Post on 23-Feb-2023
LINGUAGEM DO SEBASTIANISMO E MESSIANISMO EM
BANDARRA E FERNANDO PESSOA
Rui Dias GuimarãesCentro de Estudos em Letras – CEL
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - Portugal
rguima@utad.pt
A religião é a única poesia verdadeira
(Teixeira de Pascoaes)
RESUMO
O rei português D. João III (1502-1557) teve nove filhos, e em
1554 morrera o último deles, deixando a princesa viúva, grávida de
nove meses. Por volta de 1530 começaram a circular as Profecias de Bandarra
que aludiam ao rei Desejado. Dezoito dias após a morte do Príncipe seu
pai, nascera D. Sebastião (1554-1578). Foi aclamado rei com três anos
e meio de idade. Mas foi sol de pouca dura. Com vinte e quatro anos, o
jovem rei D. Sebastião morrera na batalha de Alcácer Quibir, em 1578.
As Profecias de Bandarra, escritas por Gonçalo Annes Bandarra (1500-
1556) sapateiro de Trancoso, assentam em profecias bíblicas do Antigo
Testamento. Foram editadas pela primeira vez em Paris, em 1603, após a
morte de D. Sebastião, já com a perda da independência para Espanha.
Nascera o sebastianismo como mito messiânico, o de um rei Desejado.
Restaurada a independência de Portugal em 1640, volta a surgir uma
edição em 1644, publicada em Nantes. Edições com ligeiras alterações
que se sucederam até ao séc. XVIII.
A linguagem da comunicação profética visa passar uma intenção
(Journet, N. : 1991, 57) num texto com um tipo de construção própria
(Van Dijk, T. A.: 1978, 142) em que a macroestrutura é o conteúdo do
texto (idem, ibidem), no discurso humano (Todorof, T.: 62),
caracterizando o género profético, numa dimensão escatológica voltada
para o futuro (Ricoeur, G.: 534), na união entre escatologia e
profetismo (Le Goff, J.:1984: 428) no escháton ou acontecimento final
(Haddad: 1981:5). Os símbolos e o método alegórico são profusamente
utilizados (Elíade, M. : 1954, 10-11) e a definição do homem como
animal simbólico (Coseriu, E.: 1985, 71) quando a mente explora um
símbolo, é conduzida para algo que está fora do alcance da nossa razão
(Jung: 1964, 20-21) que o eleva para o transcendente. Alguns símbolos
das Profecias de Bandarra foram colhidos na Bíblia, Antigo Testamento, com
a construção de uma linguagem simbólica de alegorias. Fernando Pessoa
considera Bandarra um autor colectivo e tomou a liberdade de criar um
Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra mantido inédito no espólio e,
juntamente em Mensagem, emerge o mito universal do sebastianismo
messiânico com o mito do Quinto Império e o símbolo da pomba nos
poemas místicos Gládio e Além-Deus.
PALAVRAS-CHAVE: Filologia, símbolo, signo e lesisigno, linguagem da
comunicação profética, sebastianismo, messianismo, Bandarra, Fernando
Pessoa.
THE LANGUAGE OF SEBASTIANISM AND MESSIANISM IN BANDARRA AND FERNANDO PESSOA
ABSTRACTThe Portuguese King D. João III (1502-1557) had nine sons, the last ofwhom died in 1554, leaving a widowed princess who was then nine monthspregnant. Around 1530, the Profecias de Bandarra, which alluded to theDesired king, was gaining currency. Eighteen days after the death ofhis father (the Prince), D. Sebastião (1500-1578) was born. He wasacclaimed king at the age of three and a half, but he did not lastlong. At twenty-four, the young D. Sebastião died in the battle ofAlcácer-Quibir, in 1578.The Profecias de Bandarra, written by Gonçalo Annes Bandarra (1500-1536), ashoemaker from Trancoso, was based on the Biblical prophesies of theOld Testament. It was first edited in Paris in 1603, after the deathof D. Sebastião, at a time when Portugal had already lost her
2
Independence to Spain. Sebastianism had been born with a messianicmyth, that of the Desired king.With the restoration of Portuguese independence in 1640, there wasanother edition in 1644, published in Nantes. There was a successionof slightly altered editions up to the 18th century.The language of prophetic communication aims at conveying an intention(Journet, N.: 1991, 57) in a text sui generis (Van Dijk. T. A.: 1978,142) in which the macro-structure is the content of the text (idem,ibidem). Symbols and the allegorical method are profusely utilized(Eliade, M.: 1954, 10-11) and the definition of man as symbolic animal(Coseriu E.: 1985) when the mind explores a symbol, leads to somethingwhich is beyond the reach of our reason (Jung: 1964, 20-21) whichraises it to the transcendental.The prophetic vein is part of the poetic vein of Portuguese literatureand culture. Some of the symbols of Profecias de Bandarra were drawn fromthe Old Testament the Bible, and incorporated through the constructionof the symbolic language of allegories.Fernando Pessoa considers Bandarra as a collective author and took theliberty to create a Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra which has remainedunpublished. Four centuries after its debut, Profecias de Bandarracontinues to exude prophetic and messianic life and, alongsideMensagem, to explore messianic Sebastianism linked to the myth of theFifth Empire. Fernando Pessoa thus takes up the mystique and symbol ofthe dove in Gládio and Além-Deus.
Key Words: Philology, symbols, language of prophetic communication,sebastianism, messianism, Bandarra, Fernando Pessoa
3
TÌTULO: LINGUAGEM DO SEBASTIANISMO E MESSIANISMO EM BANDARRA E
FERNANDO PESSOA
ÍNDICE
Resumo/abstract……………………………………………………………………………………….1
1. Introdução…………………………………………………………………………………………4
2. A Linguagem da Comunicação Profética e o género
profético…………………………………………………………………………………………...5
2. 1. As Profecias de Bandarra………………………………………………………………………8
3. 2. Linguagem, estrutura, aspectos semânticos e
significado…………………………………….10
4. Sebastianismo como mito universal em Fernando Pessoa……..
………………………………..14
5. Conclusão……………………………………………….……………………………………….19
Referências bibliográficas.……………………………………………………………………………21
4
1. INTRODUÇÃO
Portugal elegeu para seu grande herói nacional, um
poeta – Luís de Camões. Poeta, navegador, soldado. Outros
povos elegeram outro tipo de heróis. Na literatura e
cultura portuguesa fundem-se, por vezes, poesia e profecia.
A poesia da profecia e a profecia da poesia.
Portugal, considerado, por alguns, o mais antigo país
da Europa com as fronteiras definidas, é um país ibérico.
Foi espaço de diversas migrações de povos e de invasões,
começando por referir os celtas, por volta do séc. V a.C. e
a origem dos celtiberos, os romanos no séc. III a.C., a
diáspora judaica após a destruição de Jerusalém em 70 d. C
e os imigrantes judeus com maior ou menor fixação de
semitas, e outras posteriormente, as invasões dos suevos e
visigodos e, por fim, a invasão árabe.
Ao caldeamento histórico-cultural não ficou,
certamente, alheio, o povo português e diversas marcas
culturais ficaram profundamente gravadas, desde as
linguísticas, simbólicas, míticas e místicas; como fôrma de
vários registos que deu formas ou expressões exteriores,
fez nascer o fervoroso cristianismo de santos-guerreiros de
cariz celta, o cristianismo popular português também de
5
raiz celta, origens bíblicas do Antigo e do Novo
Testamento, expressões de sentimentos bíblicos como o
messianismo judaico-cristão, aspectos de arturianismo,
expressões de sentimentos bíblicos medievais, como o
joaquimismo do abade Joaquim da Fiori, que assenta no
milenarismo apocalíptico, ou do espanhol Santo Isidoro,
arcebispo de Sevilha, profecias que já falam no encoberto.
Na cultura portuguesa desenvolveu-se o mito do
sebastianismo e do encoberto de contornos messiânicos, com
uma expressão linguística de léxico simbólico, e formas que
pretendemos estudar, de Bandarra (1500-1556) a Fernando
Pessoa (1888-1935).
A data do achamento do Brasil pelos portugueses foi em
1500. O rei D. João III teve nove filhos. Em 1554 morrera o
último deles, o Príncipe D. João que deixara a princesa
grávida de nove meses com o Desejado no ventre. E o Desejado
nasceu, dezoito dias após a morte do Príncipe seu pai.
Nasceu o neto varão do rei D. João III, D. Sebastião.
A esperança em D. Sebastião, o Desejado, desvaneceu-se na
batalha de Alcácer Quibir, em 1578, com a morte do jovem
rei de vinte e quatro anos e a perda da independência para
Espanha. A partir das anteriores Profecias de Bandarra nasce
uma nova dimensão, o sebastianismo messiânico, após a morte de
D. Sebastião.
Morreu D. Sebastião e nasceu um mito, o sebastianismo.
A sua vida mítica talvez o torne o rei mais imortal de
Portugal.
6
A natureza do problema que pretendemos observar e
formalizar prende-se com o messianismo nas Profecias de
Bandarra que começaram a circular por volta de 1530, antes
do nascimento de D. Sebastião, em cópias quase panfletárias
e que depois conheceram diversas edições, algumas com
alterações segundo os interesses políticos e religiosos,
até ao messianismo sebastianista, quatro séculos depois, em
Mensagem de 1935 de Fernando Pessoa, ou mesmo num
documento mantido inédito no espólio pessoano, pouco
conhecido, que intitulou Terceiro Corpo das Profecias de Gonçalo
Annes Bandarra e também em poemas profundamente místicos como
Gládio e Além-Deus.
Como trabalho prévio, consideramos as diferentes
edições das Profecias de Bandarra e as influências exercidas
pela Bíblia, sobretudo as profecias do Antigo Testamento
(edição dos Franciscanos Lisboa/Fátima e aspectos do Codex
Sinaiticus). Quanto às Profecias de Bandarra, fixamo-nos na edição
do Porto de 1886 e no aumento acrescentado por Fernando
Pessoa.
É também nosso propósito observar os textos numa
perspectiva imanente e isenta, o léxico e linguagem
simbólica no discurso profético, não deixando de emitir
algumas considerações e estabelecer relações intertextuais,
transtextuais ou simbólicas.
2. A LINGUAGEM DA COMUNICAÇÃO PROFÉTICA E O GÉNERO
PROFÉTICO.
7
Importa tecer umas breves considerações teórico-
metodológicas sobre a linguagem da comunicação profética e,
desde já, relacionar a linguagem profética com o discurso e
o género. Segundo Todorov, os géneros literários têm origem
no «discurso humano» (Totorov: 1981, 62).
Na teoria do signo linguístico, Pierce concebe signo
segundo o que representa ou refere, comunica e cria outro
signo como interpretante do primeiro, não em todos os
aspectos mas só com referência a uma ideia específica, grau
de proximidade e relações do que representa ou evoca.
Concebe um tipo de signo que designa por lesisigno,
com força comunicativa e que engloba o símbolo. O lesisigno,
«el signo representa una ley, un hábito de tipo general (terceiridade). A
brancura representando pureza» (Pierce: 1978:228).
Pierce define símbolo, «como un signo que es determinado por
su objeto dinámico solamennte en el sentido de que así será interpretrado. Por
lo tanto, depende de una convención, de un hábito, o de una disposición
natural de su interpretante (el campo del cual el interpretante es una
determinación). Todo Símbolo es necesariamente un lesisigno; seria inexacto
llamar Símbolo a la réplica de un lesisigno.» (Pierce: Idem, ibidem).
Este conceito é interessante para relacionar a linguagem
alegórica, o discurso e a comunicação simbólica.
Contudo, o símbolo intervém em mitos numa linguagem
alegórica e universal. Para Mircea Eliade, «segundo os estóicos,
os mitos revelam visões filosóficas sobre a natureza profunda das coisas, ou
contêm lições de moral. Os múltiplos nomes dos deuses designam uma só
divindade, e todas as religiões exprimem a mesma verdade fundamental: só
varia a terminologia. O alegorismo estóico permite a tradução, numa
8
linguagem universal e facilmente compreensível, de qualquer tradição antiga
ou exótica. O seu sucesso foi considerável, e o método alegórico
frequentemente utilizado desde então» (Eliade: 1954, 10-11).
As Profecias de Bandarra estão repletas de símbolos ou de
lesisignos na acepção de Pierce, e parte da sua estrutura
simbólica está organizada em sonhos. Como afirma Jung,
«uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além
do seu significado manifesto imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um
aspecto “inconsciente”, mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de
todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la.
Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do
alcance da nossa razão»…«o homem também produz símbolos, inconsciente e
espontaneamente, na forma de sonhos.» (Jung: 1964, 20-21).
Considerando o símbolo como um tipo de signo, o
lesisigno, ele encerra também uma força comunicativa na
acepção de Pierce, e segundo o conceito de discurso e de
género de Todorov, modeliza e caracteriza o género
profético que assume particular importância para o estudo
da linguagem da comunicação profética.
Segundo esta articulação, afirma Luís Carmelo: «Daí que
possamos operacionalmente pensar uma noção de género a partir de um
conjunto de lesisignos, mais ou menos estáveis, que condicionam a
interpretação de formas arquétipas e reconhecíveis de actos de fala, no seio de
uma dada comunidade. Nessa medida, é possível caracterizar o género
profético como uma amálgama de discursos discursivos, modalizados durante
séculos nas suas dominantes expressivas e de conteúdo» (Carmelo, L.:
1993, 2).
9
Mais que debruçadas sobre a língua em si mesma, as
novas ciências da linguagem chamam a sua atenção mais ao
uso e à intenção que nós fazemos dela, incluindo a
linguagem simbólica. Para elas, «signifier c´est s´appuyer sur une
situation, et comuniquer, c´est faire passer une intention» (Journet, N.:
1991, 57) daí considerarmos pertinentes as especificidades
intrínsecas à linguagem da intenção da comunicação
profética.
Segundo as diferentes tipologias textuais, diferentes
são as intenções de comunicação, incluindo a linguagem do
discurso do género profético: «Estes diferentes tipos de textos se
diferencian todos entre si, no solo por sus diferentes funciones comunicativas y,
por ello también, por sus funciones sociales, sino que además poseen
diferentes tipos de construcción.» (Van Dijk, T. A.: 1978, 142).
A linguagem da comunicação profética, como um conjunto
de símbolos ou lesisignos caracterizadores do género
profético inclui, por um lado, a parénese como exortação do
domínio da moral, a condenação e denúncia de injustiças e
de crueldades e prescrição de deveres; por outro.
Os diferentes tipos de textos estão ligados à sua
específica função comunicativa social, implicando a sua
própria construção, criando diferentes tipos de estruturas,
super-estruturas e estruturas globais que caracterizam o
tipo de texto, como é o caso da profecia, «para decirlo
metaforicante: una superstructuta es un tipo de forma del texto, cuyo objecto,
el tema, es decir: la macroestructura es el contenido del texto. Se debe
comunicar, pues, el mismo sucesso en diferentes “formas textuales” según el
10
contexto comunicativo» (Idem, ibidem). Surgem tipos textuais de
comunicação profética.
A comunicação profética abre visões de futuro no
sonho, no onírico, no sagrado, no divino, uma projecção
escatológica na narração apocalíptica ou mesmo póstuma das
almas e uma visão de futuro. A escatologia, ao abrir a
visão da profecia, transgride a narrativa mas abre visões
de futuro, como afirma Jacques Le Goff, «escatologia e
profetismo uniram-se muitas vezes, estabelecendo uma relação entre a
primeira fase do fim dos tempos e a história presente e imediatamente futura»
(Le Goff, J.: 1984: 428). É o que se pode observar nas
Profecias de Bandarra.
As relações entre escatologia e profetismo tornam-se
possíveis, porque a linguagem é uma actividade simbólica e
o homem um animal simbólico, (Coseriu, E.: 1985, 71).
Estes dois aspectos, aliados a parábolas, alegorias e
metáforas, mais simples e de entendimento popular e também
aos simbolismos e enigmas, com encaixes históricos à espera
de revelação, mais ocultos; de cariz mais culto e erudito,
hermético e evocativo, constituem a base da linguagem da
comunicação profética.
De entre as diferentes profecias e simbologias,
interessa-nos particularmente focar as Profecias do Bandarra
que em muitos aspectos cruciais se articulam com o mito do
sebastianismo e o messianismo.
2.1. AS PROFECIAS DO BANDARRA.
11
Gonçalo Annes de Bandarra (1500-1556) foi um poeta
popular de Trancoso, cidade portuguesa do distrito da
Guarda, na sub-região da Beira Interior Norte, onde nasceu
e morreu. Era sapateiro de profissão.
Na época, Trancoso era uma comunidade com um peso
acentuado de cristãos-novos. As suas trovas, de cariz
profético e messiânico, foram proibidas pela Inquisição,
acusado de judaísmo, mas continuaram a circular
manuscritas.
Bandarra foi julgado pela Inquisição em 1541, devido à
publicação das Profecias que circulavam manuscritas. Podemos,
portanto, situá-las nas décadas de 1520-1540.
Para além das suas raízes profundas, o medievismo
também se terá reflectido nas profecias de Bandarra,
sobretudo o milenarismo e o profetismo no advento da Idade
do Espírito Santo, universal e de directa inspiração
divina, do italiano Joaquim da Fiori (1132-1202) abade
cistercense; e do castelhano Santo Isidoro (560-636) bispo
visigodo de Sevilha cujas profecias terão sido passadas a
verso por Fr. Pedro Frias e que referem a figura do
Encoberto, «un rey que non se descubre» (Azevedo, J.
L.:1984, p. 18) ou do alquimista fransciscano francês Jean
de Roquetaillade (séc. XIV) mais conhecido em Portugal por
João de Rocacelsa cujas coplas incluem alegorias de
pastores, vacas, etc e também a figura do Encoberto (Idem,
pp. 20-21).
As Profecias de Bandarra são contemporâneas e, de certo
modo, coetâneas, da Utopia (1516) de Thomas More (1478-1534)
12
- que foi executado por Henrique VIII nesse ano de 1534 e
depois canonizado santo pela Igreja Católica - e também
podem ser consideradas contemporâneas e coetâneas de Os
Lusíadas (1556) de Luís de Camões (1524-1580), provavelmente
concluídos em 1556 e publicados pela primeira vez em 1572.
Após terem circulado manuscritas, foram editadas
postumamente em 1603, em Paris, por D. João de Castro,
Vice-Rei da Índia um dos mais importantes homens de ciência
do século XVI, com o título Paráfrase e Concordância de Algumas
Profecias de Bandarra.
As Trovas foram bem recebidas pelos nacionalistas
portugueses que ansiavam por se libertarem do domínio
espanhol. Viram nestas profecias o regresso do Rei D.
Sebastião. As profecias, difundindo-se nas camadas cultas e
populares, vieram a iniciar o mito do sebastianismo.
Em 1644, quatro anos após a Restauração da
Independência de Portugal, sai uma segunda edição mais
completa, publicada em Nantes, com o título Trovas do Bandarra
apuradas e impressas por ordem de um grande senhor de Portugal, oferecidas
aos verdadeiros portugueses devotos do Encoberto.
Esta edição de Nantes tem o patrocínio de D. Vasco
Luís da Gama, Embaixador de Portugal em Paris, sendo
considerada o modelo das posteriores edições. Voltam a ser
proibidas pela Inquisição em 1661 e pela Real Mesa Censória
em 1768.
Sai nova edição em 1802, em Nantes, patrocinada pelo
Marquês de Nisa. Em 1809 conheceram uma reimpressão, em
13
Barcelona e Londres. Portugal outra vez invadido, agora
pelos franceses. Outra crise.
Em 1815, dois anos antes da Revolução Liberal iniciada
no Porto, conheceram uma nova edição com o título Trovas
Inéditas de Bandarra. Surge uma outra edição entre 1822-1823,
com o título Verdade e Complemento das Profecias, quando surgiu a
primeira Constituição Portuguesa. A obra que serve de base
ao nosso estudo parte da edição do Porto de 1866.
Contudo, Fernando Pessoa, no século XX, sem data
assinalada, acrescenta-lhe uma parte de sua autoria,
intitulada Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra. Este aspecto,
ainda não muito divulgado, está incluído no espólio e foi
descoberto nos inéditos.
2.2. LINGUAGEM, ESTRUTURA, ASPECTOS SEMÂNTICOS E
SIGNIFICADO.
Em breves traços gerais, as Profecias de Bandarra, Sapateiro
de Trancoso, constam de trovas no total de 159 estrofes
heteromórficas que vão de um a dezasseis versos, sendo a
sua maioria quadras e quintilhas, conferindo-lhe um cunho
popular.
São introduzidas por uma dedicatória a D. João de
Portugal, bispo da Guarda. Apresentam uma estrutura com uma
introdução inicial e uma divisão em três sonhos. Essa
introdução: «Sente Bandarra/As maldades do mundo/E particularmente/As
14
de Portugal» apresenta uma identificação com os profetas
bíblicos.
É uma característica dos profetas criticar os males do
mundo e as injustiças, por isso foram perseguidos, e ter
uma visão redentora e de esperança para a humanidade,
através de visões ou sonhos, numa dimensão escatológica.
A introdução inclui onze estrofes, todas quadras. É a
visão da sociedade e do clero, fortemente crítica, com
recurso a um léxico próprio das artes dos cortumes, as
«alcaçarias» e sapataria.
Comparações onde denuncia o uso de simonias e adoração
do dinheiro, o tráfico de coisas sagradas, a existência de
maus noviços na ordem episcopal, as injustiças «sem haver
chefe que mande», uma visão crítica e apocalíptica.
Inspiram-se na Bíblia, no Antigo Testamento, sobretudo
nos profetas Daniel, Isaías e Jeremias, a retoma da
tradição apocalíptica messiânica judaico-cristã.
Pode entender-se como mensagem de subtexto a linha de
força do sebastianismo e da Restauração Portuguesa, dado
estar Portugal sob o domínio castelhano.
Nas suas linhas gerais, o sonho primeiro inclui
visões, mesmo a «Semente d´El-Rei Fernando», uma grande
sementeira genética e de linhagem, que poderá ser entendida
como D. João IV, que viria a ser o rei da Restauração da
Independência em 1640.
O sonho desenrola-se em sucessivas alegorias pastoris,
alusões bíblicas, à vinda messiânica do rei de Jerusalém
(estrofe 20), implicitamente aliada a D. Sebastião, as
15
alegorias dos pastores, das ovelhas e dos lobos e a alusão
ao Pastor Mor (estrofe 22), uma analogia bíblica com o
Genesis onde Deus é chamado de Pastor Mor.
Sucede-se a profecia da vinda do Grande Pastor
(estrofe 25), alusão à conversão dos judeus ou aos filhos
dos judeus que D. Manuel ordenou que retirassem aos pais e
fossem educados por católicos (estrofe 33), as diferentes
personagens, figuras do sonho, são pastores. Celebra-se uma
grande festa e um bailado pastoril que termina com um
jantar.
Da estrofe 60 à 66 aludem as Profecias aos grandes
inimigos reais e, de certo modo, transcendentes, com
símbolos ou lesisignos dentro das alegorias num discurso
característico do género profético, dos pastores e dos
lobos, inimigos aliados de Castela, simbolizados na sua
expressão máxima pelo «grão Porco selvagem» (estrofe 66) que
pretendia iniciar a batalha. Este símbolo ou lesisigno, na
época, evocava a impureza,
É também uma referência aos conflitos no oriente, nas
Índias, onde os grandes inimigos dos portugueses eram os
turcos e os egípcios que rivalizavam no comércio, «Nenhum
porco roncará/Nenhum lobo uivará/ Senão por vosso querer/», afirmam as
Profecias, encerrando-se o sonho primeiro e o diálogo entre
as personagens.
Com o subtítulo «Prognostica o autor os males de Portugal, canta
suas glórias com a aclamação do na Encoberto», entra em cena o
narrador e uma figura nova, o Encoberto.
16
A exaltação de Portugal, do seu poder ultramarino e de
um império universal, com a vinda de um Rei superior
(estrofes 68-71) adensa o mistério do Encoberto.
A ideia do rei desejado, o rei «da justiça e da grandeza»,
«o Rei das passagens/Do Mar, e sua riqueza/» (estrofe 7) cruza-se com
os Livros Proféticos da Bíblia, Antigo Testamento, neste
caso a leitura do profeta Isaías, da «Glória da nova Jerusalém»
em que as riquezas viriam para o povo de Deus (Isaías,
60:5) e a vertente da Restauração da Independência de
Portugal. Pode-se, indirectamente, identificar D. Sebastião
(estrofe 72) e a legitimidade da Restauração e da ascensão
ao trono da Dinastia de Bragança, como viria a acontecer.
Inclui outro símbolo, o Leão: «Já o Leão é experto/Mui
alerto./Já acordou, anda caminho./Tirará cedo do ninho/O porco, e é mui
certo./Fugirá para o deserto, Do Leão e seu bramido,/Demonstra que vai
ferido/Desse bom Rei Encoberto./» (estrofe 75).
O Leão é um símbolo da tribo judaica dos reis
davídicos. No entanto, nestas Profecias, obrigará todos os
povos a um Império Universal Cristão ou judaico-cristão ou
a um Império do Espírito Santo, à conversão universal
(estrofes 75 a 81).
Bandarra introduz duas personagens novas, os judeus
Fraim e Dão que anunciam as profecias do Encoberto
(estrofes 82 - 86) e novamente com ligações bíblicas: «O Rei
novo é alevantado,/ já dá brado;/ já assoma a sua bandeira/Contra a Grifa
parideira,» estrofe 87).
17
A «Grifa parideira» é um símbolo bíblico parecido com
um leão com asas de águia que, de certo modo, representa o
1º império da Babilónia (Daniel, 7: 4).
Cruza esta estrofe messiânica com a estrofe seguinte
que faz alusão à Restauração e a conjura dos quarenta
fidalgos «Saia, saia esse infante/Bem andante/, seu nome é D. João,/». É,
claramente, D. João IV, Duque de Bragança.
Nas estrofes seguintes, apresenta os turcos como os
grandes inimigos dos portugueses no séc. XVI. Com um
aspecto judaico-cristão, defende os cristãos-novos e o Rei
português: «As chagas do Redentor,/E salvador/são as armas do nosso
Rei/».
No «Sonho Segundo» anuncia a paz mundial e a vitória
do símbolo do «Leão» contra a «Grifa parideira».
No discurso do género profético, com a «amálgama dos
registos discursivos modalizados durante séculos» cruza
novamente o discurso bíblico messiânico com o discurso
político da Restauração da Independência, como uma profecia
e apresenta o Rei D. João IV como semente do Rei D.
Fernando (estrofes 94-100).
Legitima a Restauração e o Rei D. João IV: «Porque é Rei
de Direito;/Deus o fez todo perfeito/Dotado de perfeição./» (estrofe 101),
numa alusão velada ao milagre de Ourique em que D. Afonso
Henriques teve unção divina, logo extensiva a todos os
futuros reis de Portugal.
A profecia da conversão universal, da paz universal e
do Quinto Império, com o fim das heresias e fantasias, em
que o «Leão» vence o «porco selvagem» nas Profecias de Bandarra,
18
tem uma ligação messiânica ao mito sebastianista do
Desejado.
E pergunta Bandarra: «Com que prova o sapateiro/fazer isto
verdadeiro?/». Responde que esse conhecimento se obtém, «se
lerdes as Profecias/De Daniel e Jeremias/Por Esdras o podeis ver./» (estrofes
107-108). Alusão explícita aos grandes profetas bíblicos do
Antigo Testamento.
O «Sonho Terceiro» contém uma linguagem directa e
inclui 55 estrofes, na maioria quadras. É de cariz
profundamente judaica e messiânica. Sonha «que os mortos
ressuscitavam»…«e tornavam a renascer» (estrofes 109-110), vinham
de «trás os rios escondidos»…«fora daquela prisão» (estrofe 111).
Apresenta o retorno das tribos de Israel (das
estrofes112-117) : «Vi a Tribo de Deão/Com os dentes
arreganhados;/Sonhava, que eram saídos/Fora daquela prisão./» (estrofe
112) apresentando uma sequência de tribos renascidas e
retornadas.
Um velho perguntou a Bandarra se ela era hebreu, e
respondeu: «senhor, não sou dessa gente,/Nem conheço esses tais./»
(estrofe 119).
Negou ser cristão-novo e afirmou ser português: «Mas
segundo os sinais/Vós sois do povo cerrado,/Que dizem estar ajuntado/Nessas
partes orientais./» (estrofe 120).
E continuaram as perguntas: «Dizei-me, nobre barão,/Pergunto,
se sois contente,/Dizer-me vossa semente/Se é da casa de Abraão?» (estrofe
123). E respondeu: «Que eu sam dessa geração/Saí da tribo de
Levi,/Sacerdote como Heli,/O meu nome é Arão./».
19
É uma alusão directa ao messianismo do Antigo
Testamento, o facto de o rei ser descendente da casa de
Abraão, que saiu da tribo de Levi. Uma alusão à casa de
David e aos Levitas.
Entretanto o narrador acorda do seu terceiro sonho e
foi ver as Escrituras, onde encontrou tudo escrito.
Na última parte, «Resposta do Bandarra a algumas perguntas que
lhe fizeram,/e da resposta delas se conhecem quais foram./», afirma que
se baseia nas profecias «De Daniel e Jeremias,/ nas quais agora
entramos./.» (estrofe 131) «E um só Deus será conhecido». (estrofe
132).
A narrativa do género profético prossegue com as
amálgamas de registos discursivos e transgressão narrativa
escatológica. É no livro do profeta Daniel que se
interpreta o sonho do rei da Babilónia onde aparecem os
cinco tempos ou impérios da humanidade, até ao surgimento
do Quinto Império que será posteriormente desenvolvido por
Fernando Pessoa (Daniel, 7: 26 e 7: 27).
Alerta para os perigos da Inquisição: «Convosco falo estas
cousas,/Como com um grande letrado,/As umas são perigosas,/E as outras
perigosas,/E as outras duvidosas/Ainda não hão começado.» (estrofe
133).
Antes de retomar o tema do retorno das tribos de
Israel (estrofe 135), apresenta o tema das eras, dos tempos
e do Império Universal: «Antes destas cousas serem/Desta era que
dizemos,/Muitas grandes cousas veremos,/Quais não viram os que
viveram,/Nem vimos nem ouviremos.» (estrofe 134).
20
Em seguida, nas Profecias apresentam uma projecção
escatológica, vem a alusão à tragédia do fim dos tempos,
aspectos de milenarismo e apocalipse (estrofe 136-141) com
uma alusão a Isaías: «Dizem, que nos últimos dias,/Que aquestas cousas
serão,/A vinte e quatro acharão/este dito de Isaías/» (estrofe 139) «Não
deve a terra tremer/Mas fundir-se sem tardança,/Pois os que têm a
governança/Os não querem defender./» (estrofe 141).
Profetiza, em seguida, a vinda de um Rei humano que
vencerá o monstro: «Vejo um grande Rei humano/Alevantar sua
bandeira,/Vejo como por peneira/A Grifa morrer no cano./» (estrofe 145)
ajudado por outros: «Este guardará a Lei/De todas as
heresias,/Derrubará as fantasias/Dos que guardam, o que não sei./»
(estrofe 151) que poderá ser interpretado como uma era nova
ou a era do Quinto Império.
Termina Bandarra, afirmando basear-se nas profecias de
Daniel e Jeremias, profetas do Antigo Testamento: «Tudo
quanto aqui se diz,/Olhem bem as profecias/De Daniel e Jeremias,/Ponderem-
nas de raiz./» (estrofe 158).
Em nosso entender, no discurso da narrativa profética,
transgredido pela intercalação escatológica, quatro
registos discursivos interligados são relevantes e se
entrelaçam ou amalgamam, neste terceiro sonho das Profecias de
Bandarra:
- o discurso de aspectos messiânicos judaico-cristãos de
inspiração bíblica;
- o discurso do mito do sebastianismo relacionado com a
Restauração da Independência de Portugal e um império
global transoceânico;
21
- o discurso de aspectos milenaristas e escatológicos
relacionados com o fim dos tempos, de inspiração bíblica;
- o discurso de aspectos proféticos e messiânicos
relacionados com novas eras ou o Quinto Império, de
inspiração bíblica.
3. SEBASTIANISMO COMO MITO UNIVERSAL EM FERNANDO PESSOA
Iremos, neste capítulo, observar como o sebastianismo
e o messianismo se manifestaram em Fernando Pessoa, tendo
por base três documentos pessoanos: O Terceiro Corpo das
Profecias de Gonçalo Annes Bandarra; ou seja, um inédito do
espólio de Pessoa, ainda pouco conhecido, cujo autor
referiremos por Pessoa-Bandarra, alguns aspectos de
Mensagem e os poemas místicos Gládio e Além-Deus.
É sabida a ligação, no século XVII, do Padre António
Vieira às Profecias de Bandarra e à ideia de Quinto Império, à
consolidação da Restauração da Independência de Portugal e
do Império, em 1640, à primeira globalização
intercontinental e transoceânica.
As Profecias foram inicialmente manuscritas no século
XVI, sofreram algumas alterações no século XVII na edição
de Nantes, abriram-se mais ao mito do sebastianismo, e eis
que Fernando Pessoa, já no século XX, lhe acrescenta uma
parte, com o título Terceiro Corpo das Profecias de Gonçalo Annes
Bandarra.
22
A estrutura do Terceiro Corpo das Profecias de Bandarra,
redigido por Pessoa, consta de uma apresentação em prosa
seguida de uma introdução de sete quadras e seis sonhos. A
estrutura em sonhos, à semelhança de Gonçalo Bandarra e das
profecias bíblicas, como as do profeta Daniel, são, na
totalidade, 34 quadras.
Afirma Pessoa-Bandarra na introdução assinada com o
seu nome próprio:
«Neste terceiro corpo das suas Trovas aplica-se o Bandarra a desvendar
misteriosamente grandes movimentos das nações, culminâncias da
civilização. De todos os corpos de que se compõem as profecias de
Bandarra, é este o mais ordenadamente disposto, em seus seis sonhos e a
introdução que os abre.
É de notar que nos outros corpos das trovas, Bandarra se ocupa de factos
nítidos, precisos, concretos, sempre, é claro, de importância para o país,
não sempre porém os de mais importância, porque há movimentos
aparentemente obscuros em as nações que, por vezes, têm uma
importância maior que os factos que todos vêem e estão, por assim dizer,
nas alturas humanas.
Fernando
Pessoa».
Se observarmos com atenção, Pessoa, ao afirmar que
«Neste terceiro corpo das suas Trovas aplica-se o Bandarra a desvendar
misteriosamente grandes movimentos das nações, culminâncias da civilização»
o sebastianismo é um mito universal.
Trata-se de uma linguagem densamente simbólica e
hermética ou mesmo esotérica. A alusão ao mito do Quinto
23
Império evidencia-se logo na primeira quadra: «Em vós que
haveis de ser quinto/Depois de morto o segundo,/Minhas profecias fundo/Com
estas letras que aqui pinto./» (estrofe 1). Observam-se semelhanças
com a mesma passagem nas Trovas de Bandarra, baseando-se na
profecia bíblica de Daniel, já citada (Daniel, 7: 26 e 7:
27).
O enigma persiste em saber qual seria o segundo
império. Afirma: «Não conto sapatarias/Que noutros tempos sonhei/O
que agora contarei/São mais altas profecias./» (estrofe 4).
Numa dimensão escatológica, a nova empresa seria agora
a criação de uma nova era, o Quinto Império, como afirma:
«Faço trovas mui inteiras,/Versos muito bem medidos/Que hão-de vir a ser
cumpridos/Lá nas eras derradeiras./» (estrofe 6).
No entanto Pessoa-Bandarra, se assim considerarmos uma
nova espécie de heterónimo, fundamenta-se em bases
bíblicas: «Eu componho, mas não ponho/As letrinhas no papel,/Que o
devoto Gabriel/vai riscando, quanto eu sonho./» (estrofe 7).
No sonho primeiro existe uma alusão ao rio Tejo e a
uma grande figura heróica mas também uma crítica a sectores
da igreja ao «Presbítero maior» (estrofe 10).
Regista-se, a seguir, a alusão ao Rei Desejado que virá
de uma ilha encoberta (estrofes 11-15): «Este sonho que sonhei/É
verdade muito certa/Que lá da ilha encoberta/Vos há-de vir este Rei./».
O sonhos terceiro, quarto e quinto desenvolvem-se
dentro de um simbolismo muito denso e de profecias muito
herméticas e esotéricas, onde se detecta o mito do
sebastianismo místico, messiânico e universalista.
24
A civilização ibérica tornou-se transoceânica: «Quando
o sonho é verdadeiro/Dá-se uma luz muito clara;/Sonho agora, que uma
vara/Vai dando luz a um outeiro/» (estrofe 32) «Esse outeiro é Portugal E
a vara castelhana/Da minha pobre choupana/vejo esta vara Real».
Pessoa-Bandarra termina com uma quadra alusiva ao mito
do Quinto Império: «Dará fruto em tudo santo/Ninguém ousará negá-
lo/O choro será regalo/E será gostoso o pranto./» (estrofe 34).
São vários e de diversa ordem os símbolos em Mensagem
e os campos simbólicos. Como o objecto do nosso estudo é o
sebastianismo e messianismo de Bandarra a Pessoa, iremos
focar só este aspecto.
Em Mensagem, o sebastianismo aflora logo no poema XI,
«A Última Nau», «Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,/ E erguendo, como um
nome, alto o pendão/ Do Império,/ Foi-se a última nau, ao sol aziago/ Erma, e
entre choros de ânsia e de pressago/ Mistério»…prosseguindo…«Deus
guarda o corpo e a forma do futuro, / Mas sua luz projecta-o, sonho escuro/ E
breve/»…Detectamos os sebastianismo interligado ao
messianismo, «Não sei a hora, mas sei que há hora, / Demore-a Deus,
chame-lhe a alma embora/ Mistério/» (Pessoa:1935, 71).
D. Sebastião é a quinta quina do brasão de Mensagem:
«Louco, sim, louco, porque quis grandeza/Qual a Sorte a não dá./Não coube
em mim minha certeza;/Por isso onde o areal está/Ficou meu ser que houve,
não o que há.//«Minha loucura outros que a tomem/Com o que nela ia./Sem a
loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/Cadáver adiado que
procria?/». (Pessoa: 1934, 42).
Na terceira parte de Mensagem, intitulada «O
Encoberto», «D. Sebastião», «O Quinto Império», «O
25
Desejado», «As Ilhas Afortunadas», são símbolos
correlacionados.
Pessoa coloca como primeiro símbolo o poema D.
Sebastião: «Sperai! Caí no areal e na hora adversa/Que Deus concede aos
seus/Para o intervalo em que esteja a alma imersa/Em sonhos que são
Deus.//Que importa o areal e a morte e a desventura/Se com Deus me
guardei?/».(Pessoa: 1935, 81). Termina com o sebastianismo no
discurso profético e messiânico: «/É O que eu me sonhei que eterno
dura, /É esse que regressarei./». (Pessoa: idem, ibidem).
O segundo símbolo de Mensagem é o Quinto Império no
poema homónimo. Os quatro tempos que passaram foram a
Grécia, Roma, Cristandade, Europa. Passados estes quatro
tempos «a terra será teatro» do Quinto Império (Pessoa:
1934, 83). Eis, novamente, mais uma afinidade bíblica com a
profecia de Daniel, já citada (Daniel, 7: 26 e 7: 27).
Trata-se da simbólica da articulação do mito do
sebastianismo de «O Desejado» com o mito do «Quinto
Império».
Desejado: «Onde é que entre sombras e dizeres, / Jazas, remoto,
sente-te sonhado, / E ergue-te do fundo de não-seres/ Para teu novo fado!//
Vem Galaaz com pátria, erguer de novo, / Mas já no auge da suprema prova, /
A alma penitente do teu povo/ a Eucaristia Nova. // Mestre da Paz, ergue teu
gládio ungido, / Excalibur do fim, em jeito tal/ Que sua luz no mundo dividido/
Revele o Santo Gral/» (Pessoa: 1935, 84).
São evidentes as influências bíblicas e de um Desejado
universal de vários registos, mesmo o arturianismo de raiz
celta.
26
O quarto símbolo de Mensagem são «As Ilhas Afortunadas».
Trata-se da alusão ao Quinto Império como uma ilha onde
mora o Rei esperando. Já Camões, nos Lusíadas, referira a
Ilha dos Amores e pode ser já um indício do mito do Quinto
Império. Também a personagem principal e narrador de Utopia,
de 1516, que conta a Thomas More a existência dessa ilha
misteriosa, a ilha da utopia, da tolerância religiosa é um
navegador português, «o mui sábio Rafael Hitlodeu» (More, T.: op.
cit.,7).
As «ilhas afortunadas» ou as «ilhas dos amores»
reenviam para um espaço-tempo mítico como uma espécie de
uma ilha remota e profunda no subconsciente ou na alma
universal humana que aflorará messiânica numa nova era, a
era do Quinto Império e do Espírito Santo. Eis o carácter
mais interessante do mito universal do sebastianismo.
Também, em meados do séc. XVII, o Padre António Vieira
apresentara a ideia do Quinto Império (Borges: 1995, 27).
O quinto e último símbolo «O Encoberto» é o título do
poema homónimo de temática rosicruciana. Termina com a
seguinte quadra: «Que símbolo final/Mostra o sol já desperto?/Na Cruz
morta e Fatal/A Rosa do Encoberto/».
Antes de concluir Mensagem com «os tempos», cinco
tempos, apresenta três avisos: O Bandarra, António Vieira e
o terceiro sem título. Seria ele próprio?
Escreve o seguinte sobre o Bandarra:/«sonhava anónimo e
disperso,/O Império por Deus mesmo visto,/Confuso como o Universo/E plebeu
como Jesus Cristo.//«Não foi nem santo nem herói,/Mas Deus sagrou com Seu
sinal/Este, cujo coração foi/Não português mas Portugal./».
27
Contudo, é nos poemas Gládio e Além-Deus que Pessoa
manifesta um profundo ardor místico com algum paralelismo
em São João da Cruz, na «Chama de amor viva», em que «A
chama de amor viva é um tratado de amor que intenta explicar os momentos
superiores da união da alma com Deus» (Garcia Palacios: 1990)
renovada por dentro do seu ser por um «amor intenso e pelo
conhecimento de Deus» (Ruiz Salvador: 1962) um amor intenso na
fusão mística da alma com Deus, quando Pessoa afirma:
«Cheio de Deus, não temo o que virá» (Pessoa: 1917b, 18).
Gládio e Além-Deus encontram-se como provas de página do
que seria o Orpheu 3 (Pessoa: 1917b: 188). O poema Gládio,
com o título «D. Fernando, Infante de Portugal», incluiu-o,
Pessoa, em Mensagem.
É no poema «Braço sem corpo Brandindo um Gládio», que
não chegou a ser publicado em vida, que Pessoa apresenta a
Pomba, como símbolo do Espírito Santo relacionado com o
mito do Quinto Império.
A Pomba, que Pessoa inclui no poema, é também um
símbolo ou lesisigno com raízes bíblicas do Antigo
Testamento. Moisés soltou uma pomba da Arca para saber se o
dilúvio terminara e havia vida na terra. A pomba regressou
«trazendo no bico um ramo verde de oliveira» (Génesis, 8:
10, 11, 12).
É o símbolo ou lesisigno com força de comunicação, da
comunicação com Deus e a vida, do Espírito Santo, da Paz, o
símbolo do espírito do Quinto Império, já em expansão por
todo o mundo e que, em nosso entender, melhor se ajusta ao
28
mito universal do sebastianismo, quando este encerra o
Espírito Santo e o mito do Quinto Império.
No poema citado de Fernando Pessoa, pode ler-se a dado
momento:
Deus é um grande intervalo,
Mas entre quê e quê ?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me…E o pombal elevado
Está em torno da pomba, ou de lado?»
4. CONCLUSÃO
A análise do léxico e da linguagem simbólica e dos
recursos estilísticos específicos evidenciam a relação
profunda entre língua e cultura, e a criação de uma
linguagem de comunicação profética. A par da linguagem
poética existiu uma linguagem de características proféticas
na literatura e cultura portuguesas. O mito do
sebastianismo, com a sua linguagem de comunicação
profética, foi o que mais se notabilizou.
Tendo em atenção os símbolos ou lesisignos com força
comunicativa, as alegorias, a narração do discurso com
marcas escatológicas é possível caracterizar o género
profético como uma amálgama de registos de discursos
modalizados ao longo dos séculos, e observar a linguagem da
comunicação profética.
29
Nesta fôrma ou arquétipo de vários registos, que
caldeou ao longo dos tempos a cultura e o povo do pequeno
país ibérico chamado Portugal, com léxico simbólico de
diversas matrizes incluindo a bíblica, com o messianismo e
mitos, reuniram nele as condições da alma universal humana
para o surgimento da forma ou expressão do mito do
sebastianismo, do medievismo do Desejado, do arturianismo de
raiz celta.
Circunstâncias históricas de profunda crise, assentes
numa remota base ibérica, onde fervilhou um caldeamento
cultural dos iberos e celtas, dos romanos pagãos e
cristãos, dos semitas aos arianos, dos judeus aos árabes,
que se manifesta na língua e cultura, contribuíram para a
expressão assumida pelo mito do sebastianismo.
Através do léxico e da linguagem simbólica da
comunicação profética, as origens das Profecias de Bandarra, o
sapateiro de Trancoso, nascido na data do achamento do
Brasil em 1500, aludiram fervorosa e ardentemente ao
Desejado, antes de D. Sebastião ter nascido, porque era
desejado um neto do rei D. João III.
As originais Profecias de Bandarra têm raízes em profecias
bíblicas do Antigo Testamento, sobretudo nos profetas
Isaías, Daniel e Jeremias. Entre vários, evidenciam-se
símbolos davídicos como o Leão e outros nefastos, entre
estes, a Grifa parideira. Características da linguagem e da
comunicação simbólica e dos tempos.
Após a morte do jovem rei D. Sebastião, em Alcácer
Quibir, nasceu o mito português transoceânico da primeira
30
globalização, o sebastianismo messiânico, que foi emergindo
como um mito universal.
A audácia criativa e o génio universal de Fernando
Pessoa ao serviço da humanidade, considera Bandarra um
profeta, mas um profeta colectivo. Ele próprio Pessoa cria
e acrescenta uma Terceira Parte às Profecias de Bandarra, parte
mantida inédita no espólio. Retoma o sebastianismo e o
messianismo e o mito do Quinto Império, mais claramente em
Mensagem e a figura do Encoberto já presente nas Profecias
de Bandarra.
Na linguagem mística da comunicação profética e
messiânica portuguesa, germinada na lusofonia, e mais ainda
na segunda globalização de agora, com raízes remotas e
frutos a partir de António Vieira, no poema Além-Deus junta-
lhe Pessoa um novo símbolo, a Pomba.
A Pomba, símbolo da Paz, do Espírito Santo em sintonia
com mito do Quinto Império, símbolo retomado por Pessoa das
raízes bíblicas (Génesis, 8: 10, 11, 12). A luz de Deus dos
Universos. A Pomba que leva em seu voo de asas sagradas um
novo espírito do homem na conquista da irenologia, tão
necessária a este chão de barro.
………………………………………
«Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentil como o sol e a água.
De uma religião universal
Que só os homens não têm.».
…………………………………………….
31
(Fer
nando Pessoa, Poemas Inconjuntos.)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Atlas da História do Mundo (1995). São Paulo: Folha da Manhã.
Azavedo, João Lúcio de (1984): A evolução do sebastianismo. Lisboa: Presença.
Bíblia Sagrada. Versão dos textos originais. Principalmente os «livros
proféticos». Lisboa/Fátima: Difusora Bíblica –
Franciscanos Capuchinhos.
Bíblia Sagrada. Codex Sinaiticus. http:///www.codexsinaiticus.org/en
Borges, Paulo Alexandre Esteves (1995): A Plenificação da História em Padre António Vieira.
Estudo sobre a ideia
de Quinto Império na Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
Carmelo, Luís (1993): A Comunicação Profética e a Codificação das Ortodoxias. O Caso da
alteridade Islamo-
Cristão. Covilhã: UBI- BOCC – Biblioteca On-line de Ciêncas da
Comunicação.
Coseriu, Eugeniu (1985): El Hombre y su Lenguaje. Madrid: Ed. Gredos.
Cruz, São João da ( ): Dichos de luz y amor, n. 120, O.c., p. 52
Durand, Gilbert (1996): Introduction à la mythodologie. Mythes et societies. Paris: Éditions
Albin Michel, S. A.
Eliade, Mircea (1954): Das Heilige und das Profane (trad. port. O Sagrado e o Profano – A
Essência das Religiões.
García Palacios, J (1990): «Consideraciones sobre el símbolo de la “llama” en
San Juan de la Cruz», in: Mª de Jesus
Mancho Duque (ed.): La Espiritualidad Española del siglo XVI. Aspectos literários y
Linguisticos.
32
Salamanca: Universidad.
Guillaume, Gustave (1969): «Les notions grammaticales d´absolu et de
relative», In: AAVV Essais sur le langage.
Gomes, António Ferreira (2000): Pareceu ao Espírito Santo…E a nós?! Porto: Fundação
SPES, 2ª edição.
Hermann, Jacqueline (1998): No reino do desejado – A construção do
sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII. São Paulo.
Humboldt (1904): Positivismus und Idealismus in der Sprachwissenchaf. Heidelberg (trad.
Esp. Madrid-Buenos
Aires, 1929).
Journet, Nicolas (1995): « Les Linguistiques de la Communication», in SciencesHumaines, nº 51 e Le langage,
nature, histoire et usage. Auxerre: Éd. Sciences Humaines.- «Le Langage est une action», Sciences Humaines nº 57 e Le langage, nature,histoire et usage. Auxerre: Éd. Sciences Humaines. Paris: Editions deMinuit.
Jung, Carl G. (1964): The Man And His Symbols. Londres: Aldus Books Limited (trad.
Port. O Homem e os seus
Símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova fronteira).
Le Goff, Jacques (1984). Escatologia , in: Enciclopédia Einaudi – Vol, G.
Einaudi, Tirim; ed. Ut. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
More, Thomas (1516): Utopia. Lisboa: Coisas de Ler, 2004 (trad. port.).
Pessoa, Fernando (1934): Mensagem. Lisboa: Edições Ática 1979 (13ª ed.).
Pessoa, Fernando (s/d): Introdução ao Problema Nacional (Recolha de textos de Maria
Isabel Rocheta e Maria Paula
Morão. Introdução organizada por Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1974.
Inclui inéditos do espólio, entre eles o «Terceiro Corpo das Profecias
de Bandarra» de Fernando Pessoa. Lisboa: Livros do Brasil, s/d).
Pessoa, Fernando (1917ª)Portugal Futurista (1917): Lisboa. «Ultimatum de Álvaro de
Campos». In: Portugal
Futurista. Reed. Lisboa: Contexto, 1990, p. 30-34.
Pessoa, Fernando (1917b): «Ládio e Além-Deus». In: Orpheu 3 – Provas de
Página. In: Orpheu, Edição Facsimilada.
Lisboa: Contexto, 1989 (inclui o poema Braço Sem Corpo
Brandindo Um Gládio).
Pierce, Charles Sanders (1978): Collected Papers of Charles Sanders Pierce, vols I 711,
III/IV e VIII, The Belknap
Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1978.
Profecias de Bandarra. Porto/U. Minho: Projecto Vercial, 1997-2000.
33
Real, Miguel (2008): Padre António Vieira e a Cultura Portuguesa. Lisboa: quidnovi.
Ruiz Salvador, Federico (1962): «Cimas de contemplación. Exégesis de Llama de
amor viva». In: Ephemerides
Carmeliticae, 15, p. 257.
Soares, Maria Luísa de Castro (2007): Profetismo e Espiritualidade. De Camões a Pascoaes.
Coimbra: Imprensa da
Universidade.
Spalding, Tassilo Orpheu (1995): Dicionário de Mitologia, egípcia, sumeriana, babilónica,
fenícia, hurrita, hitita e celta. São Paulo: Cultrix.
Todorov, Tzvetan (1966): «Les catégories du récit», in Comunications nº8. Paris:
Seuil, 125-152.
Van Dijk, T. (1978): La ciência del texto. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós.
34