Post on 02-Mar-2023
Maria de Fatima Almeida Baia
Livia Oushiro
Ivanete Belem do Nascimento
(organizadoras)
Anaisdo XII e XIII Encontros
dos Alunos de Pos-Graduacao em Linguıstica da USP
Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunosde Pos-Graduacao em Linguıstica da USP.Sao Paulo: Paulistana, 2012, p. 110–123.
Acontecimento em “TubaroesVoadores”
Carolina Tomasi∗
Resumo
Com base na Semiotica Tensiva, este artigo focaliza uma historia em quadrinhos (“Tubaroes Voadores”,
de Luiz Ge), que foi musicada por Arrigo Barnabe. Nosso objetivo e examinar como se da o acon-
tecimento nessa narrativa. A analise apoia-se na verificacao dos enunciados verbal, visual e musical,
abordando inicialmente a narrativa, marcada pela velocidade do “relampago passageiro”, razao pela qual
percorremos os sentidos de tubarao, voador e voar a fim de estabelecer o andamento desse objeto se-
miotico. Justificam-se, entao, as preocupacoes com o inesperado e com a tonicidade - elementos que se
interseccionam com a musica de Arrigo Barnabe. Ao final da analise, verificamos que, em “Tubaroes
Voadores”, ha uma dissensao de linguagens, em que a sobreposicao dos textos dos baloes a musica de Ar-
rigo revela uma disputa entre os elementos verbais e musicais. Finalmente, examinamos as relacoes entre
etica e estetica; enquanto as falas seriam ordenadas pelo dever, pela etica, funcionando como elemento
de preservacao do sujeito na rotina do cotidiano, a musica e o plano visual seriam ambos da ordem do
acontecimento e, portanto, da ordem do estetico. Brota do jogo de dever e querer a figura do destinador
na fala dos baloes, que salienta nao haver espaco para o inesperado, o artıstico (invasao de tubaroes) se
predominam de forma absoluta valores do mundo utilitario, pragmatico.
Palavras-chave: Semiotica Tensiva; Estetica; Etica; Musica; Historia em Quadrinhos.
Introducao
“Tubaroes voadores”,1 segunda historia em quadrinhos do livro Territorio
de bravos (1993), de Luiz Ge, foi elaborada pelo artista plastico em 1983.
Em 1984, Arrigo Barnabe lanca o disco Tubaroes voadores, em que a historia
de Luiz Ge aparece musicada como faixa 1 do vinil. O texto da historia
em quadrinhos (HQ), que contava apenas com as linguagens verbal e visual,
∗ Departamento de Linguıstica da Universidade de Sao Paulo (DL-USP). Este trabalho faz parte dapesquisa de mestrado “A missividade: por uma gramatica tensiva da Semiotica de HQs”, financiadapelo CNPq. E-mail: tomasicarol@usp.br.
1 Esta HQ sob analise encontra-se na ıntegra no livro Territorio de bravos, de Luiz Ge; ou disponıvelem http://youtu.be/qTLlnY4WSSY.
Acontecimento em “Tubaroes Voadores” 111
passou a contar com a contribuicao do musico. Na Apresentacao do livro
Territorio de bravos, Luiz Ge (1993:10), ator da enunciacao,2 afirma:
Nesta historia, uma das intencoes era desenhar a cidade de uma certaaltura, nao a do “voo de passaro”, na qual a observamos inteira,ligeiramente de cima, nem de muito alto, visao que acaba por achatartudo num “mapa”. Mas como no voo de um tubarao, numa altura emque ainda estamos dentro dela, se esgueirando por entre os predios,altura em que uma cidade como Sao Paulo deve ser realmente vista.A visao que temos normalmente do chao e muito, digamos, pedestre,rasteira, sem grandeza, cotidiana demais; acaba por ser banal. Mora-se em um lugar que tem um espaco unico sem que nos apercebemosdisso. Ja a verticalidade provoca essa atracao do abismo. E como sehouvesse um vazio, um vacuo, que necessitasse ocupacao. Por issoo voo, que proporciona o carater dinamico da narrativa, atraves doritmo de enquadramentos (destaque nosso).
A partir dos elementos do enunciado acima citado, dois pontos podem
ser destacados em “Tubaroes voadores”: (i) no nıvel discursivo, temos a
presenca de dois espacos: o rasteiro, cotidiano dos moradores da cidade
de Sao Paulo, e o mediano (“voo dos tubaroes”, que nao e alto como o
dos passaros), ambos proporcionando uma visao do espaco dos habitantes
da metropole - tubaroes e pessoas, portanto, passam a conviver no mesmo
espaco; (ii) por meio do termo carater dinamico, utilizado pelo ator da
enunciacao na manifestacao, podemos depreender a cifra tensiva que move a
escolha do sujeito enunciador: a rapidez, a dinamicidade.
O primeiro ponto a ser investigado, portanto, nesta analise sera a escolha
dos valores tensivos feita pelo enunciador.
Voo do Tubarao: uma narrativa marcada pela
velocidade do relampago passageiro
Em “Tubaroes voadores”, no nıvel discursivo, assistimos a uma invasao da
cidade de Sao Paulo por tubaroes voadores. Sabemos que se trata da cidade
de Sao Paulo por revelacao do ator da enunciacao. Nessa HQ, varios atores,
2 Segundo Greimas & Courtes (1983:35), “do ponto de vista da producao do discurso, pode-se distinguiro sujeito da enunciacao, que e um actante implıcito logicamente pressuposto pelo enunciado, do atorda enunciacao: neste ultimo caso, o ator sera, digamos, ‘Baudelaire’, enquanto se define pela totalidadede seus discursos”.
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bem como figuras, desfilam aos nossos olhos, mostrando-nos uma hierarquia
de valores que serao analisados no decorrer deste trabalho.
Tres figuras nos chamam a atencao na HQ de Luiz Ge: a metropole,
os habitantes da cidade e os tubaroes. Tomemos, inicialmente, a figura do
tubarao (escolhida em primeiro lugar por ja constar do tıtulo) e vejamos a
definicao do dicionario:
1. Designacao comum aos peixes condrictes, elasmobranquios e eusse-laquios, de pequeno e medio porte, corpo fusiforme e fendas branquiaislaterais; cacao [sao predadores, e grande parte das especies nao ofe-recem perigo ao homem; embora de discutida qualidade, sua carne emuito consumida].2. Empresario cupido, sem escrupulos, que so visa aos proprios lucros.3. Pequeno monte ou serra.4. Pessoa que tem varios empregos rendosos (Houaiss 2001).
Para efeito deste trabalho, a acepcao 1 (peixe predador) e a acepcao 2
(empresario sem escrupulos, que so visa aos proprios lucros) poderiam nos
conduzir a um outro ponto de vista analıtico, visto que poderıamos, por meio
do conector de isotopias3 (o termo tubarao), apontar uma pluri-isotopia,4
que nos permitiria tambem a passagem para o tema da exploracao humana
em uma metropole. O adjetivo voador pode configurar a isotopia da fantasia
(voo do tubarao), do “tirar os pes do chao”, da banalidade do cotidiano, que
encaminharia os habitantes daquele espaco para fora do cotidiano, para um
momento de estesia.
O leitor pode verificar em “Tubaroes Voadores” a presenca de um desti-
nador em varios enunciados: (1) “Pois no coracao do prudente descansa a
sabedoria” (frase proverbial bıblica, Prov. cap. 14, versıculo 33); (2) “panico
nao resolve”; (3) “esta e a harmonia da vida”. Parece-nos que esse destinador
recusa a ultrapassagem do cotidiano, isto e, refuta o voo momentaneo, a apre-
ensao estetica, visto que a prudencia (da ordem da implicacao) evitaria a
juncao de tubarao e homem (ver Fig.1).
O contrario da prudencia seria da ordem da concessao, que e o lu-
gar privilegiado do voo para uma escapada do cotidiano. Para Zilberberg
3 Conector de isotopia e a “unidade do nıvel discursivo que introduz uma ou varias leituras diferentes:o que corresponde, por exemplo, a ‘codificacao retorica’ que C. Levi-Strauss aponta em mitos quejogam ao mesmo tempo com o ‘sentido proprio’ e com o ‘sentido figurado’ ” (Greimas & Courtes1983:72).
4 Na pluri-isotopia, e “o carater polissemico da unidade discursiva com papel de conector que tornapossıvel a superposicao de isotopias diferentes” (Greimas & Courtes 1983:72). “Entende-se por pluri-isotopia a superposicao, num mesmo discurso, de isotopias diferentes” (Greimas & Courtes 1983:336).
Acontecimento em “Tubaroes Voadores” 113
Figura 1 Homem dentro do tubarao: conjuncao (apaga-se a diferenca entresujeito e objeto).
(2006:197), “passamos subitamente da ordem enfadonha da regra para a or-
dem tonificante do acontecimento”. Embora tubaroes nao voem, o enunciador
os faz voarem.
Vejamos agora as acepcoes de voador, presente no tıtulo “Tubaroes
voadores”:
1. Que voa ou pode voar; voante, volante.2. Que se coloca ou corre com enorme rapidez; rapido, veloz.3. Aquele que voa.4. Acrobata que salta de um trapezio para outro mais ou menosdistante (Houaiss 2001).
Dessas acepcoes, fiquemos com a 1 e 2. A acepcao 1 nos leva ao verbete
voar :
1. Sustentar-se ou mover-se no ar por meio de asas ou algum meiomecanico.2. Deslocar-se velozmente pelo ar.3. Elevar-se ou flutuar no ar; ascender, pairar. [...]7. Correr ou deslizar com grande velocidade.8. Ser impelido ou atraıdo com forca.9. Passar, decorrer rapidamente.10. Ir para algum lugar com grande rapidez; correr. [...]13. Desligar-se da realidade; elevar-se, vagar.
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Dessas acepcoes, fiquemos com a ultima, bem como com as 2, 3, 7, 9 e
10, visto que o proprio ator da enunciacao, como vimos na introducao deste
trabalho, informa-nos que o voo dos tubaroes figurativiza a possibilidade
de sair do chao para uma altura media, que nos permite ausentar-nos do
cotidiano (ver acepcao 13). A velocidade (ver acepcao 2 das palavras voador
e voar) do voo dos tubaroes, a mesma da apreensao estetica, e como um
“relampago passageiro” que se introduz no discurso da cotidianidade dos
homens (cf. Greimas 2002:26). O enunciador vale-se aqui de um modelo
espacial em que a altura media, o sair do chao, do espaco inferior, carrega a
marca euforica, enquanto manter-se no plano inferior, no res da calcada da
cidade, carrega a marca disforica.
Ainda nao tratamos das duas outras figuras da HQ: a cidade e seus
habitantes. A primeira remete-nos ao cotidiano, as acoes comezinhas, banais,
ao viver sem destaque, sem enfase, que se opoe a estesia. E os habitantes
sao os sujeitos desse fazer banal, mergulhados que estao na continuacao da
continuacao, um relaxamento esteril. Para Tatit (2001:178),
toda situacao retratada num texto e passageira e portanto sua signifi-cacao depende das orientacoes sugeridas pelo processo de denegacaoque, afinal, apresenta os valores excluıdos ou desvalorizados comohorizontes para a evolucao tensiva e narrativa da trama.
No caso de nossa analise, no relaxamento do cotidiano, convocam-se os
valores antes desprestigiados, isto e, os valores da continuacao da continuacao
dao lugar aos valores da parada da continuacao. O marasmo do cotidiano
cede lugar a uma contencao quando do acontecimento da invasao dos tuba-
roes voadores. A cifra tensiva do lexico voar instaura um andamento rapido
no nıvel profundo. A interrupcao inesperada, porque veloz, “dessa periodici-
dade (parada da continuacao) figurativiza a parada do tempo cotidiano e,
simultaneamente, a cristalizacao do espaco” (Tatit 1999:199). Por exemplo,
na Figura 1, a parada da continuacao na narrativa que orienta a leitura para
a dimensao do ser, cristalizando o espaco. A primeira aparicao do tubarao
voador marca pontualmente a fratura tanto no quadrinho de Luiz Ge, como
na vida humana nele representada. A apreensao estetica compreende um
“breve lapso de tempo”; daı a cifra tensiva da aceleracao,5 que inesperada e
5 Zilberberg (2006:198) afirma que o andamento do acontecimento e mais rapido do que o homem podeexperimentar.
Acontecimento em “Tubaroes Voadores” 115
velozmente cristaliza um instante, um momento de distensao que perdura
entre sucessivos programas narrativos meticulosos e banais6 que “tra-
duzem a tensao da rotina diaria” (Tatit 1999:200). O ataque dos tubaroes
distende as acoes quotidianas.
O efeito estetico produzido pela surpresa do ataque dos tubaroes vis-
lumbra a possibilidade da plenitude da juncao de sujeito e objeto. O
estranhamento7 do voo dos tubaroes (tubaroes nao voam) configura apenas
uma criacao discursiva que produz o efeito de sentido de pavor (excluımos
aqui a possibilidade de terror). O Dicionario Houaiss (2001) define pavor
como:
1. Grande susto ou temor.2. Comocao, agitacao, turbacao; susto, espanto, medo, horror,terror.3. Repulsao.
A entrada dos tubaroes voadores no campo visual do sujeito (atores da
cidade) provoca avanco ou recuo diante do objeto. Todavia, ha uma ativacao
do objeto tubarao que, subjetivado, “manifesta um querer recıproco de
conjuncao entre os dois actantes, como se um tendesse ao outro, encontrando-
se a meio caminho” (Tatit 1999:201). A ativacao do objeto, tubaroes
voando no espaco dos homens, e a passivacao do sujeito (atores humanos)
produzem um efeito de sentido de “emocao estetica”.8 A acepcao 2 da
paixao pavor mostra-nos, pelas definicoes “comocao, agitacao, turbacao...”,
as caracterısticas de tal emocao estetica.
Fiorin (1999:101–117) ressalta varias caracterısticas da experiencia este-
tica do acontecimento que vao ao encontro da analise deste trabalho. Na
Tabela 1, a primeira coluna contempla as consideracoes teoricas extraıdas do
artigo “Objeto artıstico e experiencia estetica” do autor mencionado anteri-
ormente, enquanto a segunda coluna contempla o nosso objeto de analise,
com base em Greimas (2002).
6 Pessoas dentro de casa, movimento dos automoveis pela cidade.7 Todo discurso e criador de mundos, uma vez que a realidade e discursiva. Semioticamente, nao
ha razao para distinguir mundo ficcional e mundo da realidade, pois ambos sao efeitos de sentidodiscursivos. Um discurso, como o jornalıstico, por exemplo, cria efeito de realidade e de verdade. Ora,todas as verdades sao recortes do mundo produzidos pela linguagem. Nao ha razao para falar emmundo da realidade e mundo da fantasia. Tubaroes voarem nao e uma propriedade que opoe doismundos, o ficcional e o da realidade, mas um discurso que provoca “efeito” de fantasia, enquantotubaroes “nadarem” provoca o efeito de simulacao do mundo natural.
8 Cf. Zilberberg (2006:144–145).
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Tabela 1 Caracterısticas do objeto estetico em analise
Excertos retirados do artigo de Fio-rin (1999:101–117).
Analise de “Tubaroes voadores”com base no estudo do artigo citadoe no texto de Greimas (2002), Da
imperfeicao.
A experiencia estetica e um evento extra-ordinario englobado pela cotidianidade.
Tubaroes voadores englobados pela cotidi-anidade.
A experiencia estetica e uma surrealidadeenglobada pela realidade.
Tubaroes voando em Sao Paulo e umasurrealidade englobada pela realidade.
Nessa experiencia estetica, o tempo cessa(para), o espaco fixa-se e ocorre um sin-cretismo entre sujeito e objeto, que estaodisjuntos na temporalidade de todos osdias.
No quadrinho 3, o tempo cessa (para),o espaco fixa-se e ocorre um sincretismoentre tubarao e homem engolido (Figura1). No plano do conteudo, ha uma zona deinterseccao em que e difıcil precisar ondecomeca o corpo do homem e onde comecao do tubarao: corpo de homem e corpode tubarao confundem-se. Normalmente,tubaroes ficam no mar, homens na cidade;sao, portanto, disjuntos na temporalidadedo cotidiano.
Natureza do objeto estetico. O objeto que se deu a perceber e que ga-nhou subjetividade na HQ e de naturezanatural (animal do mar) e nao cultural.
O sujeito (atores-homens) afasta-se da re-alidade enfraquecida e e absorvido pelomundo da ilusao. Ha uma fusao do sujeitocom o objeto, como vimos.
O sujeito deixa a realidade da existenciapara viver durante o tempo dessa experi-encia estetica uma surrealidade, uma se-gunda vida (Cf. Fiorin 1999:101-117).
Os atores-homens da cidade passam a con-viver com atores de outro lugar, de outrotempo. Alteram-se a actorialidade, a espa-cialidade e a temporalidade do cotidiano.
Na fratura da cotidianidade, o sujeito, ini-cialmente ator pertencente ao dia a diada metropole, libera-se desse cotidiano, vi-vendo um acontecimento extraordinario: achegada dos tubaroes voadores a cidade.
Recepcao do enunciatario. O enunciatario, ao ler “Tubaroes voado-res”, tambem se depara com uma leituraque configura um acontecimento extraordi-nario, fraturando a mesmice do cotidianoe instaurando outra realidade, que passaa ser vivida no momento da leitura dosquadrinhos (Cf. Fiorin 1999:107).
Objeto estetico modificador. Para Fiorin (1999:109), “e preciso modifi-car a ordem do mundo para torna-la maisexpressiva”.
Acontecimento em “Tubaroes Voadores” 117
Trataremos a seguir do andamento do acontecimento em “Tubaroes
voadores”.
Invasao do espaco: o andamento da HQ
“Tubaroes voadores”
Zilberberg (2006:198) define, de acordo com Le Robert Micro, a palavra
acontecimento: “aquilo que acontece e tem importancia para o homem”.
Para o Dicionario Houaiss (2001), acontecimento e
1. O que acontece; fato, ocorrencia.2. O que acontece ou se realiza de modo inesperado; acaso, eventua-lidade.3. Pessoa ou fato digno de nota, que produz viva sensacao [...].
Pelas definicoes, temos uma primeira pista para encontrar o andamento
de “Tubaroes voadores”: a invasao do espaco da cidade de Sao Paulo
por tubaroes voadores e a primeira indicacao “da ordem do sobrevir, da
subtaneidade, ou seja, do andamento mais rapido que o homem possa
experimentar” (Zilberberg 2006:198). E de notar que nao apenas esse
acontecimento se da de forma rapida, como tambem os proprios tubaroes
voadores ja possuem essa caracterıstica de rapidez. O adjetivo voador, como
vimos na secao 3, conta, em uma de suas acepcoes, com as definicoes de
rapidez, rapido, veloz. As escolhas do sujeito da enunciacao recaem sobre um
objeto veloz que se subjetiva, invade a cidade, com andamento acelerado,
provocando no enunciatario o mesmo impacto que causou nos sujeitos, atores
da cidade. A segunda pista esta no fato de que todo acontecimento e
carregado de importancia para o sujeito; daı ser tonico.
Zilberberg (2006:198) ressalta que “o sujeito, instalado na ordem racional,
programada e compartilhada do conseguir [parvenir ], senhor de suas esperas
sucessivas, ve-se desviado de seus caminhos habituais e projetado em sua
devastacao”. Tomando “Tubaroes voadores”, verificamos que, antes da
invasao (acontecimento), os sujeitos permaneciam mergulhados na ordem
do racional. Eles tinham controle de suas esperas. O acontecimento dos
tubaroes quebra esse equilıbrio, o que so pode dar-se de forma rapida e
tonica.
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Por um lado, o andamento e a tonicidade atuam em conjunto sobre
o sujeito, mobilizando-o; por outro lado, o surgimento repentino de anda-
mento e tonicidade causa “desmantelamento modal instantaneo” no sujeito,
desarranjando-o. Zilberberg (2006:198) chama o acontecimento de semiose
fulgurante, pois este ultimo “arrebata para si todo o agir, nao deixando
ao sujeito nada alem do suportar”. Passando para nosso objeto de ana-
lise, o evento tubaroes arrebata para si as acoes, e os sujeitos da cidade,
impactados pelo acontecimento, sao passivados.
A seguir, examinaremos a musica de Arrigo Barnabe que foi acrescida a
HQ de Luiz Ge.
A Musica de Arrigo Barnabe na HQ
“Tubaroes voadores”
A musica9 “Tubaroes voadores” de Arrigo Barnabe foi composta, como ja
dissemos, em 1984, com base no texto verbo-visual (“Tubaroes voadores”)
do artista plastico Luiz Ge. Trata-se de uma musica dodecafonica, ou seja,
que nao tem uma tonalidade definida, e que se apropria dos doze semitons
da escala, dispostos de maneira nao hierarquizada. Segundo o Dicionario
Houaiss (2001), dodecafonia e “um sistema musical baseado na divisao da
oitava em doze meios-tons sem quaisquer relacoes tonais”. E diferente da
cancao em que encontramos uma relacao da letra com a melodia, estudo
desenvolvido por Tatit (1997, 1999) na area de semiotica da cancao.
No caso de nosso objeto, nao e possıvel estabelecer relacao de juncao,
mas relacao de dissensao10 entre os textos dos baloes do quadrinho com
a musica de Arrigo. Vejamos o porque: a musica dodecafonica, nao sendo
considerada melodia, nao e ritmada nem cantada, de forma que podemos
verificar que o texto dos baloes esta sobreposto a musica de Arrigo
que vem no fundo; os baloes dessa historia em quadrinho simulam,
portanto, a fala utilitaria do cotidiano daquele espaco.
Todavia, e de notar que ha tres frases que nao pertencem a fala utilitaria,
mas contem elementos musicais:
9 A musica esta disponıvel em: www.cliquemusic.uol.com.br/discos/ver/turar~oesvoadores. Acessoem 20 de outubro de 2009.
10 Embora as vezes haja tambem o sentido de concorrencia, optamos pela relacao de disputa, dissensao,divergencia.
Acontecimento em “Tubaroes Voadores” 119
• As frases (1) “tubaroes voadores” e (2) “panico nao resolve nada”
(Figura 1, no comeco deste artigo; e Figura 2 a seguir) sao faladas no
ritmo da musica e distorcidas por um modulador de voz ou, talvez,
um sampler. Este ultimo e um tipo de aparelho que imita sons,
reproduzindo um som artificial, eletronico. Por exemplo, pode-se imitar
a voz humana, como no caso citado.
• A terceira frase, a do quadrinho 20 (Figura 3), e melodica e ritmada:
“afinal, esta e a harmonia da vida”.
Figura 2 No balao: “Panico nao resolve nada”.
Figura 3 No balao: “Afinal, esta e a harmonia da vida”.
Outros aspectos constantes da descricao da musica e que ela faz uso de
figuras rıtmicas aceleradas, breves e subsequentes. Alem disso, e de notar
que o sujeito da enunciacao utiliza um recurso semelhante a um ostinato
120 Carolina Tomasi
classico, ou seja, e composto de um motivo rıtmico repetitivo, ao qual sao
sobrepostas melodias dodecafonicas11 e contrapontos.
No Dicionario Houaiss (2001), ostinato e
figura melodica ou rıtmica repetida obstinadamente ao longo de todauma composicao que serve de base a formas classicas, como chacona,folia [...]; breve figuracao melodica constantemente repetida duranteuma composicao; ostinarsi, persistir em um proposito insistentemente.
Na musica de Arrigo, temos um pseudo-ostinato, uma vez que a
celula rıtmica constante e executada alternadamente por diferentes sons
reproduzidos por teclado e instrumentos de percussao: tambores e pratos.
Estes ultimos reforcam a pulsacao acelerada em alguns trechos da musica. Tal
pulsacao12 subjaz a musica, ou seja, e a sua base rıtmica e esta estabelecida
num andamento rapido. Com a ajuda de um metronomo, constatamos
que o andamento da musica e allegro, considerado acelerado, porque se
encontra em torno de 128 pulsacoes por minuto. Alem disso, essa pulsacao
esta presente em toda a cadeia musical, observando que os ataques dos
tubaroes na HQ sao precedidos, como no filme de Spielberg, pelo motivo
melodico inspirado na musica-tema do filme Tubarao. Aqui, temos uma
intertextualidade.13
E de notar uma quebra do andamento acelerado quando da intervencao
da frase melodica “afinal essa e a harmonia da vida” em ritmo de valsa: o
andamento desacelera-se e, nesse ponto, aproxima-se da cancao em que ha
uma relacao entre melodia e letra. Na musica de Arrigo ate o quadrinho
20, as frases sao faladas e nao ha relacao entre texto verbal e musica.
Basicamente, ha uma cadeia musical que subjaz ao texto, que e constituıdo
de fala utilitaria tao somente. Todavia, no momento da valsa, instrumentos,
ritmo, melodia e letra caminham juntos: e um momento pontual, sem
duracao; instaura-se uma parada da continuacao na aceleracao da musica
principal. A desaceleracao introduzida por essa valsa (essa e a harmonia da
11 No caso da musica sob analise, e de se observar que nao ha melodia cantada, mas ha melodiasexecutadas pelos instrumentos musicais.
12 Pulsacao musical “e a unidade abstrata de medida do tempo musical a partir da qual se estabelecemas relacoes rıtmicas” (Houaiss 2001).
13 No filme Tubarao, os atores-tubaroes encontram-se em seu meio natural. O percurso desse sujeitofigurativizado pelos tubaroes e natural: o ato de engolir homens seria a forma fisiologica de matar afome. Todavia, na historia de Luiz Ge, a fome e da ordem da estesia. Nela, ocorre a inversao dospapeis de sujeito e objeto: os tubaroes voadores viram sujeitos de um percurso paralelo ao percursodos homens da cidade.
Acontecimento em “Tubaroes Voadores” 121
vida) e uma tentativa de reconstrucao de um sujeito abalado pelo impacto do
acontecimento estetico acelerado dos tubaroes voadores voando pela cidade.
Logo apos essa pontualidade descrita, recupera-se o andamento acelerado
da musica. A seguir, veremos a relacao de disputa entre a musica e a fala
utilitaria dos baloes.
Relacao de dissensao entre a musica e os
textos dos baloes
No inıcio deste artigo, comentamos sobre a presenca na narrativa de um
destinador etico cujo objetivo e desacelerar, devolver o comedimento que
foi subtraıdo pela estesia do acontecimento (cf. Zilberberg 2006:198). No
nıvel discursivo, as frases utilitarias do destinador etico sao aquelas que
estao no fundo da musica. Uma vez que as frases faladas por tal destinador
nao revelam relacao entre melodia e letra, elas parecem concorrer com a
musica de Arrigo. A fala dos baloes e ordenada pelo eixo do dever, da etica;
tem a funcao de preservar o sujeito na rotina do cotidiano, e implicativa,
preventiva, do bem; tal fala etica concorre com a musica dodecafonica e o
plano visual, ambos acelerados, concessivos, da ordem do acontecimento, do
artıstico, portanto.
Tomamos como exemplo algumas dessas falas do destinador: “Qualquer
movimento os atrai”, “De nada adianta fugir”, “Gritar nao e recomendavel”,
“Por isso, feche portas e janelas, Joaozinho”, “Nao adianta nada deixar a
janela apenas entreaberta”, “As janelas devem ter grades”, “E as portas,
trancas” [...] “Pois no coracao do prudente descansa a sabedoria”. Todas
as intervencoes desse destinador revelam preocupacao etica que procura
restabelecer a ordem suprimida pelo acontecimento, como se quisesse devolver
ao sujeito o controle da situacao, repelindo a estesia. De um lado, entao,
temos a musica dodecafonica e de outro, a simulacao da fala: ambos em
disputa. A musica obstinadamente procurando se conservar no fundo a
medida em que e diluıda a fala sobreposta do destinador.
Para tubaroes voando, a “voz da experiencia” no fundo recomenda que
se “feche portas e janelas, Joaozinho”. E como se devesse proteger o espaco
para que nenhum reves sobreviesse, nao se podendo, desse modo, voar (a
fuga do cotidiano). Todavia, embora haja trancas e cadeados nas janelas,
122 Carolina Tomasi
os tubaroes penetram assim mesmo, e a vida entra pela janela com seus
acontecimentos e sobressaltos. A sintaxe da fantasia: [embora isso, aquilo].
Finalmente, tomemos a frase utilizada pelo destinador: “No coracao
do prudente descansa a sabedoria”, que e uma intertextualidade de um
proverbio bıblico. Todavia, na Bıblia a frase e um pouco diferente: “a
sabedoria descansa no coracao prudente, mas tambem se faz sentir no meio
dos insensatos”.14 Mantenedor da ordem, da banalidade do cotidiano, o
destinador e sabio, de modo que tubaroes nao teriam vez no espaco, ou
seja, qualquer voo alem do tradicional seria de alto risco. A sabedoria,
portanto, encontra morada na prudencia, na etica, na implicacao, na previsao
da vida: “feche a janela”, “gritar nao e recomendavel”, “nao adianta nada
deixar a janela apenas entreaberta”, “as janelas devem ter grades”, “as
trancas, cadeados”, “e os cadeados, fechos de seguranca”. Mas talvez seja na
concessao que a fantasia e o artıstico encontrem seu espaco (“no meio dos
insensatos”), podendo, nesse caso, os planos da expressao da musica e do
visual serem mais resistentes do que o plano da expressao da fala cotidiana.
Abstract
Taking as a reference the Tensive Semiotics, this paper focuses on a comic (Luiz Ge’s“Tubaroes Voadores” - Flying Sharks), which was set to music by Arrigo Barnabe. Ourpurpose is to examine how events occur in this narrative. The analysis leans on theverification of verbal, visual and musical enunciations, approaching at first the narrative,which is marked by the quickness of the “ephemeral lightning flash,” reason why we runthrough the senses of the terms shark, flying and to fly in order to set the timing of thissemiotic object. Concerns about suddenness and tonicity, elements that intersect ArrigoBarnabe’s music, are thus justified. At the end of the analysis, we verify that there is in“Tubaroes Voadores” a dissent between languages in which an overlapping of texts in thespeech bubbles and Arrigo’s music reveals a contest between verbal and musical elements.Lastly, we examine the connections between ethics and aesthetics; while speeches would beordered by obligation, by ethics, acting as an element that preserves the subject in everydayroutine, both music and visual field would lie in the realm of events and therefore in therealm of aesthetics. From the game played between obligation and desire, the figure of theaddresser issues in the speech bubble. It is pointed out that there is no room for suddennessand art (invasion of sharks) when values of a utilitarian, pragmatic world prevail.
Keywords: Tensive Semiotics; Aesthetics; Ethics; Music; Comics.
14 No proverbio bıblico, a sabedoria nao descansa apenas no coracao do prudente (implicativo), mastambem no coracao do insensato, imprudente (concessivo). A sabedoria esta, portanto, tanto nocotidiano quanto no artıstico, no bem e no bom.
Acontecimento em “Tubaroes Voadores” 123
Referencias
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