A LITERATURA E A CORRESPONDÊNCIA DAS ARTES ESPACIAIS E TEMPORAIS MÚSICA E ARQUITETURA NUM POEMA...

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A LITERATURA E A CORRESPONDÊNCIA DAS ARTES ESPACIAIS E TEMPORAIS MÚSICA E ARQUITETURA NUM POEMA DE HAROLDO DE CAMPOS Arq. Ms. Ernesto de Souza Pachito

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A LITERATURA E A CORRESPONDÊNCIA

DAS ARTES ESPACIAIS E TEMPORAIS

MÚSICA E ARQUITETURA NUM POEMA DE HAROLDO DE CAMPOS

Arq. Ms. Ernesto de Souza Pachito

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Prelúdio – abertura a O Âmago do Ômega (fac-simile)

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1 INTRODUÇÃO

1.1 TEMPO E IDEOGRAMA - PRECEDENTES

As artes e ofícios da palavra o são também do tempo, sua vocação natural, na escrita ocidental,

pelo menos, é para estarem contidos num fluxo de tempo, mesmo quando meramente descritivos de

uma cena visual estática, por exemplo. Dizemos “vocação” porque é notória a tentativa de poetas e

prosadores modernistas (e do simbolista/impressionista Mallarmé) de romperem este fluxo

inexorável do tempo na escrita, caminhando rumo às tão citadas montagens poéticas ideogrâmicas.

Valeram-se para tal da espacialização da página escrita, de uma certa forma, de sua diagramação

(acreditamos que podemos usar este termo já meio gasto nos meios jornalísticos e das artes gráficas)

e de uma fragmentação de orações, frases e até mesmo de palavras, que seriam dispostas sobre a

página em branco de acordo com certas regras. Constitui, ao nosso ver, momento de extrema

relevância da visão de mundo ocidental esta absorção progressiva e progressiva entrada num modelo

lingüístico ideogrâmico que de uma forma ou de outra se manifestou também na música, outra

forma de arte temporal. Vejamos o que diz Adorno:

A quem quer que esteja formado na música alemã e austríaca é

familiar já em Debussy uma sensação de decepcionada

expectativa...É um “epodo” que não chega... O ouvido deve

orientar-se de maneira diferente para compreender exatamente

Debussy, para entendê-lo não como um processo de tensões e

resoluções, mas como uma justaposição de cores e superfícies

(ADORNO, 1974, p. 144).

Este paradigma parece caracterizar-se na poesia e quanto a esta dimensão temporal por uma

percepção simultânea dos signos lingüísticos, típica das mensagens gráficas.

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Segundo Arnold Hauser, teríamos no cerne da mentalidade impressionista o conceito de

mutação, de devir incessante, premissas heracliteanas que a nosso ver são muito próximas, ou muito

propícias à aceitação, no ocidente, de formas de pensamento e linguagem oriental. Vejamos:

Todo o método1 do impressionismo com os seus expedientes artísticos e

os seus truques tende, acima de tudo, a dar expressão a este ponto de vista

heracliteano e a acentuar que a realidade não é um ser, mas, um devir, não

um estado, mas, um processo. (HAUSER, 1972, p. 1050)

A própria visão da natureza por estes autores seria traduzida para a tela em formas

fragmentárias, onde há desintegração, incompletude e metamorfoses (Ibidem, p.1050). Mesmo a

aversão oriental pelo transitório mundo das aparências e sensações, Maya e seu véu, se casa com a

tentativa impressionista (e aí sua relação com a fotografia) de ser menos ilusionista que o próprio

realismo pictórico, de representar o mundo pela junção de “elementos fundamentais do assunto”

(Ibidem, p. 1052), a técnica da mistura óptica onde manchas de cor são misturadas internamente

pelo cérebro do expectador da obra e não na paleta do artista.

Há, desta forma, uma atitude de questionamento da noção tradicional de curso do tempo, que

tende para reestabelecê-lo como algo dialeticamente localizado entre estático e dinâmico. Nisto está

presente uma tentativa de paralisação da percepção de fluxo temporal, numa técnica e numa postura

em que, supomos, a prática ideográfica está latente, pelo menos um certo caráter de instantaneidade

tradicionalmente atribuída à leitura de “textos” pictóricos2. Esta atitude se caracterizava então de

forma extremada no Impressionismo ou já mesmo no Realismo pictórico, por uma eliminação da

1 Observemos a palavra “método”, como ela comporta uma acepção matérica, empírica, onde poderíamos talvez

pressupor a famosa correlação entre os planos da expressão e do conteúdo, estando este último estreitamente ligado à

noção de realidade compartilhada pelos artistas impressionistas. 2A Teoria da Informação, já na década de 50 do séc. XX, definia uma “espessura do presente” para percepções

pictóricas, mensurável e que define a “jurisdição” sobre o fenômeno da percepção visual de teorias da exploração do

campo visual e Teorias da totalização (simultaneístas, notoriamente a Gestalt Theory). (MOLES, 1978, pp. 88 ss. )

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narratividade (volumétrica, de perspectiva, de luz e de sombra) da cena pintada e a configuração da

pintura como uma grande sincronia visual quase pura, o que, parece-nos, é conseguido com a

escolha do tema e o trabalho de luz e cor e de perspectiva, repetindo (HAUSER, Op.cit., p. 1052-

1053). Sabe-se que as relações entre pintura, literatura e música nesta poética impressionista/realista

se fizeram notar quando se tentou através justamente destas duas artes temporais transmitir climas e

atmosferas, luzes, ares e cores e através de um detalhamento atomizado do tema. Vejamos o que diz

Hauser:

As impressões de atmosfera, em particular, a experiência de luz, ar

e cor são percepções próprias da pintura e, quando se tenta

reproduzir noutras artes impressões desta espécie é totalmente

legítimo falar de um espírito ‘pictórico’ da poesia e da música.

(Ibidem, p.1056)

Citando Paul Bourget, Hauser descreve um pouco mais a estratégia do estilo impressionista na

escrita onde conjuntos de texto menores como a página, o parágrafo e a frase são mais importantes

que as totalidades que os contêm e mostra como há um paralelismo entre esta atomização e o

método impressionista de pintar por manchas de cor, a técnica da mistura óptica que, inclusive,

levou a pintura a extremos como o estilo pontilhista (uma forma de Neo-Impressionismo, segundo a

maioria dos autores de História da Arte por nós conhecida). Neste ponto lembramos do pontilhismo

de Anton Webern, compositor que está totalmente dentro do paideuma do Grupo Noigandres.

Webern é classificado como pontilhista, muito embora este seja um compositor modernista de

meados do século XX.

Ainda sobre a questão do tempo, alvo deste trabalho, o sentimento de fugacidade na obra de

todos estes impressionistas teria inclusive, segundo Hauser, advindo da experiência urbana de

anonimato e do frenético ritmo urbano. A combinação destes dois fatores: solidão e sentimento de

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passar despercebido e, por outro lado, a velocidade do tráfego urbano teria induzido nos artistas este

sentido de fugacidade. (Ibidem, p. 1056-1057)

Indo ao encontro disso tudo, a experiência da memória, que se torna típica em Proust (já no

início do séc. XX), põe o tempo como experiência relativa suprimindo a sensação de seu fluxo. Em

Proust é a memória que dota a experiência rememorada de real sentido, a memória é a recordação

das “formas essenciais do ser” (Ibidem, p. 1063). Por outro lado, a utilização de paraísos artificiais

consolida uma experiência onde “a substituição da vida prática pela vida do espírito”, e a negação da

fruição da natureza em seu estado bruto (negação do mundo externo), são sintomas de

distanciamento dos padrões “reais” de percepção temporal (leia-se dicotomia sujeito-objeto).

Mallarmé, embora tido como simbolista e não impressionista, gostava de ser classificado

como pertencente a ambas as escolas e é fruto desta época e uma das bases dos trabalhos dos irmãos

Campos e de Décio Pignatari. A experiência de O Âmago do Ômega seria impossível sem a

existência do poema mallarmaico Un Coup des Dés. Hauser nos mostra como o Simbolismo literário

tem suas bases num Impressionismo precedente e quão estreitas são as relações do Simbolismo com

conceitos como a mutabilidade e inesgotabilidade do sentido do Símbolo (não no sentido

Peirceano). Outra relação entre Simbolismo e Impressionismo segundo Hauser está nos próprios

efeitos acústicos, ópticos e de ação conjunta de sentidos. Parece-nos que a concepção Haroldiana de

tempo é um desdobramento destes pressupostos filosóficos ou ideológicos presentes nesta

mundivisão impressionista e simbolista ao mesmo tempo.

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1.2 HORIZONTAL VERSUS VERTICAL

É fato lingüístico a existência postulada por Saussure de duas dimensões na estruturação de

qualquer discurso. Uma é a sintagmática, onde o relevante é a maneira em que se dá a arrumação

dos elementos escolhidos para a composição deste discurso e as tensões estruturais entre tais

elementos numa perspectiva linear, de desenvolvimento. Outra é a dimensão paradigmática, ou a

dimensão das relações associativas, conjunto virtual de possibilidades que se excluem entre si, eixo

da seleção, de possíveis elementos a serem escolhidos para a utilização neste texto (SAUSSURE s.d.

p. 142-147). O eixo paradigmático é um conjunto virtual determinado in absentia, mas o eixo

sintagmático é determinado na presença total do material significante e sua corporeidade é passível

de ser percebida.

O menor intervalo perceptível ocupado por este ou aquele elemento selecionado no conjunto

paradigmático sobre a linearidade temporal ocupada pelo sintagma seria a “espessura do presente”

(que, pelo menos quanto à percepção auditiva em música, foi quantificada pela Psicofísica e é da

ordem de 0,05 de segundo, dentro deste intervalo de tempo eventos são percebidos como

simultâneos (MOLES, Op. Cit. p. 29). Teoricamente, a manipulação desta espessura é uma das

formas de paralisação da experiência da sucessividade em música. Algo semelhante deve ocorrer

para mensagens gráficas, em relação à área do quadro, ou do texto de poesia espacial percebido

numa só visada. A própria função poética da linguagem, obtida pela projeção do eixo paradigmático

sobre o eixo sintagmático é um fator que provocaria recorrência temporal, pela permanência na

memória de padrões de imagens acústicas (rítmicos ou de timbre), de imagens gráficas (DUBOIS et

alli, 1980, p. 117 – 168) e, acrescentaríamos, de imagens eidéticas (internas ao espectador). Uma das

dimensões deste trabalho é investigar a ocorrência de paralisações ou de uma relativização, dentro

da experiência sígnica, da experiência temporal, neste prelúdio de poema, possível por uma

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manipulação destas constantes psicofísicas determinadas pela experimentação e também possível

por ação da memória que sobrepõe os momentos de nossa vida. Tal propriedade, hipoteticamente

presente n’O Âmago do Ômega, não será considerada como mero efeito, ilusão, curiosidade, mas

como signo e desta forma portando uma espessura semântica passível de ser investigada, de ser

trazida à tona.

Esta paralisação operada pela memória seria talvez o primeiro momento de uma certa síntese,

daquilo que Peirce chamou consciência sintética, (PEIRCE, 1999, p.16, par. 381-384) a operar sobre

a tensão entre momentos sucessivos vividos e, talvez ainda, sobre a tensão entre as formas de

presença paradigmática e sintagmática. A primeira destas tensões podendo ser caracterizada como

resistência, talvez Secundidade legítima, entre o instante, o simultâneo e o momento seguinte,

observando-se a pressão existente ou resistência, no sentido físico, entre estes dois momentos: o

agora e o momento depois. Explicaremos: como o já percebido jaz numa região da memória e

permanece, dotado de inércia, contrapondo-se ao que se percebe a seguir, uma síntese ideogrâmica

se daria, segundo outra hipótese nossa, a partir desta relação de oposição, de justaposição; neste

hiato entre a sucessividade e a simultaneidade. Vejamos um exemplo citado por Peirce para afirmar

o trisseccionamento da mente em Sentimento, Conhecimento e Vontade:

Estou sentado calmamente no escuro, e de repente acendem as

luzes; neste momento tenho consciência não de um processo de

mudança mas todavia de algo mais do que pode ser contido num

instante. Tenho a sensação de um salto, de existirem dois lados do

mesmo instante. Consciência de polaridade poderia ser uma frase

toleravelmente boa para descrever o que ocorre. [sobre a Vontade

como secundidade] (PEIRCE, Op. Cit., p. 15, par. 380)

A consciência sintética, que não é Secundidade e dar-se-ia a partir deste sentimento de

polaridade, não cabe num instante, inclusive este termo é um outro nome que Peirce usa para

Cognição.

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O estudo do fenômeno da relativização da percepção do fluxo temporal é uma da partes deste

trabalho, por outro lado, a investigação de processos daquilo que poderíamos chamar

polidiscursividade possivelmente presentes na obra de Haroldo de Campos e suas implicações

semânticas nos leva para uma outra dimensão deste estudo.

Baseio meu conceito de polidiscursividade na oposição harmonia vs. polifonia, ou música

homofônica vs. música polifônica. A primeira apresenta sons simultâneos, mas apenas com função

secundária, de acompanhamento e surge, na história da música erudita ocidental, no século XVII na

Itália. A Segunda apresenta sons simultâneos que configuram vozes, ou discursos, ou seja, entidades

formais com maior independência em relação ao todo e que possuem um sentido melódico

(COPLAND, 1974, p. 77-83). Mário de Andrade foi pioneiro no estabelecimento desta distinção

entre harmonia e polifonia dentro do âmbito da poesia e chega a falar da memória como meio de

superposição de sintagmas verbais no seu Paulicéia Desvairada. (Cf. ANDRADE, 1993, p. 68-72)

Definindo melhor e tentando abranger os campos musical e poético simultaneamente, uso

discurso aqui no sentido de alguma coisa que declara algo tendo uma coesão “melódica”, uma

integridade capaz de manifestar um sentido (mesmo que seja um sentido icônico, não verbal:

figurativo e mimético como uma onomatopéia, ou “abstrato” sem referência a um som do mundo

exterior ao poema). Num par de discursos polifônicos, pode-se melhor definir a polidiscursividade

dos discursos (que aqui é igual a polifonia) pela observação de que um destes discursos ameaça o

tempo todo o funcionamento, a declaração do outro, compete com este outro junto à nossa

percepção – teoricamente, podendo haver vários tipos de relações hierárquicas entre este par de

discursos. No caso típico do contraponto musical, se temos um dos discursos ligeiramente

subalterno ao outro que é chamado Cantus Firmus, este primeiro discurso deve ser realmente contra-

ponto, não deve ser atraído até a nulidade por este Cantus Firmus, mas deve gravitar em torno deste

último com força gravitacional própria capaz de infligir um pequeno deslocamento perceptivo-

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interpretativo a este Cantus Firmus. Vejamos o que diz Dubois et alli sobre o conceito de discurso,

parafraseando Benveniste e em oposição ao conceito de narrativa (oposição narrativa vs. discurso):

O discurso caracteriza-se, pelo contrário, por uma enunciação que

supõe um locutor e um ouvinte, e pela vontade, no falante, de

influenciar seu interlocutor [o grifo é nosso] (DUBOIS et alli, 1978,

p.193)

Tudo o que tentaremos levantar neste trabalho, será observado dentro do texto Haroldiano,

num procedimento empírico, indutivo, talvez bem ao gosto de Ezra Pound com sua preferência pela

“lâmina ao microscópio”, o método ideogrâmico.

2 ANÁLISE DO PRELÚDIO A O ÂMAGO DO ÔMEGA (ASPECTOS TEMPORAL E

SEMÂNTICO)

2.1 SINOPSE DE UMA EXEGESE DE TODO O POEMA

O Âmago do Ômega, como um todo é composto por uma série de movimentos (no sentido

musical da palavra, a exemplo de seu inspirador o poema Un Coup des Dés), escritos para dois

instrumentos: voz e imaginação, esta última não no sentido lírico. Em grau maior ou menor como

veremos, suscita-nos impressões acústicas e imagéticas que trabalham aos pares como uma peça

multimídia virtual, cinema ou exposição sonorizada (mesmo que por simples fonemas) de slides

internos, fragmentos de imagens internas (“imagemas” se nos for permitido um neologismo). Aliás,

isto é característica de todo e qualquer texto que não dotado mera e simplesmente de substantivos

abstratos (é fácil comprovar empiricamente que o grau de imageabilidade de um texto é diretamente

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proporcional à quantidade de substantivos concretos presente neste texto, tese nossa). O Âmago do

Ômega, porém, mallarmaicamente, é música e imagem de forma mais consciente, possui um telos,

uma orientação para a exploração das possibilidades deste recurso da linguagem verbal. Vejamos

agora seus principais nós de significação, não propriamente verbalizáveis.

O primeiro movimento, que analisaremos neste trabalho, é uma peça de baixo teor imagético,

uma exploração sobre as possibilidades de arranjo grafemático do sintagma “o âmago do ômega” e,

como veremos a seguir, uma pesquisa sobre a relativização da experiência temporal, explorando as

leis da psicologia da percepção e psicologia da Gestalt, mesmo que inconscientemente, de ouvido,

ou a olho nu. De qualquer forma o controle sobre o material gráfico é poderoso e há claramente por

parte do autor uma sensibilidade no que tange às distribuições de “pesos” entre as massas visuais

configuradas por letras e agrupamentos de letras. De baixo teor de imageabilidade a

bidimensionalidade deste aqui e agora gráfico nos prende ao, ou tem a função de nos trazer ao plano

imediato da letra, numa planificação ontológica notória, típica de toda arte plástica “abstrata”, que é

uma arte concreta. Igualmente, numa planificação ou num tornar raso todo o devaneio de caráter

esteticista, inclusive a imaginação (capacidade de formar imagens) como uma forma deste

esteticismo.

O segundo movimento “SI(LEN)CIO” é a descrição, esta sim poderosamente visual de uma

relação simultaneamente erótica e espoliativa (“mamilos de lampreias presas”) (cf. CAMPOS, 1976,

p. 73) entre o poeta/amante e seu objeto de desejo que ao mesmo tempo que é vizualizado como

uma mulher arquetípica, uma personagem arquetípica dos romances medievais do amor-paixão -

“turris de talis man” (Ibidem, Loc. Cit.) é concebido posteriormente como linguagem (a partir do

terceiro movimento), da qual não se extrai um simples verso se não através de poderoso “corpo a

corpo” (Ibidem, p. 75). Este segundo movimento se encerra numa convulsão orgásmica onde o ritmo

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poético se torna turbulento, espasmódico diríamos, e ruma para uma entropia fonológica no ruído

branco das sibilantes finais até “CIO”.

O terceiro movimento acumula ecos, reverberações de fonemas aliterantes numa simulação

literária da reverberação sonora num ambiente vazio “a tur gida torre de vento” (Ibidem, p. 74),

signo do vazio de sentido presente no âmago do ômega. Perguntamos : no Ser ?

No quarto movimento temos o âmago do ômega em si, ou seja o núcleo vazio e nem por isso

inferior ontologicamente, da existência, aliás, vazio que define esta mesma existência. A partir do

quinto movimento até o final o poeta, numa espécie de peroração, o poeta segue circundando este

núcleo vazio do ser, este “um duro tão oco um osso tão centro” (Ibidem, p. 75). O sentido de

temporalidade é reforçado pela situação do poeta “à fímbria do fim”(Ibidem, p. 77), fim este sempre

por um triz. Será levantada uma hipótese sobre tal imagem mais adiante em 2.4 - A Trama das

Significações na Constelação Título.

2.2 PRIMEIRA ABORDAGEM DO PRELÚDIO OU “CONSTELAÇÃO-TÍTULO”

O diagrama título, prelúdio ou abertura (CAMPOS, 1976, p. 71) dO Âmago do Ômega

encontra-se espacializado e, não acreditamos que inconscientemente, utiliza signos com um baixo

grau de imageabilidade, de referencialidade a objetos e configurações visualizáveis, o que seria uma

espécie de baixo grau de concretude, abstraindo-se a concretude vocal e a visual-gráfica da letra.

Temos “âmago”, palavra que não configura nenhuma imagem de imediato em nossa mente,

que possui interpretantes imagéticos mediatizados por operações mais complexas de abstração

(seriam metaforizações ?); e temos “ômega” que enquanto visualidade igualmente não nos remete

(numa instância mais imediata) a nenhum esquema visual a não ser o grafismo desta letra grega, (ou

a um modelo recente de automóvel, absurdo para a presente análise). Remeter-nos-ia a uma

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isotopia3 de significações bíblicas que poderia suscitar imagens, mas este é um processo

extremamente mediado por leituras, não instantâneo, que veremos posteriormente (mais uma vez o

item 2.4 – “A Trama...”).

O que interessa é que o autor, deliberadamente ao que parece, anula uma possível “espessura”

imagética e nos lança à imediaticidade do grafismo, de sua tipografia, da coisa-papel-impresso.

Aqui, todas as relações com os resultados gráficos das pinturas realista e impressionista não

são mera coincidência. Temos nesta página inicial a mesma carência de referencialidade (num

determinado parâmetro, salientemos: o do universo da imagem mental, interna) nos remetendo a um

tipo de bidimensionalidade poética concretizada pela imagem das letras da página e não pelas

imagens dos “objetos dos símbolos”, símbolos estes que são as palavras formadas por estas letras (2

dimensões espaciais externas destituídas da dimensão da imagética interna). Temos, assim, a mesma

presentificação, o mesmo caráter de aqui-agora, a mesma atualidade das pinturas realista e

impressionista, a mesma reificação do signo, que nos parece destituído de pelo menos uma

dimensão dual: a relação dual entre o signo e um interpretante imagético, no caso da poesia

concreta; e entre o signo e seu objeto, no caso do que se convencionou chamar pintura abstrata que,

como todos sabemos é concreta. Observemos que a pintura “abstrata” é o resultado da equação

histórica e técnica fotografia mais realismo mais impressionismo mais espírito de época.

Retornemos. Esta coisa, o papel impresso, é um diagrama polifônico ou polidiscursivo - em

oposição a harmônico, no sentido usado por Mário de Andrade para versos compostos por golpes

curtos de palavra, cujos sons formariam harpejos de acordes musicais. (ANDRADE, Op. Cit. 68-

72). Temos os sintagmas “mag” e “meg” quase circundados pelas vogais “â” (fechada nasal pois

precede o sintagma “mag”), “o” (fechada oral) e “ô”(fechada nasal).

3 Dizem Greimas e os co-autores do seu Dicionário de Semiótica: “ 1. De caráter operatório, o conceito de isotopia

designou inicialmente a iteratividade*, no decorrer de uma cadeia sintagmática, de classemas que garantem ao discurso

enunciado a homogeneidade”. (GREIMAS, A. e COURTÉS, J. DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA, s.d. p. 245-248).

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Esta espacialização (que rapidamente resumiríamos como uma circunvolução das vogais em

torno de “mag” e “meg” principalmente se a pensarmos como motivada pelo ícone celeste,

configurado pela página negra como fundo para os fragmentos-estrelas pontilhistas de palavras)

mais a tensão entre os fonemas alternantes (a alternância entre fechamento vs. abertura e oralidade e

vs. nasalidade das vogais) sugere-nos claramente um sentido-efeito de pulsação. Tratar-se-ia de uma

isotopia ao mesmo tempo cósmica, ou cosmogônica, e científica? Seria um procedimento pós-

moderno? Analisaremos a seguir a primeira destas perguntas.

Trataremos de investigar como esta rede contextual se articula dentro da possibilidade de uma

leitura polifônica ou polidiscursiva. Isto será feito por uma exploração da configuração gráfica do

poema através de aspectos da Teoria da Gestalt. De antemão ressaltemos como indícios de um

cruzamento de outras direções de leitura à tradicional da esquerda para a direita :

1. a forte configuração em linha vertical das letras “o” à direita do centro de

gravidade do poema, que arrasta o olho e as leituras, como veremos, fazendo-as

simultaneamente se encaminharem a um ponto de convergência na letra “ô” de

“ô meg a”;

2. a repetição de “o a mag o” em outra coluna configurada no texto, que nos sugere

um sentido de “movimento retrógrado”4.

3. a presença de um eixo diagonal que decresce da esquerda para a direita e que

sendo reforçado pelo último “o” a 45 graus. Presença esta reforçada pela

existência de uma tensão entre a ortogonalidade da diagramação do texto

(estrutura em ângulos de 90 graus) e algumas ocorrências a 45 graus que

4 Termo da teoria do contraponto musical que indica o ato de se escrever e tocar uma seqüência de notas de trás para

frente, dentro de um procedimento sistemático de variação melódica. Também chamado caranguejo e de utilização

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parecem instituir inícios de movimento paralelo e talvez retrógrado no caso do

último “o” do poema embaixo e à direita.

A isto se alia um efeito percussivo, suposto, causado pelas explosões e implosões das sílabas

“mag” e “meg”, análogos verbais de efeitos pesquisados pela Música Eletrônica dos anos 50

(Karlheinz Stockhausen), onde os sons, por inversão do sentido de rotação da fita magnética,

começavam pelo gradual decaimento de seu final e terminavam abruptamente com o seu ataque,

originando um efeito de implosão silábica5. A percussão conseguida por Haroldo de Campos neste

início de poema é notória, o que reforça a isotopia cósmica estelar (estrelas pulsam, pois explodem).

Estas ocorrências nos fazem acreditar na possibilidade de leitura polifônica e em efeitos de

relatividade temporal, obtidos pelo poeta a partir de um conhecimento das teorias da percepção e da

informação, de teorias sobre a memória e de sua aplicação sistemática à pratica da composição

poética. O poema não é lido, a não ser em sentido semiótico, é percebido. Aqui a estratégia

perceptiva para “a leitura” é desvendada. Chega-se a uma espécie de insight estésico depois de uma

saturação em sucessivas visadas do poema, que são posteriormente sintetizadas. Dentro da leitura

que propomos fazer, um certo cientificismo nos será inevitável, dado o caráter gerador que a ciência

apresenta nas obras concretistas.

menos freqüente, segundo Copland foi bastante usado por Arnold Schoenberg e pela Moderna Escola de Viena da qual

Webern fazia parte. V. COPLAND, Op.cit. p.116. 5 Leia sobre os efeitos explorados pela Música Eletrônica em KRENEK, 1996, p.100.

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2.3 DEFINIÇÃO DE UMA ORDEM DE LEITURA (ALGORITMO DE LEITURA) A PARTIR

DAS CONFIGURAÇÕES FORMAIS IDENTIFICADAS.

Nesta constelação título, ou prelúdio, parecemos perceber todos o princípios norteadores do

poema e já a colocação de um problema semântico, de uma rede isotópica pertencente a O Âmago

do Ômega6. Aqui, o olho parece divagar e oscilar entre duas regiões do poema: uma em torno do

eixo vertical dos “o”s, outra em torno de “meg”, disposto horizontalmente, e o ângulo que este

último sintagma forma com “a mag” (à direita do poema). Percebemos numa visualização

exploratória7 estas duas grandes configurações formais. Mas caminhemos introduzindo

gradualmente pequenas questões semânticas: notemos que a palavra “ômega” está carregada com o

sentido (religioso e serial-alfabético) de fim. O âmago do ômega seria o último momento, a partícula

infinitesimal final destacada da linha hipotética do tempo?

Deveríamos então, para um alcance do jogo em que a nossa percepção cai ao se deparar com o

poema, separar os grupos visuais por proximidade, por agregação, condensação, todas estas são

formas de constituição formal identificadas pela Teoria da Gestalt.

Podemos, no momento, para que avancemos rumo à detecção, ou não, de uma chave de

leitura, um algoritmo perceptivo e automático, a atuar sobre nós fruto da configuração geral do

poema, levantar a hipótese de polifonia ou polidiscursividade na qual a leitura do poema se

ordenaria da seguinte forma, deduzida dos ítens 1,2 e 3 anteriores:

6 Ver ítem 2.4 A Trama das Significações

7 Segundo Abraham Moles há duas espécies de teoria que lidam com a visualidade: as teorias da exploração segundo as

quais lemos um texto visual de forma gradativa e as teorias integrais, como a Teoria da Gestalt, que defendem a idéia de

uma percepção simultânea das formas. A Teoria da Gestalt funcionaria dentro da “espessura do presente”. (MOLES,

1978, p. 89-91).

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1.Indo a partir do canto superior esquerdo do poema, começaria numa linha

instrumental, de um só timbre8, de “o”s verticais. Justificativas: a) a vertical como a

mais simples direção de leitura a partir de um início de leitura no canto superior

esquerdo (tendência cultural) (cf. ARNHEIM, 1996 p. 47 ); b) proximidade ao

centro (Ibidem, p.16); c) isolamento que favorece ao “peso”(Ibidem, Loc. Cit); d) a

verticalidade é mais pesada que a obliqüidade (Ibidem, Loc.Cit); e) tendência à

queda e caminho passivo rumo ao suposto centro de gravidade da “figura”, em “ô”,

peso sempre maior da parte superior que se precipita (Ibidem, p. 21); f) semelhança

estrutural geométrica, rima visual entre as letras “o” (Ibidem, p. 41)

2. Esta coluna de “o”s verticais receberia adesões sucessivas de outros timbres,

outros instrumentos ou vozes de timbres diferenciados, ocorridas sobre, ou

imanentes a “a mag”...

3. ...e sobre, ou imanente a, “d o”, necessariamente nesta ordem de entrada,

configurando paralelismos, simultaneidades de “execução”. Haveria então um ponto

de confluência destas três linhas melódicas sobre o pé da vertical, o “ô” acentuado.

4. Aqui, se iniciaria, então, uma nova frase musical “ô meg a” perfeitamente

horizontal dentro do poema... Justificativa para os itens 2, 3 e 4: a) a influência da

imagem acústica da expressão “o âmago do ômega” (Ibidem, p. 41); b) predomínio

da direção tradicional de leitura (Ibidem, p.25); c) predomínio do córtex cerebral

8 Chama-se em música “timbre” à cor do som, resultado do perfil da onda sonora produzida por um instrumento dado.

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esquerdo (Ibidem, p. 26); d)inércia ou facilidade de movimento para a direita

(Ibidem, Loc. Cit.)

5. ... Então, há o ataque simultâneo, ou quase, da frase que começa com o “o”

que está a 45 graus da última coluna vertical, na extrema direita do poema, que

apresenta o conjunto “o a mag o”. Poder-se-ia falar de transmissão de coesão

melódica com mudança de timbre (ou seja, mudança de instrumento) típica

Klangfarbenmelodie9, que poderia ocorrer de nota musical em nota musical (de letra

em letra) ou de frase musical em frase musical (o que seria um tipo de

Klangfarbenmelodie mais expandido). Lembremos que estamos numa estética

pontilhista e o conceito de frase tradicional está “desmontado”. E mais: percebe-se

aqui dois procedimentos musicais a Klangfarbenmelodie propriamente dita e a

polifonia. Justificativa : a) se a verticalidade está sobrepujada pela posição em fim de

sintagma, é porém compensada embaixo e em cima pela dobra em 45 graus, tensão

em relação à ortogonalidade, principalmente pelo “eco” geométrico do “o” na

extrema direita em cima com os dois últimos “o”s da grande coluna vertical.

É praticamente impossível não utilizarmos a música para uma investigação deste tipo,

notemos, pois inclusive a própria experiência de medida do tempo na sociedade ocidental começa

antes nesta arte que na ciência. Segundo Szamosi, antes que pudéssemos ter um mecanismo para

medida do tempo criou-se na idade média o sistema de notação musical, no alvorecer da era da

polifonia que atinge seu auge na renascença (Cf. SZAMOSI, 1988, p. 102). O próprio pêndulo dos

relógios antigos é o análogo automático daquele gesto de bater o pé que alguns músicos adotam para

9 Klangfarbenmelodie é a configuração geral do conjunto dos sons produzidos por diversos instrumentos musicais

tocando a mesma nota um após o outro, como se esta fosse um bastão que um corredor passa para seu colega numa

corrida de revezamento.

19

estabelecer a isocronia dos tempos musicais na regularidade da pulsação. Assim as fronteiras de

Arte e Ciência tornam-se permeáveis e o diagrama musical torna-se método válido nesta

investigação.

Quanto à questão do pontilhismo, citada logo acima, esta estética obviamente nos remete para

a problemática esboçada em nossa introdução quando afirmávamos a respeito do realismo e do

impressionismo: que estavam sobre a égide de uma época de aceleração causada pela rápida

industrialização e que buscavam a relativização da experiência temporal pela fragmentação do

discurso (pictórico inclusive) e, tanto na criação como na recepção, pela superposição destes

fragmentos na memória. Vejamos a ordem das entradas obtida por esta análise:

Fig.2

â â

mag mag

a

o o o

d’o

ô

meg

20

Quanto mais alta a sílaba na página mais aguda é a nota, a tonicidade e a posição de apoio ou

resvalamento da vocal influem, o timbre idem. O tempo transcorre da esquerda para a direita, as

setas indicam a duração das notas. Sílabas alinhadas verticalmente são executadas simultaneamente.

A seta curva indica um glissando, um deslizamento do som descendo como uma sirene do “o” oral

para o “ô” nasalizado de “ômega”. Pausas musicais ajudam na percepção da implosividade quando

colocadas em tempos fortes. Mas as alturas das notas e a melodia aqui não são importantes, aqui

queremos apenas mostrar a posição das entradas (ver paritura no anexo).

2.4 A TRAMA DAS SIGNIFICAÇÕES NA “CONSTELAÇÃO-TÍTULO”

Faz-se necessário agora pararmos e analisarmos o lexema “ômega”. Este nos remete a, no

mínimo, quatro contextos semânticos óbvios e que nos levarão a uma concepção de temporalidade.

Vejamos :

1. A designação de corpos celestes é geralmente feita com letras gregas : Alfa do

Centauro, Épsilon de Touro, etc...

2. O mesmo valendo para determinadas designações de partículas subatômicas.

3. O universo bíblico do novo testamento, onde Cristo se define poeticamente como

sendo “O Alfa e o Ômega”, respectivamente primeira e última letra do alfabeto

grego

4. A cultura grega pagã ou pré-cristã. A oposição sêmica aqui detectada em relação

ao contexto semântico anterior (item 3) seria Teologia vs. Filosofia, ou Mythos

vs. Logos, ou ainda Cosmogonia vs. Astronomia. Se formos pensar numa teologia

21

cristã neoplatônica, haveria uma oposição entre o Logos cristão e o Logos

Socrático profano tradicional por um lado e entre ambos e o Mythos pré-socrático.

Deter-nos-emos na terceira isotopia. Acontece, porém que nas isotopias 3 e 4, “ômega”

carrega o sema “finalização”, ponto final, final de uma série: à contigüidade convencionada

chamada alfabeto grego, uma coleção de elementos discretos, é adicionada a noção de

temporalidade presente na isotopia cristã (e aqui não interessa saber ainda a natureza deste tempo

mítico). Isto, por si só, nos remete a uma dicotomia: ponto vs. linha ou discreção vs. Continuidade

ou em termos matemáticos: contagem vs. medida.

Embora a série de elementos chamada “alfabeto grego” seja um conjunto de signos discretos

comporta, nesta segunda isotopia, um sentido, um sema de seqüencialidade, ou seja há

temporalidade agregada a este par de isotopias. Neste ponto, é importante nos lembrarmos de uma

dicotomia sobre a realidade do tempo que, dividindo os filósofos que afirmavam a realidade

absoluta de tempo e espaço à época de Kant, este último, à sua maneira, solucionou: seria o tempo

um pano de fundo, uma continuidade linear sobre a qual se dariam os acontecimentos, não

importando se fenômenos ou “coisas reais”? Ou, por outro lado, o tempo é imanente aos próprios

corpos, sendo apenas uma ilusão de nossa experiência ? (KANT, 2000, p.82)

Ou seja o tempo é um continuum, representado a priori (linha) ou é ilusão de continuidade,

inferência perceptiva criada a partir da percepção de micro-eventos “particulares”, separados? O

tempo é uma impressão formada metonimicamente a partir de eventos pontuais da mesma forma que

completamos uma imagem ao olharmos à distância as manchas curtas de cor de uma tela

impressionista ? Como se vê permanece sutilmente nesta dicotomia, a disjunçao sêmica “linha vs.

ponto”, sobre a qual analisaremos a seguir um interessante aspecto. Vejamos, pois, este exemplo

prático um tanto quanto não literário.

22

Se um fenômeno de movimento (literalmente falando, no sentido físico) como a aceleração, a

partida de um automóvel é constituído por um crescimento de velocidade que vai de 0 km/h a um

certo número (100 km/h, por exemplo), este crescimento pode ser descrito por uma linha ascendente

num gráfico. Mas, vejamos: entre o momento em que o carro está com 0 km/h e o momento em que

este está com 1 km/h há uma infinidade de pontos que se interpõem, introduzem-se, uns entre os

outros ad infinitum. Surge a pergunta: como então consegue o automóvel sair da velocidade 0 e

atingir a marca de 1 km/h e ainda, continuar acelerando ? Haveria um infinito de graus a percorrer

entre quaisquer dois pontos desta linha crescente de velocidade. Estamos no reino, ou no polo

dialético do ponto e a linha foi dissolvida.

O mesmo ocorre para “o âmago do ômega”. O último momento de uma linha é um ponto

indiscernível, inseparável da linha que o contém, infinitamente indivisível, paradoxalmente

inexistente e, mesmo assim, constitutivo desta linha. É seu Verbo, ou o Verbo, extrapolando-se esta

linha para todas as outras do universo. Isto é uma forma geométrica de se interpretar o Ser, o Logos

definindo-se pelo Não-Ser ou, pelo menos dialogando com ele.

Este é, acreditamos, o estatuto ontológico desta constelação título, ou antes, do sintagma que a

gerou, tal sentido já está contido neste último pela justaposição de dois contextos de significação: o

religioso e o formal da gramática grega.

23

2.5 UMA TENDÊNCIA AO GIRO E A TRADUÇÃO DO INÍCIO DO POEMA PARA A

LINGUAGEM DO RITMO MUSICAL

O primeiro passo para a análise gráfica e a leitura das tendências de organização na percepção

d’O Âmago do Ômega é a localização de uma malha, um grid de pontos eqüidistantes sobre a

página. A princípio esta rede parece estar definida em 1 ponto para cada letra, formando uma matriz

gráfica. Isto o olho faz automaticamente assim que percebe a forma. O nosso olho sente a presença

desta estrutura e é preciso que nos conscientizemos dela. Então vem um outro passo que explica a

tendência a giro que sentimos na configuração da constelação título, o já citado giro das vogais em

torno de “mag” e “meg”: o de localizarmos o centro de gravidade da figura. Há uma figura formada

pelo contorno do poema e esta figura parece ter um centro de gravidade fora de seu perímetro ou em

seu limite e, certamente, fora do centro da página. Isto configura uma tensão visual e uma tendência

ao escape da figura pelas bordas da folha negra de papel (ARNHEIM, Op. Cit. p. 5).

O grid mais o centro de gravidade mais o centro da página são estruturas subliminares, que

geram ou não tensões de acordo com sua localização. Tal centro de gravidade exterior aliado a uma

maior dimensão na região superior do poema, uma maior largura, em relação à sua base, que é um

mero ponto, cria instabilidade e tendência a giro que em Física (Estática) se chama “momento”: uma

força é amplificada quando seu ponto de aplicação está a certa distância de um apoio, como no caso

de um braço de alavanca. Aqui temos uma alavanca perceptiva e somos obrigados a concordar com

Arnheim sobre a correspondência, dentro de certos limites, existente entre as leis que regem

fenômenos físicos externos e as leis de percepção de formas, pois esta percepção deve obedecer a

um “campo” dentro do cérebro (Ibidem, p. 9-12).

Assim se explica a tendência a sentirmos as vogais girando na página em volta de “mag” e

“meg”. Mas esta tendência se encontra de certa forma freada, detida por vetores horizontais e

24

verticais que tracionam a figura inteira do poema como cordas de fixação de uma barraca de

camping. Trata-se de outra tensão entre verticalidade, horizontalidade (que configuram a

ortogonalidade do poema e possuem uma certa inércia) e quase tudo o que é diagonal e que tende a

girar neste poema, pois as últimas vogais “o” à direita da página possuem uma forte tendência a

amarrar a estrutura, elas se contrapõem à tendência da figura pender para a esquerda assim como o

“primeiro” “o” do poema se contrapõe a uma tendência ao poema descer pela página. Este primeiro

“o” está amarrado por uma espécie de ressonância gráfica ao outro “o” na extrema esquerda acima,

eles travam-se mutuamente. Isto apenas confirma a leitura musical que fizemos que, repetindo

apenas para fixação, pode ser assim sintetizada :

1. Inicia-se a coluna vertical dos “os”

2. Inicia –se a frase em Klangfarbenmelodie “â mag “ (funde-se à coluna do ítem 1.

formando intervalo de 2 notas simultâneas ou não se funde se considerarmos a

implosão de “mag”)

3. Ocorre o ataque do “d”. Neste ponto entra o “o” do canto superior direito que

segue soando

4. A coluna de “os” verticais continua soar (pela sua centralidade), surge o ataque do

“meg” central

5. Ataca a vogal “a” junto com a vogal “â”

6. Ataca “mag”

7. Cessam de soar a coluna central de “o”s

8. Soa um breve “o”, no fim à direita e em baixo no poema.

25

Isto tudo sendo determinado pela posição espacial, o percurso do olho, a persistência de certas

imagens e a imagem acústica do sintagma “o âmago do ômega”.

Assim vemos que a estratégia de Haroldo de Campos foi basicamente: a fragmentação do

sintagma; a apresentação destes fragmentos em ordem desconexa mas em proximidade tal que a

memória pudesse reagrupá-los (Gestaltung) criando um nítido choque entre o estímulo grafemático

e um nível menos superficial do plano da expressão, qual seja, o da imagem acústica do sintagma “o

âmago do ômega” quando linear e convencionalmente lido.

Apresentaremos neste trabalho a tradução intersemiótica que fizemos para a linguagem do

ritmo musical. Esta peça, escrita para coral, não tem que Ter, repetimos, necessariamente esta

melodia, ou seja as notas musicais em si não importam, isto é um outro trabalho, o que importa é o

ritmo, a ordem de entrada das “frases” musicais (veja anexo). Volte também à figura 2 que é uma

tradução da estrutura rítmica presente na partitura em linguagem puramente gráfica.

3. CONCLUSÃO

Ao concluirmos este ensaio verificamos que uma inferência cai por terra quando analisamos

“O Âmago do Ômega”, particularmente este primeiro movimento: aquela que diz que não importa o

caminho que se percorra com os olhos para a leitura do poema. Acreditamos que isto não é verdade.

O poeta trabalha sobre o hábito ocidental de leitura (da esquerda para a direita, de cima para baixo) e

parte disto para a montagem de sua polifonia verbivocovisual. Há uma tendência para um certo

“caminho” de leitura, aquele que apresentamos neste trabalho. Um fator para a confirmação deste

trajeto de leitura seria a presença de um certo sentido, que detectado ulteriormente, se estabeleceria

formando um par com este caminho de leitura, um tipo de interpretante peirceano, confirmando o

caminho achado ou não, ou seja haveria uma relação estreita entre algoritmo espacial de leitura e

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sentido (meaning). Isto no caso de um significado verbalizável. Mas tal significado pode se

apresentar como um significado verbal, como dissemos, mas também como um significado visual,

como um significado fônico e, teoricamente até mesmo tátil (poesia em braille já feita por Augusto

de Campos) ou olfativo (num prosaico caso de um poema escrito sobre papel perfumado). Tais são

as dimensões significativas possíveis de aparecerem num texto ou junto a um texto. O que parece

acontecer aqui é a presença de um significado, a partir de material gráfico e fônico, intraduzível em

palavras, mas que poderíamos reduzi-lo a expressões como: “fragmentação”, “atomização”, “cheio

de interstícios”, “dialética linha vs. ponto”, “algo como um gaguejar poético (e não estamos sendo

pejorativos) entremeado de silêncios, de vazios”. Aqui, o texto engasga como um velho automóvel

ou como algo novo, uma máquina virgem, a que nos esforçamos para dar a partida. Este é um dos

sentidos gerais do texto enquanto ícone degenerado (quase, pois é uma ocorrência real), enquanto

visto como pura sonoridade e visualidade abstrata. No plano verbal a ele se aliam os contextos

semânticos cósmicos, religiosos e filosóficos sugeridos em 2.4. A música por nós composta

simplesmente é o diagrama sonoro dos espasmos que acometem nossa visão e nossa audição interna

quando seguimos o poema naquilo que poderíamos chamar sua linhas visuais e verbais

(pre)dominantes. Talvez e não por acaso tal ritmo soe como uma mensagem vinda de um outro

ponto do cosmos (principalmente com toda a cultura formada pelas trilhas sonoras dos filmes de

ficção científica) ou como o Gafanhoto de e.e. cummings musicado por Cid Campos, de cujo

modelo vivo apenas a contemplação vazia de interesse especulativo pode fazer brotar seu sentido,

numa maneira taoísta de contemplação. O sentido de um prato de deliciosa iguaria, afora suas

conotações sociais como fruto de uma história e de sua inserção a um modo de produção e a uma

cultura, é o seu sabor e este é intraduzível em palavras, a menos que se convoque a memória para vir

ao auxílio destas palavras, mas não é a mesma coisa. Este tipo de reificação do extrato grafemático

de efeito silencioso era ainda novo à época da composição deste poema (1955-1956).

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Quanto à questão da projeção do eixo da similaridade sobre o da contigüidade, temos o efeito

de simultaneidade das principais estruturas do poema (ver item 2.2) basicamente determinado por

fatores como a proximidade de certas letras ou grupos de letras que formam as grandes

configurações citadas em 2.2; esta proximidade faz uma dobra polifônica no curso da leitura desta

seção de poema e traz para o mesmo instante determinados “momentos” da obra. A pequena área de

varredura visual demandada para a leitura deste prelúdio é crucial para isto.

Outra manifestação de projeção do eixo da similaridade sobre o eixo da contigüidade se dá, de

forma mais sutil, neste plano grafemático, pela reverberação das formas geométricas da tipografia,

da fonte tipográfica utilizada, onde a presença da circunferência é um traço marcante. Chamaríamos

isto rima visual, geométrica, sendo tal classificação baseada na semelhança (termo matemático

específico) das formas geométricas. Se os famosos “triângulos semelhantes” para sê-lo possuem os

mesmos ângulos o que faz de seus lados proporcionais, circunferências são sempre semelhantes

entre si. Tal reverberação geométrica unida ao efeito de cimentação que a imagem acústica do

sintagma verbal adiciona a esta rima visual, conforma ou não a simultaneidade de determinadas

partes deste prelúdio a O Âmago do Ômega, como a coluna vertical de “o”s bem o mostra. Tal

imagem acústica permanece atuante e com tal poder de cimentação mesmo estando fracionada

grafematicamente a tal ponto que poderíamos falar de efeito de presentificação operado pelo tecido

gráfico sobre a referencialidade da letra a uma imagem acústica, um efeito similar à

bidimensionalidade aqui-agora e não referencial da pintura abstrata. Poderíamos falar também de

esfacelamento, de bloqueio do fluxo de leitura desta imagem acústica “o âmago do ômega”,

bloqueio de sua apresentação, ou de sua presença à mente, operado pela ruptura gráfica deste

sintagma.

Mas, numa perspectiva peirceana, nos retirando para um ponto de vista mais abrangente e

tendo em vista a consciência sintética, como sínteses, como interpretantes parciais temos:

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1.Uma síntese clara forjando uma linha a unir os “o”s da coluna vertical

primeiramente lida;

2.Uma síntese clara forjando o sintagma o “âmago do ômega”, bem na direção

convencional de leitura, na horizontal amalgamada à sua imagem acústica;

3.Temos uma outra síntese clara forjando a última coluna em forma de arco à direita e

com a convexidade voltada para a esquerda

4.temos uma síntese entre o terceiro “o” vertical da coluna dos “o”s e o da extrema

direita em cima, similaridade, rima geométrica, como vimos.

Mas qual a síntese de todos estes interpretantes? A resposta é que como um interpretante

geral, macro estrutural e icônico, podemos obter uma configuração em forma de triângulos que se

interceptam naquilo que talvez seja o centro de gravidade deste prelúdio, sobre a letra “ô” com este

acento e a proximidade ao fonema /m/ que talvez nos remetam à pronúncia grega de ômega e suas

conotações mencionadas. Mas se o centro de gravidade estiver deslocado um infinitésimo

perceptível que seja do centro desta letra teremos uma competição polidiscursiva e talvez um

campo de força, uma zona de silêncio, entre um interpretante gráfico-icônico obtido pela

concentração das visuais no centro de gravidade e um outro fonético-icônico, o som /ô/.

Como se pode inferir, como um subproduto nada desprezível deste trabalho, temos implícita

no texto acima uma abdução nossa segundo a qual podemos relacionar o processo de formação de

entidades figurativas em nossa mente descrito pela Teoria da Gestalt e a teoria peirceana de geração

de Interpretantes, ou terceiros.

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