiroPSD – Partido Social DemocrataPSDB – Partido da Social Democracia BrasileiraPSP – Partido Social Progressista PT – Partido dos TrabalhadoresPTB – Partido Trabalhista BrasileiroPTN – Partido Trabalhista NacionalPTS – Partido Trabalhista SocialSENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem ComercialSERVLUZ – Serviço de Luz e Força de Fortaleza

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SESC – Serviço Social do ComércioSFH – Sistema Financeiro de Habitação SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do NordesteTSE – Tribunal Superior EleitoralUDN – União Democrática NacionalUEE – União Estadual dos EstudantesUFC – Universidade Federal do Ceará

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................................9

1.FORMAÇÃO HISTÓRICA DO GOVERNO MUNICIPAL NO

BRASIL........................................14

1.1 O Governo Local na Organização Territorial

Brasileira.................................................................

..................14

1.2 O Município como Lócus

Político ..................................................................

................................................ 16

1.3 Executivo e Legislativo no Poder

Municipal..................................................................

..................................20

1.4 O Governo Municipal na

Colônia .................................................................

...................................................27

1.5 O Governo Municipal no

Império....................................................................

.................................................30

1.6 Autonomia Política e Capacidade Legislativa – As Posturas

Municipais ........................................................32

1.7 O Governo Municipal na

República..................................................................

................................................35

1.8 A Revolução de

1930.......................................................................

.................................................................37

19

1.9 A Constituição de

1988.......................................................................

..............................................................39

2.EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO LEGISLATIVO DE

FORTALEZA.................................................43

2.1 O Município de

Fortaleza ...............................................................

..................................................................43

2.2 Construção do Sistema Político

Municipal .................................................................

.....................................49

2.3 Os Primeiros

Atores.....................................................................

.....................................................................55

2.4 Fortalecimento dos Vereadores de

Bairro ....................................................................

....................................60

2.5 Eleição de 1958: A Compra de

Votos .....................................................................

.........................................64

2.6 Tempo de Fixar as

Bases .....................................................................

.............................................................72

2.7 O Golpe Militar e o

Bipartidarismo.............................................................

.....................................................80

2.8 Quando as Portas se

Fecham ....................................................................

........................................................88

20

2.9 Tempo dos

Incluídos .................................................................

.......................................................................91

2.10 Disputas e Novas Estratégias em Outros

Tempos ....................................................................

......................96

3.TRANSIÇÃO POLÍTICA E RENOVAÇÃO – A DÉCADA DE 1980 EM

FORTALEZA.............1033.1 Redemocratização e Política

Municipal..................................................................

........................................103

3.2 Fortaleza Rebelde – A Eleição Direta de Maria Luiza

Fontenelle ................................................................

.106

3.3 Fim de uma Era – O Governo das Mudanças no

Ceará......................................................................

............113

3.4 Mudanças na Política

Municipal..................................................................

...................................................127

3.5 Ruptura com o Padrão

Clientelista...............................................................

...................................................133

3.6 Renovação Radical - A Degola de

1988.......................................................................

..................................135

4.MUDANÇA POLÍTICA E PADRÕES DE

REPRESENTAÇÃO....................................................1374.1 Elementos do Novo Cenário

Político...................................................................

...........................................137

21

4.2 Quem são os Candidatos a Vereador em

Fortaleza................................................................

.........................143

4.3 Como se faz um Vereador de

Fortaleza .................................................................

........................................165

4.4 O Vereador como Agente do Poder

Local ...................................................................

..................................176

4.5 Homens de Bairro - O Vereador Comunitário (Tradição e

Carisma).............................................................179

4.6 Conquista e Manutenção de uma Base

Eleitoral ...............................................................

.............................180

4.7 Vida e Morte do Vereador

Comunitário .............................................................

............................................186

4.8 Homens de Partido: o Vereador Ideológico (Ética da

Convicção)...............................................................

..189

4.9 Homens de Governo: o Vereador Institucional (Ética de

Responsabilidade).................................................189

4.10 O que Representa um Vereador

Institucional..............................................................

..................................193

4.11 O Novo Mercado de Votos............................................................................................................................1974.12 Trocas Políticas: Barganha de Bens Públicos...............................................................................................2014.13........................................Vereador faz Obras, Votos e

Prepostos........................................................................................................209

22

5.A NOVA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA MUNICIPAL ..............................................................2145.1 O Fim da Política de Clientela .......................................................................................................................2145.2 Clientelsmo Urbano e "Rede Social" .............................................................................................................2215.3 Chuvas de Leite Bom - O Programa do Governo Sarney...............................................................................2305.4 Casas Feitas com as Mãos – O Programa de Habitação

Popular ...................................................................233

5.6 A Emergência das Novas Lideranças comunitárias........................................................................................2355.7 Nova Estrutura de Lideranças Comunitárias...................................................................................................2505.8 O Jogo de Confiança entre as Lideranças.......................................................................................................266

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................269BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................................277

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INTRODUÇÃO

Minhas primeiras impressões da política passam pela

figura do vereador. No final da década de 1970, ainda sob o

regime militar, não havia eleições diretas para presidente,

governadores e prefeitos das capitais. As eleições municipais

eram “solteiras” e, em Fortaleza, só se votava para eleger os

vereadores. A campanha eleitoral resumia-se aos comícios e à

propaganda no horário gratuito da TV, que consistia na

apresentação da foto do candidato e na leitura do seu

currículo. Votava-se em quem se conhecia. Dessa época, muitos

ainda guardam na memória os nomes de Sandoval Bastos, Mário

Nunes, Eurico Matias, Agostinho Moreira, Maria José de

Oliveira, Gerôncio Bezerra, Gutenberg Braun, Narcílio Andrade.

Eram lideranças de bairro que conheciam a maioria dos seus

eleitores. Cada bairro - ou conjunto de pequenos bairros -

tinha seu vereador, que se apresentava como tal. A Câmara

Municipal era uma espécie de assembléia distrital ou conselho

de representantes de bairros. Assim se fazia a escolha dos

representantes locais.

Foi em meio a essas lembranças remotas que me dei conta

de que só muito recentemente a vida política local, a

representação municipal e o funcionamento dos seus corpos

legislativos voltaram a merecer da Ciência Política observação

atenta e estudos empíricos aprofundados. No caso brasileiro,

isso se deve à crescente democratização da sociedade, que faz

do município o lócus privilegiado da ação política e do

parlamento uma das principais arenas de disputa de interesses

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em conflito, quer seja em São Paulo, quer em Fortaleza ou

Caicó.

Esta tese se constitui numa modesta contribuição nesse

sentido. Ela se propõe a analisar a dinâmica da política

municipal de Fortaleza, identificando a natureza das disputas,

os tipos de liderança e a representação social dela emergente.

Pretendo demonstrar o impacto da redemocratização nos

processos de formulação e implementação de políticas públicas

e, conseqüentemente, na transformação do quadro das elites

políticas municipais, sobretudo a partir da década de 1980.

Vale dizer que a circulação de elites pode ser explicada pelas

mudanças na formação de políticas públicas. Ou seja, a

legitimidade das lideranças muda conforme a lógica de

distribuição de benefícios públicos e sua inserção nesse

processo.

Com efeito, ao longo do período da transição política,

saída do regime autoritário e retorno à democracia, as

mudanças sociais e políticas verificadas na sociedade

brasileira tiveram naturalmente largo impacto sobre a vida

política de Fortaleza. A renovação das elites políticas

brasileiras será impulsionada pela nova ordem municipal

egressa da Constituição de 1988. Essa Carta representa um

marco na história do poder municipal brasileiro, pois, pela

primeira vez, foram dadas as condições institucionais

concretas para poder o princípio da autonomia municipal de

fato se efetivar. Com a descentralização política e

administrativa propiciada pela nova Carta, o governo

municipal, fortalecido, passou a concentrar mais atribuições.

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Ao mesmo tempo, as necessidades urbanas emergentes permitiram

ao poder público uma ação mais centralizadora no âmbito

municipal.

A disputa para o governo municipal em 1988 provocou

importante inflexão eleitoral em Fortaleza - a Câmara

Municipal sofreu extraordinária renovação com a derrota de

políticos que mantinham assento no legislativo municipal por

mais de uma década ininterrupta. Foi uma eleição atípica, pois

implicou a renovação de 70% do legislativo municipal,

proporcionando a ruptura com o quadro político tradicional, e

criou as condições para que a ordem política municipal pudesse

se estabelecer em novo patamar.

A Constituição de 1988, aprovada no final daquele ano,

não teve nenhum efeito imediato sobre a eleição municipal de

novembro de 1988. Em seguida, no entanto, o terá. Em 1989, ao

se iniciarem os novos mandatos municipais, o governo municipal

já se organiza com base na nova legislação que criava óbices

às antigas práticas clientelistas e assistencialistas. A

administração municipal passa a deter recursos e atribuições

para a implementação de programas sociais que vão, em certo

sentido, minar a base de sustentação das lideranças

tradicionais.

Entre outras conseqüências, o fortalecimento do governo

municipal provocará a modificação do perfil das lideranças

políticas do legislativo, possibilitando o surgimento de uma

categoria específica de líder político: o político

institucional. Marcado pela sua origem – quer seja da

burocracia estatal quer da gestão empresarial - ele aparece

26

como a expressão da nova forma de organização do poder

municipal em Fortaleza. Sua eleição se faz dentro de uma

orientação pragmática, com uso de recursos financeiros e da

máquina da administração pública ou privada. Em contraste com

os políticos tradicionais que mantinham redutos eleitorais em

territórios nos bairros, o político institucional não tem

ligação com seu lugar de origem, mas se vincula a uma rede de

lideranças comunitárias e empresariais dispersas por toda a

cidade. No entanto, a relação de confiança entre ele e seu

eleitor é menor do que a do político tradicional. Não tendo

uma base eleitoral, o político institucional conquista seu

eleitorado por meio das lideranças comunitárias e garante o

apoio destas a partir de trocas simples e monetarizadas.

Gradativamente, desaparecem os laços de lealdade e fidelidade

política, marcas dominantes do político tradicional.

O vereador institucional trata de manter sua vinculação

com o sistema de lideranças, porém não mais com agrupamentos

identificados com os bairros. Sua ação é predominante na época

das eleições, enquanto fora dessa época o sistema de

lideranças é ativado apenas por demandas do próprio governo

municipal ou estadual e pela política eleitoral. Sua estreita

vinculação com o poder executivo não é apenas uma questão de

sobrevivência política posterior, mas reflexo da inexistência

de uma base social de sustentação política.

Ao compararmos a prática política efetiva daqueles

vereadores tradicionais com a dos atuais, constataremos o

declínio progressivo dos líderes com origem e vinculação

direta com as comunidades locais. O trabalho político daquelas

27

lideranças era fazer com que o poder executivo encaminhasse

recursos e obras para o seu bairro. Numa atuação tão voltada

para o local, o debate sobre a política da cidade como um todo

acabava sendo relegado a segundo plano. No entanto, o fim da

política de clientela em comunidades de bairro não significa

seu desaparecimento. O que se verifica é o surgimento e a

consolidação de um novo padrão de representação política

municipal que convive ainda com a eleição de alguns dos

antigos líderes de outra época.

Atualmente o voto em Fortaleza encaminha-se para o novo

padrão, embora ainda existam posições ocupadas pelos

vereadores de comunidade de bairros. Mas enquanto no passado

um vereador de base territorial tinha a certeza de que somente

atuando em torno da sua residência asseguraria sua reeleição,

neste momento, a tarefa imediata do vereador eleito por seu

bairro é assegurar a ampliação daquela base eleitoral. A

dificuldade de se reeleger contando com a mesma base

eleitoral, pela qual foi eleito pela primeira vez, é um

problema enfrentado por todos os vereadores. Todavia, este

problema é mais dramático para o vereador com base em

comunidade de bairro. Sua sobrevivência em base eleitoral tão

limitada em virtude das transformações sociais e políticas é

extremamente difícil.

Em contraste, as lideranças políticas institucionais

não operam com a montagem de uma base eleitoral fixa no

bairro; elas apenas se servem do “sistema de lideranças

comunitárias”. Este sistema foi constituído depois da

redemocratização como forma de participação e conexão da

28

sociedade civil com o Estado para a implementação de políticas

públicas. São estas lideranças comunitárias, formando um

sistema disperso pela cidade, que servem de elo entre a

aspiração e o desejo do candidato e o eleitorado.

Ao longo dos anos, o vereador tradicional mantinha

estreito contato com sua comunidade, dispensando-lhe

atendimento e resolvendo pequenos problemas fora do tempo da

política. A base do seu voto era a gratidão por um favor

prestado em qualquer momento. O vereador institucional atua

principalmente na época da eleição mediante o atendimento de

todo tipo de favor. Nesse caso, porém, esse favor é uma troca

explícita de voto. O voto comprado e negociado não ocorre em

retribuição a um favor prestado no passado, mas em decorrência

de algo que se obtém por causa da eleição. Tal padrão de

comportamento eleitoral, apesar de não ser exclusivo para

assegurar a reeleição, é aplicado desde o primeiro mandato.

O desenvolvimento do argumento ora exposto permite

demonstrar que o sistema político municipal de Fortaleza de

fato se modificou depois da Constituição de 1988 e que, no

processo da sua reestruturação, deu-se a emergência de um novo

padrão de representação política. Esse novo ator político

municipal não é aqui julgado de maneira valorativa, mas como

uma correspondência da nova ordem municipal. Ele emerge em

grande parte por causa das transformações políticas e sociais

ocorridas ao longo da década de 1980, como expressão desse

novo modelo institucional. Concomitantemente verifica-se o

desaparecimento gradativo do líder tradicional vinculado ao

seu bairro. A ordem política municipal emergente exige

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representantes políticos no legislativo que obtenham sua

legitimidade eleitoral não mais do controle de pequenas

paróquias eleitorais. O surgimento do sistema de lideranças

comunitárias explica justamente o suporte da ação eleitoral

dos novos representantes.

Antes de apresentar e discutir a realidade atual da

política municipal de Fortaleza, convém inseri-la no contexto

histórico do poder local na organização territorial

brasileira. Assim, os assuntos abordados nesta tese foram

apresentados em forma de capítulos. O primeiro capítulo trata

do governo municipal na Colônia, no Império e nas diversas

fases da República brasileira; detém-se particularmente na

ordem emergente com as constituições.

O capítulo seguinte trata especificamente da vida

política de Fortaleza e, especialmente, do legislativo

municipal, a partir da legislatura iniciada em 1948. Optei por

delimitar o estudo tendo como início a redemocratização de

1945 porque oferece, pelo menos em relação ao município, uma

continuidade histórica que permite estabelecer comparações

pertinentes, o que seria impossível se se tomasse como

referência o município da República Velha.

O terceiro capítulo é uma continuação do anterior, mas

se concentra nas grandes transformações ocorridas na política

de Fortaleza a partir do processo de redemocratização e,

sobretudo, da Constituição de 1988.

No quarto capítulo, é apresentado o principal argumento

dessa tese, e explicada a dinâmica política emergente, os

30

novos processos de legitimação política, os tipos de

liderança, os seus modos de operação e a lógica de barganha e

distribuição de benefícios – e seu eventual retorno na forma

de votos.

O quinto e último capítulo descreve o funcionamento da

nova estrutura de apoio dos chamados vereadores institucionais

– a rede de lideranças comunitárias, sua organização, suas

relações com a máquina pública.

Os fatos relatados e as análises procedidas são

pertinentes unicamente ao universo da política municipal de

Fortaleza. É provável que algumas das descobertas realizadas

sejam encontradas em outras cidades, principalmente capitais.

Entretanto, como esse levantamento não foi feito, nada

autoriza a extensão destas conclusões para outras realidades.

Quando tratamos de uma realidade tão familiar à maioria

das pessoas, não é tarefa fácil convencê-las da existência de

um outro modo de interpretar os dados e os eventos passados. A

sensação de familiaridade com eventos cotidianos já foi

inúmeras vezes ressaltada como forte obstáculo à construção

científica. Os fatos trabalhados em Ciências Sociais são

sempre indícios, isto é, elementos presentes na realidade

exterior, mas só despertados em significado por teorias. Sem

os esquemas teóricos previamente constituídos, orientando e

dando sentidos aos elementos do mundo exterior, o trabalho

parecerá sempre um amontoado de coisas nas quais os sentidos

são derivados do senso comum.

31

Alguns fenômenos têm como característica serem melhor

revelados quando dele falamos; outros são o oposto: quanto

mais falamos deles, mais complexos os tornamos. Alguns fatos

são vividos com simplicidade, mas quando tentamos analisá-los

percebemos uma série intrincada de outros fatos relacionados.

Dotados de simplicidade inicial, a consciência analítica tende

a torná-los complexos. Os fenômenos da vida política cotidiana

de uma grande cidade, da qual participamos como cidadãos,

podem ter esta característica.

Após estes comentários, gostaria de argumentar em favor

do estilo deste trabalho. A primeira impressão do leitor será

de uma repetição muito freqüente. Entretanto, em cada

repetição há algo acrescentado. Para melhor perceber o

trabalho, o leitor deverá levar isto em consideração. Preferi,

pois, arriscar a comprometer o estilo.

32

1. FORMAÇÃO HISTÓRICA DO GOVERNO MUNICIPAL NO BRASIL

1.1 O Governo Local na Organização Territorial Brasileira

O trabalho de pesquisa sobre a nova configuração

política municipal em Fortaleza conduziu-me a um estudo da

evolução histórica deste poder no Brasil. Por vários anos, o

poder municipal mereceu estudos muito variados. Entretanto,

quase todos os estudos são realizados por juristas e enfatizam

apenas aspectos legais deste poder. Aspectos da autonomia

municipal, caracterização das funções do poder municipal são

tratados à exaustão. Como é habitual, esses estudos deixam de

lado a dimensão sociológica. Afinal, não se pode entender as

mudanças vividas pelo regime de governo local brasileiro sem

levar em consideração as determinações sociais e os interesses

das elites locais. São elas as maiores responsáveis pela

transferência de poderes do Estado federal para as

localidades.

Em cada momento de “refundação” constitucional,

percebem-se grandes transformações no aspecto político-

administrativo do governo local. Ao longo, porém, da vigência

das constituições, outras leis editadas e medidas legais

decretadas restringem ou redefinem funções de poder da

municipalidade, enquanto funções públicas são transferidas num

dado momento, ou retiradas em outro. Conforme se constata,

esse movimento de centralização de poder e descentralização

administrativa faz-se sempre de um modo particular, seguindo

33

um padrão. Em todos os movimentos de elaboração constitucional

democrática, o poder municipal ganha força em suas funções

particulares. Todavia, aos poucos, vai perdendo ou redefinindo

conquistas e autonomias adquiridas. A lógica da política e do

poder é crucial para a diminuição dos poderes das

municipalidades. É possível igualmente afirmar que as duas

dimensões imbricadas no governo local - aspecto político-

administrativo - são tratadas de modo diferenciado pelas

constituições. Pode-se afirmar que grande parte das reformas

do Estado, no tocante à administração e, portanto, de

descentralização da ação estatal, quando se faz no sentido de

ampliar a parcela de poder das unidades do governo municipal,

segue uma estrutura de restrições políticas. Ao se delegar

mais poderes administrativos à municipalidade, processa-se,

simultaneamente, um movimento de diminuição da sua autonomia

política. Muito raramente encontra-se um movimento de

descentralização administrativa com forte transferência de

poderes administrativos para o município concomitante à

ampliação da sua autonomia política. Mecanismos de controle

são criados de modo que afete imediatamente a dimensão

política da autonomia do governo local.

A autonomia política do governo local expressa-se pelo

poder de auto-organização interna e eleições dos seus poderes

constituídos pela população local. Este princípio, presente em

todas as constituições republicanas, sofreu tantas mudanças

que atualmente parece esquecido. Mesmo a Constituição de 1946,

considerada a mais municipalista de todas, não assegurava a

34

eleição direta dos prefeitos de todos os municípios. 1 Deixou a

possibilidade de esta função ser ocupada por meio de eleição

indireta ou por nomeação do governador.

A literatura referente à questão municipal até a década

de 1980 tem forte intenção doutrinária afirmava freqüentemente

a posição privilegiada do governo local no sistema político

brasileiro. Lembra ser o município uma entidade do Estado,

gozando, portanto, de atributos de autonomia que não poderiam

ser desrespeitados. Entretanto, quando se analisa mais de

perto e atentamente a história política e administrativa do

município, não se pode chegar à mesma constatação.

Efetivamente, somente a Constituição de 1988 assegura no corpo

do texto federal a presença do município como uma entidade da

federação. Isto não está presente imediatamente nas outras

cartas, embora se faça referência explícita aos municípios. Ao

Estado-membro da federação sempre foi, em grande parte,

atribuído o poder de organização de suas municipalidades. Isto

é importante quanto à atribuição de se criar novos municípios.

Todavia, a organização política e administrativa neste tempo

todo não sofre muita alteração, pois todas as inovações

administrativas foram de incumbência federal.

1 O art.28, que trata da autonomia municipal, diz: “§ 1º - Poderão sernomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos dasCapitais, bem como os dos Municípios onde houver estâncias hidromineraisnaturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União. § 2º - Serão nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios osPrefeitos dos Municípios que a lei federal, mediante parecer do Conselho deSegurança Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcionalimportância para a defesa externa do País” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO DOSESTADOS UNIDOS DO BRASIL – 1946).

35

A história da organização política do governo municipal

é extremamente fragmentada e dispersa. Se há uma legislação de

âmbito federal para as unidades locais durante todo o Império,

o mesmo não ocorrerá na República, que transferirá para os

respectivos Estados-membros o direito de organização de suas

unidades municipais. Conseqüentemente se criará uma

disparidade de legislação difícil de se acompanhar. Cada

unidade federativa estabelece de acordo com leis e decretos

estaduais as mudanças que julga procedentes. A variação de

designação para o cargo de executivo municipal, intendente,

prefeito, chefe do executivo é apenas expressão desta

diversidade de legislação. A uniformidade de legislação sobre

as atribuições municipais somente volta a ocorrer depois de

1930, quando sofre drástica ruptura com o Estado Novo e sua

centralização e volta a ter uma legislação de natureza

estadual, novamente, depois de 1946. De todos os períodos

referidos, o da Primeira República é certamente o mais difícil

de acompanhar, pois há, para cada unidade federativa, uma

história específica da sua organização municipal.

1.2 O Município como Lócus Político

Capistrano de Abreu atribuía a João Francisco Lisboa a

divulgação da tese, que considerava infundada, de que as

câmaras municipais teriam gozado de grande autonomia no Brasil

Colonial. Como vimos, de fato, a organização política das

unidades municipais sempre foi definida por um poder central,

seja da Coroa portuguesa seja do poder Imperial. Neste

sentido, como bem percebeu Victor Nunes Leal, o aspecto mais

importante da autonomia municipal era a eleição dos seus

36

representantes à Câmara Municipal. Era essa dependência do

eleitorado local que ameaçava o poder central da Coroa

portuguesa ou brasileira. Não basta controlar as esferas de

atuação em nível nacional, pois a sobrevivência política se

faz com os votos da localidade.

Não seria incorreto afirmar que a autonomia do

município brasileiro sempre foi mais formal do que real. Dada

a impossibilidade de efetiva autonomia por meio de

independência financeira, os municípios viveram sob a

constante dependência política de outras esferas do Estado. O

que é concedido pela legislação desaparece na prática pela

incapacidade de implementação efetiva desta autonomia. Isto

ocorre de forma mais acentuada em alguns períodos.

Em 1990, um renomado jurista escrevia - referindo-se à

autonomia municipal e ao nosso regime de Cartas Próprias (em

que ao município cabe a elaboração de sua lei orgânica) - que

o atual regime municipal brasileiro “confere um exagerado

poder de auto-organização, para o exercício da qual a maioria

das Municipalidades não está preparada” (MEIRELES, 1993, p.

77).

A Constituição de 1934, por exemplo, definiu uma forma

de distribuição da renda nacional de modo que o município

pudesse, de fato, assegurar sua autonomia com uma dotação

orçamentária mínima, obtida por meio de transferências de

impostos federais ou estaduais. No entanto, leis

complementares foram feitas no sentido de restringir a parcela

de impostos destinada aos municípios.

37

Sem a autonomia financeira, a autonomia política e

administrativa nada representa. Neste sentido, toda a história

municipal brasileira anterior à Constituição de 1946 é apenas

uma pré-história, pois anteriormente, em momento algum, foi

concedida esta autonomia aos municípios. Se 1946 é um marco na

efetiva municipalização da vida política brasileira, em 1934

uma distribuição financeira mais equilibrada entre as esferas

de governo foi estabelecida. Na prática, porém, com o

interregno do Estado Novo, a autonomia financeira dos

municípios somente vai ser implementada a partir de 1946.

A idéia da autonomia municipal no Brasil originou duas

teses opostas. A primeira, defendida principalmente por

juristas do passado, não reconhece o município como unidade

política e sustenta que o sistema político brasileiro reserva

a esse apenas a condição de uma circunscrição territorial da

administração pública. Conforme eles acreditam, pelo fato do

município não deter um poder judiciário, isto tornaria este

ente federativo subordinado ao Estado e à União, portanto, um

elemento apenas da administração. O poder político estaria

reservado aos dois outros níveis de poder do Estado. Segundo

essa visão, a unidade municipal, mesmo tendo território,

contingente populacional considerável e renda própria, possui

somente o direito de se organizar administrativamente naquilo

que for do seu peculiar interesse. Sendo a natureza da unidade

municipal administrativa, seria mesmo incorreto e exagerado,

segundo defensores desta tese, chamar de governo ao poder

municipal.

38

Para os defensores da tese oposta, o regime municipal

brasileiro é dotado de uma particularidade não encontrada em

nenhum outro país, pois aqui o município não é apenas uma

parte da unidade administrativa do Estado; ele guarda uma

parcela do poder político do Estado. Os defensores do

município como entidade política afirmam que não existe uma

hierarquia de leis dentro do regime federativo brasileiro,

isto é, as leis de regulação municipal não são inferiores às

de nível estadual ou federal. O município é uma instância de

governo semelhante aos Estados e à União, não havendo razão

para subordinar sua capacidade política aos demais membros do

Estado. Neste caso, o município é um organismo do Estado e

retira sua autonomia diretamente da Constituição.

Os defensores do município como entidade puramente

administrativa costumam se basear em juristas internacionais

para justificar a presença e o modo como as unidades

municipais são tratadas em outros Estados, quer sejam

unitários ou federados. Entre nós, Levi Carneiro (1922) é um

defensor do município como unidade administrativa sem nenhuma

conotação política localizada. O Estado para este autor

somente existe quando goza da prerrogativa de editar leis. Do

mesmo modo, Castro Nunes (1920), em Do Estado federal e a sua

organização municipal, defende o município como elemento de

governo local no sentido de unidade administrativa localizada

do Estado federal.

No Brasil, a ambigüidade no trato com o governo local

aparece também no modo como a noção de política é vivenciada

nestas sociedades. É corrente a distinção entre ações

39

administrativas e ações políticas. Administrar significa fazer

com que a máquina pública possa responder aos anseios e

expectativas da população local mediante serviços públicos e

benfeitorias. A idéia de política está fundamentalmente

relacionada com a conquista e manutenção do poder. Enquanto a

administração deve agir de forma impessoal e anônima no trato

com o cidadão, a política procura privilegiar e agradar certos

segmentos sociais com vistas ao apoio para a permanência no

poder.

Ao ser tratado como uma unidade administrativa do

Estado federado, o município recebe atribuições de natureza

administrativa para resolver os problemas originados nesta

dimensão do Estado. Os interesses localizados serão

atribuições da administração local, mas não se trata de uma

entidade com capacidade para legislar sobre tudo e qualquer

coisa referente ao seu peculiar interesse. Recebendo delegação

do Estado que lhe é superior, o município tem o dever de

organizar sua administração para atender ao cidadão do modo

mais eficiente.

Desde o tempo colonial as comunidades brasileiras

viveram isoladas e organizadas sem nenhum tipo de contato e

relação entre si. Todos os núcleos de povoamento mantinham

relação direta com a Metrópole. Este era o modo inclusive

cultivado pela Coroa portuguesa para impedir o desenvolvimento

de algum tipo de governo central que estabelecesse aliança

entre os municípios isolados. As municipalidades brasileiras

se desenvolveram contando com forte poder local pela ausência

de um Estado central capaz de organizar e impor a ordem

40

pública. A única presença do Estado nas comunidades era a do

juiz-de-fora, um servidor do Estado português, responsável

pela aplicação da lei.

Atualmente, a autoridade municipal não recebe delegação

de outra entidade política do Estado federado, mas retira sua

atribuição diretamente da Constituição. Desta forma, embora a

fonte de autoridade do governo municipal não esteja dependendo

da autoridade constituída em outros níveis do Estado, todos os

governos retiram diretamente da Constituição a fonte de

legitimidade e competência para agir em seu espaço de atuação.

Não se trata, como pode ser bem entendido, de um poder

delegado e autorizado para funcionar num regime de delegação,

pois toda a autoridade do poder municipal para cuidar dos seus

assuntos é retirada diretamente da Constituição, portanto, é

nela que todos devem se basear para definir as áreas de

atribuição mútua ou de conflito de competências entre as

instâncias de governo.

Segundo se acredita, equivocadamente, existe no Brasil

uma hierarquia de leis. Nesta, a lei federal é mais

importante. Na verdade, trata-se de abrangências distintas dos

níveis de leis que são elaboradas por cada entidade do Estado,

embora a competência e autoridade para formularem novas leis

venham da Constituição. Portanto, não há hierarquia de leis,

mas de abrangências de poder definido anteriormente em cada

nível de organização do Estado.

Nossa particularidade está justamente no tipo de

federalismo que constituímos. Um federalismo cooperativo deve

estar permanentemente agindo de tal modo que as instâncias

41

distintas do Estado não se sobreponham às demais. Desde o

início, o sistema federativo brasileiro reconheceu o município

como uma entidade política membro da Nação.

Ter o governo local como um membro do Estado federado é

uma particularidade do regime federativo brasileiro porque, em

todos os outros Estados nacionais, o município existe apenas

como uma entidade da descentralização administrativa. Mesmo

gozando de certas autonomias para bem desempenhar suas funções

administrativas, estas atribuições não chegam jamais ao ponto

de delegar poderes políticos. Logo, ser um membro da federação

torna o município no Brasil um caso único de tríade

governamental. Depois da Constituição de 1988, somos uma

federação de municípios com Estados subnacionais

intermediando, ainda, algumas atividades entre a União e os

governos locais. As ações atuais do governo federal são mais

orientadas diretamente para os municípios do que para os

Estados.

No regime republicano brasileiro, sempre existiu o

reconhecimento legal do município como uma entidade

politicamente autônoma, embora isto não se efetive. Para

muitos autores, nosso sistema de governo municipal deveria ser

idêntico ao existente em outros países onde o governo local é

uma instituição meramente administrativa do governo superior

estadual ou federal, jamais uma instância de poder político.

O município brasileiro não é apenas uma entidade

administrativa, um desdobramento da administração central

distribuída em departamentos para melhor administrar e levar o

poder público a todos os lugares do território nacional. Mesmo

42

agindo como uma forma administrativa descentralizada, o

município possui autonomia para aplicar sua própria política e

definir suas prioridades locais. Tudo isto, porém, de acordo

com os preceitos constitucionais.

O município tem poder político não somente porque tem

problemas locais resolvidos via instância produtora de leis

locais para regular funções e serviços públicos locais. A

autonomia municipal não se dá apenas pela capacidade de eleger

sua direção política e a formação de um corpo de legisladores

com atribuição legislativa, representando diretamente a

população local. Esta autonomia consiste basicamente no poder

do governo local de eleger os órgãos de governo municipal, na

organização dos serviços públicos locais, na decretação e

arrecadação dos tributos de sua competência e na aplicação de

suas rendas. Isto constitui a autonomia do governo local

naquilo que é do seu peculiar interesse.

O âmbito de competência da legislação municipal, isto

é, sobre o que pode ser objeto de regulação de uma lei

municipal, está definido pela lei federal. Esta atribuição

pode variar desde que o legislador federal entenda que deve

passar para o âmbito municipal a regulamentação de uma série

de atividades. Outras regulamentações, principalmente as

atividades realizadas em todo o território nacional, passam a

ser objeto de legislação unicamente federal. Deste modo, o

âmbito e a competência de legislar sobre qualquer atividade, e

a instância governamental à qual cabe criar legislação para

tal, dependem da natureza e da abrangência da atividade ou do

serviço ofertado.

43

1.3 Executivo e Legislativo no Poder Municipal

Na implantação da República, a diferenciação de funções

políticas no governo local altera-se profundamente. A

diferenciação de poderes neste nível de governo pode ou não

levar ao conflito entre estas funções no desempenho das suas

respectivas atribuições.

A diferenciação de poder na esfera municipal é uma

inovação do Estado republicano, pois ao longo do Império este

poder foi exercido de modo unitário por um Conselho da Câmara

Municipal que designava um, entre seus membros, para ocupar

simultaneamente a função de presidente da Câmara e chefe do

executivo municipal. Com o advento da República estas duas

funções - corpo deliberativo e função executiva ou

administrativa - foram claramente diferenciadas. Dois órgãos

foram criados para cumprir as funções diferenciadas. Surge aí

a função do intendente responsável pelo exercício do poder

executivo.

A criação de uma nova função executiva poderia causar

conflito com a anteriormente existente. Entretanto, neste

caso, inicialmente, esta não ocorre. Não ocorreu porque as

duas instituições não agiam de forma concorrente; elas

procuravam auxílio mútuo. Isto porque a função de intendente,

apesar de explicitamente diferenciada, tinha total

subordinação ao poder das Câmaras. O intendente era eleito de

forma indireta entre os membros da Câmara. Era um encargo que

alguém deveria receber pelo prazo de um ano, podendo ser

reeleito para mais um ano. Para cumprir esta função

administrativa, a princípio não estava previsto nenhum tipo de

44

remuneração, mas logo em seguida foi alterada a lei e

permitido que os municípios facultassem o pagamento de

remuneração ao intendente de acordo com o desempenho das suas

funções. A mudança tão imediata da lei sugere que não havia

quem quisesse assumir as obrigações de chefe da administração

local, sendo necessária a criação de um estímulo para a

ocupação desta nova função.

A subordinação da nova função de intendente ao poder da

Câmara manifestava-se não somente pela autoridade de elegê-lo

entre seus membros vereadores, mas principalmente pelo tempo

de desempenho da função.2 O fato do intendente ser um membro

orgânico da Câmara Municipal, deslocado apenas,

temporariamente, para cumprir uma missão administrativa,

impediu, certamente, o surgimento de conflitos entre as duas

funções. Se o arranjo institucional idealmente impedia

conflitos, na prática, ao longo dos anos, estes aconteceram.

Isto ocorrerá principalmente quando o governo estadual decide

ampliar e fortalecer o poder executivo municipal em detrimento

do legislativo.

O conflito entre as duas funções somente começa a

existir quando uma lei estadual retira o poder dos vereadores

de elegerem o intendente. Esta atribuição foi transferida para

o Presidente do Estado que nomeia, entre os vereadores, um

para ocupar a função de intendente. O movimento de

fortalecimento da função de intendente a torna mais

prestigiada e dotada de mais poderes. Entretanto, o conflito

2 A diferença de tempo de mandato do intendente e dos vereadores era algoimportante, pois enquanto o primeiro tinha um mandato de, no máximo, doisanos, os vereadores eleitos tinham mandato de quatro anos.

45

aberto passa a se manifestar somente quando uma outra lei,

alterando definitivamente a primeira, concede ao Presidente do

Estado o poder de nomear para intendente qualquer cidadão fora

da Câmara. Neste momento tratava-se de uma função claramente

diferenciada e concorrente, em parte, com o exercício dos

vereadores.

O fortalecimento da função do intendente, executivo do

governo local, ocorreu por causa do conflito entre a

autoridade fiscal estadual e as Câmaras Municipais. Ao longo

dos primeiros anos da República, o conflito mais freqüente

entre o poder estadual e o governo municipal concentrava-se na

questão das finanças e no poder de tributação. As leis

referentes à nomeação da função de intendente são tomadas como

parte da estratégia de controle do Estado dos governos

municipais. Para manter suas finanças em ordem, o Estado não

poderia permitir que parcela de suas rendas fosse arrecadada

pelas municipalidades. Somente com a indicação direta de um

intendente de confiança do Presidente do Estado, foi possível

controlar a rebeldia orçamentária das Câmaras Municipais.

A base do conflito entre o governo estadual e o

municipal sobre a questão do orçamento derivava da base de

existência de cada instância. Enquanto a base de manutenção

financeira do governo estadual eram, principalmente, as rendas

oriundas do setor exportador, para a sobrevivência financeira

dos governos municipais restava a tributação de atividades

locais. A inexistência ou diminuta movimentação econômica

local implicava o extrapolamento da autoridade do orçamento

municipal, que entrava nas rendas do governo estadual. Além

46

disso, como a fonte de manutenção fiscal do governo local eram

as atividades locais, esta tributação recairia sobre os

membros dirigentes locais. A forma de não autotributar era

invadir as finanças pertencentes ao governo estadual. Desse

modo, o conflito fiscal origina o fortalecimento da função

executiva no governo municipal.

A diferenciação das funções do poder público local

entre a Câmara Municipal e o intendente foi lentamente sendo

desenvolvida. Num dado momento, esta diferenciação mais

acentuada significaria a possibilidade da inexistência de um

único grupo social controlando e monopolizando o poder local.

Enquanto o poder do governo local esteve todo concentrado numa

única instituição – Câmara Municipal – não havia como ocorrer

qualquer tipo de desenvolvimento municipal. Na discriminação

de rendas tributadas, ficaram para o município os impostos

cobrados dentro da sua jurisdição territorial. Ora, como os

encarregados de aplicar e fiscalizar o recolhimento dos

impostos locais eram os mesmos produtores econômicos, não

haveria como taxar suas próprias riquezas. Isto explica por

que uma função pública municipal - vereador - não remunerada

podia atrair o interesse dos proprietários e comerciantes

locais. Na verdade, a ocupação desta função política era uma

forma de se protegerem contra os tributos que podiam recair

sobre suas atividades econômicas. Quando a autoridade política

é de tal modo pouco diferenciada da autoridade econômica, nada

impede se beneficiar desta condição.

Como para a manutenção do município as rendas

municipais dependem do direito de continuar a manter um

47

governo local e estas não poderiam recair diretamente sobre a

elite política e econômica, a solução seria ampliar a base

territorial do município ou considerar tributo devido ao

município aquilo que pertence ao governo estadual. Estas

seriam as formas para o município permanecer com o direito de

existir e organizar o governo local e ao mesmo tempo não

onerar com impostos as atividades econômicas da elite

econômica. Era uma equação difícil de ser resolvida porque o

governo estadual, por sua vez, dependia destas rendas para a

manutenção do seu poder. Portanto, não podia dispensar parte

das suas rendas em favor dos municípios. A criação da função

de intendente, sob a alegação de melhorar a administração dos

municípios, na verdade, significou uma forma do poder estadual

controlar, em parte, as atividades das Câmaras Municipais, ao

obrigar segmentos econômicos a pagar impostos.

A idéia de uma função diferenciada para executivo

municipal já estava presente no Império, mas jamais teve

independência, pois o chefe da administração local foi sempre

eleito de forma indireta pelos próprios membros da Câmara

Municipal, e, ao mesmo tempo, ocupava as duas funções

(presidente da Câmara e chefe da administração local). Quando

na República procura diferenciar esta função, o faz em nome da

melhoria da administração local, criando um cargo responsável

unicamente pela administração da municipalidade. A função de

intendente, que nasceu já diretamente dependente da Câmara,

com o tempo passa a ter maior importância, sendo prestigiada

pela autoridade estadual. Entretanto, ainda demoraria para que

esta função pudesse ter o aspecto competitivo pelo poder

48

local. Isto, na verdade, somente vai ocorrer depois de 1925,

quando os prefeitos e os vereadores serão eleitos

simultaneamente, mas com períodos de mandatos distintos. Até

1946, a Câmara Municipal continuará a gozar do principal poder

no município.

Somente depois da Constituição de 1946, o poder

legislativo municipal e o executivo aparecem com a mesma

autoridade expressa na sua eleição e tempo de mandato. Aqui

começa uma nova história para o governo local com a criação de

instrumento competitivo entre duas funções públicas. Depois de

estabelecida a competição entre as duas funções,

coincidentemente é o momento de decadência do poder da Câmara

Municipal. O poder não mais passa a ser exercido diretamente

por ela, mas sim pela figura do prefeito, monopolizador da

função pública local.

Esta impossibilidade de manutenção de duas funções

competitivas no governo local parece ser explicada pela

inexistência de uma base social que sustente outra parcela do

poder público. O poder legislativo não concentra recursos para

utilizar em sua manutenção de base clientelista, enquanto o

executivo os concentra. Esta desigualdade de recursos para

desempenhar a função de competição política no governo local

impede a manutenção de um dos grupos sem o auxílio da máquina

pública.

Após a República, o governo local, mais do que outra

esfera do poder público estatal, convive com duas atividades

aparentemente excludentes e contraditórias: política e

administração. Política, quando contraposta ao administrativo,

49

evoca uma atividade de distribuição de benefícios em função de

interesses imediatos, esperando um retorno eleitoral. A

distribuição de benefícios segue uma regra de concessão em

função da aproximação adesista e compartilhamento de

interesses. Em oposição a este mesmo sentido do ato político,

a atividade administrativa é entendida como uma ação de

natureza racional, pois busca beneficiar os mais necessitados

do bem distribuído. Não há nenhum retorno exigido no

cumprimento desta ação, apenas a execução de uma lei. O ato

administrativo, visto neste sentido, beneficiaria sempre os

que de fato estão necessitando, e o ato político somente

beneficia os que prometem sustentação eleitoral ao concedente.

A política é aqui entendida como política patrimonialista,

pois monopoliza os recursos públicos, e os distribui por meio

de critérios privados.

A descrição da instituição municipal feita até este

momento leva-nos a concluir que a Câmara Municipal vai

adquirindo uma função política de governo local, enquanto sua

dimensão administrativa vai sendo restringida. A separação das

funções entre o poder deliberativo concentrado na Câmara

Municipal e a função administrativa, entregue, inicialmente, a

um membro da própria Câmara – intendente, foi um ponto

importante, senão o mais importante, nesta separação entre os

poderes.

Entretanto, neste primeiro momento, estas duas funções

não se diferenciavam totalmente, pois o intendente, apesar de

cumprir funções diferentes e específicas do corpo

deliberativo, ocupante deste novo órgão do poder municipal,

50

ainda era eleito internamente pelos membros do poder

deliberativo. O poder eleitoral ainda estava concentrado nas

mãos dos vereadores. Estes, ao tomarem posse, podiam indicar

um entre eles para administrar o município. A Câmara

Municipal, mesmo depois da criação da intendência, continuou

sendo o principal órgão político do governo local. Controlando

este poder, os vereadores não permitiram se criar outra fonte

de poder local concorrente com a já constituída. Isto vai ser

possível pela diferenciação de funções entre o corpo

deliberativo e uma função meramente administrativa.

A criação institucional é algo extremamente complexo,

pois envolve inicialmente a intenção de um agente social de

realizar uma ação para atingir fins precisos. Ao praticar o

ato, este tem um desdobramento histórico inimaginável.3 Não se

pode afirmar, seguindo os traços da instituição, que um agente

social preciso tenha sido o maior responsável pelo que

ocorreu. Nenhum dos antigos Presidentes do Estado pretendia

que a Câmara Municipal perdesse o poder a ponto de ficar, num

dado momento, subordinada à prefeitura. Do mesmo modo, não

tinham a intenção de fortalecer a nova função executiva,

independente, de modo que isto possibilitasse a ruptura com as

antigas estruturas de poder concentradas numa única

instituição local. Esses atores políticos, no intuito de

solucionar um problema fiscal, provocam a emergência de uma

instituição diferenciada que vai ao longo dos anos adquirindo

mais e mais poderes.

3 A teoria dos efeitos perversos tem longa tradição nas Ciências Sociais,mas ainda restam elementos obscuros. A principal questão é concernente aoestatuto de racionalidade atribuída aos atores sociais.

51

Na administração municipal no Brasil sempre se fez

clara distinção entre alguns municípios que deveriam ter seu

executivo local nomeado pelo governo estadual. As capitais

sempre sofreram maior restrição na sua eletividade do governo

local. Da Proclamação da República (1889) a 1925, os

administradores do poder executivo eram escolhidos pelo

Presidente do Estado entre os vereadores eleitos. De 1925 a

1930, os intendentes passam a ser eleitos diretamente pelo

povo, com mandatos diferenciados. Com a Revolução de 1930,

estes passam a ser nomeados pelo interventor estadual. De 1937

a 1947, continuam nomeados pelos interventores estaduais. De

1947 a 1967, os prefeitos de todas as cidades voltam a ser

eleitos pelo povo. De 1967 (Ato Institucional n.5) até 1985,

as capitais passam a ter os prefeitos nomeados pelo

governador, que também era nomeado pelo Presidente da

República. Com a abertura política em 1985, os prefeitos das

capitais voltam a ser escolhidos por eleição direta.

A designação do termo prefeito para indicar o chefe do

poder executivo municipal somente passa a ser corrente depois

de 1947. Antes, conforme mencionado, havia a designação mais

genérica de intendente, o responsável pela administração

local.

O que se pode concluir com um estudo parcial? As novas

regras constitucionais de 1988 abriram possibilidades reais

para o governo municipal. Nenhuma outra carta tinha alterado

desta forma o ordenamento jurídico, o que possibilitou ao

governo local o surgimento de novas experiências

governamentais.

52

Se isto é correto, em que momento o prefeito passa a

deter maior parcela de poder? A inferioridade hierárquica do

chefe do executivo municipal em relação à Câmara Municipal

fica evidenciada pelo tempo de mandato destes cargos públicos.

Somente depois de 1930, os prefeitos se igualam com a Câmara

Municipal, quanto à forma de eleição (direta), o tempo de

mandato (4 anos) e as atribuições legais diferenciadas. Depois

deste período, as Câmaras Municipais não puderam mais

recuperar sua importância como principal instituição do

governo local. O fortalecimento de um pilar do poder local - o

executivo, em detrimento do esvaziamento das prerrogativas do

legislativo municipal, coincide também com a criação da

justiça eleitoral.

Até meados de 1940, a Câmara Municipal foi a

instituição mais importante e monopolizava o poder no governo

local. Exercia a concentração de poder de modo colegiado e com

diversidade política, mesmo pequena. Entretanto, este poder

foi deslocado para o chefe do executivo municipal, e exercido

de forma unitária e singular. A Câmara passa a ser um apêndice

do poder executivo e nem de longe lembra o poderoso organismo

de governo municipal do passado, controlado pela elite local.

O desequilíbrio de poder entre os dois órgãos de

governo municipal acentua-se ao longo dos anos 1960. Após

1967, um outro pilar do governo municipal enfraquece. O chefe

do executivo passa a concentrar maiores atribuições, relegando

a Câmara Municipal a papel secundário. Ao longo do período de

1967 a 1988, a Câmara vai perdendo o poder deliberativo no

governo municipal.

53

Nos anos 1980, quando se restabeleceu o funcionamento

das instituições democráticas, a esfera de atuação do governo

municipal tinha se transformado significativamente. Não havia

mais como recuperar a força do órgão colegiado. A nova

situação social marcada pela dinâmica e crescimento dos

problemas sociais e urbanos exigia, cada vez mais, a presença

ativa de um dirigente executivo, concentrando um maior número

de poderes.

Conforme constatado na evolução histórica, o poder

municipal no Brasil, passou por diversas fases. Começa como

única autoridade pública constituída em solo brasileiro,

tornando-se em seguida, com a criação do Estado nacional, uma

forma secundária e reduzida de poder. Na República, recupera

uma parcela do antigo poderio, pelo desempenho da importante

função (eletiva) que jogara o município como circunscrição

eleitoral. O poder municipal se fortalece mediante aliança com

as esferas estadual e federal, mas não no seu aspecto legal. A

Revolução de 1930 reduz o poder municipal a unidade meramente

administrativa de cada Estado da federação, apesar da

Constituição de 1934 ter sido a primeira a estabelecer o

princípio de autonomia municipal, definindo rendas para as

três esferas do Estado.

A década de 1930 será marcada pela redução drástica do

poder municipal, e o cargo do executivo municipal passa a ser

de competência do governo estadual. As instituições municipais

começam mesmo a florescer após a redemocratização de 1946. Até

então, a Constituição de 1946 será, na história republicana

brasileira, a mais municipalista, apesar de constar a nomeação

54

do prefeito para o município capital do Estado. Mesmo na onda

municipalista de 1946, a Lei Orgânica não será elaborada pelo

próprio governo municipal. Mas, de maneira geral, os

princípios para escolha (da eleição) da composição do poder

municipal são estabelecidos em 1946, e desde então não houve

mudança. O regime militar interrompe o processo de

fortalecimento do poder municipal. Todavia não impede a

continuidade das eleições nas cidades. Até nas capitais, a

Câmara Municipal continuará sendo eleita diretamente, enquanto

o prefeito passa a ser nomeado pelo governador do Estado.

Somente em 1988, cria-se realmente a experiência

democrática do poder municipal no Brasil. Nos momentos

anteriores, havia limitações ou uma autonomia puramente

formal, em virtude da falta de recursos próprios ou

impossibilidade de transferência. O governo municipal, ao se

constituir verdadeiramente como um membro do Estado nacional,

estrutura-se de maneira análoga ao poder central, formado por

uma instância do poder executivo e uma do legislativo. O

legislativo tem o papel de legislar sobre a política

municipal, regular atividades de âmbito municipal e,

principalmente, o de fiscalizar e controlar o poder executivo.

Entretanto, a função exclusiva do poder legislativo

fica comprometida pelo papel extra-oficial exercido pelo

vereador como canal de interlocução da população com o poder

executivo. O papel de intermediário, encaminhador de soluções

dos problemas da cidade, acaba dificultando o cumprimento da

função constitucional do vereador. Portanto, o fortalecimento

do poder institucional da Câmara Municipal deveria levar o

55

vereador a reduzir sua função de intermediário, o que poria em

risco sua continuidade eleitoral.

Conforme tudo indica, as condições de funcionamento do

governo municipal não possibilitam a convivência harmoniosa e

complementar de duas fontes de autoridade pública sem que uma

não tenda a monopolizar o poder local. Segundo a história

demonstra, no âmbito local tende a imperar a lógica da

concentração e de pouca diferenciação das fontes de poder. A

tendência é uma única instituição a se legitimar como

representante dos interesses locais.

1.4 O Governo Municipal na Colônia

A idéia da organização de pequenas e médias localidades

sob a forma de município ocorreu pela primeira vez no Império

Romano. Para assegurar o controle sobre as terras mais

distantes, permitiu-se que algumas das cidades conquistadas

tivessem um poder local autônomo, embora subordinado ao poder

central de Roma. Essa autonomia assegurava uma forma

relativamente descentralizada de administração. O município

nasceu, pois, como uma solução política e administrativa para

assegurar a manutenção da ordem pública e a integração de um

império extenso. Tratar unidades políticas locais com certa

autonomia administrativa permitiu aos romanos a construção de

um vasto sistema de autarquias municipais. Estas, depois da

decadência do Império, evoluíram para as cidades-Estado. Tal

forma de administração municipal chegou até nós por meio de

Portugal. O modelo, na Europa, já estava em franca decadência.

Mas como se tratava de administrar um território tão amplo

como era o caso do Brasil, recorreu-se a ele.

56

Ampla extensão territorial impõe, inevitavelmente, adescentralização política e administrativa e graças a essasexigências as autonomias locais se desenvolvem menos por umaimposição da lei do que por uma exigência das própriascondições geográficas (CAVALCANTI, 1956, p. 107).

A Câmara Municipal – também chamada de Senado da Câmara

– foi a primeira forma de organização política praticada no

Brasil. A autoridade pública local era exercida pela Câmara

Municipal, composta por dois juízes ordinários, servindo um de

cada vez, ou de um juiz-de-fora (representante do rei), três

vereadores, dois almotacés e um escrivão. Somente quando

elevados à categoria de vila os agrupamentos populacionais

tinham direito à organização de um governo local, a ser

exercido pela Câmara Municipal, composta de membros eleitos

diretamente por aquela parte da população formada pelo que se

chamava então de “homens honestos e de boa vontade”. Os

vereadores e os juízes ordinários eram todos eleitos, entre os

“homens bons”, por um período determinado. O critério para ser

considerado um “homem bom” era a renda.

Nas municipalidades onde havia juiz-de-fora, a ele

cabia a presidência da Câmara. Este era um cargo público sem

remuneração. É possível encontrar na lei que regia a

competência da Câmara Municipal no período colonial e imperial

artigos definindo as sanções para quem se recusasse exercer o

cargo confiado pela coletividade.

Nas Câmaras, a sociedade local era representada pelos

vereadores eleitos pelo voto direto enquanto os outros

funcionários faziam a representação do poder real. Assim, a

administração era dividida entre indivíduos oriundos da

57

própria população e de outros dirigentes nomeados pela Coroa

portuguesa. A estes cabia a aplicação da justiça na

localidade. Isto explica a presença de cadeia no espaço

reservado no prédio do Paço da Câmara Municipal. A Casa de

Câmara e Cadeia era o símbolo do poder local na sociedade

colonial (MEIRELES, 1993).

A autoridade municipal era exercida mediante três

funções distintas: o Capitão-Mor, a Câmara Municipal e a

Ouvidoria. A função do ouvidor era aplicar a justiça e

arrecadar os impostos. A função executiva, ainda não

completamente definida, era, em grande parte, exercida pelo

capitão-mor. A função deliberativa, do poder local, era

exercida, unicamente, pelos vereadores e mais o juiz que

presidia a sessão. A designação deste encontro dos membros do

governo local tinha, inicialmente, o nome de vereação ou

conselho de vereadores. Câmara de vereadores era a designação

inicial para a atividade desempenhada ou desenvolvida por

parte desta autoridade coletiva. Somente depois a designação

da atividade passou a ser estendida ao espaço físico ocupado

pela atividade de vereação.

No período colonial, a atribuição da Câmara Municipal

era enorme, pois toda a vida local era regulada por este

poder: taxar impostos; administrar os bens da municipalidade;

construir e conservar edifícios, ruas, praças e edificações

coletivas; regulamentar as profissões do comércio e os

ofícios; inspecionar a higiene pública, nomear funcionários e

denunciar crimes à justiça, tudo isto era atribuição dos

vereadores. Mas não era atribuição da Câmara o legislar. Ela

58

se limitava a aplicar as normas reguladoras existentes no

Código de Postura e a assegurar o cumprimento das posturas

pela coletividade. A Câmara Municipal na Colônia e no Império

não era órgão de legislatura local porque todas as normas

aplicadas para a administração originavam-se do Código de

Posturas Municipal. As Câmaras, entretanto, praticavam atos

administrativos por serem órgãos auxiliares do poder

municipal.

Portanto, não se pode dizer que as Câmaras Municipais

do Brasil Colonial e Imperial sejam antecessoras da atual

Câmara Municipal. Suas atribuições, como se viu, são bem

diversas. Na Colônia, não havia uma organização definida do

órgão responsável exclusivamente pela administração, pois este

era inicialmente exercido de forma coletiva pelos vereadores,

juízes e capitão-mor. Durante o Império, este mesmo poder

passou a ser atribuído ao presidente da Câmara, que neste

tempo ocupava a mesma função de presidente do governo local. O

vereador mais votado era ao mesmo tempo o presidente da Câmara

e o presidente do governo administrativo da cidade. Durante

todo este período a atribuição de legislar sobre questões

locais foi atribuição do poder supramunicipal.

Nossas primeiras instituições políticas foram

municipais. Por vários séculos, o sistema político brasileiro

teve de conviver com a preponderância do poder municipal que

impunha obstáculos à constituição de um outro poder acima

dele. A base da vida social brasileira foi, durante muito

tempo, uma organização política de natureza municipal.

59

Com a Constituição de 1824, o governo municipal passa a

ser subordinado ao governo da província, e perde parte da sua

autonomia. Ao longo do Império, a luta pela construção de um

poder provincial que, inicialmente, não contava com o apoio

dos senhores rurais, foi se impondo como uma ordem

irreversível. Tratava-se de novas exigências de uma economia

nacional e integrada. As organizações municipais já não

correspondiam aos interesses das forças sociais dominantes.

Contudo, a sombra do poderio local assombrará como um fantasma

por séculos afora. São muitos os movimentos políticos que

contestam a existência de uma ordem nacional, pretendendo a

autonomia dos governos locais e a construção de pacto político

municipal.

Isto não se modifica com a República. A Constituição de

1891 atribuiu aos Estados o poder de organizar seus

municípios, respeitando sua autonomia e seu peculiar

interesse. Isto apenas permitiu aos Estados subordinarem os

municípios ao seu poder, tornando-os uma peça da administração

estadual.

1.5 O Governo Municipal no Império

A colonização portuguesa no Brasil foi responsável pela

estruturação de uma rede de pequenos núcleos de população que

gozavam de relativa autonomia. Economia predominantemente

agrícola, onde o exercício do poder local era extremamente

importante para seu funcionamento, o Brasil Colonial viu

fortalecidos os grupos dominantes locais, cujos interesses

60

mais imediatos realizavam-se por meio do controle do poder

político local, expresso no controle das Câmaras Municipais.

Esse mapeamento do poder não se fazia sem alguma tensão.

Muitas municipalidades rebelaram-se contra a autoridade do rei

pelo direito de se auto-organizar. Mesmo a elevação de algumas

vilas a cidades foi contestada. Ao rei cabia apenas reconhecer

um Estado político já constituído. No entender de Wagner

Cunha, as forças rurais “foram sempre a favor da diminuição do

poder central, em beneficio do seu mundo local” (CUNHA, 1969,

p. 16).

A Constituição Imperial outorgada por D. Pedro I em

1824 asseguraria, na essência, essa autonomia, ao apenas

indicar algumas das competências que caberiam à Câmara

Municipal. Mantinha a eleição dos seus membros, conservava o

governo da economia local, mas perdia totalmente suas funções

políticas, tornando-se peça administrativa. Mesmo assim, seu

poder representativo ainda era tanto que foi chamada a

referendar a Constituição do Império. Eram as únicas

instâncias de poder legítimas.

Com a abertura dos trabalhos do legislativo, em 1826, é

finalmente editada a lei que regulamenta as eleições para as

Câmaras Municipais e que define suas atribuições. No entanto,

o status das Câmaras Municipais sofreria radical alteração a

partir da lei de 1º de outubro de 1828,4 considerada a lei

4 Lei de 1. ° de outubro de 1828 determina que as cidades terão novevereadores. Art. 18 – Os Vereadores podem ser reeleitos, mas poderão escusar-se, se areeleição for imediata.Art. 19 – Ao eleito não aproveitara motiva de escusa, exceto...” Sobre as funções Municipais a mesma lei afirma:

61

institucional do regime municipal. Seu objetivo foi transferir

poderes das Câmaras Municipais para os governos provinciais.

Como os presidentes de província eram todos nomeados pelo

imperador, isto representou maior concentração de poder. O

município tornou-se assim a última fronteira da administração

no Brasil Imperial provincial. O ato adicional de 1834

completaria o trabalho, restringindo ainda mais a autonomia

municipal, com a criação das Assembléias Provinciais. No dizer

de Cavalcanti: “Ao se fortalecerem as Províncias e,

principalmente, as Assembléias provinciais, os Municípios se

debilitaram porque essas assembléias passaram a centralizar,

com grande força, o prestígio político e o poder

administrativo” (CAVALCANTI, 1956, p.108).

Nos documentos da Câmara de Fortaleza no período

imperial, encontra-se sempre uma mesma subordinação desta ao

Presidente da Província: muitas ordens são decretadas por esta

autoridade para serem executadas pela Câmara.

3 de agosto de 1847. O vice-presidente João Chrisostomoordena as Câmaras Municipais que prestem todos osesclarecimentos e franqueiem seus arquivos ao Dr. JoaquimSaldanha Marinho, que pretendia levantar uma carta

Art. 24 – As Câmaras são corporações meramente administrativas e nãoexercerão jurisdição alguma contenciosa.”De acordo com o art. 28, o vereador que faltar às sessões sem justificar osmotivos, “pagará nas cidades por cada 4$rs., e nas vilas 2$rs. para asobras do Conselho...”Art. 39 – As Câmaras, na sua primeira reunião, examinarão os provimentos eposturas atuais para propor ao Conselho Geral que melhor convier aosinteresses do Município; ficando, depois de aprovados, sem vigor todos osdemais.”Art. 40 – Os Vereadores tratarão nas vereações dos bens e obras doConselho, do governo econômico e policial da terra; e de que neste ramo forà prova dos seus habitantes” (PORTO; JOBIM,1996, p.71).

62

topográfica da Província e publicar uma Estatística Geraldela (STUDART, 1924, p.136).

Assim, não sem resistência, a nova ordem política

imperial suplanta as experiências autônomas dos governos

municipais espalhados pelo território brasileiro. A construção

de um poder intermediário, entre o Estado imperial e os

dispersos governos municipais, representado pelo governo

provincial, será o início de longo e conflituoso processo de

tensão entre essas duas instâncias de poder local. O marco

nessa disputa será a criação de uma função independente para a

justiça, com a invenção do prefeito de polícia.

A mudança pode ser constatada por diversos indicadores.

Em 1835, a Assembléia Provincial de São Paulo, por meio da lei

de 11 de abril, institui a chamada Lei dos Prefeitos. Esta

lei, segundo Nunes Leal, foi recomendada a outras províncias

por meio de uma carta. “O governo não duvida lembrar aqui,

como modelo, os prefeitos e os sub-prefeitos criados pela

assembléia legislativa da província de São Paulo, persuadido

que eles preenchem as necessidades da administração da

província” (In, LEAL, 1997, p. 380). A província do Ceará

estava no rol das que aceitaram a sugestão. Tratava-se não de

um cargo executivo, mas de uma função de polícia separada da

função de judiciário. O prefeito seria nomeado pelo Presidente

da Província, tendo poderes de delegado de polícia. Ele não

teria subordinação às Câmaras Municipais. Logo a nomeação de

prefeitos seria implantada em todo o território.

Como se vê, a autonomia municipal brasileira muda no

momento da implantação do Estado nacional. Este se faz com

forte centralização da estrutura político-administrativa. O

63

nível de poder descentralizado passa a ser a Província que

comanda politicamente as unidades menores.

No Império, o poder das Câmaras foi reduzido “a

corporações meramente administrativas impedidas de exercer

qualquer jurisdição contenciosa” (LEAL, 1997, p.380). A

mudança mais significativa, afora a brutal redução de poder,

será a instituição de uma função diferenciada dentro da

corporação que passa ser exercida pelo vereador mais votado.

Este passa a acumular a função de presidente da Câmara e do

poder executivo. Poder executivo aqui deve ser entendido como

parte do poder que tinha atribuições administrativas e

realizadoras de obras públicas.

No período imperial e mesmo depois, na República, o

vereador era muito pouco influente. Seu papel estava

relacionado ao poder de fiscalização e policiamento na

aplicação do Código de Posturas. O mandato durava quatro anos,

e o Código já trazia o conjunto de normas que deveria regular

o funcionamento ordeiro da cidade. Os vereadores, no entanto,

não tratavam de propor adequações em decorrência dos problemas

cotidianos. Tratavam apenas de fazer com que o Código fosse

aplicado. Esta era a principal competência das Câmaras.

1.5 Autonomia Política e Capacidade Legislativa – As Posturas

Municipais

Como visto, as Câmaras Municipais eram regidas pelo

Código de Posturas, mas não formulavam qualquer lei ordinária.

O Código de Posturas da municipalidade é uma lei que

disciplina a relação entre o poder público municipal e os

64

munícipes, mediante estabelecimento de medidas de natureza

político-administrativa. Os Códigos de Postura, reunindo um

conjunto de leis de origem variada, muitas delas herdadas das

Ordenações Filipinas e Manuelinas, funcionavam como a lei

orgânica municipal, regulando as práticas econômicas e

sociais. Era um instrumento puro de organização legal e

policial. Não havia nenhuma particularidade, por exemplo, no

Código de Posturas da Cidade de Fortaleza, pois seus artigos

já estavam definidos por uma lei do Império que regulamentava

as atribuições das Câmaras Municipais. Ao poder público local,

via Câmara, cabia apenas a vigilância, o policiamento, para

que as normas fossem respeitadas.

A existência do Código desincumbia a Câmara de

deliberar sobre normas, limitando seu poder a fazer cumprir

seus artigos. Na visão de Eduardo Campos, as prescrições do

Código de Posturas ajudavam a formar a nova sociedade, pois

esta, a seu ver, quando está se constituindo, deve fazê-lo a

partir de normas bastante rígidas, tal como as constantes nos

Códigos de Posturas. Estas normas, na opinião do mesmo autor,

revelam o espírito de previdência das comunidades que as

conceberam, pois regulavam atividades como o modo pelo qual se

deveria matar os bois; onde este abate deveria ser feito; as

condições adequadas para a preservação das águas. Segundo

Campos, os Códigos de Posturas se justificavam como forma de

solução dos problemas coletivas e locais, para sanar a falta

de alguma tradição ou costume, como também para estabelecer

regras comuns tanto ao mundo rural e do sertanejo quanto ao

ambiente urbano. O Código seria uma lei que forjava a

65

civilização, formava nossa tradição e disciplinava a população

(CAMPOS, 1990, p. 34).

As leis atribuídas às Câmaras eram de natureza

específica e de cunho puramente administrativo. Por esse

motivo encontrarmos referências a projetos de lei que

modificavam nomes de rua. Tratava-se de legislação de natureza

puramente administrativa e muito pouco política. A Câmara

parece ter sua autonomia apenas no referente à nomeação de

ruas e lugares da cidade, como o exposto a seguir.

6 de abril de 1870. A Câmara Municipal de Fortaleza emsessão deste dia altera os nomes de algumas ruas e praças;dando a denominação de rua do Conde D’Eu à rua do mercado;de boulevard Duque de Caxias ao boulevard do Livramento, depraça Marques Herval à praça do Patrocínio e de praça doVisconde de Pelotas à praça denominada antes do Encanamento(STUDART, 1926, p. 201).11 de janeiro de 1879. A CMF em sessão desta data resolveumudar o nome da Praça da Misericórdia para o da Praça dosMartyres, afim de perpetuar a memória dos ilustres patriotasCoronel Andrade, Padre Gonçalho Mororó, Ibiapina, Boão eCarapinima, que aqui foram fuzilados em 1825 e o da Praçados Educandos para a Praça do Senador Figueira de Mello(STUDART, 1926, p. 253).15 de outubro de 1878. A CMF desejando perpetuar o nome deum Cearense a quem a pátria deve gratidão pelos relevantesserviços, que prestou, resolveu em sessão desde dia mudar onome da outrora rua d’Amélia para rua do Senador Pompeu.Nessa rua por longos anos morou e faleceu este ilustrecidadão (STUDART, 1926, p.251).

O Código de Posturas do Município regulava de modo

preciso inúmeras atividades desenvolvidas no âmbito da

municipalidade: o tamanho das casas, a cor que deveriam ser

pintadas, o preço dos gêneros alimentícios produzidos no

local, o dos serviços dos diversos profissionais, etc.

26 de março de 1880. A CMF contrata com Gualter Rodrigues daSilva o fornecimento de placas com nomes das ruas e praças e

66

com a numeração das casas; de conformidade com a leiprovincial n.° 833 de 15 de setembro de 1878 (STUDART, 1926p.276).

Em 1848, até mesmo a cor do interior das residências

chegou a ser objeto de deliberação pela Câmara Municipal de

Fortaleza. Ficou proibido que o interior das casas tivesse

“caiamente branco (ou) encarnado...” (ORIÁ; JUCÁ, 1995, p.26).

Capistrano de Abreu afirma que no CPM de Icó de 1738 fixavam-

se posturas relativas ao plantio de mandioca para farinha e de

carrapateiras para o fabrico de azeite, à proibição de

exportar farinha por causa da carestia, aos salários que

deveriam cobrar os alfaiates, sapateiros e outros oficiais, à

morte de periquitos etc. (ABREU, 2000).

A construção urbana e as atividades diretamente

relacionadas com a vida municipal sempre tiveram um código

orientador. De modo geral, as licenças para edificações eram

concedidas com o devido alinhamento, comprovado com o visto de

fiscal da prefeitura (ORIÁ; JUCÁ, 1995). Os serviços básicos

de limpeza também eram executados pela autoridade municipal,

mas dependiam de lei provincial.

12 de outubro de 1872. O Tenente Coronel Severino Ribeiro daCunha (Visconde de Cauhipe) e Cícero da Pontes contratam como governo provincial o serviço de esgotamento e limpeza dascasas de Fortaleza, como privilegio de 70 anos. Foi aprovadoeste contrato pela lei provincial n.° 1494 de 20 de dezembro(STUDART, 1926, p. 211).

A aplicação de multas pelo descumprimento das normas do

Código de Posturas constituía uma fonte de renda para o

município. Muitas vezes era a única fonte de recursos

financeiros para a manutenção da reduzida máquina

67

administrativa municipal. Segundo Capistrano de Abreu, as

Câmaras Municipais retiravam os recursos para as despesas da

administração das taxas cobradas sobre qualquer atividade que

dependesse da autorização do poder local.

No Código de Postura de Fortaleza de 1870, encontramos

designadas as funções públicas existentes na cidade. A Câmara

Municipal era composta por nove vereadores, e o presidente era

eleito entre um deles ou o mais votado. A maior parte das

funções referia-se ao trabalho interno da Câmara, mas somente

os fiscais tinham incumbências nas ruas da cidade. A equipe de

funcionários compunha-se de: um secretário da Câmara; um

ajudante do secretário; um arquivista; um porteiro; um

contínuo; um procurador; um advogado; um médico; um arquiteto;

três fiscais no distrito da cidade; um zelador do matadouro;

um zelador da feira; um fiscal para o distrito de Arronches e

mais dois fiscais-zeladores para os distritos de Soure e

Messejana. A municipalidade de Fortaleza tinha, portanto, em

1870, exatamente dezessete funcionários públicos. O procurador

não recebia salário, seus rendimentos provinham da cobrança

das multas recebidas. Uma parte dos recursos decorrentes das

multas era destinada ao procurador e a outra às despesas

ordinárias da Câmara.

Os serviços de água, limpeza das ruas, conservação do

patrimônio público eram da competência dos moradores que

deveriam realizá-los de forma rigorosa, sob pena de serem

multados. Quanto aos equipamentos urbanos de água, saúde,

esgotos, iluminação, eram transferidos para empresas privadas

que detinham a concessão dada pelo poder público estadual.

68

Este poder público não detinha a posse de nenhuma empresa

prestadora de serviços públicos, as quais se definiam como

concessões feitas por um prazo de tempo fixado em lei a alguma

empresa privada.

Ao longo de sua história, a capacidade de criação de

normas voltadas para o interesse local dos municípios foi se

ampliando gradativamente. A criação de uma legislação

específica orientada para a vida da própria comunidade

coincide com o aumento da autonomia financeira das

municipalidades. Ao dispor de poder para gerir suas finanças,

o município pode agir de acordo com os interesses locais.

1.6 O Governo Municipal na República

A partir da Constituição de 1891, a República

Brasileira adotou o modelo federalista que garantia maior

autonomia aos Estados-membros, dava a eles o poder para

organizar seus municípios. Recomendava, no entanto, o respeito

aos interesses peculiares. O texto do seu art. 68 dizia: “Os

Estados organizarão os seus municípios de forma que fique

assegurada a autonomia dos municípios em tudo o que respeite o

seu peculiar interesse” (In LEAL, 1997, p.287).

A autonomia municipal no texto de 1891 variaria

conforme a determinação de cada unidade federativa, pois a

cada uma delas caberia o poder de traçar regras para

organização das unidades municipais. Isto, na prática,

significou entregar aos Estados a definição da competência

municipal: as atribuições dos seus órgãos de governo e as

normas de fiscalização das suas finanças. Estas questões

estariam compreendidas na Lei Orgânica dos Municípios, a qual,

69

em cada Estado, serviria para organizar os municípios. Somente

o Rio Grande do Sul determinou que cada município elaborasse

sua própria Lei Orgânica. Outros, como a Bahia, por exemplo,

adotaram um regime de governo especial para o município-sede

da capital do Estado.

O município onde se situava a sede do governo federal

possuía estatuto especial. A partir dos preceitos

constitucionais da Carta promulgada em 24 de fevereiro de

1891, segundo a qual os presidentes do Brasil e dos Estados,

assim como os membros do poder legislativo, em todos os

níveis, seriam eleitos pelo povo, foi sancionada pelo

presidente Floriano Peixoto a Lei nº 85, de 20 de setembro de

1892 - primeira Lei Orgânica do Distrito Federal. Nesta,

conforme ficou estabelecido, o legislativo da capital estaria

a cargo do Conselho Municipal, composto por 27 intendentes

eleitos, um por distrito municipal, e seis cidadãos mais

votados no somatório de todos os distritos.

A lei que permitiu aos Estados organizar os municípios

de acordo com princípios centralizadores, limitando ao máximo

sua autonomia, transformava-os em meros apêndices

administrativos, órgãos locais de aplicação das atribuições

públicas estaduais. Foram separadas as atribuições de

legislativo, deliberativo e executivo do governo municipal. A

eleição do chefe do poder executivo municipal ocorreria apenas

em oito Estados; nos demais doze este era nomeado; outras

vezes, só nas capitais. Portanto, somente oito Estados

asseguravam que a ocupação do cargo do executivo local fosse

eletiva e não uma nomeação do Presidente do Estado.

70

Durante os quarenta anos de vigência da Constituição de

1891, o município, reconhecido como unidade de governo local,

foi tolhido em seu poder de autogestão. Ao longo da Primeira

República, a autonomia municipal foi puramente formal, pois de

fato não havia nenhum tipo de arrecadação que pudesse

sustentar os serviços e a administração pública. Tal foi o

caso de Fortaleza.

Tão logo foi instituída a República, a Câmara Municipal deFortaleza foi dissolvida e, em seu lugar, criado um Conselhode Intendentes nomeado pelo governo estadual, cabendo seusmembros, em número de cinco, escolher o seu presidente(PONTES, 1995, p.38).

Na citação, o termo nomeação dos conselheiros está

grifado para destacar que neste período foi abolida a

representação política da sociedade local na gestão da cidade.

Não somente o cargo de executivo, agora chamado de intendente,

mas também os antigos vereadores, responsáveis pelo poder

deliberativo ou legislativo, passaram a ser igualmente

nomeados pelo poder estadual. Restrição maior à autonomia

municipal não havia até então ocorrido.

A Constituição cearense de 1892, segundo Pontes (1995),

reconhece a autonomia municipal e cria os cargos de intendente

e subintendente - o primeiro para a sede do município e o

segundo para os distritos. Pela Lei nº 93, a escolha do

intendente (necessariamente um dos integrantes da Câmara)

seria feita mediante escrutínio secreto dos vereadores. Mas

uma outra lei de setembro de 1895 modificou esse sistema ao

estabelecer que os intendentes da capital fossem nomeados pelo

Presidente do Estado, “deixando de existir a obrigatoriedade

71

de serem vereadores” (PONTES, 1995, p. 38). A Lei nº 764, de

12 de agosto de 1904, tornou todos os intendentes (denominados

prefeitos por força da Lei n.º 1190, de 5 de agosto de 1914)

de nomeação do governador do Estado. Lei semelhante já existia

na Paraíba e na Bahia (LEAL, 1997).

Depois que Guilherme Rocha assumiu a intendência, em

1892, a Câmara Municipal aprovou, em 9 de novembro de 1893,

novo Código de Posturas para a cidade de Fortaleza. Durante os

vinte anos em que Guilherme Rocha foi intendente de Fortaleza

procurou segui-lo à risca. O Código de 1893 vigorou por toda

a Primeira República e

era de competência da Intendência e da Câmara Municipal,segundo a Lei nº 33 de 10 de novembro de 1892, velar pelahigiene pública da municipalidade, podendo decretar toda equalquer medida voltada para o estabelecimento de umsatisfatório estado de salubridade urbana (PONTES, 1995,p.38).

A modificação mais importante na forma de organização

do poder municipal após a Proclamação da República foi a

criação de um órgão específico para a gestão do executivo:

intendente ou prefeito. Outra novidade é que este cargo não

precisava ser eletivo. Ora o dirigente do executivo saía de

uma eleição dos vereadores, ora era uma pessoa nomeada pelo

governador do Estado. Na legislação cearense, a eleição do

responsável pelo executivo municipal foi gradativamente

perdendo seu vínculo com a eleição pelos munícipes.

1.7 A Revolução de 1930

Com a Revolução de 1930, todas as assembléias estaduais

e municipais foram dissolvidas. Os interventores estaduais

72

estabeleceram uma série de normas a serem aplicadas pelos

interventores municipais (prefeitos nomeados) até a aprovação

da nova Carta Constitucional. Um novo Código de Posturas foi

decretado para a cidade de Fortaleza em 1932. Foram criados um

Conselho Consultivo do Estado e um Departamento dos Negócios

Municipais. Este deveria ser o responsável pela tomada de

contas dos municípios.

Na reorganização administrativa dos municípios cearenses nopós-30, através do Decreto n.º 1200, de 30 de dezembro de1933, o imposto predial passa a ser de competência dosmunicípios. Em contrapartida, os serviços de pavimentação daCapital e a inspetoria de veículos se transferem para aPrefeitura de Fortaleza (SOUZA, 1995, p. 56).

A Constituição de 1934, marco na história municipal

brasileira, estabeleceu como legítimas três esferas de

governo, agindo em harmonia e acordo dentro do território

nacional: União, Estados e Municípios. Apesar de ser dividido

em distritos, a menor unidade política governamental

reconhecida é o município. O município é uma instância do

governo local detentor de poder político com organização

própria de natureza administrativa e política para prestar

serviços. A União, os Estados e os municípios são equivalentes

em sua capacidade de governo, pois gozam todos de

prerrogativas retiradas da Constituição. Formalmente, o

município é o terceiro nível das entidades territoriais da

federação. Ele não é somente uma parte da administração e

prestador de serviços em nível local, mas constitui uma

instância de poder público. A organização administrativa e

política de cada governo é feita mediante o reconhecimento da

natureza da extensão da sua autoridade e competência.

73

Embora a administração pública do Estado nacional se

oriente por princípios gerais, cabe a cada unidade da

federação decidir o modo como esta lei será aplicada. O

município, como terceiro nível de existência do Estado na

sociedade brasileira, é dotado tanto de poder para organizar

sua administração local de acordo com seus interesses, como de

poder político para regular atividades realizadas em seu

âmbito territorial sobre as quais lhe cabe a competência para

legislar e regular. Desse modo, os Estados e os municípios no

Brasil não são meras unidades administrativas; são entidades

federativas, isto é, entes políticos com reconhecimento

público.

No governo local, não há limitações de natureza legal

para uma ação de organização administrativa e política.

Respeitados os preceitos da Constituição, nenhum município

pode decretar sua separação da federação, pois a ela está

vinculado de forma definitiva. Não pode eliminar poder, nem

constituir delegações desprovidas de amparo legal. Todavia

pode definir a melhor organização interna para o seu governo.

É um governo da lei no sentido de que pode muita coisa, mas

tudo segundo a lei existente. O município tem dupla natureza,

pois é núcleo administrativo e político do governo local.

O município passa a ser considerado como uma entidade

descentralizada para uma organização autônoma, como a menor

instância do Estado federado. Passa também a contar com todas

as propriedades e atributos das outras instâncias do Estado em

outros níveis. Isto gera alguns problemas para a federação

74

porque há limites para a autonomia consentida e delegada pelo

poder público central.

A Carta de 1934 retirou dos Estados o poder sobre a

organização dos seus municípios. Pela primeira vez seriam

claramente definidas as competências de cada uma das entidades

da federação. Aspecto inédito da Carta de 1934 é que ela

estabelecia, pela primeira vez, uma base financeira capaz de

assegurar a autonomia do governo municipal. A Constituição

estabelecia também que o chefe do executivo municipal fosse

eleito, mas deixava a possibilidade de eleição indireta via

Câmara Municipal. Em 1936, as cidades são movimentadas por

eleições para o governo estadual e municipal.5 No entanto, os

eleitos não chegaram a tomar posse por causa do Estado Novo.

A experiência democrática de o poder executivo

municipal governar com a mediação de uma Câmara Municipal é

interrompida pela decretação do Estado Novo. O Estado Novo

processa uma reforma política centralizadora e, pelo Decreto

n.º13, de 14 de dezembro de 1937, regula a administração

municipal a fim de adequá-la aos dispositivos do art. 27 da

Constituição de 1937, na parte que trata dos municípios. A

autonomia municipal é retirada, pois pela nova lei a

55 Em Fortaleza, Aroldo Mota diz: “A Constituição do Estado marcou eleiçõesmunicipais para 29 de março de 1936. [...] Com relação a Fortaleza, aConstituição, nas “Disposições Transitórias”, art. 2°, §1°:“A eleição do primeiro Prefeito da Capital se fará na época que a leiorgânica dos municípios determinar, não podendo, entretanto, realizar-seantes de seis meses da vigência da lei”. Continua o autor: “O PSD não se conformou com esse dispositivo e [...]peticionou ao Tribunal Regional Eleitoral, solicitando eleições para aFortaleza no mesmo dia das outras no Estado.O Tribunal, em sessão no dia 10 de fevereiro de 1936, unanimemente, marcoueleições para Fortaleza para o dia 29/3/1936” (MOTA, 1985, p.243-244)

75

administração municipal seria exercida por um prefeito “de

livre nomeação do governo do Estado”. O Decreto-Lei n.º 1.202,

de 8 de abril de 1939, dispõe sobre a administração dos

Estados e municípios brasileiros.6 O governo municipal terá de

esperar pela Constituição de 1946, considerada a mais

municipalista das constituições, que ao restringir o poder dos

Estados ampliou ainda mais a autonomia municipal.

1.8 A Constituição de 1988

Essas conquistas só seriam superadas pela Constituição

de 1988 que trouxe inovações até então jamais vistas na

legislação brasileira. O poder municipal passou a se regular

pela Lei Orgânica Municipal promulgada um ano após as

respectivas constituições estaduais. Este instrumento garantia

a consolidação da autonomia política, administrativa e

financeira dos municípios e o direito de criar sua própria

legislação. A nova Constituição Federal, assegurando a

vinculação de transferências de rendas do nível federal para

as unidades municipais, é a principal garantia da autonomia

dos municípios.

Como afirma Sadek:

O contraste entre os princípios descentralizadoresconsagrados pela Constituição de 1988 e os preceitoscentralistas do passado é tão profundo, que se podesustentar que estamos face a uma modificação de alcanceimprevisível. Trata-se de uma alteração de rota que poderádividir a história político-administrativa do país em duas

6 Art. 4 º – O Prefeito do Município, brasileiro nato, maior de 21 anos emenos de 68, será de livre nomeação e demissão.Art. 5 º – Ao Interventor, ou Governador, e ao Prefeito, cabe exercer asfunções executivas e, em colaboração com o Departamento Administrativo,legislar nas matérias da competência do Estado e dos Municípios enquantonão se constituírem os respectivos órgãos legislativos” (MOTA, 1985,p.116).

76

fases: a que antecedeu a atual Constituição e a que lheseguiu (SADEK, 1993, p. 9).

As subunidades de governo nacional, inclusive os

municípios, não estão obrigadas a adotar as medidas

administrativas implementadas em outros níveis de governo.

Isto proporciona maior diversidade administrativa no

território nacional e permite ao governo local funcionar

realmente como poder de Estado, encontrando suas próprias

soluções para seus problemas específicos. Tal diversidade era

bem menor quando os municípios eram tratados como instâncias

locais administrativas do governo central.

O poder local no Brasil é exercido pela autoridade

municipal que tem no executivo singular e no legislativo

colegiado a forma de manifestação deste poder. O regime

municipal exerce-se de forma assimétrica, pois todas as

unidades políticas locais são autorizadas a se organizar de

acordo com uma lei federal. Uma lei única regula os princípios

gerais da organização do município, o modo de cumprir suas

atribuições e competências, e os órgãos administrativos que as

comporão. No Brasil, o governo local segue o mesmo princípio

organizador do Estado federal, pois conta com os mesmos órgãos

administrativos e a mesma divisão de poder. O município é o

Estado federal em miniatura, age num território definido como

menor do que o de âmbito estadual e federal.

Atualmente, o poder público municipal tem entre suas

atribuições a de editar leis válidas que regulamentem

atividades realizadas no âmbito municipal. Isto se fez por

meio de um Código de Posturas, de um Código de Obras e de

77

outros códigos que regulamentam uma série de atividades e dão

ao poder local certo poder de coerção.

Antes da Constituição de 1946, as Câmaras Municipais

brasileiras eram apenas corporações deliberativas, jamais

legislativas. Discutia-se a forma mais conveniente de se

encaminhar a solução de um problema, mas não havia autoridade

para decidir a criação de uma norma legal apta a suprir

eventuais faltas de legislação supramunicipal.

Todavia o texto constitucional de 1988 inova ao

atribuir ao poder municipal a capacidade de criar normas

legais válidas dentro de sua jurisdição. As Câmaras Municipais

podem editar normas para suprir a inexistência de leis sobre

as atividades julgadas importantes pela municipalidade.

Como o atual parlamento municipal no Brasil não regula

apenas as atividades do seu interesse, age como entidade do

Estado, gozando de atributos do poder público, a vida política

municipal é regida pela Lei Orgânica do Município no

relacionado ao seu interesse imediato e à sua competência. As

demais leis produzidas pela legislação ordinária do parlamento

municipal são analisadas e aprovadas de acordo com as outras

legislações existentes, respeitando a constitucionalidade. Não

há uma hierarquia de leis, mas competências distintas para

legislar sobre assuntos diferentes de acordo com o nível de

atuação do governo. O governo local possui encargos

obrigatórios. Estes, porém, não podem ser imposições de outras

instâncias do Estado. O âmbito competente de atuação do poder

municipal é definido pelo conceito de interesse local.

78

No Brasil, o município não é uma instância local do

Estado ou da União, mas uma instância do poder público

organizado de modo local. Não se constitui, pois, como poder

delegado por outras instâncias do Estado nacional, mas como

expressão do poder público em âmbito local. O município é

membro orgânico do Estado como as outras esferas,

diferenciando-se apenas no nível de atribuição e competência

para agir.

Desse modo, para realizar a atribuição delegada do

serviço público até então de competência do governo nacional,

ao aceitá-la o governo local deve celebrar contrato

especificando a prestação deste serviço. No entanto, os

encargos e as obrigações das esferas de governo não podem ser

transferidas para outras, mas negociadas conforme o interesse

dos governos locais em aceitar esta delegação.

O Brasil é o único país onde a Constituição contempla a

autonomia municipal. Enquanto o governo local é forte, com

autonomia política para decidir sua condução interna, o

município goza de poder normativo, isto é, da possibilidade de

aplicar e criar legislação específica. Portanto, no Brasil

existem três instâncias de poder público com autoridade para

legislar sobre aquilo que lhe é definido constitucionalmente.

A legislação municipal limita-se ao seu território e aos seus

interesses internos. Em outros países, é vetado à autoridade

local o poder de legislar. Cabe-lhe apenas a tarefa de

natureza administrativa, recebendo a delegação de agir segundo

determinadas regras e submetendo-se a ordem legal superior.

79

A justificativa para a organização de um poder local de

modo autônomo e detentor das prerrogativas de poder de Estado

reside na idéia de que o governo não pode estar totalmente

ausente das comunidades locais. Somente mediante a

constituição de pequenos núcleos de poderes públicos locais

seria possível assegurar a manutenção da ordem pública. Com

vistas a este objetivo, os governos locais receberiam

delegações e autonomia para agir de pleno acordo com as normas

constitucionais na solução dos seus problemas locais.

A análise histórica do poder local municipal no Brasil

aponta para a existência de alguns elementos que permanecem

até hoje como problemas.

Entre estes, menciona-se: a centralização excessiva do

processo decisório no nível federal impede que outras esferas

de governo, igualmente responsáveis pela realização do bem

comum, participem de mudanças significativas em âmbito

nacional ou estadual.

Outro problema ainda persistente é a enorme ambigüidade

de competência legal de cada esfera do poder público. A

legislação brasileira é marcada pelas competências

concorrentes, não definindo de modo preciso a responsabilidade

e a atuação de cada esfera do poder do Estado. Deixa para leis

ordinárias o estabelecimento de normas, no momento que ocorra

conflito de competências. O maior problema é, justamente, a

falta de definição precisa do nível de governo responsável

pela realização de obras ou serviços ao cidadão. No passado

este problema era mais acentuado. A Constituição de 1988

80

restringe em parte esse conceito ao trazer em linhas gerais as

definições e atribuições de cada uma das esferas de governo.

81

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO LEGISLATIVO DE FORTALEZA

2.1 O Município de Fortaleza

Para entendermos a dinâmica da representação política

em Fortaleza é importante levantar alguns aspectos das

transformações socioeconômicas e da expansão urbana nas

últimas seis décadas. O tipo de representação política na

Câmara Municipal de Fortaleza vai se alterando em função do

crescimento populacional, do nível educacional dos eleitores,

das relações entre Estado e cidadão, da consciência dos

direitos dos cidadãos, do surgimento de novas lideranças

comunitárias e da organização dos movimentos sociais.

A malha urbana expande-se de forma radioconcêntrica

acompanhando os antigos caminhos, as linhas de bonde e os

ramais ferroviários norte e sul. Na década de 1960, o

município de Fortaleza ainda continha área urbana, suburbana e

rural.

Nos anos 1940, Fortaleza, com uma população de 180.185

habitantes, poderia ser considerada uma cidade de porte médio,

que abrigava 8,61% da população do Estado do Ceará (2.091.032

habitantes.). Enquanto as atividades administrativas e

comerciais respondiam pelo pouco dinamismo da economia

cearense baseada na agricultura comercial e de subsistência, a

população urbana ocupava-se no comércio, na administração

pública, na prestação de serviços e numa atividade industrial

ainda incipiente.

82

No final da Segunda Guerra Mundial, de acordo com o

Serviço Nacional contra a Febre Amarela, a população do

município Fortaleza era de 271.243 habitantes, uma média de

4,4 pessoas por casa. Havia 15.596 mocambos, 38.914 prédios

térreos, 1.454 sobrados e 5.622 residências rurais, num total

de 61.596 moradias. O comércio de exportação de matérias-

primas e importação de produtos industrializados (máquinas,

automóveis, tecidos de lã e linho, ferro e aço) e de insumos

(carvão, chumbo, cimento, drogas, etc.) era realizado por 117

empresas. Todavia, o setor comercial era o “que mais concorria

para acumulação de capital, além de ser o maior empregador de

mão-de-obra existente” 7 (RIBEIRO, 1995 p. 69).

Em novembro de 1947, com o fim do Estado Novo, elege-se

de forma direta pelo Partido Republicano o primeiro prefeito

da capital, Acrísio Moreira da Rocha (1948-1951). Nesta

administração, em 9 de agosto de 1948, ocorreu a

municipalização da empresa inglesa Ceará Tramways Light and

Power Limited. Diante da má qualidade dos serviços, os bondes

são desativados e dada permissão para implantação de linhas de

ônibus.8 Embora o bonde tenha contribuído para expansão da

cidade, o ônibus deu maior flexibilidade ao seu crescimento,

7 Os limites da área urbana de Fortaleza foram estabelecidos pelo decretomunicipal nº 885, de 4.12.1948. Compreendia a conexão dos seguintes pontospartindo no sentido leste-oeste: “Farol do Mucuripe, Av. Pasteur, Av. OlavoBilac, até a Av. Bezerra de Menezes, até a estrada conhecida por Amingas,idem até a rua sem denominação que passava pela Igreja Salete,atravessando, na mesma direção a Av. João Pessoa. Prolongando-se para oleste, passa na parte norte do Sítio Paraíso, até encontrar o ramal daestrada de ferro do Mucuripe e por ele até a Av. Pinto Martins, por estaaté a estrada de rodagem de Fortaleza a Messejana e por ela até encontrar oramal de ferro já referido, até o Porto do Mucuripe (RIBEIRO, 1995, p. 70).8 Em 1948, existiam nove linhas de ônibus em Fortaleza, enquanto no final dadécada de 1950 já eram 56.

83

pois não exigia energia elétrica nem trilhos. Alguns bairros

tornam-se mais acessíveis em termos de transporte e a cidade

continua se expandindo de forma radioconcêntrica, ao longo e

no final das linhas.

Mapa de remodelação e extensão da cidade de Fortaleza. Plano geral – Divisão e nomenclatura dos bairros. Sistema de transporte de avenidas e de espaços livres. Plano de Saboya Ribeiro, 1948. Aprovado pelo prefeito Paulo Cabral.

A crise da agricultura tradicional, a concentração

fundiária e as secas periódicas contribuem para a expansão

urbana, com a fixação da população migrante na capital,

principalmente durante a seca de 1958. Na década de 1950, a

população passa de 270.169, em 1950, para 514.813 habitantes

em 1960, um crescimento intercensitário de 90,5%, quase o

dobro do crescimento da década anterior (1940-50), de 49,9%. O

cenário urbano altera-se, agravando-se os problemas econômicos

84

e socioespaciais, pois a capital não tem empregos, infra-

estrutura, serviços e habitação para atender a este grande

contingente de migrantes. Tal fluxo migratório é responsável

pela formação de favelas (Cercado do Zé do Padre, 1930,

Mucuripe, 1933, Lagamar, 1933, Morro do Ouro, 1940, Varjota,

1945, Meireles, 1950, Papoquinho, 1950, Estrada de Ferro,

1954, Pirambu, Poço da Draga e Cinza, 1955) e de bairros nas

periferias urbanas (COSTA, 2005).

Em 1961, o governador Parsifal Barroso solicitou ao

Instituto Joaquim Nabuco um estudo sobre as causas do êxodo

sertanejo para Fortaleza.9

Particularmente, em Fortaleza, no grupo etário de 5-14 anos,a taxa de alfabetização, que era de 57,6% em 1940, desceupara 39,4% em 1950, resultado por certo da migração decontingentes rurais não alfabetizados e não absorvidos pelarede escolar da Capital. É uma das conseqüências do rápidocrescimento demográfico da Capital não preparada paraabsorver os aumentos da população (CEARÁ, 1967, p. 29).

Conforme consta no relatório, a origem do grande

contingente de migrantes vindos para Fortaleza eram oriundos

de áreas próximas da capital. “A presença de grande massa de

pessoas vindas do interior do Estado tem determinado a

criação, em Fortaleza, de associações – chamadas de Centros

Municipais – congregando elementos naturais dos mesmos locais

ou áreas” (Idem, ibidem, p. 42). Segundo o relatório,

existiam, em 1959, em Fortaleza quatorze centros municipais.

“São entidades que reúnem elementos, em geral, de fracas

9 A pesquisa foi finalizada em 1963 na gestão do governador VirgílioTávora, e o relatório publicado como livro em 1967, na gestão do governadorPlácido Castelo.

85

possibilidades financeiras...”. Entretanto, essas entidades,

“com todas as suas deficiências, [têm] se transformado em

entidades de assistência social e em instrumento de

readaptação social dos migrantes...” (Idem, ibidem, p. 48).

O problema de habitação vai se tornando grave de acordo

com a elevação do contingente de população egressa do

interior. Como evidenciado em levantamento feito por Hélio

Modesto em 1961, existiam 59.300 pessoas morando em favelas na

capital.

Conclui o estudo: “É visível em Fortaleza, seja qual

for o ângulo sob que se examinarem as condições do seu

crescimento, a desproporção entre o volume das necessidades a

atender e o das necessidades realmente atendidas” (Idem,

ibidem, p. 72).

Com o novo sistema de transporte urbano, ônibus que

substitui os bondes elétricos, amplia-se a malha urbana. Novos

bairros se formam ao longo e no final das linhas de ônibus.

Para ter acesso a estes bens de consumo coletivo, os

moradores destas áreas mais carentes dependem da intermediação

de uma liderança, de um político. Isto fortalece os vereadores

com base territorial, pois, além de atender às reivindicações

individuais (assistência médica, material de construção,

etc.), estes intervirão junto ao executivo municipal para

implantação destes bens em suas bases eleitorais. Durante as

campanhas políticas, calçamento e iluminação serão os bens

públicos mais procurados. Mais adiante, com a chegada da

energia elétrica de Paulo Afonso, que melhora a distribuição

86

de energia elétrica e, com a descentralização urbana, outras

demandas surgem voltadas para a implantação de serviços

urbanos nos bairros, como escolas, postos de saúde, posto

policial, creche. Com o aumento do déficit habitacional, a

crise do Sistema Financeiro da Habitação, e conseqüente

extinção das Companhias de Habitação, as demandas se voltam

para habitação, construção de casas em regime de mutirão, nos

anos 1980 e 1990.

Na década de 1960, inaugura-se a experiência de

subprefeituras, dividindo-se a cidade em cinco áreas:

Mucuripe, Barra do Ceará, Messejana, Parangaba e Antônio

Bezerra. As três últimas áreas, além do Mondubim,

correspondiam a antigos distritos de Fortaleza. Estas

subprefeituras localizavam-se em bairros nos extremos da

cidade, vivendo uma experiência urbana isolada.

Graças aos incentivos da Sudene, a atividade industrial

se desenvolve concentrado-se na zona oeste e sul da cidade, ao

longo da avenida Francisco Sá, nos bairros Antônio Bezerra e

Parangaba, nas proximidades das rodovias e ferrovias; e a

leste, na zona portuária do Mucuripe (moinhos de trigo,

indústria da pesca, depósito de combustíveis, fábrica de

asfalto), atraindo para sua proximidade a população de baixa

renda.

Depois do golpe militar de 1964, o governo federal

passou a concentrar mais recursos financeiros e a controlar

política e administrativamente todo o aparelho de Estado,

reduzindo a autonomia dos Estados e municípios. Os prefeitos

das capitais são nomeados pelo governo estadual. A política da

87

habitação e dos transportes passa para a administração

federal. Empresas públicas foram criadas, estabelecendo o

controle do governo estadual sobre a exploração dos serviços

de água e esgoto (Saagec/Cagece), energia (Coelce) e telefonia

(Teleceará).

A condição de centro político-administrativo do Estado

confere a Fortaleza forte poder atrativo, pois estas

atividades são responsáveis pelo direcionamento de fluxos

migratórios, tanto de população de baixa renda como da classe

média, as quais vêm em busca de melhores condições de vida e

de investimentos.

Fortaleza, além de sede do governo estadual, abriga

representações de instituições públicas e filiais de empresas

privadas. A criação das universidades (UFC, em 1955, UNIFOR,

em 1973 e UECE, em 1977, e a instalação de filiais de empresas

públicas e privadas, de sedes dos órgãos federais (DNOCS e

Banco do Nordeste) e de instituições estaduais e municipais,

ampliam o número de empregos e permitem a constituição de novo

segmento de classe média, formado de professores

universitários, executivos, técnicos e funcionários públicos

(COSTA, 1988, p. 94-95).

Na década de 1970, com base na política do Banco

Nacional de Habitação, que utilizava recursos do FGTS para

financiar habitações populares a baixo custo, no intuito de

reduzir o déficit habitacional e responder às pressões

populares, vários conjuntos habitacionais foram edificados em

Fortaleza (Prefeito José Walter, Nova Assunção, Cidade 2000,

Ceará, etc.) e em municípios da região metropolitana. Estes

88

conjuntos, localizados em áreas distantes, foram fatores

fundamentais para a expansão da cidade. Os moradores

organizados exigiam do poder público infra-estrutura e

serviços, os quais favoreciam a valorização de vazios urbanos.

Nos anos 1980, os conjuntos habitacionais ultrapassam a

fronteira do espaço fortalezense e são implantados em

municípios da Região Metropolitana de Fortaleza (Nova

Metrópole, em Caucaia, Timbó e Jereissati em Maracanaú, etc.).

A extinção do Banco Nacional da Habitação levou à redução do

ritmo de construção de habitações populares. Com o aumento do

número de ocupações, as administrações municipais, apoiadas

por Organizações não-Governamentais, investem nos mutirões

habitacionais, usando a mão-de-obra dos mutirantes para

reduzir o custo das habitações. A construção deste grande

número de habitações populares alterou substancialmente a

organização espacial da antiga malha urbana das redes

municipais.

A migração campo-cidade acentua-se na década de 1980.

Com os elevados preços dos imóveis e dos seus aluguéis além

das altas taxas de desemprego, ocorre o aumento no número de

ocupações em áreas urbanas da RMF. A partir de então, os

vazios urbanos e a periferia foram sendo ocupados por favelas.

A abertura política, com eleições diretas para

prefeitos da capital e Presidente da República, e os períodos

de grande inflação, que punem principalmente a população de

baixa renda, foram fatores importantes para a mobilização de

milhares de trabalhadores e associações da sociedade civil na

89

luta por emprego, melhores salários, habitação, infra-

estrutura e serviços urbanos.

Neste contexto de mobilização da sociedade civil, é

eleita a prefeita Maria Luiza Fontenelle (1986-1988),

candidata pelo Partido dos Trabalhadores envolvida nos

movimentos sociais urbanos de Fortaleza. Verifica-se também

uma renovação na Câmara Municipal, destacando-se

representantes de diversos segmentos sociais, categorias

profissionais, associações de moradores, etc.

Na administração do prefeito Juraci Magalhães,

Fortaleza foi dividida em cinco regiões administrativas. Como

mostra o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de

Fortaleza por Bairros, que leva em consideração a taxa de

alfabetização, o número médio de anos de estudo dos chefes de

família e o rendimento médio mensal dos chefes de família em

salários mínimos, são profundas as desigualdades econômicas e

sociais nas diferentes regionais.

As zonas oeste e sul do município foram as que

apresentaram os menores IDHM. As regionais com o maior número

de bairros com IDHM baixo foram a V, onde dos dezessete

bairros existentes dez apresentavam IDHB menor de 0,500; e a

VI, onde isto se dava em quinze dos 27 bairros (PDDUA, 2003).

Os piores IDHB (abaixo de 0,400) foram apresentados nos

bairros Pirambu (0,391), Regional I; Cais do Porto (0,386) e

Dunas (0,391), Regional II; Autran Nunes (0,380), Regional

III; Genibaú (0,378), Parque Presidente Vargas (0,377),

Siqueira (0,377) e Granja Portugal (0,394), Regional V; Curió

90

(0,338), Pedras (0,352), Paupina (0,397) e Ancuri (0,398),

Regional VI. Por estes dados, conforme se observa, populações

com baixas condições de vida estão espalhadas por toda a

cidade, porquanto bairros ricos e de classe média são vizinhos

de bairros miseráveis (PDDUA, 2003).

Em 1995, a capital era considerada a quinta cidade mais

populosa do país, quarta colocada em déficit habitacional

absoluto e terceira em déficit relativo (19,10%). Em

Fortaleza, o déficit habitacional era da ordem de 85 mil

unidades, e na RMF, de 111.509 habitações (IPLAM, 1998).

Em 1998, a Proafa mapeou a distribuição de favelas e

núcleos favelados por bairro em Fortaleza e constatou que

19,3% do total de favelas encontram-se localizadas em quatro

bairros, sendo a maior concentração no bairro de Antônio

Bezerra, quase 5,8% do total, e Quintino Cunha, com 5,1%.

Cerca de 48% das favelas localizam-se em apenas quinze

bairros. Já o restante das favelas, 52,1% do total, distribui-

se por 64 bairros, caracterizando maior disseminação pela

malha urbana. Dos 114 bairros componentes da cidade de

Fortaleza, apenas 31, ou seja, 27,2% do total, não têm em seu

interior nenhuma favela ou núcleo favelado (PDDU-FOR, 2003).

De modo abreviado, esse é o percurso urbano da cidade

de Fortaleza nestas cinco décadas em que se observa profunda

transformação urbana e populacional, com reflexos na sua

representação política.

2.2 Construção do Sistema Político Municipal

91

No passado o eleitor era consciente. Votavapelo favor que fazia. Era pelo agrado. Agoranão, só vai comprando (Esposa do ex-vereadorJoaquim Pinheiro de Almeida).Eu saí candidato do Acrísio porque não tinhaprestigio nem dinheiro. Aliás, foi a únicaeleição que vi sem dinheiro. Não se compravavoto. Eu fui eleito porque falava em todos oscomícios do Acrísio. (Ex-vereador José CláudioOliveira).

Na análise da história das instituições do governo

local e seus problemas, conforme constatou-se, até a

Constituição de 1946 as Câmaras Municipais eram corporações

deliberativas. Com as mudanças introduzidas, o governo

municipal passa a ter um regime uniformizado, com

representantes do legislativo e executivo eleitos no mesmo

pleito, para igual tempo de mandato. Pode-se dizer que o atual

regime municipal tem início neste período.

Esta seção analisará as transformações no legislativo

municipal a partir da trajetória dos políticos (candidatos,

suplentes e vereadores), desde a eleição de 1947 (quando eles

passam a ser eleitos), até a de 1988, visando classificá-los

segundo suas características e bases eleitorais. Para efeito

de classificação, estou discriminando os vereadores em tipos

ideiais em três categorias: vereadores de comunidade de

bairros, vereadores ideológicos e vereadores institucionais.10

As informações colhidas sobre os membros da Câmara Municipal

10 Essa classificação em tipos ideais de vereadores será explicitada ediscutida mais adiante no capítulo 4.

92

de Fortaleza,11 em depoimentos de alguns ex-vereadores,

políticos contemporâneos e familiares e em documentos

disponíveis, foram sistematizadas objetivando, quando

possível, caracterizar cada legislatura e identificar as bases

eleitorais e atuação política dos vereadores. Mas em virtude

da escassez de informação a respeito dos antigos membros, isto

nem sempre foi possível.

Em 2 de dezembro de 1945, deveriam ocorrer eleições

gerais em todos os níveis. Entretanto, segundo o Tribunal

Superior Eleitoral determinou, nesse dia verificou-se apenas

para a Constituinte Federal e para Presidente da República.

Foi eleito Eurico Gaspar Dutra. Somente no dia 19 de janeiro

de 1947 – foram realizadas as eleições para constituintes

estaduais e governador, elegendo-se Faustino Albuquerque. As

eleições para as Câmaras Municipais e para prefeito

aconteceram no dia 7 de dezembro. A população de Fortaleza

escolheu para governá-la Acrísio Moreira da Rocha.

A história contemporânea da política e das eleições

municipais em Fortaleza começa em 7 de dezembro de 1947,12 com

11 Há uma enorme lacuna nesta reconstrução dos membros do parlamento emFortaleza. Alguns vereadores que participaram em determinada legislaturaressurgem muitos anos depois, indicando que abandonaram temporariamente acarreira política ou simplesmente ficaram na suplência, em disputasanteriores, sem assumir a função de vereador.12 A legislatura municipal de 1948-1950 foi de curta da duração, poisocorreu um ajuste do calendário em 1950, havendo eleições em todos osníveis (OLIVEIRA, 1986, p.382).

93

a eleição de Acrísio Moreira da Rocha13 e de 21 vereadores.14

Nela havia a chamada “bancada popular” por ser constituída de

oito vereadores do Partido Comunista do Brasil. Acrísio

Moreira da Rocha foi eleito para prefeito de Fortaleza pelo

Partido Republicano, juntamente com onze vereadores da sua

legenda, entre eles os ligados ao PC. Além dos onze

republicanos, a bancada de sustentação do governo era composta

por quatorze vereadores, dois dos quais egressos do PTB.15

No dia 1º de janeiro de 1948, os vereadores eleitos

tomaram posse. Era uma experiência nova para a cidade de

Fortaleza, que não contava sequer com uma sede para o poder

legislativo municipal. As sessões funcionaram,

provisoriamente, por quase um ano no Teatro José de Alencar.

Como não havia nenhuma estrutura institucional, dois

funcionários do poder municipal foram cedidos para servir na

Câmara Municipal e em seguida, mais dois foram nomeados

diretamente pelo presidente da casa.

A primeira legislatura durou três anos (1948-1951). A

composição da CMF refletia o Estado de redemocratização,

contando com grande influência dos comunistas. Variados

13 Acrísio Moreira da Rocha, filho do antigo líder político na PrimeiraRepública, deputado Manuel Moreira da Rocha, formava juntamente com seuirmão, Crisanto Moreira da Rocha, uma ala do PSD no Ceará. Ocupou o cargode Interventor Federal no Ceará entre 14 de janeiro de 1946 a 9 defevereiro de 1946. 14 Dos vereadores eleitos para essa primeira legislatura, estão vivos JoséJúlio Cavalcante, Edival Távora, José Cláudio de Oliveira e J.C. AlencarAraripe. 15 A representação dos partidos ficou distribuída da seguinte forma: PartidoRepublicano (11 vereadores), União Democrática Nacional (4 vereadores),Partido Social Democrata (3 vereadores), Partido Trabalhista Brasileiro (2vereadores) e Partido da Representação Popular (1 vereador).

94

segmentos estavam representados, sendo majoritários os

professores, profissionais liberais, funcionários públicos,

jornalista e locutor de rádio. Ao lado destes havia a bancada

popular, representada por líderes de categorias profissionais

(motoristas, operários, padeiros, carpinteiros, metalúrgicos).

Havia dois representantes com vínculos no universo dos

esportes: Gutenberg Braun e Edival Távora. Gutenberg havia

sido goleiro de futebol e Edival Távora era um esportista do

Clube Náutico. Havia também um capitão da polícia – Leôncio

Botelho,16 e um antigo integralista, Denizard Macedo, eleito

pelo PRP, com votação ligada aos círculos operários. Do ponto

de vista social, pode-se falar de ser uma Câmara constituída,

em sua maioria, por setores da classe média e representantes

genuínos das camadas populares.

O debate ideológico girava em torno de duas figuras que

polarizavam as atenções no interior da CMF: Américo Barreira e

Denizard Macedo. O primeiro representava as posições de

esquerda, enquanto o segundo, as forças conservadoras do

antigo integralismo.

A primeira legislatura é apontada pelos que dela

participaram como de “altíssimo nível intelectual”, pela

presença de professores, jornalistas, advogados,

representantes profissionais, desportistas, etc. Dos que

iniciaram a carreira política neste período pela CMF, quatro

obtiveram êxito como deputado estadual (Aldenor Nunes Freire,

16 Leôncio Botelho era capitão da Polícia Militar e havia sido ajudante-de-ordens do governador Faustino Albuquerque. Foi eleito pelo PR, sendo oprimeiro presidente da Câmara Municipal. Depois de ficar na suplência naeleição seguinte, volta à Polícia Militar (OLIVEIRA, 1986, p.195).

95

Edival Távora, Edmilson Pinheiro e Expedito Costa). José

Cláudio de Oliveira candidatou-se a deputado estadual, mas não

foi eleito. Alísio Mamede retornou às atividades como médico

pediatra e em outra eleição candidatou-se a prefeito pela

legenda dos comunistas. Quatro vereadores foram reeleitos para

a legislatura posterior: Américo Barreira, Lauro Brígido,

Gutenberg Braun e José Alves Albuquerque. Três vereadores não

se reelegem, ficam na suplência e assumem a legislatura

algumas vezes (José Diogo, Leôncio Botelho e Sebastião

Gonçalves). Destaca-se o vereador José Batista Barbosa, que

embora ocupe a suplência, permanecerá na política municipal,

sendo reeleito nos pleitos seguintes. Assim, da legislatura de

1948, dos 21 vereadores eleitos, 13 permanecem com ligações ao

sistema político formal, ora em continuidade à carreira

política, ora em atuação como vereadores ou suplentes de

vereadores. Oito retornaram às atividades privadas.

Segundo afirmou o ex-vereador José Júlio Cavalcante, em

entrevista a este pesquisador, ele não pôde entrar na cota dos

comunistas abrigados na legenda do Partido Republicano, pois

já havia “os sete candidatos de Prestes”. Por insistência do

seu irmão Adahil Barreto,17 político de prestígio na cidade,

saiu candidato pelo Partido Republicano na cota do Acrísio

Moreira da Rocha.

Adahil Barreto, meu irmão, chegou pra mim e pergunta se eunão gostaria de ser candidato a vereador. E eu disse quepela UDN, não, mas se ele conseguisse legenda no PR, euseria capaz de aceitar. Em seguida ele falou com o Acrísio e

17 Adahil Barreto foi deputado constituinte em 1947, candidato ao governo estadual em 1962 e membro importante da UDN posteriormente foi cassado peloAI-1. Faleceu em 1982 (OLIVEIRA, 1986).

96

o Crisanto18 e conseguiu. Quando ele conseguiu minhaindicação, eu fui à direção do Partido Comunista e consulteio partido que estava pretendendo ser candidato apoiado noprestígio do Adahil somando também meu prestígio de locutorde rádio. Eu talvez seja o primeiro vereador locutor eleitocom apoio de massa de ouvintes do rádio. O Partido disse queeu poderia me candidatar, mas só não poderia retirar voto doPartido (Depoimento do ex-vereador José Júlio Cavalcante,2003).

Os candidatos do Partido Comunista foram indicados pela

categoria profissional a que pertenciam: Manuel Feitosa pelos

marceneiros; Issac Maciel, pelos metalúrgicos; Lauro Brígido,

como empregado da rede ferroviária; Teófilo Cordeiro, pelos

motoristas; e Joaquim Valentim, pelos padeiros. Como disse o

ex-vereador José Júlio Cavalcante, “eram candidatos definidos

pelos próprios partidos”.

As várias facções que lá existiam eram disciplinadas,obedeciam aos seus partidos. Eu reputo a Câmara maisdemocrática e de mais substância que até hoje apareceu.Nunca vereadores foram eleitos tão descompromissados com asoligarquias, com os coronéis do que aquela Câmara. Era umaCâmara ligada ao povo, intrinsecamente ligada ao povo. Nósnão obedecíamos absolutamente a nenhum coronel. Era umaCâmara de posições independentes (Depoimento do ex-vereadorJosé Júlio Cavalcante, 2003).

Ao refletir sobre o processo eleitoral desta época,

José Júlio afirma: “A eleição não era feita na base de

dinheiro, mas do prestígio popular”. Sua candidatura foi

sustentada basicamente no seu prestígio de locutor de rádio e

do irmão político.

Conforme explica José Júlio, houve uma guinada política

esquerdista no PC e isto fez com que os discursos dos

18 Crisanto Moreira da Rocha, irmão do prefeito eleito, era deputado federal, residente no Rio de Janeiro e líder do PR no Ceará.

97

candidatos fossem se radicalizando e perdendo o apoio

inicialmente conquistado no primeiro mandato. Os comunistas

passaram a dar pouca importância ao trabalho parlamentar.

A base social de representação desta primeira

legislatura era constituída por lideranças de categorias

profissionais: quatro advogados, três professores, um

representante orgânico dos militares, um empresário, um

funcionário dos Correios, um líder de bairro, um desportista,

um jornalista e um radialista. A faixa etária dos vereadores

variava muito, pois havia o vereador mais jovem do Brasil, com

21 anos, e o mais velho, com 81 anos. Entretanto, a média de

idade era menos de 30 anos. Muitos deles estavam tendo sua

primeira experiência política. Entre os mais velhos

encontrava-se Leôncio Botelho, eleito primeiro presidente da

Câmara Municipal, Américo Barreira e Teófilo Cordeiro, este

com 81 anos. Américo Barreira é apontado por muitos como o

mais experiente da Casa pois, apesar de não ter participado de

nenhum parlamento, é identificado como membro do Partido

Comunista.

Uma grande disputa instala-se entre legislativo e

executivo. Em parte, devido a experiência inédita de um

legislativo e executivo oriundos das urnas, e também, pelo

comportamento populista do prefeito. Por gozar de muito

prestígio com a massa, Acrísio Moreira da Rocha mantinha-se

imune às críticas do legislativo, em função do seu

comportamento, desde a época em que foi interventor.

O Interventor instaurou em Fortaleza um governoeminentemente popular e ainda, na posse, abriu as portas doPalácio da Luz, literalmente, e todos adentravam pelas

98

dependências oficiais sem qualquer tipo de restrição....Para popularizar ainda mais sua administração, Dr. Acrísiorecebia em audiência quem o procurasse. Assim é que só nodia 29 de janeiro de 1946 conversou com mais de 200 pessoas,encaminhando seus problemas para os outros setores daadministração. Tudo isto, tornava o Interventor um políticoidentificado com a população, principalmente a camada maisbaixa que morava nos subúrbios de Fortaleza (MOTA, 2001, p.97).

José Cláudio de Oliveira, líder do prefeito na Câmara

Municipal na legislatura de 1948-1950, traça o perfil do

líder: Desportista, ex-craque da Seleção Cearense de Futebol, meia-direita do Fortaleza, gozava de grande simpatia. Tirou umretrato com a camisa tricolor e isso foi o bastante paramostrá-lo como homem simples, freqüentava o Café Baturité,bebia caldo de cana na Gruta e pega-pinto no Mundico, jogavano bicho e participava de rodinhas à porta da Livraria doComercial (OLIVEIRA, 1986, p. 387).

Dois episódios merecem registro nesta primeira

legislatura. No auge da campanha dos comunistas, para cassarem

o prefeito por falta de prestação de contas, Acrísio manda um

carro despejar todos os balanços da sua administração em

frente ao teatro José de Alencar, sede temporária do

legislativo municipal. Numa sessão de análise das contas do

executivo, Acrísio manda cortar a energia do recinto onde os

vereadores realizavam esta tarefa. Dizem que mesmo assim eles

continuaram os trabalhos à luz de vela. Estes dois episódios

retratam a disputa entre legislativo e executivo, e o modo

como os atores envolvidos percebiam seu próprio desempenho.

Condições adequadas de trabalho eram praticamente

inexistentes. As sessões se realizavam provisoriamente no

Teatro José de Alencar, contando com apenas cinco funcionários

99

cedidos pelo executivo. Por causa das dificuldades financeiras

do município, os vencimentos dos vereadores estavam

constantemente atrasados, mesmo tendo sido fixado o salário em

Cr$ 3.000 (três mil cruzeiros), um terço do que ganhava um

deputado estadual. No entanto, as finanças estavam sendo

organizadas (Depoimentos do ex-vereador Edval Távora, 2003).

Desta primeira legislatura, apenas dois vereadores

continuaram mantendo carreira política unicamente no plano

municipal. Gutenberg Braun, com base eleitoral na Aerolândia,

e José Batista Barbosa, na região do Seminário da Prainha,

permaneceram na vida política municipal até a década de 1980.

Os ex-vereadores falam de uma campanha política baseada

no convencimento sem compra de votos ou troca de benefícios.

Muitos se elegeram usando o prestígio pessoal que gozavam na

sua categoria profissional, como foi o caso dos comunistas.

Outros se apoiavam em personalidades políticas a eles

vinculadas. Dada a inexistência de vida política partidária

municipal, não é de estranhar que os primeiros representantes

do legislativo municipal tenham sido eleitos em parte devido

ao prestígio já conquistado entre determinados segmentos

sociais.

A primeira legislatura da Câmara Municipal de Fortaleza

tem poucos vereadores com representação de comunidades de bairros. A

preferência eleitoral, expressa nesta legislatura, não segue a

tendência de votação marcada pelos laços de moradia,

vizinhança e confiança, característicos dos vereadores que

detinham forte aglutinação de votos em áreas geográficas da

cidade. A única exceção a essa regra foi o vereador José

100

Batista Barbosa, que teve expressiva votação na área

residencial do Outeiro, região do entorno do Seminário da

Prainha, mas que conjugava uma base eleitoral advinda do mundo

do trabalho, pois era funcionário da fábrica Filomeno Gomes. A

maioria era constituída de representação de segmentos

organizados de trabalhadores, de profissionais, de comunidades

de interesses.

Numa cidade ainda pequena tanto espacialmente quanto em

número de habitantes, a eleição de 1947 pode ser vista como

uma exceção, em face do perfil social destes representantes.

Naquela época, a presença do rádio como veículo já era

importante para a construção da reputação política, como

ilustra o caso do vereador José Júlio e posteriormente, do

prefeito Paulo Cabral.

2.3 Os Primeiros Atores

Depois da derrota [na eleição de 1954], eu nãoquis mais me envolver, porque era muitodesagradável a pessoa estar pedindo voto. Fuicuidar da minha vida profissional (Ex-vereadorAlencar Araripe).Era preciso haver uma revolução para impedirque tanta gente incapaz, tanta gente ignorante,tanta gente que mal assina o nome chegasse acargos de direção política, seja no Município,seja no Estado (Ex-vereador Alencar Araripe).

Em 3 de outubro de 1950, a população foi novamente às

urnas para votar em eleição geral de presidente a vereador. No

Ceará, é vitoriosa a coligação PSD-PSP-PR, em quase todas as

esferas (governador, vice-governador, senador, Câmara Federal

e Assembléia Legislativa). Getúlio Vargas é eleito Presidente

101

da República e Raul Barbosa, governador do Ceará. Na capital,

houve uma coligação entre UDN, PDC e PTB. As eleições para

prefeito foram bem disputadas: a UDN lançou como candidato o

radialista Paulo Cabral; o PSD, o deputado Antônio Gentil; o

PR, o deputado Erestides Martins; o PTN, o médico Paulo

Machado e os comunistas, o médico Alísio Mamede (MOTA, 1998).

O vitorioso prefeito Paulo Cabral, com apenas 28 anos,

inexperiente na política, pois foi eleito em virtude de sua

projeção na Ceará Rádio Clube, esclarece as circunstâncias da

sua indicação e as razões da sua vitória eleitoral, em

depoimento a Aroldo Mota.

Na verdade, eu não escolhi a UDN para me candidatar aPrefeito de Fortaleza, pois a indicação cabia ao PTB. [...]Fui convencido a aceitar a candidatura a Prefeito, indicado,formalmente pelo PTB, pelos jovens integrantes doDepartamento Estudantil da UDN. Não tenho dúvidas de que acampanha da Santa Casa e aquela para socorrer as vítimas daenchente no Rio Jaguaribe (1948 e 1949, respectivamente)contribuíram fortemente para aumentar a minha popularidadede homem de Rádio e para minha eleição a Prefeito (MOTA,1997, p. 43-44).

A segunda legislatura foi empossada no dia 4 de janeiro

de 1951. Mais uma vez a eleição proporcional assegurou maioria

para o prefeito. A UDN elegeu seis vereadores (Alencar

Araripe, José Martins Timbó, Antônio Mendes, Francisco de

Paula Holanda, Luciano Magalhães, Secundiano Ferreira

Guimarães); o PTB, três (Francisco Edvar Pires, João Alves

Albuquerque, Raimundo Oseas Aragão); o PSP, três (Raimundo

Gomes Tavares, Valdemar Rodrigues Figueiredo, Sebastião

Baima); o PSD, três (Antônio Azin, João Ramos de Vasconcelos

César e Raimundo Ximenes); o PR, quatro (José Barros de

102

Alencar, Enoc Furtado Leite, Gutenberg Braun e Eulália Odorico

de Morais) e o PL, dois (Américo Barreira e Lauro Brígido).

Entre os eleitos, quatro haviam conquistado a reeleição:

Américo Barreira, Lauro Brígido, Gutenberg Braun e João Alves

Albuquerque.

João Alves Albuquerque e Lauro Brigido já haviam mudado

de partido. A CMF, oriunda da eleição de 1950, era

praticamente inexperiente, pois 80,95% dos vereadores estavam

no primeiro mandato. Além dos quatro reeleitos, Alencar

Araripe e João César já haviam participado da legislatura

anterior como suplentes, assumindo algumas vezes. Entretanto,

o que parece ser uma renovação muito grande se explica pelo

fato de muitos vereadores terem se candidatado a deputado

estadual. Praticamente, recomeçava toda a experiência

legislativa. Além destes fatos, nesta legislatura, ocorre a

cassação de mandato dos vereadores Américo Barreira e Lauro

Brígido. Como houve uma coligação entre o PR e o PL, as duas

vagas foram assumidas pelos vereadores do PR.

Na eleição de 1950, os comunistas do Ceará fundaram umasecção do Partido Libertador – PL – de origem gaúcha eliderada pelo Deputado Raul Pilla de formação conservadora.A direção nacional do PL cientificada da manobra comunistadirigiu impugnação perante o Tribunal Superior Eleitoral econseguinte êxito extinguindo a secção cearense do partido.Com esse abusivo ato os vereadores Américo Barreira e LauroBrigido Garcia, da Câmara Municipal de Fortaleza, perderamseus mandatos (MOTA, 1997, p. 118-119).

Nesta eleição, o fato mais relevante para o estudo da

representação política foi o surgimento de vereadores com base

eleitoral aglutinada em torno do bairro. Na CMF de 1948,

apenas o vereador José Batista Barbosa, líder comunitário,

103

tinha forte identificação com uma área territorial da cidade.

Em 1951, outros vereadores com o mesmo perfil de votação

concentrada surgem: Enoch Furtado, Raimundo Ximenes, José

Martins Timbó e José Barros de Alencar.

José Barros de Alencar, o imperador da Messejana

Merece destaque nesta legislatura José Barros de

Alencar, por sua longa trajetória na CMF, tendo base eleitoral

no distrito de Messejana, onde nasceu em 1923 e sempre morou.

Ingressou na política em 1948 na função de subprefeito deste

distrito. Em 1950, foi eleito vereador de Fortaleza pela UDN.

Sua vitória foi atribuída ao desempenho administrativo, pois

teve grande concentração de votos em Messejana. Ocupou por

diversas vezes a presidência da Câmara de Vereadores, em 1958

e 1959, e no período de 1961 a 1969.

Como outros vereadores de base territorial, Barros de

Alencar enfrentará, ao longo dos anos 1950 e 1960, a disputa

com outro vereador. Ambos atuavam na região da Messejana, mas

Raimundo Ximenes tinha maior controle da área correspondente

ao atual bairro Lagoa Redonda. Em nenhum momento sua eleição

foi fortemente ameaçada, apesar dos altos e baixos nos

resultados eleitorais. Somente na eleição de 1970 ficou nas

últimas posições da chapa da Arena, e em 1976 ficou na última

posição, com apenas 51 votos de diferença do primeiro

suplente. A partir da década de 1970, suas eleições já não são

mais tão folgadas como em décadas passadas. Manteve uma

carreira no legislativo, iniciada em 1950, e interrompida por

104

acidente automobilístico, vindo a falecer, em 1983, pouco

antes de assumir a cadeira na CMF.

A base eleitoral do vereador José Barros de Alencar não

se construiu imediatamente, mas ao longo dos seus trinta anos

como vereador de Fortaleza. É o vereador com mais tempo na

Câmara Municipal. Sua base de sustentação era mantida mediante

prestação de favores os mais diversos, do trabalho incansável

de assistência ao eleitorado e do bem estruturado mecanismo de

alistamento eleitoral. Há quem diga que Messejana inteira foi

alistada por seu intermédio.

Segundo um dos seus contemporâneos, José Edmar Barros

de Oliveira, ele “era uma figura inteligente de nascença,

muito observador. Homem que não era de tribuna, mas comedido

nas palavras e que impressionava pelo porte, gestos, ações

delicadas, aparência física e inspirava uma confiança”. Ao

longo da sua vereança, tornou-se uma peça-chave e “figura

necessária à Câmara pela sua têmpera, sua serenidade. Sabia

ouvir de um lado, sabia ouvir de outro”.

Dia de sábado Zé Barros ia para Messejana, cinco horas damanhã amanhecia lá e terminava dez, onze horas da manhãsomente atendendo. O que mais se usava era o cartão paranomeação, emprego, conseguir calçamento, posto, tudo quefosse possível à intermediação do vereador (Depoimento doex-vereador José Edmar).

Era um típico representante de comunidade de bairro,

pois em sua longa trajetória política nunca se candidatou a

outro cargo público e obteve sempre sua expressiva votação na

região da Messejana. Não tinha ambição em fazer carreira

política. Sem dúvida, foi o vereador de comunidade de bairro

105

mais importante que Fortaleza já teve pela sua capacidade de

manutenção de sua posição. Era designado pelos colegas e

jornalistas de “Imperador da Messejana”. Deixou como legado

político pessoas que ainda desfrutam do seu espólio eleitoral.

Na eleição de 1988, seu primo Solinésio Alencar foi eleito com

os votos oriundos da região de Messejana. Em 2000, o candidato

coronel Leonel Alencar, seu sobrinho, teve expressiva votação

neste mesmo local.

Jornalista Alencar Araripe e os votos da classe média

Para alguns, o envolvimento com a política ocorria em

decorrência da origem familiar. Este é o caso de Alencar

Araripe, de importante família do Cariri. Apesar da política

ser um caminho natural, a projeção que adquiriu no jornal O

Povo, como homem de imprensa, foi fundamental para sua carreira

política, que teve o seguinte slogan de campanha: “O

jornalista vive os problemas do povo”. Ele atribui a este fato

grande parte da sua eleição. “A reputação foi construída no

jornalismo. A minha projeção política foi pari passu com minha

projeção do trabalho no Jornal”. O ex-vereador assinala o

momento em que inicia seu envolvimento com a política:

Quando veio a reconstitucionalização, trabalhava num jornalque defendia a mesma política que defendia minha família.Meu irmão Antônio havia inclinação para a política.Participei da primeira eleição. Perdi por quatro votos, masfui convocado por certo período. Ao terminar estalegislatura, recebi elogios de Américo Barreira e LauroBrigido. Candidatei-me na eleição de 1950. Minha entãomulher trabalhou bastante. Eu obtive uma votação espetacularpara a época, 1196 votos (Depoimentos do ex-vereador AlencarAraripe, 2003).

106

Alencar Araripe, o mais importante vereador desta

legislatura, relembra sua trajetória até o momento em que se

elegeu pela primeira vez: “A política atrai e a gente, tenho a

impressão que a política é um dos instrumentos para servir ao

povo, à comunidade”. Porém a política não era vista apenas

como meio de atender aos interesses do povo, constituía também

como fonte de renda.

A política era também um meio de aumentar o poder desustentação da família. Eu já tinha muitos filhos. Eu mecasei em 1945 e em 1952 eu já tinha três ou quatro filhos.Eu via na política um meio de aumentar o sustento familiarporque o jornalismo compensava muito modestamente. Orendimento de vereador não era grande, mas era bem superiorao obtido na redação de um jornal (Depoimento do ex-vereadorAlencar Araripe, 2003).

Este depoimento de Alencar Araripe pode ser extrapolado

a outros membros do parlamento municipal. O ex-vereador José

Edmar Barros de Oliveira chama a atenção para o fato de que

nesta época Fortaleza era uma cidade muito pequena, com poucas

oportunidades de emprego. A política municipal, portanto, não

deixava de ser um atrativo importante. Muitos viam na condição

de vereador uma oportunidade de aumentar seus vencimentos.

Assim como na legislatura passada, esta também contava com

alguns edis sem muito envolvimento com o universo da política.

Na Câmara Municipal, Alencar Araripe se projeta como

líder da UDN e principal aliado do prefeito Paulo Cabral,

também radialista, como ele. O prestígio decorrente da

profissão de radialista garantia uma votação dispersa por toda

a cidade e em diversos setores da sociedade. Não mantinha

compromisso direto com nenhum segmento organizado e servia

107

como porta-voz apenas do que considerava de interesse público.

Quando se verifica sua atividade política, chama a atenção a

diversidade de segmentos a que se dirige. As ações políticas

mais diretamente relacionadas à sua condição de vereador, que

esperava ser reconduzido, eram orientadas para a construção de

chafariz, iluminação, construção de moradia popular, escolas,

calçamento em vários bairros da cidade.

A falta de uma base eleitoral organizada prejudica a

eleição de Alencar Araripe no pleito seguinte. Ele dedica-se a

dirigir o setor de imprensa da campanha a governador de Paulo

Sarasate, seu patrão no jornal O Povo, e dispensa pouca atenção

a sua própria campanha. Como ele afirma, sua derrota decorre

de um erro:

Eu não soube trabalhar. Eu fazia minha propaganda daseguinte forma: colocava um anúncio no Jornal com aidentificação da chapa e dizia que quem tivesse interesse emreconduzir o vereador Alencar Araripe à CMF, deveriarecortar o anúncio e enviar pelo correio para o endereçoespecificado. Pois bem, recebendo os recortes de jornal eume encarregaria num determinado momento de enviar as chapas.Eu recebi um grande número, mas acabei não enviando aschapas em tempo hábil. Quando fui cuidar, o correio jáestava superlotado com as entregas. Então muita gente deixoude votar. A chapa já era feita pelo próprio candidato. Mesmotendo as chapas em cada sessão, muitos tratavam de retirarou misturar para atrapalhar a eleição. Era difícil encontrara chapa de seu candidato no meio de tantas. Se eu tivessetrabalhado, corretamente, eu teria ganho (Depoimento do ex-vereador Alencar Araripe, 2003).

Neste momento, é comum a manutenção de laços

profissionais que rendem votos, aliada a uma base territorial.

Entretanto, para os vereadores que mantêm dupla base

eleitoral, a eleição não é fácil, em virtude de os eleitores

de bairro monopolizarem a representação. Ou seja, os

108

vereadores são forçados a concentrar seu trabalho unicamente

em um bairro, não podendo sequer ampliar sua área de atuação

para bairros vizinhos, pois geram descontentamento e correm o

risco de não serem eleitos. Isto cria um problema, porque ao

concentrar todo o esforço num único segmento, também podem

perder as eleições. Este problema vai se acentuar ao longo das

diversas legislaturas. Nem todos os vereadores, no entanto,

conseguem manter facilmente base eleitoral muito heterogênea.

Isto ocorre com mais freqüência com professores e funcionários

públicos, como era o caso do Edward Pires (Depoimento do ex-

vereador José Edmar, 2003).

Nesta legislatura, muitos são os vereadores com mais de

uma base de sustentação eleitoral. Todavia, alguns poucos

destes já se firmaram em uma única base eleitoral. Foram

identificados “segmentos” relacionados com base territorial,

categorias profissionais (funcionários públicos, militares,

professores e estudantes) e “prestígio social” (famílias

tradicionais, jornalistas, radialistas). Na legislatura

anterior, a CMF contou com um vereador com forte identificação

com a corporação militar - Leôncio Botelho, e nesta com outro

- coronel Holanda.

Na segunda legislatura da Câmara Municipal de

Fortaleza, começa a se estruturar um sistema de lideranças

centradas nos bairros mais periféricos da cidade. Estes

vereadores foram os que asseguraram com mais facilidade suas

reeleições.

Do ponto de vista político, ao contrário da legislatura

anterior, essa se caracterizou por maior tranqüilidade, menos

109

debates ideológicos e maior cordialidade com o prefeito. A

única exceção ocorreu na votação da mensagem do prefeito sobre

a criação da Serviluz.19

Na disputa política para a sucessão de Paulo Cabral,

Acrísio Moreira da Rocha era o mais forte candidato. A

oposição ao prefeito era feita justamente pelos “acrisistas”,

desejosos de retornar ao controle do executivo municipal.

2.4 Fortalecimento dos Vereadores de Bairro

Cada um tem seu modo de trabalharpoliticamente. Se prometer muito aquilo que nãopode fazer pode ganhar a primeira eleição, masa segunda não ganha mais. Tem aquilo que sepode fazer, senão se fica desmoralizado (Ex-vereadora Ivone Melo).Eu tenho uma cadernetinha que todo favor que eufaço eu anoto ali. Isto é importante (Ex-vereadora Ivone Melo).

Em 3 de outubro de 1954, ocorreram eleições gerais para

as três esferas do executivo e legislativo, tendo sido eleito

para presidente Juscelino Kubitschek (PSD) e vice João Goulart

(PTB), para governador Paulo Sarasate (PSD) e para prefeito

19 Em 1954, na administração do prefeito Paulo Cabral, foi instalada umatermoelétrica no bairro do Mucuripe, e criada a Autarquia Municipal deServiço de Luz e Força de Fortaleza, cuja função era a distribuição etransmissão de energia para a capital. Em 1962, a Serviluz passou adenominar-se Conefor – Companhia de Eletricidade de Fortaleza. Somente nosanos 1960, chega ao Ceará energia fornecida pela Companhia Hidroéletica doRio São Francisco, durante a administração do Governador Virgílio Távora(1964-1968) (COSTA, 2003).

110

Acrísio Moreira da Rocha (PR). Esta importante liderança

popular retorna à administração da capital.

Nestas eleições, o prefeito Paulo Cabral não conseguiu

fazer seu sucessor, o candidato pela UDN Raimundo Girão.20 A

Câmara Municipal ficou assim constituída: cinco vereadores

foram eleitos pela UDN (José Barros de Alencar, José Martins

Timbó, José Batista de Oliveira, Roberto Carvalho Rocha e René

Dreyfruss); quatro pelo PSP (Agamenon Frota Leitão, Manuel

Lourenço dos Santos, Raimundo Gomes Tavares e Djalma

Eufrásio); quatro pelo PSD (Mauro Benevides, Dorian Sampaio,

João Cavalcante e Walter Cavalcante Sá); quatro pelo PR

(Bezaliel Teixeira, Pedro Paulo Moreira, Raimundo Ximenes e

Valdemar Pedro dos Santos); três pelo PTB (Ademar Arruda, José

Ribamar Vasconcelos e Raimundo Oseas Aragão) e um pelo PRP

(Antônio Fernando Bezerra). Os eleitos foram empossados em

janeiro de 1955.

Esta legislatura, do ponto de vista histórico, tem uma

característica particular. Um grupo de vereadores é eleito,

conservando-se nesta função por diversos mandatos: José Barros

de Alencar, José Batista de Oliveira, Raimundo Ximenes, José

Martins. Dois deles se destacam: José Barros de Alencar, um

típico vereador de base territorial, por permanecer na Câmara

Municipal de Fortaleza por trinta anos ininterruptos; e José

Batista de Oliveira, pelo envolvimento político da família.

20 O historiador e advogado Raimundo Girão (1900-1988) foi prefeito deFortaleza (1932-1934), secretário de urbanismo de Fortaleza (1931-1932) nagestão de Tibúrcio Cavalcanti e primeiro secretário estadual de cultura.

111

Como oconteceu no último pleito, apesar de muitos

vereadores tentarem se manter na CMF, a taxa de renovação foi

muito alta (71,42%). Apenas seis conseguiram reeleição.

Até esta legislatura, observa-se uma taxa de renovação

muito elevada, dando a aparência de pouca continuidade e

estruturação em relação à anterior. Entretanto, já se

constatava a presença de um núcleo de vereadores com base

territorial firmando sua liderança no atendimento ao eleitor e

no mecanismo de alistamento eleitoral. O alistamento eleitoral

já começava a se configurar como mecanismo crucial. Nos anos

1970, torna-se o instrumento mais eficaz para reeleição usado

pelos vereadores com votos concentrados em bairro. Na

legislatura em exame, existem vereadores com identificação

territorial, mas ainda não se constituíam núcleo dominante. O

segmento de educação continuava possibilitando a construção de

reputação política com mais facilidade.

Mais uma vez, Fortaleza tinha um legislativo

inexperiente, pois a maioria dos seus membros cumpria o

primeiro mandato. A novidade nesta eleição será a presença de

vereadores com firme base eleitoral encravada em bairros,

constituindo em torno de si uma liderança fundamentada na

troca de favores. A CMF de 1955 contava com nove vereadores

com base territorial. Cinco foram reeleitos (José Barros de

Alencar, José Martins, Raimundo Ximenes, Raimundo Tavares,

Oséas Aragão e Pedro Paulo Moreira) e três estavam no primeiro

mandato (Ademar Arruda, José Batista de Oliveira e Djalma

Eufrásio).

112

O incremento populacional, resultante das migrações

rural-urbana, favorece a expansão da cidade, ampliando o

déficit habitacional e de infra-estrutura e serviços urbanos.

A população de Fortaleza salta de 270.169 habitantes, em 1950,

para 514.813, em 1960, um crescimento intercensitário de

90,5%, e o número de eleitores passa de 87.205, em 1950, para

79.483, em 1955, e para 110.990 em 1958. Proporcionalmente

acompanha o crescimento populacional.

Estes novos moradores de Fortaleza, de bairros mais

carentes, pressionam seus representantes no legislativo e no

executivo por trabalho, moradia e serviços públicos.

Inicialmente a demanda é por calçamento, pois para a

instalação das linhas de ônibus é preciso haver calçamentos.

Posteriormente, a solicitação é por energia elétrica, que era

fornecida pela Light até a sua municipalização pelo prefeito

Acrísio Moreira da Rocha, em 1948.

Esta intermediação com a administração pública é feita

por vereadores. Ao conseguir benefícios para os bairros, eles

fortalecem suas bases eleitorais territoriais.

No levantamento realizado sobre o perfil dos vereadores

desta legislatura, segundo se observa, mais uma vez a

representação na Câmara é relativamente heterogênea, pois

contempla a expressão de vários segmentos sociais. Convivem

vereadores com base territorial em bairros populares,

representantes de segmentos sociais não organizados, de

profissionais liberais, de sindicatos, etc. A composição

social não se altera muito. Maria Eulália, a única

representante feminina presente na legislatura passada, não se

113

reelege, ficando a Câmara composta exclusivamente pelo sexo

masculino.

Nesta legislatura, a idade média dos vereadores é de 30

anos, embora alguns tenham apenas 23, 24 e 25 anos. No

entanto, nenhum havia ultrapassado 50 anos, como ocorrera na

legislatura anterior. Todos estavam abaixo de 40 anos. Não

havia médicos. Predominavam advogados, contadores, educadores

(professores) e funcionários da prefeitura. Muitos destes

profissionais obtinham sua votação da classe média.

Neste momento da política municipal, muitos vereadores

já começam a montar estrutura de alistamento eleitoral. Com o

tempo, esse mecanismo torna-se imprescindível para a renovação

do mandato, como se pode observar no histórico dos vereadores

que se mantiveram mais tempo na CMF. Era este mecanismo que

assegurava ao vereador uma boa colocação em relação aos demais

concorrentes. As exceções são Dorian Sampaio, Agamenon Frota

Leitão, José Edmar Barros de Oliveira e Roberto Carvalho

Rocha, que não se baseavam neste instrumento, mas também não

tiveram uma vida longa no parlamento municipal, pois eram

vereadores que poderiam se classificar como institucionais,

ideológicos, com base em segmentos profissionais e de classe

média.

Os Oliveiras: base eleitoral territorial e familiar

Nesta legislatura sobressai a entrada da família

Oliveira na Câmara.

114

José Batista de Oliveira entrou na vida política em

1954, como vereador de base territorial, sendo substituído

pela esposa Maria José de Oliveira por mais de trinta anos, e

finalmente pelo filho Casimiro Neto, a partir de 2000.

José Batista de Oliveira nasceu em Pacatuba, no dia 26

de outubro de 1927. Foi eleito vereador de Fortaleza por três

mandatos consecutivos (1955-58, 1959-62 e 1963-66). Em 1996,

candidatou-se à Assembléia Legislativa do Ceará, foi eleito

por quatro vezes seguidas. Quando entrava no seu quarto

mandato no legislativo estadual, foi indicado para o Tribunal

de Contas dos Municípios. Em 1972 a esposa Maria José de

Oliveira o substitui na Câmara Municipal, e aí permanece por

mais de três décadas. Em 2000, a vereadora abandona o

legislativo, e apóia o filho Casimiro Neto, que é eleito para

a CMF em 2000, mas não consegue se reeleger em 2004.

Logo após ser nomeado para um cargo na administração

estadual, José Batista de Oliveira candidata-se a vereador,

poucos dias antes de encerrar o prazo, por insistência dos

“moradores do bairro” Bela Vista, que gostariam de ter um

representante na CMF capaz de lutar por seus interesses.

Elege-se, então, pela primeira vez em 1954, pouco tempo depois

de chegar ao bairro da Bela Vista, onde o irmão padre Alberto

Oliveira era vigário. A campanha foi feita basicamente por

familiares, principalmente pelo irmão padre, que gozava de

grande prestígio na paróquia.

A base eleitoral da família Oliveira é territorial e

familiar, contemplando a Bela Vista e bairros vizinhos. A

permanência da família na mesma residência desde 1953 ressalta

115

os vínculos afetivos, sociais e políticos com a região e os

eleitores (Depoimento da ex-vereadora Maria José de Oliveira,

2003).

O caso da família Oliveira é paradigmático para os

políticos que entraram na vida pública naquela época. Depois

de 1954, ela mantém ininterruptamente um representante na CMF.

116

2.5 Eleição de 1958: A Compra de Votos

Nosso escritório político é neste alpendre.Nosso atendimento sempre foi aqui. Nós nuncadeixamos de atender nossos eleitores. Deste otempo de José Batista de Oliveira que nossoatendimento sempre foi assim e aqui. Todo santodia nós damos nosso atendimento aqui até9h30minh, 10horas da noite (Ex-vereadora MariaJosé Oliveira).O poder legislativo é só pra legislar mesmo,embora num município pobre como o nosso, oeleitorado se aproxime muito do candidato, doeleito, pra pedir tudo. E o candidato não podedeixar de estar próximo ao prefeito, porqueprecisa atender às reivindicações do subúrbio(Ex-vereador Fiúza Gomes).

As eleições gerais de 1958 são marcadas por um período

de grande seca, miséria, desestruturação econômica e fortes

migrações para a capital. O contexto social e econômico

favoreceu a compra de votos,21 principalmente com o dinheiro

público vindo para ajudar as vítimas da seca, investir nas

frentes de trabalho. O PSD, partido do governo federal,

ampliou sua base eleitoral. Para Presidente da República foi

escolhido Jânio Quadros (UDN) e para governador do Estado do

Ceará, Parsifal Barroso (PTB).

O coronel Manuel Cordeiro Neto,22 do PL, apoiado por

forças conservadoras, elegeu-se prefeito em 3 de outubro de

1958. Em janeiro de 1959, tomam posse o prefeito e os21 Em depoimentos, atores políticos da época fizeram referência à compra devotos com dinheiro público nesta eleição. 22 Cordeiro Neto foi eleito com o apoio de setores da classe média e dosricos, mas sustentado principalmente pelo voto popular. Fez sua campanhabaseado na imagem do “homem da lata”, uma referência ao seu tempo de chefede polícia, quando determinou que os presos trabalhassem em construção deobras públicas.

117

vereadores: Quatro vereadores do PRT (José Ribamar

Vasconcelos, Raimundo Nonato de Morais, José Aluísio Correia e

José Batista Barbosa), quatro do PTB (José Barros de Alencar,

Antônio Ademar Arruda, José Araújo de Pontes e Hermenegildo

Barroso de Melo), três da UDN (José Batista Oliveira, Antônio

Costa Filho e José Martins Timbó), três do PSD (Walter

Cavalcante Sá, Dorian Sampaio e Pedro Pierre Lima), três do

PSP (Agamenon Frota Leitão, Mozart Gomes de Lima e Carlos

Cavalcante (Caio Cid), três do PL (Djalma Eufrásio Rodrigues,

Maria Mirtes Campos e José Edmar Barros de Oliveira), três do

PR (Raimundo Ximenes, José Maria Marques e Fiúza Gomes) e um

do PRP (Raimundo Rodrigues Pinto).

Fruto da alteração legal, nesta eleição ocorreu uma

mudança importante no legislativo: o aumento de três cadeiras,

passando de 21 para 24 vereadores.

Esta legislatura vai contar com vereadores mais

experientes, pois a taxa de renovação foi bem menor do que nos

outros pleitos (58,33%). Foram reeleitos: Ademar Arruda, José

Barros de Alencar, José Batista de Oliveira, José Martins

Timbó, Raimundo Ximenes, Djalma Eufrásio, Walter Cavalcante

Sá, Agamenon Frota Leitão, Dorian Sampaio e Raimundo

Vasconcelos.

Dos vereadores de primeiro mandato, muitos jamais

haviam pensado em se candidatar a um cargo eletivo quando a

oportunidade apareceu. Para os pertencentes a famílias com

envolvimento político, esta oportunidade se apresenta mais

cedo. Para os sem patrimônio político familiar, as relações de

amizade são motivadoras do mesmo intento. Outros ainda

118

entraram na política por relações de trabalho, ou como os

tradicionais vereadores de base territorial.

Ao refletir sobre a composição da legislatura de

1959, José Edmar afirma:

Na CMF de 1959-1963 ninguém era rico. O que tinha umasituação financeira melhor era o Aluisio Correia, AgamenonFrota era advogado já tinha uma situação financeiraindependente, Raimundo Pinto era médico tinha uma boasituação. Todos eram de classe média. Quem tinha maisdestaque financeiro era mesmo o Aluisio Correia que erafilho do Álvaro de Castro Correia que era um grandecomerciante em Fortaleza (Depoimento do ex-vereador JoséEdmar, 2003).

Nesta legislatura, destacam-se outros candidatos que

ficaram na suplência mais de uma vez: Paulo Mamede, Gutenberg

Braun, Luiz Aragão, Abel Pinto, Mário Nunes, Walter Cabral,

Fernando Bezerra, Antônio Azin, Pedro Paulo Moreira e Ernesto

Gurgel. Ressalto a presença destes vereadores porque alguns

deles serão protagonistas importantes em legislaturas futuras.

A trajetória dos vereadores Fiúza Gomes e José Edmar

Barros de Oliveira merece destaque. Mediante seus depoimentos

pode-se recuperar a forma de fazer política nesta legislatura.

Fiúza Gomes e a diversidade de base eleitoral

Fiúza Gomes nasceu em Caucaia, em 27 de fevereiro de

1925, filho de um grande proprietário rural, pessoa de

prestígio na região. O pai de Fiúza Gomes foi convidado, pelo

chefe do PSD coronel Fausto Santos, para se candidatar à

Câmara Municipal de Caucaia, mas não aceitou. Entretanto,

acabou indicando o filho Fiúza Gomes, que gostava “muito desse

negócio de conversar e tal”.

119

Em 1954, o jovem Fiúza, pequeno comerciante da cidade

de Caucaia (bodega), “ganhou a eleição, mas quebrou o

negócio”, por pura inexperiência.

Despertado pela idéia da política, veio para Fortaleza.

Graças a laços familiares com os Moreira da Rocha conseguiu um

emprego como fiscal de posturas23 da prefeitura. Neste emprego,

visitava os bairros periféricos, onde foi construindo uma base

de apoio, pois pretendia continuar na política como vereador

por Fortaleza.

Nesta primeira eleição na capital, Fiúza usou sua

condição de fiscal da prefeitura, e mais o apoio dado pelo

prefeito Acrísio Moreira da Rocha.

Comecei a trabalhar nos subúrbios de Fortaleza, juntamentecom o pessoal mais humilde. Fiscal de postura era mais estenegócio de fiscal de obra, fiscal de mercearia e coisa tal.E aí, comecei a fazer um bom relacionamento. Depois, passeia fazer um bom relacionamento com aquela intenção de sercandidato. E quando se aproximou a eleição, me candidatei etrabalhei muito no subúrbio de Fortaleza, conseguindo meeleger, nessa época, através Partido Republicano (do PR),que era o partido dos Moreira da Rocha (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).

Ninguém acreditava nas chances eleitorais deste jovem

recém-chegado a Fortaleza, sem nenhum conhecimento na cidade.

Apesar da descrença de todos, Fiúza Gomes foi eleito com 827

votos, o terceiro da lista do PR.

Em 1959, foi aprovado no vestibular para o curso de

Direito da UFC.

23 Fiscal da prefeitura era encarregado de vigiar o cumprimento do Código dePosturas. Fiscalizava as irregularidades na construção de obrasparticulares.

120

Fiúza, desde a eleição de 1958, tinha a intenção de

prosseguir na carreira política, acalentando o sonho de ser

prefeito de Fortaleza. Por isso, na Câmara Municipal,

trabalhava o nome para se tornar conhecido. Apesar de eleito

por partido de oposição (PR), Fiúza Gomes afirmava que tinha

boas relações com o prefeito, que antes de enviar mensagens à

Câmara, o consultava.

Eu fazia parte de um partido de oposição, mas não era umaoposição doentia. Era uma oposição sadia. E com estetrabalho que fazia a minha intenção não era mais servereador, já queria ser deputado estadual. E de deputadoestadual, então, alçar vôo pra prefeitura ou outra coisaassim (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).

No passado, a política era feita dentro de marcos

restritos, de uma base eleitoral definida e claramente

identificada com segmentos sociais ou com uma área de trabalho

determinada. A base eleitoral pressionava o vereador “a cair

necessariamente nos braços do poder executivo” para atender à

sua clientela política.

Fiúza compara a campanha do passado, feita na base

pessoal, direta com o eleitorado com a atual, via meios de

comunicação (televisão, rádio), de forma indireta. Hoje o

eleitorado escolhe o candidato por meio de suas propostas, não

havendo mais aquela necessidade de prometer resolver os

problemas de cada um (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes,

2003).

A campanha eleitoral era feita à base de visitas

pessoais aos eleitores, visitando, conversando e prometendo

muito. “De casa em casa, com um grupo trabalhando, aquela

121

coisa toda. Promessas e promessas vãs. Muita promessa se

fazia”, afirma Fiúza Gomes.

Nesta época, os pedidos mais freqüentes eram de poste

de iluminação. “Todo mundo pedia poste para rua”. Como não era

possível atender a todos e cumprir as promessas, o candidato

acabava não se reelegendo. Para compensar os votos perdidos, o

vereador deveria manter uma estrutura de alistamento

eleitoral, um dos mecanismos mais importantes para alcançar a

reeleição. Entre uma eleição e outra, o candidato perdia de

30% a 40% dos eleitores. Fiúza Gomes explica as formas de

conquista de votos:

A gente atendia os filhos dos eleitores com as bolsas deestudos da prefeitura. Então, quando não tinha mais estasbolsas ou acabava, a gente encaminhava para estasorganizações que recebiam subvenção da prefeitura. Dependiado bom relacionamento do vereador com o prefeito para que opedido de liberação de verbas, a abertura de crédito emfavor de uma entidade pudesse ser feito. São estesinstrumentos que asseguravam ao vereador certa visibilidadeno seu trabalho, pelo prestigio que podia ter, junto aoprefeito (Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).

Ainda conforme Fiúza Gomes, “era exatamente por causa

deste sistema de atendimento que o vereador ficava na mão do

prefeito”. Para o vereador era difícil manter-se

oposicionista, pois dependia do executivo para atender aos

pedidos do eleitorado. Desta forma, era impossível manter

independência em relação ao prefeito. E segundo Fiúza, isto

ocorria porque não queriam prejudicar os seus eleitores.

Na eleição de 1958, Fiúza não tinha uma base eleitoral

previamente estabelecida, investindo unicamente nas imediações

122

de sua residência. Além desta base territorial, ele contou com

o apoio do grupo Rosa Cruz.

Os bairros em que mais tive voto foi o Campo do Pio, SãoGerardo, Monte Castelo, Jardim América. Depois que eu saí daBezerra de Meneses fui morar no Jardim América. [...] Entãofiz minha base aí. Também nessa época quem já me deu uma boaajuda foram os Rosa Cruz. Eu sou membro Rosa Cruz. Eu tinhaaquela ligação. Não que eles trabalhassem, mas contei com ovoto deles, porque eu cheguei a ser mestre da Maçonaria. Fuivenerável na Maçonaria e Mestre na Rosa Cruz. Eles já tinhamum número relativamente bom de membros. E aquele número seexpandia para outros familiares. O reflexo do voto(Depoimento do ex-vereador Fiúza Gomes, 2003).

Como evidenciado, Fiúza Gomes não pode ser

caracterizado como um vereador que mantinha uma base

exclusivamente territorial. Na verdade, a base eleitoral no

bairro era acionada unicamente na época da eleição. Era

preciso cultivar e manter os laços com outros setores que

assegurassem uma base de representação eleitoral mais

consistente. No caso dele, este segmento era o funcionalismo

público municipal, pois foi presidente da associação dos

funcionários da prefeitura.24 Entretanto, ele não estava

sozinho nessa disputa, pois outros vereadores eram igualmente

funcionários da prefeitura e buscavam a mesma representação

eleitoral.

Além do voto conquistado na visita pessoal, o candidato

tinha apoio de grupos sociais com vinculação não política,

quer seja de natureza profissional quer de outra natureza. O

24 “Eu tive muito voto na prefeitura, era funcionário de lá e presidente daAssociação dos Funcionários da Prefeitura. Eu tive uma base muito boa defuncionários da prefeitura que votaram comigo” (Depoimento do ex-vereadorFiúza Gomes, 2003).

123

trabalho inicial era transformar estes tipos de vinculação com

uma adesão à campanha política.

A base eleitoral de Fiúza Gomes vinha de diversos

segmentos: dos funcionários da prefeitura, dos eleitores dos

bairros do subúrbio, do trabalho político nos bairros do

subúrbio, dos sindicatos, da maçonaria e dos Rosa Cruz.

Fiúza Gomes não mantinha uma estrutura de alistamento

eleitoral. Em virtude do elevado custo para ter acesso ao

título eleitoral, muitos vereadores, que montavam estrutura de

alistamento, se beneficiavam justamente destas dificuldades

para prestar este serviço importante e necessário ao eleitor.

Nesta legislatura, conforme afirmou em entrevista um ex-

vereador eram muito poucos os que não se serviam deste

mecanismo para assegurar uma quantidade de voto cativo.

Deputado estadual eleito em 1962 e cassado depois de

1964, Fiúza Gomes considera-se injustiçado, pois não era um

homem de esquerda, apenas ligado ao deputado Moisés Pimentel.

Para acabar a carreira deste deputado do PTB, os militares

cassam os políticos a ele vinculados. Depois desta experiência

política, retorna às suas atividades privadas. Em 1982, volta

à vida pública, e é eleito vereador pelo PMDB. Encerra sua

carreira política depois de 1988. Nesta eleição, segundo ele,

devido aos escândalos freqüentes, decepciona-se com a política

e não mais se candidata.

José Edmar Barros de Oliveira e o voto de prestígio familiar

124

José Edmar Barros de Oliveira nasceu em Baturité, em 15

de dezembro de 1936. Foi eleito vereador de Fortaleza em três

pleitos: em 1958, pelo PL, em 1962, pelo PR e em 1966 pelo

MDB. Em 1970, candidatou-se a deputado estadual, ficando na

segunda suplência. Como havia impedimento de licença para

deputados, ele nunca assumiu o mandato. Retorna à vida

pública, em 1988, como candidato a deputado estadual pelo PFL,

e fica na suplência, com 1.245 votos.

Filho de Edmílson Barros de Oliveira, médico de grande

prestígio na cidade, candidato a deputado estadual pelo PSB,

em 1954, que mesmo obtendo boa votação não se elegeu, pois a

legenda não atingiu o coeficiente eleitoral para levar nenhum

parlamentar à Assembléia Legislativa, a oportunidade para José

Barros de Oliveira entrar na vida pública ocorreu com a

criação do PL no Ceará em 1953:25 partido novo e com chapa

eleitoral a ser composta pela indicação de nomes de

candidatos. Desgostoso com a UDN, o líder político Miguel

Gurgel, ligado a Fernandes Távora, filia-se ao PL. Também

participa da criação deste partido, o dr. Edmilson Barros de

Oliveira

No momento da composição da chapa para a disputa

municipal, ocorreu o seguinte fato:

Véspera da composição da chapa. O Partido é novo, a chapaainda não está composta e são tantas cadeiras! Eu disse:“Papai porque o senhor não me bota?”. Ele disse: - “Meufilho, você vai é estudar”. - “Mas não papai, eu tenho meusamigos e o senhor, os seus clientes”. Enfim, papai meindicou para compor a chapa. Eu me desdobrei. Ele vendo que

25 Em 17 de novembro de 1945, o TRE manda registrar o diretório estadual doPartido Libertador, mas em 1950, Jáder de Carvalho pede o cancelamento detodos os membros do diretório estadual. Em 1953, Miguel Gurgel pede oregistro junto ao TRE do PL, em sua segunda fase (MONTENEGRO, 1980, p.150).

125

eu estava tomando gosto, se empenhou na minha candidatura eme elegeu. Papai pediu aos clientes, fez correspondência eme elegeu (Depoimento do ex-vereador José Edmar B. deOliveira, 2003).

A maior demanda dos eleitores era por postes de

iluminação, calçamento de ruas. Mas o eleitorado de José Edmar

era mais esclarecido, distribuído por toda a cidade, fruto do

prestígio profissional do pai médico, das suas relações.

Portanto, o voto de José Edmar não pode ser caracterizado como

de natureza ideológica, mesmo sendo disperso. Era constituído

na base do prestígio do pai como médico.

A mentalidade anterior era de se buscar um poste de luz,pois a cidade era pequena. Eu gostaria que você mandassecalçar minha rua e coisa e tal. Mas não deixava de ter,mesmo entre esses, pessoas lúcidas que viam que erapreferível um vereador que tivesse independência narepresentação a um calçamento transitório. Eu fazia partedeste eleitorado, não digo eleitorado de elite, porque nãoera elite. Era um eleitorado mais esclarecido, embora gentemodesta. Basta dizer o seguinte: eu me lembro que Fortalezaera muito pequenininha... Salvo não me engano, 470 sessõeseleitorais. Eu era votado em 420 sessões, quase 100%. Emquase todas, um voto, porque ali estava um cliente do papai,uma pessoa ligada a ele. Isto na primeira eleição. Nasegunda, multiplicou por três. Por que multiplicou? Porqueeu tive um desempenho que correspondeu ao daquele pessoalque votou comigo. Não foi porque andei arranjandocalçamento, nem poste, nem nomeação de professora, nadadisto! (Depoimento do ex-vereador José Edmar B. de Oliveira,2003).

Na primeira eleição, em 1958, José Edmar obteve 798

votos. Na seguinte, 2.800 votos. Este êxito eleitoral,26 em

26 “Na Câmara de 1958, eu comecei a apresentar um requerimentozinho aquioutro acolá, um nome de rua... Essas coisinhas que fui fazendo e ganheiexperiência. Quando chegou em 1962, eu tinha, na eleição de 1958, apenas798 votos. Quando foi em 1962 já obtive 2.800 votos. Fiz com que aexpectativa fosse correspondida. Quem recebe 700 e depois recebe mais detrês vezes, era sinal de reconhecimento” (Depoimento do ex-vereador JoséEdmar B. de Oliveira, 2003).

126

1962, ele atribui ao fato de ter correspondido às expectativas

do seu eleitorado, que era mais esclarecido. Portanto, sua

votação expressiva era sinal de reconhecimento por seu

trabalho na Câmara e não por troca de favores.

Eu tinha não um eleitorado de elite, mas um eleitorado maisesclarecido que achava que um poste de iluminação ou ocalçamento de uma rua não era a coisa mais importante.Porque por uma obra deste tipo, o vereador se comprometiacom os projetos do prefeito (Depoimento do ex-vereador JoséEdmar B. de Oliveira, 2003).

A formação de uma base eleitoral fixa tornava o

vereador refém do seu eleitorado, porque ele devia

constantemente estar beneficiando sua área de atuação. Os

benefícios demandados geralmente eram obras públicas

construídas por decisão do executivo. Para sua área de atuação

receber o benefício, o vereador devia se curvar aos interesses

do prefeito e perder sua independência,

A maioria dos vereadores da época de José Edmar

mantinha uma clientela e se submetia a este sistema de

dependência. Ao constituir uma base eleitoral definida e

reconhecida como tal, acabava comprometendo completamente sua

independência no legislativo. O vereador passava a agir não

mais como um agente representativo dos interesses de toda a

sociedade, mas unicamente dos seus eleitores.

As trocas mais freqüentes entre os vereadores e o

prefeito eram obras nos bairros, principalmente calçamento. No

início da década de 1960, os bens mais trocados por voto eram

postes de iluminação pública e contratos de emprego. Este tipo

de negociações entre prefeito e vereadores levava “a qualidade

127

da representação lá pra baixo. Porque ficava absolutamente

negociado, manietado. Ou vota nos projetos ou não nomeio sua

professora. Isto era comum”, afirma José Edmar.

Arranje quatrocentos metros de calçamento para tal rua,outros tantos metros para outro. E ficava preso aquelepessoal, botava dentista para aquele pessoal. Botava estascoisas bestas assim. E fugia da independência do parlamento.Quando o prefeito mandava sua mensagem, eles tinham quevotar do jeito que estava senão o calçamento não saía(Depoimento do ex-vereador José Edmar B. de Oliveira, 2003).

A política, a eleição é uma loteria, um jogo, uma

oportunidade. Esta é a imagem que melhor sintetiza o

entendimento de José Edmar Barros de Oliveira sobre a

política. “Uma eleição é uma loteria. Quando o candidato

perde, se sente extremamente desmotivado a tentar uma nova

eleição”. Apesar de contar com regras definidas, existe uma

grande margem de manobra que permite os atores se movimentarem

livremente, o que acaba provocando sempre resultados

inesperados para os demais jogadores.27

No início do seu primeiro mandato na Câmara em 1958,

José Edmar se comportava apresentando “um requerimentozinho

aqui outro acolá, um nome de rua”, e com isto foi ganhando

experiência.

O primeiro momento na Câmara foi de observação,estabelecendo bom relacionamento com os pares. Enfim,vivenciando o que seria a Câmara porque eu não sabia nem doque se tratava. Sabia apenas que era uma casa derepresentação popular. Mas quais eram suas tarefas, as

27 Uma eleição é uma situação típica de um sistema de interação interdependente emque os atores sociais, mesmo sendo atores racionais e desenvolvendoestratégias para alcançar seus objetivos, não têm assegurado o resultadoesperado porque é uma ação cujo resultado depende do desempenho dos outrosatores envolvidos no sistema.

128

comissões técnicas, estas coisas nada eu sabia. No primeiroano eu fui eleito para a Comissão de Urbanismo, era umaComissão muito apagada, quase inexpressiva. O vereadorconsiderado de maior experiência era José Barros de Alencar.Havia vereadores que eram bons de tribuna. Entre eles DorianSampaio, Agamenon Leitão, Raimundo Vasconcelos (Depoimentodo ex-vereador José Edmar B. de Oliveira, 2003).

José Edmar foi eleito pelo Partido Libertador, o mesmo

do prefeito coronel Cordeiro Neto,28 mas logo acabou rompendo

com o poder executivo, por discordar da não renovação dos

contratos de 400 ou 500 professoras primárias. O prefeito

estava criando a Guarda Municipal e só tinha recursos para

recontratar umas 200 professoras. José Edmar cria uma

indisposição com o prefeito, ao fazer seu primeiro discurso

oposicionista, que tem certa repercussão. “Como um sujeito

troca educação por botas”.

A trajetória dos partidos deve ser sempre analisada, a

cada momento, em função das decisões individuais. Em 1958,

Edmar Barros foi eleito pelo PL, mas logo em seguida o

prefeito que havia sido eleito pela legenda abandona o

partido, e este vai se esvaziando. Na eleição de 1962, José

Edmar mudou para o PR dos Moreira da Rocha.

28 O líder do prefeito na época era o vereador Antoni Costa.

129

2.6 Tempo de Fixar as Bases

Fizemos uma reunião de família e eles aceitarama gente explorar o povo que morava nos terrenosdos Carvalhos. Vovô fez uma cartinha para osmoradores. Aí eu montava no cavalo e a gentesaía de porta em porta, não existia rua, eraumas veredinhas. As reuniões da gente eram comuma lamparina na cabeça (Ex-vereadora IvoneMelo).A decisão de ser candidato foi minha, masrecebia estímulos dos grupos organizados dosestudantes aos quais eu era vinculado (Ex-vereador Manuel Arruda).

A eleição de 1962 ocorreu em um contexto histórico,

político e econômico bastante conturbado. Jânio Quadro, eleito

pela coligação UDN-PL-PTN-PDC, em 1960, renuncia em 25 de

agosto de 1962. Depois de muitos impasses, assume a

Presidência da República em 7 de setembro de 1962, no regime

parlamentarista, o vice João Goulart, eleito pelo PTB,

político identificado com a esquerda trabalhista. O primeiro

ministro era Tancredo Neves, deputado do PSD mineiro. De

acordo com o plebiscito, foi aprovada a volta ao

presidencialismo.

Neste governo populista, os movimentos sociais no campo

(ligas camponesas) e na cidade (movimento sindical,

estudantil, etc.) eclodem e crescem as reivindicações e lutas

por reformas sociais. Ampliam-se os conflitos entre patrões e

empregados, e as greves gerais são deflagradas, gerando um

regime de instabilidade política.

130

Apesar do incipiente processo de industrialização do

Ceará, Fortaleza é um pólo de atração das populações

migrantes. Esse crescimento aumentou a defasagem entre o

tamanho da população, a oferta de emprego e as condições de

infra-estrutura e serviços urbanos. Nas periferias alojam-se

estes migrantes, que se mobilizam e pressionam o poder público

por trabalho, moradia e serviços públicos. Nas décadas de 1950

e 1960, na vizinhança do Centro, surgiram as favelas da

Estrada de Ferro, Pirambu, Morro do Ouro, Poço da Draga e

Cinza. Agravam-se os problemas sociais.

A população de Fortaleza passou de 270.169, em 1950,

para 514.813 habitantes em 1960, um incremento populacional de

244.649 habitantes, ou seja, um crescimento intercensitário de

90,5%. O crescimento migratório foi de 158.629 habitantes,

quase o dobro do crescimento vegetativo - 86.020 habitantes

(PLANDIRF, 1972).

Neste contexto, foram realizadas as eleições para as

esferas estadual e municipais de 1962, tendo sido eleitos por

voto direto o governador Virgílio Távora e o prefeito Murilo

Borges Moreira.

Na capital, enfrentam-se as forças progressistas e

conservadoras. O bloco de esquerda tinha dois candidatos: o

presidente do Sindicato dos Bancários, Moura Beleza (PST), e o

irmão do ex-prefeito e deputado estadual, Péricles Moreira da

Rocha, PR e PRP. O grupo conservador tinha também dois

candidatos, o general Murilo Borges, eleito prefeito pelo PL,

mas oficiosamente apoiado pela UDN, PSD e PTN, e o ex-vereador

José Cláudio de Oliveira, pelo PSP e PRP.

131

Os partidos ficaram assim representados na Câmara

Municipal: o PTB elegeu cinco vereadores (Mário Nunes, José

Barros de Alencar, Ademar Arruda, Gutenberg Braun e José

Araújo Pontes); o PR, cinco (Evaldo Ximenes, René Dreyffus,

José Edmar Barros de Oliveira, José Maria Marques e José

Aluísio Correia); o PSP, quatro (Lauro Rodrigues, José

Carvalho Melo, Walter Cavalcante Sá e Edwar Arruda); o PSD,

quatro (Walter Cabral, Sebastião Praciano, Maria Mirtes Campos

e Pedro Pierre Lima); o PRT, três (José Ribamar Vasconcelos,

José Batista Barbosa e José Lima Monteiro); o PTN, três

(Mardônio Botelho, Edwar Pires e Roberto Carvalho Rocha); o

PST, três (Luciano Barreira, Sandoval Bastos e Tarcisio

Leitão); a UDN, dois (José Batista de Oliveira e José Martins

Timbó); o PDC, dois (Manuel Aguiar de Arruda e Edmilson

Bindá); o PSB, um (Arlindo Sá) e o PRP, um (Antônio Fernando

Bezerra).

Na Câmara Municipal, houve uma elevação de 24 para 36

vagas. A ampliação de doze cadeiras no legislativo municipal é

significativa, pois expressa, já na época, o grau de

acirramento das disputas políticas.

Do ponto de vista da caracterização do legislativo

municipal, havia a formação de uma bancada com mais

experiência, no total de quinze vereadores que estavam pelo

menos no segundo mandato. A taxa de renovação desta eleição

foi de 57,14%, contra 41% que foram reeleitos, o que

possibilitou significativa estabilidade política. Existia um

grupo constituído por nove vereadores. Estes, desde o final

dos anos 1950, asseguravam a renovação do mandato: Ademar

132

Arruda, Evaldo Ximenes, Aluísio Correia, Araújo de Pontes,

José Barros de Alencar, José Batista de Oliveira, José Batista

Barbosa, Ribamar Vasconcelos e Walter Cavalcante Sá.

Esse núcleo era constituído pelos vereadores com forte

atuação nos bairros, os quais praticavam uma política de

assistência ao eleitorado, mas mantinham a renovação do seu

mandato sempre usando do mecanismo de alistamento eleitoral.

Quase todos os vereadores com base em bairro adotam este

mecanismo de alistar os novos eleitores. Alguns, porém, se

especializaram neste instrumento como modo de assegurar um

eleitorado cativo do primeiro voto. Deste grupo dos mais

experientes e com bases fincadas em comunidades de bairro, é

preciso excluir Aluísio Correia e Ribamar Vasconcelos. Aluísio

Correia não tinha uma votação centrada em assistencialismo.

Segundo depoimentos de antigos colegas, sua votação procedia

de ligações familiares, típico de classe média, enquanto

Ribamar Vasconcelos, como já referimos, tinha sua base

eleitoral centrada na natureza da sua atividade profissional

como professor.

Depois da quinta eleição municipal sucessiva, já se

pode afirmar que o acesso e seleção ao legislativo municipal

se fazia de forma gradual. Ou seja, raramente um candidato

ganhava um pleito eleitoral na sua primeira tentativa. Dos

vereadores, 36% aparecem como tendo seu primeiro mandato, mas

muitos dos que aparecem como novatos na verdade já foram

candidatos em outras eleições. Dois exemplos sobressaem:

Manuel Arruda e José de Carvalho Melo, candidatos na eleição

133

anterior, ficando na suplência, sem oportunidade de assumir a

função de vereador.

Até este momento, o acesso ao legislativo municipal

passava por uma campanha satisfatória, boa votação que

assegura uma suplência, podendo ou não ser convocado, e na

eleição seguinte ocorria a conquista da cadeira. A vitória não

assegurava a consolidação da base política eleitoral, pois

muitos são os exemplos de vereadores que depois da primeira

vitória voltam à condição de candidatos potenciais. Destacam-

se em cada eleição como candidatos com grande votação, mas

insuficiente para garantir a cadeira no parlamento. Há o caso

do vereador Gutenberg Braun, que depois de conquistar uma

cadeira na Câmara em 1948 permaneceu ao longo de vários

pleitos, alternando a vitória com a suplência. Este é um

padrão de comportamento eleitoral relativamente comum. Outros

conquistam uma única vez uma cadeira no legislativo e depois

não conseguem se reeleger. Disputam todas as eleições

seguintes, mas sua votação vai sempre decaindo.

Nesta legislatura, chama a atenção o fato de haver um

expressivo número de vereadores de partidos com posições

ideológicas de esquerda. Isto se explica pela natureza da

campanha política de 1962, na qual as forças de esquerda

estavam divididas entre os candidatos Péricles Moreira da

Rocha e Moura Beleza. Menciona-se, também, o contexto nacional

de crescente acirramento ideológico por causa das posições de

João Goulart.

O golpe militar de 1964, instalando um regime político

ditatorial, altera as relações políticas no país, com reflexos

134

em todos os níveis de governo. Uma resolução aprovada em 7 de

abril de 1964 levou à cassação dos mandatos dos vereadores

Tarcísio Leitão (PST), Manuel Arruda (PDC) e Luciano Barreira

(PSB). Em decorrência dessas cassações e de outras, muitos

suplentes assumiram cadeiras na CMF, inclusive vereadores não

reeleitos.

Para situar o modo como ocorreu a eleição de 1962,

sirvo-me das informações de três vereadores desta legislatura:

José Carvalho de Melo, de base territorial, que deixa

herdeiros na CMF; Manuel Arruda, professor de ensino médio, um

vereador ideológico, com base no movimento estudantil, e

Sandoval Bastos, um prenúncio de vereador institucional. Ao

ressaltar a trajetória destes três vereadores, não os estou

tomando como representativos do universo da política na época,

mas chamando a atenção para a diversidade de práticas

existentes.

A família Melo e o controle de uma nova área da cidade

Eleito pelo PSP, o vereador José Carvalho de Melo29

nasceu em Fortaleza de uma família rica. Era neto do coronel

Carvalho, grande proprietário de terras da região da Barra do

Ceará. Candidatou-se pela primeira vez em 1958, por incentivo

do então vereador Haroldo Jorge Vieira. Acreditava que poderia

receber os votos dos moradores do seu avô. Com o apoio e carta

do coronel Carvalho solicitando voto para o neto, José

Carvalho e a esposa Ivone Melo visitavam os moradores a

29 Ivone Melo, esposa do vereador José de Carvalho Melo, diz que a escolhado PSP foi porque o líder deste partido no Ceará, Olavo Oliveira, eraadvogado do coronel Carvalho.

135

cavalo, pois não havia estrada (Depoimento da ex-vereadora

Ivone Melo, 2003).

A família Carvalho possuía em Fortaleza uma légua

quadrada de terra.

Ali da Dr. Theberge (era rua do Travessão)... Da Dr.Theberge até o rio na Barra do Ceará; e das Goiabeiras até aSargento Hermínio. Tudo era da família Carvalho, do avô domeu marido. Estes terrenos todinhos... Essa gleba deterra... era uma gleba quadrada de terra... O vovô, ocoronel Carvalho era um homem muito bom de coração. O JorgeVieira incentiva: “Por que você não se candidata a vereador?Você pega este povo todinho que o coronel Carvalho deuterra. Visita todos e pede pra votar em você!!”. Aí aquelacoisa ficou na cabeça do Zeba. Aí nós perguntamos ao vovôCarvalho se ele consentia. Ele disse que era uma boa(Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).

O eleitorado do candidato José Carvalho de Melo

constituía-se unicamente dos moradores das terras do seu avô e

mais os familiares da família Carvalho. Este contingente

eleitoral não foi suficiente para elegê-lo em 1958 entretanto,

ficou na primeira suplência e chamou a atenção dos políticos

locais, pois havia conseguido uma votação expressiva sem

nenhum apoio.

Em 58, a campanha foi feita somente por mim e ele e oseleitores eram os moradores e as famílias. A minha família,meus tios, minhas tias, os tios dele, as esposas, osesposos, só família já foi nosso alicerce (Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).

Depois da primeira tentativa eleitoral em 1958, é

incentivado pelos amigos a permanecer na política e se

preparar para as próximas eleições. O casal assim faz,

contando não apenas com os votos dos moradores do coronel

Carvalho, mas do bairro Padre Andrade, região mais habitada,

136

para onde haviam mudado dois anos antes da campanha política

de 1962.

Em 1962, nós já tivemos o apoio dos grandes. Naquela épocaera a União pelo Ceará. Então aí nós já tivemos a proteçãodo Parsifal Barroso, que era o governador, que era PSD. AUnião pelo Ceará uniu UDN e PSD. Aí, botaram o Virgílio(Távora) governador e Murilo, prefeito (Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).

A base eleitoral em 1962 foi constituída dos moradores

do coronel Carvalho mais o eleitorado do bairro.

A minha casa era aberta pra todos. Eles começaram a nosvisitar e foram surgindo os pedidos. Nas reuniões, não eracomício, eram reuniões fechadas. Então nós marcávamos areunião com o Murilo (Borges) e algumas com Virgílio Távora.As reuniões juntavam em torno de vinte a trinta pessoas. Nósconvidávamos os líderes, as pessoas que nos acompanhavam nasreuniões e que sabiam falar (Depoimento da ex-vereadoraIvone Melo, 2003).

O trabalho eleitoral de 1962 começou bem antes, pois

logo que chegaram ao bairro, alugaram uma casa e montaram uma

escolinha. Esta escola é a primeira “obra social” da futura

vereadora Ivone Melo. Implantada a escola, Ivone Melo assegura

que de imediato conseguiu salas de aula e professores pagos

pelo governo do Estado do Ceará. O contato político com

Virgílio Távora foi extremamente proveitoso, pois ainda na

campanha de 1962 houve a promessa de construção de um chafariz

para o bairro. O chafariz foi construído, sendo esta a

primeira obra inaugurada quando José Carvalho já era vereador.

Os outros benefícios vieram em seguida: iluminação pública,

calçamento e construção de uma escola.

A iluminação foi até o fim da linha do Padre Andrade, porqueantes só tinha iluminação até onde eu morava. Quandoatravessava o trilho de ferro era tudo escuro. A iluminaçãochega ao fim da linha de ônibus do Padre Andrade e foi

137

construída uma escola de 1º Grau, lá pra dentro, nas areias.Algumas pessoas acharam ruim, porque ao invés de teremconstruído a escola ali no Padre Andrade, não, foramconstruir lá dentro. O meu trabalho era pra o povo não ficarcom raiva: “Minha gente, essa escola indo lá pra dentro vailevar calçamento, vai levar telefone e vai levar luz”. Essasforam as promessas que eles fizeram e cumpriram todas(Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).

Como afirma Ivone Melo, mesmo na época quando seu

esposo era vereador, o povo procurava mais ela do que ele.

Porque geralmente quem fazia o trabalho comunitário era eu,de assistência era eu. Ele ia pras repartições arrancar oque o governo tinha prometido e eu em casa fazia aquelaassistência todinha. Eu dava leite, dava remédio. Eu tinhadois lactados. Eu tinha farmácia que fornecia remédios. Eutinha clube de mãe pra dar de tudo. (já na administração emque ele era.) O povo começava a conversar todo tempo comigo.Nem fazia questão de conversar com ele (Depoimento da ex-vereadora Ivone Melo, 2003).

Já na campanha para prefeito, Murilo Borges havia

prometido o cargo de superintendente da Fundação Social de

Fortaleza para um vereador, de modo que fosse convocado seu

suplente. Edwar Arruda assume por pouco tempo, e é substituído

por José Carvalho de Melo. A esposa Ivone Melo assumiu o papel

de secretária do superintendente

Entre outros encargos, a Fundação era responsável pela

compra e instalação de televisores nos bairros. No local onde

houvesse um chafariz, poderia ser instalada uma televisão

pública. E assim foi feito em vários bairros, de acordo com a

solicitação do vereador. O prefeito encaminhava a solicitação

para a fundação providenciar. Graças ao trabalho na Fundação,

Ivone Melo se elegeu vereadora para a legislatura seguinte,

1966.

138

Manuel Aguiar de Arruda: vereador de base ideológica

Manuel Aguiar de Arruda nasceu em Massapê em 24 de

novembro de 1931. Morou em várias cidades do interior, onde

fez seus estudos, e veio em 1943 para Fortaleza. Em 1947 foi

aprovado no exame de admissão ao Liceu do Ceará. Em 1960

concluiu o curso de Direito na UFC. Em seguida fez cursos de

Geografia e Filosofia. Militante do movimento estudantil desde

a época do Liceu, chegou a dirigir o Centro Estudantil

Cearense e a presidir a União Estadual dos Estudantes.

Sobre o início da sua vida política, afirma:

Em 1954 eu apoiei e trabalhei para um colega de movimentoestudantil João Amadeu Vasconcelos, cujo slogan era:estrague seu voto, votando em João Amadeu Vasconcelos.Porque a política estava tão desmoralizada com promessas epara chamar a atenção. Ele foi candidato pelo PSB. Tevemaior votação, mas não se elegeu porque não atingiucoeficiente eleitoral partidário. Em 1958 pensei em sercandidato a vereador. Eu tinha um irmão que era do PSP.30 Fuicandidato por este partido, mas não tinha nenhum vínculoideológico e programático com o partido, era apenas parausar a legenda. Fui candidato e perdi por apenas doze votos.Eu não gosto nem de falar disto porque é tão longe de tudoque eu pensava (Depoimento do ex-vereador Manuel Arruda,2003).

Manuel Arruda, diante do caso do amigo João Amadeu, que

apesar da boa votação não foi eleito, pois o partido não

atingiu o coeficiente eleitoral, resolveu se filiar ao PSP.

Para garantir sua eleição, ele precisava de uma legenda forte.

Militante e fundador da ala esquerda do Partido Democrático

Cristão, participou ativamente da campanha do líder sindical

30 Manuel Arruda é irmão do ex-deputado Francisco Vasconcelos de Arruda, umdos fundadores do Centro Estudantil Cearense em 1931. É considerado porseus contemporâneos o maior líder estudantil do Ceará.

139

Moura Beleza à prefeitura de Fortaleza e do líder nacionalista

e de esquerda Adahil Barreto para o governo do Estado.

Quando dirigente da União Estadual dos Estudantes,

Manuel Arruda já tinha o plano de ser vereador. Enquanto isto,

vários outros candidatos atuavam no segmento universitário,

como Tarcísio Leitão e Tarcísio Leite. Obteve, entretanto, uma

votação expressiva no bairro Carlito Pamplona, mas sua

principal base era o segmento estudantil. Eleito pelo PDC foi

cassado em 1964.

Até 1966, as eleições eram realizadas dentro de um

calendário único, quando se escolhiam simultaneamente os

representantes do legislativo e do executivo nas esferas

municipais, estaduais e federais. Esta situação inibia

enormemente os políticos a concorrer a cargos majoritários ou

em outra esfera do governo. Muitos não se arriscavam a lançar-

se candidato em outra esfera eleitoral. Alguns que ousavam

conseguiam fazer carreira política em outras esferas e outros

acabavam prejudicando sua trajetória e não conseguiam mais

retomar o mandato de vereador. Portanto, a regra de eleições

coincidentes inibia a participação de vereadores em pleitos

estaduais.

A última eleição conjunta foi a de 1970, quando se

elegeram de forma direta vereadores, deputados estaduais,

deputados federais e senadores. Neste momento, o Presidente da

República e os governadores dos Estados eram eleitos de forma

indireta enquanto os prefeitos das capitais eram nomeados. O

desmembramento das eleições municipais das estaduais e

federais, em 1972, permitiu aos políticos com mandatos

140

municipais se candidatar a outros cargos eletivos. Vereadores

que antes não se arriscavam a uma candidatura estadual passam

a pleitear com mais freqüência sua ida para a Assembléia

Legislativa. De modo geral, os vereadores, antes de serem

eleitos, passaram pela experiência de suplente. As derrotas os

levam a pensar em abandonar a vida política, mas acabam

permanecendo e mudando a estratégia partidária ou de campanha

e se elegendo.

Sandoval Bastos, o prenúncio de vereador institucional

Manuel Sandoval Fernandes Bastos nasceu em Saboeiro, em

1932. Concluiu o curso básico e técnico de comércio. Filho de

família de pequeno agricultor, trabalhou como frentista de um

posto de gasolina nas vizinhanças da Cidade da Criança, em

Fortaleza. Posteriormente, tornou-se corretor na rua dos

comerciantes atacadistas (rua Governador Sampaio). Ali

conheceu Moisés Pimentel, de quem se tornou amigo e

correligionário político. Amparado pelo prestígio político do

líder do PTB, elegeu-se vereador em 1962.

Em 1966, não concorre às eleições. É nomeado diretor da

Iluminação Pública e depois secretário municipal de Serviços

Urbanos na gestão José Walter Cavalcante. Em decorrência desta

atividade, cria bases eleitorais em alguns bairros da cidade,

principalmente no Conjunto José Walter. Retorna ao legislativo

na eleição de 1970.

Entretanto, na eleição de 1972, considerada por muitos

como a mais difícil, sofre um revés eleitoral, e perde a

eleição por apenas um voto. Com a convocação do vereador

141

Antônio Azin para a Secretaria de Administração do Município,

assume a cadeira de vereador. Em 1974, assume o mandato de

modo definitivo com a eleição do vereador Antônio Costa Filho

para deputado estadual. Em 1976, é reeleito com boa colocação

na chapa da Arena.

Depois de assumir a presidência da Câmara Municipal, em

1978, candidatou-se a deputado estadual, mas não foi eleito.

Segundo consta no Anuário do Ceará de 1979-80, ele assumiu

suas funções na Assembléia Legislativa. O certo é que depois

de 1978 não volta à Câmara Municipal. Em 1982, candidatou-se a

deputado estadual, tendo a inexpressiva votação de 7.712

votos.

A eleição de 1982 foi decisiva para muitos vereadores

porque coincide com a eleição estadual.31 Não havia como

arriscar uma candidatura a deputado sem expor o mandato já

conquistado e quase certo de ser reeleito. Sandoval Bastos

toma a decisão de concorrer à Assembléia Legislativa depois de

ter sido presidente da Câmara Municipal. A ocupação deste

cargo pode ser fator importante para a tomada de decisão em

prosseguir a carreira política.

Ao candidatar-se a deputado estadual, Sandoval Bastos

compromete sua carreira política. Político com atuação

restrita na esfera do governo municipal, imaginou, depois de

presidir a Câmara, uma candidatura a cargo mais elevado. Perde

a eleição no momento em que a renovação da Câmara Municipal

31 Com a mudança da legislação, o mandato de vereador é ampliado de quatropara seis anos, com o objetivo de que os pleitos municipais não coincidamcom os pleitos estaduais e federais. Portanto, só haverá outra eleição paraa Câmara Municipal em 1988.

142

coincide com a da Assembléia Estadual e tem de amargar seis

anos sem eleição, pois a seguinte somente ocorrerá em 1988.

Era tempo demais para ficar sem um mandato parlamentar. Ele

não tinha liderança suficiente para resistir tanto tempo fora

da esfera do poder.

O ano de 1988 é emblemático na renovação dos

vereadores. Existe uma grande visibilidade da atividade do

legislativo, e isto faz com que nesta eleição haja uma taxa de

renovação de mais de 50%. É a maior renovação de mandatos da

história política de Fortaleza. Vereadores com forte base

eleitoral, que estavam na Câmara desde os anos 1960, como

Ademar Arruda e Herval Sampaio, perdem as eleições.

Sandoval Bastos não mantinha uma base eleitoral fixa em

bairro, tendo votação espalhada na cidade. Entretanto, em

decorrência da sua atuação na condição de dirigente de órgãos

municipais, mantinha vínculos eleitorais com comunidades de

bairro, destacando-se um pequeno reduto no Conjunto José

Walter.

2.7 O Golpe Militar e o Bipartidarismo

Todo dia tinha alguém pedindo algo na minhaporta. A comunidade pedia tudo: do enterro aocasamento (Ex-vereador José Sidou).Tinha um empreiteiro que fazia os calçamentossó pra mim... Tudo vinha através da ligação como Virgílio Távora, da figura maior (Ex-vereadora Ivone Melo).

143

As eleições de 1966 ocorrem após o golpe militar de

1964, momento de desestruturação das forças políticas,

instalando-se um regime de exceção, com extinção dos partidos

e muitos conflitos sociais que culminaram com o AI 5.

A sexta legislatura acontece em outro contexto

político. O Ato Institucional 2, editado em 1965, extingue os

partidos e decreta eleições indiretas para o executivo

federal, estadual e municipal das capitais. Extintos os

partidos existentes, foi criado o bipartidarismo. Dois

partidos são instituídos: a Aliança Renovadora Nacional,

partido da situação, e o Movimento Democrático Brasileiro,

partido da oposição.

Os prefeitos das capitais e de áreas consideradas de

segurança nacional são nomeados pelo governo federal. Para o

legislativo federal, estadual e municipal e para prefeitos de

cidades do interior do país há eleições. Plácido Castelo e

Humberto Ellery são nomeados para governador e vice-

governador, respectivamente, e José Walter Cavalcanti, para

prefeito de Fortaleza.

Nova situação é vivenciada na Câmara Municipal de

Fortaleza, pois enquanto os vereadores são eleitos diretamente

pela população da cidade, o chefe do executivo é nomeado pelo

governador.

Nesta eleição, houve a renovação de 52,77% do

parlamento municipal. A Arena obtém dezenove cadeiras e o MDB

dezessete. Por ordem de votação, são eleitos pela Arena: René

de Dreyffus, José Barros de Alencar, Luís Ângelo, José Lima

144

Monteiro, Gerôncio Bezerra, Maria Mirtes Campos, Walter

Cavalcante Sá, José Ribamar Vasconcelos, José Batista Barbosa,

Haroldo Jorge Vieira, Raimundo Linhares, Jeremias Lobo,

Roberto Carvalho Rocha, Joaquim Pinheiro Almeida, Ivone Melo,

Ubiratan Aguiar, José de Lima Castro, Luís Aragão Carvalho e

Agostinho Moreira. O MDB elegeu: Djalma Eufrásio, José Edmar

de Barros de Oliveira, Ademar Arruda, Herval Sampaio, José

Araújo de Pontes, Eurico Matias, Fausto Arruda, Raimundo

Brandão, José Flávio Teixeira, Pedro Pierre Lima, Everado

Sobreira, Walter Cabral, Seridião Montenegro, José Sidou,

Pedro Nunes, Antônio Morais e José Araújo de Castro.

Do ponto de vista da Câmara, estava formada uma bancada

de dezesseis vereadores que detinham vários mandatos

sucessivos. Destes, doze tinham mais de três mandatos, isto é,

todos com mais de dez anos servindo de forma ininterrupta como

vereador de Fortaleza. Estes políticos experientes preferiam

recandidatar-se ao parlamento municipal a se arriscar a

concorrer em outra esfera legislativa. Apenas três vereadores

com longa experiência na CMF se lançaram na disputa estadual e

se elegeram: José Batista de Oliveira, José Martins e Mário

Nunes. Curiosamente os três tinham forte base eleitoral em

bairro. Alguns vereadores com mais de três mandatos

consecutivos não concorreram ou não se reelegeram.

Além das bases eleitorais construídas a partir do

trabalho de assistência à comunidade (base territorial) e do

alistamento eleitoral, existiam outras formas de acesso à

representação no legislativo já presentes em outras

legislaturas. Alguns candidatos expressavam um movimento

145

social. Raramente um candidato vencia na sua primeira eleição,

e quando isto ocorria, sua vitória era muitas vezes o

coroamento da participação em algum tipo de movimento

coletivo.

Outro caminho de acesso ao legislativo era mediante

prestígio profissional ou familiar e favores realizados aos

eleitores pelo gestor de órgãos públicos. Dois membros da

gestão Murilo Borges - Gerôncio Bezerra e Luís Ângelo, eleitos

em primeira candidatura pela Arena, podem ser considerados

como representantes deste segmento da gestão pública.

Alguns candidatos herdam a base eleitoral construída

pela família. Neste pleito, dois foram eleitos sucedendo

familiares que ocupavam a cadeira de vereador na legislatura

passada: Ivone Melo e Pedro Nunes.

Além destes, destacam-se cinco dos vereadores eleitos,

que já haviam participado de pleitos anteriores, como

suplentes, mas assumindo em alguns momentos o mandato; e a

ampliação da representação feminina, pois pela primeira vez a

CMF contou com duas mulheres: Mirtes Campos e Ivone Melo,

ambas da Arena.

Nesta legislatura, foram selecionados quatro vereadores

pela importância deles no legislativo municipal e o tipo de

base eleitoral: Herval Sampaio, com votação na corporação dos

comerciários; Ivone Melo, vereadora de bairro, mulher e

herdeira da base eleitoral do marido, com longa trajetória

política; Gerôncio Bezerra, que deixará os filhos José Maria

Couto e Hélder Couto no parlamento municipal até a última

146

legislatura de 2004-2007; e o enfermeiro Joaquim Pinheiro de

Almeida, um dos primeiros a trocar votos por serviços de

saúde/ambulatorial. Estes vereadores têm perfis distintos, mas

algo em comum: a liderança construída na base da troca de

favores e de serviços prestados ao eleitorado.

Herval Sampaio e os comerciários

José Herval Sampaio nasceu em Baturité, em 1936.

Técnico em Contabilidade, entrou para a política em 1962,

sendo reconduzido sucessivamente. Deixou a Câmara Municipal no

final dos anos 1980, quando perde as eleições de 1988, ficando

na décima quarta suplência.

Durante muitos anos, sua trajetória política foi

atrelada à de Mauro Benevides. Em 1954, quando se elegeu

vereador de Fortaleza, Mauro Benevides era secretário do SESC,

uma grande e importante escola de comércio. Herval, aluno do

SESC, trabalhou pela eleição de Mauro a vereador e

posteriormente para deputado estadual, em 1958; e depois

torna-se o secretário político de Mauro. Em 1962, pretende-se

candidatar a vereador, mas o deputado apóia Mirtes Campos.

Finalmente, em 1966, Herval Sampaio é eleito pelo MDB.

Esta experiência como secretário de um político

contribui muito para a organização da sua base eleitoral.

Na realidade desde que eu fui incentivado a entrar na vidapública, já comecei a me organizar. Toda pessoa que eu tinhacontato, pedia logo os dados, o nome da pessoa, a data denascimento e o endereço. Ia anotando num caderno e depoispassava para umas fichas... Usava sempre estas fichas emtrês períodos, por ocasião da páscoa, do aniversário e doNatal, independente de idade. Até pessoas de 5 anos(Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).

147

Na sua primeira campanha política como candidato a

vereador, Herval Sampaio não teve muitas despesas, pois contou

com o apoio de Mauro Benevides e seu escritório. Construiu sua

base eleitoral junto aos comerciários associados ao SESC e

SENAC e aos trabalhadores do Mercado São Sebastião.

A campanha foi diferente das outras porque, como simplesfuncionário do SENAC, enfrentei a campanha contando com osvotos dos alunos do SENAC, com os votos dos comerciários[...] E com os votos do Sindicato dos Fruteiros eVerdureiros e dos bairros onde eu dava assistência.Assistência essa que por questão de justiça eu não possonegar, eu dava através do deputado Mauro Benevides, pois eujá trabalhava como secretário dele. Qualquer pessoa prafalar com ele naquele tempo, deputado estadual, tinha quepassar por mim. Através dele eu fiz muito favor à população.Então foi uma eleição bonita, brilhante, sem gastos porquealém de não ter, não havia necessidades (Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).

Eleito, imediatamente Herval Sampaio trata de organizar

uma rede de assistência ao seu eleitorado criando pontos de

apoio.

Eu dava assistência na minha casa. Eu atendia no SENAC, nãosó aqueles que iam atrás de vaga pra estudar, mas tambémaqueles que iam atrás de algum benefício, bolsa de estudo.Atendia no escritório do então deputado Mauro Benevides epassei a atender também na Câmara Municipal. Mas eu mereservava o direito de atender em casa, já que eu morava emfrente ao mercado, somente o pessoal da Praça São Sebastião(Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).

Depois de dois anos, com o crescimento do número de

eleitores, o espaço modesto foi se transformando numa grande

estrutura de atendimento a seu eleitorado. Escritórios foram

instalados em pontos estratégicos para fortalecer sua base

eleitoral, mantendo o atendimento em casa reservado apenas aos

fruteiros e verdureiros do Mercado São Sebastião.

148

Foi necessário instalar um escritório na travessa Itapajé 53(altos) para atender de uma maneira geral. O meu volume deeleitores foi crescendo. Então eu fui obrigado a fazertambém um outro escritório, no Otávio Bonfim, na rua AntônioPompeu, 1705. E alugar um prédio no Centro, já pra atenderos comerciários na rua Perboyre e Silva, 111, sala 702(Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).

Outro instrumento utilizado para manter a fidelidade do

eleitor foi a ampliação da assistência com a compra de um

consultório dentário instalado em seu escritório na travessa

Itapajé.

A fidelidade eleitoral se mantinha por meio do atendimentodo pedido. Eu cheguei a comprar um consultório dentáriozerado e instalei onde era meu primeiro escritório, travessaItapajé, 53 (altos). Entreguei o consultório a um dentistapra que ele trabalhasse um expediente pra mim e dois praele. Pra aumentar a assistência... Então a assistência queeu dava no Otávio Bonfim era colocar os alunos pra estudarno SENAC, no SESC, fruteiros, verdureiros e talhadores decarne e por último essa assistência dentária. Era assim queeu me mantinha no Otávio Bonfim (Depoimento do ex-vereadorHerval Sampaio).

Atuando numa área da cidade com forte concorrência

eleitoral, Herval Sampaio consolida sua base eleitoral no

Otávio Bonfim mediante assistência direta de serviços,

distribuição de bolsas de estudo, uma das maiores demandas, e

uma estrutura de alistamento eleitoral.

Naquele tempo para tirar o título precisava o políticoconceder o registro civil. Depois vinha mais a exigência dacarteira de identidade, das fotografias e levar o eleitorpara o cartório eleitoral, dar a merenda e depois de tudofeito, dar entrada no título. O protocolo não ficava com ofuturo eleitor. Ele entregava ao vereador e atrás colocava:“autorizo... [a gente colocava o nome do cabo eleitoral]...a receber meu título”. Esse título só era entregue aoeleitor próximo das eleições já com uma capa e o número docandidato (Depoimento do ex-vereador Herval Sampaio, 2003).

149

A base política do vereador Herval Sampaio,

inicialmente, foi constituída em torno do SESC, situado na

praça do Mercado São Sebastião. Depois de eleito, o vereador

transfere sua residência do bairro de Fátima para o Otávio

Bonfim, mais próximo da sua base eleitoral. Trabalhava no

SESC em frente ao Mercado São Sebastião. Conforme ele diz:

“Meus eleitores estavam dentro do SESC e em frente, na praça”.

O vereador Herval Sampaio teve uma das carreiras mais

longas no legislativo de Fortaleza, passando 21 anos

ininterruptos como vereador. Depois de participar da mesa

diretora da Câmara na legislatura de 1983-1988, perde a

eleição na degola popular e abandona a vida pública. Sua

trajetória é exemplar na forma de fazer política, pois

consolida sua base eleitoral no setor dos comerciários e

também no bairro. Parte considerável dos seus votos advinha

das suas ligações com o deputado Mauro Benevides, patrono na

montagem de uma estrutura de assistência social ao eleitorado.

Ivone Melo, a vereadora dos calçamentos

Ivone Melo nasceu em 1927, em Jucás. Elegeu-se para a

Câmara Municipal, pela primeira vez, em 1966. Foi secretária

do presidente da Fundação do Serviço Social de Fortaleza de

1965 a 1966. Na eleição de 1970, ficou na oitava suplência. Em

1972, retorna à CMF, onde permaneceu até 1988.

Ela tem uma história de família ocupando funções no

legislativo municipal O marido, José Carvalho Melo, havia sido

vereador de Fortaleza nas legislaturas de 1963-1967 e

presidente da Fundação do Serviço Social de Fortaleza, na

150

gestão de Murilo Borges. Por conselho de amigos, Ivone Melo

sucede o marido na Câmara Municipal. Diziam que ele poderia

ter o registro cassado por irregularidades na Fundação.

Em 1976, é eleita como o sétimo vereador mais votado da

Arena. Reelege-se, com 4.821, em quinto lugar na lista do PDS,

em 1982. Em 1988 é candidata pelo PTB, ficando na quarta

suplência. Em 1992 e 1996, não consegue se eleger. Na eleição

de 2000, não mais se candidata.

Ela considera que sucedeu o marido na condição de

parlamentar do legislativo. Este, ao sair para a atividade

administrativa, perdeu a eleição em 1970. Ivone Melo teve

quatro mandatos, mas se considerar o mandato do marido, a

família ocupou cinco vezes a função de vereadora na Câmara

Municipal, num total de 24 anos.

Ivone Melo fez uma carreira política centrada no

atendimento à comunidade do Jardim Iracema. Mudou-se para o

bairro Padre Andrade com o firme propósito de realizar

trabalho político, preparando-se para a eleição de José

Carvalho em 1962.

O marido José Carvalho, como presidente da Fundação de

Assistência Social de Fortaleza, e ela, secretária, garantem

poder e prestígio em um órgão responsável pela distribuição de

bens às comunidades carentes, principalmente televisores

comunitários e máquinas de costura. “Cada eleitor contemplado

com uma máquina tinha ali o voto da família e de outros

familiares”. Assegura com muita facilidade a eleição, ao se

candidatar no lugar do esposo. Entretanto, na gestão José

151

Walter já não tem a mesma facilidade de acesso aos bens

públicos, o que prejudica a sua atuação, não conseguindo se

reeleger em 1970. Ivone Melo atribui esta derrota, em grande

parte, “ao despeito dos colegas que prejudicaram a campanha,

já quando era vereadora, porque ficaram contrariados com o uso

que fazia das verbas da Fundação”.

Vereadora com perfil típico de comunidade, atuou ao

longo dos 24 anos na mesma região do Jardim Iracema e Autran

Nunes. Suas ligações com Virgílio Távora permitem o acesso a

uma série de benefícios para a população desta área. Entre

suas atividades, segundo assegura, a pavimentação de várias

ruas do bairro foi obra do seu empenho junto à administração

municipal.

Gerôncio Bezerra, outra família na Câmara Municipal

Gerôncio Bezerra nasceu em Russas, em 1921. Tinha curso

de Técnico em Contabilidade e exercia a atividade de coletor

municipal e agente de tributos municipais. Desde 1959, se

envolvia em atividades políticas. Exerceu a função de

subprefeito do distrito de Antônio Bezerra. Em 1966, foi

eleito pela primeira vez, pela Arena. Reelegendo-se em 1970,

1972, 1974 e 1976, recebeu 10.578 sufrágios e o título de

“vereador mais votado de toda a História Política de

Fortaleza”. Em 1970 é eleito presidente da Câmara. Elege-se a

deputado estadual, em 1978. Na eleição de 1982, enquanto

Gerôncio Bezerra tenta a renovação do mandato de deputado

estadual, o filho José Maria Couto se candidata a vereador.

Embora o filho tenha sido eleito, o pai obtém inexpressiva

votação para deputado estadual, ficando numa suplência. Essa

152

experiência negativa de Gerôncio Bezerra pode ter feito José

Maria Couto nunca se candidatar a deputado estadual. Sua base

eleitoral sempre foi concentrada na área do Antônio Bezerra.

No pleito de 2004, substituindo José Maria Couto, elege-se

vereador o irmão Hélder Couto. Desde 1966, a família Bezerra

detém um acento na CMF.

A base eleitoral da família Bezerra sempre ficou

restrita ao Antônio Bezerra. No início da década de 1970 houve

uma expansão em direção ao bairro Quintino Cunha. Era uma área

também disputada pelo vereador Antônio Costa e depois por seu

filho Sérgio Costa. Entretanto, já na “gestão” José Maria

Couto, houve uma expansão da sua votação, passando a não mais

depender, para sua eleição, dos votos originados somente do

Antônio Bezerra e adjacências.

O ambulatório do vereador Joaquim Pinheiro de Almeida

Joaquim Pinheiro de Almeida nasceu em 1912, em

Quixeramobim. Fez curso de Enfermagem e mantinha um

ambulatório onde atendia seus eleitores.

Desde 1962, está na atividade política, na qualidade de

suplente de vereador, tendo assumido várias vezes. Foi eleito

vereador em 1966. Em 1970, disputou, sem êxito, uma cadeira na

Assembléia Legislativa e perdeu a chance de se eleger

vereador. Em 1972 volta a se eleger novamente vereador. Em

1976 não consegue a reeleição, mas fica na quarta suplência,

assumindo uma cadeira no legislativo municipal, em 1978, em

virtude da eleição dos vereadores Gerôncio Bezerra e João

Quariguasi para deputado estadual e do convite a Luís Ângelo

153

para secretário de governo. Em 1982, atinge apenas 2.403

votos, e fica na sétima suplência. Em 1988, candidata-se pelo

PSD, em um quadro partidário já fragmentado. Obtém 632 votos,

ficando na nona suplência. Em 7 de julho de 1996, ele morre,

com 84 anos.

Na esfera política, Pinheiro de Almeida era de poucas

letras, nunca fez discurso e encaminhava via prefeito as

demandas miúdas para sua comunidade (um telefone para uma área

determinada, em troca da promessa de votar com o prefeito).

Sua eleição era baseada em dois pilares distintos, mas de

mesma natureza, a prestação de favor: o atendimento em seu

ambulatório, e a assistência prestada às comunidades por

Chiquita do Almeida, sua esposa.

No ambulatório, o enfermeiro atendia pacientes, faziacurativos e pequenas cirurgias, além de fornecer remédios,numa época em que o “medicamento era difícil de obter”. Nacondição de enfermeiro e dono do ambulatório, fazia operaçãode fimose nos eleitores que o procuravam.

“Enquanto, um médico cobrava 45 cruzeiros por uma operaçãode fimose, ele fazia para os pobres por 5 cruzeiros, e combons resultados. Tratava os homens com doenças venéreas equalquer problema ele resolvia com umas injeções”(Depoimento de Chiquita do Almeida, esposa do ex-vereadorPinheiro de Almeida, 2003).

Pela natureza da sua atividade profissional, permanecia

boa parte do tempo no ambulatório. Era este tipo de atividade

que assegurava suas ligações eleitorais. Enquanto isto, sua

esposa era quem atendia o eleitorado.

Segundo seus contemporâneos na Câmara Municipal, a

pessoa forte na campanha política era a esposa dele Dona

Chiquita, que juntamente com uma sobrinha encarregava-se de

154

atender o eleitorado que buscava sua casa para resolver todo e

qualquer tipo de problema, como tirar o registro civil,

certidão de casamento, etc. Tanto que em 1992, quando Pinheiro

de Almeida desiste da política, Dona Chiquita é convidada por

César Neto a se candidatar, mas recusa. Embora tenha

incentivado os filhos a entrar na política, nenhum demonstrou

vocação.

Eles moravam no Centro, mas seu eleitorado estava no

José Walter e no Pirambu.

Os eleitores gostavam muito dele porque ele fazia muitacaridade às crianças e gostavam muito de mim também. Opessoal me atendia muito porque eu distribuía lata de leite,vestidos, feijão, tudo. Eu arranjava tudo. Eu ia deixar.Nunca ninguém veio aqui na minha casa. Somente no dia daeleição era que eu atendia. No tempo das eleições, euatendia os eleitores era lá fora (Depoimento de Chiquita doAlmeida, esposa do ex-vereador Pinheiro de Almeida, 2003).

Pinheiro de Almeida sai do PDS e entra no PSD, em 1982.

Esse movimento de troca partidária se deveu ao comando do

senador César Cals, chefe do seu grupo político. Tal ligação o

ajudava muito no trabalho eleitoral, pois as certidões

(casamento, nascimento, óbito, etc.) que tirava eram por conta

do numerário que recebia para pagar o cartório. “Havia um

cartório, João de Deus, onde se tinha abatimento. Nós casamos

muita gente”, afirma Dona Chiquita do Almeida.

Outra fonte de eleitores ele conseguia graças a um

modesto sistema de alistamento eleitoral.

Pra fazer qualificação eleitoral a gente tinha uma Kombi eum Jeep. Na Kombi sempre ia 30 e tantas pessoas, no Jeep 18.Todos de uma vez. Passava a noite toda na fila guardando oslugares dos eleitores que vinham no dia seguinte (Depoimentode Chiquita do Almeida, esposa do ex-vereador Pinheiro deAlmeida, 2003).

155

Pinheiro de Almeida não era o tipo do político que

mantinha uma base eleitoral na assistência constante ao

eleitorado, pois ele não atendia fora da época da campanha. O

comitê montado em sua própria casa atendia o eleitorado apenas

neste período. No resto do ano fora da campanha, dedicava-se

ao trabalho no ambulatório.

Que tipo de representação de interesse ele expressava

no mandato? Não era um vereador com votação exclusivamente

restrita e concentrada na área de residência, pois recebia

votos das pessoas que o procuravam pela natureza do seu

trabalho profissional. A estrutura eleitoral do vereador

Pinheiro de Almeida não era de base territorial. Ele era um

político de clientela sustentado pelo atendimento dispensado

aos pacientes que o procuravam.

Não se pode falar rigorosamente na representação de

interesses neste caso porque era um político que mantinha

laços de favores com as pessoas por meio da sua atividade

profissional e esperava ser reconhecido no dia da eleição,

pelo voto do seu paciente/cliente ou de quem havia recebido

algum favor.

A instabilidade eleitoral do vereador Joaquim Pinheiro

de Almeida explica-se em parte pela forte disputa com o

vereador Luís Ângelo, morador nas vizinhanças. Como ocorria

com outros vereadores com atuação em bairro, um concorrente

atuando na mesma base eleitoral poderia significar completa

inviabilidade eleitoral. No caso de Pinheiro de Almeida, isto

não ocorria porque sua sustentação eleitoral não vinha toda do

156

lugar onde morava. Aliava votos de comunidade de bairro com

votos de assistência de serviços de enfermagem (médico-

farmacêutico). Ao que tudo indica, a votação advinda dos seus

laços territoriais podia ser decisiva para sua eleição. Mesmo

assim, ele não pode ser caracterizado como vereador de

comunidade de bairro em virtude da ausência de estrutura

residencial, característica deste tipo de vereador.

2.8 Quando as Portas se Fecham

Eu chegava ao Mercado às cinco horas da manhã.Fazia a visita dando a mão a um e a outro.Perguntava se tinha algum problema,independente de eleição. Eu passava os quatroanos trabalhando pra não passar vexame naapuração (Ex-vereador Herval Sampaio).O que elege mesmo um vereador é tirar título.Eu colocaria sem medo de errar que 95% dosvereadores tinham seu mandato asseguradoatravés do alistamento eleitoral (Ex-vereadorHerval Sampaio).

A sétima legislatura é constituída no período de

endurecimento do regime militar. O número de vereadores é

reduzido drasticamente de 36 para 21. Na legislatura passada

já havia ocorrido a diminuição dos vencimentos dos vereadores,

considerada grave, principalmente para os que davam

atendimento às comunidades.

Em 1970, realizam-se eleições para o legislativo

municipal e prefeitos do interior e são nomeados os

governadores dos Estados e os prefeitos das capitais. Para o

Ceará foi indicado o governador César Cals e para Fortaleza o

157

prefeito Vicente Cavalcante Fialho, ambos da Arena, o partido

do governo federal, para o período de 1971-1975.

Fortaleza tinha 857.980 habitantes (censo do IBGE,

1970) e um Colégio Eleitoral de 229.151 eleitores. Nesta

eleição, compareceram 175.611 eleitores, abstiveram-se 53.540,

11.897 anularam o voto e 12.910 votaram em branco. A taxa de

alienação eleitoral chegou a 34%, número relativamente

elevado.

Disputaram as 21 cadeiras da Câmara Municipal de

Fortaleza 120 candidatos, ou seja, havia uma concorrência de

5,7 candidatos por vaga. A Arena elegeu treze vereadores (João

Quariguasi, Gerôncio Bezerra, Abel Pinto, René Dreyffus,

Sandoval Bastos, Antônio Costa Filho, José Lima Monteiro,

Gutemberg Braun, Pedro Pierre Lima, José Hermano Martins, José

Araújo de Pontes, José Barros de Alencar e Luís Ângelo) e o

MDB elegeu oito (Herval Sampaio, Ademar Arruda, Eurico Matias,

Pedro Nunes, José Araújo de Castro, Antônio Morais, Aluísio e

Cirenio Cordeiro).

Um grupo de veteranos reelege-se. Há uma taxa de

renovação de 38%. Mas esta taxa seria menor se se levasse em

consideração o grupo competitivo que domina a política

municipal, formada pelos eternos candidatos, por recentes

suplentes, ex-vereadores ou familiares de vereadores,

recuperando o mandato do parente próximo. Com a exclusão

destes que tinham contato direto com o sistema político

municipal, houve apenas a introdução de dois novos atores

políticos - Aluísio Fontenelle e João Quariguasy. Entretanto,

estes dois já participaram do sistema político municipal, em

158

1962, quando ficaram na suplência. Desta forma, ninguém estava

fora da elite política municipal.

A idéia de círculo de competição municipal envolve a

existência de um número pequeno de lideranças políticas com

reais chances de ocupar um cargo eletivo. Neste momento, o

círculo de competição municipal se fecha, pois a possibilidade

de inserção de novas lideranças é reduzida, em decorrência do

sistema político repressivo e da redução do número de vagas no

parlamento municipal.

A eleição de 1970 significou o fechamento completo do

sistema político municipal à entrada de um novo membro. Este

fechamento foi conseqüência da redução drástica do número de

vereadores na Câmara, favorecendo os veteranos, com máquinas

eleitorais assistencialistas nas suas bases territoriais. A

renovação que ocorrerá nas legislaturas seguintes será mínima,

privilegiando os que já estão integrados de alguma forma no

círculo político de competição municipal. Esta eleição reduz

drasticamente a representação e expele para fora do sistema

até mesmo políticos veteranos.

Neste período de repressão, não se destacam lideranças

específicas, predominando as assistencialistas e de base

territorial, a exemplo dos vereadores Abel Pinto e José

Hermano Martins, ou de João Quariguasy, o representante mais

fiel das forças da ordem.

Fortaleza, segundo o jornalista Lustosa da Costa, em

artigo de 30 de julho de 1972, reproduzia o modo clientelista

de fazer política semelhante ao existente no sertão, tanto que

159

até então nenhum político importante havia sido eleito

contando unicamente com os votos urbanos. Isto refletia a

pouca importância política da capital nos destinos da política

estadual.

À exceção de primeira legislatura de após o Estado Novo,onde o nítido dissídio ideológico levou à Câmara Municipalnomes expressivos de direita e de esquerda, sempre se arguicontra o baixo nível de nossa representação municipal. Porquê? Inicialmente, em termos globais a política fortalezenseem nada difere da mesma atividade desenvolvida no interior.Acha-se marcada pelo clientelismo, paternalismo eempreguismo. Se o deputado federal foi, durante muito tempo,um despachante de luxo do eleitor na metrópole, o vereadorfuncionou como o despachante pobre. Sobre ele, geralmentepesam e pesam encargos financeiros e de atividade quasesobre-humanos. Não se lhe requeria apenas o gasto com oalistamento de eleitor, o preparo da documentação requerida,bem como a satisfação de suas pequenas necessidades domomento. De par com a luta pela extensão de serviços urbanos(ampliação da linha de energia, iluminação pública,calçamento), ainda sobre ele incidia a obrigação dedistribuir bolsas de estudo, empregos, boxes e bancas nomercado, afora a libertação de eleitores e cabos eleitoraispreso pela Policia, como autores de pequenos delitos. Enfim,a caracterização do quadro da política clientelista,transporte para o asfalto (LUSTOSA DA COSTA, 1977, p. 45).

Abel Pinto e os dois pilares da base eleitoral: territorial e

assistência médico-odontológica

Abel Pinto nasceu em Belo Horizonte, em 8 de dezembro

de 1912. Entrou na vida política em 1958, como primeiro

suplente na legislatura de 1959-1963. Durante quase toda a

década de 1960 ocupou interinamente algumas vezes a função de

vereador, mas somente em 1970 consegue seu primeiro mandato

efetivo. Embora só tenha sido eleito em 1970, sua trajetória

de suplente o credenciou a ocupar a presidência da Câmara

Municipal, algumas vezes, assumindo interinamente a função de

160

prefeito. Em 1972 é reeleito, mas em 1976 fica na segunda

suplência, assumindo depois, com a ida de alguns integrantes

do legislativo para cargos administrativos. Em 1982 se reelege

com uma votação muito apertada. Mesmo não tendo participação

direta nos escândalos da Câmara Municipal, não se candidata na

eleição de 1988.

Sua base eleitoral tinha dois pilares: uma territorial,

na região de Parangaba, Pan-Americano e Jóquei Clube, e outra

oriunda do trabalho realizado como presidente de uma

associação que oferecia assistência médica e odontológica,

localizada na rua Assunção esquina com a Pedro Pereira. Mesmo

não sendo médico, criou um plano de saúde ou uma associação

pela qual seu eleitorado recebia assistência médica. A disputa

na sua área de atuação, Pan-Americano, bairro contíguo ao Bela

Vista, com os vereadores José Batista Oliveira e depois Maria

José de Oliveira, explica sua inconstância eleitoral. Esta

região não tinha votos suficientes para eleger dois

representantes e a base eleitoral oriunda da associação não

bastava para compensar as perdas da base territorial.

2.9 Tempo dos Incluídos

Antigamente o povo tinha muita gratidão. Eles nãodesviavam voto para ninguém. Aí foi chegando essanova geração, foi chegando a televisão. De primeiroo povo era muito agradecido com certas coisas, hojeem dia não. É obrigação! Eles dizem isto (Ex-vereadora Ivone Melo).Só há duas formas de fazer política. A obrabeneficia a comunidade, portanto pode ter maisvotos. O favor pessoal é pra você manter a votaçãodaquele cidadão e da família dele (Ex-vereador JoséSidou).

161

Um dia chegou um eleitor lá em casa e disse: “SeuAgostinho, me dê seu número que meu pai me pediu emsonho que eu votasse no senhor” (Esposa do ex-vereador Agostinho Moreira).

A eleição realizada em 15 de novembro de 1972 acontece

apenas dois anos após a última, na qual foram escolhidos

representantes para as três esferas governamentais. Esta

eleição antecipada teve a finalidade de dissociar o calendário

eleitoral municipal do estadual e federal. A oitava

legislatura tomou posse em 31 de janeiro de 1973, tendo como

prefeito nomeado de Fortaleza, em 1971, o engenheiro Vicente

Fialho. Neste período, governava o Ceará o coronel Virgílio

Távora.

O eleitorado apto a votar era de 207.084 eleitores, mas

59.118 se abstiveram. A taxa de alienação eleitoral foi de

34,56%.

Esta eleição não altera a distribuição de cadeiras

entre partidos da última legislatura. A Arena elegeu treze

vereadores (Maria José de Oliveira, João Quariguasy, Gerôncio

Bezerra, Antônio Costa Filho, José Lima Monteiro, Abel Pinto,

Antônio Azin, Gutemberg Braun, José Barros de Alencar, Luís

Ângelo, Joaquim Pinheiro de Almeida, Ivone Melo e Hermano

Martins); e o MDB elegeu oito vereadores (Pedro Nunes, Herval

Sampaio, Ademar Arruda, Bianou de Andrade, Fausto Arruda,

Mário Nunes, Aluísio Fontenelle e Djalma Eufrásio). Esta

oitava legislatura tomou posse em 31 de janeiro de 1973.

Algumas lideranças retornaram e novas entraram na

disputa municipal. A taxa de renovação foi de 38 %. Na

162

história da CMF, a eleição de 1972 aparece como a de menor

renovação, mesmo considerando a entrada de oito novos

vereadores que não participaram da legislatura anterior.

Entretanto, ao se observar a natureza da participação,

conforme se constata, não há um único estranho ao sistema

político local. Dos “novos”, apenas Maria José de Oliveira é a

grande novidade, segundo a imprensa. Mas não se pode

considerar que ela estivesse fora do sistema político local,

pois seu esposo José Batista Oliveira foi vereador por quatro

mandatos consecutivos, tendo se candidatado deputado em 1966.32

Teve uma votação surpreendente, quase inviabilizando a eleição

de Hermano Martins,33 aliado do seu marido. Ivone Melo retoma

seu mandato. Antônio Azin pode ser considerado um membro do

sistema, porque já havia sido eleito em legislatura anterior.

Do lado do MDB também não há uma renovação, pois quase

todos os eleitos já haviam sido vereador, com exceção de

Bianou de Andrade, que na eleição passada obtivera uma

expressiva votação, ficando na segunda suplência.

Esta eleição evidenciou de maneira mais significativa o

grau de fechamento ao qual foi submetido o sistema de

lideranças municipais. A redução drástica das cadeiras em

disputa no legislativo, aliada ao sistema bipartidário,

propiciou as condições para o surgimento de uma oligarquização32 Em 1970, a família Oliveira apóia a candidatura do filho de um ex-vereador e agora também deputado estadual José Martins Timbó, HermanoMartins. Dada a insatisfação gerada com esta candidatura, Maria José passaa questionar seu esposo se o correto não seria ela mesma se candidatar.José Batista reluta em aceitar a sugestão, não somente porque não gostariade ver a esposa diretamente envolvida na política, mas também para nãocontrariar o amigo a quem emprestara apoio eleitoral.

33 Sandoval Bastos perdeu por um voto para Hermano Martins.

163

no sistema político local. Nesta oligarquia, os vereadores que

detinham sólidas bases eleitorais em bairros, sustentadas no

assistencialismo e alistamento eleitoral, passaram a ser

dominantes. Reduz-se o número de lideranças política com

chances de ocupar um cargo eletivo - o círculo de competição

municipal.

Na memória dos ex-vereadores há unanimidade em apontar

esta eleição como a mais difícil. Alguns políticos já haviam

se submetido ao fechamento e redução de cadeiras e viram como

fora disputada a eleição em 1970. Os que estiveram fora desta

legislatura se prepararam para retomar o mandato.

O tempo foi exíguo para produzir frutos eleitorais

daquilo que é o mais importante instrumento de renovação de

mandato: o alistamento eleitoral. Este precisa de certo tempo

para ter o efeito esperado, pois do eleitorado “qualificado”

há uma média de 60% que votam com quem o auxiliou na retirada

de título. Portanto, tanto mais tempo, mais eleitores

qualificados, mais as chances de uma boa votação. Nesta

eleição, os vereadores que mantinham um mecanismo de reeleição

muito dependente do alistamento eleitoral se prejudicaram

porque não houve tempo suficiente para qualificar muitos

eleitores. Esse foi o caso do vereador Eurico Matias.

Os políticos que são vereadores, que já foram

vereadores e os sempre candidatos em boa posição fazem parte

do círculo de influência eleitoral municipal.

Destaquemos nesta legislatura Maria José Albuquerque de

Oliveira, vereadora de base territorial, que permaneceu por

164

longo tempo na Câmara, e Bianou de Andrade, um típico

representante do segmento do setor educacional.

A família Oliveira é representada por uma mulher

Maria José Albuquerque de Oliveira, com 42 anos, foi

eleita pela primeira vez em 1972, tendo sido a vereadora mais

votada, com 6.732 votos. Em 1976, obtém 9.764 votos. É

herdeira da base política do marido o ex-vereador José Batista

de Oliveira, que se elegeu deputado estadual. Deu

prosseguimento ao trabalho de assistência ao eleitorado no

bairro Bela Vista. Sustentou sua permanência no legislativo

por meio do clientelismo e de uma forma eficiente de

alistamento eleitoral. Entretanto, já próximo do final da sua

última candidatura, demonstrava fragilidade na manutenção

desta base eleitoral.

Apesar de atuar numa área da cidade com concorrentes ao

lado – Eurico Matias, Abel Pinto e posteriormente Narcílio

Andrade, a vereadora assegura seu mandato por longos anos.

Sobre a administração da prefeita Maria Luiza, diz que foi a

pior de todas, pois não havia nenhum metro de calçamento que

tenha conseguido. Demonstrando cansaço no atendimento ao

eleitorado, lança seu filho Casimiro Neto na eleição de 2000.

Nas eleições de 1974, a população brasileira votou para

escolha de senadores, deputados federas e estaduais. É nomeado

para governar o Ceará o coronel Adauto Bezerra, uma liderança

do Cariri cearense, e o engenheiro Evandro Aires de Moura,

para administrar a capital (1975-1978). Mas a legislatura de

1976-1980, além deste prefeito, conviveu com dois outros

165

administradores à frente de Fortaleza: o engenheiro Luiz

Gonzaga Nogueira Marques (1978-1979) e o médico Lúcio Gonçalo

de Alcântara (1979-1982).

A partir deste pleito, as eleições municipais são

dissociadas das eleições para as esferas federal e estadual e

passam a ocorrer em anos diferentes, permitindo que vereadores

concorressem a deputados, e, se eleitos, indicassem familiares

a candidatos à CMF. O mandato dos vereadores desta legislatura

passou de quatro para seis anos, sendo prorrogado até 1982.

No dia 15 de novembro de 1976, quando foram eleitos os

representantes para a nona legislatura, 430.992 eleitores

estavam aptos a votar. A taxa de alienação eleitoral de 31,1%,

indicava uma maior participação eleitoral.

O mesmo equilíbrio político das eleições passadas

manteve-se nesta, com o partido da situação elegendo o maior

número de parlamentares. A Arena ficou com doze vereadores

(Gerôncio Bezerra, Maria José de Oliveira, João Quariguasy,

Maurílio Assêncio, Luís Ângelo, José Hermano Martins, Ivone

Melo, Sandoval Bastos, José Lima Monteiro, Sergio Costa,

Antônio Azin e José Barros de Alencar); e o MDB com nove

vereadores (Eurico Matias, Mário Nunes, Bianou de Andrade,

Herval Sampaio, José Araújo de Castro, Narcílio Andrade,

Aluisio Fontenelle, Pedro Nunes e Ademar Arruda).

Na eleição municipal de 15 de novembro de 1976, ocorreu

uma pequena taxa de renovação na Câmara Municipal. Em toda a

história da Câmara, esta foi a mais baixa taxa de renovação,

(28,57%). Apenas seis novos vereadores surgem no cenário

166

parlamentar. Considerando que quatro dos “novos” já haviam

ocupado a função de vereador em legislaturas anteriores e que

um dos “novos” foi eleito ocupando a vaga do pai ex-vereador,

vitorioso como deputado estadual, em 1974, somente um dos

eleitos não fazia parte do sistema político municipal -

Narcílio Andrade, o único a furar o sistema de poder local.

Foi eleito na primeira vez em que se candidatou graças ao

prestígio adquirido pela condição de rei momo do carnaval de

Fortaleza. O prestígio momentâneo permitiu-lhe furar o

sistema, e se incorporar ao núcleo dos atores políticos, mas

foi preciso montar uma máquina de sustentação política capaz

de viabilizar a renovação do mandato. Essa parece ser de

maneira geral uma forma de acesso ao sistema de liderança

local.

Narcílio, O Rei Momo vira vereador

Narcílio Andrade, rei momo do carnaval fortalezense de

1974, é incentivado pelo prefeito Evandro Ayres de Moura a se

lança candidato à Câmara Municipal. Ligado às atividades do

Clube Romeu Martins, conta, para sua primeira eleição, com

bases profissionais devido ao seu trabalho em diversas áreas

do comércio de Fortaleza.

O vereador Narcílio Andrade nasceu no município de

Quixadá no dia 10 de março de 1941, filho de pequeno

comerciante. Os pais mudam-se para Fortaleza em 1951, fixando

residência na região da Pirocaia, atual bairro Montese, onde

ele começou a participar de organização de eventos, criando

sua base eleitoral. Era comerciário. Foi eleito pela primeira

vez em 1976 com expressiva votação, tornado-se um vereador com

167

forte identificação com o bairro onde atuava. A respeito da

primeira eleição descreve:

Nessa primeira campanha, Narcílio Andrade saía todas asnoites com seus amigos Edson Pio, José Urbano, Maciel dosSantos e Valdir Aguiar, em caminhada pelo bairro. Andavam decasa em casa, apresentando propostas e pedindo o voto. Nofinal da noite, faziam reunião na farmácia do Seu Mauri eavaliavam a receptividade do povo. Uma campanha modesta, masvitoriosa! Consagrado com cinco mil e sessenta votos, cercade duzentos votos por urna no bairro (Perfil Parlamentar,2003).

Nesta legislatura, além do rei momo Narcílio, destacam-

se o advogado Sérgio Costa, filho do ex-vereador e deputado

estadual Antônio Costa (Antony Costa), que se elegeu com 5.336

votos aproveitando as bases eleitorais familiares, Maurílio

Assêncio, que apesar de candidato desde a década de 1960, sem

obter êxito eleitoral, elegeu-se pela primeira com 6.964

sufrágios; e Bianou de Andrade, reeleito.

Ressalta-se também a presença de vereadores de

esquerda, eleitos pelo MDB, partido da oposição. Eurico

Matias, comerciante, seguidor de Fausto Arruda, retorna à

Câmara depois de ter perdido o mandato em 1972; professor

Barros Pinho, primeiro suplente de vereador, entra no

exercício de função em 1978, com a eleição de Bianou de

Andrade para a Assembléia Legislativa; e o professor Juarez

Leitão, segundo suplente, assume a vaga do vereador Pedro

Nunes, que se torna deputado estadual com o falecimento de

Paulino Rocha, em 1979.

Na eleição estadual de 1978, alguns vereadores de

Fortaleza se lançaram na disputa por uma vaga na Assembléia

Legislativa. Gerôncio Bezerra, que em 1976 se consagrou como o

168

vereador mais votado na história política de Fortaleza, tem

uma boa votação para deputado estadual. Além dele, o vereador

João Quariguasy também se elege deputado estadual. Já Antônio

Costa, ex-vereador, não consegue reeleger-se à Assembléia

Estadual. Outros vereadores candidatos também não obtiveram

êxito, como Pedro Nunes, Bianou de Andrade e Sandoval Bastos.

Com a morte do deputado Paulino Rocha, o suplente Pedro Nunes

assume em 1979.

169

2.10 Disputas e Novas Estratégias em Outros Tempos

A missão do vereador não é só dar atendimentoao eleitorado. Mas muitos eleitores nãoentendem (Ex-vereadora Ivone Melo).Para cada votação de interesse direto doexecutivo há negociação para que as obras sejamfeitas nos bairros (Ex-vereador Fiúza Gomes).

Em 15 de novembro de 1982, volta a ocorrer eleições

simultâneas para o legislativo e o executivo municipal,

estadual e federal, exceto para Presidente da República e

prefeito das capitais. Para governador, o Ceará elegeu Gonzaga

Mota, enquanto José Aragão e Albuquerque Júnior foi nomeado

prefeito, permanecendo no período de 1982-1983, sendo

substituído pelo engenheiro César Cals de Oliveira Neto (1983-

1985), filho do ex-governador César Cals. Em 1985, o vereador

José Maria Barros Pinho assume a administração municipal até

as eleições diretas para prefeito, quando é eleita pelo PT

Maria Luiza Fontenelle (1986-1989).

A eleição para a décima legislatura ocorre num quadro

de multipartidarismo ainda não consolidado. Ampliam-se as

vagas para a CMF, de 21 para 34, o que permite a entrada de

novos atores na cena política municipal.

Na década de 1980, os ventos sopram contrários às

tradicionais lideranças dos antigos vereadores. As mudanças

sociais e políticas ocorridas no país e na capital do Ceará

exigem novas lideranças, mais sintonizadas com as ideologias

que florescem com a abertura política e com os interesses das

classes trabalhadoras, sufocadas no período ditatorial. Já não

era mais o tempo da dominação territorial que assegurava o

170

controle da base eleitoral por meio de uma vasta máquina

assistencialista. As fronteiras de cada comunidade são

extremamente porosas, deixando passar todo tipo de candidato.

Neste momento, acirra-se a competição eleitoral, e

amplia-se o número de candidatos e de partidos. Para cada

candidato não basta somente ter votos disponíveis e

controlados, mas saber se dentro de cada organização

partidária ou da coligação existem votos suficientes para lhe

assegurar a eleição. O raciocínio do número absoluto vai

deixando de ter importância, pois as divergências e a

demonstração de capacidade de manter uma base eleitoral são

extremamente caras e trabalhosas.

O sistema eleitoral municipal é formado por atores que

detêm um mandato (vereadores), suplentes e ex-suplentes de

vereadores, ex-vereadores que perderam ou se afastaram da

política e voltam a se candidatar, e por aqueles que pleiteiam

pela primeira vez uma cadeira na CMF.

A eleição de 1982 caracteriza-se pela presença de

vereadores pertencentes ao sistema político, mesmo que alguns

em posição bastante secundária (antigos atores políticos). Ao

lado destes, há os vereadores (novos atores políticos)

realmente inseridos no sistema. O sistema político eleitoral

municipal dava os primeiros sinais de abertura, permitindo a

incorporação de membros completamente estranhos a ele.

No grupo dos novos, estão os vereadores Antônio

Fernandes de Oliveira, Emanuel Telles, Francisco Lopes, Marcus

Antônio Fernandes de Oliveira, Paulo de Tarso Facó Bezerra e

171

Zequinha Aristides Pereira. Além destes, tem José Maria Couto

e Nildes Alencar, que apesar de estarem se candidatando pela

primeira vez não poderiam ser considerados estranhos, pois

faziam parte do sistema político e sucedem vereadores da

família que se tornaram deputado estadual, como foi o caso de

Gerôncio Bezerra e Bianou de Andrade.

A grande sensação eleitoral foi a eleição de um

paraplégico para o parlamento municipal, Antônio Fernandes de

Oliveira, que fez sua campanha explorando a condição de

deficiente físico, com o slogan “O deficiente eficiente”.

Apesar dos surpreendentes 21.237 sufrágios, ela ficou restrita

a determinados bairros (Piedade, Aerolândia, Fátima e Dionísio

Torres). Na eleição de 1988 candidatou-se pelo PFL, obtendo

257 votos. É o mais inusitado exemplo de fenômeno e

desaparecimento eleitoral registrado pela política municipal.

Neste grupo também podem ser citados os que já

pertenciam ao sistema político numa posição secundária, por já

terem sidos candidatos, mas não eleitos: Iria de Almeida

Ferrer, Juarez Leitão, Raimundo Ferreira de Araújo e Samuel

Morais Braga.

Portanto, apesar do aumento do número de vagas na CMF,

poucas lideranças realmente novas se destacam. Talvez isto se

deva ao fato da legislação permitir inúmeras reeleições,

garantindo a cadeira de alguns políticos. Outras lideranças,

familiares de vereadores, também inseridas no sistema

político, não podem ser consideradas novas, pois herdaram as

bases eleitorais, assegurando um lugar no legislativo.

172

A presença de parlamentares experientes que dominam o

conhecimento do funcionamento do legislativo é importante do

ponto de vista da instituição, mas do ponto de vista político

pode ser negativa, por não estimular o surgimento de novas

lideranças.

Feitos estes esclarecimentos e analisando os resultados

eleitorais de 1982, constata-se uma renovação de 42,42% nesta

eleição. Mas considerando o pertencimento anterior de alguma

maneira ao sistema político municipal, esta renovação cai para

18,18%, correspondente ao número dos vereadores novatos como

atores políticos municipais.

Ante a presença destes vereadores no sistema político,

pode-se dizer que houve um acréscimo significativo em termos

de novas lideranças. Na legislatura passada, ocorreu a

incorporação de um único novo ator político – Narcílio

Andrade. Além de razões resultantes de mudanças políticas e

econômicas na sociedade, isto se deve também ao aumento de

cadeiras na CMF, de 21 para 33, que possibilitou a renovação e

a entrada de novos atores na cena política municipal.34

Neste pleito foram eleitos para deputado estadual

Barros Pinho, Bianou de Andrade, Sandoval Bastos e Pedro

Nunes. Barros Pinho, na verdade, já não era vereador porque

tinha assumido a cadeira do deputado Paulino Rocha. A surpresa

34 Considero este fato relevante. Devemos tomar com cautela a recentedecisão (2004) do TSE de redução significativo do número de vereadores pormunicípio. Se o que constatamos aqui tem valor, podemos aferir que aredução do número de cadeiras em disputa para o legislativo municipal alémde acirrar a disputa por uma vaga acaba favorecendo os já incluídos nosistema. Os incluídos e com mais chances de eleição são precisamente osvereadores tradicionais.

173

foi a derrota de Gerôncio Bezerra, que ficou na décima

terceira suplência.

Apesar das mudanças verificadas na estrutura de votação

em Fortaleza, ainda têm surgido vereadores de base territorial

nesta legislatura: Raimundo Araújo, com votação concentrada na

região da Lagoa Redonda, anteriormente controlada

politicamente pelos Ximenes; Iria Ferrer, com votação na zona

leste (Pirambu, Colônia e Jardim Iracema), comerciante, eleita

uma única vez em 1980, não se reelegendo depois dos escândalos

na Câmara; Zequinha Aristides, comerciante do ramo de padaria,

cuja votação se concentrava nos bairros Serrinha, Parque Dois

Irmãos e José Walter; Paulo Facó, funcionário público

estadual, com votação concentrada nos bairros Jardim das

Oliveiras, Cidade dos Funcionários e Luciano Cavalcante.

Entre estes, destaca-se ainda o vereador José Maria

Couto, advogado, com forte concentração de voto no bairro

Antônio Bezerra, herança da atuação paterna (filho do ex-

vereador e ex-deputado estadual Gerôncio Bezerra). Ao longo

dos mandatos, foi rompendo com seu perfil inicial de vereador

de comunidade de bairro, em decorrência da sua ligação com o

esporte (presidente da Federação Universitária Cearense de

Esportes e diretor da Superintendência do Desenvolvimento dos

Desportos de Fortaleza). Deixa a política depois de cumprir o

mandato de presidente da Câmara Municipal de Fortaleza,

elegendo o irmão Hélder Couto, em 2004.

Chama a atenção o grupo de vereadores ideológicos

identificados com segmentos da atividade educacional, com

votos dispersos em vários bairros da cidade.

174

Francisco Lopes, formado em Pedagogia e professor de

grandes colégios da rede estadual, foi eleito pela primeira

vez pela legenda do PMDB. Candidatura tipicamente ideológica,

era sustentada por militantes do PCdoB, partido ilegal.

Posteriormente, como primeiro suplente de vereador pelo PCdoB

na eleição de 1988, assume uma vaga na CMF deixada por Inácio

Arruda, eleito deputado estadual, em 1990. Em 1992 tem

reeleição assegurada e em 1994 é eleito deputado estadual.

Wellington Soares, professor de literatura, quando é

eleito em 1982, não era um neófito na política, pois há tempo

militava no MDB, tendo sido candidato em 1976. Na eleição

seguinte, teve uma derrota acachapante, depois de ser o centro

de escândalo ocorrido na Câmara, na época em que era seu

presidente. Entretanto, volta à vida política municipal com a

eleição da sua filha Germana Soares, em 2000.

Juarez Leitão, formado em Filosofia e História,

professor de vários colégios da capital, participou da direção

de entidades estudantis. Na eleição de 1976, fica na segunda

suplência e em 1980 assume a cadeira de vereador.

Nildes Alencar, formada em Pedagogia, proprietária do

colégio Instituto Alencar, insere-se na política como

militante estudantil da Juventude Universitária Católica,

ainda na década de 1960. Irmã do preso e exilado político Frei

Tito Alencar, engaja-se no movimento feminino pela anistia no

Ceará. Casada com o ex-vereador Bianou de Andrade, o substitui

na CMF, em 1982, após a eleição deste para deputado estadual

em 1978.

175

Além destes, tem Samuel Braga, que concentrava sua

votação nos bairros Piedade, Centro e Joaquim Távora, apesar

de não ser caracterizado como vereador de base territorial.

Formado em Pedagogia, proprietário de escola, teve dois

mandatos municipais, um deles pelo PDT. Dedicou-se ao tema da

defesa do meio ambiente.

Dois odontólogos foram eleitos nesta legislatura.

Emanuel Telles, dentista da Secretaria da Saúde do Estado do

Ceará, teve uma votação considerável na área do Jardim América

e Rodolfo Teófilo, mas não pode ser considerado vereador de

comunidade de bairro. Sua maior votação é oriunda da sua

atividade profissional. É um dos primeiros vereadores da área

de saúde, o que se tornará comum na década seguinte.

Já Marcus Fernandes, apesar de odontólogo, professor da

UFC e ex-dirigente da União Estadual dos Estudantes da

Paraíba, tem sua votação ligada a diversos segmentos dos quais

participa (teatro, associações profissionais, esporte),

principalmente ao halterofilismo, como proprietário de uma

academia.

Segundo revelou o levantamento da trajetória dos

vereadores que ocupam posição importante no sistema político

municipal em Fortaleza desde a década de 1940, aos poucos foi

se constituindo uma representação política centrada no

interesse de comunidade de bairro. A manutenção desta base

política é muito cara e trabalhosa, exigindo assistência

permanente e, em linhas gerais, a eterna condição de

governista. Era difícil manter oposição ao prefeito, pois as

176

bases eleitorais exigiam benefícios do poder executivo, e,

portanto, um constante alinhamento político.

O fato de não haver limites no parlamento para

reeleição cria a possibilidade de existir uma situação na qual

os que estão integrados no sistema, e em virtude da natureza

do seu voto fica completamente impedida a renovação e entrada

de novos vereadores. Se completarmos esta característica com a

redução do número de cadeiras em disputa e a existência do

bipartidarismo, regra predominante no regime militar, teremos

uma situação de completo fechamento político do sistema de

lideranças municipais a novos membros.

Outra característica importante, merecedora de atenção

e reflexão, é os vereadores com base eleitoral em bairros

normalmente disputarem eleição de maneira majoritária, isto é,

raramente um mesmo bairro consegue eleger mais de um

representante. Quando emerge um novo vereador numa antiga base

política, significa a decadência inevitável do antigo líder. A

região do bairro Lagoa Redonda pode servir como exemplo.

Durante a década de 1960 foi monopolizada pelo vereador

Raimundo Ximenes. Depois da sua cassação política, ficou sob

domínio do vereador José Barros de Alencar. Entretanto, na

década de 1980, surge uma nova liderança local que se elege,

Raimundo Araújo, mas não se reelege em 1988. Em seguida, na

década de 1990, surge a liderança do vereador José Carlos

(Cacá), que a mantém até o presente, sofrendo recentes

mudanças, como veremos a seguir, na sua representação. Outro

caso exemplar se passa nas regiões do Carlito Pamplona e

Pirambu. Agostinho Moreira e José Lima Monteiro somente por

177

uma legislatura conseguiram se eleger simultaneamente porque

ainda atuavam em bases dispersas. Quando ambos passaram a

concentrar sua atividade política inteiramente no bairro, já

não havia como eleger os dois. Tanto que o vereador Agostinho

Moreira somente voltará à CMF com a derrota de Lima Monteiro.

A grande renovação observada na eleição de 1988 não se

deve unicamente à série de escândalos na Câmara Municipal

neste período, mas também ao fato de ser a primeira eleição

num quadro partidário extremamente fragmentado. A fragmentação

dos partidos não permitia ainda aos concorrentes saber mais

apurado da melhor sigla para disputar uma eleição. Este saber

vai se produzindo ao longo dos anos 1990, deixando de ocorrer

muita surpresa em decorrência da relativa estabilidade do

quadro partidário. Não propriamente a estabilização das forças

políticas em partidos, mas o entendimento melhor das regras

aplicadas na eleição municipal permite que cada vereador

candidato tenha um ano antes de renovar seu mandato uma

movimentação absolutamente esperada porque se faz no sentido

de manter seu mandato.

Muitos dos que foram postos para fora do sistema

político local não conseguiram mais retornar. Não puderam

voltar à cena política porque os partidos passaram a ser

detentores de um poder grande de veto de certos candidatos

capazes de eventualmente ameaçar os que já estão dentro do

partido e com fortes chances de ser eleito. Os expelidos do

sistema ficam como “zumbis”, em cada eleição, pousando num

partido ou coligação e esperando que desta vez possam retomar

sua vida política. Uma vez expelido do sistema de poder local,

178

o candidato tem mais dificuldades porque a derrota sofrida não

foi simplesmente pela ausência de votos, mas pela incapacidade

de entender que as regras haviam se modificado muito e que

seria necessário uma nova forma de agir na cena política. Os

retardatários tiveram de dar lugar aos novos, que fundavam e

controlavam os partidos, enquanto os antigos caciques dos seus

esclerosados partidos iam aos poucos perdendo sua condição de

disputar de forma séria os postos perdidos.

De maneira mais genérica, algumas observações se fazem

necessárias sobre a trajetória das lideranças municipais.

Quanto ao aspecto ideológico, é curioso constatar que os

católicos sempre contaram com um representante em diversas

legislaturas, começando em 1948 com o vereador Denizard

Macedo, até recentemente, com Paulo Mindello. Entretanto,

nunca passaram de um representante. Membros de outros credos

religiosos, todavia, não tiveram o mesmo êxito. Há somente o

caso do vereador Belizário Teixeira na década de 1950, com uma

votação eminentemente evangélica. Se no passado os evangélicos

se fizeram pouco ou quase inexistentes em sua representação

política, atualmente é o segmento social organizado que tem

mais representantes políticos.

Ainda comparativamente a legislaturas passadas, salta

aos olhos a pouca presença de médicos no legislativo,

contrastando, igualmente, com o que ocorre hoje. Dada a

expansão do sistema de saúde após a criação dos SUS na década

de 1980, encontramos a explicação para esse fenômeno. Enquanto

os médicos eram poucos, os representantes oriundos da educação

eram muitos. Desde a primeira legislatura, a CMF tem no mínimo

179

três professores entre seus membros. As corporações também

detinham espaço na CMF. Destas, se destacam os militares, que

têm um representante identificado com eles desde os anos 1940,

e ao longo dos tempos, sempre mantiveram um ou dois

representantes.

180

3. TRANSIÇÃO POLÍTICA E RENOVAÇÃO – A DÉCADA DE 1980 EM FORTALEZA

3.1 Redemocratização e Política Municipal

Este capítulo pretende traçar um quadro das principais

mudanças políticas ocorridas na sociedade ao longo dos anos

1980 e que tiveram relação direta com acontecimentos no

legislativo municipal de Fortaleza.

Tais mudanças guardaram sua origem no relaxamento

progressivo do regime militar depois da eleição de Geisel,

considerada o início da mudança na vida política nacional.

Desta forma, por ter de usar de maneira incisiva todos os

instrumentos proporcionados pelo regime militar, o Presidente

foi assegurando o retorno da vida política à sua normalidade

gradativamente. Promulgou, então, em 1976, a Lei Falcão

contendo restrições à propaganda política. Segundo esta lei,

os candidatos não poderiam mais aparecer ao vivo na televisão.

Uma foto três por quatro era exibida e um locutor lia o

currículo do candidato. Assim se processaram as eleições

municipais de 1976.

Sucessivas alterações na legislação não foram

suficientes, no entanto, para garantir vitória ao partido do

governo. Sob o pretexto de implementar uma reforma no

judiciário, o regime autoritário pôs o Congresso em recesso e

decretou o “pacote de abril” em 1977, cujas medidas mais

importantes foram: a ampliação do mandato de Presidente para

seis anos; as eleições indiretas dos governadores pelos

deputados estaduais e delegados das Câmaras Municipais; um em

181

cada três senadores eleitos seria eleito indiretamente – o

chamado senador biônico; a Constituição poderia ser modificada

com quórum de maioria simples; a Lei Falcão passava a ser

aplicada a todas as eleições diretas. Com o “pacote de abril”,

as regras das eleições municipais de 1980 foram alteradas.

Como no antigo calendário deveria ocorrer eleição municipal em

1980, estes vereadores teriam um mandato de apenas dois anos,

para poder haver nova eleição em 1982, coincidindo, novamente,

a eleição municipal com a federal e a estadual. Entretanto, em

1980, editou-se uma nova lei adiando para 1982 a eleição

municipal e prorrogando o mandato dos eleitos em 1976.

As alterações legais implementadas pelo regime

autoritário visavam assegurar a manutenção do poder com os

generais. Na eleição de 1978, a estratégia foi bem-sucedida. A

despeito de perder nos maiores centros urbanos do país, o

governo assegurou maioria mediante uso de manobras

casuísticas.

Em 1979, depois da posse do general Figueiredo na

Presidência da República, o governo, com vistas ao processo de

abertura política, cogitou uma fórmula para impedir a eleição

municipal do ano seguinte. Assim, em outubro de 1979 foi

extinto o bipartidarismo e instituído o pluripartidarismo.

Então, com a aprovação da “emenda prorrogacionista”, o cenário

da eleição de 1982 começou a ser traçado já em 1980. Além

disso, o projeto de lei instituindo a vinculação total do voto

em 1982 foi a norma decisiva para que o PP tomasse a decisão

de retornar ao PMDB. Tal projeto vinculava o voto total de

182

vereador até senador no mesmo partido e impedia qualquer tipo

de coligação partidária.

Essas medidas foram decisivas para a vitória do governo

nos Estados. A eleição de 1982 fez-se dentro de um quadro de

abertura política. A estratégia do governo é vencedora,

principalmente no tocante ao aspecto da divisão das oposições.

Porém, apesar de todas as limitações e casuísmos eleitorais

propostos com o “emendão”, a oposição foi vencedora para a

Câmara Federal, o PDS fez a maioria no Senado e assegurou doze

dos vinte e dois governadores eleitos. Entretanto, a oposição

elegeu os governadores dos três Estados mais importantes da

federação: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Em março de 1983, foi apresentada uma emenda do

deputado Dante de Oliveira, votada em 25 de abril de 1984, a

qual restabelecia as eleições diretas para Presidente da

República em 1985. No início atraiu pouca atenção, mas aos

poucos foi despertando o interesse, fazendo com que o PMDB a

visse como um importante meio de mobilização popular. No mesmo

ano realizou-se em Goiânia, com a presença de 5.000 pessoas, o

primeiro de uma série de comícios pedindo o retorno à eleição

direta para presidente.

A emenda foi derrotada por uma diferença de apenas

vinte e dois votos, causando enorme frustração aos

participantes das jornadas pelas “Diretas Já!” Todavia, depois

da campanha das Diretas, a sucessão do general Figueiredo não

se daria mais da mesma forma. Via mobilizações populares, a

oposição havia conseguido provocar dissidências no governo. A

batalha seguinte concentrou-se na decisão de ir ao Colégio

183

Eleitoral e eleger, mesmo indiretamente, um dos lideres da

campanha pelas Diretas. O dia 15 de março de 1985 marca

oficialmente o período de fim do processo de transição

democrática com a eleição, no ano anterior, de um civil à

Presidência da Republica pelo Colégio Eleitoral. Em 15 de

janeiro de 1985 é eleito Tancredo Neves, pelo Colégio

Eleitoral, contando com a abstenção do PT. Tancredo Neves não

assume e José Sarney, o vice que tinha rompido com o PDS e

fundado a Frente Liberal, criando em seguida a Aliança

Democrática com a aliança com o PMDB, toma seu lugar na

Presidência, iniciando o processo de redemocratização do país.

No mesmo ano ocorreram eleições diretas nas capitais, em que o

governo perdeu em alguns Estados importantes como São Paulo,

Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza e Pernambuco. A

temporalidade política nacional está marcada por este longo

processo de “distensão política”.

Pouco a pouco a situação econômica do país vai ruindo

com o surgimento da inflação ao longo de toda a década de

1980. Toda a política econômica é voltada para o combate à

inflação e à estabilidade da moeda. Os anos de maior

transformação política da sociedade brasileira são justamente

estes de alta inflação e de fortes movimentos sociais urbanos

e rurais. A inflação anual atinge níveis altos: em 1985 foi de

237,7%, em 1986, durante o Plano Cruzado, chegou a 57,5%, mas

voltou a se descontrolar em 1987, quando atinge 365,7%; em

1988, chega a 933,6% e no final do governo, em plena campanha

sucessória, alcança a marca de 1.764,9%.

184

A transição democrática vai de 1984 até 1988 – neste

momento começam a se definir regras que orientam o novo padrão

de eleição mais competitiva nos anos seguintes. No Ceará,

renova-se, então, parte da elite política com a mudança do

padrão anterior centrado na figura do chefe político municipal

controlador de votos. Um evento político como foi a derrota do

esquema da política tradicional ainda exige uma explicação

mais aprofundada. No entanto, é rara a inclusão de eventos

ocasionais como mecanismo de explicação de eventos políticos

de alta importância. Isto porque este evento não é produzido

por acaso, mas intencionalmente. Foi projetado para gerar

determinado efeito. Todavia, de maneira secundária, produziu

efeito sobre outras realidades a ele ligado, modificando sua

dinâmica. Isto poderia ocorrer repetidas vezes e motivado por

qualquer outro fato, pois desdobramentos de efeitos podem

provocar uma modificação numa situação até aquela data vista

como inalterada. A lógica da mudança social precisa ser

revista e teorizada, levando sempre em consideração que as

expectativas dos atores com seus atos nem sempre se realizam,

mas podem de maneira surpreendente provocar a erosão de uma

situação que não se pretendia modificar.

No caso específico do Ceará, o desdobramento de eventos

políticos ocorridos no plano nacional trouxe modificações

muito significativas entre os atores políticos locais.

Ressaltar que parte das mudanças ocorridas na década de 1980

no Ceará se deve ao impacto de uma situação política gerada

fora das fronteiras do Estado não significa desconhecer que

185

elementos da dinâmica política local não tenham contribuído

para apressar processos de mudanças já em curso.

Rejane Carvalho (1998), em seu livro Transição democrática

brasileira e o poder midiático publicitário da política, apresenta uma

explicação para a eleição de Maria Luiza usando argumentos que

envolvem imagens, marqueteiros políticos e sentimentos

populares por mudanças. Um cenário onde atores ocupam papéis

previamente definidos pelas estruturas. Ela afirma:

As eleições diretas e “solteiras” para os prefeitos dascapitais em 1985 inserem-se neste cenário, transcorrendo emum momento do ciclo de desesperança de que as mudançaspudessem vir da “Nova República”, condensada nas imagensrapidamente envelhecidas do presidente Sarney e do PMDB.O sentimento disseminado e sugerido de rejeição aos“usurpadores da esperança” molda em 1985 uma outra pulsão: abusca de personagens que reencarnem a mudança (CARVALHO,1998, p.110)

A derrota do padrão tradicional da política no Ceará em

1986 ocorre em função dos ventos soprados de Brasília com o

advento do Plano Cruzado, que beneficiou todos os candidatos

do PMDB naquele momento, tanto que nos 23 Estados fizeram 22

governadores, 46 senadores dos 72 e 260 dos 487 deputados

federal. A onda de mudança na política veio de Brasília e se

dava em decorrência da nova situação criada pelo plano

econômico e pela enorme mobilização nos primeiros meses. Nessa

situação, os candidatos que encarnavam melhor este sentimento

de confiança de que as coisas iam dar certo tinham mais

chances de sair vencedores. No entanto, o ciclo da dominação

tradicional não se esgotou por desdobramentos de uma situação

local, agravamento de contradições internas, mas pela

186

existência de uma situação nacional que objetivamente

beneficiava uns candidatos e desfavorecia outros.

3.2 Fortaleza Rebelde – A Eleição Direta de Maria Luiza

Fontenelle

As mobilizações políticas dos anos 1980 são decisivas

para se compreender a nova conjuntura política gerada pelo fim

do regime autoritário. São anos de forte participação política

e de retorno à normalidade política.

Ao longo dos anos 1980, a política municipal em

Fortaleza sofre profunda transformação. Os membros da Câmara

Municipal foram eleitos em 1982, juntamente com deputados

estadual e federal, senador e governador. Mesmo tendo ocorrido

em regime de pluripartidarismo, o resultado das urnas

beneficia unicamente o PMDB e o PDS. A aliança dos três

coronéis (Virgílio Távora, Adauto Bezerra e César Cals) selava

a sorte das forças conservadoras herdeiras do regime militar:

Gonzaga Mota, eleito governador, indicado pelo grupo

virgilista, e César Neto, indicado prefeito de Fortaleza pelo

grupo cesista.

O desdobramento da sucessão do general Figueiredo foi

decisivo para os acontecimentos políticos locais, enquanto a

implosão interna do PDS facilita a candidatura de Paulo Maluf,

rachando o partido, por formadores da Frente Liberal que

agregariam força contrária à candidatura do PDS. No Ceará, o

jovem governador Gonzaga Mota é o primeiro a aderir à tese

187

antimaluf. Rompendo com o partido PDS e com todo o grupo que

lhe dava anteriormente sustentação, Gonzaga Mota vai para o

PMDB e passa a apoiar Tancredo Neves. De imediato, o

rompimento com o grupo do PDS implicou a destituição do

prefeito de Fortaleza, César Neto, substituído pelo deputado

estadual e ex-vereador Barros Pinho.

Com a aprovação de eleições diretas para as capitais e

outras cidades até então impedidas de eleger diretamente seus

prefeitos, o processo de transição democrático entrava num

novo ritmo. Os vereadores tiveram uma prorrogação de mandatos,

pois a eleição seria unicamente para o executivo municipal.

Em Fortaleza foram lançados os candidatos apoiados pelo

grupo adautista: o PFL indicou Lúcio Alcântara; o PMDB lançou

Paes de Andrade; uma frente de partidos progressistas tendo o

PT como força majoritária lançou Maria Luiza Fontenelle e

outros candidatos de menor expressão. A campanha se desenrolou

em torno da disputa entre o candidato do PMDB e o do PFL,

considerados os favoritos do pleito. Ao longo da campanha,

sucessivos ataques de ambos os lados permitiram que uma

candidatura até então aparentemente sem chances fosse

crescendo, enquanto os outros se digladiavam politicamente.

Uma campanha de televisão criativa, feita com poucos recursos,

mas contando com uma militância ativa, acabou sendo a

beneficiada da disputa entre os candidatos favoritos. A

eleição de Maria Luiza foi uma surpresa tanto para os

adversários quanto para as forças vencedoras, que deveriam

agora organizar um programa para a administração municipal.

188

A eleição de 1985 para a prefeitura de Fortaleza seria

o primeiro teste das forças que militavam nas jornadas das

Diretas Já e que depois foram participar da eleição no Colégio

Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Naquele ano, a aliança

para a constituição do governo da Nova República foi testada

com a eleição municipal. No Ceará as forças políticas que

haviam apoiado a eleição indireta se dividiram na indicação do

candidato a prefeito em Fortaleza. O governo estadual e o PMDB

apóiam o deputado Paes de Andrade; as forças conservadoras

aliadas do vice-governador apóiam Lúcio Alcântara. Em virtude

do boicote ao Colégio Eleitoral, as forças progressistas que

não participaram da eleição indireta formam uma aliança em

torno da deputada estadual Maria Luiza.

Maria Luiza venceu as eleições em todas as zonas, mas

seu principal êxito ocorreu nos bairros mais ricos. A classe

média de Fortaleza votava favorável ao projeto mais

progressista do PT. Na 94ª zona, onde estão situados os

bairros mais pobres da cidade, a diferença entre Maria Luiza e

Paes de Andrade foi de apenas 341 votos favoráveis à futura

prefeita.

Considerada a grande surpresa, fenômeno e sensação da

eleição municipal realizada em 1985, Maria Luiza não teve uma

administração tranqüila. Sobressai o quadro institucional do

funcionalismo público completamente desorganizado. Os 40 mil

contracheques de servidores foram reduzidos para 24 mil. Este

tipo de decisão não poderia passar sem reação dos opositores a

esta medida. O estado de desmando administrativo herdado da

administração anterior era flagrante quanto ao atraso de

189

pagamento e endividamento do município. Não havia minimamente

como administrar uma cidade com este grau de problemas.

Partindo daí, ao assumir a administração do poder municipal em

Fortaleza, Maria Luiza Fontenelle encontrou uma situação

financeira caótica. As despesas superavam em muito as receitas

mensais. Somente com atrasos de pagamento de funcionários a

prefeitura acumulava dívida de US$ 10 milhões. Gastava-se US$

5,5 milhões enquanto se arrecadava nada mais do que US$ 4,1

milhões por mês.

Como não houve renovação da CMF na eleição de 1985, a

administração popular assumiu o poder executivo com uma CMF

ainda eleita em 1982. Começou o enfrentamento político com os

vereadores quando a prefeita tentou reduzir o empreguismo

existente na prefeitura e moralizar os gastos públicos. A

situação de atraso no pagamento do funcionalismo municipal

tornou-se corrente porque a arrecadação municipal era

insuficiente até para cobrir a folha de pagamento do

funcionalismo. Além disso, o lixo se acumulava pelas ruas, a

malha viária estava esburacada, o saneamento precisava ser

feito, etc. A situação era de caos urbano. Na CMF a prefeita

não contava com um grupo coeso que lhe desse sustentação

política. Relativamente isolada tanto no plano estadual quanto

no plano nacional, ainda teve de enfrentar as dificuldades no

primeiro ano com a eleição para governador e deputados

constituintes.

Derrotas do executivo em seus projetos no legislativo

tornaram-se comuns. A prefeitura propôs, por exemplo, a

criação de uma autarquia com responsabilidade pela coleta do

190

lixo da cidade, mas o projeto não foi aprovado pelos

vereadores. Os atritos foram freqüentes não somente quanto à

natureza de projetos, mas também por causa de repasses de

verbas para a manutenção do legislativo. Como havia uma crise

financeira crônica no município, o repasse nem sempre ocorria

no tempo devido. Isto seria outro motivo de desgaste entre os

dois poderes. Já não se tratava de uma administração na qual o

vereador podia tudo conseguir. Segundo depoimento de uma ex-

vereadora na época da prefeita Maria Luiza, foi o período pior

que viveu na Câmara. Não conseguia nenhum metro de calçamento,

nada saía para aplacar a ira dos vereadores que precisavam das

ações do executivo para contentar sua clientela eleitoral.

A experiência da administração popular era igualmente

nova, quer para o grupo político que assume a direção do

executivo quer para os membros do legislativo. Da

inexperiência administrativa ao sectarismo político do grupo

político que cercava a prefeita, lentamente a administração

começa a apresentar resultados moralizadores para a

administração. Os membros do governo tinham a impressão de

experimentar a construção de um novo modelo de gestão pública

para a política brasileira. Tal era a pretensão dos membros

dessa organização.

As dificuldades enfrentadas pela nova administração não

poderiam ser menores, porquanto o resultado das urnas foi

surpresa para os próprios eleitos. Não contando nem com

experiência nem com quadros administrativos importantes teve

de organizar o governo fazendo-o andar. Do lado da população a

surpresa não fora menor, pois a administração popular se

191

apresentava levada por enormes expectativas. Diante de um

caótico quadro financeiro para o município, logo viriam a

decepção e a frustração eleitoral. A situação da limpeza

urbana, marcada como o símbolo da gestão Maria Luiza, era

apenas a ponta de um despreparo completo. O enfrentamento com

as forças clientelistas e empreguistas derrotadas nas eleições

se fará no confronto com o poder legislativo.

Para a Câmara Municipal não interessava nenhuma

administração diferente das anteriores. A cada vereador que

mantinha clientela e apoio eleitoral em bairro, exigia-se do

executivo acesso aos bens públicos com vistas a contemplar seu

eleitorado com calçamentos e benefícios coletivos e

individuais.

A gestão da prefeita Maria Luiza não seguiu este

traçado. Conseqüentemente, obteve imediata oposição por parte

dos vereadores mais tradicionais. Contava com oposição de

setores à esquerda e à direita. Ideologicamente a

administração popular relegava para segundo plano a

instituição de representação política existente e pretendia

criar Conselhos Populares. Não se deve atribuir em momento

algum à Câmara Municipal as trapalhadas e ineficiência

administrativa dos petistas, pois os vereadores desta época

são unânimes em afirmar que o executivo mandava poucas

matérias para serem votadas. Como estava mais preocupada em

usar a prefeitura como meio para organizar os pobres,

conscientizá-los dos seus direitos, administrar uma prefeitura

seria estar tentando solucionar a crise provocada pelo sistema

capitalista nas cidades. A prefeita era militante de um grupo

192

político que acreditava na revolução socialista, sendo

necessário pensar estrategicamente o que fazer com a

administração de uma cidade. A saída encontrada não era

atender aos anseios de mudanças e seriedade no trato com o

dinheiro público. Isto era secundário diante da urgência de

organização dos movimentos populares.

É comum que os participantes vitoriosos de embates

políticos desejem enaltecer sua coerência, esperteza, justeza,

competência intelectual e política na condução do processo do

qual se consagraram vencedores. Nada demais nisto, pois é

injusto não se atribuir parcela significativa do resultado da

vitória à sua própria competência. Entretanto, raramente isto

é verdade e não é fácil encontrar as explicações e atribuições

individuais nos acontecimentos coletivos, mas muitas vezes o

processo se desdobra em formas imprevisíveis e inevitáveis em

certo momento. Maria Luiza, ao explicar sua vitória, primeiro

reconhece ter sido beneficiada com as brigas entre os dois

candidatos favoritos, mas julga que isto não ocorreu por

acaso. Alguns acontecimentos de movimentação social comandados

por pessoas ligadas à candidata provocaram desgaste na imagem

do governo. Greves de professores, de motoristas de ônibus,

ações de trabalhadores rurais foram movimentos de

reivindicações que contavam com a simpatia da população e que

foram reprimidos pelo governo estadual. Isto tudo foi

explorado pela candidata do PT.

Assim como a vitória eleitoral lhe caiu no colo, a

prefeita Maria Luiza não sabia o que fazer com uma

administração pública municipal, não havia se preparado para

193

salto tão elevado, pois ninguém concebia a vitória. Mais

preocupados em formar uma base municipal de oposição política

à Nova República, estavam pouco voltados para o dia-a-dia de

administrar uma cidade.

O insucesso da administração Maria Luiza não deve ser

atribuído ao cerco das forças conservadoras que não aceitavam

uma alternativa política popular em Fortaleza. Esse fracasso

deve ser buscado na origem das forças políticas vencedoras da

eleição. Primeiramente, a eleição foi uma surpresa para todos.

Mas o fato de não estarem preparados com quadros políticos

para a administração não teria gerado o caos se não existissem

problemas partidários. Maria Luiza era filiada a um partido

político clandestino (PRC), mas se elegeu pelo PT. Dentro da

administração houve constante tensão entre estes dois grupos.

À esquerda, a administração era pressionada pelas forças dos

comunistas do PCdoB, PCB e MR8, que apoiaram a candidatura de

Paes de Andrade, e dentro do PT havia a luta pelo controle

político da prefeitura. Completou este quadro de disputa

política a eleição para governador no primeiro ano da sua

administração. Uma eleição é sempre um momento de decisão

forçada de posicionamentos das forças políticas. Essa não

poderia ser diferente.

Não há dúvidas de que a década de 1980 é plena em

novidades políticas e renovação de práticas e elites

políticas. Entretanto, quando se observa mais detidamente a

composição dos órgãos legislativos, não se tem a mesma

percepção. Nestes, mantém-se a predominância de um

representante político que não sofreu tantas mudanças quanto

194

os membros executivos. O novo ar político trazido pelo fim do

regime militar e pela redemocratização afetou de maneira mais

lenta os membros do legislativo.

No legislativo municipal de Fortaleza, segundo já

observamos, foi extremamente complicada a administração

popular. Todavia, as dificuldades não decorreram apenas da

inabilidade política, inexperiência administrativa e

sectarismo político do grupo político que comandava a

administração local. A formulação de Conselhos Populares, por

exemplo, afrontava diretamente os interesses da Câmara

Municipal, pois se pretendia transferir parte do poder de

representação dos interesses da população para estes órgãos de

controle da administração pela população. Dos obstáculos, o

mais difícil de ser superado foi a escassez de recursos porque

a nova reforma tributária não havia ainda sido promulgada e os

municípios sofriam asfixiados em dívidas, empreguismo e

inabilidade administrativa.

Na análise explicativa de Carvalho (1998) sobre a

eleição de Maria Luiza sobressai o uso pioneiro do marketing

político por um grupo de militantes do partido. A autora

atribui em parte à campanha na televisão a vitória eleitoral

da candidata. Isolada de todo o contexto real explicativo dos

eventos, a propaganda eleitoral adquire uma força inexistente

na prática. Afinal, o resultado eleitoral dependeu não somente

do desempenho do candidato vencedor, mas também e

principalmente do desempenho dos demais concorrentes. Isolando

a análise unicamente na campanha do vencedor, incorre-se no

erro de atribuir virtudes gloriosas ao vencedor em decorrência

195

da sua simples vitória. No entanto, a reconstrução da

importância do programa eleitoral na campanha municipal de

1985 não pode ser tida como definitiva porque peca

principalmente pela situação já dada de um vencedor, a

reconstrução torna-se necessariamente complexa e até mesmo

difícil. Os atores desta conjuntura política colocaram-se a

posteriori como sabedores das estratégias usadas para atingir os

objetivos desejados, quando se sabe que isto é reconstrução pos

facto.

O padrão de competição eleitoral passou a ser comandado

não mais por atores concretos decidindo as possibilidades das

suas decisões se efetivarem, mas por algo chamado

genericamente de comunicação de campanha eleitoral, sem levar

em consideração as condições concretas sobre as quais as

decisões dos atores são tomadas, suas expectativas e mesmo

experiências como eleitor. Na análise centrada nas imagens de

campanha não há eleitor racional com capacidade para decidir

aquilo que lhe parece melhor representar seus interesses, e o

eleitor passa a ser uma figura facilmente capturada em seu

desejo e manipulada pelos criadores de belas imagens. Desta

forma, não admira pensarem que uma eleição é algo fácil de se

ganhar.

A reconstrução racional dos acontecimentos políticos de

1986 no Ceará leva muitos autores a remeter á data de 1978 na

reconstrução do CIC como o marco decisivo de algo a ter

efetivação quase uma década depois. Os atores são enquadrados

numa lógica racional de busca de objetivos precisos ao longo

de tantos anos que até parecem destinados a realizar seus

196

desejos. Quem conhece a política na sua estrutura menor de

decisão e contrafatos sabe que esta versão dos acontecimentos

é no mínimo fantasiosa ou mítica.

A análise retrospectiva dos atores políticos leva

necessariamente à mitificação do lugar que ocuparam no cenário

político e no desdobramento da situação seguinte. Isto não

teria nenhum problema caso os analistas propusessem demonstrar

o aspecto puramente mítico da narrativa do lugar e da missão

política que se auto-impuseram. Embora não se trate de

averiguar a veracidade da visão mítica de que se servem os

atores, a análise das imagens para eles projetadas sobre si

acaba comprometendo completamente a explicação dos eventos

históricos. Nesse sentido, a explicação fornecida pelos atores

para seus atos está muito distante do momento em que tiveram

de tomar as decisões geradoras de outros eventos. Impedidos de

fazer isto, ficamos apenas com a visão mítica e narrativa dos

próprios atores participantes dos acontecimentos e com a

análise política, que deveria fornecer explicação para os

fatos, mas se insere na lógica da mitificação das figuras

envolvidas. Parte da propaganda dos novos atores, o analista

deixa de tentar explicar os eventos porque se compromete

imediatamente com uma construção racional destes eventos.

3.3 Fim de uma Era – O Governo das Mudanças no Ceará

197

Segundo afirma Carvalho (1998) até a década de 1980 a

política no Ceará se caracteriza pela presença do chefe

político como principal agente da política tradicional. Este

chefe reúne características para o comando de um grupo de

indivíduos a ele ligado que atua na época da eleição em total

confiança e solidariedade às suas definições. Há uma

hierarquia de controle dos votos de determinada área,

município ou distrito sob o controle de um chefe político

local, o qual, por sua vez, mantém laços de filiação grupal

com um chefe político superior a ele que, por sua vez, mantém

com outros chefes políticos do mesmo nível laços de

solidariedade e confiança em torno de um único grande chefe

político que define e controla a política estadual. Os chefes

políticos municipais controlam suas áreas municipais formadas

por um ou mais município, enquanto o chefe político do grupo

político controla a distribuição e o contato com todos os

outros chefes políticos municipais para a definição de

candidatos e chapas eleitorais. Já os colégios eleitorais são

rigorosamente definidos de acordo com o controle existente por

parte de cada chefe político local.

A política tradicional de chefes políticos controlando

redutos eleitorais com votos certos rui depois da eleição de

1982. Até esta eleição a regra dominante era a da absoluta

política tradicional com acordo dos chefes políticos coronéis

que fazem o “Acordo de Brasília”, selando a aliança e divisão

patrimonialista do Estado entre os três líderes políticos.

Afinal, o que fez com que ao longo de quatro anos

pudesse a política tradicional sofrer uma derrota tão grande?

198

Na análise de Carvalho (1998), simplesmente a transformação

das eleições em competitivas e mediáticas passou a fragilizar

a base de sustentação da política tradicional. Os acordos e a

fidelidade eleitoral não podiam mais se sustentar em eleições

sucessivas e, desse modo, possibilitaram o surgimento de um

candidato que poria fim à era da política dos coronéis e da

política tradicional girando em torno de esquemas de grupos

políticos controlados por chefes e chefetes políticos.

O padrão mediático da política solapou as bases

tradicionais da política até então mantida com eleições pouco

competitivas.

No caso da campanha de 1986 a conjunção de todos os astros,no cenário nacional e local, mostrava-se favorável àcandidatura de Tasso Jereissati.No cenário nacional o tema das mudanças foi intensamentevivido nas grandes mobilizações de rua e de modo especial nosonho de estabilidade econômico, trazida pelo Plano Cruzado(CARVALHO, 1998, p.187).

Segundo a interpretação corrente sobre o movimento

eleitoral na década de 1980, os candidatos que representassem

mudança seriam eleitos. Assim, Maria Luiza foi eleita porque

representava o papel de mudança, enquanto Tasso o foi em 1986

porque simbolizava exatamente a esperança e a mudança

desejadas pelo povo. A disputa com os coronéis apenas

expressava melhor a luta do atraso contra o moderno, do velho

contra o novo. A novidade era a entrada do padrão mediático de

campanha eleitoral. Enquanto os coronéis apelavam para a

fidelidade política local dos chefes políticos, a campanha

moderna usa as mensagens vinculadas pelos meios de comunicação

199

para penetrar nos corações das pessoas e fazê-las romper com

os antigos laços de servidão ao político dominante.

Em todas as interpretações existentes, os anos 1980

foram de grandes mudanças e quem se apresentasse no cenário

político com este tipo de característica teria sido eleito,

pois a conjuntura era favorável à emergência de novas forças

políticas. O slogan da campanha de Tasso em 1986 era o

seguinte: “Mudou o Brasil, mude o Ceará”. Era um apelo e um

chamado direto a cada eleitor que decidisse pela sintonia

entre as mudanças ocorridas no plano nacional e a situação de

miséria reinante no Ceará. Esse slogan extraía o máximo de

vantagens da situação positiva pela qual passava o País com a

implementação do Plano Cruzado e sua euforia popular. Para se

ter uma idéia desta euforia, basta lembrar que o Presidente

Sarney obteve em janeiro de 1986 no Rio de Janeiro aprovação

popular de 22% e em março, com o lançamento do Plano Cruzado,

esta aprovação chega a 71%. O impacto da nova situação

política e econômica criada com o novo plano econômico na

campanha política deste ano não é negado por nenhum analista.

No entanto, essa situação favorável nacionalmente às forças do

PMDB poderia não ser totalmente aproveitada politicamente em

cada Estado. No caso do Ceará, os atores políticos em condição

de aproveitar a onda de mudanças constituíam-se de um grupo de

jovens empresários com militância na crítica ao governo

autoritário.

Outra arma antiga, mas ajustada às características domercado político estadual a que se recorreu foi o apoio dogovernador Gonzaga Mota: a possibilidade de atender asolicitação de pleitos municipais favorecia o processo dedesbaratamento das “bases políticas” que integravam o

200

“patrimônio políticos” dos três coronéis firmados ao longode carreiras políticas que no caso dos Távoras remontava àdécada de 30 (CARVALHO, 1998, p.192-193).

A inovação política produzida no Ceará depois da

redemocratização foi a introdução de um novo padrão de

política centrada não mais na forma tradicional, mas no uso

intensivo da campanha mediática. Tratava-se de uma nova

maneira de fazer política usando códigos de contato direto com

a população eleitora, furando as estruturas tradicionais dos

chefes políticos. A força atribuída ao uso de marketing

político como fator decisivo para a vitória de Tasso em 1986

parece um exagero. Mas a vitória eleitoral teve um elemento

inusitado porque derrotou uma estrutura tradicional de líderes

políticos com esquemas políticos bem enraizados na tradição

política.

A onda de mudanças, de desejo de alcançá-las, expresso

pelas vitórias do PMDB em outros Estados, faz com que se

relativize a vitória tassista. Apesar do uso dos meios de

comunicação, e de estratégias de marketing político adotadas,

isto não seria suficiente para coibir a vontade de votar no

mesmo candidato. A eleição para o executivo tem suas regras

específicas, apresenta mais surpresas do que as eleições

proporcionais.

Ressaltar o aspecto da inovação mediática da campanha

de 1986 parece importante, mas, é preciso lembrar, na mesma

eleição, o governo executivo não fez maioria na Assembléia

Legislativa, que permaneceu majoritariamente conservadora e

dominada pelas “forças do atraso”.

201

Carvalho (1998) não propõe uma explicação para as

mudanças ocorridas nas esferas políticas na sociedade cearense

na década de 1980, mas aponta para uma transformação na

maneira como se fará política após o retorno à normalidade

democrática. Depois da transição política e do período de

redemocratização, a política passa a ser feita com outros

códigos de relacionamento entre o eleitor e seu representante

político. A idéia é que o padrão de política tradicional

centrado na idéia de reduto eleitoral, Colégio Eleitoral e

chefe político que controla uma base eleitoral definida teria

desaparecido em decorrência da introdução de um novo padrão de

fazer política. A política teria agora aspectos puramente

imagéticos. Ganharia uma disputa eleitoral no campo da

política quem fosse capaz de convencer o eleitorado de ser o

candidato o produto que atende aos seus interesses e

sentimentos. O marketing político passa a ser valorizado como

algo extremamente importante, pois por meio dele se faria

reputação e destruição de candidatos. A era da imagem da

política seria inaugurada no Ceará já em 1985 na campanha

vitoriosa da prefeita Maria Luiza. Em seguida, o mesmo

entendimento da nova maneira de fazer política passa a ser

adotado para a mudança do padrão da política tradicional.

Embora, na conclusão da sua análise, Carvalho (1998)

alegue que o estudo das campanhas majoritárias de 1985 e 1986

não representa um estudo de explicação causal, isto é, não

pretende afirmar que a vitória de ambos os candidatos se deveu

ao uso de estratégias de marketing político, não se trata

disto, mas de estabelecer que surge neste momento um novo

202

modo, um novo padrão de realização de campanhas políticas

majoritárias que não podem mais dispensar a imagem como

elemento fundamental.

A campanha de 1986 ofereceu a oportunidade de demarcardiferenças entre um novo padrão de campanha e a arte dapolítica tradicional na qual os mestres eram os chefespolíticos espacialmente distribuídos em territórios onderedes de “lealdades” políticas podiam ser acionadas de modoespecial nas quadras eleitorais. Os chefes políticosestaduais encabeçavam os principais grupos políticosexercendo complexas funções de articuladores de acordos ouarranjos que minimizassem os conflitos internos egarantissem novos aliados que ampliassem suas forças.A imposição do padrão publicitário midiática certamenteafetou o fazer político tradicional em sua exigência deoutros saberes, habilidades e atributos que não faziam partedo anterior exercício de chefes políticos (CARVALHO, 1998,p. 253).

A tese de Carvalho sobre a ruptura política no Ceará

contém uma ambigüidade: ela pretende não estar preocupada com

a explicação para o rompimento do padrão tradicional na

política do Ceará e sim querer fazer um estudo analítico e

descritivo do surgimento de um novo padrão político de

campanhas eleitorais realizadas depois da redemocratização do

país. Entretanto, em muitos momentos, a autora tenciona

demonstrar que o moderno grupo de empresários venceu a

estrutura política tradicional centrada na figura do chefe

político porque naquele momento se instalava definitivamente

um novo padrão de política não mais baseada no contato direto

e no atendimento eleitoral de cada chefe político, mas na

reprodução e manutenção de uma imagem do candidato. Já não se

tratava de uma política clientelista e assistencialista, mas

de forjar uma imagem permanente de alguém que está se

preocupando com o povo e que quer o bem do povo. A mediação do

203

poder político não mais passava pela figura do chefe político

controlando votos em determinado município, e sim nos

dispositivos mediáticos operados permanentemente como uma

fábrica de produzir boas notícias.

Tanto ela acredita estar dando uma explicação causal

para a vitória de Tasso em 1986 que afirma em determinado

instante saber que outros fatores agiram para poder a política

da imagem penetrar no coração do eleitor sertanejo.

Em 1986 a dizimação dos chefes políticos tradicionais noCeará operou-se em uma batalha de imagem na qual os seusopositores detinham perfeito domínio do terreno e das armas.O que não quer dizer que outros fatores e condições nãotenham operado para tornar possível tal resultado entre elesdestaco a desorganização da economia rural centrada nacultura do algodão e nas culturas de subsistência que teciavínculos entre dependência econômica e política da massarural e parceiros e pequenos proprietários aos donos deterra e de usina de beneficiamento do algodão(CARVALHO,1998, p.255-256).

Na opinião de Carvalho (1998), em 1986 se cria uma nova

era na forma como se conduz a política no Ceará. Surge a Era da

Política Publicitária Midiática. Essa nova realidade na forma como se

conduz a política terá repercussão imediata nas disputas entre

as forças eleitorais. O padrão de política de imagem não mais

depende do uso dos mesmos esquemas tradicionais de chefes

políticos, controle de território e fidelidade política por

parte dos liderados e eleitores. Ao longo da dominação da era

Tasso, as redes de solidariedade tradicional foram destruídas.

É interessante a constatação de Rejane Carvalho de que

a política se transverte de política de imagem, mas isto pode

ter sido a especificidade da época. O uso inédito de um

instrumento até então não utilizado de maneira ostensiva em

204

campanha permite a determinado candidato se beneficiar deste

instrumento. No entanto, o uso do mesmo instrumento num embate

seguinte não terá mais o mesmo efeito porque os atores já se

preparam para o uso das mesmas armas. Aquilo que foi novidade

num embate anterior torna-se algo comum e de uso compartilhado

pelos competidores. Assim como na vida econômica, na vida

política a disputa e a competição exigem a inovação de novos

instrumentos capazes de surpreender seu adversário.

A análise da conquista do poder por um grupo não deve

obscurecer a sua luta posterior para a manutenção desta

posição conquistada. Isto porque a vitória eleitoral pode

ocorrer por uma conjugação de fatores favoráveis à vitória

momentânea, entretanto, mais importante mesmo são as condições

de reprodução do poder conquistado. Neste aspecto, a vitória

da forças modernas em 1986 foi não somente um abrir momentâneo

da guarda das forças tradicionais; significou também a

capacidade de se manter no poder. As armas para a manutenção

do poder não são as mesmas da conquista do poder. Para a

conservação pode-se até se servir de antigas práticas,

contanto que tenham resultados. Não houve tanta mudança no

mecanismo de chefes políticos municipais nem de colégios

eleitorais controlados por políticos importantes, tanto que

muitos deputados foram eleitos sem saberem sequer onde ficava

seu distrito eleitoral.

Há divergências sobre o modo como se analisa a ascensão

política do empresariado ao poder político do Estado do Ceará.

Uns o interpretam como se fora uma revolução burguesa com a

ascensão do grupo industrial ao controle do Estado, enquanto

205

outros, deixando de lado a caracterização do que representa a

nova força política, detalham as mudanças na estrutura

econômica do Estado que possibilitaram a ascensão deste grupo

moderno. Entre os defensores de que se trata de um grupo de

elite com projeto de controle político, alguns sustentam

existir no Ceará ao longo da década de 1970 a formação de um

segmento de industriais menos dependentes do Estado, os quais

são os responsáveis pelas transformações recentes. As forças

tradicionais até então controladoras do Estado ficam

debilitadas com a decadência da sua base econômica de apoio, a

economia do algodão. A decadência desta cultura, em parte

decorrente da seca de 1979-1983, será decisiva para entender

as mudanças recentes da configuração política das forças

emergentes.

Muitas análises são centradas nas condições de

emergência do grupo empresarial ao poder, destacando as

estratégias de aliança e modo de ação na campanha eleitoral.

Isto certamente é relevante, mas é preciso mencionar os meios

posteriores para a conservação do poder pelo novo grupo.

Somente por causa da manutenção do poder se teve a impressão

de se tratar de um projeto político de um grupo com intenção

clara de controlar e manter o poder.

Circunstâncias pontuais de vitória política não podem

ser elevadas à norma geral de disputa. Observemos os

acontecimentos pós-vitória da Maria Luiza à prefeitura de

Fortaleza. Ela não conseguiu assegurar a eleição do seu

sucessor. Não havia nenhum projeto político com capacidade

para sustentar a ação administrativa. Obra do acaso, abertura

206

dentro de uma conjuntura particular permitiu a ascensão de um

grupo ao controle da máquina administrativa municipal, mas

como não tinham nenhum projeto foram rapidamente suplantados

pelos acontecimentos e pela incapacidade de administrar bem a

cidade.

Ao refletir sobre o surgimento do novo ciclo político,

Lemenhe (1995) ressalta elementos de novidade política com

Tasso, mas identifica igualmente elementos da antiga tradição

oligárquica. A percepção destes traços ocorre no uso dos

mesmos mecanismos de manutenção do controle político e de

práticas políticas patrimonialistas. Mesmo considerando que

uma elite burguesa industrial passa a controlar e dirigir o

poder público, a sua marca de distinção se aplica ao fato de

serem forças urbanas e industriais, enquanto seus opositores

representavam as forças agrárias e o tradicionalismo na

política. Embora a nova elite dirigente exija outros códigos

de conduta política, pelo menos publicamente, na realidade

efetiva da condução do poder, renova maneiras corriqueiras de

fazer política.

O novo ciclo do poder iniciado com Tasso Jereissati não

é tão novo assim para Lemenhe (1995), pois renova práticas

antigas da política tradicional como meio de se manter no

poder. Depois da vitória de 1986, tratou imediatamente de

consolidar seu poder pelo uso de mecanismos clássicos de

manutenção do poder. Neste aspecto, não houve muita inovação

dos novos donos do poder.

Conforme apontado por estes autores, meados da década

de 1980 constituem o momento de nascimento de um novo ciclo na

207

vida política cearense. Este momento significou, do ponto de

vista político da sociedade, a vitória de uma política moderna

sobre outra tradicional, das forças urbanas e industriais

sobre as forças rurais e agrárias. Os empresários passaram a

ser as figuras dominantes neste novo cenário político como

elementos investidos de uma racionalidade e uma determinação

de combate à injustiça e à fome, generalizada por todo o

sertão.

Segundo Lemenhe (1995), a tese da ruptura do padrão

político anterior é menor do que supõem seus próprios atores

políticos e seus intérpretes intelectuais, pois tanto na

conquista quanto na manutenção do poder político instrumentos

clientelistas foram utilizados de forma despudorada.

Por meio da análise das condições socioeconômicas e

políticas é possível entender e explicar quando e por que a

elite política tradicional deixou de ser intermediária dos

interesses do segmento industrial. Se isto é verdade,

pressupõe-se que as novas forças industriais detêm alguma

especificidade de interesse que precisa ser revelada.

As condições econômicas da diferenciação da elite

cearense ocorrem principalmente em decorrência da expansão

industrial consolidada na década de 1970. Esta expansão

industrial provoca a criação de diferenciação de interesses

dentro do segmento industrial. Diferenciação não apenas por

ramos de atividade, mas também pelo montante de capital

empregado. Isto possibilita o surgimento de um setor

industrial autônomo no Estado. Ao mesmo tempo, o setor agrário

amarga franca decadência econômica por causa da seca e da

208

crise do algodão. As contradições começam a surgir em função

da conjuntura de crise econômica nacional que já não permite o

uso de mecanismos clássicos de intermediação política

individualizado dos recursos públicos.

O cenário é de crise econômica e os atores industriais

vão lentamente tomando consciência de que as antigas

lideranças tradicionais já não são capazes de intermediar os

interesses do setor industrial.

Na década de 1980, a entidade da sociedade civil mais

importante foi o Centro Industrial do Ceará, organizando os

interesses dos jovens empresários cearenses com fóruns de

discussão permanentes sobre as soluções dos problemas

cearenses. O grupo de empresários reunidos no CIC inicia um

projeto de conquista do poder do Estado contra a dominação dos

setores tradicionais.

Motivada pela organização nacional do empresariado, a

elite industrial do Ceará mobiliza-se inicialmente com o

intuito de exigir maior participação de investimentos públicos

na região. Gradativamente passam a tomar consciência da

incapacidade das antigas elites de intermediar seus

interesses. Desta constatação nasce o projeto de ascensão ao

poder político do Estado. Ao contrário do que muitos pretendem

apresentando o empresariado do CIC como a vanguarda do

empresariado moderno, tratava-se de defensores dos interesses

regionalistas.

O grupo de empresários do CIC passa a atuar na esfera

política partidária por causa da crise e da falta de

209

crescimento econômico. Por não ter mais como obter recursos na

esfera federal em decorrência da crise fiscal, resta ao

empresariado voltar-se para o controle do poder estadual como

meio de implementar políticas capazes de criar um novo modelo

de desenvolvimento estadual.

Lemenhe (1995) defende a tese da ruptura relativa da nova

liderança política empresarial em relação à elite tradicional

de base agrária. Para ela, esta ruptura do antigo padrão de

dominação política tradicional ruiu por causa da falta de

estrutura para sua reprodução, principalmente porque sua maior

sustentação se dava na atividade produtiva do algodão. A crise

da cultura do algodão foi o prenúncio da crise de sustentação

da lealdade tradicional da política clientelista.

A crise da cotonicultura vem desde meados da década de

1970 e acentua-se na década seguinte, com anos de seca. O

colapso da economia algodoeira é apontado como um dos

principais fatores explicativos para a impossibilidade de

reprodução do poder tradicional ou pelo menos para sua crise

de reprodução. Como era um setor econômico que empregava muita

gente e mantinha uma cadeia de extensa dependência, sua crise

significou igualmente a liberação dos indivíduos para outros

setores de atividade e sua autonomia política. As outras duas

grandes mudanças ocorridas na sociedade agrária foram a maior

penetração de relações capitalistas no campo e a modificação

dos laços trabalhistas com a introdução da expansão da

pecuária e da agroindústria de produção de frutas. Como afirma

Lemenhe (1995, p.261), “esses diferentes movimentos convergem

para a desarticulação dos sistemas de controle dos principais

210

agentes da dominação tradicional sobre as massas rurais: os

proprietários de terra e os beneficiadores de algodão”.

A oligarquia de base agrária perde seu poder político

no momento em que suas bases materiais de reprodução deste

poder entram em crise. A crise da economia algodoeira é

fundamental para explicar de que maneira a alteração no padrão

de dominação política do Estado passa pelas mudanças

decorrentes na ordem social e econômica. Depois das mudanças

na base material da sociedade, o poder político será

contestado pelos novos representantes da nova ordem, os quais

seriam representados pelos empresários que encarnam a força

urbano-industrial.

Se a conjuntura política nacional favoreceu a eleição degovernadores do PMDB na maioria dos Estados, a derrota dacoligação PDS-PFL no meio rural do Ceará, deve sercompreendida também e, sobretudo, à luz da conjunturapolítica específica do Estado, do aprofundamento da criseeconômica agrícola e do capital político conquistado pelasforças emergentes (LEMENHE, 1995, p. 220-221).

Conforme inúmeras análises sobre as mudanças políticas

verificadas em meados da década de 1980 no Ceará, uma mudança

geral havia ocorrido na estrutura socioeconômica ao longo de

mais de uma década e somente neste momento forças políticas

podiam ser os instrumentos destas mudanças. A ordem econômica

havia se transformado, mas o Estado ainda continuava sob o

controle e a direção de lideranças tradicionais de feição

clientelista, exigindo lealdade política em troca da “política

de favor”. A crise econômica aliada à seca e o declínio da

economia do algodão puseram em risco a perpetuação da

dominação tradicional.

211

A grande transformação na ordem política estadual no

Ceará acontece com a eleição de Tasso Jereissati. Mas a

percepção de que se tratava do surgimento de um novo ciclo

político e não meramente da emergência de uma nova elite

política ao comando do Estado vai se fixando com o passar do

tempo e com as medidas adotadas ao longo de todo o governo. O

modo como foi tratado o ajuste fiscal do Estado, ordenamento

das contas do setor público, eliminação do empreguismo e

combate ao clientelismo foram marcas do primeiro governo das

mudanças. Tudo indicava não ser meramente uma alteração de

elites políticas; algo mais profundo havia ocorrido com as

forças políticas do Ceará.

Paradoxalmente, o retorno à normalidade política,

caracterizado pela competitividade eleitoral, proporcionou a

ascensão ao poder de um grupo político empresarial que tinha

no combate ao político profissional sua maior marca,

caracterizando-se por ser um grupo autoritário e afastado da

tradição dos políticos profissionais. Rompia-se com práticas

políticas enraizadas na tradição patrimonialista de divisão e

acesso aos cargos públicos em troca de apoio político. Este

não era senão uma forma de conservação do poder e não incluía

nenhum projeto de desenvolvimento econômico e social para o

Estado.

A idéia amplamente difundida de exaltação política do

grupo oriundo do CIC dava conta de uma determinação e

voluntarismo na ordem política nunca vistos. Pretendia-se na

reconstrução da trajetória dos membros deste grupo uma

afinidade e decisão de um projeto racional jamais constatado

212

em outros momentos da sociedade. É muito mais provável que o

conjunto de decisões tidas como parte do projeto do “governo

das mudanças” tenha sido tomado em decorrência do

enfrentamento de situações concretas para administrar um

Estado carente, pobre e cercado por uma elite política ávida

por acesso aos recursos públicos.

A simples determinação de ser coerente com o apregoado

em campanha eleitoral já bastasse para mudar a atitude em

relação à administração pública. O projeto vai se gestando no

enfrentamento com as forças derrotadas e com o desejo de

implementar as propostas vencedoras nas urnas. Não quero dizer

que esta nova elite política não soubesse o que estava fazendo

ou que não tivesse projeto algum. Talvez apenas a decisão de

sanear as contas e moralizar os gastos públicos já fosse

suficiente para deslanchar a eficiência do Estado em outros

setores. Ao chegar ao poder, a percepção das dificuldades

aumenta e a ênfase sectária em implementar as propostas de

campanha amplia os atritos e conflitos com os antigos

detentores do poder.

Como já nos referimos, em meados da década de 1980 em

Fortaleza, a transição política para a democracia encontrou

sua primeira grande expressão na eleição direta para prefeito

da cidade, com a vitória de uma candidata até então sem estofo

político para sustentar as dificuldades administrativas. Os

tempos, portanto, exigiam novas lideranças com capacidade para

interpretar os anseios por mudança e melhoria de vida. Há uma

crise política generalizada expressa pela recusa em aceitar as

antigas lideranças políticas herdeiras do regime militar,

213

indicando com isso uma mudança significativa no padrão

eleitoral e político. Parecia que a política tradicional e

clientelista, “política do favor”, teria chegado ao seu

limite.

Os abalos na dominação tradicional começam com a

eleição da Maria Luiza em Fortaleza e continuam posteriormente

com a mais retumbante vitória de um neófito na política. Tasso

Jereissati vence as forças políticas tradicionais do Estado,

abrindo uma fratura na sociedade, uma nova elite que ascende

ao poder com um projeto de transformação das condições de vida

da população mais pobre. Mas, uma parte das promessas é

prática discursiva, tentativa de justificar ações que

legitimem suas próprias ações.

De qualquer modo, a despeito de divergências sobre a

natureza da transformação política ocorrida com a eleição de

Tasso em 1986, se houve ruptura e construção de um padrão

moderno na política ou continuidade com as práticas anteriores

de patrimonialismo, independente da interpretação para os

novos atores políticos, eles expressam uma novidade no cenário

nacional e estadual. A ascensão deste grupo empresarial foi

uma ruptura significativa no poder político. Com a

consolidação do novo ciclo de poder, essa mudança no padrão da

política vai se desfazendo lentamente. Acomodando-se às forças

existentes e à incorporação de antigos adversários, as

práticas anteriormente condenáveis passam a ser toleradas. Os

tempos já não são de ruptura, mas de consolidação do poder e

de formação de um grupo com capacidade para agir e transformar

a realidade social do Ceará.

214

A reconstrução da trajetória de poder desse grupo

induziu à criação de uma mítica em torno deles, como se fossem

portadores da novidade política, e como se apenas eles

tivessem a habilidade de desmontar as estruturas tradicionais

e clientelistas do poder. Reforçar a idéia de ação racional

intencional e orientada para a construção de uma nova ordem

política estadual é ainda um efeito discursivo.

Conforme asseguram as explicações mais importantes para

as transformações ocorridas na década de 1980, no Ceará há uma

lenta mudança na ordem econômica e social que vai se expressar

em determinado momento na ordem política. A política, no

entanto, foi a última instância a ser transformada. Enquanto a

indústria já havia se consolidado, formando uma elite

industrial diferenciada do setor mais tradicional, a atividade

econômica sofre, ao longo dos primeiros anos da década de 1980

profundo abalo em virtude da crise da seca que afeta e

determina o colapso da economia algodoeira.

O ano de 1986 foi o marco fundamental para o fim do

período de “transição democrática” encerrado com a eleição

direta para prefeitos das capitais em 1985. A eleição de uma

nova constituinte seria o marco para a construção da nova

ordem social. Essa disputa pela direção na nova ordem foi

feita sob a pressão de mobilizações populares, arranjos

políticos das elites e um plano de estabilidade econômica

destinado a debelar o “dragão da inflação”. Neste ano, o Plano

Cruzado foi a grande novidade, e sob seu impacto positivo de

euforia cívica generalizada ocorrem as eleições para o governo

dos Estados e a dos constituintes.

215

No Ceará a ordem social do período de transição

democrática já havia dado sinais de que não se sustentaria por

muito tempo sob o comando dos mesmos atores políticos. O acordo

dos coronéis indicava o fim da convivência, no mesmo bloco de

poder, entre o grupo tradicional da política cearense. A

eleição de Gonzaga Mota é peça decisiva para se entender o

processo seguinte de derrota da elite tradicional que

controlava e dirigia o Estado.

Ainda no período de “transição democrática”, as forças

políticas tradicionais do Estado do Ceará se dividiram quanto

ao apoio ao candidato da Aliança Democrática. No Ceará, além

do governador Gonzaga Mota, o ex-governador Adauto Bezerra

estruturou a legenda do PFL, ficando ao lado das forças

vitoriosas no Colégio Eleitoral com a eleição de Tancredo

Neves contra Paulo Maluf. A derrota nacional dos dois coronéis

foi importante porque indicou desde já uma mudança nas forças

políticas que tiveram repercussão na sucessão de 1986. O elo

mais significativo neste momento foi a manutenção do controle

político do governo estadual por parte de Gonzaga Mota, que

tentou formar seu próprio grupo político, mas não encontrou

espaço suficiente nem força para tanto. Então, acomodou-se

dentro do PMDB, de onde comandará sua sucessão.

Ao analisar a vitória das forças políticas que haviam

conquistado o governo do Estado em 1986, na eleição de 1988,

Parente (1992) afirma que nesta eleição estava em jogo a

conquista da hegemonia por parte do grupo dos empresários

contra o grupo tradicional e o grupo progressista da esquerda.

A vitória foi possível primeiro porque houve uma enorme

216

divisão de forças entre os grupos, tanto dos tradicionais

quanto da esquerda, beneficiando o grupo que controlava o

Estado.

A conquista do governo estadual pelo grupo moderno do

empresariado local teve seu primeiro teste na eleição

municipal de 1988 na qual foi posta à prova sua força

eleitoral. Nesta eleição, mesmo com a vitória nos grandes

centros urbanos como Fortaleza e Juazeiro do Norte, perdeu

para as forças que havia derrotado em 1986. O PFL e o PDS

foram os vencedores do pleito municipal no Estado em 1988,

portanto, indicando que a eleição de 1986 não tinha ocorrido

em razão de transformações tão significativas na estrutura

social e econômica para que fossem liberadas de vez das formas

tradicionais de voto clientelista.

Como afirma Parente (Idem, ibdem, p.26),

Estes casos são aventados apenas para percebermos que não háuma quebra na estrutura tradicional de poder com a chegadado moderno. A estratégia, então, não era trabalhar nospequenos e médios municípios, mas naqueles maiores comsignificativo poder de irradiação.

Ainda de acordo com este autor (Idem, ibdem, p.27-28), Com esses dados apresentados sobre as eleições no interiordo Estado, concluímos, provisoriamente, que, apesar dacrise, o modelo clientelista e a compra de voto permanecemcom significativo vigor. Não se pode, no momento, secontrapor a essa evidência.

Esta constatação é importante porque reforça a idéia de

que com o fim da transição democrática se criou um novo padrão de

fazer política eleitoral, o denominado padrão mediático da

política (CARVALHO, 1998). É preciso ressaltar, porém, que

este jeito novo de fazer política tem seus limites e funciona

melhor nas disputas para o executivo estadual e federal.

217

Quando a luta política ocorre em cenário municipal onde se

usam menos estes novos instrumentos de comunicação, as forças

e os meios utilizados são os tradicionais clientelistas e

compra de votos. O discurso da modernidade política funciona

quando se refere ao governo estadual, fincando-se numa

poderosa máquina de marketing político permanente, mas incapaz

de agir na política municipal.

Assim, como esta modernidade apregoada não passa de

truques de marketing político, dependendo do nível da disputa

política, usa-se ou não deste instrumento de comunicação para

convencer o eleitorado das novas propostas. Nas pequenas

cidades, no entanto, isto não ocorre e o que conta mesmo no

final é a estrutura tradicional do voto clientelista e da

compra de votos, pois estas cidades de porte médio não dispõem

de televisão local e as rádios são controladas por forças

políticas locais. Desse modo, não há como usar este

instrumento na disputa eleitoral.

É preciso, portanto, relativizar a tese do novo padrão

midiático da política. A introdução deste novo padrão político

em contraposição ao tradicional sem uso de uma economia de

imagem tem razão apenas quando se refere ao poder estadual,

mas de modo algum quando se trata de candidatos do

legislativo. A política midiática deve se restringir a duas

situações: onde se disputa o poder executivo e nos grandes

centros urbanos.

Nas eleições municipais somente as capitais têm uma

política inteiramente orientada pelo padrão midiático. No

Ceará, o capitalismo se desenvolve e atinge seu apogeu na

218

década de 1980 quando o grupo de empresários organizados no

CIC assume posição estratégica importante dentro da política

estadual, derrotando os grupos tradicionais que controlavam o

poder público. Os novos atores políticos empresários surgem em

decorrência do desenvolvimento de relações capitalistas.

Nas palavras de Parente (1990, p.31),

A burguesia, nessa nova conjuntura, que sempre foi fraca elevada a reboque, consegue arregimentar forças e desenvolverum projeto burguês dentro desse processo de construção deuma hegemonia burguesa. Essas transformações incomodam osgrupos tradicionais, mas também forçam a esquerda a reverposições.

Ao valiar as ações dos “governos das mudanças”,

Gondim (1998, p.422), afirma:

Ainda que os “governos das mudanças” tenham feito esforçosconsideráveis para melhorar as condições de vida dapopulação no que diz respeito à educação básica e a açõespreventivas de saúde, os resultados do modelo dedesenvolvimento adotado não diferem significativamente, emtermos de justiça social, dos apresentados por governosneopatrimonialistas. Ressalte-se, porém, que as mudanças nagestão do Estado permitiram a utilização mais eficiente dosrecursos públicos.

Todos os estudos da década de 1980 sobre as mudanças

políticas e econômicas ocorridas neste período são unânimes no

reconhecimento de mudanças na ordem política. As divergências

começam quanto à identificação dos principais atores e sobre a

natureza desta mudança, pois alguns acreditam que as mudanças

socioeconômicas já vinham se processando bem antes da ascensão

política dos empresários ao poder. Estas na verdade são frutos

destas transformações estruturais ao longo de duas décadas de

industrialização promovidas pelo poder público federal. O

choque que ocorrerá em meados da década de 1980 entre os dois

grupos da elite, representados de um lado pelo que se

219

convencionou chamar de coronéis e de outro pelos modernos

empresários, significava o enfrentamento de duas forças com

bases sociais distintas. As estruturas de base agrária

finalmente estavam ruindo solapadas por anos de crise e

divergências internas entre seus dirigentes políticos.

Essas análises levam sempre em consideração a

existência de uma forma de dominação tradicional predominante

no sertão, sustentada por laços de lealdade política e

cooptação de lideranças políticas locais em troca de

benefícios econômicos. O enraizamento desta tradição havia

sido testado já no início do período de transição democrática

e havia dado provas de solidez. Entretanto, o golpe eleitoral

comandado pelo grupo dos novos empresários foi suficiente para

banir esta elite tradicional do poder e iniciar um novo ciclo

na vida política cearense. Mesmo os autores que consideram

haver pouca ruptura no padrão da política cearense após a

eleição de Tasso Jereissati são unânimes em reconhecer que o

golpe eleitoral não poderia ter provocado a destruição da

elite tradicional se mudanças profundas na base de sustentação

desta elite não viessem acontecendo desde os fins da década de

1970. O golpe eleitoral não era, portanto, um raio num dia

ensolarado, mas resultado da desestruturação lentamente

atuando nas mudanças econômicas cearenses.

O cientista político Jawdat Abu-El-Haj sintetiza esteentendimento da seguinte forma:Não foi apenas num golpe eleitoral que ruiu uma estrutura depoder em 1987. A ascensão do empresariado do CIC (CentroIndustrial do Ceará) ao Governo estadual foi proporcionada peladesestruturação de condições sociais que sustentaram o regime doscoronéis (ABU-EL-HAJ, 2002, p. 85).

220

A acusação mais freqüente feita ao governo das mudanças

era a de não dialogar com seus opositores. Havia até mesmo uma

forma estigmatizada de tratar os opositores ao projeto mudancista.

Estes eram vistos como representantes das forças do atraso,

defensores do corporativismo. Em dois momentos esta imagem

ficou cristalizada: na saída do Secretário de Educação Paulo

Elpídio e na do Procurador da Justiça, Vasco Wayne. Ambos

acusaram o governo de intransigência em relação às suas

oposições ao projeto definido pelo grupo do CIC.

Os elementos da ruptura com um antigo padrão político

patrimonialista e clientelista podem ser observados na maneira

como o novo líder político se relaciona com o estamento

político profissional. Existia uma pregação constante contra

os políticos segundo a qual estes eram os responsáveis pelo

estado de miséria do povo do Ceará.

Na maioria das vezes, a tentativa de se explicar certos

eventos sociais incorre no erro de inventar conceitos

genéricos como se estes tivessem a propriedade de explicar

acontecimentos, quando na verdade acabam obscurecendo o que

deveriam esclarecer. É uma perversa tendência de uma dialética

do obscurecimento confundida com esclarecimento. Eventos

sociais são produzidos por indivíduos em posições

determinadas, que agem conforme objetivos a serem alcançados,

trilhando obstáculos e servindo-se de situações concretas,

muitas vezes não criadas por eles, mas impostas como parte da

luta por outros atores sociais. São estes os elementos que

221

deveriam ser ressaltados na explicação de eventos sociais e

não a mitificação conceitual.

Ruptura ou continuidade diferenciada, o governo das

mudanças terá impacto decisivo sobre uma série de eventos

importantes na política cearense. Do ponto de vista das forças

políticas abrigadas em Fortaleza, foram cruciais.

3.4 Mudanças na Política Municipal

A legislatura iniciada em 1983 foi a mais conturbada de

todas aquelas assistidas pela CMF, pois nela não somente houve

muitas mudanças de comando do executivo, como também o retorno

à eleição direta para o chefe do executivo. O longo período

sem eleição foi apontado por alguns vereadores como algo

prejudicial ao vereador, pois a natureza do apoio político

destes atores centrada na troca constante de favores exige uma

eleição periódica como meio de aferir o grau de fidelidade

conquistado. Mas o acirramento político, a constituição de

grupos com atuação marcadamente ideológica contrasta com uma

maioria clientelista de vereadores.

Dessa forma surgem alguns eventos políticos

significativos que marcaram a trajetória de desgaste político

da CMF na época da gestão Maria Luiza Fontenelle.

No ano de 1987, fevereiro, ocorreu a eleição para

presidência da Mesa Diretora da CMF. Wellington Soares vence

Nildes Alencar, ambos do PMDB, por 21 a 12 votos. Ainda em

fevereiro de 1987, os vereadores aprovam um pedido de

intervenção na PMF em decorrência da não liberação dos

222

recursos correspondentes ao duodécimo do legislativo

municipal, em atraso há dois meses. A prefeitura enfrenta

grave crise financeira.

Em setembro de 1987, o Conselho de Contas dos

Municípios rejeita as contas da Mesa Diretora da CMF

referentes ao exercício de 1984. No parecer pede a devolução

aos cofres públicos da importância de 1 bilhão, 029 milhões,

611 mil e 162 cruzados. Em dezembro do mesmo ano, a CMF e a

PMF não chegam a um acordo sobre o orçamento do poder

legislativo para o ano seguinte. A proposta da prefeitura foi

então desaprovada pelos vereadores.

No ano de 1988, a Câmara Municipal começa a sofrer

forte desgaste político perante a opinião pública. Denúncias

de empreguismo e mal uso do dinheiro público passam a ser

difundidas insistentemente pelos veículos de comunicação de

massa. Por diversos momentos, em confronto aberto com o

executivo, em virtude da crise financeira municipal e do não

repasse das verbas devidas ao legislativo, há mesmo um pedido

de intervenção do executivo estadual no executivo municipal. A

proposta não foi adiante por interferência direta do

governador que não desejava ver a prefeita Maria Luiza saindo

da prefeitura como vítima dos “corruptos vereadores”. Nesta

situação, o governador pediu à Procuradoria Geral do Estado um

parecer sobre um decreto de intervenção na Mesa Diretora da

Câmara Municipal. Com o parecer favorável, o decreto foi

enviado à Assembléia Legislativa e aprovado. Conforme o

argumento apresentado pelo decreto, a Câmara Municipal

encontrava-se sob auditagem do Conselho de Contas dos

223

Municípios em decorrência de denúncias de corrupção praticada

por seus dirigentes. Foi também aberto um inquérito policial

para apurar práticas lesivas ao patrimônio público. A

gravidade da situação é ampliada pelo clamor da opinião

pública, exigindo providências urgentes.

Com este ato, a Câmara Municipal de Fortaleza sofreu

seu maior abalo político. Apesar de a CMF já ter uma imagem

associada à corrupção, empreguismo e ineficiência, o ato de

intervenção cristaliza esta imagem negativa dos vereadores.

Num ano eleitoral, não havia propaganda mais negativa para os

vereadores que pretendiam renovar seus mandatos. A intervenção

caiu como uma bomba na cabeça de todos eles, não afetando

apenas os membros da Mesa Diretora, mas todos os vereadores

componentes da Câmara.

Gradativamente, a trajetória da natureza do voto na

década de 1980 passa de um voto clientelista e preso ao padrão

tradicional de dependência econômica para um voto mais

disperso e menos controlado. Parente (1995, p.13), em análise

do panorama eleitoral desta década afirma: “Existe [no setor

urbano] um eleitorado mais independente, embora não tenha

deixado de existir o voto clientelista”.

Houve mudanças na natureza do voto. Mesmo assim,

conforme se constata, o alistamento de novos eleitores

continua sendo apontado por todos os vereadores como o meio

mais importante para assegurar uma votação cativa. No passado,

o alistamento era não somente difícil, mas seus custos

inteiramente arcados por conta do vereador. Parte dos custos

era dividida com outros políticos, deputado estadual e

224

federal, com quem se mantinha relações políticas. Um vereador

mantém sempre com outros políticos deputado estadual ou

federal laços de apoio mútuo usados para dividir os custos

destes serviços prestados ao eleitorado. Alguns vereadores

fazem parte mesmo de agrupamentos políticos, mais ou menos

definidos, de apoio constante a determinado deputado federal.

No ano eleitoral intensificava-se o alistamento. A

vereadora Ivone Melo descreve o modo como fazia o alistamento:

Levava à noite umas dez pessoas que ficavam na fila dotribunal eleitoral. Levava jantar e café para eles. Pelamanhã cedo, levava mais dez pessoas, que iriam retirar otítulo, e os dez que pernoitaram na fila eram deslocadospara o fim da fila, esperando, uma outra chegada deeleitores que estavam vindo do seu comitê.

Desta forma, segundo assegura, alistava aproximadamente

250 novos eleitores por dia. O alistamento eleitoral

constituía um gasto de campanha elevado. Por isto mesmo era em

parte bancado pelos deputados.

O vereador de comunidade de bairro presta diariamente

atendimento social à sua comunidade, isto é, atende todos os

dias pessoas que o procuram solicitando algum tipo de ajuda.

Auxiliando individualmente cada eleitor, em sua necessidade, o

vereador espera ser retribuído com o voto de gratidão. O

trabalho de auxílio e ajuda no pagamento da conta de luz,

água, telefone, compra de remédio, retirada de certidão de

nascimento e outros documentos é rotineiro na casa do vereador

comunitário de bairro. Na época da eleição, este movimento de

eleitores pedintes se intensifica, principalmente em torno de

trocas materiais. Esta é uma das razões para o desaparecimento

225

do vereador de comunidade de bairro. Já não basta o

atendimento cotidiano, esperando na época da eleição o voto de

gratidão. Isto porque na época da eleição a troca deve se

intensificar, já não se pode contar unicamente com os favores

prestados fora do tempo de eleição.

Entretanto, nem todos os vereadores de comunidade de

bairro atuavam unicamente com o auxílio e assistência direta

ao eleitorado. Ivone Melo, a exemplo de outros vereadores que

tiveram base eleitoral em bairro, mantinha um trabalho de

assistência individualizada, mas, ao mesmo tempo, trabalhava

pela conquista de benefícios públicos para o bairro. Os

chafarizes, as escolas, os postos de saúde, praças,

iluminação, calçamento, drenagem de córregos, aterramento de

lagos, etc. Todos os benefícios caracterizados como obra

pública eram realizados por intermédio do vereador.

Muitos vereadores falam da necessidade de se conjugar

estas duas formas de ação política: atendimento ao eleitorado

individualmente e injunções perante o poder público para a

realização de obras no bairro. O padrão de vereadores que

buscavam obras coletivas para a comunidade e ao mesmo tempo

atendiam individualmente às carências do eleitorado era algo

extremamente comum.

Como se pode observar, ao longo deste levantamento de

eventos importantes e interpretações, a imagem desta década é

de grandes mudanças sociais e políticas. As mudanças

econômicas ocorridas ao longo da modernização conservadora

estavam finalmente tendo repercussão na esfera política. A

introdução de um novo padrão político capaz de orientar as

226

forças nos embates eleitorais indicava que uma nova época

política estava mesmo surgindo e se consolidando. A eleição

seguinte, com a vitória de Ciro Gomes ao governo do Estado,

representou a consolidação do modelo do governo das mudanças e

o impedimento do retorno das antigas forças políticas

derrotadas em 1986. No Ceará, a retórica da mudança durou

muitos anos, com alguns efeitos concretos e outros apenas

aparentes.

O novo ciclo da política cearense caracterizou-se pelo

controle político em nível estadual do grupo político social

democrata, enquanto na prefeitura de Fortaleza se formou um

novo grupo em torno da figura do prefeito Juraci Magalhães.35 O

governo estadual começa a perceber que o “projeto das

mudanças” vai pouco a pouco permitindo que antigos adversários

sejam incorporados a um padrão moderno da política, enfim, que

o projeto mudancista vai se esgotando e tendo menos empenho.

Isto tudo a despeito do elemento discursivo continuar apelando

para a mesma retórica do atraso e do retrocesso político. Já

na administração municipal, depois do saneamento das finanças

promovido pela administração Maria Luiza e, posteriormente,

pela reforma tributária na qual as administrações municipais

tiveram suas atribuições de políticas públicas e aumento de

participação nas verbas do governo federal, ampliou-se com o

35 A administração do prefeito Juraci Magalhães mereceria um estudoaprofundado. Ela se caracteriza por forte expansão da malha urbana comimpacto significativo na vida da cidade. Do ponto de vista político,articula uma prática de cooptação de segmentos da classe média, masprincipalmente o controle de vasta rede de lideranças comunitárias sob sualiderança. Entretanto, em algumas regiões da cidade sofre concorrênciadireta de membros da administração estadual que usam dos mesmosinstrumentos de cooptação dessas lideranças comunitárias. capítulo 5,discuto mais detalhadamente este aspecto.

227

passar dos anos a capacidade de investimento da prefeitura. O

aspecto mais visível da administração municipal em Fortaleza

não é tanto sua dimensão política, pois praticamente nenhuma

inovação institucional foi implementada, mas sim a mudança no

perfil urbano da cidade.

No vendaval político da década de 1980, as mudanças na

forma de condução da administração pública foram produzindo

efeitos perceptíveis na qualidade da representação política.

Aqui interessa-nos determinar em que medida as mudanças

políticas ocorridas ao longo da década de 1980 produziram

efeito no padrão de representação política da Câmara Municipal

de Fortaleza.

Segundo vimos, ao longo dos anos o sistema político

municipal foi praticamente dominado por uma oligarquia de

lideranças políticas com forte vinculação ao território de

bairros e uma rede de assistência ao eleitorado como forma de

assegurar a fidelidade eleitoral. O impacto na representação

política municipal não ocorreu em função das mudanças

políticas da década de 1980, mas principalmente em decorrência

da primeira derrota verificada em 1988 e sucessivamente ao

longo dos anos 1990, quando vai emergindo um padrão de

representação política municipal no legislativo não mais

identificado com lugares e bairros. A profunda mudança na

representação expressa-se pela ampla presença de vereadores

médicos, vereadores evangélicos, vereadores ideológicos e por

fim esta nova representação que denomino de vereador

institucional. O vereador tradicional com padrão centrado na

política de bairro está em franca decadência. Em Fortaleza, o

228

voto transformou-se, deixou de ser centrado em laços de

lealdade, e passou a basear-se na troca simplesmente.

Entretanto, devido às carências sociais de parte da população

de bairros periféricos, ainda encontramos vereadores atuando

na base de antigas práticas da lealdade política, da

camaradagem, esperando a gratidão, mas mesmo eles já não

confiam tanto neste eleitorado cativo e partem em busca de um

eleitorado disperso, carente e, portanto, com forte incentivo

à venda do voto.

Na era da mídia e da publicidade, a política se faz

dentro de outro padrão de competição no qual a imagem é o

elemento mais rico, mais valorizado e importante. Todavia,

como já afirmei, deve se relativisar o impacto deste padrão

midiático na política eleitoral do legislativo. Isto porque há

claramente uma distinção entre o voto que se atribui ao cargo

executivo e o voto para o vereador. A imagem do vereador como

um político que deseja apenas explorar sua função em benefício

próprio ainda existe. Diante disto, verifica-se freqüente

negociação do voto. Esta negociação não é somente em termos

financeiros; ainda se atribui muito voto ao prestígio da

liderança comunitária.

A relevância do padrão midiático publicitário aplicado

à política possui valor relativo, pois se aplica mais à

situação de competição majoritária em circunscrição eleitoral

estadual. Quando a competição se passa em pequenos municípios

e, principalmente, em toda disputa para o legislativo, os

instrumentos midiáticos são de pouca relevância.

229

A origem da força que modifica a sociedade rural tem

conseqüências sobre a natureza das mudanças implementadas.

Nesta sociedade, as transformações são introduzidas de fora,

vindas diretamente do poder estadual, que implementa políticas

públicas alterando a correlação de forças entre as elites

locais. Como as mudanças produzidas que afetam a condição de

vida da população, a exemplo da melhoria na qualidade de vida,

saúde, educação, essa mudança não gera efeitos econômicos.

Assim, cria-se uma contradição entre as melhorias sociais e a

estagnação econômica do município.

A sociedade modificou-se não por seus esforços

internos, ou dinâmica das forças locais, mas pela

interferência no jogo político local de atores externos que

alteram a base do poder, desestabilizando os antigos

dominantes. Todavia, o desequilíbrio criado com a intervenção

de forças externas pode provocar mais problemas do que

solucionar os já existentes.

A ruptura política com a eleição de Tasso é mais

significativa do que a eleição da Maria Luiza. Naquele

momento, a eleição inesperada do PT ao governo municipal

expressou uma repulsa ao modelo tradicional de fazer política,

mas não teve conseqüências imediatas na ordem política

municipal porque havia um fator inibidor, qual seja, a

prefeitura governa ainda com uma Câmara Municipal eleita em

1982, sem renovação, o que dificultou o entendimento entre o

legislativo e o executivo. Depois da campanha das Diretas, as

novas forças políticas emergentes não tinham ainda expressão

230

no legislativo municipal. Essa contradição vai se acentuando

com o passar da administração.

Se a eleição da Maria Luiza não provoca mudanças

imediatas, não expressa uma mudança, o mesmo não ocorre com a

eleição de Tasso. Esta já expressa o clima de mudanças da

época. Por isto suas transformações foram mais intensas,

decisivas e irreversíveis, marcando um novo ciclo na política

estadual. A transformação provocada pela prefeitura popular

origina-se na natureza da própria administração e no sucessivo

confronto com o legislativo municipal, motivo de desgaste

político para ambos.

O ano de 1988 foi enfim aquele da ruptura política no

município de Fortaleza, representado não somente pela total

derrota do candidato da prefeita, mas também dos vereadores

que lhe faziam oposição na Câmara Municipal. A eleição

municipal de 1988 significou a ruptura do padrão existente até

então na política local. Entrava Fortaleza finalmente em

sintonia com as mudanças apregoadas na esfera estadual. Assim

como em 1986, 1988 não teve retrocesso político, pois o tempo

foi responsável pela criação de novos atores políticos no

legislativo capazes de agir com mais eficiência neste novo

ambiente institucional.

A crise freqüente do executivo com o legislativo na

“administração popular” ocorreu precisamente por causa da

idéia já veiculada na época da campanha eleitoral de se

governar com Conselhos Populares, mesmo que até o término da

administração não se tenha sequer definido o que seriam

exatamente estes conselhos, sua natureza e atribuições. Havia

231

uma discussão envolvendo o formato e a origem do Conselho. O

grupo político ligado à prefeita não concordava com a idéia de

a própria administração pública criar os conselhos. Estes

deveriam nascer de modo espontâneo da luta do povo e da sua

organização e somente depois passariam a manter relações com a

prefeitura. Tratava-se de não confundir a organização do povo

como parte do Estado, por isto a idéia de autonomia política,

mesmo dos partidos políticos.

Os principais alvos desta proposta foram os vereadores,

pois eram vistos como instituição da política tradicional e

clientelista, responsável pela miséria da população pobre.

3.5 Ruptura com o Padrão Clientelista

A eleição municipal de 1988 em Fortaleza expressou o

confronto das forças políticas deslocadas do comando da

administração estadual e dos novos detentores do poder que

viam nesta eleição a confirmação do seu projeto político para

a mudança do Estado do Ceará. Neste momento, as forças

políticas à esquerda perdiam-se num confronto interno entre os

que apoiavam e os que criticavam o “projeto popular

socialista” da administração de Fortaleza.

Em âmbito estadual, as forças derrotadas em 1986, mesmo

agora divididas em três partidos – PFL, PDS e PSD, ainda

conseguem obter uma vitória eleitoral significativa na

conquista de prefeituras de cidades importantes. Mas, em

Fortaleza, a disputa eleitoral teve como marca decisiva uma

administração municipal marcada pelo signo da incompetência e

ineficiência política. A eleição contou com nove candidatos,

232

dispersando as forças ideológicas tanto de esquerda quanto de

direita. Os partidos de direita lançaram três candidatos:

Gidel Dantas, PFL; General Torres de Mello, PDS; e Marcos

Cals, PSD, e ainda obtiveram 23,56% dos votos válidos. Também

os partidos de esquerda lançaram três candidatos: Edson Silva,

PDT; Mário Mamede, PT; e Dalton Rosado, PH, obtendo juntos

31,84% dos votos. O candidato das novas elites políticas

oriundas da eleição estadual de 1986 lança-se Ciro Gomes, que

obteve 25,79% dos votos válidos. É certo que o resultado desta

eleição para as políticas de centro decorreu da divisão da

esquerda, que não chegou a um acordo sobre o lançamento de um

candidato único. A divisão destas forças que representavam o

espectro político mais progressista favoreceu a vitória do

PMDB em Fortaleza.

Desde a redemocratização em 1946, a eleição para a

Câmara Municipal foi a mais competitiva, contando com 1.069

candidatos, para 33 vagas, ou seja, uma média de 32,39

candidatos por vaga. Diante do grande número de candidatos, os

suplentes pressionaram o Tribunal Eleitoral a ampliar o número

de vagas na Câmara Municipal. Foram atendidos e passou para 41

o número de cadeiras. Com a ampliação de oito novas cadeiras

praticamente todos os partidos foram contemplados com um

vereador a mais em sua bancada.

A principal novidade desta nova conjuntura política de

meados dos anos 1980 foi o surgimento de lideranças

comunitárias. Nessa década, a transformação na maneira de se

fazer campanha política vai aparecer de modo mais cristalino

com a emergência de um novo tipo de representante político no

233

legislativo. As condições de sustentação desse novo

representante estão baseadas na existência de lideranças

comunitárias que se alimentam e são incentivadas em suas ações

pela atividade eleitoral freqüente desde o processo de

redemocratização.

A ruptura política ocorrida na eleição de 1988 foi um

desarranjo temporário das forças políticas que vinham tendo

condições estáveis de se reproduzirem sem grandes

dificuldades, provocadas pela incorporação de novos atores

políticos ou - quem sabe - trata-se de algo mais profundo,

criando e inaugurando um novo padrão na representação política

local. A questão posta deste modo exige respostas exclusivas,

pois caso a ruptura tenha sido apenas parcial, provocada por

elementos conjunturais, não se pode pretender qualquer

constituição de um novo padrão. Quanto à segunda resposta,

indica uma inflexão política profunda e enraizada, com

mudanças que vão provocando transformações ao longo de um

período.

Todavia, não foi exatamente a eleição da prefeita Maria

Luiza, isoladamente, que desencadeou as mudanças verificadas

no meados dos anos 1980. O principal responsável foi o

posicionamento administrativo em face do sistema tradicional

de troca de favores existentes entre o executivo e o

legislativo. Foi esse sistema que se rompeu e que levou a

tantos atritos entre os dois poderes. O evento eleitoral de

1985 foi decisivo como fator em seu desdobramento na

formulação do poder e na forma como agiu por três anos. Não se

pode também esquecer que esse período é marcado pela

234

expectativa em relação ao Plano Cruzado e posteriormente pela

frustração ante o estelionato eleitoral decorrente. Ao mesmo

tempo, a situação financeira da prefeitura não sofreu grandes

mudanças positivas, pois a crise fiscal assolou praticamente a

administração popular enquanto durou seu mandato.

3.6 Renovação Radical - A Degola de 1988

A expressão apropriada para o que ocorreu com a eleição

de 1988 é precisamente essa: “degola popular”, pois a

administração popular teve impacto direto sobre a trajetória

dos vereadores pelo confronto estabelecido ao longo de toda a

gestão da prefeita Maria Luiza.

Os vereadores da época da Maria Luiza são unânimes no

julgamento sobre as razões da derrota sofrida por muitos deles

naquelas eleições. Primeiro, há a natureza da administração

popular que não permitia mais o acesso até então mantido pelos

vereadores na liberação de obras e pequenos favores ao

eleitorado via secretários municipais. Havia uma situação de

elevada carestia financeira a dificultar ainda mais os

alistamentos e a ajuda ao eleitorado ficava mais inacessível.

Se a ausência de acesso ao poder municipal impediu o

uso privado do poder público, houve também uma campanha

sistemática de desgaste político feita pelos meios de

comunicação. Por fim a intervenção na Mesa Diretora expôs toda

a situação de desgaste ao qual já vinha se submetendo ao longo

dos anos.

235

Na nossa opinião, a eleição direta da prefeita Maria

Luiza não foi o fator decisivo para a constituição do novo

quadro político municipal, não somente pela natureza da

eleição, uma vitória inesperada que desnorteava as forças

políticas locais, que, ao contrário, acentuou muito a disputa

política no interior das correntes ideológicas de esquerda. A

prefeita contou com poucos aliados na Câmara Municipal porque

a maioria dos vereadores era remanescente da legislatura

anterior, principalmente do PMDB, partido derrotado nas

eleições para prefeito. Além disso, a natureza do voto de

muitos vereadores que mantinham vinculação com votação de

bairros dependia, para seu apoio, de acessos à máquina

administrativa do município. Mas a crise financeira então

vivenciada pela prefeitura impedia qualquer política de

cooptação e de aceitação de política clientelista.

Conseqüentemente, os vereadores com esse perfil se viam

marginalizados em seus pedidos para suas comunidades. Enquanto

o confronto político das forças populares que sustentavam a

administração popular se situava em parte do movimento popular

organizado internamente, na Câmara Municipal havia pouca base

de apoio. Por isto o confronto freqüente entre os dois

poderes. Temporariamente, os vereadores que detinham base em

bairros viram sua reprodução ameaçada pela ausência de acesso

ao setor público e à troca de apoio político por obras e

benefícios individualizados ao eleitorado.

A explicação corrente para esse abalo na renovação da

representação política no legislativo de Fortaleza foi

atribuída à desmoralização sofrida pela Câmara ao longo da

236

gestão Maria Luiza, culminando com a intervenção na Mesa

Diretora, acusada de corrupção. A série de acusações aos

vereadores ao longo da gestão petista é um fato importante.

Entretanto, há um novo quadro partidário surgido desde a

última eleição municipal em 1982, qual seja, o aumento de

partidos e de candidatos teve um efeito institucional maior do

que qualquer outro fator para a derrota de grande número dos

vereadores que pleitearam a reeleição. Muitos destes

candidatos foram motivados pelo próprio desgaste dos

vereadores. Conforme já assinalamos, houve expressivo aumento

de candidatos ao cargo de vereador, muitos motivados pelo

desgaste político dos atuais. A competição eleitoral levou à

renovação da Câmara Municipal de forma jamais vista em outras

eleições. Há ainda o fato de que nesta eleição os candidatos

enfrentavam um quadro institucional novo de multipartidarismo

onde a posição dentro de uma coligação é fundamental para

assegurar o quociente partidário. É preciso lembrar que Rosa

da Fonseca obteve na época 3.093 votos, representando a décima

votação entre os vereadores. Mesmo com esta votação, não foi

eleita porque seu partido não obteve quociente eleitoral.

237

4. MUDANÇA POLÍTICA E PADRÕES DE REPRESENTAÇÃO

4.1 Elementos do Novo Cenário Político

Depois de sofrer marcante mudança no final dos anos

1980, a representação política de Fortaleza caminhou

progressivamente para um novo padrão. Pela análise do modo

como se faz campanha em duas eleições (1996 e 2000), pretendo

mostrar a ocorrência de alteração nos instrumentos que

permitem a eleição de um candidato. Para isto, o mais decisivo

não é a presença de recursos midiáticos, nem a superexposição

do político, mas a decadência progressiva do vereador de

comunidade de bairros, o qual deixa espaço para a emergência

de uma nova categoria de vereadores.

A redução do número e a pouca relevância dos atuais

vereadores de comunidade de bairros se expressam pela sua

presença em cargos-chave na CMF. Fortaleza deixa de centrar

sua representação em figuras de solidariedade de bairro e

passa a se constituir em vínculos de interesses gerais. O

apoio em organizações sociais de diversa natureza começa a ser

o elemento mais fundamental numa eleição. Ao se manter

vinculações institucionais com um número considerável de

pessoas, entre as quais o candidato se faça reconhecer como

liderança, ele encontra as condições para a eleição.

Em época de eleição, a classe política municipal busca

a identificação com segmentos organizados e não mais com

segmentos de bairros. Essa maior expressão de representantes

com vinculações organizadas de interesses ou valores sociais

238

exprime obviamente a maior presença do Estado e o maior

controle dos recursos públicos por parte da sociedade. Já não

há mais como distribuir impunemente benefícios em troca de

apoio político na CM.

Conforme expus em capítulos anteriores, a cidade de

Fortaleza sofreu uma ruptura política institucional no final

dos anos 1980. Essa ruptura política foi explicada pela

ocorrência da mudança de um padrão institucional de competição

política, representada pelo aumento do número de partidos e

aliada aos eventos políticos da época, indicativos da presença

de forte sentimento coletivo de expectativa por mudanças

políticas.

Os anos 1980 foram de mudanças generalizadas na ordem

política brasileira, culminando com a promulgação da nova

Constituição de 1988. Em Fortaleza, no mesmo ano, em parte

devido a fatores internos à dinâmica da sociedade local,

ocorreu nossa ruptura. A administração da prefeita Maria Luiza

é responsável por esse evento político.

Designa-se, neste trabalho, ruptura política de Fortaleza o

evento político verificado na eleição de 1988 com a derrota de

muitas lideranças políticas tradicionais. Mudança brusca na

representação do legislativo municipal da cidade, a eleição de

1988 foi um marco na história política de Fortaleza e se

constituiu no primeiro confronto eleitoral baseado nas regras

anteriormente existentes, antes do golpe militar de 1964.

Retornou o padrão de eleição direta para o executivo

juntamente com o legislativo para mandatos de quatro anos.

239

Nesta eleição aconteceu o primeiro confronto entre um

candidato apoiado pelas novas forças políticas estaduais,

representante de uma nova elite dirigente, e uma dissidência

destas mesmas forças. O confronto político municipal de 1988

em Fortaleza foi entre as forças políticas renovadas e não

mais entre as forças decadentes e a nova elite. Vence a

estrutura e o poderio em formação do governo estadual. Dada a

diferença de votos entre os dois candidatos, foi uma vitória

com gosto de derrota.

Quanto à eleição do legislativo, a primeira grande

diferença em relação às eleições anteriores foi o número de

candidatos a uma das 41 cadeiras na Câmara Municipal. O

perfil político da Câmara Municipal era francamente

conservador, mesmo contando entre eles com parlamentares

progressistas: Chico Lopes, Nildes Alencar, Samuel Braga e

Juarez Leitão. Todavia essa pequena presença de voto

ideológico não era suficiente para modificar seu

comportamento. Em certo sentido, os membros mais à esquerda já

vinham assegurando desde os anos 1970 três lugares na Câmara,

oriundos principalmente de bases educacionais como professores

e ligações com o setor educacional.

Essa legislatura foi abalada ao longo de seis anos de

desgaste político com acusações de corrupção e malversação de

dinheiro público. Como havíamos retomado plenamente a

democracia, os meios de comunicação cobrem de maneira mais

sistemática os poderes locais. Os escândalos ocorridos na

Câmara são amplamente divulgados. Uma jornalista da cidade

lança pelo rádio o slogan “Para vereador, não vote em

240

vereador”. Havia um profundo acúmulo de desgaste

institucional, revelando inadequação na conduta do legislativo

municipal com as novas condições políticas e debate na

sociedade.

As mudanças sociais e políticas ocorridas desde a

campanha das “Diretas Já”, passando pela eleição da prefeita

Maria Luiza e em seguida pela eleição de Tasso Jereissati em

1986, e os desgastes políticos da Câmara Municipal, aliados à

modificação do quadro institucional da competição política

eleitoral com a ampliação do número de partidos e de

candidatos, serão os responsáveis pela derrota de importantes

representantes políticos que detinham assento no legislativo

há anos, de modo ininterrupto: Abel Pinto, Ademar Arruda,

Aluísio Fontenelle, Ernesto Gurgel, Eurico Matias, Gutenberg

Braun, Haroldo Jorge Vieira, Hermano Martins, Herval Sampaio,

Iria Ferrer, Ivone Melo, José Araújo de Castro, José Lima

Monteiro, José Sidou, Luís Ângelo e Sérgio Costa.

Entretanto, nem todos os vereadores com base eleitoral

em bairro com algum tipo de estrutura de assistência social ao

seu eleitorado sofrem derrota. Maria José de Oliveira, Mário

Nunes, Maurílio Ascênsio e Narcílio Andrade mantêm-se no

poder. A mudança mais significativa ocorrerá com os que

escapam da guilhotina popular de 1988. Inicia-se, então, a

renovação de geração destes representantes políticos. Muitos

deles já, nesta eleição, indicaram seus filhos para concorrer

em seu lugar.

Após a ruptura política local com a ascensão de novas

lideranças políticas ao legislativo municipal, constata-se uma

241

mudança no comportamento político dos vereadores. Conforme se

percebe, já não mais seria possível atuar diretamente no

parlamento como fora feito até aquele momento, contando como

troca do apoio político ao executivo a realização de pequenas

obras em sua área de atuação política nos bairros. A

manutenção da condição de liderança política no bairro

dependia essencialmente da capacidade do vereador carrear

obras coletivas e assistência imediata aos seus eleitores.

Para muitos vereadores, a combinação destes dois elementos foi

decisiva. Segundo revelou a eleição de 1988, a competição

política nos anos seguintes seria sempre muito acirrada e

exigiria novas estratégias diante do novo cenário político. A

escolha do partido pelo qual disputara a eleição tornou-se um

elemento inquestionável. Constata-se também que a manutenção

de uma mesma quantidade de votos somente pode assegurar sua

permanência no legislativo aliada a um bom posicionamento

dentro de um partido menor ou médio. Gradativamente, a noção

de coeficiente partidário vai se tornando evidente como uma

regra a ser levada em consideração, responsável pela vitória

ou derrota do candidato. Estes são alguns novos elementos

existentes depois de 1988 e que passaram a orientar a decisão

política dentro do novo cenário.

No novo cenário eleitoral pós 1988 aparecem três

elementos decisivos para assegurar uma eleição: manutenção de

uma base eleitoral sólida em algum segmento social definido do

qual possa se apresentar como liderança política inconteste;

dispersão de votos via mediação de lideranças comunitárias

atuantes diretamente com a população mais carente na periferia

242

da cidade e uma estratégia partidária eficiente capaz de

assegurar, com os votos disponíveis, uma boa colocação na

lista partidária. Sem a conjugação destes três elementos não

será mais possível garantir uma eleição para vereador em

Fortaleza.

Diante da nova configuração das disputas eleitorais

proporcionais nas quais estes três elementos assumem papel

decisivo, ocorreu uma mudança no perfil político da

representação legislativa. Não somente os candidatos tendem a

se identificar cada vez mais com segmentos específicos,

apresentando-se como porta-voz de suas lutas e interesses

particulares, como há uma dispersão de votos em pequenos

nichos eleitorais não controlados mais diretamente pelo

próprio candidato. O apelo imprescindível às lideranças

comunitárias em campanhas eleitorais é outra novidade da

década de 1990.

As lideranças comunitárias serão objeto de discussão no

próximo capítulo. Elas são partes de um recente movimento de

transformação social em que o poder público solicita o apoio e

a participação direta de estruturas da sociedade civil para a

realização de algumas políticas públicas.

A mudança mais significativa no padrão da representação

política ocorrida na década de 1990 em decorrência direta dos

fatos da década de 1980 foi a eminente decadência das

lideranças políticas com base social em bairros. O

deslocamento da representação sai de uma base em grupos

sociais centrados nos laços de confiança e gratidão direta com

o líder político e passa a ser feita em segmentos sociais

243

particularistas com forte apelo ao pertencimento profissional ou de

outra natureza. O território, lugar de moradia, já não é o

principal indicador para definir o voto da população

periférica. Os segmentos sociais com perfil particularista são

os mais aptos a conquistar uma vaga no legislativo municipal,

pois são capazes de mobilizar internamente recursos dos laços

de contatos de maneira ampla. As identidades religiosas,

afetivas em relação a um time de futebol, ao pertencimento a

uma corporação profissional, comunidade de valores mobilizam e

asseguram apoio eleitoral maior do que o lugar de moradia.

Somente para exemplificar minha afirmação, Eurivá Matias,

vereador desde 1988, quando assume a candidatura deixada por

seu pai, ex-vereador Eurico Matias, inicialmente constitui sua

votação de maneira semelhante à de seu pai. Vinculava-a à área

dos bairros Parque Araxá e Rodolfo Teófilo, mas já na eleição

de 1996, constata-se uma mudança no seu perfil de votação. A

dispersão dos seus votos indicava 56,70% de votos concentrados

em dez bairros contíguos. Ele passou a se apoiar no segmento

social ligado aos pequenos times de futebol da periferia.

Se há redução da base de sustentação política para os

vereadores com apoio em bases comunitárias de bairro, cresce

ao mesmo tempo o número de vereadores com perfil

institucional. O vereador institucional – egresso da

burocracia pública ou privada – é um ex-dirigente de alguma

instituição pública ou privada importante que por conta da

superexposição é incentivado a se lançar na vida pública

eleitoral. Conta para sua primeira eleição com o trabalho

realizado na instituição que o projetou na cena pública

244

municipal ou estadual. É esse tipo de vereador que mais se

serve do sistema de lideranças comunitárias existente na

cidade. Ao mesmo tempo em que não mantém com nenhum segmento

social organizado vínculos orgânicos mais definidos para poder se

apresentar como candidato desse segmento, aparece disputando

uma vaga no legislativo em decorrência do trabalho realizado

em sua antiga função. Esse tipo de candidato pretende se

legitimar pelo que já fez à frente de uma instituição e não

pelo que fará.

O resultado eleitoral de um candidato, não se deve

esquecer, é produto heterogêneo de diferentes inserções em

agrupamentos sociais. É raro um candidato ter uma inserção

exclusiva ou obter sua votação unicamente num segmento social.

Quando isto ocorre, normalmente, se trata de um candidato em

primeira eleição. Depois da eleição, é preciso assegurar

rapidamente a ampliação da sua base inicial. Isto decorre não

somente do descontentamento natural em face de expectativas

não correspondidas, mas também porque alguns meios usados na

primeira eleição já não surtem o mesmo efeito empregado na

condição de vereador.

A dispersão da votação de um candidato indicaria sua

inserção ampliada em vários segmentos sociais e maior tempo de

mandato. Isto é tão verdadeiro que encontramos maior dispersão

eleitoral entre os vereadores com maior número de mandatos

consecutivos e, entre os novatos, maior concentração eleitoral

num único segmento. Isso em geral ocorre, não em virtude da

quantidade de mandatos, mas pela natureza da base eleitoral.

Assim, Paulo Mindello é vereador com três mandatos e pela

245

regra mencionada deveríamos encontrar sua votação mais recente

de maneira dispersa. Quando analisamos sua votação de 1996,

constatamos uma concentração de votos de 54,21%, considerando

dez bairros contíguos. Isto acontece em parte, mas nem tanto

quanto ele mesmo gostaria. Como sua base social de sustentação

eleitoral nunca se modificou e permanece centrada no

agrupamento religioso dos carismáticos, em cada pleito há

sempre enorme risco de não assegurar sua reeleição. O dilema

deste tipo de candidato é ampliar sem perder sua anterior base

eleitoral. Mas a natureza religiosa dessa base política impede

muitas vezes a ampliação para outros setores sob pena de

perder sustentação em sua base inicial. Entre o risco de

fraturar sua base com descontentamento eventual pela ampliação

para outros segmentos, não tem alternativa e permanece

sustentado na mesma base inicial, mesmo correndo sério risco

de não se reeleger.

O vereador elege-se a primeira vez tendo como base de

mobilização e apoio um segmento social bastante definido com o

qual já mantém vínculos de identificação como liderança. A

natureza desta vinculação será determinante para sua eleição,

pela capacidade de agregar interesses em torno de si. Um fato

se passa com quase todos os candidatos assim eleitos. Na

eleição seguinte, sofrem contestação de sua liderança por meio

do lançamento de candidatos que pretendem igualmente a disputa

de liderança do segmento social. Isso leva inevitavelmente o

vereador a procurar dispersar sua base de apoio inicialmente

conquistada e apoiada. Entre uma e outra eleição, é preciso

ampliar a base de sustentação política. A competição política

246

se situa exatamente nesta tensão entre a necessidade de

ampliação da base inicial e o desejo de conservar aquela já

conquistada.

No passado, o padrão de comportamento dos vereadores da

Câmara Municipal era caracterizado pela troca de apoio. Ao dar

apoio político ao executivo, exigia em troca o atendimento de

favores para as áreas de atuação política. O gestor municipal

distribuía parcela significativa de cargos dentro da

administração para seus aliados com vistas a assegurar uma

aliança política e uma base de sustentação política.

Antigamente eram empregos, principalmente os de menor

remuneração, atribuídos aos vereadores que detinham bases

políticas na periferia da cidade. Além dos empregos, havia os

benefícios públicos, como os equipamentos coletivos instalados

no bairro. Ruas pavimentadas e asfaltadas, enfim, qualquer

atribuição imediata de serviço municipal era intermediada

pelos vereadores. A distribuição dos bens públicos era mediada

por políticos os quais agiam na área do bairro de modo que

toda ação pública aparecia como tendo sido intermediada pela

ação e pelo prestígio do vereador. Asfalto, calçamento,

consultas médicas, serviços gerais eram sempre apresentados

como resultado da inferência da ação do vereador. Da sua ação

diligente e determinada dependia a ocorrência ou não de obras

públicas no bairro. A ampliação das atribuições do poder

municipal na execução de políticas públicas tornou a alocação

de bens públicos menos sujeita à vontade arbitrária do

governante.

247

A constatação inicial de estarem os candidatos com base

em comunidades de bairro deixando aos poucos suas bases

iniciais e ampliando sua área de influência política baseia-se

na verificação do apoio eleitoral recebido de uma eleição para

outra. Assim, Luís Arruda, filho do ex-vereador, por trinta

anos ininterruptos, Ademar Arruda, em 1996 tinha 60,71% dos

seus votos obtidos numa base de dez bairros contíguos, sendo

sua maior concentração de voto na área do Centro e Praia de

Iracema. Maria José de Oliveira, com 59,60%, sobre a mesma

base; assim como Narcílio Andrade, com 59,60%; Eurivá Matias,

com 56,70%, e José Carlos Carvalho, com 53,26%. Em todos estes

casos, observa-se a pequena diminuição da base de concentração

dos votos numa única base territorial. Este dado é melhor

entendido se o compararmos com o grau de contração atingido na

mesma eleição de 1998 pelos vereadores campeões de

concentração de votos: Maurílio Assêncio (86,35%) e Agostinho

Moreira (85,67).

A expansão de uma base política ocorre normalmente por

meio de segmentos semelhantes. Isso explica por que é mais

fácil a expansão de uma base política conquistada numa

categoria profissional do que num segmento religioso. A base

política religiosa é identificável com certos valores

exclusivos, não permitindo, pela sua natureza exclusiva, a

ampliação para outros segmentos sociais, principalmente para

os que possam entrar em conflito valorativo com o primeiro. A

base política em segmentos profissionais é a mais expansiva,

pois permite com facilidade a incorporação de outros segmentos

248

sociais, não somente profissionais, mas de consumidores,

cidadania, educação, saúde, moradia, etc.

Enquanto há certos segmentos sociais com potencial de

expansão eleitoral, outros são extremamente restritos. Os

grupos religiosos são exemplos do tipo restritivo à expansão e

incorporação de novos segmentos na mesma representação

política. O segmento social de bairros, que nos interessa

particularmente neste estudo, tem uma natureza restritiva por

razões diferentes do ideológico. A expansão de uma base

política em comunidade de bairro deve se fazer, como ocorre

com outras, orientada pela semelhança da demanda política.

Neste caso, a demanda oriunda das comunidades de bairro é

relativamente onerosa e o vereador não pode expandir sua

atuação usando os mesmos instrumentos da sua primeira base

social. Não somente esta expansão tem um custo muito elevado,

mas há também a possibilidade real de se inserir agora em

outras comunidades sem o custo direto da prestação de serviços

e atendimento eleitoral.

4.2 Quem são os Candidatos a Vereador em Fortaleza: Candidatos

e Estilos de Campanha Legislativa

Antes da apresentação de alguns candidatos à eleição de

2000, destacaremos alguns dados existentes sobre o perfil mais

genérico dos concorrentes. Estes dados foram obtidos junto ao

TRE e constam de um questionário a ser respondido pelos

candidatos como forma de obter o registro da candidatura.

Analisando estes dados podemos concluir o perfil médio do

candidato. O fato de uma eleição ser disputada por 646

249

candidatos não significa que todos tenham o mesmo peso

eleitoral. Isto é importante para podermos distinguir os

candidatos realmente fortes e aqueles que simplesmente acabam

preenchendo a lista partidária.

O Código Eleitoral em vigor define os critérios formais

de participação do cidadão na disputa eleitoral. Para o cargo

de representante político não há concurso público capaz de

medir a competência do candidato. O concurso existente é uma

eleição disputada com outros com vistas à mesma posição. A lei

não define o nível desta competição, apenas regula a

competição, as normas e procedimentos a serem usados para se

atingir o objetivo.

De modo geral, os requisitos legais são de duas ordens:

um limite mínimo para se participar como candidato, que no

caso coincide, para a função de legislador municipal, com a

idade mínima de 18 anos. Qualquer pessoa não incluída na

sociedade como um eleitor está privada deste direito. Estão

excluídos os que não ainda atingiram esta idade mínima.

Além da idade mínima, o postulante deve ser filiado a

um partido conforme um tempo definido em lei. Isto é, nosso

sistema político só permite a representação política via

partidos políticos, mesmo que a sociedade possa se expressar

por vários outros meios. Unicamente o sistema partidário é

legitimado para tratar da ordem pública. Os partidos são

detentores do direito à mediação política entre a sociedade e

o Estado. O tempo mínimo de filiação partidária é uma forma de

evitar o uso do partido para fins de interesse pessoal.

250

Estes são dois critérios legais que um cidadão cumpre

facilmente. Mas quais são as condições concretas que

possibilitam a alguém ser autorizado a se lançar candidato? Ou

seja, o que faz um líder de um segmento da sociedade tomar a

decisão de ocupar um cargo na representação política da

sociedade?

A competência intelectual não parece ser algo

importante, pois afinal não se trata de um concurso para

averiguar as competências técnicas dos candidatos. Mesmo que

alguns ajam e pensem deste modo, a disputa eleitoral não prima

por uma seleção dos candidatos mais competentes em suas

carreiras profissionais. A meritocracia não é utilizada no

universo da disputa por uma função de liderança política.

Na opinião de muitos, esta função é ocupada de acordo

com o poder econômico. Quem tiver dinheiro será capaz de ser o

escolhido como líder político. A demonstração de uma

experiência bem-sucedida na sua vida privada como empresário é

exemplo de ser uma pessoa determinada e capaz de fazer muito

pelos outros. Dependendo do tipo de eleição, este tipo de

candidato apoiado em recursos financeiros leva vantagem. Para

os cargos legislativos, aparentemente ter apenas dinheiro não

elege ninguém. Outras vezes, não compensa o gasto muito

elevado para se ocupar esta função visto que as decisões no

parlamento serão de natureza coletiva. É preferível

influenciar os representantes de fora.

O recurso mais decisivo para a conquista de uma posição

de líder político eleito é mesmo o cultivo de uma rede de

relações e vínculos sociais passiveis de ser atualizados

251

durante o período eleitoral. São estas relações aliadas às

outras e o reconhecimento de uma posição de destaque do

candidato que o credenciam a se tornar um líder político e

pleitear uma vaga como representante político.

Os vínculos sociais múltiplos ou profundos em um único

segmento social permitem que alguém possa se lançar candidato,

mas mesmo assim é preciso a mobilização de outros recursos.

Entre estes recursos, o financeiro não é desprezível e torna-

se tanto mais necessário quanto os forem os círculos de

relacionamento social disponíveis ao candidato. Apoiando-se

nestes círculos de pessoas, formando redes de apoio e

sustentação da candidatura, muitas vezes o dinheiro passa a

ser secundário. Em outros momentos, candidato com muitos

recursos financeiros são incapazes de mobilizar apoios

importantes para sua candidatura. Na eleição de 2000, o

candidato Magno Muniz, ligado ao segmento imobiliário, mesmo

mobilizando uma equipe profissional irrigada com muito

dinheiro, não obteve êxito. O apoio de uma rede social pode

substituir o recurso financeiro de acordo com o perfil

ideológico do candidato. Entretanto, as campanhas para o

legislativo municipal estão exigindo cada vez mais recursos

financeiros. Segundo dados do TRE, o custo da campanha de 2000

para cada vereador girou entre R$ 4 mil e R$ 200,00 mil.

Todo candidato deve dispor no seu ativo político de um

número considerável de pessoas com quem possa contar para

divulgar e trabalhar em defesa da sua candidatura. Esta rede

intermediária de divulgação e propagação da liderança do

candidato é que assegura uma eleição quase sempre bem-

252

sucedida. Das candidaturas que acompanhei mais de perto,

visitando praticamente uma vez por semana seus comitês, a de

Nelson Martins mantinha uma estrutura organizacional quase

profissional, pois era composta de funcionários do seu

gabinete da Câmara e mais outras pessoa contratadas

expressamente para trabalhar na campanha. Luizianne Lins, por

sua vez, fez sua campanha centrada num núcleo de pessoas mais

dispersas, mas contou com a participação direta dos

funcionários do seu gabinete na Câmara, além de jovens e

estudantes que foram se agregando em torno do seu Comitê.

Willian Correia, um vereador típico de bairro, não contava com

nenhum grupo de apoio fixo. Mobilizou-se praticamente, durante

toda a campanha, contando apenas com uma assessora

parlamentar. Ele mesmo fazia todo o resto. Somente para

eventos maiores, como uma concentração na Barra do Ceará,

mobilizou apoiadores do entorno da sua casa. Paulo Mindello

visitou os grupos de orações carismáticos e algumas

comunidades, sempre sozinho. O trabalho gerencial da sua

campanha era feito no seu gabinete da Câmara pelos assessores

parlamentares. Neste aspecto há uma diferença muito acentuada

entre os concorrentes, pois os atuais mandatários

habitualmente se servem da estrutura institucional da Câmara

para sua campanha de reeleição.

Quais são os atributos mais ressaltados pelos

candidatos a vereador em Fortaleza?

Ao analisar o material recolhido de fitas gravadas de

programa eleitoral da eleição de 1996 e em maior número da de

2000, segundo evidenciado, a identificação mais importante é o

253

pertencimento profissional. O pertencimento como membro de uma

categoria profissional é algo extremamente ressaltado pelos

candidatos. A condição de membro de uma comunidade, morador de

um bairro periférico da cidade, faz-se como critério

diferenciador dos demais candidatos. Chamar a atenção para seu

pertencimento religioso não é tão freqüente como poder-se-ia

esperar; os evangélicos são os únicos que fazem este tipo de

apelo baseado em valores religiosos. Não basta ressaltar

somente seu pertencimento a um agrupamento profissional,

principalmente se este for uma categoria de prestígio, mas

também seu potencial numérico. Os candidatos com envolvimento

em alguma luta popular enfatizam este fato como um critério de

legitimação da posição a ser ocupada.

Se o pertencimento profissional parece algo tão forte

na demarcação de diferença dos que podem e dos que não podem

legitimamente pertencer à categoria de liderança política,

supõe-se que os candidatos que não o fazem revelam um não

pertencimento a este universo. Estes são normalmente líderes

comunitários e para se diferenciar ressaltam seu devotamento

ao interesse do povo.

Os candidatos com profissão definida e detentores de

prestígio na sociedade, como médicos e advogados, por exemplo,

não deixam de ressaltar este pertencimento. De algum modo, a

formação profissional parece servir como um filtro para os

candidatos a representantes políticos. Os impossibilitados de

assumir sua condição de pertencer a uma prestigiada comunidade

profissional buscam outras estratégias de identificação.

Entretanto, mesmo os que enfatizam seu pertencimento por

254

formação acadêmica ou profissional a uma profissão não o fazem

no sentido de pedir voto para a comunidade profissional as

quais pertencem. Destacam seu pertencimento profissional

apenas como critério de diferenciação em relação aos demais

candidatos. Outros, quando são menos qualificados

profissionalmente, ao ressaltar seu pertencer a uma dada

profissão, fazem isto como pedindo para serem seus

representantes no legislativo. A referência a uma instituição

onde trabalham é uma forma não de se diferenciar, mas de pedir

apoio aos seus colegas de profissão. Um candidato identificado

como membro da corporação da polícia militar pede voto usando

exatamente o critério de pertencer a esta corporação e querer

representá-la no legislativo.

Somente apresentando-se como membro de uma organização

social, o candidato parece sentir que abre possibilidade para

se legitimar a ocupar a função de liderança política. Muitos

acreditam que pelo simples fato de pertencerem a determinada

profissão ou corpo institucional estão, automaticamente,

autorizados e legitimados como líderes políticos. Outros, não

tendo o apoio de uma organização profissional, uma corporação

à qual possam fazer referência para sua identificação, falam

da sua própria trajetória de luta em defesa dos interesses de

moradores de determinado bairro. Para estes, a luta em defesa

dos interesses destes moradores é aquilo que os autoriza a

participar de uma eleição e conquistar a função de liderança

política. Este tipo de candidato costuma normalmente afirmar

que já são vereadores na prática, isto é, já exercem a função

de auxiliador das pessoas mais humildes de certas comunidades.

255

Atender as pessoas em suas dificuldades parece para estes

candidatos a principal função do vereador. E isto eles já

fazem como líderes de uma associação de bairro ou de uma

agremiação esportiva.

Mas, no processo da campanha, o que aparentemente seria

algo regulado por uma legislação que diz quem pode e quem não

pode ser um candidato e quais os atributos a serem comprovados

para ser candidato, não é tão simples. Neste momento, conforme

vemos, nem todos os candidatos são iguais e nem todos dispõem

dos mesmos recursos de capital político para melhor legitimar

seu nome na disputa. A autorização para participar de uma

eleição é apenas uma formalidade cumprida com o registro da

candidatura no Tribunal Eleitoral, apresentando os documentos

exigidos pela legislação em vigor.

O elemento mais importante desta autorização para

participar com condições de chances de vencer a disputa

eleitoral está no campo do pertencimento a organizações

sociais. Ou seja, mesmo os candidatos com muito dinheiro não

são facilmente eleitos para uma cadeira na Câmara de

Vereadores. O gasto financeiro mais elevado e que traz mais

retorno eleitoral é para cargos do legislativo estadual e

federal. Para o legislativo municipal, o número de lideranças

comunitárias apresentadas como candidatos é muito grande. Isto

impede o uso da sua própria capacidade de mobilização para

outros candidatos, como ocorre com disputas eleitorais

estaduais e federal. Isto significa pulverizar muitas vezes os

votos de determinado bairro ou região da cidade,

impossibilitando a eleição de um único candidato.

256

Para o legislativo municipal, o maior capital eleitoral

de que deve dispor o candidato é seu poder de mobilização de

um número considerável de pessoas em torno do seu nome. Quando

afirmo que o dinheiro não é o principal recurso numa eleição

municipal quero dizer que ele isoladamente não é capaz de

eleger um candidato a vereador. É preciso aliar recursos

financeiros com capacidade de mobilização de pessoas. Quando

se tem dinheiro, pode-se contratar pessoas temporárias, mas

não se pode comprar as lideranças locais porque estas já estão

de certo modo comprometidas, ou com candidatos ou como

candidatos. Há um limite no uso de cabos eleitorais de

lideranças locais nas comunidades. Isto explica por que em

muitos casos mesmo com muito dinheiro não se faz um candidato

a vereador.

Ao aparecer na tela da televisão, o candidato deve se

apresentar para um eleitor que embora ele não veja pode estar

do outro lado. Neste momento, é preciso transmitir ao eleitor

algo sobre si. Para isto, o recurso mais usual é a referência

profissional ou outro pertencimento ideológico, moral, de

valores sociais, até mesmo de pertencer a uma determinada

família considerada importante. Procura, então, atrair para si

o prestígio de associação profissional, pertencimento a uma

crença religiosa, valores morais. É preciso encontrar

referências profissionais e de trabalho para que suas

afirmações possam autorizá-lo a ser representante político.

É possível distinguir claramente dois tipos de

representação buscada numa eleição. De um lado, existem os

candidatos que falam e apelam para segmentos sociais,

257

claramente definidos, pois se trata de uma instituição social,

uma empresa, uma corporação de empregados, uma categoria

profissional. Neste tipo de representação, à qual chamaremos

de representação de interesses, identificamos bancários,

comerciários, balconistas, operários de setores de indústrias,

garis, trabalhadores taxistas, moradores de conjuntos

habitacionais, membros de grupos religiosos, moradores de

bairros designados pelos candidatos. Nela é possível fazer uma

distinção entre candidatos que buscam o mesmo tipo de

representação, mas não de forma definida uma comunidade. Por

exemplo, aqueles desejosos de representar os jovens,

funcionários públicos, estudantes, aposentados e pensionistas,

esportistas, mulheres, cristãos; os defensores da educação, da

saúde, da moradia, da segurança pública e emprego.

Outro tipo de representação que designamos de valores

não se orienta para nenhuma comunidade organizada. Os

candidatos não chegam a se referir a nenhuma forma de

agrupamento social definido que queiram representar, mas falam

de modo vago sobre valores que defendem, como melhoria da

saúde, da educação e da vida do povo.

A ação da primeira forma de representação é orientada

para conquistar o apoio e a simpatia de um segmento social

definido com o qual o candidato tem um tipo de pertencimento

orgânico. Não se concebe um candidato defensor de aposentado

que não seja ele mesmo um aposentado. Isto ocorrerá também com

candidatos comerciários, bancários, militares e líderes

comunitários. Ser membro do segmento social organizado que

pretende representar é condição indispensável para desejar

258

esta representação. O reconhecimento do seu pertencimento é

demonstrado com relato das suas lutas na defesa dos interesses

deste segmento.

Esta condição de pertencer ao segmento social a ser

representado é definidora desta primeira forma de

representação. A característica de pertencer é um atributo

fundamental para quem quer ser representante de comunidade de

interesse organizado. Pertencer como membro orgânico é o que

legitima sua participação como representante.

Não se imagina um candidato bem jovem aparecendo como

defensor dos aposentados. Isto não ocorre porque, mesmo sem

haver uma regra para dizer quem pode e quem não pode

representar ou se apresentar como defensor de determinado

segmento social, somente é autorizado a representar os membros

desta organização os que recebam algum tipo de autorização

pela ligação com a organização social. Um advogado de

trabalhadores que se apresenta como candidato na busca da

representação dos interesses dos trabalhadores urbanos ou

rurais, mesmo não sendo um trabalhador rural, sua ligação na

defesa destes interesses o autoriza a se apresentar como um

legítimo representante deste segmento. A representação neste

caso está baseada numa reprodução de peculiaridades daquele que

se representa. Somente pode representar este segmento social

aquele quer tiver características existenciais do próprio

agrupamento social representado. Possuindo estas

características do grupo que pretende representar, ele pode,

no parlamento, evocar com sua simples presença a organização

social de onde é egresso.

259

Este fato da busca pela representação dentro de

segmentos organizados e definidos pode explicar por que é tão

incômodo para muitos candidatos assumir que são candidatos não

por vontade, mas por indicação de um grupo de amigos. Não há,

mesmo dentro de um grupo social definido, autorização para que

um dos seus membros se destaque e assuma o desejo de ser

candidato ou representante deste segmento social. A decisão de

lançar-se candidato cabe sempre a um outro anônimo sobre o

qual recai o peso da decisão de lançar um membro de uma

organização na disputa pela representação política.

Os candidatos sem nenhum tipo de filiação institucional

forte apelam para uma representação de valores. Este tipo de

candidato obviamente reside num bairro, mas não tem uma

presença muito ativa na vida comunitária que o permita se

lançar como candidato à liderança da representação por este

segmento. Ocupa uma função dentro de uma empresa pública ou

privada, mas igualmente não tem envolvimento suficiente com os

problemas trabalhistas que o permita apresentar-se como

candidato a líder da categoria profissional. Desde modo, o

candidato com este perfil tende a ressaltar seu pertencimento

a instituições profissionais, mas não faz dela sua base de

apoio. A saída, então, é apelar para uma representação de

valores em geral, ou também assumir os valores do seu próprio

partido.

A campanha política para o legislativo é a única que

não permite nenhuma forma de colaboração entre os candidatos.

É extremamente comum a existência de dobradinhas eleitorais

entre candidatos em determinados municípios onde um deputado

260

estadual e um federal casam a chapa eleitoral. Isto não se faz

nas campanhas legislativas municipais. A impossibilidade de

qualquer tipo de colaboração entre candidatos induz o

comportamento de priorizar os setores sociais nos quais já se

tem força eleitoral.

A estratégia eleitoral mais usual é possuir uma base

central de apoio eleitoral num determinado segmento social,

mesmo para os que já se apresentam como representando

segmentos mais diversos. Nelson Martins, por exemplo, foi

eleito em 1996 com os votos majoritariamente na categoria dos

bancários. Entretanto, devido ao seu desempenho parlamentar na

Câmara Municipal na campanha de 2000, ele não se limitou aos

bancários, embora estes tenham continuado sendo a base mais

importante. A votação dele expandiu-se basicamente para dois

novos setores: os comerciários e os estudantes. Os

comerciários passaram a fazer parte do interesse dele a partir

do exercício do mandato, principalmente na defesa dos

interesses dos opositores à proposta do sindicado dos lojistas

de abertura do comércio aos domingos. O voto vindo dos

estudantes decorria mais uma vez do desempenho parlamentar que

o projetou como um vereador ideológico.

A eleição é apenas um momento de um processo político

anterior. Aquilo que assistimos nas campanhas políticas e a

performance dos candidatos são baseados em acúmulo de capital

político já existente. De certa forma, uma campanha política

legislativa municipal envolve mais aspectos de laços já

consolidados do que propriamente desempenho pessoal. Dizer que

todos os candidatos de uma eleição são teoricamente iguais não

261

tem sentido. A simples divisão entre os atuais parlamentares,

ávidos pela reeleição, e os demais candidatos se diferencia

substancialmente. Entre estes últimos podemos distinguir um

pequeno grupo de candidatos que já disputou em anos anteriores

outras eleições. Estes normalmente acumularam não somente

experiência, mas também vasta representação que os permite

competir em várias eleições. Por fim, há os neófitos na arena

eleitoral.

É preciso aprofundar a pertinência de quais identidades

são atualmente mais usadas por candidatos ao legislativo

municipal. Numa assembléia legislativa municipal, contamos

apenas com dez representantes que se assumem como tendo uma

base política em um bairro da cidade coincidente com seu lugar

de residência. Outros, apesar de manter um núcleo no bairro,

procuram expandir seu trabalho para outros segmentos da

sociedade. A identificação religiosa e profissional, isto é,

apresentar-se como membro de uma comunidade de idéias ou valores ou

determinada categoria profissional é usada, pelos candidatos,

como um recurso a ser capitalizado na eleição.

Este pertencimento a uma comunidade já constituída é o

capital político de que dispõem. Em alguns casos, ele é o

único. É preciso fazê-lo render muito. Mas, mesmo quando se

apresentam como filiados a um segmento profissional, não são

suficientemente reconhecidos pelos demais membros da categoria

para terem seu voto dado em virtude deste pertencimento. Os

candidatos que asseguram maior identificação com segmentos

sociais organizados precisam já ter provado manter uma

vinculação muito estreita com a categoria social que pretendem

262

representar e que têm legitimidade para se apresentar já como

um candidato do segmento organizado. Uma campanha política

para o legislativo municipal é curta e muito dispersa, não dá

tempo para se construir um nome como identificado a certo

segmento da sociedade. Esta identificação já deve existir. A

campanha eleitoral é apenas o momento de difundir a condição

de candidato e não de construir um perfil de candidato. Os que

passam a campanha construindo esta identificação normalmente

são perdedores.

Em Fortaleza um fenômeno vem se repetindo nas últimas

eleições para o legislativo municipal. Em cada disputa

eleitoral tivemos um candidato vitorioso que representava o

segmento social da corporação dos militares. Inicialmente foi

o general Torres de Mello; na legislatura seguinte foi o

capitão Amilton Gomes e nesta última eleição o vencedor foi

Leonel Alencar. O mais surpreendente é que somente um

representante é eleito, apesar de, em todas as eleições, mais

de um candidato se apresentar como membro da corporação.

Apenas um é eleito e todo aquele que estava representando

naquele momento os militares perde para um outro, igualmente

militar. Tudo se passa como se a corporação somente pudesse

assegurar um único representante e em cada momento vai

substituindo um por outro, até chegar à representação

perfeita. Mas por que o general Torres de Mello perdeu sua

função de representante dos militares para o capitão Amilton e

por que este perdeu a mesma função par o coronel Leonel

Alencar?

263

Um candidato não é jamais candidato de si, ou seja,

jamais encontramos um candidato fazendo referência unicamente

ao seu desejo de ser candidato. É preciso apresentar-se como

membro de algum tipo de movimento social, organização ou

trabalho social existente que o credencie, legitime a ocupar

esta posição de candidato. A posição de candidato não é vazia

de representação, ela já está permeada por uma imagem dos que

podem ocupá-la. Qualquer um pode, ao se filiar a um partido,

pleitear sua candidatura. Mas estes são apenas requisitos

legais para participar da disputa eleitoral. Os candidatos,

isto é, os verdadeiros agentes diretos na competição eleitoral

são os que já desenvolvem algum tipo de atividade de trabalho

social e isto lhes permite ser reconhecidos como alguém

capacitado para ser candidato. Muitos candidatos mencionam o

trabalho comunitário como aquilo que os legitima a ocupar esta

posição. Outros, simplesmente pelo fato de terem um nome

conhecido na cidade, julgam-se capacitados para assumir esta

condição de candidato. Na última eleição tivemos o caso de um

ex-juiz de futebol que depois de aposentado pretendeu assumir

a condição de candidato. O discurso era recorrente à sua

antiga condição de árbitro de futebol e aos valores

relacionados ao exercício desta função. A seriedade é algo

importante, a não corrupção outra marca. Isto era apresentado

como algo necessário ao bom desempenho parlamentar. Estes

valores da sua profissão o credenciam, legitimam sua atitude

de se lançar candidato. É preciso justificar sua condição de

candidato.

264

Numa eleição, o que se busca é o “direito” de

representar os interesses de segmentos sociais organizados,

defendendo idéias e valores compartilhados por um número

considerável de eleitores. O desejo de representar obriga o

candidato a dirigir sua campanha para segmentos definidos.

Nesse caso, o público alvo torna-se seu objetivo, e ele fala e

faz campanha orientada para sensibilizar a simpatia deste

segmento. Neste aspecto, um candidato precisa ser oriundo de

algum movimento coletivo, alguma instituição, alguma

organização social. Ou seja, sem a identificação anterior com

um grupo social, mesmo que seja “grupo de amigos”, torna-se

difícil o candidato se apresentar para o eleitor. A

legitimidade deste ato de pleitear a representação política

passa necessariamente por uma participação em algum tipo de

engajamento em movimento social, organização social. O tempo

da política é apenas o instante em que vai capitalizar, usar o

capital político, acumulado na sua atividade antes da eleição.

Esta ação realizada anteriormente não precisa ser identificada

como de natureza política, mas precisa, durante a campanha,

ser convertida e transformada em apoio político para sua

candidatura. Nisto reside a habilidade do líder político,

saber convencer “sua representação”, isto é, demonstrar que é

importante para a organização ter um representante no

legislativo municipal. Que ocupar esta posição de líder

político fortalece o sindicato ou a associação da qual é

membro.

Para os candidatos que se apresentam em defesa de

causas ou interesses de categorias organizadas, a

265

representação política é tida como um atributo de defesa de

algo. Os candidatos que disputam a função de representantes

buscam defender algo; vão desde a defesa de interesses

bastante particulares – por exemplo, nesta campanha analisada,

um candidato se apresentava como transplantado e defendia a

ampliação dos transplantes de rins. A possibilidade deste

candidato eleger-se é pequena. Não apenas porque o número de

eleitores transplantados é pequeno, como o desafio de

convencer que este problema merece uma representação política

é grande. Provavelmente, os problemas experimentados por uma

pessoa transplantada não chegam a adquirir a dimensão de causa

política nem sensibilizam os portadores destes problemas a se

identificar com um candidato capaz de defender sua causa. A

causa das pessoas transplantadas pode ser absorvida pelos que

lutam por saúde e melhoria no atendimento do sistema de saúde

público. Se alguns candidatos se apresentam ao eleitor como

defendendo causas tão restritas que somente aos poucos poderia

sensibilizar, outros defendem causas tão amplas que também

deixam de prender a atenção do eleitor. O discurso normal de

candidato é buscar sempre defender educação, saúde, moradia e

segurança... Eles pretendem fazer o Estado agir na formulação

de políticas orientadas para estas demandas sociais. Mas

igualmente não sensibilizam os eleitores porque como eles

muitos outros apelam para a defesa das mesmas causas.

Quanto ao voto comunitário, este somente pode ser

pedido e dado ao membro da própria comunidade. Não se concebe

um representante político disposto a defender os interesses

dos moradores de um bairro da cidade se nela não reside ou tem

266

qualquer tipo de ligação. É esta filiação ao grupo social que

o autoriza a ser representante e falar como se fosse um membro

que pretende ocupar um cargo na defesa dos interesses deste

segmento.

Uma candidata a vereadora apresenta-se como membro de

uma comunidade e está na luta do dia-a-dia na defesa dos

interesses desta comunidade. A defesa dos interesses da

comunidade não pode ser feita por alguém de fora; deve ser por

alguém de confiança e de dentro da própria comunidade. A

confiança exigida do representante requer dele provas da

capacidade de estar na luta em defesa dos interesses desta

comunidade. Somente um membro orgânico poderá ter este tipo de

compromisso de defesa.

Conforme mencionamos, algumas categorias profissionais

apresentam candidatos com vistas à eleição e à representação.

Destas, as principais são: comerciários, motoristas de táxi,

bancários, funcionários públicos, policiais e militares. Os

professores se apresentam como defensores da educação e não da

categoria profissional, pois muitos se representam como

funcionários públicos.

Existem também candidatos que pretendem representar

valores, embora seu público alvo não seja eleito, como é o

caso dos que falam na defesa das crianças e dos adolescentes.

Este candidato não pretende representar os interesses deste

segmento com os votos oriundos deles, mas de adultos que

concordem ser preciso desenvolver trabalhos para a melhoria

desta situação. Ele pretende defender os interesses das

crianças e dos jovens não com os votos destes, mas com os

267

votos dos que votam por valores. A representação no caso não é

de pessoas, de um grupo organizado, mas de uma proposta e um

valor social. Aqueles que concordam devem votar.

Entretanto, mesmo neste caso, não é qualquer candidato

que pode se apresentar como defensor dos interesses dos

jovens, porta-voz deste público. Somente alguém que na sua

atividade profissional tenha algum tipo de relacionamento com

este problema possui autoridade para falar em nome deles. Ele

não é um jovem, mas alguém familiarizado com o problema porque

trabalha com essas pessoas em determinada instituição social

de apoio ou, como eles dizem, “desenvolve um trabalho”.

A representação de comunidades com interesses definidos

é bastante evidenciada numa eleição. Nenhum candidato esconde

sua vinculação com certos segmentos, ao contrário, todos

ressaltam e procuram capitalizar esta ligação.

A representação de comunidades latentes ou de valores é

um pouco mais confusa porque não se encontra um apoio

definido, nem se sabe qual o contingente de pessoas defensoras

destes valores. Esta comunidade não tem uma organização

prévia, não dispõe de nenhuma estrutura organizativa. Os

membros existem, pois podem se sentir identificados com os

mesmos atributos, mas não são capazes de qualquer tipo de

concentração e organização. Ficam em muitos casos apenas como

uma comunidade ou um grupo latente, puramente nominal, mas não

se efetivam de forma alguma.

Tia Zuleide é uma líder comunitária do grande Bom

Jardim, filiada ao PTB e candidata a vereadora em 1996.

268

Segundo afirma, é candidata porque sendo líder comunitária por

vários anos e “não encontrando o apoio necessário para

resolver os problemas” da sua comunidade, toma a decisão de

candidatar-se a vereadora. A candidatura não é uma decisão

sua, mas de anos de luta infrutífera. Ao candidatar-se,

acredita que poderá “lutar pelos direitos” dos moradores da

sua comunidade.

O destaque, no caso da candidata comunitária, como ela

mesma se refere, é o fato de anunciar que para ser candidata

teve um longo trabalho anterior que a credenciou a pleitear

esta posição de candidata. Mais uma vez encontramos a

referência de não ser este um lugar legítimo para qualquer um,

mas somente para os que tiveram um “trabalho anterior na

comunidade”. Lança-se candidata apoiada por estes anos de

trabalho e dedicação aos problemas da comunidade. Como

acredita que estes problemas existentes na sua comunidade

podem e devem ser resolvidos, candidatou-se. Ao se candidatar,

sua pretensão é resolver os problemas do bairro, os quais,

segundo ela, são problemas causados pela falta de direito dos

moradores. Conforme demonstrou a candidata, a permanência dos

problemas é devido ao não respeito aos direitos dos moradores

e estes direitos somente serão respeitados quando existir um

representante que conheça estes problemas e possa lutar para

solucioná-los.

As razões e a natureza da candidatura de Tia Zuleide

parecem evidentes. Diante de uma situação de problemas

experimentados na sua comunidade pelo não respeito aos

direitos dos moradores, acredita que somente como vereadora

269

será capaz de solucionar tudo isto. É pensando no seu bairro e

nos problemas dos moradores do Grande Bom Jardim que a

candidata pretende ser vereadora.

À semelhança de Tia Zuleide, existem outros exemplos.

Francisco Manuel é candidato pelo PSDB a vereador de Fortaleza

na eleição de 1996. Começa “pedindo a oportunidade de ser da

Câmara Municipal de Fortaleza”. Este é seu desejo explícito.

Mas para quê? Segundo ele, “para apresentar projetos que

tenham a participação de todos os segmentos da sociedade”. E o

que o credencia a ser vereador? O candidato responde que é

“morador de Fortaleza há 26 anos” e trabalha na grande área

carente da cidade. Em seguida define área carente como sendo

“onde o povo necessita da ajuda daqueles que fazem a Câmara

Municipal”. Logo o candidato está propondo uma troca

simbólica: Ele pede que o eleitor o ajude a chegar à Câmara

Municipal e, quando lá estiver eleito, promete ajudá-los.

Embora a lógica seja pareça simples, é expressa de uma forma

que o candidato parece querer dizer o que diz, mas não tem

coragem de assumir completamente.

Aparecida é candidata a vereadora pelo PMDB. Conforme

afirma em seu programa, sua finalidade ao ser candidata é

“lutar com o povo e doutor Juraci para melhorar os bairros

Serviluz, Praia do Futuro e Castelo Encantado”. Ela se

apresenta como uma candidata identificada apenas com alguns

poucos bairros da zona leste da cidade. Diz que quer lutar

“por hospitais, saneamento básico, segurança, escolas de 1º e

2º graus”.

270

Marilda Alves é candidata a vereadora pelo PTB. Na

opinião dela, é o momento de mudança e o povo deve votar “em

quem tem compromisso com nossa cidade”. Ela diz que é uma

líder comunitária e que quer ser vereadora “para continuar

trabalhando junto com o prefeito em defesa dos menos

favorecidos”. Em seguida torna mais precisa sua luta. Afirma

ser favorável à “moralização dos gastos públicos e contra a

discriminação das mulheres”. Ela é a favor de algumas coisas e

contra outras. Justifica sua candidatura por ser líder

comunitária e já estar trabalhando em defesa dos menos

favorecidos.

Totó é candidato pelo PSDB. Apresenta-se como o

“candidato líder comunitário”. Esta parece ser sua distinção

nas comunidades onde atua. Afirma que é líder comunitário,

pois “há oito anos faço um trabalho comunitário no José

Walter, Palmirim, Pantanal”. Em seguida, lista suas

realizações como líder comunitário: “Em 92 consegui água para

o Palmirim, consegui a reforma da agência de correios do José

Walter, eletrificação do Pantanal, unidade sanitária.” Mesmo

com todas estas realizações de líder comunitário, segundo

afirma, “ainda falta mais, ainda falta o sanear do José

Walter, creche e projeto de mutirão”.

Dizendo-se unicamente líder comunitário não é capaz de

dizer por que afinal quer ser vereador, nem por que estes

projetos apresentados por ele não podem ser executados, como

os outros, sem sua condição de vereador. Este provavelmente é

um candidato que para a comunidade é mais interessante

permanecer como líder comunitário.

271

De acordo com uma idéia corrente entre os lideres

comunitários, estes são vereadores sem mandatos, pois já

exercem na prática, mesmo sem ter um mandato, o trabalho que

desenvolveriam como vereador. A vereança é apenas um estágio

seguinte na atuação de um líder comunitário, elevação máxima

almejada. Na condição de vereador, terão como dar continuidade

ao trabalho realizado, ajudar maior número de pessoas, obter

uma estrutura mais sólida para o trabalho de assistência à

população mais carente.

Elza Gurgel é candidata a vereadora. Na opinião dela, é

preciso refletir muito e valorizar o voto e o eleito deve

apostar em novos valores na Câmara Municipal. Ainda segundo

Elza, só se deve depositar “confiança em quem tem trabalhado

pelas comunidades”. Somente quem tem trabalhado pode merecer o

voto e somente ele poderá ajudar sua comunidade. Ela se diz

representante do Bom Jardim, mas quer representar todas as

comunidades carentes de Fortaleza.

Modernamente nas campanhas políticas as palavras menos

ouvidas são promessa e prometo. Mesmo “voto” e “pedir seu

voto” são pouco usadas. Entretanto, as mais escutadas são

“apoio” e “defesa”. O termo defesa na terminologia política

remete imediatamente à idéia de representação. Quando se diz

que “eleitor quero defender os interesses dos mais carentes,

quero ser o defensor das comunidades...” estas expressões

designam o desejo de representar os interesses destes

segmentos.

272

Quanto mais direcionado o discurso para um segmento

definido, menos o candidato ressalta outros atributos não

pertinentes ao eleitorado a ser conquistado.

Isto explica por que os candidatos de feição

comunitária ressaltam quase apenas este critério, seu

pertencimento a uma dada comunidade, a luta de muitos anos em

defesa dos interesses de tais bairros, a obtenção de

melhorias, etc. O representante profissional fala do seu

pertencimento ao corpo profissional e do trabalho que já

desenvolve na defesa dos interesses deste segmento organizado.

Esta redução dos atributos significa a busca do monopólio da

representação política de um segmento definido da sociedade.

Um indivíduo não abandona sua condição de membro de uma

organização profissional, comunitária, sindical ou de outro

gênero e passa imediatamente a se apresentar como candidato.

Ele apresenta-se inicialmente como membro de uma organização

social e pretende representar este segmento que tem vinculação

profissional na Assembléia Legislativa municipal. Ele pode

também apelar simplesmente para os amigos e as pessoas

conhecidas. O apelo, obviamente vago, não lhe rende nenhum

voto. Muitos apelam para seus vínculos profissionais e também

para os “companheiros” da sua empresa ou ramo de atividade,

que votem nele para poder defender os interesses deste

segmento.

A busca da representação mais comum é do tipo do

candidato que simplesmente se apresenta sem uma identificação

definida e clara, pois pretende ter uma base de apoio difusa.

Apela para seus colegas de trabalho, seus amigos do bairro,

273

seus colegas de associações... Não há um único segmento do

qual se disponha a ser o representante.

O candidato que busca uma representação difusa e

capilar em vários segmentos sociais contrasta com aquele que

pretende o monopólio da representação. Este se dirige

unicamente a um tipo de eleitor já definido como possível, e

investe no segmento social onde já tem engajamento. A campanha

serve apenas para potencializar e reafirmar os compromissos

assumidos em outros momentos. Este candidato do monopólio da

representação apresenta-se de forma bastante definida, sem

ambigüidade na base de sustentação.

Um terceiro tipo de candidato é aquele que não tem uma

base social para se dirigir de forma exclusiva. Apela

simplesmente para lugares comuns e como defensor de causas

genéricas. Fala em defender saúde, educação, moradia e

melhoria das condições de vida para o povo. Nesta mesma

categoria, situam-se os defensores de valores sociais e

apologistas de certos valores como pilares de sustentação da

ordem social.

Há um tipo de candidato voltado não a segmentos

profissionais organizados, movimentos sociais definidos,

valores ou causas precisas. São candidatos de segmentos

sociais ou culturais, ou mais precisamente, são candidatos que

pretendem representar as categorias sociais – jovens,

mulheres, idosos, crianças abandonadas, homossexuais... Este

tipo de candidato possui um perfil definido porque ou ele é

membro ativo do segmento social que pretende representar ou

tem uma ligação por filiação profissional.

274

Na visão de políticos e analistas, cada eleição é uma

eleição. Mesmo assim não se pode desconhecer que apesar das

especificidades de cada pleito eleitoral e não obstante a

existência de regras, há sempre elementos comuns em cada

eleição. Os traços comuns podem ser ressaltados pela

existência de candidatos, discursos que sempre predominam.

Alguns aspectos presentes na campanha para vereador

precisam ser destacados porque possibilitam entender o modo

como o candidato compreende sua função de representante

político. Todos compreendem a eleição como um modo de defender

interesses ou valores. Mas nem todos precisam de defensores,

somente os que estão em situação de indefesos são ressaltados

como necessitados de ajuda e defesa. O eleitorado ao qual o

vereador pretende dedicar seus esforços não tem condições de

atender seus próprios interesses, portanto, precisa de alguém

que fale por ele, que lute para estes serem atendidos. O

vereador é alguém que se coloca como aquele agente político

responsável pela defesa dos interesses da população mais

humilde, carente, etc. A forma como este grupo é referido

varia muito, mas há sempre o entendimento de que é a ele que

deve ser destinado principalmente o trabalho do vereador.

Mesmo quando este fala de maneira genérica para todos os

eleitores da cidade, enfatiza que seu trabalho deve ser

orientado para a defesa dos mais necessitados.

Quando se analisa o discurso dos candidatos a vereador,

sobressai imediatamente a noção do poder público na sociedade

brasileira: existe para servir aos pobres, aos mais

desassistidos, aos que não tiveram oportunidade. O Estado é

275

uma agência de inclusão social e toda política pública é para

firmar uma aliança política entre os que estão de fora e os

que estão dentro, para juntos resolverem os problemas. Ajudar

aos mais necessitados parece ser a missão do governante. Neste

aspecto, é comum a imagem tão constante do político como

aquele indivíduo que ajuda às pessoas que procuram auxílio e

principalmente aos mais carentes.

O candidato se apresenta como pretendendo ser o

defensor dos interesses de um grupo social definido ou de uma

atividade existente na sociedade e que merece ser apoiada,

ampliada. Em defesa da educação, da saúde, como atividades

relevantes das quais o governo municipal se ocupa e que o

candidato se compromete a dar especial atenção.

O eleitor é chamado a escolher um candidato para

defender os interesses dele. Entretanto, como cada eleitor

individualmente tem, ao mesmo tempo, mais de um interesse,

como definir que este e não aquele interesse deve orientar sua

escolha do candidato?

De modo geral, os candidatos apresentados como membros

de instituições ficam intimamente ligados a elas e pretendem

obter voto unicamente nesse segmento social. Algumas

instituições parecem exigir uma identificação completa, não

permitindo qualquer trabalho do seu representante em defesa de

outros interesses. A mais evidente instituição agindo com esse

padrão é a militar. Os candidatos que se apresentam como

pretendendo a representação dos interesses dos militares falam

de maneira exclusiva, orientados unicamente para o seu grupo

276

de pertencimento, pedindo sua autorização para falar e agir em

seu nome.

Eu prometo combater... O candidato pretende se opor a

práticas existentes, consideradas nocivas ao interesse da

sociedade... Defender os direitos de.... Lutar pelos direitos

de... Candidato-me a vereadora com o intuito de defender

causas importantes...

Vou defender a classe dos detetives particulares...

Peço seu voto de confiança para trabalhar pela comunidade...

Um candidato trabalhador do setor têxtil de Fortaleza lembra

da importância deste setor na economia nacional e defende

maior qualificação profissional dessa mão-de-obra. O discurso

é orientado totalmente para o segmento de pessoas com

envolvimento nesse setor econômico. Mas na sua condição de

vereador, nada poderá fazer para atender às expectativas dos

trabalhadores do setor. Apelo inócuo.

Em toda campanha existem deficientes físicos como

candidatos. Em geral, são pessoas portadoras de alguma

deficiência física que se apresentam postulando a condição de

candidatos dos deficientes. Prometem lutar em defesa dos

direitos dessas pessoas, julgam-nas normalmente discriminadas,

sem direito, e carentes de um representante político para

lutar por seus interesses. Esse segmento tem um representante

não deficiente, que se apresenta como uma pessoa ligada ao

problema da reabilitação motora porque trabalha há tempos em

uma instituição encarregada deste problema. Qualquer candidato

que se proponha defender o interesse dos deficientes físicos

terá de enfrentar a barreira inicial do vereador Machadinho.

277

Quero trabalhar e lutar pelo social... Um médico

obstetra se apresenta como candidato, afirmando que deseja

realizar projetos ligados às crianças e às mulheres. Propõe a

construção de unidades de UTIs para os recém-nascidos.

A imagem mais ressaltada pelos candidatos é de

proximidade, de amizade, de confiança... são estes os valores

que orientam uma boa escolha de um candidato. Aquele que já

deu provas de trabalhar em defesa dos mais carentes, em defesa

da justiça e que se compromete a continuar agindo sob os

mesmos princípios.

Para os candidatos a vereador parece evidente em seus

discursos que a Câmara Municipal é uma instituição importante

não somente para ajudar o prefeito a governar, ênfase dos

candidatos governistas, mas principalmente para poder realizar

ações concretas em defesa dos interesses do segmento social

com o qual mais se identifica e do qual se dispõe a

representar os interesses.

Um candidato se apresenta como defensor dos interesses

dos aposentados e pensionistas. Segundo afirma, a categoria

dos aposentados é relegada e não tem quem defenda seus

interesses. Por isto coloca-se como candidato a representar

esses interesses na Câmara Municipal.

Trabalhando sempre pelos mais humildes e carentes... O

candidato se apóia na campanha em círculos ou grupos

defensores da sua campanha. Um candidato delegado pede o apoio

para ser vereador: dos colegas delegados, dos policiais civis,

dos agentes penitenciários. Esse grupo inicial é formado pelos

278

vínculos de trabalho, pelas pessoas que de alguma forma mantêm

relação com o candidato em decorrência da sua função

profissional. Em seguida fala de “amigos” e “gente sofrida da

periferia”. As bases de apoio à candidatura começam no seu

grupo de pertencimento profissional, os delegados de polícia,

buscando em seguida outro grupo imediatamente ligado, os

policiais civis, e por fim um outro grupo formado pelos

agentes prisionais. São três categorias profissionais que ele

pretende representar, ele mesmo membro de uma delas. O apelo

aos “amigos” é a forma de sair do círculo profissional e se

apresentar para além dos compromissos com os colegas de

profissão. Por fim, a identificação mais genérica com as

pessoas sofridas da periferia. O candidato orienta sua fala

para agrupamentos sociais determinados e não para o

convencimento de propostas ou valores que defende.

O candidato ressalta sua condição de membro de

determinado segmento social e pede a este o voto, não para

poder representar seus interesses na Câmara Municipal, mas

para defender certos valores comungados pelo grupo social.

Há candidatos que se apresentam simplesmente, destacam

sua profissão e seus diversos vínculos profissionais, mas não

se referem e nem se dirigem a nenhum agrupamento em

particular. Também não pedem apoio a nenhum agrupamento

social. Pretendem a representação de valores, princípios

gerais e não a defesa de interesses em particular de qualquer

agrupamento social definido. Ele mesmo não deve ser membro de

um agrupamento a ponto de se apresentar como liderança

279

expressiva capaz de reivindicar a condição de candidato com

pretensão de líder político do segmento social.

O vereador é uma liderança política escolhida por um

grupo de pessoas dispersas ou organizadas as quais o elegem

para “defender seus interesses”. Pensando assim, segundo o

candidato acredita, a Câmara Municipal pode “ajudar as

pessoas”. O poder público municipal concentra grande

quantidade de recursos passíveis de ser distribuídos de acordo

com os representantes existentes. Quando uma comunidade não

conta com um representante na Câmara Municipal, acaba não

sendo beneficiada com bens públicos porque não tem ninguém

para defender seus interesses. O interesse das comunidades

parece evidente para estes candidatos, ou seja, benefícios e

melhorias que a prefeitura possa fazer em suas comunidades.

Alguns candidatos se apresentam como defensores de

grupos sociais constituídos ou apenas latentes. Um candidato

se diz defensor dos líderes comunitários e da classe dos guias

turísticos do Ceará. Certamente estes dois agrupamentos de

indivíduos existem concretamente, mas não a ponto de se

mobilizarem em apoio institucional a uma candidatura. Esse é o

ponto fraco de muitas candidaturas que se propõem defender os

interesses e os direitos de categorias, mas sem que as

categorias existam estruturadas e possam se mobilizar em apoio

à sua pretensão de liderança política.

O funcionalismo público federal, estadual e municipal é

alvo de apelos constantes desse tipo de candidatos.

Freqüentemente os aposentados e pensionistas são evocados

280

solicitando o voto para candidatos que se apresentam como

defensores desses interesses e direitos.

Nas eleições municipais, os comerciários apresentam

candidatos que não conseguem o voto desta classe, apesar do

grande número de comerciários. Mais de 70% dos trabalhadores

do comércio são mulheres e os candidatos, até o momento, foram

todos masculinos. Essa pode ser uma das razões do malogro das

candidaturas. Há também o fato de ser uma categoria frágil do

ponto de vista da auto-imagem.

O candidato enfatiza aquilo que lhe parece mais

aceitável publicamente como atrativo para receber o voto.

Primeiro de tudo, ressalta sua condição profissional, quando

esta já tem prestígio, como médico, advogado, administrador,

professor... Caso seja membro de uma categoria profissional

que tenha problemas ou enfrente dificuldades, apresenta-se

como um defensor desta categoria e contra a injustiça

cometida. Os candidatos líderes comunitários ressaltam sempre

seu engajamento na defesa dos interesses dos moradores. Quando

são apenas moradores, destacam sua simples condição de morador

de certo bairro.

Um candidato afirma: “Meu propósito é defender o povo

carente e marginalizado”... Muitos candidatos pretendem se

empenhar em ações voltadas para resolver problemas pontuais:

construção de um hospital, melhoria das escolas, retirar os

meninos das ruas, escolas profissionalizantes para jovens,

apoio às ações voltadas para as mulheres gestantes, construção

de UTIs.

281

É possível compreender o papel desempenhado pelo

vereador a partir dos discursos dos candidatos. Esses

discursos são heterogêneos porque há entre eles vereadores com

mandatos, outros que já exerceram e, a grande maioria, de

candidatos a vereador pela primeira vez. De maneira geral, os

candidatos entendem a função do vereador do ponto de vista

institucional como um importante auxiliar para o prefeito

governar e cumprir suas promessas eleitorais. Os de partido de

oposição colocam-se inicialmente como os fiscalizadores do

poder municipal. Entretanto, a quase totalidade dos candidatos

se dizem mediadores e representantes de interesses de causas

ou de segmentos sociais para a defesa de direitos ou de

interesses. Apenas um número reduzido de candidatos enfatizam

o aspecto de criação legislativa, atribuição relevante do

legislador. O essencial é que o candidato ao legislativo

municipal enfatiza aspectos que em sua maioria não fazem parte

propriamente da sua atribuição política institucional. Ele

pretende realizar ações efetivas na defesa de interesses de

grupos ou de causas sociais. O paradoxo é que numa instituição

dessa natureza a ação institucional ocorre sempre por meio de

colaboração com os outros vereadores, de maneira que sua

intenção torna-se efetiva contando com o apoio e a colaboração

dos outros vereadores.

A força de atração do eleitorado periférico aos

candidatos institucionais continua sendo a miséria e a enorme

carência material dessa população. Esse elemento estrutural da

situação não se modifica imediatamente, vai agindo lentamente

em sua dissolução. Mas enquanto persistir essa força, uma

282

parcela significativa de eleitores continuará a cair nos

braços dos candidatos com recursos disponíveis e dispostos a

negociar seu mandato.

Quando existe negociação e intermediação no voto, não

há compromisso eleitoral do candidato com o eleitorado. A

conexão eleitoral de alguns candidatos eleitos com seu

eleitorado é quase nula porque foi feita na base da

intermediação entre eleitores e lideranças comunitárias. Mesmo

com as lideranças comunitárias não há compromissos futuros, e

sim o engajamento numa atividade política remunerada, sem

conseqüências. Se de um lado se constata a existência dessa

representação por intermediação de lideranças comunitárias, há

de outro os que devem fidelidade não ao seu eleitorado

constituído, mas à sua organização partidária. Ao final, os

únicos representantes políticos locais que ainda mantêm

conexão eleitoral são os políticos com atuação em bairros. Só

eles são capazes de identificar as necessidades e os anseios

do seu eleitorado, agindo para solucioná-los ou minimizá-los.

De acordo com a representação política municipal,

existem três grupos distintos: aqueles que se elegem tendo a

intermediação de lideranças comunitárias, mas sem compromissos

políticos com seu eleitorado; os que se elegem em virtude da

sua ação partidária, tendo uma ação voltada principalmente

para os agrupamentos organizados, embora sua maior

responsabilidade seja com a orientação partidária e menos com

seu eleitorado ao qual pretende convencer da justeza das

posições partidárias. E por fim, os eleitos ainda por pequenas

comunidades de bairros, expressando o sentimento de unidade em

283

torno de uma liderança local. Mais uma vez, sua maior ligação

é com o eleitorado presente à sua porta, fazendo-o um mensageiro

dos anseios dessa população.

A noção de representante político possível de se

extrair da análise dos discursos dos candidatos a vereador

indica que, para o candidato, o representante é natural. Um

membro do “grupo de pertencimento” precisa ser destacado para

advogar, numa outra instituição, a proteção, a defesa dos

valores e interesses dos que ficam. Sem esta representação,

feita unicamente na base da confiança, os outros que estão lá

podem elaborar atos, votar leis que prejudiquem os que lá não

têm representante. Somente um representante autêntico,

genuíno, próprio do grupo é capaz de ser o mensageiro das

propostas do grupo.

Esse tipo de entendimento da representação é mais comum

entre os integrantes de agrupamentos com identidade já

formada.

Os membros de agrupamentos amplos, mas sem laços de

identificação definidos, voltam seu discurso para a

necessidade de existir alguém para defendê-los. É o que estou

chamando de candidato defensor público, pois identifica um

grupo abstrato ou concreto supostamente necessitado de

proteção e que não possui condições de ter um dos seus membros

como representante. Então, ele se apresenta para defender os

seus direitos ou conquistar novos direitos.

Pede o voto, uma ajuda em forma de voto, para poder

fazer algo que julga ser benefício para muita gente. A Câmara

284

Municipal, de modo geral, é vista como um lugar ocupado por

políticos desinteressados no bem-estar do povo, mas que

precisam mudar. Os candidatos habituais desse discurso se

dispõem a modificar esta situação. A Câmara Municipal é também

vista como o lugar de produção de direito. Irei para a Câmara

para defender os seus direitos e os seus interesses.

A função do vereador é defender os interesses de

categorias profissionais, a melhoria de vida para os mais

carentes. Lutar pela efetividade das ações do poder público

no atendimento das necessidades de certos grupos sociais ou de

interesses de todos os cidadãos, é ajudar as pessoas mais

necessitadas. Por isto o cargo é importante.

Mas como se explica o desaparecimento recente do

vereador de comunidade de bairro?

Até recentemente, os círculos sociais em torno do

bairro, lugar de moradia, eram círculos que agregavam muitas

pessoas. No entanto, com a ampliação e formação de novos

agrupamentos, os indivíduos passaram a pertencer a mais de um

agrupamento social. Como membro efetivo de vários agrupamentos

sociais, é possível se lançar candidato contando com apoios

nestes diversos segmentos organizados. Anteriormente o

controle em apenas um segmento social já seria suficiente para

assegurar sua eleição.

Para poder o segmento social de bairro ter o peso de

elegê-lo isoladamente, é preciso um trabalho muito intenso.

Mesmo assim, com o passar do tempo, há sempre a contestação

desta autoridade local.

285

Candidatos a vereador já dispõem de algum tipo de

capital político, isto é, algum tipo de inserção social como

liderança. A candidatura deve reforçar essa posição apoiando-

se em outras lideranças menores e dispersas. A votação de um

candidato é resultante dessa influência pequena de pequenos

grupos.

Os candidatos que se apresentam com maior inserção

social profissional são fortes concorrentes, ou seja, são

candidatos com sólidas chances de vitória eleitoral.

Entretanto, algumas categorias profissionais, mesmo numerosas

e organizadas, não foram ainda capazes de se fazer representar

politicamente na Câmara Municipal. O caso mais evidente,

conforme mencionamos, é o dos comerciários. Desde a década de

1980, eles se organizam em sindicato politizado, lançam

candidatos identificados com a categoria, mas não obtêm êxito

eleitoral.

De modo geral, os candidatos se apresentam na arena

eleitoral defendendo interesses, propondo-se a defender

determinados interesses de agrupamentos sociais definidos com

os quais mantêm laços de filiação ou com grupos de valores.

Ressaltam sua condição de defensores de certos valores sociais

e apelam para a importância da defesa pública desses valores.

Pedem apoio do eleitorado em sua luta em defesa destes

princípios. Candidatos de valores morais com sustentação

institucional como uma igreja evangélica têm fortes chances de

eleição.

Alguns candidatos prometem lutar pela defesa de uma

causa social ou pela construção de algum equipamento público.

286

Outros prometem se dedicar à defesa dos interesses ou à defesa

dos direitos de segmentos sociais.

Há duas concepções de vereador que emergem dos

discursos dos candidatos à Câmara Municipal. De um lado,

predomina a idéia do vereador como canal de acesso ou

intermediário de interesses coletivos e privados. De outro, a

do vereador como defensor público. Na primeira concepção,

privilegia-se o aspecto do atendimento concreto de assistência

social ao eleitorado; na segunda, enfatiza-se a idéia de

direitos. Os vereadores que exercem o mandato pautado pela

primeira concepção tendem a ser freqüentemente aliados do

poder executivo, enquanto os segundos são freqüentemente

críticos e fiscalizadores deste poder.

4.3 Como se faz um vereador de Fortaleza

Nenhum candidato se lança numa campanha política sem

respaldo de um grupo social. Os grupos que legitimam os

candidatos com pouca expressão são normalmente designados como

“um grupo de amigos resolveu me lançar como candidato”. “Eu já

tinha um trabalho na comunidade, e os amigos me procuraram e

decidiram que eu deveria me candidatar”. Nenhum candidato

independente de partido assume a candidatura como se fora uma

iniciativa pessoal. A candidatura ou a história da candidatura

passa sempre pela referência ao grupo social ao qual pertence

ou com o qual se identifica. Um vereador de esquerda,

identificado com o segmento dos bancários em Fortaleza,

explica as razões da sua candidatura pelo trabalho

desenvolvido como líder do sindicato dos bancários e, no

momento, a decisão de lançá-lo candidato foi uma determinação

287

do grupo político ao qual pertence ou com o qual se

identifica. São grupos organizados que resolvem lançar um

indivíduo candidato. Jamais o candidato decide voluntariamente

se lançar numa disputa eleitoral. Afinal, o que constrange um

indivíduo a se apresentar como tendo ele mesmo tomado esta

decisão, por acreditar nas suas condições de se lançar como um

candidato numa eleição?

A natureza da representação do lugar de representante

político não parece contemplar esta possibilidade do indivíduo

se assumir como um candidato de si mesmo. Ao querer a

representação de segmentos da sociedade, ele já, de partida,

coloca-se como um membro de algum agrupamento social

constituído. O interesse não pode ser dele. Isto poderia

parecer desejo de vantagem pessoal por meio da política. É

preciso legitimar esta vontade de participar da política. São

os outros que legitimam. De certo modo, ele é chamado para

participar da vida política, ele se coloca como alguém que tem

vocação, mas para isto é preciso ser solicitado por outros a

ocupar uma posição. Ele vai para a representação política para

defender os interesses e os valores sociais destes que de

algum modo o indicaram com esta finalidade.

Nelson Martins é um exemplo desse tipo de candidato.

Ele afirma que em 1994 trabalhou na campanha para deputado

federal do deputado José Pimentel, mas não pôde se engajar

muito por ser diretor do sindicato. Como era uma pessoa muito

ligada às bases, poderia ter continuado como diretor desta

entidade, mas havia decidido voltar para o trabalho e concluir

um curso. No entanto, em virtude das suas qualidades, um grupo

288

de pessoas sugeriu-lhe se candidatar. Ele, como recém-diretor

do sindicado, teria muita chance de se eleger. Segundo afirma,

foi chamado para ser candidato, e reconhece os atributos que

lhe permitem lançar-se candidato – havia sido presidente do

sindicado dos bancários, tinha forte ligação com as bases

sindicais – portanto, não seria difícil ser eleito. A figura

do deputado Pimentel aparece aqui como aquele que intermedia

sua entrada no universo da política parlamentar. A aceitação

em participar da política eleitoral não é de forma alguma uma

decisão de natureza pessoal; tem a ver com o reconhecimento de

um desempenho à frente do sindicato evidenciado, neste

momento, por meio do convite para ser candidato pelo próprio

deputado federal do seu partido. É preciso ressaltar que as

candidaturas dentro de partidos ideológicos nascem nas

instâncias partidárias. No PT é extremamente comum

encontrarmos candidaturas surgidos dentro das tendências

políticas organizadas que decidem lançar candidaturas com

potencial de voto.

A candidatura de pessoas envolvidas em movimentos

sociais tem sempre uma origem na passagem por um engajamento

político anterior. O engajamento o credencia, caso queira, a

se lançar candidato, mas isto normalmente não acontece, pois

há sempre um grupo dando sustentação à sua candidatura.

Como afirma Nelson Martins, depois de presidente do

sindicado dos bancários, ele desejava simplesmente voltar à

sua condição de bancário e continuar sua formação acadêmica.

Mas houve o convite para ser candidato. Em depoimento, o

289

vereador, perguntado por que se candidatou, deu a seguinte

resposta:

Mas aí em 96 algumas pessoas que queriam lançar acandidatura a vereador, (...) o próprio Pimentel nosprocurou, então algumas pessoas se reuniram e acharam que agente devia lançar algum candidato a vereador. Como eu era,eu sempre fui uma pessoa, como eu falei pra você, muito detrabalhar com a base, permanentemente com a base, o pessoaltava vendo que eu era uma pessoa que tinha chance deeleição, mas aí eu nem queria ser candidato, então acabeiindo, sendo candidato, e acho, eu digo hoje com todasinceridade, acho que foi a coisa que eu já fiz melhor naminha vida... (Depoimento do vereador Nelson Martins, 2000).

A vereadora Luizianne Lins, do PT, tem uma trajetória

semelhante à de Nelson Martins. Ela vem de uma forte

participação no movimento estudantil, como presidente do DCE

da UFC. Quando ela era presidente do DCE, surgiu o boato de

que seria candidata em 1992, logo depois de assumir a direção

da entidade estudantil. De acordo com a avaliação de

Luizianne, dentro da sua tendência política, ela não deveria

se lançar candidata neste momento porque pareceria oportunismo

e a eleição do DCE pareceria apenas um trampolim para a

carreira política. Neste momento ela já pertencia à tendência

política DS. Se em 1992 era muito precipitado o lançamento da

candidatura, em 1996 já não havia impedimentos de nenhuma

natureza.

Quando chega 96 assim, aí a gente vem amadurecendo, nósqueremos lançar, nós precisamos de um mandato parlamentar emFortaleza, nós queremos mexer com essas questões que ninguémmexe, então nós precisamos do mandato pra isso, vamos dizerquem é que pode ser o candidato ou a candidata, aí meu nomedepois de um processo de debate, de discussão na conferênciadecidimos que o nome seria o meu, então sempre quando digo queeu sou candidato de um grupo, não sou de mim mesmo é porqueisso aí é uma coisa concreta. A partir disso em 96 a genteresolveu, como a gente não tinha experiência nenhuma de

290

campanha, a gente resolveu direcionar... (Depoimento davereadora Luizianne Lins, 2000).

A intenção do mandato era influir no debate político e

na definição de políticas públicas voltadas para determinados

setores da sociedade dos quais ela se sentia representante.

Entre estes setores se destacavam a juventude e as mulheres.

Estes foram os dois segmentos básicos fixados como

fundamentais para conquistar adesão eleitoral. Alguns temas

relacionados passaram a interessar, pois estavam diretamente

ligados e podiam ser focados como parte de um mesmo movimento

eleitoral. Desta maneira a “questão da sexualidade” passou a

fazer parte da sua plataforma eleitoral, um pouco como

desdobramento tanto do enfoque na juventude quanto nas

mulheres. A educação e a cultura passaram igualmente a fazer

parte do seu eixo de campanha. Juventude, mulheres,

sexualidade, educação e cultura constituíram o núcleo da

plataforma de adesão eleitoral da candidata Luizianne Lins.

Segundo acreditava, centrada nestes temas estaria

representando um segmento importante da sociedade que ainda

não se expressava no parlamento municipal. Como afirma a então

vereadora: “Então nós fizemos a campanha de 1996 nesses 5

eixos direcionados para esses 5 públicos alvos, nós agregamos

o mandato além mesmo da concepção de vereador de forma mais

global...”.

A concepção de mandato político para a vereadora

Luizianne está intimamente ligada à sua ideologia de

organização dos movimentos sociais. Tanto o dos jovens quanto

o das mulheres são definidos por ela como setores importantes

291

na transformação social e, portanto, precisam estar

organizados. O mandato político é um mecanismo que facilita

esta organização.

Luizianne Lins, assim como Nelson Martins, ao longo do

exercício do mandato vão pouco a pouco se afastando da sua

origem inicial, pois na condição de vereadores percebem maior

engajamento e representação mais ampla. A trajetória dos dois

é exemplar para o que ocorre com muitos outros vereadores que

necessitam, para a conquista do mandato, de uma forte base

eleitoral, mas no exercício do mandato vão se desprendendo

desta base de apoio, ampliando seus horizontes de

representação. Não abandonam este segmento, mas ampliam sua

representação mantendo em parte sua base eleitoral inicial. Na

dinâmica do exercício do mandato, descobrem setores com

potencial de voto, principalmente quando assumem cargos de

presidente de comissões importantes na Câmara Municipal.

Paulo Mindello é um vereador com monopólio da

representação de um segmento organizado da sociedade. Ele se

identifica integralmente como membro do movimento religioso

renovação carismática. É como membro deste movimento que ele

se constitui como candidato. Em 1990, pela primeira vez ele

foi candidato a deputado estadual.

Mindello narra sua trajetória até a conquista do

mandato eletivo de vereador em 1992. Participante do Movimento

Renovação Carismática há oito anos, em 1990, toma a decisão de

se candidatar a deputado estadual.

As razões da sua decisão são apontadas por ele neste

depoimento:

292

Nunca me passou na minha cabeça a idéia de ter um mandato eletivo(...) não foi uma coisa planejada, então o que aconteceu, eucomecei a me engajar, a me preocupar com a vida dos empobrecidos,eu comecei a ler, comecei a me engajar realmente, comecei aescrever no jornal e de repente constata, porque não umacandidatura política, então nesse aspecto eu acho que até em nívelnacional eu fui pioneiro, por que como eu falei no início havia umfechamento um pouco do movimento, essa questão tinha receio e euaté entendo e compreendo esse fechamento, mas aí eu ia mostrando,não era um fechamento à minha pessoa que eles gostavam muito, masera um receio de misturar, mas eu acho que realmente se mistura,fé e política se misturam, é para se misturar mesmo, fé erealidade são coisas que você não pode viver hoje a sua fé se vocênão se engajar politicamente, engajar-se politicamente não é terum mandato, é estar engajado na vida comunitária do povo.(Depoimento do vereador Paulo Mindello, 2000).

A viabilização da candidatura ocorreu porque já havia

outro candidato carismático em Minas Gerais que serviu em

certo aspecto de incentivo e de apoio para sua pretensão de

ser candidato. Afirma Paulo Mindello:

Então dentro desse contexto de preocupação social foi que surgiu aminha candidatura, ainda com certas desconfianças, com fechamento,com muita dificuldade, eu tive uma boa votação para deputadoestadual, eu tive sete mil votos mais ou menos não, aqui emFortaleza 4.600, no interior 1.400. Eu era uma pessoadesconhecida, pra mim foi uma vitória. Depois tive analisando,claro que eu era um pouco ainda ingênuo, achava até que podia sereleito, mas vi que não tinha a menor condição, mas a votação de4.600 votos naquela época aqui em Fortaleza mesmo pra deputadoestadual, que a gente sabe que é maior do que pra vereador memostrou que eu tinha ampla condição de me eleger vereador.(Depoimento do vereador Paulo Mindello, 2000).

A candidatura de Paulo Mindello é visivelmente parte de

um projeto pessoal, a despeito de ao longo da campanha ir

conquistando apoio da comunidade carismática. O público alvo

da sua campanha, como não podia deixar de ser, foi o grupo da

renovação carismática. A campanha fez-se basicamente de

encontros, conversas nos grupos de orações que lhe permitiam

293

falar. Havia já uma estrutura organizada com finalidade

religiosa que servia perfeitamente ao propósito político de

encontrar as pessoas e debater, mesmo por poucos minutos, suas

propostas políticas. O acesso a este tipo de organização

social é do maior interesse do candidato, pois são estes

grupos pequenos que sustentam uma eleição. Na campanha de

Mindello, percebe-se perfeitamente uma homogeneidade do voto,

isto é, o público para quem ele fala é eminentemente formado

pelo segmento do movimento carismático. A dispersão de esforço

em outros segmentos somente ocorreu na campanha de 2000

quando, por conta do lançamento já em 1996 de outros

candidatos que buscavam a identificação do voto carismático,

teve de ampliar sua base de sustentação. A estratégia de

diversificação à sustentação eleitoral não é uma decisão

isolada. Ela é pressionada pela concorrência interna em sua

própria base de apoio anteriormente construída.

Se na primeira campanha de que participa o trabalho de

visita e convencimento político é feito basicamente nos grupos

de orações, na campanha de 2000 já precisa contar com apoio

mais amplo, visitando associações de moradores por meio de

amigos e de lideranças.

Algumas vezes existe resistência em ampliar a base de

apoio eleitoral, em parte explicada pela expansão de gastos

financeiros que isto implica. Quando amplia sua base política,

os gastos na campanha aumentam porque imediatamente tem de

lidar com segmentos sociais muito diversos que exigem

tratamentos diferenciados. Por exemplo, quando fazia campanha

visitando os grupos de orações, praticamente não havia muito

294

custo financeiro com material de propaganda. Havia material

básico de divulgação do nome do candidato e suas propostas ou

visão de mundo. O forte da campanha mesmo era dado pela

presença física do candidato e pelo discurso nas reuniões. No

entanto, ao ampliar sua base eleitoral e visitar associações

de moradores e regiões mais carentes da cidade, não pode usar

o mesmo material. É preciso levar brindes úteis para as

pessoas, desde uma capa plástica para colocar o título

eleitoral, lápis, régua, porta-moeda... Todos com os símbolos

do candidato.

Atuando num segmento organizado, o destaque como

vereador despertaria imediatamente o interesse de outros

membros do movimento carismático. Foi precisamente isto que

ocorreu na campanha de 1996 e posteriormente na de 2000.

Mindello já não podia contar unicamente com os votos obtidos

dentro do movimento carismático e devia necessariamente

diversificar sua base de apoio político.

Sobre a divisão de votos dentro do movimento

carismático, Mindello afirma: “O meu trabalho na Câmara

despertou o interesse de outras pessoas do movimento. Não

pessoas de lideranças maiores, mas pessoas avulsas, digamos

assim, participantes do movimento que de vez em quando

resolvem se candidatar”.

Segundo Mindello, o movimento carismático tem um

potencial de voto bastante limitado, não permitindo a eleição

de mais de um candidato pelo mesmo segmento. Para ele, todo e

qualquer candidato, independente da quantidade de votos

extraídos dentro do movimento, enfraquece seu apoio e põe em

295

risco sua eleição. “Como agora surgiram algumas candidaturas

avulsas, pessoas que vão ter certamente 300 votos, 500 votos,

que não vão ter a mínima possibilidade de se eleger, mas vão

tirar alguns votos meus, sem dúvida”.

Ainda de acordo com Mindello, as candidaturas inviáveis

eleitoralmente existentes dentro do movimento

oneram um pouco a campanha da gente. Por quê? Porque, como háessas outras candidaturas, eu tenho de buscar voto fora, fazermais publicidade do que eu faço, do trabalho que eu faço e issorepresenta custo. E então é isso, houve um engajamento mas haviaainda um certo fechamento por parte da Renovação nesse assunto.Depois, não, até de uma forma muito acelerada hoje a Renovação templena consciência dessa necessidade, de termos pessoas dentro dosparlamentos, essa consciência realmente existe.

Alguns candidatos se originam do movimento popular de

bairros de Fortaleza. Entre estas candidatas temos Eliana

Gomes, do Partido Comunista do Brasil. Presidente da Federação

de Bairros e Favelas de Fortaleza, militante comunista, em

2000 acontece sua primeira candidatura a vereadora de

Fortaleza. Como militante de um partido ideológico, a decisão

de ser candidata é parte de uma tarefa imposta pelo partido ao

militante. Em depoimento sobre as razões e condições da sua

candidatura, ela afirma:

Foi assim uma grande discussão com vários seguimentos sociais, asONGs, as associações, dentro do partido. Então houve umaresistência porque nessa trajetória nunca me preparei pra sercandidata, eu sempre estive assim, o que eu sempre fiz e vou fazere vou continuar, ganhando ou perdendo, é dar continuidade a essaluta. Então, eu nunca me preparei pra ser candidata, me prepareisim pra luta, pra tá numa ocupação de terra, pra tá lutando pelamelhoria das outras pessoas, das outras comunidades, mas realmentepra ser parlamentar, isso nunca tinha passado pela minha cabeça.Então, a partir do momento que eu tive que tomar uma decisão, masfoi uma decisão muito coletiva, eu ouvi minha família, acomunidade, a associação, as ONGs, pessoas amigas da universidade.Eles disseram “É importante a sua presença e mais importante é ...

296

ter parlamento em defesa do povo”. Porque não adianta nada você tálutando se não tiver dentro do orçamento, e isso não é dito prapopulação. Então fez com que as pessoas dissessem: “Vá lá, assuma,tenha essa responsabilidade, acredite que ser candidata popular éum grande desafio, mas é possível”. Então, assumi issocoletivamente, não foi uma decisão particular, nem isolada, masfoi discutido coletivamente”. (Depoimento da candidata ElianaGomes, 2000).

Os vereadores colocam sua relação com a política sempre

em decorrência de algo. O envolvimento em algum tipo de

movimento social, greve, sindical, religioso, o indivíduo diz

que se sente autorizado a participar da política de modo

institucional. A decisão de sair candidato nunca é assumida

como pessoal. É sempre um outro que de certo modo autoriza sua

participação ou pelo menos explica sua entrada no universo da

política partidária.

Se isto ocorre com tanta freqüência nos discursos dos

mais diversos candidatos não é por acaso. Com se pode explicar

este fenômeno?

Um candidato vereador ideológico explica aqui sua forma

de aproximação com o universo da política até o momento em que

decide participar como candidato.

Um dado curioso do vereador ou candidato ideológico é o

fato de todos eles virem para a política por meio de

participação em movimentos sociais de diversas naturezas. Em

todas as entrevistas realizadas, conforme a opinião de todos,

a participação em movimentos sociais foi decisiva para sua

entrada na política parlamentar e na disputa de uma

representação. O movimento do qual participam de certo modo

teve como conseqüência “empurrar” para uma candidatura. É uma

297

ação anterior cuja conseqüência é a candidatura. De algum

modo, isto que ocorre no momento anterior legitima no futuro

isto que se passou.

Durval Ferraz é vereador do PT. Foi eleito pela

primeira vez em 1988. Formado em Teologia, segundo afirma,

tinha uma concepção de “Igreja sentimista” e aos poucos,

ensinando religião em colégios de classe média em Fortaleza,

foi tomando consciência das injustiças sociais e mudando sua

visão da religião. Aproximou-se mais da doutrina da teologia

da libertação. Começou sua militância sindical em 1983 via

movimento de valorização do professor e esteve engajado numa

primeira tentativa de eleição no sindicato dos professores de

escolas privadas. Mesmo não sendo eleito para o sindicato,

continua no movimento até a deflagração de uma greve nas

escolas particulares em 1984. Como conseqüência da

participação neste movimento grevista foi demitido de alguns

colégios onde lecionava.

Filiado ao PT desde 1985, na campanha de 1988 para

vereador, diz ter sido procurado por um grupo de ex-alunos que

lhe sugeriram fosse candidato.

Aí eu topei, tudo bem, foram os ex-alunos mesmo que seorganizaram, fizeram comitês na casa deles, os pais se envolveramtambém, muitos pais me conheciam, quer dizer, eu tinha uma relaçãocom eles muito bonita, muito afetiva, muito forte, éimpressionante, até hoje esses ex alunos votam na gente, fazcampanha, telefonam.

Em 1988, Durval foi eleito a vereador com 1.955 votos.

Os votos vieram basicamente de suas ligações com alunos,

colegas e pais dos alunos que se engajaram na sua campanha.

298

Representava naquele momento um segmento social específico

ligado à educação e defendia valores religiosos progressistas,

etc. A base eleitoral dele permaneceu até 2000,

particularmente concentrada na grande região da Aldeota.

Os candidatos que se lançam na disputa eleitoral com

mais chances de vitória no campo ideológico têm um perfil

muito definido: vêm de movimento social ainda recente e,

portanto, pegam a força de todo o movimento de participação e

engajamento em torno de certa causa ou valor. Esta é a

principal força deles. Se não estão presentes em algum

movimento social em atuação, precisam estar apoiados não mais

num movimento, mas numa instituição já consolidada e que dê

apoio ao candidato no sentido de que ele possa aparecer como

identificado com a instituição.

Sobre o vereador institucional oriundo dos meios de

comunicação como rádio ou televisão, ele surge como candidato

exatamente pelo mesmo efeito de exposição num veículo de

comunicação, o qual o legitima a se apresentar como candidato.

Somente com um nome já bastante conhecido por causa de

algum tipo de participação em movimento social é que o

indivíduo pode se credenciar a pretender se candidatar. Apesar

da legislação – respeitados os critérios – permitir a qualquer

um se candidatar, entre um candidato e um eleito há uma

distância muito grande. A diferença reside exatamente no grau

de penetração deste candidato em algum setor da sociedade. Sem

este envolvimento e participação com um número considerável de

pessoas capazes de ser transformadas em eleitores, é preciso

299

construir um nome na base da compra de votos. Isto requer

muito dinheiro.

Antônio Machado Neto, conhecido como Machadinho,

vereador do PFL na eleição de 2000 conquistou seu segundo

mandato. Ligado à Associação Beneficente de Reabilitação,

entrou na política partidária depois que uma outra dirigente

da ABCR, Gorete Pereira, tornou-se deputada estadual, deixando

vaga sua cadeira na Câmara Municipal. O slogan da sua campanha

eleitoral, “Machadinho, a força da reabilitação”, é uma

alusão à sua condição de dirigente desta instituição que cuida

de pessoas com transtornos motores.

A necessidade de renovar o mandato parlamentar empurra

o vereador para os braços de uma base eleitoral fixa. Desde

sua primeira eleição orienta sua atuação parlamentar

unicamente para um segmento determinado da sociedade.

Machadinho tem sua atividade inteiramente voltada para atender

aos interesses e expectativas dos deficientes físicos. Ele se

apresenta como o único defensor deste grupo, seu legítimo

representante na Câmera Municipal e também junto ao poder

executivo. Não há uma única lei votada na Câmara e que possa

beneficiar de forma exclusiva os deficientes físicos que este

vereador não apresente uma subemenda protegendo ou estendendo

direitos não cogitados pelo autor do projeto original para sua

clientela eleitoral. Machadinho atende às expectativas da sua

base eleitoral mediante benefícios concedidos por meio de

legislação orientada em forma de benefício público. Isto,

entretanto, somente é possível pela natureza da sua base

eleitoral, constituída de pessoas e familiares portadoras de

300

algum tipo de deficiência física, as quais se sentem

desprotegidas em seus direitos, e têm na atividade do vereador

seu defensor institucional.

O vereador Machadinho representa-se de tal modo

monopolizador dos interesses e expectativas dos portadores de

deficiência física que mesmo quando ocupa a presidência de uma

comissão importante de direitos humanos, não deixa de voltar à

atividade unicamente para atender às expectativas dos

excluídos da cidadania de locomoção.

No jornalzinho de prestação de contas do seu mandato e

da campanha para reeleição, consta: “Como médico, Presidente

da ABCR e Vereador, Machadinho destaca-se pela sua ação

parlamentar como o político que mais legislou pela causa das

pessoas portadoras de deficiência. Seu mandato produziu mais

leis em benefícios dos deficientes do que em todos os mandatos

anteriores juntos”. No final da página, afirma que apresentou

63 projetos de lei e 56 requerimentos. Em outro material de

campanha, Machadinho lista alguns destes projetos. Das 25

atividades legislativas citadas, retiramos apenas dez para se

ter uma idéia do compromisso monopolizador na defesa exclusiva

da causa da reabilitação como ele mesmo se refere.

Passe livre para deficientes; Acesso aos edifícios públicos paradeficientes; Adaptação dos flats aos deficientes no município deFortaleza; Reserva obrigatória de 5% das unidades residenciaisadaptadas para deficientes físicos em conjunto habitacionais;Concessão de vagas prioritárias para deficientes nas escolas;Transporte alternativo para deficientes; Criação da Avenida 24horas, adaptadas para deficientes; Disciplinar estacionamento ZonaAzul para deficientes; Reservar 5% das vagas de creches paradeficientes; Cardápio em Braile nos bares e restaurantes para usode cegos”.

301

Estas são apenas algumas das propostas apresentadas e

aprovadas pelo vereador em seu mandato. Constata-se uma defesa

exclusiva dos interesses dos portadores de deficiência. Não é

estranho, pois numa rápida conversa este vereador me disse que

a Câmara de Vereadores deveria ser organizada por defensores

de segmentos. Ao chegar à Câmara a pessoa já saberia a quem se

dirigir, como se tratasse de um órgão público em que cada

setor haveria interesses tratados de forma exclusiva.

Em carta dirigida ao eleitor, Machadinho diz:

Você sabe que o grande problema de nosso Brasil, hoje, é a faltade respeito à cidadania e o desprezo aos aposentados. É por issoque sofremos as deficiências dos serviços de SAÚDE, EDUCAÇÃO,SEGURANÇA, entre outros.O poder Municipal, cada vez mais, vem assumindo a prestação dessesserviços, além de contribuir para a geração de emprego e renda dapopulação que o modelo de progresso tecnológico e odesenvolvimento econômico que esquece o social deixamarginalizada.Precisamos de uma nova Câmara Municipal, mais atuante, mais séria,com mais compromisso com o social, para que possamos melhorarnossa vida.Por isso, precisamos eleger pessoas como o MACHADINHO, cujotrabalho, dentro e fora da política, é sério, cheio de resultadospositivos para os cidadãos de Fortaleza, especialmente os maispobres.

O vereador-candidato aparentemente pretende fazer um

discurso menos centrado num segmento específico por ele

defendido. Mas deixa transparecer seu compromisso unicamente

com a reabilitação, pois é este seu slogan de campanha: “A

força da reabilitação”. Todo o material iconográfico da sua

campanha apresenta um grupo de seis jovens, quatro deles

portadores de alguma deficiência.

302

O núcleo principal da campanha de Machadinho centra-se

no controle da direção da ABCR, entidade da qual é presidente,

contando com onze núcleos de atendimentos espalhados pelos

bairros mais periféricos da cidade.

O vereador Machadinho enfrentava a disputa no seu

segmento exclusivo de defensor da causa dos deficientes com o

surgimento de dois outros candidatos que se apresentavam

igualmente como defensores dos interesses dos deficientes. O

candidato Jorge Luiz, concorrendo pelo PL, apresentava-se em

cartazes de campanha numa cadeira de rodas, mas não usava

nenhum slogan chamando a atenção para sua deficiência e que

isto poderia autorizá-lo a fazer a defesa dos interesses dos

portadores de deficiência. Seu slogan era; “O amigo de

sempre”. O outro candidato era uma mulher, Ana Zilma,

igualmente portadora de deficiência, que aparecia em cadeira

de roda. Concorrendo pelo PTB, ela apresenta-se com o slogan

“Mulher de luta e coragem, o desafio de uma mulher”. O slogan

faz clara referência à sua condição de deficiente motora, mas

ela não se apresenta explicitamente como defensora deste

segmento do eleitorado. Em sua mensagem aos eleitores podemos

ler o seguinte: “Amigos Eleitores – Acreditamos em uma melhor

qualidade de vida para todos nós, e sabemos que só com o suor

do nosso rosto é que podemos contar, é que convido você

trabalhador que derrama suor durante toda a sua vida, a juntar

sua força a juventude e coragem de ANA ZILMA”.

Não há explicitamente nenhuma referência à sua condição

de deficiente física nem ao desejo de pleitear a representação

dos interesses deste segmento social.

303

Outro candidato com deficiência que poderia

eventualmente apresentar-se ao eleitorado como buscando a

identificação para ser o representante dos seus interesses é

Emanuel Ernani, do PDT. Ernani já foi candidato em outras

vezes e sempre se apresenta como “O deficiente visual que

enxerga longe”, mas jamais como defensor da causa dos

deficientes em geral.

4.4 O Vereador como Agente do Poder Local

O fato mais significativo da eleição municipal de 2000

em Fortaleza, para a Câmara de Vereadores, foi a consagração

do fim do declínio do vereador comunitário. Além das

desistências de vereadores mais antigos, como Willame Correia,

Alberto Queiroz e Mário Maia, nenhum dos que na eleição de

1996 obtiveram mais de 70% dos seus votos numa única

comunidade local conseguiu renovação de mandatos. Os dados

eleitorais da eleição de 1996 já indicavam uma diminuição do

prestígio eleitoral dos candidatos com vinculação muito

estreita a comunidades territoriais.

A seguir, discuto a base social de representação dos

vereadores de Fortaleza desta eleição. Para melhor situá-los,

classifiquei-os conforme sua base de monopólio de

representação. Ela nos permite ter uma idéia do grau de

representação social do parlamento municipal de Fortaleza.

Analisando os números e distribuindo os vereadores dentro da

classificação tradicional, quer seja como comunitário, quer

304

como ideológico, ou de representante de corporações e

institucional, pude chegar à seguinte constatação.

A presença mais importante nesta campanha foi o

acentuado destaque de lideranças locais que agem como porta-

vozes do candidato na comunidade da qual pretendem representar

os interesses. Enfatizo este aspecto porque ele parece dar a

chave para se entender o surgimento de um tipo de liderança

política dominante atualmente no cenário da Câmara Municipal

de Fortaleza. Quanto à classificação, trata-se de uma forma de

reunir os membros de determinada instituição, levando em

consideração certos aspectos. Tem, como toda classificação,

algo de arbitrário, mas, em certo aspecto, tomei indicações

dos próprios vereadores para construir o primeiro tipo-ideal.

Tanto o vereador comunitário como o corporativo tendem a se

auto-identificarem com as características apresentadas. O

terceiro tipo – vereador institucional – pretendo que seja uma

criação analítica, logo, de difícil identificação pelos

próprios envolvidos.

A vida política no governo local não se faz na base da

organização partidária, mas no uso clientelista dos recursos

disponíveis pelo governante. Ele pode facilmente compor sua

base de sustentação parlamentar. O alinhamento político com as

posições do poder executivo é uma questão de sobrevivência

política para o vereador, pois sem o uso político da estrutura

da administração municipal, não há como contemplar seu

eleitorado e manter sua complexa rede de atendimento e

prestação de serviços. A troca de favores, atendimento de

pequenas demandas coletivas, faz a atuação do vereador se

305

voltar unicamente para a manutenção dos laços de confiança

junto ao eleitorado. Ele desempenha seu mandato parlamentar na

expectativa de tirar algum tipo de proveito para seus

representados.

Os vereadores tradicionais, de comunidade local ou

comunitários, como preferem ser chamados, são tributários de

uma prática de mediador dos interesses coletivos e

representantes de um eleitorado definido. Seu desempenho

parlamentar é orientado inteiramente para satisfazer aos

interesses do seu eleitorado. Muitos são incapazes de manter-

se como liderança política local pelo excesso de demanda

apresentada pela comunidade e pelo eleitorado isolado.

Preferem criar estruturas intermediárias de poder comandadas

por lideranças locais. Estas estruturas mediadoras são de mais

fácil controle. Recursos financeiros para a realização de

pequenos eventos na comunidade são suficientes para manter a

posição de líder local. O vereador clientelista mora num

bairro de periferia, tem formação escolar precária e uma vida

modesta, mantém relações de aproximação muito grande com seus

representados e possui grande dependência do seu eleitorado.

Uma observação atenta à política municipal, desde os

primeiros anos da década de 1980, constatará que o sistema de

liderança, diretamente exercido pelo vereador numa comunidade,

tende a desaparecer. Dos atuais vereadores tradicionais,

alguns já abandonaram seu reduto, lugar de moradia, e passaram

a residir em bairro mais nobre da cidade. A liderança desse

vereador estava baseada no convívio cotidiano com a comunidade

que representava. Havia uma impossibilidade real de distinção

306

entre lugar de moradia e lugar de trabalho porque estas duas

funções se confundiam. A diferenciação e a mudança somente são

possíveis quando se assegura uma estrutura de liderança local

fiel, de modo que o representante pode se ausentar

fisicamente, mas deixa alguém da família que o representa

diretamente. Dois exemplos recentes em Fortaleza: o vereador

José Maria Couto deixou de residir no bairro Antônio Bezerra,

mas seu pai, ex-vereador e ex-deputado, continua exercendo

forte liderança local, substituindo a presença física do filho

por meio de uma intervenção direta na área onde mora. O

vereador Eurivá Matias é outro exemplo. Recebendo o colégio

eleitoral do pai – vereador Eurico Matias, eleito

sucessivamente pela região do Parque Araxá e Rodolfo Teófilo,

passa a residir em outro local após a sua separação familiar,

mas mantém o escritório no antigo endereço. Conforme se

percebe, estes vereadores, ao saírem das suas respectivas

áreas de influência, passam a conquistar votos de modo mais

disperso. Entretanto, continuam tradicionais no comportamento

parlamentar, embora com uma votação de forma diferenciada. São

lideranças locais de naturezas diversas, encarregadas do

trabalho de atendimento dos problemas das comunidades

assistidas; líderes políticos presos aos interesses do poder

executivo, que trocam uma submissão ao eleitorado por uma

relação de total dependência ao detentor do poder executivo;

gozam de um mandato sem nenhuma autonomia.

Segundo indicavam os dados do resultado eleitoral da

disputa pelas vagas de vereadores em Fortaleza em 1996 e 2000,

a Câmara de Vereadores tem forte concentração de

307

representantes políticos que pautam sua atuação pelo

clientelismo. Há um dado surpreendente indicando que os

vereadores mais antigos com áreas políticas consolidadas

passam, com o fluir do tempo, a dispersar mais seus votos,

fazendo claro apelo aos líderes comunitários de outras regiões

da cidade. Estes casos ficam evidenciados com o estudo da

votação de três vereadores situacionistas: José Carlos

Carvalho, Narcílio Andrade e Eurivá Matias. Apesar de serem

vereadores de tradição clientelista, eles passam a ampliar sua

base de votação. O primeiro e o terceiro se mudaram das suas

áreas de atuação inicial.

Engana-se quem pensa que o eleitorado destas lideranças

tradicionais não sabe reconhecer seus interesses. Ao

contrário, este eleitor da periferia força o representante

político a tomar posição, normalmente, favorável ao prefeito,

e desta aproximação obter benefícios imediatos para a

comunidade ou para a distribuição de bens individuais. O

comportamento deste vereador é baseado na constante troca

entre seus eleitores e seu representante. Esse vereador sabe

que depende estreitamente do eleitorado da sua área. E a

manutenção da lealdade política baseia-se na troca constante

de favores e serviços. Não há política possível fora deste

universo entre representantes e representados. O voto é apenas

uma das relações que o eleitor mantém com seu líder local,

além de sistema de troca de favores, empréstimos, prestação de

serviços por parte do poder público. O eleitorado é disperso,

mas pode ser controlado por um capilar sistema de lideranças

locais identificadas como representantes do político tal.

308

Estas lideranças não são políticas, mas pessoas que atuam

junto dos moradores e em momentos de eleição procuram

atualizar estes contatos para render votos para um candidato.

A vida política municipal em Fortaleza criou um sistema

de lideranças comunitárias não identificado imediatamente com

qualquer político, mas livre para agir, profissionalmente, na

defesa do seu interesse. O surgimento desta camada

intermediária entre o eleitorado, que não está mais formando

sua sociabilidade nos laços de vizinhanças, e as lideranças

políticas formais permite se compreender a continuidade de uma

prática clientelista sem base tradicional. O vereador retira

uma votação expressiva em vários lugares da cidade,

significando uma liderança não tradicional, mas não efetiva

esta votação por apoio da sociedade civil ou pelos meios de

comunicação. A conquista desta votação dispersa ocorre pela

rede capilar de lideranças comunitárias dispostas, na época de

eleição, a trabalhar para o candidato que lhes pagar valor

mais expressivo.

4.5 Homens de Bairro - O Vereador Comunitário (Tradição e

Carisma)

Dentro da classificação ora proposta, o vereador

comunitário é aquele caracterizado pela alta concentração de

votos, normalmente numa dimensão territorial do bairro, tem

vínculos muito estreitos de afetos com seus eleitores, a

exemplo de: Luciano Rodrigues – membro orgânico, pois

residente na base eleitoral do bairro onde obteve 90% de votos

conquistados na própria área de atuação local depois de

sucessivas tentativas malogradas. Maurílio Assêncio – membro

309

orgânico, residente na base eleitoral, teve 83% de votos na

própria área de atuação local, conquistados na base de um

trabalho comunitário de um centro social de prestação de

serviços, vereador mais antigo com mandato. Francisco

Mangueira – membro orgânico, residente na base eleitoral, teve

76% de votos conquistados na própria área de atuação local,

assim como Luciano Rodrigues, que obteve êxito eleitoral

depois de várias eleições disputadas. Augusto Moreira – membro

orgânico, residente na base eleitoral, teve 75% de votos

conquistados na própria área de atuação local. Este vereador é

caracterizado como comunitário pela concentração de votos

obtidos e por ter recebido o mandato da liderança do seu pai,

Agostinho Moreira, que morreu durante o exercício do quinto

mandato consecutivo. Francisco Dummar – membro orgânico,

residente na base eleitoral, teve 68% de votos conquistados na

própria área de atuação local. Igual a outros, tentou várias

vezes a eleição, mas somente conseguiu êxito com a estratégia

de mudança para um pequeno partido e contando com alta

concentração de votos no seu bairro. Lavoisier Férrer – membro

orgânico, residente na base eleitoral, teve 68% de votos

conquistados na própria área de atuação local. Está no segundo

mandato, com forte atuação assistencial no bairro do Joaquim

Távora. Martins Nogueira – membro orgânico, residente na base

eleitoral, teve 62% de votos conquistados na própria área de

atuação local. Perfil político tradicional em sua atuação no

bairro da Parangaba, mas atuando em torno do lazer para jovens

e mecanismos clássicos de assistencialismo. Perde força local,

310

pois na eleição de 1996 não conseguiu se eleger e assumiu a

cadeira, posteriormente, como suplente.

A seguir reúno os vereadores num grupo em separado

porque são tradicionais pela origem e concentração dos votos,

mas, desde 1996, obtêm uma votação mais dispersa em sua

votação. Não se configuram mais como detendo uma base

eleitoral concentrada numa região da cidade. Dito de outra

maneira, eles detinham um perfil político tradicional,

entretanto, depois da eleição de 1996, passaram a apresentar

um mapa de desempenho eleitoral disperso, compatível com

vereadores não tradicionais.

Luís Arruda – está no segundo mandato e substitui o

pai, ex-vereador Ademar Arruda; obteve 55% de votos ainda numa

base local do bairro onde reside. Casimiro Neto – foi deputado

estadual, mas atualmente substituiu a mãe como candidato. Sua

mãe, Maria José de Oliveira, recebeu o colégio eleitoral,

ainda na década de 1970, do seu marido, vereador José Barros

de Oliveira. Era vereadora com 24 anos de atuação como

liderança local no bairro da Bela Vista. O filho recebeu

aproximadamente a mesma votação de sua mãe em 1996, 45% dos

votos vieram do próprio lugar de moradia. Walter Cavalcante –

está no segundo mandato; começou com uma votação fortemente

ligada ao segmento dos mutirões habitacionais da prefeitura,

mas se fixou com uma base eleitoral no próprio bairro, onde

obteve 45% dos votos. José Carlos – Cacá – este vereador

começou com forte votação concentrada na região da Lagoa

Redonda, onde residia. Desde 1996, começou a abandonar sua

base eleitoral de bairro, pois mudou-se para uma região mais

311

valorizada da cidade. Mesmo assim, permanece com uma

concentração de votos no mesmo bairro, em torno de 43%. Eurivá

Matias – este é provavelmente o caso mais exemplar dos

vereadores tradicionais. Está no quarto mandato. Recebeu o

Colégio Eleitoral do seu pai, ex-vereador Eurico Matias, mas

desde 1996 vem diminuindo sua concentração de votos na região

da sua base eleitoral – Parque Araxá e Rodolfo Teófilo. Não

mora mais no bairro e obteve ali apenas 26% da sua votação

total.

Observando o primeiro grupo dos vereadores

comunitários, constata-se, nessa eleição, que a renovação

dentro desta categoria foi de 57%. O mais interessante é que

os vereadores Luís Arruda, Walter Cavalcante, José Carlos

Carvalho e Eurivá Matias, ainda na eleição de 1996, mantinham-

se como vereadores comunitários por causa da votação bastante

concentrada. Verifica-se, porém, surpreendente mudança no

perfil do seu eleitorado. Os casos mais importantes são mesmo

dos vereadores José Carlos Carvalho e Eurivá Matias. Este

último modifica seu perfil em virtude da ocupação da Primeira

Secretaria na Mesa Diretora da Câmara Municipal.

4.6 Conquista e Manutenção de uma Base Eleitoral

Ao contrário do que muitos pensam, o vereador

comunitário, em época eleitoral, não é o típico candidato

comprador de votos. Não só porque não dispõe de recursos

financeiros para entrar no sistema de compra de votos, mas

pelo fato de realizar uma atividade constante junto à sua

comunidade eleitoral. Este trabalho mantido via estruturas

locais de assistência social à população lhe assegura um

312

retorno eleitoral em forma de voto de confiança e gratidão.

Tal prática é mantida por meio de um grande sistema de

controle de atuação política na sua área. Estruturar uma rede

social de apoio eleitoral constante fundada na troca

permanente não é suficiente para assegurar a reeleição. Isto

porque não têm como impedir a presença em sua área de trabalho

de candidatos, chamados por eles pára-quedistas. Um candidato

pára-quedista é aquele que pertence ao mesmo “campo

ideológico”. Um vereador comunitário não considera um vereador

de esquerda como pára-quedista, mas unicamente os que são ou

do seu partido ou de partidos aliados. Contudo, o pára-

quedista disputa votos dispersos do eleitorado presente na

área não subordinado mais à liderança do vereador comunitário.

Na eleição de 1996, o vereador Eurivá Matias deslocou-se um

pouco da sua área de atuação, localizada do bairro do Rodolfo

Teófilo, em direção à Bela Vista, reduto eleitoral da

vereadora Maria José de Oliveira. Este tipo de “invasão”

ocorre durante o período eleitoral, e normalmente com

candidatos que estão abandonando sua antiga base eleitoral.

Mas elas não estruturam sistemas de atendimento e assistência

social no local porque sua ação é puramente eleitoral.

O clientelismo é uma relação política de dependência

entre os membros, baseada na troca de favores, onde a

dependência dos envolvidos é mútua. Assim como o eleitor

depende de favores do líder local, ou vereador, este também se

mantém numa forte dependência do seu eleitorado. O

clientelismo defendido abertamente por muitos vereadores é

apenas o reconhecimento da sua condição de dependente das

313

lideranças locais. É o mecanismo para assegurar sua posição de

líder político local.

O controle local dos recursos públicos, que chegam às

comunidades por via de vários programas sociais do Estado, por

meio de lideranças locais, é o mecanismo para assegurar a

criação de uma rede de dependência entre os beneficiados

destes programas e seus promotores diretos. O uso político

destes recursos ocorre justamente no elo menor da cadeia da

sua implementação. Manter o controle sobre a distribuição

destes recursos é fundamental para as lideranças locais, pois

todo seu poder advém deste controle. Qualquer mudança na

natureza da distribuição, criação de regras impessoais provoca

forte reação por parte deles, justamente porque afeta seu

poder de liderança.

Em muitos casos, a rede de lideranças locais em que se

apóia o vereador é comandada diretamente por ele, mas em

alguns casos isto se faz de forma indireta, por intermédio dos

seus assessores parlamentares. São estes muitas vezes

lideranças locais que também atuam no parlamento municipal. O

vereador pode comandar pessoalmente a rede de distribuição de

favores e prestação de serviços ou pode criar um sistema de

atendimento coordenado por auxiliares diretos. Normalmente os

vereadores médicos dão assistência à comunidade durante algum

dia da semana, quando atendem gratuitamente. É uma forma de

prestar um serviço na própria atividade profissional. Caso não

possam resolver os problemas, têm uma rede de amigos médicos,

situados em diversos pontos hospitalares, com os quais podem

contar. É uma rede extremamente complexa de obrigações

314

mutuamente estabelecidas. Aquele médico que faz um favor ao

colega médico-vereador sabe que numa eventualidade poderá

contar com o auxílio do edil amigo. Para a população assistida

por ele, resta a esperança na gratidão de um atendimento

prestado sem nenhum tipo de obrigação e possível de ser

recompensado no momento devido com um voto de confiança. A

relação do representante político com seu eleitor não é de

forma alguma uma representação de interesses, mas um pacto de

ajuda mútua.

Muitos dos atuais vereadores apelam para os serviços de

lideranças locais em épocas de eleição. São líderes locais de

naturezas diversas que trabalham na conquista de voto para seu

candidato. Isto explica a dispersão de votos de muitos

candidatos. Os detentores de votos muito concentrados são

lideranças que ascenderam à condição de vereadores e ainda não

dispuseram de tempo e recursos para a montagem do mecanismo de

rede de lideranças locais. A rede de auxílio e atendimento

mantida por um vereador determina seu poder eleitoral.

Nem sempre o líder local que consegue um mandato de

vereador é capaz de mantê-lo se não souber estruturar esta

rede de atendimento e assistência social local. Willame

Correia, líder comunitário do bairro Reino Encantado,

candidato por duas vezes a vereador até ser eleito em 1996,

com uma altíssima concentração de votos – mais de 90% da sua

votação foram retirados em sua área residencial – talvez seja

o caso evidente de um líder local que conseguiu sua eleição

depois de várias tentativas. Todavia, na eleição seguinte, não

foi capaz de manter seu mandato. Não teve tempo, por causa de

315

uma eleição muito competitiva, de estruturar sua base

eleitoral. Somente as lideranças mais antigas que têm

assegurado uma rede de assistência aos seus eleitores são

capazes de preservar sua liderança. Os mais novos enfrentam

forte concorrência e, não dispondo de recursos financeiros

suficientes, não se mantêm como líderes locais. Mas os

vereadores que conquistam o mandato com o uso de lideranças

locais estão sujeitos a rompimentos de acordos. Não há

lealdade política entre as lideranças locais e os

representantes políticos, pois se trata de um negócio de

risco. Estes políticos, porém, não têm alternativa, dada a

natureza da sua representação. Ficam nas mãos das lideranças

locais. É um jogo e apostam na confiança estabelecida entre

eles.

A estrutura de clientela é estabelecida entre

indivíduos que ocupam posições assimétricas e que dependem

econômica e politicamente de outros. Para muitos deles as

relações são sempre diretas. Mas o vereador que utiliza o

mecanismo da liderança local não busca este tipo de contato

direto com a comunidade. Ele raramente vai ao encontro dos

seus representados e deixa o trabalho de convencimento e de

assistência para os amigos e auxiliares. A cadeia de relações

intermediárias na qual a liderança local ocupa um papel

importante não pode ser quebrada e precisa ser mantida. A

manutenção deste vínculo com a comunidade vai desde a presença

do vereador numa festa local, aniversário, ao apoio aos

eventos realizados na área.

316

A relação clientelista exige do vereador fornecer bens

e serviços para seus representados. Os serviços são

normalmente públicos, mas aparecem como se tivessem sido

conquistados pelo vereador por causa do seu empenho em

encaminhar as reivindicações das comunidades aos órgãos

responsáveis. Os serviços prestados pelo vereador à sua

clientela incluem levar os jovens para tirar o título de

eleitor, obter uma consulta médica, um medicamento,

regularizar uma escritura, conseguir um emprego para um filho,

uma bolsa de estudo, um enterro, uma ajuda para uma viagem de

um parente, o pagamento da conta de luz e água –pedidos

comuns, mas tudo pode ser objeto de pedido.

O clientelismo não pode mais ser entendido como se

pensava: uma relação praticada no campo tradicional e de

subjugação dos atores sociais envolvidos. Ao contrário, esta é

uma prática corrente no meio urbano onde eleitores têm acesso

às informações e por isso mesmo praticam o ato de negociar o

voto. O voto somente é objeto de negociação porque se tem uma

representação correta da sua importância e se procura obter os

benefícios privados desta relação. O clientelismo urbano

exercitado nos grandes bairros periféricos atinge um

eleitorado livre, ativo e que negocia abertamente seu poder de

escolha eleitoral. Portanto, a sedução do eleitor numa base

clientelista não pode ser feita apenas no período eleitoral.

Todo vereador, independentemente da classificação aqui

adotada, desenvolve atividades de representante do legislativo

municipal dentro da Câmara e uma atuação fora da instituição.

Muitos vereadores designam esta primeira atividade como ações

317

institucionais, pois se relaciona com o cumprimento do seu

papel de vereador, atuando nas comissões e no Plenário. As

atividades fora da Câmara dependem da natureza da

representação ou do mandato. Os vereadores comunitários atuam

no atendimento aos seus eleitores, em peregrinação pelos

gabinetes de secretários e dirigentes de órgãos públicos, na

busca de soluções para os problemas das comunidades que dizem

representar; na ação de mediador das demandas sociais de uma

comunidade junto ao poder público. Já os vereadores

ideológicos costumam participar de atividades relativas às

questões públicas mais abrangentes, manifestações públicas,

atos de protestos, etc. Não há atendimento ao eleitor

individualmente. O vereador de comunidade atua como um

despachante que atende aos pedidos do seu eleitorado pelo uso

de influência direta ou indireta de relações com diversas

autoridades. O vereador faz uma peregrinação por órgãos

públicos, buscando a solução para as demandas coletivas da

comunidade. Secretarias e agências municipais, diretorias de

hospitais públicos, casas de saúde são passagens obrigatórias

para estes “profissionais do pedido”. Aquele que um dia esteve

num ponto da rede de atendimento das demandas comandadas por

um vereador tende num dado momento a se aventurar a tentar ele

mesmo um mandato parlamentar.

A questão é como explicar o comportamento parlamentar

do vereador comunitário. A marca da política desenvolvida

pelos vereadores é o clientelismo. O governo municipal não é

constituído sobre base partidária, mas na troca de favores dos

representantes do executivo em relação aos membros do

318

legislativo. Este tipo de relacionamento é justificado pela

natureza do poder do legislativo, o que explica a necessidade

de constante alinhamento de um vereador em relação aos

interesses do poder executivo, abdicando na maior parte das

vezes de cumprir sua função de fiscalizador do poder

executivo.

A sobrevivência política, a necessidade de manter uma

base eleitoral sempre alimentada em serviços e bens exige do

representante um tipo de comportamento de dependência política

em relação ao chefe do executivo. Parte da demanda do seu

eleitorado não pode ser atendida diretamente por seu próprio

financiamento. Por isto, é preciso usar o dinheiro público de

forma privada.

Neste sentido, uma função importante a ser

regimentalmente cumprida pelo vereador é a de fiscal do poder

executivo. Mas esta função raramente pode ser exercida pelos

vereadores tradicionais, pois, para manter sua base, precisam

do apoio do prefeito. Deixam de acompanhar as ações

fiscalizadoras do poder executivo porque assim asseguram

benefícios para seu eleitorado. Acompanhar as ações do poder

executivo exige independência do mandato. Qualquer laço de

dependência material do representante com o eleitor pode

pressioná-lo a agir em oposição ao que determina a lei. Não se

pode imaginar uma ação parlamentar presa aos interesses

“paroquiais” de uma comunidade qualquer de interesses.

Por todas estas observações, posso assegurar que em

Fortaleza se assiste ao abandono da identificação local,

territorial de bairro, como critério para o desempenho

319

eleitoral. Os representantes locais estão buscando cada vez

mais formas dispersas de representação. Isto exige da parte

deles mais condições materiais para esta independência do

eleitorado. Os muito dependentes de uma base eleitoral

concentrada estão sujeitos aos interesses imediatos dos

eleitores dispersos e sempre ávidos por algum benefício. O

custo da manutenção de uma base eleitoral é muito alto, pois

requer constante presença na área. Todos os problemas da

comunidade devem passar por ele. Este custo não é somente

material e financeiro, em parte coberto pelo poder executivo,

mas principalmente de empenho permanente.

Representar segmentos diversos parece ser a forma mais

corrente de os vereadores atuarem, pois a representação de

única região da cidade, uma comunidade determinada, é muito

perigosa e sempre sujeita ao descontentamento do eleitorado.

Para evitar a estreiteza da representação que aumenta

enormemente o trabalho do representante, opta-se por uma

representação mais difusa de segmentos variados. São poucos os

vereadores que atualmente retiram seus votos de fonte única.

Os que no passado a obtinham do segmento comunitário ampliam

hoje sua área de atuação, enquanto outros buscam a

identificação com segmentos profissionais ao longo do mandato,

com vistas a votos futuros.

Os vereadores que se apresentam ao eleitorado

representando valores precisam ter uma base institucional

organizada para assegurar-lhes apoio sólido. Machadinho,

vereador do PFL, apresenta-se como o defensor dos deficientes

físicos. O slogan de sua campanha é “a força da reabilitação.”

320

Mas isto só não basta. Ele vale-se de outros recursos, como a

estrutura institucional, usada durante o período eleitoral

para organizar e mobilizar um eleitorado potencial, que são os

que passam e passaram pelos centros de reabilitação.

O trabalho de um candidato, independente do seu perfil

político ideológico, é feito a partir da sua trajetória de

vinculação a uma organização social, a qual permite uma base

de mobilização eleitoral. Tanto maior e mais identificado seja

com o segmento, mais chances de conseguir ser eleito com os

votos de único segmento. A probabilidade de eleição está

relacionada com o poder de representação do segmento que ele

pretende representar e de quantos candidatos reivindicam o

direito de representá-lo. Um candidato que se apresenta

unicamente como representante dos motoristas de táxi pode ser

eleito caso não haja um concorrente disputando a mesma

identificação e ele seja reconhecidamente autorizado a ocupar

esta função. Mas se o segmento social não se identificar com

ele, não há eleição possível.

Os vereadores de comunidade estão sujeitos aos

interesses da sua comunidade sentimental e isto os impede

realizar um mandato independente. Os candidatos que buscam uma

identificação com uma área de atuação geográfica discursam

sempre como aqueles que passaram a atuar como mediadores entre

os interesses da comunidade e o poder público. A promessa é

sempre a mesma: lutar por investimento e melhoria das

condições de vida da população da área. O vereador de

comunidade é o mais prisioneiro dos interesses do eleitorado,

pois se submete a uma espécie de ditadura do eleitor.

321

4.7 Vida e Morte do Vereador Comunitário

Na sua atividade parlamentar, o vereador exerce uma

ação relativa à legislação e criação de normas, regulação de

atividade de competência regulatória do município. Em parte,

sua atividade limita-se à denominação de ruas, logradouros

públicos, nomes de praças e trechos de área da cidade. Mas há

também a concessão de títulos de cidadania ou medalhas a

personalidades escolhidas por eles maneiras usadas para

contemplar sua clientela e seu eleitorado.

Os vereadores exercem também uma atividade social. Esta

varia profundamemente, de acordo com o perfil ideológico do

parlamentar. Eles podem se dizer preocupados com os problemas

da cidade; que trabalham para a cidade e seu povo; que

representam os interesses do povo. Tudo isso de forma

abstrata.

Alguns vereadores são membros ativos políticos, isto é,

acompanham o processo de organização de comunidades e procuram

auxiliar os movimentos sociais. Este auxílio pode ser

material, com algum tipo de ajuda financeira. Outras vezes

eles usam a tribuna e o espaço de que dispõem na imprensa como

parlamentares para chamar a atenção do povo sobre algum

problema que afeta setores ou segmentos da sociedade. Não é

apenas um membro do parlamento local que pede uma audiência

com a autoridade do executivo, responsável pela solução do

problema. Ele serve de canal e mediador entre as necessidades

das comunidades e o poder público. Esta ação não é direcionada

para a conquista do voto, nem se volta para um eleitorado da

322

sua base parlamentar. O contato do representante com seu

eleitorado varia conforme sua natureza política. Um vereador

de comunidade tende a não se afastar jamais da sua base de

sustentação, pois precisa estar sempre presente e disposto a

resolver os problemas da sua área de atuação. Aqueles cujo

mandato é mais voltado para um segmento social profissional

também procuram manter um contato constante, mediante boletins

e jornais que possam informar os seus eleitores sobre seu

trabalho na Câmara. Hoje se usa muito a Internet para prestar

conta do mandato ao eleitor.

Por causa das exigências do atual trabalho legislativo

a categoria do vereador comunitário entra em declínio. Exige-

se, também, mais preparo técnico da sua equipe de assessores

parlamentares, impedindo a elevação muitas vezes do auxiliar

eleitoral à condição de assessor parlamentar. A cobrança e o

controle deste vereador, por parte da opinião pública,

impossibilitam-no ter uma ação direcionada unicamente para sua

base eleitoral. Além disso, a amplitude da ação do poder

público, circulação maior de informações e a definição de

regras para concessão e acesso de benefícios públicos

dificultam a manutenção de estruturas locais de

assistencialismo por parte destas lideranças.

A fragilidade e provável declínio de liderança do

vereador comunitário se expressaram na eleição passada, quando

um deles, liderança das mais antigas do bairro Antônio

Bezerra, desiste de ser candidato; outra passou a candidatura

para o filho, ex-deputado estadual, e, por fim, a não-eleição

de um dos mais antigos vereadores comunitários de Fortaleza.

323

Ao mesmo tempo, verificamos o abandono de bases comunitárias

de algumas antigas lideranças. Tudo isto ocorre concomitante

ao fortalecimento do vereador do tipo institucional. A mudança

de liderança tradicional comunitária, que parece estar

ocorrendo em Fortaleza neste momento, pode ainda ser entendida

pelo esgotamento desta própria liderança, dinâmica de

circulação de elites, mas também pelo efeito da mudança

institucional na descentralização administrativa recentemente

implementada na prefeitura de Fortaleza. Não se pode negar

também a modernização de procedimentos na atuação pública, que

incapacitou estas antigas lideranças de atender às novas

demandas do seu eleitorado. Embora estes fatores apontados

para o declínio da liderança do vereador comunitário não sejam

excludentes, podem ser complementares e agir numa mesma

direção.

O vereador com identificação em segmento de interesses

e que retirou seu voto de grupos organizados tende a usar mais

na sua atividade parlamentar os instrumentos legais facultados

pela ocupação do cargo. Estes desempenham de forma mais

interna seu mandato por meio de uma atuação constante na

tribuna, nas sessões legislativas e nas comissões técnicas da

Casa. Esta é uma forma de agir usando os instrumentos legais

disponíveis no cumprimento do seu mandato parlamentar.

No entanto, o vereador tradicional atua de forma

oposta. Tem pouco apreço pelo trabalho parlamentar, de

plenário e comissões técnicas. Acredita que seu trabalho é

feito fora da Câmara junto às comunidades locais que dizem

representar. Segundo uma vereadora afirmou em entrevista, às

324

vezes tinha muita dificuldade em abandonar sua residência onde

atendia seus “paroquianos” (expressão usada por ela) e ir para

as sessões na Câmara. Tomava esta parte do desempenho

parlamentar do vereador como um fardo.

Os vereadores desempenham seu mandato de acordo com a

natureza da sua base parlamentar. Aqueles que tiveram votação

dispersa e representam interesses de comunidades ideológicas

agem usando os instrumentos legais disponíveis na Casa

Legislativa; os que representam interesses “paroquiais” de

pequenas comunidades locais desempenham seu mandato

diretamente na sua área de atuação e influência. Os vereadores

representam interesses de várias naturezas, desde uma pequena

comunidade local até comunidades de valores. Mas a natureza da

sua representação e o modo como fizeram a campanha determinam

em grande parte o tipo do seu desempenho no legislativo

municipal.

Desse modo, a natureza do voto do vereador comunitário

reflete-se na sua atuação parlamentar, pois ele pauta sua

atuação institucional pelas regras da convivência pacífica e

troca de favores com o poder executivo. A posição de vereador

não é senão uma forma de exercer uma profissão bem remunerada.

Não há outro propósito em seu desempenho parlamentar. Os

vereadores tradicionais que atuam numa comunidade de área

reduzida estão constantemente em busca de melhorias para sua

área e se preocupam pouco com o debate mais geral sobre os

problemas da cidade. Voltam sua atenção principalmente para a

comunidade de interesse ou área onde foram bem votados.

325

Exercem seu mandato orientados pelo eleitorado desta área ou

pela comunidade de interesse restrito.

Já o vereador ideológico tem um mandato mais

independente, pois é normalmente eleito por uma comunidade de

indivíduos com escolaridade mais elevada, com renda mais alta

e que não dependem de favores de uma liderança política. Esta

só recorre a um representante parlamentar em caso de um

problema coletivo que exija a mediação de um parlamentar.

Os vereadores tradicionais costumam criar algum tipo de

instituição que permite realizar o trabalho social de

assistencialismo à população da sua área. Esta rede de

assistência inclui normalmente ambulâncias e carros para o

transporte das pessoas. A força de um líder local e de um

vereador é expressa pela capacidade de atrair recursos e

investimentos do poder público para sua área. O vereador

tradicional precisa convencer o prefeito a efetuar obras

coletivas em sua área; são os dividendos que procurará

explorar na sua campanha seguinte. Sem o mecanismo de troca de

favores, o vereador tradicional está sujeito a perder seu

mandato.

4.8 Homens de Partido: O Vereador Ideológico (Ética da

Convicção)

O segundo grupo de vereadores é caracterizado por

pertencimento ideológico a organizações partidárias ou

profissionais. Mesmo sem me deter na determinação aprofundada

326

dos vínculos de cada vereador deste grupo, gostaria apenas de

mencionar esquematicamente aquilo que julgo ser sua fonte de

votação. José Airton – sustentação de base ideológica

partidária e mídia. Nelson Martins – corporação bancária e

mídia. Luizianne Lins – corporação estudantil e mídia. Lula

Morais – corporação partidária. Gelson Ferraz – membro da

Igreja Universal. Jaziel de Souza – membro de uma Igreja

Evangélica. Rogério Pinheiro – corporação sindical e

partidária. Pastor Alexandre - membro da Igreja Universal.

Paulo Mindello – membro do Movimento Católico Carismático.

José Maria Pontes – médico com trabalho disperso. Coronel

Leonel – corporação militar. Machadinho – rede de atendimento

da ABCR.

De acordo com a observação sobre o grupo dos

ideológicos e de corporações, eles tiveram uma renovação muito

próxima da dos comunitários, em torno de 58%. Como os

vereadores de corporação e os comunitários são os que detêm

mandatos eletivos mais próximos do padrão imperativo, são eles

os mais sujeitos a não terem seus mandatos renovados pelas

respectivas comunidades de interesses. Neste aspecto, mais uma

vez, os vereadores corporativos se assemelham aos

comunitários.

4.9 Homens de Governo: O Vereador Institucional (Ética da

Responsabilidade)

A figura do representante político institucional não é

certamente uma novidade nem na política nacional nem na

municipal. Não se trata de encontrar a novidade política desta

327

categoria de representantes. O técnico que serve à

administração pública e depois, apoiado pelo líder político a

quem serviu, lança-se na disputa por um cargo eletivo, tem

longa história no Ceará e no Brasil. Na história mais recente

do Estado, há uma geração inteira de técnicos formados no

Banco do Nordeste que depois servem ao governo estadual e,

posteriormente, seguem o caminho da política eleitoral. No

âmbito municipal, a meu ver, isto somente vai ocorrer na

década de 1990. Os quadros dirigentes da administração pública

municipal em Fortaleza, ao longo de muitas décadas, foram

recrutados entre pessoas indicadas por políticos partidários.

Raramente encontramos indivíduos que depois de assumirem

funções de secretário municipal lançam-se na vida política

eleitoral. Somente recentemente este fenômeno está ocorrendo.

Há maior circulação de funções do legislativo municipal para o

executivo e da máquina administrativa para a função

legislativa.

Na eleição, o vereador institucional não é detentor de

um segmento social no qual atua. Esse grupo de vereadores tem

sido dominado por médicos, mas que não representam a categoria

médica. Na campanha eleitoral, habitualmente, procuram

associar sua imagem à do candidato majoritário. A presença

mais acentuada de médicos na categoria de vereador

institucional deriva justamente da sua condição anterior de

dirigente ou ocupante de posto na administração pública na

área de saúde.

O fenômeno da clientela e das relações de clientelismo

refere-se a estruturas sociais tradicionais, embora em

328

sociedades que se modernizam, existe igualmente a dificuldade

de romper com os vínculos remanescentes de uma época quando a

dominação não passava pelo aparelho público, mas pela

intervenção direta do líder político. A dependência de alguns

indivíduos de outros com posição e recursos mais elevados

significava uma relação que se estendia para a dominação

política. No entanto, a mudança significativa das condições de

vida em diversas áreas de dominação tradicional vai corroendo

a base da dominação local do vereador tradicional. Eis o

paradoxo do vereador tradicional – ele não pode assegurar sua

dominação sem trazer melhorias de vida para a sua área; ao

fazer isto, ele permite uma autonomia destas pessoas e sua

dominação estará em colapso no futuro. Todavia, não pode ser

de outro modo, caso contrário, não mantém sua liderança no

presente. As lideranças tradicionais devem fazer melhorias de

vida na área onde vivem, mas não a ponto de comprometer sua

dominação clientelista.

Isto permite entender por que algumas lideranças

tradicionais antigas deixam aos poucos sua dominação

tradicional em uma área e passam a agir em toda a cidade. O

controle de área única é arriscado e pode ser minado por outra

liderança mais importante. Para assegurar, então, sua

sobrevivência política, apelam para a ampliação da sua

dominação política. Aqui, porém, já não atuam diretamente, mas

por intermediários locais, seus representantes diretos nestas

comunidades.

Embora as relações clientelistas sejam típicas de

sociedades tradicionais, a modernidade e as sociedades em

329

transição podem ainda conviver por algum tempo com este

fenômeno. O clientelismo é um mecanismo de proteção social

contra a rapidez das mudanças operadas na sociedade.

Relações tradicionais e aparelho administrativo

centralizado não combinam e entram em colisão. Em cada região

da cidade, as lideranças tradicionais tratam de sobreviver no

novo ambiente e assegurar a manutenção das formas

preexistentes. O vereador da área precisa continuar como

mediador e alocador privilegiado dos recursos públicos

canalizados para esse espaço.

As novas formas de comando moderno tendem a pressionar,

modificar e romper os antigos vínculos de dominação local.

Entretanto, a ruptura da rede de vínculos entre moradores de

uma área da cidade e seu representante político local – o

vereador comunitário – não se faz sem conflito. Esta ruptura

nem sempre é completa, pois pode ocorrer apenas a mudança de

liderança local ou uma acomodação de novas formas de relação

às antigas.

A descentralização administrativa da prefeitura de

Fortaleza deveria ter provocado forte ruptura na rede de

vínculos clientelistas com o vereador da área. Isto

aparentemente só ocorreu no bairro do Montese. Entrementes,

quando em outros bairros, houve mutação da liderança

tradicional.

Desse modo, o sistema de rede de vínculos clientelistas

espalhado pela cidade e comandado por vereadores não foi

destruído, mas adaptado, coligado com as novas forças

330

emergentes. Nesse contexto, as antigas lideranças passaram a

ocupar uma posição de subordinação dentro da nova ordem

municipal, continuam dentro da rede clientelista, mas perderam

muito poder. Como assinalei, a desistência do vereador Edgar

Mendes de se candidatar novamente, a morte do vereador

Agostinho Moreira, a substituição da vereadora Maria José pelo

filho Casimiro Neto, a não- eleição do vereador Narcílio

Andrade, o abandono, aos poucos, da liderança localizada nos

bairros Parque Araxá e Rodolfo Teófilo, do vereador Eurivá

Matias, e o mesmo fenômeno com o vereador Antônio Carlos, na

Lagoa Redonda, são exemplos do declínio das antigas lideranças

comunitárias da cidade.

A dominação em rede de clientelas torna-se cada dia

mais difícil de se manter. É preciso muito esforço, trabalho

constante para preservar uma base eleitoral em forma de área

geográfica. Hoje a maneira mais usada é conjugar uma parcela

da dominação local na área e dispersar sua liderança por

outras esferas de relações.

Atualmente, a figura mais importante na dominação local

é o vereador institucional. Ele tem um vínculo apenas

momentâneo com algumas comunidades organizadas, portanto, não

mantém uma vinculação orgânica. Aparece como representante e

deixa um representante orgânico presente na comunidade, de

modo que pode assegurar a dominação usando intermediários. A

base territorial não deixa de existir, muda apenas o agente

controlador.

Por ser membro residencial, o vereador tradicional é um

líder orgânico da sua comunidade. Atualmente, quase a metade

331

da Câmara de Vereadores é formada de representantes com

vinculação orgânica ao grupo social com o qual se identificam.

Eles são representantes orgânicos no sentido de que sua maior

base de apoio eleitoral se deve à sua vinculação com

determinado grupo social.

Segundo afirmei, muitos desses grupos sociais

organizados não têm interesses imediatos no trabalho do

legislativo. Como enfatiza Nelson Martins, em entrevista, sua

base eleitoral dos bancários não depende das decisões do

legislativo municipal. Isso porque as leis que regulam a

atividade do sistema bancário não são atribuições do poder

municipal. O mesmo fato se verifica com os grupos religiosos.

As atividades destas comunidades não são afetadas diretamente

por legislação oriunda do poder legislativo municipal.

Sua vinculação orgânica será, então, apenas um meio de

ascensão política de um grupo ao legislativo? É o mesmo Nelson

Martins que, na entrevista, orienta quando assinala que os

bancários, depois de terem sucessivos candidatos apresentados

como identificados com a categoria, só se mobilizaram para a

eleição de um bancário para o legislativo no exato momento de

crise, demissões e forte pressão sobre os empregos.

Com a representação da Igreja Universal verifica-se a

mesma situação. Eles não devem estar lá somente para assegurar

uma posição de poder na sociedade. Por serem perseguidos,

acumulam força na disputa eleitoral e decidem ampliar seu

poder social no controle do governo por meio de uma

participação mais efetiva no jogo político municipal.

332

Podemos afirmar que a Câmara de Vereadores de Fortaleza

constitui um espelho da sociedade? Ela é, como ressalta em

recente entrevista um membro da Casa, “uma miniatura da

sociedade”. O vereador que deveria representar o povo passa na

verdade a ser representante do governo, deixando de

representar as categorias e os segmentos sociais de onde

obteve expressiva votação.

Esta foi a constatação de um vereador sobre o

comportamento parlamentar dos seus colegas. Conforme ele

assegura, o vereador não representa nem os interesses do povo

nem os dos segmentos sociais onde foi mais votado. O vereador

representa o poder executivo, o prefeito dentro da Câmara.

O certo é que se distinguem as duas formas de ação de

um parlamentar local: institucional e social. A primeira e

mais importante atividade do vereador é comprometida em seu

exercício no cumprimento da segunda, enquanto a segunda, para

muitos vereadores, é praticada na base do clientelismo. Para

que isto se faça, uma função institucional básica deve deixar

de se cumprir: fiscalizar as ações do poder executivo, do qual

provém parte dos recursos utilizados para dispor de serviços

para sua clientela.

4.10 O que Representa um Vereador Institucional

Outro tipo de vereador é o institucional. Se os dois

grupos de vereadores, o comunitário e o ideológico, são de

fácil identificação, os institucionais são de difícil porque

mantêm um comportamento parlamentar conservador, tendo,

paradoxalmente, uma votação dispersa. A característica deles é

333

o fato de entrarem na política por meio de uma instituição

pública ou privada, a exemplo de; Iraguassu Teixeira – médico;

Heitor Férrer – médico; Adelmo Martins – médico; Gláuber

Lacerda – médico; Lucívio Girão – médico, direção hospitalar;

Magaly Dantas – médica e rede de atendimentos; Elpídio

Nogueira – médico; Nelba Fortaleza – Regional VI – prefeitura.

Idalmir Feitosa – segmento de ônibus; Francisco Caminha –

assistência de comunidades; Germana Soares – serviço eleitoral

de lideranças; Régis Benevides – máquina da prefeitura; Ageu

Costa – meios de comunicação e prefeitura; José Maria Couto –

prefeitura; Marcus Teixeira – máquina da prefeitura; Carlos

Mesquita – máquina da prefeitura; Marcilio Catunda –

assistência comunitária.

Nesta categoria encontra-se o maior número de

vereadores médicos e muitos que atuaram como dirigentes de

hospitais públicos. Este bloco de vereadores foi o que menos

passou por mudança. Houve uma renovação de apenas 27% em suas

lideranças e o bloco ampliou sua base de sustentação para

outros segmentos sociais.

A ação parlamentar de um vereador é feita de duas

formas. Uma é o trabalho legislativo propriamente dito, o

cumprimento do exercício do seu mandato confiado pelo eleitor.

Outra é uma atividade externa ao trabalho legislativo. O modo

como se desincumbe desta tarefa depende enormemente da

natureza da base social que representa. O de perfil

tradicional e que mantém reduto eleitoral definido em uma área

da cidade possui uma rotina de atendimento aos eleitores e uma

peregrinação aos órgãos do governo, encaminhando as

334

solicitações dos eleitores. O de perfil ideológico e

progressista atua nos diversos setores organizados da cidade

por intermédio da participação em assembléias, reuniões de

discussões com grupos variados que lutam e reivindicam algo ao

poder público. Observa-se nítida distinção entre as duas

categorias de representantes no entendimento do modo como

devem desempenhar o mandado eletivo. O vereador de perfil de

voto tradicional e concentrado tende a ter pouco desempenho no

trabalho institucional, preferindo a atuação nos bairros,

agindo como intermediário na solução de problemas de natureza

individual e, às vezes, coletiva. Enquanto isso, o

representante ideológico atua na defesa de prerrogativas de

natureza institucional, isto é, procura desempenhar função

dentro da estrutura legislativa.

A democracia partidária tende a induzir o representante

político a se submeter ao princípio da fidelidade partidária.

Isto criaria de forma indireta o mandato imperativo, pois o

partido deteria o direito de cassar o mandato do parlamentar

caso ele discordasse das suas posições programáticas.

Entretanto, de alguma forma, encontra-se a presença de um

mandato imperativo sendo exercido, embora a lei não permita,

pelos representantes das comunidades locais. Não há

explicitamente um vínculo jurídico que faculte ao eleitorado a

revogação do mandato do representante, mas temos, na prática,

com a reeleição, esta possibilidade e assim aconteceu nestas

comunidades locais. O vínculo do representante com seus

representados se romperia quando aquele não gozasse mais da

335

confiança destes e não correspondesse mais às suas

expectativas.

Desde o início, o representante político local que

deveria gozar de liberdade de ação nas suas deliberações

legislativas está preso a uma série de interesses e procurando

sempre manter seu lugar. O representante político, que se

apóia num corpo político eleitoral limitado, sente-se

igualmente responsável apenas pelo que se passa com este

segmento social que julga representar e defender. Não se

percebe mais como representante de toda a coletividade, mas

daqueles dos quais retirou sua investida na função.

O retorno do mandato imperativo, constatado na

representação política local, pode ser explicado pela

fragilidade das organizações partidárias e a necessidade de

assegurar a manutenção da sua posição de líder político local.

Atualmente, o vereador-delegado é representado na

Câmara por dois tipos de vereadores: os comunitários e as

corporações profissionais, correspondentes às comunidades

sentimentais. Estes vereadores são delegados no sentido de que

“foram indicados por uma entidade que já tem opinião formada

sobre todas as questões a serem tratadas, incumbindo-os de

representá-las, de falar, se necessário, e de votar em defesa

dos seus pontos-de-vista”. (FIELD, 1959, p. 160). Segundo este

autor, que contrapõe o delegado ao representante no governo

representativo, o representante é aquele escolhido como o

melhor para a missão de representar, mas está completamente

livre para discutir e votar de acordo com suas convicções.

336

Quanto maior o número de pessoas envolvidas na escolha

de representantes e menor o conhecimento dos eleitos, maior o

risco deste representante orientar-se unicamente pelo seu

interesse, não dando a mínima atenção para a função

representativa. Neste sentido, os vereadores comunitários e os

de corporações estão mais aprisionados à sua representação

política, exercendo um mandato imperativo, na prática.

Enquanto isso, os vereadores institucionais poderiam exercer o

mandato de forma livre, mas não o fazem precisamente por causa

da sua sustentação eleitoral no poder executivo. Em certo

sentido, todos os vereadores da Câmara Municipal de Fortaleza

exercem um mandato imperativo com pouca margem de poder

autônomo.

Um vereador institucional é destituído de uma base

social de representação política. Sua atuação, desde a época

da eleição, é forjada como representante do poder executivo.

Atua em decorrência do prestígio da administração no poder,

retirando sua força eleitoral desta aproximação. Para este

tipo de vereador, o alinhamento com o executivo é uma questão

de sobrevivência política. Amplia seu poder não em virtude de

inserção na sociedade, mas na defesa aguerrida dos interesses

do poder executivo e também por forte atuação dentro do

legislativo municipal. É surpreendente a atuação de dois novos

vereadores de Fortaleza – Agostinho Moreira e Ageu Costa – os

quais, nos debates na Câmara, assumem uma postura de defesa

dos interesses da prefeitura muitas vezes mais virulenta do

que os líderes do prefeito. Outro caso exemplar é o do

vereador Eurivá Matias que, depois de assumir a Secretaria da

337

Câmara, na legislatura passada, foi aos poucos se desprendendo

da sua antiga base eleitoral nos bairros.

É justo dizer que o fortalecimento do município - como

unidade de governo - ocorrido com a Constituição de 1988 e a

implementação da descentralização e transferência financeira

para estas unidades consolidou a força do poder executivo

local. Em seguida, na década de 1990, a reforma do Estado,

implementada nacionalmente, implicou a modernização de alguns

procedimentos na esfera pública. Ao lado de tudo isto, em

Fortaleza assistiu-se a uma reforma administrativa, com a

criação de secretarias regionais, dividindo a cidade em seis

zonas. Tudo isto veio a fortalecer o poder do prefeito. Estas

mudanças institucionais são importantes fatores na explicação

do declínio do poder tradicional do vereador comunitário, pois

este se verifica concomitante ao fortalecimento do vereador

institucional.

A meu ver, o poder do vereador com maior dependência da

máquina da prefeitura se amplia. Agora não se trata mais de um

processo de cooptação, ocorrido após o pleito, para composição

de uma base de sustentação parlamentar para o prefeito, e sim

do esforço para assegurar esta dependência e representação

direta, já durante o período eleitoral, com candidatos

fortemente vinculados ao poder executivo. A origem do poder do

vereador institucional denota que o poder executivo é hoje

detentor de quase todo o poder local, não dando mais margem

para atuação autônoma de vereadores de feição tradicional e

comunitária. A conseqüência mais imediata para uma

representação política constituída na base de vereadores

338

institucionais são o comprometimento absoluto da autonomia do

poder legislativo e a conseqüente impossibilidade de cumprir

um dos pilares da divisão do poder: a fiscalização constante

dos atos do executivo.

Se existe o declínio de um tipo de liderança

tradicional no legislativo municipal de Fortaleza, isto não

decorre unicamente das dificuldades de se continuar mantendo

um reduto eleitoral fechado, mas, principalmente, da expansão

de oferta de bens públicos. Em grande parte, esta expansão se

dá na base de programas dos governos federal e estadual nos

quais as regras de concessão dos benefícios já estão

definidas. Isso estreita a margem de atuação de políticas

clientelistas. Diminuir os espaços do arbítrio pessoal na

concessão do bem público apenas um dos elementos deste

complexo processo de transformação social ora vivido pela

sociedade; ainda não significa, definitivamente, sua extinção.

A complexidade da atuação exigida pelo novo quadro

institucional criou uma figura correspondente no plano

político. Conforme evidencia a atuação da liderança

institucional, as formas clássicas de clientelismo não podem

mais existir abertamente, pois ampliando-se os espaços

democráticos e competitivos na sociedade, haverá,

inevitavelmente, o declínio de formas tradicionais de atuação

política.

A dinâmica eleitoral raramente coincide com o

desempenho parlamentar. Um candidato a vereador sabe que, para

assegurar sua eleição, necessita ter uma comunidade de

identificação explícita, aquela para quem fala e trabalha. Mas

339

já não pode situar esta comunidade numa base territorial

porque os laços de identificação e as exigências deste

eleitor-morador são, muitas vezes, de alto custo financeiro.

Outro elemento precisa ser ressaltado para se poder entender o

que se passa no universo da política municipal de Fortaleza.

Como o retorno à vida democrática permitiu uma freqüência de

eleições a cada dois anos, isto forjou uma camada de

lideranças comunitárias intermediárias que são a base de

sustentação eleitoral do vereador institucional. Esta

liderança comunitária não é o tradicional cabo eleitoral, pois

detentora de poder e controle de certos benefícios ofertados à

sua comunidade. Entre o eleitorado disperso e o político em

busca de voto e apoio político, encontra-se estruturada uma

rede de lideranças comunitárias pronta para servir ao primeiro

que chegar e aceitar a proposta financeira mais tentadora.

Trata-se de um círculo de líderes sustentados com as eleições

periódicas.

O líder institucional é fruto de maior diferenciação

social. Ele representa o estado de desenvolvimento em que a

sociedade se encontra; permite a emergência de uma

representação do tipo burocrática que trata a representação

não mais com laços tradicionais, mas com forte ênfase em

trocas mercantis. Não sugiro que sua base eleitoral seja toda

sustentada na troca monetária, mesmo porque ele não teria

recursos suficientes para este ônus. Contudo, uma parte

considerável deste encargo com a manutenção desta base de

sustentação é feita pelo controle da máquina pública. Alguém

poderia, com justeza, dizer que este fenômeno não tem

340

absolutamente nada de novidade na política brasileira. O

Estado cartorial foi caracterizado pelo controle sobre

recursos públicos disponíveis e sua distribuição de acordo com

critérios pessoais. Afirmo apenas que existe a criação de um

círculo de dominação mais estreito entre o poder instituído e

uma parcela muito ampla da população periférica. O governo

populista do PMDB em Fortaleza sustenta-se nesta vasta rede de

apoio eleitoral, calcada na miséria e na reprodução de

pequenos interesses. No comando desta vasta rede de

interesses, está um grupo de vereadores que denomino de

institucionais.

A história do poder municipal no Brasil é atravessada

pela contradição entre ser este poder de natureza política ou

administrativa. De um lado, os defensores de uma limitação do

espaço de política municipal com a constituição de governos

administrativos; de outro, os que acreditam ser preciso

constituir no município a primeira escola da democracia. O

atual mecanismo de vereadores institucionais não deixa de

indicar uma forma de superar o impasse pela introdução da

política, controlada, no entanto, por representantes gerados

no interior da máquina partidária e administrativa.

4.11 O Novo Mercado de Votos

As trocas eleitorais no tempo das eleições não são

idênticas às práticas fora deste tempo. É muito raro encontrar

um candidato que retire sua representação de interesses de uma

única forma. Quase todos se utilizam dos meios disponíveis

para extrair o voto do eleitor. Não se busca na maior parte do

tempo uma representação do interesse na qual ele se apresente

341

como um simples canal de expressão dos interesses organizados.

Mesmo os parlamentares de feição mais corporativista não

mantêm uma sólida base de sustentação eleitoral no sentido de

cultivarem contatos freqüentes e corriqueiros com seu

eleitorado. As idas às festas de categorias expressam muitas

vezes o seu pertencimento à categoria e são tidas como uma

forma de contado, pois aí sempre se discutem os principais

problemas da cidade e se procura saber a opinião do seu

representante.

Outros parlamentares agem de forma dispersiva nas

eleições, pois mesmo dominando uma rede de representação

preferem atuar por fora, porquanto não há certeza de serem

plenamente aceitos na eleição. Um parlamentar local já

detentor de vários mandatos sustenta-se numa rede ampla de

apoio ao esporte amador nos bairros. É um trabalho que não se

expressa jamais como representação de interesses, pois estas

ligas esportivas não agem em nenhum momento como grupos

sociais estritamente falando, não chegam a se constituir em

atores sociais propriamente ditos. Desta impossibilidade, o

parlamentar pode ser o elo entre os interesses dispersos, mas

não expressos em interesses definidos.

Vereador de bairro são os candidatos que recebem uma

votação concentrada de votos, proporcionalmente elevada, numa

mesma área geográfica que coincide com seu lugar de moradia.

Com os eleitores que o procuram, estabelecem laços de amizade

e de troca, atendimento de favores diversos. Tudo isso sem

horário reservado. Sua casa está sempre aberta ao atendimento

do eleitorado. Engajam-se em relação ao poder público,

342

principalmente na defesa de benefícios concretos para esta

área e pelo auxílio aos que o procuram em busca de solução

para pequenos problemas.

Vereador de segmento social são candidatos que se

apresentam como defensores de categorias profissionais

organizadas ou de causas sociais como educação, saúde,

transporte, trabalho. Estas são atividades que encontram na

Câmara Municipal defensores de seus interesses coletivos.

Esse tipo de candidato recebe uma votação expressiva

diretamente da categoria social à qual pertence,

principalmente quando já exercem liderança. Lula Morais, por

exemplo, recebeu uma grande quantidade dos seus votos dos

funcionários da Cagece porque foi médico e membro do sindicato

dessa categoria. Sua votação não pode ser considerada

monopólio dessa representação política porque Sérgio Novais

também disputa no mesmo segmento a liderança política. Outro

vereador, Carlos Mesquita, tem boa aceitação entre determinada

categoria profissional dos eletricitários da Coelce por ter

sido funcionário dessa instituição. Na condição de membro de

uma instituição apresenta-se como canal para defender os

interesses coletivos dessa categoria. As organizações

sindicais e profissionais ou de outros segmentos sociais

mantêm ligações com estes representantes.

Como uma subcategoria dos representantes de segmentos

sociais não poderia deixar de mencionar a forte presença de

votos concentrados de natureza religiosa. Parlamentares que se

apresentam como defensores de certos interesses religiosos

ocupam atualmente expressivo número. A identificação religiosa

343

é um critério importante ao se escolher o candidato a

vereador, mas isto pode ser menos pela identificação

propriamente dita e mais por se preferir eleger alguém com

maior proximidade afetiva. Menos que um voto baseado na

identificação religiosa, expressando seus valores religiosos e

a preferência por uma política orientada por estes valores,

pode ser mais a oportunidade de acesso por meio deste

político.

Na Câmara Municipal de Fortaleza na eleição de 2000,

havia cinco vereadores que proclamavam seu pertencimento a

agrupamentos religiosos. Paulo Mindello, Alexandre de Jesus,

Gelson Ferraz, Elpídio Nogueira e Jasiel Pereira são os

vereadores com filiação religiosa ou com base eleitoral em

movimentos religiosos. São votos dados numa proporção muito

elevada em virtude do pertencimento a certa religião.

Os vereadores institucionais são os que atualmente

ocupam grande parte dos acentos no legislativo municipal.

Alguns não exercem unicamente a função de vereador, políticos

profissionais, pois continuam exercendo atividades

profissionais anteriores. A grande diferença destes em relação

aos demais é que não mantêm ligações com corporações

profissionais, nem bairros, pois moram em áreas mais nobres da

cidade e têm uma votação dispersa em pequenos núcleos. Mantêm,

no entanto, forte dependência da máquina administrativa de

obras do executivo.

Estas são as três modalidades ou padrões de

representação política atualmente existentes no legislativo de

Fortaleza.

344

As lideranças comunitárias com mandato parlamentar

precisam ser fiéis aos seus eleitores. Neste tipo de liderança

predomina uma característica mais marcante: sua submissão à

vontade do eleitor. Há nela uma autonomia mínima. O vereador

torna-se um meio de atrair benefícios para a comunidade e para

indivíduos isolados. Por isto, a manutenção desta posição de

liderança depende diretamente do seu poder de continuar

fornecendo os bens exigidos pela comunidade. A expectativa dos

eleitores é que o político mantenha sempre um canal de acesso

constante com o poder executivo de modo que possa estar sempre

atendendo aos seus pedidos. Cultivar a posição de líder

político numa comunidade de bairro é submeter-se a uma

engrenagem de troca constante e expectativa de retribuição em

forma de voto.

Cada vereador que mantém o mandato por muitos anos sem

sofrer abalo em sua liderança possui sua base política, uma

maneira de servir àqueles que o procuram. Como atendia todos

os eleitores diretamente em sua residência, principalmente os

moradores da vizinhança, exercendo atividade de atendimento

constante ao longo de anos, esse tipo de vereador não

precisava correr tanto na época de eleição, pois tinha como

certo o voto de gratidão pelo que fora feito. Tal expectativa

já não existe mais de parte dos atores deste sistema. Tanto o

político não confia que somente atendendo terá uma eleição

assegurada, como o eleitor busca mesmo na época de eleição

diversos candidatos que lhe propiciem algum benefício

imediato. O vereador de comunidade de bairro tem muito contato

e acesso ao poder público. Isto favorece o encaminhamento dos

345

pedidos da sua comunidade naquilo diretamente dependente de

decisão do poder municipal. Outros pedidos exigem outras

intermediações, com outras pessoas, membros da rede de contato

do parlamentar, normalmente um deputado, com acesso num nível

mais elevado no poder estadual ou federal.

O parlamentar com base em bairro tem um comportamento

político extremamente discreto dentro do parlamento. Raramente

se expõe ou cria inimizade, tem sempre uma posição ao votar as

mensagens do executivo, entretanto, sem muita discussão ou

envolvimento nas discussões internas de mérito.

De modo geral, ele é normalmente um morador muito

antigo no bairro e desse fato retira muito do seu prestígio, e

usa com freqüência como argumento para preferi-lo “aos que vêm

de fora”. Sempre esteve presente, nunca se afastou da defesa

dos interesses da comunidade. O pertencimento à comunidade é

tido como o maior capital político destes vereadores, sua

marca e seu trunfo eleitoral. Morador antigo, aliado ao fato

de estar sempre disponível para o atendimento, firma laços de

confiança entre a comunidade local e seu representante.

Na periferia da cidade de Fortaleza, em decorrência da

pobreza e do rompimento de laços clientelistas, a

mercantilização do voto vai ocorrendo. Em época de eleição, a

ampliação das agências fornecedoras de benefício aos pobres

gera uma situação de independência relativa deste eleitorado

ante o político. Já não é mais possível manter laços de

dependência fixa porque dentro de uma situação de competição

eleitoral acirrada não há como assegurar a fidelidade

eleitoral deste eleitor contemplado com um favor. Por isto, o

346

candidato aposta mais em laços de transferência de prestígio

para as pequenas lideranças locais que se encarregam de

assegurar este voto disperso e negociado. Na ausência de

lealdade política, resta a compra do voto. Lealdade e gratidão

já não são os valores correntes no meio desta população pobre

que aprendeu rapidamente que na época da política o “rico olha

para o pobre”.

A despeito de mudanças recentes na Justiça Eleitoral, a

qualificação eleitoral ainda é um mecanismo muito utilizado

para assegurar uma votação cativa por parte dos vereadores. Há

casos de vereadores que no passado tinham sua reeleição

garantida usando unicamente este método. Atualmente está um

pouco mais complicado e ele deve mesclar este meio com outros

para aumentar sua segurança eleitoral. No ano eleitoral é

quando mais se utiliza deste mecanismo, mas para os que mantêm

alguma estrutura de escritório político, o alistamento é feito

ao longo dos anos, sem nenhuma interrupção.

Na década de 1980 ocorreu a expansão gradual da rede de

atendimento primário de saúde, criando as condições objetivas

para emergir o parlamentar médico. Não é por acaso que hoje

esta é a categoria de profissionais com maior número de

representantes no legislativo municipal em Fortaleza.

A rede de atendimento clientelista mantida por um

vereador inclui desde ônibus para conduzir pessoas para

enterros, a assistência de transportes para postos de saúde e

hospital. O eleitor tudo solicita ao vereador e este deve

prestar pronta assistência. Somente em casos extremamente

difíceis ou dependentes de alto investimento, o vereador deixa

347

de atender ao pedido do eleitor. Muitas vezes o cálculo não é

puramente eleitoral, como ocorreu com uma candidata vereadora.

Pediram-lhe um telefone. Na época, o preço deste era muito

alto. Ela atendeu nem tanto por causa do retorno eleitoral,

mas pelo simples fato de ter prometido e não podia mais voltar

atrás.

4.12 Trocas Políticas: Barganha de Bens Públicos

O modelo de governo que construímos tem como

pressuposto a ação autônoma dos agentes políticos. Destes, o

principal é o eleitor, pois dele tudo dependeria na escolha

dos seus candidatos, dos seus representantes políticos. No

entanto, conforme constatado pelos observadores da cena

política, o eleitor normalmente dá pouca atenção à sua escolha

eleitoral, como se não houvesse nenhuma conseqüência neste

ato. Do ponto de vista geral, a escolha individual tem efeito

sobre a forma como a política será conduzida, mas quando se

reflete mais especificamente sobre as convicções do eleitor

isolado, não há como perceber se ele tem tanta consciência

desse fato.

O eleitor isolado pode desejar melhoras na sua vida e

na de outras pessoas, mas não tem consciência de que isto

possa decorrer de um gesto tão simples quanto o de escolher

uma pessoa para ser representante político. Entre o desejo de

melhoras na vida e o ato de escolher um candidato não há

relação de causa e efeito. Não porque a relação seja complexa,

abstrata e de difícil entendimento, mas porque é preciso algum

tempo para que um ato individualmente praticado possa provocar

348

a ocorrência de uma situação desejada. Além do tempo de espera

para poder o efeito do ato individual surtir o efeito

esperado, há a probabilidade dele não se produzir tal qual

esperado. Num universo de incerteza tão grande não seria

ilógico esperar que um eleitor isolado, tendo possibilidade,

submeta-se a uma troca imediata e justa da sua capacidade de

voto por um benefício qualquer. Nesta troca, não deve ser

entendido que esse ator individual é sem consciência, sem

nenhuma noção de responsabilidade, pois em virtude das

condições concretas nas quais ele deve decidir, uma das

alternativas é justamente a de se servir imediatamente de algo

ofertado.

Em face da natureza da base social do vereador de

comunidade, ele se expressa de maneira mais genérica, mesmo

tendo ações voltadas para a defesa de interesses particulares

do seu grupo de pertencimento. O comportamento político

parlamentar é voltado para uma luta constante em torno do

cumprimento das normas legais inerentes à função do vereador.

Há nessa convicção o claro entendimento de que as leis

instituídas, os recursos legais postos à sua disposição para o

exercício da sua função lhe são favoráveis, enquanto os

vereadores com base social em agrupamentos restritos e

territoriais normalmente relegam esses instrumentos legais,

usando elementos informais no seu desempenho.

A política tradicional tem cabo eleitoral, esquema de

uso da máquina administrativa, enquanto a esquerda tem a

militância política, grupo de pessoas dos mais diversos

segmentos sociais que atuam politicamente porque acreditam

349

existir uma forma diferente de fazer política e desejam

contribuir para esse projeto. De um lado, pessoas que agem

pensando e defendendo interesses, e de outro, pessoas movidas

pela paixão política.

Como esperado, a campanha eleitoral municipal de 2000

em Fortaleza foi competitiva no tocante à disputa majoritária.

Todavia, a concorrência para o legislativo fica sempre

obscurecida diante da disputa pelo cargo de prefeito, a qual

merece mais atenção do eleitor e da mídia.

Freqüentemente o candidato de oposição se utiliza da

idéia de que seu opositor usa o dinheiro público de maneira

indevida e sem transparência. A acusação mais constante é a de

falta de transparência e de ausência completa de controle por

parte da sociedade dos seus representantes.

Para os vereadores que buscam a reeleição, a

dificuldade financeira é apontada como o maior obstáculo a ser

superado na campanha eleitoral. O candidato à reeleição

enfrenta problemas relacionados à sua condição de atual

vereador. Muitos se queixam do fato de seus concorrentes

espalharem boato sobre a suposta eleição garantida. Nelson

Martins é um dos que reclamam deste tipo de boataria, cujo

intuito é obter votos de eleitor de esquerda. A campanha do

“já está eleito” prejudica o candidato porque acaba retirando

votos já assegurados.

O vereador em campanha eleitoral precisa divulgar seu

nome como candidato. Para isto, se serve de cartazes

espalhados pela cidade. Prioriza as áreas onde seu nome é

350

conhecido. Depois, em pequenas reuniões, procura convencer os

eleitores a votarem nele por aquilo que representa. A eleição

é uma forma de apoio a esta representação. Quando um vereador

com identificação religiosa se elege é porque uma parcela

significativa do eleitorado religioso acredita ser importante

a Câmara Municipal contar entre seus membros com vereadores

com princípios religiosos.

Entretanto, a eleição de um candidato não pode ser

atribuída unicamente a um segmento social, tornando esse

candidato o representante desse segmento. Alguns candidatos

eleitos conseguiram monopolizar a representação de um setor da

sociedade, mas isto é raro. O padrão normal da votação de todo

candidato é uma heterogeneidade de origem do voto. Mesmo

quando ele se apresenta como o candidato dos evangélicos, do

servidor público, dos bancários, dos estudantes, das mulheres,

dos jovens, etc., não se pretende que esse candidato terá voto

unicamente nesse segmento com o qual se identifica ou busca a

identificação. Como a diferença de votos entre os candidatos é

muitas vezes pequena, a dispersão na representação é

fundamental. Todo candidato precisa contar com uma pequena,

média ou grande base sólida de apoio eleitoral. Somente com

uma sustentação de voto cativo, o candidato pode expandir sua

busca de voto para outros setores da sociedade. Quando se

entra em setores novos, corre-se sempre o risco de não se

obter eleitoralmente o esperado.

O que há em comum entre Nelson Martins, Narcílio

Andrade e Paulo Mindello? Todos são vereadores em busca de

reeleição e todos se queixam do problema do custo financeiro

351

da campanha eleitoral. Todos, igualmente, apontam a escassez

de recursos financeiros como um entrave ao desenvolvimento da

campanha. Mesmo para Nelson Martins, que tem no segmento dos

bancários forte base de apoio financeiro, a queixa existe.

Narcílio Andrade reclama do assédio do eleitor por emprego e

bolsa de estudo, e lembra que não há como obter emprego

público atualmente.

A campanha é um jogo de definição de posições dentro do

campo político, mas a posição conquistada por cada concorrente

nem sempre é a desejada. Todos anseiam por uma campanha na

qual a posição desejada seja a ocupada por ele e mantida.

Entretanto, para a conquista política, a ação dos outros

concorrentes é não somente definir sua posição, mas fazer com

que a posição ocupada neste momento por outros seja deslocada.

A disputa é por posições, jogo de acusações. De acordo com

estas, muitas vezes, perdem posição já conquistada e outros

ocupam novas posições. O resultado do posicionamento de cada

candidato depende não somente do seu desejo e esforço para se

deslocar no meio dos demais, mas também da defesa destas

mesmas posições cobiçadas por outros.

Para muitos candidatos, a campanha eleitoral é apenas o

momento de difundir sua imagem, pois esta já existe, e

consolidada. Mas para muitos outros, trata-se de tempo inicial

para se fazer conhecido. Há uma grande diferença entre os

candidatos, pois estão partindo de momentos de ligação com o

eleitorado completamente distinto. Em alguma eleição, o fato

de não se ter uma imagem já consolidada pode ser algo

positivo, mas em outra, o importante é justamente o contrário.

352

Tanto mais conhecido seja o candidato, melhor para ele. O

candidato a vereador, independente de já ter ou não um

mandato, enfrenta as mesmas dificuldades. Sua tarefa inicial é

fazer-se candidato para o eleitor. E não é para qualquer

eleitor. Trata-se do eleitorado que julga ser “eleitorado

potencial”, esse com quem ele já mantém ligações de diversas

formas e que devem ser capitalizadas na campanha.

Os candidatos a vereador podem se distinguir de acordo

com seu grau de inserção institucional. A princípio, há os

atuais detentores de mandato eletivo, os vereadores. Esses são

obviamente os mais fortes candidatos. Em seguida há os

suplentes que estiveram em boa posição em eleição passada e

são novamente candidatos, são fortes candidatos. Entre estes

suplentes, alguns já exerceram mandatos e perderam eleição,

mas continuam com sólida base eleitoral, sempre ameaçando

voltar à Câmara Municipal. Em terceiro lugar, há os candidatos

apoiados por antigos vereadores que se elegeram deputado

estadual na eleição anterior. Esses são muitas vezes fortes

candidatos, pois o deputado ainda conta com sua antiga base

eleitoral, mais solidificada na época da eleição para

deputado. Existe, ainda, o candidato novato, com forte apoio

institucional em movimentos sociais ou organizacionais de

expressão, e o restante dos candidatos sem estas

características. Na maioria das vezes, são candidatos de si

mesmos, sem forte sustentação eleitoral anterior, e embora

muitos disponham de dinheiro, isto não é suficiente para

assegurar a eleição. Numa eleição, o capital mais importante é

o político. Os recursos financeiros potencializam o nome do

353

candidato, mas quando se tem apenas os recursos financeiros,

não contando com inserção política em grupos sociais, é

difícil se eleger.

Na eleição de 1996, os vereadores que ficaram em

suplência e assumiram efetivamente depois da eleição de 1998,

foram os seguintes: Martins Nogueira, Demétrio Carneiro, PMDB;

Tin Gomes, PSBD; Mário Maia, PSB; Augusto Gonçalves, PCdoB, e

Carlos de Oliveira Neto, PTB. Dos seis vereadores que

assumiram mandato em 1999, apenas Martins Nogueira conseguiu

se reeleger. Todos os outros ficaram novamente como suplentes.

A trajetória do voto passa do voto de cabresto, no qual

havia algum tipo de laço de submissão e dominação material de

um dos membros da relação, ao voto de gratidão, em que mesmo

não havendo dominação material, existe o atendimento de

solicitação de ajuda por parte de uma pessoa a outra,

retribuição paga em época de eleição com o voto; por fim, há o

voto mercantilizado,segundo o qual as relações se estabelecem

entre parceiros absolutamente iguais e independentes e um

solicita algo em troca da sua escolha eleitoral. Quem tem mais

recursos financeiros pode perfeitamente conquistar um mandato

eletivo usando apenas esse mecanismo da “compra de voto”. Na

opinião de muitos analistas, a situação de privação material e

o analfabetismo são apresentados como os causadores da

situação de risco do eleitorado pobre impossibilitado de

resistir ao poderio econômico na época da eleição.

Laços de subjugação direta de indivíduos sobre outros

praticamente inexistem na cidade; mas laços de confiança

motivadores de laços de gratidão por favores prestados são

354

mais comuns. Predominam, porém, os laços frouxos entre

indivíduos despossuídos, presa fácil para os aliciadores de

votos. Conquistam o voto deste eleitor sem nenhum esforço de

convencimento, apenas em troca de alguma ajuda material.

Normalmente, as trocas eleitorais são estabelecidas por

lideranças comunitárias que mantêm laços de confiança e de

influência num círculo de eleitores.

Se considerarmos a distinção entre os três tipos de

votos mencionados, é raro um candidato obter uma votação pura

de um único tipo de voto. Mesmo o candidato habituado ao uso

do mecanismo de voto comprado tem entre seus eleitores voto

consciente e voto de gratidão. Da mesma forma, o candidato que

recebe voto consciente não tem a totalidade dos seus votos

obtida unicamente desta mesma fonte, pois complementa estes

com votos de gratidão. Como o candidato atua em circuitos

sociais distintos, pode obter votos heterogêneos. O voto de

segmento social organizado de igreja ou organização

profissional é um tipo de voto consciente, mas pode

eventualmente envolver algum tipo de auxílio pessoal. Isso

porque a eleição é representada como o instante em que mais há

trocas entre os desejosos de voto e os que o detêm.

Existe profunda disparidade e diferenciação entre as

pessoas que se apresentam ao eleitorado como candidatos à

Câmara Municipal. Um grande contingente é composto de

indivíduos sem experiência política de qualquer natureza para

os quais a candidatura é uma oportunidade de terem boa

remuneração financeira. Esses candidatos são áreas de

influências de membros de partidos organizados que incentivam

355

a pessoa a se lançar na disputa eleitoral, mas não contam com

nenhuma estrutura partidária e individual para realizar a

campanha. Levam a campanha à frente de maneira individual,

recebendo no máximo o apoio de alguns membros da família;

outros, nem com estes podem contar na sua jornada eleitoral.

O candidato totalmente desconhecido lança-se por

impulso próprio, movido pelo desejo de aproveitar a

oportunidade propiciada pela eleição. Outros são funcionários

públicos interessados em se afastar do emprego enquanto dura o

processo eleitoral.

Muito candidato mesmo viabilizado a legenda pela qual

disputa o mandato não conta com nenhuma estrutura organizada

para fazer campanha, nem com recursos financeiros ou apoio em

grupos de amigos capazes de dar sustentação política.

Ana Zilma é candidata a vereadora pelo PTB. Resolveu se

candidatar porque acredita que os deficientes físicos têm

poucos direitos na sociedade. Sua luta, portanto, caso seja

eleita, é para se votar na Câmara Municipal leis destinadas a

beneficiar diretamente as pessoas portadoras de deficiência

física. A candidata é deficiente física, vive da venda de

bilhetes de loteria no Centro de Fortaleza, numa cadeira de

rodas motorizada. Sua campanha eleitoral é toda centrada na

idéia do deficiente físico e dos seus direitos, ela mesma uma

legítima representante deste segmento social por ser

diretamente afetada pela discriminação e ausência de direitos.

Na eleição de 2000 para o legislativo em Fortaleza

havia vários candidatos disputando o voto do segmento social

356

dos deficientes físicos, embora esse setor já tenha Machadinho

como representante no legislativo.

Esse segmento social mais organizado é capaz de

assegurar a manutenção do seu representante no poder

legislativo municipal. Todos os outros candidatos portadores

de deficiência física buscam a identificação com esse

segmento, mas esbarram nas organizações já existentes.

O outro segmento social organizado que conta com

representante no legislativo de Fortaleza é o militar. O

segmento social militar aqui está contemplando os membros das

diversas corporações militares: polícia militar, exército e

corpo de bombeiros. Os policiais civis normalmente apresentam

candidatos identificados com seu segmento. Não é diferente do

que ocorre com outros segmentos sociais organizados. Os

candidatos são sempre membros orgânicos da corporação, ativos

ou aposentados. A representação para estes segmentos sociais

tem uma idéia de identificação orgânica direta, não se confia

em candidato que não seja um membro do segmento. Somente

alguém com experiência neste segmento tem autoridade para se

apresentar como reivindicando sua condição de legítimo

representante.

O segmento dos trabalhadores de maneira geral lança

candidatos, mas muitos não são bem-sucedidos. Das categorias

de trabalhadores organizados em Fortaleza que disputaram

eleição nas últimas eleições sem êxito, sobressaem os

comerciários.

357

Até recentemente, os comerciários contavam com uma

representação tradicional na Câmara Municipal, centrada

principalmente na liderança do vereador Herval Sampaio, que

por sua vez havia sucedido a liderança mista do vereador

Hermenegildo. Depois da década de 1990, os comerciários se

organizaram de maneira mais combativa em sindicato, mas não

foram capazes de emplacar um candidato do seu próprio

sindicato. Todos os vereadores que passaram a ser porta-vozes

dos interesses dos comerciários na Câmara Municipal vieram de

outras bases socais. Chico Lopes, por exemplo, tem uma base de

apoio no funcionalismo municipal e na educação; Nelson Martins

vem de uma base de sustentação bancária.

O segmento social com mais crescimento na sua

representação na Câmara Municipal é o de natureza religiosa. A

eleição de 2000 teve quatro vereadores com base social

exclusiva no segmento religioso, enquanto três outros

vereadores tiveram expressiva votação pelo seu pertencimento

religioso. Mas a presença maior de membros do legislativo

municipal com identificação religiosa é um fenômeno recente.

Fortaleza teve seu primeiro vereador eleito exclusivamente por

um culto religioso ainda na década de 1960, Belizário Bezerra,

apesar de existir outros com forte apoio em setores da igreja

católica mais conservadores. Entretanto, essa representação

religiosa era pequena.

Nelson Martins faz campanha aos domingos na Praia do

Futuro, mas nunca foi visto fazendo panfletagem na Praia da

Barra do Ceará. Willame Correia faz carreata e concentração de

apoiadores políticos na Barra do Ceará, mas nunca foi visto

358

fazendo o mesmo na Praia do Futuro. Os dois vereadores são

exemplos da segmentação do trabalho político. Nelson Martins

tem seu eleitorado situado basicamente na grande Aldeota,

eleitores bancários e de classe média. O lugar de freqüência

deste eleitorado aos domingos é justamente a Praia do Futuro.

O eleitorado do vereador Willame Correia concentra-se no

bairro Álvaro Wayne, lugar da sua residência e sua base

eleitoral territorial. A Barra do Ceará é uma extensão da sua

área de atuação, centrado num eleitorado de baixo poder

aquisitivo. Em ambos o trabalho político é concentrado nas

áreas consideradas mais aproveitáveis. Inicialmente, o

trabalho da campanha consiste em divulgar o nome do candidato,

sua condição de candidato, pois muitos dos seus eleitores

podem ainda não saber que ele é novamente candidato, portanto,

trata-se de pôr o nome na rua para indicar esta condição. A

estratégia eleitoral da lembrança pressupõe um perfil de

eleitorado mais escolarizado, que aceita o panfleto contendo

informações, denúncias e posicionamento do candidato. Isso

contrasta completamente com a campanha do vereador Willame

Correia, que não tem material de propaganda impresso. A

campanha no domingo de sol quente na Praia da Barra do Ceará

consiste basicamente em posicionar moças e rapazes exibindo

largas bandeiras com o nome e o número do candidato. Essa é a

maneira de divulgar seu nome.

O vereador de comunidade de bairro conta com poucos

apoiadores. Estes, de modo geral, são pessoas que ou mantêm

vínculos empregatícios com o vereador ou estão trabalhando,

359

“dando uma força”, esperando ser recompensados caso o

candidato seja eleito.

De acordo com o perfil do candidato, os apoiadores nas

campanhas se diferenciam totalmente. Muitos candidatos

contratam rapazes e meninas, indicados por lideranças

comunitárias para trabalhar na campanha, distribuindo

panfletos ou sustentando bandeiras nos cruzamentos dos sinais.

Os vereadores que já gozam de prestígio perante o poder

executivo e detêm alguns cargos na administração, normalmente

contam com a colaboração destas pessoas em sua campanha. Isto

fica mais evidente na realização de carreatas pela cidade.

A debilidade da campanha de um candidato expressa-se na

capacidade de mobilização de “amigos e apoiadores” em

atividades de campanha. Os candidatos lançados pela primeira

vez estão visivelmente em desvantagem, pois precisam contratar

pessoas para a realização de “serviços de campanha”.

Analisar a trajetória política dos políticos municipais

é uma tarefa difícil porque muitos deles não se deslocam da

sua posição inicial. Eleitos uma vez, permanecem na mesma

posição por várias legislaturas, seguidamente reeleitos. O

sistema democrático incentiva os políticos municipais a

trilhar uma carreira política. Nos anos recentes, mais

vereadores tentaram se lançar na arena eleitoral por um

mandato estadual ou federal. Muitos que não se aventuram não é

por comodidade eleitoral da sua base política ou ausência de

ambição, mas por estarem ligados politicamente a outras

pessoas em hierarquia superior. Isso no passado era uma regra

360

mais constante e inibidora de carreira política. Havia um

chefe político orientador do grupo político que ocupava um

posto de deputado estadual ou federal e do qual dependia a

manutenção do vereador em sua área de atuação política. O

sistema de posições política funcionava na base da aceitação e

reconhecimento dos recursos disponíveis por cada membro do

grupo.

4.14 Vereador faz Obras, Votos e Prepostos

Os vereadores participam e influenciam nas

formulações de políticas públicas criadas e executadas pelo

executivo municipal não apenas por meio de apoio político na

Câmara Municipal, dando sustentação política aos projetos e

programas do prefeito. Além desta participação direta como

ator responsável pela aprovação dos projetos, agindo na

defesa da sua função parlamentar, os vereadores participam de

decisões do executivo por indicações diretas de colaboradores

e pessoas, que lhe são leais politicamente, para ocupar

funções dentro da máquina administrativa do governo local. A

influência de um vereador não depende mais do número de votos

recebidos, mas da capacidade de articulação interna na Câmara

Municipal para ocupar as funções mais relevantes. A guerra de

posições dentro da Câmara é algo completamente à parte da

disputa e do prestígio político. Nesta ocupação está muitas

vezes sendo jogada a sobrevivência política do parlamentar

pela sua demonstração de força em influir na decisão dos

demais colegas.

361

Atualmente se observa um padrão de comportamento

parlamentar caracterizado por dois momentos, de acordo com o

núcleo de atração e de repulsão. No primeiro momento, ocorrido

logo em seguida às eleições, os parlamentares individuais

aumentam sua ação no intuito de formar a base política de

sustentação parlamentar do executivo. A legislação lhe permite

permanecer livre, pois não existe constrangimento de normas de

fidelidade partidária. Isto serve de incentivo para ser

atraído para a base de sustentação do governo. O outro momento

ocorre com a aproximação das eleições, quando tem de renovar

seu mandato. Conforme a popularidade do governo, o parlamentar

permanece ou não na sua base de sustentação política. A ação

que orienta as atitudes do parlamentar é sua sobrevivência

eleitoral, o cálculo mais importante, o grau de influência

exercido pelo governo ainda no eleitorado. Caso tenha sido até

então base política do governo e este esteja desgastado

politicamente, a primeira atitude é romper com o governo,

aparecer ao eleitorado como um parlamentar independente que

vota de acordo com sua consciência.

Os dois grandes momentos de movimentação individual dos

parlamentes, depois das eleições e antes das eleições,

explicam-se em grande parte pela inexistência de normas

partidárias rígidas que permitam determinar suas ações. Na

ausência deste parâmetro de ação partidária, os parlamentares

se sentem tão soltos que podem flutuar em função do ponto

forte de atração que é o poder instituído com suas recompensas

imediatas e a própria sobrevivência política. Para o

parlamentar, a capacidade de atuação mais influente nas

362

decisões do governo executivo vai depender da sua decisão de

ser ou não base política do governo. Há certa inadequação do

papel do legislador para muitos parlamentares. Em muitos casos

isto ocorre devido à pressão da sua própria base eleitoral

constituída e referida como tal. Detentor de votos numa

comunidade identificável, torna-se difícil ao parlamentar agir

de maneira que possa simplesmente cumprir sua função

legislativa. O papel a ele reservado pelo sistema político

municipal é extremamente cruel, pois tenderia a ficar sempre

numa posição de eterna vigilância em relação ao poder

executivo constituído. A tendência então é querer ser também

poder executivo. Esta tendência ao executivo, presente em

muitos parlamentares, é explicada pelas cobranças e

expectativas do eleitorado.

Não passa pela cabeça desse eleitorado uma divisão de

tarefa adequada na qual o legislador cumpre uma tarefa

importante simplesmente controlando as ações do executivo e

propondo novo ordenamento legal para atividades existentes ou

criando novas. A lei como bem coletivo é difícil de ser

implementada. Isso induz com que o parlamentar ao impulso de

ser executivo pela maior participação dentro do governo com a

indicação de membros da sua confiança para ocupar funções

importantes.

A manutenção de uma base eleitoral sem a existência de

trocas esporádicas fora do tempo da política é muito difícil.

De acordo com o perfil eleitoral do político, a necessidade de

parecer sempre ativo é a regra de ouro para ele. A existência

de escritórios políticos onde o parlamentar atende seu eleitorado é

363

algo extremamente comum. O político atende o eleitorado, como

um médico atende seus pacientes. A diferença é que nos

escritórios políticos chegam sempre pedidos de ajuda os mais

diversos. Em inúmeros destes casos não se trata precisamente

de ajudar diretamente, mas de facilitar a solução do problema.

Em alguns casos a solução do problema pode ocorrer sem muito

custo porque se trata de algo decorrente da ausência de

informação. Na maioria das vezes, as demandas eleitorais mais

difíceis de serem atendidas são as que implicam gastos

elevados. Mesmo neste caso, às vezes o vereador possui uma

rede de amigos que possibilitam esse atendimento. O mecanismo

da rede de amigos dispersa o custo individual de um bem que

poderia ser impraticável para o parlamentar sozinho.

Um parlamentar municipal não tem acesso direto a fontes

de recursos públicos que possa carrear para sua base

eleitoral. Ele precisa do vínculo com o executivo. São

estruturas de poder desvinculadas de acesso a recursos por

canais previamente definidos, orientando a ação parlamentar

para que, caso tenha interesse em participar da festa, se

posicione. As regras para acesso a recursos públicos são

regidas pela lógica de executivos, isto é, tudo passa pela

organização dos poderes executivos. Ao poder legislativo,

resta gravitar em torno deste poder executivo para poder

assegurar sua sobrevivência eleitoral e política.

É difícil saber se a representação que muitos

vereadores têm da sua função como simples intermediários na

solução de problemas é decorrência direta das exigências dos

eleitores ou faz parte de outros fatores. Há problemas da

364

comunidade relacionados à melhoria da infra-estrutura do

bairro, construção de equipamentos coletivos, tidos como

extremamente importantes em favor da comunidade. Aliado ao

trabalho pela melhoria das condições gerais de vida da

comunidade, os vereadores entendem igualmente serem obrigados a

servir à população. Servir à população, ajudar aos eleitores que

os procuram é na linguagem do político municipal prestar auxílio ou

qualquer tipo de ajuda aos necessitados. A ação de ajudar a

quem os procura não é orientada pela lógica eleitoral, pois

afirmam que jamais tentam saber a procedência da pessoa

ajudada. Segundo estes candidatos, a ação se justifica baseada

na noção de bondade cristã. A ajuda e o favor prestados ao

eleitor não entram na contabilidade eleitoral. Elas são

entendidas como parte inerente ao exercício da sua função

política. Ajudar aos mais necessitados é tido como um dogma

político.

O vereador como liderança agrega interesses e comanda uma

rede de interesses dispersos. Somente alguns poucos expressam

forças de interesses de grupos organizados. Embora o mais

comum seja encontrarmos expressão desta agregação de

interesses muito dispersos, o vereador consegue servir de elo

de referência ou de intermediação. Se falamos de rede de

interesses e não de grupo de interesses é porque a

representação de um vereador é mais expressiva como

articulador e agregador de interesses muito dispersos do que

de um único grupo. Há vereadores que buscam uma identificação

profunda com um único grupo de interesses, passando a ser

365

considerados porta-vozes. Esta, todavia, não é a forma mais

habitual da representação política.

Os laços de dependência estabelecidos fora do âmbito da

política são fundamentais para se entender a permanência de

certos mecanismos. Laços de gratidão por favores prestados sem

nenhuma contrapartida a não ser a retribuição em forma de voto

são meios que não se destroem imediatamente, pois não há uma

decisão para transformar a situação destas pessoas que se

nutrem de laços de dependência.

Mas os indivíduos não estão submetidos à situação de

ceder seu voto apenas porque se sentem na obrigação de ofertar

aquilo que julgam ser importante para quantos dele dependem.

Trata-se de um sistema que se alimenta de ambas as partes,

pois tanto o que dá o voto de gratidão quanto o que dele se

beneficia são mantidos dentro de um sistema de troca

extremamente complexo.

Os favores prestados pelos políticos ao eleitor

pressupõem uma obrigação de retribuição, de reciprocidade na

troca. Mesmo o eleitor que sabe que o político presta o favor

por interesse, usando recursos alheios, não deixa de se sentir

obrigado a retribuir.

Parte considerável dos candidatos atua precisamente

nesta situação, procurando de diversas maneiras levar o

eleitor a ter com ele algum tipo de dívida de gratidão somente

possível de ser saldada com o voto. O voto de gratidão é dado

em função de um benefício recebido em uma época fora do

retorno eleitoral, portanto, um tempo no qual o eleitor não

366

precisaria saldar imediatamente. Se assim age, o político

adquire aos olhos deste eleitor uma aura de alguém confiável

porque antecipa em certo sentido o benefício desejado,

apostando que aquele que recebeu saberá honrar o compromisso

estabelecido naquele instante.

De modo genérico é possível distinguir os candidatos

políticos que trabalham ajudando as pessoas fora e muito antes

do período eleitoral e aqueles que somente trabalham neste

período. As trocas realizadas entre os primeiros candidatos e

seu eleitorado baseiam-se em laços de confiança e na

reciprocidade, pois “desinteressadamente” ajudam as pessoas

que os procuram. Entretanto, estes candidatos não podem

simplesmente contar com o trabalho já realizado fora da época

da política e esperar pelo reconhecimento e gratidão das

pessoas ajudadas. É preciso não somente intensificar, mas

também usar de estratégias para ampliar sua base de

sustentação eleitoral.

Os candidatos que já são políticos com mandatos, mas

não montam nenhum esquema de auxílio pessoal aos que o

procuram, intensificam seu trabalho de troca mais imediata na

época eleitoral. A estratégia é claramente de compra do voto,

pois se está ofertando um benefício que o eleitor está

solicitando em troca de seu consentimento eleitoral.

A presença de um eleitorado independente ocorre em

qualquer cidade. Ele é constituído pelos segmentos dos jovens

e dos profissionais liberais que não mantêm vinculação de

dependência em relação aos políticos. Suas necessidades são

367

arcadas à própria custa, não transferem o ônus para outros,

criando laços de dependência e obrigações desnecessárias.

Há atualmente canais diversos de acesso a recursos para

ajudar as pessoas. Enquanto um grupo político pode controlar e

monopolizar todos os recursos oriundos da administração

municipal, outro grupo pode ter acesso a recursos de origem

estadual ou federal. Essa existência de fontes distintas de

recursos tem um impacto importante na dinâmica política local

porque permite a consolidação de um grupo de eleitores

independentes. Não basta a manutenção de parcela significativa

do eleitorado sob seu controle mediante irrigação constante de

favores e benefícios individualizados. Em determinado momento

existe uma ruptura de fidelidade entre o eleitor e os

candidatos, pois ele pode perfeitamente saldar parcela da sua

dívida via votação no candidato a vereador, mas não fazer o

mesmo em relação ao cargo majoritário. Não há nenhuma

infidelidade aí. Como a eleição diz respeito à escolha de

pessoas para ocupar determinadas posições, é possível entender

que esta escolha se passa entre dois atos.

A decisão de realizar determinadas obras coletivas

depende do empenho pessoal de quem as assume. Neste aspecto,

os políticos quando reivindicam para si o esforço em ter a

obra executada ali naquele momento não estão de todo mentindo,

pois a obra poderia perfeitamente não ser feita ali nem

naquele momento. Em parte a obra é executada de acordo com a

deliberação do agente diretamente responsável. Explorar

politicamente isto parece apenas parte do jogo político.

Todavia, não parece procedente é acreditar que a obra sairia

368

de forma obrigatória, como se existisse um mecanismo

automático com capacidade de impulsionar o gestor público a

realizar as obras. Tanto a política mais geral como a mais

cotidiana são feitas de decisões individualmente tomadas por

pessoas que ocupam posições de mando e estão em condição de

decidir o quê fazer e quando fazer.

369

5. A NOVA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA MUNICIPAL

5.1 O Fim da Política de Clientela

Espero ter fornecido elementos suficientes para se

entender que o traço mais acentuado do sistema político

eleitoral municipal em Fortaleza foi o fechamento progressivo

ao recrutamento de novas elites. Progressivamente, o sistema

político foi girando em torno de uns poucos membros já

incluídos ou que se qualificavam como membros pelo

pertencimento ao sistema. Com o ressurgimento da competição

eleitoral, sinalizado pela ampliação do número de partidos e,

conseqüentemente, elevação do número de candidatos, se pôde

perceber alteração na incorporação de novos membros. Para o

legislativo, essa acentuada competitividade é o principal

fator de destruição progressiva das bases sociais de

sustentação da política de clientela eleitoral, representada

pelos vereadores de comunidade de bairro. Não se pretende

afirmar que esse padrão de sustentação eleitoral clientelista

tenha desaparecido completamente. Todavia há uma nova

configuração política, tornando este mecanismo menos usado e

mais arriscado politicamente. A partir dos anos 1980 a

manutenção de uma base eleitoral territorial vai se tornando

de elevado custo, e com resultados eleitorais pouco

confiáveis.

Se a persistência de práticas políticas

assistencialistas e clientelistas pode ser explicada pela

existência de interesses compartilhados entre os que trocam

370

bens e serviços por voto, a manutenção de uma organização fixa

e permanente de atendimento de favores por parte dos políticos

tradicionais diminui. A incorporação desses interesses não

precisa ser realizada na base da manutenção constante de laços

pessoais, porque a troca de natureza material permite ao

político prescindir de uma base organizada para trocas

constantes. Ao deixar de conter elementos afetivos e

expectativa de reconhecimento na época da eleição, a mudança

na natureza das trocas explica a desestruturação das máquinas

de assistência privada controlada por políticos com interesses

eleitorais. Agora a troca envolve mais acordo e menos relações

pessoais, pois a competição eleitoral criou esse novo padrão

de relacionamento do candidato com o eleitor. O

desaparecimento das máquinas de assistencialismo comandadas

por políticos ocorre não somente por causa da competição entre

os candidatos, mas também pela freqüência de eleições.

A ampliação do número de candidatos, distribuídos de

forma diversa por partidos com chances distintas na competição

eleitoral, é um elemento essencial para explicar a diminuição

do padrão de assistencialismo residencial controlado pelo

político local. A disponibilidade de novos concorrentes na

mesma área gera um efeito desagregador das bases tradicionais

da política clientelista.

Quando não havia competição eleitoral intensa nos

bairros periféricos, a identificação do eleitor como membro do

agrupamento do líder político local era importante, haja vista

que isto era o modo de assegurar seu acesso aos bens e

serviços disponíveis. Mas quando há concorrência maior entre

371

os atores políticos e fornecedores destes bens e serviços nos

bairros, a situação se modifica. Conseqüentemente o morador já

não necessita se identificar com um candidato específico. Ao

contrário, a competição pelo voto pode até gerar uma situação

de incentivo à desvinculação afetiva ao líder local. Em alguns

casos, outrora a identificação era importante porque dela

dependia o acesso dos eleitos aos limitados bens e serviços

ofertados por candidatos sem concorrentes. Neste momento, a

identificação tornou-se um obstáculo, pois o eleitor precisa

estar o mais disponível possível para negociar em melhores

condições.

No antigo sistema político municipal, havia a

possibilidade de acordo entre candidatos concorrentes. Com

número menor de candidatos em disputa, era possível a

realização de acordos, enquanto os candidatos atuavam em áreas

relativamente distantes uma das outras. A paz eleitoral entre

os concorrentes não existe mais porque estes passaram a ser

cada vez mais orientados por uma disputa de caráter

majoritário. Tal característica do sistema já não possibilita

a eleição de mais de um representante dentro do segmento de

eleitorado que disputam.36

O sistema proporcional, em lista aberta, gera

competição intrapartidária e fragmentação. Contribui também

para o aumento da competição eleitoral entre os candidatos.

Nesse contexto, a eleição proporcional se passa como se fosse

36 Lembro aqui dois casos típicos tratados no segundo capítulo desta tese:José Barros de Alencar e Raimundo Ximenes, na região da Messejana, e LimaMonteiro e Agostinho Moreira, no Carlito Pamplona, os quais disputavam deforma majoritária sua indicação para o legislativo.

372

uma disputa majoritária, isto é, o candidato que detém uma

base eleitoral territorial ou em segmento organizado precisa

assegurar sua dominância em votos e compartilhar poucos votos

com outros candidatos. Nesse caso, a estratégia mais usada é

compartilhar votos em bases dispersas e ser dominante em uma

base eleitoral. Entretanto, o dilema de todo candidato é lidar

com esta dupla atuação: fortalecer uma base eleitoral central

e ampliar seu potencial de compartilhamento de votos em outros

segmentos. Isto porque, conforme a natureza da representação

do vereador, ele não tem acesso a outras bases eleitorais e

mesmo fortalecendo onde já é dominante, não é capaz de se

eleger porque sua eleição depende da votação dentro da lista

partidária. Se, para complicar mais ainda suas dificuldades de

reeleição, houver um outro candidato do mesmo partido atuando

no mesmo segmento que o seu, ele terá de compartilhar esta

votação. Isto poderá ser prenúncio de derrota. O certo é que o

atual sistema eleitoral é destruidor de bases eleitorais

territoriais, foco principal de clientelismo e

assistencialismo.

Gradativamente, o eixo dinâmico da política municipal

vai deixando de ter como centro os laços de clientelismo e o

controle eleitoral baseado no território e passa a se centrar

na identificação de interesses. A tendência eleitoral é

predominantemente de comunidade de interesses e interesses

pessoais. Tal mudança ocorreu em função da consolidação do

sistema proporcional, forçando e incentivando campanhas dentro

de padrão majoritário. Consolida-se um padrão de competição

eleitoral para o legislativo que enfraquece o político

373

paroquialista, mas coloca em seu lugar um parlamentar defensor

de interesse próprio sem nenhum compromisso com bases

eleitorais.

Enfim, pode-se afirmar seguramente que a política

paroquial está em franca decadência por causa da consolidação

do sistema proporcional em lista aberta. As evidências

empíricas para sustentar semelhante argumento são contrárias

ao já evidenciado em escala nacional. Em pesquisa sobre o

padrão de voto em duas eleições, Nelson de Carvalho37 chega a

conclusão oposta. O sistema permite a expansão do padrão

nordestino de voto, isto é, de base paroquial. Se isto é

verdade, é preciso explicar esta diferença. O sistema

proporcional provoca padrão de voto diferente de acordo com o

nível da eleição. Enquanto no plano federal pode provocar a

ocorrência de uma representação completamente distante de

comunidades eleitorais definidas, no âmbito municipal, provoca

efeito contrário, trazendo a destruição das bases tradicionais

da política local.

Segundo Carvalho (2003), o sistema proporcional em

grande distrito eleitoral faz com que haja uma sub-

representação de áreas eleitorais importantes como as

capitais. No atual sistema, um candidato pode ir comprando dos

caciques políticos locais uma quantidade de votos aqui e ali,

até formar um total de votos que o elege, retirando sua

eleição sem nenhum compromisso com uma base eleitoral

definida. Um político eleito dessa maneira não representa

nenhum interesse organizado, segmento social ou território.37 CARVALHO, Nelson Rojas. E no início eram as bases – Geografia política do votoe comportamento legislativo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

374

Ele extrai a representação usando instrumentos permitidos pela

legislação eleitoral, uma votação dispersa, compartilhada em

vários distritos eleitorais, mas sem compromisso efetivo com

nenhuma comunidade de eleitores.

Se para a eleição dos deputados federais o sistema

eleitoral provoca a emergência de um tipo de representante

menos comprometido com suas bases eleitorais, nas eleições

legislativas municipais os candidatos disputam a eleição tendo

o bairro como base política fundamental e enfrentam uma

competição dentro de um sistema distrital uninominal, pois,

pelas condições em que se realiza, somente um candidato pode

ser eleito. Muitos candidatos devem lidar com este dilema do

sistema eleitoral: contrabalançar eventuais perdas eleitorais

em seu “distrito informal” dominante com votos oriundos de

outras áreas de influência. Os candidatos com pouca chance de

atuar em outros segmentos sociais são forçados a investir

tempo e dinheiro numa única área, correndo o enorme risco de

não alcançar o resultado esperado.

Se a constatação de Carvalho é verdadeira no plano

federal, o mesmo não pode se dizer do plano municipal.

Conforme tudo indica, neste plano o sistema proporcional em

lista aberta vem destruindo a dominação eleitoral paroquial,

base do clientelismo e do assistencialismo. Sem condições de

disputar eleição com controle e monopólio da liderança

política na área, surge um novo tipo de representante

originado da burocracia38 cujo padrão de votação é distribuído

em diferentes áreas da cidade. Semelhante a uma votação mais38 Na terminologia por mim usada, denomino este candidato de político institucional, conforme já foi explicitado no capítulo 4.

375

ideológica, este parlamentar institucional age como seus pares

deputados federais, os quais já não asseguram uma base

eleitoral fixa em certos municípios, mas atuam de maneira

dispersa, usando os serviços de lideranças locais.

No entanto, a eleição de um vereador não depende

unicamente do seu esforço pessoal. O voto preferecial com

transferência leva o candidato a depender de outras variáveis

para assegurar sua eleição. Em parte a votação do candidato

vai depender da lógica de transferência do voto ocorrida na

eleição, isto é, “o tamanho do quociente eleitoral, o número

de votos em branco, as coligações eleitorais e o desempenho

dos demais candidatos” (SANTOS, 2003, p.47).

Um candidato a cargo eletivo sabe que precisa contar

inicialmente com apoio de um grupo com o qual compartilhe

valores, interesses e objetivos. Todo candidato envolvido em

diversos círculos de relacionamento social distingue

facilmente em qual deles tem mais potencial de votos, isto é,

qual o grupo apto a lhe garantir mais sólida base eleitoral. A

primeira tarefa do candidato é fazer-se conhecido no círculo

de pessoas que julga capazes de influir. Em seguida vem o

trabalho de multiplicação desta adesão política. Os candidatos

com inserção em grupos organizados ou que contam com o apoio

de alguma organização são os mais beneficiados e se distinguem

dos demais pela natureza da sua campanha. Apoiando-se numa

estrutura organizacional existente, precisam apenas ampliar a

adesão às suas propostas. Muitas vezes, dada a natureza coesa

do grupo de pertencimento, basta a divulgação do nome e o

376

apelo aos valores correntes em sua organização para obterem

êxito.

Se a campanha feita mediante organização não impõe

obstáculo, pode não ser suficiente o potencial de votos. Esse

é um dilema para o candidato: pela regra eleitoral, ele pode

obter boa aceitação de voto dentro da sua organização, e isto

não ser suficiente para elegê-lo. O desempenho dos outros

candidatos do mesmo partido é algo definidor da sua eleição.

Nestas circunstâncias, um candidato pode ter total interesse

em um baixo desempenho dos seus colegas de partido, sem,

porém, desejar que este desempenho seja tão mal, a ponto de

prejudicar a totalidade dos votos do partido.

A representação inorgânica é essa segundo a qual o

parlamentar se elege contando com votos vindos de diferentes

áreas isoladas que ao final contabiliza sua votação total.

Conforme indica o perfil de voto deste candidato, ele não

mantém nenhum compromisso de responsabilidade sobre seu

desempenho parlamentar com nenhum círculo eleitoral. A não

formação de um distrito eleitoral, de uma base eleitoral

definida, propicia ao parlamentar prescindir de compromissos

com segmentos sociais específicos.

Atualmente não mais se duvida que o sistema eleitoral

tenha efeito sobre o sistema partidário e conseqüentemente

sobre a estabilidade governamental. As dúvidas residem na

forma deste efeito, pois para alguns o sistema eleitoral

caracterizado por ser proporcional em lista aberta em distrito

de grande magnitude é o mesmo praticado desde 1946. O

principal problema apresentado por este sistema é o fato de

377

provocar fragmentação e desorganização partidária. Pelas

regras proporcionais, a competição deixa de ser entre partidos

e passa a ser intrapartidária. Daí decorreriam a fragilidade

partidária e a ausência completa de disciplina partidária.

Tudo indica existir uma relação entre o sistema

eleitoral proporcional em lista aberta e a extinção paulatina

da dominação territorial pelos políticos tradicionais. Isto

pode explicar como uma regra eleitoral definida no plano

nacional pode afetar a competição partidária nos municípios.

Ela provoca dois efeitos deletérios à vida partidária,

quais sejam: a competição interna aos partidos e o

individualismo político. Os candidatos primam pela disputa com

seus companheiros de partidos ao invés de disputarem com

outros partidos, além de gerar uma política de reputação

pessoal.

Diante deste quadro legal que rege a disputa eleitoral,

a estratégia mais usual para um candidato é concentrar-se num

eleitorado no qual já mantém liderança. A vitória eleitoral de

um candidato passa pela conquista e dominação num determinado

segmento social. No entanto, a concentração de voto numa base

eleitoral estreita é arriscada porque nada impede surgir numa

próxima eleição fortes candidatos competitivos na área. Para o

candidato manter suas chances de vitória, ele necessita de uma

dispersão de votos dentro do município. Caso contrário, ele

põe em risco sua reeleição.

A atual literatura sobre o padrão de voto nas eleições

brasileiras indica uma forma híbrida de votação. Encontramos

378

tanto o padrão concentrado quanto o disperso: a tipologia do

voto concentrado como sendo de caráter conservador e o

disperso como sendo de matriz ideológica. Há mesmo uma

oposição evidente entre a votação do eleitorado das capitais

em relação ao voto oriundo de pequenas cidades. O voto das

capitais gera parlamentares ideológicos e universalistas,

enquanto os originados com votação em pequenas cidades baseiam

sua atuação na conquista de benefícios para os distritos onde

o candidato obteve votação expressiva. Estes parlamentares

participam pouco do debate dos temas nacionais, pois estão

mais interessados na intermediação de interesses capazes de

assegurar sua reeleição. Freqüentemente a imprensa caracteriza

este tipo de parlamentar como um mero “despachante de luxo”,

dada sua atividade eminentemente de intermediário.

Parlamentares com padrão de votação dominante em determinado

distrito eleitoral têm origem nas regiões mais pobres e menos

desenvolvidas do país.

No plano municipal, também encontramos parlamentares

com perfil semelhante de votação. Como falamos na

caracterização dos tipos de liderança política municipal, os

vereadores de comunidade de bairro costumam obter uma votação

em bairros próximos, o que com freqüência indica a presença de

algum equipamento de distribuição de benefícios. A proximidade

física com o eleitorado é um dos grandes diferenciais destes

candidatos. Eles costumam dizer que não podem prometer o que

não podem fazer. Como moram no distrito onde recebem o voto,

caso não cumpram o prometido, correm o risco de serem

desmoralizados na eleição seguinte. Não prometem e compensam a

379

ausência de promessas futuras com trocas constantes, aliadas à

realização de algum tipo de serviço prestado por seu

escritório político. Para este político, caso não tenha

liderança baseada em outro princípio, é preciso ser agente de

algum tipo de prestação de serviço.

Entre o político e sua base territorial de bairro, há

mais identidade e compromisso. Ele presta mais conta dos seus

atos realizados na Câmara Municipal e é mais independente dos

partidos porque precisa ser leal aos interesses do seu

eleitorado. O vereador tradicional exerce rigorosamente um

mandato parlamentar manietado pela sua base política, sem

nenhuma independência.

No nível municipal, a existência do multipartidarismo

fragmentado não é obstáculo à governabilidade, pois a

concentração de poder no executivo exerce suficiente atrativo

sobre os membros do legislativo para cooperarem. A

inexistência de partidos fortes possibilita a negociação

direta entre o vereador e o chefe do poder executivo. Todavia,

o padrão desta negociação não parece ser outro a não ser o

clientelismo e o patronato. Qualquer observador atento da vida

política municipal constata facilmente que o surgimento de

novos “partidos municipais” segue uma trajetória de interesses

pessoais. Candidatos que não conseguiram se eleger, disputando

dentro de agremiações partidárias fortes, as quais exigem uma

votação muito elevada, se vêem incentivados a migrarem para

pequenos partidos. Nestes, a votação conquistada passa a ser

expressiva e, portanto, suficiente para atingir o coeficiente

eleitoral.

380

A dinâmica política para sustentação parlamentar do

executivo depende exclusivamente de decisões individuais dos

vereadores. Para isto ocorrer, é preciso contar com estruturas

partidárias frágeis, as quais não exercem nenhuma coerção

sobre seus partidários. Os partidos sem nenhuma força sobre

seus filiados, bem como a proliferação de legendas de aluguel,

tornam o padrão de comportamento político no legislativo

extremamente dependente de decisões individuais. Entretanto, a

capacidade de convencimento não ocorre nunca por conta da

natureza do projeto, mas pelas trocas efetivas propostas pelo

executivo. Nomeações para cargos, liberação de obras para

áreas de influência política do vereador são os instrumentos

usuais de persuasão política.

No plano federal, o diagnóstico do formato do nosso

sistema político não é muito animador. Como afirma Carvalho

(2003, p. 16-17), a combinação

entre dispersão de poder e baixa efetividade de governo:partidos fragmentados, pouco institucionalizados, com altasensibilidade às demandas de natureza local e regional,presidencialismo e federalismo robustos, constituiriam abase de um sistema institucional que teria dificultado asreformas no período posterior à transição.

5.2 Clientelismo Urbano e “Rede Social”

Clientelismo urbano é a expressão usualmente empregada

para se referir à permanência de práticas políticas correntes

na sociedade brasileira, herdeiras do mandonismo e do

patrimonialismo. A evolução política deveria forjar cidadãos

capazes de agir de modo independente. Estes seriam

representados por interesses de classe ou partidário.

381

Entretanto, no nosso caso, o Estado continua distribuindo

serviços e bens públicos não pelo critério da impessoalidade,

mas em troca de voto e apoio político. As citações a seguir

dão idéia do pensamento crítico a esta prática clientelista

presente no nosso sistema político:

Na relação clientelista, é essencial o papel do políticoenquanto mediador entre as demandas e as decisões capazes deatendê-las. Os mecanismos impessoais e universalistas decanalização e processamento de demandas cedem lugar avínculos de cunho pessoal entre líderes e sua rede deindivíduos ou grupos subordinados. [...] Essa mediação comoque privativa a obtenção de um bem público, na medida em queo patrocínio de um político influente aparece como requisitonecessário para o acesso a serviços públicos fornecidos peloEstado ou para a solução de questões específicas (Apud,DINIZ, p.140).O clientelismo é um problema do ponto de vista democrático,pois opera sob o princípio da dádiva, implicando sentimentosde lealdade e empenho individual. O eleitor, ao invés de seidentificar com seu grupo ou classe, como trabalhador ecidadão, se identifica como beneficiário de um políticoinfluente, tornando a política “inacessível sem ainterferência das relações pessoais”. Tanto para o políticoquanto para o eleitor envolvido, esse tipo de relaçãopolítica é legítima e positiva (KUSCHNIR, 2000, p.140-141).

Aceitando a definição de “relação clientelista” como

uma forma de intermediação personalista entre o político e

grupos ou indivíduos que se beneficiam de recursos públicos,

não podemos negar a persistência desta relação na sociedade

brasileira. Mas, como vimos, a manutenção de uma base

eleitoral de natureza puramente clientelista torna-se cada dia

mais difícil. O vereador que age de maneira unicamente

clientelista está correndo sérios riscos de não voltar a

eleger-se. Por isto mesmo ele diversifica sua atuação política

por vários grupos.

382

Atualmente o agente político mais característico em

Fortaleza é o que chamo de liderança política institucional. Esta,

apesar de ter sua base de sustentação no poder público, não

mantém vínculos com comunidades organizadas ou facilmente

identificadas. Por preferir agir mediante uma grande

capilaridade de atuação em pequenas redes sociais, não precisa

estar constantemente agindo no sentido de atender a demandas

localizadas.

A atuação do político não se dá no sentido de

viabilizar uma demanda ilegal, mas apenas de permitir o mais

rápido acesso àquilo se tem direito. O direito passa a ser

sempre mediado por meio de uma autoridade capaz de agilizar um

processo. O cidadão tem por direito determinado benefício

público, no entanto não sabe quando chegará a sua vez. A

atuação mediadora do político não é no sentido de romper as

barreiras da legalidade, e sim de agilizar a efetivação de um

direito.

Afinal, por que, a despeito de avanços modernos

consideráveis na sociedade brasileira nas últimas décadas,

ainda persistem traços tão acentuados de clientelismo?

O sistema de representação política, baseada na

democracia e no governo da lei, somente pode agir dentro de

uma situação social onde haja uma igualdade material mínima

entre seus membros. A desigualdade material impede serem os

membros da sociedade vistos como independentes e com direitos.

Numa realidade social marcada pela desigualdade entre seus

membros, o mecanismo do direito e o regime da lei parecem não

existir. Nela, os direitos são sempre mediados, intermediados

383

por relações pessoais. Mas esta não é uma exclusividade da

implementação do direito. A relação pessoal entre os desiguais

em todos os planos propicia a existência de condição de se

estabelecer uma relação de contrato entre o que pleiteia o

direito e o agente encarregado de fazer o direito se efetivar.

A relação assimétrica entre quem deseja algo e quem pode

fornecê-lo faz com que aquilo que é direito seja efetuado sem

custo por um dos membros da relação. Por não ter como pagar

pela produção de um bem do direito, este indivíduo sente-se

endividado. Como a ação do outro de efetuar a aplicação da lei

teve um custo, e o requerente não possui condições de arcar

com este custo, o encarregado pratica os atos e depois pode

cobrar a conta. Não se pode falar em cidadania plena numa

sociedade onde os membros convivem com profunda desigualdade

de acesso aos bens públicos e benefícios individuais. Existem

contratos apenas entre indivíduos reconhecidos como iguais. De

outro modo, estamos diante de formas variadas de hierarquia e

dominação.

Como assinalamos, a posição política de um

representante clientelista é mantida em função de uma rede

social de colaboradores que fornecem algum tipo de bem ou

serviço. Temos ainda uma segunda rede social, composta por

indivíduos que recebem algum tipo de ajuda. Eles são

integrados a partir de critérios de carência. A contrapartida

da sua manutenção na rede social se dá justamente no momento

da eleição quando o líder político – coordenador das duas

redes sociais – solicita sua contribuição em forma de voto.

Neste instante, as duas redes sociais se imbricam e demonstram

384

toda sua dependência. Não se trata propriamente de dominação,

mas de participação numa rede de ajuda mútua capaz de trazer

benefícios para seus membros. Um vereador solicita a um

empresário do transporte coletivo o empréstimo de um ônibus

para conduzir pessoas da sua comunidade a um enterro. O

empresário faz parte, no sentido ora analisado, de uma rede

social de ligações na qual o vereador é o elo dominante.

Uma rede social é uma integração de pontos e posições

dentro de uma estrutura de interação. A estrutura de rede

facilita fundamentalmente a redução dos custos de produção de

determinado bem. Muitos bens trocados dentro de uma rede não

são equivalentes a mercadorias, pois um bem pode ser produzido

como mercadoria, mas na outra ponta da rede de troca aparecer

como um favor. A equivalência das trocas nem sempre é feita

entre bens de valor semelhante.

As trocas efetuadas dentro de uma organização são mais

definidas e têm um custo superior em comparação com as feitas

em rede social. Numa organização, as posições já estão

relativamente definidas, implicando relações de obrigação com

custos definidos.

Como a estrutura de rede social tem posições distintas

para pessoas, os ocupantes de posições privilegiadas ganham

mais. As pessoas participam de rede e como membros desta se

beneficiam de acordos e contatos com um número considerável de

outras pessoas.

Uma rede social estruturada tem um limite para a

produção dos seus benefícios? A regra do limite para membros

385

participarem somente funciona para organizações e associações?

Por não se estruturar na base de algum tipo de organização,

uma rede social não cria igualmente qualquer tipo de mecanismo

de incorporação ou integração de novos membros. Mas um novo

membro integrado à rede social é sempre bem-vindo, pois

fortalece e amplia o poder de ação da rede, produzindo um

efeito suplementar para quantos dela fazem parte. A lógica da

associação e da organização é justamente o contrário.

Organizada com o objetivo de produzir um bem coletivo, a

associação implica necessariamente a distribuição de custos

individuais entre seus membros. Em certas situações, o

benefício produzido pela associação pode não mais ser

compatível com a quantidade de participantes. Logo, é preciso

limitar os membros. Isto cria forte tensão entre os

interessados em participar e os que já estão dentro da

associação. Por exemplo, uma associação que distribui ajuda

material para seus filiados, mas dispõe de um limite

financeiro para este fim, tanto maior o número de associados,

menos será sua parte financeira. Esse tipo de estrutura cria

uma tensão entre os já filiados e os que desejam se filiar.

Por sua natureza, uma rede social não experimenta este

tipo de problema. Além do mais, faz algo que a associação e a

organização não são capazes de fazer. Ela permite serem as

pessoas partes de uma rede e terem benefícios quase como se

não tivessem custos. Este custo para obter o benefício pode

ser “pago” com uma mercadoria de equivalência desigual. A

troca se estabelece numa estrutura de rede social sem que os

386

membros aparentemente tenham custo algum na obtenção dos seus

benefícios.

Uma organização possui um custo elevado para a

manutenção das suas relações de interdependência e de produção

do bem coletivo. Por esse motivo, muitos preferem a

participação em redes sociais a grupos organizados. Uma rede

social não é uma formação social de grupo latente nem semi-

organizado. Rede social é um conjunto de pessoas que trocam

entre si bens ou serviços valendo-se da sua posição numa dada

estrutura social. Uma estrutura social é composta de

indivíduos que ocupam posições distintas na ordem social.

Estas posições podem ser interconectadas umas com as outras

com vistas a produzir resultado. Alguém numa determinada

posição deve ser responsável pela estruturação destas posições

dispersas para produzir o efeito esperado. Um membro isolado

pode receber um bem desejado ou um serviço solicitado de forma

gratuita. Entretanto, para ele poder receber este favor,

alguém, em algum momento e posição da rede social, foi

mobilizado para poder disponibilizar este bem ou serviço. A

rede social funciona como um vasto sistema de posições de

auto-ajuda entre indivíduos que não se conhecem nem têm

relações pessoais, mas acabam indiretamente contribuindo uns

com os outros para que uma vasta máquina de posições e ações

possa ser conectada em diversos pontos.

A circulação de bens e serviços é o objetivo de toda

rede social, mas esta jamais é criada unicamente com esta

intenção, pois uma rede social nunca é criada. Ela pode, no

máximo, ser articulada, isto é, pontos distintos são

387

conectados com outros para poderem fluxos de bens e serviços

circular e ser transacionados entre os membros. Uma rede

social funciona sob a expectativa de troca freqüente entre

seus membros. As ações são praticadas por membros isolados da

rede com o intuito de mais adiante serem retribuídas pelo

voto. Isto deverá ocorrer, embora não se saiba quando.

A rede social é uma forma de diminuir o custo de

produção de qualquer bem necessário a uma sociedade, apesar de

não possuir recursos que garantam sua disponibilidade para

todos. As relações de fidelidade e lealdade aos membros mais

influentes da rede encarregados diretamente da obtenção do

benefício são apenas um aspecto desta vasta interdependência

entre indivíduos e posições variadas.

Um aspecto importante da situação de rede poucas vezes

ressaltado é serem os membros destas redes absolutamente

atores racionais, isto é, sua ligação com a rede de contatos

existe em função da retribuição possível de advir desta

adesão. Não há fidelidade sentimental, mas ação utilitária de

se servir do que está disponível. A fidelidade política dentro

de uma rede social política se mantém pela troca constante;

ela não existe fundada em outro valor que não seja a troca e o

interesse. Não há controle dos membros de uma rede social

exercida por membros diferenciados, ao contrário do verificado

na forma social organizacional onde se diferencia uma função

com a finalidade exclusiva de controlar as demais partes do

agrupamento. Enquanto numa organização social há sempre algum

tipo de coerção reconhecido como válido para os que rompem a

regra da solidariedade, numa rede social chama a atenção a

388

inexistência de qualquer mecanismo deste tipo. Nesta não se

criam forças de coerção para os membros retribuírem aquilo que

receberam, apenas se espera que o façam. Como há uma grande

disponibilidade de redes sociais, os indivíduos são

incentivados à total falta de retorno. Se não há forças de

coerção exigindo a contrapartida, há em quase todos os casos a

retribuição, ou seja, independente da existência de coerção, o

eleitor ainda é grato pelo favor recebido. Mas isto apenas por

causa da liderança comunitária e não do político.

Na periferia de Fortaleza é generalizada a concordância

entre eleitores: o bom político ajuda as pessoas necessitadas;

o mau político trabalha apenas para si, esquecendo os que o

ajudaram na eleição. Ajudar para o eleitor periférico

significa estar disponível a “quebrar o galho” em algum tipo

de problema. Não há muita distinção entre esfera de problemas

públicos e privados. Todos exigem a intermediação do político

e somente por sua intermediação o bem é ofertado.

O clientelismo é uma forma de ação política marcada

pela alocação desigual de recursos públicos, uma forma de

assegurar a sobrevivência política de políticos tradicionais.

No entanto, não é só uma ação orientada do político; conta com

a demanda do eleitorado, pois o político age como

intermediário na defesa de interesses de determinada

comunidade. O clientelismo é uma forma de ação racional de

acumular e concentrar poder e riqueza. Todavia, os membros do

sistema clientelista não têm uma hierarquia, estão todos ali

para se beneficiarem de algo que o político pode alocar.

Determinada comunidade recebe benefícios individualizados. O

389

beneficio pode ser um bem coletivo – uma escola, um posto de

saúde, um chafariz, uma rua asfaltada – qualquer coisa que não

traga benefício privado para nenhum membro da comunidade.

Este tipo de ação feita por um vereador pode ser

considerado clientelismo? No sistema representativo, os

vereadores são representantes de parcelas de cidadãos junto ao

poder público. Eles devem representar os interesses do seu

eleitorado.

Conforme tudo indica, o sistema clientelista pode ter

sido fortalecido pelo sistema político de representação. Como

o político representa parcela dos membros da sociedade, ele

pode oferecer compensação material ou de outra ordem pela

lealdade política desses membros. Para poder o vereador

continuar representando este grupo ou esta comunidade de

interesses, é preciso negociar sempre as formas desta

representação. Com o tempo, o eleitorado exige mais para

permanecer fiel ao mesmo político. Isto ocorre tanto mais a

eleição seja competitiva. Não há como assegurar um número de

votos cativos.

Existem relações clientelistas quando há indivíduos

mantendo relações de dependência mútua constituída na base da

troca de favores. Os vereadores comunitários são os que

expressam melhor esta relação de dependência com seu

eleitorado.

Atualmente, porém, este não é mais o comportamento

dominante dos vereadores de Fortaleza. A dependência do

eleitorado se expressava pela impossibilidade de abandonar seu

390

lugar de moradia. Como a relação era mantida essencialmente na

base da confiança e na assistência constante, não havia como

se afastar dos seus representados.

A qualidade da representação do vereador institucional

muda completamente esta forma de atuação. Ele já não precisa

comandar diretamente sua rede social de assistência, nem

precisa morar no mesmo bairro onde tem como núcleo seu

trabalho comunitário. Estruturar uma rede de líderes

comunitários dotados de certa independência garante sua

presença nas áreas de trabalho sem precisar manter uma

dependência mútua com este eleitorado. A construção de uma

rede social de apoio como um núcleo duro de colaboradores

somente é possível quando se impede o interesse destes mesmos

líderes em se candidatar.

A presença do poder público municipal já não depende de

aceitação das lideranças locais para agir. Este poder público

não, igualmente, é capturado pelo líder político local de modo

que possa favorecer seus protegidos. Os diretores de escolas

são um bom exemplo desta situação: como não são indicados por

políticos (mas eleitos pelos pais, alunos e professores) podem

vir a prestar algum serviço para o político atuante na área,

mas sua permanência no cargo não depende imediatamente da

vontade do vereador. Este funcionário pode apoiar-se em outras

redes de poder e não favorecer o mencionado político.

A rede de relações pessoal e direta entre indivíduos em

posições assimétricas significa o pertencimento a uma rede de

clientelismo. Dispondo de recursos diferentes, o líder

391

político fornece aquilo que o eleitor tem necessidade e este

fornece à rede seu apoio pelo voto.

Depois da década de 1950 o sistema político coronelista

entra em decadência. Em seu lugar, no entanto, se estrutura

uma outra forma de atuação política de caráter clientelista. A

marca deste novo sistema político clientelista é sinalizada

pela dificuldade em controlar uma base eleitoral. A esta

dificuldade, alia-se a maior presença do Estado. Tudo isto

modifica a base de atuação da política clientelista.

Na periferia os indivíduos gozam de mais liberdade.

Desse modo, podem negociar melhor seu voto. Expande-se, pois,

a mercantilização do voto. Ao lado disto, o sistema de

pequenas lideranças comandando pequenas redes de influência

passa a ter maior peso. Esta rede de colaboradores diretos

pode ser permanentemente ligada ao vereador, ocupando funções

de assessores, ou pode ser requisitada apenas nos períodos

eleitorais. Atualmente estes líderes são os indivíduos mais

atuantes na época das eleições para os cargos proporcionais. A

quantidade de candidatos que se servem dos seus serviços é

cada vez maior. Esta intermediação eleitoral é de natureza

puramente profissional. Não há relação de subordinação, de

gratidão ou confiança. O candidato está comprando uma

quantidade de votos. Ao líder comunitário cabe providenciar a

mercadoria voto. Tal fenômeno explica a elevação do custo de

campanha eleitoral, principalmente das proporcionais.

Na nossa classificação dos vereadores, o institucional

é o que mais se serve do expediente de líderes comunitários

que comandam pequenas redes sociais de influência pessoal.

392

Existe profunda diferença quando um político vereador

controla diretamente e pessoalmente sua rede social de

favorecimento e quando uma parte deste controle é transferida

para assessores ou para lideranças locais. Estas lideranças

comunitárias vivem na dependência de políticos, mas podem

gozar de certa autonomia, pois a atual situação econômica e

social da cidade permitiu a criação de uma estrutura

diferenciada de lideranças atuando nas comunidades com essa

autonomia, a qual, em parte, responde ao aparecimento desta

nova figura do vereador institucional: um vereador sem uma

base geográfica definida e agindo por meio de um sistema de

clientelismo extremamente disperso intermediado por lideranças

locais.

A principal distinção na política municipal da década

de 1990 é certamente a criação de uma estrutura complexa de

pequenas redes sociais comandadas por líderes comunitários.

Com o passar do tempo, estes foram se tornando autônomos,

verdadeiros profissionais da intermediação de interesses de

pequenas redes. Todavia, não se trata de agrupamentos sociais

definidos por interesses, mas de um indivíduo que ocupa uma

posição de destaque numa localidade e goza de prestígio entre

os outros moradores. Sua autonomia é relativa porque não

dispõe de acesso direto aos recursos públicos e por isso mesmo

não é capaz de montar uma rede social estruturada em forma de

instituição possível de assegurar assistência contínua a uma

clientela. Por não dispor de recursos, está sujeito à

dependência constante de líderes políticos que já conquistaram

393

mandatos. Presta serviços de intermediação para os vereadores

institucionais, mas não unicamente para estes.

Os vereadores tradicionais que se servem vastamente

deste mecanismo também nas eleições apelam para os serviços

destes profissionais da intermediação de interesses. Isto se

faz normalmente como forma de contrapeso a perdas eventuais em

suas áreas de atuação clientelista tradicional. É uma forma de

compensação, mas não retiram toda a votação deste mecanismo,

ao contrário do ocorrido com o vereador institucional, que se

mantém no poder mediante uso deste mecanismo. Isto pode

explicar o fato deste tipo de vereador ter um padrão de

votação bastante disperso.

A autonomia destas pequenas redes sociais de

intermediação dos interesses comandadas por lideranças

comunitárias é certamente o aspecto mais importante da forma

de extração da representação dos anos 1990. Esta autonomia se

efetua num cenário de forte presença do poder público. Ao

contrário do suposto, não é resultante de uma mercantilização

do voto, pois os que estão ligados às pequenas redes sociais

de intermediação de interesses não o fazem na base da compra

de voto, mas por meio de trocas desiguais. O mecanismo e o

fluxo nestas pequenas redes são idênticos àquela comandada

pelo político tradicional, baseada fundamentalmente na troca

de favores e na prestação de pequenos serviços.

Este que caracterizo como líder comunitário não está

vinculado a nenhuma associação de morador ou de qualquer outra

natureza, ou seja, ele não comanda nenhum tipo de organização

voltada para realizar alguma finalidade. O líder comunitário

394

ora descrito não se filia a qualquer tipo de estrutura

associativa, ele age em função de um tipo de influência

pessoal. A rede social à qual se filia este líder comunitário

pode ser de parentesco, de amizade, de vizinhança, etc. Um bom

exemplo deste tipo de liderança pode ser visto no responsável

por um time de futebol. Ele organiza o time, participa dele e

não retira nenhum tipo de benefício material desta atividade.

Tudo muda de figura no período das eleições, pois nesta época

ele dispõe de um agrupamento informal de pessoas que pode

sofrer sua influência.

O comício ilustra também esta situação. Ele é um

momento de reunir pessoas, mas o político sabe que neste caso

os indivíduos ali reunidos não formam nenhum tipo de

comunidade, pois não têm vínculos já constituídos entre si.

Buscar lideranças comunitárias é justamente buscar comunidades

de relações constituídas entre indivíduos em torno de algum

interesse ou afinidade.

Todo indivíduo mantém com outros uma variedade de

relações de expectativas de ações presentes e futuras. Muitas

vezes, estas interações não são constituídas na base de

direitos e obrigações. Mesmo assim, os membros de uma rede

social sentem-se como se fossem obrigados a efetuar certas

ações. Uma rede social não é um grupo ou um tipo qualquer de

associação, mas uma forma de interação social em que os

membros se reconhecem como tendo algum grau de pertencimento

definido por algum laço de direito ou obrigação mútua. A estas

formas de relações sociais espontaneamente criadas entre os

membros de uma coletividade chamamos de comunidade de

395

sentimentos. Este é o fundamento da rede social, pois embora

não sejam relações propositalmente criadas para produzir tais

efeitos, podem por sua natureza produzir este efeito.

Numa campanha política, o que se busca não são as

formações de interações entre indivíduos, mas as interações já

constituídas entre os indivíduos e que possam ser atualizadas

no sentido de mobilizadas para produzir o efeito desejado:

voto num determinado candidato. A busca destas estruturas

capilares de interações entre os indivíduos formando pequenas

comunidades de sentimentos constitui a principal tarefa de um

candidato. Isto diferencia candidatos ideológicos e

tradicionais, pois enquanto os primeiros pretendem usar o

momento da campanha política para melhor organizar o povo,

projetando uma ação futura, os segundos apenas procuram se

servir das organizações já existentes.

Boa parte do trabalho do vereador durante a campanha

política é identificar agrupamentos de indivíduos já dotados

de certa interação de expectativas mútuas (times de futebol,

grupos religiosos, etc.) que não estão, no entanto, baseados

em estruturas custosas como corporações, associações e outras

instituições de caráter formal. As redes de relações informais

são os núcleos privilegiados de atuação dos políticos, pois

eles sabem que mediante mobilização do líder desta rede social

é possível atrair os outros para uma ação coletiva. O normal é

estas entidades sociais em forma de redes terem pouca

estrutura interna organizacional. Isto facilita o trabalho e

diminui o custo da sua manutenção.

396

Em Fortaleza a dinâmica política sofreu grande

alteração depois da redemocratização: o apoio político não

está mais centrado nos agrupamentos sociais definidos, mas em

redes sociais. Com o passar dos anos, a novidade vai se

acentuando e sucessivos pleitos eleitorais vão fortalecendo

esta tendência à estruturação de atuação em rede social e não

mais em grupos sociais. A questão agora é saber o momento em

que se começa a estruturar essa nova configuração política.

5.3 Chuvas de Leite Bom - O Programa do Governo Sarney

Os elementos de novidade social e política apontados

até esse momento nas campanhas políticas da década de 1990 são

centrados na eliminação progressiva da dominação territorial,

por meio do controle de bases eleitorais de bairros, criação

de um padrão de sustentação política em base de rede social, e

não mais em organizações sociais, e o surgimento de um sistema

de lideranças comunitárias que atua como elo entre os

detentores do poder e os candidatos a cargo eletivo. A origem

deste sistema remonta à década de 1980 e ao fim do processo de

transição democrática.

Quando se analisam processos sociais muito complexos,

nos quais existe intensa participação de atores muito

diversos, é corriqueiro desejar encontrar atores coletivos com

capacidade de ação idêntica aos indivíduos. Confere-se a

agentes coletivos como entidades sociais atributos exclusivos

de indivíduos isolados. Quando estes atributos se manifestam

em grupos organizados, há uma dificuldade muito grande em se

usar o mesmo modelo analítico. O modelo de ação de grupos

397

institucionais é tomado como sendo idêntico ao modelo de ação

individual.

Um indivíduo pode desejar o controle de determinada

situação e isto só será obviamente possível se caracterizar

com precisão a natureza deste controle e recursos disponíveis

para assim proceder ou conseguir realizar seu intento. Para um

grupo social poder agir semelhante a um indivíduo e, portanto,

poder expressar interesses por meio de uma ação coletiva, são

necessários elementos mais complexos do que os que se

manifestam e são exigidos para uma ação individual.

De acordo com Braga (1995), em seu trabalho sobre a

política habitacional na Nova República, a prática do mutirão

habitacional teve uma conseqüência nefasta para o movimento de

associação de bairros. Isto porque, como a organização dos

moradores precisou assumir a responsabilidade pela

administração direta e construção das casas, surgiram inúmeros

conflitos quando determinada associação teve de assumir, sem

nenhuma experiência, tarefas de enormes responsabilidades.

Nossa história da relação do poder político de

vereadores com lideranças comunitárias começa precisamente na

Nova República. O elemento mais importante ocorre com a

criação de uma Secretaria Especial de Ação Comunitária

responsável pela vinculação da destinação de verbas públicas

para as comunidades. Para isto, toda e qualquer organização de

moradores interessada em receber verbas de programas do

governo federal deveria ter um registro legal em cartório. O

efeito do registro de associação foi imediato, pois da noite

398

para o dia verificou-se uma onda de registro de associações

com capacidade para receber projetos do governo.

Não somente a rede de associações comunitárias

registradas aumentou o número de associações espalhadas pela

cidade, mas também surgiu o Programa de Agentes de Mudança, que

seriam agentes comunitários com vinculações ao governo Tasso

Jereissati. Não há registro efetivo da existência deste

programa desenvolvido pelo governo, mas de qualquer modo não

parece totalmente estranho, pois se tratava de lideranças com

forte aceitação nas comunidades, as quais, mesmo sem sua

associação, influenciariam os destinos da comunidade.

O marco temporal e institucional deste processo

analisado é 1985, com a criação pelo governo federal da

Secretaria Especial de Ação Comunitária para “desenvolver os

programas sociais na área de alimentação, nutrição, creches

comunitárias e incorporou, posteriormente, o setor de moradia

popular, desenvolvendo programas destinados às famílias de

renda com até 3 salários mínimos” (BRAGA, 1995, p.102).

Segundo ressalta a autora, os programas sociais do

governo da Nova República “utilizam uma metodologia na qual o

governo, ao resgatar a lógica do trabalho comunitário,

trabalhava diretamente com as comunidades dos bairros

populares” (Idem, ibidem, p.102).

As organizações de moradores existentes na década de

1980 pautavam suas reivindicações basicamente no eixo da

moradia popular, pois este aparecia como o principal problema

enfrentado pela população de baixa renda. Entretanto, se a

399

moradia parece ser a demanda mobilizadora dos interesses dos

segmentos populares, o governo desenvolve outros programas

sociais com objetivo de “resgate da dívida social”.

Antes do desenvolvimento do Programa de Moradia Mutirão

Habitacional, o governo implementa um programa diretamente

relacionado com a área de alimentação e nutrição, o Programa

Nacional do Leite, o qual, segundo Braga (1995, p.104), “tinha

como estratégia política subjacente penetrar na lógica das

organizações de moradores, sobretudo, aquelas com penetração

dos setores de esquerda e progressistas.”

Conforme enfatiza esta autora, mesmo que o PNL tenha

sido criado voltado unicamente para o atendimento no combate à

subnutrição, ele vai ter efeito sobre o Programa de Habitação

Popular criado em seguida. De acordo com estas evidências, na

opinião de Braga havia uma estratégia subjacente de controle

na implementação destes dois programas.

Ainda conforme Braga (1995), desconsiderando esta

lógica controladora do governo, com vistas a controlar os

setores organizados da sociedade, o desenvolvimento deste

programa provocou profundas modificações na organização

popular dos moradores. A ocorrência desta mudança no padrão

organizacional destas comunidades serve como indício para a

autora supor a existência de uma lógica controladora por trás

das ações do governo federal.

Como afirma Braga (1995, p.104),

a forma como o programa (PNL) foi desenvolvido, a partir de1985, revelou a existência de uma estratégia política dogoverno federal destinada a contrapor-se à expansão dosmovimentos sociais urbanos. Desta maneira, quando foi criado

400

o Programa Nacional de Mutirões Habitacionais, o movimentopopular já apresentava sinais de mudanças ocasionadas entreoutros fatores pelas estratégias desenvolvidas através doPNL.

Reconhece a autora que a introdução dos dois programas

sociais do governo federal depois de 1985 é fundamental para

explicar a alteração do movimento de organização comunitária.

Os movimentos de moradores perdem aos poucos seu caráter mais

ideológico, pois deixam de se ocupar apenas com as grandes

transformações na estrutura da sociedade e passam a atender

igualmente à política miúda do cotidiano. A mudança do perfil

das lideranças comunitárias deve ser muito significativa ao

longo dos anos 1990, pois estas encontram um solo

organizacional não mais ideológico, mas marcadamente

clientelista.

A mudança mais significativa verificada na

representação política das forças locais em Fortaleza ocorre

na década de 1980, porquanto dois programas sociais

desenvolvidos diretamente pelo governo federal – Programa do

Leite e Mutirão de Casas – afetarão diretamente o padrão de

organização comunitária. Estes dois programas modelam o tipo

de organização comunitária e a natureza das suas

reivindicações. O tipo de liderança que emerge desta

transformação estrutural tem um perfil completamente

diferenciado daquele visto na virada da década passada. Nele o

engajamento político é menor no sentido ideológico e passa a

agir como intermediário local nas comunidades dos serviços

oriundos do poder público estadual ou municipal. São as

401

lideranças comunitárias que servem de primeiro elo de

intermediação de interesses e de alocação de benefícios para

as comunidades.

O desenvolvimento deste tipo de organização comunitária

afeta a base de legitimidade dos vereadores tradicionais, os

quais se apresentavam como o elo mais importante na cadeia de

intermediação dos anseios comunitários junto ao poder

decisório. Desse modo, gradativamente vai surgindo a figura do

vereador sem mandato, referindo-se especificamente ao líder

comunitário que atua diretamente nas comunidades. A existência

desse líder significa uma grande transformação na

intermediação do poder local, pois já não se permite um

vereador tradicional com uma base comunitária fixada numa

única comunidade. O padrão preferível será de atuação

dispersa, usando os elos existentes e já construídos entre as

lideranças comunitárias e os moradores.

Uma diferença marcante entre a forma de organização

comunitária atual e as outras do passado advém da mudança na

forma de organização federativa do Estado. Depois de 1988,

criaram-se espaços políticos relativamente autônomos nas três

esferas de poder público. A alteração jurídica vai provocando

mudança na estruturação do poder local e estadual. Do ponto de

vista das lideranças comunitárias, esta alteração significou a

diversidade de fontes de poder legítimo. Já não precisam se

manter na dependência única e exclusiva de uma fonte de

recursos de projetos para suas comunidades. São tantas as

fontes de acesso, umas mais fáceis outras mais difíceis, que

permitem a existência de uma competição entre as fontes de

402

financiamento. Um líder comunitário agindo num ambiente

institucional onde há diversidade de poder para implementar os

programas tende a se representar como uma figura relativamente

autônoma diante das fontes. Ele já não depende diretamente de

nenhuma fonte específica porque o poder político não organiza

de forma monolítica todas as fontes de poder existentes na

cidade. A percepção da improbabilidade de fechar todas as

portas, centralizando o acesso a uma única organização

política, permite se desenvolver a consciência de certa

autonomia organizativa da associação e isto tem profundo

significado.

5.4 Casas Feitas com as Mãos – O Programa de Habitação Popular

O Programa do Leite associa-se ao Programa de Mutirões

Habitacionais porque em ambos há a descentralização das

atividades. No caso do Leite, proporcionou o surgimento de

entidades comunitárias unicamente para servirem de núcleos de

distribuição dos tíquetes às famílias. A proliferação destas

associações comunitárias aparentemente com um perfil

completamente diferente das que existiam em associações de

moradores, formadas em função da luta pela conquista de

melhorias urbanas, será decisiva para o Programa de Habitação.

Assim como o Programa do Leite, o de Mutirões exigia a

constituição de uma Sociedade Comunitária de Habitação. Mais

uma vez tratava-se de disseminar associações por todo o

território com vistas a implementar os projetos sociais. As

antigas associações sofreram, então, a concorrência em virtude

do atendimento dos interesses dos beneficiados comunitários.

403

Nos dois casos, as associações comunitárias passaram a

ter um registro jurídico no CNPJ, e a partir daí poderiam

celebrar convênios com órgãos públicos. Diante disto, os

benefícios coletivos que chegam agora às comunidades não são

mais intermediados por lideranças políticas, vereadores e

deputados, mas por uma extensa rede de agentes comunitários

que atuam na intermediação direta entre os interesses de bens

coletivos da comunidade e o poder público municipal ou

estadual.

Com a difusão de associações comunitárias por toda a

cidade ocorre a competição por benefícios e o acesso aos

benefícios prestados pelo poder público. Em termos políticos,

haverá uma diminuição do poder do vereador comunitário porque

este passa a ser apenas um entre outros com poder de

intermediação. Entretanto, a ascensão à condição de vereador é

algo importante porque significa acesso ampliado a recursos

públicos, pois surgem novos canais de intermediação ao

atendimento dos interesses da comunidade.

Todavia, a manutenção de um vereador com base

comunitária, portanto, um líder comunitário com mandato, exige

a rápida transformação deste em um vereador do tipo

institucional. Isto simplesmente porque na condição de líder

comunitário ele acaba tendo de disputar com outras lideranças

comunitárias menores, sobre as quais não tem domínio, o acesso

aos benefícios que traz para a comunidade. A presença física

na própria comunidade é igualmente um elemento de atrito

gerador de descontentamento. Enfim, tudo leva a crer que o

surgimento de uma estrutura de lideranças comunitárias

404

dispersa pela cidade permite ao vereador não mais ter contato

direto com as comunidades, mas se servir destas lideranças

como intermediários.

A ampliação das associações comunitárias gera efeito

sobre a intermediação do sistema político, pois para o partido

já não importa a manutenção de uma base eleitoral territorial

fechada ou o monopólio da base da representação do interesse.

Isto porque se há outro meio de assegurar sua reeleição, o

político tende a não mais privilegiar a ação direta na

articulação com comunidades territoriais. Os interesses

imediatos das comunidades transferem-se para lideranças

comunitárias, agentes comunitários, que passam a agir na

intermediação destes benefícios.

A existência de uma rede de lideranças comunitárias é

um dado imprescindível para se entender a discussão política

sobre partidos, pois são estas redes que sustentam a reeleição

dos políticos.

Na década de 1980, as mudanças mais significativas em

relação ao poder público e os movimentos sociais urbanos são a

criação de canais de negociação e a formação de parcerias na

elaboração de novos projetos sociais. Com o passar do tempo, a

gerência dos projetos de habitação popular passou a ser feita

diretamente pelas associações de moradores mediante criação de

uma Sociedade Comunitária de Habitação. Finalmente, o poder

público estava transferindo uma parcela da sua

responsabilidade diretamente para as lideranças comunitárias,

pois estas deveriam assumir em grande parte o ônus pela

implementação da política.

405

Das mudanças verificadas na década de 1990 com a

consolidação da redemocratização política, a principal é o

desaparecimento gradativo de relevantes atores sociais que

atuaram de forma decisiva nos anos anteriores. Mas o

deslocamento de função dos movimentos sociais urbanos não é

somente fruto da abertura da esfera pública à participação;

novas demandas estavam sendo colocadas na ordem do dia e o

movimento contra o poder público já não respondia a esta

expectativa de vitórias. O surgimento de ONGs será o momento

decisivo para diminuir definitivamente a importância dos

atores políticos urbanos, pois elas passam a atuar diretamente

com as entidades comunitárias de cunho assistencialista no

intuito de viabilizar a resolução de problemas enfrentados

pela comunidade, os quais também se expressam como demandas

privadas.

Definitivamente, parece que o tempo da conquista de

benefícios coletivos mediante ações coletivas organizadas em

grandes movimentos sociais havia acabado. O padrão de

organização social reinante nos bairros está mais próximo das

associações de natureza puramente assistencialistas. Para

limitar o espaço das políticas da ação reivindicatória ao

poder público, ocorreu a necessária ampliação de canais de

intermediação entre as decisões do poder público municipal e

estadual e os interesses comunitários.

5.6 A Emergência das Novas Lideranças Comunitárias

406

Extremamente complexo, o sistema de lideranças

comunitárias é uma rede de pessoas atuando em cada comunidade

com algum tipo de influência sobre outras pessoas e moradores

de uma mesma localidade. Cada associação tem um número de

pessoas ligadas à sua associação. Elas podem ser filiadas em

torno de um projeto de moradia popular ou para receber outro

tipo de benefício. Cada associado fará parte automaticamente

do que o líder chamará de minha comunidade, isto é, as pessoas

sob sua responsabilidade ou influência direta.

De modo geral, as associações se formam em torno de

projetos de casas ou posteriormente em torno dos laços de

vizinhança e da necessidade de buscar melhorias para a

comunidade. O líder comunitário é aquele que arca com a maior

responsabilidade de trazer os benefícios para a comunidade,

mesmo que não seja diretamente o mais beneficiado. O argumento

dele será sempre a necessidade de fazer algo pelas pessoas,

pois é visto como responsável pela melhoria das condições de

vida dessas comunidades.

A comunidade é uma associação muito restrita de pessoas

ligadas a um líder do qual esperam algum tipo de benefício.

Embora as pessoas filiadas à associação acabem não tendo

nenhum tipo de obrigação, ficam em certo sentido na

expectativa de conseguirem algum beneficio. No cadastro das

pessoas filiadas consta uma espécie de repertório de

necessidades destas famílias.

Na época da eleição, o político busca o trabalho do

líder comunitário porque sabe que este goza de contato e

confiança com um número de pessoas a ele filiadas em

407

associação. O candidato deseja precisamente este contato, pois

assim pode expandir sua expectativa de eleição.

Entre os líderes comunitários existe rivalidade. Desta,

a maior ocorre por causa da área de influência. Uma liderança

pode ter uma associação de pessoas ligadas a ela e não buscar

benefícios para a comunidade. Isto cria tensão porque outras

podem desejar entrar na área. Mas as lideranças que mantêm

vínculos apenas com projetos de moradia não são pressionadas

no sentido de estarem invadindo a área de outras lideranças

porque seus filiados estão dispersos por vários bairros.

A dinâmica da associação é sempre a criação de uma

associação nova no local onde ocorreu o assentamento da

moradia. Quando a própria liderança vai também para a área

onde se constrói o mutirão, ela permanece como liderança ali

também. O normal, no entanto, é outro membro da associação

criar outra associação, agregando os antigos filiados, que

passam a ser membros de uma nova associação.

A “associação para projetos” provoca a mobilização do

líder comunitário unicamente em torno do benefício que pode

conquistar para sua comunidade. Como cada grupo de morador

está cadastrado em uma associação e somente em uma, espera que

cada líder busque os benefícios para o grupo. Já as melhorias

coletivas para o bairro, que afetam a vida de todos os

moradores, independente de fazer parte de uma “associação para

projeto”, acabam tendo enormes dificuldades de serem

realizadas. Como as associações de moradores estão todas

transformadas em “associações de projetos”, os benefícios de

408

natureza coletiva ficam sem lideranças responsáveis pela sua

provisão.

Atualmente, as associações de moradores são as mais

disseminadas na periferia e não são mais nos moldes daquelas

existentes na década de 1980, quando os moradores de

determinado bairro se organizavam para a conquista coletiva de

melhorias urbanas para o bairro. Esse tipo de organização

ainda existe, e continua tendo um peso relevante em suas

atividades, mas outras atividades foram sendo incorporadas. As

associações de moradores agregam pessoas com expectativa de

conquista individual, normalmente se reúnem com o intuito de

obterem do poder público uma moradia doada pelo governo. São

os projetos de moradia populares os que mobilizam as

lideranças comunitárias nas periferias das cidades.

Espontaneamente em todo agrupamento ou agregação de

pessoas surge imediatamente, em face dos inúmeros problemas

coletivos, a figura de líderes, pessoas que se destacam por

determinação e interesse de resolver problemas. Nos ambientes

dos conjuntos habitacionais não seria diferente. A cada novo

agrupamento formado em torno das moradias, novos laços são

criados, novas necessidades aparecem, novas lideranças surgem

para atendê-los.

Para se referirem ao conjunto de pessoas sob sua

influência direta ou indireta, as lideranças usam alguns

termos, como “minha comunidade”, “meus associados”, “meu

povo”. Estes são os mais empregados pelas lideranças

comunitárias para se referirem às pessoas sob as quais mantêm

vínculos de liderança, isto é, pessoas sob as quais detêm

409

algum tipo de vinculação de expectativa, pois elas,

normalmente, estão reunidas em torno da liderança, esperando

receber algo. A vinculação se dá em torno da expectativa da

casa própria por meio de algum programa governamental.

Normalmente, a associação comunitária possui um

cadastro no governo estadual e apresenta projetos de

habitação, isto é, pedidos de moradias para seus associados.

As pessoas se filiaram à associação com o propósito de obter a

moradia. Mas como esses associados ficam dispersos por várias

áreas da cidade, encontrando-se apenas esporadicamente em

reuniões, a liderança cria outras estratégias de ligação com

as pessoas em seu entorno. Desenvolve trabalhos variados, traz

benefícios para estas pessoas, de maneira que acabam se

formando “duas comunidades” sob sua liderança. Há uma

formalizada, com registro, constituída pelas pessoas com

expectativa de moradia doada pelo governo, que se encontram de

maneira regular, mas os laços são de compromisso e expectativa

de um bem pelo qual se está transferindo autoridade de um

coletivo para uma única pessoa representá-las junto ao

governo. Espera-se serem seus anseios e expectativas atendidos

pelos governantes.

Entretanto, no seu próprio lugar de moradia, é preciso

se apresentar também como liderança. Para isto, outro tipo de

atividade é exigido. São problemas coletivos ou serviços que

podem ser trazidos para a comunidade de maneira que sua

posição de liderança não seja contestada. A posição de

liderança pode ser contestada em face da não correspondência

410

de expectativa das ações de um líder comunitário. Ele deve

trazer benefícios para “seu povo”.

Essas duas atividades são independentes e feitas com

públicos distintos. Dos associados para a moradia, ele espera

que participem das reuniões informativas em relação ao

processo em andamento e paguem regularmente sua contribuição

para a manutenção da associação. Na segunda forma de

associação, não há um cadastro de pessoas, mas vínculos

informais entre elas em decorrência do grau de atenção que lhe

atribui a liderança. Quando se organiza uma festa das crianças

com donativos vindos das regionais ou de particulares, não se

escolhe as crianças que podem e não podem participar. Todas

são bem-vindas, mas há um público certo com o qual se pode

contar, as pessoas com as quais mantém contatos constantes.

As lideranças conseguem trazer para o bairro ações

desenvolvidas pelo governo municipal ou estadual. O serviço

público será proporcionado a todos os presentes, mas as

lideranças procuram mobilizar as pessoas do seu conhecimento,

com quem mantêm vínculos mais estreitos. Uma atividade

coletiva será capitalizada por cada liderança de acordo com

sua clientela ou público. De imediato se saberá quais as

lideranças não envolvidas na realização deste evento. Estas

passam a ser contestadas pelo simples fato de não terem se

envolvido com o trabalho conjunto com vistas à realização da

atividade no bairro. As pessoas ligadas à liderança e que nada

fizeram para o evento vir para o bairro sentem-se de certo

modo desprestigiadas porque sua liderança nada fez. Essa

insatisfação pelo trabalho não feito vai aos poucos se

411

materializando na aceitação de uma nova liderança, pois quando

têm necessidade de algum tipo de favor não recorrem à sua

antiga liderança, mas à nova, esta agora reconhecida como sua

“protetora” na área. Desta forma, as lideranças estão

vinculadas e obrigadas a se submeterem às exigências dos seus

“filiados” de maneira que possam sempre contar com eles.

Assim como os bairros não são fechados, as comunidades

não são isoladas uma das outras, conectadas apenas por

intermédio das suas lideranças. Numa mesma área geográfica há

formação de agrupamentos de pessoas que se identificam como

pertencendo ou seguindo a orientação de uma liderança. Essas

pessoas são vistas como sendo “sua comunidade”. Mas isto é

extremamente impreciso, pois se há responsabilidade desta

liderança em trazer permanentemente benefícios e serviços para

sua comunidade, não há por parte dos membros da comunidade

nenhum tipo de contrapartida.

O que estas lideranças comunitárias fazem é criar

vínculos de favores em rede de pessoas de modo que em certo

momento possam usar sua influência ou simplesmente o serviço

prestado e exigir uma retribuição. Quando esse serviço foi

ofertado não houve nenhuma explicitação sobre a natureza da

relação que se estava criando. Entretanto, conforme todos

sabem, em algum momento isto será cobrado. Mas como o

benefício foi ofertado de modo coletivo, nem todos se sentem

na obrigação de atender ao pedido.

As relações sociais não institucionalizadas, isto é,

que não recebem sua atribuição de um estatuto legal, são

sempre sujeitas a mudanças. As lideranças comunitárias, por

412

exemplo, não recebem sua atribuição de nenhum sistema

formalizado. Por isto mesmo, ficam sempre na dependência da

aceitação da sua liderança por parte dos moradores. A

comunidade que lhe serve como referência para se dizer

“liderança comunitária” é formada por um conjunto de pessoas

vinculadas a ela de maneira informal. Para essa vinculação

permanecer, isto é, para as pessoas continuarem considerando

fulano como líder, é preciso demonstrar trabalho em benefício

da comunidade.

Ao se falar desta maneira, pode haver a impressão de

existir uma entidade chamada “comunidade”. Na verdade, trata-

se de um termo que serve como referente para designar uma rede

de pessoas que se reconhecem como tendo fulano como sua

liderança, embora não se encontrem, nem tenham relações

específicas em torno desta liderança. Sendo assim, perder

prestígio como liderança nunca será um ato concreto de

destituição desta posição. A posição de liderança não é algo

formalizado capaz de num determinado momento, por um único

ato, destituir o ocupante desta função. Como se trata de

relação de uma posição constantemente negociada, pode ocorrer

a erosão desta liderança por longo tempo até que todos se dão

conta de não mais existir aquela liderança. No entanto, não

houve, em momento algum, a decretação do fim do seu reinado de

liderança. Tudo se passou lentamente sem que ninguém

destituísse ou lutasse abertamente para ocupar seu lugar. Aos

poucos cada morador vai se desinteressando de ter este fulano

como liderança e passa a recorrer mais a outra pessoa. Com o

413

tempo, haverá o fortalecimento do poder e prestígio desta

outra pessoa.

As lideranças comunitárias são pessoas de destaque

dentro das comunidades dispostas a solucionar problemas de

toda natureza. Não são apenas os problemas de ordem coletiva,

como o asfalto ou a pavimentação da rua, mas também problemas

individuais dos moradores. Nem sempre a liderança comunitária

é uma pessoa com mais recursos, mas alguém que se propõe a

buscar solução para problemas. O poder destas pessoas vem

diretamente do número de moradores que reconhecem seus

esforços para realizar determinadas tarefas.

Fato muito comum ocorre nas áreas de construção

habitacional popular. Os moradores ocupam essas casas em

decorrência da sua ligação a uma associação comunitária. Sob

orientação de um líder, são cadastradas pessoas com carência

de moradia. Ao se deslocarem para a região, nem sempre a

liderança está entre as contempladas com moradia. Nesse caso,

sua comunidade fica desprotegida. Longe fisicamente dos seus

liderados, abre-se um vácuo de poder e rapidamente um dos

membros se destaca como candidato a liderança comunitária.

No Brasil, os partidos conservadores obtêm sua base de

sustentação eleitoral não nas camadas da sociedade mais

elevadas, mas nos estratos de renda mais baixos e nas camadas

com menor escolaridade. Representar este segmento da sociedade

significa a prática constante do clientelismo generalizado.

O elo entre esses políticos conservadores e seu

eleitorado passa constantemente pela assistência concentrada

414

em equipamentos de serviços. As lideranças comunitárias

agregam em torno da sua associação uma pequena quantidade de

pessoas com as quais mantêm laços de proximidade e de

interesse concentrados na expectativa da habitação popular.

São essas lideranças que sustentam a capilaridade da votação

dispersa de vários candidatos, principalmente os oriundos do

aparelho institucional do Estado.

A proliferação de associações comunitárias pelos

bairros de Fortaleza é facilmente constatada pelas próprias

lideranças comunitárias mais antigas, e também pelo número de

cadastros na Secretaria de Ação Social do governo estadual.

De acordo com os militantes neste setor, este fato já

vinha se processando há algum tempo, mas recentemente o que

era uma tendência se materializou numa prática recorrente.

Segundo afirma uma líder, da noite para o dia surge em cada

esquina de uma área habitacional de mutirão nova associação. A

dinâmica de criação é normalmente simples. A liderança não tem

como manter por muito tempo sua autoridade e isto gera muita

insatisfação por parte dos associados. Esta insatisfação

decorre da não contemplação com benefícios trazidos pela

liderança. Como deve haver critérios mínimos para a

distribuição daquilo que se conseguiu, muitos acabam ficando

de fora. Os de fora são os primeiros a gritar, reclamar sobre

a qualidade da sua liderança. Abre-se um campo fértil para que

novos líderes possam questionar a autoridade constituída. Não

há, pois, liderança e autoridade sustentada sem a troca

constante e o aporte de benefícios para sua comunidade.

415

Essa situação de tensão e questionamento da autoridade

da sua liderança é mais acentuada em áreas de conjunto

habitacional, em virtude da natureza da sua ocupação. Como

foram transferidos de outras áreas da cidade para um lugar

definido de moradia, muitos já têm ligações com outras

pessoas. Reunir as pessoas em torno de qualquer festividade

promovida pela liderança é uma maneira de demonstração de

poder da liderança. Algumas vezes ela faz isto com outra

parceira de liderança, mas esta não é a prática comum.

A liderança comunitária aqui caracterizada representa-

se como um elo intermediário entre as necessidades da

comunidade e o setor público. Ela é o primeiro elo entre os

anseios, necessidades e expectativas da população pobre e os

órgãos responsáveis pelo atendimento destas carências.

Reconhecem um sistema de direitos da população, mas ao mesmo

tempo estas pessoas “não têm aquele conhecimento”. Por isto,

por sentir-se responsáveis pelo destino destas pessoas, estas

lideranças se encarregam de lutar em defesa dos seus

interesses. Em muitos casos trata-se de um impulso de

solidariedade voltado ao atendimento da carência do outro,

dentro das suas limitações.

A liderança comunitária tem envolvimento

individualizado ou coletivo com seus liderados, pois ora pode

estar em busca da solução de um problema específico de alguém,

ora de algo que servirá a muitos na comunidade.

A expressão comunidade referida em entrevistas das

lideranças deve ser lida como uma rede de contatos entre pessoas

intermediadas por outra pessoa: o líder. A posição ocupada por

416

este dentro da sua rede depende da aceitação, concordância,

consideração por parte das outras pessoas. É algo bastante

informal, não se constituindo numa estrutura fixada em

regulamentos escritos que possa definir as atribuições dos

demais membros da rede. O que se espera do líder é que

trabalhe com vistas à melhoria das pessoas da comunidade. Em

troca, receberá o reconhecimento ou a consideração de ser o

chefe local.

Como não existe um estatuto fixando a relação entre os

membros da comunidade e sua liderança, esta fica sempre na

dependência da troca constante, do atendimento dos benefícios

a ser trazidos para seus liderados. A condição de liderança

comunitária é totalmente dependente da aceitação e

consentimento dos outros, os seguidores da sua liderança. Como

é uma posição não fixada em termos de um estatuto regendo as

atribuições dos membros participantes da rede social de

solidariedade, está sempre sujeito a ter sua autoridade

contestada. O modo de alimentação da sua condição é a troca

constante, em forma de benefício para os membros da sua rede

de apoio. Caso não se empenhe neste propósito e outra

liderança o faça, sua autoridade estará seriamente

comprometida perante seus liderados.

Na situação de forte competição entre as lideranças,

sem condições de um acordo sobre o modo como deveriam se

comportar ante sua rede social de assistência, os ocupantes da

posição de liderança têm a sensação de serem chantageados. Nem

todos suportam a pressão para trazer benefícios. Acordos

temporários entre as lideranças podem ocorrer, pois isto

417

alivia a tensão e diminui o descontentamento generalizado.

Tudo vai depender da existência ou não de potenciais

lideranças que podem aproveitar o vácuo de poder e assumir

essa condição. A relação mais freqüente entre esses moradores

é a necessidade de transferir a solução das suas dificuldades

para outra pessoa. Sentem-se incapazes para enfrentar suas

dificuldades e por isto recorrem com freqüência ao auxílio de

terceiros.

A noção de comunidade remete a algum compartilhamento

de caracteres que identifica seus membros como pertencentes ao

mesmo agrupamento. Embora o território seja uma condição

necessária, não é suficiente para definir o pertencimento

comunitário porque hoje é possível se falar de comunidades que

não compartilham de nenhum território, entretanto sabidamente

se identificam como um grupo social definido.

Os laços mantidos pelos moradores com sua liderança

comunitária em grande parte se sustentam no compartilhar

territorial ou na proximidade de vizinhança de moradia,

porquanto a vizinhança permite a troca constante de afetos,

sentimentos e interesses decisivos no momento de resolver a

quem será destinado determinado benefício conseguido pela

liderança comunitária. Os mais próximos afetivamente serão

sempre os primeiros contemplados, a despeito de no discurso o

líder sempre se referir a critérios racionais de carência como

aqueles que definem a escolha dos que receberam os benefícios.

Na prática não ocorre bem assim.

A densidade na relação das lideranças comunitárias com

os políticos se baseava na existência de pouca alternativa,

418

pois praticamente cada político detinha o monopólio de certa

área geográfica da cidade. Além disso, a ligação estreita

mantida com o político se expressava também com as demais

pessoas sob seu comando, pois era uma troca mais intensa.

Gradativamente, o processo de diferenciação, aumento da

competição pelos serviços das lideranças vai minando essa

relação densa, sendo cada vez mais pontual e específica, a

ponto de algumas lideranças se relacionarem com os candidatos

exclusivamente durante o tempo da eleição e nada mais. Servem

unicamente como intermediários e isto já é suficiente.

Todavia, essa não é a situação desejada por essas lideranças.

Elas pretendem exatamente o contrário. Todas se queixam do

fato de o político não mais manter sua liderança por tempo

indeterminado, fazendo apelo apenas durante as campanhas.

Reclamam de falta de atenção e desvalorização. Muitas explicam

que isto ocorre porque as lideranças comunitárias foram

infiéis aos seus candidatos, ou recebiam dinheiro para

trabalhar para determinado candidato, mas acabavam fechando

acordo com outros também. Tanto os políticos que buscam o

apoio e auxílio das lideranças quanto as lideranças sabem que

o jogo de confiança é mínimo. É uma relação de aposta segundo

a qual aquele que foi contratado trabalhará unicamente para

ele. Não há como ter certeza disto.

A condição de liderança comunitária não é um papel que

se adquire participando de um jogo competitivo, orientado por

regras precisas; é uma posição que vai com o passar do tempo

obtendo reconhecimento por parte de outros. Nesse jogo de

reconhecimento entram não somente os próprios associados que

419

passam a reconhecer determinada pessoa como sua liderança, mas

também outras lideranças atuantes na mesma área. É um processo

lento e gradual de aceitação por parte das outras lideranças

que vão ampliando seu espaço de atuação e legitimidade.

A liderança comunitária controla apenas parcialmente

uma quantidade de votos de eleitores que mantêm com ela

filiação de interesse. No entanto, não é capaz de assegurar

com certeza se estes votos serão mesmo destinados ao candidato

por ela apoiado. Há uma grande margem de incerteza nesta

transferência de voto, pois todas as lideranças afirmam a

impossibilidade de controle sobre o voto dos seus associados.

Apenas podem indicar o candidato, deixando ao eleitor a

liberdade de decidir.

Um candidato que atua baseado no controle de lideranças

comunitárias sabe que deve deter sobre seu domínio um número

razoável delas para poder garantir a eleição. Mesmo assim,

está sempre inseguro, pois mesmo que a liderança verbalmente

afirme uma quantidade expressiva de votos, a rigor não há como

saber se terá o prometido. Numa família é cada vez mais

freqüente os filhos escolarizados caminharem politicamente

independentes dos pais. Apesar da idéia de que divididos não

valem nada, os filhos já não se rendem ao desejo dos pais. Se

não há controle familiar do voto, há menos ainda do restante

dos agrupamentos do qual a pessoa participa.

Essas pequenas estruturas de filiação individuais de

pessoas em torno de lideranças são as células mais importantes

mobilizadas em épocas de eleições. São elas que asseguram aos

candidatos uma “eleição tranqüila”. As associações voltadas

420

para interesses não políticos são transformadas inteiramente

em máquinas eleitorais. O maior ou menor controle deste

“sistema de lideranças comunitárias” é decisivo para uma

eleição de vereador. Ressaltar a autonomia relativa deste

sistema implica assegurar condições de sobrevivência em

decorrência do calendário eleitoral que atualiza a cada dois

anos estas microestruturas de associações comunitárias.

O aspecto mais contrastante entre o padrão de liderança

comunitária atualmente existente e as antigas lideranças é

relativo à manutenção da sua posição. Ao se deteriorar os

laços de lealdade, fidelidade e reconhecimento “pelo que já

foi feito”, resta o trabalho constante de troca incessante de

favores diversos. Em alguns casos, ainda persiste o padrão do

vereador tradicional que atende pessoalmente o eleitor e

escuta seu pedido. Entretanto, o mais comum é a distinção

muito precisa de lugar de trabalho e lugar de residência do

vereador. Há mesmo um caso de um vereador que proíbe

expressamente qualquer uma das suas lideranças lhe encaminhar

eleitor diretamente para sua residência. A troca é mais

intensa entre os moradores e as lideranças comunitárias e

menos entre estas e os vereadores.

Quem são os membros de uma associação comunitária?

As pessoas desta associação são aquelas oriundas do

mutirão, juntamente com o líder e outras retardatárias.

Ocorre, então, uma Sociedade de Habitação quando se constroem

as casas e as pessoas continuam sob sua liderança por algum

tempo. São membros da sua comunidade. Deste modo é possível

encontrar um líder de determinado bairro com uma comunidade em

421

outro bairro, formada pelas pessoas, mutirantes, que vieram

por causa do seu projeto de habitação. Os mutirantes de uma

área formam naturalmente uma comunidade reunida sob a proteção

deste líder comunitário que os trouxe. Este fala abertamente

da minha comunidade, como se as pessoas que lá estão

mantivessem com ele um vínculo de gratidão. Entretanto, o

presidente de uma associação não pode dar assistência à sua

comunidade se morar em outra área. Isto vai gerando

insatisfação com seu líder, e vai fazendo com que ele passe a

ser base de apoio de outra liderança que está atuando na área.

Assim como as instituições religiosas disputam fiéis para

congregar na sua igreja, o mesmo parece ocorrer em relação às

lideranças comunitárias que procuram aliciar moradores

filiados a outra liderança.

Os moradores de habitação de mutirão já vieram para a

área vinculados a uma Sociedade de Habitação, que lhes

proporcionou uma casa. Estes mutirantes são naturalmente

vinculados ao líder. Depois, porém, chegam os novos moradores

da área que não vieram no mutirão, mas compraram a chave de

outros mutirantes. Essa clientela dos novos moradores é uma

reserva fácil para os líderes que estão formando sua

associação.

O risco de todos os líderes de mutirão é o surgimento

de uma nova liderança no lugar onde serão construídas as casas

para sua comunidade. E isto acontece precisamente porque a

liderança não se muda com seus associados, deixando terreno

fértil para as novas lideranças. O descontentamento dos

mutirantes sempre ocorrerá porque as casas são entregues sem

422

nenhuma melhoria coletiva. Caso o líder não se empenhe em

providenciar luz, água, calçamento, o mutirão pode ficar sem

estes benefícios. O mais freqüente é a liderança que não

acompanhou a comunidade se afastar, entregando a comunidade à

própria sorte. Este vácuo de liderança é o campo fértil para a

atuação das novas lideranças que procuram seduzir os novos

mutirantes com trabalho e empenho.

Inicialmente, a comunidade de moradores mutirantes

passa a exigir outros tipos de benefício a serem buscados pelo

líder. Cria-se uma estreita relação de dependência entre o

líder e seus liderados e, estando numa área com vários

líderes, a competição se instala. Há uma oferta variada de

liderança disposta a tê-lo como associado. A comunidade de

cada liderança é demarcada pelo cadastro que tem e a

identificação com a área onde atua. Aparentemente não há

invasão de área de controle de cada liderança.

A associação é formada por um grupo de cinqüenta

pessoas inscritas para um programa de moradia. Este total é o

máximo que uma associação pode possuir para um projeto de

moradia. Os outros são independentes e não têm número fixado,

“quantos vierem a associação abraça”. A associação não ligada

diretamente ao projeto de moradia reúne as pessoas em torno de

outros interesses, como ações com os jovens, ações relativas à

segurança pública. A associação promove algumas atividades com

jovens, como palestra e recreação, e também com os idosos. Um

exemplo dessas atividades foi um passeio, por iniciativa da

Regional, para os idosos conhecerem os principais pontos

turísticos da cidade. Essa atividade é dirigida aos associados

423

da sua comunidade. A associação não presta nenhum tipo de

serviço nem dispõe de qualquer estrutura para oferecer

autonomamente uma atividade na comunidade. Isto fica na

dependência dos projetos criados em cada órgão do governo.

Áurea, líder comunitária de Vila Velha, cita o exemplo de

palestras e oficinas realizadas na comunidade, promovidas pela

associação, mas dadas pelos órgãos do governo.

A função do líder comunitário é descobrir onde existem

as oportunidades e trazê-las para a comunidade. Segundo Áurea,

as pessoas da comunidade não sabem nem procuram saber onde tem

vacina, onde se faz planejamento familiar, nada disto. Desse

modo, compete ao líder comunitário tomar estas iniciativas. A

função do líder em relação aos membros da comunidade é

paternalista. Estes são vistos de forma negativa, pois não

buscam individualmente seus interesses, deixando ao líder esta

tarefa. Aparentemente este trabalho é reconhecido pelos

moradores como se fosse a tarefa, a obrigação mesmo do líder.

Não importa se ele não é pago para isto. Ou melhor, para os

moradores, os líderes se beneficiam com seu trabalho. Logo, os

encargos a eles atribuídos pela população são mais do que

merecido. Ao não procurarem saber como realizar seus desejos,

as pessoas acabam transferindo para os líderes esta tarefa de

ser sempre o ponto de referência do atendimento de qualquer

necessidade.

Para demarcar sua relação com o restante da população,

o líder comunitário age da seguinte forma: as pessoas precisam

das coisas, mas não sabem ou mesmo não querem saber como

conseguir. Fica ao encargo do líder, que tem mais

424

conhecimento, obter o benefício necessário. Como o líder

participa de várias reuniões, acaba sabendo da existência de

projetos desenvolvidos pelos diversos órgãos públicos. A líder

comunitária Áurea afirma que participou recentemente da

conferência de medicamentos promovida pela regional. “Pra

gente é uma riqueza de conhecimento, vai conhecendo e vai

trazendo para comunidade, pois eles não sabem, não têm

conhecimento.” A fonte de poder das lideranças é não somente o

conhecimento, a informação da existência de programas e

projetos desenvolvidos pelos órgãos públicos, pois elas servem

como elo intermediário entre os órgãos e os moradores.

Quando eu trago esse conhecimento, esse projeto, eu não tenho aquela pessoa fechada, porque eu moro numa comunidade que outras pessoas construíram, eu vou restringir aos que moram aqui, segurar, não, eu espalho. Para quem der, venha (Entrevista com a líder Áurea, da Vila Velha, 2003).

A disputa entre as lideranças comunitárias ocorre por

causa das lideranças que se beneficiam diretamente com um

projeto de casa e acompanham seus mutirantes, fixando-se na

área também como morador. Mas há o exemplo de mutirantes

trazidos por outra liderança que não veio morar na área porque

não necessitava de casa. Neste caso, o normal é alguém da

comunidade dos mutirantes assumir a direção da comunidade como

liderança. Como eles dizem, como o cabeça. A disputa não

acontece, portanto, na própria área, mas apenas no meio das

lideranças que ficam sabendo que uma liderada agora formou sua

própria associação, mesmo quando fazia parte de outra

associação.

425

A associação não tem nada de pertencimento coletivo, de

união de moradores onde todos participam e contribuem

diretamente, com seu esforço individual, para a conquista de

um benefício. A associação é uma firma, uma agência

encarregada de mediar os benefícios para determinada

comunidade. Cada associação é uma firma individual comandada

por uma liderança que tem sobre si o encargo de trazer os

benefícios necessários à comunidade que lhe é sujeita. Esses

associados não são mobilizados no sentido de qualquer ação

para a conquista de benefício. A liderança procura arcar com

todos os custos dos benefícios coletivos e privados a serem

providos para a comunidade.

A lógica desta associação comunitária é que os membros

recebam os benefícios solicitados, mas sem nenhum custo para

sua conquista. O papel dos líderes comunitários é justamente

de arcar com a responsabilidade e os encargos de trazer os

benefícios para a comunidade. Goza de condição de liderança os

que forem capazes de causar o mínimo de aborrecimento à sua

comunidade e satisfazê-la sem nenhum tipo de custo.

Entre o líder comunitário e sua comunidade existem

laços de liderança identificados como de subordinação e troca

constante. Caso o líder não trabalhe devidamente pela

comunidade, é imediatamente substituído por outro com mais

empenho e disposição para tomar estas providências.

Pode-se caracterizar o trabalho comunitário como de uma

pessoa que dispõe de acessos e conhecimento dos direitos e se

encarrega de trazer para os outros, sua comunidade, aquilo que

julga ser o direito deles. O trabalho do líder comunitário é

426

essencial para intermediar as urgentes necessidades coletivas

e individuais dos moradores de áreas carentes.

Segundo a visão do líder comunitário, a comunidade da

qual ele representa os interesses delega-lhe, de certa forma,

o papel de trabalhar, de ir buscar benefícios para eles. De

algum modo, essa posição de líder comunitário tem retribuição

ou contrapartida dos liderados. Se o recurso ao acesso aos

órgãos é que decide a alocação dos benefícios, a intermediação

de uma outra pessoa, no caso, um político com quem mantém

vínculos, assegura o atendimento dos pedidos dos seus

constituintes.

Em depoimento uma liderança comunitária afirma que o

normal no comportamento de muitas lideranças comunitárias está

sendo não mais trabalhar pela sua comunidade, mas criar

obstáculos para outros também não fazerem nada. As comunidades

ficam sem assistência de nenhum líder. Na opinião desta

liderança, estes líderes querem apenas deter o título de

lideranças comunitárias para na época da política poder

negociar com os candidatos benefícios pessoais. Segundo

afirma, existe uma descaracterização das lideranças com

vinculação com políticos. O que se verifica atualmente é um

rodízio muito grande de lideranças apoiando numa eleição um

candidato e numa outra, outro candidato. Não há mais lealdade

ao político. Conforme esta liderança ressalta, mesmo quando o

político ajuda a liderança, ainda assim ele corre o risco de

não ter o apoio dela.

Ela confirma uma hipótese deste trabalho sobre o

sistema político municipal em vigor em Fortaleza, que tem no

427

sistema de lideranças comunitárias um ator importante, mas sem

nenhum controle rígido por parte dos políticos. A fluidez como

os líderes apóiam um candidato e outro em eleições diferentes

denota o grau de independência em relação aos políticos. Se

ela caracteriza o sistema de lideranças com relativa

autonomia, ao mesmo tempo se refere a este fato como algo

negativo ou indesejável. Acredita que o ideal seria mesmo

existir maior lealdade ao político, tendo um conjunto de

lideranças vínculos específicos com políticos determinados.

A expressão mais usada pelas lideranças em relação ao

apoio recebido dos políticos é ajuda. Assim, em relação ao

apoio que dá à sua comunidade, é usada a mesma expressão:

ajudar as pessoas que necessitam, que estão em dificuldades.

Ainda segundo afirma esta liderança, ela já ouviu falar de um

político que ajudou uma liderança num programa de casa. Ela

diz que tem um pedido de casa no governo estadual e outro no

governo municipal. Portanto, é extremamente comum uma

liderança buscar os projetos onde eles existem, independente

de ser do Estado ou município.

Prejudicadas por partidários, por políticos capazes de

interferir na liberação de casa, as lideranças comunitárias

devem ter vínculos explícitos e reconhecidos com algum

político? Ou a vinculação e identificação com políticos

atrapalha o trabalho comunitário?

Como afirma Áurea Brito, de Vila Velha:

A ligação de uma liderança com um político não desvaloriza aliderança, mas a liderança é que desvaloriza o político. Seuma liderança diz que é uma liderança de tal político e esteestá de fato ajudando ela em suas necessidades, então eu

428

vejo um respeito da líder comunitária ao político. Hoje opolítico não respeita a líder comunitária porque aslideranças não respeitam eles também.

A forma como ocorre atualmente a relação entre o

político e as lideranças comunitárias é uma ausência completa

de compromisso com estas. Elas são simplesmente contratadas, o

trabalho e sua liderança numa comunidade são alugadas

temporariamente na época da política em prol daquele

candidato. Passando o tempo da política, não há nenhum tipo de

vínculo com o político para quem ela trabalhou. Há um contrato

de trabalho, um aluguel temporário da condição de liderança

para se dispor a agir em função do interesse do político, mas

não se está envolvendo nenhuma expectativa de laços de futura

ajuda, caso seja eleito.

Em cada eleição, o sistema de lideranças é acionado

para a defesa dos interesses de candidatos. Esse tipo de

relação acarreta crítica de algumas lideranças, pois não gera

compromisso por parte do político. Segundo Áurea Brito, era

para ter um compromisso tanto a líder com aquele políticoquanto aquele político com a líder. Porque não ia existirele chegar aqui e catar voto para ele. Se ele tivesse umadeterminada associação, que a liderança fizesse aqueletrabalho. Eu vejo que os votos seriam exclusivamente dele,quando ele viesse, pois ele ajudou aquela comunidade. Tavaali precisando dele. Porque aí acaba tanto ela se sujandocomo ele também.

Em seguida ela menciona um fato ocorrido na eleição

passada. Um grupo de lideranças tomou a decisão de trabalhar

para um político sem que ele mesmo soubesse, decidiram apoiar

determinado candidato. Isto foi feito, segundo ela, para ver

se o sistema que existe hoje do político vir e comprar, alugar

429

o trabalho da liderança comunitária, é algo que ocorre por

causa das lideranças ou eles também têm culpa nisto.

Segundo ela afirma, “eles trabalharam muito para o

político, e as outras lideranças disseram que a gente era

besta! Quando terminou a eleição, ele não veio nem aqui. Nem

sabe que nós existimos”.

Áurea Brito diz que trabalharam voluntariamente para o

candidato para ver se era um círculo vicioso e atribui a

compra de lideranças não somente às próprias lideranças, mas

ao fato dos políticos mesmos fazerem isto.

Nós trabalhamos de graça para o político, o político ganhoue aí nem voltou para agradecer e nem deu foi nada, nãosabemos nem onde mora. Ninguém sabe é de nada. Mas a gentefez que era para ver se era só porque ele não confiava naliderança, porque não tem compromisso. É porque ele não temcompromisso mesmo hoje com a líder comunitária nem com acomunidade. Ele não tem compromisso com ninguém.

A liderança comunitária é pião de eleição. Em cada

eleição os políticos contratam um número delas para trabalhar

para eles. Terminadas as eleições não há nenhum tipo de

compromisso deles com as lideranças, pois o trabalho foi todo

feito na forma de contrato de trabalho temporário. As

lideranças comunitárias trabalham na época da política pelo

dinheiro.

Na opinião da líder comunitária Áurea, quando se

trabalha para um político não é apenas pelo dinheiro. Na

verdade, o dinheiro é pouco, serve somente para ajuda de

custo. Há o compromisso de que quando ele for eleito fará

alguma coisa pela comunidade. Ainda segundo ela todos

430

acreditam que isto vai ocorrer. Não há, portanto, uma relação

puramente mercantil no trabalho comunitário do líder na época

da política. Acredita-se que haverá trabalho de melhoria

posteriormente.

5.7 Nova Estrutura de Lideranças Comunitárias

Geisa Mattos (2004), em pesquisa realizada sobre as

eleições legislativas de 2000 em Fortaleza, acompanhando a

vida política num bairro periférico, constatou a presença de

mudanças muito significativas nas práticas políticas. Ela

acredita que a ação do poder público estadual e municipal

concorrendo ou agindo para atender aos interesses da população

da periferia teria provocado a ocorrência de um fenômeno não

intencional. Os eleitores desta região tornaram-se

independentes dos políticos e líderes locais. Já não dependem

mais de um único fornecedor de suas demandas individuais e

coletivas, pois há uma concorrência muito grande pelo voto.

Esta maior assistência do poder público nas comunidades torna

indispensável os indivíduos se filiarem a uma rede social de

proteção comandada localmente por uma liderança, a qual, por

sua vez, está ligada a um vereador que tem trabalho na área.

No passado recente, havia a prestação de serviços por parte do

poder público, mas este era controlado por funcionários

indicados pelas lideranças políticas com atuação na área. A

posição de funcionário diretamente dependente de uma indicação

política impedia qualquer tipo de atuação independente deste

funcionário. Com a nomeação não mais por critérios políticos,

este funcionário torna-se mais independente. Isto não

431

significa que ele não possa mais servir a uma liderança

política, mas há uma diferença: sua independência. Ele pode ou

não trabalhar para o candidato. Numa outra eleição, pode

perfeitamente trabalhar para outro. A rede na qual estava

preso o dirigente de uma escola o impedia de qualquer

independência. Quando existe disponibilidade maior de ofertas

de serviços por parte de concorrentes, a submissão do

indivíduo a uma única rede social de proteção se reduz.

Todavia, há profunda diferença entre este indivíduo que recebe

favor de uma rede de proteção ligada a um vereador e um outro

que vai pedir ao vereador um auxílio. Este que pede algo ao

político está automaticamente entrando em negociação sobre uma

ação futura a ser realizada em benefício de quem está lhe

concedendo o benefício.

Nenhum candidato ou político profissional é capaz de

manter uma base eleitoral fixa. Uma base eleitoral é uma rede

social ampla na qual, de alguma forma, seus membros se

beneficiam da posição de destaque ocupada por seu líder. Mas a

maior penetração do Estado em serviços públicos para a

população impede a esta rede continuar agindo. No passado, os

recursos públicos chegavam à comunidade sempre intermediados

por uma liderança local. Atualmente, a maior presença do poder

público agindo, conforme a lógica da impessoalidade, impede

serem estes serviços monopolizados por uma liderança local,

podendo retirar benefícios políticos desta ação.

Se não há mais uma rede ampla de sustentação

clientelista, não estão completamente ausentes práticas de

assistência à população local. Se não se pode assegurar a

432

manutenção de uma vasta rede de clientelas, pode-se, no

período eleitoral, contar com o apoio de vasto sistema de

pequenas redes. Estas pequenas redes não são integradas num

único esquema nem exigem os mesmos benefícios. A manutenção

das pequenas redes é uma espécie de terceirização do

clientelismo. Com estas pequenas estruturas de assistência,

estes pequenos líderes locais conseguem manter sob seu

“controle” um pequeno número de pessoas que pode acompanhá-lo

na sua decisão política. A diferença está na natureza desta

liderança e na quantidade de pessoas que consegue ter sob seu

controle eleitoral. No entanto, o tipo de benefício nunca é de

natureza material, e sim um tipo de favor que não custa muito

e tem em troca a gratidão de quem o recebe.

No antigo sistema clientelista, o próprio político

ocupava-se de uma vasta rede de assistência a seu eleitorado.

Mas atualmente a manutenção de uma rede social em forma de

base eleitoral não é segura. Por isso, é preferível contratar

o serviço destas lideranças no período eleitoral. Estes

pequenos líderes são os responsáveis pela manutenção da base

de sustentação da sua liderança.

Em depoimento, um vereador comunitário de bairro se

referiu ao que ele chama de candidatos de “quatro meses”, isto

é, os que surgem em seu bairro unicamente em época de campanha

com promessas e depois desaparecem com ou sem mandato.

Segundo este vereador, a distinção mais importante está

no reconhecimento da comunidade do trabalho de apoio às

diversas atividades. Este trabalho contínuo é variado, pois

inclui a manutenção de escolas em consórcio com a prefeitura,

433

creches, auxílio a programas de lazer para idosos, além de

equipes de futebol... Estas são algumas das suas atividades

desenvolvidas na comunidade. São todas de natureza de

prestação de serviços. Este mesmo vereador não enfatizou

nenhum tipo de envolvimento com trabalho de saneamento básico

para as ruas, trabalho em favelas, auxílio para retirar

documentos e regularizar situação. A natureza do seu trabalho

concentra-se na prestação de serviços em torno de escolas e

creches, mas igualmente na manutenção de apoio aos grupos de

lazer. Posso supor que parte desta atividade é desenvolvida

com apoio logístico da própria prefeitura. Sua ação como

vereador não é uma atividade relacionada com a reivindicação

de direitos. Na condição de líder comunitário tratava-se de

buscar a reivindicação de direitos para os moradores da sua

comunidade, mas na condição de vereador, este papel não cabe

mais a ele. Tendo acesso ao poder executivo é capaz de fazer

com que as reivindicações possam ser atendidas, sem a

necessidade de intermediação, com base nas exigências legais.

O fato manifesto na última eleição para vereador em

Fortaleza é que a liderança identificada com uma rede social

tradicional com votação concentrada em torno da sua área de

moradia e baseada na troca de favores teve um declínio. A meu

ver, este declínio já vinha se manifestando desde a eleição de

1996, mas a de 2000 revelou a mudança deste padrão de

liderança atuando nas comunidades periféricas da cidade. Este

é um fato com significativas conseqüências políticas para o

funcionamento do poder público municipal. Desaparece um agente

tradicional que sempre se serviu do mecanismo de clientelismo

434

para a permanência no poder, mas não desaparece o mecanismo,

pois este representa uma realidade mais profunda que remete a

um estado de abandono social. O modo clientelista de atuar por

parte dos vereadores não desapareceu, mas houve uma renovação

no tipo de liderança que se serve deste mecanismo. Embora o

vereador institucional sirva-se do mecanismo de clientelismo,

não pode ser identificado como um vereador tradicional que tem

atendimento no bairro e está sempre presente na comunidade.

Sua ação é mais dispersa e com o uso de uma rede maior de

assessores espalhados pela cidade, assegurando uma liderança

difusa. Ao agir desta forma, não mantém mais como o seu colega

tradicional uma base eleitoral restrita ao lugar de

residência, não se submete imediatamente ao eleitorado, nem

depende dele. Goza de certa liberdade ante este porque mesmo

sendo clientelista retira sua base de apoio principalmente nas

alianças com o poder executivo.

A grande diferença entre esta nova liderança e o

vereador tradicional é sua total submissão ao poder executivo,

enquanto o vereador tradicional mantinha certa distância e

independência da fonte do poder executivo porque tinha uma

aliança mais forte com sua comunidade e com uma rede social de

influência espalhada por vários lugares da máquina pública.

A imaginação popular sempre supõe que as coisas ocorrem

na sociedade por meio do comando de uma vasta rede de pessoas,

coordenadas para produzir determinado resultado. Entretanto, a

noção de comunidade como a expressão é empregada por político

refere-se a um conjunto de pessoas com características comuns.

O que permite pôr as pessoas dentro de um mesmo agrupamento

435

social é justamente o fato de todas elas demonstrarem algum

tipo de carência. Os membros de uma comunidade são todos os

que precisam de um favor, de uma ajuda qualquer. Ou seja, são

indivíduos desprovidos de recursos suficientes para dispor de

alguns bens ou serviços e recorrem a pessoas que sabem ter

estes recursos. A comunidade, conjunto destas pessoas que

procuram o político, não se identifica como tal, isto é, seus

membros não tomam jamais consciência de formarem um

agrupamento social com necessidades semelhantes. O ponto da

sua unidade é dado pelo político e não por eles mesmos. A

noção de comunidade é um pertencimento de identificação

externa usada pelo político de modo que possa identificar quem

são aqueles aos quais auxilia. Embora a comunidade seja um

grupo latente, não possui nenhum ponto de unidade entre seus

membros. Eles são identificados por um critério externo de

agrupamento. Neste sentido, unidade comunitária, sem a figura

central de um líder político capaz de servir de referencial

para poder este agrupamento se ver como pertencendo a uma

unidade social. A liderança fortalece este pertencimento

difuso, mas não incentiva nenhum tipo de organização ou de

autonomia política. Ao contrário, numa comunidade a figura

central continua sendo aquele que dá unidade aos elementos

dispersos, ponto de confluência de necessidades, com

possibilidades e recursos para atender às demandas coletivas e

individuais.

Uma comunidade de interesse é um conjunto de relações

individuais em contatos diretos uns com outros e que podem

obter algum tipo de benefício deste relacionamento. Existe um

436

interesse mútuo na manutenção dos contatos de relacionamentos.

Estes, porém, não se fazem por causa do interesse. De alguma

forma o interesse subjacente ao relacionamento deve ser

secundário para que a rede de relacionamento continue agindo.

Para o político clientelista, a noção de comunidade

remete a um conjunto de pessoas com características

semelhantes de carentes e necessitados. São pessoas

dependentes de ajuda do poder público ou privado. A posição na

qual o político se situa é precisamente na intermediação do

atendimento destas necessidades. Sua ação, sua prática

política é justificada em relação à comunidade que necessita

de algo e que ele, pelo fato de dispor de acessos e contatos,

pode fornecer. A comunidade tem vários sentidos. Mas é

fundamentalmente um agrupamento social de pessoas carentes e

que serve de referência para o tipo de prática política

desenvolvida. O vereador comunitário tem plena consciência de

que os membros da comunidade precisam do seu trabalho, do seu

apoio. No entanto, ao mesmo tempo reconhece que este apoio

somente pode vir caso eles também lhe dêem apoio numa eleição.

Sem a troca de apoio não há como realizar os interesses

mútuos. A troca desigual estabelecida entre ambos possibilita

a manutenção da relação.

O clientelismo tradicional era mantido na base da

liderança fundada na troca de favores entre indivíduos de

posições hierárquicas diferentes. Havia uma dependência entre

os membros da rede clientelista. Um favor prestado hoje seria

pago com um apoio político num momento seguinte. Mas estas

relações não eram de forma alguma explícitas. As pessoas se

437

ajudavam porque se sentiam moralmente no dever, em virtude de

estarem em melhor situação, de atenderem aos mais

necessitados. A relação de troca afetuosa entre bens, serviços

e apoio político era o elemento circulante nas redes de

clientelismo tradicional.

O clientelismo praticado no ambiente urbano diferencia-

se do tradicional porque aqui raramente o líder político

ocupa-se pessoalmente da manutenção da sua rede de apoio

político. Cria-se uma camada intermediária entre o líder

político e os eleitores, formada por lideranças comunitárias

de natureza difusa. A constituição de uma camada intermediária

de lideranças comunitárias que atua diretamente junto aos

eleitores dispersos é a principal característica do

clientelismo urbano. Este líder comunitário não pode ser

confundido com o tradicional cabo eleitoral. A figura do cabo

eleitoral era um simples instrumento de transmissão das ordens

do grande líder político. Ele vivia atrelado e na dependência

exclusiva do seu chefe político. Um prefeito de uma cidade

interiorana era um cabo eleitoral de um deputado federal.

O líder comunitário tem uma característica diferente.

Ele é autônomo e atua não na dependência exclusiva da sua

função política. Ele é líder de uma rede de pessoas que mantêm

entre si alguns laços de afinidades e interesses comuns. São

círculos de interesses e afinidades muito variados. Não se

trata de uma pessoa identificada com um político ou que age

como político. Esta, no tempo da política, pode atualizar suas

ligações afetivas, transformando-as potencialmente em votos

para um candidato, mas não é um trabalhador da política,

438

embora existam alguns que ocupem esta função de forma

exclusiva.

É possível se pensar na emergência, no ambiente urbano,

da articulação de uma forma tradicional de clientelismo, mas

não mais fundada nos mesmos princípios e sim na autonomia das

redes de círculos de afinidades. São estes círculos de

afinidades que se atualizam de modo a agir na defesa de um

candidato no tempo da política. A razão da conversão destes

laços ocorre por causa da forte influência exercida pelo líder

do círculo. Se a construção de uma rede de círculos de

afinidades e sentimentos foi possível em função da decadência

do líder comunitário que agia comandando diretamente as

pessoas da sua relação, mais do que isto ocorreu um aumento do

custo da manutenção de uma organização clientelista no

ambiente urbano. O líder político tradicional tendia a formar

sua comunidade como um agente político unificado, isto é, como

uma organização centralizada. Isto somente seria possível na

base de vastos recursos disponíveis para poder contemplar

inúmeros membros. Ante a competição decorrente da escassez de

recursos o líder tradicional precisou migrar para uma

sustentação não mais direta, mas numa rede dispersa e difusa

de pequenas redes de afinidades que se espalham pela cidade e

são mantidas em torno de pequenas atividades. Estas redes

sociais de afinidades são autônomas e podem, na época da

política, ser contatadas com vistas a servirem a objetivos

políticos.

Somente os partidos são agremiações sociais políticas.

Todas as outras formas de agrupamentos sociais das quais os

439

indivíduos participam são baseadas em outros objetivos. E são

estes objetivos não políticos que formam a solidariedade e

afinidade dos indivíduos entre si.

Homens materialmente desiguais numa ordem legal

igualitária parece ser a fórmula perfeita para a reprodução de

relações clientelistas. Na vida política, todo vínculo pessoal

duradouro e mantido na base de confiança mútua, na troca de

favores e lealdade, é tido como laço clientelista. Alguém se

beneficia desta relação, como se o outro fosse ingênuo. O

problema já tantas vezes assinalado não é a recorrência de

laços e vínculos pessoais e de confiança no universo político,

mas o uso ou o desvirtuamento da ordem pública, a apropriação

privada de recursos públicos para destinação individual. Se

políticos querem usar recursos privados para a conquista e

manutenção de uma posição política, não se pode proibir, mas

não lhes é permitido o uso do dinheiro público.

A ampliação do fenômeno da compra de votos ocorre num

ambiente onde se constituem individualidades sem vínculos de

lealdade com as lideranças locais e não há proibição moral

para esta prática. Vê-se como positivo e indício de sabedoria

alguém “passar a perna num político”. Segundo o adágio, ladrão

que rouba ladrão merece cem anos de perdão. Esta é a ética

orientadora das relações do eleitor com os candidatos. Retire

e peça o máximo que puder e depois pense no que fazer.

A expansão deste tipo de prática política da

comercialização do voto coincide com o enfraquecimento dos

laços de pertencimento tradicional. Gradativamente, os

indivíduos abandonam os seus grupos de referências e círculos

440

de pertencimentos naturais e passam a migrar sem destino.

Diante disto, sentem-se isolados e abandonados, sem nenhuma

ligação forte com agrupamentos ou grupos de pertencimentos,

com uma identidade fragmentada. A venda da sua capacidade de

escolha por meio do voto é apenas uma expressão do Estado de

abandono em que já se encontram.

Embora o voto seja obrigatório, o objeto da escolha não

o é. Desse modo, o eleitor pode negociar o destino da sua

escolha. O importante é que ela não se faça sem algo em troca.

A recompensa para o gesto deve ser de ordem material e não

simbólica. Somente quem já possui condições de vida decente é

capaz de escolher de forma livre e independente, sem pensar em

trocar sua opção política por algo qualquer.

A proliferação da negociação eleitoral do voto ocorre

apenas nas condições em que os vínculos tradicionais de

pertencimento e de círculos de convivência social são

desfeitos. Isolados e sem pertencer a outros agrupamentos

capazes de impor uma ordem de conduta, os indivíduos recuam ao

pertencimento aos seus grupos sociais tradicionais. O grupo de

parentesco parece ser extremamente importante, pois é ele que

assegura para muitos indivíduos sua inclusão em outras esferas

da sociedade.

O clientelismo político é definido não somente por uma

desigualdade econômica e social dos agentes sociais, mas por

vinculações estabelecidas em torno de pertencimentos

comunitários que são atualizadas no sentido político. De

acordo com Mattos (2004), três agentes sociais atuam na rede

441

social clientelista: políticos, intermediários e eleitores

comuns.

Fala-se de transformação do clientelismo, mas em que

sentido esta mudança ocorre? Ao tomar cada agente social

isolado, observando em que sentido está ocorrendo sua

transformação, a prática do político deve ser orientada pelo

desejo do eleitor; enquanto isso a camada intermediária das

lideranças orienta-se igualmente pelos interesses dos

eleitores. A meu ver, uma mudança muito significativa acontece

no agente intermediário que atua diretamente a serviço do

político e pretendendo atender aos interesses do eleitorado.

No passado recente, encontramos em muitos bairros a presença

de lideranças políticas que atuavam controlando diretamente

suas redes de atendimento a uma vasta clientela.

Na minha opinião, para um eleitor independente poder

agir de forma racional, trocando e monetarizando sua relação

política com o voto, deveria ter havido uma grande mudança na

sociabilidade destas comunidades. Ele se sentir de tal modo

livre, independente e desamparado que usaria como último

recurso a venda pura e simples da sua capacidade de escolher.

E para que isto fosse possível, as redes de proteção

social ou de filiação e pertencimento social deveriam ter sido

completamente desfeitas. Na ausência de redes e

relacionamentos sociais estabelecidos em círculos de

pertencimento social, os indivíduos se sentiriam absolutamente

à vontade para disporem da sua capacidade de escolha como bem

quisessem.

442

É isto mesmo que está ocorrendo na atual sociedade de

Fortaleza? Ou, ao contrário, as redes de pertencimento social

continuam agindo e orientando as ações e escolhas individuais.

Mas não são mais as mesmas do passado. Agrupamentos religiosos

que orientam o voto dos seus membros não podem ser vistos como

resquícios clientelistas. Uma parte significativa do

eleitorado escolhe conforme uma orientação determinada pelo

seu grupo de pertencimento afetivo. Não se pode em momento

algum considerar que este voto dado aos candidatos das igrejas

evangélicas seja de natureza clientelista. Ao contrário, estão

inseridos nesta nova lógica de pertencimento de afetividade

presente nas periferias dos grandes centros urbanos.

Uma rede de colaboradores de um político, como nos

referimos, pode ser exemplo deste tipo de relacionamento do

poder público com uma sustentação em rede privada. Indivíduos

que participam desta rede de sustentação política não ocupam a

mesma função e nem têm a mesma importância, mas todos podem em

qualquer momento se servir desta rede para solucionar algum

problema. A solução do problema pode ser a alocação de um bem

ou serviço que passa a ser realizado sem que o membro da rede

tenha de necessariamente pagar diretamente pelo bem ou

serviço. Num sistema de rede de sustentação política de

determinada posição política não se pode imediatamente falar

de corrupção política, pois na verdade parte das trocas e do

favorecimento mútuo verifica-se entre particulares e fora da

esfera do Estado ou da política.

A única retribuição esperada dos membros desta rede de

sustentação política é sua resposta imediata em forma de apoio

443

político eleitoral. Não se pretende que os membros menos

favorecidos de uma rede social contribuam com mais, apenas com

apoio e conquista de mais adeptos para a rede social. A

expectativa de retribuição de uma ação futura é o que sustenta

a teia da rede de troca.

No passado, a modalidade do clientelismo mais usada era

ter acesso aos recursos públicos e disponibilizá-los de forma

pessoal. Neste tipo de relação, patrimonialismo se confundia

com clientelismo, ou melhor, o clientelismo se fazia na base

do patrimonialismo. Este, porém, não é o único modo de

sustentação do clientelismo. Atualmente pode-se mesmo dizer

que a base de acesso aos recursos públicos para o

clientelismo, clientelismo de base patrimonialista, está

desaparecendo. Desaparece o patrimonialismo e contudo não

desaparece o clientelismo porque este se estrutura de outro

modo. Sua razão de ser não era o controle dos bens públicos e

sua alocação de forma personalista, mas a manutenção de uma

posição na base de expectativas futuras. O clientelismo

atualmente estruturado na sociedade brasileira é todo ele de

natureza privada e em base de sustentação ampla, numa rede

social complexa. Como o patrimonialismo deixou de ser

praticado diretamente por recursos públicos via

patrimonialismo, muitos dizem que ele desapareceu ou está em

declínio. A mudança na ação do Estado e a expansão da rede de

atendimento e serviços públicos impedem se atuar de forma

patrimonialista. Entretanto, haverá sempre muita importância

nas posições de mando do Estado. A rede social clientelista é

sustentada em grande parte por membros privados com auxílio de

444

membros do poder público, embora a alocação de bens seja

fundamentalmente de natureza privada.

A tendência em querer fechar numa única gramática

política todas as relações políticas existentes entre o Estado

e a sociedade brasileira esbarra no obstáculo da complexidade

de relações existentes. Relações sociais do tipo clientelista,

corporativista, insulamento burocrático e universalismo de

procedimento podem conviver em cada governo sem haver exclusão

e a predominância de uma única gramática. Mesmo que no plano

federal possa se demonstrar existir em cada governo a

composição de gramáticas utilizando algumas disponíveis e

deixando outras de lado, não se pode afirmar que este arranjo

gramatical seja o mesmo aplicado em cada unidade da federação.

O clientelismo é um mecanismo de que se servem os

estratos mais baixos da população para ter acesso aos

benefícios públicos. Os políticos controlam este mecanismo

intermediário de acesso e apresentam-se como os únicos

mediadores – intermediários – legítimos entre os interesses

dessa população e os detentores dos recursos públicos. Favores

e benefícios de toda ordem são trocados por promessas de apoio

eleitoral. Os envolvidos no sistema de favorecimento esperam

que os melhor posicionados continuem olhando para eles e

atendendo aos seus pedidos. Os melhor posicionados, sabendo

que dependem do apoio destes beneficiados, agradam e procuram

atendê-los.

Mas a modernização da sociedade mediante

industrialização e urbanização criaria uma estrutura social na

qual a ordem econômica subordinaria as outras esferas da vida

445

humana. A ordem política e social desta sociedade perderia sua

autonomia e passaria a se orientar pela lógica econômica do

mercado. Vida social e vida política seriam regidas por uma

única lógica controladora das determinações sociais.

Este processo social de criação de individualidades

ocorreu em grande parte da Europa e Estados Unidos, mas na

periferia do capitalismo não se deu na mesma dimensão. Nestas

sociedades houve uma resistência maior à penetração da lógica

econômica sobre as outras esferas da sociedade.

Segundo Nunes (1997), a sociedade brasileira estrutura

uma organização social que tende ao entrelaçamento social. É

muito alta a intolerância à divisão social nítida de grupos

baseados em critérios étnicos e culturais. A sociedade

brasileira teria um padrão de pouca tolerância em relação aos

grupos organizados e separados.

A novidade na forma de fazer política está na

estruturação de uma rede de lideranças comunitárias que se

organizam de forma independente e autônoma. Estas lideranças

são dirigentes de associações de várias espécies ou não

controlam nenhum tipo de associação. Parte da ação dos

serviços públicos chega ao cidadão não mais diretamente de um

órgão ou agência pública, mas por intermédio destas

associações pertencentes à sociedade civil.

Diante disto, os políticos profissionais que apelavam

para o clientelismo puro deixam de manter uma base eleitoral

fixa e passam a se servir desta rede de lideranças

comunitárias mobilizadas na época das eleições ao serviço da

446

sua candidatura. Ao contrário do clientelismo clássico, nesta

relação não há obrigação e dívida moral contraída a ser

saldada na época da eleição com o apoio ao candidato. As

lideranças comunitárias são heterogêneas e vivem, de certa

forma, fora do período eleitoral, de pequenos expedientes,

controlando a associação, fazendo convênios com órgãos

públicos. O fundamental é que no período eleitoral disponham

de um tipo de liderança que os faça ter poder de negociação

com líderes políticos dispostos a pagar pelo seu apoio

político.

O vereador institucional ou burocrático é o que mais se

serve desta rede de lideranças comunitárias. A grande

diferença entre estes vereadores e os clientelistas

tradicionais está no comando direto da rede de assistência e

troca clientelistas, pois o vereador institucional apenas

assegura a manutenção de algumas lideranças ao longo de todo o

mandato. Mesmo assim, precisa estar sempre ampliando sua rede

de colaboradores diretos.

A grande novidade da política local é a emergência de

uma estrutura de lideranças comunitárias controladoras de

recursos públicos por meio destas instituições transformadas

no período eleitoral em pessoas que trabalham para candidatos.

Elas não formam uma base eleitoral de um candidato, mas se

dispersam na defesa dos interesses daquele que comprar seu

serviço. O serviço que vendem é seu prestígio na comunidade

que representam. São profissionais que vendem de alguma forma

o seu poder de contato e os laços com pessoas em determinada

área da cidade.

447

Os laços clientelistas clássicos são preservados

mediante uma troca constante de favores que mantém as pessoas

em constante interação com base na obrigação contraída

moralmente e que deve ser retribuída em algum momento. No

vínculo com lideranças comunitárias, o político não está

comprando nada mais do que sua capacidade de influenciar

pessoas. Não há, neste caso, a consolidação de vínculos de

clientelismo no sentido de não poderem abandonar a relação em

que se envolvem. Neste padrão de funcionamento da relação

política, os eleitores não são mais mantidos numa dependência

de bens fornecidos pelo líder político. Os vínculos são

atualizados apenas no período eleitoral.

A dominação coronelista e seu complexo sistema de

intermediação de cabos eleitorais são substituídos por algo

mais adequado ao ambiente urbano. As bases sociais do

coronelismo ruem, mas não o clientelismo. No lugar do

coronelismo e do mandonismo, diretamente comandados por uma

figura identificada como o chefe político local e controlador

dos acessos aos recursos públicos e privados, criou-se um

sistema ainda mais complexo fundado no clientelismo.

Como afirma Linda Gondim (1998, p. 22):

A urbanização e o incremento dos meios de comunicação, com aabertura de estradas e a difusão do rádio de pilha, começama minar as bases sociais do coronelismo. Este passa a darlugar a um sistema político também fundado no clientelismo,mas de caráter mais complexo, seja pela maior dificuldade dese controlar os estratos subordinados por meio de mecanismosde submissão pessoal, seja pela presença mais efetiva doEstado.

448

Ainda sobre a decadência do coronelismo, Gondim (Idem,

ibidem, p. 23) afirma que: “A mercantilizaçao do voto e a

conseqüente ascensão dos cabos eleitorais enfraquecem o poder

dos coronéis, que progressivamente perdem lugar num sistema

político mais complexo, o qual começa a sofrer a influência de

correntes ideológicas”.

No sistema coronelista, o patrão era ao mesmo tempo o

chefe da política local. Sua clientela política não era apenas

um eleitorado disperso, mas moradores e pessoas que dependiam

dos seus favores para continuar vivendo em suas terras. A

dependência destas pessoas em relação ao dono da propriedade

as transformava em subordinados na escolha eleitoral, pois

votavam nos candidatos indicados pelo patrão.

A ruptura ou mudança social e econômica que mina as

bases de sustentação social do sistema coronelista é de

natureza urbana e decorrente, também, dos avanços dos meios de

comunicação. Nas cidades já não se configuram laços de

dependência tão acentuados como no campo. Entretanto, laços de

fidelidade e confiança continuam a existir entre os líderes

políticos e sua clientela eleitoral. O sistema coronelista de

dominação e controle direto do eleitorado foi substituído por

um sistema clientelista mais complexo de base muito mais

fluida. Este novo sistema mais fluido é comandado na cidade

por uma rede de lideranças comunitárias que agem como

intermediários políticos, embora não haja uma dependência

direta dos membros da base eleitoral e os políticos. Os

empregos podem ser alocados precariamente por meio de um

sistema deste tipo, mas este não é capaz de gerar laços de

449

dependência e lealdade tão fortes que impeçam a ruptura e sua

independência.

Suponho que há uma ruptura muito significativa entre a

forma de dominação do clientelismo tradicional, comandado

diretamente e pessoalmente pelo político, e a liderança

política que atuava na área. Estes laços de dependência não

deixam de existir, mas foram certamente enfraquecidos e as

relações não são mais de natureza pessoal e direta. O político

pode servir de intermediário entre as demandas de determinada

comunidade de interesses, mas não precisa ter laços pessoais

com estes eleitores. Cria-se um complexo sistema de relações

no qual o líder político ainda controla recurso e os destina

para suas bases de apoio político. Todavia, os que recebem os

benefícios e os favores muitas vezes nem sequer conhecem o

político nem jamais tiveram contato direto com ele. As

relações são estruturadas na base da intermediação por laços

dos líderes comunitários, que formaram anéis de confiança

entre os membros da comunidade e o chefe político.

Atualmente, a diferença existente é que não se pode

mais identificar com muita precisão as bases eleitorais de um

candidato clientelista. Isto porque criou-se um complexo

sistema de redes de lideranças comunitárias que servem de

intermediários entre os políticos e a população. Não há

fidelidade previamente estabelecida. Ela depende de quanto

esteja sendo ofertado para que este líder comunitário trabalhe

ou preste serviço eleitoral para o candidato.

Este novo tipo de político está fundamentando seu apoio

eleitoral numa base de sustentação ampla em comunidades

450

espalhadas por toda a cidade. Diferencia-se completamente do

político tradicional, que comanda diretamente sua rede de

assistência ao eleitorado e controla apenas uma área de

atuação onde pode prestar assistência, manter a troca de

favores e cultivar laços de confiança com seus amigos,

vizinhos e colaboradores.

Para muitos, o clientelismo foi identificado com atraso

e sociedade não moderna de relações capitalistas e de troca

monetária. Mas, conforme constatamos, o clientelismo continua

existindo mesmo em sociedades que tiveram avanços capitalistas

e na implementação de relações capitalistas. A base do

clientelismo é fundamentalmente a pobreza e a desigual

distribuição de recursos e riquezas. Os possuidores de

recursos podem criar vasto sistema de trocas que não tenha

como retorno imediato bens, mas serviços de apoio eleitoral. A

manutenção de posição de liderança implica necessariamente a

capacidade de distribuir parte daquilo que obtém com a

ocupação da função de liderança política.

Nas palavras de Avelino Filho (1995, apud GONDIM, 1998,

p. 27):

O coronelismo é um compromisso entre o poder público e umaordem privada caracterizada, fundamentalmente, peloexercício do poder pessoal dos “notáveis” locais, permeadopor relações efetivas e, ao mesmo tempo, violentas. Já oclientelismo “moderno” constitui um mecanismo de cooptaçãopolítica baseado na utilização de recursos do patrimôniopúblico para fins privados dos detentores do poder, onde asrelações entre o(s) patrono(s) e sua(s) clientela(s) assumemum caráter acentuadamente mercantil.

O vereador institucional ou burocrata apóia-se

fundamentalmente numa vasta rede social formada por pequenas

451

lideranças comunitárias detentoras de certo prestígio oriundo

do controle de alguma instituição ou aparelho de prestação de

serviços a um número reduzido de pessoas. Tais pessoas

beneficiadas por esta prestação de serviços fazem parte da

microrede social de sustentação desta liderança comunitária.

Nem todos os líderes comunitários comandam diretamente algum

tipo de associação ou instituição de prestação de serviços,

pois há uma outra gama de lideranças comunitárias forjadas na

base de laços informais e que cultivam intenso ativismo na

defesa dos interesses de um número considerável de pessoas.

São estes dois tipos de lideranças que formam a base flutuante

de apoio político deste tipo de vereador que designo por

vereador institucional ou burocrático.

Esta vasta rede de microredes de laços diretos

comandada diretamente pelos líderes comunitários tem uma

posição intermediária entre o eleitor isolado e o político

profissional. Os assessores destes vereadores são lideranças

cooptadas para sua rede mediante recursos públicos. O acesso à

máquina administrativa é extremamente importante no sentido de

poder beneficiar e contemplar as amplas demandas da sua base

eleitoral. Uma diferença muito acentuada entre o vereador

clientelista tradicional e o clientelista patrimonialista é

que este último se serve muito freqüentemente de relações

mercantilistas nas relações políticas. O vereador clientelista

tradicional media sua relação com seu eleitorado de forma

direta, sem usar intermediários e dispondo na maior parte do

tempo de serviços originados da sua rede social privada de

colaboradores ou de acesso aos recursos públicos.

452

O sistema político em vigor na política municipal em

Fortaleza é marcado pela inclusão periódica de uma camada

social de intermediários formada por lideranças comunitárias

heterogêneas que prestam serviços eleitorais para os políticos

profissionais. A novidade não está no uso dos serviços dos

intermediários, mas na relativa autonomia e quase

profissionalização da intermediação política local. Criou-se

ao longo de anos uma camada intermediária de lideranças

comunitárias que em épocas eleitorais se dispõem a prestar

serviços de contato e influenciar o voto daqueles sob seu

controle. Este controle não é mais, como existia com o cabo

eleitoral passado, fundada em laços de confiança e lealdade

política e endividamento moral por algum favor recebido ou

prestado. Os laços entre estes controladores de pequenas redes

sociais não são fundados em qualquer tipo de lealdade, mas em

serviços prestados em favor da comunidade que no momento da

eleição são atualizados.

A meu ver, formou-se um sistema de lideranças

comunitárias intermediando não mais diretamente a ação do

Estado, do governo. Elas estão dispostas a servir àquele

político que melhor pagar pelos seus serviços de intermediação

ou de contatos na sua área de atuação. O que se está comprando

não é mais a lealdade de um intermediário, e sim o poder de

multiplicar os contatos e os laços pessoais ao alcance deste

líder comunitário. Como relação de compra de vínculos, o

esperado pode não acontecer, isto é, o líder comunitário por

ter vendido uma imagem falsa sobre sua capacidade de

influenciar outras pessoas.

453

Atualmente, não se encontra mais uma base eleitoral

definida e com uma identificação precisa. O sistema de

dominação direta e controlada por uma base política não é o

recurso mais usual de manutenção da condição de líder

político, pois o uso de um sistema de lideranças

intermediarias possível de ser mantido por meio de um salário

pago como assessores parlamentares evita a atividade da ação

direta do vereador com sua base eleitoral. O vínculo de

lealdade com o político pode ser forte ou fraca, o mais

importante é que esta vinculação ao vereador impede ou

neutraliza sua capacidade de lançar-se como candidato

independente. O vereador institucional está não apenas

comprando a intermediação com uma comunidade de indivíduos aos

quais de outro modo ele não teria acesso, mas, principalmente,

cooptando esta liderança para sua esfera pessoal. Esta

cooptação assegura-lhe não ter concorrentes fortes na mesma

área na eleição seguinte. Pensando no futuro, o vereador

institucional age de modo a assegurar a manutenção de certas

áreas sob seu controle, mas não por meio da estruturação de

uma máquina local de atendimento clientelista. Em parte isto é

feito por lideranças comunitárias que estão a seu serviço.

O clientelismo assemelha-se a qualquer tipo de relação

de troca entre pessoas com status distintos, as quais cedem bens

ou serviços em troca de apoio político futuro. No entanto, a

expectativa de ser retribuído pelo favor prestado não vem em

função de um outro bem, e sim do simples apoio eleitoral.

Quanto à origem do recurso usado para a prática do

clientelismo, ele pode ser privado, coletivo, de rede de apoio

454

privado ou público. Quando o clientelismo é feito na base do

uso indiscriminado dos recursos públicos, temos o clientelismo

patrimonialita. A bolsa de estudo paga com recursos públicos,

e distribuída por cota para cada vereador aliado do prefeito,

é exemplo de clientelismo patrimonialista.

A origem dos recursos para a prática da clientela é

muito importante porque a fonte de seu financiamento determina

o tipo de inserção na comunidade que representa.

Outra forma de clientelismo é o neopatrimonialismo.

Segundo Gondim (1998, p.28), trata-se de uma

forma de dominação política por um determinado estratosocial cujo poder não deriva de sua posição no sistema depropriedade e de prestígio social, mas do seu controle sobreo aparelho do Estado, que é visto como um patrimônio a serexplorado. Tal controle permite a obtenção de recursos(emprego, verbas, etc.) necessários à cooptação daqueles queconstituem a base de sustentação do regime, estabelecendovínculos de dependência entre os que detêm o poder e aslideranças emergentes.

Neste contexto, perguntamos: Existe uma nova modalidade

de clientelismo urbano atuando na realidade de Fortaleza?

Quais os mecanismos usados por este sistema? Qual a função

neste novo arranjo clientelista do sistema de lideranças

comunitárias controlador de associações comunitárias de várias

naturezas?

É possível demonstrar que existe um novo tipo de

liderança política atuando em nível municipal e não mais

orientado pela política tradicional de formação de base

eleitoral fixa. Ao não ter uma base eleitoral fixa formada

pela clientela de pessoas com as quais mantém relações

455

pessoais constantes fundamentada na confiança, de que modo

assegura sua reprodução política ou a manutenção da sua

posição de liderança política local?

Segundo afirmam alguns analistas, o voto nas periferias

das grandes cidades tornou-se frouxo e sem dono. Este padrão

de comportamento eleitoral permite a compra do voto. A

mercantilização do voto seria expressão da mudança

significativa de relações pessoais existentes nestas

periferias, pois as pessoas já não estariam mais presas a

círculos de proteção clientelistas formados na base do apoio e

mútua ajuda. Os laços clientelistas estudados indicam sempre a

necessidade da manutenção de laços constantes firmados na

confiança e na troca de favores. Para estes, não há direito,

apenas favores. A inexistência de uma regra formal que oriente

certos procedimentos de distribuição de bens e serviços

possibilita ser a autoridade controlada por meio de pedidos de

favor. Se todos dependem de favores, não há espaço para

conflito. Hoje alguém não foi contemplado, mas seguindo a

mesma regra, amanhã poderá sê-lo.

Na compra do voto não há nenhuma relação duradoura de

confiança entre os participantes. Se houvesse, a autonomia

destes indivíduos seria relativamente prejudicada porque o

clientelismo funciona na base de um sistema de assistência e

proteção de uma rede de amigos.

É preciso distinguir o eleitor comum, disperso e sem

nenhuma identidade de pertencimento com grupo social ou rede

social de amigos, e as lideranças comunitárias.

456

Está havendo uma mobilização autônoma dos eleitores?

Portanto, mais liberados para escolher por não estar preso

numa rede de compromissos contraídos na base de favores?

Também distinta é a criação de um sistema de pequenas

redes sociais de auxílio de pessoas tendo o líder comunitário

como centro e controlador desta rede. Mas a função

intermediária já existia no passado – o cabo eleitoral

clássico. A diferença reside na autonomia desta rede de

lideranças intermediárias que sustentadas em diferentes fontes

de recursos podem ter autonomia relativa na manutenção de uma

estrutura assistencialista.

A forte diferenciação de recursos – municipal,

estadual, federal ou de organização social privada – permitiu

a estas pessoas se tornar autônomas. Trabalhar para a

comunidade significa conseguir benefícios públicos e privados

para atender às suas necessidades. Ao dispor de mais recursos,

estas associações ganham sua autonomia política ante seus

fornecedores de benefícios.

A freqüência eleitoral é um fator decisivo para

explicar o modo como foi possível a emergência de estruturas

intermediárias desta natureza agindo em época eleitoral, mas

sem vinculação precisa com políticos profissionais.

Se o eleitor tornou-se dono do seu voto, não estando

mais preso a compromissos assumidos por dívidas contraídas e

pagas em forma de apoio político, isto significa a extensão de

uma rede de assistência pública direta sem a intermediação de

líderes comunitários que controlem estes recursos.

457

Ou seja, para o eleitor poder vender seu voto é

necessário ser dono deste poder e não ter compromisso com

alguma dívida de favor eleitoral. Para isto ocorrer, é preciso

o Estado prestar mais serviços a esta população ou não mais

funcionar o esquema clientelista clássico de atuação

constante.

Esta rede de atendimento de uma clientela fixa está

desaparecendo. Mas ela desaparece porque o custo da sua

manutenção é muito elevado ou porque não demonstra ser mais

eficiente sua manutenção. Diante dos riscos, foi preferível

terceirizar a rede de assistência clientelista. Esta rede não

é mais mantida e controlada por políticos profissionais, e sim

diretamente por pessoas da comunidade de interesses.

Embora o Estado brasileiro tenha expandido seus

serviços aos cidadãos, não o fez mediante ampliação da máquina

estatal pública. Os serviços passaram a ser prestados não

diretamente por agências públicas estatais, mas por entidades

da sociedade civil organizadas. Apensar do financiamento

continuar sendo público, a assistência direta à população é

controlada por entidades não públicas.

5.8 O Jogo de Confiança entre as Lideranças

Rotineiramente encontramos nos discursos das lideranças

comunitárias a idéia de união entre elas para uma puder se

apresentar como candidato. Mas isto não ocorre porque as

lideranças não têm confiança uma nas outras. A falta de

confiança explica por que não existe uma ação unificada e pode

ser justificada pelo fato delas agirem como donas de firmas –

458

as associações – que detêm uma clientela restrita para seus

produtos – benefícios que podem conseguir junto aos órgãos

governamentais e privados. Ao agir numa mesma área restrita,

competem entre si pela confiança desta clientela dos

moradores, que podem simplesmente se desgostar da sua

liderança e ter sempre à sua disposição outras firmas que

ofertam os mesmos benefícios. Não havendo condições de

monopolizar a representação dos interesses destes associados,

fazendo com que somente sua firma possa fornecer os

benefícios, acabam gerando muitos conflitos. A competição

entre as lideranças, cada uma agindo em sua respectiva firma

associada, acaba favorecendo os moradores. Para estes, o

interesse maior é existir muitas firmas associadas, pois

aumenta a competição entre elas pela sua associação, e

conseqüentemente há um número maior de benefícios trazidos

para a comunidade.

Enquanto os moradores têm interesse no maior número de

firmas associações para que disputem entre si sua atenção, os

políticos em campanha também têm interesse nesta diversidade

de firmas associações, pois podem a cada eleição contar com

lideranças diferentes, não mantendo laços fixos com nenhum

conjunto de lideranças. Somente as lideranças teriam interesse

em reduzir o número das firmas associações, mas nenhuma delas

tem poder para impor esta redução, que significaria diminuir a

pressão sobre seu trabalho comunitário.

Sobre a confiança existente entre elas, uma líder

comunitária do bairro Vila Velha, Elizete Garcez, afirma:

459

Eu não sei. É porque elas acham que se uma entrar vereador,já com a desconfiança dos políticos lá de fora, acha que seuma daqui for (eleito) vai fazer a mesma coisa que a de lávai. Eu penso que seja assim. Se um entrar vereador não vaifazer as coisas que é pra fazer. Eu penso que seja por contadisto.

Ela cita também o caso de outras lideranças não

acreditarem ser possível a eleição de uma liderança

comunitária. “Elas não acreditam que se ele ganhar possa

trazer para a comunidade o que buscam em outros políticos pra

trazer”.

A função do político é explicitamente de mediar os

interesses das comunidades da área, isto é, trazer benefícios de

que estão necessitando as pessoas daqui. Ele deve servir de

canal para que as coisas cheguem às comunidades.

Atualmente, um dado importante para se pensar a relação

das lideranças comunitárias e o sistema político é a

existência de diversos acessos aos mais variados benefícios

para suas comunidades. Tanto o governo federal quanto o

estadual e o municipal são fontes distintas de acesso capazes

de trazer benefícios para as comunidades. A situação de

pluralidade de fontes de acesso é uma situação que provoca

maior ou menor autonomia da liderança comunitária? Essa

estrutura diversa de poder não gera uma situação de menor

dependência das lideranças aos políticos?

O papel da liderança comunitária é encaminhar aos

órgãos competentes as reivindicações dos moradores das suas

comunidades, ir a estes órgãos e exigir a solução dos

problemas. Outra liderança comunitária, Áurea Brito, insiste

460

nesta função de líder como aquele mais destacado na

comunidade, que toma a frente das coisas, pois embora todos

estejam necessitando, não se movimentam, e muitos não sabem

aonde ir e como fazer.

A vida cotidiana dos moradores de bairros periféricos é

repleta de dificuldades, pequenos e grandes problemas, dramas

individuais ou coletivos. Muitos destes problemas chegam às

lideranças locais seja por sua iniciativa ou porque os

moradores procuram ajuda, ao se sentirem incapazes de

solucioná-los sozinhos. Ocorre, então, constantemente, a troca

de apoio. Para esses moradores, a política é o momento de

saldar dívidas contraídas com as lideranças comunitárias. É

preciso dar prova de lealdade, aceitando a indicação dos

candidatos, permitindo se afixar na porta da casa o cartaz

deles, comprometendo-se a convencer outros membros da família

a apoiá-los também. Em troca dos favores e da ajuda concedida,

não assumem o compromisso de sufragar o nome de determinado

candidato. Para muitos, esse é um gesto demasiadamente

simples, indiscutível.

461

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No dia 25 de outubro de 2003, o jornal Diário do Nordeste

estampou em suas páginas o anúncio de determinado partido

político convocando cidadãos para se filiarem e se lançarem

candidatos ao pleito municipal. Curiosamente, o anúncio

ressalta os aspectos negativos do vereador. Aqueles que tenham

esta concepção de vereador não poderiam requerer a filiação.

Diz a nota:

Lembre-se de que NÃO É representante do povo o VEREADOR que se torna: Intermediador de interesses individuais; Despachante de bairro; Receptor de queixas individuais; O dono da Câmara Municipal; Um provocador de conflitos; Um todo poderoso fora ou dentro de sua área; Alguém que conseguiu chegar ao poder sozinho; Cúmplice da criação e elevação de impostos e taxas; Esperto, em todas as eleições só faz promessas; Assistencialista, impedindo o desenvolvimento da cidadania.

A nota denuncia aquilo que expressa. Deve ser lida como

sendo precisamente o que é. Ou seja, retiremos a expressão NÃO

É, e veremos que o mandato de vereador é exercido precisamente

assim. De modo geral, ser vereador é justamente ser tudo isto

que eles dizem não se deve ser, embora nenhum vereador

preencha todas estas prerrogativas e alguns sejam

especializados em certas práticas.

A imagem do representante político municipal nem sempre

teve este aspecto tão negativo. Se lançarmos um olhar

histórico veremos o governo municipal no Brasil, uma

transposição institucional semelhante à já existente em

Portugal. Ao longo de muitos séculos, a Câmara Municipal era a

única autoridade pública nas cidades, cuidava principalmente

da manutenção da ordem pública e da administração dos bens

462

coletivos. Os encarregados imediatos dessa tarefa eram

vereadores eleitos diretamente, os quais seriam incumbidos de

aplicar o Código de Posturas do município. Por ser uma

instituição recente, reunia várias funções num único órgão

municipal.

Vivendo época importante de autoridade plena, a Câmara

Municipal sofre duro golpe com a independência nacional. Como

conseqüência imediata, o regime imperial brasileiro obrigou-se

à criação do governo administrativo em cada província,

deixando seu aspecto político para as respectivas assembléias

legislativas. Isto implicou a redução e total limitação do

poder das Câmaras Municipais que passaram a conviver com uma

autoridade imediatamente superior, centrada na Assembléia

Legislativa. As decisões das Câmaras foram submetidas à

autoridade do Presidente da Província.

Se o Império foi o calvário para o governo municipal, a

República não lhe modificou a situação de desprestígio e a

subordinação até mesmo se agravou, pois a federação reacende

desejos de autonomia das localidades. Novamente o País viverá

longos anos de acomodação da autoridade central ante as

demandas locais. Nas unidades provinciais transformadas em

Estados, a Constituição de 1889 assegurava a regra formal da

autonomia municipal, à qual o governo estadual deveria

obedecer naquilo que fosse do seu peculiar interesse local.

Expresso de maneira vaga, o princípio da autonomia municipal

foi sempre desrespeitado. No Estado do Ceará, a Lei de

Organização dos Municípios enfrentou sérios obstáculos dos

governos locais que desejavam manter sua autoridade sobre

463

finanças e administração local. A disputa entre o governo

municipal e a autoridade do Presidente do Estado encontrava

eco na Assembléia Legislativa estadual, tendo sucessivamente

impedido a aplicação da Lei n. 33, que determinava a

reorganização do território cearense em municípios. Essa lei

dava direito de autoridade municipal apenas aos capacitados de

cumprir exigências elementares tais como número mínimo de

população, rendas e administração própria. As divergências

entre os interesses do governo estadual e os dos governos

municipais se expressam por meio de leis de criação da

intendência municipal.

Ao longo da Primeira República, o governo municipal

terá sobre seu controle a realização das eleições. Esse fato é

importante e explica a tensão constante entre a autoridade

estadual e a municipal porque se reservou à autoridade

municipal o direito de organizar as eleições gerais. O governo

municipal sofre, portanto, ao longo de muitos séculos um

esvaziamento político na sua autoridade, mas, ao mesmo tempo,

vai ganhando, com a implantação do regime eleitoral, cada vez

mais autoridade na organização das eleições. Esse aspecto

paradoxal do governo municipal perdura por muito tempo, até a

instituição da Justiça Eleitoral na década de 1930.

A Revolução de 1930 submete o governo municipal a um

regime mais drástico de redução de autoridade com a nomeação

do chefe do executivo pelo interventor estadual e a formação

do Conselho Municipal, cujos membros não seriam mais eleitos.

Somente depois de 1946, inicia-se o regime democrático

no governo municipal. A Constituição deste ano é tida como a

464

mais municipalista de todas, pois mantém o princípio de

autonomia do governo municipal, assegurando, acima de tudo,

condições efetivas para se exercer a autonomia pela

discriminação de renda entre as três esferas de governo. Mais

do que assegurar autonomia financeira, já prevista na

Constituição de 1934, estabelecem-se as condições para a

existência da vida democrática nos municípios com a

diferenciação entre a função legislativa e a executiva. Ao

contrário de tudo ocorrido até então, estas duas funções estão

agora diferenciadas e com papéis explicitamente definidos. A

história do atual governo municipal começa exatamente neste

período.

Na cidade de Fortaleza, ao se tecer a trajetória

histórica do poder legislativo e a natureza da sua

representação, é forçoso se constatar que se tratou de um

poder sempre sem muita autonomia e refletindo o Estado da

política clientelista, predominante nesta época. Além disso, o

fechamento do sistema político ao longo do regime militar fez

com que esta representação fosse cada vez menos expressiva da

diversidade social da cidade, chegando ao limite de na década

de 1970 haver o fechamento parcial do sistema local, pois a

cada eleição eram somente os já integrados que tinham acesso à

representação política. Isto se transforma com a

redemocratização e as mudanças políticas ocorridas na política

estadual e local.

A década de 1980, tida como perdida do ponto de vista

econômico, deve ser sempre lembrada politicamente, pois é um

período extremamente importante para a organização da

465

sociedade brasileira. Não somente pela reorganização do Estado

democrático, mas porque se verificam frustrações coletivas em

relação às mudanças esperadas. Em certo sentido, as mudanças

na ordem geral do país se refletem nas mudanças da ordem

municipal. Em Fortaleza – acredito ter demonstrado a

ocorrência deste fato – a novidade será o declínio progressivo

das forças conservadoras que retiravam sua legitimidade

explorando laços clientelistas. Como o resultado desta

mudança, surge um ator político na escala municipal com outro

perfil e padrão de atuação político. O vereador tradicional

com bases eleitorais em bairros vai gradativamente

desaparecendo e em seu lugar não aumenta o número de votos

ideológicos. Entretanto surge a figura do vereador

institucional, de origem burocrática. Esse é o novo personagem

da política municipal da década de 1990 em Fortaleza. Esse

novo ator político é produto das novas configurações do poder

municipal em Fortaleza e suas novas lideranças políticas. A

política na nova ordem municipal.

A natureza da força que modifica a sociedade tem

conseqüências sobre o aspecto da mudança implementada.

Transformações introduzidas de fora para dentro da sociedade,

como por exemplo, vindas diretamente do poder estadual, por

meio de políticas públicas ou leis federais, alteram a

correlação de forças entre as elites locais. As políticas

públicas alteram as condições de vida da população. Todavia,

essas mudanças raramente são acompanhadas de transformações na

estrutura econômica. Assim, cria-se uma situação nova com

466

novas contradições originadas destas mudanças na ordem social

e estagnação na ordem econômica.

A transformação por meio de agentes externos, sem apoio

nas forças sociais locais, provoca apenas mudança nas elites

dominantes e pouca transformação efetiva para toda a

sociedade. O desequilíbrio criado com a intervenção externa

pode mesmo gerar problemas ainda mais complexos.

Em Fortaleza, a política municipal era centrada numa

organização tradicional, segundo a qual os líderes políticos

estavam concentrados nos bairros. Em cada bairro se organizava

uma força política arregimentada por este líder. Líder

político porque controlava o acesso aos benefícios oriundos do

poder municipal, o vereador era a principal figura deste

sistema de alianças que mantinha a dominação política na

cidade.

Com o passar dos anos e ante os efeitos das

transformações institucionais, políticas, econômicas e sociais

verificadas na cidade, a base social e organizacional do poder

político dos vereadores se altera. As antigas lideranças que

tinham base territorial definida, controlando diretamente sua

estrutura de trocas e recompensas de aliados leais, vão se

desfazendo lentamente sob os efeitos da força desta nova

situação criada institucionalmente.

Fruto das mudanças sociais, os territórios dos bairros

deixam de ser o lugar privilegiado de controle, enquanto as

redes de clientela são pouco a pouco desmontadas. O resultado

destas pequenas mudanças é percebido já na década de 1980 com

467

a introdução de novo padrão de organização comunitária,

caracterizado pela organização, de forma independente, de

pequenos núcleos comunitários em estruturas de pequenas redes

de controle. A cada liderança caberá um pequeno poder de

influência restrito a uma rede de relações com laços múltiplos

e variados, mantidos na base da troca constante.

O sistema de lideranças comunitárias existente,

produzido pela organização de políticas públicas,

principalmente de habitação popular, provoca o surgimento e ao

mesmo tempo a decadência de uma figura clássica da

representação do vereador. O comportamento do vereador de

comunidade com controle direto sobre seus liderados deixa de

existir, passando a se constituir um padrão de dominação e

controle, forjado na base do uso profissional, ação racional

instrumental em relação aos fins, na qual será importante o

uso dos laços sociais conquistados e mantidos fora do tempo de

movimentação política.

Quando as bases da dominação tradicional são rompidas,

a política municipal não se modifica no sentido de uma

representação política mais ideológica ou fundamentada em

valores sociais. Ao contrário, a base dos laços clientelistas

permanece sob uma nova forma, agora mais difícil de ser

desmontada porque alimentada a cada dois anos pela atualização

da política eleitoral. A simples ocorrência de eleições gerais

para renovação dos poderes a cada dois anos permite às pessoas

orientarem suas expectativas para ganhos imediatos e futuros

de acordo com o evento da próxima eleição.

468

Até então, os laços de controle da vontade consciente

do eleitorado tradicional não se faziam pontualmente, mas

constantemente. A indicação de um candidato para ser votado

era apenas um momento dos laços de confiança estabelecidos

entre estas pessoas. Não se intensificava nem havia maior

gasto na época de eleição porque a permanência e o auxílio

constante e direto à comunidade faziam se dispersar a atenção

ao longo dos anos. O contato não era apenas na época de

eleição, embora este se intensificasse, pois havia laços de

confiança a assegurar que determinada pessoa que recebeu um

benefício, uma ajuda não votaria em outro candidato. A

política era vivida como um instante de “ajuste de débitos”.

Em certo sentido, muitas das redes de ajuda sistemática

foram transferidas para os líderes comunitários, mesmo sem os

recursos de uma posição política privilegiada na ordem

municipal. Entretanto, os líderes contam com o reconhecimento

das pessoas da comunidade mediante trabalho, contatos e

possíveis benefícios.

Na cidade de Fortaleza, a base da organização política

tinha na força da liderança de cada vereador seu apoio mais

importante. No passado, a organização de cada base política

era imprescindível para assegurar a manutenção e reprodução da

sua condição de líder político em seu respectivo território.

Não havia controle direto sobre outros indivíduos; a situação

de desamparo social era o motor de aproximação e subjugação

destas pessoas ao líder político. Nunca se tratava de ajuda de

grande vulto, mas diante das condições de privação reinante

era sempre melhor do que nada. Além disso, não havia uma troca

469

imediata, e sim o compartilhamento de um sentimento de

gratidão pelo ato praticado. As ajudas vinham não diretamente

da riqueza acumulada pelo líder, pois este se servia muito

mais da estrutura distributiva paternalista do governo.

Na estrutura de controle do poder municipal, o vereador

desempenhava um papel extremamente relevante, pois controlava

diretamente os votos deste eleitorado mais necessitado. Havia

neste tempo menos elo de intermediação entre o líder político

e os moradores do bairro. A posição do vereador era mesmo de

agente intermediário e distribuidor de recursos e benefícios

diretamente para a comunidade que representava.

Após o período de redemocratização política, eventos

sociais significativos ocorreram na sociedade. O surgimento de

movimentos sociais de bairro criou uma fonte de poder nas

comunidades. Esta passou a concorrer com o líder político na

competência de proporcionar benefícios para o povo. Os métodos

são completamente diferentes, pois os políticos continuam

agindo com base nos laços afetivos e sentimentais, adotando

atos paternalistas em benefícios individualizados. Todavia,

enquanto não ocorria a competição eleitoral ou a disputa - não

pela posição de agente paternalista, mas como intermediário de

benefícios coletivos, - o líder político exercia dominação sem

contestação. As associações de moradores são agências

competitivas, em cada bairro onde atuam, do trabalho realizado

pelo vereador. Porém com a criação do Programa do Leite do

governo Sarney ocorrem grandes mudanças. Essa política do

governo federal de distribuição de tíquete de leite incentivou

a criação de uma vasta rede de associações comunitárias sem

470

nenhum tipo de luta anterior em defesa dos interesses das

comunidades. As novas associações nascem com perfil de

agências intermediárias de ações públicas.

São estas novas associações comunitárias inicialmente

ligadas ao Programa do Leite que serão incentivadas mais uma

vez em outro grande programa do governo federal, Programa de

Moradia Mutirão Habitacional, o qual, no Ceará, terá forte

repercussão. Trata-se da política de habitação popular em

regime de mutirão. Mais uma vez a organização comunitária se

mobiliza inteira em torno destes benefícios.

São esses fenômenos, não diretamente relacionados com a

política, que provocarão a mudança no perfil da representação

dos vereadores: o desaparecimento dos representantes que

mantinham diretamente uma base eleitoral em seu próprio lugar

de residência, deixando de cuidar diretamente do eleitorado,

passando agora a fazer uso do serviço de ligação e

intermediação do líder comunitário com os seus moradores.

Os vereadores comunitários deixam a cena por causa das

mudanças ocorridas na década de 1980, as quais, somente na

década de 1990, começam a desempenhar papel significativo na

vida política municipal. A sociedade fortalezense não é

suficientemente organizada para, na decadência da liderança do

vereador comunitário, ver surgir um padrão de liderança mais

identificado com valores organizacionais de trabalho ou

pertencimento religioso, afetivo, etc. O vereador que

substitui a liderança tradicional é o vereador institucional.

Este, pela sua origem, não tem uma identidade própria, mas

471

assume posições políticas profissionais na defesa da política

municipal.

O surgimento da liderança do vereador institucional

aconteceu em virtude da modificação verificada na década de

1970 que fechou o sistema político local para novas

lideranças. Já não se utilizava o sistema de recrutamento das

lideranças políticas originadas de associações da sociedade

civil. As associações de moradores ou de outra natureza não

desempenhavam o mesmo papel. Sua maior transformação ocorreu

como mecanismo de seleção de novas lideranças. Eram

associações onde se permitia a incorporação de novas

lideranças que experimentavam estreita aproximação com o poder

executivo.

No entanto, já não se utiliza deste mecanismo, porque

uma mudança na sociedade forçou a mudança de mecanismo de

incorporação. As transformações recentes na ordem

administrativa da prefeitura abriram e deram maior acesso às

novas lideranças. A ampliação destes novos acessos ao

executivo colocou em xeque a antiga função de intermediário

entre as demandas da comunidade e a oferta de bens do

executivo. Ao permitir maior acesso, cria-se maior pressão

pelas ofertas. Mas até que ponto o poder executivo é capaz de

resistir à pressão pelas novas demandas!

O movimento de ampliação e fechamento de novos canais

de acesso ao executivo baseia-se em estratégias para diminuir

a pressão de certos segmentos sociais organizados ou

simplesmente de pleitos e demandas de indivíduos bem

472

posicionados. Por receio de perder apoio político, não há como

resistir a estas pressões.

Quais as conseqüências da descentralização política

ocorrida depois de 1988 quando o governo municipal passou a

existir como um dos elos de governo dentro do federalismo

brasileiro? Criou-se uma nova elite política municipal

representada principalmente por médicos, em decorrência da

proliferação da prestação de assistência médica por parte do

governo municipal à população. Enquanto isto, os antigos

vereadores que detinham estruturas de assistencialismo

montadas no bairro não conseguem resistir ao avanço da

competição política. Já não basta a adesão ao antigo sistema

de voto de gratidão; é preciso sair das limitações estreitas

de uma base política homogênea e centrada nos mesmos

princípios. A unicidade do voto é um obstáculo quando se tem

uma arena eleitoral competitiva. Tanto que praticamente todos

os candidatos buscam estruturar uma base eleitoral mais

diversa, apelando para modalidades distintas de inserção em

agrupamentos sociais.

A competição eleitoral torna a manutenção de uma base

eleitoral fixada no bairro custosa e arriscada politicamente

porque não há garantia de retorno eleitoral. Tendo o “sistema

de lideranças comunitárias” disponível para operar como

mediadores entre as expectativas da população, não há por que

manter esta custosa estrutura de assistência no bairro. As

lideranças comunitárias atuam de maneira fragmentada, com

pequenas estruturas não mais de auxílio direto aos mais

473

necessitados, porém carreando obras e benefícios para suas

comunidades.

São estes os herdeiros do voto de gratidão, agora

“negociado politicamente” com o candidato institucional. O

atual quadro de representação política no legislativo

municipal é marcado pela presença de muitos médicos e

vereadores com base eleitoral em pequenos agrupamentos

sociais. Os antigos vereadores de comunidade de bairro estão

em extinção. Resultou deste processo um eleitorado mais

independente, menos sujeito ao voto de gratidão, entretanto

seduzido por benefícios pessoais e imediatos na época das

campanhas eleitorais.

Atualmente tornou-se moda criticar a democracia

representativa. Todas as nossas dificuldades parecem

imaginariamente oriundas desta estrutura política. Quando não

é a democracia objeto de crítica, pois forja cidadãos apáticos

e mobilizados unicamente no período eleitoral, atentamos para

o fim da política. A sociedade brasileira parece entrar numa

trajetória de redução do espaço e importância do debate

político. E isto, para muitos, é visto como negativo e

temerário. A meu ver, porém, as mudanças recentes ocorridas na

década de 1990 são irreversíveis e levam inevitavelmente a uma

diminuição da política ideológica. Ou seja, ao consolidarmos

as instituições do Estado, permitimos que o debate e as

discussões dos nossos graves problemas sejam travados numa

arena mais pragmática, levando em consideração as realidades

existentes e o conjunto de forças constituídas. Em nosso

sistema político, a cada dia, a ética da responsabilidade

474

parece ganhar mais adeptos. Isto faz com que a política,

universo do arbítrio e império da força, vá pouco a pouco

perdendo sua condição hegemônica.

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