Post on 26-Feb-2023
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
Luiz Manoel Castro da Cunha
AS VEREDAS FEMININAS DO “GRANDE SERTÃO”, DE JOÃO GUIMARÃES
ROSA, NA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA FOTOGRÁFICA DE MAUREEN
BISILLIAT
Belo Horizonte
2014
Luiz Manoel Castro da Cunha
AS VEREDAS FEMININAS DO “GRANDE SERTÃO”, DE JOÃO GUIMARÃES
ROSA, NA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA FOTOGRÁFICA DE MAUREEN
BISILLIAT
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, em cotutela com a Université Stendhal –
Grenoble 3 (France), como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Literaturas de
Língua Portuguesa.
Orientadores: Dra. Márcia Marques de Morais
Dr. Bernard Emery
Belo Horizonte
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Cunha, Luiz Manoel Castro da
C972v As veredas femininas do “Grande Sertão”, de João Guimarães Rosa, na
tradução intersemiótica fotográfica de Maureen Bisilliat / Luiz Manoel Castro
da , Belo Horizonte, 2014.
227 f.: il.
Orientadora: Márcia Marques de Morais
Coorientador: Bernard Emery
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967. Grande Sertão Veredas – Crítica e
interpretação. 2. . Bisilliat, Maureen, 1931- - Crítica e interpretação. 3.
Fotografia. 4. Imaginário. 5. Feminismo na literatura. I. Morais, Márcia Marques
de. II. Emery, Bernard. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título. IV. Université Stendhal-
Grenoble 3. V. Título.
CDU: 869.0(81)-3
Luiz Manoel Castro da Cunha
AS VEREDAS FEMININAS DO “GRANDE SERTÃO”, DE JOÃO GUIMARÃES
ROSA, NA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA FOTOGRÁFICA DE MAUREEN
BISILLIAT
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, em cotutela com a Université Stendhal –
Grenoble 3 (France), como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Literaturas de
Língua Portuguesa.
________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Marques de Morais (Orientadora) – PUC Minas
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Bernard Emery (Co-orientador) - Université Stendhal – Grenoble 3, France
________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Enaura Quixabeira Rosa e Silva – Centro Universitário Cesmac
________________________________________________________________
Prof. Dr. Philippe Walter - Université Stendhal – Grenoble 3, France
________________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Veloso de Abreu – PUC Minas
Belo Horizonte, 19 de novembro de 2014.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Centro Universitário Cesmac pelo apoio do Reitor Dr. João Sampaio e do
Vice-Reitor Prof. Dr. Douglas Apratto; agradeço também à Pró-reitora de Pesquisa e Pós-
graduação do Cesmac, Prof.ª Ms. Claudia Medeiros, sem os quais este trabalho ficaria
inviabilizado.
Aos meus orientadores, por compartilharem conhecimentos: Prof.ª Dr.ª Márcia
Marques de Morais, da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas), e também ao
orientador na cotutela, Prof. Dr. Bernard Emery, da Université Stendhal – Grenoble 3, France.
Meus agradecimentos também a minha coorientadora, Prof.ª Dr.ª Enaura Quixabeira.
Agradeço a todos os professores e ao corpo de funcionários do Programa de Pós-
graduação em Letras: Literaturas de Língua Portuguesa da PUC Minas em Belo Horizonte e
aos professores de Grenoble, Prof. Dr. Philippe Walter e Prof.ª Dr.ª Maria Eva.
Aos meus colegas de trabalho, Coordenação do Curso de Comunicação Social e
funcionários que me ajudaram de algum modo a traçar meu caminho nessa jornada. Aos
diálogos com minha amiga, Prof.ª Dr.ª Magnolia Rejane, sobre a pesquisa, bem como aos
outros colegas do Campus IV – Edifício Professor Elias Passos Tenório.
Às minhas amigas, pela ajuda na tradução para o inglês através da professora Tânia
Marques, e ao francês com Delphine Billion e Alyshia Gomes. Ao meu amigo Luiz Lemos,
pela ajuda na formatação da tese. E meus agradecimentos aos revisores Sidney Wanderley e
Djalma Moraes.
Aos amigos e amigas, alguns que mesmo distantes me ajudaram: Sineide Siqueira,
Isaías Ferro, Ascânio Costa, Luiz Carlos e, também pelo empenho incondicional, a Maria
Jeane, durante todo esse período.
As minhas irmãs Teresa e Rita, que sempre me ajudaram. E a tantos outros amigos que
tenho e fiz durante essa fase dos meus estudos e, em especial, àqueles pela confiança
depositada e com a força positiva, acreditando nessa passagem de pós-graduação.
RESUMO
Esta tese realizou uma análise das relações existentes entre literatura e fotografia, tendo como
objeto de estudo a obra literária Grande Sertão: Veredas (1956) de João Guimarães Rosa,
traduzida em fotografias de Maureen Bisilliat na obra A João Guimarães Rosa (1969). Apesar
de a fotografia ensaiar passos na interação com a literatura desde o seu surgimento em 1849,
os movimentos de vanguarda é que propiciaram questionamentos sobre o fazer artístico não
só na fotografia, bem como da própria arte em geral. O diálogo entre essas linguagens
enfatizou-se sobretudo na escola surrealista, considerada como um marco de inovação e
pioneirismo artístico nessa inter-relação. Essa interação propiciou um breve conhecimento de
alguns nomes da literatura que dialogaram com a fotografia em suas obras, escritores amantes
da fotografia, alguns considerados também fotógrafos. Neste trabalho ocorre uma tradução
intersemiótica, ou ainda, uma transposição criativa. A imagem fotográfica não serve apenas
para ilustrar as palavras do escritor. Ela dialoga com o texto, e essa construção não se dá de
maneira aleatória nem direta. A pesquisa demonstrou que o processo criativo de ambos os
artistas é o mesmo na diversidade de suas estéticas. Os dois expressam suas especificidades,
mas, ao mesmo tempo, revelam equivalências, seja por convergências ou por divergências,
viabilizadas por intermédio de imagens metaforizadas do ambiente sertanejo e em seus
habitantes. No romance, foi necessária a fragmentação, em forma de legendas, por parte da
fotógrafa para dialogar com as imagens, ao menos num primeiro momento. A feminilidade
latente na obra é desvendada através da teoria literária, que apresenta um rica fortuna crítica
acerca do feminino em Grande Sertão: Veredas. O ensaio fotográfico é acionado ao tempo
que se percebe as personagens aflorando nas imagens literárias em suas legendas, além de
diversos elementos que emergem, como as imagens relacionadas com o universo durandiano:
o elemento feminino, pertencente ao regime noturno. Maureen Bisilliat faz acreditar na
possibilidade de ressignificação da obra rosiana, das relações entre a realidade e a ficção,
dualidade tão presente desde o surrealismo, que comunga com o Imaginário de Gilbert
Durand.
Palavras-chave: João Guimarães Rosa. Maureen Bisilliat. Literatura. Fotografia.
Feminino rosiano. Imaginário. Tradução Intersemiótica.
RÉSUMÉ
Cette thèse a été réalisée une analyse des relations existantes entre la littérature et la
photographie, ayant pour objet d'étude l'œuvre littéraire Grande Sertão: Veredas (1956) de
João Guimarães Rosa, traduit grâce à des photographies de Maureen Bisilliat aux travaux A
João Guimarães Rosa (1969). Bien que la photographie ait essayé d‘interagir avec la
littérature dès ses prémices en 1849, ce ne sera qu'avec l'arrivée des mouvements avant-
gardistes qu'apparaîtra une plus grande interaction entre les deux arts. Ceci favorisera des
questionnements sur le « travail artistique », et ce, pas uniquement pour le domaine de la
photographie, mais pour l'Art, en général. L'accent est missur cette période de grande
interaction, s‘appuyant surtout sur l'école surréaliste, considérée comme innovante et
pionnière artistique pour son interaction entre ces deux langages. Dans le domaine littéraire,
l'étude sur l'interaction avec les écrivains a favorisé une connaissance sommaire de quelques
noms qui ont dialogué avec la photographie dans leurs œuvres, écrivains passionnés par la
photographie, ont aussi été considérés comme photographes. Dans cet etude persiste de la
traduction intersémiotique, ou une transposition créative. L'image photographique ne sert pas
uniquement à illustrer les mots de l'écrivain. Elle dialogue avec le texte et cette construction
n'est ni aléatoire ni directe. Le travail démontre que le processus créatif des artistes est
similaire, dans la diversité de leur esthétisme. Bien que tout deux expriment leur spécificité,
ils partagent des équivalences, qu'elles soient convergentes ou divergentes, transmises grâce à
des images métaphoriques de l'ambiance du Sertão et ses habitants. Pour le dialogue inter-
sémiotique construit dans A João Guimarães Rosa, le roman Grande Sertão: Veredas a dû
être fragmenté en légendes, pour que la photographie puisse explorer à loisir l'univers féminin
latent de l‘œuvre. Cette féminité est dévoilée progressivement grâce aux théories littéraires
émanant de l'ensemble des critiques parues sur le roman. Le reportage-photo est entraîné à
mesure que les personnages affleurent les images, grâce aux légendes, mais aussi grâce aux
éléments silencieux qui jaillissent des clichés, rattachés à l'univers durandien: l'élément
féminin présenté dans les images appartient au régime nocturne. Maureen Bisilliat fel croire
en la possibilité d'une nouvelle signification de l'œuvre de Guimarães Rosa, des relations entre
la réalité et la fiction, dualité présente depuis le surréalisme, en accord parfait avec
l'Imaginaire de Gilbert Durand.
Mots-clés: João Guimarães Rosa. Maureen Bisilliat. Littérature. Photographie. Imaginaire.
Féminin. Traduction Inter-sémiotique.
ABSTRACT
This thesis conducted an analysis of the relationship between literature and photography, with
the object of study the work: the novel Grande Sertão: Veredas (1956) by João Guimarães
Rosa, which has translated for the photography of Maureen Bisilliat in the work, A João
Guimarães Rosa (1969). Since its inception, photography rehearsed some steps in the
dialogue with the literature. However, were the vanguard of movements that showed greater
interaction, leading questions about the artistic work not only on the picture that tried to
consolidate as art as well as art by itself in general. Surrealism can be considered as a
landmark dialogue, innovation, artistic pioneer among these languages. In the literature, the
study of the interaction with writers provided a brief knowledge of some names in the
literature that dialogued with photography in his works, lovers of the photographic medium,
were also considered photographers. In this work, we treat photography as a inter-semiotic
translation, or even creative transposition. The photographic image is not only meant to
illustrate the words of the writer. It dialogues with the text, and this construction does not
occur randomly and direct way. The research demonstrated that the creative process is similar
on both artists the diversity of its aesthetic. The two express their specificities, but at the same
time, they nevertheless share equivalents, either convergences or divergences, enabled
through metaphorized pictures of backcountry environment and its inhabitants. In
intersemiotic dialogue built on João Guimarães Rosa, it was necessary to fragment the novel
Grande Sertão: Veredas in captions for the picture to explore the latent feminine in this work.
This femininity has been revealed through literary theory that presents a critical rich fortune
about the female in Grande Sertão: Veredas. The photographic essay is driven in that the
characters perceive the images surfacing through their legends, in addition to several female
members silently emerge from images which related durandiano universe belonging to the
nocturnal regime. Maureen Bisilliat, makes us believe in the possibility of reframing of Rosa's
work, the relationships between reality and fiction, such as duality present from the surrealism
that communes with the Imaginary of Gilbert Durand.
Keywords : João Guimarães Rosa. Maureen Bisilliat. Literature. Photography. Imaginary
Feminine. Intersemiotic Translation.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Evolução da escrita dos sumérios...................................................
20
FIGURA 2 A tradução do alfabeto cuneiforme, da Mesopotâmia, para o
alfabeto atual, invenção atribuída aos fenícios..............................
20
FIGURA 3 Ilustração do Antigo Testamento. Um anjo evita que Abraão
sacrifique o seu filho, Isaac............................................................
25
FIGURA 4
Câmera escura.................................................................................
74
FIGURA 5
Índices da obra Primeiras Estórias.................................................
102
FIGURA 6
Índice referente ao conto ―As margens da alegria”, do livro
Primeiras Estórias..........................................................................
103
FIGURA 7
Capa e orelhas de Grande Sertão: Veredas....................................
107
FIGURA 8 ―Sem título‖ (1969). Mark Rothko.................................................
167
FIGURA 9 (Apêndice 1) Os quatro cavaleiros do Apocalipse, 1498. Albrecht
Dürer...............................................................................................
195
LISTA DE FOTOGRAFIAS
FOTOGRAFIA 1
Placa de Tell Brack Síria....................................................... 20
FOTOGRAFIA 2
Neblina na cidade de Paris, Brassaï, 1933............................ 56
FOTOGRAFIA 3
Madame Bijou. Bar de la Lune. Montmartre, Paris.
Brassaï,1933..........................................................................
57
FOTOGRAFIA 4 Prostituta na esquina da Rue de la Reynie com a Rue
Quincampoix. Brassaï, 1932..................................................
57
FOTOGRAFIA 5 Vitrines com manequins masculinos, Paris,
Eugène Atget, 1925...............................................................
59
FOTOGRAFIA 6
La Rue Quincampoix, Vue Prise de la rue des Lombards,
4e arrondissement, Eugène Atget, Paris, 1908......................
59
FOTOGRAFIA 7
Seus olhos de avenca............................................................. 64
FOTOGRAFIA 8
Capa do Livro Pro eto de Maiakóvski.................................. 64
FOTOGRAFIA 9 Fotomontagem de Rodtchenko do poema Pro eto de
Maiakóvski............................................................................
64
FOTOGRAFIA 10
―Roupas freudianas, Fortaleza‖, Mário de Andrade,
1927.......................................................................................
66
FOTOGRAFIA 11
Fotomontagem – A poesia abandona a ciência à sua própria
sorte. Jorge de Lima..............................................................
69
FOTOGRAFIA 12
Fotomontagem – Julgamento do tempo.
Jorge de Lima........................................................................
70
FOTOGRAFIA 13
Impressões pré-históricas das mãos nas cavernas................
76
FOTOGRAFIA 14
Anciã com vestes escuras. Sertão Luz e Trevas, Maureen
Bisilliat..................................................................................
82
FOTOGRAFIA 15 Anciã com vestes claras, Sertão Luz e Trevas, Maureen
Bisilliat..................................................................................
82
FOTOGRAFIA 16
Mulher com vestes de Guerreiro, Sertão Luz e Trevas,
Maureen Bisilliat...................................................................
83
FOTOGRAFIA 17
Imagem obscura, Sertão Luz e Trevas, Maureen Bisilliat... 84
FOTOGRAFIA 18
Menina catadora de caranguejo, O cão sem plumas,
Maureen Bisilliat...................................................................
85
FOTOGRAFIA 19
Velha catadora de caranguejo, O cão sem plumas,
Maureen Bisilliat.................................................................
85
FOTOGRAFIA 20
Fotografia de capa, A visita, face de mármore de um anjo,
Maureen Bisilliat...................................................................
88
FOTOGRAFIA 21 Pedra opala, A visita, Maureen Bisilliat............................... 89
FOTOGRAFIA 22
Pedra com aparência abstrata, Maureen
Bisilliat.................................................................................
89
FOTOGRAFIA 23 A jovem Tomoko Uemura banhada por sua mãe,
Minamata, Japão, 1972. Eugene Smith................................
93
FOTOGRAFIA 24 Mulheres velam o corpo de Juan Larra na cidade de
Deleitosa, Espanha, 1950. Eugene Smith .........
93
FOTOGRAFIA 25 Costa leste, Sussex, Inglaterra, 1957. Bill Brandt................
94
FOTOGRAFIA 26 Mineradores ingleses, 1931-35. Bill Brandt..........................
94
FOTOGRAFIA 27 Estatueta de Vênus de Hohle Fels.........................................
112
FOTOGRAFIA 28 Estatueta de Vênus de Willendorf......................................... 112
FOTOGRAFIA 29 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
128
FOTOGRAFIA 30 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
132
FOTOGRAFIA 31 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
137
FOTOGRAFIA 32 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
140
FOTOGRAFIA 33 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
140
FOTOGRAFIA 34 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
141
FOTOGRAFIA 35 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
141
FOTOGRAFIA 36 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat.........................
143
FOTOGRAFIA 37 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
143
FOTOGRAFIA 38 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
147
FOTOGRAFIA 39 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat.......................... 151
FOTOGRAFIA 40 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat.......................... 152
FOTOGRAFIA 41 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat.........................
153
FOTOGRAFIA 42
A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
156
FOTOGRAFIA 43
A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
157
FOTOGRAFIA 44 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
157
FOTOGRAFIA 45 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
158
FOTOGRAFIA 46 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat.........................
160
FOTOGRAFIA 47 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat.........................
161
FOTOGRAFIA 48 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
163
FOTOGRAFIA 49 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
164
FOTOGRAFIA 50 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
164
FOTOGRAFIA 51 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
164
FOTOGRAFIA 52 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
165
FOTOGRAFIA 53 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
167
FOTOGRAFIA 54 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
167
FOTOGRAFIA 55
A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat.......................... 168
FOTOGRAFIA 56 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
168
FOTOGRAFIA 57 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat..........................
172
FOTOGRAFIA 58 Comala, México. Juan Rulfo.................................................
200
FOTOGRAFIA 59 Tepeaca, Puebla, México. Juan Rulfo...................................
200
FOTOGRAFIA 60 Fotografia de Henri Cartier-Bresson. Paredão de
fuzilamento............................................................................
201
FOTOGRAFIA 61 Fotografia de Brás Martins da Costa. Levantamento do
cruzeiro; Congregação da Missão, Itabira, Minas Gerais
1904.......................................................................................
205
FOTOGRAFIA 62 Evandro Teixeira – Cavalaria na Igreja da Candelária,
massacrando o povo na missa do estudante Edson Luís,
morto pela polícia, 1968........................................................
207
FOTOGRAFIA 63 Migrante nissei. São Paulo, Maureen Bisilliat......................
219
FOTOGRAFIA 64 Torso de uma mulher. Maureen Bisilliat...............................
222
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................... 14
2.0 NASCIMENTO DA ESCRITA E SUAS LEITURAS....................... 18
2.1 A palavra encontra a imagem............................................................... 22
2.2 O surgimento da imprensa.................................................................... 28
2.3 A semiótica peirceana e o imaginário durandiano............................. 34
2.4 Tradução intersemiótica........................................................................ 39
2.5 Imaginário............................................................................................... 42
2.5.1 O imaginário e as relações icônico-verbais.......................................... 44
2.6 Algumas considerações acerca das relações entre o verbal e o não
verbal......................................................................................................
45
3 LITERATURA E FOTOGRAFIA – DO CONFLITO À
HARMONIA. O NASCIMENTO DE UMA RELAÇÃO..................
50
3.1 A fotografia e o movimento de vanguarda europeu: o Surrealismo. 57
3.2 O Surrealismo e o diálogo estético: literatura e fotografia............... 62
4 BISILLIAT, ROSA, PALAVRAS E VISUALIDADES.................... 73
4.1 O retrato................................................................................................. 73
4.2 O retrato literário maureeniano.......................................................... 80
4.3 O encontro com João Guimarães Rosa............................................... 91
4.4 Maureen Bisilliat: “a cigana irlandesa”.............................................. 94
4.5 A imaginação fotográfica na literatura rosiana.................................. 98
4.5.1 Um exemplo do verbal e do não verbal em Primeiras Estórias.......... 102
4.5.2 A imaginação fotográfica e o verbal e não verbal em Grande
Sertão: Veredas......................................................................................
104
5
O IMAGINÁRIO FEMININO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
– A GRANDE MÃE, O MITO DA CRIAÇÃO DO MUNDO EM
ROSA......................................................................................................
110
5.1 Os amores de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas........................... 114
5.1.1 Nhorinhá................................................................................................. 115
5.1.2 Diadorim................................................................................................. 118
5.1.3 Otacília.................................................................................................... 124
5.2 Análise da obra A JOÃO GUIMARÃES ROSA................................... 126
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 178
REFERÊNCIAS.................................................................................... 183
APÊNDICES.......................................................................................... 194
ANEXOS................................................................................................. 224
GLOSSÁRIO.......................................................................................... 226
1 – INTRODUÇÃO
O objetivo, nesta tese, é analisar o feminino presente na transposição criativa de
Grande Sertão: Veredas, decodificada em imagens fotográficas por Maureen Bisiliat, que
promoveu uma leitura ressignificada da obra rosiana. O ensaio fotográfico A João Guimarães
Rosa, composto de imagens fotográficas de Maureen Bisilliat e acompanhadas de fragmentos
da obra Grande Sertão: Veredas, é uma justa homenagem ao escritor, roteirista e
incentivador. Nosso trabalho tenta desmistificar a noção de que a imagem serve apenas como
mero elemento ilustrador das palavras, embora tal procedimento também seja possível e
esperado.
O olhar de Maureen Bisilliat encarna um universo em que sobressai o feminino em
diversos modos e formas aliadas ao seu fazer fotográfico, que remete aos movimentos de
vanguarda europeus, ao surrealismo, de forma inconsciente e de maneira intuitiva, ao compor
as imagens fotográficas, ao fazer cortes inusitados, ao sugerir imagens em movimento etc.
A interpretação desse universo fundamentou-se também no referencial teórico, no
estudo do Imaginário de Gilberto Durand, que indica o regime noturno como pertencente ao
mundo feminino que se entrelaçaria com a Psicologia Analítica de Jung, contribuindo para a
interpretação e compreensão das imagens relacionadas com o universo feminino. Certamente
a teoria literária aliada à leitura do romance guiou a pesquisa, apontando possíveis
encaminhamentos ao diálogo palavra e imagem.
Acreditamos que haja crescente demanda com relação aos estudos do processo de
intersemiose entre as duas linguagens – a literatura e a fotografia; no entanto, a fortuna crítica
que se dedica a eles ainda é muito restrita. O romance Grande Sertão: Veredas tem
proporcionado aos leitores diversas experiências de leituras imagéticas por sua força
metafórica, subsidiadas pelo vasto material existente. A transposição fotográfica proporciona
aos leitores mais uma possibilidade de leitura inerente a essa obra.
Para este trabalho pesquisamos, primeiramente no capítulo 2, como se deram as
primeiras relações entre as imagens metafóricas (palavras) e as imagens visuais, abordamos a
complexidade existente entre o ato da criação das palavras e o seu registo desde a
Mesopotâmia, fato que não se deu tão rapidamente, pois, para a transposição de fonemas em
códigos decifráveis, foi necessário todo um esforço cognitivo e todo um contexto para a
realização da palavra escrita. Os pesquisadores acreditam que a invenção da escrita ocorreu
devido à finalidade de registrar as transações comerciais, como a venda de animais em um
rebanho, dentre outros registros de interesses econômicos.
15
Ainda neste capítulo, enfatizamos os conteúdos teóricos utilizados nesta tese, com o
objetivo de esclarecer como ocorre o processo de passagem da óptica literária à fotográfica,
sendo necessário saber diferenciar as características de cada uma dessas linguagens e analisar
a multiplicidade de sentidos existentes entre elas. A experimentação com a transição entre
esses meios expressivos tem sido responsável pelo desenvolvimento de ambas as linguagens,
ampliando o conceito de tradução, especialmente sob o crivo da semiótica, que estuda cada
uma dessas linguagens e também as passagens de um meio para o outro. Esse processo é
chamado por Roman Jakobson de tradução intersemiótica.
O estudo do Imaginário propiciou a compreensão de Gilbert Durand, seus Regimes
Diurno e Noturno, de modo a fornecer elementos para a análise da obra Grande Sertão:
Veredas. Essa opção teórica deve-se à nossa passagem através da cotutela com a Université
Stendhal – Grenoble 3, no programa do CRI, Centre de recherche sur l’imaginaire, quando
percebemos que tal escolha comunga com os ideais do surrealismo, do universo literário e da
semiótica de Charles Sanders Pierce, observando o caráter não cartesiano empregado nessas
teorias.
No capítulo 3, pesquisamos acerca do modernismo, dando o devido destaque à escola
do surrealismo, encabeçada por André Breton, que ressalta em seus Manifestos a necessidade
da criação de uma nova arte com padrões estéticos diferentes dos padrões vigentes até então.
A obra Nadja, de André Breton, lançada em 1928, inaugura uma nova instância na interação
intersemiótica. Dessa vez não qualquer arte, não mais a pintura, gravuras, xilogravuras ou
outra representação visual, mas a arte fotográfica é introduzida no diálogo com a obra
literária, com finalidade estética.
O surrealismo é um componente importante na pesquisa. Através dele constatamos
que, na obra de Maureen Bisilliat, mesmo sem muita formalização do conceito da escola, a
fotógrafa se apropria de elementos desse movimento. No entanto, são contexto e proposta
diferentes, pois o objetivo de André Breton era de ruptura radical com as normas vigentes. A
intuição, no entanto, foi um elemento instigante, desencadeador da semiose empregada pela
fotógrafa ao se aproximar do universo de João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas).
Intuitivamente a fotógrafa compõe o sertão feminino em sua leitura, cuja releitura resulta na
tradução denominada A João Guimarães Rosa.
O modo intuitivo de Maurren Bisilliat, juntamente com suas indagações em entrevistas
e imagens e sua fortuna crítica, fornece elementos que justificam os conceitos do Imaginário
de Gilbert Durand. Tais elementos se interligam por sua vez e contribuem para o
16
entendimento do seu imaginário, ao lado do surrealismo de André Breton e da semiótica
perciana, além da crítica literária estudada.
Fizemos, nesse mesmo capítulo, um breve inventário da interação entre literatura e
fotografia, verificando a presença do elemento fotográfico na literatura. Escritores como
Marcel Proust tinham verdadeira obsessão pelo retrato fotográfico; já o fotógrafo Brassaï
acreditava em uma correspondência de sua fotografia com a obra proustiana, mesmo que
jamais tenham se encontrado em vida. O mesmo ocorre com o escritor Fernando Pessoa. Seus
heterônimos encarnam um olhar semelhante à visão de um fotógrafo. A escritora Clarice
Lispector assimilava o seu olhar fragmentado: em flash, como diz a escritora, o tempo
fragmentado, frações de segundos, é captado e percebido em sua obra. Elementos que atestam
a existência do fenômeno moderno, o advento da técnica fotográfica presente na obra literária.
Já o escritor Júlio Cortázar é um dos que mais acreditam no diálogo entre literatura e
fotografia, promovendo uma comparação entre a fotografia e o conto. Devido à necessidade
de síntese de uma realidade, a fotografia, numa espécie de metonímia, utiliza-se sempre de um
recorte da parte pelo todo, do mesmo modo que o escritor, no conto, particularmente, sente a
necessidade de delimitar os acontecimentos significativos em seu trabalho, para atrair a
atenção de seu leitor de forma breve. Para o escritor, cada fragmento da realidade é uma
redução que se amolda ao universo verbal.
Essas relações entre escritores e a fotografia demonstram a presença e a influência da
fotografia no meio literário; o meio tecnológico incrustado no mundo das palavras, de modo a
expandir o olhar, através de múltiplas representações estéticas da realidade. Durante o
desenvolvimento do trabalho, abordamos outros escritores e as suas respectivas obras que
tiveram de algum modo, com a fotografia, um diálogo pertinente e um fecundo processo
interativo.
No capítulo 4, realizamos um estudo acerca do retrato, item relevante na obra de
Maureen Bisilliat, que dedica boa parte de sua obra a esse gênero fotográfico, seu imaginário
criativo, sua relação com as palavras, e o como e o porquê do encontro com o escritor João
Guimarães Rosa. Ainda nesse capítulo traçamos algumas considerações acerca do universo
plástico de Guimaraes Rosa, sua relação com as imagens, seus gravuristas e ilustradores que
decodificavam seus pedidos de ilustrações, e, por fim, verificamos a presença da fotografia
em diversas obras suas, sobretudo em Grande Sertão: Veredas.
No capítulo 5, adentramos cada vez mais no universo de João Guimarães Rosa,
direcionando o estudo ao elemento feminino, dado importante em nosso trabalho, pois é
através dele que tecemos considerações acerca da presença significativa da mulher,
17
principalmente em Grande Sertão: Veredas. O referencial teórico nesse momento foi o
literário, confirmando a presença da tríade feminina na travessia de Riobaldo. São elas:
Nhorinhá, Diadorim e Otacília. Apesar de tantas outras estarem presentes na obra, essas são,
no entanto, as mais estudadas e as que mais se destacam na releitura apresentada por Maureen
Bisilliat. Também lançamos mão de Gustav Jung com sua psicologia analítica empregada por
Erich Neumann ao se referir aos elementos que interpretam a Grande Mãe, elemento
abordado por Gilberto Durand em seu trabalho Estruturas antropológicas do imaginário.
A teoria literária propiciou diversos elementos que mais adiante se agregaram à análise
do material fotográfico, conjugando os fragmentos de Grande Sertão: Veredas, com
direcionamento ao universo feminino presente na obra. Mencionamos os principais críticos:
Benedito Nunes, Walnice Nogueira Galvão e Davi Arrigucci.
E enfim, ainda nesse capítulo, empreendemos nossa análise da obra resultante da
tradução de Grande Sertão: Veredas em A João Guimarães Rosa, um somatório simbólico
que atravessa as imagens, desde a Teoria Literária, o Imaginário, até a Semiótica da imagem
como explicação do fenômeno simbólico da leitura.
2 - NASCIMENTO DA ESCRITA E SUAS LEITURAS
A escrita nasce da necessidade de registro das atividades do cotidiano. Sua utilização
se deu inicialmente no comércio com finalidade de registro de valores de compra e venda das
mercadorias, pois era sabido que acordo ―feito de boca‖, acordos verbais, orais, podiam ser
facilmente adulterados, contestados ou esquecidos. Não é à toa que, até os dias atuais, em
várias negociações e na maioria das atividades, se tem necessidade de comprovar o que foi
dito ou não dito. Assim nasce a escrita, uma ―testemunha imortal‖, no dizer de Fischer (2006,
p. 9). A palavra humana é transposta inicialmente em pedra, que tinha como finalidade a da
leitura oral; ler tinha, como finalidade denotativa, a fala; ler naquele tempo era declamar.
Definir o que é leitura não é tarefa fácil; supõe-se que o ato de leitura seja bastante
relativo e variado. Em uma definição moderna mais ampla, a leitura é ―a capacidade de extrair
sentido de símbolos escritos ou impressos‖, ainda segundo Fischer (2006, p. 9), envolvendo
todo um processo cognitivo, entre informações, memória e a interpretação razoável de uma
mensagem ou referenciação criado pelo escritor:
Entretanto, nem sempre a leitura foi definida desse modo. No início, ela consistia na
mera capacidade de obtenção de informações visuais com base em algum sistema,
codificado, bem como na compreensão de seu significado. Mais tarde passou a
significar, quase de modo exclusivo, a compreensão de um texto contínuo com
sinais escritos sobre uma superfície gravada, mais recentemente, inclui também a
extração de informações codificadas de uma tela de computador. E a definição de
leitura continuará por certo, a se expandir no futuro porque, assim como qualquer
outra aptidão, ela também é um indicador do avanço da própria humanidade
(FISCHER, 2006, p. 11).
O ato da leitura envolve os sentidos da compreensão. Geralmente envolve a
combinação de dois sentidos, a audição e a visão, no entanto, são vários os processos de
leitura, não existindo um método fechado. Tais processos ―devem inevitavelmente se
relacionar a finalidades culturais específicas e dependem dos modos contrastantes de
interpretações orais institucionalizados por determinada cultura‖ (HARRIS apud FISCHER,
2009, p. 11). De modo que a leitura, esse antigo e sofisticado grau de percepção humana, de
caráter ímpar, ao longo dos tempos, apresenta interpretações diferentes, de acordo com os
povos.
A leitura compreende, ainda, duas teorias contraditórias. Segundo os teóricos de um
lado, existirá uma leitura de cunho linguístico, um processo linear fonológico, sistema sonoro
que se dá através de letra a letra, acoplando elementos da linguagem de forma crescente até
que se consiga obter a compreensão; de outro, defende-se a leitura como um processo
semântico-visual, acreditando que palavras, sentenças e frases inteiras podem ser lidas, de
uma vez só, de modo que não é necessário a separação de letras, diferentemente do processo
19
linear. As duas direções coexistem ao longo dos tempos; trata-se, portanto, da evolução de
uma leitura literal, interligando o som ao sinal gráfico e, mais adiante, atribuem sentido a
agrupamentos maiores de sinais.
Os primeiros leitores e responsáveis pela leitura surgem na Mesopotâmia – seus textos
eram bem curtos, e seu suporte podia ser o entalhe em pedra, madeira, osso ou em argila. Seus
interesses eram ligados ao registro de cálculos, posse de bens, validação de contas, dívidas,
contratos, cartas, hinos ou mesmo homenagens, além da preservação da memória da vasta
história oral. Antes, pouquíssimas pessoas tinham interesse em aprender tal atividade, a de ler;
os escribas, seus produtores e verdadeiros oradores, tornam o verbal visível, imortal.
Os primeiros indícios da leitura já remetem a um período primitivo, como o homem
dito das cavernas, que denominamos de Homo sapiens – eles sabiam bem o significado de
suas pinturas, desenhos, entalhes feitos em diversos matérias como colares, contas, bem como
a confecção de pequenas estatuetas; possivelmente talvez soubessem as marcações dos
melhores dias de caça, as estações, as diferenças da lua. A chamada arte rupestre também
servia como leitura, pois contava histórias visuais dotadas de significações; no entanto, é uma
escrita incompleta, considerando que:
Em seu sentido mais amplo, a escrita é a sequência de símbolos padronizados
(caracteres, sinais ou componentes de sinais) com a finalidade de reproduzir
graficamente a fala e o pensamento humanos, entre outras coisas, no todo ou em
parte (FISCHER, 2006, p.14).
Os sumérios, empreendedores na arte do comércio em todo o Mediterrâneo,
considerados uma das civilizações mais antigas do mundo, situados na Mesopotâmia, por
volta de 4.000 a.C. ou mais, região atual do Golfo Pérsico, são os grandes responsáveis pelo
feito da leitura, pois a grande ―mudança de paradigma‖1 acontece através de seus pictogramas,
cuja escrita era feita por meio de uma espécie de estilete, que cunhavam em tábuas de argilas
depois cozidas com fogo, com o intuito de perpetuá-las.
No início da escrita, eram utilizados desenhos; depois as imagens são cada vez mais
estilizadas em pequenos sinais, denominados de escrita cuneiforme, representando, então, não
mais as coisas por semelhança, mesmo que esse sinal ainda remetesse a alguma coisa exterior;
passam esses sinais a representar as coisas através de sons, surgindo assim palavras que
remetem a esses objetos e a tudo mais que fosse possível representar.
1 ―O sinal tornou-se som – libertado de seu referencial externo – na Mesopotâmia entre 6 mil e 5.700 anos atrás.
A ideia logo foi disseminada a oeste do Nilo e a leste do Platô iraniano, chegando até o Indo, onde idiomas
diferentes e necessidades sociais distintas exigiam outras expressões gráficas. Em todas as partes, a escrita era
reconhecida como ferramenta inestimável para o acúmulo e armazenamento de informações: facilitava a
contabilidade, a guarda de materiais e o transporte, bem como conversas, nomes, datas e lugares com mais
eficiência que a memória humana. Toda ―leitura‖ antiga envolvia um reconhecimento muito simples de códigos
e estava invariavelmente centrada na execução de tarefas‖ (FISCHER, 2006, p. 15).
20
As imagens (Fotografia 1) e (Figuras 1, 2), com 4.000 anos, ilustram essa passagem. A
primeira, confeccionada em argila, representa o número dez e, possivelmente, estava em
posse de algum pecuarista, ou algum outro comerciante, para indicar ele possuía dez cabeças
de cabras, ou algum outro animal semelhante. Isso era representado através de sons, mesmo
que lembrasse uma cabra; já a segunda imagem mostra a evolução até chegar a sinais bem
simplificados, representando o alfabeto sumério, algo que evoca a ―arbitrariedade do signo‖
(SAUSSURE, 1995, p. 81).
(Fotografia 1) Placa de Tell Brack - Síria
Disponível em: <http://professor-josimar.blogspot.com.br/2011/09/invencao-da-escrita-escrevendo-uma-
nova.html>. Acesso em mar. 2013.
(Figura 1) Evolução da escrita dos sumérios
Disponível em: <http://historicconnections.webs.com/historyofwriting.htm>. Acesso em mar. 2013.
(Figura 2) A tradução do alfabeto cuneiforme, da Mesopotâmia,
para o alfabeto atual, invenção atribuída aos fenícios.
Disponível em: <http://www.sofadasala.com/ligiacabus/10012007nibiru.htm>.
Acesso em mar. 2013.
21
Para que ocorra o fenômeno de uma escrita completa, são exigidos três critérios
importantes, segundo Fischer (2006): ter como objetivo a comunicação; consistir em sinais
gráficos artificiais confeccionados em um suporte durável; e empregar sinais que se
relacionem convencionalmente ao discurso articulado (organização sistemática de sons vocais
significativos).
O início da escrita na Mesopotâmia, no entanto, tinha também seus aspectos negativos
– um dos primeiros problemas era a portabilidade e o manuseio do material cunhado em
placas de argila, diferentemente da leveza e facilidade da utilização de sinais utilizados, como
o foi no Egito, onde se utilizou o papiro; além de pesadas, as placas podiam ser danificadas
caso ocorresse uma queda, e havia a necessidade de se ter vários volumes sobre um texto mais
extenso, para se produzir uma material escrito.
Apesar da invenção da escrita, a oralidade imperava, já que pouquíssimos cidadãos da
Mesopotâmia tinham o direito de exercer essa atividade, seja como escriba, seja como leitor.
―Ler em sumério significava contar, calcular, ponderar, memorizar, declamar, ler em voz alta‖
(FISCHER, 2006, p. 17). Seu emprego era, portanto, relacionado ao trabalho e ao controle da
população por parte de seus governantes.
Com as diversas invasões ocorridas na Mesopotâmia, a escrita é então expandida para
o Egito e, em seguida, amplia-se por todo o Golfo Pérsico; é difundida por todo o Oriente,
depois chega à Grécia, bem como a diversos outros povos, adaptando-se a novas técnicas
aplicadas a seus respectivos idiomas e preservando – com isso – todo um legado cultural da
humanidade. Mais adiante, a escrita aramaica a substitui, possivelmente devido à facilidade de
mobilidade e também porque o aramaico tornou-se um dos principais idiomas em voga na
região:
A escrita aramaica também substitui a escrita cuneiforme assíria: tinta em couro ou
papiro agora era preferida no lugar de cunhas em argila mole. A era da argila estava,
definitivamente chegando ao fim. A literatura aramaica, em essência, também
abrangia documentos oficiais, administração geral, contas, registros contábeis,
inscrições em monumentos, e outros. De importância crucial, foi a inspiração
aramaica do sistema de escrita do subcontinente indiano, os primeiros documentos
mais longos entre os quais estão os famosos decretos do rei Asoca, de cerca de 253-
250 a. C., entalhes em pilares de pedra ou rocha em toda região do Industão
(FISCHER, 2006, p. 37).
Com a escrita, a imagem da representação da realidade se dissocia do seu referente;
mais adiante, essas duas linguagens distintas vão se associar, de maneira a se
complementarem. A leitura será realizada de maneira silenciosa; de outro lado, sua
coadjuvante, a imagem, tem a finalidade de maior compreensão na sua totalidade, através da
22
representação do seu referente quase à sua semelhança, em iluminuras, afrescos, vitrais,
mosaicos.
A forma de se expressar através de imagens, como as escrituras rupestres, é
considerada uma forma de comunicação bem mais antiga que a utilização da palavra escrita.
Os antepassados do Homo sapiens conviveram em sociedade e tinham a intenção de transmitir
informações para os seus descendentes. Num primeiro momento, tais inscrições pré-históricas
eram acompanhadas de ensinamentos orais, para que fosse possível fixar tais informações.
Representar um animal, como uma cabra ou um boi, através da uma representação
gráfica direta, mesmo que de forma estilizada, era de um entendimento relativamente não tão
fácil. No entanto, o surgimento da palavra impressa em algum suporte, como um bloco de
argila ou papiro, instaura um novo marco na humanidade, uma forma de se perpetuar através
do acúmulo de todos os tipos de informações e de sua transmissão.
A complicada passagem da fala para a escrita, representação simbólica de sinais
através de fonemas que constituem um pensamento, exige um grau de abstração cognitiva
muito maior que as primeiras leituras das escrituras rupestres, desde os primeiros
pictogramas, escrita cuneiforme, desenvolvidos pelos sumérios na Mesopotâmia.
Os historiadores na atualidade acreditam que tal processo de assimilação da escrita
tenha ocorrido de forma bastante lenta ao longo dos anos. O emprego da escrita tinha
finalidades econômicas, como registrar a quantidade de escravos de um reino, a quantidade de
gado, o pagamento de impostos, o armazenamento de cereais. Os processos de elaboração,
codificação e decodificação ficavam restritos a seus governantes; era o rei quem ditava o que
podia ser publicado ou não. Naquele tempo já se podia perceber que controlar a informação é
também controlar o poder. Como apenas alguns podiam ter acesso ao entendimento desse
código, os decretos eram lidos em voz alta para expandir as informações emanadas do
soberano.
2.1 - A palavra encontra a imagem
À medida que aumentava significantemente o fenômeno da escrita e da leitura no
Ocidente, a religião foi o principal vetor para fazer valer essa transformação, na utilização
cada vez maior da linguagem visual com o uso das palavras em detrimento da oralidade: ―Ao
longo da história, a religião foi um dos principais motores da alfabetização. Os padres
adestrados como escribas figurariam entre os primeiros leitores da sociedade‖ (FISCHER,
23
2006, p. 37). Em seguida, vieram diversos outros eruditos que a fizeram expandir, variando
cada vez mais o material de leitura e continuando a religião como o principal difusor.
O objetivo não era apenas o de difundir culturas por meio da escrita, utilizando o latim
como língua oficial, mas o de controlar e dirigir a sociedade através de transmissão do
sagrado, sabedoria essa conivente com os dogmas da Igreja. Termos surgidos naquele
período, como ―o assim estava escrito‖, davam uma credibilidade dogmática, portanto,
impossível de se replicar. Esses copistas têm o mérito reconhecido, mesmo que de forma
anônima, como os perpetuadores de toda a cultura escrita ocidental. Não é à toa que – em
meados do século VI, período de início da Idade Média – boa parte da Europa se rende aos
copistas dos mosteiros e abadias, em que boa parte da publicação é de cunho religioso.
Apesar do registro escrito assegurado desde os antigos escribas, todo poder da leitura
aconteceu tardiamente: ―na realidade, cerca de três mil anos após a elaboração da escrita na
Mesopotâmia‖ (idem, ibidem, p. 40), de modo que a oralidade por muito tempo compartilhava
com a leitura escrita, que gradualmente vai adquirindo mais autonomia.
A palavra escrita, como uma dádiva da Mesopotâmia, trouxe também sua imposição,
muitas vezes por parte da Igreja Romana, que conseguira fazer sucumbir diversas outros
alfabetos às imposições de seu pensamento, dizimando culturas pelo próprio poder da escrita
e que desapareceram sem deixar quase nenhum vestígio. Mas é inegável a perpetuação da
cultura humana através da escrita, graças à Igreja:
Por consequência de uma metamorfose voluntária, os letrados perderam a memória,
a cultura e a liberdade orais. Uma autonomia disfarçada, a palavra escrita, impôs-se
a todos os letrados: uma tirania, criada pelo homem, a qual escravizava seus devotos
súditos. Hoje, porque perdemos completamente o nosso patrimônio oral, não temos
muita noção da onipresente imposição da tirania na medida em que vivemos,
pensando, cremos e veneramos por meio da palavra escrita, tornando-nos incapazes
de enxergar nossas possibilidades. Todos nós, sem exceção, somos súditos
inconscientes da leitura. Contudo, muitos reconheceriam que esse é um pequeno
preço a ser pago por uma das mais notáveis maravilhas da vida: o controle
individual sobre o tempo e o espaço. Todos os idiomas e culturas conhecidos da
história são preservados por meio da leitura. Dessa forma, eles continuam a fazer
parte da narrativa humana visto que testemunham a glória e os conflitos de nosso
passado em comum: sumério, egípcio, acádio, persa, sânscrito, chinês clássico,
grego, hebraico, latim, árabe clássico e centenas de outros. Assim, terminado o
milênio, a testemunha imortal finalmente tornou-se a voz da própria humanidade
(FISCHER, 2006, p. 40).
Foram vários séculos percorridos pela escrita. Sua evolução ao longo dos tempos
permitiu o encontro ou, poderíamos dizer, o reencontro da palavra com a imagem, visto que,
inicialmente, eram as imagens que representavam o universo humano no cotidiano, quando,
em seguida, a escrita obriga a sua separação. O encontro dar-se-á com uma das mais antigas
24
linguagens visuais, a pintura, ocorrendo então a confluência dessas duas linguagens, no
período da Idade Média.
A pintura vai trabalhar conjugada à palavra, em função da religião, devido à
necessidade de transmitir ensinamentos eclesiásticos em latim para analfabetos. As pinturas
serviam como decorações nos interiores das igrejas. Os padres instruem seu rebanho de
peregrinos através de ensinamentos compondo a narrativa oral por meio dessas imagens; a
oralidade então passa a estar mais presente nessas interpretações, pelo fato de que a grande
maioria não sabia ler o latim.
A utilização de imagens no mundo religioso, nas paredes, estátuas sacras, ícones ou
nas imagens inseridas nos livros, denominadas iluminuras, no entanto, não ocorreu sem
problemas. A grande questão se deu quando, já por volta do ano de 404, em São Nilo de
Anciara (atual Ancara, capital da Turquia), um beneditino fervoroso implicou com algumas
formas e temas, exercendo sobre eles certa censura; para ele, só era permitido representar
cenas do Velho e do Novo Testamento, por meio das quais se ensinava a história bíblica e se
incutia a crônica da misericórdia de Deus, mas condenava as cenas livres, como as de caça, e
também abominava quaisquer cenas que fossem representações de animais, ―frívolas e
indignas de uma alma cristã viril‖ (MANGUEL, 1997, p. 117).
O Papa Gregório I2, o Grande, tentou então esclarecer e apaziguar a situação
explicando a diferença entre idolatria às imagens e a possibilidade de estas ajudarem seus
seguidores no entendimento dos preceitos bíblicos. Não seria o uso delas que iria obscurecer
ou ameaçar os ensinamentos de Deus: ―uma coisa é adorar imagens, outra é aprender em
profundidade, por meio de imagens, uma história venerável‖ (MANGUEL, 1997, p. 117). O
culto de venerar as imagens, e não a sua adoração, representava o ato direcionado à
lembrança e à memória, do que elas reproduzem (Figura 3).
2 ― (...), o papa Gregório, o Grande, no limiar do século VII, estava convencido de que aquilo que se ensina aos
iletrados pelo texto ensina-se aos que não sabem ler pela imagem. Por último, e sobretudo, o Deus dos cristãos
fez-se homem, adotou um corpo de homem, um rosto de homem. Portanto, era possível representá-lo. Sua
Imagem tornou-se a partir de então mediadora, como era o próprio Deus encarnado. Esse símbolo que é a
imagem passou a ser, no sentido primeiro do termo, um ―sacramento‖um vínculo entre a pessoa divina e a
pessoa humana. E foi assim que, [...] a arte figurativa da Antiguidade mediterrânea sobreviveu no Oriente‖
(DUBY, 2002, p. 27).
25
(Figura 3) Ilustração do Antigo Testamento.
Um anjo evita que Abraão sacrifíque o seu filho, Isaac.
Iluminura anônima da Idade Média, representando O Sacrifício de Isaac. Disponível em:
<http://povodebaha.blogspot.com.br/2006_06_01_archive.html>. Acesso em 28 de setembro de 2013.
Paradoxalmente, a Igreja sabia que religiões de um só Deus não possuem a imagem de
sua representação, basta observar a rigidez do Islã ao representar Alah; tal representação só é
possível através de palavras, jamais por imagem. Assim como no Cristianismo, a Bíblia é bem
clara sobre essa proibição, mas a Igreja percebia que essa forma de leitura para os que não
sabiam latim era de uma utilidade indubitável.
Por natureza, as religiões monoteístas são iconófobas: não se representa o Deus
único. Sua presença é marcada por sinais. Monoteísta, o cristianismo tinha, além
disso, de travar uma luta sem trégua para desenraizar as religiões rivais; os bispos da
alta Idade Média, que destruíam as efígies dos antigos deuses, desconfiavam das
estátuas. Por fim, a cultura ―bárbara‖, que ganhava terreno incessantemente, também
recusava a figuração. Portanto, durante séculos a fio desapareceu a grande escultura
monumental. Contudo, nos monumentos que construíam, os dirigentes da Igreja
cristã colocavam figuras de homens e de mulheres. Na verdade, tal como o império a
que substituíra, a instituição eclesiástica não podia deixar de exibir seu poder às
massas que pretendia submeter, e nem de fazer essas demonstração recorrendo a
imagens convincentes. Também tinha de divulgar sua doutrina (DUBY, 2002, p. 25-
27).
O problema é que, de forma estratégica, de um lado a Igreja Católica via a
possibilidade de congregar, unificando ou apaziguando, diversos povos de religiões
diferentes, como os recém-convertidos ou não à religião católica, como árabes e judeus
(oriundos respectivamente do islamismo e do judaísmo). No entanto, de outro lado, existiam
também os católicos ortodoxos e os de outras religiões fundamentalistas, seguidores fiéis das
palavras ditas no ―Livro Êxodo‖ do Antigo Testamento, e que, certamente, conheciam bem a
passagem bíblica que descreve a proibição das imagens:
26
Não farás para ti imagens esculpidas, nem qualquer imagem do que existe no alto
dos céus, ou do que existe em baixo, na terra, ou do que existe nas águas, por
debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto, porque Eu,
o Senhor, teu Deus, sou o Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos, até à
terceira e a quarta geração daqueles que Me ofendem (Ex 20,4-5, 1974, p. 82).
De modo que para os ortodoxos era terminantemente proibido cultuar ou adorar todo e
qualquer artefato imagético confeccionado nas paredes das igrejas ou em livros. Outra
possibilidade que contribuiu com a questão do iconoclasmo foi que, ―ao longo dos séculos, a
iconografia foi negligenciada. Pintores tomavam liberdades maiores com imagens ortodoxas e
seus respectivos significados‖ (FISCHER, 2006, p. 137).
A Igreja, ao ignorar o poder das imagens, ao descuidar-se de sua construção e
possibilidades interpretativas, viu-se na necessidade de um maior acompanhamento do seu
processo. Apesar de a arte pertencer ao artista, este estava subordinado às leis e tradições da
Igreja. A controvérsia acerca do iconoclasmo ou iconosclastia, denominação grega de
―quebrador de imagem‖, pode assim ser constatada:
A controvérsia iconoclasta que durou por volta de 120 anos se dá em duas fases. O
primeiro período iniciou-se em 726 quando Leão III começou seu ataque aos ícones,
e terminou em 780 quando a Imperatriz Irene suspendeu a perseguição. A posição
dos defensores foi mantida pelo sétimo e último Concílio Ecumênico (787), que se
reuniu (como o primeiro) em Nicéia. Ícones, o concílio proclamou, devem ser
mantidos nas Igrejas e honrados com a mesma relativa veneração como outros
símbolos materiais, como "a cruz preciosa e vivificante" e o Livro dos Evangelhos.
Um novo ataque aos ícones começou com Leão V, o Armênio, em 815, e continuou
até 843 quando os ícones foram novamente reintegrados, desta vez
permanentemente por outra Imperatriz, Teodora. A vitória final das Santas Imagens
em 843 é conhecida como "Triunfo da Ortodoxia‖, e é comemorado com o ofício
especial celebrado no ―Domingo da Ortodoxia‖, o primeiro domingo da Grande
Quaresma.3
O recurso imagético era tão importante para a Igreja Católica que, mesmo sendo
proibida sua utilização, durante o período de ―inquisição das imagens‖, por seus adoradores e
fabricantes, os monges copistas utilizavam um recurso singular para a representação, que
eram figuras humanas com faces de animais, Manguel diz que: [...] ―em certas épocas,
porém, a proibição prevalecia e os artistas [...] recorriam a meios termos inventivos, tais como
dar às figuras humanas proibidas rostos de pássaros, para não representar a face humana‖
(MANGUEL, 1997, p. 118).
3 WARE, Kallistos. A IGREJA ORTODOXA. Disponível em:
<http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/iconografia/niceia_o_vii_concilio_ecumenico.html>. Acesso em: 30
set. 2013.
27
A pedagogia das escrituras foi eficiente na perpetuação dos dogmas da Igreja com
relação ao pecado e cuidado com a conduta moral, mesmo se a sua representação ocorresse
através de imagens de animais (com a denominação de Bestiário4, livro das bestas), ou com
representações humanas, como o Livro de Horas5. Assim, ―na Antiguidade, as ilustrações
desempenhavam importante papel na ‗leitura‘. Expressavam não só temas literários, mas
também cenas completas, além do simbolismo da fé cristã‖ (FISCHER, 2006, p. 136).
A escrita se espalha pelo mundo, e sua importância é reconhecida imediatamente por
diversos povos. Aos poucos o suporte de impressão e estilo de letras vai se modificando em
seu contexto. Há a necessidade de se empregar a nova linguagem de acordo com a língua
falada de cada região e suporte de impressão, como papiro e, mais adiante, o papel. Na Idade
Média vai surgir a preocupação em preservar avanços científicos e informações artísticas das
mais diversas culturas da Antiguidade. Assim, aparecem os copistas, monges especializados
nas traduções de antigos manuscritos como as obras clássicas greco-romanas; graças a eles, a
humanidade foi presenteada com toda a abundância de conhecimento até então nunca visto,
apesar de que, naquela época, apenas uma pequena minoria letrada tinha acesso à educação e,
consequentemente, à leitura.
Não demorou muito, e a palavra encontra as imagens, ainda na Idade Média, com os
manuscritos, iluminuras, muitas vezes miniaturas, representações de imagens, pinturas,
utilizando como suporte o pergaminho; bom exemplo é o ―Livro de Horas‖, textos bíblicos
acompanhados de ilustrações sacras, para serem lidos em determinados horários do dia.
Algumas edições eram feitas por encomenda e podiam levar anos para sua confecção, como o
Livro de Horas do Duque de Berry.
A Igreja, através desses ―manuscritos iluminados‖, simples ou ricamente adornados,
ministra, de forma pedagógica, os ensinamentos cristãos, pois, como a grande maioria das
pessoas na Europa não sabia latim, os padres para proferir suas pregações e ladainhas
utilizavam as imagens como referências aos ensinamentos. A mobilidade dessas miniaturas
4 Texto que circulou durante a Idade Média, caracterizado pela associação de um animal (real ou fantasiado) a
um significado – moral, alegórico ou espiritual – relacionado com uma característica do animal. O protótipo está
numa obra grega do séc. II, o Fisiólogo, traduzida para latim no séc. IV. O texto apresenta habitualmente uma
iconografia abundante e serve ao imaginário medieval particularmente na arte (escultura e iluminura). Glossário.
À descoberta da Iluminura medieval. Disponível em: <http://iem.fcsh.unl.pt/media-pdf/pdf-links-pasta/pdf-
links-recursos/cadernos-em-anexo>. Acesso em: 30 set. 2013. 5 Sem dúvida, o gênero literário mais lido na alta Idade Média, a partir do século XII, foi o livro de preces
pessoal em latim: o Livro de Horas. [...] No final da Idade Média, as iluminuras em miniaturas incluídas nas
páginas desses livros constituíram o principal trabalho artístico da Europa ocidental. Mais importante, o livro
vinculava o leitor diretamente ao divino sem a mediação da Igreja, a qual até então havia monopolizado a escrita
religiosa: com um livro desses nas mãos, a própria leitura se tornava um ato sagrado de enorme individualidade
(FISCHER, 2006, p. 154).
28
também possibilitou o uso em sua leitura privada. Os manuscritos tinham a finalidade de
reforçar os ideais da Igreja, e mesmo os analfabetos podiam decorar as suas passagens
evangélicas, salmos, provações a que os cristãos deveriam ser submetidos em sua vida terrena
para alcançar o reino dos céus ou sofrer sua condenação ao inferno.
É notória a importância do casamento entre a palavra e a imagem; por caminhos
diferentes, a relação entre elas enriquece a leitura, apesar dos interditos religiosos. O seu
objetivo maior, além de instruir os ensinamentos divinos, era, sobretudo, obter o controle
sociopolítico por meio da produção de imagens. ―De fato, essas ilustrações mantiveram-se
como um poderoso meio, testemunhas eloquentes, como a famosa Tapeçaria de Bayeux6 do
final do século XI – ‗história em imagens para um público iletrado‘ (embora com legendas em
latim)‖ (FISCHER, 2006, p. 153). No final da Idade Média, com o aumento da alfabetização,
os laicos não precisavam tanto da pedagogia imposta pela Igreja, como o ato de leitura em voz
alta, surgindo assim a forma silenciosa, que é ampliada, cada vez mais, com o crescimento da
produção do livro através do surgimento da imprensa.
2.2 - O surgimento da imprensa
Com as inovações tecnológicas e culturais e o surgimento da Renascença, a imprensa
vai dar uma guinada significativa na produção de livros. As palavras iluminadas (palavras e
iluminuras) dão lugar a outras técnicas de impressão, como a xilogravura, gravura em metal,
com a prevalência ainda da temática cristã. Como diz Santaella:
No espaço de tempo de 1500 até 1675, as imagens nos tratados técnicos e nos
tratados alquímicos passaram das iluminuras para as xilogravuras, até as gravuras
em metal. O modo de produção da imagem traz consequências para o papel que a
imagem desempenha no pensamento. De uma mera festa para os olhos e informação
para aqueles que não sabiam ler nem escrever, as imagens e figuras passaram a ser,
cada vez mais, peças fundamentais na transmissão de conhecimentos científicos e
técnicos, na medida mesma do aprimoramento de seu modo de gravação
(SANTAELLA, 2012, p. 106).
6 A Tapeçaria de Bayeux é uma obra bordada em linho entre 1070-1080, sob a encomenda do bispo Odo de
Bayeux (c. 1030-1097), meio-irmão de Guilherme, o Conquistador (c. 1028-1087). Não temos uma informação
segura e definitiva a respeito de sua autoria. Uma lenda atribui seu bordado a Matilde de Flandres e suas aias; há
quem afirme que a Tapeçaria foi executada em Canterbury com base em desenhos de um artista associado à
abadia de Santo Agostinho; por fim, é também possível que o bordado tenha sido feito por religiosas da abadia
de Barking (Essex), sob a direção da abadessa Elfgiva. (...), o fato é que a Tapeçaria de Bayeux, com seus 69
metros de comprimento, cerca de 50 cm de largura e 58 cenas, narra a história da conquista normanda da
Inglaterra em 1066 (sob o ponto de vista normando), e representa magnificamente muitas cenas da vida cotidiana
nobre do final do século XI, além da derrota anglo-saxã das forças de Haroldo II, rei da Inglaterra (1066) na
batalha de Hastings. COSTA, Ricardo da. Tapeçaria de Bayeux (c. 1070-1080) Disponível em:
<http://www.ricardocosta.com/tapecaria-de-bayeux-c-1070-1080#footnote1_wqucb7l>. Acesso em: 2 nov.
2013.
29
No final do século XV, novos personagens compõem o cenário político, com o
surgimento do capitalismo, dando início à Idade Moderna. A Idade Média, no seu desenrolar
em torno de 1.000 anos, teve também a sua importância, a ponto de não ser considerada
unicamente com a denominação de Idade das Trevas, sendo importante enfatizar que:
Houve um pensamento estético medieval, diferente do dos séculos precedentes e dos
séculos sucessivos, e para além da recorrência constante de termos e de fórmulas
quase canônicas. Esse pensamento não foi monolítico e diferenciou-se no decorrer
do tempo. De uma estética pitagórica do número, que regia a desordem bárbara,
passa-se a uma estética humanística, atenta aos valores da arte e ao acúmulo de
belezas transmitido pela antiguidade, que exprime o renascimento do mundo
carolíngio (ECO, 2012, p. 301-302).
A relação do livro com a imagem, nesse momento foi aplacada, tornando-se mais
escassa por ocasião da invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, em Mainz, Alemanha,
em 1450. A leitura de livros alcança níveis, por milhares de pessoas, se bem que, por muito
tempo, só uma pequena maioria abastada é quem tem acesso à leitura naquele momento,
como juízes, médicos, mecenas, nobres, ricos comerciantes e o clero:
A história contada com imagens foi suplantada pela história impressa; o latim
substituído pelos idiomas vernaculares; a vassalagem do pensamento trocada pela
independência do pensamento; a tutela pela maioridade. Isso porque com a
impressão e com seus desdobramentos, os leitores europeus finalmente
emanciparam-se (FISCHER, 2006, p. 190).
Com mais leitores, foi inevitável que acontecessem mudanças profundas na cultura da
Europa Ocidental, o que resultou no processo de reforma protestante com Martinho Lutero e
a alfabetização crescente e massificada nas principais cidades, como na Alemanha e na
Suécia, além da ruptura do rei Henrique VIII com a Igreja, bem como a extinção dos títulos de
terra desta.
A Renascença ou Renascimento foi um dos primeiros movimentos a se beneficiar com
a invenção da impressão gutenberguiana. Esse período tem início devido a diversos fatores,
como o desenvolvimento artístico-cultural em determinadas cidades, algumas com maior
intercâmbio de mecenas a patrocinar a arte local de seus artistas. Nessa época, prevalece um
caráter idealizado pelo Humanismo, um período de descoberta do homem e do mundo. Um
novo credo abala o monopólio da Igreja com relação à leitura que antes estava sob a sua
tutela. ―Embora não seja de maneira nenhuma uma rejeição ao conhecimento teológico – a
veneração e a simbologia cristã continuam a inspirar os artistas da Renascença, – essa
abordagem estava em desacordo com os ensinamentos da Igreja Medieval‖ (FARTHING,
2010, p. 150). Grandes clássicos como Aristóteles, Platão e Homero são redescobertos e
30
valorizados, alterando radicalmente o pensamento por meio de uma visão humanística. Na
Renascença, bem como mais adiante no período moderno, surgem diversos gravadores e
ilustradores, que eram bancados por quem pudesse pagar mais, com diversos concursos para
eleger o melhor artista a realizar esse tipo de trabalho.
Como já foi dito, as ilustrações ainda tematizavam, de maneira sutil, o universo
bíblico. Albrecht Dürer, dentre outros artistas, foi responsável por ilustrar algumas passagens
bíblicas (Apêndice 1) - (Figura 9). Devido ao protestantismo, com a revolução religiosa
provocada por Martinho Lutero, no norte da Europa, com seu Renascimento nórdico7, que
mais adiante ainda trabalha com questões bíblicas, os temas religiosos e de conduta moral
foram tratados discretamente. Alguns artistas preferiram retratar assuntos mais humanos,
como a loucura ou outros temas ligados à mitologia greco-romana.
Apesar de oferecer algumas últimas resistências, a Europa se rendia ao novo sistema.
O livro é impresso, e a própria economia de mercado favorece a sua compra. Estabeleceu-se,
portanto, uma diferença em relação à sociedade feudal, que manteve um oceano de iletrados à
mercê de uma pequena ilha de instruídos, impossibilitados de discutir qualquer dogma
religioso ou qualquer outra ideia inovadora, dentre outras informações importantes de seu
contexto, sendo, pois, excluídos da comunidade da palavra escrita, marginalizados durante
séculos. Por fim, com a capacidade de ler através da disseminação do livro impresso inicia-se,
então, o período moderno. A palavra só vai retomar seu diálogo com a imagem entre os
séculos XVII e XVIII:
Em particular, entre os séculos XVII e XVII, o status do livro passou por uma
transformação significativa, observada com mais intensidade entre a nobreza da
Europa. O gabinete do ―rei sol‖, em Versalhes, por exemplo, havia armazenado
somente manuscritos, muitas vezes com elaboradas iluminuras. Isso porque Luís
XIV (no poder desde 1643-1715) ainda considerava a impressão e a gravura apenas
um modo de familiarizar seus súditos com as obras de arte com as quais se cercava e
com as celebrações que promovia. Os livros, nesse caso manuscritos com
iluminuras, eram somente obras de arte destinadas a impressionar e impor respeito,
[...] (FARTHING, 2010, p. 232).
Esse período de transição é acompanhado de diversas técnicas de gravação, como a
xilogravura, a impressão em metal e água-forte. Essas técnicas vão garantir o contato da
imagem com a palavra. Até então eram poucas as técnicas de gravura que podiam se aliar ao
invento de Gutenberg.
7 O Renascimento nórdico foi moldado por outros dois elementos importantes: a difusão da gravura e a Reforma
Protestante. A gravação foi invenção alemã atribuída a Johannes Gutenberg e era usada em várias cidades
pioneiras do país. O desenvolvimento de imagens impressas foi uma dádiva para os artistas, que agora podiam
vender suas próprias gravações em mercados e feiras e, no processo, construir uma reputação. [...] Por outro
lado, os artistas que não podiam garantir a disponibilidade imediata de gravuras de suas obras corriam o risco de
prejudicar sua carreira (FARTHING, 2010, p. 184).
31
A palavra impressa realmente entra em voga, sendo impossível voltar atrás. Tinha a
imagem como companhia, mesmo que esta fosse usada apenas como propaganda, devido à
necessidade do artista em garantir o seu sustento, ao menos para melhorar a sua venda. O
efeito disso era significativo, como se pode observar em Albrecht Dürer, que conseguiu ser
conhecido em tão pouco tempo ao divulgar seu trabalho. ―As gravuras ajudaram a estabelecer
a reputação internacional do artista e a revolucionar as ilustrações de livros. O sucesso das
obras deram a Dürer uma fonte de renda que durou pelo resto de sua vida‖ (FARTHING, 2010,
p. 187). Com isso, a divulgação da palavra não ficou alienada das outras artes com a
visualidade das diversas técnicas de gravuras, ao menos em relação aos grandes gravuristas, já
que, quanto aos pintores, ainda não era possível copiar com tamanha precisão suas obras, pois
a fotografia ainda não havia sido inventada.
Ainda na Renascença, temos como expoentes Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci,
Rafael Sanzio e Michelangelo Buonarroti. Naquele período, a perspectiva estava bastante
desenvolvida, com o trabalho De Pictura8, publicação de Leo Battista Alberti considerada o
primeiro estudo científico acerca da arte tridimensional, que também teve a contribuição do
arquiteto e escultor Brunelleschi9.
A primavera e O nascimento de Vênus10
tiveram como fonte obras literárias clássicas e
contemporâneas do pintor, principalmente Pierfrancesco, Poliziano, bem como Horário,
Ovídio. No entanto, ―Acredita-se, quase unicamente no universo de estudiosos de arte, que
fontes literárias relativas aos quadros A primavera e O nascimento de Vênus11
provêm de
Lorenzo Pierfrancesco‖ (MENDONÇA, 2012, p. 85). O racionalismo como a questão da
perspectiva em sua obra é atenuado em detrimento ao ideal de beleza, com destaque para o
retrato.
8 Leon Battista Alberti publica em 1435, o De Pictura, tratado que sistematiza conhecimentos, modus operandi
dos seus contemporâneos e enfatizando a secularidade da arte faz a apologia da proporção e harmonia (mesura).
Giorgio Vasari estabelece para a arte um universo transdisciplinar formada por zelo, estudo, imitação
conhecimento, ilusão e ciência. Informado pela proximidade entre ciência e técnica encetada por Filippo
Brunelleschi (1377-1446), seu contemporâneo, que na exploração das leis da visão descobre o método
perspéctico, ao ensaiar representar o Baptistério de San Giovanni e Palazzo della Signoria florentinos (PAIVA,
2012, p. 5). 9 Por volta de 1410, Filippo Brunelleschi aplicou a geometria à pintura, inventando a perspectiva geométrica
para uso dos artífices. O afresco Trindade de Masaccio está entre os primeiros exemplos existentes [...].
Brunelleschi não era letrado, ao menos no sentido dos studia humanitatis, de modo que coube a Leon Battista
Alberti sistematizar a perspectiva em seu tratado Da pintura, escrito em 1435, em latim, e traduzido por ele
próprio para o italiano no ano seguinte (KICKHÖFEL, 2011, p. 8). 10
Em O nascimento de Vênus, a perspectiva é quase inexistente, uma vez que a figura da deusa está como se
fosse impressa em um fundo cênico de pouca profundidade, dando a impressão de que a imagem é independente
do ambiente, irradiando luz própria, como colada a um cenário (MENDONÇA, 2012, p. 83). 11
O nascimento de Vênus, por exemplo, é associado a um hino homérico à Afrodite. Poliziano pode, certamente,
ter influenciado Botticelli na elaboração do concetto para o quadro, pois havia tomado o poema homérico, cujo
tema era a chegada da deusa Vênus à ilha de Chipre, como referência para o seu próprio poema (MENDONÇA,
2012, p. 85).
32
Botticelli foi possivelmente um dos primeiros artistas a empreender uma tradução
literária em imagens, ao trabalhar a obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia; ao
representar O inferno. Em sua interpretação, o inferno consiste em uma forma cônica,
mapeando o seu trajeto semelhante à de um funil, apresentando dez fossos que correspondem
à trajetória dos diversos pecadores que eram obrigados a penar e pagar os seus pecados.
Botticelli traduz também, através de sua pintura, a obra de Boccaccio, Decameron.
A Divina Comédia de Dante é, no entanto, a grande obra da Renascença mais
traduzida. Artistas como Henry Holiday, William-Adolphe Bouguereau, Gustave Doré12
são
exemplos disso e sobressai o último, ―tido como um dos maiores ilustradores d‘A Divina
Comédia, dividindo o título com Sandro Botticelli‖ ( MOTA; MURRO, 2010, p. 6).
A poética de Dante contribuíu para permitir sempre uma possibilidade de leitura,
releitura e traduções entre linguagens, como na pintura, escultura, cinema. Como tradutores
dessa obra de Dante, encontramos, ainda, ilustradores como William Blake, Helder Rocha,
Jean-Auguste Dominique Ingres, Delacroix, Ary Scheffer, e escultores, como August
Rodin,13
Jean-Baptiste Carpeaux e, um pouco adiante, o artista surrealista Salvador Dali.
Ao longo da história das artes, outros grandes ilustradores apareceram, desde a
Renascença; artistas das escolas italiana, alemã, holandesa, flamenga, francesa, inglesa,
espanhola e portuguesa. Entre eles, destacam-se por suas gravuras originais ―[...] autores
como Piranese, Dürer, Rembrandt, Callot, Goya e Hogarth, cujas linguagens poéticas se
caracterizam por seu ineditismo, sua inventividade e sua força expressiva.‖14
Artistas tão
famosos quanto os pintores, durante o período em que viveram, por vezes atuando nas duas
funções, gravador e pintor, e tantos outros como William Blake (1757-1827), esse já nas
12
Doré, um francês que se foi jovem e pobre deste mundo, era também pintor e escultor e ilustrou obras tão
distintas quanto Gargântua e Pantagruel de Rabelais e a Bíblia Sagrada, além de poemas de Tennyson, Byron,
Poe, Coleridge e Milton e contos de fadas de Perrault. CALAZANS, Ana. Gustave Doré: gravura como
literatura. Disponível em: <http://orderfromnoise.wordpress.com/2013/06/30/gustave-dore-gravura-como-
literatura/>. Acesso em: 01 jul. 2013. 13
O célebre Auguste Rodin decide representar vários personagens dantescos em uma mesma obra: As portas do
Inferno (1880-1890). Trata-se de duas portas em bronze, de onde saem de uma massa indefinida, diversos
personagens. Entre eles, encontramos novamente Ugolino e sua prole e os amantes Francesca e Paolo, que são
novamente representados na escultura O beijo.
A mais conhecida das obras de Rodin, O pensador (1903), é reproduzida em miniatura na parte superior de As
portas do Inferno. A obra também é frequentemente chamada de O poeta, pois representa o próprio Dante
Alighieri, que medita sobre a complexidade da existência. As obras podem ser vistas no interior e nos jardins do
Musée Rodin, em Paris. PASCHOLATI, Aline. Dante Alighieri, a Divina Commedia e suas influências na arte
ocidental. Disponível em: <http://joaqpinheiro.wordpress.com/2013/06/12/botticelli-inferno-de-dante/>.
Acesso em 26 de set. 2013. 14
CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO, MESTRES DA GRAVURA. COLEÇÃO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
NACIONAL. Curadoria Fernanda Terra. Disponível em: <http://www.artepadilla.com.br/gravura/images/
Brasilia/Mestres%20da%20gravura_2012_Brasilia.pdf>. Acesso em: 25 set. 2013.
33
proximidades da invenção da fotografia15
, final da Idade Moderna e início a Idade
Contemporânea, demarcada pela Revolução Francesa em 1789.
Graças ao desenvolvimento tecnológico ocorrido desde a invenção da imprensa, que
possibilitou a gravação de trabalhos dos ilustradores nos livros e na imprensa em geral, temos
hoje tais gravuras, cujos originais são pouco exibidos por motivos de conservação. Pontuamos
alguns breves casos de diálogo entre a literatura e as artes plásticas (pintura). Nesse contexto
caracterizado pela produção de livros crescente e significativa, primeiramente com a Bíblia,
muitos outros livros são produzidos através de diversos empreendimentos aplicados à
impressão.
Tendo o livro como suporte, surgem novas tentativas de diálogo entre a literatura e as
artes visuais, as primeiras transposições intersemióticas entre linguagens, a pintura e a
literatura na Renascença. Artistas como o pintor Sandro Botticelli e, ao longo dos tempos,
Domenico di Michelino, Gustave Doré, Bouguereau, William Blake, Cristóbal Rojas,
Salvador Dali, Helder Rocha e Claudio Canato interpretam A Divina Comédia de Dante
Alighieri. Botticelli ainda teve como referência na execução de uma das suas obras mais
famosas, O nascimento de Vênus, a obra Metamorfose, contos de Ovídio. Outros consideram
que essa obra representa os ideais de beleza feminina, estando baseada nas odes do poeta
renascentista florentino Poliziano ou nos sonetos de Francesco Petrarca.
Surge em seguida o Humanismo, período transitório no mundo das artes na Idade
Média e no Renascimento. Albrecht Dürer, gravador desse mesmo período da Renascença,
utiliza-se de temáticas bíblicas para compor suas obras, como a representação do Apocalipse
através da xilogravura, retratando cenas do Antigo Testamento, um forte indicativo da
temática utilizada no período anterior, Idade Média, que ainda perduraria por algum tempo.
A literatura e as artes visuais, de forma incipiente, começam então a ensaiar seus
primeiros passos. Não só a ousadia e a perícia técnica marcam as produções interativas, bem
como a palavra e a imagem por parte de seus artistas. Os diversos mecenas existentes,
banqueiros, ricos comerciantes, duques, príncipes, ou mesmo os papas, ditavam o que se
podia pintar ou não. Os artistas, financiados por esses investidores através de um alto custo,
não podiam recusar seus pedidos, que tinham como finalidade o seu próprio prestígio social,
através da produção de obras de arte. No entanto, foram esses mecenas que possibilitaram
mudança significativa com seus investimentos, concedendo uma maior liberdade de criação às
artes em geral, até então vinculadas ao poder ou controle da Igreja.
15
A fotografia foi inventada em torno de 1825, no entanto sua difusão pública acontece somente em 1839.
34
2.3 - A semiótica peirceana e o imaginário durandiano
A semiótica surgiu na Grécia antiga. No entanto, esse termo tem origem na medicina,
segundo Nöth, aí entendida como o primeiro estudo do diagnóstico dos signos das doenças. O
médico grego Galeno de Pérgamo (139 d.C - 199 d.C), por exemplo, refere-se à diagnóstica
como sendo ―a parte semiótica‖ (semeiotikós meros) da medicina (Nöth, 1995, 21). Mais
adiante, esse termo na medicina seria ressignificado para estudos dos sintomas ou
sintomatologia.
Winfried Nöth (1995), em seu trabalho Panorama da Semiótica, faz uma
retrospectiva da semiótica, desde a antiga Grécia, passando pela Idade Média, Renascimento,
Racionalismo, Empirismo, Iluminismo, culminando com a semiótica universal de Peirce.
Com relação ao surgimento da palavra semiótica16
, verifica-se variada sucessão de nomes no
decorrer da história. Alguns termos análogos à denominação continuam sendo empregados
em seus lugares de origem; é o caso da semântica e semasiologia, usados na linguística.
Outros termos foram unificados, a exemplo do termo semiologia, acabando assim a dualidade
entre este e a semiótica:
A rivalidade entre esses dois termos foi oficialmente encerrada pela Associação
Internacional de Semiótica que, em 1969, por iniciativa de Roman Jakobson, decidiu
adotar semiótica como termo geral do território de investigações nas tradições da
semiologia e da semiótica geral (NÖTH, 1995, p. 24).
Segundo Nöth, o próprio Charles Sanders Peirce, um dos fundadores da moderna
semiótica, nunca usou o termo que é empregado atualmente em inglês, semiotics:
Semiotcs, na forma plural em inglês, é de origem relativamente recente. Charles
Sanders Peirce (1839-1914) nunca a usou, preferindo o termo semeiotic ou, menos
freqüentemente, semeiotics, semiotic ou semeiotic. Charles Morris (1901-1979)
também usou a forma singular semiotic. Plural semiotcs foi adotado em analogia,
como as demais formas plurais que, em inglês, denominam ciências, como
linguistics, semantics, mathematics ou physics. Um dos primeiros usos dessa forma
apareceu em 1964 como título de uma obra organizada por T. Sebeok et al.,
Aproaches to semiotics (NÖTH, 1995, p. 22).
16
A semiótica como teoria geral dos signos teve várias denominações no decorrer da história da filosofia. A
etimologia do termo remete ao grego semeîon, que significa ―signo‖, e sêma, que pode ser traduzido por ―sinal‖
ou também ―signo‖. Semio -, uma transliteração latinizada da forma grega semeîo -, e os radicais parentes,
sema(t) - e seman -, têm sido a base morfológica para várias derivações de vocábulos que dão nome às Ciências
semióticas. Além das formas semeiotica e semeiologia, já mencionadas, houve precursores rivais terminológicos
da semiótica, tais como, semiologia, semântica, sematologia, semasiologia, semologia, além dos termos usados
por Lady Welby: sensifics e significs (idem, ibidem).
35
A interpretação do signo, para os antigos, não se restringia à questão de ordem médica;
eles também acreditavam na linguagem como uma forma simbólica ou uma categoria sígnica.
O conceito de signo se constitui, inicialmente, a partir das questões da língua trabalhadas por
Saussure e, principalmente, pelos fundamentos epistemológicos de Charles Sanders Peirce,
nos idos entre o final do século XIX e o início do século XX.
Ferdinand de Saussure dedicou-se a estudar questões relativas à língua, levando em
conta também os diferentes sistemas de signos. Saussure diz que: ―A língua é um sistema de
signos que exprimem ideias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos e
mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares etc.‖ (SAUSSURE,
1995, p. 24).
Entre os princípios que propôs, Saussure cria o famoso diagrama diático, entre o
significado/significante; de um lado, os sons (imagem acústica); de outro, o conceito. Dessa
relação significado/significante, Saussure estabelece a arbitrariedade do signo. Segundo ele,
―O laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por
signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer
mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário‖ (SAUSSURE, 1995, p. 81).
Charles Sanders Peirce, ao contrário de Saussurre, não trabalhou apenas o signo
verbal. Ele preocupou-se com uma teoria geral, em que a própria língua estaria contida nesta
teoria. Portanto, tudo que tenha um significado pode ser um signo17
; não só o contexto é
importante, como também o é a leitura que faço do mundo. Charles Sanders Peirce diz que:
―Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um objeto ao
qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico, transformando-se o interpretante por
sua vez, em um signo, e assim sucessivamente ad infinitum‖ (PEIRCE, 2003, p. 74).
Seu conceito refere-se a toda e qualquer representação de algo, seja mental ou física, e
que ocorre de forma triádica. A representação gráfica da tríade peirciana é apresentada desta
forma:
17
Para Peirce, um signo ―é algo que está no lugar de alguma coisa para alguém, em alguma relação ou alguma
qualidade‖. O mérito dessa definição é mostrar que um signo mantém uma relação solidária entre pelo menos
três polos (e não apenas dois, como em Saussure): a face perceptível do signo, ―representamen‖, ou significante;
o que ele representa, ―objeto‖ ou referente; e o que significa, ―interpretante‖ ou significado. Essa triangulação
também representa bem a dinâmica de qualquer signo como processo semiótico, cuja significação depende do
contexto de seu aparecimento, assim como da expectativa de seu receptor (JOLY, 1996, p. 33).
36
Signo
Objeto Interpretante
Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud
JOLY, 2008, p. 33).
Lúcia Santaella, em sua obra Assinatura das coisas, esclarece sobre o aspecto
ontológico do signo, que seria a assinatura de todas as coisas que nos rodeiam, sejam essas
abstratas ou reais, e que o signo, por não ser puro, pode variar segundo categorias de primeira,
segunda e terceiridade, distribuídos em três principais tipos de signos: ícones, índices e
símbolos18
. Essa classificação é importante para a interpretação do que seja imagem, sua
variação e processamento.
O conceito de Peirce acerca da imagem não é somente visual, mas também de um
signo icônico (analógico propriamente dito), que também pode ser um signo plástico (cor,
forma, fundo, textura, composição, perspectiva), ou ainda signo linguístico (linguagem
verbal). Portanto, essa conceituação abrange imagens visuais, mentais, virtuais, que possuam,
de alguma maneira, algo semelhante com outra coisa, uma representação, seja com muita
semelhança ou não. Tal heterogeneidade sígnica da imagem deve-se ao fato de que o signo
icônico também não pode fugir de uma questão intrínseca do signo, que é a sua relação
triádica: signo em si, objeto e interpretante. Imagem é algo que tem semelhança com outra
coisa, podendo ser uma qualidade (ícone), um traço (índice) ou ainda uma convenção
(símbolo).
18
Ícones – signo que se assemelha àquilo que significa, da forma como a fotografia se assemelha ao objeto
fotografado; o ícone denota, em virtude de certas características que lhe são próprias.
Índices – signo cujo significado se esclarece mediante efeitos que seu objeto nele produz, como a sombra pode
ser um ―indício‖ da posição do Sol; o indicador é sinal que se refere ao objeto que denota em virtude do fato de
que é realmente afetado pelo objeto.
Símbolos – signo que se associa a objetos graças a convenções especiais, tal como se dá com as palavras; o
símbolo é o signo que se transforma em signo porque com tal é entendido (PEIRCE, 1975, p. 27).
37
O ponto de encontro entre as diversas significações do termo imagem, supomos que
seja o de analogia, semelhança. Imagem é, antes de tudo, algo que tem alguma semelhança
com outra coisa. Não devemos esquecer que imagem é uma representação e, como tal, se
essas representações são assimiladas entre indivíduos (receptores e produtores), é porque
existe certa convenção em comum entre eles. A teoria peirceana possibilita-nos apreender,
através do esquema triádico, as dimensões icônica, indicial e simbólica, a complexidade e o
poder de comunicação da imagem.
A concepção peirceana preconiza que todo signo está apto a produzir novos signos
infinitamente. Há predisposição do interpretante para gerar a ação de interpretações como
algo latente do signo, algo premeditado, mesmo que este ainda não tenha alcançado o seu
devir. A esse respeito, Santaella diz que:
O interpretante não é ainda o produto de uma pluralidade de atos interpretativos, ou
melhor, não é uma generalização de ocorrências empíricas de interpretação, mas é
um conteúdo objetivo do próprio signo. O devir do interpretante é, pois, um efeito
do próprio signo como tal e, portanto, depende do ser do signo e não apenas e
exclusivamente de um ato de interpretação subjetivo (SANTAELLA, 1995, p. 4).
Essa noção de interpretante faz soar como algo independente de tudo, algo com poder
de autossuficiência. Porém, Santaella esclarece que o interpretante também está sujeito a
interpretações variadas, como os atos interpretativos particulares. A interpretação de um signo
por uma pessoa, no entanto, é primeiramente uma atitude de contemplação, alerta e
observação do interpretante ou interpretantes que o signo é capaz de produzir. Santaella assim
conclui sobre a natureza sígnica do interpretante:
Todo interpretante é um signo, assim como todo signo é um interpretante. Note-se,
porém, que não há nenhuma circularidade nisso, uma vez que aquilo que
efetivamente define o processo de representação não são os substantivos (objeto-
signo-interpretante), mas as relações diferenciais de implicação e determinação entre
eles. Numa semiose genuína, esses três elementos têm natureza sígnica. O primeiro
se chama signo porque representa o objeto; o segundo se chama objeto porque
determina o signo; o terceiro se chama interpretante porque é determinado
imediatamente pelo signo e imediatamente pelo objeto (SANTAELLA, 1995, p. 4).
A tríade peirceana aplicada na análise de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães
Rosa, ajuda a perceber que o romance, ao ser considerado como signo em si ou o signo
propriamente dito, remete para o objeto que o determinou, isto é, o sertão contendo também a
representação do feminino, que está por sua vez representada na obra Grande Sertão:
38
Veredas, dentre tantos recortes possíveis de representação, gera um interpretante, que são as
fotos. Vejamos:
Grande Sertão: Veredas
O signo propriamente dito
Objeto Interpretante
Sertão/Presença do Feminino A série fotográfica: A João Guimarães Rosa
Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud
JOLY, 2008, p. 33).
Porém, se deslocarmos a série fotográfica para a posição do signo em si, o romance
passa a ser o objeto do signo e nossa leitura acadêmica dele toma o lugar do interpretante,
como uma atualização realmente produzida. Importante observar que a ação do signo
produzida é um processo contínuo e relacional, em que todos os componentes têm a natureza
sígnica. Vejamos:
O ensaio fotográfico: A João Guimarães Rosa
O signo propriamente dito
Objeto Interpretante
O romance: Grande Sertão: Veredas
A leitura acadêmica (tese)
Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud
JOLY, 2008, p. 33).
39
Em síntese, a teoria peirceana possibilita perceber o complexo jogo comunicacional da
imagem através do ciclo triádico: icônico, indicial e simbólico, ou ainda, como semelhança,
traço e convenção. No que se refere ao interpretante, o entendimento desse elemento é
primordial para compreender o conceito do signo em Charles S. Peirce, pois o interpretante é
responsável por estabelecer a relação de terceiridade do signo, ―que caracteriza a semiose e
garante a indefinição continuada desta. Embora estejam conectados por uma lógica de
determinações e sucessivas substituições, o objeto, o signo e o interpretante são irredutíveis‖
(SANTOS, 2009, p. 44). A representação peirciana comunga com a noção de que todo signo
tem a possibilidade de se reverberar em signo e, assim, sucessivamente. Assim como a obra
rosiana, que sempre remete a novas possibilidades de leitura, constituindo um signo em
constante rotação.
2.4 - Tradução intersemiótica
A fotógrafa Maureen Bisilliat expressa em seu trabalho, em linguagem não verbal, o
que o romancista João Guimarães Rosa expressou em linguagem verbal. Por sua vez o leitor,
analista da obra, essa terceira pessoa, tenta entender essa dinâmica sígnica, toda essa
representação em uma outra representação, o que já foi esclarecido no devir interpretante do
signo. Trata-se, portanto, de um trabalho de tradução entre linguagens.
O linguista e ensaísta russo, naturalizado norte-americano, Roman Jakobson (1969),
em seu ensaio Aspectos linguísticos da tradução, apresenta três possibilidades da tradução do
signo: a primeira seria a tradução intralingual, a segunda a tradução interlingual e a terceira a
tradução intersemiótica:
A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos
signos verbais por meio de outros signos da mesma língua.
A tradução interlingual ou tradução propriamante dita consiste na interpretação dos
signos verbais por meio de alguma outra língua.
A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos
verbais por meio de sistemas de signos não-verbais (JAKOBSON, 1969, p. 64-65).
Analisando as formulações dessas três espécies de tradução propostas por Jakobson,
Philadelpho Menezes (s/d), em seu trabalho A tradução intersemótica na fronteira das
linguagens, discute algumas questões acerca do emprego do termo ―tradução‖. Afirma que,
em geral, o termo tradução encontra-se historicamente relacionado com o tipo de tradução
entre línguas diferentes, denominado de ―tradução interlingual‖; no entanto, esclarece que a
―tradução intralingal‖, apresentando-se como sendo uma das traduções em Jakobson, na
verdade,
40
faria parte de um pensamento e do conhecimento mais amplo sobre a linguagem e a
formação do pensamento e do conhecimento. Isto porque, a rigor, não existiria um
processo tradutório literal na versão intralingual, mas sim um processo de
conhecimento que se dá por via da reelaboração constante do signo verbal.[...] A
tradução intralingual é, dessa maneira, outro nome para uma operação comum que
efetuamos todo instante na própria elaboração do pensamento conceitual e que, em
proporções maiores, coincide com o próprio processo de conhecimento (MENEZES,
s/d, p. 3).
No referido ensaio, Philadelpho Menezes também enfatiza que o conceito de tradução
intersemiótica tem um campo demasiadamente vasto e que, devido a isso, pode até ser
confundido com outros processos. O próprio Jakobson já admitia que o processo de tradução
é muito problemático, pois, em certos momentos, ―a prática e a teoria da tradução abundam
em problemas complexos que, de quando em quando, fazem-se tentativas de cortar o nó
górdio, proclamando o dogma da impossibilidade da tradução‖ (JAKOBSON, 1969, p. 66).
Menezes, em discussão preliminar sobre o exercício de transposição de uma
linguagem para outra – a tradução intersemiótica –, afirma que há alguns casos de passagens
de um suporte expressivo para outro. A forma, no entanto, não se modifica, isto é, a mera
passagem entre os meios não garantiria o acionamento do processo de criação, que conferiria
um novo status à mensagem traduzida. Uma obra literária transposta para uma linguagem
como ―o vídeo [...] deixaria, segundo esse entendimento, de ser um soneto verbal para
consistir em algo novo pela simples recolocação em outro meio ou veículo, ainda quando
nada se modifica em sua forma‖ (MENEZES, s/d, p. 3).
Julio Plaza discute inicialmente em sua obra a questão da historicidade da tradução,
que ele chama história sincrônica, uma forma de transmissão da história como forma plástica
mais adequada ―ao projeto artístico e, por isso mesmo, à tradução poética‖ (PLAZA, 2001, p.
2). O termo tradução traz em sua origem a ideia de traição, devido à capacidade dada ao
tradutor de fazer uma nova versão através da recriação do original. Ao transpor um sistema de
signos para outro, o artista deixa transparecer a sua própria visão de mundo e não pode fugir
do contexto no qual está inserido. À medida que essa tradução consiga atingir mudanças
significativas, trata-se de um processo de recriação e não apenas repetição, e isso se deve
muito à experiência de cada artista tradutor. São essas experiências resultantes de outras
anteriores e da necessidade de informações peculiares acerca das desigualdades existentes
entre a linguagem verbal e a não verbal. Plaza esclarece que:
A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com
fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre
seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-tempo onde
se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos (PLAZA, 2001,
p. 1).
41
Plaza adverte acerca da operação criativa, trânsito criativo entre as linguagens, e de
modo algum poderia ser caracterizado como a tradução fiel do original. No entanto, admite
que uma tradução poética só se realiza de forma criativa.
Na passagem de um sistema de signos para outro, o artista deixa vestígios de sua visão
de mundo e de seu contexto, experiência resultante de outras experiências anteriores, bem
como da própria obra, na medida em que deixa resquícios seus e da obra traduzida nesse
novo trabalho. O processo é caracterizado por recriação criativa, devido a conseguir obter
mudanças significativas neste novo signo com relação ao anterior. Ainda nesse contexto,
Décio Pignatari esclarece que:
A tradução, embora seja transparente, pois que não oculta o original nem lhe rouba a
luz. Não obstante, todo tradutor tem o desejo secreto de superação do original, que
se manifesta em termos de complementação com ele, alargando os seus sentidos
e/ou tocando o original um ponto tangencial do seu significado, para depois, de
acordo com a lei de fidelidade na liberdade, continuar a seguir o seu próprio
caminho, que seria o da tradução criativa (PIGNATARI apud PLAZA, 2001, p. 30).
Ainda sobre a tradução, tanto Plaza como Octavio Paz e Jakobson relativizam a
questão da intraduziblidade da obra poética. Seus conceitos passam por caminhos diversos,
mas acabam tangenciando em um ponto, em que só é possível a transposição criativa:
―...transposição de uma forma poética a outra – transposição interlingual – ou finalmente,
transposição intersemiótica – de um sistema de signos para outro (JAKOBSON apud PLAZA,
2001, p. 26).
Plaza, ao analisar a tradução intersemiótica como intercurso dos sentidos, verifica a
diferenciação desta em relação às outras traduções, enfatizando a relevância dos meios,
sentidos e códigos. Uma vez que a tradução intersemiótica lida com diferentes linguagens, é
notório que, nessa passagem, ocorre um certo desequilíbrio dos elementos expressivos,
necessitando portanto de uma nova arrumação, redefinição de especificidades inerente à
demanda de cada nova linguagem.
Marshall McLuhan, em seu trabalho intitulado Os meios de comunicação como
extensão do homem, diz que o meio é a mensagem. Quando traduzimos de um sistema de
códigos para outros, necessariamente ocorrem mudanças em nossa percepção. Como cada
meio tem uma característica peculiar, existiria uma mudança da forma de leitura. Os sentidos
tátil, olfativo, gustativo, auditivo e visual são ativados de maneira diferenciada para atender a
cada demanda. Amplia-se um sentido em detrimento de outro. McLuhan diz que: ―O meio é a
mensagem, porque é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e
associações humanas‖ (MCLUHAN, 1995, p. 22).
42
Contextualizando o conceito de tradução em seu trabalho, Julio Plaza (2001) afirma
que: ―A arte não se produz no vazio. Nenhum artista é independente de precedentes e
modelos. Na realidade, a história, mais de que simples sucessão de estados reais, é parte
integrante da realidade humana‖ (PLAZA, 2001, p. 2). A tradução, por sua vez, assim como
uma descoberta, está interligada às várias experiências anteriores. O passado não é uma mera
lembrança, mas um dado que sobrevive na realização artística do presente.
Para a semiótica peirceana, o conceito do signo da tradução, como tudo em Peirce,
também está dividido em sua famosa relação triádica: ícone, índice e símbolo. Como já foi
comentado, o signo não é uma entidade estática, mas um processo em constante devir, signo
gerando signo. Com esse conceito da imagem como signo, alguns aspectos se destacam acerca
do que Peirce concebe como tradução, segundo Julio Plaza:
Por seu caráter de transmutação de signo em signo, qualquer pensamento é
necessariamente tradução. Quando pensamos, traduzimos aquilo que temos presente
à consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções (que, aliás, já são signos
ou quase signos) em outras representações que também servem como signos. Todo
pensamento é tradução de outro pensamento, pois qualquer pensamento requer ter
havido outro pensamento para o qual ele funciona como interpretante (PLAZA,
2001, p. 18).
Em uma época na qual as linguagens verbal e não verbal dialogam cada vez mais
mediante a proliferação das novas tecnologias, gerando uma linguagem híbrida, passível de
várias interpretações, as artes têm se alterado substancialmente. Para o entendimento desse
fenômeno de miscigenação das linguagens, a tradução intersemiótica possibilita a
compreensão dessas passagens; ao mesclar vários suportes, criam-se alternativas de
expressão, complexifica-se a linguagem, geram-se múltiplos sentidos.
2.5 – O imaginário
O termo imaginário é de difícil definição, em virtude de suas múltiplas acepções, seja
no senso comum ou através de alguns teóricos como Jean-Paul Sartre e Jacques Lacan. Seu
emprego é bem diverso das ideias de Gilbert Durand, Gaston Bachelard, Jung, que
consideramos os mais relevantes desse somatório de disciplinas quanto ao seu surgimento.
Portanto, o imaginário nasce de uma interdisciplinaridade de grandes mestres. Sua riqueza de
definições deve-se a esse arsenal de tantas contribuições oriundas das mais diversos universos
acadêmicos que o adotaram.
43
O surgimento das ideias acerca do imaginário durandiano ocorre com o Círculo de
Eranos, em torno de 1933, na cidade de Ascona, Suíça, tendo como catalizador a psicologia
inerente às reminiscências arquetípicas, as imagens primeiras que povoam o pensamento
humano, estudadas por Karl Gustav Jung, imagens essas denominadas de inconsciente
coletivo, além da psicologia analítica de Jung. No mesmo contexto de entendimento de
imaginário, destaca-se a concepção de imaginação poética e científica do filósofo e poeta
Gaston Bachelard, além da sociologia de Edgar Morin e da história da religião de Mircea
Eliade. De tal plêiade constam diversos outros cientistas, chegando a reunir uma média de
trinta componentes que expunham diversos pontos em comum, compartilhando-os. Dentre
outros temas, além da psicologia analítica, vamos encontar a biologia, a física, a religião, a
arte, a fenomenologia, a mitologia, bem como os temas abordados por Gilbert Durand,
relacionados à arquetipologia geral e à hermenêutica dos símbolos.
Dentre tantas definições possíveis, adota-se a de imaginário como sendo ―o conjunto
de relações de imagens que constituem o capital pensado do Homo sapiens – o grande
denominador fundamental onde vêm se arrumar todos os precedimentos do espírito humano‖
(DURAND, 2002, p. 18).
Os estudos acerca do imaginário se multiplicam e aprofundam devido à contribuição
de diversos teóricos, baseados em Gilbert Durand, como Jean-Jacques Wunenburger (2007),
que define pertinentemente o significado de imaginário como um conjunto de produções,
mentais ou materializadas em obras com base em ―imagens visuais (quadro, desenho,
fotografia) e linguísticas (metáfora, símbolo, relato), formando conjuntos coerentes e
dinâmicos, referentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de sentidos próprios e
figurados‖ (WUNENBURGER, 2007, p. 11). Com a tese As estruturas antropológicas do
Imaginário, de Gilbert Durand (2002), esse autor retoma as ideias de Gaston Bachelard,
demonstrando que as imagens obedecem a uma lógica, primeiramente no plano psíquico, e em
seguida, no plano da cultura.
A concepção de imaginário, como já foi dito, devido à plasticidade de sua
interpretação ao longo da história, nem sempre converge para um mesmo significado de
interpretação; pelo contrário, ―o conjunto das ciências humanas ofereceu contribuições, com
frequência na desordem e na ignorância de toda complementaridade interdisciplinar‖
(WUNENBURGER, 2007, p. 27). Diversos saberes propiciaram métodos de análise muitas
vezes parciais. É, portanto, com Gilbert Durand que essas concepções tendem a ter uma
melhor arrumação, enfatizando-se ―que, longe de ser um conjunto anárquico, caótico, feito de
44
associações heteróclitas de imagens, obedece a uma estrutura e conhece uma história marcada
por um jogo sutil de constantes e variações no tempo‖ (WUNENBURGER, 2007, p. 27).
Para um melhor direcionamento das questões desta pesquisa, adentramos em algumas
questões que acrescentam subsídios ao mundo das palavras e sua relação com o ao universo
das imagens visuais.
2.5.1 - O imaginário e as relações icônico-verbais
Durand (2004), em suas análises, observa que a sociedade ocidental tem uma
concepção de mundo em que as palavras são separadas das imagens, em oposição aos
orientais, com suas escritas ideogramatizadas. Como nos chineses, japoneses, ou em culturas
mais distantes como a dos egípcios, que apresentavam os hieróglifos, uma forma de escrita
pictural. Devido a isso, por diversos contextos na história ocidental, as ideias do imaginário
quase sempre foram negadas.
Em diversos momentos ao longo da história existiram os ―iconoclastas‖ – Durand
(2004), aqueles povos que abominam as imagens, a ponto de destruí-las ou ao menos evitá-las
por desconfiança, fato ocorrido principalmente pela visão unilateral e por vezes atrelada a
questões de ordem religiosa, como no caso de organizações fundamentalistas que perseguiam
outras com a finalidade de destruir suas imagens sacras. Esses preconceitos não são somente
advindos das interpretações de livros sagrados, mas, sobretudo, da concepção cartesiana,
como no Iluminismo. Muito antes, já na Grécia antiga, os filósofos como Platão temiam a
utilização das imagens, condenando-as pelo aspecto da falsidade.
Na Idade Média, novamente tais ideias são perpetuadas, dessa vez com o racionalismo
medieval, a escolástica e com as concepções aristotélicas. É com Descartes que essa
separação é ainda mais acentuada, devido à valorização dos conceitos físicos e matemáticos.
Em tais teorias, o imaginário fica cada vez mais subjugado ao mundo das fantasias, sonhos e
irracionalidade, só conseguindo ressurgir no Romantismo, no Simbolismo e principalmente,
com as ideias acerca do inconsciente, com o Surrealismo.
Em outra possibilidade de relação ou mesmo dessa difícil adequação entre palavra e
imagem, há um complexo jogo de representação vinculado aos conceitos de imaginário.
Acredita-se que por não estarem vinculadas aos mesmos suportes, uma pode apresentar uma
ordem linguística, outras uma ordem visual, de modo a compor uma textura verbal e icônica
tão tênue, mas com características particulares a cada meio, como já foi abordado pela
neurociência. Wunenburger diz:
45
No plano neurobiológico, não é possível excluir certa bipolaridade na atividade
mental entre as funções linguísticas, que repousam na análise abstrata (atribuída ao
lado esquerdo do cérebro), e a visualidade, que abrange atividades intuitivas
(sobretudo associadas ao lado direito do cérebro) (WUNENBURGER, 2007, p. 28).
Paradoxalmente, a proliferação das imagens técnicas de forma exacerbada ocorre no
Ocidente através de diversos mecanismos: vídeo, holografia, e também mediante a fotografia,
tida como um dos primeiros artefatos técnicos da era moderna a criar imagem com uma
precisão de semelhança nunca antes vista, atuando de forma bastante ―perversa‖ (Durand,
2004); imagens que na sua maioria tendem a uma narcotização do pensamento, muito longe
de se intertextualizarem com outros elementos a que estão conjugadas, destes elas se separam
cada vez mais.
Um dos mais fecundos caminhos de criatividade do imaginário, desde a Antiguidade
grega, passa precisamente pela tradução de um registro ao outro. A fórmula de Horácio
segundo a qual a poesia se assemelha à pintura (Ut pictura poesis) inspira uma tradição
estética de complementaridade verbo-icônica.
2.6 - Algumas considerações acerca das relações entre o verbal e o não verbal
As imagens e as palavras possuem outras diferenças, como a questão da cognição, o
ato ou processo que temos relacionado ao conhecimento. Os dois hemisférios cerebrais
operam de diferentes maneiras com relação às linguagens associadas às habilidades
específicas. A percepção do não verbal, como as imagens e tudo que compreende o universo
da visualidade, está relacionada com o lado direito; já as habilidades específicas associadas ao
verbal, à escrita e à fala, se situam no lado esquerdo.
De mesmo modo, a capacidade de memória varia no contexto das informações
imagéticas ou linguísticas. As imagens são recebidas mais rapidamente do que os
textos, elas possuem um maior valor de atenção, e sua informação permanece
durante mais tempo no cérebro. Somos capazes de memorizar descrições de objetos
a partir de imagens do que a partir de palavras. Além disso, memorizamos com mais
facilidade palavras que designam objetos concretos do que palavras que designam
conceitos abstratos (NÖTH apud SANTAELLA, 2012, p. 109).
Interdisciplinaridade, equilíbrio atuando de modo complementar e em conjunto, é o
que sugerem os cientistas acerca dessa relação. No entanto, cada hemisfério opera de maneira
46
independente um do outro, apesar da sincronia possível, como na questão do movimento do
corpo. De modo desigual, no modo como os hemisférios operam os diversos padrões de
estímulos sensoriais. Com as sugestões dadas pelo semioticista alemão Winfred Nöth (2012),
em face dos aspectos distintos apresentados, podemos compará-las às relações tênues entre a
palavra e a imagem, quando ambos são justapostas.
Segundo o neurocientista Roberto Lent (2013), com a leitura das palavras existe no
cérebro uma extensão das áreas ativadas por esse processo; ―desse modo, em certo sentido,
‗melhora‘ o funcionamento do cérebro, pois especifica a rede de áreas visuais e linguísticas,
habilitando-as a compreender o significado dos símbolos da escrita‖19
, e outra parte cerebral
envolvida, por sua vez, com outros aspectos específicos da visão. Palavras e imagens visuais
possibilitam uma maior variedade de ativação em diferentes pontos dos hemisférios cerebrais,
levando a crer em um uso mais expandido do funcionamento do cérebro. Ocorre então uma
mudança significativa, pois o obriga a trabalhar pontos específicos até então não utilizados.
A imagem pode ser complementar ao texto, ajudando a desvendar detalhes que só a
própria linguagem visual pode apresentar, da mesma maneira que um texto pode desvendar
quase todos os mistérios que a foto apreende. Há imagens que sobressaem em relação a um
texto, da mesma maneira que muitos textos se destacam em relação às imagens. No entanto,
em todos os casos, as imagens necessitam do verbo, de modo que autores questionaram a
autonomia da imagem.
Esse questionamento baseia-se na abertura interpretativa, que é própria da imagem.
Portanto, ela precisa ser modificada, especificada, enfim explicada por uma linguagem
verbal‖ (SANTAELLA, 2012, p. 110). A imagem não possui uma gramática particular para
que possamos descrevê-la sem o verbal, sendo, portanto, uma característica própria da
imagem a sua liberdade de interpretação. Nem sempre ―uma imagem vale mais do que mil
palavras‖; isso é bastante relativo, pois tudo vai depender do contexto em que essa imagem
está inserida: podemos interpretá-la como uma variedade enorme de possibilidades, noutras
casos quase não temos palavras para descrevê-la.
Se comparada à língua, a semântica da imagem é, de fato, polissêmica. Ela pode ter
muitos significados. Isso não significa que não existam também na língua
mensagens abertas. A poesia que o diga. Por isso, em vez de postular que a imagem
sempre necessita de um texto que indique a direção do seu significado, é melhor
entender que a modificação de que a imagem pelo seu contexto é apenas um caso
19 LENT, Roberto. Nosso grande paradoxo. Disponível em: <http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/bilhoes-de-
neuronios/nosso-grande-paradoxo>. Acesso em: 12 ago. 1913.
47
especial do fenômeno mais geral da dependência contextual de qualquer mensagem.
Quer dizer, toda mensagem precisa de um contexto para se fazer entender
(SANTAELLA, 2012, p. 110).
Dentre as relações possíveis de análise entre texto e imagem, podemos classificá-las
em: relações sintáticas20
, relações semânticas21
e relações pragmáticas22
.
As relações sintáticas podem ser por: 1) contiguidade e 2) inclusão. Por contiguidade,
palavras e imagens visuais apresentam uma grande proximidade. Isso ocorre quando as
imagens, como pinturas ou fotografias apresentadas nos jornais e revistas, apresentam
legendas, palavras vizinhas que as acompanharam e explicam. Variam através de
modalidades, como: Interferência; Correferência e Ilustração, segundo Santaella (2012). A
Interferência ocorre quando as ilustrações fotográficas ou pictóricas apresentam uma
separação espacial, como o texto que é acompanhado de uma imagem que o complementa,
mas sua localização tem um breve distanciamento, porém na mesma página. Outro tipo de
modalidade, a Contiguidade ocorre, por Correferência, quando imagem e palavra se
apresentam numa mesma página, no entanto se referem a conteúdos diferentes.
Ilustração é outra modalidade de sintaxe; ocorre quando a imagem vem logo depois da
palavra, como os quadros bíblicos ou, ainda, quando, segundo Santaella (2012), ―o texto
segue-se à imagem, por exemplo, poemas que se referem a quadros famosos. Este caso é
chamado de ekphase (poema visual)‖. A inclusão de palavras em imagens pode ser de quatro
tipos:
representação de textos em imagens, como, por exemplo, uma foto que inclui a
imagem de uma página impressa;
pictoralização das palavras, quando estas perdem seu caráter verbal, ganham em
visualidade e se tornam elementos da imagem;
inscrição, quando a imagem serve meramente como um espaço de escrita; a palavra
esta inscrita na imagem;
inscrição indicial, quando as palavras estão inscritas na imagem como indicadores
que se referem àquilo que a imagem descreve (SANTAELLA, 2012, p. 110)
As relações semânticas, por sua vez, segmentam-se em dominância, redundância,
complementaridade, discrepância ou contradição. As relações de dominância ocorrem
quando a imagem pictórica ou a palavra, uma supera a outra. A palavra pode superar uma
imagem, do mesmo modo que uma imagem pode superar um texto. No entanto, tudo depende
20
As combinações sintáticas entre texto e imagem são descritas segundo relações espaciais. 21
Do ponto de vista da semântica, a relação entre texto e imagem investiga a contribuição entre elementos
verbais e imagéticos para a contribuição de uma mensagem complexa. 22
Quando o texto é usado para dirigir a atenção do leitor para a imagem, especialmente para certas partes dela,
ou quando as imagens são usadas para dirigir a atenção do leitor para uma mensagem verbal específica, a relação
palavra e imagem é, predominantemente, pragmática.
48
da leitura de seu receptor, de seu repertório de informações em decifrar os códigos a sua
frente de modo a escolher e privilegiar uma linguagem mais perceptível em detrimento da
outra. Há casos em que uma pintura tem maior domínio sobre o texto, e vice-versa.
A redundância ocorre quando o que está escrito é a descrição exata da representação
de uma imagem. Torna-se repetitivo e óbvio, de forma denotativa acerca do que está
acontecendo. Por exemplo, uma fotografia de uma criança chorando, e em sua legenda está
escrito: A criança está chorando. No entanto, a redundância serve para reformar a
aprendizagem, a memorização de determinadas palavras, relacionando-as com a sua
representação imagética.
A complementaridade ocorre quando têm o mesmo peso e a imagem está
indissoluvelmente integrada ao texto: ―A vantagem da complementaridade de texto e imagem
é especialmente observada no caso em que conteúdos de imagem e palavra utilizam os
variados potenciais de depressão de ambas as linguagens‖ (SANTAELLA, 2012, p. 114), de
modo que o que falta em uma linguagem seja suprido pela outra. O texto comenta as imagens,
ao passo que as imagens ilustram as palavras.
A discrepância ou contradição ocorre quando imagem e palavra não combinam; há
um equívoco ou desvio nessa relação, tornando-se uma confusão entre as linguagens. O leitor
não consegue fazer uma ligação entre ambas.
As relações pragmáticas ocorrem “quando o texto é usado para dirigir a atenção do
leitor para a imagem, especialmente para partes dela, ou quando as imagens são usadas para
dirigir a atenção do leitor para uma mensagem verbal específica, a relação palavra imagem é,
predominantemente, pragmática‖ (SANTAELLA, 2012, p. 117). Acerca dessa relação,
Barthes estabelece dois tipos de referência entre texto e imagem: a) ancoragem e b) relais
(BARTHES, 1978, p. 38-41). Existe também o vínculo entre imagem e texto, que pode ser de
três maneiras: vínculo por semelhança23
, vínculo indicial24
e vínculo convencional25
.
23
Há similaridade entre texto e imagem quando o texto consegue transmitir a mesma mensagem que a imagem
(idem, p. 119). 24
a. ostensividade: quando o texto meramente nomeia a imagem, como na frase ―o novo Honda‖; b. dêixis:
quando o texto aponta para a imagem, como na frase ―esse é o novo Honda‖; c. dêixis simbólicas: quando texto e
imagem estão conectados por meio de outras indicações convencionais, tais como linhas e flechas; d. dêixis
pictóricas não verbais: quando a imagem desenha gestos ou outros índices não verbais que apontam para um
texto; e. função indicadora por contiguidade: a mera contiguidade espacial (justaposição) entre texto e imagem
serve como um índice que conecta o signo verbal com o visual [...]; f. parte para um todo: a imagem representa
apenas uma parte da mensagem transmitida pelo verbal ou vice-versa [...]; g. exemplificação: a imagem fornece
um exemplo daquilo a que o texto refere, ou vice-versa (idem, ibidem).
25 Vínculo convencional: nessa relação, ―texto e imagem relacionam-se por hábitos interpretativos já
internalizados pelo receptor, pois o vínculo convencional depende de associações habituais de ideias‖
(SANTAELLA, 2012, p. 120).
49
O vínculo de semelhança existe numa relação de redundância entre palavra e imagem;
o texto por vezes torna-se muito similar à imagem ao transmitir mensagens. Já o vínculo
indicial pode se dar de sete maneiras diferentes: a) ostensividade, b) dêixis, c) dêixis
simbólicas, d) dêixis pictóricas não verbais, e) função indicadora por contiguidade, f) parte
para o todo, g) por identificação. Existe, portanto, uma grande variedade de relações entre
palavra e imagem. Cada tipo de vínculo estabelecido obedece a uma relação sintática ou
semântica que impõe relações entre ambas.
Mas é inevitável que de cada procedimento técnico, exercido com amor e rigor, se
desprenda uma poesia específica. Mais ainda no caso da fotografia, cujo
vocabulário já participa da magia poética - a gelatina, a imagem latente, o
pancromático - e cujas operações se assimilam naturalmente às da criação poética -
a sensibilização pela luz, o banho revelador, o mistério da claridade implícita no
opaco, da sombra representada pelo translúcido - ó Mallarmé! (ANDRADE, 2013).
3 - LITERATURA E FOTOGRAFIA — DO CONFLITO À HARMONIA.
O NASCIMENTO DE UMA RELAÇÃO
A fotografia surgiu em torno de 1826, através do inventor Joseph Niépce Nicéphore,
com uma primeira foto da vista da janela do primeiro andar de sua casa em Le Grass, St. Loup
de Varenne, nas proximidades de sua cidade natal, Chalon-sur-Saône, França. No entanto,
somente nos idos de 1950, isso é divulgado mundialmente, através de historiadores norte-
americanos que descobrem essa famosa foto da tomada de sua janela.
Com a morte de Niépce, em 1833, muitos anos antes de sabermos do seu verdadeiro
inventor, o mundo descobre tal invento através de Louis-Jacques Mandé Daguerre, sócio de
Niépce. Este usurpou o título de pai da fotografia, pois adquiriu todas as informações de como
realizar tal invento de seu companheiro, obtidas através de missivas trocadas entre eles
durante bastante tempo, fato este já comprovado por pesquisadores.
Como qualquer descoberta quase sempre está ligada ―por uma série de experiências e
conhecimentos anteriores e pelas necessidades da sociedade‖ (FREUND, 1979, p. 37), a
fotografia não fugiu à regra, pois resultou de inúmeras tentativas por parte de cientistas, em
diversos países, num período de plena industrialização da sociedade burguesa.
Vários pesquisadores tentavam fixar as imagens em algum suporte, seja na Alemanha,
França, Inglaterra e até mesmo no Brasil, através de Antoine Hercule Romuald Florence,
francês naturalizado brasileiro, considerado ―o pioneiro da fotografia no Brasil‖26
. Assim
como Niépce, também conseguiu obter a fixação de imagens fotográficas em 1833, ao
registrar algumas cópias de rótulos de remédios e um diploma de marçonaria, utilizando a
urina (ácido úrico) como elemento solvente, no intuito de conseguir obter a fixação por meio
da amônia presente na urina.
A tese de que a fotografia teve múltiplas paternidades é hoje admitida pela
comunidade científica internacional. Assim como outras descobertas da ciência e da
técnica, a fotografia nasceu das investigações levadas a efeito numa época por
diferentes pesquisadores em lugares diversos. Assim como outras descobertas que
povoam a história das invenções, a fotografia também resultou de uma busca
26
KOSSOY, Boris. Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil. In: Image, vol.20, n.1. Disponível em:
<http://www.boriskossoy.com/artigos/image.pdf>. Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil>.
Acesso em: 23 agos. 2012.
51
solitária empreendida por pessoas determinadas e incansáveis, como Nièpce,
Daguerre, Fox Talbot, Bayard e Hercule Florence (KOSSOY, 2002, p. 144).
Foi também esse mesmo inventor de origem francesa, Florence, quem primeiro
utilizou o termo fotografia (photographie)27
no Brasil, quando se encontrava na Vila de São
Carlos, atual Campinas. A palavra fotografia foi empregada no Brasil cinco anos antes de sua
utilização na Europa, diferentemente da utilizada por Niépce, heliografia, que designava
escrita com a luz do sol.
Esse invento veio preencher um vazio da então sociedade burguesa, que se
consolidava e que precisava de novas descobertas para prosperar e afirmar seus ideais. Esses
foram então representados através do retrato fotográfico, cujas novas técnicas vieram
satisfazer as exigências daquela sociedade, sendo a fotografia um reflexo das exigências dessa
nova tradição e do seu gosto.
O século XIX foi o século das transformações. As cidades cresceram
desordenadamente, o homem implementou mudanças em todas as esferas da sua
vida. Sob a égide do sistema capitalista, a indústria e a nova economia destruíram
antigos laços familiares. Toda uma população desenraizada emigrou para as cidades,
procurando vender sua mão-de-obra. Novas formas de organização urbana foram
criadas com a intenção de ordenar o deslocamento de pessoas e mercadorias,
adaptando as cidades ao capital e às suas necessidades. Seguindo o modelo das
reformas de Paris, os núcleos urbanos converteram-se em sistemas homogenizados.
A lógica fria do capital passou a dar o tom dos acontecimentos e o homem, atônito,
viu o mundo lhe fugir à compreensão (COSTA; SILVA, 2004, p. 15).
Através do patrocínio do governo francês juntamente com o apoio político-científico
da Câmara dos Deputados e da Academia de Ciências, em 1839, após a morte de Niépce,
Daguerre se apropria da descoberta e lança ao mundo o invento da fotografia, o qual naquele
período era denominado de daguerriotipia, em homenagem ao próprio nome, sabendo tirar
proveito da novidade tecnológica. ―Daguerre teve apurado senso comercial e parece ter se
preparado para a apresentação do seu invento à sociedade, pois organizou apresentações
públicas do método e escreveu manuais explicativos para venda de equipamento‖ (JUCHEM,
2011, p. 3).
Desde o seu surgimento, a prática fotográfica foi acompanhada de inúmeros discursos,
uns a favor, outros contra. O primeiro embate foi com relação à obra de arte versus fotografia.
Críticos de arte, como o poeta e teórico Charles Baudelaire, viam a fotografia como algo
27
KOSSOY, Boris. Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil. In: Image, vol.20, n.1. p.13. Disponível
em:
<http://www.boriskossoy.com/artigos/image.pdf>. Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil>.
Acesso em: 23 agost. 2012.
52
meramente mecânico, objetivo e que poderia prejudicar a pintura devido à tamanha exatidão
em representar a realidade, se comparada à pintura.
Diferentemente da pintura, a fotografia não precisava de destreza para se conseguir
obter uma imagem, comparada à técnica empregada na pintura, além do fato de um retrato
para fotografia poder ser obtido em algumas horas, enquanto uma obra de um pintor poderia
levar dias, meses ou até anos para ser concluída. Essa grande interrogação por parte dos
pintores com relação ao caráter artístico da fotografia, crentes de que essa descoberta traria a
destruição do seu ofício, ocorreu em parte, principalmente em relação aos pintores de retratos
miniaturizados a óleo.
No decorrer dos anos, no entanto, o mesmo Baudelaire se rende a tal invento; suas
críticas são atenuadas, pois a fotografia não causou uma catástrofe no mundo da pintura. O
mundo artístico das artes plásticas, em geral, se rende, em parte, à fotografia, e é inevitável
também o seu contato com a literatura. Alguns estudiosos admitem em termos históricos a
relação com à fotografia, descrevendo esse primeiro momento como uma primeira fase
positiva, em que a literatura recebe com certa cordialidade a invenção fotográfica em 1839.
―Both co-existed peaceably in an expanding aesthetic universe‖28
(RAAB, 1995, p. 35). A
literatura, tendo então já uma sólida aceitação, não se preocupava com o surgimento da
fotografia, uma vez que esse novo invento não demonstrava de modo algum ameaça.
Literature was older, firmly established, and more comprehensive; the photograph,
despite its readier appeal to people of all ages, nationalities, and backgrounds, and
despite its infinite documentary and imaginative possibilities, did not contest its
superiority (RAAD, 1995, p. 35).29
O escritor Charles Lutwidge Dodgson, conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll,
que também era fotógrafo, teve essa arte bastante presente em sua vida, principalmente entre
os anos de 1855 a 1880. Tal influência o ajudou a escrever o mundo de fantasias da menina
Alice, personagem principal de sua principal obra, Alice no País das Maravilhas. Isso não era
de surpreender, pois ele era um admirador de novas tecnologias e também fascinado pela
matemática, acreditando que havia algo de misterioso na fotografia e que através dela poderia
obter o desmascaramento das aparências, apesar de acreditar na captura de um real-fantasioso,
aceitando a fotografia como algo pertencente ao mundo das artes. Segundo Gouridin, ―Caroll
ne théorise pas sur le sens de la photographie mais fait osciller celle-ci du côté de
28
Ambas coexistiam pacificamente em um universo de expansão estética. 29
A literatura era mais velha, firmemente estabelecida e mais abrangente; a fotografia, apesar de pronta, atraía
pessoas de todas as idades, nacionalidades e origens, e apesar de seu documentário infinito e possibilidades
imaginativas, não contestou a sua superioridade.
53
l‘occulte... la photographie se veut dans son univers acte de capture d‘un réel fantasmé.30
‖
(GOURIDIN, 2009, p. 2).
Dessa relação, de algum modo, a fotografia passa a ser introduzida nas obras literárias
como tema a ser explorado; não que esteja a imagem fotográfica inserida na obra, apesar de
alguns fotógrafos trabalharem em parceria com alguns escritores, no entanto ela está presente,
impregnada de algum modo, no contexto dos livros. Vamos encontrar a fotografia presente
em outros escritores desde a segunda metade do século XIX até os dias atuais, como Edgar
Alan Poe, em 1840. Ele chega a publicar um artigo sobre a invenção da fotografia,
denominado de O Daguerriótipo, técnica fotográfica empregada naquela época, declarando
que a precisão na representação por parte da fotografia é bem maior que em qualquer pintura.
Em sua obra, podemos observar que ―o escritor americano tratou de discussões sobre o
retrato, a imagem e o duplo com uma precisão reticular.‖ (OLIVEIRA, 2009, p. 85). E
também em seu conto ―O retrato Ovalar‖ (1842), já demonstrava sua preocupação com a
imagem.
Escritores como Honoré de Balzac, apesar de acreditar que a fotografia poderia
descamar sua pele, caso permitisse uma pose para um retrato. No entanto, Émile Zola,
Stendhal, Gustave Flaubert, Alexandre Dumas, Roland Barthes, Marcel Proust, e fotógrafos
como Eugene Atget, Walker Evans, Brassaï, além de artistas da fotografia e da escrita como a
fotógrafa contemporânea Sophie Calle acreditavam, de alguma maneira, na interação da
literatura com a arte fotográfica e a utilizavam. Sendo impossível negar tal relação,
demonstravam que a fotografia está impregnada em suas obras. Noutros casos, nem sempre
existe uma relação direta desses escritores com a fotografia.
As relações entre fotógrafos e escritores eram intensas, a exemplo da amizade entre o
retratista francês Nadar, no século XIX, com os escritores George Sand, Charles Baudelaire e
Jules Verne, que o encorajaram a fotografar catacumbas e os esgotos utilizando flash de
magnésio, e fotografias aéreas de Paris, através de um balão. ―[...] Nadar, encouraged by
Charles Baudelaire, George Sand and Jules Verne, among other writer friends, experimented
with cameras and lighting both underground and in the air over Paris31
‖ (RABB, 1995, p. 37).
Durante a última fase do romantismo na Europa, ―embora já demonstrasse sinais de
declínio em diversos aspectos‖ (JUCHEM, 2011, p. 5), ocorre uma preparação para uma nova
corrente literária chamada Realismo, na qual é possível presenciar uma interação maior dos
30
Carroll não teoriza sobre o significado da fotografia, mas oscila no lado do ocultismo... a fotografia vai agir no
seu mundo de captura de um real-fantasioso. 31
Nadar, incentivado por Charles Baudelaire, George Sand and Jules Verne, entre outros amigos escritores,
experimentou utilizar câmeras com iluminação nos subterrâneos e fotografias nos céus de Paris.
54
escritores com o mundo da imagem; devido a esse novo mass media, a fotografia
experimentou em pouco tempo, graças à sua popularidade, uma evolução técnica
significativa.
O período condiz com uma nova realidade artística, apesar de a fotografia comumente
ser considerada como uma ―cópia da realidade‖, o que é noção simplista; no entanto, foi essa
uma das condições que a levou a se encaixar muito bem durante esse período, não só na
literatura, como também na pintura, com a qual teve relação mais estreita. Nesse
florescimento do realismo, vamos encontrar escritores fotógrafos como Émile Zola, que não
só escreviam, mas também eram dedicados fotógrafos. Através dessa nova arte, podia
representar em sua obra literária novos aspectos de ver e representar a realidade, até então
nunca vistos a olhos desnudos.
A câmera fotográfica institui um novo consenso com relação à ―veracidade‖, ao
possibilitar observar a natureza de uma forma nunca antes vista — frações de segundo do
movimento de tudo que nos rodeia, antes impossíveis de ser captadas com o olho humano,
agora são desveladas pela fotografia.
It is not coincidental that literary realism flourished after the invention of
photography, early in France than elsewhere. As Paul Valéry observed in retrospect,
―From the moment that photography appeared, the descriptive genre began to invade
Letters.... In verse as in prose the decor and exterior aspects of life took an almost
excessive place.‖ Indeed, many novelists, such as Champfleury and Émile Zola, may
have tried emulate the camera, with its impersonal, disciplined, detailed and accurate
mirroring of surface reality in their work. Photography became a metaphor for the
veracity and even creativity of many nineteenth-century writers, and the supposedly
objective camera became a model for ways of seeing and representing the world32
(RABB, 1995, p. 38).
Com o advento da fotografia, não se tinha como negar a forma de olhar o mundo por
meio de imagens, aspecto que artistas até mesmo negavam ou odiavam, possivelmente pelo
preconceito criado por alguns críticos e escritores dentre outros artistas, embora sabendo que
de alguma maneira isso havia sido influenciado pelas imagens fotográficas. No entanto, Walt
Whitman, que admitia em sua obra ―in these Leaves [of Grass] everything is literally
32
Não é coincidência que o realismo literário floresceu após a invenção da fotografia, no início na França, do
que em outros lugares. Como observou Paul Valéry, em retrospecto, ―A partir do momento em que fotografia
apareceu, o gênero descritivo começou a invadir as Letras....Tanto em prosa como em verso a decoração e os
aspectos exteriores da vida tornou um lugar quase excessivo.‖ De fato, muitos romancistas, como Champfleury e
Émile Zola tentaram imitar a câmera, com seu espelhamento impessoal, disciplinada, detalhada e precisa da
realidade superficial em seu trabalho. Fotografia tornou-se metáfora de criatividade e veracidade até mesmo de
muitos escritores do século XIX, e a câmera supostamente objetiva tornou-se um modelo para os modos de ver e
representar o mundo.
55
photographed, nothing is poeticized, not a stop, not an inch, […]‖33
(RABB, 1995, p. 38). Essa
mesma obra teve uma de suas edições, em 1942, em parceria com as fotografias de Edward
Weston.
O escritor Marcel Proust também travou intensa relação com a fotografia, como se lê
na obra Proust e a Fotografia, escrita por Brassaï. O fotógrafo Brasaï era de origem húngara,
e seu nome verdadeiro era Gyula Halász. Naturalizado francês em 1948, além de escritor,
também se dedicou à pintura, ao desenho, à escultura e ao cinema, sendo considerado ―o
fotógrafo das noites‖ ou das noites de Paris. Conhecia vários artistas frequentadores de
diversos cafés, como Sartre, Henry Miller, Pablo Picasso, Giacometti, além de focar em suas
fotografias personagens notívagos, prostitutas, homossexuais, atores e viciados em ópio.
Brassaï interessou-se pela literatura desde a sua chegada a Paris em 1924; seu pai era
professor de literatura francesa que ministrava aulas na Sorbonne. Aprendeu a língua francesa
através da leitura das obras de Marcel Proust, apesar de não conhecê-lo pessoalmente, pois
Proust morreu dois anos antes de sua chegada à cidade. Brassaï consegue demonstrar as
interfaces da literatura proustiana com a sua arte fotográfica, como na constituição da obra Em
busca do tempo perdido:
À luz da fotografia, um novo Proust me apareceu, uma espécie de fotografia mental,
considerando seu próprio corpo como uma placa ultra-sensível que soube captar e
armazenar em sua juventude milhares de impressões e que, a partir do tempo
perdido, dedicou todo o seu tempo a revelá-las e fixá-las, tornando assim visível a
imagem latente de toda a sua vida, nessa fotografia gigantesca que constitui Em
busca do tempo perdido (BRASSAÏ, 2005, p. 16).
São várias as nuanças do mundo fotográfico percebido por Brassaï, desde as origens
da paixão ou mesmo a obsessão de Marcel Proust pela fotografia, considerando ainda o modo
de narrar fotográfico desse escritor. Brassaï consegue identificar os termos empregados pelo
escritor, suas variações ―de perspectiva, de ângulo óptico‖, dentre outras características
pertencentes ao universo fotográfico, como as ―numerosas metáforas fotográficas, as
incessantes referências ao ‗instantâneo‘, ‗a pose‘ à impressão, o clichê, ‗a câmara escura‘, ‗a
revelação‘, à fixação‖ (BRASSAÏ, 2005, p. 15).
Brassaï, ao falar das possíveis origens do interesse de Proust pelas imagens,
principalmente pelos retratos, as encontra possivelmente nas seções de apreciação de
fotografias com seu Tio Jules Amiot ou mesmo ao fato de tê-la herdado de sua mãe: ―Assim,
entre dez e doze anos de idade, Marcel e seu irmão Robert foram fotografados quatro vezes.
33
―Nestas Folhas de Relva [Leaves of Grass] tudo é literalmente fotografado, nada é poetizado, nenhuma parada,
nemhuma polegada, [...]‖.
56
Entre Paris e Illiers, a Sra. Proust parava em Chartres para uma sessão de pose.” (BRASSAÏ,
2005, p. 20).
Proust tinha como hobby mostrar aos amigos a sua coleção de fotografias e mantinha
também o interesse constante por troca de fotografias, principalmente de retratos. Sua
obsessão em adquiri-las a qualquer custo o fazia usar como estratégia uma perseguição
doentia aos donos das imagens que ele pretendia ter ou até mesmo, se preciso fosse, roubá-las.
Brassaï se identificou com o universo proustiano, nas imagens noturnas, perspectivas e
temas escolhidos, como as imagens noturnas, em que observa a beleza do luar em
Correspondance, durante a Primeira Guerra Mundial, na qual Proust, em Paris, presenciara a
escuridão das ruas, devido ao ataque eminente dos Zeppelins (Fotografias 2, 3 e 4, que
compõem a série ―Paris à noite‖).
Autor de Paris à noite e de Paris secreta, sinto certa afinidade com esse Proust
―fotógrafo noturno‖. Suas imagens de Paris à noite, se realmente estivesse munido
de uma câmera fotográfica, provavelmente mostrariam um parentesco com aquelas
que eu próprio tirei de Paris, em tempos de paz ou durante o black-out da Segunda
Guerra Mundial. Posso dizer com Proust que a Paris de 1939 a 1945, mergulhada na
escuridão, ―era tão bela e tão ameaçadora‖ quanto a Paris de 1914 a 1918.
(BRASSAÏ, 2005, p. 121-122).
(Fotografia 2) - Neblina na cidade de Paris, Brassaï, 1933.
Disponível em: <http://bestamericanart.blogspot.com.br/2010/11/brassai-gyula-halasz-1899-
1984.html>. Acesso em: 29 jul. 2012.
57
(Fotografia 3) - Madame Bijou34
. Bar de la Lune, (Fotografia 4) - Prostituta na esquina da Rue de la
Montmartre, Paris. Brassaï, 1933. Reynie com a Rue Quincampoix. Brassaï35
, 1932.
3.1 A fotografia e o movimento de vanguarda europeu: o Surrealismo
Com o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, houve o advento dos movimentos
culturais das vanguardas europeias, suas escolas e estilos: o Modernismo, em suas diversas
vertentes: Futurismo, Cubismo, Surrealismo, Dadaísmo. Nesse período de efervencência
cultural e de rupturas, constata-se a inter-relação das diversas linguagens:
O modernismo se caracterizou pela intenção radical de fundar a arte sobre as novas
bases estéticas. Pretendia-se negar a tradição pela renovação constante da expressão
artística, o que consequentemente acabou por fundar uma nova tradição: a tradição
do novo. O fotógrafo na ânsia de afirmar o novo manteve um diálogo tenso com o
seu meio de expressão, procurando superar a perspectiva com base de reprodução da
imagem (COSTA; SILVA, 2004, p. 13).
O Surrealismo36
tem seu expoente na fotografia com o parisiense Jean-Eugène-
Auguste Atget, conhecido como Eugène Atget, que retratou Paris por cerca de 25 anos,
34
Madame Bijou, também conhecida como Leahanne, era uma senhora que frequentava assiduamente os cabarés
nas noites de Paris, em Montemartre, mais precisamente o Bar de la Lune. Ganhava a vida lendo as mãos dos
homens, em troca de alimento e dinheiro, sempre ostentando diversas joias falsas, colares, anéis, pulseiras e
portando um chapéu. Por diversas vezes, foi retratada por Brassaï sempre no mesmo bar, vestindo dessa forma,
acreditando sempre na vinda do seu amor perdido há muitos anos atrás. (Figura 02) Disponível em:
<http://theoldfamiliarfaces.tumblr.com/post/3921972558/bijou-of-the-montmartre-cabarets-bar-de-la-
lune>. Acesso em: 29 jul. 2012, 35
Essa fotografia, retirada nos idos de 30, nos arredores de Les Halles, no boulevard de Sebástopol, a qual
Brassaï denominou ―Venus das esquinas‖, apresenta prostitutas em seus pontos noturnos de trabalho, compondo
uma espécie de guia alternativo da noite parisiense. (Figura 03) Disponível em:
<http://theoldfamiliarfaces.tumblr.com/post/3921972558/bijou-of-the-montmartre-cabarets-bar-de-la-
lune>. Acesso em: 29 jul. 2012.
58
ininterruptamente. Fotógrafos como Man Ray, Berenice Abbott, Walker Evans, Brassaï e
Henri Cartier-Bresson, assim como um dos fundadores e o criador dos Manifestos do
Surrealismo37
, André Breton, viam no trabalho de Eugène Atget ―o lúdico, o maravilhoso, o
desconhecido38
‖. Apesar de Atget não ser um fotógrafo engajado nessa escola, pois evitava
sempre ser considerado como um membro surrealista, todos o reconheciam como pai da
fotografia moderna e precursor e influenciador do surrealismo fotográfico.
Walter Benjamin tem como referência em seus ensaios a obra fotográfica de Eugène
Atget, como em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, ao reconhecer a
perda da aura39
através do incansável trabalho fotográfico de Eugène Atget. Com a produção
massificada da fotografia, através do advento da cópia das imagens, ocorre a dessacralização
da obra de arte. Antes, somente os iniciados podiam cultuá-la. Benjamin diz que:
Atget foi um ator que retirou a máscara, descontente com sua profissão, e tentou,
igualmente, desmascarar a realidade. (...). Com efeito: as fotos parisienses de Atget
são as precursoras da fotografia surrealista, a vanguarda do único destacamento
verdadeiramente expressivo que o surrealismo conseguiu pôr em marcha. Foi o
primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional,
especializada em retratos, durante a época da decadência. Ele saneia essa atmosfera,
purifica-a: começa a libertar o objeto de sua aura, nisso consistindo o mérito mais
incontestável da moderna escola fotográfica (BENJAMIN, 1996, p. 100 – 101).
As imagens surreais de Eugène Atget primam pelo estranhamento, desvelando o vazio
dos lugares, ruas, vielas, esquinas e becos do centro e arredores de Paris que ele conhecia tão
36
SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico em estado puro, mediante o qual se propõe exprimir,
verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento,
suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral (BRETON,
2001, p. 40). 37
Esse encontro com o inconsciente irá reger a primeira investida do Movimento Surrealista, que, através do seu
―Primeiro Manifesto‖, começa por fazer uma distinção bastante clara entro o que pertence à racionalidade e o
que pertence ao mundo do inconsciente. Para tal, os surrealistas irão se afastar da realidade, mergulhando em um
mundo até então totalmente desconhecido para o homem, no qual o fantástico e o maravilhoso se fazem
presentes. Desse modo, a razão humana perde todo o seu controle, abrindo espaço para que a imaginação, sem
nenhum tipo de freios, manifeste-se plenamente (BRAUNE, 2000, p. 29).
38 Idem, ibidem.
39 Com a fotografia, o valor de culto começa a recuar, em todas as frentes, diante do valor de exposição. Mas o
valor de culto não se entrega sem oferecer resistência. Sua última trincheira é o rosto humano. Não é por acaso
que o retrato era o principal tema das primeiras fotografias. O refúgio derradeiro valor de culto foi o culto da
saudade, consagrada aos amores ausentes ou defuntos. A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um
rosto nas antigas fotos. É o que lhes dá sua beleza melancólica e incomparável. Porém, quando o homem se
retira da fotografia, o valor de exposição supera pela primeira vez o valor de culto. O mérito inexcedível de
Atget é ter radicalizado esse processo ao fotografar as ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com
justiça, escreveu-se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Também esse local é
deserto. É fotografado por causa dos indícios que ele contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no
processo da história. Nisso a sua significação política latente. Essas fotos orientam a recepção num sentido
predeterminado. A contemplação livre lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que pressente que deve
seguir um caminho definido para se aproximar delas (BENJAMIN, 1996, p. 174).
59
bem. Suas imagens assemelham-se quase sempre a uma cidade fantasma, pois ele fazia suas
―rondas‖ fotográficas nas madrugadas, um horário não tão convencional de registro de
fotografias, evitando também as imagens idealizadas da cidade, como a representação de
monumentos famosos ou o glamour das noites parisienses.
Suas imagens quase nunca registram pessoas; no lugar dessas, os manequins, ou, como
relata Breton, ―manequins modernos40
‖, ou pessoas através das vidraças, ou bem afastadas,
numa tentativa de compor o retrato urbano da cidade, denominação atual para a ―paisagem
urbana‖, como se a própria cidade fosse objeto duma espécie de autorretrato41
. Benjamin diz:
―E nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade‖ (BENJAMIN,
1996, p. 82). (Fotografias 5 e 6).
(Fotografia 5) Vitrines com manequins masculinos, (Fotografia 6) La Rue Quincampoix,
Paris, Eugene Atget, 192542
Paris, Eugène Atget 190843
40
O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral,
de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo
próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo (BRETON, 2001, p. 30).
41 Nas cidades, tudo conspira contra a contemplação. A cidade exige de nós velocidade, instantaneidade, decisão.
Não é por acaso que a cidade fotografada encontra sua expressão mais notória em um tipo de imagem que veio a
chamar-se streetphotography, onde estes valores tornam-se aqueles que nos habituamos a esperar de uma
fotografia. De fato, nesta tensão entre o hábito, e mesmo o tédio, por um lado, e a agilidade que requer ―reflexos
rápidos‖, constrói-se esta ―afinidade eletiva‖ entre fotografia e cidade, que só fez crescer ao longo do século XX.
A cidade tornou-se o fotografável por excelência, em uma relação similar à que ocorreu entre a xilogravura e a
ruína, ou entre a aquarela e a marina.
42 Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/f64_straight_writing/2012/11/as-vitrines-de-eugene-atget-
a-cidade-o-fotografo-e-seus-simulacros.html>. Acesso em 9 mar. 2013. 43
Disponível em: <http://www.icp.org/museum/exhibitions/paris-photographs>. Acesso em 9 mar. 2013.
60
O rosto humano é suplantado pela desolação do esvaziamento da cidade, para que esta
mostrasse a sua aparência. A retirada da representação humana é inevitável, possibilitando
que a cidade seja vista como cidade, sem acobertamentos nem máscaras.
Nesse contexto, a fotografia participou de forma intensa e importante na formação
psicológica da sociedade urbana, percorrendo um mundo assombroso, revelando a
face oculta dessa sociedade, procurando um mundo infiltrado por tabus, enfim,
voltando-se para aqueles a quem a sociedade tinha virado as costas (BRAUNE,
2000, p. 18).
A figura humana, possuidora do valor do culto, é suprimida pelo retrato de Paris na
calada das manhãs. A capital francesa é exposta como o mais importante elemento, relegando
os demais a um segundo plano. A representação, não mais como valor de culto, mas como
valor de exposição. A cidade assume então a função de sujeito ao mostrar o seu ―rosto‖, e não
a face do elemento humano.
Nas fotografias de Atget, a cidade despovoada torna-se estranha para os seus
próprios habitantes, e surge uma Paris desconcertante, quase irreconhecível. Para a
sensibilidade surrealista então nascente, a cidade adquire pela primeira vez o seu
―rosto verdadeiro‖. No final da sua vida, Atget foi o contemporâneo dos surrealistas,
que logo perceberam, em sua produção, o teor de insólito e estranheza que eles
perseguiam (PARTINI, 2010, p. 97).
A partir desses movimentos na Europa, repercutindo mundo afora, é que a fotografia
vai se consolidar e obtém o caráter de arte. Em seguida, um pouco depois desse periodo
surrealista, ocorre a primeira exposição fotográfica, no ano de 1938, no MoMA, com ―a
exposição Americans Photographs‖44
em Nova Iorque. A fotografia passa a ser concebida
com o intuito de intregrar o roteiro das grandes exposições em grandes museus, atingindo
finalmente o estatuto de arte.
No entanto, algumas questões ainda estavam bem imbricadas no universo fotográfico,
como a noção de ―realismo fotográfico‖, ainda que fosse valorizado o seu caráter de propiciar
a libertação da pintura, obrigando-a a trilhar novos caminhos e deixando o lado obsessivo de
representação de semelhança das coisas que nos rodeiam. Picasso mesmo fez um paralelo da
fotografia com a cópia ao exortar a pintura a deixar essa obsessão de ―cópia‖ para a
fotografia. Isso, de certa forma, condenava a fotografia a algo que especificamente tinha por
objetivo mostrar a ―cópia do real‖, o que lhe conferia um descrédito, devido à impossibilidade
da fuga do realismo.
Por mais abstrata que seja uma fotografia, por mais que ela ―minta‖, por mais que
nela sejam adicionadas interferências de quaisquer categorias, por mais surreal que
possa vir a ser uma fotografia, ela não deixa de estar atrelada ao referencial, àquilo
44
D O B R A N S Z K Y , D i a n a . A fotografia e o Museum of Modern Art (Nova York). Disponível em:
<http://www.studium.iar.unicamp.br/24/05.html>. Acesso em 25 de julho 2013.
61
que, no exato momento em que o disparador da câmera foi acionado, estava lá –
presença incontornável –, caso contrário não haveria algo fotografado, não haveria a
fotografia. [...] Essa condição indiciária, referencial, no entanto, que é a ontologia da
fotografia, por ter sido mal interpretada e pouco compreendida, acabou por levá-la à
condição de mimese, de ―espelho da realidade‖. Essa condição mimética atribuída à
fotografia vem do inquestionável deslocamento da realidade do objeto fotografado à
película no instante em que se fotografa, de sua condição pragmática e existencial
amarrada a um instrumento mecânico, que só sobrevive em simbiose com a
realidade, o resto sendo retórica (BRAUNE, 2000, p. 11-12).
A fotografia, dessa forma, tem somente a incumbência da representação das coisas
como realmente são, ficando o exame dos aspectos metafórico e poético a cargo de outras
artes. Cabe aqui destacar, no entanto, que a fotografia sempre esteve impregnada por esse
―problema‖ desde a sua origem.
Com o modernismo, tornou-se possível o levantamento de outras questões, ao ser
percebido que a fotografia reproduz automaticamente a perspectiva, procedimento que foi
originado no Renascimento. Nesse contexto a fotografia participa de dois períodos distintos:
do mundo do Renascimento com a criação da perspectiva e da esfera cultural moderna.
Na verdade o seu diálogo era com o Renascimento, enquanto proposta existencial e
concepção de mundo. Esta é a realidade da fotografia moderna: tentativa de
superação de impasses e contradições advindos do encontro da sensibilidade
renascentista com a nossa cultura para a afirmação da estética transformadora da
modernidade (COSTA; SILVA, 2004, p. 13).
Ao fazer um registro mecânico de uma imagem em condições mais ou menos
semelhantes ao olhar humano, tal fenômeno revelou não o caráter real da visão tradicional,
mas o contrário, seu caráter de sistema, de código. ―As fotografias são tiradas, ainda hoje, em
função da visão artística clássica‖ (NEIVA; JUNIOR, 1986, p. 61).
Essa visão artística clássica deve-se ao fato de a fotografia ser oriunda da perspectiva
renascentista, pois seria a junção de dois acontecimentos: um de ordem física, através da
óptica, princípio descrito e publicado em um de seus compêndios pelo cientista italiano
Giovanni Battista Della Porta e utilizada por vários artistas, como Leonardo da Vinci e o
alemão Albrecht Dürer, e também pelo famoso pintor holandês Johannes Vermeer, mas já
conhecido há muito tempo pelos gregos e árabes, denominado de câmera escura; e outro de
ordem química, que possibilitou a concretização da imagem fotográfica pela descoberta, por
parte da química, de substâncias que reagiam à presença de luz, conhecidas como sais de
prata.
A descoberta da fotografia contribuiu para a democratização das artes por fazer parte
das vidas de todas as classes sociais, possibilitando à maioria das pessoas a posse de imagens,
como o seu próprio retrato, pois antes poucos podiam pagar pelo trabalho de um pintor. A
62
fotografia também propiciou a representação das condições subumanas de trabalho, que
reclamavam por providências, já que antes do registro fotográfico elas poderiam não ser
vistas.
No entanto, inicialmente, se a relação da fotografia com a pintura foi difícil, é de se
imaginar a sua relação com o mundo das letras, de modo que é de suma importância conhecer
os precursores desse vínculo durante o modernismo europeu. O surrealismo, já pontuado
anteriormente, será abordado no próximo tópico deste capítulo, no qual serão destacados os
primeiros artistas que estabeleceram tal diálogo.
3.2 - O Surrealismo e o diálogo estético: literatura e fotografia
É durante esse período de avanço tecnológico, com a evolução fotográfica trabalhando
em conjunto com o Surrealismo45
, que a escola tem início, em torno de 1920. ―O termo
‗surrealismo‘ surgiu em 1917, quando o poeta italiano Guillaume Apollinaire usou a
expressão para definir seu drama As mamas de Tirésias e sua poesia, atenta aos mínimos
gestos do cotidiano46
‖. Alguns estudiosos acreditam que o movimento ―distingue-se
totalmente de outras escolas contemporâneas, afastando-se completamente de todas as
tradições da expressão artística‖ (READ, 1978, p. 144). Influenciada pelas noções da
psicanálise de Freud, a literatura vai trabalhar com a fotografia e com um grau semelhante de
equivalência, a exemplo da obra Nadja, de André Breton.
Enfatizamos que a fotografia em relação à literatura possuía até então um caráter
geralmente ilustrativo, existindo ainda um aprisionamento, uma ligação denotativa da imagem
em relação à palavra, bem diferente da proposta esboçada por Breton, na qual fica evidente a
questão da independência da fotografia como arte.
De modo radical, Breton escreve num catálogo da exposição de colagens fotográficas
de Max Ernst: ―A invenção da fotografia deu um golpe mortal nos velhos modos de
expressão, tanto na pintura como na poesia, onde a escrita automática surgida no final do
45
Movimento da literatura e das belas-artes, fundado em Paris pelo poeta e crítico André Breton em 1924,
quando publicou seu Manifesto Surrealista. Foi constantemente dominado por seu criador. Cresceu fora do
movimento conhecido como Dadaísmo, um movimento artístico e literário que refletiu o protesto niilista contra
todos os aspectos da cultura ocidental. Assim como o Dadaísmo, enfatizou o papel do inconsciente na atividade
criativa, mas empregou o inconsciente psíquico mais ordenadamente e de maneira mais séria (OLIVEIRA, 2013,
p. 1). 46
AMARANTE, Dirce Waltrick do. O ―Manifesto do Surrealismo‖ completa noventa anos. Disponível em:
<http://qorpus.paginas.ufsc.br/como-e/edicao-n-012/o-manifesto-do-surrealismo-completa-noventa-anos-
dirce-waltrick-do-amarante/.>. Acesso em 25 de março de 2014.
63
século XIX é uma verdadeira fotografia do pensamento‖ (BRETON apud SOULAGES, 2010,
p. 271). No entanto, François Soulages conclui que a radicalidade empreendida por Breton
não acabou com a interação entre as linguagens tradicionais, como a pintura e a poesia:
―Notemos, entretanto, que o cadáver da pintura e o da poesia ainda estão se mexendo‖
(SOULAGES, 2010, p. 271).
Nadja é uma jovem que Breton encontra em 4 de outubro de 1926, numa de suas
andanças por Paris, passando pela Rue Lafayette, como um flâneur na concepção de Walter
Benjamim (1985), mercê do acaso, ao percorrer de forma errante diversas ruas sem paradeiro
e ficar observando a vitrine da livraria L’Humanité. Adentrando esse recinto, Breton compra o
último livro de Trótski; em seguida, a protagonista segue sua caminhada em direção à Opéra.
Ao atravessar um cruzamento. ―De repente, ainda que tivesse a uns dez passos de mim, vindo
ao sentido oposto, vejo uma moça, pobremente vestida, que também me vê, ou tinha me visto.
Vai de cabeça erguida, no contrário de todos os passantes‖ (BRETON, 2007, p. 63).
Nadja é uma figura enigmática, uma ―alma errante‖, de quem mesmo se sabe seu
nome real. Seu nome é dito pela própria jovem, que veio de Lille, uma cidade do norte da
França, para tentar a sorte em Paris:
Em Nadja de André Breton essa exposição do olhar ocorre com os protagonistas que
se deixam atravessar por milhares de formas e cores. Porém eles não são os únicos a
serem atravessados por essas imagens, o leitor percorre as páginas do livro como
quem passeia pela cidade em uma aventura. Assim, entre uma página e outra é
possível se deparar, por exemplo, com a Porta Saint-Denis, com os folhetins do
Théâtre Moderne, e com a vitrine envidraçada das lojas Camées Durs cujas
fotografias o escritor que é ao mesmo tempo autor, narrador e personagem se
empenha em estampar sempre que possível (ALMEIDA, 2011, p. 1).
Nadja, “com seus olhos de avenca”, é personagem fictícia, de quem conhecemos
somente os olhos, em palavras e foto, e cujo retrato completo não é exposto. Breton inaugura
uma nova relação entre a palavra e a imagem fotográfica. Essas por vezes se complementam;
imagens sendo substituídas por imagens. Breton tem consciência do uso das linguagens,
ficção e realidade são entrelaçadas, num jogo de palavras e fotografias as mais variadas,
descrevendo as reminiscências da cidade grande, desenhos, rabiscos e pinturas, num exercício
de pura liberdade de expressão. Trata-se de uma fotomontagem em que quatro imagens do
mesmo detalhe do rosto de Nadja são apresentadas uma abaixo da outra, com a forma
semelhante à de uma avenca, pois seus olhos e sobrancelhas arqueados dos remetem a tal
formação: folhas opostas e simétricas saindo de um caule (Fotografia 7).
64
(Fotografia 7) - Seus olhos de avenca...
Disponível em: <http://fantasiaseruditas.blogspot.com.br/2011/11/sublinhando-o-livro-nadja-de-
andre.html>. Acesso em: 05 mai. 2012.
Ainda na Europa vamos encontrar outros artistas a participarem da inter-relação
literatura e pintura, como na Rússia na pós-revolução socialista. Durante esse período, temos
como um dos líderes poéticos e propagandísticos dos ideais comunistas Vladimir Maiakóvski,
bem como o fotógrafo Alexander Rodtchenko. Eles trabalham em conjunto poema e imagem
na obra Pro eto (Sobre Isso) (Fotografias 8 e 9).
(Fotografia 8)47
Capa do (Fotografia 9)48
- Fotomontagem
Livro Pro eto de Maiakóvski
de Rodtchenko para o poema Pro
eto de Maiakóvski
47
Desenho de capa do livro Pro eto de Maiakóvski, com o retrato de Lily Brick feito por Rodtchenko.
Disponível em: <http://quemtempoe.blogspot.com.br/2011_02_01_archive.html>. Acesso em: 25 ago. 2012. 48
Fotomontagem para o poema Pro eto, de Vladimir Mayakovsky, 1923. Disponível
em:<http://www.moma.org/interactives/exhibitions/1998/rodchenko/texts/photocollage_jpg.html>. Acesso
em: 26 ago. 2012.
65
A repercussão do movimento modernista se expande mundo afora. A novidade estética
chega também ao Brasil no início do século XX como marco dessa experiência,
disseminadora de inovações artísticas, difundidas por alguns artistas e o pessoal do
movimento dos fotoclubistas49
. No entanto, esse grupo não partilha de imediato das mudanças
estéticas em voga empreendidas pelos modernistas europeus. Sua preocupação por muito
tempo era a elaboração de imagens pertencentes ao primeiro movimento fotográfico,
denominado de pictorialismo50
, iniciado no final do século XIX, cuja objetivo maior era uma
imitação forçada da imagem fotográfica como uma pintura, algo já ultrapassado pelas normas
mordenistas da vanguarda europeia. Mesmo que tardios, são ao menos considerados como os
principais precursores das inovações do modernismo, tendo a cidade do Rio de Janeiro e São
Paulo como principais vetores dessas experiências.
Diferentemente da Europa, o modernismo no solo brasileiro, inaugurado em 1922, em
São Paulo, excluiu por completo a participação da fotografia. Os conceitos advindos das
escolas europeias, como o construtivismo, o surrealismo, com colagens e fotomontagem
utilizadas com o auxílio da fotografia, só serão introduzidos nacionalmente com uma
defasagem de quase trinta anos. ―É notória a ausência da fotografia (enquanto meio
expressivo) do movimento modernista brasileiro. Centrado de início em manifestações de
caráter literário e nas artes visuais, o modernismo passou alheio à mídia‖ (MENDES, 2013, p.
1).
O movimento da Semana de 22, evento que ocorreu durante cinco dias na cidade de
São Paulo, no Teatro Municipal da cidade, teve suas apresentações restritas à literatura,
pintura, escultura e música, em que os modernistas mesclaram as ideias das vanguardas da
Europa, aos valores culturais do Brasil, tendo como temática as questões regional e social. A
fotografia, no entanto, não foi inserida no movimento da Semana de Arte Moderna, o que já
era um fato consumado nas participações artísticas das vanguardas europeias. Porém, um dos
49
De caráter elitista, o fotoclubismo visava fazer da fotografia uma atividade artística. A condição do fotógrafo
clubista, em termos gerais, era a do profissional liberal que, dono de uma situação financeira privilegiada, podia
se dedicar à fotografia em suas horas vagas. Para essa classe média urbana em ascensão, carente de símbolos que
a identificassem socialmente, o fotoclubismo veio a calhar, criando-lhe uma forte identidade cultural. O pequeno
burguês agora é um artista (MAGALHAES; PEREGRINO, 2004, p. 22). 50
O movimento pictorialista eclodiu na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos a partir da década de 1890,
congregando os fotógrafos que ambicionavam produzir aquilo que consideravam como fotografia artística, capaz
de conferir aos seus praticantes o mesmo prestígio e respeito granjeado pelos praticantes dos processos artísticos
convencionais. O problema é que essa ânsia de reconhecimento levou muito dos adeptos do pictorialismo a
simplesmente tentar imitar a aparência e o acabamento de pinturas, gravuras e desenhos ao invés de tentarem
explorar os novos campos estéticos oferecidos pela fotografia. Por esta razão, este movimento, que perdurou
basicamente até a década de 1920, foi estigmatizado durante muito tempo, mas, felizmente, assistimos hoje a
uma releitura desapaixonada do pictorialismo que certamente muito contribuirá para a correta avaliação e
contextualização histórica de suas contribuições. Enciclopédia ITAÚ CULTURAL, ARTES VISUAIS.
Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseact
ion=termos _texto&cd_verbete=3890>. Acesso em: 10 mai. 2013.
66
expoentes desse movimento, Mário de Andrade, entre os anos de 1923 até os idos de 1930,
consegue produzir um material significativo, devido ao seu variado conhecimento sobre o
ideário modernista, adquirido atráves de revistas especializadas em arte, vindas da Europa.
Se voltarmos o olhar para nosso país, veremos que a produção fotográfica do
paulista Mário de Andrade (1893-1945) foi uma manifstação atípica e isolada do
grupo de intelectuais modernistas. Entre os anos de 1923 e 1931, Mário reuniu rica
documentação fotográfica e anotações, que denominou de Turista Aprendiz,
procurando traçar as coordenadas de uma cultura nacional, unindo a ―pesquisa de
gabinete e a vivência de vanguardista metropolitano ao encontro direto com o
primitivo, o rustico e o arcaico. Sua concepç fotográfica é diversa, influência
provável de leituras sobre o cinema e de revistas, como a alemã Der Querchnitt, que
divulga, entre outros, os trabalhos de Moholy Nagy e Man Ray (1890-1976).
Autodidata ávido por descobertas, algumas fotográfias de Mário, a exemplo de
Doulor em Santa Teresa do alto (1927), feitas com sua ―codaquinha‖, espelham a
influência dos futuristas italianos Balla e Artturo Bragaglia (1892- 1962), e as
legendas de sus fotos reiteram o envolvimento com as questões da vangaurda
européia: ―Roupas freudianas‖, Futurismo pingando‖, ―amor e psique no Solimões‖
1927) (MAGALHAES; PEREGRINO, 2004, p. 43). (ver Figura 10)
(Fotografia 10) ―Roupas freudianas, Fortaleza‖, Mario de Andrade, 1927.
LOPEZ, Telê Ancona. Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.-dez. 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v13n2/a05v13n2.pdf>. Acesso em: nov. 2013.
O escritor e crítico de arte Mário de Andrade não empreende grandes inovações como
fotocolagem, fotogramas e inovações como as imagens de Man Ray, Lazlo Moroly Nagy,
Max Ernst ou de outros artistas mais inovadores, como os fotógrafos autorais alemães, que
enfatizavam cortes inusitados no close, alto contrate nas imagens em preto e branco, com as
quais ele era bem familiarizado. Seu trabalho, no entanto, tem uma estética própria, aliando
um olhar artístico ao documental, etnográfico, com imagens realizadas em diferentes lugares
do Brasil, como o Amazonas e o Nordeste brasileiro (Fotografia 10).
67
Tadeu Chiarelli, crítico de arte e professor, em seu artigo ―A fotomontagem como
introdução à arte moderna: visões modernistas sobre a fotografia e o surrealismo‖51
, levanta
alguns questionamentos cerca da fotografia, especialmente em relação à prática da
fotomontagem, ou melhor, à não utilização de uma estética que deveria mesclar os ideais da
vanguarda europeia no Brasil, culminando com a construção de um imaginário nacional que
visava romper com as velhas normas da arte burguesa clássica, cuja prática em geral era
realizada por pouquíssimos artistas modernistas durante o referido período.
Tadeu Chiarelli52
esclarece ainda que ―a produção de fotomontagens não colou no
Brasil modernista, quer como mero passatempo quer como manifestação artística autônoma‖,
acreditando também que não é possível afirmar o sucesso ou não dessa prática em relação a
esse período, devido à escassez de documentos sobre o assunto.
Como é do conhecimento de todos, no campo das artes visuais, a corrente hegemônica
do modernismo visou constituir um imaginário nacional, pautado na glorificação do
homem brasileiro1. Esta tomada de posição de caráter ético e político, imediatamente
determinou um posicionamento estético que alijou do debate artístico local duas questões
que marcaram as vanguardas europeias do início do século XX, retirando do modernismo
brasileiro a possibilidade de ser estudado como um simples desdobramento das mesmas,
aqui abaixo do Equador. Em primeiro lugar, a necessidade de constituição de um
imaginário nacional, onde o ―homem brasileiro‖ fosse o protagonista, deixou
imediatamente de lado toda possibilidade de ser desenvolvida no país qualquer poética
que se desprendesse da necessidade de figurar esse ―homem brasileiro‖, sempre de
maneira positiva. Obedecendo tal proposição, todo o desenvolvimento da produção
gráfica, pictórica ou escultórica tendente à não figuração foi excluída do âmbito
modernista. Entre o final da segunda década do século XX e o final dos anos 40, os raros
artistas que timidamente enveredaram para a abstração – ou mesmo para poéticas
figurativas pouco ou nada aderentes à figuração positiva do ―homem brasileiro‖ –, foram
devidamente desencorajados ou relegados a um plano secundário dentro do panteão
modernista. Em segundo lugar, nessa opção de criar tal imaginário brasileiro, não cabia o
uso de modalidades artísticas ainda não consagradas. Para o artista local ser de fato
reconhecido e autorizado pelo modernismo hegemônico da primeira metade do século
passado, era necessário que ele, além de enaltecer a paisagem humana brasileira dentro
de moldes ―aceitáveis‖ de deformação expressiva se valesse, para tanto, das modalidades
tradicionais: desenho, gravura, escultura e pintura.53
Dessa forma, à arte de elaborar imagens fotográficas nunca foi dada grande
importância, bem como à arte cinematográfica. A fotografia era uma arte ainda não
consolidada pela burguesia brasileira; nessa tentativa de criar um imaginário brasileiro
conjugado com as inovações de ruptura advindas das escolas modernistas europeias, o
51
Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n1/07.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2013. 52
As artes visuais transitavam em grupos tão restritos do corpo social brasileiro, durante o século XIX e início
do seguinte que era como se elas, de fato, não existissem como questão cultural. Um dado que talvez ajude a
entender melhor este problema seria a própria ação de alguns modernistas brasileiros. À suposta supremacia da
arte de teor acadêmico/burguês do século XIX e início do século seguinte, os modernistas, na verdade, não
propuseram nenhum rompimento estrutural, baseado na ação ligada às vertentes mais radicais da arte de
vanguarda. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n1/07.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2013. 53
Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n1/07.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2013.
68
rompimento através de propostas mais radicais como o surrealismo tendia ―a romper o
estatuto da arte como representação54
‖, como assinala Chiarelli.
A utilização da fotomontagem na Europa foi bastante particular em relação ao seu
emprego e contexto, a exemplo da usada pelos dadaístas em Berlim contra a ascensão do
nazismo ou pelos construtivistas na Rússia, que tinha por finalidade explicitar o caráter
político e estético, de caráter propagandístico, visando reforçar os ideais da revolução russa,
conscientizando as massas com seus dilemas históricos pelo rompimento com o padrão
vigente burguês.
Ao contrário da utilização da fotomontagem pelos surrealistas, sua preocupação não
era contra a realidade confusa e fragmentada do cotidiano, pois as obras surrealistas
procuravam uma maior autonomia, enfatizando a liberdade interior do artista, um mundo
inquietador, abarrotado de figuras estranhas enigmáticas, mergulhadas num ambiente de
sonhos:
Se as fotomontagens dadaístas e construtivistas tinham como intuito atrair em
primeiro lugar a massa de cidadãos das grandes cidades – conscientizando-a dos
dilemas e circunstâncias de seu presente histórico –, as fotomontagens surrealistas
parecem sempre se dirigir, antes de mais ninguém, ao próprio artista, o primeiro e
principal observador de sua própria subjetividade destacada (pelo menos
teoricamente) de qualquer coerção do consciente.55
No contexto brasileiro, no entanto, podemos perceber que algumas dessas
fotomontagens foram impregnadas com as concepções oriundas do surrealismo, como as que
eram produzidas pelo alemão Max Ernst, os artistas brasileiros Alberto da Veiga Guignard e
Athos Bucão, e do escritor e pintor Jorge de Lima.
Analisando a obra desse último, um dos pioneiros no movimento modernista
brasileiro, o prefácio da obra Pintura em pânico foi escrito pelo poeta Murilo Mendes. Nessa
obra de Jorge de Lima desvela o irracional, um estado caótico da realidade, um mundo
particular e introspectivo, com a produção de espaços oníricos muitas vezes impossíveis de
ser desvendados, criações de imagens bizarras.
54
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n1/07.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2013. Chiarelli esclarece,
ainda, que: Não é do conhecimento de todos que o modernismo de viés hegemônico, ao qual nos referimos, não
tinha muito apreço pelo dadaísmo e pelo surrealismo. Vertentes que, para dizer o mínimo, problematizavam o
antigo entendimento da arte como forma de representação realista ou idealizada do entorno, elas não podiam ser
aceitas por aquele grupo que via, na produção artística modernista, o potencial resgate ou redenção de uma noção
um tanto abstrata de ―realidade brasileira‖. 55
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n1/07.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2013.
69
Em uma de suas fotomontagens analisadas, intitulada A poesia abandona a ciência à
sua própria sorte (Fotografia 11), produzida nos anos 30, é notória em sua construção, com
uma estátua feminina, num cais do porto, tendo ao fundo um navio, e um guindaste que faz o
seu carregamento em primeiro plano, duas mãos atadas.
O texto em forma de legenda que acompanha a fotomontagem sugere o abandono da
racionalidade científica e a própria poesia ao deus dará, largada sem nenhuma amarra. As
palavras e legendas, a princípio, não têm correspondência direta, no entanto nos proporcionam
um olhar metafórico sobre ambas, numa tentativa de entender a totalidade da obra.
(Fotografia 11) Fotomontagem – A poesia abandona a ciência à sua própria sorte.
Disponível em: <http://www.apinturaempanico.com/fotomontagens.html>. Acesso em: 16 mai. 2013.
Na fotomontagem seguinte, denominada Julgamento de Tempo (Fotografia 12),
também confeccionada em meados de 30 e publicada em livro em 1943, podemos visualizar à
nossa direita uma possível mulher envolvida num vestido negro longo, tendo em sua cabeça
uma espécie de escafandro, um capacete utilizado em explorações subaquáticas, e em suas
mãos repousa, através de um suporte de metal, um rosto de uma mulher de longos cabelos,
com a cabeça para baixo.
Sua obra segue o estilo empreendido pela escola surrealista, que apostava na
criatividade como propósito de libertação do inconsciente, mediante a apresentação de cenas
insólitas, seres mutantes, por vezes centrados na figura feminina ou um misto de mulher e
máquina. Assim, sua obra torna-se relevante no cenário brasileiro, fazendo com que o próprio
70
Mário de Andrade tecesse comentários positivos sobre a obra de Jorge de Lima56
, acreditando
que este seria o grande representante nacional com relação à fotocolagem.
(Fotografia 12) Fotomontagem – ―Julgamento do tempo‖
Disponível em: <http://www.apinturaempanico.com/fotomontagens.html>. Acesso em: 16 mai. 2013.
Mário de Andrade, apesar de reconhecer o trabalho da fotomontagem ao se pronunciar
sobre a sua potencialidade criadora, quando se refere à obra de Jorge de Lima, consegue
perceber o quanto a sociedade brasileira considerava essa atividade como um lazer, uma vez
que consistia em se pegar diversas imagens de revistas, fotografias, recortá-las e depois
fotografá-las, tendo como resultado final a fotocolagem.
Logo em seguida, antes da Segunda Guerra Mundial, a fotografia trilha outros
caminhos, como o movimento encabeçado pelos estadunidenses. Surge, então, a fotografia
denominada de straight photography, conhecida também como sendo uma fotografia purista,
na qual ―os fotógrafos deveriam se aproximar, antes de tudo, dos princípios e propriedades do
processo fotográfico como condição sine qua non da aproximação com a arte‖
(MAGALHÃES; PEREGRINO, 2004, p. 22).
Nesse novo período moderno, em torno da década de 1950, a fotografia moderna
brasileira abandona a fotocolagem, investindo agora em imagens cujo enquadramento é
56
[...] a fotomontagem é um processo de expressão lírica. As nossas tendências mais recônditas, nossos instintos
e desejos recalcados, nossos ideais, nossa cultura, tudo se revela nas fotomontagens. E é mesmo natural que seja
assim. Dentro de uma centena de imagens recortadas, que estejam a nossa disposição, dois temperamentos
diversos fatalmente escolherão as imagens que lhes são mais gratas, descobrirão combinações diferentes,
movidos pelas suas verdades e instintos [...] (ANDRADE apud CHIARELLI, p. 76). Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n1/07.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2013.
71
caracterizado pela geometria, abstrações e outras experimentações, com o ―aparecimento do
abstracionismo geométrico e do abstracionismo informal. A geometria já se havia dividido em
campos opostos – concretos e neoconcretos‖ (MAGALHÃES; PEREGRINO, 2004, p. 44),
tendo como destaque os fotógrafos Geraldo de Barros e José Oiticica Filho.
No final da década de 1950, toda experiência moderna empreendida pelos
fotoclubistas e também incrementada por raros escritores influenciados pelos movimentos de
vanguarda, com a radicalização do olhar moderno, como o de Jorge de Lima ou mesmo por
Mário de Andrade, é marcada por uma diluição, mesmo não atingindo a sua completude.
Segundo Costa & Silva, esse declínio foi resultante do surgimento da reportagem
fotográfica, liderada principalmente nos Estados Unidos e na Europa e também praticada no
Brasil, a qual se apossou das intenções libertárias da modernidade.
Contudo, a partir de meados dos anos 60 o movimento fotoclubista começou a
perder a sua importância social. A principal causa desse declínio foi justamente a
ascensão do fotojornalismo que convocou o fotógrafo a participar de uma relação
direta e imediata com o mundo, disseminando um tipo de estética com a qual o
experimentalismo gratuito e diletante do fotoclubismo não se coadunava. A
possibilidade de profissionalização minou as bases fotoclubistas (COSTA; SILVA,
2004, p. 108).
O declínio do movimento fotoclubista pode ser explicado pelas ideias de Walter
Benjamim, ―a destruição da aura‖57
. Nesse contexto brasileiro, a fotografia era praticada por
um grupo muito seleto, com um grau de sofisticação elevado tecnicamente, principalmente a
empreendida pelos pictorialistas, cuja prática fotográfica tornava-se inacessível às massas. As
imagens eram confinadas a um circuito muito restrito em sua apresentação, totalmente
elitizado.
Com o fotojornalismo ocorre a massificação e a comercialização da imagem, com o
seu emprego nas páginas de jornal; antes, a prática fotoclubista visava o diletantismo e a
sacralização da arte, pois poucos participavam de tal movimento.
O picturalismo, no entanto, não deixa de ter a sua importância no Brasil, pois
influenciou bastante a cultura fotográfica nacional, mesmo nascendo com a defasagem de
algumas décadas em relação aos movimentos modernistas da Europa, marcando assim o início
57
Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de
massas. Fazer as coisas ―ficarem mais próximas‖ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como
sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais
irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na
sua reprodução (BENJAMIN, 1994, p. 170).
72
de uma atuação retrógrada às vanguardas europeias. Ao surgir no final do século XIX,
contrário aos ideais daqueles que não consideravam a fotografia como arte, vai aos poucos
possibilitar a tentativa de dispor a fotografia como tal, permitindo que uma camada de
aficionados burgueses tivesse acesso a essa nova expressão artística. No entanto, nomes como
Jorge de Lima são raros, ao empregar as novidades de ruptura advindas das vanguardas, um
artista antenado com o seu tempo; no entanto, não se tem material que possa comprovar se
existiram outros mais inovadores, como disse anteriormente Tadeu Chiarelle (2013). Soulages
conclui que:
(...), a fotografia pode, com uma outra arte, criar uma obra que então não é mais
exclusivamente da esfera da fotografia, mas também da outra parte. O confronto, por
exemplo, por exemplo, da fotografia com a literatura é enriquecedor à medida que se
abre para um espaço de criação, o livro; este pode revelar-se um dos lugares
privilegiados ao mesmo tempo da fotoliteratura e da fotografia; então não há mais
um lugar em que são simplesmente depositadas, apresentadas e publicadas fotos,
mas um objeto para ser comtemplado, explorado, aproveitando e pensado enquanto
tal; é um material que permite uma criação específica quando do trabalho inacabável
de apresentação (SOULAGES, 2010, p. 275).
Durante o desenvolvimento do trabalho abordamos escritores e obras que tiveram, de
algum modo, a presença da fotografia nesse processo de interação. Por considerarmos
pertinente mencionar outros nomes de escritores que dialogam com a fotografia,
apresentaremos um (Apêndice 2), com uma breve variação de possibilidades criativas ligadas
a autores que promoveram a interação do seu texto com a fotografia.
4 - BISILLIAT, ROSA, PALAVRAS E VISUALIDADES
O poder da obra Grande Sertão: Veredas propiciou a Maureen Bisilliat realizar um
trabalho intertextual, uma tradução em que as imagens fotográficas tentem captar o
movimento do verbo, como uma troca em que se permitisse ―ler imagens e ver palavras‖,
numa tentativa de se ver através de imagens fotográficas outras imagens, as imagens literárias.
―O texto rosiano solicita o leitor imagens que se desdobram, construindo outros signos/ícones,
num exercício de produção de sentidos‖ CASA NOVA (2002, p. 104).
Em sua análise, Casa Nova (2002) descreve o processo de criação utilizado por
Maureen Bisilliat, que foi gerado a partir da obra de Guimarães Rosa. ―O sertão está em toda
parte‖, é a grande solicitação; ele está no príncipio da leitura que essa fotógrafa faz de Grande
Sertão: Veredas.
Antes de adentrar na análise das imagens e dos fragmentos literários que acompanham
as fotos, Maurren Bisilliat fixa em suas imagens passagens e leituras do texto rosiano, frases
que, segundo a artista, ―toda frase já se mantém sozinha58
‖ mantêm uma certa autonomia,
como não carecendo do fluir de um roteiro em seu ensaio. É necessário esclarecer alguns
elementos inerentes às palavras e à visualidade, pertencentes ao escritor e à fotógrafa. Como o
retrato, gênero bastante utilizado por Maurren Bisilliat em seu ensaio, bem como a
visualidade e a presença da fotografia no trabalho de João Guimarães Rosa.
4.1 - O retrato
O retrato é considerado como o gênero mais difundido no universo da fotografia desde
a sua criação. Através dele foi possível captar instantâneos individuais ou em grupos, com
fotografias de pessoas em pose ou em espontaneidade, imagens de amigos, parentes, de nossa
comunidade ou de estranhos, de modo que sempre foi interesse de todos fotografar o rosto e a
forma humana.
A palavra retrato tem seu emprego muitas vezes incorreto em relação ao seu
significado, denominando para muitos o próprio ato de fotografar, tendo em vista que muitos
ainda têm o costume de dizer máquina de ―tirar retrato‖, em lugar de ―tirar uma foto‖ ou
―fotografar‖. Mesmo que essa foto seja de uma paisagem, uma casa, um carro, um
58
JUNIOR, Luiz Costa Pereira. A fotógrafa da literatura. Disponível em:
<http://revistalingua.uol.com.br/textos/62/artigo248994-1.asp>. Acesso em 20 set. 2013.
74
animal, e não necessariamente de uma pessoa, como bem enfatiza Claudio Kubrusly (2007).
Tal questão deve-se justamente à grande recorrência da utilização desse gênero no universo da
representação fotográfica. Supõe-se ser muito significativo o uso do termo ―tirar retrato‖,
―uma indicação do que sempre foi um tema mais importante da fotografia‖ (KUBRUSLY,
2007, p. 29). A origem do termo retrato é italiana e provém do século XVII. Segundo
Houaiss, ―ritratto (―surge pela primeira vez em‖ 1665), ‗imagem ou figura humana que tem
semelhança com uma coisa ou uma pessoa‖59
, também pode ser a ―representação da imagem
de uma pessoa real, pelo desenho, pintura, gravura etc. ou pela fotografia‖ (HOLLANDA,
1986, p. 1.503).
Muito tempo antes da invenção da fotografia, o homem já tentava representar o mundo
através das imagens; basta que se observe a quantidade de imagens e figuras encontradas em
algumas cavernas, ao redor do mundo, como as de Lascaux, na França, Altamira, na Espanha,
ou mesmo na Serra da Capivara, Piauí, no Brasil. As primeiras imagens de pessoas surgem
através de rabiscos nessas paredes. Coincidentemente, foram as imagens projetadas num
quarto escuro que propiciaram o surgimento da fotografia, semelhantes às primeiras imagens
criadas pelos homens no interior das cavernas. Tal fenômeno óptico (Figura 6), um ramo da
Física que estuda a radiação da luz, intrigava os pensadores antigos, na Ásia, Oriente Médio e
na Europa, técnica denominada em latim de câmera obscura (câmera escura):
Ao contrário do avião e da televisão, o advento da fotografia nunca foi previsto.
Mesmo assim até povos antigos a anteciparam. Ocasionalmente quando a luz
passava por um orifício minúsculo de uma parede externa, ela projetava uma
imagem do mundo lá fora, de cabeça para baixo e invertida, na parede interna oposta
(MARIEN, 2012, p. 8)
(Figura 4) Câmera escura
Disponível em: <http://www.gizmodo.com.au/2013/08/these-pinhole-movies-capture-cities-through-
bedroom-camera-obscuras/>. Acesso em: 10 out. 2013.
59
GRANDE DICIONÁRIO BETA DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível
em:<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=retrato>. Acesso em: 15 out. 2013.
75
Mediante a técnica da ―câmera escura‖, muitos artistas no Renascimento obtinham
suas imagens, desenhos e pinturas, ou mesmo projetos arquitetônicos, tendo em seu esquema,
como base, a matemática euclidiana empregada através dessa técnica. Para Leonardo da
Vinci, ―a câmera escura era como uma sala de cinema, pululando de figuras em movimento e
céus ativos‖ (MARIEN, 2012, p. 8). No período de desenvolvimento artístico da Renascença,
o retrato estava bem solidificado na pintura, devido principalmente à questão da perspectiva60
,
iniciada com as observações da ―câmera escura‖, que foi teorizada por Leon Battista Alberti.
É a mesma perspectiva renascentista que vai povoar o universo da câmera fotográfica até os
dias de hoje.
Logo em seguida, mediante tal criação, antes mesmo da invenção da fotografia, já se
utilizava, no século XVII, um aparelho denominado lanterna mágica, que tinha por finalidade
o decalque ou a pintura do retrato. Através dessa invenção, mais adiante, no século XVIII, o
homem inventa a máquina de retratar perfis de sombra, em que o rosto do modelo era
decalcado em um material translúcido, e estes perfis em silhueta; decalcar a sombra não
exigia grande destreza por parte do operador dessa máquina, por isso se tornou moda fazer
uma silhueta das pessoas. Um retrato enegrecido em que são percebidos os contornos laterais
do rosto de alguém.
Com o advento da Revolução Industrial61
, foi descoberto, em torno de 1790, que
alguns elementos químicos, conhecidos como sais de prata, reagiam à presença da luz,
ficando escuros. Tinha início o que faltava para a criação da fotografia, pois quanto à natureza
física, já estava solucionado, com a técnica da câmera escura; faltava apenas o modo como
fixar a imagem de uma forma mais precisa, através da química. Assim como desde os tempos
remotos, com a confecção das escrituras rupestres, em que o homem já imprimia as suas
silhuetas das mãos nas paredes, ―Nas imagens o homem põe literalmente a mão sobre o
mundo‖ (OSTROWER, 1996, p. 296). Trata-se, portanto, primeiramente, de uma grande
60
Esse sistema, nascido e florescido no Renascimento, procurava obter uma sugestão ilusionista de profundidade
com bases nas leis ―objetivas‖ do espaço formuladas pela geometria euclidiana (MACHADO, 1983, p. 54).
61 O período final do século XVIII, mais precisamente o ano de 1790, foi marcado por um grande momento na
produção de inventos, o que posteriormente adquiriu proporções extraordinárias devido à revolução industrial.
Nesse momento, também ficou comprovado que a luz provocava uma reação que escurecia os sais de prata
quando eram a ela expostos. Pode-se observar que nessa época ocorreu uma intensa atividade sócio-político-
econômica, tendo em vista que a Revolução Francesa se deu no ano de 1789, período em que a burguesia
assumia o poder. Inicialmente, a fotografia possibilitou que apenas pessoas de alto poder aquisitivo pudessem
fazer uso dela. A foto retrato assumia, neste período, um certo valor de culto. A técnica fotográfica reflete a
ideologia mercantilista de um período, dito Liberalismo Clássico, que visava uma ampla liberdade de comércio
interno e externo. Os empresários, aliados aos novos inventos, observavam também que a produtividade era
aumentada no mesmo tempo em que fossem reduzidos os custos, o que, consequentemente, ampliava seus
lucros. Com isso, a invenção fotográfica começou a aderir à linha de produção em grande escala (CUNHA,
2003, p. 74).
76
evolução biológica (Fotografia 13), um possível domínio do mundo através das mãos, ou de
demonstrar a sua presença, que, consequentemente, resultou em uma revolução tecnológica
com o ato de fabricar objetos para serem usados em guerras, caças e em seus rituais,
semelhante à fotografia, que também é uma impressão do mundo exterior que impregna e se
fixa em uma placa sensível. No entanto, tal façanha com tamanha precisão de semelhança foi
levada a cabo somente durante a primeira metade do século XIX.
(Fotografia 13) Impressões pré-históricas das mãos nas cavernas62
.
Inicialmente, a fotografia possibilitou que apenas pessoas de alto poder aquisitivo
pudessem fazer uso dela. A foto (retrato) assumia, neste período, certo valor de culto. Os
empresários capitalistas, aliados aos novos inventos, observaram também que pela lógica de
mercado, a produtividade era aumentada ao mesmo tempo que fossem reduzidos os custos, o
que consequentemente ampliava seus lucros. Com isso, a invenção fotográfica começou a
aderir à linha de produção em grande escala.
Ao longo dos anos a fotografia sofreu diversas modificações no âmbito técnico, desde
a fabricação de câmeras portáteis com lentes mais eficientes para determinados tipos de
fotografias, a descoberta de novos produtos químicos, até finalmente a criação dos rolos de
62
Novo estudo sugere que pinturas antigas em cavernas teriam sido feitas mais por mulheres do que por homens
como se acreditava. Ao analisar a silhueta de 32 marcas de mãos encontradas perto de cavernas de 12,5 mil a 40
mil anos no sul da França e nordeste da Espanha, os pesquisadores perceberam que as mãos eram pequenas.
Pensava-se que elas poderiam ser de jovens homens, mas agora o estudo publicado neste mês no jornal
"American Antiquity" concluiu que 24 delas pertenciam a mulheres - baseado no tamanho das mãos e dos dedos
e, também, na razão entre os tamanhos do dedo indicador, do anular e do mindinho. Das oito marcas restantes,
apenas três são de homens adultos e as demais são de adolescentes. Como as cavernas são bem apertadas,
acredita-se que a mesma pessoa que marcou as mãos, tenha desenhado antigos animais, como cavalos e
mamutes, nas paredes. PedroSaura/AFP/GettyImages/Newscom/Science.
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ciencia/album/2013/10/01/imagens-do-mes-
outubro2013.htm?abrefoto=30>. Acesso em: 15 out. 2013 (Fotografia 16).
77
filmes, aplicados sobre a base de celuloide criada pelo norte-americano George Eastman que,
no ano de 1888, lançou no mercado mundial a câmera Kodak, com a finalidade de atender às
massas. Seu slogan publicitário era ―Aperte o botão, nós fazemos o resto‖.
A prática fotográfica foi ampliada consideravelmente, sendo propagada praticamente
entre todas as classes, que buscam retratar-se mostrando o seu rosto para todos. ―Assim, o
retrato fotográfico, que, sob diferentes sistemas e segundo a tecnologia de cada época, já
havia então se tornado uma necessidade, mostrou ao homem uma nova possibilidade de
perpetuação de sua própria imagem‖ (MAYA, 2008, p. 108).
A evolução técnica da fotografia, a criação de negativo e a rapidez da exposição
empregada através de lentes especiais proporcionavam uma maior velocidade na confecção
dos retratos — o que antes garantia algo de sacro, ―uma figura singular [...] aparição única‖
(BENJAMIN, 1994, p. 170). Nesse momento a fotografia perde seu valor de culto, a sua
aura63
, ―diante do valor de exposição. Mas o valor de culto não se entrega sem oferecer
resistência. Sua última trincheira é o rosto humano. Não é por acaso que o retrato era o
principal tema das primeiras fotografias‖ (BENJAMIN, 1994, p. 174). A evolução do
maquinário fotográfico garantiu a sobrevivência dos primeiros retratistas; ―o retrato era o
ganha-pão dos primeiros fotógrafos‖ (MARIEN, 2012, p. 250). Não só garantiu a sua
sobrevivência, como também poderia competir com os pintores. Os que realizavam retratos a
óleo miniaturizados, fatalmente perderam essa função.
Antes da invenção da fotografia, a produção de um retrato através do pintor ou de
desenhista certamente dependia de sua habilidade. A aproximação da semelhança com o real,
conseguida através da imagem fotográfica, era notória, um fenômeno surpreendente que
fascinou a todos que viam aquelas imagens. Jamais houve tamanha exatidão sintetizada em
uma única técnica, a fotográfica.
A particularidade de representação à sua ―imagem semelhança‖, como a possibilidade
de apresentar pormenores, nuances da face humana, fez as demais artes manuais do retrato se
separarem da arte fotográfica. ―Na pintura, a identidade do retratado podia, ou não, ser o
elemento predominante; na fotografia isto é inevitável, uma vez que cada rosto identifica um
único indivíduo com uma mímica facial que lhe é peculiar‖ (KUBRUSLY, 1991, p. 31).
Possibilitou ainda a reprodução do ser humano em movimento, nunca antes imaginada, feita
por Eadweard Muybridge, além da reprodução mais fiel da realidade. Ela permitiu o registro
63
O que consideramos aurático, nessas primeiras fotos, era principalmente a não existência de negativos, sua
reprodução em várias cópias. As imagens eram impressas em pesadas chapas de metal mediante exaustivos
processos químicos, um verdadeiro trabalho de alquimista, que, muitas vezes, obrigava os observadores dessas
primeiras impressões a verem tais fotos em lugares com pouca luminosidade, para não causar o desaparecimento
destas como por encanto, devido à reação da luz com a foto (CUNHA, 2003, p. 75).
78
mecânico da ―imagem em condições mais ou menos análogas à visão – revelou não o caráter
real da visão tradicional, mas ao contrário, seu caráter de sistema. As fotografias são tiradas,
ainda hoje, em função da visão artística clássica‖ (NEIVA JUNIOR, 1986, p. 61). Essa visão
artística clássica deve-se ao fato de a fotografia ser oriunda da perspectiva teorizada na
Renascença, um princípio óptico da Física.
A imagem foi criada evitando as possibilidades de aberrações, um olhar físico-
matemático amparado na ilusão da terceira dimensão, resultado da perspectiva. Além do que,
em determinadas circunstâncias, podemos não nos reconhecer diante de uma fotografia,
mesmo sabendo que estávamos lá. Uma imagem muito desfocada, um erro na revelação, o
excesso ou a escassez de luz, ou ainda o uso de lentes que possibilitem a distorção da
realidade, por exemplo, impedem o nosso reconhecimento, pois não condizem com o que
deveria ser ou o que se esperava.
A fotografia primeiramente apenas aponta, indica algo, alguma coisa que aconteceu
em frente a uma câmera fotográfica, como afirma Charles Sanders Peirce ao referir-se ao
caráter indicial64
da imagem fotográfica; mas, devido às convenções e à utilização adequada
do equipamento, permite a reprodução de imagens semelhantes à realidade.
Fotografias, especialmente fotografias instantâneas, são muito instrutivas porque
sabemos que, sob certos aspectos, são exatamente como os objetos que representam.
Esta semelhança é devida ao fato das fotografias serem produzidas em
circunstâncias tais que se viram fisicamente compelidas a corresponder, ponto por
ponto, à natureza. Sob esse aspecto, pertencem, pois, à segunda classe de signos, os
que são por conexão física (PEIRCE, 1975, p. 118).
O rosto humano é uma espécie de identidade singular, assim como as impressões
digitais, com exceção dos indivíduos gêmeos, que possuem semelhanças aproximadas ao
menos nas faces. ―Reconhecemos alguém, imediatamente, pela visão de seu rosto; basta que
para isso se observe a importância do ‗retrato falado‘, recurso de que lança mão a polícia na
tentativa de identificar criminosos‖65
. Já ―dentre as classes de animais, apenas os mamíferos
ditos superiores chamados de primatas têm a capacidade de expressar por emoções e
sentimentos, e esta linguagem visual atinge seu desenvolvimento máximo na espécie humana‖
(KUBRUSLY, 1991, p. 31).
64
Qualquer coisa que atraia a atenção é um indicador (índice). Qualquer coisa que nos surpreende é um
indicador, na medida em que assinala a junção de duas porções de experiências. Assim, uma faísca violenta
indica ter acontecido algo, embora possamos não saber precisamente qual foi o acontecido (PIERCE, 1975, p.
120). 65
(CUNHA, 1997, p. 77).
79
O rosto traduz em códigos, informando a situação emocional em que cada indivíduo se
encontra, demonstrando a sua disposição, definindo seu estado de espírito e intenções, bem
como toda uma carga cultural e ancestral. Essas expressões se apresentam em nossos rostos
em determinadas circunstâncias, que se torna difícil, na maioria das vezes, dissimular tais
emoções. Fazer uma lista precisa de como se expressa cada face não é tarefa fácil, tamanha a
diversidade e as sutilezas desta maneira de se comunicar. Ao mesmo tempo, não é difícil que
cada pessoa emita um parecer acerca de determinado rosto.
As possibilidades de acerto podem ser fáceis à primeira vista devido às evidências das
informações, mas em outros casos dependerá do contexto e do acúmulo de informações
acerca deste indivíduo, num treinamento perspicaz do observador mediante as facetas que
envolvem o comportamento humano. ―A significação de uma imagem permanece
grandemente tributária da experiência e do saber que a pessoa que contempla adquiriu
anteriormente. Nesse tocante, a imagem visual não é uma simples representação da
‗realidade‘ e sim um sistema simbólico‖ (GOMBRICH apud BARDON, 1998, p. 107).
Os cientistas tentaram fazer um inventário científico acerca das aparências, desde o
final do século XIX. Através do estudo das imagens de forma científica, como os
empreendidos pela medicina (imagens criminais), na tentativa de provar que as aparências das
pessoas poderiam indicar ―supostas disfunções psíquicas humanas basicamente enunciadas no
livro do criminólogo Cesare Lombroso, O homem criminoso‖ (LOMBROSO apud JESUS,
2011, p. 8).
Lombroso, médico italiano, acreditava que determinados aspectos ligados ao crime
eram congênitos; por sua vez, eram apresentados mediante a nova invenção do momento, a
fotografia. Através de comparações entre imagens fotográficas de criminosos e pessoas
normais, podia-se deduzir que tais pessoas também apresentavam um comportamento
patológico. Não só Lombroso66
, mas também Aphonse Bertillon e Galton, dentre outros
estudiosos. Como os estudos das imagens fotográficas das retinas das pessoas assassinadas,
realizados pelo Dr. Bourion ―com o objetivo de nelas encontrar a imagem dos sujeitos
assassinados‖ (DUBOIS, 1994, p. 231), ou ainda as imagens fantasmagóricas, ―fotografias
das auras‖ e outros fluidos mentais, do Dr. Baraduc (1896). Esse período ―depende mais de
66
―Trata-se da fotografia judiciária e criminal que se instala na época (Berlillon, Lombroso, Galton) da
fotografia dos histéricos (serviço de Charcot na Salpétrière) ou de práticas extremas e singulares como a do
chamado ―optograma‖(1868) ou a ―fotografias das auras‖ e outros fluidos mentais do Doutor Baraduc (1896)‖
(DUBOIS, 1998, p. 212).
80
saberes como a teologia, as ciências positivistas, a medicina legal ou a criminologia, bem
mais do que da fotografia propriamente dita‖ (DUBOIS, 1994, p. 247).
Inúmeras teses de caráter duvidoso, por vezes racistas, intentaram classificar as
pessoas pela simple aparência de semelhança com outros, além da consanguinidade, em que o
criminoso nasce criminoso e com cara de criminoso.
Sobre a imagem de um indivíduo, ou de pessoas, no caso especial, o seu retrato, pode-
se dizer que este caracteriza um somatório de acontecimentos que o indivíduo vivenciou e
transmitiu num determinado contexto histórico, moldando-se conforme suas necessidades e
sua interação com o meio em que vive. E que, apesar de a imagem da fotografia apontar para
o seu referente, indicando que ele existiu, ou mesmo, muitas vezes representando-o de
maneira análoga à realidade, seu caráter representativo, simbólico, como bem enfatiza Peirce,
é inevitável; através dele podemos interpretar as imagens. Como não existem indivíduos
iguais no decorrer de suas vidas, suas emoções, traumas, punições, estímulos etc. nos levam a
crer que cada ser seja possuidor de um universo singular de relações, como o existente entre o
fotógrafo e o fotografado, apesar das formatações sociais e persuasões midiáticas que, muitas
vezes, convergem para fórmulas ditas normais ou aceitáveis.
4.2 - O retrato literário maureeniano
Houve a necessidade de se referir à questão do retrato, sobretudo porque a trajetória de
Maureen Bisilliat tem como elemento de sua interação fragmentos da obra literária dos
autores brasileiros, e suas imagens são quase sempre representadas através do retrato. Essa
interação entre imagem e texto, essa semiose, possui um elemento agregador, tendo em vista
que a fotógrafa também interage com o elemento humano, e não somente o literário,
constantemente remetendo a uma cumplicidade entre ambos.
O retrato requer muitas vezes ―que o modelo confie que o fotógrafo vai gerar um
símbolo seu a partir da aparência‖ [...] e que esses, por sua vez, tendam a revelar ou
dissimular, pois que ―Os retratos são visualmente energizados pela disputa entre revelação e
ocultação‖ (MARIEN, 2012, p. 68). Assim como as palavras, as imagens, as aparências dos
acontecimentos ocultam, bem mais que revelam sua verdadeira intenção, como o sertão
rosiano, que ―não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena‖ (ROSA, 2001,
p; 538); cabe aos leitores perceber também tais nuances de possibilidades entre o que está
81
oculto e o que foi representado. ―A gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde‖
(ROSA, 2001, p. 353-354).
Maureen Bisilliat lança mão desde o início de sua jornada literária do tema mais
difundido no universo fotográfico, como já foi dito: o retrato, iniciado em Grande Sertão:
Veredas. Analisamos essa temática tendo como objeto as mulheres que habitam o universo
sertanejo rosiano. A partir de A João Guimarães Rosa (1969) nosso objeto de análise, que
será mais adiante trabalhado, esse elemento também possui ligações com outros trabalhos,
através de outras traduções fotográficas oriundas de outras imagens literárias. Silva e Leite
observam essa reverberação da obra rosiana em Os Sertões através da recorrência de
elementos temáticos e enredos inerentes às duas obras.
O sertão é um referente compartilhado entre a fotógrafa e alguns enredos escolhidos
para dialogarem com sua produção. O imaginário sobre ele foi, pela obra de
Guimarães Rosa, seu primeiro campo de incursão na construção de suas
interpretações fotográficas relacionadas às obras literárias. Tal ambiente surge,
posteriormente, em Sertões, luz e trevas (1982), no qual a fotógrafa usou trechos
das duas primeiras partes de Os Sertões (1902) (SILVA; LEITE, 2013, p. 7).
A obra Sertões, Luz e Trevas (1982) tem como referencial a obra Os sertões de
Euclides da Cunha; as mulheres apresentadas em Os Sertões, imaginário de Maureen Bisilliat,
são aquelas dos ―agrupamentos bizarros‖67
descritos pelo autor com maior intensidade, mas
também algumas formosas que aparecem em sua obra. ―Há, todavia, naquele imenso deserto
de beleza, um ‗rosto formosíssimo‘, aclarado por ‗uns olhos grandes e negros‘, verdadeiro
oásis de graça feminina‖ (CALAZANS, 1959, p. 5). Maureen Bisilliat intercala com diversas
imagens femininas, tendo o texto de Os Sertões como parâmetro: mulheres com turbantes
(Fotografia 14), que remetem ao universo de Euclides da Cunha68
, as beatas, mulheres
religiosas de faces esquálidas devido às condições impostas pelo meio em que vivem, pois ―O
67
(CUNHA, 2004, p. 393). 68
Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas, trunfas escandalosas, de
africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo,
sem uma flor. O toucado ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e
escorridos, não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor,
atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos
os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos,
ou de nôminas encerrando "cartas santas", únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador.
Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que
ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas
dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias,
belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os
cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela matulagem repugnante que exsudava do
mesmo passo o fartum angulhento das carcaças imundas e o lento salmear dos "benditos" lúgubres como
responsórios[...] (CUNHA, 2004, p. 310).
82
regime desértico ali se firmou‖69
. Elas sobrevivem com as suas indumentárias, típicas da
região. No entanto, ―Cunha descreve as mulheres utilizando um tom no qual não falta ironia e
visível crueldade‖70
:
Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas —
êmulas das bruxas das igrejas — revestidas da capona preta lembrando a holandilha
fúnebre da Inquisição: as "solteiras‖, termo que nos sertões tem o pior dos
significados, desenvoltas e despejadas, "soltas" na gandaíce sem freios; as "moças
donzelas" ou "moças damas", recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias;
nivelando-se pelas mesmas rezas.
Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado
mortal a prece; rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de
raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho. Todas as idades, todos os
tipos, todas as cores[...] (CUNHA, 2004, p. 309 - 310).
(Fotografia 14) – (BISILLIAT, 1982, p. 91).
Mais adiante encontramos outra velha, (Fotografia 15), desta vez com uma grande
capa feminina preta, ―lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição‖ (CUNHA, 2004, p.
309). A imagem em movimento realizada pela fotógrafa desfigura por completo a face da
senhora; no entanto, é possível perceber os detalhes de suas vestes, uma espécie de túnica
escura e, apesar da foto embaçada de seu rosto, percebe-se a sua textura envelhecida.
(Fotografia 15) (BISILLIAT, 1982, p. 133).
69
(CUNHA, 2004, p. 93). 70
(PEREIRA, 2012, p. 72).
83
Alguns estudiosos observam que Euclides da Cunha descreve os habitantes de
Canudos de forma negativa, classificando-os como pertencentes a uma sub-raça, concepção
naturalista de mundo: ―Tributário das teorias racistas e evolucionistas de sua época,
considerava que os habitantes do sertão estavam destinados ao próximo desaparecimento ante
as exigências crescentes da civilização‖ (VENTURA, 2002, p. 45).
Maureen Bisilliat não só representa a figura feminina em seu trabalho, mas também
nele está contida a figura do homem caracterizado de vaqueiro. No entanto, a imagem
escolhida para capa e contracapa é o retrato de uma jovem que remete ao que poderíamos
denominar aquelas mulheres de rosto ―formosíssimo‖71
, segundo Euclides da Cunha. Trata-se
de uma imagem feminina, uma personagem (Fotografia 16) que faz parte de uma dança
folclórica brasileira, Guerreiro72
. Por ostentar uma coroa, a jovem deve ser a rainha.
Tal imagem, retrato, pode ter sido tirada em diversos locais do Nordeste73
, não
necessariamente em Canudos. É comum em Maureen combinar, em seu trabalho, imagens
fotográficas e palavras; muitas vezes suas imagens são concebidas sem pertencer ao mesmo
contexto, como quando trabalhou a concepção de O cão sem Plumas do poeta João Cabral de
Melo Neto. As imagens das mulheres caranguejeiras não são as mesmas que compõem as
catadoras de caranguejo às margens do Capibaribe, Recife/PE, e sim mulheres de uma aldeia
de pescadores na Paraíba. A artista estabelece correlações de seus trabalhos realizados em
contextos e tempos distintos. O certo é que as mulheres representam índices de importância
em seu trabalho, sejam velhas, moças ou meninas.
Maureen Bisilliat, em Sertão, Luz e Trevas, intercala a figura feminina da rainha com
o fragmento da obra de Euclides da Cunha (Fotografia 16):
(Fotografia 16) (BISILLIAT, 1982, p. 40).
71
(CUNHA, 2004, p. 94) 72
Auto popular do ciclo do reisado, que figura a luta de guerreiros e caboclos e em cujo final se inclui o bailado
do boi. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=guerreiro> Acesso em: 25 de out. 2013. 73
Estas imagens foram tiradas nos ermos, aldeias e lugares santos do nordeste brasileiro –Juazeiro do Norte,
Canindé, Bom Jesus da Lapa – de 1967 a 1972, e sequenciadas sob forma de livro no ano de 1982.
Vistas isoladamente, emudecem; dispostas em cadência de luz e sombra, retomam à vida, desvendando pelo
olhar o coraçã (BISILLIAT, 1982, p. 13).
84
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o Sol e a atmosfera estagnada imobilizava
a natureza em torno, atentando-se para os descampados, ao longe, não se distinguia
o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente
aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil, e não
distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então, ao norte da Canabrava,
numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador;
estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar,
largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em
cintilações ofuscantes[...] (CUNHA, 2004, p. 108).
Assim como as mulheres, outros elementos presentes em sua obra são quase abstratos
(Fotografia 17) e transitam entre imagens em cores ou em preto-e-branco. O elemento terra é
recorrente na obra de Maureen Bisilliat, como na imagem abaixo, que acompanha o texto:
―Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali
chegam, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua,
o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo‖ (CUNHA, 2004, p. 72 ). Tal
passagem faz parte exatamente da primeira parte da obra euclidiana, intitulada ―A terra‖, ao
referir-se à questão climática que afeta aquela região.
(Fotografia 17) (BISILLIAT, 1982, p. 33)
Ao trabalhar O Cão sem Plumas, 1984, a fotógrafa traduz, em imagens, o poema
homônimo de João Cabral de Melo Neto, tendo como objeto temático as mulheres catadoras
de caranguejo em seu cotidiano de trabalho. Elas são a sua escolha temática, as mulheres
85
―caranguejeiras‖,74
publicadas na revista Realidade, em 1970. Sua narratividade é composta
de uma sequência de imagens que sugerem início, meio e fim, iniciando, entretanto, com a
imagem em cores de um homem, um catador de caranguejos; em seguida são apresentadas
somente imagens do feminino em preto-e-branco; finalizando, novamente a imagem em cores
de um catador de caranguejo. Isso é confirmado acerca de sua temática, pela própria autora
das imagens (Fotografias 18 e 19), ao enfatizar que ―são as mulheres os fundamentos de nossa
história [...] garças que passam gritando alto, periquitos em bandos grasnando no ar! [...]
situadas em seu ‗templo’. Meninas, mulheres e velhas, [...], subitamente transformadas em
divindades pela lama‖ (BISILLIAT, 1984, p.11).
(Fotografia 18) – Menina catadora de caranguejo75
.
(Fotografia 19) – Anciã catadora de caranguejo
76.
Seu trabalho possui marcas, resquícios da obra literária, impregnando a imagem
fotográfica da artista. O feminino do poema que está presente nas entrelinhas da obra
74
―A decisão de publicar As caranguejeiras na capa foi delicada. Em 1970, dois anos depois do AI-5, já em
pleno governo Médici, pisava-se em ovos nas redações, e as figuras enlameadas das caranguejeiras encaixavam-
se mal na celebração do milagre brasileiro‖ (BISILLIAT, 2009, p.222). 75
(MELO NETO, 1984, p. 15). 76
(MELO NETO, 1984, p. 23).
86
cabralina e em algumas imagens, Maureen Bisilliat soube explorar bem, como ela mesma diz
acerca das mulheres, o seu eixo principal de representação:
Corri atrás delas mal conseguindo seguir o seu ruidoso rastro, cambaleando como
um corpo sem alma, afundada até a cintura, para enfim chegar ao templo do seu
estar. Meninas, mulheres e velhas, com vestuários de algodão ou chita, deselegantes
e escorridos, subitamente transformadas em divindades pela lama – faces polidas de
pedra , revestidas das pregas movediças do mar (BISILLIAT apud MELO NETO,
1984, p. 11).
Embora o poema de Cabral e as fotografias de Bisilliat tenham sido apresentados lado
a lado a cada par de páginas da obra, o método de leitura das equivalências, estabelecido pela
fotógrafa, não é linear. O diálogo intersemiótico, como sugere o enunciado da obra77
, é
estabelecido a partir de um núcleo imagético em que o poeta sugere a dimensão feminina do
rio78
, aquele que ―Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da
água de cântaro, dos peixes de água,‖79
[...] mas que ―Sabia dos caranguejos/de lodo e
ferrugem./ Sabia da lama/ como de uma mucosa./Sabia seguramente / da mulher febril que
habita as ostras‖80
. Apesar de rio ser um substantivo masculino, no entanto, se assemelha ao
ventre de fecundado, com seu leito possuidor de uma fecundação estagnada de terra negra,
como explicita o poema: ―Liso como o ventre/ de uma cadela fecunda,/o rio cresce/sem nunca
explodir./Tem, o rio, um parto fluente e invertebrado/como o de uma cadela./(...)/Em
silêncio,/o rio carrega sua fecundidade pobre,/grávido de terra negra.‖ (MELO NETO, 1984,
p. 20).
Assim, temos que o rio-lama, o rio-mucosa, é uma mulher febril, sensual, disfarçada,
escondida nas ostras, um rio que, apesar de sua pobreza ―de terra negra‖ que desemboca no
mar, antes disso tem sua passagem no manguezal, onde a vida explode fervilhando em seu
estuário, berçário de peixes, caranguejos e tantos outros seres aquáticos, como diz o poeta:
―Mas antes de ir ao mar/o rio se detém/em mangues de água parada./Junta-se o rio/a outros
rios/numa laguna, em pântanos/onde, fria, a vida ferve/‖81
. Em seus estudos acerca do
77
A imagem do poeta. A palavra do fotógrafo. Este livro sugere que existe uma linguagem da visão, rica, ampla
e articulada como a voz das palavras. São dois idiomas que dialogam e se permutam, falam conosco e entre si.
Nas palavras e nas imagens deste livro, carregadas de sentido no máximo grau possível, a revelação se faz
através da poieses. Seu discurso é a realidade do rio Capibaribe, terra-lama, espaço primórdio onde o homem
afunda e resiste, fortalecido pela luta. Cumpre-nos ver ouvir... e deixar nosso coração falar (GOMES apud
MELO NETO, 1984, contracapa).
78 Conhecedor das profundezas infernais, ao mesmo tempo o rio também sabe da eroticidade implícita na mulher
febril que habita as ostras, do grão de areia transformado em pérola a partir de uma gravidez dolorosa,
cancerígena, que machuca a mucosa da concha antes de virar beleza leitosa e brilhante (VERNIERE, 1999, p.
93). 79
(MELO NETO, 1984, p. 16). 80
(MELO NETO, 1984, p. 18). 81
(MELO NETO, 1984, p. 46).
87
imaginário, Gaston Bachelard afirma que a ―água um leite inesgotável, o leite da natureza
Mãe‖, uma ―valorização que marca a água com um cunho profundamente feminino‖
(BACHELARD, 1998, p. 131). É essa mulher que Maureen Bisilliat revela na seleção e
edição das fotos que recupera no seu ensaio, em diálogo com O cão sem plumas.
Com a obra A Visita82
trabalha o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade
que narra o encontro, em 1919, do modernista Mário de Andrade com o poeta simbolista que
residia em Mariana, Alphonsus de Guimaraens. Para realizar tal tarefa, foi convidada pelo
bibliófilo José Mindlin, esse conhecedor da obra rosiana e também do trabalho desenvolvido
pela fotógrafa em Grande Sertão: Veredas, e que acreditava ser ela a pessoa certa para
realizar tal trabalho. Em conversa com Drummond, Mindlin esclarece que gostaria que a obra
fosse ilustrada, mas que fugisse do óbvio: ―numa fotografia onírica, que misturasse sonho e
realidade, para manter uma relação com o poema, sem cair no já visto‖.83
Maureen Bisilliat parte então com Mindlin a Mariana, na tentativa de captar a
atmosfera do poema na cidade onde se deu o encontro dos dois escritores, para compor
imagens fotográficas: ―Maureen chegou a pensar em reproduzir o ideal de concepção de
beleza feminina de Alphonsus de Guimarães‖84
, o que demonstra o interesse pela temática
feminina, por parte da fotógrafa. No entanto, nada na cidade lhe agradou:
Chão, terra, gente. Nada com eles. Imagens de anjos barrocos, o diabo, a morte _
Isso, sim, seria Alphonsus de Guimaraens. Mariana sobre a névoa poderia ser,
talvez, uma boa imagem para definir sua visão onírica, para captar o poema de
Drummond. Confesso que não consegui, até uma hora antes de tomar o ônibus de
volta, achar algo nesse caminho. Havia um homem vendendo pedras na rua. Resolvi
comprar algumas para minha coleção particular, sem qualquer intuito de fotografá-
las. Veio-me então a ideia de fotografar as pedras.85
As ilustrações da obra são imagens ampliadas de gemas compradas a um vendedor
ambulante em Mariana. José Mindlin se encarregou de organizar o planejamento editorial e
gráfico das ilustrações dos minerais, que são ―a essência da mineralidade de Minas Gerais‖86
,
82
Em sete cantos, um eu-lírico narrador canta a visita, real ou imaginária, de Mário de Andrade a Alphonsus de
Guimaraens. O poema circula por várias realidades: a poética, afinal construtora do texto; a narrativa; aquela que
considera a declamação da poesia, no quinto canto; a intertextual, em vários níveis: desde excertos de The raven,
de Poe, até a incorporação de versos dos dois poetas-personagens no corpo dos versos. (DUARTE, 2006, p. 111) 83
JORNAL DO BRASIL. 11 de fevereiro 1978, Livro, p. 5. Disponível em:
<http://news.google.com/newspapers?nid=1246&dat=19780211&id=tsxOAAAAIBAJ&sjid=vREEAAAAIBAJ
&pg=2402,2432441> Acesso em: 1 de nov. 2013. 84
(op. cit.) 85
(op. cit.) 86
(op. cit.)
88
juntamente com o texto de Drummond. A capa da obra A visita87
, no entanto, apresenta o
rosto de um anjo em mármore branco, pertencente ao diretor do Museu de Artes de São Paulo,
Pietro Maria Bardi, com um respectivo fragmento de poema em forma de legenda: ―Tens um
lis de ternura, que desliza à flor da pele em mágoa suavizante‖ (ANDRADE, 1977, p. 4)
(Fotografia 20). Segundo Mindlin, o trabalho de composição desta imagem e o fragmento do
poema na edição da obra, bem como as demais fotografias
[...] exprimem a abstração do concreto, foi encontrado, por acaso, um momento
preciso de poema para servir de legenda. A mica, que parece reproduzir o casario
barroco mineiro, por exemplo, encaixa-se com esses versos: ...em minha solidão/que
escorre a contemplar o deserto das cidades mortas.‖ Em outra, que lembra a
montanhosa paisagem mineira, foi encaixado o seguinte momento do poema de
Carlos Drummond de Andrade: ...entre montanhas outras que as
montanhas/cravadas no imutável mar de Minas,/entre terra e céu e som e espaço não
finito...‖ Uma pedra azul cuja macrofotografia lembra uma galáxia, tem como
correspondente o verso ―... e a opala da noite em estilhaços.‖ E a última das
ilustrações, talvez a mais abstrata e a mais cósmica de todas e em que – ao mesmo
tempo – aparece maior mineralidade, marcou a legenda ―Há um calar entreliçado
nestes ares/que só deixam fugir... o silêncio/Blocos gelados de insuportável
silêncio...‖ 88
(Fotografia 20) – Fotografia da capa, A visita,
face de mármore de um anjo.
(BISILLIAT apud ANDRADE, Carlos Drummond de. A visita. São Paulo: 1977).
87
No corpo deste poema o autor utilizou versos, fragmentos de versos, expressões e informações encontráveis
nos livros Obra Completa de Alphonsus de Guimaraes; Poesias Completas de Mário de Andrade e
Itinerários, Cartas a Alphonsus de Guimaraes e Filho (ANDRADE, 1977, 41). 88
(MIDLIN apud JORNAL DO BRASIL. 11 de fevereiro 1978, Livro, p. 5. Disponível em:
<http://news.google.com/newspapers?nid=1246&dat=19780211&id=tsxOAAAAIBAJ&sjid=vREEAAAAI
BAJ&pg=2402,2432441>. Acesso em: 1 de nov. 2013.
89
As imagens fotográficas correspondem, com algumas semelhanças, às palavras, no
entanto, servindo apenas como um guia. Algumas passagens são bastante abstratas, pois se
trata de fragmentos poéticos, por vezes metafóricos, e cada leitor é possuidor de sua
interpretação, mesmo tendo as palavras como direcionamento.
Os minerais, como a mica, associada às montanhas de Minas Gerais, enquanto ―a
opala da noite em estilhaços‖89
(Fotografia 21) assemelha-se a uma galáxia, como foi
sugerido no jornal; finalmente, ―e talvez a mais abstrata e a mais cósmica de todas e em que –
ao mesmo tempo – aparece maior mineralidade‖, a última das ilustrações (Fotografia 22)90
.
Tais ilustrações, associadas às palavras, criam um imaginário num todo que possibilita o
encontro com o arquétipo materno.
(Fotografia 21) – Pedra opala. (Fotografia 22) – Pedra com aparência abstrata.
(BISILLIAT apud ANDRADE, 1977, p. 14) (BISILLIAT apud ANDRADE, 1977, p. 38)
As imagens (Fotografias 21 e 22) remontam àquelas imagens primeiras, ―escondidas
nas profundezas noturnas do psiquismo‖ (PITA, 2005, p. 46), que Maureen Bisilliat por vezes
rememorava, e só então foram acionadas através da literatura de Grande Sertão: Veredas. É o
autor dessa obra que vai apontar as origens da fótografa de ―cigana da Irlanda‖, das terras das
montanhas escuras. A figura apresentada lembra um simbolismo antigo em que todo mineral
se apresenta como algo vivo, que brota da terra, — ―a terra era assimilada ao Ventre da Mãe,
às minas da sua matriz, e os minerais, aos «embriões»‖ (ELIADE, 1983, p. 30).
89
(ANDRADE, 1977, p. 13) Fragmento do poema que acompanha a imagem. 90
(ANDRADE, 1977, p. 38) O fragmento do poema que acompanha a imagem é: ―Há um calar entreliçado
nestes ares/ que só deixam fugir... o silêncio!/Blocos gelados de insuportável silêncio...‖
90
Como que ―Partindo da ideia de que todo reino mineral é semente‖, [...] ―o mundo
subterrâneo com seus mistérios da lenta gestação mineral que se processa nas entranhas da
terra-mãe‖ (READ, 1978, p. 57-61). Assim como na relação entre Maureen e a literatura
rosiana, Bachelard soube valorizar a literatura, ligando-a ao imaginário, pois aquela
[...] lhe serviu, sobretudo, de fonte de documentação sobre as atividades da
imaginação, sobre as atividades da imaginação, à medida que o escritor, o poeta, o
ensaísta tem o dom de captar no ato ―as imagens naturais‖. A literatura é, desse
ponto de vista, mais eficaz que a estética visual ou as mitologias, compiladas pelos
etnógrafos ou folcloristas. O escritor sabe trabalhar para reencontrar toda sua
primitividade substancial (PITA, 2005, p. 53).
A imagem da pedra opala nos remete a um torso feminino, uma marca da estética de
Maureen Bisilliat, elemento que reverbera nas imagens da fotógrafa, que, por sua vez, está
associado à terra, mais tarde encontrado nas terras brasileiras despertadas pelas imagens
literárias rosianas.
As fotografias de Maureen Bisilliat buscam a essência das coisas em suas imagens, ou
como a própria fotógrafa diz: ―O meu negócio é a alma, mas ela, sábia, nem sempre e quase
nunca se deixa aprisionar‖91
. A fotógrafa mergulha, de corpo e alma, nas impressões que
algumas obras literárias lhe causavam, o que resultou num diálogo com escritores, para o que
usava a expressão ―equivalências fotográficas‖92
. Trabalhava para que sua sequência de
imagens fotográficas fosse ―como um livro‖93
, um outro livro, que ressignificasse os
personagens dispostos nas obras, ao mesmo tempo que também remetesse às obras: ―Não
queria ilustrar personagens e cenas inventadas por escritores. Mas, imbuída da obra deles, ia
buscar a região que lhes serviu de inspiração‖94
. Maureen Bisilliat explica assim sua primeira
experiência com a literatura:
[...] naquela época, ainda pouco acessíveis, tendo como ponto de partida o
mergulho ―nas águas daquele mar de palavras‖, como se refere à obra de
Guimarães Rosa. Depois ia se haver com os autores, mas a reação era sempre
positiva – e surpreendente. ―Ao voltar de cada viagem a Minas Gerais, ia visitar
Rosa e mostrava pequenas cópias das fotografias. Ele olhava com muita
curiosidade para todas elas, fazia anotações e dizia ter saudades dos lugares e das
pessoas que via. Então, era como se minhas imagens fossem um espelho de sua
escrita‖, conta a fotógrafa.95
91
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/feira-livre/maureen-bisilliat-a-fotografa-de-
almas/>. Acesso em: 2 de nov. 2013.
92 Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1122278>. Acesso em: 2
de nov. 2013. 93
(op. cit.)
94
(op. cit.)
95
(op. cit.)
91
Neste capítulo apontamos elementos femininos que surgiram depois de conhecer
João Guimarães Rosa e sua obra Grande Sertão: Veredas, elementos importantes de nossa
análise que serão aprofundados mais adiante em A João Guimarães Rosa.
4.3 - O encontro com João Guimarães Rosa
A obra fotográfica de Maureen Bisilliat relacionada com o universo literário rosiano
tem início no ano de 1960, quando ela recebe a obra Grande sertão: Veredas de João
Guimarães Rosa, presente de um amigo, José Olympio Borges, mineiro de Patos de Minas,
certamente um conhecedor do texto rosiano. No ato da entrega do livro, o amigo diz para
Maureen Bisilliat: ―não sei se você vai compreender,‖ lembra a fotógrafa, rindo. De fato,
Maureen não só compreendeu, mas traduziu o livro de Rosa em imagens que resultaram em A
João Guimarães Rosa, fruto das viagens por Minas Gerais em 1963‖96
; nesse período, João
Guimarães Rosa era diplomata no Ministério das Relações Exteriores no Itamaraty, na então
capital federal, Rio de Janeiro. Maureen Bisilliat não perde tempo e trata logo de conhecê-lo,
pois tinha pretensão de realizar um trabalho fotográfico tendo a literatura como um dos guias
para a produção de imagens.
Um caminho de inesperado se abriu na carreira de Maureen quando José Olympio
Borges (conhecedor das terras e tradições mineiras, da literatura nacional e
internacional) presenteou com um exemplar de Grande sertão: veredas, de João
Guimarães Rosa. A leitura de uma obra que intimida até mesmo leitores
supostamente mais íntimos da língua portuguesa provocou em Maureen ―um tipo de
compreensão para além das palavras. Grande sertão: Veredas teve em mim o
impacto de um assombro.‖ Foi uma atração forte o bastante para levá-la a procurar o
escritor – então responsável pelo serviço de demarcação de Fronteiras – no
Itamaraty, no Rio de Janeiro. Queria fotografar aquele sertão (GÓES, 2009, p. 220).
João Guimarães Rosa fez uma sugestão de roteiro fotográfico para Maureen Bisilliat,
de modo que tal jornada se inicia partindo de sua cidade natal, Cordisburgo, cidade situada no
centro-norte de Minas Gerais. Logo em seguida, vai em direção do sentido norte pela BR-135,
chegando à cidade de Curvelo, Corinto, passando também por uma pequena cidade chamada
de Andrequicé, pertencente ao distrito de Três Marias, terras de Manuel Nardi, mais
96
ESTEVES, Juan. A cor mais brasileira! Disponível em: <http://paratyemfoco.com/blog/2010/03/a-cor-mais-
brasileira-por-juan-esteves/>. Acesso em: 9 de out. 2011.
92
conhecido por ―Manuelzão97
‖, que foi o famoso vaqueiro e guia de João Guimaraes Rosa
pelas brenhas adentro do alto sertão mineiro, anotando detalhes em tudo que ele achava
pertinente, para em seguida utilizá-los em sua criação literária, em que se destacam as novelas
Corpo de Baile e o romance Grande Sertão: Veredas, ambos lançados em 1956. Maureen
Bisilliat percorre alguns outros tantos vilarejos de passagem, até a altura de Januária, região
pertencente ao Polígono das Secas, divisa com a Bahia, no Alto Médio São Francisco, e tantos
outros lugares:
Rosa rabiscou-lhe uma lista de lugares e pessoas, e disse que aquele era o tronco e
que os galhos ela caberia encontrar sozinha. Confiava que a ascendência irlandesa a
predisporia a entender Minas Gerais. As viagens – quatro, em dois anos –
começaram em Cordisburgo, terra Natal do autor, e prosseguiram em direção a
Curvelo, Corinto e pelos Gerais até Januária, norte de Minas. Guimarães Rosa
morreu em 1967, antes do lançamento do livro, mas chegou a ver algumas fotos,
ampliadas em tamanho de cartão-postal, que Maureen ia lhe mostrando ao voltar de
cada viagem. Rosa crivou-a de perguntas sobre cada lugar, cada pessoa, cada
situação encontrada, anotando no verso das imagens tudo que ela contou. Guardo-as
e disse apenas que estava com saudade de rever sua terra. (GÓES, 2009, p. 220).
A repercussão desse trabalho sobre Guimarães Rosa foi muito importante na vida de
Maureen Bisilliat. Assim que o jornalista Audálio Dantas observou tais imagens, não hesitou
na indicação de Maureen Bisilliat para a Editora Abril; sua relação com a literatura era
notória, o que mostrava uma perfeita adequação com a linha editorial da revista Realidade.
Um dos grandes nomes da revista, José Hamilton Ribeiro, diz que ―Maureen transita
entre a objetividade e a pintura. Maureen Bisilliat, inglesa, morena, pequenininha, agitada,
não tinha medo de pauta e procurava, em suas fotos, dar um sentido de pintura, de quadro, ela
que era, também, pintora‖ (RIBEIRO; MARÃO, 2010, p. 415). Sua técnica oriunda da
pintura, como o chiaroescuro,98
refletia-se consideralvelmente em seus trabalhos. Do mesmo
modo que as imagens fotográficas surpreenderam o jornalista Audálio Dantas ao ver a
tradução da obra de Guimarães Rosa referente ao sertão mineiro, Grande Sertão: Veredas,
isso também aconteceu com os irmãos Villas Boas, que a convidaram imediatamente para
registrar ―o imáginário agonizante dos índios do terrítório Xingu” (FERNANDES JUNIOR,
2003, p. 153).
97 Existe uma novela em Corpo de Baile denominada de Manuelzão e Miguilim, em que Rosa homenageia esse
seu guia ao nomear um vaqueiro em sua ficção com o seu nome.
98 Criado por Leonardo da Vinci no século XV, o efeito tem justamente a finalidade de sugerir volume
na imagem por meio dos contrastes entre luz e sombra – por isso o efeito também é chamado de
perspectiva tonal. Disponível em:
<http://www.iar.unicamp.br/lab/luz/ld/Cinema%20V%EDdeo%20e%20TV/as_cores_e_a_luz_no_cinema
.pdf>. Acesso em: 24 de ago. de 2011.
93
Seus ensaios e modos de ver o mundo, com muita luz, pouca luz, contraluz, e muitas
vezes carregado de sombras, vem possivelmente de dois grandes fotógrafos que Maureen
Bisilliat admirava: de um lado, um dos primeiros fotógrafos considerados um representante
do fotojornalismo expressionista, o norte-americano W. Eugene Smith, pioneiro na arte do
ensaio fotográfico ao captar as imagens bem trágicas de situações de guerra, atuando em
outros países.
As imagens de Eugene Smith impressionam pela proximidade e envolvimento com o
fato, tais os temas sociais, como seus ensaios de cunho humanista, ligados à poluição de rios
por mercúrio no Japão, que causaram o nascimento de crianças deficientes (Fotografia 23).
Trata-se do retrato de Tomoko Uemura, uma jovem de 17 anos, habitante de uma ilha nas
proximidades da baía de Minamata, Japão, contaminada pelo mercúrio advindo de uma
indústria química. Tal imagem é considerada como sendo a Pietá de Eugene Smith, com a
mãe segurando Tomoko no colo, durante o banho. E também a uma das imagens mais
famosas (Aldeia espanhola) (Fotografia 24), em um ensaio, ao retratar a miséria de um
vilarejo espanhol em plena ditadura de Francisco Franco.
(Fotografia 23) A jovem Tomoko Uemura banhada por sua mãe,
Minamata, Japão, 1972. Eugene Smith99
(Fotografia 24) Mulheres velam o corpo de Juan Larra na
cidade de Deleitosa, Espanha, 1950. Eugene Smith100
Maureen Bisilliat apropria-se desse tipo de luz, a do claro e escuro; essa imagem
possivelmente a impressionou. De outro lado, também assimila o estilo formal de Bill Brandt,
99
Disponível em: http://www.masters-of-photography.com/S/smith/smith_wake.html> Acesso em: 30 de abr.
2012. 100
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/sobre-imagens/classicos/w-eugene-smith/>. Acesso em: 30
de abr. 2012.
94
considerado um dos maiores fotógrafos ingleses de origem alemã por seus ângulos inusitados,
beirando o surreal, como em alguns temas trabalhados por ele, quando apresenta uma imagem
com uma orelha humana em primeiro plano e ao longe uma vasta praia, com pedras tendo ao
fundo uma montanha (Fotografia 25). Da mesma forma que Smith, também atua como um
fotógrafo defensor das causas humanistas, como na situação enfrentada pelos operários
irlandeses (Fotografia 26), ancestrais de Maureen. As precárias condições de vida
apresentadas em suas imagens são irreverentes, de uma luz sombria como em Maureen
Bisilliat, incisivas ao retratar as tragédias humanas, e ao mesmo tempo destemidas em suas
andanças na busca de um tema interessante como o sertão.
(Fotografia 25) Mineradores ingleses, (Fotografia 26) Costa leste, Sussex,
1931-35. Bill Brandt. Inglaterra. 1957. Bill Brandt.
Fotografias de Bill Brand: Disponível em:<http://www.masters-of-
photography.com/B/brandt/brandt5.html>. Acesso em: 30 de abr. 2012.
4.4 - Maureen Bisilliat: “a cigana irlandesa”
Maureen Bisilliat ao conhecer Guimarães Rosa toma conhecimento das imagens que
até então desconhecia acerca de suas origens, seu universo imaginário, que remetia ao
mundo irlandês. Guimarães afirma que ela não teria problema em enveredar pelo sertão,
compreender o sertão, sendo irlandesa, como não teria dificuldades também para
compreender a obra Grande Sertão: Veredas.
95
É a obra literária que vai despertar em Maureen Bisilliat suas ancestralidades
latentes. Em entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho, do jornal O Estado de São
Paulo (2010), diz que: ―Guimarães Rosa não só a recebeu como disse à ‗cigana irlandesa‘ –
apelido cunhado por ele – que seus ancestrais iriam ajudá-la a entender o sertão mineiro‖101
.
Coincidentemente, nesse mesmo ano de 1963, é naturalizada brasileira. Rosa lhe disse,
acerca de ―sua ligação espiritual com o País, ―que assim como‖102
‗o sertanejo brasileiro, os
irlandeses vivem no essencial da terra e têm uma ligação ancestral com a palavra‘, observa
Maureen Bisilliat, ―uma inglesa [...] cujos avós eram da terra de James Joyce‖ 103
.
A fotógrafa, apesar de ter nascido na Inglaterra, confessa que é meio britânica e meio
irlandesa, pois a maioria de sua família por parte de mãe é de origem irlandesa, e explica que
a linguagem poética do irlandês tem muita semelhança com a do sertanejo. Esse fato vai se
tornar um referencial muito forte em sua vida. É notória, portanto, a presença de Guimarães
Rosa em sua vida: é ele quem faz uma ponte entre suas origens irlandesas e o sertão
brasileiro. Em entrevista concedida a Célia Demarchi (2010), Maureen Bisilliat esclarece
que:
Fui somente uma vez para lá, com minha mãe, quando tinha 16 ou 17 anos. A
Irlanda se firmou como referência para mim através de Guimarães Rosa. Em nosso
primeiro encontro, depois que li Grande Sertão: Veredas e decidi conhecer os
Gerais, ele traçou para mim um roteiro de viagem, a seu ver uma coisa simples, mas,
―sendo irlandesa‖, como ele disse então, eu iria me enfronhar lá dentro, descobrir e
compreender aquelas populações. Por quê? Os irlandeses, e não só os autores
irlandeses, são como são porque são irlandeses, ou seja, têm a palavra na raiz da
língua, como Guimarães, sendo mineiro, tinha essa riqueza. [...] Na Inglaterra
chamam os irlandeses popularmente de saints and sinners (santos e pecadores) e
eles têm the gift of the gab, quer dizer, são os papas do papo, porque eles são soltos,
falam, falam e falam, até o ponto de irritar. Eles nasceram com a fluência da palavra,
mas uma palavra inventiva, irreverente, às vezes, e tradicionalmente criativa.
Guimarães Rosa era mineiro de uma pequena cidade, mas se tornou um autor de
projeção internacional. E é claro que ele conhecia bem a literatura irlandesa.104
Falar de suas raízes, sua linguagem, do falar poético do sertanejo igual ao irlandês, do
seu lado cigano, de suas imagens que ela acredita resgatar, algo então constatado com a obra
de Guimarães Rosa, era algo mítico e remetia ao imaginário de Gilbert Durand, devido às
imagens latentes reveladas pelo escritor. E que apontava na maioria das vezes também para o
101
FILHO, Antonio Gonçalves - O Estadão de S. Paulo. Olhar de ''cigana irlandesa''
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,olhar-de-cigana-irlandesa,517466,0.htm>. Acesso em: 30
abr. 2012. 102
Grifo nosso. 103
(op. cit.) 104
DEMARCHI, Célia. Como espelhar o inexplicável?Jornal O Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo/artigo.cfm?Edição_Id=386&breadcru... >. Acesso
em: 7 jul. 2011.
96
universo feminino. É nítida a relação do elemento imaginário hídrico, o rio, tão presente no
itinerário do jagunço Riobaldo, com o elemento terra e o próprio sertão.
Para que uma obra seja consubstanciada em um dos elementos, não é suficiente sua
citação, a sua simples aparição. Por exemplo, o aparecimento do rio em uma obra
não é suficiente para que sua ―matéria poética‖ seja a água. A garantia só poderá
ocorrer com a manifestação do elemento água sob diferentes formas, o que poderá
desencadear suas manifestações cósmicas. Isso que poderíamos identificar como
fatores ecoantes, Bachelard irá chamar isso ―ressoantes‖, os quais dão densidade à
―matéria poética‖ de uma obra, funcionando como dinamizadores dessa matéria.
Comporta-se como ressoador de água na obra rosiana tudo aquilo que de alguma
forma remete ao imaginário hídrico, por exemplo: o cavalo, o caramujo, a canoa, o
buriti, a chuva, a nuvem, a vaca, a lua, o orvalho, o cágado, o jacaré, o suor, a sede,
o sangue, a neblina, o feminino, etc. (SOBRINHO apud VIGGIANO, 2007, p.10)
É notória a presença desses dois elementos na obra rosiana, o que procuraremos
ressaltar na obra de Bisilliat: a terra e a água, em complemento entre imagens e texto,
desaguando numa terceira margem. Uma síntese do que pretendemos constatar em nossa tese:
o imaginário feminino do sertão, presente em Rosa, e consequentemente em Maureen
Bisilliat.
Como todo fotógrafo carrega consigo alguns conceitos na construção de suas imagens,
Maureen Bisilliat denominou Equivalências fotográficas a toda a sua produção imagética
relacionada ao universo literário, ao trabalhar com diversos escritores brasileiros, como João
Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, Euclides da Cunha, Adélia Prado, Mário de Andrade e
Carlos Drummond de Andrade. A proposta é então apresentada na folha de rosto, ao trabalhar
com a obra cabralina, e diz: ―Um traçado de equivalências é a proposta da coleção Poemas do
País, onde texto e imagem se justapõem, por consonância ou dissonância se agregam, e se
encontram em equidistância de vôo‖ (MELO NETO, 1984, p. 7).
O repórter do jornal O Estado de São Paulo, Antonio Gonçalves Filho (2010),
esclarece que o termo equivalência é originário do fotógrafo Alfred Stieglitz:
A expressão "equivalência fotográfica" foi emprestada do fotógrafo norte-americano
Alfred Stieglitz (1864-1946), visionário que introduziu a vanguarda europeia em
Nova York e rejeitou, como Maureen, o uso da fotografia como ilustração. Foi por
acreditar na autonomia da linguagem fotográfica que ela pegou uma Rolleiflex na
mão nos anos 1950, época em que desembarcou em Nova York para estudar com
Morris Kantor.105
105
FILHO, Antonio Gonçalves - O Estadão de S. Paulo. Olhar de ''cigana irlandesa''
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,olhar-de-cigana-irlandesa,517466,0.htm>. Acesso em: 30
abr. 2012.
97
O conceito de equivalência refere-se a possibilidades criativas de representação da
imagem através do fotógrafo, de modo que a fotografia não é apenas um recorte da realidade,
um mero documento da realidade. Maureen Bisilliat, ao associar uma imagem literária com
sua produção fotográfica, gera uma imagem para o leitor em que nessa associação é criada
uma metáfora, de modo que leitor e fotógrafo compartilham de uma mesma sensação pessoal.
Lima; Silva (2001) esclarecem: ―A fotografia expressa um certo grau de Equivalência quando
o espectador vê na imagem algo correspondente a uma sensação de seu interior, ou seja, os
sentimentos do fotógrafo são similares ao do seu espectador, criando assim um sentimento
conhecido, uma equivalência de sensações e estímulos‖ (LIMA; SILVA, 2001, p. 8).
No entanto, o conceito pode ser bem mais amplo no que se refere ao fazer poético na
fotografia, se compararmos a Stieglitz. Um projeto paralelo, por ela denominado
―Equivalências Fotográficas‖ – que tem semelhança no conceito de que imagens não servem
como mera ilustração. ―Os Equivalentes de Alfred Stieglitz ‖106
não trabalham com a relação
literatura e fotografia; esse fotógrafo vanguardista, defensor da fotografia como arte e
divulgador das ideias modernistas em Nova Iorque, ao representar a imagem de nuvens entre
os anos de 1925 a 1934 (cerca de 220 imagens), culmina por produzir as primeiras imagens
fotográficas abstratas, creditando a autonomia destas, no mundo das artes, como sua
representação própria.
O crítico fotográfico Rubens Fernandes Junior (2003) nos fala também com relação às
escolhas dos temas fotográficos de Maureen Bisilliat, mencionando a brasilidade e
aproximando a literatura e a fotografia, desde que ficou impregnada daquele mar de palavras,
quando conheceu a obra rosiana, embrenhando-se no sertão mineiro em busca de seus
personagens e paisagens. Nas palavras de Fernandes Junior:
Maureen Bisilliat acredita que sua paixão pelo país a aproxima de ser ‗Oxumaré,
aquele misto de arco-íris e serpente, que não é divindade, mas um ponto de ligação
entre fragmentos de um mundo plural que se espelha em outros fragmentos seus
equivalentes‘. Por isso sua preferência sempre foi temas esquecidos, escondidos
nesse imenso país como vestígios que precisam ser elaborados cuidadosamente para
serem flagrados em sua essência.
Suas imagens são fantasmagóricas, realizadas nas baixas luzes, com foco crítico,
buscando ora a singeleza de um povo, ora sua dignidade perdida. Ela trouxe para a
fotografia a possibilidade de entendermos o país através dos clássicos da literatura,
percorrendo a dimensão poética da realidade brasileira dada pelos escritores
brasileiros. Maureen tem a ousadia de trabalhar a partir da ambiguidade poética e
passional dos personagens para criar imagens que trazem o instante fugidio do fazer
106 ESTEVES, Juan. A cor mais brasileira! Disponível em: <http://paratyemfoco.com/blog/2010/03/a-cor-
mais-brasileira-por-juan-esteves/>. Acesso em: 30 abr. 2012.
98
fotográfico. A transformação das cores, a imprecisão do foco, os cortes pouco
convencionais, as sombras expressionistas, as imagens monocromáticas, as
luminosidades exageradas, as ausências, tudo isso para elaborar um fio condutor
lógico e mágico, que é a sua sintaxe, na maioria das vezes instigante, para provocar
inquietações (FERNANDES JUNIOR, 2003, p. 154).
Há fotografias por vezes fantasmagóricas, com variação extrema de luzes, baixas e
altas, muitas vezes imagens fora de foco, com cortes fora dos padrões convencionais, como
veremos em imagens analisadas mais adiante na obra A João Guimaraes Rosa. ―Para
desenvolver seu trabalho fotográfico, Maureen Bisilliat prefere a solidão e o isolamento, pois
defende a ideia de que para criar é preciso sofrer um corte radical, cortar as amarras e as
referências e apreender o que está a sua frente‖ (idem, ibidem). A própria fotógrafa acredita
que não possui uma síntese perfeita ao enquadrar um instante, como em trabalhos de grandes
fotógrafos, e talvez isto seja a sua diferença, acrescida da noção de que a fotografia é uma
linha tênue de ligação com a pintura por onde começou, ao estudar luz, cor, corpos e
movimento. Mais adiante enveredou pelo vídeo, pois não acredita em uma única arte, como a
pintura, fotografia e vídeo, mas em uma como prolongamento da outra.
4.5 - A imaginação fotográfica na literatura rosiana
Em Sagarana, constatamos elementos que remetem à presença da fotografia. No conto
―A volta do marido pródigo‖, Lalino, conhecido como Laio, compara os retratos das mulheres
bonitas vistas nos calendários com as mulheres da vida, ―gringas‖ do Rio de Janeiro, mesmo
nunca tendo ido lá.
Tem lugar lá, que de dia e de noite está cheio de mulheres, só de mulheres bonitas!
... Mas, bonitas de verdade, feito santa moça, feito retrato de folhinha... Tem de toda
qualidade: francesa, alemanha, turca, italiana, gringa ... É só a gente chegar e
escolher... Elas ficam nas janelas e nas portas, vestindo de pijama... de menos ainda
... Só vendo, seus mandioqueiros! Cambada de capiaus (ROSA, 2009, p. 63).
No conto ―Minha Gente‖, do mesmo livro Sagarana, Maria Irma, numa cena de
ciúmes, percebe no olhar de narrador, o Doutor, o seu olhar de raiva, irado com o
comportamento da prima, que recebe presentes e livros de rapaz da vila, pois pensava que ele
era o noivo dela. Maria Irma, indignada, diz:
- Por que você nunca me disse que gostava de ler, Maria Irma? !
- Pois você nunca me perguntou...
- Esse rapaz é que é o seu noivo?
- Não, não é este... E, também, noiva eu não sou, você bem sabe!
- Não fique zangada comigo, prima...
- Não estou... Mas você não deve me olhar assim...
Parece que quer me fotografar... (ROSA, 2009, p. 155).
99
O sentido empregado pela protagonista para o termo fotografar sugere um misto de
raiva e desejo por Maria Irma, um olhar de fotógrafo, imobilizando ―uma cena rápida em seu
tempo decisivo‖ (BARTHES, 1984, p. 55), que suscita apropriar-se da coisa fotografada.
Ainda, em Sagarana, no conto ―São Marcos‖, dentre tantos empregos do retrato, temos a
descrição da imagem refletida em um lago que se assemelha a uma imagem fotográfica
invertida:
Tiro o paletó e me recosto na coraleira. Estou entre o começo do mato e um braço da
lagoa, onde, além do retrato invertido de todas as plantas tomando um banho verde
no fundo, já há muita movimentação. A face da lagoa em que bate o sol, toda
esfarinhenta, com uma dança de pétalas d'água, vê-se que vem avançando para a
outra, a da sombra. E a lagoa parece dobrada em duas, e o diedro é perfeito.
- Chuá... (ROSA, 2009, p. 181)
No mesmo conto, o retrato também é utilizado com sendo a representação de um
boneco para a prática de bruxaria denominada de vodu, com uma fita nos olhos colocada por
Mangolô, um ―preto velho‖ feiticeiro que habitava o arraial de Calango-Frito. O narrador José
chama-o de ―cachaceiro‖, ―vagabundo‖ e ―feiticeiro‖; daí Mangolô pretende cegá-lo, através
de um feitiço. José, mesmo cego, consegue ir até a casa de Mangolô, obrigando-o a desfazer o
feitiço.
- Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o retrato, p'ra explicar ao
Sinhô.. .
- E que mais? ! - Outro safanão, e Mangolô foi à parede e voltou de viagem, com
movimentos de rotação e translação ao redor do sol, do qual recebe luz e calor.
- Não quis matar, não quis ofender... Amarrei só esta tirinha de pano preto nas vistas
do retrato, p'ra Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar... Olho que deve de
ficar fechado, p'ra não precisar de ver negro feio'... (ROSA, 2009, p. 187).
Em Corpo de baile, encontra-se Catraz assim como Lalino em Sagarana, muitos
homens são fascinados por retratos de mulheres. Com o personagem, Seu ―Alquiste” ou
―Ouquiste”, um quase alemão, ―alemão-rana‖ de ―O recado do morro‖, uma das sete novelas
que compõem o volume Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, enquanto ele viaja ao interior do
Sertão, ―transpassava a tiracol as correias da codaque [...]‖ (ROSA, 2001, p. 28) e fotografa
quase tudo que vê. Ainda no mesmo conto, o personagem bocó Catraz se apaixona por um
retrato de uma mulher em um calendário, ―qual era uma estampa de calendário de parede, a
figura de uma moça civilizada, com um colar de sete voltas, o Catraz pelo retrato pegará
paixão‖ (ROSA, 2001, p. 56).
A novela ―Campo Geral” inserida na obra Manuelzão e Miguilim, conta a seguinte
estória: ―Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe muito,
muito depois da Vereda-do-Frango-d‘Água e de outras veredas em nome ou pouco
100
conhecidas, em ponto remoto, no Mútum‖ (ROSA, 2001, p. 27). A obra narra o mundo
através do olhar de uma criança, Miguilim. Silva (2001) afirma que nesta obra:
[...] é determinante a narração rica em detalhes. O espaço – o Mutum e o mundo –
assim como a apresentação das cenas, dos fatos e dos outros personagens da
narrativa é revelado pelo olhar do protagonista de forma detalhada criando imagens
ricas em precisão. Guimarães, graças à utilização dessa minuciosa e cuidadosa
descrição, consegue produzir um efeito quase fotográfico sobre as paisagens e as
cenas em Miguilim. Assim, o leitor não só consegue visualizar a narrativa mas
também tem a impressão que está presente, observando as cenas e as personagens
reveladas (SILVA, 2001, p. 134).
O leitor consegue perceber através da narrativa imagética da obra, nuances que
remetem a uma possível realidade, ambientes onde ocorreram as ações por seus protagonistas,
apesar de fictícia. Como nos fragmentos apresentados:
Tio Terêz trazia um coelho morto ensanguentado, de cabeça para baixo. A
cachorrada pulava, embolatidos, tio Terêz bateu na bôca do Caráter, que ganiu,
saíam correndo embora aqueles todos quatro: Caráter, Catita, Soprado e Floresto.
Seu-Nome ficava em pé quase, para lamber o sangue da cara do coelho (ROSA,
2001, p. 40).
Miguilim olhava. A roça era um lugarzinho descansado bonito, cercado de varas, mò
de os bichos que estragam. Mas muitas borboletas voavam. Afincada na cerca tinha
uma caveira inteira de boi, os chifres grandes, branquela, por toda boa-sorte. E
espetados em outros paus de cerca tinha outros chifres de boi, desemparelhados,
soltos: - que ali ninguém botava mau olhado! As feições daquela caveira grande de
boi eram muito sérias (ROSA, 2001, p. 81).
Do homem da canoa, do conto ―A terceira margem do rio‖, de Primeiras Estórias, os
―homens do jornal [...] tencionaram tirar retrato dele‖ (ROSA, 2009, p. 421) e não
conseguiram. Esses homens fotógrafos do jornal, fotojornalistas, devido à estranheza do fato,
tentam registar esse acontecimento insólito, digno de uma notícia, por remeter à solidão e à
loucura de um pai que abandona a família e parte em busca de si mesmo em uma canoa, sem
nunca abandoná-la em um rio.
Em ―O espelho‖, também da obra Primeiras Estórias, em frente ao espelho, a lógica
da veracidade não existe. Assim como uma imagem fotográfica, seu referente é ―sempre um
duplo, emanação física do objeto, vestígio da luz, marca e prova do real. Entretanto, por mais
fiel que a fotografia possa ser, ela não é, efetivamente, aquilo que registrou‖ (SANTAELLA,
2012, p. 78). A verdade não está no espelho, mas em seu reflexo; o que vemos é uma
representação da realidade, um mundo situado num plano bidimensional, similar a uma
fotografia. Não podemos determinar com exatidão a fidedignidade e os mistérios das pessoas
através das aparências:
101
O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o
senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem
fiel. Mas − que espelho? Há-os ―bons‖ e ―maus‖, os que favorecem e os que
detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e o ponto
dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes
próximos, Somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam.
Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções
análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam
superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso (ROSA, 2009, p.
446).
Em Grande Sertão: Veredas, no transcorrer da obra, o narrador questiona o que
realmente é a vida ou o que é a verdade dela. A imagem apresentada no espelho revela a
diferença e a não aproximação, o afastamento e a revelação entre a realidade e o seu reflexo, o
dentro e o fora, uma metáfora existencial, através da imagem refletida. As imagens e seus
reflexos traduzem toda uma complexidade transcendental que esse conto possui. O narrador
indaga ironicamente ao leitor sobre a verdade: ―O senhor, por exemplo, que sabe e estuda,
suponho nem tenha ideia do que seja na verdade – um espelho?‖. Existe uma tentativa por
parte de narrador de eliminar o duplo, até encontrar a essência das coisas:
O senhor, mire e veja, o senhor: a verdade instantânea dum fato, a gente vai departir,
e ninguém crê. Acham que é um falso narrar. Agora, eu, eu sei como tudo é: as
coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da
unha; e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do momento. Assim. Arte
que virei chefe. Assim exato é que foi, juro ao senhor. Outros é que contam de outra
maneira (ROSA, 2001, p. 625).
Em outra passagem no mesmo romance, o narrador observa as fotografias, como se
estivesse vendo e reconhecendo os marginais através das imagens destes, como se fossem
retratos falados. A fotografia, como enfatiza Barthes: ― ‗Olhem‘, ‗Olhe‘, ‗Eis aqui‘; ela aponta
com o dedo um certo vis-à-vis [...].‖(BARTHES, 1984, p. 14). ―Vinha reolhando, historiando
a papelada – uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços, ladrões
de cavalos e criminosos de morte‖ (ROSA, 2001, p. 19).
A fotografia retrato, não podendo negar as suas semelhanças, como se ―A direção do
meu olhar é o seu dedo apontando‖ (PESSOA, 2010, p. 49), dá indícios das feições do pai
Selorico Mendes impregnadas no suposto filho, Riobaldo. ―Mas, um dia – de tanto querer não
pensar no princípio disso, acabei me esquecendo quem – me disseram que não era à-toa que
minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes‖ (ROSA, 2001, p. 167). A imagem
retrato pode apontar para uma realidade, nua e crua; e quase nunca não podemos negar que de
fato existiu tal realidade, pois as indicialidades apontam para elas, devido à tamanha
semelhança que a fotografia pode transmitir.
102
4.5.1 - Um exemplo do verbal e do não verbal em Primeiras Estórias
No livro Primeiras Estórias107
é possível observar diversas ilustrações na capa, nas
orelhas e no miolo. Ao longo dos anos, devido às publicações com diferentes edições e
editores, ―encontramos variantes significativas que podem levar a leituras diferentes do texto‖
(SANVERINO, 2012, p. 2). No índice da obra, um item relevante: ocorre o encontro de duas
linguagens, a verbal e a não verbal, desde o título da obra, relacionadas com as imagens, bem
como o de cada conto em si. Ao analisar o conto ―Substância,‖ da mesma obra, Agustini e
Rodrigues afirmam sobre essas ―duas escritas presentes em Primeiras Estórias‖ que:
[...] constituídas de materialidades distintas, de natureza verbal: as estórias em
palavra, e não-verbal: as ilustrações criptográficas que indicam o volume dos 21
contos integrantes de Primeiras Estórias -, postas em relação tendem a apagar as
fronteiras que supostamente as delimitam, de modo a configurar certa unidade ao
volume e, assim se dando, pôr em relevo o modo singular com que o tema ali é
abordado, traduzido e transcrito (AGUSTINI; RODRIGUES, 2013, p. 1-2).
(Figura 5) – Índices da obra Primeiras Estórias108
107
Na primeira edição da José Olympio, em 1961, Guimarães Rosa trabalhou junto com o editor, fez a escolha
da capa e do índice ilustrado. Note-se que a capa impressa contém não apenas o título, o nome do autor, a
editora, etc. Há também aí uma escolha de imagem. No caso, Rosa escolheu desenhos de feição popular (que
lembram ilustrações de cordel) e que ilustram cada uma das histórias. Não se trata, no entanto, de mera
redundância em relação ao texto, tornam-se uma espécie de comentário visual dos contos. O mesmo comentário
pode ser feito em relação ao índice ilustrado, em que cada linha sintetiza o conto indicado com uma sequência de
pequenos desenhos, que mais do que ilustração redundante, acrescentam algo que não está no conto
(SANVERINO, 2012, p. 2-3) . 108
(ROSA, 2001, p. 235-36.)
103
O índice (Figura 5) aparece como um código cifrado que acompanha cada título do
conto, logo abaixo, numa indicialidade visual, através de desenhos. Rosa deixa pistas acerca
do que trata o livro, por meio de uma espécie de estruturação de cada conto: ―Texto e livro se
correspondem. O conto a ser lido depois de o livro aberto e sua figuração ilustrada no índice
contêm aproximações razoáveis‖ (SANVERINO, 2012, p. 5), ilustrações confeccionadas por
sua filha, Vilma Guimarães Rosa109
.
Primeiramente, é apresentado o símbolo do anel de Möebius, no primeiro conto da
obra, ―As margens da alegria‖, podendo ser usado para representar o infinito, símbolo
recorrente na obra rosiana, como no final de Grande Sertão: Veredas. Logo em seguida, uma
sucessão de três arvores em pé, estando a quarta árvore tombada. Na sequência, aparece uma
ave, um peru, a figura de uma pessoa, que pode ser um menino, retornando a uma árvore
tombada; em seguida, mais três arvores em pé e, por fim, um símbolo indicando um elemento
feminino, signo astrológico do planeta Terra, um círculo com uma cruz acima, conforme nos
mostra a figura abaixo (Figura 6):
(Figura 6) – Índice referente ao conto ―As margens da alegria‖, do livro Primeiras Estórias110
Analisando a estrutura do conto, primeiramente ocorre uma viagem de avião, a
chegada ao acampamento de engenheiros que constroem a ―grande cidade, capital‖, o
encontro com a ave, o peru, em seguida um passeio de jeep para onde seria o sítio do Ipê, o
109
Em muitas oportunidades, Vilma Guimarães Rosa afirma a ligação de seu pai com as imagens, fixas ou em
movimento, e a fascinação dele pelos desenhos. É assim que, para as Primeiras Estórias, teria sido Rosa mesmo,
segundo Vilma, quem esboçou as ilustrações que fazem parte da orelha do livro em suas primeiras edições. ―Em
Primeiras Estórias, o índice é ilustrado, conto por conto, linha por linha, segundo esboços de sua mão, [a de
Guimarães Rosa] habilmente redesenhados por Luís Jardim‖ (ROSA, 1983, p. 79). Há, porém, uma divergência
a respeito dos desenhos-miniatura do livro, a se levar em conta certa nota editorial inserida pela José Olympio
Editora em algumas edições. Diz a nota: ―Capa de Luís Jardim. Primeiras Estórias apresentam a novidade de um
índice ilustrado: a pedido do autor, Jardim fez desenhos-miniatura com paciência chinesa para cada uma das
estórias, compondo o conjunto de bonito índice geral‖ (SANVERINO, 2012, p. 5-6). 110 (ROSA, 2001, p. 235).
104
retorno à casa, restos mortais da ave, saída para a cidade, e finalmente o encontro com outro
peru. O símbolo da fita de Möebius representa o ciclo infinito da vida – o nascer, crescer,
reproduzir e morrer e os acasos da vida. A descoberta e a alegria de encontrar com uma ave,
um peru imperial.
As árvores poderiam ser aquelas que ele, o menino, tanto admira na sua imensidão,
observando quando estava voando no avião, ou as árvores frondosas da mata fechada: ―A
mata, as mais negras árvores, era um montão demais o mundo‖ (ROSA, 2009, p. 404). Tanto
pode representar a simbologia da terra, como também a simbologia de Möebius na imensidão
do mundo. ―Margens da alegria, a pequena luz, frágil e vacilante, circundada pelo negror do
mundo. Nesse caminho, as imagens parecem comentar o conto, quando colocam o Menino e o
Peru no centro‖ (SANVERINO, 2012, p. 9). Os 21 contos que compõem Primeiras estórias,
em sua integralidade, demandam interpretação: ―Uma interpretação que se mantém, contudo,
em aberto; constituindo lugar de ancoragem para produção de (re)leituras, ou seja, novos
movimentos de deciframento-ciframento: edições de outros enigmas‖ (AGUSTINI;
RODRIGUES, 2013, p. 5).
Na leitura dos contos observamos a riqueza de detalhes, que dão mais sentido às
imagens criadas em seu índice, às similaridades e estranhamentos que vão se entrelaçando, de
modo a propiciar um sentido múltiplo a cada processo de leitura. Apesar de Guimarães Rosa
não ter utilizado imagens fotográficas relacionadas à sua obra, essa análise da utilização da
gravura serve para demonstrar a capacidade inventiva e contemporânea desse escritor em
ativar e permitir a inclusão de outros meios conjugados ao seu texto, propiciando mecanismos
diferentes de leitura.
4.5.2 - A imaginação fotográfica e o verbal e não verbal em Grande Sertão: Veredas
Em Grande Sertão: Veredas, ―o Conceiço guardava numa sacola todo retrato de
mulher que ia achando, até recortado de folhinha ou de jornal (ROSA, 1967, p. 242). As
imagens fotográficas exercem sobre esses personagens tamanha atração, como algo que
possibilitasse uma certa posse da realidade, apropriando-se desse universo em forma de
fotografias, ―pseudo-presença assim como também uma prova de ausência. [...] podem incitar
o desejo da maneira mais direta e utilitária, como quando uma pessoa coleciona fotos de
exemplos anônimos do desejável, como modelos nus, com o fim de ajudar a masturbação‖
(SONTAG, 2004, p. 27).
105
Sontag faz referência ao universo fotográfico como sendo uma maneira de possessão
da realidade, uma sensação de poder e domínio sobre o fotografado. Apesar de o real não
poder ser possuído, no entanto, através das imagens isso é possível.
O momento de puro ato fotográfico acontece em pleno sertão, quando um homem tira
uma fotografia de Riobaldo e Fafafa. Seria uma foto de ―lambe-lambe‖111
, revelada em
poucos instantes, uma fotografia 3x4 para documento, apesar de ser denominado de
instantâneo: ―tirar um instantâneo‖.
Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele arraial, me lembro. Saí alegre do
bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se não tinham chá de mate
seco, comercial; e um homem tirou instantâneo nosso retrato. Se chamava o lugar:
São João das Altas (ROSA, 2001, p. 267).
É que, apesar de ser uma fotografia posada, não deixa de ter uma fração de tempo
congelado em um negativo nos tempos idos da fotografia analógica. Pose, atualmente, é mais
uma convenção social para parecer bem na foto, do que propriamente uma dificuldade
tecnológica, como nos tempos em que para se tirar uma fotografia poderia levar alguns
segundos de tempo. ―Como numa fotografia, o fato, quando vira narrativa, é congelado para
ser melhor apreciado‖ (REINALDO, 2008, p. 7). Em Grande sertão: Veredas o próprio
interlocutor não se revela, pois o seu olhar, a maneira como o narrador se comunica com ele,
poderia muito bem ser o de um fotógrafo, etnólogo ou mesmo Um turista aprendiz, como em
Mário de Andrade. A presença do artefato fotográfico pode ainda ser os indícios da passagem
do sertão arcaico para um sertão moderno.
O romance oferece muitas possibilidades de leituras, como uma obra dantesca a
oferecer um grande arsenal de metáforas e tantas outras expressivas representações narradas
de uma grande geografia épica e mítica com possiblidades pictóricas de um sertão que é o
mundo.
Artistas outros na contemporaneidade continuaram a fazer uso dessa técnica artística
denominada gravura, por meio de trabalhos inseridos nos livros, nas mais diversas formas de
apresentação, como João Guimarães Rosa soube fazer uso da ilustração112
de seus trabalhos
111
Uma das primeiras referências sobre a atuação destas profissionais nos remete ao aparecimento dos fotógrafos
ambulantes nas festas e feiras populares europeias, espaços onde a fotografia revelava a grande amplitude dos
usos e das funções sociais da imagem técnica. Desde seus primeiros processos desenvolvidos, a fotografia
sempre participou das tradicionais festas populares, transformando-se em uma atração mágica que também
refletia o avanço científico de uma época. Ao lado de cinematógrafos, dioramas e estereoscópios, o retrato
fotográfico produzido pelos fotógrafos ambulantes atraía a atenção do público dessas feiras (ÁGUEDA, 2008, p.
65). 112
Muitas cartas de Guimarães Rosa trazem a marca da ilustração. Elas usam o desenho como artifício
expressivo de particular ―poder sugestivo‖, segundo o próprio escritor. Ao longo de contos e no grande romance
do escritor, as belas paisagens literárias desenhadas em palavras envolvidas por livros singularmente ilustrados
articulam o visível da letra impressa ao visual das imagens olhadas, o que faz de Rosa um escritor atento, em sua
época, a seus leitores possíveis e à relação expressiva que textos e livros podem estabelecer. A ilustração que se
106
em parceria com artistas plásticos brasileiros filhos de italianos, a exemplo de Napoleon
Potyguara Lazzarotto, conhecido como Poty, que trabalhava com o desenho, a gravura, o
muralismo e a cerâmica.
No período histórico em que Rosa publicou existiam diversas editoras que
ilustravam a capa e o miolo dos livros — por exemplo, Agir, Melhoramentos,
Civilização Brasileira, Martins, José Olympio, Ler, Pongetti, Edições O Cruzeiro —
além de ser um período em que se destacam ilustradores com status bastante
próximo ao do autor, com direito a crédito na folha de rosto do livro e como atrações
a mais do produto: é o caso de ilustradores como Luís Jardim, Tomás Santa Rosa,
Percy Lau, Percy Deane, Geraldo de Castro, Bianco, Magnavita, Poty e outros
(FAGUNDES, 2003, p. 2).
Poty tinha interesse em gravuras, e gostava de trabalhar em preto-e-branco, além de
executar trabalhos cuja temática fosse a representação que retratasse cenas do cotidiano,
tornando-se reconhecido, entretanto, quando passou a dialogar com a literatura, trabalhando
com alguns escritores como Dalton Trevisan, Manuel de Barros, Rachel de Queiroz, Jorge
Amado, Gilberto Freyre, Raul Bopp, dentre outros.
Nas obras de João Guimarães Rosa ilustradas por Poty, como em Sagarana, muitas
vezes o ilustrador nem sabia o seu devido significado. Rosa solicitava que ele fizesse em cada
parte do livro determinadas imagens, e quando Poty o questionava sobre algumas figuras
específicas, o escritor desconversava, mantendo o enigma em segredo, como nas capas e em
algumas parte do miolo da obra. Poty conta que: ―Ele exigia, por exemplo, que a imagem de
um sapo fosse colocada dentro de um círculo, em cima de um poste de telégrafo. Eu nunca
entendi isso, mas fiz.‖113
Poty ainda ilustrou capas de outras obras de Rosa, como: Corpo de
Baile, Magma, primeiro livro de poemas de Guimarães Rosa, No Urubuquaquá no Pinhém,
Manuelzão e Miguilim, Noites do Sertão, Tutameia e Primeiras Estórias.
O designer Ivens Fontoura afirma que ―em Grande Sertão: Veredas, Poty permaneceu
por cerca de oito horas conversando com o autor, que lhe contou tudo sobre a história que
inventara, permitindo ao artista penetrar a fundo no seu projeto de criação‖114
.
Poty conseguia interpretar, traduzindo com suas ilustrações exatamente o que o autor
dizia, confeccionando desenhos de mapas, animais, árvores como o buriti, figuras de
mulheres, nomes de lugares e rios por onde Riobaldo e Diadorim passaram em suas viagens
pelo sertão de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Nessa longa conversa, ―Poty foi desenhando o
que Rosa lhe narrava. Ao final da história, Rosa percebeu que o desenho realizado reproduzia
torna marca imperecível das primeiras edições dos livros do escritor possui um correlato ao longo de sua escrita
literária. Entre palavras e imagens, Rosa dá a ler e a ver seus textos e livros (FAGUNDES, 2003, p. 2). 113
(FONTOURA. Disponível em: <http://www.designbrasil.org.br/designdesigner/poty-no-grande-
sertao#.UkSTvH-NH3U>. Acesso em: 26 set. 2013). 114
(FONTOURA. Disponível em: <http://www.designbrasil.org.br/designdesigner/poty-no-grande-
sertao#.UkSTvH-NH3U>. Acesso em: 26 set. 2013).
107
exatamente o que ele imaginava. Esse desenho era o mapa de onde ocorreu a história do
Grande Sertão.‖115
Poty conseguia traduzir numa perfeita adequação em imagens o que o
escritor narrava em palavras (Figura 7).
O narrador rosiano tem portanto uma relação ambivalente com a geografia: por um
lado, apóia-se na topologia real, poroutro lado, inventa o espaço de acordo com seu
projeto ficcional. Esse uso livre dos dados geográficos é plenamente confirmado
pelo mapa de Poty. Trata-se de uma representação do sertão que mistura elementos
da cartografia que mistura elementos da cartografia convencional (rios, montanhas,
cidades) com desenhos ilustrativos (vegetação, animais, homens, edifícios, objetos)
figurações de seres fabulísticos (demônios, um monstro) e emblemas esotéricos.
(BOLLE, 2004, p. 54).
(Figura 7) - Capa e orelhas de Grande Sertão: Veredas116
Um estudo acerca da folha de rosto e orelhas do livro Grande Sertão: Veredas foi
realizado por Marcelo Marinho (2001). Nessa análise perigráfica e paratextual, Guimarães
Rosa orienta o ilustrador Poty no sentido de espalhar diversos elementos sobre a superfície da
folha, elementos imagéticos que remetem ao universo da literatura. Sugerindo com isso as
múltiplas possibilidades palimpsésticas de leituras da obra rosiana, leituras caracterizadas
115
(FONTOURA. Disponível em: <http://www.designbrasil.org.br/designdesigner/poty-no-grande-
sertao#.UkSTvH-NH3U>. Acesso em: 26 set. 2013). 116
Disponível em: <http://www.elfikurten.com.br/2011/01/guimaraes-rosa-fortuna-critica-iii.html>.
Acesso em: 26 set. 2013.
108
como sendo oriundas de diversas camadas sobrepostas de significações, tais ilustrações
―orientam, sob forma de enigma, um certo percurso de leitura sobre as veredas do Sertão [...]
são de fundamental importância para a leitura de palimpsestos metapoéticos do romance‖
(MARINHO, 2001, p. 18). Embora muitas edições tenham retirado tais ilustrações, o que
revela um desrespeito às exigências do autor.
Os elementos pictóricos apresentados em Grande Sertão: Veredas, requisitados por
Guimarãs Rosa, ―trazem uma série de figuras que deixam perplexos até mesmo o mais
ingênuo dos poentos caminheiros rosianos‖. Nessas versões que obedecem à proposta do
escritor,
[...] imagens que remetem, em principio, a um percurso definitivamente sertanejo:
rios, peixeis , canoas, ramos de plantas, palmeiras cavalos e bois, serpentes, aves,
casebres e estrelas. O leitor sente-se confortado pela identificação das figuras e
emite um prolongado suspiro de alívio. Entretanto cuidado, senhor: implacáveis
crotalídeos e felídeos estão à espreita nessas labirínticas veredas. (MARINHO,
2001, p. 69).
O ilustrador Poty, seguindo à risca as propostas do autor, apresenta em suas orelhas
um traçado com linhas em diagonais, como representando as latitudes e longitudes,
assemelhando-se às antigas cartas topográficas que demonstram detalhes do relevo com seus
acidentes naturais e artificiais que compõem a superfície terreste. No entanto, tais linhas
enviesadas, como num tabuleiro de xadrez, sugerem um local de intensa instabilidade e
conflitos; é um claro indício de que a relação do narrador rosiano com a geografia deve ser
vista com um olhar oblíquo‖ (BOLLE, 2004, p. 59), como a ―advertir, brincando com os
sentidos nos campos do senhor: atenção, passante; consumir este ‗mapa‘ com moderação,
pois o excesso pode ser prejudicial à saúde‖ (MARINHO, 2001, p. 69).
O pesquisador Marcelo Marinho (2001) observa que a sequência pictórica como as
que representam os cavaleiros nas orelhas da obra Grande Sertão: Veredas parecem pinturas
rupestres ou mesmo o representar de forma similar aos enigmáticos hieróglifos egípcios, ou
aqueles que surgiram na Mesopotâmia, com sua escrita cuneiforme, fazendo menção ao
processo de nascimento e formação gradual da escrita no Ocidente. Essas são representações
utilizadas pelo escritor Guimaraes Rosa, ―por intermédio de seu pretextual paratexto
sertanejo, que é o objeto de sua literatura e o próprio processo de formação de palavras,
prática linguística à qual o romancista aplicou-se com afinco para o aprimoramento da
expressão poética‖ (MARINHO, 2001, p. 76).
109
Com isso, o universo sertão torna-se ele mesmo o universo das letras ou o próprio
nascimento da linguagem, como enfatiza Marinho (2001). Pois tais ilustrações pedidas por
Guimarães Rosa a Poty apontam para o processo do surgimento e elaboração da escrita
ocidental.
[...], os meus livros, em essência, são 'anti-intelectuais' – defendem o altíssimo
primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear presunçoso da
inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com
os Vedas e Upaxinades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino,
com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente.
[...] Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse “traduzindo”, de
algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das ideias”,
dos arquétipos, por exemplo (BIZZARI, 2003, p. 90; p. 99).
5 - O IMAGINÁRIO FEMININO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS – A GRANDE
MÃE, O MITO DA CRIAÇÃO DO MUNDO EM ROSA
As mulheres nas obras de Rosa são representadas dos mais diversos modos. São
prostitutas, donzelas, meninas, adivinhas, feiticeiras ou bruxas, velhas, mulheres casadas,
sábias, loucas, guerreiras, assassinas, santas, compondo múltiplos arquétipos do universo
feminino.
Todas essas representações de mulher podem ser relacionadas com o mito da criação,
o mito cósmico da geração do mundo, relacionado com o mito da Grande Mãe. Este se acha
situado no universo do Imaginário de Gilbert Durand, denominado de Regime Noturno da
imagem117
, que remete, por sua vez, às figuras femininas pertencentes ao universo terreno e ao
mesmo tempo aquático: ―As águas seriam, pois, as mães do mundo, enquanto a terra seria a
mãe dos seres vivos e dos homens‖ (DURAND, 2002, p. 230). As águas ainda estariam
relacionadas com o início e o que diz respeito ao universo cósmico, enquanto a terra, com o
início e o fim do homem e de todos os outros seres vivos.
Em sua representação arquetípica, a Grande Mãe possui um caráter duplo, positivo ou
negativo. Apesar de pertencer ao mundo das trevas associado ao Regime Noturno, universo da
noite, das profundezas ctônicas, ela pode apresentar um caráter de conservação, proteção,
nutridora de vida; no entanto, pode também ser destruidora, promover a morte, ser repulsiva.
Como afirma Neumann:
O caráter elementar do Feminino estará sempre em evidência quando o ego e a
consciência ainda forem infantis e não-desenvolvidos, e o inconciente for
117
O Regime Noturno ―tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano
mago e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica, a
primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia
matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil,
os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos‖ (DURAND, 2002. p. 58).
Diferentemente do Regime Diurno, considerado como o regime da antítese, dos opostos, de valores intelectuais,
da razão científica, de modo que na ação ou efeito de diferenciação e análise, ―a imagem é consagrada ao fundo
das trevas sobre o qual se desenha o brilho da luz‖ (DURAND, 2002, p. 68).
111
dominante. É por isso que o cárater elementar contém, quase sempre, um
determinante ―maternal‖. Em relação a ele, o ego, a consciência e o indivíduo, quer
sejam masculinos ou femininos, são infantis, dependentes e submissos. A
característica marcante do caráter elementar de forma positiva como provedor de
alimento, de proteção, e de calor e, de forma negativa, como repúdio e privação
(NEUMANN, 1996, p. 36).
Essa associação de elementos demonstra o amálgama existente entre elas, água e terra:
de um lado, um simbolismo aquático, de outro, um simbolismo telúrico (ctônico). ―E, como a
água é a substância que melhor se oferece às misturas‖ (BACHELARD, 1998, p. 105), é,
portanto, o melhor elemento para se misturar com a terra. Dessa mistura, o simbólico
feminino é desvelado através da condição biológica com a fecundação, o ato de dar a vida,
amparo e nutrição; sua relação é direta com as formas da natureza, com a transformação
cíclica da natureza, que ocorre interligada com as fases da lua. ―O corpo da mulher é um mar
sobre o qual atua o movimento lunar das ondas. Indolentes e adormecidos, seus tecidos
adiposos encharcam-se de água, e depois se enxugam de repente na maré alta hormonal‖
(PAGLIA, 1992, p. 22).
A enorme proximidade e a incontrolável relação entre os arquétipos femininos e a
natureza são significativas, povoando a mitologia mundial. ―A tradição deles passa quase
intacta dos ídolos pré-históricos, através da literatura e da arte, para o cinema moderno‖
(PAGLIA, 1992, p. 24).
Em muitas culturas ancestrais é possível encontrar informações que possibilitam crer
que a mulher está associada ao elemento terra e à fecundidade. Imagens, pequenos amuletos
estilizados, vêm confirmar isso. As pequenas esculturas denominadas de Vênus, a primeira
(Fotografia 27), Vênus de Hohle Fels (c. 35.000 a.C. ), e a segunda (Fotografia 28), Vênus de
Willendorf (c. 24.000 a.C.), que muitos estudiosos acreditam tratar-se do elemento feminino.
Elas não possuem face, nem pretendem representar um ―retrato falado‖ ou mesmo uma
identificação realista, como as máscaras mortuárias118
ou o retrato fotográfico. As Vênus,
estatuetas, cabendo geralmente na palma da mão, são amuletos estilizados da imagem
feminina; sua identidade não importa. ―A ausência do rosto é a impessoalidade do sexo e da
religião primitivos. Ainda não há psicologia nem identidade, porque não há sociedade,
coesão‖ (PAGLIA, 1998, p. 61).
Elas representavam possíveis rituais relativos à mãe natureza, com a finalidade de
ajudar os homens a sobreviverem na diversidade. Sua utilidade era a de invocar e garantir a
118
Os primeiros retratos nasceram do contato entre matérias, pois existia uma função ritualística de se tirar o
molde em gesso do rosto do morto, que consistia no que Georges Didi-Huberman denomina ―uma imagem
matriz produzida por aderência, por contato direto da matéria (o gesso) com a matéria (do rosto)‖. Fato que ex-
plicita um procedimento da confecção de máscaras mortuárias (OLIVEIRA, 2009, p. 85).
112
fecundidade, num sentido mais amplo, assegurando a fartura na coleta de frutas, raízes, na
pesca e caças futuras. Esses pequenos talismãs eram possivelmente carregados em cordões,
durante a era do Paleolítico, período em que os homens ainda eram nômades, vivendo em
pequenos grupos.
(Fotografia 27) Vênus de Hohle Fels (Fotografia 28) Vênus de Willendorf
Trata-se da representação da figura feminina em geral, com seios, barrigas, nádegas e
tronco demasiadamente exagerados, numa época em que os habitantes da Terra ainda
aguardavam a invenção da pecuária e agricultura. Isso só acontece no momento em que eles
passam a se fixar e conviver em pequenos grupos para dar início à sociedade. Tal
representação é uma ânsia pela sobrevivência.
As pequenas Vênus, que podiam variar de tamanho, como a de Vênus de Hohle Fels,
que possui cerca de 6 cm, enquanto a Vênus de Willendorf tem 11, 5 cm, podem ser
encontradas nas mais remotas regiões e em quase todos os continentes. Confeccionadas com
os mais variados materiais — madeira, osso, pedra, marfim —, constituem uma representação
da natureza de forma truculenta e rude, estando o homem preso ao ventre da mãe.
Há o afastamento do homem diante da natureza das imagens da Grande Mãe, como no
judaísmo, em que a religião, através do Livro Sagrado, exalta o culto de Deus como criador
do mundo. Em seu primeiro livro, o Gênesis, o homem foi gerado à Sua imagem e
semelhança, criado do barro e ganhando vida pelo sopro divino. Todo o desenvolvimento dos
conceitos do homem racionalista nega o culto da Grande Mãe. Como afirma Paglia ao se
referir à Vênus de Willendorf:
No Ocidente, a arte é um apagamento dos excessos da natureza. A arte ocidental
estabelece definições. Isto é, traça linhas. É este o âmago do apolinismo. Não há
retas na Vênus de Willendorf, só curvas e círculos. Ela é a ausência de formas da
natureza. Está atolada no pântano miasmático que identifico como Dioniso. [...] A
113
Vênus de Willendorf, curvada, desleixada, suja, está no cio, no útero da mãe
natureza. Nunca mandes perguntar por quem dobra a bela. Ela dobra por ti
(PAGLIA, 1992, p. 63).
Durand (2004) denomina essa arbitrariedade a ―resistência do imaginário‖, o
iconoclasmo, em que as imagens são abolidas dos templos religiosos. Com a influência
religiosa cristã, quando elas ressurgem, a representação da natureza feminina é excluída de
seu sentido primitivo, tornando-se símbolo do grande mal. Como na figura de mulher, Eva,
portadora do pecado, aquela que seduz Adão, ela é a própria encarnação do demônio. Além
do monoteísmo da Bíblia, é adicionado o racionalismo aristotélico, empregado pela
escolástica, à doutrina das universidades a serviço da Igreja, dando seguimento à continuidade
racional cartesiana, desde Descartes até os nossos dias.
O imaginário e seus regimes assemelham-se às categorias apolínea e dionisíaca de
Nietzsche. O mundo apolíneo refere-se ao mundo racional, ordeiro e consciente, enquanto o
dionisíaco é concebido como um mundo da desordem, do caos e do inconsciente,
relacionando-se respectivamente aos regimes Diurno e Noturno.
Quando analisa o feminino na narrativa rosiana, em Grande Sertão: Veredas, Karina
Barsan Rocha ao estudar a relação amorosa entre Riobaldo e Diadorim, diz que a condição do
feminino ―é quase sempre representada dentro da lógica racionalista, fálica e totalizante que
perpassa nossa sociedade — ainda — patriarcal, que sente medo e necessidade de subjugar a
mulher‖ (ROCHA, 1998, p. 8). Não é nosso objetivo discutir exaustivamente as questões
femininas por esse viés, no entanto, são as mulheres que vão transformar a vida de Riobaldo,
através de seus amores e suas formas de amar, o amor como um sentimento talvez pouco
compreendido, e no entanto, humanizador.
São as figuras femininas que, no transcorrer da obra, ―colaboram todas para a
promoção ou aprimoramento do masculino, do viril representado pelo personagem Riobaldo
que, seguindo a sua travessia, atinge pelas mãos dessas mulheres a transformação que o
conduzirá à ascensão social e espiritual‖ (ALVES, 2010, p. 3). São elas que constituem os
diversidades impostas, com as lutas sangrentas constantes entre jagunços, como assinala
Wille Bolle (2004) ao analisar Grande Sertão: Veredas como ―o romance de formação do
Brasil‖:
A ―constante brutalidade‖ de guerras dos jagunços, ―o dia-a-dia de violência e
privações a vida rotineira no meio de homens broncos, simplórios e sem rumo, esse
mundo-cão presente em todas as páginas de Grande Sertão: Veredas, seria
insuportável se não passasse por elas também o sopro de um principio mais elevado
e transformador: A Beleza e o Amor, [...] (BOLLE, 2004, p.195).
114
São essas questões trabalhadas no capítulo seguinte, uma reflexão sobre as nuances
particulares dos amores vividos por Riobaldo, três fases amorosas representadas por
personagens femininas em sua vida: Nhorinhá, Diadorim e Otacília.
5.1 - Os amores de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas
Em Grande Sertão: Veredas, suas mulheres são diversas, no entanto, as que merecem
maior realce são três, as mesmas que compõem a tríade amorosa com Riobaldo: Nhorinhá,
Diadorim e Otacília, tão bem delimitadas por Benedito Nunes no ensaio ―O amor na obra de
Guimarães Rosa‖ (1976). Não que as outras mulheres não sejam importantes, porém essas três
atuam quase que constantemente entrelaçadas durante toda a obra, perante Riobaldo. ―São três
amores, três paixões qualitativamente diversas, que chegam por vezes a interpenetrar-se.‖
(NUNES, 1976, p. 144). O amor é tema que segundo Nunes (1976) ocupa um lugar
privilegiado na poética de Guimarães Rosa. Desde o encontro fortuito e as lembranças de
Riobaldo com Nhorinhá, um amor carnal; em seguida, nas lutas na companhia de Diadorim,
um amor caótico; e culminando com seu casamento com Otacília, um amor espiritual.
O jagunço Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, conhece três espécies diferentes de
amor: o enlevo por Otacília, moça encontrada na Fazenda Santa Catarina, a
flamejante e dúbia paixão pelo amigo Diadorim, e a recordação voluptuosa de
Nhorinhá, prostituta, filha daquela Ana Duzuza, versada em artes mágicas (NUNES,
1976, p. 144).
Ainda complementando a composição da obra, podemos encontrar mulheres como a
Bigri, mãe de Riobaldo, Maria Mutema, Maria Leôncia, Izina Calanga, Ana Duzuza: ―dona
adivinhadora da boa ou má sorte da gente‖, ―dona-joana‖, dona Próspera Blaziana, dona
Adelaide, dona Dindinha, mulher de Mestre Lucas, dona Abadia, Rosa‘uarda, mocinha
Miosótis, ―senhora dona‖, Maria da Cruz, dona Mogiana, Hortência, com alcunha de Ageala,
Maria-da-Luz, Maria: ―dita por aceita alcunha a Maria do Padre”, dona de um seô
Hermógenes, Maria Deolinda Rebelo, dentre outras.
115
5.1.1 Nhorinhá
Nhorinhá é a uma das primeiras personagens. Bastante analisada por diversos teóricos,
é utilizada também na representação do universo rosiano por Maureen Bisilliat. Mais adiante
faremos uma análise da relação entre a imagem criada pela fotógrafa e as frases do autor
escolhidas por ela para dialogar com suas imagens fotográficas.
A personagem Nhorinhá119
surge, pela primeiria vez, de forma breve, na obra Corpo
de Baile, e logo em seguida também aparece no romance Grande Sertão: Veredas; sua
participação, no entanto, dessa vez é bastante significativa. Diferentemente da primeira, sua
participação é evidente em toda a obra: basta perceber que essa personagem ―Nhorinhá‖
aparece em trinta passagens da obra. Desde o momento ―esponsal‖, no início do livro: ―Se
chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento,
esponsal‖ (ROSA, 2001, p. 40), até o final da obra, quando Riobaldo a relembra. O
―esponsal‖ sela um compromisso, um enlace entre duas pessoas, Riobaldo e Nhorinhá, o que
descarta um encontro meramente fugaz, sem acordo nenhum.
Nhorinhá faz parte do livro No Urubuquaquá, no Pinhém; mais precisamente da
novela ―Cara-de-Bronze‖, em que é apresentada com as mesmas características de prostituta
que serão mantidas mais adiante no romance rosiano. Sua rápida aparição diz do seu ofício:
Mesmo no caminho, meando terras de bons matos, se encontrara com a moça
Nhorinhá — ela com um chapéu de palha-de-buriti, maciamente, de três tamanhos,
de largura na aba, e uma fita vermelha, com laço, rodeando a copa. De harmamaxa:
ela vinha sentada, num carro-de- bois puxado por duas juntas, vinha para as festas,
ia se putear, conforme profissão. A moça Nhorinhá era linda – feito noiva nua, toda
pratas-e-ouros – e para ele sorriu, com os olhos da vida (ROSA, 2001, p. 161-162).
Diferentemente da breve aparição em ―Cara-de-Bronze‖, em Grande Sertão: Veredas
Nhorinhá assume papel importante no relacionar-se com Riobaldo. Apesar do aparente
descompromisso com Riobaldo, seu amor é diferente dos ―primeiros amores, com a Miosótis
e a Rosa‘uarda. Estas últimas passagens são relatadas pelo herói como se tivessem sido
experiências apenas superficiais‖ (RONCARI, 2002, p. 1). Mesmo que de forma breve e
fugaz, no pequeno lugarejo chamado de Aroeirinha, é um amor que ele jamais retira de sua
memória, com várias aparições na obra e com diversas recordações da meretriz filha, de Ana
Duzuza.
119
Nhorinhá aparece em Corpo de Baile e em Grande Sertão: Veredas. Ambas as obras são lançadas em 1956,
no entanto a primeira é lançada em janeiro, e a outra em seguida, no mês de maio do mesmo ano. O próprio
autor mais adiante desmembra o livro Corpo de Baile que, a partir da 3ª edição, é dividido em três tomos: o
primeiro livro, denominado de Manuelzão e Miguilim, lançado em 1964, e em 1965, No Urubuquaquá, no
Pinhém e Noites do Sertão.
116
Morais (2011), em seu artigo Mulheres: a magmática pulsação da escrita, faz uma
reflexão psicanalítica acerca da importância do feminino e suas nuances no conceito de
travessia da obra rosiana, como podemos perceber com Angelina e Sariema, duas prostitutas
disputadas num leilão como objetos de desejo em Sagarana, no conto ―A Hora e Vez de
Augusto Matraga‖. Nhorinhá também faz parte ―das mulheres faladas, como se diz no sertão
mineiro, objetos de troca, de comércio, de lances‖ (MORAIS, 2011, p. 202).
Nhorinhá, fugacidade impregnada como uma imagem em sua parede da memória, uma
imagem que não se apaga em seus pensamentos, pois Riobaldo se refere a ela de forma
recorrente em toda a obra: ―Nhorinhá é a prostituta, com quem Riobaldo passa uma noite,
nunca mais a encontra, mas também dela nunca mais se esquece‖ (ROCHA, 2006, p. 110). Ou
ainda, como diz João Guimarães Rosa: ―Então eu entrei, tomei um café coado por mão de
mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu
carinho no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só
se colhe já caída no chão, de baixo... Nhorinhá‖ (ROSA, 2001, p. 40).
Essa figura feminina tem sensualidade peculiar, um amor quase que
descompromissado, um relacionamento rápido de Riobaldo com a prostituta, durante uma de
suas passagens pelos vilarejos. Apesar de livre, Riobaldo recorda dela durante toda a obra,
demonstrando com isso a sua importância na vida dele, um amor carnal, decorrente da ordem
natural das coisas, de um encontro espontâneo, instintivo e descomplicado, como bem
enfatiza Benedito Nunes (1976) no seu trabalho ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖, ao
apresentar as variadas formas do pulsão erótica das personagens Diadorim, Nhorinhá e
Otacília, de Grande Sertão: Veredas.
Assim descreve esse amor: ―é o amor em Nhorinhá, simples e natural, que nasceu de
um abraço voluptuoso e foi crescendo na memória de Riobaldo, em torno da recordação do
prazer sensível que lhe proporcionara, até converter-se numa forte paixão, secretamente
cultivada...‖ (NUNES, 1976, p. 144).
Apesar de seu afeto por Nhorinhá, aquela que Riobaldo ―bem queria‖ (ROSA, 2001, p.
47), por vezes ele tenta negar esse amor, como ao comentar que ele foi algo bom e passageiro:
―Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa
Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento‖ (ROSA, 2001, p. 133-134).
Em termos arquetípicos, Nhorinhá pode assumir o caráter de Eva120
, num sentido
instintivo, e também devido à condição de ser a primeira mulher da tríade iniciática de
120
Eva é a Mulher, e nenhum versículo foi mais parafeaseado do que aqueles do Gênesis consagrados à
primeira mulher: os que descrevem seu nascimento, sua união com Adão, sua tentação pela serpente, sua culpa,
117
Riobaldo (Nhorinhá, Diadorim e Otácilia); Nhorinhá poderia ser Afrodite121
, na condição da
beleza corporal e do apelo sexual, representando assim uma forma biológica e instintiva do
prazer sexual, um arquétipo associado à sexualidade promíscua. A filha de Ana Dazuza será
um dos estímulos primeiros na vida amorosa de Riobaldo e resultará na busca do seu
verdadeiro amor. Num rito de passagem, o ato sexual com Nhorinhá poderá ser lido como um
processo de experiência na busca ao longo do tempo por um amor sagrado, que culminará
com o amor de Riobaldo por Otacília, ―puro, quase desencarnado beatífico, que a imagem
etérea de Otacília nele produzia.‖ (idem, ibidem). ―Em Guimarães Rosa, o amor carnal gera o
espiritual e nele se transforma‖ (NUNES, 1976, p. 157).
O afastamento de Nhorinhá faz parte de um ritual iniciático na vida de Riobaldo, pois
―o acesso à vida espiritual implica sempre a morte para a condição profana‖ (ELIADE, 1992,
p. 96). O amor de Otacília pertence então a um plano mais elevado, espiritual, sem nenhuma
alusão à sexualidade; no entanto, é o lado profano que é rememorado continuadamente por
Riobaldo através de suas lembranças de Nhorinhá, sendo impossível suprimi-lo por completo,
mesmo estando com Otacília. Essas memórias recorrentes são sempre descritas com
delicadeza por Riobaldo, e em nenhum momento é mencionado o pagamento feito a ela como
prostituta; ela, ao contrário, é que oferece uma prenda a Riobaldo.
Se considerarmos Nhorinhá em sua condição terrena, profana ou dionisíaca, num
plano inferior, situamo-la numa espécie de Purgatório, porque, para Riobaldo alcançar outros
níveis, ―é preciso que antes rasteje e se ponha em contato com variadas solicitações do mundo
sensível, onde o impulso sexual recebe das coisas, e sobretudo dos corpos belos, a força de
que necessita para elevar-se‖ (NUNES, 1976, p. 154).
Nhorinhá remete a uma sociedade arcaica, naqueles idos em que os homens primitivos
carregavam os seus amuletos como imagens femininas, como as Vênus de Willindorf e a de
Hohle Fels, vistas anteriormente, num misto de arte e magia, representando ―um símbolo de
abundância numa era de fome‖ (PAGLIA, 1992, p. 61). No contexto do sertão arcaico,
Nhorinhá, a filha de curandeira, comporta-se como uma iniciada nos rituais de magia, e apesar
sua condenação, seu nome e seu destino; três aspectos assim se acham mesclados: a mulher, a vítima, a mãe
(BRUNEL, 2005, p. 300). 121
Afrodite é a deusa do amor. Mas esta resposta é um tanto inquietante, pois faz desaparecer todo elemento
mítico. O nome próprio, ao ceder lugar a uma abstração, pode ser empregado como simples metonímia. ―Ele
conhecia uma e outra Vênus‖, diz Ovídio de Tíresias (Metamorfoses, livro III, v. 323). Tendo sido
sucessivamente homem e mulher, ele conhecia o amor como o sentem os dois sexos. [...] em o Banquete de
Platão (180): Hesíodo conta que Afrodite nasceu no mar, onde caíra o sêmen do Urano quando foi castrado por
seu filho; Homero ignora essa história e faz de Afrodite a filha de Zeus e Dione. Pode-se interpretar esta
diferença opondo-se uma Afrodite Urânia, isto é, Celeste, a uma Afrodite Pandêmia, ou seja, Popular, sendo
talvez esta tradução um contrassenso. Admitamos que por ser mais antiga a Afrodite Celeste é a mais digna de
representar o amor espiritual; a Popular limita-se à obra da carne (BRUNEL, 2005, p. 20-21).
118
de prostituta, assume também uma condição hierática, como uma sacerdotisa do amor que
entrega a Riobaldo um talismã; esse amuleto, diferentemente dos tempos remotos da
humanidade, não garante o sustento, no entanto, vai garantir a sua sobrevivência pelo sertão
adentro.
5.1.2 Diadorim
Diadorim atua de forma bem intensa em toda a obra, aparecendo cerca de 643 vezes,
desde as páginas iniciais da obra, quando o narrador o evoca durante sua travessia: ―Conforme
pensei em Diadorim. Só pensava era nele.‖ (ROSA, 2001, p. 23), até as páginas finais, que
culminam com a sua morte e o sofrimento de Riobaldo, o amigo, o companheiro das
jagunçadas sertão adentro:
E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha
competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me
sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso;
nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim
aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa
dela, mesma, ela tinha me negado. Para que eu ia conseguir viver? Mas o amor de
minha Otacília também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de devagar. Era.
(ROSA, 2001, p. 621).
A morte de Diadorim revela então a sua identidade como Maria Diodorina da Fé
Bettancourt Marins, que se disfarça de Diadorim e assume os trejeitos masculinos do pai,
desde a infância, para poder infiltrar-se no mundo dos jagunços, protegendo a sua identidade
feminina. Ele é responsável pela introdução de Riobaldo no universo do sertão, ―uma selva
tenebrosa122
‖, assim como quando Dante percorre o Inferno em sua jornada até o Paraíso.
Sobre essa figura enigmática, Diadorim é peça-chave condutora da história de Riobaldo.
Wille Bolle (2004) observa que:
É uma presença tão marcante e tão enigmática, que em todos os debates sobre o
romance sempre surge alguém querendo saber sobre o seu significado. De fato essa
figura, a paixão do protagonista-narrador Riobaldo é o cerne e o substrato emocional
do romance. Não é por acaso que na França, onde a reflexão sobre o amor faz parte
da cultura, o livro tenha sido publicado com o título Diadorim (BOLLE, 2004, p.
195).
122
DANTE, Alighieri. A divina comédia.
In:<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/divinacomedia.html>Acesso em 30 de julho de 2012.
119
Se em Benedito Nunes (1976) a preocupação são as nuances do amor, para Willi
Bolle, ―Diadorim é médium artístico que faz com que a historia da paixão amorosa de
Riobaldo por Diadorim não seja apenas um ato de memória afetiva individual, mas também
um retrato da sociedade, através de um profundo mergulho na língua (BOLLE, 2004, p. 224).
Bolle faz uma breve excursão na temática amor; esse objeto, por sua vez, é conjugado em
tríplice aliança com a coragem e o medo, sentimentos entrelaçados.
Esses dois últimos, ―o par dialético medo e coragem, proporcionam um conhecimento-
chave tanto do cárater de um indivíduo quanto de uma unidade de uma cultura de uma época.
[...] Na sociedade sertaneja existe um verdadeiro culto em torno da valentia. [...] e, por fim, ―o
amor, que, dos gregos a Dante, é uma força que move o universo‖ (BOLLE, 2004, p. 230).
A guerreira transvestida, Diadorim, a mais valente e destemida. Filha de Joca Ramiro,
que assim como o pai não tem medo de nada, torna-se uma guia inicíatica de Riobaldo, que,
por não saber nadar, tinha medo de se afogar, quando os dois se conheceram pela primeira vez
em uma travessia de canoa no rio São Francisco. Diadorim diz: ―Carece de ter coragem...‖;
ao contrário do suposto pai de Riobaldo, seu padrinho Selorico Mendes, que era por demais
medroso. E o diálogo continua entre os dois durante a travessia do rio chamado de Janeiro, rio
que desemboca num outro rio, o São Francisco. Riobaldo pergunta então a Diadorim:
―Você nunca teve medo?‖ — foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: —
―Costumo não...‖ — e, passado o tempo dum meu suspiro: — ―Meu pai disse que
não se deve de ter...‖ Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: — ―... Meu pai é o
homem mais valente deste mundo (ROSA, 2001. p. 122).
Diadorim aparece primeiramente na vida de Riobaldo na figura de Reinaldo durante
essa travessia de canoa, quando os dois eram bem jovens; esse ―Menino diferente, tem a
estatura de um ser mítico, fabuloso, que parecia igualar-se ao próprio Rio em sua força, em
seus segredos‖ (NUNES, 1976, p. 160). O rio, elemento mítico materno, ―Bachelard irá
chamar ‗ressoadores‘, os quais dão densidade à ‗matéria poética‘ de uma obra, funcionando
como dinamizadores dessa matéria‖ (BACHELARD apud VIGGIANO, 2007, p. 10).
Viggiano (2007) ainda defende que a água e suas imagens são a principal matéria do sertão
rosiano. Essa mesma água que emerge como de um rio subterrâneo que faz exteriorizar e faz
brotar o amor entre os dois, nessa natureza líquida se faz presente desde o primeiro encontro.
A projeção de Diadorim pelo narrador, através da natureza começa desde o primeiro
encontro na travessia do Rio São Francisco, que simboliza um ritual de passagem na
vida do narrador, revelado por ele quando diz ―O rio Chico partiu minha vida em
duas partes‖. Essa divisão da vida do narrador também se liga ao encontro com
120
Diadorim, o antes e o depois de conhecê-lo. Assim, o rio passa a ser o símbolo do
amor de Riobaldo e em que ele projeta a imagem de Diadorim, relacionando-a as
qualidades e peripécias do rio, deixando refletir através dele, os aspectos físicos,
comportamentais e também o sentimento que surge entre os dois amigos.
(ALMEIDA, 2012, p. 20-21).
A concepção hídrica, do rio e córregos, remete à figura feminina e sua sexualidade, à
sinuosidade do rio, que mais parece uma cobra rastejante do sangue menstrual; ―é a marca de
nascença do pecado original. [...] Ela é o jardim e a serpente. [...] o diabo é uma mulher. A
natureza é serpentina, um leito de cipós entrelaçados, plantas trepadeiras e rastejantes,
tateantes dedos dormentes de fétida vida orgânica‖ (PAGLIA, 1992, p. 22).
Na concepção de Gaston Bachelard (1998), a água, um dos elementos mais femininos
se comparado aos demais, que se amalgama com a terra, gera vida, ―a profunda maternidade
das águas. A água faz incharem os vermes e jorrarem as fontes. A água é uma matéria que
vemos nascer e crescer em toda parte. A fonte é um nascimento irresistível, um nascimento
contínuo‖ (BACHELARD, 1998, p. 29).
A água, em sua representação através do rio, pode significar a passagem para outro
mundo, ―é o elemento da morte‖ (BACHELARD, 1998, p. 89); é no Paredão que tudo
termina, no confronto entre Diadorim e Hermógenes, também local da morte de Medeiro Vaz,
nas proximidades do rio do Sono. Não somente o rio, mas também outro elemento aquático
associa-se à morte de Medeiro Vaz: a chuva, bem como na morte da mãe de Riobaldo, a
Brigri. Vejamos estas passagens:
A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim me chamou adeparte; ele tramava as
lágrimas. – ―Amizade, Riobaldo, que eu imaginei em você esse prazo inteiro...‖ – e
apertou minha mão. Avesso fiquei, meio sem jeito. Aí, chamaram: – ―Acode, que o
chefe está no fatal!‖ Medeiro Vaz, arquejando, cumprindo tudo. E o queixo dele não
parava de mexer; grandes momentos. Demorava. E deu a panca, troz-troz forte,
como de propósito. Uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite. Reunidos em
volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para proteger a morte dele.
Medeiro Vaz – o rei dos gerais ; como era que um daquele podia se acabar?! A água
caía, às despejadas, escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por
debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do corpo. E Medeiro Vaz,
se governando mesmo no remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava
gosma de sua goela, e gaguejou: – ―Quem vai ficar em meu lugar? Quem
capitaneia?...‖ Com a estrampeação da chuva, os poucos ouviram. Ele só falava por
pedacinhos de palavras. Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em mim, e me
escolhia. Ele avermelhava os olhos? Mas com o cirro e o vidrento. Coração me
apertou estreito (ROSA, 2001, p. 95).
Minha mãe morreu – apenas a Bigri, era como ela se chamava. Morreu, num
dezembro chovedor, aí foi grande a minha tristeza (ROSA, 2001, p. 126).
121
O termo também pode representar ―o leite da natureza Mãe, [...]. Na vida de todo
homem, ou pelo menos na vida sonhada de todo homem, aparece a segunda mulher: a amante,
ou a esposa. A segunda mulher vai também ser projetada sobre a natureza. Ao lado da mãe-
paisagem tomará lugar a mulher-paisagem‖ ( BACHELARD, 1998, p. 135), o que remete às
circunstâncias da passagem entre Nhorinhá e Otacília, já apresentada por Benedito Nunes.
Essas projeções poderão ter interferência ou superposição de uma em relação à outra;
apesar de Otacília se sobrepor à projeção de Nhorinhá, tais projeções são bem diferenciadas, e
as poucas interferências, os resquícios deixados por Nhorinhá, é que fazem elevar a passagem
do amor carnal, sensual, de Nhorinhá para o espiritual, puro, de Otacília. Já do terceiro
elemento, Diadorim, suas interferências são marcantes: existe um descontrole na natureza de
Riobaldo, pois não consegue negar tal desejo. Uma tensão angustiante, num jogo de
identificação com Diadorim, e ao mesmo tempo, repulsa. Ódio e amor se confundem, ―como
revela-se o inverso de um sentimento que normalmente nasceria de arroubos de raiva – ódio
sossegado, com paciência. Da mesma forma, mesmo o descanso não aponta para outra coisa
senão a continuação da guerra, da violência‖ (NOGUEIRA, 2013, p. 4).
Diante dos quatro elementos, fogo, terra, água e ar, é ―somente a água que pode
embalar. É ela o elemento embalador. Este é mais um traço de seu caráter feminino: ela
embala como uma mãe‖ (idem, p. 140). O rio, então, representa diversas possibilidades desde
o início do itinerário de Riobaldo: vida e morte, amores e as fusões destes, amante, esposa,
mãe. Como na passagem analisada, através da imagem da palmeira buriti: ―Namorei uma
palmeira na quadra do entardecer‖ (ROSA, 2001, p. 455). Ainda às margens do rio São
Francisco, região fronteiriça entre Minas Gerais e Bahia, num lugar denominado de
Guararavacã do Guaicuí, Riobaldo faz uma reflexão sobre a sua vida, sobre seus amores e
interditos, sua travessia, parte importante na sua vida: ―Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o
final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que
contei, remexer vivo o que vim dizendo‖ (ROSA, 2001, p. 292).
O primeiro encontro de Riobaldo com Diadorim o deixou perturbado: um simples
toque de mãos desperta o desejo em Riobaldo, ao ajudá-lo a descer o barranco em direção ao
rio, o de-Janeiro. ―Pelo fato de ter Diadorim uma ordem de atributos físicos e exteriores de
que Riobaldo é carente, criou-se uma situação em que os fatores de maior força solicitadora
estão investidos em Diadorim‖ (FANTINATI, 1965, p. 10). Dentre as qualidades
apresentadas, além da beleza e sensualidade do amigo, Riobaldo via no ―menino‖, e mesmo
mais adiante, a coragem desmedida. Ainda sobre esse encontro no rio, o de-Janeiro, Uteza
compara os dois meninos, oriundos de universos opostos, dizendo: ―Riobaldo de um mundo
122
feminino, passivo, onde os problemas se resolvem mediante a reza e as esmolas; o menino, de
um mundo masculino, ativo, onde é pela força física que os obstáculos são vencidos [...]‖
(UTEZA, 1994, p. 256).
Diadorim representa o conflito, o diabólico. Mas também ―Diadorim não era um
demônio só a ser enfrentado e derrotado; era também o espelho para onde Riobaldo olhava e
reconhecia tudo o que aspirava a ser e não era‖ (RONCARI, 2004, p. 204). Outra questão que
deixava Riobaldo perturbado era a sua cumplicidade com Diadorim, em saber que este
conhecia quase todos os seus segredos, ao contar suas histórias com seu chefe Zé Bebelo, seus
companheiros jagunços. Em especial sobre Diadorim, ele relata que:
Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim,
também, por que se aguentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa
movimentação sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive
questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: (...); o
Reinaldo — que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; [...]
(ROSA, 2001, p. 334).
Nesse universo nebuloso de descoberta, Riobaldo inicia uma paixão desde cedo pelo
menino Reinaldo: ―um desejo proscrito‖, como enfatiza a pesquisadora Márcia Marques de
Morais (2001) em seu trabalho de tese sobre a obra rosiana, uma análise num viés
psicanalítico. Esse desejo, desde a mais tenra idade, dá-se em forma de homoerotismo, que é a
atração entre pessoas do mesmo sexo, no caso, dois meninos, depois jagunços; no entanto, a
conjunção carnal nunca será consumada. Existe um amor casto, velado, ―amor sem gozo‖,
um amor condenado, que por sua impossibilidade culmina com a morte de Diadorim, numa
espécie de ―a donzela guerreira‖123
. No momento em que Riobaldo é ferido, recebe os
cuidados de seus amigos, em especial, o cuidado delicado de Diadorim:
A ser, porque, numa volta do Ribeirão-do-Galho-da-Vida, a gente tinha topado com
turma de inimigos, retornados para lá por espiação. Aí foi curto fogo, mas eu levei
uma bala, de raspaz, na carne do braço, perdi muito sangue. Raimundo Lê banhou
com casca de angico, na hora melhorei; Diadorim amarrou bem, com pano duma
camisa rasgada. Apreciei a delicadeza dele (ROSA, 2001, p. 337).
Tal imagem remonta àquela outra imagem, a dos heróis-guerreiros, amigos e
companheiros na Ilíada de Homero – Aquiles e Pátroclo. Diadorim, apesar de jagunço
vingativo, deixa transparecer sua ambiguidade andrógina, percebida nas entrelinhas da obra;
no entanto, o Diadorim, Reinaldo, é uma mulher travestida de uma couraça titânica, é uma
123
Ela corta os cabelos, enverga trajes masculinos, abdica das fraquezas femininas – faceirice, esquivança, sustos
–, cinge os seios e as ancas, trata seus ferimentos em segredo, assim como se banha escondido. Costuma ser
descoberta quando, ferida, o corpo é desvendado; e guerreia; e morre (GALVÃO, 1998, p. 12).
123
mulher blindada, ―sem gozo‖, assumindo assim um caráter apolíneo do masculino e racional.
A natureza da Grande Mãe é suprimida, o ciclo de vida uterina é exilado. ―Mesmo perto,
Diadorim se põe remota, e inabordável e seu mistério maior (ser uma mulher) também fica
―en souffrance‖, à espera de ser desvendado‖ (PASSOS, 2000, p. 69-70). Diadorim é a figura
enigmática, comportando o duplo jogo entre anjo e demônio, masculino e feminino, divino e
diabólico:
[...] a ambiguidade da personagem afasta a possibilidade de interpretá-la como um
andrógino que, ao mesmo tempo homem e mulher, constitui-se de duas metades
harmônicas, que se completam. Se as características mais veementes no andrógino é
a totalidade, e não a pluralidade, em Diadorim, o paradoxo é indissolúvel ao
justapor-se o inconciliável. Diadorim é e não é, situando-se no entre lugar (ROCHA,
1998, p. 32).
A ambiguidade andrógina aparente de Diadorim assemelha-se ao mito grego de Atena
Pártenos, conhecida também como Palas Atena, em sua complexa ambiguidade sexual, gerada
através da partenogênese da testa de Zeus, não possuindo mãe, pois Diadorim também não
conheceu a mãe.
Atena é andrógina, quase uma hermafrodita, com sua armadura masculina exibindo
por vezes uma fálica lança, imbatível nas guerras, vencendo até mesmo Ares ou Marte, o deus
da guerra. Atena se assemelha a Ártemis; esta, por sua vez, se utiliza de arco e flechas, arisca
e selvagem; considerada como a deusa da caça e da lua, ―enconta-se distante, afastada da
cidade e das terras cultivadas, em plena natureza virgem. [...] Ártemis é aquela de quem
ninguém se aproxima‖ (BRUNEL, 2005, p. 96).
Já Diadorim empunha com desenvoltura a espingarda e, principalmente, o punhal, em
sua determinação de querer punir Hermógenes pela morte de seu pai, fazendo justiça com as
próprias mãos. Da mesma maneira que preserva a sua virgindade, Atena, uma mulher sem
amantes e de uma castidade perpétua, exibe ―emblemas bárbaros, notadamente a cabeça de
Górgona no peito e no escudo. Freud diz que esse ‗símbolo de horror‘ a torna mulher
inabordável – já que exibe os aterrorizantes órgãos genitais da Mãe‖ (FREUD apud PAGLIA,
1998, p. 87). No entanto, o meio não permite a sua transparência como mulher, pois na
condição de donzela guerreira, ―virgem guerreira‖124
e do amor proscrito, desvelar sua
identidade é o mesmo que se entregar à condenação de morte.
124
Nunca serão elucidados os motivos do disfarce da Virgem Guerreira – deduzindo-se disso que o escritor se
recusa a dar qualquer satisfação ―realista‖, solicitando pois ao leitor que, em contrapartida, procure explicações
em outro nível. Sabendo que Joca Ramiro representa a Harmonia Suprema do Pai Celeste, podemos entender por
que sua filha terrestre recebe uma educação viril, num universo exclusivamente masculino: ela poderá encarnar o
ideal isotérico do Andrógino, [...] Nascida do Pai Ideal. Esta nova Atena cintila igual a seu genitor nos limites da
existência humana, [...] (UTEZA, 1994, p. 353).
124
5.1.3 Otacília
Otacília, na forma de uma Beatriz da Divina Comédia de Dante Alighieri, estaria
situada no Paraíso e guiaria Riobaldo como uma santa: “era como se para mim ela estivesse
no camarim do Santíssimo‖, como bem admitia Tartarana. Nunes afirma que em:
[...] Grande Sertão: Veredas, lembremos a figura de Otacília, semelhante a uma
Beatriz consoladora, cuja lembrança sossegada guia Riobaldo nas passagens
sombrias de uma grande aventura e nele faz nascer a expectativa de um fim
plenificador de seus desejos, [...] (NUNES, 1976, p. 156).
O retorno ao Paraíso equivale ao retorno à Grande Mãe, protetora e devoradora. ―O
homem que encontrou sua verdadeira esposa, encontrou sua mãe. [...] No núcleo emocional
de todo casamento há uma pietà de mãe e filho‖ (PAGLIA, 1993, p. 60). O retorno à Bigri
que Riobaldo já buscava nos olhos de Diadorim, com a morte dele segue sua jornada até
encontrar-se com Otacília:
Os primeiros Cristos cristãos e bizantinos eram viris, mas assim que a Igreja se
estabeleceu em Roma, o paganismo romano residual tomou conta. Cristo recaiu no
Adônis. A Pietá de Michelangelo é uma das obras de arte mais populares do mundo
em parte por sua evocação da arquetípica relação com a mãe. Maria, com seu rosto
de virgem imaculada, é a Deusa Mãe sempre jovem e sempre virgem. Jesus é
admiravelmente epiceno, com mãos aristocráticas e pés de mórbida delicadeza. O
agonizante deus andrógino de Michelangelo funde sexo e religião à maneira pagã.
Chorando em seus mantos opressivos, Maria admira a beleza sensual do filho que
ela fez. Os vítreos membros escorregando para baixo no colo dela, Adônis afunda de
volta a terra, a força esgotada pela mãe imortal e a ela devolvida. Freud diz: ―É
destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe‖.
O incesto está no início de toda biografia e cosmogonia (PAGLIA, 1993, p. 60).
Otacília é a representação de Maria, a Grande Mãe virgem, sem os vestígios arcaicos
das forças da natureza; é Maria, a dogmática imaculada, benévola, sem o lado terrível da mãe
universal, criada justamente pelo cristianismo para apagar os vestígios do terror da natureza
profana, que é tão violenta quanto bondosa; pode ainda ser considerada como Démeter, a
deusa mãe.
Otacília, encarnada em Maria que recebe o seu filho, numa relação incestuosa;
Riobaldo, na figura de Édipo, que vaga em sua travessia e termina encontrando sua mãe,
cumprindo dessa forma o eterno ciclo da mãe natureza.
Outras mulheres também são apresentadas na obra, como Maria Mutema e Ana
Duzuza, esta considerada como bruxa, feiticeira125
. Maria Mutema representa uma assassina
125
O mito é uma incisão feita no tempo, na história, focalizado por cada época num de seus aspectos móveis.
Corresponde então ao ―horizonte de espera‖, definido, segundo Jauss, pelo medo social de determinado presente.
Os componentes míticos são assim mexidos e remexidos, como demonstra C. Lévi-Strauss, e manifestam ora
facetas claras, ora ocultas pela sombra.
Se a feiticeira e suas múltiplas representações aparecem daí por diante como um arquétipo de nossa cultura
inscrita na literatura, na pintura, na ópera, é porque ela no início teve vida; e na qualidade de ser humano
125
perfeita: mata o marido com requintes de crueldade ao despejar um filete de chumbo derretido
no ouvido dele, sem deixar vestígios; em seguida, parte para o seu segundo assassinato. Dessa
vez utiliza como meio a persuasão doentia, que leva o padre Ponte ao desespero, ao acusá-lo
como responsável pela morte de seu marido, em confissão na igreja. Isso culmina com a
morte do padre, que definha aos poucos de tanta tristeza. Maria Mutema representa, como
todas as figuras do arquétipo feminino, a dualidade da mãe protetora, sendo ao mesmo tempo
a mãe que acalenta e a que destrói; no entanto, por desequilíbrio, é o seu lado destruidor que
sobressai.
A obra deixa transparecer universos antagônicos, como os universos dos fazendeiros e
dos jagunços, das prostitutas e das mulheres honradas, das solteiras e casadas, das perversas e
das santas. Bem e mal convivem numa dualidade, no entanto tal dualidade rosiana não se dá
através de uma visão do universo maniqueísta. ―Ele está atento em revelar como os contrários,
a dualidade, marcam o equilíbrio que move as relações sociais, culturais [...]. O que é
considerado bom e ruim é relativo, varia em função de um referencial‖ (MEYER, 2008, p.
194). Estabelecer um modelo seria restringir possibilidades variadas, como a multiplicidade
apresentada pelo universo feminino. É ―sempre incômodo apontar na leitura de mundo,
presente nos escritos rosianos, categorias estanques, opostas e incompatíveis, bem como
conflitos maniqueístas ‖ (MORAIS, 2011, p. 203).
As mulheres em Grande sertão: Veredas são distintas, atuando direta ou indiretamente
na travessia de Riobaldo, algumas com maior intensidade nos casos do amor, três imagens
bastantes diferenciadas do arquétipo feminino, com Nhorinhá, Diadorim e Otacília; outras,
atuando de formas sutis, como Miosótis e Rosa‘uarda. Ao relacionar as três espécies de amor,
Benedito Nunes faz referência aos conceitos platônicos pertinentes ao amor, empregados no
universo rosiano:
[...], colocada, porém, numa perspectiva mística heterodoxa, que se harmoniza com
a tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que
exprime, em linguagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o
sagrado, a conversão do amor humano em amor divino, do erótico ao místico
(NUNES, 1976, p. 145).
O universo rosiano se aproxima, assim, do imaginário durandiano, com relação aos
critérios míticos, como as passagens entre o O Sagrado e o Profano, como aponta Mircea
Eliade (1992); da concepção do universo feminino pertencente ao Regime Noturno, segundo o
imaginário de Gilbert Durand (2002); ou ainda quando Nunes se refere ao sertão mítico,
suspeito ou perseguido, pertence ao registo da palavra. Especialista na arte das encantações e fórmulas mágicas,
a feiticeira nasce Sibila, Cassandra pagã, e morre nas fogueiras cristãs, condenada pelas palavras que foram sua
arma secreta. A feiticeira, ser dotado de palavra, vive na palavra de outros contadores de história ou inquisidores
(BRUNEL, 2005, p. 348).
126
―onde se desencadeia a luta entre o Bem e o Mal, inseparável das marchas e contramarchas do
amor, recebe um nome definitivo, travessia‖ (NUNES, 1976, p. 149). Ou quando o amor de
uma ―Eva carnal‖ (de Nhorinhá) alcança o ―amor cósmico‖ com Otacília, passando pelo caos
em Diadorim.
Um amor carnal convertido num amor cósmico. O que comunga à tríade peirciana,
três amores interpenetrados, indissociáveis, que fazem parte da travessia sentimental de
Riobaldo as figuras femininas: Nhorinhá, Diadorim e Otacília. Como no esquema triádico
abaixo apresentado:
Otacília/Riobaldo
(Amor elevado, espiritual)
Nhorinhá/Riobaldo Diadorim/Riobaldo
(Amor terreno, carnal) (Amor conflitante, proscrito)
Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud
JOLY, 2008, p. 33).
O antagonismo feminino, em Durand, tende a um equilíbrio de forças, mesmo que o
universo feminino esteja situado no mundo das sombras, que corresponde ao universo do
Regime Noturno; no entanto, tais diferenças tendem a um equilíbrio de forças e harmonia, em
que tudo se completa.
5.2 – Análise da obra A JOÃO GUIMARÃES ROSA
É notório que Grande Sertão: Veredas em sua construção possui vários elementos de
uma imaginação simbólica fértil, da qual a obra rosiana está impregnada desde o seu
surgimento, pois que se acha repleta de diversos elementos pertencentes a muitas categorias,
como os metafísicos, geográficos, semióticos, sociológicos, metafóricos, inconscientes e do
imaginário, além do fato de ser caracterizada como uma obra artística, plena de uma
linguagem que emprega diversos símbolos a serem traduzidos e desvendados.
João Guimarães Rosa representa o sertão, suas condições humanas – o amor, o ódio, a
vida, a morte, o sofrimento, a alegria, a coragem, dúvidas e medos –, numa dimensão
127
universal através de seu idioma próprio, na extensa e labiríntica narrativa do jagunço
Riobaldo.
Segundo Antônio Candido126
, em seu ensaio ―O homem dos avessos‖, estudo sobre a
obra Grande Sertão: Veredas, ―Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício;
mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor; a absoluta confiança da
liberdade de inventar‖ (CANDIDO, 2012, p. 111), o que corrobora a noção de que existem
resquícios, traços do escritor que impregnam a outra obra na passagem da uma releitura, de
um suporte para outro.
A passagem tem, no entanto, como viés a liberdade criativa no processo denominado de
tradução intersemiótica, conceito visto anteriormente neste trabalho. Em nosso caso estudado,
a literatura rosiana, Grande Sertão: Veredas deixa transparecer vestígios literários em sua
transposição, assim como o ensaio fotográfico A João Guimarães Rosa de Maureen Bisilliat.
Ao representar o universo sertanejo rosiano, a primeira questão concerne à naturalidade
da imagem, sua aparente facilidade na recepção; a outra questão é acerca do entendimento de
seu conteúdo. É sabido que quase sempre somos seres capazes de identificar, ao menos tentar
dar significados a objetos em qualquer lugar ou contexto histórico. No entanto, revelar o
significado aproximado de uma imagem muitas vezes implica falsas interpretações, por
desconhecimento da causa representada.
Tudo leva a crer na imagem como algo que requer todo um aprendizado, apesar de sua
naturalidade aparente. O imaginário fotográfico de Maureen Bisilliat ao representar o mundo
criado por João Guimarães Rosa é resultante de uma multiplicidade de fatores gerados pelas
mais variadas características peculiares e únicas do universo sertanejo. Segundo Vera Casa
Nova (2002):
O texto rosiano re-citado, re-escrito pela imagem fotográfica desse ensaio de
Maureen se dobra e incessantemente se faz infinito no sentido de uma multiplicidade
crescente. As imagens fotográficas advindas de Grande Sertão, por sua vez,
apresentam essa multiplicidade como dobras que se atam e desatam e reatam na
medida das forças que se conjugam no ato do olhar. Como se cada corpo ali não
olhasse nada, retendo (CASA NOVA, 2002, p. 107).
O sertão de Guimarães Rosa em sua obra: Grande Sertão: Veredas (2001), objeto de
estudo de vários críticos, com diversos pontos de vistas, absorve vários tipos de texto, até
126
Em entrevista ao Jornal da USP, Antonio Candido declara que: ―eu queria dizer que Grande Sertão: Veredas
é desses livros inesgotáveis, que podem ser lidos como se fossem uma porção de coisas: romance de aventuras,
análise da paixão amorosa, retrato original do sertão brasileiro, invenção de um espaço quase mítico, chamada à
realidade, fuga da realidade, reflexão sobre o destino do homem, expressão de angústia metafísica, movimento
imponderável de carretilha entre real e fantástico e assim por diante‖.
O super-realismo de Guimarães Rosa. Disponível em:
<http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2006/jusp763/pag14.htm>. Acesso em 15 de junho de 2014.
128
mesmo o fotográfico, um fenômeno sugestivo, desencadeador de representações instigadoras
do imaginário de quem o contempla.
A primeira imagem escolhida para análise (Fotografia 29) (BISILLIAT, 1979, p. 7) é
apresentada juntamente com um fragmento do texto de (ROSA, 2001). Refere-se à imagem da
personagem feminina, uma das componentes da tríade amorosa na vida de Riobaldo, chamada
de Nhorinhá; ao menos é o que sugere o texto em forma de legenda, ―Nhorinhá florzinha
amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e
minha boca‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 7).
A fotógrafa Maureen Bisilliat retira da obra rosiana Grande Sertão: Veredas
fragmentos para agregar a sua criação. Percebe-se que eles são de partes distintas da obra,
uma parte quase no final do livro: ―Nhorinhá florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou
bonita!... (ROSA, 2001, p. 534), e outra parte, utilizada como complemento de sua fotografia,
lança mão do texto rosiano retirado do início para se referir à amante de Riobaldo: ―Nhorinhá,
gosto bom ficado em meus olhos e minha boca‖ (ROSA, 2001, p. 133). Tal forma de pescar
tais palavras, Maureen Bisilliat denomina de ―licenças poéticas‖; sua criação ou recriação
depende dessa forma para compor a obra em sua totalidade, texto e fotografia.
(Fotografia 29) (BISILLIAT, 1979, p. 7).
―Nhorinhá – florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... Nhorinhá, gosto
bom ficado em meus olhos e minha boca‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 7).
Percebe-se também que Maureen Bisilliat não tem uma sequência semelhante aos
personagens com relação ao livro, da mesma forma que remete ao tempo psicológico, como a
própria obra rosiana. Manuel Antonio de Castro diz que ―o romance em sua arquitetura é
129
circular. Há um ir e vir no plano temático, temporal, espacial e narrativo‖ (CASTRO, 1976, p.
43).
As legendas, frases e parágrafos são retirados dessa forma por Maureen Bisilliat para
complementar as imagens. A imagem apresentada é um retrato em close de uma jovem
mulher com traços mestiços, de nariz adunco, lembrando uma ascendência indígena, ou, por
que não, um verdadeiro rosto da mistura brasileira, devido à miscigenação. A fotógrafa
consegue captar uma imagem com espontaneidade talvez inconsciente, não privilegiando a
preparação de uma grande produção fotográfica, utilizando uma iluminação natural de modo
que também consegue encorajar a modelo a mostrar-se de forma natural.
A imagem fotográfica é representada nesse contexto em que tudo parece ter sido
conjugado através da simplicidade e da casualidade aparente. A pessoa, ― a sua Nhorinhá‖,
assume feições como estivesse sido captada ao acaso por meio de sua câmera, dando a
entender isso através do aspecto simples da expressão de seu rosto. Como assinala Susan
Sontag: ―Tirar uma foto é ter interesse pelas coisas como elas são, [...] é estar em
cumplicidade com o que quer que torne um tema interessante e digno de se fotografar – até
mesmo quando for esse o foco de interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa‖
(SONTAG, 2004, p. 23).
A mulher, uma criação/recriação por parte de Maureen Bisilliat, tendo em vista que
essa personagem Nhorinhá é uma ficção, uma releitura adaptada ao olhar da própria fotógrafa,
apresenta um olhar incidente para a câmera. A cumplicidade é tamanha, que possibilita
perceber suas expressões faciais, remetendo a uma mulher de olhar meigo, de uma
simplicidade singular; no entanto, percebe-se a relação de uma entrega aos olhares para com a
fotógrafa, no que comunga com as ideias de Carlos Silva (2007) acerca de travessia amorosa e
conflituosa de Riobaldo: ―Nhorinhá, uma prostituta que foge dos arquétipos pré-concebidos e
torna-se personagem no entre lugar, uma ponte entre o bem e o mal para levar Riobaldo a
atingir a beatitude, que só é possível com Otacília‖ (SILVA, 2007, p. 44).
A filha de Ana Duzuza é uma mulher que se oferece a todos, como na pose
fotográfica; a imagem de ―Nhorinhá é a mulher amante, que representa o amor carnal, mas
não é casamenteira, já que é de muitos homens e sua função é dar a eles o prazer‖ (SILVA,
2009, p. 23). Segundo as próprias palavras do autor: ―Nonada! A mais, com aquela grandeza,
a singeleza: Nhorinhá puta e bela‖ (ROSA, 1967, p. 311).
Nhorinhá se assemelha a uma fruta, uma mangaba, que na língua tupi-guarani significa
―uma coisa boa de se comer‖, uma fruta madura que está disposta no chão, pronta para ser
comida por qualquer um que se aventure a colhê-la; uma mulher moça à disposição dos
130
homens, ―uma mulher moça, vestida de vermelho‖, mostrando todo o seu viço de mocidade
em seu sorriso com dentição perfeita. Riobaldo se farta de tanta degustação, se farta de
Nhorinhá.
O ato fotográfico nesse caso é concebido como um ato sexual de sedução, de entrega.
É importantate enfatizar tal relação texto/imagem de forma quase denotativa: reconhecemos,
de imediato, que tal mulher é Nhorinhá, e toda a carga semântica conotativa é enfatizada
principalmente pelo seu papel social de prostituta, mesmo que Maureen Bisilliat não
empregue o termo que caracteriza a sua profissão.
A fotógrafa evita colocar os nomes ―puta‖, ―meretriz‘, ―militriz‖, ―prostituta‖,
―prostitutriz‖, para não impregnar diretamente a sua outra Nhorinhá, a filha de Ana Duzuza
em sua outra criação, sua ficção fotográfica; no entanto, sabemos da sua profissão, pois sua
obra está impregnada do universo rosiano. ―Ah, a flor do amor tem muitos nomes. Nhorinhá
prostituta, pimenta-branca, boca cheirosa, o bafo de menino-pequeno‖ (ROSA, 2001, p. 263).
Maureen Bisilliat emprega as palavras do escritor e escolhe ―florzinha‖ em vez de
utilizar o termo fruta mangaba, um elemento que surge ―do chão‖, que se colhe no chão, como
a mangaba que se colhe madura quando caída, e que só pode ser comida dessa maneira,
madura caída no pé, devido à toxidez que a fruta apresenta se for colhida ainda ―de vez‖,
podendo até mesmo matar caso seja ingerida verde. Norinhá, esse amor terreno, ―do chão‖,
amor telúrico, carnal, podemos identificá-la como a representação da figura bíblica Eva, a
grande Mãe no sentido de que representa o lado do arquétipo feminino mãe, ou ainda,
Afrodite. Segundo Fontes:
O mito cósmico da criação do mundo, em que a terra, princípio das coisas, tem o
sentido de vida e fertilidade. A terra, estância universal, o caos primordial, a
matéria-prima simboliza a função maternal, a Grande–Mãe, opondo-se ao céu, como
o princípio passivo se opõe ao princípio ativo e o aspecto feminino ao aspecto
masculino.....
A personagem feminina emerge na obra de Rosa com sentido de mulher-terra, ser
primordial. A simbologia constante em sua criação mostra frequentemente aspectos
positivos de sensualidade, na medida em que se liga à reprodução e à origem da vida
(FONTES, 1990, p. 15).
Pertencente ao grupo de mulheres ou moças da vida, Nhorinhá, que acompanha uma
das etapas da travessia de Riobaldo na busca de si mesmo, evidencia a sedução e a beleza,
estabelecendo um elo com Riobaldo através do prazer, da sexualidade. As três formas de
erotismo: dos corpos, do coração e o erotismo sagrado correspondem aos três estágios de
ascensão do homem do imanente (descontínuo) ao transcendente (contínuo). O sagrado é
131
exatamente a continuidade propriciada pela morte dos seres descontínuos (FONTES, 1990, p.
109).
Fontes (1990) esclarece o sentido da prostituição com caráter de sagrado, pois num
mundo anterior e exterior ao cristianismo, as prostitutas remetem ao sentido de sacerdócio,
diferentemente da prostituição moderna.
Para Mircea Eliade, ―As prostitutas, em contacto com o sagrado habitando locais
consagrados, tinham um caráter sagrado análogo ao dos sacerdotes‖ (ELIADE, 1966, p. 85).
Nhorinhá é filha de uma curandeira127
e adivinha, Ana Duzuza, que pode ser considerada
como (benzedeira, rezadeira, raizeira)128
, uma referência ao sagrado em João Guimarães Rosa,
e como tal, a filha de uma sacerdotisa: Nhorinhá, uma possível iniciante das artes misteriosas
da cura através de suas rezas, que tem a incumbência de presentear Riobaldo com um dente de
jacaré, um amuleto, para protegê-lo contra picada de cobra, mas que também mostra uma
imagem da santa para Riobaldo beijar.
Depois ela me deu de presente uma presa de jacaré, para traspassar no chapéu, com
talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma imagem, estampa de
uma santa, dita meia milagrosa. Muito foi.
Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nome de Ana Duzuza: falada de ser
filha de ciganos, e dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente; naquele sertão
essa dispôs de muita virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, [...] (ROSA, 2001, p.
49 ).
Nhorinhá propicia a Riobaldo um ritual de iniciação à vida e ao amor, num misto de
sagrado e profano na Aroeinha. Ali mesmo em pleno sertão, este processo ritualístico tem seu
começo, na ―cabana iniciática‖ de Nhorinhá. Uma das formas de erotismo, o do corpo,
essencialmente protegendo-o, de modo a conduzi-lo aos enfrentamentos do mundo com
segurança, garantindo uma transcedência ao casar-se com Otacília.
127
Além da Ana Duzuza, existem as curandeiras Maria Leòncia e Izina Calanga, que assim como Nhorinhá
demonstram que existe todo um sincretismo religioso arraigado do sertão: Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia,
longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês — encomenda de
rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal
nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza
também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em
Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! (ROSA, 2001, p. 32). 128
Rezadeiras, benzedeiras e raizeiras são portadoras de uma tradição oral antiquíssima. Segundo a crença
popular, elas são protegidas pelos santos e reafirmam a presença deles na vida de todos os que as procuram.
Elas nos fazem lembrar as divindades protetoras e são, sem dúvida, portadoras de uma força numinosa singular.
Com mãos ágeis sustentam pequenos ramos verdes; traçam cruzes no ar sobre a cabeça do doente enquanto
murmuram preces. Tecem assim um fio invisível, unindo as dores do homem com a evocação poderosa do
Sagrado, na figura da Santíssima Trindade e do Espírito Santo. (ROITMAN apud JARDIM) Disponível em:
<http://www.overmundo.com.br/overblog/autores-nacionais-na-mira-de-analistas-junguianos>. Acesso em
jul. 2014.
132
A segunda imagem escolhida inicia-se com a frase, e logo abaixo, a imagem
fotográfica (Fotografia 30) (BISILLIAT, 1979, p. 11). Como é de se notar, nem todas as
imagens apresentadas são somente as da figura feminina em si, mas uma gama de outras
possibilidades aliadas a diversos contextos, tal a da mãe e de sua família, como essa imagem
fotográfica apresentada. Mesmo em fotos analisadas mais adiante, que não possuem a
representação feminina explícita como no caso da imagem criada de Nhorinhá, com a ajuda
da leitura do imaginário de Durand podemos desvendar essa representação latente, em suas
entrelinhas.
Maureen Bisilliat, com relação à utilização de trechos de Grande Sertão: Veredas,
alterna a apresentação: na maioria, em primeiro lugar, vem a imagem; logo em seguida, em
forma de legenda poética, um fragmento da obra de Guimarães Rosa; essa imagem, no
entanto, está acompanhada do texto rosiano: ―Tem horas em que penso que a gente carecia, de
repente, de acordar de alguma espécie de encanto‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 111).
(Fotografia 30)
―Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto‖ (ROSA
apud BISILLIAT, 1979, p. 10)
Em seu divagar com narratório, o diálogo remete à presença de Diadorim e,
principalmente, à dúvida acerca da venda ou não da alma ao demo:
Meu era um alívio. Mesmo não duvidei de meu menor valer: alguém lá tem a feição
do rosto igualzinha à minha? Eh, de primeiro meu coração sabia bater copiando
tudo. Hoje, eu desconheço o arruído rumor das pancadas dele. Diadorim veio para
perto de mim, falou coisas de admiração, muito de afeto leal. Ouvi, ouvi, aquilo,
copos a fora mel de melhor. Eu precisava. Tem horas em que penso que a gente
carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as
133
coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas
saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos! Bobéia, minha. E
como é que havia de ser possível? Hem?! (ROSA, 2001, p. 100).
Riobaldo questiona com seu interlocutor o valor das coisas e sua verdade já
anteriormente discutida: ―O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é
isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão
sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior‖ (ROSA, 2001, p. 39). Podemos
então questionar a fotografia apresentada e com isso discutir o realismo da fotografia. A
imagem não é por si só portadora da verdade, por sua semelhança, mas, no entanto, seu
realismo pode ser apresentado como um somatório de elementos que possibilitam a sua
leitura.
A verdade de uma fotografia não está contida nela mesmo, como algo transparente
apontando para o seu referente, como a própria realidade, mas em todo o contexto cultural
em que a fotografia foi captada pelo olhar do fotógrafo, sua intenção e diversidade de
conotações, uma vez que, como diz Arlindo Machado: ―a demolição definitiva e
possivelmente irreversível do mito da objetividade fotográfica, sobre o qual se fundam as
teorias ingênuas da fotografia como signo da verdade ou como reprodução do real‖
(MACHADO, 1988, p. 3).
Na obra literária, Riobaldo indaga sobre sua paixão perante Diadorim, como que por
encanto, algum feitiço demoníaco, se sentindo embevecido por tudo que Diadorim dizia a ele;
ao mesmo tempo, questiona sobre a verdade das coisas. Riobaldo imagina/deseja que tudo
isso não passe de um encanto mágico, aliviando de certa maneira o tormento que o persegue,
o desejo que não se concretiza, pois esse amor é proscrito, um amor homossexual em sua vida
de jagunço, ou como nos diz bem mais adiante o narrador: ―O senhor não repare. Demore, que
eu conto. A vida da gente nunca tem termo real‖ (ROSA, 2001, p. 615). Riobaldo tem dúvidas
também sobre a venda da alma, não somente a sua, mas a de todos; quiçá o olhar perdido do
pai e também o da mãe na imagem indicam o questionamento que eles fazem sobre a sua sorte
na vida ou o que pretende a fotógrafa.
Em seu trabalho a fotógrafa sintetiza uma família nuclear ao representar a figura do
pai e da mãe com seus três filhos, um plano médio, com uma luz muito forte que entra pela
janela, em que o menino à direita se apresenta em contraluz. Percebe-se novamente que se
trata de uma fotografia posada, no entanto, apesar de posada, existe um momento de
esquecimento perante a fotógrafa: com exceção das crianças, os pais relaxam, tornando-se
uma imagem quase que totalmente espontânea.
134
Ao tentar descrevê-la percebe-se que um domínio do claro e escuro invade a imagem,
domínio técnico oriundo das artes plásticas que Maureen Bisilliat aprendeu antes de dedicar-
se ao universo fotográfico (ver Apêndice 3). Um silêncio tenso paira no ar, como os olhares
nas mais variadas direções; o pai com um olhar para o infinito, pensativo, assim como a mãe
também não direciona o olhar para a fotógrafa.
Essas nuances pictóricas remetem por sua vez também ao universo literário barroco.
Em seu trabalho ―As dobras do sertão: palavra e imagem‖, Josina Nunes Drumond (2008)
defende a tese de que a obra rosiana Grande Sertão: Veredas está impregnada de fortes
indícios de elementos da estética barroca. Ela diz que:
[...] no romance, alguns aspectos característicos do Barroco, que favorecem a
imprecisão, a dúvida e a oscilação bipolar, e que são responsáveis pela tensividade
da obra, tais como a transgressão das normas, a manutenção das dualidades, a
convivência de elementos heterogêneos, a profusão aparentemente caótica de
elementos, o paradoxo, a ambiguidade, a fragmentação, o hibridismo, o hermetismo,
o labirinto, a constante presença do conflito, entre outros (DRUMOND, 2008, p.
19).
Nessa mesma linha de raciocínio, Bernard Emery (1994), em seu trabalho acerca da
visão do poeta e escritor francês Géo-Charles sobre o Brasil, relata que: ―ele foi capaz de
descobrir o Brasil sob a dupla iluminação do modernismo e do barroco, [...]‖ (EMERY, 1994,
p. 18). Considera Grande Sertão: Veredas como um dos expoente literários que compactuam
com essa possibilidade estética barroca.
Por meio de técnicas próprias inerentes a cada tipo de linguagem (literatura e
fotografia), — apesar de a fotógrafa ser comtemporânea —, ela deixa transparecer uma
luminosidade típica do barroco ao empregar um ofuscante contraste na luz, ―o claro e
escuro‖129
, obedecendo à característica dessa escola. Comunga, por sua vez, dentre tantos
traços barrocos, das características contrastantes do universo da linguagem rosiana em
Grande Sertão: Veredas, como que na tentativa de expressar as incertezas e um mundo por
vezes confuso e nebuloso, apresentado por seu narrador, Riobaldo, que mesmo estando casado
com Otacília, remete ao também amor do passado, na imagem de Diadorim enevoada como
que pairando no ar, bem como em memórias pactárias com o demo em suas memórias:
129
Ao claro e ao escuro atribuímos significados diversos, um em função do outro. Eles não são vistos, todavia,
como polaridades de um mesmo modo de ser, como pontos extremos de uma escala contínua que se estenderia
do branco ao preto. Ao contrário, o significado com que relacionamos é o da contraposição, ou mesmo da
oposição intrínseca. Ate mesmo lhe damos um sentido ativo, como forças antagônicas que atuam em nosso ser.
Vemos a claridade como afirmação de vida, do ser e do fazer, do sol, das qualidades éticas do bem e da verdade.
Inversamente, a escuridão não é tida apenas como ausência de claridade, mas como sua negação, como um
contraprincípio também ativo, o não-ser, o mal, o desaparecimento, a destruição, a morte (OSTROWER, 1996,
p. 225).
135
De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a
devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças.
Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha
neblina...
Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém:
pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio
se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto
de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, alma, o
que é? (ROSA, 2001, 40-41).
É também possível perceber que as ações de guerra são traçadas como sendo as de um
esboço de desenho feito por Zé Bebelo. Faz ainda lembrar as nuances de claro e escuro de
uma composição de quadro barroco no qual é criada uma ilusão de ótica causada pela
organização dos ―drongos‖ e seus cavalos. O contraste da luz é percebido pelas nuances da
cor clara dos cavalos (baio130
, ruço131
), um movimento gradual expressivo de deslocamento na
intensidade de valores mais escuros para os mais claros na tropa. E esses aparentam ser bem
maiores:
Aí Zé Bebelo tinha meditado tudo como um ato, de desenho. Primeiro, João Concliz
avançou, com seus quinze, iam fazendo de conta que desprevenidos. Quando os
outros vieram, nós todos já estávamos bem amoitados, em pontos bons. Duma
banda, então, o Fafafa recruzou, seus cavaleiros: que estavam muito juntos,
embolados, do modo por que um bando de cavaleiros ou cavalos dá ar de ser muito
maior do que no real é. Todos cavalos ruços ou baios – cor clara também aumenta
muito a visão do tamanho deles (ROSA, 2001, p. 111).
Na fotografia avaliada mergulhamos nessa imagem na tentativa de decifrá-la, criando
uma narrativa toda particular. Trata-se de uma foma intuitiva de interpretação, mas que
também está carregada de todo um background cultural que possuímos: reativamos memórias
passadas e todo um imaginário visual que até então estava latente e os fazemos emergir para
compor no presente um entendimento plausível de tal imagem. A fotografia pertence ao
domínio da cultura, principalmente as imagens no advento da arte, como as de Maureen
Bisilliat; suas fotografias são autorais e sua leitura simbólica aponta para algo cujo significado
é quase sempre metafórico.
Quanto mais tivermos conhecimentos sobre esse objeto representado na imagem
fotográfica, como as pessoas ou os lugares, supomos ter mais e mais detalhes sobre o evento
disposto na imagem. Em nosso caso, no entanto, outros fatores são adicionados por Maureen
Bisilliat: são os fragmentos da narrativa que compõem a obra Grande Sertão: Veredas.
130
(adjetivo), que tem a cor castanha ou amarelo-torrado. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=baio>. Acesso em 5 set. 2014. 131
(adjetivo), pardo claro; pardacento. Disponível em:
http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=RU%25C3%2587O> Acesso em 5 set. 2014.
136
Ao analisar a fotografia de Maureen Bisilliat observamos que essa referência a um
espaço ilusório fora do enquadramento, como assinala Arlindo Machado (1983), esse olhar
que remete para algo fora do campo por vezes perturbador, um olhar extra-quadro, força o
leitor a imaginar o que ele estaria olhando ou imaginando.
Percebemos o corte dado no enquadramento ao lado direto do menino, e assim
também como a menina de vestido branco fita diretamente a lente de Maureen Bisilliat; essa
luz que incide na roupa branca, seus braços relaxados sobre o vestido branco, seus pés
ligeiramente cruzados sobre o piso de pedra. É um destaque relevante aos nossos olhos, além
do que a menina se apresenta quase no centro da imagem, diferentemente de seu irmão, que
está em contraluz.
O olhar é atraído por diversos elementos possíveis na imagem apresentada — essa
subjetividade persuasiva e particular a cada observador. Sabemos que de algum modo alguma
coisa chama a atenção. Devido ao enquadramento da fotógrafa, damos significados àquilo que
acreditamos ser relevante na imagem, o que Barthes (1984) denomina de Puctum, aquilo que
fere, que impressiona o nosso olhar de forma bem particular. Por exemplo, podemos constatar
ou não a presença de uma criança por trás do pai, sentada na cama. Isso também depende da
acuidade visual de cada observador.
O casamento, a convivência com uma mulher ao lado de sua prole, como na
representação da imagem fotográfica, significa a quebra do encanto. Ao se casar com Otacília
na fazenda Santa Catarina, essa era uma realidade concreta que ele podia suportar devido a
tantos interditos amorosos com relação a Diadorim, caso tivesse de viver com ela. A foto seria
a realidade com Otacília, ou o desencantamento que poderia ter ocorrido se soubesse que
Diadorim era mulher; infelizmente ele só descobre que ela é uma mulher na sua morte, e não
antes.
Sua jornada possui ―Rituais da Travessia‖, e são diversos os que o herói Riobaldo pelo
sertão adentro tem de enfrentar. Ela pode ser representada como ―uma descida ao inferno e
como uma exploração dos abismos da condição humana‖ (ROSENFIELD, 2008, p. 30).
Como quando assume a chefia do bando, ditando ordens e assumindo um novo nome, Urutu-
Branco.
O caráter familiar nessa busca de sua amada é uma das confusões de Riobaldo em
suas travessias. Estas estão associadas ao caos primordial em que ele vive, na busca de uma
ordem. ―O sertão-mundo precisa ser conquistado; é preciso tomar conta dele adentro. É
cosmos. O sertão satânico corresponde ao caos primordial. Sertão é ao mesmo tempo o caos e
cosmos‖ (SPERBER, 2006, p. 149). O espaço familiar é a ―imagem santificada do cosmo‖,
137
que culmina no casamento com Otacília. De modo que na relação trinitária, segundo Santoro
(2012), em todas elas existe uma relação entre o Pai e a Mãe que geram o Filho, ou a terceira
pessoa da tríade.
A terceira imagem escolhida (Fotografia 31), para maior variedade de possibilidades
em relação ao universo feminino, representa a mulher com seu marido. Maureen Bisilliat
retrata um casal com olhares dirigidos para a fotógrafa, tendo em primeiro plano a mulher; a
luminosidade em contraluz fere nosso olhar devido ao grande contraste criado pela luz do sol
entrando pela janela. Um detalhe curioso é que a frase que acompanha a fotografia, logo
abaixo, não pertence a Grande Sertão: Veredas (2001) e sim a uma obra lançada no mesmo
ano, 1956, Corpo de Baile. Mais adiante essa obra é dividida em três partes, No
Urubuquaquá, no Pinhém, do qual faz parte o conto ―Cara-de-Bronze‖, em que há um
parágrafo acerca do viajante e contador de histórias chamado Grivo, que diz:
De repente – a Fazenda Capitão-Mór – de repente. No acabável; fazenda de casaria.
Léguas, no sussequente. A gente sabe que esses silêncios estão cheios de mais outras
músicas. A Fazenda do Pau-torto. A família leprosa, na cafua seguinte. No sítio da
Emendadeira, donde tinha uns santos em oratório – de longe vinha gente, para
beijar, um vintém se pagava, por boca de pessoa [...] (ROSA, 2001, p. 160).
Maureen Bisilliat utilizou tal livro devido a algumas particularidades, pois no conto
―Cara-de-Bronze‖ encontramos a personagem amante de Riobaldo, Nhorinhá, personagem da
primeira fotografia analisada.
(Fotografia 31)
―...a gente sabe que êsses silêncios estão cheios de outra música‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 13)
138
Novamente Maureen Bisilliat é bastante sutil ao fotografar esse casal, habitantes dos
campos nas proximidades da cidade mineira de Lassance132
. Mesmo se tratando de uma foto
posada, ela tem paciência e destreza ao captar a imagem no momento exato em que seus
personagens relaxam. Apesar de o nosso olhar ocidental ser uma leitura de visão da esquerda
para a direita, a mulher possui uma grande atração visual, pois tem a pele albina, com grande
contraste de luz, além da proximidade que ocorreu no ato fotográfico.
O homem fica mais ao fundo. Pelas normas fotográficas da composição, existe um
excesso de luminosidade na imagem; comumente se diz que a fotografia ―estourou‖ a luz, mas
isso dá um caráter diferencial às imagens de Maureen Bisilliat. Muitas vezes ela publica uma
imagem que poderia ser negligenciada pelas convenções, uma imagem fora dos padrões dos
grandes meios de comunicação, como no fotojornalismo ao qual a própria fotógrafa
pertenceu.
Maureen Bisilliat é incisiva com relação ao seu próprio trabalho fotográfico, no
tocante a sua composição, ao afirmar que perdeu mais imagens do que captou. Seu
formalismo advém da pintura, adquirido com André Lhote, sendo expresso na noção de luz,
sombras, formas; no entanto, seu rigor técnico no manuseio da máquina deixava a desejar,
pois também tinha a pintura como espelho, acreditando na fotografia como uma forma mais
libertária, semelhante à pintura.
A fotógrafa aprendeu com o professor russo, naturalizado norte-americano, Moris
Kantor, ao estudar artes plásticas com ele em Nova Iorque, que muitas vezes o erro traz
consequências interessantes; talvez seja isso que se reflita em sua forma de fotografar, em sua
estética. Sua autocrítica leva a crer na necessidade de não ter conciliado a técnica fotográfica
e a composição, a perder muitas vezes uma imagem, pois o que os seus olhos viam, seus
dedos não registravam. Como dizia Henri Cartier-Bresson acerca da técnica, tendo a máquina
como ―um bloco de esboços‖ (CARTIER-BRESSON, 2004, p. 12); a técnica não seria sua
preocupação maior e sim, a intuição, a espontaneidade e o instante.
Algo bastante dolorido ou até mesmo doentio para alguns fotógrafos. A obsessão ou
frustração na captura ou perda da imagem leva muitas vezes os fotógrafos, quando não estão
132
Acerca da cidade de Lassance, local onde habitava Diadorim com seu Tio: Aí pois, de repente, vi um menino,
encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha
idade. Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu
que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e
que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e
era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. Muito tempo mais tarde foi que eu
soube que esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de Lassance (ROSA, 2001,
p.118)
139
com a câmera fotográfica em mãos, a nem sair de casa, para não verem uma grande imagem
em suas andanças e não poderem capturá-la, diferenciando-se bastante da forma de compor
uma poesia ou de pintar uma tela.
A frase sobre o silêncio representa o mistério velado das coisas, das pessoas, entre as
pessoas, como na passagem da obra Grande Sertão: Veredas. ―Só outro silêncio. O senhor
sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais. – Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!‖
(ROSA, 2001, p. 601).
O silêncio de Riobaldo é o silêncio consigo mesmo de querer se negar e não
conseguir: ―Faltava era o sossego em todo silêncio, faltava rastro de fala humana. Aquilo
perturbava, me sombreava. Já depois, com andada de três dias, não se percebeu mais
ninguém. Isso foi até onde o morro quebrou. Nós estávamos em fundos fundos‖ (ROSA,
2001, p. 542). O silêncio sugere a dúvida de Riobaldo em querer saber se o pacto com o diabo
havia sido ou não efetuado; mas suas reflexões constantes também sugerem algo além do
pacto, toda uma recordação e reflexão sobre os principais acontecimentos de sua vida.
Em ―O homem provisório em Grande Sertão: Veredas‖, Manuel Antonio de Castro
(1976, p. 22) observa que os longos e constantes diálogos/monólogos reflexivos do ex-
jagunço, bem como a forma de construção do diálogo em si pelo escritor, geram dúvidas,
conflitos e inquietações reflexivas constantes que perturbam a sua mente:
O autor faz referências desde o início a um diálogo narrador/escritor com um
ouvinte/leitor, sem que esse, no entanto, jamais se manifeste. O diálogo é
estruturado num ir e vir de perguntas/respostas/perguntas. Vai narrando as lutas e
andanças dos bandos de jagunços, pequenos acontecimentos e estórias, sendo que
tudo leva a constantes reflexões/monólogos.
O motivo central de toda essa narração é não só o questionamento da existência do
diabo e consequentemente possibilidade de pacto, mas também dos fatos que o
precedem e os acontecimentos que se seguiram.
Acontecimentos que geram mais e mais dúvidas em seus diálogos/monólogos e que
conduzem a uma espécie de círculo de confusão mental pelo jagunço, tematizando toda a
problemática jornada do homem através de seu sertão.
As duas imagens seguintes (Fotografias 32 e 33), juntamente com o texto, indicam o
momento conflitante no Paredão; a frase completa: ―Só fiz que no forte do sentir eu pudesse
era este ameaço de reza: – Me dê o meu, só, e que é o que quero e quero!... – ao Demo ou a
Deus... A lá eu ia‖. Riobaldo roga a Deus e ao Diabo como que para ajudá-lo nesse momento
decisivo que ocorre quando se dá o grande encontro entre Riobaldo (Urutu-Branco)
juntamente com Diadorim e o grupo de Hermógenes, no Paredão, em uma luta ímpar que
culmina com a morte de Diadorim e Hermógenes.
140
As imagens aparentemente não encontraram vínculos diretamente com esse trágico
confronto no Paredão; as fotografias têm um sentido metafórico: ambas as imagens têm uma
composição com enquadramento em plano americano, esse recorte da imagem que se dá
aproximadamente na altura do joelho, ou nas proximidades deste.
A primeira tem uma iluminação da direita para a esquerda, enquanto a segunda tem
uma iluminação em contre-plongée ou contreplongée, iluminação que ocorre de baixo para
cima, sendo notório o grande contraste entre o preto e branco, o que realça ainda mais as cores
brancas. As imagens são bastante dramáticas, seja pela iluminação, que torna muito
expressiva a aparência das mulheres, principalmente a segunda, seja pela aparência das
mulheres e pela aproximação de cada imagem.
(Fotografia 32) (Fotografia 33)
(Fotografias 32 e 33) (BISILLIAT, 1979, p. 14).
―Só fiz que no forte do sentir eu pudesse era este ameaço de reza: – Me dê o meu, só, e que é o que quero e
quero‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 14)
No entanto, seu desvelamento se dá com relação ao universo mítico, ao relacionarmos
tais imagens como um manifesto da vida, tendo a mulher como a Mãe, ao dar à luz uma vida,
estando ligado ao conforto, alimento, acalanto, ao cuidado com a subsistência de sua prole.
As próximas imagens reforçam a estética utilizada por Maureen Bisilliat ao captar
interiores de vilarejos que percorreu no sertão mineiro. Ela lança mão de imagens semelhantes
àquelas utilizadas por Eugène Atget, dado abordado anteriormente em nosso trabalho, em que
apresentamos os primórdios do surrealismo, imagens sem a presença de pessoas, que
141
causaram certo estranhamento; devido a essa característica, Atget foi incorporado a esse
movimento. Nas imagens fazemos um comparativo entre os dois artistas. Maureen Bisilliat,
entretanto, acrescenta à imagem uma frase final do livro de João Guimares Rosa, Grande
Sertão: Veredas.
(Fotografia 34) (Eugène Atget, Paris)133
(Fotografia 35) (BISILLIAT, 1979, p. 17)
Apesar de Maureen Bisilliat utilizar muitos retratos em seu ensaio, noutras imagens
remete ao universo surreal de Eugène Atget (Fotografia 34), fotógrafo já abordado no capítulo
- 3.1, que faz referência aos primórdios do Surrealismo.
Ela compõe nesta imagem (Fotografia 35), sobre uma pequena mesa, dois pratos, a
ausência total do elemento humano. A imagem apresentada é acompanhada de dois
fragmentos da obra rosiana que estão conjugados: ―Travessia perigosa mas é a vida. É o que
eu digo se for... Existe é homem humano‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 17). A
fotógrafa cria/recria uma nova frase, pois as imagens fazem parte de lugares distintos na obra:
Sertão sendo do sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às imensidões,
por sobre... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa.
Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece
vento. E os brabos bichos, do fundo dele...‖ (ROSA, 2001, p. 558).
―O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo
não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia (ROSA,
2001, p. 624).
133
Bar de Cabaret, Paris. Eugène Atget, 1910. Disponível em:
<http://www.edouardleoncortes.com/printimage.html?image_no=1138(1856 - 1927>. Acesso em 25 jan.
2014.
142
A escolha dessa imagem para compor a análise deve-se ao fato de ela remeter ao
universo surreal de Eugène Atget, e não necessariamente ao universo feminino nesse instante,
confirmando nossa suspeita da utilização por parte de Maureen Bisilliat de concepções
estéticas oriundas do movimento modernista, do Surrealismo, e também devido à fotógrafa
lançar mão em seu ensaio de fotografias preto e branco em todo o seu trabalho. Tal emprego,
segundo Fernando Braune, faz com que Maureen Bisilliat se aproxime ainda mais do
Surrealismo. Braune (2000, p.144-145) diz que:
De imediato, a fotografia em preto e branco distancia-se da realidade existente, que é
colorida. [...] Uma fotografia em preto e branco, por melhor que represente a
realidade, por mais que ela se aproxime, guarda consigo alguma coisa de oculto, de
não revelado. Ela é uma linguagem que pressupõe algo além da mera contemplação,
não há como estar realmente envolvido, ―tomado‖ por uma imagem em preto e
branco com uma postura simplesmente voyeurista, pois essa implicação exige
desvendar as suas entrelinhas.
O trabalho da artista, devido ao seu cunho autoral na busca de captar o universo
sertanejo de João Guimarães Rosa, se encontra no universo que é denominado de Regime
noturno de Gilberto Durand.
Nas duas imagens seguintes, aparece um retrato de uma menina (Fotografia 36) que
segura uma cuia bem arredondada, que mais parece um pequeno globo em suas mãos; na
outra, uma senhora (Fotografia 37) com um possível alguidar (enorme prato de cerâmica) na
cabeça, que assim como o pote, a bacia, panela, caçarola, caneco, fazem parte da herança de
Riobaldo dada pela Bigri, sua mãe. As fotos apresentam um forte contraste, dando um
intenso realismo semelhante às imagens barrocas de tantos mestres, como Rembrandt
Harmenzoon van Rijn e Michelangelo Merisí, conhecido como Caravaggio (referente à cidade
em que viveu), Arthemisia Gentileschi, que mantêm grandes áreas escuras em seus trabalhos.
Desse modo é então percebido que a fotógrafa lança mão de algumas correntes artísticas em
sua obra, não somente do Surrealismo já apontado, mas também do Barroco.
A técnica do uso da luz e da sombra, oriunda da Renascença, em torno de um século
depois e também empreendida na escola do Barroco, consistia em fazer com que as áreas
fossem iluminadas exageradamente de modo que obtivessem um destaque maior, reforçando
os volumes e as formas através do contraste entre luz e sombra, claro-escuro (chiaroscuro), e
ressaltando os movimentos e contornos das características das expressões do elemento
humano em primeiro plano.
143
A fotografia de Maureen Bisilliat, que assim como Caravaggio busca em muitos
instantes a franqueza da representação da realidade e não o seu mascaramento, exibe as
nuances da textura no rosto da anciã, suas rugas da velhice.
( Fotografia 36) (BISILLIAT, 1979, p. 18) ( Fotografia 37) (BISILLIAT, 1979, p. 19)
―Eu quero ver essas águas, ―Medo mistério.
a lume de lua... Rendas pretas defunteiras .‖
águas para fazerem minha sede .
De tristeza, tristes.
águas, coração posto na beira.... ―
(ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 19)134
A primeira, com a jovem, é bem metafórica, em se tratando de uma tradução
intersemiótica. Fica evidente que o texto rosiano é tomado de empréstimo e se refere a um
universo de criação de Maureen Bisilliat.
Num primeiro momento percebemos elementos arquetípicos para explicar tais
relações: a menina, da primeira fotografia, poderia representar a Grande Mãe, tendo como
símbolo o globo terrestre em suas mãos; ela é a mãe responsável pela criação, geradora de
vida, representando um arquétipo positivo; já a segunda fotografia, uma velha, com uma
sombra tenebrosa em que não identificamos a sua face, assim como a primeira imagem,
também possui uma intensa iluminação, denominada de luz dura, devido à formação de
intensa sombra contrastante.
134
Maureen Bisilliat recorta fragmentos do romance sem uma sequências, disponibilizados, em duas estrofes: a
primeira estrofe: Eu quero ver essas águas, a lume de lua... (ROSA, 2001, p. 325)./ Águas para fazerem minha
sede (ROSA, 2001, p. 174). / De tristeza, tristes. Águas, coração posto na beira.... (ROSA, 2001, p. 198). A
segunda estrofe: Medo mistério (ROSA, 2001, 76)./ Rendas pretas defunteiras (ROSA, 2001, p. 113).
144
Por pouco, ficamos sem saber do que se trata. Uma anciã, talvez, pois apenas uma
pequena mostra da parte do seu rosto centralizado na imagem apresentada, evidencia suas
rugas, assim como a textura negra de seus braços envelhecidos pelo tempo.
As imagens evidenciam, no entanto, relacões do texto rosiano com o elemento ―água‖,
ao qual pertence o universo das mulheres, devido a sua condição menstrual semelhante a um
rio, bem como ao elemento ―lua‖, conveniado a essa condição feminina de seus ciclos
mensais de menstruação e associados às fases da lua. Já a frase ―Medos mistérios. Rendas
pretas defunteiras‖ representa o lado negativo do arquétipo feminino, lado obscuro e sombrio
de uma mãe bruxa. Diferentemente do aspecto positivo, que confere proteção, seu lado
negativo associa-se ao perigo do ―repúdio, privação‖, segundo Neumann (1996). A Grande
Mãe, da mesma forma que dá amor, calor e proteção, numa demonstração de poder, pode
também resultar na prisão e na morte.
Na obra as ―Rendas defunteiras‖ constam alusões aos morcegos hematófagos
(comumente denominados de morcegos vampiros) que, no caso se alimentam de sangue dos
bois. O local da narrativa é o Paredão, local ermo e sem vida, local de sangrenta luta entre
Hermógenes e Diadorim. Esse animal como tal pertence ao regime noturno das imagens na
concepção de Gilbert Durand, bem como o Paredão:
O Paredão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais.
As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a
qualquer entrar o borbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios no
corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes. Deitam. Malham. De
noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas
defunteiras (ROSA, 2001, p. 113).
Essas duas imagens também podem representar o inferno de Riobaldo em sua relação com
Diadorim, na confusão de suas dúvidas com relação a esse amor velado e proscrito, que
culmina com a morte de Diadorim. Riobaldo consideraria o amor essa ―bruta flor do
querer135
‖, como assinala o compositor Caetano Veloso em sua canção ―O quereres‖.
Elementos antagônicos como os apresentados pelo narrador Riobaldo, que define o
amor como sendo ―Pássaro que põe ovos de ferro‖. Estando num dos tantos acampamentos de
guerra, nas proximidades de um brejo, lugar obscuro e lodoso, fluidez do desejo que remete
ao universo misterioso materno durandiano, é então que surge a imagem de uma ―cabaça‖ nas
maõs de seu amigo, uma cabaça sendo chacoalhada com um ferro dentro:
135
CHEDIAK, Almir. O quereres. In: SongBook Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994.
145
Me revejo, de tudo, daquele dia a dia. Diadorim restava um tempo com uma cabaça nas
duas mãos, eu olhava para ela. Mas balançou a cabaça: tinha um trem dentro, um ferro, o
que me deu desgosto; taco de ferro, sem serventia, só para produzir gastura na gente. –
―Bota isso fora, Diadorim!‖ – eu disse. Ele não contestou, e me olhou de um hesitado jeito,
que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal, guardou o pedaço de ferro na algibeira. E
ficava toda-a-vida com a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada de
capricho, mas que agora sendo para nojo (ROSA, 2001, p. 77).
Essas imagens são como um alerta para Riobaldo: o objeto de ferro dentro da cabaça,
assim como o ovo136
de ferro, apontam para os seus interditos que impossibilitam essa união;
ao mesmo tempo, o desejo avassalador que o consome dia após dia. O amor conciente de
Riobaldo por Diadorim é gerado, mas ao mesmo tempo o seu invólucro, uma casca de ferro,
impossibilita a sua procriação. O signo surge, mas é impedido de se expandir nesse contexto;
seu agitar constante, como o produzido na cabaça pelas mãos de Diadorim, prenuncia um ovo
gorado, ―remetendo à mesma frieza, artificialidade, bruteza, à morte, e indo além, nas mãos
de Diadorim que o guarda no bolso; o balançar anterior remete à necessidade de ela relembrar
as ameaças do amor que eles vivem‖ (SILVA, 2009, p. 31).
Um amor abortado, que não vinga, um ovo137
sem cria, no entanto, que se agita em
suas entranhas sem querer ficar aprisionado: L'amour est un oiseau rebelle / Que nul ne peut
apprivoiser, que se contorce na tentativa desenfreada pelo desejo de nascer e crescer.
Em sua análise ―As três cores do amor‖, acerca dos amores de Riobaldo: Nhorinhá,
Diadorim e Otacília, Luiz Roncari afirma que: ―Desde o início do livro, o seu amor por
Diadorim é representado como algo com um núcleo de ferro, duro e negro, impenetrável e
repulsivo [...] O ovo, objeto natural e frágil, substituído na sua substância por um produto da
cultura, o ferro duro‖ (RONCARI, 2004, p. 220). A cabaça por sua vez remete a outro termo
peculiar, ―cabaço‖138
, significando a virgindade da donzela guerreira, Diadorim, aspectos
pertinentes às deusas virgens da mitologia: Ártemis, Atena e Héstia.
A cabaça não tem como única função carregar água para matar a sede; serve ainda
como um cofre flutuante que leva o pagamento da promessa ao Senhor Bom Jesus da Lapa.
Nessa instância do romance, Riobaldo conhece o ―Menino‖ às margens do de-Janeiro. No
136
O ovo é uma espécie de objeto arquétipo, matriz e produto final, côncavo e convexo, a um só tempo um
modelo de introversão (puro conteúdo oculto) e de extroversão (aparência sem sombra). Segundo as teogonias
órficas, Chronos, o Tempo, ―monstro polimorfo, gera o ovo cósmico que, ao se abrir em dois, dá origem ao céu e
à terra e faz aparecer Phanes, o primeiro nascido dos deuses, divindade hermafrodita na qual se anula a oposição
do macho e do fêmeo‖ (WISNIK apud ROCHA, 1993, p. 287). 137
O ovo pode significar: ―Nascimento é infância . O fato de um ovo de ave ter potencial de desenvolver filhotes
faz com que ele seja equiparado ao ventre humano e simbolize fertilidade, nova vida, nascimento e crianças.
Animais jovens, flores de primavera e inclusive bebês,(...) representam essa fase inicial da vida‖ (GIBSON,
2012, p. 233). 138
Mulher ou homem virgem; estado ou condição da mulher ou do homem virgem; virgindade. Disponível em:
< http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=CABA%25C3%2587O>. Acesso em: 15 de julho 2014.
146
mesmo contexto da obra, a cabaça também se presta ao uso como boia para dependurar anzol
na pesca de peixes:
Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa
para eu cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um
tanto – metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr
dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de
ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, que
na beira do rio tudo pode (ROSA, 2001, p. 117)
De descer o barranco, me dava receio. Mas espiava as cabaças para boia de anzol,
sempre dependuradas na parede do rancho (ROSA, 2001, p. 118)
Nessa passagem, Riobaldo conhece então o ―Menino mocinho‖: ―Escondido enrolei
minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha de estar esmolando‖ (ROSA,
2001, p. 119). A imagem da cabaça pode remeter Riobaldo a sua infância pobre na condição
humilde de pedinte, naquele momente inusitado em sua vida, uma ligação perturbadora com
aquele menino, o Diadorim.
Outras imagens se seguem na narrativa, como aquela em que Riobaldo e Diadorim se
lançam à noite em direção a um poço encoberto por densas folhagens de palmeiras nas
proximidades do acampamento. Todo um erotismo na imagem que se apresenta diante de uma
cavidade arredondada para se tomar água, no meio do mato. ―O poço abria redondo, quase, ou
ovalado. Como no recesso do mato, ali intrim, toda luz verdeja‖ (ROSA, 2001, p. 78).
Riobaldo, ao se debruçar para tomar água, vê surgir um bicho: uma rã.
O amor que é manancial da vida. Nesse caso, a rã parideira na água, que causa asco
a Riobaldo e é também o prenúncio da vida, revela-se representação alegórica para o
sentimento dele por Diadorim: desejo e asco. Isso fica evidente na fala dele, quando
tem desejo e medo de que Diadorim se declare, a quem culpa por esse amor que ele
sente recíproco (SILVA, 2009, p. 32).
A natureza é quem aponta novamente de maneira incisiva, dando as suas cartas, como
se dizendo através de seus elementos ctônicos: a mesma água transparente do poço com brilho
semelhante aos olhos esverdeados de Diadorim, e a mesma natureza apavorante com seus
bichos repugnantes noturnos, como se pertencentes a uma dimensão inferior, e que assim
como ―o ovo‖, fazem parte também dos símbolos do regime noturno apontados por Gilbert
Durand.
147 (Fotografia 38) (BISILLIAT, 1979, p. 21).
―Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a
cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz‖. (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 20)
Antropologicamente, essas imagens (Fotografia 38) poderiam muito bem remeter ao
que chamaríamos de um universo semelhante ao primitivo da ―mulher coletora‖, muitas vezes
dedicada à catação de frutas para alimentação em conjunto com outras mulheres. No
momento em que seus homens partem para a caça, ela se utiliza de utensílios domésticos e
cuida de sua prole. No entanto, tais utensílios destacados, esses pequenos potes, assemelham-
se ao que Gilbert Durand denomina de ―taça‖, ao fazer referência às categorias na
Classificação Isotópica das Imagens (ver Anexo 1).
Ela está classificada como pertencente ao elemento noturno. A taça, por sua vez, está
relacionada com o útero materno. Portanto, esses vasos (potes) arquetipicamente relacionam-
se com o interior do corpo materno. Durand afirma que o: ―Eterno feminino e o sentimento
da natureza caminham lado a lado em literatura‖ (DURAND, 2002, p. 233). Os objetos de
formas côncavas herdados por Riobaldo, vistos anteriormente, fazem parte dessa
representação.
O texto rosiano: ―Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes,
o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz ‖
(ROSA, 2001, p. 339-340), ao demonstrar expressões do eufemismo compactua com os
conceitos de imaginário durandiano, pois utiliza termos contrários ao tratar de lugares de
calma e felicidade, lugares esses onde muitas vezes imperam a guerra e a morte, como a frase
que acompanha a imagem: ―Aquele mundo de fazenda‖, local de proteção e acolhimento,
onde se ―pasmava a paz‖ em casas de ―paredes idosas, o bolor‖. Esta última frase refere-se
não ao eufemismo, mas sim ao poder de fecundidade terrena.
Esse trecho do romance acontece em uma fazenda abandonada, onde o bando que tem
como líder Zé Bebelo é tocaiado pelo bando do Hermógenes, local de grande tensão
148
claustrofóbica diante da grande matança dos cavalos139
e de muitos jagunços. No imaginário
durandiano, os cavalos estão relacionados com a morte na fazenda dos Tucanos.
O cavalo tem a mesma forma de representação, num ― tom catastrófico [...] das trevas
e do inferno [...] o medo diante da fuga do tempo simbolizada pela mudança...‖ (DURAND,
2002, p. 75). É o mensageiro da morte, o carro que transporta até o vale das sombras da
morte, expressando também a angústia diante das mudanças. De um ambiente de paz, de
repente é transformado em guerra, tendo a casa140
como a única proteção:
Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das
arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz. Pensei
por que seria tudo alheio demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos.
Pensei bobagens. Até que escutei assoviação e gritos, tropear de cavalaria. ―Ah, os
cavalos na madrugada, os cavalos!...‖ – de repente me lembrei, antiquíssimo, aquilo
eu carecia de rever. Afoito, corri, compareci numa janela – era o dia clareando, as
barras quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. Os cavalos enchiam o
curralão, prazentes. Respirar é que era bom, tomar todos os cheiros. Respirar a alma
daqueles campos e lugares. E deram um tiro.
Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que eu soube. Sempre sei quando um tiro é
tiro – isto é – quando outros vão ser. Deram muitos tiros. Apertei minha correia na
cintura (ROSA, 2001, p. 339-340).
Em seu trabalho dissertativo sobre a passagem, espaço de mudanças e transformações
significativas na fazenda dos Tucanos, Collaço relata que:
A Fazenda representa as reminiscências do Império recém-abandonado. No pátio de
fora, ou seja, naquilo que face exposta da realidade social do período, estão os
elementos mais visíveis, que de forma ou de outra conseguiram certa permanência
no país da primeira Republica (COLLAÇO, 2008, p. 31).
A imagem da casa-grande é representada de forma decadente e abandonada, essa
mesma casa que outrora pertencia aos antigos senhores de engenho, agora hospeda e protege o
bando de Riobaldo. A casa demonstra todo o poderio do modelo econômico vigente desses
antigos moradores, os seus coronéis.
Nesse entremear, eu senti meu braço melhor, e estive mais disposto. Andei andando,
vi aquela fazenda. Essa era enorme – o corredor de muitos grandes passos. Tinha as
139
O Dicionário de Mitos Literários (2005) descreve essa nefasta e macabra representação do cavalo:
Poseidon metamorfoseado em garanhão fecunda Deméter, disfarçada de égua, que dá à luz um cavalo selvagem,
Arion, ou segundo outra versão, dois demônios da morte. Quanto às éguas de Glauco, elas devoram seu dono
vivo, sob a influência de Afrodite: nasce uma força ctoniana, quase infernal, que nada consegue deter, como
atesta o Apocalipse, onde aparecem sucessivamente os cavalos da guerra, um branco, outro vermelho, o cavalo
negro da fome e o cavalo esverdeado (ou descorado, conforme a tradução) da morte (Apocalipse 6, 2-8)
(BRUNEL, 2005, p.123).
140 A casa é, portanto, sempre a imagem da intimidade repousante, quer seja templo, palácio ou cabana
(DURAND, 2002, p. 244).
149
senzalas, na raia do pátio de dentro, e, na do de fora, em redor, o engenho, a casa-
dos-arreios, muitas moradas de agregados e os depósitos; esse pátio de fora sendo
largo, lajeado, e com um cruzeiro bem no meio. Mas o capim crescia regular, enfeite
de abandono. Não de todo. Pois tinham desamparado um gato, ali esquecido, o qual
veio para perto do jacaré cozinheiro, suplicar comida. Até por dentro do eirado,
mansejavam uns bois e vacas, gado reboleiro. Aí João Vaqueiro viu um berrante
bom, pendurado na parede da sala-grande; pegou nele, chegou na varanda, e tocou:
as reses entendiam, uma ou outra respondendo, e entraram no curral, para a beira dos
cochos, na esperança de sal. – ―Não faz mês que o povo daqui aqui ainda estava...‖ –
João Vaqueiro declarou. E era verdade, com efeito, pois na despensa muita coisa se
encontrando aproveitável. Nos Tucanos, valia a pena. Os dois dias ficaram três, que
tão depressa passaram (ROSA, 2001, p. 339).
A casa, no entanto, que vai atuar como uma grande mãe protetora, como define Gilbert
Durand, em seu trabalho As estruturas antropológicas do Imaginário, a moradia é o abrigo,
que acolhe, mas o ventre uterino é também, ao mesmo tempo, o sepulcro, o complexo do
regresso à mãe. ―A vida não é mais que a separação das entranhas da terra, a morte reduz-se a
um retorno à casa‖ (ELIADE apud DURAND, 2002, p. 236).
A constelação da intimidade e as imagens do espaço feliz darão importância à casa que
simboliza proteção. Para Gaston Bachelard: ―a casa é um ser privilegiado, uma unidade
complexa, onde devem ser consideradas as memórias, as lembranças e os sonhos; a casa é
corpo e alma‖ (BACHELARD, 1988, p. 5). O refúgio eterno, o retorno à intimidade da casa
ou o regresso à mãe, à mãe terra que valoriza a própria morte. Vem a partir daí a necessidade
de ser enterrado em solo pátrio, o isomorfismo do retorno à casa, confirmando assim os gestos
da descida, concentrando nas imagens de mistérios e de intimidade à procura de tesouros, de
repouso e alimentos da terra. A casa assume uma configuração como sendo algo vivo:
Um pudesse narrar – falo para o senhor crer – que a casagrande toda ressentia,
rangendo queixumes, e em seus escuros paços se esquentava (ROSA, 2001, p. 360)
A Casa dos Tucanos aguentava as batalhas, aquela casa tão vasta em grande, com
dez janelas por banda, e aprofundada até em pedras de piçarrão a cava dos alicerces.
A Casa acho que falava um falar – resposta ao assovioso – a quando um tiro estrala
em dois, dois (ROSA, 2001, p. 369).
Era, no entanto, a casa-grande sem alma, ou o que restava dela, sem vida: ―não tinha
almaviva de se ver‖ (ROSA, 2001, p. 338). Assim a casa da fazenda dos Tucanos parece
paradoxal: a mesma casa que dá abrigo e repouso pode servir também como acolhedor túmulo
de um cemitério abandonado, um espaço do bem e do mal, sangue, sofrimento, morte, como
se ela mesma se antropomorfizasse. Quartos vazios: ―Cacei um catre, cama-de-vento, num
quarto meio escuro; com coisa nenhuma não me importei‖ (ROSA, 2001, p. 338). O casarão
da fazenda dos Tucanos se apresenta para os jagunços como um lugar macabro. Alguns
jagunços, como o Simião, acreditavam que ela não era aprazível e pretendem partir, porém
Riobaldo fica, por ter levado um tiro no braço.
150
A imagem da morte é então representada na casa; a fedentina que empestava o ar era o
indicativo dos mortos, companheiros de Riobaldo, e com o cheiro da morte, as moscas
varejeiras são então atraídas: ―A Casa estava se enchendo de moscas, dessas de enterro, as
produzidas (ROSA, 2001, p. 369).
Em seu contexto de abandono e de morte a casa está entregue ao deus-dará; somente
sobraram os resquícios de uma sociedade decadente do velho sertão. Rosa e Silva (2004, p.
140) em seu trabalho de análise da Crônica da casa assassinada de Lúcio Cardoso diz que:
No que concerne à forma alegórica casa, no eixo espacial, significa lugar de abrigo,
o domicílio, o espaço do mundo articulado por interditos, valores e ações. Também
constitui espaço de efetivação do ser vivente humanamente – casa do homem –,
lugar onde ele está em permanente agonia.
É ainda diante desses acontecimentos que se faz presente, como referencial, o universo
mítico de uma substância primordial, o elemento água, representado através das imagens
hídricas dos cursos d‘água, principal elemento defendido na percepção líquida de Viggiano
(2007) em seu estudo sobre Grande Sertão: Veredas.
Desde a chegada da tropa de Riobaldo à fazenda dos Tucanos, o elemento água está
presente em seus variados tipos, como nos descritos a seguir: ―À Fazenda dos Tucanos
chegamos, lá esbarramos – é na beira da Lagoa Raposa, passada a Vereda do Enxu. Visitamos
o fazendão vazio, não tinha almaviva de se ver. E do Rio-do-Chico longe não se estava‖
(ROSA, 2001, p. 338) Monteiro relata que:
[...] a presença da água, ou seu escoamento na vastidão da paisagem – desde os
brejos que se juntam, para formar os rios, à magia das veredas verdejantes de buritis
até os grandes caudais: o Urucuia vindo do obscuro poente para o iluminado
nascente (W-E) e o pai de todos, o São Francisco, oferecendo diferentes situações de
―travessias‖ são, ao longo da narrativa, o símbolo do incessante e perigoso fluxo da
vida. E os lugares dos grandes momentos do romance estão sempre vinculados aos
cursos d‘água (MONTEIRO, 2006, p. 51).
A presença dos grandes rios, lagoas e veredas é um elemento recorrente na trajetória
de Riobaldo. Ao longo da narrativa, o rio pontua a travessia de Riobaldo em seus principais
acontecimentos, desde quando conheceu o Menino Diadorim no rio, o de-Janeiro, e remete ao
fluxo incessante do fluxo da vida e da morte, suscitando devaneios sem fim.
A próxima imagem (Fotografia 39) reforça a imagem anterior, em que se apresentam
utensílios domésticos. As imagens dos potes são recorrentes. Sua composição, nesse
momento, aborda o gênero que, por não apresentar pessoas, denomina-se de ―natureza-
morta‖. O texto caracteriza-se por exibir elementos do regime noturno; ao utilizar o termo
151
―Mar‖, elemento desencadeador de todas as vidas, tais ―águas seriam, pois, as mães do
mundo‖ (DURAND, 2002, p. 230). Outro elemento é o nome ―Virgem‖, referente ao universo
feminino: ―o perfume do nome da Virgem‖. É a doçura do nome da Virgem, Nossa Senhora,
que é invocada por Riobaldo, no momento em que ele tem vontade de matar Constâncio
Alves, mas num gesto de razão roga à Virgem para não matá-lo.
(Fotografia 39) (BISILLIAT, 1979, p. 27)
―O perfume do nome da Virgem perdura muito; às vezes dá saldos para uma vida inteira‖ (ROSA apud
BISILLIAT, 1979, p. 26).
Esses potes assemelham-se às antigas urmas mortuárias encontradas em algumas
tribos brasileiras, como as da ilha do Marajó, no Pará. Isso possibilita supor que essa cultura
marajoara celebrava rituais sazonais de fertilidadede e ritos funerários. Em seu artigo ―A
Senhora das Águas na Amazônia‖, Lucy Coelho Penna (2000) propõe uma interpretação
junguiana da cerâmica dos indígenas construtores de aterros na ilha de Marajó.
Os símbolos arquetípicos gravados na milenar arte do povo marajoara permitem supor
que algum tipo de ritual em honra a uma grande deusa ―Senhora das Águas‖ teve lugar na
boca do rio Amazonas, antes da colonização europeia. As urnas com cerca de um metro de
altura, revestidas com símbolos, ―são verdadeiros ―livros dos mortos‖ em ideogramas. Os
símbolos arquetípicos marcaram os momentos decisivos do ciclo da vida-morte-vida para
esses indígenas que recriaram a paisagem numa espécie de geografia xamânica‖ (PENNA,
2000, p. 1). Considera-se nesse ritual de passagem, entre vida e morte, a ―Senhora das Águas‖
como aquela que sela o destino humano como um retorno ao útero do maior manancial de
águas doces do planeta, garantindo um ciclo da vida.
152
A próxima foto (Fotografia 40) apresenta uma mulher cuidando da extração do
polvilho, goma de mandioca, de forma artesanal, em uma casa de farinha, próximo à cidade
de Januária. Vemos também algumas pessoas bem longe, ao fundo, que não chegam a
interagir com o primeiro plano, em que a mulher cuida do amido da mandioca.
Percebe-se que é uma foto espontânea, instantânea, ao captar o ―momento decisivo‖,
como diz Bresson, ou então como Salgado, que enfatiza momentos decisivos de cada ato
fotográfico. As linhas e formas são bastante acentuadas na imagem; percebemos linhas
principalmente diagonais: essas linhas são de grande atração visual, além das sombras e do
contraste geral da posição da luz do sol, quase em contraluz. Esse cocho, recipiente de
madeira que parece uma canoa, é comum numa típica casa de farinha do interior do Brasil; o
líquido da mandioca prensada é separado nesse coxo para a retirada da goma.
(Fotografia 40) (BISILLIAT, 1979, p. 24)
A sequência dessas três imagens (Fotografias 38, 39 e 40) aponta simbolicamente para
um aspecto semelhante a um vaso. Erich Neumann enfatiza que:
O núcleo simbólico do Feminino é o vaso. Desde os primórdios da evolução até seus
estágios mais recentes, encontramos esse símbolo arquétipo como a essência do
feminino. A equação simbólica básica MULHER=CORPO=VASO corresponde,
talvez, à experiência básica mais elementar da humanidade com relação ao
Feminino, em que este além de vivenciar a si próprio, será vivenciado pelo
Masculino (NEUMANN, 1996, p. 46).
Como em Gilbert Durand, tem o caráter da taça como arquétipo simbólico, recipiente
da vida que, por sua vez, assemelha-se a um vaso em Neumann. Símbolos culturais que
representam o ventre materno em diversas formas, como uma cabaça (Fotografia 43), um pote
153
(Fotografia 44), um cocho (fotografia 45), uma gamela, um cesto ou mesmo uma caixa. Ao
abordar a sexualidade feminina nos tempos mais remotos da pré-história, a antropóloga Helen
Fischer diz que:
Na estrutura da sociedade da época, as mulheres eram tão poderosas quanto os
homens, tão sexuais quanto os homens (ainda eram consideradas sexuais depois da
menopausa), e o erotismo estava enraizado em suas vidas, em seus mitos, lendas e
brincadeiras. Em seu cotidiano havia todos os tipos de simbolismo erótico. Na
América do Sul, por exemplo, para as mulheres que trituram mandioca, o vaso ainda
é considerado a vulva feminina, enquanto o pilão que soca a raiz representa o pênis
masculino (FISCHER, 1993, p. 30).
Na próxima imagem fotográfica (Fotografia 41), apresentada em plongeé, tendo ao
centro uma cruz fincada no chão, com sua lápide e dois rosários dependurados, um enrolado
como um colar na parte de cima da cruz, o outro do lado direito, a imagem poderia muito bem
suscitar somente um referencial ligado à morte de uma pessoa, não se sabendo se em um
cemitério ou noutro lugar qualquer, além do que a cruz pode significar apenas o lugar em que
alguma pessoa morreu, o local de sua morte, sem ter sido enterrada neste local. Pode também
indicar a morte de tantos jagunços em suas guerras entre bandos, como os de Riobaldo ou o
do Hermógenes.
A morte é inevitável nesse contexto, pois o ―O senhor sabe: sertão é onde manda quem
é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um
pedacinhozinho de metal...‖ (ROSA, 2001, p. 35). Como num ecossistema em que a lei do
mais forte prevalece sobre os mais fracos. Um mundo animalesco de uma terra sem ordem,
onde a lei se faz pelas próprias mãos: assim é o sertão.
(Fotografia 41)
―Chapadão. Morreu o mar, que foi‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 26).
154
Na cruz também não podemos ver o que está escrito em sua lápide, pois a fotografia
foi tirada com um pouco de contraluz; além disso, a imagem captada deu-se por trás da
inscrição da pequena lápide de madeira dependurada, sendo impossível descobrirmos, a
menos que a fotógrafa descrevesse tal fato, a quem pertencia tal cova, a data de sua morte e o
motivo dela.
A fotografia acompanha o texto rosiano: ―Chapadão. Morreu o mar, que foi ‖ (ROSA
apud BISILLIAT, 1969, p. 26), que aparece nas páginas finais em que é narrada a morte de
Diadorim: ―Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e
não queria saber, meus olhos marejavam‖ (ROSA, 2001, p, 612), ou ainda, como conclui o
narrador: ―Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba‖ (ROSA,
2001, p. 616).
No ensaio intitulado ―O mundo misturado‖, de Davi Arrigucci Jr., ele relata que:
―Diadorim morre, é o mar que morre [...]. O sertão é um espaço tão vasto, tão vago e
indeterminado quanto o mar dos narradores épicos [...]. Ora, o grande sertão é uma espécie de
mar. Desde o começo, o mar se infiltra no imaginário do livro‖ (ARRIGUCCI, 1994, p. 24).
Segundo Elizabeth Hazin: ―Falando sobre o Chapadão, Riobaldo informa: ‗Água ali nenhuma
não tem – só a que o senhor leva‘‖ (ROSA apud HAZIN, 2007, p. 27). Chapadão é, portanto,
a metáfora perfeita para o estado em que ele se encontra após a morte do amigo. Diadorim era
o mar, a água, a vida‖ (HAZIN, 2007, p.144), o que conduz ao universo aquoso, referente ao
universo feminino noturno duraniano.
Maureen Bisilliat em seu recorte imagético (Fotografia 39) acrescenta o fragmento
literário à fotografia, que diz: ―O perfume do nome da Virgem perdura muito; às vezes dá
saldos para uma vida inteira‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 26). A fotografia da cruz
juntamente com a frase anterior contribuem para uma leitura de um universo sagrado.
A cruz é uma representação de um símbolo muito antigo, utilizada por diversas
religiões, principalmente pela Igreja Católica: ―É com a ascensão da cristandade que a cruz
absorve o significado de morte, de sacrifício do Deus e de caminho para a vida eterna‖
(MORETO, 2007, p. 224). No entanto, a Igreja afirma um dualismo na luta entre bem o mal,
como a criação de pecado, menosprezando toda a herança pagã com relação à natureza.
Nesse contexto moderno, a cruz ―É a morte das tradições culturais que estavam
vinculadas ao culto da Natureza, da fertilidade da Terra, da reprodutibilidade contínua da
vida, do tempo de forma circular e do feminino como elemento sagrado, tal qual o masculino‖
(MORELO, 2007, p. 230). Instaura-se uma nova convenção, ―que se funda no princípio do
sofrimento como caminho para a salvação, através da adoração da cruz, o seu signo que não
155
pode traduzir a união geradora do feminino com o masculino, pois isso é significado por essa
ideologia como pecado‖ (MORETO, 2007, p. 233). Para Gilbert Durand o significado da cruz
é muito mais amplo que a interpretação da cruz vista no cristianismo:
[...] é a encruzilhada, a escolha e a ascensão (DURAND, 2002, p. 16-17).
A cruz cristã, enquanto madeira erguida, árvore artificial, apenas drena as acepções
simbólicas próprias do simbolismo vegetal. Com efeito, a cruz é muitas vezes
identificada a uma árvore, tanto pela iconografia como pela lenda, tornando-se com
isso escada de ascensão [...]. Na lenda da cruz enxerta-se igualmente o simbolismo
da bebida de eternidade, do fruto da árvore ou da rosa que floresce na madeira
morta. [...] emblema romano infante, torna-se símbolo sagrado, spes unica
(DURAND, 2002, p. 328-329).
A cruz, em várias culturas antigas, simboliza a união de contrários, signo de
totalização do mundo: em sua forma suástica, está ligada ao devir lunar astral,
equivalente esquartelado da roda (DURAND, 2002, p. 329-330).
A cruz representa desse modo uma passagem do arcaico mundo sertanejo para o
mundo moderno: ―Não é à toa que esse é o lugar do atraso e do progresso imbricados, do
arcaico e do moderno enredados, onde o movimento do tempo e das mudanças históricas
compõe as mais peculiares combinações‖ (ARRIGUCCI, 1994, p. 17). Num misto de caos e
ordem, Deus e o Diabo, arcaico e moderno, um ―mundo misturado‖ 141
.
A cruz anônima em qualquer lugar do sertão, como um indigente leproso separado das
demais, representa a encruzilhada pactária que Riobaldo faz com o Demo, sua escolha como a
―união dos contrários, [...] Yang e do Yin‖ (DURAND, 2002, p. 329). Riobaldo e Otacília, ao
mesmo tempo que fulminam o amor proscrito e a ascensão apontada por Gilbert Durand
(2002), correspondem à travessia espiritual de Riobaldo, e à amarga saudade e culpa da morte,
pois a travessia tem seu preço, resultando do pacto que culmina com a morte de seu bem-
querer, Diadorim.
A próxima fotografia remete quase de imediato a uma travessia, um dos elementos
importantes na vida de Riobaldo. O texto que acompanha a foto (Fotografia 42) está situado
aproximadamente no meio da obra A João Guimarães Rosa. A canção apresentada é a
enigmática de Siruiz, e também uma visão bem particular no romance. ―E ele canta uma
canção que soa estranha a Riobaldo e lhe chama a atenção, pois, na verdade, ela predizia e
resumia a história da sua própria vida, que não tinha sido ainda vivida‖ (RONCARI, 2004, p.
77).
141
Arrancando do meio do sertão, a fala do Narrador se dirige para a cidade; o livro por assim dizer traz para o
presente e para o mundo urbano as peculiaridades de uma região em princípio atrasada, imersa em outros
tempos: esse é o movimento do mito à pergunta pelo sentido; do espaço arcaico, em múltiplas gradações, rumo
ao espaço urbano e moderno do universo burguês (ARRIGUCCI, p. 20).
156
O elemento água é ressaltado nessa grande travessia que é a vida de Riobaldo, uma
característica marcante na obra, pois são diversos os rios em sua travessia, como o São
Francisco e o de-Janeiro, quando conhece Diadorim em sua infância.
(Fotografia 42) ( BISILLIAT, 1979, p. 29) Urubu é vila alta,
142
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti – água azulada,
carnaúba – sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...
Elemento importante, pois remete ao universo de fecundidade associado ao rio,
elemento vital, e por sua vez feminino, que remete à Grande Mãe, não só ao nascimento, mas
também à morte, representados através do imaginário durandiano, agregados à imagem de
suma importância para a pesquisa, cujos elementos relacionados a Riobaldo são: ―a terra e a
água‖ (RONCARI, 2002, p. 92). A travessia se dá através desses dois elementos.
Do mesmo modo ocorre o surgimento de Diadorim, a sua aparição com essa canção. A
travessia tem o seu preço; como os rituais de passagem, não se dá impunemente, exigindo um
sacrifício neste mesmo elemento rio: a sua morte.
Ponto crucial da obra, essa passagem tem sido estudada por vários críticos, sendo
apresentadas mudanças e revelações. Riobaldo assume a chefia do bando, incorporando tal
passagem como Urutu-Branco, e assume a paixão proscrita por Diadorim. Num ritual de
passagem, a travessia de Riobaldo é uma viagem sem volta, no ―meio do romance‖, como
assinala Márcia Marques Morais (2001) em sua tese, em que ―parece que reinicia o romance
também, com a glosa de Siruiz‖ (MORAIS, 2001, p. 65).
Situados em uma das tantas paradas do bando de Riobaldo, desta vez em um sítio na
Guararavacã do Guaicuí: ―Depois da Guararavacã, fecha-se um ciclo. Depois da Guararavacã,
142
A vila do Urubu só aparece na história algumas páginas depois do meio do livro, na entrada do bando na
―Tapera Nhã‖, chamada de Guararavacã do Guaicuí, quando Riobaldo diz ao seu interlocutor que já lhe contou
tudo e que, para se saber do resto, bastava pôr atenção no que já havia sido narrado (RONCARI, 2002, p. 2).
157
abre-se um outro ciclo. É exatamente isso que demonstram o narrador e o autor‖ (MORAIS,
2001, p. 65). ―Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o
que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo‖
(ROSA, 2001, p. 434).
Nessa imagem que Maureen Bisilliat apresenta, há utilização do recurso de contraluz,
de modo que as imagens ficam enegrecidas a ponto de só percebermos os contornos dos
corpos fotografados na forma de silhueta.
Essas três imagens (Fotografias 43, 44 e 45) sequenciadas demonstram tal confluência
de elementos da natureza, como o cavalo, em conjunto de imagens que entram em diálogo
com o texto rosiano: ―Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada
recortada‖ (ROSA, 2001, p. 94). ―Senti meu cavalo como meu corpo‖ (ROSA, 2001, p. 342).
―E os cavalos, vagarosos; viajavam como dentro dum mar‖ (ROSA, 2001, p. 727). ―A
liberdade é assim, movimentação‖ (ROSA, 2001, p. 452). Essa última passagem antecipa as
mortes de diversos jagunços antes da chegada na fazenda dos Tucanos. São os cavalos que
servem como índices da morte na concepção de Gilbert Durand.
(Fotografia 43) (BISILLIAT, 1979, p. 31)
(Fotografia 44)
―Bela é a lua, lualã,
que torna a se sair das nuvens,
mais redondada recortada‖
(ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 31).
―Senti meu cavalo como meu corpo.
E os cavalos, vagarosos;
viajavam como dentro dum mar
A liberdade é assim, movimentação‖
(ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 32).
158
(Fotografia 45 ) (BISILLIAT, 1979, p. 33)
Riobaldo rememorando suas aventuras diz: ―Amostro, para o senhor ver que eu me
alembro. Afora algum de que eu me esqueci – isto é: mais muitos... Todos juntos, aquilo
tranqüilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E bastantes morreram, no final.
Esse sertão, esta terra‖ (ROSA, 2001, p. 336).
Trata-se da imagem de uma jovem, em primeiro plano, uma imagem em close, que
poderia muito bem se tratar de Nhorinhá; não sabemos se é essa ―Bela‖, regida pela força
lunar, essa bela ―recortada‖ por Maureen Bisilliat, pois se observa um trabalho de recorte na
imagem: a mesma jovem é recortada na altura do rosto, e posta na horizontal; o cavaleiro não
sente seu cavalo como seu corpo, mas sim o corpo da jovem como um cavalo em que ele
cavalga. De modo que, como já foi dito, essa jovem poderia se assemelhar à liberdade de
viver sem culpa, um amor terreno, sexual, como o de Nhorinhá.
Em termos durandianos acerca do imaginário, poderíamos ainda traduzir a imagem do
cavalo como algo ligado à morte que, por sua vez, remete ao símbolo do feminino, de modo
que transparece que a jovem, apesar de toda a sua sensualidade e beleza, poderia caracterizar-
se como signo que possui um caráter dual de sedução e destruição.
No sertão rosiano é possível encontrar diversos animais presentes na obra, assim como
a lua, dentre outros elementos que pertencem ao Regime Noturno da imagem, como cita
Durand (2002). Essa confluência da natureza em sua obra é observada em ―Bichos, plantas e
malucos no sertão rosiano‖ por Benedito Nunes:
159
Na obra de Guimarães Rosa, a Natureza é exterior e interior ao mesmo tempo,
ganhando a amplitude de um todo vivo, que externaliza em formas animais e
vegetais e se internaliza com a força expansiva dos mitos. Assim, os bichos e as
plantas não são apenas naturais, mas seres pervasivos que a nós aderem e que em
nós se instalam (NUNES apud SECCHIN, 2007, p. 19). [...]
A confluência maior de plantas, de bichos e malucos na obra de Guimaraes Rosa se
dá em Grande Sertão: Veredas.
Animais e vegetais convergem nos momentos dramáticos do relato de Riobaldo.
Hesitações, expectativas, conflitos, marcam as relações dele com Diadorim e com as
peripécias do bando de que ambos participam. Sempre os circunda a natureza, que
lhes é ora propícia, dadivosa, ora malévola e assustadora (NUNES apud SCCHIN,
2007, p. 25).
Dentre outros bichos além de cavalos, podemos citar alguns como: papa-mel, ariranha
ou ―onça d‘água‖, lontra, lobo-guará, onça, macaco, boi, burro, cachorro, gato, rato, paca,
veado, abelha, gafanhoto, calango, piranha, traíra, manuelzinho-da-croa, anu, juriti, zabelê,
tiriri, saci-do-brejo, doidinha, gangorrinha, tempoquente, rola-vaqueira, graúna, fariscadeira,
juriti-do peito-branco, bem-te-vi, macucu, gambá, jaratataca, diversos tipos de cobra (jararaca,
jararacuçu, cascavel, araramboia); jacarés, cágados, lagartixas, morcego, sapo, rã, lesma,
caramujo, bicho luís-cacheiro.
Diversas aves de hábitos noturnas: acauã, coruja, suindara, caborés, curiango, bacurau,
urutau, mãe-da-lua; outras aves: gavião, urubu; insetos: formigas, mutucas, borboletas,
mariposas; bichos peçonhentos: aranhas-caranguejeiras, escorpião. Ainda podemos encontrar
um hibridismo dos nomes das pessoas com nomes de bichos e vegetais, como Tatarana
(lagarta-de-fogo), Urutu-Branco, Lacrau, Piolho-de-Cobra, o jacaré (cozinheiro), o Acauã,
Federico Xexéu, Marruaz, Marimbondo, José Micuim, Zé Onça, Pau-na-Cobra, o Trigoso, o
Cajueiro, o Araruta, Izina Calanga e Miosótis. Várias flores como: liroliro, casa-comigo,
lírios-do-brejo, copos-de-leite, e muitas espécies de árvores, como o buriti e suas veredas.
Uma quantidade enorme da fauna e flora, além dos loucos que povoam o sertão, elementos
diferentes que se inter-relacionam como numa simbiose.
A próxima imagem (Fotografia 46) (BISILLIAT, 1979, p. 35) apresenta uma jovem
que deduzimos ser Otácilia, devido aos fragmentos que acompanham a imagem.
Otacília é uma espécie de donzela à espera de seu herói, Riobaldo. É ela que dele
recebe uma prenda, um presente de casamento, para selar sua relação: ―uma pedra de topázio‖
— e o que essa imagem indica. Do amor carnal com Nhorinhá, em seguida a sua grande
paixão, um amor proscrito, não correspondido por Diadorim. Finalmente, seu porto seguro
nos braços de Otacília: ela é a reordenação do caos, e algo mais do que um simples casamento
— algo transcendental cuja representação é a ―busca da unidade perdida‖ (NEITZEL, 2004, p.
78).
160
(Fotografia 46)
―Capixum – caboclo sereno, viajado,
filho dos gerais de São Felipe;
Sou um homem ignorante. Gosto de ser.
Não é só no escuro que a gente percebe
a luzinha dividida?
De Araçuaí, eu trouxe uma pedra de topázio‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 35).
A composição sugere uma imagem posada com um olhar quase sorridente, uma
alegria sutil, esse close, imagem que enquadra exclusivamente o rosto do modelo, e bem atrás
dela, uma sela, que poderia, no caso, sugerir algo erótico, sedução, pois a imagem de mulher,
Otacília, pode também ser um somatório de figuras, como a de uma amante, paixão, esposa e
da Grande Mãe; pode assumir também a figura protetora da guerra, como o mito da deusa
Cibele da Antiguidade grega, que representava a fertilidade, mas também pode significar a
destruição.
Apesar de tamanha espiritualidade, a unidade material não se separa da alma, de modo
que esse amor não tem sentido de castidade, como sugerem algumas leituras; o amor entre
Otacília e Riobaldo é um amor terreno. A imaginação noturna é, assim, naturalmente levada
da quietude da descida e da intimidade, que a taça simboliza, à dramatização cíclica na qual se
organiza o mito do retorno, mito sempre ameaçado pelas tentações de um pensamento diurno
do retorno triunfal e definitivo (DURAND, 2002, p. 279). O mito do eterno retorno: ―O
homem não faz mais que repetir o ato de criação‖ (DURAND, 2002, p. 283).
A fotografia que se segue sugere uma mulher enigmática, Diadorim (Diadorina)
(Fotografia 47) (BISILLIAT, 1979, p. 49), que compõe com Nhorinhá e Otacília a tríade
feminina que contribui na formação de Riobaldo em sua travessia.
161
Essa imagem, quase uma mesma imagem duplicada, como num díptico onde são
mostradas duas imagens com temas semelhantes, são duas noivas no dia do casamento
aparentemente coletivo, um duplo que remete à relação amorosa conturbada entre Riobaldo e
Diadorim; na verdade, poderiam ser dois homens, no entanto Maureen Bisilliat utiliza-se de
duas mulheres para representar o amor proscrito entre Diadorim e Riobaldo, amor entre dois
jagunços.
(Fotografia 47)
―era mulher como o sol não acende
a água do rio Urucúia...
Era uma mão branca,
com os dedos dela delicados.
Era como se para mim
ela estivesse no camarim do Santíssimo‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 49) .
Diadorim, um dos principais personagens da obra, cuja sexualidade só é desvendada
na morte, como descreve a legenda utilizada pela fotógrafa. O parágrafo completo que
Maureen Bisilliat utilizou referindo-se a Diadorim foi:
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão
para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores.
Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não
acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero. O senhor não
repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real. (ROSA, 2001,
p. 861- 862).
162
Maureen Bisilliat ainda complementa com mais uma passagem sobre Diadorim: ―Era
uma mão branca, com os dedos dela delicados‖ (ROSA, 2001, p. 123). Traços finos de beleza
singular, por pouco não decifrados por completo por Riobaldo.
São inúmeras as referências que, por si, já induzem ver em Diadorim, traços
femininos, quer em relação a sua descrição física – as mãos, os braços, a cintura
fina, a boca, o nariz, os olhos, as pestanas –, quer em relação ao seu comportamento
– o recato em esconder o corpo, o capricho em relação aos objetos pessoais, o pudor
feminino que se esquiva de presenciar o amigo urinando, o instinto materno.
Diadorim, cujo corpo era ―um esconderijo‖, tanto no sentimento de se estar
escondendo sempre no apertado jaleco, mas, ainda e principalmente, ―escondido‖
por figurar, de modo ímpar, a anatomia do corpo feminino, ‖ [...] (MORAIS, 2001,
p. 34).
Diferentemente do amor carnal, simples e sem culpa de Nhorinhá, Diadorim
representa uma obscura neblina na vida de Riobaldo, e quase não existe alegria no seu olhar.
O que ele persegue é um desejo de vingança desmedida: ―Diadorim sentia ódio‖. Riobaldo
observa em Diadorim alguns detalhes bem femininos, como os dedos delicados, a cintura fina.
Na concepção de Benedito Nunes (1976), Diadorim possui uma característica bem
peculiar, a androginia. Tal transfiguração, para Walnice Galvão (1981, 1997), representa uma
característica da ―donzela guerreira‖, ao se travestir como um jagunço. O personagem
Diadorim tem sua construção bastante complexa: ―Maria Deodorina da Fé Bettancourt
Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem
gozo de amor...‖ (ROSA, 2001, p. 870).
A ―donzela guerreira‖, andrógina, esse poder dissimulador, enganando a todos, pode
estar relacionada com algo maligno. Os olhares, de um sutil sorriso de Mona Lisa, e a outra
com a cara amuada, talvez fossem essas as essências de Diadorim, sempre cuidando em não
deixar transparecer as nuances que desvelassem a sua feminilidade. Maureen Bisilliat utiliza
outra frase relativa a essa imagem: ―era como se para mim ela estivesse no camarim do
Santíssimo‖ (ROSA, 2001, p. 437). Essa frase pertence a Otacília, de modo que poderemos
ter uma leitura particular feita por Maureen Bisilliat ao fundir essas duas frases. Como o texto
impregna a imagem e vice-versa, a leitura é feita como um todo, de modo que é uma nova
releitura sobre esse conjunto: seria a possibilidade das duas amadas de Riobaldo, ou a
passagem do mundo caótico para o divino.
A próxima imagem analisada (Fotografia 48) é um dos possíveis modos de
representação feminina em Rosa: o lado positivo, existindo uma associação ao mito que
pertence ao cosmo em que a mulher é representada como a Grande Mãe. Neumann (1996) diz
que divergindo do homem, a mulher vivencia dois momentos significativos em sua vida: uma
163
―em si‖ mesma, como na imagem abaixo, referente ao período de gestação, e outro momento
―fora de si‖, quando do trabalho de parto, de modo que essa base do feminino não muda a
tendência de manter em si mesmo o que por ela foi gerado.
No texto rosiano: ―Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho
colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo
cabe‖ (ROSA, 2001, p. 259). ―Indaguei o nome da flor‖ (ROSA, 2001, p. 262). O coração
assume um papel de navegador das águas, riachos; assim como uma serpente vagueia
ziguezagueando no solo, a imagem do rio conota a existência também do feminino, esse
elemento fluido de vida, de procriação, elemento criador, amalgamando elementos em sua
passagem, em sua gestação, de vida onde ―tudo cabe‖.
(Fotografia 48) (BISILLIAT, 1979, p. 53)
―Coração cresce de todo lado. Coração vige feito
riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.
Coração mistura amores. Tudo cabe. Indaguei o nome da flor‖ (ROSA apud BISILLIAT,
1979, p. 52).
A imagem seguinte (Fotografia 49) acompanha o parágrafo/legenda e se refere ―à
mulher legal do Hermógenes‖ (ROSA, 2001, p. 740), que é pega e feita refém pelo bando do
Urutu-Branco, cujo nome não é dito; no entanto, são detalhados minuciosamente seus gestos e
aparência: a mulher de um velho vestido preto desgastado pelo tempo, possuidora de lábios
finos de poucas palavras, e mesmo quando falava parecia que assobiasse com uma rudeza e
ainda uma certa beleza, como nos tempos de mocidade.
164
Riobaldo ou Urutu-Branco sente certa atração por ela, como ele diz: ―Tive um receio
de vir a gostar dela como Fêmea‖ (idem, ibidem). Maureen Bisilliat opta por mostrar um
tríptico (Fotografias 49, 50 e 51) com relação a essa mulher de rosto magro e ressecado pelo
tempo e, quem sabe, pelo sofrimento.
(Fotografia 49) (BISILLIAT, 1979, p. 54).
―Mas eu já estava com ela –
com os olhos dela, para a
minha memória.
Magreza, na cara fina de palidez,
mas os olhos diferiam de tudo,
eram pretos repentinos e duráveis,
escuros secados de toda boa água.
E a boca marcava velhos sofrimentos?
Para mim, ela nunca teve nome.
(ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 54)
( Fotografia 50) (BISILLIAT, 1979, p. 55). (Fotografia 51) (BISILLIAT, 1979, p. 56).
As três imagens retratos (com rostos fora de foco) acima possibilitam a interpretação
de mulheres sem nomes, sem identidades, como sendo apenas as mulheres oficiais de
Hermógenes. Tal proximidade é uma característica do retrato denominado de close
fotográfico, valor caracterizado pela dramaticidade que se dá a esse tipo de enquadramento,
165
devido à aproximação do rosto da pessoa fotografada e, consequentemente, à aparição de suas
marcas e expressões com diversas facetas, apesar de não estarem bastante nítidas nessas
imagens fotográficas.
A primeira, percebe-se que é uma mulher com aliança; a segunda, uma jovem; e a
última, bastante magra, esta última possivelmente poderia remeter ao estado atual da mulher
de Hermógenes. É possível dizer que esse tríptico representa, primeiramente, certa languidez,
na primeira imagem, a que Riobaldo tem uma atração inexplicável; a segunda imagem remete
a algo ligado à morte, como a perda de sua mocidade, apontando para o passado do que foi
essa mulher sem nome, e praticamente sem referência devido à opção de tornar as imagens
fora de foco; a terceira representa o seu envelhecimento. A fotógrafa opta por uma
desconstrução da imagem retrato, característica modernista de desconstrução da imagem, que
por convenção deveria ser nítida.
A obra de Guimarães abrange vários significados pertinentes ao universo sertanejo e
suas mudanças. O autor se preocupa com a existência do sertão: ―Ah, tempo de jagunço tinha
mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?‖ (ROSA, 2001, p. 230). No período em
que Maureen Bisilliat realizou as imagens do sertão, na década de 60, observam-se ainda as
queimadas e a destruição do ecossistema que pertence ao semiárido brasileiro, situado no
norte de Minas Gerais, sendo o único estado do Sudeste que preserva essa vegetação, de modo
que essa área corresponde também ao Polígono das Secas. A imagem fotográfica (Fotografia
52) é uma paisagem contendo um grande plano geral dessa região do sertão mineiro, uma
visão panorâmica em que se percebem várias carvoarias, com uma névoa branca da fumaça.
(Fotografia 52) (BISILLIAT, 1979, p. 57).
― Olhe:
muito além,
vi lugares de terra queimada
e chão que dá som – um estranho.
Mundo esquisito‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 57).
166
A João Guimarães Rosa lança mão de cortes e recortes nas imagens, como essa
panorâmica, recurso herdado dos modernistas; como dos dadaístas, dos surrealistas ou mesmo
do construtivismo soviético, com a técnica de fotocolagem de Alexander Ródtchenko, até
mesmo utilizada pelos cubistas, como nas pinturas de Georges Braque e Pablo Picasso, com
as colagens de páginas de jornal em suas obras. Na fotografia, Man Ray é um dos fotógrafos
que se utilizam dessa nuance técnica, o que não deixa de ser uma manipulação da imagem
fotográfica. Maureen Bisilliat, com os cortes em suas imagens, busca se adequar a essa nova
composição com as ―legendas‖: os parágrafos retirados da obra rosiana. O texto rosiano
contempla descrevendo as terras e seus casos, como o suicídio:
É preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o
chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebracangalhas e ladeiras terríveis
vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som –
um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um homem
se enforcou‖ (ROSA, 2001, p. 73).
―O chão que dá som‖ possivelmente é uma referência às rochas de origem vulcânica
(basálticas) em Goiás, que produzem som metálico, semelhante ao de um sino. Acerca desses
indícios João Guimaraes Rosa demonstra que o meio ambiente no contexto dos jagunços
interage com estes de maneira ativa; o ambiente sertanejo não serve como mera referência de
um lugar de passagem; é preciso conhecer bem os seus sinais, os perigos existem sempre à
espreita e quem não os decifra corre risco de vida. Assim é o sertão.
As próximas imagens (BISILLIAT, 1979, p. 58-59) são abstratas (Fotografias 53 e
54); não temos referências delas, só o indício final do texto da página anterior: ―Mundo
esquisito‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 57), num dinamismo terreno. Possivelmente,
imagens noturnas ou de madrugada. A primeira imagem apresenta uma faixa preta degradé,
cobrindo 1/3 da obra; na parte de baixo, a parte terrena; já a outra é o inverso, 2/3 com a parte
terrena, só que dessa vez com a tonalidade cinza, como se fosse a mesma imagem invertida.
Essa obra no formato quadrado lembra uma composição expressionista abstrata
(Figura 8), caracterizada pela arte não representacional do artista russo naturalizado norte-
americano Mark Rothko, que remete ao sagrado, à verticalidade, denominados por Gilbert
Durand como ―símbolos de ascensionais‖. Lescourret (2009, p. 109) afirma que ―Ces
illustrations s’enrichissent d’un invariant anthropologique identifié notamment par Gilbert
Durand, à la suite de Bachelard: le privilège de la verticalité, attesté tout simplement par le
phénomène de la vie humaine.‖143
143
Estas ilustrações se enriquecem de uma invariante antropológica identificada notadamente por Gilbert
Durand, em seguimento a Bachelard: o privilégio da verticalidade, atestado muito simplesmente pelo fenômeno
da vida humana (tradução do doutorando).
167
(Fotografia 53) (Fotografia 54)
(Figura 8 )144
Mark Rothko: ―Sem título‖ (1969).
Tendo como leitura a obra nietzschiana O nascimento da tragédia, Rothko procura
criar mitos, ou como ele mesmo dizia, ser ―um fazedor de mitos‖ numa sociedade em que o
homem moderno produziu um vazio em sua espiritualidade. Sua preocupação se traduz em
demonstrar, através de sua obra, o sentimento do sagrado. O que se ajusta à obra rosiana na
tradução de Bisilliat:
O mito cósmico é o mito da criação do mundo, em que a terra, princípio das
coisas, tem o sentido de vida e fertilidade. A terra é a substância universal, o
caos primordial, a matéria-prima e simboliza a função maternal, a Grande –
Mãe, pondo-se ao céu, como o princípio passivo se opõe ao princípio ativo, e
o aspecto feminino ao aspecto masculino (FONTES, 1990, p.15).
144
<Disponível em: <http://bluemolleskin.blogspot.com.br/2008_12_01_archive.html>. Acesso em: 25 agost.
2013.
168
Nessa fotografia de Maureen Bisilliat, a condição de personagem feminina emerge na
obra de Rosa com o sentido de mulher-terra, ser primordial. A simbologia constante em sua
criação mostra frequentemente aspectos positivos e negativos, à medida que esta se liga à
reprodução e à origem da vida. Da mesma maneira que Rothko em suas obras, a energia
inconsciente emana das imagens míticas.
Nas imagens seguintes (Fotografias 55 e 56), em forma de díptico, em que as duas
estão interligadas por um fragmento literário rosiano, acha-se a primeira na horizontal e a
segunda na vertical.
(Fotografia 55)
―O barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão!‖ (ROSA apud
BISILLIAT, 1979, p. 60).
(Fotografia 56)
169
Afirma Boris Kossoy (2005) que as imagens fotográficas podem proporcionar uma
relação com a memória das pessoas, reativando suas lembranças, sejam essas memórias
individuais ou coletivas, na medida em que tais efeitos de memorização das imagens
proporcionam a criação de informações visuais construídas ao longo da história dos
indivíduos:
Quando apreciamos determinadas fotografias nos vemos, quase sem perceber,
mergulhando no seu conteúdo e imaginando a trama dos fatos e as circunstâncias
que envolveram o assunto ou a própria representação (o documento fotográfico) no
contexto em que foi produzido: trata-se de um exercício mental de reconstituição
quase intuitivo. Fotografia é memória e com ela se confunde. O estatuto de recorte
espacial-interrupção temporal da fotografia se vê rompido na mente do receptor em
função da visibilidade e ―verismo‖ dos conteúdos fotográficos. A reconstituição
histórica de um tema dado, assim como a observação do indivíduo rememorando,
através dos álbuns, suas próprias histórias de vida, constitui-se num fascinante
exercício intelectual pelo qual podemos detectar em que medida a realidade se
aproxima da ficção (KOSSOY, 1998, p. 42).
Essas fotográfias, apesar de não estarem evidenciadas no seu contexto plenamente os
detalhes de como foram feitas ou onde foram realizadas com exatidão, como as demais do
ensaio, foram confeccionadas no vasto sertão mineiro.
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo
e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido,
alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. [...] Tem horas antigas
que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor
mesmo sabe (ROSA, 2001, p. 114-115).
Ao fazer analogias de informações visuais, como suas respectivas imagens literárias,
que são as figuras de linguagem, na tentativa de descrever tal imagem, percebe-se que essas
figuras atuam como indícios145
. Josina Nunes Drumond (2008) defende que a obra Grande
Sertão: Veredas possui resquícios que apontam a existência de traços do Barroco; ela a cita a
figura de linguagem denominada de ―sinestesia‖, afirmando que com isso:
A palavra tem o poder de evocar impressões sensoriais e de estendê-las, na
combinação de diferentes sensações.
A visualização de imagens, cores, movimentos se dá, a todo momento, na mente
interpretativa. Muitas vezes, a visualização estende-se para outros sentidos
(DRUMOND, 2008, p. 179).
145
Os índices fornecidos pelo real são exemplificados por Freud como ―ruído, coito animal, etc‖. Parece-me
poder-se concluir que tais índices, funcionando por contágio, por deslocamento, por contiguidade, têm efeito de
metonímia, conforme se vem afirmando (LAPLANCE & PONTALIS apud MORAIS, 1983, p. 98).
170
Essa constatação do aspecto barroco apresentado por Drumond (2008) reforça nossa
suposição ressaltada anteriormente ao afirmar que Maureen Bissiliat possui traços barrocos. O
que possivelmente converge para um denominador comum, uma adequação entre a obra
literária rosiana Grande Sertão: Veredas e suas fotografias esfumaçadas, com o forte
contraste entre o claro e o escuro.
Retoma-se a passagem no romance que seria a do incêndio da própria casa por
Medeiro Vaz, bem como os incêndios cometidos por Riobaldo em sua vida jagunça, ao
mandar incendiar as casas dos habitantes do sertão:
Medeiro Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão de justiça, botou fogo em sua
casa, nem das cinzas carecia a possessão. Casas, por ordem minha aos bradados, eu
incendiei: eu ficava escutando – o barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando
surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão! (ROSA, 2001, p. 157).
O sertão é apresentado como sendo uma terra sem lei, e sem a posse dela por seus
viventes; as pessoas como Medeiro Vaz eram habitantes móveis condenados a vagar
eternamente, sem poder sossegar em sua própria casa; por isso mesmo, não haveria motivo
para deixar a casa intacta. Roncari (2004) diz:
O sertão não é um lugar definido, é um espaço onde se exila o homem que se
autodesterrou, ―o sertão é o terreno da eternidade, da solidão... No sertão, o homem
é o eu que ainda não encontrou um tu; por isso ali os anjos ou o diabo manuseiam a
língua‖, a pátria do escritor, diz Guimarães numa entrevista. Nesse espaço não se
permite o pouso e a morada, quem aí entra, está condenado a vagar sempre [...]
Como quem incendeia a casa, seu porto seguro, Guimarães Rosa demole cada
palavra ao entrar no sertão, e com ela a língua, sua cidade. Nesse especo móvel, da
indefinição, ambiguidade e aventura, é preciso estar sempre acordado, dentro e fora,
no pensamento e na fala, para responder aos desafios; tudo é desafio, a repetição e a
resposta automática são coisas que não se conhece. Tudo é possível, um mundo sem
famílias: a distância e distinção entre substantivos, adjetivos e verbos quase
desapareceram, as palavras travestiram e estabeleceram relações suspeitas entre si,
deixaram de ser estátuas rígidas para se agitarem na mascarada das frases: quem é
quem? Quem é o quê? ―Tu é existível, Guirigó...‖ No Brasil, o sertão era o não
lugar, [...] (RONCARI, 2006, p. 1).
Assim como na fazenda dos Tucanos, a casa é um lugar de conflito, vida e morte, um
mundo caótico, representado através da linguagem rosiana. No primeiro momento a imagem
está relacionada ao fogo, com a imagem de uma carvoaria (Fotografia 55): um menino como
se suspenso no ar, levitando, mas ao mesmo tempo ―caindo‖, como fazendo menção ao texto.
Já a outra imagem (Fotografia 56) sugere um mundo de abandono. Além do visual da imagem
a sua legenda, como que informando: ―O sertão não chama ninguém às claras; Mais, porém,
se esconde e acena‖ (ROSA, 2001, p. 538).
171
O sentido das informações apresentadas no texto é conjugado com a leitura da
imagem. O sertão é então apresentado semelhantemente assim como se fosse uma imagem
fotográfica, que sugere muito, mas, por vezes, não se desvenda facilmente. Tudo soa
enigmático na construção desde lugar, porém ele oferece pistas; o sertão devora a todos se não
o decifrá-lo, o perigo sempre a espreitar, não é à toa a necessidade obrigatória de toda tropa
ter um ao menos um rastreador146
:
De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta. Qualquer barulho sem
tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado em moita, que se assusta forte a vôo,
dá aviso ao inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos,
no mesmo lugar – dão muito aviso. Aí quando é tempo de vaga-lume, esses são mil
demais, sobre toda a parte: a gente mal chega, eles vão se esparramando de acender,
na grama em redor é uma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra – é o pior
aviso. O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só
mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?: sem querer, a
gente rosna. Às guardas, qualquer mato ameaçava que ia bulir: com o inimigo vindo
dele. [...]
Árvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e
gravetos, é preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme com
gosto – que é o que mais defende d‘ele não se cravar. O inimigo pode estar
engatinhando também, versa por detrás, nunca se tem certeza. O cheiro de terra
agoura mal (ROSA, 2001, p. 221-222).
A próxima imagem (Fotografia 57) é uma cena em contraluz, realizada na madrugada
ou ao entardecer, que propicia uma silhueta com forma bem centralizada, semelhando um seio
feminino; o peito e o bico do peito, de modo quase surreal, como se estivessem flutuando em
nuvens; um seio em contraluz, suspenso, que flutua na escuridão.
Ao contextualizarmos com outras imagens do ensaio, desvendamos que se trata de
caieiras, as carvoarias, local onde é produzido o carvão vegetal. A forma é um dos elementos
da composição mais importantes na fotografia, pois através dela criamos outros universos ou
acentuamos determinado objeto, do jogo de luz e sombras e volume do corpo. Assim no
roteiro fotográfico através das cidades indicadas pelo próprio escritor João Guimarães Rosa,
como na passagem ―As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho
da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!‖ (ROSA, 2001, p. 602).
146
Repartiu os homens em quatro pelotões – três drongos de quinze, e um de vinte – em cada um ao menos um
bom rastreador (ROSA, 2001, p. 108)
172
(Fotografia 57) (BISILLIAT, 1979, p. 63).
―As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do
sagrado. Absolutas estrelas!‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 63).
O fragmento do texto inserido em conjunto com a imagem remete a uma das
travessias, a que precede ao pacto de Riobaldo, no mesmo contexto de suas conversas de
ordem metafísica entre o bem e o mal, a ordem e o caos, Deus e o diabo. Reinaldo tenta
dialogar com o demo e recebe o silêncio como resposta ao pacto. Como se fosse algo
subjetivo ou mesmo inconsciente, pois a materialidade na narrativa não ocorre:
– ―Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!‖
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não
existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que
ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços,
que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do
assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas
tranquilidades-de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai.
Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta,
eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega
nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!
(ROSA, 2001, p. 438).
É uma situação confusa entre o próprio narrador e o leitor, e não sabe se houve ou não
o ritual pactário. O narrador diz: ―pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas.
Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o
que é?‖. Como afirma Gomes:
173
Neste romance temos vários temas que são ingredientes das travessias: – geográfica
do sertão; – literária do narrador; – espiritual; e travessia do leitor. Esses temas
dizem respeito ao bem e ao mal; a Deus e ao diabo; ao caos e à ordem; às paixões:
amor e ódio; à religiosidade; ao sertão; ao medo e à coragem; à mutabilidade das
coisas, às metamorfoses. Dentre esse amálgama de temas destacamos o do bem e do
mal, circunscrito à figura do diabo.
Numa organização que pretende dar visibilidade aos temas mais abrangentes e
reiterados na própria composição do romance, as referências ao diabo assumem
lugar de destaque já pelo próprio subtítulo: ―O diabo na rua, no meio do
redemoinho...‖ GOMES, Leny da Silva. Veredas do Grande Sertão: Linguagens,
interação e hipertexto. Disponível em <http://www.um.pro.br/sertao/?b=e&c=e5>
Acesso em: 20 mai.2012.
O pacto147
com o diabo surge pela necessidade de se ter poder suficiente para
vencer Hermógenes, considerado como a própria encarnação do mal, devido aos seus atos de
crueldade e desejo de carnificina.
Através dessa luta e vitória sobre o bando de Hermógenes, Riobaldo seria uma
possível tentativa de selar a ordem no sertão. Matar Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes,
possivelmente outro pactário com o diabo, também representa o mesmo desejo perseguido por
Diadorim em toda a travessia, o que agradaria ao amigo, pois vingaria a morte de seu pai,
Joca Ramiro.
Os comentários feitos por João Bugue, que diz a Riobaldo: ―me disse, ou disse a
outro, do meu lado: – ― ... O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o Capiroto...‖, acerca
do pacto realizado por Hermógenes, instigam Riobaldo a perceber a possibilidade de adquirir
poderes transcendentais pelo pactário, como ter o corpo fechado contra os males do tempo e
da guerra; em troca, haveria a perda da alma. Candido diz:
Para vencer Hermógenes que encarna o aspecto tenebroso da cavalaria sertaneja —
cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributados do suserano —, é
necessário ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas. O diabo surge
então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem
obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de
couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malogram os outros
chefes (CANDIDO, 2012, p. 122).
A cena em que foi realizado o pacto por Riobaldo, isolado do seu bando, o iniciado em
total solidão, efetua-se numa encruzilhada das Veredas-Mortas, nome sugestivo para um local
ermo e sinistro, lugar tenebroso e estéril de veredas estagnadas. Lugares assim são
147
Sobre o pacto e o diabo, Castro descreve: O pacto: houve ou não houve? Este questionar é a força através da
qual vai decorrendo toda a narração, constituindo a obra. Na sua metodologia de narrar especulando, o autor para
contar os grandes fatos de sua vida parte de exemplos semelhantes que sucederam a outros, [...] No livro há a
narração de dois pactos e referencias a um terceiro, que é o de Hermógenes. Afinal não se fica sabendo se
Hermógenes pactuou ou não, embora, ao nível da estória, seja ele um dos pretextos que leva Tatarana a tal
decisão, na sua determinação de vencê-lo (CASTRO, 1976, p. 66).
174
recorrentemente utilizados para a prática ritualística de um martírio iniciático, um cerimonial
mágico-religioso de acepção mítica. Como diz Candido: ―nessa iniciação às avessas, de
assimilar as potências demoníacas que abrem caminho a todas as ousadias, a situação é
necessariamente marcada por uma certa atmosfera de opressivo terror, parte, aliás, de muitos
ritos de passagem‖ (CANDIDO, 2012, p. 122). Nas palavras do próprio narrador:
Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhor sabe. Bobéia. Ao que a pessoa
vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo – e espera. Se
sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca
com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo
errado, remedante, sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo –
a gente se retém – então dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – toma
espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com
sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição
parva? Estornadas! ―... O Hermógenes tem pautas...‖ Provei. Introduzi. Com ele
ninguém podia? O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era ele mesmo (ROSA,
2001, p. 64).
Uma vez cumprido o ritual, Riobaldo assume e enfrenta seus medos, tornando-se por
fim líder do seu bando. Existe todo um processo de mudança no comportamento do narrador:
Cumprido o rito, o narrador aparece marcado pelo sinal básico da teoria iniciatória: a
mudança do ser. O iniciado, pela virtude das provas a que se submeteu, renasce
praticamente, havendo um grande número de sociedades que fazem a iniciação
consistir na simulação da morte seguida da ressurreição (CANDIDO, 2112, p. 123).
Riobaldo fica então decisivo nos seus atos arbitrários, beirando a arrogância,
assumindo também um novo nome: Urutu-Branco148
. É todo um processo de passagem das
trevas para luz, da iniciação ao mal para se chegar ao bem, cujo nome (urutu), é bastante
enigmático: uma serpente, um ―signo da união dos contrários‖:
A urutu, substantivo feminino brasileiro – é negra, marcada com uma cruz na
cabeça; qualificada de ‗branco‘, esta serpente venenosa se torna simbólica, portadora
das duas cores iniciais da alquimia. Se a isto acrescentamos cobra voadeira, consta-
se que pertence ao mundo aéreo. Ctoniana por seu corpo, torna-se uraniana pelo
alcance de sua picada. Feminino-masculino, cruz na cabeça, preto-branco, terra-céu,
é a união dos contrários (UTEZA, 1994, p. 126).
A imagem fotográfica sugere que dentre tantas ambiguidade no horror da guerra e
dúvidas que pontuam essas passagens iniciátivas de Riobaldo, como no contexto pactário, um
detalhe sempre é percebido nesse transcorrer da narrativa: é que durante a sua jornada existiu
sempre uma falha — a falta da mulher. O jagunço Riobaldo traz para o sertão a ―metáfora
148
Como sabemos, os ritos de passagem comportam muitas vezes a atribuição ou acréscimo de um nome, ou
revelação do nome verdadeiro, conservado secreto (CANDIDO, 2112, p. 123).
175
materna‖ e a evocação do feminino desde a figura devotada de Nossa Senhora149
até as de
outras figuras femininas, como Nhorinhá, Diadorim e Otacília:
Acirrando a sensação de ser diferente, a percepção da irracionalidade mortífera,
espontânea e ―inocente‖ (isto é, nunca percebida pelos próprios jagunços, mas
apenas pelo observador estranho, o Riobaldo ―diferente‖) sempre trará à tona a
metáfora materna – a evocação do feminino, das mães e das madrinhas etc. – como
termo oposto ao excesso da violência jagunça. Rejeitando seu próprio impulso
inicial de participar da sebaça proposta pelos companheiros, Riobaldo representa os
habitantes desamparados como seus próximos, como filhos e madrinhas.
A exclusão da feminilidade surge portanto como falha radical e simbolicamente
relevante para a compreensão do romance. Nesse sentido, não pode passar
desapercebido o fato de que nenhum jagunço e nenhum chefe sejam representados
como ligados a uma mulher por laços efetivos ou jurídicos (ROSENFIELD, 1993, p.
82-83).
Na entrada ―Tapera Nhã‖, em Guararavacã de Guacuí, no meio do livro, ―Aqui eu
podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos
mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo‖ (ROSA, 2001, p. 324-
325), nessa passagem da obra diversos signos são desvelados através de fatos que são
rememorados por Riobaldo:
[...] ele pensa em cada um dos chefes jagunços com quem lutou, em cada um dos
amores vividos, dos mais importantes aos mais passageiros da juventude, discorre
sobre o pacto, sobre as dificuldades da travessia e sobre a falta de mulheres, até
referir-se à masturbação, como a saída que os homens do bando encontravam muitas
vezes (RONCARI, 2004, p. 80).
A Grande Mãe é o princípio que possibilitará que se instaure o equilíbrio no mundo
sertanejo. O amor profano e carnal com a encantadora ―militriz‖ Nhorinhá e o amor sagrado
com Otacília são as nuances de alegria e felicidade dadas a Riobaldo.
Diadorim150
, no entanto, aquele amor ―neblina‖ na vida de Riobaldo, não haveria de
ter gozo mesmo. Daí preferir o ódio, tendo o amor somente pela guerra, um amor
149
Existem cerca de 14 instâncias na obra em que Riobaldo evoca o feminino na imagem de Nossa Senhora,
Citamos apenas duas passagens:
No escuro. Mas senti: me senti. Águas para fazerem minha sede. Que jurei em mim: a Nossa Senhora um dia em
sonho ou sombra me aparecesse, podia ser assim – aquela cabecinha, figurinha de rosto, em cima de alguma
curva no ar, que não se via. Ah, a mocidade da gente reverte em pé o impossível de qualquer coisa! Otacília. O
prêmio feito esse eu merecia? (ROSA, 2001, p.174 ). E Zé Bebelo, segredando comigo, espiou para trás, observou assim, pegando na minha mão: – ―Riobaldo, escuta,
botei fora minha ocasião última de engordar com o Governo e ganhar galardão na política...‖ Era verdade, e eu
limpei o haver: ele estava pegando na mão do meu caráter. Aí,aclarava – era o fornido crescente – o azeite da
lua. Andávamos. Saiba o senhor, pois saiba: no meio daquele luar, me lembrei de Nossa Senhora (ROSA, 2001,
p. 386 ). 150
Diadorim era marcada pela figura masculina, tendo apenas o pai, não sendo mencionada a figura da mãe,
exercendo, por isso, um mandado de ódio, sofrendo uma condenação à guerra e à vingança que levará à
autodestruição. E, ainda, cortando todas as possibilidades de erotismo, se fecha completamente para as
interações amorosas, desde o episódio do mulato no rio (em que Diadorim o corta com uma faca) até o ódio que
sente por Ana Duzuza e sua filha e por Otacília, que revela não apenas o ciúme por Riobaldo, mas a inveja do
exercício de uma sexualidade a ela negada (LIMA, 2008, p. 61).
176
autodestrutivo, não existindo saída a não ser um desfecho trágico, que culmina com a própria
morte. Riobaldo deseja não apenas a mulher carnal, mas o feminino como o princípio capaz
de manter o equilíbrio do mundo. Cansado de guerra, de amores interditos, do onanismo151
e
do estupro, ele busca o feminino num sentido pleno e da alteridade:
O contexto deixa claro que não se trata da satisfação superficial de veleidades
eróticas, porém ―mulher‖ significa aqui um Outro, um principio que assigna à
paixão mortífera e à virilidade perversa seus devidos limites [...] Ele tem saudades
da mulher como principio de sua alteridade capaz de assegurar o equilíbrio,
delimitando as aspirações indeterminadas (ROSENFIELD, 1993, p. 79).
Numa ―dimensão mítica da feminidade‖, como assinala, Rosenfield (1993), no
particular mundo da jagunçada em que Riobaldo está inserido, apesar de Diadorim ser uma
persona blindada na arte de amar, no entanto, fica subentendida no romance uma paixão
recíproca entre eles. Diadorim talvez seja a personagem que mais consiga ter consciência das
fraquezas, alegrias e da sensualidade do seu companheiro Riobaldo.
A mulher das artes da guerra, Diadorim, tinha como ―sombra‖ uma obrigação de
esconder a sua feminilidade a todo custo, de modo que projeta o seu lado feminino, ofuscado
em Riobaldo; este, por sua vez, projeta o seu desejo ―sombra‖ e seus medos em Diadorim.
Pois para ser um homem corajoso tinha de assumir particularidades da persona da guerreira
travestida.
Desse modo, os dois se complementariam, como yang ying, duas energias
equilibradas. No entanto, essa relação fica somente no plano das projeções de seus desejos.
Assim como Diadorim, Riobaldo consegue projetar o seu jeito diferente de ser jagunço em
suas outras mulheres, fazendo aflorar o seu lado ―associado às figuras femininas virginais,
maternas e telúricas‖, como afirma Kathrin Rosenfield:
Nos bandos de jagunços, Riobaldo surge como o único para quem o mundo
feminino tem um interesse intrínseco – um segredo e uma atração maravilhosa que
conferem à mulher uma dignidade marcante e independente dos interesses jagunços.
A atitude ambivalente de Riobaldo, a oscilação entre a violência viril e a ternura
sensual, deixam suas marcas inclusive na estrutura narrativa (ROSENFIELD, 1993,
p. 84).
151
Em dois momentos ocorre a prática de masturbação na obra, em dois casos consecutivos:
Agora – e os outros? – o senhor dirá. Ah, meu senhor, homens guerreiros também têm suas francas horas,
homem sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se
ocultando atrás de fechadas moitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. – ―É essa natureza
da gente...‖ – ele disse; eu não tinha perguntado explicação (ROSA, 2001, p. 332).
A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força
esperdiçada; de tudo me prostrei.
Ao que me veio uma ânsia. Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir
terno novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor. Anda que levantei, a pé caminhei em redor
do arrancho, antes do romper das horas d‘alva. Saí no grande orvalho. Só os pássaros, pássaro de se ouvir sem se
ver. Ali se madruga com céu esverdeado (ROSA, 2001, p. 333)
177
Sua atitude é ambivalente desde o pacto, tornando-se Urutu-Branco e, numa nova
dimensão, como uma cobra voadora, assumindo ao mesmo tempo o papel terreno e aéreo,
dois polos distintos do arquétipo. Como quando Zé Bebelo o chama: ―Tu é tudo, Riobaldo
Tatarana! Cobra voadeira...‖ (ROSA, 2001, p. 353).
Maureen Bisilliat faz emergir em sua imagem fotográfica o feminino na figura
metonímica do seio, parte do corpo feminino, que se conjuga com a alimentação, o que
remete também à falta diante de um sertão hostil e de virilidade jagunça. A fotógrafa, mas
sobretudo o trabalho dela, aponta essa falta, pois: ―O amor vital desdobra-se nas figuras da
‗alegria‘ vivida no contato com as figuras femininas (ROSENFIELD, 1993, p. 93).
Um seio telúrico suspenso no ar assim como o Urutu-Branco, ―cobra voadeira‖, é o
que sugere a imagem fotográfica de Maureen Bisilliat, indicando a possibilidade de equilíbrio
entre os dos arquétipos, o masculino e o feminino, uma vez que a graça da alegria, da beleza e
do amor se dá com o feminino, elemento carente no sertão.
A imagem, por sua vez, é inserida nas referências textuais que remetem a outras
imagens de ordem feminina, ao assumirem esse contexto como o universo da Grande Mãe,
que possui dois lados: um positivo e outro negativo. De um lado, a figura da mãe protetora,
com a imagem reveladora do seio farto e a incumbência de nutrir, proteger; noutro, a da mãe
devoradora, que repudia e priva, um lado sombrio como a imagem transparece, numa névoa
escura. Portanto, uma concepção do bem e do mal, remetendo as mulheres ao regime noturno
de Gilbert Durand, que conjugado ao mundo rosiano de hostilidade masculina tenta
equilibrar-se.
178
6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O escritor João Guimarães Rosa empreendeu viagens, partindo de Cordisburgo,
pequena cidade no centro das Gerais, por trás das montanhas. Depois dessa cidade conhece
algumas outras, desde os tempos em que começou a atuar como médico na pequena Itaguara.
Tantas jornadas... Talvez a mais famosa delas seja a registrada pela revista O Cruzeiro, em
1952, a que parte em direção ao sertão mineiro, acompanhando uma boiada, por dez dias,
percorrendo cerca de 240 quilômetros, de Araçuaí até Três Marias, cidade margeada pelo rio
São Francisco e pela presença do cerrado.
Viagens que contribuíram para a literatura, como se nota no ciclo de novelas Corpo de
Baile e em Grande Sertão: Veredas. Suas anotações durante essa viagem, utilizando dezenas
de pequenos cadernos que dependurava ao pescoço, não deixavam escapar nada ao alcance de
seus olhos e ouvidos. Tomava nota tanto dos ―causos‖ dos vaqueiros quanto também captava,
através dos demais sentidos, impressões daquele mundo encantado e novo do sertão que
remetia para o mundo.
Já Maureen Bisilliat empreende inicialmente outras viagens. O fato de o pai ser
diplomata a obriga a fazer constantes mudanças de cidades em sua vida. Ao chegar ao Brasil,
concebe a possibilidade de permanecer para sempre no território brasileiro; havia um elo
inconsciente até então desconhecido entre ela e o Brasil. No início da década de 60, recebe de
um amigo mineiro de Patos de Minas um livro de presente, Grande Sertão: Veredas. Uma das
suas primeiras jornadas em terras brasileiros é então iniciada, através da literatura,
mergulhando no mundo sertanejo, recriado em palavras através do imaginário do universo
rosiano.
A obra causou um impacto significativo em sua vida, a ponto de querer conhecer
quem era esse escritor brasileiro. Até então não sabia o motivo de tamanho encantamento.
Inconscientemente, tais imagens remetiam aos valores da terra, ao homem do campo, ao
sertão. João Guimarães Rosa ao conhecê-la desvenda tal impacto para a incipiente fotógrafa,
ao afirmar que as origens de Maureen Bisilliat remetiam aos povos irlandeses e à terra de lá,
daquele universo de que brotava não só a terra, mas o mundo das palavras e a sua linguagem.
Por esse motivo, sua obra Grande Sertão: Veredas obteve tanto interesse por parte da
fotógrafa.
João Guimarães Rosa propôs que Maureen Bisilliat testemunhasse esse mundo
elaborando um roteiro fotográfico, tendo como início a sua cidade natal, Cordisburgo, — e
179
indo até o alto sertão mineiro, que culminava na cidade de Januária, fronteira com a Bahia.
São esses os rumos que fazem o encontro de João Guimarães Rosa e Maureen Bisilliat e que a
levam a trilhar caminhos nunca antes imaginados.
O roteiro, traçado pelo escritor, motiva ainda mais a fotógrafa a empreender uma
jornada de algumas viagens ao sertão mineiro, sempre acompanhada de perto por seu
roteirista em suas chegadas. João Guimarães Rosa sempre indagava a Maureen Bisilliat sobre
todos os detalhes vistos por ela, queria saber minúcias de todos os lugares por onde passara e
fotografara, nomes de pessoas, localidades, vegetação. Em 1967, Maureen Bisilliat não
consegue dar como concluída a obra em conjunto com o escritor, e este falece.
O inventário fotográfico é então organizado e publicado em 1969, dois anos após a sua
morte. João Guimarães Rosa deu total liberdade de interpretação à fotógrafa. Duas linguagens
aparentemente díspares, literatura e fotografia, propiciaram uma aproximação de acordo com
o olhar da fotógrafa.
A literatura e a fotografia são detentoras de linguagens distintas, especialidades que
ao longo dos tempos se imbricam e se complementam. Por mais que se diga que uma imagem
vale mil palavras, ela nunca abarca a totalidade desse universo, assim como a literatura. Ao
transpor a obra Grande Sertão: Veredas para o universo físico das imagens fotográficas,
pôde-se observar a existência da complementaridade entre elas. O escritor traduz uma
realidade, e a fotógrafa a desvenda com outra linguagem, e estas se combinam.
O resultado dessas relações entre linguagens resulta numa produção criativa. Ao
adotarmos essa sugestão, pudemos viabilizar a proposta de estudar o ensaio A João
Guimarães Rosa de Bisilliat como uma tradução criativa do romance Grande Sertão:
Veredas, cujas fotos foram feitas mediante um roteiro livre fotográfico, com algumas
sugestões de cidades nas primeiras viagens: partindo de Cordisburgo, em seguida, Curvelo,
Corinto, Lassance, até o extremo norte, com a cidade de Januária. Elementos dados pelo
próprio João Guimarães Rosa depois da leitura do livro pela fotógrafa.
Nossa contribuição consiste em apontar que, apesar de tantas outras interpretações
indicando a possibilidade da considerável presença feminina presente na obra, o ensaio
fotográfico também contribui ao confirmar que é possível ter essa leitura de um sertão com a
representação do universo feminino que interage com o masculino, com um olhar feminino,
na tentativa de se conseguir obter um mundo equilibrado, como yang ying, forças básicas
opostas e interligadas. No sertão rosiano — esse mundo hostil masculino — de tantas
violências e provações —, o universo feminino de Maureen Bisilliat surge como a falta, a
graça, um sopro da alegria feminina que vai suprir esse universo masculino. A relação entre
180
Nhorinhá, Diadorim e Otacília conduz a travessia de Riobaldo, elementos femininos
indissociáveis na obra que demonstram essa particularidade, características do signo
apontadas por Charles Sanders Pierce em sua famosa tríade.
O surrealismo, de forma inconsciente, foi absorvido por Maureen Bisilliat, bem
como a sua relação com o mundo literário rosiano na concretização de seu trabalho, em
imagens tidas como fantasmagóricas, muitas vezes desprezando a nitidez no foco, com
enquadramentos fora das convenções, com fortes sombras e, em outras vezes, um excesso de
luminosidade. Verificamos que outras escolas também fazem parte de sua criação artística,
como o Dadaísmo e a Arte Contempôranea, sobretudo o movimento Barroco, que possibilitou
similitudes entre as linguagens de João Guimaraes Rosa e Maureen Bisilliat.
Os componentes do romance parecem ter funcionado também como uma espécie de
sinalizador, um roteiro traçado entre escritor e fotógrafa. Afinal, foi o próprio João Guimarães
Rosa que traçou o roteiro fotográfico para Maureen Bisilliat nos anos 60. Os fragmentos do
romance utilizados em suas imagens fotográficas revelam que o poema e o conto são mais
propícios ao acompanhamento das imagens, funcionando como se fossem legendas em cada
representação fotográfica.
O roteiro descrito por Rosa aponta também para as andanças do próprio escritor em
suas viagens pelo sertão mineiro, como a que realizou com o pessoal da revista O Cruzeiro,
em 1952. Tais anotações feitas em seus caderninhos também impregnaram a criação de sua
obra Grande Sertão: Veredas.
O mapa dado por Guimarães Rosa conduz a fotógrafa à elaboração da releitura do
romance, percorrendo alguns lugares do sertão mineiro. Maureen Bisilliat tem a total
liberdade e traduz a obra sob o ponto de vista feminino. Com esse procedimento ela enriquece
o romance, porque revela um aspecto que estava subentendido no romance: a presença
feminina, principalmente no momento em que brotam em suas imagens, cheias de contrastes e
subversões, que revelam o universo épico, mítico e poético descrito por João Guimarães Rosa.
Dessa forma, textos e fotos se integram, complementando-se.
Maureen Bisilliat revela em suas imagens o elemento feminino, nos retratos fictícios
como as representações de Nhorinhá, Diadorim, Otacília e tantas outras mulheres, e
elementos simbólicos femininos pertencentes ao universo do regime noturno, caracterizado
principalmente pela estrutura eufemizante do Regime Noturno Místico apontado por Gilbert
Durand. Seu imaginário aponta inicialmente, através da imagem fotográfica, a presença da
Mulher, da Mãe, do Recipiente, da Noite, da Morada, da Taça, da Cabaça, do Pote, da
Gamela, do Cocho, do Alguidar, da Moringa (jarro de barro para guardar água fresca),
181
recipientes que se assemelham a um vaso, tendo a Taça como arquétipo simbólico, e tantos
outros elementos associados ao arquétipo materno, por sua vez interligados ao universo mítico
da obra Grande Sertão: Veredas.
O universo literário rosiano está repleto de diversos elementos míticos ancestrais
femininos que dialogam e também direcionam o olhar da Maureen Bisilliat, de modo que o
texto literário está indissoluvelmente ligado à sua tradução fotográfica. Dessa maneira, as
imagens da fotógrafa possuem por demais índices que remetem a Grande Sertão: Veredas.
A fotógrafa encontra no Brasil elementos correspondentes que a associam a sua
origem e a sua ancestralidade irlandesa. As imagens até então confusas das montanhas escuras
que povoam o seu imaginário são desveladas através de Grande Sertão: Veredas. Imagens
reveladas mediante diversos elementos que compõem o imaginário feminino e reverberam em
conjunto com a obra rosiana.
Grande Sertão: Veredas é o elemento iniciador de semiose particular de Maureen
Bisilliat, seu universo artístico até então latente. As imagens inconscientes femininas são,
então, apresentadas intuitivamente, de um real transformado em onírico, à medida que ela
mergulha no universo de João Guimarães Rosa. Tal intuição criativa possui breves resquícios
do automatismo psíquico puro, defendido pelos surrealistas, e que contribui para a formação
da consciência artística da fotógrafa, embora ela nunca tenha se utilizado dos termos
conceituais do surrealismo. Segundo a própria fotógrafa, sua criação sempre teve um viés
intuitivo, com a plasticidade e a abstração oriundas da pintura, seu primeiro ofício artístico.
Os ensinamentos da pintura foram conjugados a uma força abstrativa ao se iniciar na
fotografia em preto-e-branco. No entanto, não podemos esquecer que em suas jornadas de
aprendizagem artística teve como professor de pintura o surrealista André Lhote, o mesmo
que deu aulas ao também fotógrafo Henri Cartier-Bresson. No entanto, o contexto de Maureen
Bissiliat é diferente daquele de André Breton e seus radicais Manifestos.
Os estranhamentos surgidos causaram tantas perturbações inusitadas naquele período
do surrealismo como a obra literária Nadja, de Breton. Do mesmo modo, também as imagens
fotográficas que retratam o vazio nas esquinas da cidade, noutras os retratos dos manequins
nas vitrines das lojas e os interiores dos bares e cafés sem pessoas, como as imagens
fotográficas dos precursores da fotografia surrealista (Eugène Atget); além das sugestões de
montagem produzidas pelo fotógrafo Man Ray, que também reverberam no trabalho de
Maureen Bisilliat, ainda que ela os utilize de forma inconsciente. Enfatizamos que a
radicalidade e as rupturas no contexto dos anos 20 não integram a sua proposta; ela se engaja
numa possibilidade estética criativa de coexistência entre as linguagens literária e fotográfica.
182
A fotografia e suas ambiguidades transitam entre a realidade e a ficção, no entanto será
sempre a nossa visão de mundo que vai interpretá-la. Mesmo assim, ainda parece que a leitura
fotográfica carece de uma devida decifração, uma anomalia semelhante a um analfabetismo:
nossa visão fotográfica associada ao mundo das palavras. O mundo literário é um alfabeto
imagético que possibilita ampliar nossa visão de mundo conjugada ao universo da imagem
fotográfica.
183
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(Apêndice 1) - (Figura 9)
Os quatro cavaleiros do Apocalipse, 1498. Albrecht Dürer (quarta xilogravura da série de 15 gravuras que
ilustram o apocalipse) (FARTHING, 2010, p. 186.).
Esta é quarta xilogravura do conjunto de 15 gravuras feitas por Albrecht Dürer que
ilustram o apocalipse do Livro da Revelação do Novo Testamento. Foi sua primeira
grande série de ilustrações, e quando publicada, em 1498, teve enorme sucesso. As
técnicas inovadores de Dürer usam linhas paralelas e cruzadas para criar tons de luz
e sombra e volume, ao passo que a disposição em diagonal dos cavaleiros acrescenta
dinamismo à obra. As gravuras ajudaram a estabelecer a reputação internacional do
artista e a revolucionar as ilustrações de livros. O sucesso das obras deram a Dürer
uma nova fonte de renda que durou pelo resto de sua vida. Dürer escolheu o tema
com inteligência. Com a chegada de 1500, muitas pessoas acreditavam que o fim do
mundo estava próximo, por isso as imagens do apocalipse estavam muito em voga.
Na Bíblia, os quatro cavaleiros surgem depois que os primeiros quatro selos do
Livro Sagrado, guardado pelo cordeiro de Deus, são rompidos (Apocalipse 4:1-8). A
identidade dos cavaleiros varia em diferentes representações da cena: na versão de
Dürer, o primeiro cavaleiro, com um arco e flecha, representa a enfermidade; o
segundo ergue uma espada e representa a guerra; o terceiro, com uma balança vazia,
a fome; e o quarto cavaleiro a morte, atirando as pessoas para as garras do inferno. A
fonte elementar do tema provavelmente está na profecia de Zacarias, no Antigo
Testamento (Zacarias 6:1-7), que se refere a quatro carruagens, cada qual com
cavalos de uma cor e que são chamados de "os quatro espíritos dos Céus"
(FARTHING, 2010, p. 187).
197
(Apêndice 2) - O escritor com olhar de fotógrafo e outras relações
O poeta e escritor português Fernando Pessoa escreveu o poema O guardador de
rebanho, na condição de um dos seus heterônimos, Alberto Caeiro, num total de 49 estrofes
que podem ser interpretadas como poemas separados, lançado em torno de 1911-1912152
.
Caieiro é considerado ―o poeta da Natureza: [...] só existe a realidade mesma, palpável sua
preocupação é com as coisas palpáveis, visíveis, percebida pelos sentidos.‖ (PESSOA, 2010,
p. 21-22)
No poema VIII, o poeta apresenta claramente suas características como a de alguém
que assimila o mundo que o rodeia, contentando-se com a realidade visual descrita através de
uma imagem fotográfica conjugada aos outros sentidos, como ele descreve no poema IX153
. A
fotografia soa como um recorte da realidade sem transcendências, uma realidade nua e crua
captada pela visão de um mundo inequívoco. Ele descreve com exatidão de detalhes uma cena
que não pode ser lida de forma transcendental, pois abomina tal condição. O sonho é retratado
como algo palpável; a fotografia é a possibilidade concreta de tornar o sonho real, algo que
realmente aconteceu; ―a coisa esteve lá‖ (BARTHES, 1984, p. 115) diante dele ou de um
fotógrafo que capta a imagem de Jesus Cristo que desce do céu e se transforma em Menino
Jesus:
Num meio-dia de Primavera / Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra. / Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino, / A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora / E a rir de modo a ouvir-se longe. (PESSOA,
2010, p. 21-22)
Trata-se de uma sequência de imagens a compor uma narrativa fotográfica, que foto a
foto compõe a estrofe-poema: O Cristo que mais adiante, no poema VII, ―A mim ensinou-me
tudo. / Ensinou-me a olhar para as coisas.‖ (PESSOA, 2010, p. 47). Um guardador de
rebanhos que pensa através dos olhos mas que, com tal simplicidade, consegue captar a beleza
do mundo. ―Esse ‗detalhe‘ é o punctum‖ (BARTHES, 1984, p. 68). É o que atrai os olhos para
as coisas novas, porém inusitadas, que se passam ao seu redor, que bem poderia ser um olhar
de um fotógrafo que captura os instantâneos poéticos através de imagens fotográficas, que
152
―Embora O guardador de rebanhos traga datas, os poemas I, II, XXVI, XL, XLI, XLII, XLIII, XLIV, e XLVI
são datados, pelo autor, de 1914.‖ TUTIKIAN, Jane. In: PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro
(Organização, introdução e notas). Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. 153
―Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca.‖ (PESSOA, 2010,
p.31).
198
passam despercebidas para a grande maioria. ―A espantosa realidade das coisas/É a minha
descoberta de todos os dias‖154
, está no poema, O guardador de rebanhos.
O meu olhar é nítido como um girassol. / Tenho o costume de andar pelas estradas /
Olhando para a direita e para a esquerda, / E de vez em quando olhando para trás... /
E o que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto, / E eu sei dar
por isso muito bem... /Sei ter o pasmo comigo / Que tem uma criança se, ao nascer,
(PESSOA, 2010, p. 34).
Na obra de Pessoa, o Livro do desassossego, de Bernardo Soares, ajudante de guarda-
livros que vive na cidade de Lisboa (considerado como sendo um semi-heterônimo de
Fernando Pessoa), ele narra diversos pensamentos fragmentados; entre eles está presente a
fotografia. Soares demonstra com clareza a sua maneira minuciosa de observar as pessoas,
semelhante ao visor de uma câmera fotográfica, ao descrever um rapaz muito gordo em uma
escada: ―Vejo o gajo. Vejo-o fotograficamente. [...] — o gajo tão grosso que nem via que era
de degraus a escada — talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e
atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão‖ (PESSOA, 2010, p. 23).
Em outra passagem do livro, Soares descreve o momento em que seu colega de
trabalho, que não se sabe por qual motivo, resolve tirar um retrato de todos do escritório:
O sócio capitalista aqui da firma, sempre doente em parte incerta, quis, não sei por
que capricho de que intervalo de doença, ter um retrato do conjunto do pessoal do
escritório. E assim, antes de ontem, alinhamos todos, por indicação do fotógrafo
alegre, contra a barreira branca suja que divide, com madeira frágil, o escritório
geral do gabinete do patrão Vasques. Ao centro o mesmo Vasques; nas duas alas,
numa distribuição primeiro definida, depois indefinida, de categorias, as outras
almas humanas que aqui se reúnem em corpo todos os dias para pequenos fins cujo
último intuito só o segredo dos Deuses conhece. (PESSOA, 2010, p. 90)
Após ter se esquecido da referida foto tirada há dois dias, Bernardo Soares surpreende-
se ao encontrar seu chefe Moreira e um caixeiro de praça debruçados sobre duas fotografias.
Soares se surpreende com o que vê diante dos olhos, a ponto de não reconhecer a si próprio, e
o pior, de não se aceitar como de fato é, um sujeito de aparência magra, angustiada, triste e
também corcunda, principalmente quando estava sentado, fisionomia esta descrita por
Fernando Pessoa155
. No entanto, Bernardo reconhece que todos têm uma aparência expressiva
e apresentável como a de seu chefe Vasques, bem como a dos demais colegas de trabalho. A
fotografia, através do seu olho, a lente fotográfica denominada de objetiva, serve para Soares
154
PESSOA, Fernando. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/3364>. Acesso em: 12 set. 2013. 155
―Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando
sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e
sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de
sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da
indiferença que provém de ter sofrido muito‖ (PESSOA, 2010, p. 41).
199
assim perceber a verdade do mundo que o rodeia, não podendo negar as suas próprias
deformidades corporais, e com isso, também influenciando o seu comportamento, pois,
através delas, ele se convence de sua inferioridade em relação aos demais. Vejamos a obra, no
momento em que ele depara com sua imagem:
Sofri a verdade ao ver-me ali, porque, como é de supor, foi a mim mesmo que
primeiro busquei. Nunca tive uma ideia nobre da minha presença física, mas nunca a
senti tão nula como em comparação com as outras caras, tão minhas conhecidas,
naquele alinhamento de quotidianos. Pareço um jesuíta frusto. A minha cara magra e
inexpressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que
for, que a alce da maré morta das outras caras. Da maré morta, não. Há ali rostos
verdadeiramente expressivos. O patrão Vasques está tal qual é — o largo rosto
prazenteiro e duro, o olhar firme, o bigode rígido completando. A energia, a
esperteza, do homem — afinal tão banais, e tantas vezes repetidas por tantos
milhares de homens em todo o mundo — são todavia escritas naquela fotografia
como num passaporte psicológico. Os dois caixeiros viajantes estão admiráveis; o
caixeiro de praça está bem, mas ficou quase por trás de um ombro do Moreira. E o
Moreira! O meu chefe Moreira, essência da monotonia e da continuidade, está muito
mais gente do que eu! Até o moço — reparo sem poder reprimir um sentimento que
busco supor que não é inveja — tem uma certeza de cara, uma expressão direta que
dista sorrisos do meu apagamento nulo de esfinge de papelaria. (PESSOA, 2010, p.
90-91)
Apesar de toda sua negatividade, a visão de mundo de Bernardo Soares se assemelha à
de Alberto Caeiro, pois ele contempla as coisas como se observasse tudo pela primeira vez.
Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim
para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E
uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo
do exterior parece que se me infiltra lentamente. (PESSOA, 2010, p. 123)
Em alguns momentos da obra, a objetividade fotográfica é exacerbada através das
palavras do autor, numa precisão minuciosa e contemplativa de Bernardo Soares, em que tudo
é descrito tecnicamente. Soares torna-se fotográfico; ele fala através da fotografia, tomando o
próprio corpo tamanha impregnação da fotografia sobre ele, como se estivesse impregnado de
elementos químicos sensíveis à luz, como em um negativo fotográfico, tendo a capacidade
então de registar momentos exatos, as frações de segundos inerentes ao clicar da câmera na
captura de imagens exteriores, fixadas no corpo, uma placa sensível à luz: ―As palavras
fotográficas, ao invés das palavras picturais, permitem apontar em vez de descrever, ou
descrever como quem aponta. Como se o poeta tivesse palavras de dedos, ou dedos na
extremidade das suas palavras.‖ (WUNDER apud FRIAS, 2007, p. 10). É percebida uma
espécie de imaginação tecnológica impregnando a literatura, uma consequência da
imaginação fotográfica na obra, através da visão de Soares:
200
Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas,
ainda mais humildes do que elas! Os instantes, [...] Os milímetros — que impressão
de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa
fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho
tosco nisso.
Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me
gravam desproporcionadamente [a] haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo
exterior é me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.
(PESSOA, 2010, p. 193-194)
Noutro fragmento da obra, Soares descreve a relação do duplo fotográfico, ―ver a si
mesmo (e não em um espelho). [...] Pois a fotografia é o advento de mim mesmo como outro:
uma dissociação astuciosa da consciência de identidade.‖ (BARTHES, 1984, p. 25). Uma
presença e ao mesmo tempo ausência, apontando para algo; trata-se da fotografia e sua
relação com seu referente, ele próprio, e o olhar de Soares não se limita à possibilidade de
descrever detalhes furtivos de um rosto, mas através do olhar tem a capacidade de escutar
uma narrativa.
Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo
aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras
fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a
inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava
ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão
pegados. (PESSOA, 2010, p. 146)
A fotografia remete à precisão, como diz Soares, utilizando o termo para designar
precisamente: ―E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza,
da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.‖ (PESSOA, 2010, p. 362). São
diversas possibilidades da utilização da fotografia, como a questão da precisão minuciosa em
detalhar as coisas, a questão do duplo e os instantâneos da realidade.
Como pudemos verificar, as interações entre a literatura e a fotografia são variadas,
apontadas na primeira parte do primeiro capítulo, desde a raridade de se encontrar escritores
que também eram fotógrafos ou um poeta que trabalhou em parceria com um fotógrafo, a
escritores que traduzem em palavras o ato fotográfico em minúcias. Na grande maioria, são
fotógrafos que traduzem em imagens uma obra literária. Alguns produzem somente as
imagens, partindo de outras imagens, as literárias; outros trabalham fragmentos de obras, mas
sempre, de algum modo, existe a relação entre palavra e imagem, ambas coexistindo.
O escritor e também fotógrafo Juan Rulfo, em sua obra Pedro Páramo (1955), único
romance do escritor mexicano, narra a história de Juan Preciado e seus mortos na cidade de
Comala, ou na própria definição do escritor, conta uma história de mortos, narrada por um
morto a outro morto, numa cidadezinha morta. As imagens em seu trabalho são produzidas
nos idos de 1940, antes mesmo de publicar o livro, como fruto do seu engajamento
201
(Fotografias 58 e 59) nas causas indígenas e nas questões da comunidade campesina. Sua
notoriedade como fotógrafo foi reconhecida somente em torno de 1980, principalmente
quando a ensaísta norte-americana Susan Sontag o destaca como um dos maiores fotógrafos
latino-americanos. No entanto, Ruan Rulfo, modestamente, assim não se considerava, mesmo
tendo deixado cerca de 6.500 fotografias entre impressas e negativos.
(Fotografia 58)156
– Comala, México. (Fotografia 59)157
Tepeaca, Puebla, México.
Embora Rulfo não tenha se manifestado sobre seu exercício nessa atividade, escreveu
sobre a fotografia realizada pelo francês Henri Cartier-Bresson (Fotografia 60) em duas
visitas que este fez a seu país, em 1934 e 1963. Seu conterrâneo Nacho Lopéz teceu
comentários sobre esse relato ao afirmar: ―nos quais se pode perceber o olhar sobre a sua
própria obra‖ (JIMENEZ, 2010, p. 8). Ao escrever sobre a obra de Bresson, em um catálogo
de sua exposição em Paris, Rulfo assim se expressou: ―Esse México que Cartier-Bresson
encontrou é o México que suas imagens expressam: pobreza, apatia e desencanto, ao lado de
uma profunda solidão. O Paredão de fuzilamento permanecia ali numa testemunha do que
havia sido a violência e a repressão‖ (RULFO, 2010, p. 22).
156
Comala, México. Disponível em: <http://almacendemisamelia.blogspot.com.br/2012/08/pedro-paramo-
juan-rulfo.html>. Acesso em 5 ago. 2012.
157 (idem, ibidem)
202 (Fotografia 60) Fotografia de Henri Cartier-Bresson, em agradecimento ao texto do catálogo da exposição
de Bresson a Juan Rulfo, ―pour Juan Rulfo, avec toute ma reconnaissance158
‖,Paredão de fuzilamento,
(RULFO, 2010, p. 25)
Por não escrever sobre as suas imagens, seja por relutância em se apresentar como
fotógrafo e não como literato ou, ainda, como desempenhando as duas funções, nesse
percurso paralelo entre a literatura e a fotografia, talvez, por isso, não se conheça muito a
respeito do seu universo fotográfico. Não por coincidência, inicia seus primeiros escritos na
década de 1940, no mesmo período em que começa a fazer suas primeiras imagens
fotográficas e, por volta dos anos de 1960, abandona praticamente, quase por completo, a arte
de produzir imagens e obras literárias, mas ainda assim continua a contribuir com roteiros
cinematográficos, em conjunto com outros escritores.
―Não sou fotógrafo‖. Frase simples, mas que, em sua aparente leveza, é de certa
forma reveladora e continua a ser o ponto de partida para compreender a relação
entre o artista mexicano e a fotografia. Uma declaração derivada provavelmente da
modéstia e de uma integridade que o convenceram, diante daqueles que dedicavam a
vida profissional a sua atividade, de que não conquistara o direito de se definir como
fotógrafo. Nós, porém, que hoje podemos examinar o arquivo completo de seus
negativos e neles encontramos extraordinárias homogeneidade e intencionalidade –
embora seu autor tenha mantido inédita a maioria deles -, consideramos dispor de
elementos suficientes para desmenti-lo. Essa certeza de que sua atividade de
fotógrafo não era passatempo, não era fortuita e tampouco fruto de momentos
ocasionais, exige um esforço de compreensão, a necessidade de perguntar o que
levava Rulfo a fotografar, o que procurava na fotografia que sabia não poder
encontrar na literatura: é preciso fazer essa pergunta baseados na certeza de que
Rulfo não tinha utilizado tão ampla e sistematicamente a câmera fotográfica sem
fazer a si tal indagação (LUIGI apud RULFO, 2010, p. 16).
A relação entre a literatura e a fotografia de Rulfo em seus dois únicos trabalhos
literários produzidos não se dá de forma direta, seja com Pedro Páramo (1955), sua obra mais
conhecida, ou ainda com o conto El llano em llamas (1953)159
. A relação não ocorre de forma
emparelhada entre as imagens e as fotos que compõem as suas obras, no entanto é quase
158
Tradução: Para Juan Rulfo, com todo meu reconhecimento. 159
Em Portugal, foi traduzido como A planície em chamas; no Brasil, foi denominado deChão em chamas
(1953).
203
impossível não relacionar as suas imagens fotográficas ao mundo que escreve, em que o
passado, a história da qual foi testemunha, está impregnado em diversos aspectos da vida
mexicana com o retrato de sua variada etnia, arquitetura, e sua paisagem muitas vezes com o
aspecto desértico e desolador das ruínas nos vilarejos em suas imagens fotográficas em 100
melhores fotografias (2011), que são descritas em Pedro Páramo, o que reflete muito bem a
sua infância solitária, na Cidade se San Gabriel, conhecedora da morte de perto, pois aos seis
anos, perde o pai, que morre assassinado e, em seguida, perto dos dez anos, a mãe falece
também, ficando órfão juntamente com seus irmãos, aos cuidados da avó.
Suas imagens retratam o rastro de morte e também da violência que vem desde a
colonização dos espanhóis, como o extermínio das culturas pré-colombianas, as civilizações
consideradas avançadas para a época. Suas pirâmides, conhecimentos matemáticos e diversas
esculturas em pedra como as dos astecas e as dos maias, além de outras etnias também
dizimadas, representadas pelos toltecas, olmecas e zapotecas.
O povo mexicano, mais adiante, ainda se depara com a revolução em seu país,
somando-se a isso a guerra civil, com diversas batalhas e repressões ditatoriais impostas à
população. E ainda nesse contexto do imperialismo norte-americano, a perseguição aos
comunistas que viviam na clandestinidade, com algumas mortes e outros deportados que
tentaram nesse país empreender uma ação revolucionária.
Outro escritor também afeiçoado à fotografia foi o argentino Julio Cortázar. Ao
escrever o conto As babas do diabo (1959), narra a história de um fotógrafo amador em Paris,
Robert Michael. Esse conto foi possivelmente o elemento que influenciou a criação do filme
Blow-Up (Depois daquele beijo), em 1966, de Michelangelo Antonioni. Nesse conto, é
notório o conhecimento técnico empreendido pelo narrador, ao utilizar uma câmara Contax,
saber a importância da luz, do enquadramento, da abertura do diafragma, bem como a
velocidade empreendida pelo obturador em seus instantâneos nas praças do centro de Paris.
Durante a narração, se fosse possível ir beber um chope por aí e a máquina
continuasse sozinha (porque escrevo à máquina), seria a perfeição. E não é uma
maneira de dizer. A perfeição, sim, porque o insondável que aqui é preciso contar é
também uma máquina (de outra espécie, uma Cóntax 1.1.2) e de repente pode ser
que uma máquina saiba mais de outra máquina que eu, tu, ela - a mulher loura - e as
nuvens (CORTÁZAR, 2009, p. 1).
O escritor compara o ato da câmera fotográfica Contax com um ato narrativo que se
assemelha a um conto, o que é confirmado por Cortázar ao escrever sobre Alguns aspectos do
conto160
(1970). Como sugere Davi Arrigucci: ―Contar e Contax constituem um jogo
160
[...], el fotógrafo o el cuentista se ven precisados a escoger y limitar una imagen o un acaecimiento que sean
significativos, que no solamente valgan por sí mismos, sino que sean capaces de actuar en el espectador o en el
204
paronomástico que representa uma aproximação no plano sonoro, mas também uma íntima
correlação, um contacto, do ponto de vista semântico‖ (ARRIGUCCI, 1995, p. 231).
A fotografia requer sempre um recorte da realidade, um recorte metonímico, uma
pequena parte do todo de um evento, o que depende da maestria do fotógrafo em resumir em
apenas num instante a síntese de todo o clímax de ocorrências significativas, ao mesmo tempo
que tudo é tão breve, numa fração ínfima de espaço e tempo, assim como em um conto, numa
espécie de momento decisivo patenteado por Cartier-Bresson161
. Como numa luta de boxe, o
conto não pode demorar-se em vários assaltos: ―el cuento debe ganar por knock-out‖
(CORTÁZAR, 1970, p. 4).
Como toda obra literária, pode ser compreendida em diversos níveis, mas só entrega
os planos mais fundos, revelando a coerência da totalidade, a uma leitura atenta das
particularidades, aparentemente secundárias, que integram a sua estrutura. Desde o
primeiro contacto, parece exigir do leitor a mesma visão detida e minuciosa desse
fotógrafo que busca a revelação do verdadeiro sentido de uma cena, a primeira vista
banal e sem sentido. E, desde o princípio, convida-o a enveredar-se por meandros
que parecem distanciá-lo do foco de interesse da história, encenando num labirinto
de divagações, do que mesmo modo que o mundo múltiplo e caótico de divagações
desafia e norteia a câmera fotográfica, a caça do retalho significativo, do fragmento
que, com força de forma significante, abra para realidade mais ampla.
(ARRIGUCCI, 1995, p. 227)
Já em Prosa do observatório (1972), Cortázar experimenta a criação tanto de imagens,
como do texto, ambos confeccionados por ele próprio, em uma viagem à Índia em 1968,
compondo desse modo uma narrativa particular — suas fotografias em conjunto com o texto.
O conto refere-se à história de Jai Singh, um sultão indiano que, através de sua curiosidade
em desvendar os mistérios das estrelas, constrói, no século XVII, vários observatórios
astronômicos. Cortázar soube explorar possibilidades poéticas ao estabelecer relações
estéticas entre o universo fotográfico e o literário, bem como alguns outros escritores e poetas
brasileiros que iremos abordar a partir deste momento.
―Difícil fotografar o silêncio./ Entretanto tentei.‖ Assim Manoel de Barros inicia o seu
poema O fotógrafo, que pertence à obra Ensaios fotográficos (BARROS, 2000). O poeta
descreve a sua jornada numa madrugada silenciosa, saindo de uma festa por volta das quatro
horas da manhã: ―Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado‖ (BARROS, 2000, p. 11).
Como o silêncio estava carregando um bêbado, fotografei esse carregador, o silêncio. O poeta
ainda teve outras visões naquela madrugada, como o perfume de uma flor, um jasmim, num
lector como una especie de apertura, de fermento que proyecta la inteligencia y la sensibilidad hacia algo que va
mucha más allá de la anécdota visual o literaria contenidas en la foto o en el cuento (CORTÁZAR, 1970, p. 4). 161
Fotógrafos de la calidad de un Cartier-Bresson o de un Brasai definen su arte como una aparente paradoja: la
de recortar un fragmento de la realidad, fijándolo determinados límites, pero de manera tal que ese recorte actúe
como una explosión que abre de par en par una realidad mucho más amplia, como una visión dinámica que
trasciende espiritualmente el campo abarcado por la cámara (CORTÁZAR, 1970, p. 4).
205
alpendre de uma casa; o poeta prepara a sua máquina e também o fotografou, não a flor do
jasmim em si, mas o perfume deste. Encontra ainda com algumas criaturas, como uma lesma
a deslizar numa pedra. O poeta fotografa então a sua existência, em seguida encontra o perdão
no olhar de um mendigo, um azul-perdão, e registra então o perdão.
Numa paisagem velha a desabar sobre uma casa, fotografa o sobre, e exalta a
dificuldade de fotografá-lo. Por último, o poeta-fotógrafo observando no céu uma nuvem que
mais parece uma calça, Uma nuvem de calça, fotografou não só a calça, mas o seu dono, o
poeta russo Vladimir Maiakovski, o seu companheiro nessa jornada. ―Ninguém no mundo
faria uma roupa mais justa para cobrir a sua noiva. E a foto saiu legal.‖ (BARROS, 2000, p.
12).
A fotografia de Manoel de Barros não é o fotografar o óbvio e sim a ficção, o abstrato,
que vai além das palavras, algo metafisico, do visível das imagens. Suas imagens são
simbólicas e remetem a metáforas, que geram outras imagens. Como a imagem fotográfica
concreta do vento, pretendida pelo poeta, demostrada num poema mais adiante, O vento,
Barros tenta dar ―uma forma concreta e capta a foto‖ (BARROS, 2000, p. 27). Diante de
várias imagens imprecisas de ser fotografadas, na tentativa de captar o vento, no entanto,
consegue, dessa vez através de outro poeta, Shakespeare. ―Estava quase a desistir quando me
lembrei do menino montado no cavalo do vento – que lera em Shakespeare./ Imaginei as
crinas soltas do vento a disparar pelos prados com o menino./Fotografei aquele vento de
crinas soltas.‖ (BARROS, 2000, p. 12). ―Uma escrita que fotografa o inaudível e o uniforme,
a imprecisão e a insustentabilidade da palavra, e que arrasta a imprecisão para longe das
margens do visível‖ (WUNDER, 2013, p. 1).
São os poetas Vladimir Maiakovski e Williams Shakespeare que possibilitaram,
através de suas metáforas, a criação de outras imagens, as imagens abstratas da obra, como a
obra Ensaios Fotográficos, de Manoel de Barros, o qual, a seu modo ―cria um poema-
fotografia‖(WUNDER, 2009, p. 2).
O destaque empreendido pelo ato fotográfico na atualidade, demarcado pelo signo da
representação do universo que nos cerca, da mesma forma entremeia também os poemas de
Carlos Drummond de Andrade, como o poema Confidência do itabirano. O poema revela as
lembranças de sua terra natal, Itabira, tornando evidente o valor nostálgico, uma fixação
sentimental do poeta com relação a sua cidade, a decadência da família, marcada por suas
perdas econômicas, como as jazidas de ouro, a pecuária bovina e por fim a perda da terra.
Itabira é uma imagem dolorosa.
206
A fotografia, apesar de ser apenas um objeto, um pedaço de papel com uma imagem
dependurada na parede, é o caráter sentimental da memória que possui, que afeta o poeta:
―Tive ouro, tive gado, tive fazendas./Hoje sou funcionário público./Itabira é apenas uma
fotografia na parede./Mas como dói!‖ (ANDRADE, 2012, p.10). As fotografias como as dos
álbuns de família ou dependuradas na parede, apesar de lembrar as vidas que se foram,
parecem querer trazê-las de volta, como se as vidas fossem veladas na impressão dos papéis
fotográficos.
O poema Imagem, Terra, Memória (Sobre uma coleção de velhas fotografias de Brás
Martins da Costa), remete novamente às coleções antigas de imagens da família, amigos e
pessoas de Itabira, e aos acontecimentos, missas e procissões registradas através do seu
fotógrafo de infância, Brás Martins da Costa, que realiza um retrato do poeta até então com
apenas dois anos de idade, os detalhes, ―cada barba, cada reza, cada enterro.‖ (ANDRADE,
1996, p. 63). Ou a passagem que se segue, abaixo, relacionando o poema à imagem
apresentada a seguir (Fotografia 61):
(Fotografia 61) – Fotografia de Brás Martins da Costa. Levantamento
do cruzeiro; Congregação da Missão, padres lazaristas, Itabira, 1904.162
É indispensável, é urgente levantar o cruzeiro,
sinal de culpa e resgate
sobre interesses e podres de família,
sobre fazendolas hipotecadas
de gado, milho, café, carrapato redoleiro,
erguê-lo à altura majestática do Pico do Cauê,
se não mais alto, muito mais ainda.
Braços robustos tiram-no do chão
e o vão alçando com fervor e suor
até que ele paire sobre as consciências
[arrependidas.
(ANDRADE, 1996, p. 64)
Ainda podemos encontrar outro poema do mesmo autor que se relaciona com a
fotografia – Diante das Fotos de Evandro Teixeira, feito em 1983. Esse poema surge quando
o fotógrafo convida o poeta para escrever sobre as suas fotografias. Drummond acreditava
que não teria informações suficientes para escrever sobre essa arte. Apesar de relutar um
162
Disponível em: <http://www.iaid.com.br/livro-de-fotografia-traz-imagem-de-drummond-com-apenas-2-
anos/>. Acesso em: 20 out. 2013.
207
pouco, Drummond termina aceitando o convite. Teixeira entrega ao poeta diversos trabalhos
fotográficos seus. Ambos já eram amigos, pois trabalhavam juntos há 25 anos, desde 1962,
quando os dois se conheceram no Jornal do Brasil. A sensação que temos é de que há um
desvendar de informações através das lentes da câmera de Evandro Teixeira, uma ampliação
de nosso olhar para perceber então o que se passa; apesar de expostos pela fotografia, poucos
percebem os detalhes e o todo.
Semelhante à obra de Drummond, a fotografia de Teixeira também é uma verdadeira
poesia, pois recorta de forma metonimicamente com o seu enquadramento uma parte do todo
da realidade, que poderia ser percebida por todos, mas que só poucos conseguem captar. No
poema de Drummond, funciona o jogo de palavras, as que entram e as que são excluídas do
papel, enquanto Evandro escolhe seus elementos que vão integrar na composição e que em
seguida serão expostos num também papel, este fotossensível. E que elas só estão à mostra
porque ele estava lá, diante dos fatos, na hora e lugar exatos. Mas, diferentemente do poema
drummondiano que resultou do olhar através das imagens, a fotografia necessita do estar lá de
frente para o crime.
Ao deparar com tais fotografias, é possível imaginar as imagens criadas por
Drummond. Logo na primeira estrofe do poema Diante das fotos de Evandro Teixeira,
percebemos a sutileza do fotógrafo, que consegue captar a essência das coisas: ―A pessoa, o
lugar, o objeto/estão expostos e escondidos/ao mesmo tempo sob a luz,/e dois olhos não são
bastantes / para captar o que se oculta/no rápido florir de um gesto.‖ (ANDRADE, 2002, p.
60).
Mais adiante, as cenas durante a ditadura como a Passeata dos 100 mil e tantas outras
manifestações, como também a repressão durante a ditadura, com perseguições a estudantes
(Fotografia 62). ―Das lutas de rua no Rio/em 68, que nos resta/mais positivo, mais
queimante/do que as fotos acusadoras,/tão vivas hoje como então,/a lembrar como a
exorcizar?‖ (ANDRADE, 2000, p. 60). Em que a cavalaria da polícia militar reprime a
multidão durante a missa na igreja da Candelária da morte do estudante Edson Luís, morto
pela polícia, em 1968, na cidade do Rio de Janeiro.
208
(Fotografia 62) – foto: Evandro Teixeira – Cavalaria na Igreja da Candelária,
massacrando o povo na missa do estudante Edson Luís morto pela Polícia, 1968.
Disponível em: <http://photos.uol.com.br/materias/ver/86955>. Acesso em: 15 set. 2013.
Evandro também registra as catástrofes da cidade do Rio de Janeiro com suas
enchentes e favelas com o mesmo sentimento que também registra um homeless na cidade de
Nova Iorque, Estados Unidos:
Marcas de enchente e do despejo,/o cadáver inseputável,/o colchão atirado ao
vento,/a lodosa, podre favela,/o mendigo de Nova York/ [...] fotografa desde um
gênio do futebol nacional, Mané Garrincha ao bailarino de origem russa, Rudolf
Nureyev, ―Garrincha e Nureyev, dança de dois destinos, (...), a dor da América
Latina, mitos não são, pois são fotos (ANDRADE, 2000, p. 60).
Mas esses objetos, fotos, podem representar e configurar elementos míticos, pois ao
lermos as imagens dos fotógrafos, eles compartilham seus mitos, ―fraternizando com eles,
sem acreditar inteiramente neles. Esses mitos visam evidentemente (é para isso que serve o
mito) a reconciliar a Fotografia e a sociedade (é necessário? – Pois bem, é: a Foto é perigosa)‖
(BARTHES, 1984, p. 48). Como assinala, ainda, Roland Barthes, as imagens têm as ―funções:
de informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade‖, pois ao perceber as
vontades do fotógrafo, gostando ou não de suas imagens, ―mas sempre compreendê-las,
discuti-las em mim mesmo, pois, a cultura [...] é um contrato feito entre criadores e
consumidores‖.
A escritora Clarice Lispector também mantém um diálogo fotográfico em seu trabalho
Água Viva. O grande elemento utilizado por Clarice é a questão do ―instante‖, ou do
―instante-já‖, como é denominado pela escritora: ―Tenho um pouco de medo: medo ainda de
me entregar, pois o próximo instante é o desconhecido‖ (LISPECTOR, 1998, p. 9).
O medo de Clarice é o medo da morte, é o que a faz pensar: ―Fixo instantes súbitos
que trazem em si a própria morte e outros nascem [...] Fotografo cada instante,‖
209
(LISPECTOR, 1998, p. 13-14). ―A vida / a Morte: o paradigma reduz-me a um simples
disparo, o que separa a pose inicial do papel final‖. Para Roland Barthes, o principal elemento
empregado pelo fotógrafo ―não é o olho (...), é o dedo‖ (BARTHES, 1984, p. 30), o elemento
que aciona o corte temporal, que determina em uma fração de segundos o passado, a morte na
fotografia, pois todo instante disparado é um passado que não retorna mais, mortificando a
imagem.
A todo instante existe uma pulsão de vida, como uma luz breve de um flash da câmera.
―É sempre atual, e o fotômetro de uma máquina fotográfica se abre e imediatamente fecha,
mas guardando em si o flash‖. (LISPECTOR, 1998, p. 18). Ou o último suspiro de vida, num
lampejo do incerto instante futuro, representado através também dessa luz: ―Ah este flash de
instantes nunca termina. Meu canto do it nunca termina? Vou acabá-lo deliberadamente por
um ato voluntário. Mas ele continua constante criando sempre o presente e o futuro‖
(LISPECTOR, 1998, p. 94).
A autora do romance Água Viva alterna instantes entre ficção e realidade; vida e morte
se alternam também. As imagens criadas sugerem não só outras imagens mentais, mas
também que essas poderiam ser imagens fotográficas, ao menos convergir para estas, dando
mais uma possibilidade, ao menos é o que sugere a obra.
O poeta João Cabral de Melo Neto também lança mão dessa temática fotográfica em
seus poemas, como em Fotografia do engenho Timbó (feita por Ivan Granville Costa). Cabral
retrata em palavras a imagem fotográfica feita por um parente de Cabral, Ivan Granville:
―Casas-grandes quase senzalas,/ como a desse Engenho Timbó/que tenho na minha
parede/casa onde nasceu uma avó/ [...] O que de casa havia/nesse Timbó de um Souza-
Leão?/Entre urinóis, escarradeiras,/um murcho, imperial, brasão‖ (MELO NETO, 1994, p.
423).
Cabral faz uma comparação metafórica e também remete ao vínculo que outrora
existiu entre a casa-grande e o senhor de engenho e a senzala dos escravos. Tal passagem
evidencia a decadência na produção do referido engenho que mais se assemelha a uma
senzala. Esse poema remete a todo um referencial concreto presenciado pelo poeta que morou
com seus pais nos engenhos da zona canavieira de Pernambuco durante a primeira infância de
sua vida. A fotografia, apesar de poder ser descritiva, mostra a relação antagônica entre
―Casas-grandes‖ e ―senzalas‖. Deduz que o momento eternizado em destaque, no entanto, não
é o período de fartura e prosperidade do engenho, mas sim o momento do engenho em ruínas.
A representação estética da fotografia, símbolo da modernidade, é feita levando em
conta a ação corrosiva do tempo, num sentido muito politizado, de uma época que
definhou, e não da imagem do momento eternizado. Cessaram as relações de poder e
210
prestígio que perpassavam a sociabilidade e a ordem social açucareira, figuradas nos
versos não apenas pela aproximação entre o brasão da família, escarradeira e urinol
(os dois últimos, metáforas do envelhecimento e da destruição). Poeticamente, a
fotografia é re-trabalhada e o resultado é revelador da transitoriedade da ordem
social nela registrada. Fotografia de processo histórico (RAMIRES, 2009, p. 23).
Como símbolo da modernidade, a fotografia também representa uma das primeiras
criações do capitalismo. Através dela é possível registrar seus resquícios ao longo dos
tempos, todas as nuances da lógica de produção e estagnação, com imagens perturbadoras, ao
demonstrar as imposições financeiras em que tudo que se ―constrói é construído para ser
posto abaixo. [...] é feito para ser desfeito amanhã [...] a fim de que possa ser reciclado ou
substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante [...] sob formas cada
vez mais lucrativas‖ (BERMAN, 1996, p. 97), de modo que a fotografia, filha genuína do
capitalismo, registra as próprias nuances dos declínios do capitalismo em sua eterna
renovação e destruição em busca de lucros.
Em 1975, enquanto estava no Senegal, em missão diplomática, Cabral recebia
fotografias de sua neta Dandara. Ao observá-las, começou a escrever sobre estas e em seguida
as envia para o Brasil, conjugada com seus versos.
As imagens se sucederam e ganham mais e mais versos. Um dia, o avô zeloso
acomoda carinhosamente poemas e fotos num caderno. Despachando para o Brasil,
folha de rosto indica destino e origem: Ilustrações para fotografias de Dandara –
Editora do Avô, 1975 (MELO NETO, 2011, contracapa).
As ―Ilustrações” para fotografias de Dandara são bem sugestivas, representam as
imagens do poeta em palavras. No entanto, esse álbum ficou guardado por anos, sendo
editado somente em 1911. Cabral, conhecido por seus ―poemas cerebrais‖ ou de cunho social,
como Morte e Vida Severina, se rende à emoção de escrever para sua neta, como Roland
Barthes (1984), o qual escreve um livro sobre a imagem de sua mãe, sem nunca mostrar a
imagem dela. Talvez tenha sido isso o motivo de não publicar a obra em vida, devido à
relação pessoal, o avô e sua neta, uma publicação pessoal para sua filha, a mãe de Dandara.
Dandara, alegria da rua,/que nasceu a assoviar,/quando virás por aqui/ver teus avós
em Dacar?/que te olham em fotografia, a te ler e a decifrar,/para ver com quem
pareces/na metade em que tu hás/De Cabral de Melo e Barbosa de Oliveira, mãe e
pai: metade que te tomamos/(a do pai, ele a lerá) Se te pareces aos tios? Ou aos avós
de lá e cá:/Dandara, hoje tu és índice,/na vida, serás o que farás (MELO NETO,
2011, p. 7).
O poema é bem descritivo sobre cada foto apresentada no livro. As primeiras imagens
remetem a saudades do poeta em relação à neta, buscando através das imagens fotográficas
observar os traços fisionômicos da neta com relação a sua família, tios e avós. O caráter
211
indicial, em apontar, deixar vestígios, ao qual pertence à fotografia, é dado a Dandara, à
medida que ―serás o que farás‖.
Este capítulo não tem a pretensão de pontuar todos os possíveis casos entre a literatura
e a fotografia, os quais são muitos. Desde quando surgiu a fotografia no mundo, ocorreram
vários casos de interações aqui no Brasil, seja entre a literatura e a fotografia, envolvendo
escritores que mencionam a fotografia em seus trabalhos, seja através de fotógrafos que
interpretam escritores através de imagens fotográficas. Sobre essa questão, Soulages diz que:
(...), a fotografia pode, com uma outra arte, criar uma obra que então não é mais
exclusivamente da esfera da fotografia, mas também da outra parte. O confronto, por
exemplo, por exemplo, da fotografia com a literatura é enriquecedor à medida que se
abre para um espaço de criação, o livro; este pode revelar-se um dos lugares
privilegiados ao mesmo tempo da fotoliteratura e da fotografia; então não há mais
um lugar em que são simplesmente depositadas, apresentadas e publicadas fotos,
mas um objeto para ser comtemplado, explorado, aproveitando e pensado enquanto
tal; é um material que permite uma criação específica quando do trabalho inacabável
de apresentação. (SOULAGES, 2010, p. 275)
Esses escritores criam de uma forma diferente, pela ambiguidade existente entre a
literatura e a arte fotográfica, expandindo seus ―significados nessa zona fronteiriça‖
(MACIEL, 2004, p. 19). De modo que ―O objeto técnico perde sua funcionalidade e adquire
significados. A técnica deixa de ser um meio para um fim e passa a nos dar as regras de
formação de um imaginário, que é o modo como o ser humano lida com ela.‖ (p. 19). Como
nos explica Maciel: ―quando se incita a contaminação dos campos semióticos uns pelos outros
e se estruturam metáforas que rendem o leitor pelo inusitado e o libertam pela possibilidade e
múltiplas representações.‖ (MACIEL, 2004, p. 19). Tais possíveis ampliações geram novas
representações estéticas de significados.
Este apêndice não tem a pretensão de pontuar todos os possíveis diálogos entre a
literatura e a fotografia, que são muitos desde o seu surgimento, no entanto, apresentamos
algumas interações estéticas ocorridas ao longo dos anos, entre a literatura e a fotografia.
Apresentamos alguns exemplos no Brasil e no mundo, envolvendo escritores que mencionam
a fotografia em seus trabalhos ou escritores que se utilizam de imagens fotográficas
conjugadas com suas palavras.
Considerações: Literatura e fotografia: entre guerras e final da Segunda Guerra
Mundial
Alguns téoricos acreditam que as mudanças estéticas ocorridas devem-se também a
evolução tecnológica do aparelho fotográfico. Numa segunda fase da fotografia, no período
212
entreguerras, na interação com a literatura, o desenvolvimento tecnológico empreendido
pelos aparelhos fotográficos foi relevante, como o lançamento das câmeras Ermanox e Leica,
em 1925. Foi um trunfo considerável a noção da aura do retrato, de que tanto fala Walter
Benjamim (1985), ao demarcar a diferença dos retratos confeccionados com longa duração de
tempo, levando minutos, em seguida segundos, obrigando a que os retratos fossem então
posados. As pessoas ficavam imóveis para que as imagens não saíssem borradas, tremidas,
devido à grande exposição de tempo para a obtenção da fotografia.
Esse fenômeno não só demarca o inventário do mundo e a perda da aura nas obras de
artes, mas também desvela o ritual mágico e de angústia para tirar as primeiras fotografias,
com duração de minutos, em seguida segundos, fato rapidamente ultrapassado para frações de
segundos, basta lembrar o tempo necessário para conseguir obter a primeira imagem realizada
por Joseph Niépce da janela de sua casa, a qual levou cerca de 8 a 10 horas. Não é à toa que
nesse período de avanços no aparelho fotográfico também surge ―uma geração mítica‖
(SOUSA, 2000, p. 84) de fotógrafos, na geração de 30, como Henri Cartier-Bresson, Robert
Capa, Margareth Bourke-White, André Kertz, Robert Doisneau, Carl Mydans, Bill Brandt e
Brassaï.
Considerando a possível existência de um terceiro momento da relação entre
fotografia e literatura, no final da Segunda Guerra Mundial, surge então, durante os idos de
1960, um estilo denominado de New Journalism, de origem norte-americana, em que a
fotografia passa a interagir com a literatura.
Verifica-se o intuito de dar um maior valor ao jornalista diante dos fatos que este
aborda, abandonando as normas vigentes do jornalismo convencional, como a neutralidade da
informação, em que a narrativa é em geral na terceira pessoa. O repórter tem a possibilidade
de realizar a reportagem mais criativa e bem pessoal, ousando na apresentação dos dados com
riqueza de detalhes, transformando a reportagem em algo parecido a uma novela ou romance
realista, tendo como primeiros ícones Truman Capote, Tom Wolf e Gay Talese, dentre outros.
Segundo Lima, ―é o jornalismo literário, assim denominado pela incorporação de recursos e
técnicas de captação e redação provenientes da literatura‖ (LIMA, 2003, p. 10).
Esses repórteres/escritores foram buscar inspirações em Charles Dickens e Honoré de
Balzac, escritores ―que inspiraram os jornalistas a aplicar ao relato da realidade as técnicas
narrativas que empregaram no trabalho de ficção‖ (LIMA, 2003, p. 11). Coincidentemente,
são os mesmos escritores da corrente literária do realismo que terão o primeiro contato com a
fotografia em seu nascimento, embora de ser de forma acanhada nesse primeiro momento, no
século XIX. É com o New Journalism, na década de 60, nessa mescla de jornalismo e
213
literatura, que a fotografia vai buscar também inspiração nesse período, o que resulta em
experimentações mais ousadas.
A fotografia, já consolidada, vai absorver nesse momento uma maior liberdade na
forma de ver o mundo, da mesma maneira como vista através da proposta da linha editorial
empreendida pelo New Journalism na sua interação da literatura com o jornalismo. O
fotojornalismo, tipo de fotografia que está associado ao texto do jornal, não fica de fora, e
passa a absorver a nova estética vigente, caracterizada pela ousadia da experimentação do
New Journalism, que por sua vez vai se expandir e contaminar os demais gêneros empregados
na fotografia em geral.
Com isso, diferentemente das expedições ou da primeira leva de fotógrafos que tinham
por finalidade registrar e expor o mundo exótico, os quais registravam suas imagens ao redor
do mundo numa espécie de inventário fotográfico, surgem profissionais dessa área que
passam a registrar as imagens de uma forma bem peculiar. Robert Frank foi um dos
responsáveis por trabalhar com uma nova concepção de fotografia ao explorar o interior do
país que até então habitava e não mais o mundo exterior. E essa concepção, por sua vez, é
ampliada por outros fotógrafos que trabalham não mais o país, mas pequenos grupos em sua
intimidade. Surge, então, a Fotografia Intimista, tendo à frente Willian Eggleston, Larry Clark
e Nan Goldin.
É justamente com os movimentos de contracultura que surge uma nova interação entre
fotografia e literatura. Da geração beatnik, de Jack Kerouak, juntaram-se ―as pinceladas
furiosas de Jackson Pollock e às escalas [...] do sax alto de Charlie Parker em uma trindade
que representava o surgimento de uma nova contracultura no pós-guerra, aparentemente
construída sobre suor, imediatismo e instinto [...]‖ (CUNNEL apud KEROUAK, 2009, p. 12).
Como William Burroughs e tantos outros artistas como o suíço Robert Frank com sua
antológica obra fotográfica Les Américains163
, cujo prefácio foi escrito por Jack Kerouak.
163
Les Américains trata-se de uma obra quase mítica que causou grandes sensações,discussões e influências no
amplo universo da fotografia e nos mais pequenos mundos do fotojornalismo e do fotodocumentalismo. A
influência do seu autor após os anos sessenta será determinante na evolução do médium e do próprio jornalismo:
fazendo com que o real fosse a mesa onde se servia a sua imaginação, Frank renuncia à objectividade do olhar,
revoluciona a reportagem e, assim, pode até considerar-se um precursor do Novo Jornalismo dos anos sessenta.
Les Américains não era uma reportagem clássica, uma vez que não se debruçava sobre acontecimentos. Era até
uma "reportagem" sem acontecimento(s), que tornou Frank num arquétipo do fotojornalismo não centrado em
acontecimentos. Também não se podia considerar um foto-ensaio nem sequer uma história em imagens. Longe
de procurar registrar momentos convencionalmente significativos, Frank realizou um conjunto de imagens
fotográficas que registram instantes que roçam o absurdo e que quase não têm em si um sentido que não seja
aquele que o observador lhes possa dar. Um conjunto de imagens muito pessoais, subjectivas, introspectivas,
instintivas, entrecortadas, enigmáticas, sensíveis, fluídas, evocativas de deambulações quotidianas de um
europeu pelos Estados Unidos, quase como Sting canta na canção do englishman que é um alien em Nova
Iorque. Muitas das suas fotos eram enquadradas de través,enquanto noutras Frank nem sequer olhava pelo visor.
Talvez, por isso, a edição da versão americana de Les Américains foi acolhida com críticas ferozes e algum
214
Essa obra foi lançada primeiramente em Paris, por não encontrar nos Estados Unidos uma
editora que quisesse bancar sua publicação. Além disso, foi mal compreendida pelos próprios
estadunidenses assim que a conheceram, sendo também criticada como uma obra
antipatriótica, mesmo depois de a edição ser feita em solo norte-americano, por mostrar a
realidade dos excluídos, daqueles que estavam à margem da sociedade.
Durante a terceira fase da fotografia, no pós Segunda Guerra, em tempo de paz, ocorre
o aparecimento da televisão que vai diminuir a busca de informações através da imagem. É,
em geral, a fotografia e a literatura que vão caminhar num sentido mais intimista, como já
apontado pela geração depois do fotógrafo Robert Frank:
Writers and photographers then turned to representing postwar realities in new but
unexpectedly similar ways. Previous systems and beliefs had once again failed,
leading to further economic chaos, military devastations and spiritual quandary.
The only visions and artist could really comprehend and convey were the ones in his
own mind. Accordingly, literature and photography became more abstract or self-
referencial164
(RAAB, 1995, p. 46).
Philippe Ortel (2002) acredita que a fotografia constitui uma ruptura com a história
contemporânea, o que os historiadores e especialistas da comunicação denominam de uma
cultura da imagem. Mas, em geral, a cultura de massa estava ligada ao mundo pertencente ao
realismo fotográfico, com a noção de ver para crer, sem entender as relações entre os
suportes, como quando o artista René Magritte pintou um cachimbo e logo abaixo escreveu:
Ceci n’est pas une pipe, frase que serve muito bem para ser empregada no universo da
imagem fotográfica. Apesar de ser uma pintura, Magritte diz claramente que isto (a pintura
em si) não é um cachimbo: isto é uma pintura, uma representação.
Nossa cultura imagética, paradoxalmente, está por vezes ainda associada à noção do
retrato falado, que identifica, que aponta para um indivíduo exatamente como ele é, ou quanto
mais exato melhor. Ainda se diz que ―uma imagem vale por mil palavas‖, não se percebendo
que a imagem fotográfica pode até não precisar de palavras para se expressar quando se
conhece o seu contexto.
sarcasmo. Aliás, excluindo a comunidade acadêmica e artística. Um estudo de 1984 de Alexander Nesterenko e
de C. Zoe Smith revelava que nos Estados Unidos continuava a não existir grande aceitação da obra de Frank e
menor ainda era a identificação dos americanos que faziam parte da amostra com as fotos de LesAméricains
(SOUSA, 2000, p. 148). 164 Escritores e fotógrafos, em seguida, retornam a representar realidades do pós-guerra em novas formas, mas
inesperadamente similares. Sistemas e crenças anteriores mais uma vez falharam, levando ainda mais ao caos
econômico, devastações militares e dilema espiritual. A única visão que o artista poderia realmente compreender
e transmitir era a de sua própria mente. Assim, a literatura e a fotografia se tornaram mais abstratas ou
autorreferenciais.
215
A fotografia é sempre muito mais aberta, pois geralmente possui infinitas
possibilidades de explicação. Nossa facilidade de leitura visual é realmente muito mais rápida
do que a do mundo das palavras; no entanto, dependemos delas para sua interpretação, ao
menos para sua descrição e narratividade. Como assinala Santaella: ―A imagem pode ilustar
um texto verbal ou o texto pode esclarecer a imagem na forma de um comentário. Em ambos
os casos, a imagem parece não ser suficiente sem o texto.‖ (SANTAELLA, 2012, p. 53).
O preconceito que quase sempre existe no tocante a esse aspecto pode ser observado
em alguns críticos que consideram essa relação como algum tipo de piada, ou também da
indiferença ou ignorância de biógrafos que insistem em negar, de alguma maneira, a
utilização da fotografia pelos escritores em seus trabalhos. ―As the century ends, literature
and photography are closer than ever before engaged by many shared concerns‖165
(RAAB,
1995, p. 46). Outros reconhecem, no entanto, que ambas são importantes para a compreensão
do mundo, desde quando foi anunciada a sua existência, em 1839.
165
Com o final do século, literatura e fotografia estão mais próximas que nunca, engajadas por muitas
preocupações em comum.
216
(Apêndice 3) - Maureen Bisilliat: “a beat woman"
A fotógrafa Maureen Bisilliat166
(Sheila Maureen Bisilliat) nasceu em 16 de fevereiro
de 1931 na cidade de Englefield Green, região fronteiriça à grande Londres, pertencente ao
condado de Surrey, sudeste da Inglaterra; era filha de diplomata argentino Adolfo Scilingo e
mãe pintora de origem irlandesa, Sheila Brannigan.
A biógrafa Marta Góes (2004) relata que Maureen Bisilliat teve uma infância
bastante errante, em virtude de várias mudanças em função do trabalho diplomático de seu
pai; dessa primeira infância não se tem sequer uma imagem. Esteve em vários lugares: da
Inglaterra para a Dinamarca, em seguida para a Colômbia; depois embarca para os Estados
Unidos, logo em seguida, para a Suíça e, finalmente, para o Brasil, país em que fixa moradia
até os dias atuais. Essas mudanças também a obrigam a conhecer diversas línguas, falando
português, francês, espanhol, suíço-alemão, denominado de schwiizerdütsch, mas é em
inglês que se sente segura para empreendimentos mais exigentes – como traduzir trechos de
Jorge Amado‖ (GÓES, 2009, p. 215).
As mudanças de cidades também lhe custaram caro; a adaptação a uma nova cultura
e língua desconhecida não era fácil, principalmente nos primeiros dias de aula, e as
zombarias das outras crianças: o bullying enfrentado por ela era constante, levando Maureen
Bisilliat a ser afastada da escola para assistir a aulas particulares por não suportar mais tais
insultos, por ser uma criança em um país estranho e com dificuldades de assimilar essa nova
cultura.
166 É autora de livros de fotografia inspirados em obras de grandes escritores brasileiros: A João Guimarães
Rosa, 1969; A Visita, 1977, sobre o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987); Sertão,
Luz e Trevas, 1983, no clássico de Euclides da Cunha (1866 - 1909); O Cão sem Plumas, 1984, poema de
mesmo título de João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999); Chorinho Doce, 1995, com poemas de Adélia Prado
(1935); e Bahia Amada Amado, 1996, com seleção de textos de Jorge Amado (1912 - 2001). Em 1985 expõe em
sala especial na 18ª Bienal Internacional de São Paulo um ensaio fotográfico inspirado no livro O Turista
Aprendiz, de Mário de Andrade (1893 - 1945). Merecem ainda menção as obras de sua autoria: Xingu Território
Tribal, 1979, e Terras do Rio São Francisco, 1985. A partir da década de 1980, dedica-se ao trabalho em vídeo,
com destaque para Xingu/Terra, documentário de longa-metragem rodado com Lúcio Kodato na aldeia
mehinaku, Alto Xingu. Em 1988, é convidada pelo antropólogo Darcy Ribeiro (1922 - 1997), com Jacques
Bisilliat (seu segundo marido) e Antônio Marcos Silva (seu sócio), a levantar um acervo de arte popular latino-
americano para a Fundação Memorial da América Latina. Viaja com Jacques para o
México, Guatemala, Equador, Peru e Paraguai para recolher peças para a coleção permanente do Pavilhão da
Criatividade, do qual é curadora. ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL – ARTES VISUAIS. MaureenBisilliat.
Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&c
d_verbete=2768>. Acesso em: 3 de julho de 2011.
217
Maureen Bisilliat em 1952 viaja pela primeira vez ao Brasil para se encontrar com seu
namorado, catalão, apelidado de Jepton, cujo nome verdadeiro era José Antonio Carbonell.
Nesse período na América do Sul, faz uma visita ao seu pai, Adolfo Scilingo, que se
encontrava na Argentina. Nesse momento de crise existencial, Maureen Bisilliat enfrentava
―uma perda territorial por não saber o que fazer na vida‖ (GÓES, 2009, p. 215).
Em suas andanças pela cidade de Buenos Aires, descobre por acaso o interesse pela
pintura ao ver uma aula de desenho com um modelo vivo em uma escola de arte portenha.
Mesmo antes de casar, no início de sua vida adulta, Maureen Bisilliat já demonstrava certo
descontentamento por não saber qual rumo tomar na vida. De forma crítica, sem se lamentar,
segundo suas próprias palavras: — ―Tinha chegado o fim da adolescência sem conseguir
formular nenhum projeto e vivia, com grande angústia, essa indefinição: até para poder se
libertar é preciso existir, e eu não existia. Eu não servia para nada‖. Nesse mesmo ano casa-se
com Jepton, em Buenos Aires.
A palavra escrita e as imagens em Maureen Bisilliat
A obsessão e o interesse pelas palavras e imagens surgem muito cedo, ainda na
infância de Maureen Bisilliat. Ela sabia da importância e da necessidade de escrever
corretamente, devido aos constantes estranhamentos que a língua lhe impusera.
As imagens de paisagens inconscientes das rochas que faziam parte de sua
ancestralidade, imagens monolíticas de pedras reencontradas em diversos locais como em
museus ou em praias brasileiras, perseguiam-na; no entanto, só seriam desvendadas mais
tarde, em conversa com o escritor brasileiro João Guimarães Rosa sobre Grande Sertão:
Veredas. Vejamos com sua biógrafa:
Os embates com a palavra escrita começaram cedo. ―Lembro de minha ansiedade
aos cinco anos de idade, num pequeno apartamento em Londres – onde estávamos
com minha avó -, para que minha mãe viesse corrigir algo que escrevi‖, relata.
Numa vida escolar tão acidentada, saber escrever foi sempre sua principal
ferramenta para a aprovação, mas seus olhos já fixavam algumas das imagens que
iriam acompanhá-la por toda a vida. A ideia de plenitude, por exemplo, ficou
associada às rochas negras de uma praia de Cardiff, no País de Gales, onde esteve
com os pais...Mais tarde, ela encontraria associações mais remotas com as rochas.
―Parte de minha mãe vinha do oeste da Irlanda, uma região marcada por enormes
extensões de pedras escuras.‖ Reencontrou essas formas ora em museus, nos
volumes monolíticos da antiquíssima arte suméria que a hipnotizavam, ora em
paisagens amenas como o mar de Salvador (GÓES, 2009, p. 215).
O alumbramento com a descoberta da pintura, em Buenos Aires, levou-a a dedicar
cerca de sete anos de estudos consecutivos a essa arte. Em 1955, aos 24 anos de idade,
218
Maureen Bisilliat parte para Paris com a finalidade de estudar pintura no ateliê do pintor e
escultor cubista André Lhote: ―foi pintor e teórico, sua prática artística foi permeada pelos
textos onde elaborava suas teorias sobre a pintura... dois textos fundamentais produzidos pelo
artista: De la Composicion Classique (1917) e De la Nécessité des Théories (1919)‖ (LINO,
2004, p. 22).
Considerado uma influente personalidade no mundo das artes, atuando também como
professor e crítico de arte, coincidentemente foi o mesmo pintor que ensinou os primeiros
passos da pintura ao francês Henri Cartier-Bresson. Juntamente com sua amiga Ann Bagley,
cujo nome artístico é Henrietta Montooth, Maureen Bisilliat realiza essa viagem a França,
com intuito de ampliar seus conhecimentos artísticos. No depoimento a Marta Góes, ela relata
que:
[...] passaram três meses em Paris de 1955, estudando na academia de André Lhote,
pintor cubista, que teve, entre seus alunos brasileiros, Tarsila do Amaral e Iberê
Camargo, e, entre os franceses, o futuro fotógrafo Henri Cartier-Bresson. Lá, as duas
frequentaram museus, livrarias e bares, respirando o mesmo ar enfumaçado que os
ídolos do momento. ― Se você fosse ao café Les Deux Magots, poderia ver Juliette
Greco numa mesa próxima, se subisse ao primeiro andar de um pequeno bar na rue
Jacob, podia ouvir Georges Brassens tocando e cantando chansons da época‖
(GÓES, 2009, p. 217).
Retornando a São Paulo em 1956, e atuando como artista ainda de forma amadora,
Maureen Bisilliat começa a frequentar galerias de estudantes, como a Galeria Prestes Maia,
por sugestão de seu marido, Jepton. A fotógrafa, ao voltar a São Paulo, estuda com o artista
plástico Karl Plattne. Em suas contínuas andanças artísticas, ela embarca em seguida com sua
fiel companheira Bagley aos Estados Unidos, num momento de grandes experiências
artísticas naquele país, como os movimentos de contracultura da geração beatnik, de Jack
Kerouac, e na fotografia de Robert Frank, como já foi abordado no primeiro capítulo. Sobre a
viagem de Maureen Bisilliat aos Estados Unidos, Góes relata:
Em 1957, novamente em companhia de Ann, Maureen viajou a Nova York para
estudar na Art Students League, com Morris Kantor. Maureen recorda...Anos de
tremendo rigor em que nós jovens principiantes, espiávamos De Kooning num
boteco na Terceira Avenida, Thelonious Monk num bar, ao piano, sem alarde, sem
mistificação, tocando pelo simples prazer de tocar. O que tipifica esse tempo é a
sensação de primeira vez, de primeiro encontro, de primeira viagem, num mundo
aberto à descoberta. Um tempo no qual as mudanças de comportamento foram
provocadas pelos jovens – pela beat generation e pelos hippies, que acreditavam
numa maneira de viver autêntica, sem a intenção de influenciar ou serem
influenciados, mas simplesmente por acharem essa maneira boa de viver (GÓES,
2009, p. 217).
219
No final da década de 50, mesmo com uma bagagem de aprendizagem artística
oriunda da arte do desenho e da pintura, certa angústia continua a perseguir a artista, um vazio
inquietante em sua vida. Ela ainda não havia encontrado seu verdadeiro ofício, o de
fotografar. Foi com seu primeiro marido, Jepton, que ela se iniciou na arte fotográfica, de
forma bem insegura nos primeiros dias, até mesmo ao apertar o botão disparador, o
obturador167
. Maureen Bisilliat muitas vezes enquadrava o motivo que ela queria fotografar e
logo em seguida chamava seu marido para apertar o botão disparador da câmera fotográfica.
Maureen Bisilliat aos poucos assimila a técnica do ato fotográfico. Apesar de sua
resistência e insegurança ao trabalhar com equipamentos mecânicos, em pouco tempo
consegue realizar também as revelações dos negativos em preto-e-branco e ampliações de
suas próprias fotos nas dependências de sua casa, utilizando-se do próprio banheiro como
laboratório fotográfico. Apesar das dificuldades técnicas no manuseio da câmera fotográfica,
uma das suas primeiras imagens aconteceu, em 1953, numa viagem com o marido ao interior
de São Paulo, em que realizou uma foto de uma família de descendentes de japoneses, o que
já demonstrava o seu interesse pela imagem fotográfica mesmo antes da pintura, como ela
relata: ―Primeira ―foto‖168
(Fotografia 63): Um dia, nos anos 1950, numa viagem ao interior
de São Paulo, beirando o Estado do Paraná, fiz essa foto de uma família nissei de plantadores
de algodão, intuindo nela o que significaria, para mim, o ato de fotografar‖ (BISILLIAT,
2009, p. 6)
Seu interesse pelo universo feminino, objeto de estudo de nosso trabalho, será
demonstrado em Grande Sertão: Veredas, sua primeira tradução literária em imagens
fotográficas. No entanto, algumas imagens já são apresentadas em seus primeiros trabalhos,
como o retrato de um universo singular do arquétipo feminino, a figura da mãe, uma jovem
nissei, com seu filho na cozinha (Fotografia 63). É que, em suas traduções que reverberam o
feminino, deve haver ligação com a palavra, saber compreendê-la: ―a palavra pertence a
outras esferas, você simplesmente compreende, simplesmente ‗sabe‘. Eu compreendi
instantaneamente, e aí pensei que gostaria de ver aqueles lugares, de andar por aqueles Gerais
de Guimarães‖.169
A literatura rosiana foi um ponto de partida em sua jornada, uma ligação
167
Dispositivo destinado a realizar a exposição da emulsão à imagem óptica formada pela objetiva durante o
tempo de exposição necessário (EHRLICH, 1986, p. 193). 168
A primeira de suas fotos ainda é mais importante. Com ela, Maureen Bisilliat diz ter compreendido o ato de
fotografar. A imagem foi feita em preto e branco nos anos 50, entre nisseis plantadores de algodão. Na humilde
cozinha campesina, a mãe usa a faca diante da janela aberta à luz. Um menino cujo rosto não vemos deitado
parcialmente o corpo sobre a bancada em direção à mulher com a faca, como se a ela se entregasse, em
sacrifício. 169
DEMARCHI, Célia. Como espelhar o inexplicável? Disponível em:
<http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo/artigo.cfm?Edição_Id=386&breadcru... >. Acesso
em: 6 jul. 2011.
220
espiritual com o Brasil e com a sua arte. Numa ligação entre ―pontos de interesses: desenho
com fotografia, através do corpo humano; e intimidade do corpo com a palavra, através da
literatura. [...] Grande Sertão: Veredas teve em mim o impacto de um assombro‖
(BISILLIAT, 2009, p. 219-220).
(Fotografia 63) – Migrante nissei. São Paulo, Maureen Bisilliat170
O interesse pela fotografia é notório, pois Maurren Bisilliat, com resistência a operar
um meio mecanizado, o aparelho fotográfico, através do assessoramento do marido e devido à
sua inquietação, continua a estudar artes plásticas, mas começa aos poucos a abandoná-la.
Segundo o fotógrafo e colunista da Folha de São Paulo, Juan Esteves, foi devido a sua
angústia diante de uma tela branca, da mesma forma que um poeta diante de uma folha de
papel em branco, que Maureen abandonou a pintura e converteu-se em fotógrafa:
Ela justifica o abandono da pintura e o início de um trabalho fotográfico que a
tornaria reconhecida no Brasil e no exterior: ―Fiquei sem saber o que dizer a uma
tela branca!‖. Perdeu a arte, ganhou a fotografia? Difícil afirmar. Seu
documentarismo tem muito de artístico e seu fotojornalismo não era apenas
informativo. Suas reportagens instigavam, provocavam estese através de um viés até
o momento muito pouco explorado: aquele cuja cor é uma forma e um conceito.
Também o inusitado de suas pesquisas e suas explorações cromáticas ainda hoje
desconcerta os menos familiarizados com seu poderoso vocabulário imagético.171
170
(BISILLIAT, 2011, p. 7) 171
ESTEVES, Juan. A cor mais brasileira! Disponível em:<http://paratyemfoco.com/blog/2010/03/a-cor-
mais-brasileira-por-juan-esteves/>. Acesso em: 9 de outubro de 2011.
221
Em 1957, decide se fixar no Brasil definitivamente, obtendo visto permanente em
1963. Em entrevista a Federico Mengozzi (2004): ―o Brasil foi uma procura de raízes, que eu
não tive quando criança. Nasci na Inglaterra, sim, mas vivi em muitos lugares. Meu pai era
diplomata, o que me obrigou a uma vida meio camaleônica. O destino me amarrou ao Brasil.
Foi um ficar querendo.‖172
O ano seguinte, 1958, foi um ano conturbado para Maureen Bisilliat, que culmina com
sua separação. Neste mesmo ano parte para os Estados Unidos, permanecendo meses em
Nova Iorque, cidade em que tentou algumas profissões sem muito sucesso, como ser atriz na
Broadway. Já em território brasileiro pensava também em ser escultora, o que leva a crer, pela
afirmação de sua filha Kyra, que estava sempre on the road, com o pé na estrada ou pela
estrada afora. Kerouac explica sua história: ―[é] sobre dois caras que pegam carona... em
busca de algo que eles não conseguem realmente encontrar, e assim se perdem na estrada e
fazem todo o caminho de volta na esperança de encontrar alguma coisa‖ (CUNNEL apud
KEROUAC, 2009, p. 12).
Maureen Bisilliat tinha essa necessidade de pegar a estrada, de liberdade em uma
sociedade preconceituosa com uma geração marginal, subterrânea, como dizia Kerouac, em
busca de novas experiências. No entanto, com essa nova descoberta, a fotografia surge como
um verdadeiro antídoto para sua monotonia, aflições e inquietudes. Maureen Bisilliat se sente
mais segura e dedica-se plenamente ao universo fotográfico, chegando mesmo a abandonar a
pintura nos idos de 1962.
Depois de seis anos de casamento, quando Kyra tinha dois anos, Maureen e Jepton
se separam. Ele levou a filha à Espanha e ela embarcou para New York. Meu pai era
um businessman de terno e de gravata e minha mãe, a beat woman que é até hoje‖
comenta Kyra, que vive em Barcelona e é produtora musical de bandas famosas,
como Buena Vista Social Club. ―Só consegui acreditar que aquela família de fato
existiu quando recuperei, recentemente, uma foto de nós três.‖ (GÓES, 2009, p. 218)
O universo do fotojornalismo de Maureen Bisilliat
As primeiras experiências profissionais de Maureen Bisilliat se deram no universo do
fotojornalismo. Ainda nos Estados Unidos, realiza trabalhos nos idos de 1960 para uma
172
MENGOZZI, Federico. Entrevista: conversa com Maureen Bisilliat. Disponível em:
<http://memorial.org.br/revistaNossaAmerica/21/port/64-brasilidade.htm>. Acesso em: 10 de out. 2011.
222
agência, The New York Times, como freelance. Por acaso ela encontra alguns amigos que
estiveram hospedados em sua casa em São Paulo. Marta Góes explica que:
Eles conheciam um agente que, naquele momento, procurava um fotógrafo para
cobrir a destruição causada por um violento terremoto no Chile. A encomenda era da
revista do The New York Times, e Maureen aceitou-a de imediato, embora
timidamente. Esse trabalho iria se tornar um pesadelo em sua vida, mas não pelas
previsíveis dificuldades de uma fotojornalista inexperiente num cenário de
destroços, que ela enfrentou, mas porque, inexplicavelmente, os rolos de filme que
ela despachou por via aérea extraviaram-se e só chegaram a sede do jornal, em nova
York, 15 anos depois!! Mas o desastre voltaria, de tempos em tempos, a assombrá-
la: perder filmes, atrapalhar-se com equipamentos, esquecer sua filmadora no metrô
de Paris, deixar num táxi os cromos selecionados para um livro sobre a Bahia.
(GÓES, 2009, p. 219)
De volta ao Brasil, no início dos anos 60, em um evento social, Maureen Bisilliat se
encontra novamente com o francês Jacques Bisilliat. Na primeira vez que se conheceram
Maureen Bisilliat ainda era casada com o espanhol Jepton, assim como Jacques também era
casado. Nesse segundo momento, os dois então separados; logo se casam e resolvem morar
em São Paulo. Com a presença de Jacques, aos poucos a paisagem brumosa em que Maureen
Bisilliat se sentia imersa começa a se dissipar; a firmeza de Jacques a induzia a seguir seu
próprio caminho, a enfrentar os seus próprios demônios e temores, descobrindo as próprias
potencialidades criativas. Começa a fazer ligação dos pontos de interesse entre a pintura e a
fotografia e sua aplicação profissional. Marta Góes relata essa passagem em uma entrevista:
Mas, como sempre digo, ao enfrentar o desconhecido, você vai aprendendo a ter
autonomia, vai vencendo as complicações e o caos, vai adquirindo consciência de
que você também precisa se conscientizar. Jacques era uma pessoa carinhosa,
envolvente, meio urso; falava pouco e percebia tudo. Levava você a andar nos
trilhos. (GÓES, idem, ibidem)
Maureen Bisilliat passa a se dedicar intensamente ao ato fotográfico, tanto que em
pouco tempo, em 1966, consegue realizar sua primeira exposição fotográfica individual,
denominada ―Pele Preta‖. O trabalho, que resultou numa exposição no MAM-SP em 1966, já
prenunciava o olhar anticonvencional de Maureen Bisilliat. ―Naquela época, fotografar uma
modelo negra era uma inovação‖, diz a psicóloga Eda Tassara, amiga e parceira de trabalho
(GÓES, 2009, p. 220).
A temática explorada por Maureen Bisilliat, como afirma a amiga Tassara, é bastante
ousada e novamente apresenta como uma das principais modelos uma mulher negra, sendo
ressaltados vários recortes do torso nu. Uma série de trinta imagens que estão bastante
caracterizadas pelo academicismo de leituras de anatomia, iluminação e movimento com
modelo vivo, quando estudava em ateliês e começou a estudar artes plásticas (Fotografia 64).
223
(Fotografia 64) Do ensaio fotográfico Pele preta, Maureen Bisilliat.
Maureen Bisilliat transita simultaneamente nesse período no fotojornalismo e na
fotografia autoral com seus ensaios, e muitos desses trabalhos foram utilizados no
fotojornalismo. Em seguida, a artista é convidada pela Editora Abril para trabalhar como
fotojornalista de uma revista chamada Realidade e na revista Quatro Rodas. Sobretudo na
revista Realidade, Maureen Bisilliat se destacará, aplacando enfim as suas angústias. ―E ela
agora exercia um ofício com esmero e pertencia a um universo profissional bem configurado‖
(GÓES, 2009, p. 220). Além da postura editorial da revista, como temas polêmicos, e uma
relação direta com o jornalismo literário, algo que se tornou uma constante na obra da
fotógrafa, havia a sua relação com a literatura: ―Maureen Bisilliat trouxe para a fotografia a
possibilidade de entender nossa cultura a partir da perspectiva da literatura‖ (FERNANDES
JUNIOR, 2003, p. 153). Das tímidas primeiras fotografias nos idos de 1950 às 16.251173
imagens que foram incorporadas ao Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, foi longo o
percurso.
173
O acervo de Maureen Bisilliat foi incorporado ao Instituto Moreira Salles em dezembro de 2003 e tem 16. 251
imagens. Além de ceder seus negativos em preto-e-branco e cromos, a fotógrafa tem participado da curadoria e
arranjos do conjunto. Disponível em:
<http://ims.uol.com.br/hs/maureenbisilliat/maureenbisilliat.html>. Acesso em 20 de jul. 2011.
(Anexo 1) CLASSIFICAÇÃO ISOTÓPICA DAS IMAGENS (G. DURAND)
REGIMES OU
POLARIDADES
DIURNO
NOTURNO
Estruturas
ESQUIZOMÓRFICAS (ou heroicas)
1ª idealização e ―recuo‖ autístico. 2ª diairetismo (Spaltung).
3ª geometrismo, simetria,
gigantismo. 4ª antítese polêmica.
SINTÉTICAS (dramáticas)
1ª consciência (oppositorum) e sistematização.
2ª dialética dos antagonistas,
dramatização. 3ª historização.
4ª progressismo parcial (ciclo) ou
total.
MÍSTICAS (ou antifrásicas)
1ª redobramento e perseveração.
2ª viscosidade, adesividade
antifrásica. 3ª realismo sensorial
4ª miniaturização (Gulliver)
Princípios de
explicação e de
justificação ou lógicas.
Representação objetivamente
heterogeneizante (antítese) e
subjetivamente homogeneizante (autismo). Os Princípios de
EXCLUSÃO, de CONTRADIÇÃO,
de
IDENTIDADE funcionam
Plenamente.
Representação diacrônica
que liga as contradições pelo
fator tempo. Princípio de CAUSALIDADE, sob todas as suas
formas (espec. FINAL e
EFICIENTE), funciona plenamente.
Representação objetivamente
homogeneizante (preservação)
e subjetivamente heterogeneizante (esforço
antifrásico). Os Princípios de
ANALOGIA, SIMILITUDE
funcionam plenamente.
Reflexos dominantes
Dominante POSTURAL com os
seus derivados manuais e o adjuvante das sensações à
distância (vista, audiofonação).
Dominante COPULATIVA com
os seus derivados motores rítmicos e os seus adjuvantes
sensoriais (quinésicos, músico-
rítmicos, etc).
Dominante DIGESTIVA com
os seus adjuvantes cenestésicos,
térmicos e os seus derivados
táteis, olfativos e gustativos.
Esquemas ―verbais‖
DISTINGUIR
Separar ≠ Subir ≠
Misturar Cair
LIGAR
Amadurecer Voltar
Progredir Recensear
CONFUNDIR
Descer, Possuir, Penetrar
Arquétipos ―atributos‖
Puro ≠ Alto ≠ baixo Manchado
Claro ≠ Escuro
Para a frente, Recensear, Futuro Passado
Profundo, Calmo, Quente, Íntimo, Escondido
Situação das
―categorias‖ do
jogo de Tarô
O GLÁDIO
(O CETRO)
O PAU
O DENÁRIO
A TAÇA
Arquétipos substantivos
A Luz ≠ As Trevas
O Ar ≠ O
Miasma. A Arma Heroica
≠ A Atadura.
O Batismo ≠ A Mancha.
O Cume ≠ O Abismo.
O Céu ≠ O
Inferno. O Herói ≠ O
Monstro.
O Anjo ≠ O Animal.
A Asa ≠ O
Réptil.
O Fogo – chama. O Filho.
A Árvore.
O Germe.
A Roda. A Cruz.
A Lua.
O Andrógino. O Deus plural.
O Micro-cosmo.
A criança,
o Polegar. O Animal
gigogne.
A Cor. A Noite.
A Mãe.
O Recipiente.
A Morada. O Centro.
A Flor.
A Mulher. O
Alimento.
A Substância.
Dos símbolos aos
sistemas
O sol, O azul
celeste, O Olho
do Pai, As Runas, O
Mantra,
As armas, A Vedação,
A Circuncisão,
A Tonsura, etc.
A escada de
mão,
A escala, O Bétilo,
O Campanário,
O Zigurate, A Águia,
A Calhandra,
A Pomba, Júpiter, etc.
O Calendário, A Aritmologia, a
Tríade, a Tétrade, a Astrologia
O Ventre,
Engolidores e
engolidos, kobolds,
dáctilos, osíris,
As Tintas, As Pedras
Preciosas,
Melusinas, O Véu, O Manto,
A taça, O
Caldeirão, etc.
O Túmulo,
O Berço,
A Crsalida, A Ilha,
A
Cavernas, O
Mandala,
A Barca, O saco, O
Ovo,
O Leite, O Mel,
O Vinho,
O Ouro, etc
A iniciação, O
―Duas- vezes
nascido‖, A
Orgia, O
Messias, A Pedra Filosofal, A
Música, etc.
O sacrifício
O Dragão
A espiral,
O caracol, O urso,
O Cordeiro, A
Lebra, A Roda de fiar,
O Isqueiro, A
Baratte, etc.
Fonte: (DURAND, 2002, p. 441- 443)
GLOSSÁRIO
Câmera obscura (câmera escura) - Do latim ―camera obscura‖: sala ou caixa mantida na
obscuridade e com uma pequena abertura num dos lados. A luz que entra por esta abertua
forma na parede oposta uma imagem invertida dos objetos exteriores (EHRLICH, 1986, p.
46).
Chiaroscuro - it. chiaroscuro (a1519 chiaro scuro), (1550) 'procedimento pictórico que
reproduz a passagem da luz à sombra', form. chiaro 'claro' + scuro 'escuro'. In: Grande
Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=chiaroscuro>. Acesso 25 de maio 2014.
Claro-escuro - substantivo masculino ( 1875)
1 art.plást em pintura, desenho ou gravura, impressão que o contraste dos claros com os
escuros causa no observador. 2 art.plást fot em pintura, desenho, fotografia etc., imitação dos
efeitos de contraste produzidos sempre que certas partes de um lugar, pessoa ou objeto
recebem luz, ao passo que outras permanecem mais ou menos na sombra. 3 art.plást processo
de pintar ou desenhar em que os efeitos se produzem unicamente com os diversos tons de
preto e branco ou de branco e outra cor escura, sem mistura das demais cores. 4 art.plást estilo
em que predominam tais efeitos ‹ Rembrandt foi um mestre do c. ›. 5 claridade atenuada, luz
sombreada, lusco-fusco ‹ o c. do anoitecer ›. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua
Portuguesa. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=claro-escuro>.
Acesso 25 de maio 2014.
Close - Tomada em que a câmera, quer distante ou próxima do assunto, focaliza apenas uma
parte dele (p.ex., enquadra apenas o rosto de um personagem, ou somente parte de um objeto
etc.); close, close shot, primeiro plano, grande plano. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da
Língua Portuguesa. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=close-up>.
Acesso 25 de maio 2014.
Contraluz (Iluminação a Contraluz) – Técnica e feito de se dar luz ao assunto de tal modo
que este fique colocador entre a fonte de iluminação e a máquina fotográfica. Salienta os
contornos mas dá contraste e sombras fortes (EHRLICH, 1986, p. 135).
Contre-plongée ou contreplongée - Tomada de câmara efetuada de baixo para cima; câmara
baixa. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível
em:<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=contre-plong%25C3%25A9e>. Acesso 25
de maio 2014.
Díptico - Conjunto de duas obras congêneres, do mesmo autor, que se completam. In: Grande
Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=d%25C3%25ADptico>. Acesso 25 de maio
2014.
Extraquadro - As teorias sobre a fotografia discutem com freqüência o espaço representado
no extra-quadro, aquilo que se faz presente na interpretação da imagem. A fotografia e as
representações do tempo, excluído pelo corte do enquadramento (MACHADO, 1983, p. 76-
90).
227
Plongée, que significa mergulho em francês, é também conhecido como Câmera Alta, é o
termo usado para definir um tipo de enquadramento em que a câmera filma o foco principal
da cena de cima para baixo, situando o espectador em uma posição mais acima do objeto,
olhamos a imagem como se estivéssemos mais altos, olhando de cima. Disponível em:
<http://www.curtasmetragens.com.br/index.php/o-que-e-plongee-e-contra-plogee/>.
Acesso em 19 de nov. 2013. Tomada de câmara efetuada de cima para baixo; câmara alta. In:
Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=plong%25C3%25A9e>. Acesso 25 de maio
2014.