Um olhar semiótico sobre as obras de terror mais vendidas no ...
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA BURRICE EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: ANÁLISE SEMIÓTICO-PSICANALÍTICA
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REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA BURRICE EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: ANÁLISE SEMIÓTICO-PSICANALÍTICA
José Passos Lopes, e-mail: [email protected], Universidade Paulista
Resumo
Este artigo apresenta o resultado parcial de uma pesquisa mais ampla e provém de fatos ocorridos no processo de constituição de um grupo de pesquisa para educação matemática de alunos de um curso de pedagogia. Dois desses alunos foram sujeitos deste estudo, pois estimularam a formação do grupo. Questionaram como ensinariam matemática se não a sabiam. Pesquisas nacionais e internacionais, cada vez mais, demonstram a precariedade da educação matemática. A demanda dos dois alunos resultou na formação do grupo de pesquisa que objetiva criar um Banco de Atividades, em que eles, futuros professores investigadores, elaborem sua própria capacitação dentro da prática reflexiva. A psicanálise, por meio do conceito de aprés-coup, possibilita a assunção de um sentido. Esta pesquisa buscou aprofundar o estudo da representação social da burrice em educação matemática, levantando questões a respeito da psicogênese da burrice: seria ela uma construção individual ou social? Ou as duas juntas? Qual o papel do narcisismo no processo constitutivo da burrice? Como objetivo geral, busca esboçar uma psicogênese da burrice a partir da semiótica psicanalítica e a teoria das representações sociais. Especificamente objetiva entender o afastamento de um dos alunos como uma possível retração narcísica, como defesa compensatória da desqualificação narcísica. É pesquisa qualitativa embora trabalhe com dados quantitativos. A amostragem foi não probabilística por acessibilidade em que não se requer rigor estatístico. A análise semiótico-psicanalítica associada à teoria das representações sociais possibilitou reler atos aparentemente corriqueiros como o afastamento do aluno.
Palavras-chaves: Educação matemática, semiótica psicanalítica, representações sociais.
Abstract This paper presents part of a broader research and results from events that occurred in the process of setting up a research group for mathematics education of students in a pedagogy course. Two of them were the subjects for this study because they encouraged the formation of the group. These students have questioned how they would teach mathematics if they did not know it. National and international studies have been increasingly demonstrating mathematics education precariousness. The demand of these two students has resulted in the formation of the research group that aims to create a bank of activities in which they, future teachers researchers, develop their own training in the reflexive practice. Psychoanalysis, through the concept of après-coup, allows the assumption of a sense. This study sought to deepen the study of the social representation of stupidity in mathematics education, raising questions about the psychogenesis of stupidity: would it be an individual or a social construction or both of them? What is the role of narcissism in the process of incorporation of stupidity? As a general objective, it seeks to outline a psychogenesis of stupidity from the semiotic and psychoanalytical analysis and the theory of social representations. Specifically it aims to understand one of the students´ withdrawal of a student as a possible narcissistic retraction, as compensatory defense of the narcissistic disqualification. This is a qualitative research, although it works with quantitative data. The non-probabilistic sampling was due to convenient accessibility and because it does not requires statistical accuracy. The semiotic and psychoanalytical analysis associated with the theory of social representations allowed re-reading seemingly ordinary acts as the stand back of the student. Keywords: Mathematics education, semiotic and psychoanalysis, social representations
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1. Introdução
Este artigo apresenta o resultado parcial de uma pesquisa mais ampla e
provém de fatos ocorridos no processo de constituição de um Grupo de Pesquisa
para educação matemática para alunos de um curso de Pedagogia. Dois desses
alunos foram sujeitos deste estudo, pois estimularam a formação do grupo.
Questionaram como ensinariam matemática se não a sabiam.
Pesquisas nacionais e internacionais, cada vez mais, demonstram a
precariedade da educação matemática. No SAEB, na proficiência em Matemática,
“aproximadamente 90% dos estudantes não têm os conhecimentos mínimos
esperados e adequados para suas séries” (LACANALLO, 2011, p. 22). Para o PISA,
Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, os resultados, em matemática,
mostram: “Numa escala de desempenho de um a seis, 73% dos alunos apresentam
nível um ou inferior” (Ibid., p. 26). Lopes (2011) analisa diversas pesquisas que
corroboram a situação crítica de alunas iniciantes dos cursos de Pedagogia.
A demanda dos dois alunos resultou na formação do grupo de pesquisa que
objetiva criar um Banco de Atividades, em que eles, futuros professores
investigadores, elaborassem sua própria capacitação dentro da prática reflexiva. Os
seis projetos foram aprovados como Iniciação Científica pela Universidade. Dois
deles com bolsa: o aluno da demanda foi um dos contemplados.
Até então o aluno comportara-se de maneira exemplar, entusiasmado e
cumprindo as atividades planejadas com responsabilidade e rigor. Músico,
propunha-se a trabalhar a matemática e a música. A notícia da bolsa coincidiu com a
elaboração da Oficina 4, em que se começava a estudar o valor posicional dos
números e a utilização do QVL. A partir daí o aluno começou a faltar comparecendo
somente a uma Oficina, alegando convocações profissionais.
A psicanálise, por meio do conceito de aprés-coup, possibilita a assunção de
um sentido. Esta pesquisa passou a aprofundar o estudo da representação social da
burrice em educação matemática, levantando questões a respeito da psicogênese
da burrice: seria ela uma construção individual ou social? Ou as duas juntas? Qual o
papel do narcisismo no processo constitutivo da burrice?
Como objetivo geral, busca esboçar uma psicogênese da burrice a partir da
semiótica psicanalítica e a teoria das representações sociais. Especificamente
3
objetiva entender o afastamento do aluno como uma possível retração narcísica,
como defesa compensatória de desqualificação narcísica.
O termo psicogênese foi usado poucas vezes por Freud. Dois exemplos:
nome de um artigo: “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”
em que escreve: “A narração de um caso isolado, não muito marcante em categoria,
no qual foi possível determinar sua origem e desenvolvimento na mente com uma
segurança completa e quase sem lacunas, pode assim reivindicar certa atenção.”
(1920, p. 185 – grifos do autor); no item “O mecanismo do prazer e a psicogênese
dos chistes” em que diz: “a discussão precedente concede-nos inesperadamente um
insight sobre a evolução ou a psicogênese dos chistes” (1905, p.150 grifos do
autor); Compreende-se que o termo psicogênese não é um conceito psicanalítico. É
usado no sentido de evolução ou origem e desenvolvimento na mente.
Neste artigo, ele será usado na acepção de alterações físicas, mentais
geradas por fatores psíquicos; uma causalidade psíquica na produção da burrice,
mediada pelas representações sociais. Não em uma visão determinista, já que para
a psicanálise uma condição qualquer pode produzir n efeitos distintos (LUSTOZA,
2006, p. 43). A gênese da atividade psíquica do indivíduo é atribuível ao seu próprio
psiquismo. Não se pode antecipar de antemão o sentido que emergirá para o sujeito,
pois para a psicanálise não se pode prever que significação o sujeito atribuirá àquilo
que lhe acontece. Atento a que “o sujeito está sempre em relação com as condições
que o antecedem”, sendo livre, contudo, para ocupar “um lugar determinado na rede
social”. Para isso, “é necessário que sua posição seja ratificada pelo Outro”, já que
“é impossível conceber um sujeito fora da relação com o Outro.” (Ibid. p. 48).
A autora mostra que “toda realidade é representada, ou seja, apropriada por
indivíduos e por grupos, reconstruída num sistema sócio-cognitivo”. Sendo a
realidade “o fato objetivo, apropriado e reconstruído pelo grupo ou pelo indivíduo,
uma vez que a experiência grupal se incorpora às estruturas cognitivas individuais”
Desse modo, “professores e alunos partem de representações de natureza socio-
cultural a respeito da Matemática, que se originam do conhecimento e despertam
reações conscientes ou inconscientes de caráter afetivo.” (Ibid., p. 10).
Para Telma Lopes, Moscovici buscava “um conceito verdadeiramente
psicossocial dialetizando as relações entre indivíduos e sociedade.” (2011, p. 3948).
Escreve que “um dos pressupostos centrais das teorias genéticas em Psicologia é
que para compreender algo é necessário compreender os processos através dos
4
quais eles foram produzidos”, ou seja, “como foi a sua construção. Se quisermos
entender uma representação social é preciso buscar os processos através dos quais
elas foram formadas e transformadas.” (Ibid., p. 3951). Diz que “a grande lição que o
estudo da gênese ou das gêneses comporta está em mostrar que jamais existem
começos absolutos. Tudo é gênese.” (Ibid., p. 3952). As representações sociais
ligadas à matemática podem ser entendidas como “um conjunto organizado e
hierarquizado de julgamentos, de atitudes e de informações que um determinado
grupo social elabora a respeito de um dado objeto.” (SILVA, 2004, p. 3).
2. Fundamentação teórica
A baixa proficiência em matemática dos alunos brasileiros ocupa o cerne
deste pesquisador há alguns anos. Pouco a pouco, emergiu a questão da burrice.
Em Signorini, a falta de sucesso em qualquer disciplina escolar, que não a
matemática, aponta que não se prestou atenção, não se dedicou ou se teve certa
dificuldade. No caso da matemática, seu insucesso representa carência de
raciocínio. “Quem não aprende as outras matérias é, no máximo, considerado
vagabundo; mas quem não aprende matemática é tachado de burro.” (2007, p. 16).
Lopes anota: “O termo vagabundo é tomado como uma coisa conjuntural: alguém
está vagabundo, basta se esforçar, para modificar esse estado”, porém, “burro é
algo estrutural: a pessoa é burra, isso é um defeito congênito, uma incapacidade”
(2011, p. 7 – grifos do original).
Chaves explica um ato falho de sua paciente Sophie, que falando de seus
aborrecimentos por não aprender, trocou aborrecimento por emburrecimento (2001,
p. 66). “A «burrice» pode ser um sintoma, um significante, que aponta para uma
questão da estrutura do sujeito...” (Ibid. p, 30). O seu estudo ao apontar para a
estrutura do sujeito, lança uma pista que corrobora esta pesquisa, pois a análise
aqui empreendida sugere um processo de retração narcísica.
Moscovici diz que as representações sociais (RS) encontram-se “na
encruzilhada de uma série de conceitos sociológicos e de uma série de conceitos
psicológicos” (1978, p. 41).
Sobre o papel das professoras polivalentes e professores na construção da
burrice, atente-se para o que afirma Moscovici sobre as profissões: “Queremos falar
das profissões cujos membros são «representantes» e têm por missão participar na
5
criação de representações” (Ibid., p. 43 – destaque do original). Os professores,
parece, podem entrar nesse rol de representantes criadores de representações. A
burrice não parece ser criada somente por eles. Como a análise teórica sugere, os
familiares contribuem para essa construção. A família e a escola provavelmente
institucionalizam as RS com seus sistemas e linguagens a partir de valores e
conceitos. Moscovici diz da importância dos formadores de opiniões nesse processo
(Ibid., p. 51). Para ele, “qualificar uma representação de social equivale optar pela
hipótese de que ela é produzida, engendrada, coletivamente” (Ibid., p. 76).
Sendo as RS engendradas coletivamente, é possível se estabelecer um elo
com o conceito psicanalítico de narcisismo. O sujeito se desenvolve em um contexto
intersubjetivo. As mensagens do outro significativo, as experiências de menosprezo
ou de preferência sistemática deixam sua marca (BLEICHMAR, 1987). “O sujeito
não existe desde o início, o que existe é um filhote, de carne, nervos, sangue”,
sendo que “o processo pelo qual o sujeito assume a imagem de seu corpo próprio
como sua, e se identifica com ela («eu sou essa imagem») chama-se Narcisismo”
(ELIA, 1995, p.111, apud CHAVES, 2001, p. 52). É possível “pensar e formular o
princípio da gênese do distúrbio de aprendizagem em alguma coisa que se
estabelece no plano da relação constitutiva, nos “laços de família”. Entender “como
este filhote humano significou as marcas de sua constituição, de como respondeu à
questão: «O que o outro quer de mim?»” (Ibid., p. 57 – destaques do original).
O narcisismo pode ser considerado um operador do desenvolvimento
psíquico. Narciso fechou-se numa relação consigo mesmo. Freud (1913) diz que a
organização narcisista nunca é totalmente abandonada. Distingue (1914) narcisismo
primário e o secundário, sendo que o primário propicia o desenvolvimento humano,
fonte da satisfação narcísica, a qual ninguém quer abrir mão. Para o
desenvolvimento do ego necessita-se afastar-se do narcisismo primário.
3. Procedimentos metodológicos
Na pesquisa qualitativa (MINAYO, 2001), as ciências sociais trabalham com
um nível de realidade que não pode ser quantificado. Preocupam-se menos com a
generalização e mais com o aprofundamento e abrangência da compreensão. O
quantitativo não representa o critério fundamental, mas, sim, sua possibilidade de
incursão. Deve-se buscar identificar e analisar em profundidade dados não
6
mensuráveis, como sentimentos, sensações, percepções, pensamentos, intenções,
comportamentos passados etc. Procurar a reincidência de informações ou saturação
dos dados (Minayo, 1999). A amostragem será, portanto, não-probalística por
acessibilidade em que não se requer rigor estatístico.
Os instrumentos de pesquisa deste projeto foram: um questionário
socioeconômico com a solicitação de fazer um desenho; um teste de conhecimentos
de matemática com conteúdos referentes aos três primeiros anos do ensino
fundamental; uma folha com 9 figuras indutoras e outra para dissertação.
Os dados foram coletados solicitando que os sujeitos preenchessem o
questionário e seguissem a instrução da frase indutora: Criar um desenho com o
tema: EU E UMA AULA DE MATEMÁTICA. Cada folha estava numerada com um
código de controle de A001 a A012. Ao terminar, cada um recebeu um teste de
conhecimentos matemáticos para ser feito. Depois, receberam uma folha com nove
figuras indutoras, sobre educação matemática, onde deveriam observar as figuras e
escrever três palavras nas linhas sob cada uma. Finalmente, receberam uma folha
para fazer uma dissertação com o tema: Minha história com a matemática.
Foram coletados, os mesmos dados, de cinco alunos de Educação Física,
para servirem de grupo de controle em relação aos alunos do curso de Pedagogia.
É, também, pesquisa aplicada, já que objetiva gerar um Banco de Atividades para
aplicação prática: autocapacitação da equipe de pesquisa. O referencial teórico a ser
empregado, nessa fase, é o do professor investigador dentro da prática reflexiva.
Lopes fez levantamento bibliográfico sobre o uso, na pesquisa em
representações sociais, de imagens, desenhos, figuras ou recursos gráficos como
instrumento de coleta de dados (2011, p. 3).
4. Resultados
Na análise semiótico-psicanalítica dos três desenhos produzidos pelos
alunos A008, A009 e F004, pode-se constatar:
Fig. 01 – aluna A008 Fig. 02 – aluno A009 Fig. 03 – aluna F004
7
No desenho da aluna A008 (fig. 01), nota-se que a proporcionalidade das
figuras atende à proporção emocional: a professora é bem maior que as crianças. “O
espaço emocional dita as hierarquias afetivas através da dimensão das formas”
(DERDYK, 1989, p. 62). Os traços escondem “índices de uma realidade psíquica
não imediatamente acessível, exibindo uma atividade profunda do inconsciente” da
criança. “Será que com o adulto não ocorre o mesmo?” (Ibid., p. 51).
Duarte anota um experimento: Crianças e professores desenharam. “Entre
os 50 desenhos obtidos apenas 5 foram classificados como desenhos realizados por
adultos, sendo que na verdade eram 30 os adultos (professores) participantes da
investigação e somente 20 crianças”. Ela pergunta: “o que acontece com o desenhar
do adulto para que ele permaneça configurado como um desenho «infantil»?”. A
causa: “desenhos de esquemas gráficos têm função comunicacional” (s.d., p. 9). O
desenho da aluna A008 atende às características de esquemas gráficos.
Para a semiótica, a análise da proxêmica – que estuda a estrutura e uso do
espaço humano (LOPES, 2011) – a professora desenhada, tem uma relação íntima
(proximidade) com a lousa, mas a proporção emocional a afasta e cria uma postura
sociófuga em relação às crianças (Ibid.), o corpo dirige-se para frente, não para elas.
A cinésica estuda os gestos e movimentos corporais. A paracinésica, os
qualificadores dos movimentos: a intensidade, que mede a tensão muscular, e o
raio/escala, que verifica a extensão dos movimentos (Ibid.). A gestualidade da
professora não evidencia tensão muscular. O braço direito, levantado, aponta para a
lousa, enquanto o esquerdo cai distendido ao lado do corpo. O raio/escala de seu
gestual é amplo, sem tensionamento. Na expressão gestual manual, a mão também
não está tensionada. É um gesto dêitico: somente aponta para o quadro negro.
Na figura 02, o aluno apresenta-se, do ponto de vista da proxêmica, distante
da lousa. Sua orientação é sociófuga, levando em consideração seu olhar –
representado por uma linha descontínua – o distancia: aquele que apenas olha.
Acima de sua cabeça há um grande sinal de interrogação. Ferraz e Fusari citam
Oaklander: olhamos muito, mas não vemos, “simplesmente assistimos, somos
espectadores...” (2001, p. 58). O aluno é o espectador da matemática. Apesar da
dúvida, o corpo, na análise paracinésica, não é tenso, embora seus braços estejam
dobrados, não demonstram tensionamento. Seus pés estão descalços.
A figura 3, sobremodo expressiva, é descritiva. A professora inclina-se para
a aluna, corpo voltado para ela, numa orientação sociópeta, grita: Sua burra. A
8
aluna, tem orientação sociófuga (seu corpo direciona-se para frente), derrama uma
cachoeira de lágrimas, braços caídos enquanto o da professora aponta para ela,
reforçando o grito.
Figura 41 Figura 5 Figura 6
5. Discussão
A burrice, tal como a sociedade a representa2, parece repercutir as palavras
de Moscovici: “Vivemos numa época intensa em que as ideias agem e transformam
a nossa visão da natureza do homem” (1978, p. 82). Ser burro parece acarretar uma
carga intensamente pesada nos ombros daqueles que assim se consideram: muda
visões de mundo, deturpando-as, induzindo escolhas profissionais que representam
opções outras se não fora o sentimento de incapacidade que acarreta.
Os significantes dos desenhos podem ser cruzados com os das palavras e
textos (CABAS, 1982) diz que há um deslocamento (metonímia) dos significantes no
discurso que ao se cruzarem com outros proporcionarão uma condensação (metáfora).
Criou-se a seguinte classificação para as associações com as imagens
indutoras: Associações descritivas: referem-se diretamente à imagem. O aluno
descreve o que vê. Associações não-referenciais: são as associações livres,
propriamente ditas; não têm “quase” nenhuma referência com a imagem.
Associações referenciais indiretas: a referência à imagem é indireta; refere-se ao
contexto da imagem. Associações sentenciadoras: emitem um juízo de valor, um
julgamento da imagem.
Tabela 1- Tipos de associações
Tipo da associação Quantidades
A008 A009 F004
Associações não-referenciais 0 9 4
Associações descritivas 7 7 8
Associações referenciais indiretas 3 8 13
Associações sentenciadoras 2 2 1
1 As figuras foram retiradas da Internet: Disponível em <http://www.vitor79.blogspot.com/>;
<http://colegialpokemon.blogspot.com/>; <http://bloguedogordo.blogspot.com/2011/03/evolucao-da- matematica.html>. 2 Esta frase é uma paródia do título do capítulo II do livro de Moscovici.
9
Importante observar as reações dos três alunos às imagens para associação
livre. A aluna A008 não fez qualquer associação não-referencial, ao contrário do
aluno A009 que as fez 9 vezes e a aluna F004 apenas 4. Isso pode sugerir que a
aluna A008 prende-se ao princípio de realidade, pois, além de escrever frases em
vez de palavras, usa as associações descritivas, descrevendo as figuras em 7
casos; quase não faz associações referenciais indiretas (apenas 3). O aluno A009
também utiliza as associações referenciais indiretas 8 vezes e a aluna F004, 13
vezes, o maior número entre os três.
A fig. 4 foi descrita pela aluna A008 como: Conheço como burro, ou seja,
com pouca inteligência para a matemática, não demonstrando qualquer resistência à
explícita citação da burrice. Para o aluno A009, significou dificuldade, fórmula e
Bulliyng. Indiretamente, viu Bulliyng na situação, pois parece tê-lo afetado. A aluna
F004 descreve a soma, mas vê equação e matemática.
As imagens, as palavras das associações livres parecem posicionar cada
aluno em um lugar. A A008 como alguém que se percebe em dificuldade com a
disciplina, mas capaz de ser superada: seu desenho mostra uma professora
proporcionalmente maior. O A009 parece prender-se a evasão, fugir ao princípio da
realidade. Diante da fig. 5, associa com entender, brincar, voar, palavras que
sugerem evasão. Em conversas particulares, diz que o desconhecimento da
matemática o levava ao desinteresse e insinuou ter sido um aluno difícil (aquele que
brinca, voa durante as aulas?). É uma das poucas figuras em que a A008 não
descreve, pois diz: Matemática será a matéria mais difícil para o aprendiz.
Indiretamente, a F004 escreve: dedicar, tentar, solucionar. Um lugar ambíguo: não
se prende diretamente ao princípio da realidade, assemelha tangenciar a realidade,
sem enfrentá-la de forma direta. Dadas as características enumeradas seria possível
categorizá-los como: A008: descritiva; A009: evasivo e F004: ambivalente.
Os desenhos parecem reafirmar essas categorizações. A aluna A008 fez um
desenho descritivo de uma professora ensinando; o A009, alguém de costas – não
se deixa ver de frente, não mostra a cara –, evadindo de apresentar-se; a F004 foi
explícita no desenho: uma professora chamando a aluna de burra. E a
ambivalência? Não no desenho, explícito, mas nas palavras: faz 13 associações
referenciais indiretas; mostra de um lado, e sugere tangenciar a realidade, por outro.
Os três alunos parecem ter criado mecanismos próprios para lidar com a
falta, com a desqualificação narcísica. A A008 gosta de contar, descrever: “A tarefa
10
de fazer a minha historia com a matemática, foi igual o meu saber/conhecer da
matemática, sem grandes coisas, expus o que sabia”. O A009, sempre evasivo, não
se mostra, não apresenta sua cara. Ao escrever a SUA história com a matemática, o
pronome EU inexiste. Usa o plural majestático. “Ao falarmos de matemática, uma
grande variedade de dúvidas e acertos, paira sobre nosso pensamento, tornando
estes fatos, algumas vezes íntimos, em determinadas ocasiões, tornam-se
perceptíveis ao seu semelhante”. Para Lacan, a linguagem é um tonel que vaza.
Apesar do plural majestático, o medo vaza: os fatos íntimos podem se tornar
perceptíveis aos semelhantes. “É muito comum nos depararmos com crianças que
são mal compreendidas em sala de aula”. Eu não me implico na narrativa: aparecem
crianças mal compreendidas. A F004 não escreveu a sua história com a matemática.
A atitude parece ambivalente: eu desenho e exponho o rio de minhas lágrimas, mas
não quero falar sobre isto; fujo da escrita. Nos desenhos indutores, associa com
verbos no infinitivo (das 27 palavras, 15 estão no infinitivo), remetendo à
impessoalidade; não se refere a qualquer sujeito; indica a ação, mas não a situa no
tempo: foge do tempo? As memórias estão no tempo; principalmente as doloridas.
A demanda desdobra-se. O aluno A009 na sua história com a matemática
exprime: “A visão de uma criança para a aprendizagem da matemática é muito
diferente daquela que alguns professores sem experiência ou preparo costumavam
pensar, «aquele aluno é burro»”. E afirma: “Não existe uma fórmula mágica para o
aprendizado, mas para algumas crianças, que no primeiro momento, perderam uma
explicação ou não entenderam determinada matéria, tudo começa perder a graça e
a ficar sem sentido”. E evasivamente na terceira pessoa: “E essa situação começa
virar uma bola de neve, os anos passam e a criança já não é mais criança, porém as
dúvidas continuam”. E reclama: “Agora este adulto acostumou-se com elas e
aprendeu a conviver e a driblar as dificuldades impostas em meio à sociedade”.
Porém, “as dúvidas adquiridas na infância de qualquer criança se não forem
solucionadas no decorrer do processo de aprendizagem, continuarão a assombrá-
la”. E essa assombração terá consequências “até na hora da escolha de sua
profissão, fazendo com que isso influencie em seu futuro profissional, optando
normalmente por áreas que não envolvam as Ciências Exatas”. Impossível fugir
porque “as áreas de exatas e humanas estão totalmente ligadas, principalmente na
área de pedagogia, uma vez que formam professores que ensinarão matemática”.
11
No relatório semestral de iniciação científica pondera: “Ao longo desta
pesquisa muita coisa positiva foi acrescentada em minha vida, começando pela
forma que eu via a Matemática, sempre imaginei um monstro, que por mais que eu
lutasse contra ela sempre era derrotado”. Diante da figura indutora do carrasco (fig.
6), a sua primeira associação: socorro. E as suas palavras subsequentes são
castigo e dificuldade. Como castigar uma dificuldade?
Correia propôs uma atividade composta de dois momentos: um depoimento e
um desenho. Diz a professora Juciane: “Tenho algumas dificuldades de ensinar
Matemática”. Para o desenho, escolheu a mesma figura 6, desta pesquisa, que
intitulou de A tortura. Será a matemática uma tortura? (2010, p. 95).
A evasão do aluno A009 ganhou um contorno crítico tão logo seu projeto de
pesquisa foi aprovado, em junho. Nas Oficinas do restante do semestre apareceu
em uma. À penúltima Oficina do ano, não compareceu e se justificou duas semanas
depois, dizendo que havia se esquecido: “Professor eu confundi as datas e para
ajudar eu não entrei no email na semana passada, aqui em casa tá uma correria...”.
Para a psicanálise, o discurso é sempre polissêmico. Sintagma linear, como
a frase, só ganha sentido após a última palavra dita. As faltas sucessivas formaram
um sintagma, mas a cadeia paradigmática condensa-se em pontos relacionais. O
esquecer sugere um para além do sintagma, o discurso manifesto, faltas sucessivas
por questões profissionais. O esquecimento faz surgir o discurso latente, um ponto
relacional, que possibilita o entendimento a posteriori dos procedimentos do aluno.
Outros pontos relacionais puderam então compor o discurso latente da sua
conduta. O discurso evasivo de sua história com a matemática complementa o
esquecer da reunião, que se completam com o seu desenho e com suas palavras
associadas às figuras indutoras. As faltas começaram a acontecer a partir da Oficina
4 quando foi introduzida um novo elemento: a utilização do QVL – Quadro Valor de
Lugar – em que se passaria a trabalhar o valor posicional do número e se chegaria
ao “vai um”. Neste ponto, pediu ajuda, pois não sabia como trabalharia o QVL.
Parece configurar-se aqui a evasão por atos com a evasão por palavras.
Sugere o aparecimento de ideias do tipo fóbico: “Eu não poderei enfrentar tal coisa,
portanto é perigosa”, usando palavras de Bleichmar (1987, p. 23). Conversas
posteriores confirmaram que a Oficina 4 produziu um nó, medo de fracassar, de não
corresponder às expectativas. Antes da Oficina enviou o seguinte e-mail: “Prof. em
relação a aula 4 eu estou com dúvida no que fazer, o Sr. tem alguma sugestão para
12
eu montar a aula? Abraço”. Bleichmar mostra “o circuito realimentador, tão
frequentemente observado, em que por causa de uma queda da autoestima” o
sujeito, considerando-se incapaz, tem medo “produzindo-se uma inibição fóbica”. Tal
inibição, “conduz a um verdadeiro quadro de paralisia na ação” (Ibid.). Para ele,
pode ser que tudo lhe apareça como ameaça à autoestima e medo de críticas.
Pensando com Bleichmar, “a evitação do encontro com o temido é para que
a consciência não se inteire ou para que o desprazer experimentado não se
desenvolva? Evidentemente esse último”, a fim de que “não surja uma angústia que,
inclusive, pode não estar ligada com um objeto na consciência” (Ibid., p. 98). A
Oficina 4 parece ter funcionado como objeto fobígeno. “Nada mais humilhante que o
sentimento de impotência porque afirma que ego não é capaz de ser aquilo que
deveria ser” (Ibid., p. 123).
Para o autor, “o sofrimento narcisista encontra-se na base daquilo que se
chamou de instabilidade, falta de constância etc.”. Ao se encontrar perante um texto
extenso ou difícil, o sujeito “pode não sentir aquilo que está adquirindo e sim tudo o
que lhe falta”. Esse “texto converte-se, para ele, num testemunho de sua ignorância,
a experiência tornando-se intolerável para ele”. O sujeito sente-se confrontado de
forma contínua com “o reconhecimento de sua limitação e, portanto, com
insatisfação narcisista” (Ibid., p. 131). Parece ser a retração narcisista: o abandono
do grupo de pesquisa. Ocorre para que a pessoa, isolando-se possa “manter no
imaginário o sentimento de superioridade graças ao qual evita-se a confrontação
que tornaria as limitações evidentes” (Ibid.).
6. Considerações finais
A análise semiótico-psicanalítica associada à teoria das representações
sociais possibilita reler em sentido mais aprofundado atos aparentemente
corriqueiros. Freud criou a psicanálise de um aparente “lixo” cultural: sonhos, atos
falhos e sintomas. O que se pretende com a pesquisa que originou este artigo é
esboçar uma psicogênese da burrice, procurar vê-la de um ponto de vista
polissêmico, tentar percebê-la tal como a sociedade a representa.
13
O abandono escolar parece, também, poder ser visto por essa ótica das
defesas compensatórias do narcisismo. Insuportável para o aluno confrontar-se todo
dia com o desprazer narcisista de sua impotência.
Propugna-se por um professor semiótica e psicanaliticamente orientado
capaz de reler as entrelinhas do ato pedagógico e agir a partir de tais pressupostos,
pois educar como advertiu Freud é uma das três profissões impossíveis.
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