Linguagem e aprendizagem em Habermas e McDowell

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1 Linguagem e aprendizagem em Habermas e McDowell Ralph Ings Bannell PUC-Rio Para Habermas, depois da chamada virada linguística, a tese de que não podemos mais pensar num acesso não mediado linguisticamente ao mundo é comprovada. Como ele diz (2004: 38-39): Nossa capacidade de conhecer não pode mais, como supunha o mentalismo, ser analisada independentemente da capacidade de falar e agir, pois nós, também enquanto sujeitos cognoscentes, sempre já nos encontramos no horizonte de nossas praticas do mundo da vida. A linguagem e a realidade interpenetram-se de uma maneira indissolúvel para nos. Cada experiência está linguisticamente impregnada, de modo que é impossível um acesso a realidade não filtrado pela linguagem. Isso quer dizer que a experiência sensorial, por si só, perde a autoridade que, por exemplo, Locke, Russell e os empiristas a deram. Nossa experiência do mundo é sempre filtrada pela linguagem. Essa ideia sempre foi central à tradição germânica de filosofia de linguagem, que Charles Taylor chama a tradição Hamann-Herder-Humboldt, e virou um aspecto central da hermenêutica filosófica do século XX. Mas, Habermas vê uma consequência dessa tese que é “epistemologicamente inquietante”: se o horizonte de nosso mundo da vida for linguisticamente articulado, e temos que dar prioridade epistêmica a esse horizonte, como é possível ter acesso a um mundo não linguisticamente articulado? E o pressuposto de um mundo não articulado linguisticamente é necessário, segundo Habermas, para 1

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Linguagem e aprendizagem em Habermas e McDowell

Ralph Ings Bannell

PUC-Rio

Para Habermas, depois da chamada viradalinguística, a tese de que não podemos mais pensar numacesso não mediado linguisticamente ao mundo é comprovada.Como ele diz (2004: 38-39):

Nossa capacidade de conhecer não pode mais, comosupunha o mentalismo, ser analisadaindependentemente da capacidade de falar e agir,pois nós, também enquanto sujeitos cognoscentes,sempre já nos encontramos no horizonte de nossaspraticas do mundo da vida. A linguagem e arealidade interpenetram-se de uma maneiraindissolúvel para nos. Cada experiência estálinguisticamente impregnada, de modo que éimpossível um acesso a realidade não filtrado pelalinguagem.

Isso quer dizer que a experiência sensorial, por sisó, perde a autoridade que, por exemplo, Locke, Russell eos empiristas a deram. Nossa experiência do mundo é semprefiltrada pela linguagem. Essa ideia sempre foi central àtradição germânica de filosofia de linguagem, que CharlesTaylor chama a tradição Hamann-Herder-Humboldt, e virou umaspecto central da hermenêutica filosófica do século XX.

Mas, Habermas vê uma consequência dessa tese queé “epistemologicamente inquietante”: se o horizonte denosso mundo da vida for linguisticamente articulado, etemos que dar prioridade epistêmica a esse horizonte, comoé possível ter acesso a um mundo não linguisticamentearticulado? E o pressuposto de um mundo não articuladolinguisticamente é necessário, segundo Habermas, para

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resgatar um conceito forte de aprendizagem, ou seja, apossibilidade de modificar nossa interpretação do mundo apartir de como o mundo é, ele mesmo. Se o mundo forlinguisticamente constituído, todos os pontos de contatocom ele seriam linguisticamente articulados. Mas, nessecaso, como permitir um acesso ao mundo capaz de forçar umamudança de nossa interpretação? Só podemos aprender, nosentido forte, de um mundo que resiste nossasinterpretações dele. É o mundo, no final de contas, que é ojuízo final entre interpretações validas e não validassobre ele. Habermas não quer abrir mão dessa intuiçãoenquanto desenvolvendo uma teoria de linguagem com forteinfluencia da abordagem hermenêutica. Habermas vê,portanto, na tradição Alemã de filosofia da linguagem, uma“depreciação da dimensão cognitiva da linguagem” (Habermas,2004: 64). Além disso, ele vê essa tradição continuada nahermenêutica filosófica de Heidegger e Gadamer, bem como o“contextualismo” do segundo Wittgenstein, Charles Taylor eRichard Rorty, embora de maneiras bem diferentes.1

Habermas concorda que a teoria de verdade enquantocorrespondência entre proposição e realidade deve serrejeitada, porque parte da ideia de que para comparar umaproposição com a realidade é necessário ocupar uma terceiraposição de onde tal comparação poderia ser feita. E issoimplica em, como Habermas diz, ser capaz de “`sair fora dalinguagem` enquanto a utilizamos”, algo impossível para oser humano. Como se sabe, Habermas desenvolveu uma teoria

1 No entanto, ele vê na obra de Humboldt, muitas vezes vista como umfundador da hermenêutica filosófica, uma tentativa de superar a ideiade que não podemos transcender visões culturalmente determinadas domundo, através de discurso racional em busca de um entendimento mutuoentre interlocutores, uma “dinâmica cognitiva que, mesmo quando setrata de questões puramente descritivas, contribui para umadescentração da imagem linguística de mundo” (Habermas, 2004: 73). Noentanto, por mais que Humboldt, na interpretação de Habermas, avançouna explicação da dimensão horizontal de entendimento intercultural,ele não explicou como “apreendemos fatos na dimensão vertical dareferência ao mundo objetivo, nem como podemos ganhar conhecimento apartir de controvérsias sobre asserções fatuais” (ibid.).

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discursiva de verdade, que atrelou a validade de afirmaçõesaos processos discursivos de argumentação em condiçõesideais de fala2. No entanto, sob críticas que isso concededemais para o idealismo, ou seja, a ideia de que são nossaspráticas do mundo da vida que decidem o que é verdadeiro oufalso – e não o mundo – Habermas veio a substituir essateoria com uma teoria pragmática de verdade, na qual esseconceito funciona como um pressuposto pragmático e,portanto, perde seu status epistemológico.

Penso que Habermas, ao fazer essa manobra, estápreso a uma posição-padrão na filosofia, que não permiteque ele desenvolva uma resposta adequada à pergunta: seformos presos ao “circulo mágico da linguagem”, como épossível ter contato com o mundo, para aprender dele? Aposição-padrão específica da qual Habermas não consegue selivrar é a dicotomia entre idealismo e realismo, com suaconsequente necessidade de separar o esquema de pensamentopela qual compreendemos o mundo do próprio mundo como eleé. Esse motif é forte na filosofia moderna e incorporadonas filosofias de Descartes, Locke e Kant, em maneirasdiferentes, para mencionar somente os filósofos maisimportantes. Nesse artigo, vou: (1) elaborar o problema commais precisão; para (2) discutir como Habermas tentaresolvê-lo; e (3) oferecer uma outra saída do problemabaseado no pensamento de John McDowell. Dessa maneiraespero mostrar que a solução de McDowell permite nãosomente escapar das aporias do problema, mas, ao mesmotempo, pode oferecer uma concepção robusta de aprendizagem.

(1) O problema, então, é o seguinte: qual a relação entrea linguagem e a realidade? Uma maneira de tentar respondera essa pergunta é a de defender um isomorfismo entre aestrutura lógica (sintática e semântica) de uma proposiçãoe a realidade, algo proposto pelo ‘primeiro’ Wittgensteinem sua teoria pictorial de linguagem. O problema com essamanobra é o de conceber a linguagem como algo transparente2 Ver Wahrheitstheorien. 1973.

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e, portanto, capaz de espelhar o mundo. Isso dáà linguagemo primado ontológico, bem como epistêmico. Assim, arealidade seria composta de todos os fatos que podem serexpressos em proposições sobre o mundo. Assim, o mundoconsiste de “o conjunto dos fatos, não das coisas”(Wittgenstein, 1961 I.I). Ou seja, a realidade seriaidêntica aos fatos expressos em frases assertóricasverdadeiras. Mais uma vez citando Wittgenstein, “os limitesda linguagem significam os limites do meu mundo”. Assim, oacesso ao mundo é garantido por uma semântica lógicauniversal que especifica “a essência de toda descrição e,portanto, a essência do mundo” (ibid, 5. 4711).

Há uma série de problemas com essa ideia e não vou me deteros elucidando. Talvez o mais importante é o de quepressupõe que a realidade é expressa numa linguagem – alinguagem da lógica formal – que é, digamos assim, alinguagem do próprio mundo, uma linguagem sem ambigüidade.Obviamente, essa ideia faz parte da longa tradiçãoocidental de tentar descobrir uma linguagem científica –matemática e a lógica formal sempre foram candidatas fortes– que daria acesso à realidade como ela é mesma e nãorepresentada por uma língua natural, com todas as suas“distorções” que vem da cultura, da subjetividade etc. 3

Acho que esse tipo de manobra não é maispossível. Mas, de qualquer maneira, essa teoria do primeiroWittgenstein conseguiu substituir o paradigma da filosofiada consciência, e seu consequente mentalismo, com oparadigma da filosofia da linguagem. No entanto, nãosuperou o modelo de conhecimento como uma representação domundo. O ‘segundo’ Wittgenstein, no entanto, substitui essaconcepção transcendental da linguagem enquanto umaestrutura lógica universal com outra concepção, que tambémpoderia ser considerada transcendental, onde o caráter3 Talvez o ultimo filosofo a defender essa perspectiva foi RudolphCarnap com seu livro A Estrutura Lógica do Mundo. Para uma discussãointeressante do conceito de linguagem do próprio mundo, ver Luntley,1995.

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formador da linguagem não se encontra numa linguagemuniversal e logicamente transparente, mas numa forma devida que antecede o emprego de expressões linguísticas.Assim, nosso conhecimento do mundo é visto como dependentea uma língua natural, tanto para a ciência como para osfins de lidar com o mundo no dia-a-dia. Mas isso quer dizerque somos presos ao “circulo mágico da linguagem” de umaoutra maneira. Em vez de estarmos presos a sua estruturalógica, estamos presos a uma linguagem, que, por sua vez,faz parte de um mundo da vida constituinte. Neste sentido,o ‘segundo’ Wittgenstein pode ser compreendido comoprosseguindo o caminho trilhado pela hermenêuticafilosófica, só que de uma perspectiva analítica.

No entanto, como dito, quando pensamos sobre acognição, pelo menos no sentido do conhecimento do mundoempírico, é natural querer preservar a intuição dequeomundo não depende do horizonte de nosso mundo da vida, queé sempre linguisticamente articulado, mas de como ele émesmo, independente da linguagem e seu uso. Queremos, emoutras palavras, manter uma distinção entre fatosconstituídos linguisticamente e expressos em proposiçõessobre o mundo e coisas, ou seja, objetos no mundo que temuma existência extralinguística, que independem dalinguagem. Colocado em outra maneira, o mundo empírico,pelo menos, parece composto de coisas e não de fatos. Ora,alguns vão ver isso simplesmente como um vestígio da nossacultura cientifica, um preconceito filosófico queprecisamos rejeitar. No entanto, Habermas quer preservar umrealismo cognitivo e explicar a cognição do mundo empíricoa partir dele, mesmo depois da virada linguística.

Habermas tenta se guiar por entre a Cila e aCaríbdis das posições esboçadas acima da seguinte maneira.Ele aceita que o horizonte de nosso mundo da vida temprioridade epistêmica, mas também afirma que o mundo deobjetos e coisas tem prioridade ontológica. Assim, acreditapossível preservar o insight de que não temos acesso ao

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mundo a não ser pela linguagem natural, e o horizonte donosso mundo da vida articulado por ela, junto com o insightde que o mundo é extralinguístico, ou seja, não depende dalinguagem para sua existência. Na próxima secção, vou mededicar a analisar essa tentativa e suas consequências paraa cognição e a aprendizagem humana.

(2) O pressuposto central de Habermas é “o primadoontológico de uma realidade independente da linguagem, queimpõe limites as nossas práticas” (Habermas, 2004: 39). Aestratégia central é a de não vincular nosso conceito demundo – de coisas e não de fatos – a proposições, ou seja,não conceber o mundo em si como sendo proposicionalmenteestruturado. Essa via somente pode nos levar a um realismoconceitual, onde o que existe no mundo são entidadesabstratas – os conteúdos das proposições que representam omundo. Em vez disso, Habermas desenvolve uma concepção“nominalista” da realidade, que “concebe o mundo como atotalidade dos “objetos” individuais no tempo e no espaço edos quais podemos enunciar fatos” (ibid). Objetos podem serlocalizados no mundo, fatos não. Por exemplo, o fato que“meu apartamentose situa no bairro de Santa Teresa” é umacircunstancia que não se encontra no mundo enquanto objeto.É uma proposição que é verdadeira ou falsa dependendo darelação entre ela e suas condições de verdade, o que faz nomundo com que ela seja verdadeira ou falsa. No entanto,“não há possibilidade natural de isolar as imposições darealidade que tornam uma determinada afirmação verdadeiradas regras semânticas que estabelecem essas condições deverdade. Só podemos explicar o que é um fato com a ajuda daverdade de uma afirmação de fato, e só podemos explicar oque é real em termos do que é verdadeiro. (…) Se a verdadede crenças e sentenças (…) só pode ser justificada com aajuda de outras crenças ou sentenças, não podemos noslibertar do circulo mágico da linguagem” (Habermas, 1998:357)4. Toda proposição, então, é “linguisticamente4 Todas as traduções de textos em inglês são do autor e de sua inteira responsabilidade.

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saturada”, não sendo possível distinguir nenhuma proposiçãobásica, que poderia nos deixar entrar em contato com omundo como ele é mesmo. No entanto, o objeto referido naproposição – meu apartamento – é um objeto no mundo.

A decisão de pensar o mundo composto de objetos enão de fatos expressos em proposições tem, como Habermasafirma, consequências importantes para nossos conceitos deverdade e referência. Com relação à referencia, não sãoproposições que se referem ao mundo, mas termos singulares(e o quantificador existencial). A ideia central aqui é ade que a “existência” de estados de coisas, em oposição aosobjetos, somente pode ser elucidada a partir de proposiçõesque, por sua vez, somente podem ser atestadas por outrasproposições. Assim, não escapamos do “circulo mágico dalinguagem” enquanto se referindo a algo no mundo. SegundoHabermas, essa maneira de elucidar o que existe no mundonão escapa de metafísica, porque a análise linguística vaialém de seus limites em determinar a “existência” de algoextralinguístico quando todo o processo de elucidação ficapreso a linguagem. Ou seja, constituímos ilicitamente, alémdo horizonte do mundo da vida linguisticamente estruturado,um mundo objetivo.5

Além disso, Habermas acusa esse tipo de realismoconceitual de “sobrecarregar a experiência com a função deperceber os fatos como uma presença sensível ou de ter umaintuição intelectual deles” (2004: 41). Ou seja, segundoHabermas, isso rouba o sujeito de sua função enquantoconstrutor do conhecimento, porque, desta perspectiva, aobjetividade do conhecimento supostamente exige umaconcepção “contemplativa” da experiência, de simplesmente

5 Isso lembra a crítica kantiana da metafísica especulativa e suaanálise da cognição. Aliás, Habermas apropria a estrutura dopensamento de Kant, tentando destranscendentalisar as condições dapossibilidade de conhecimento, bem como as ideias reguladoras e o eutranscendental. Ver Habermas, 2002.

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perceber fatos dados numa espécie de “intuição”. Assim, osujeito não tem um papel construtivo na construção doconhecimento e, portanto, é difícil explicar a falibilidadede nosso conhecimento sobre o mundo. Nossa experiência domundo nunca seria uma fonte de evidência recalcitrante quepoderia nos levar a revisar nosso saber sobre ele. Noentanto, segundo Habermas, a concepção nominalista do mundocomo objetos permite contato com aspectos recalcitrantes domundo que poderiam levar a revisão do nosso conhecimento,porque “os contatos sensíveis com objetos no mundo oferecempontos de apoio estimulantes que nos permitem interpolarfatos. A informação linguística que adquirimos no contatocom algo no mundo não pode ser confundida com a fonte deinformação, isto é, aquilo com que temos contatoexperimental” (ibid: 41).

Mas, podemos perguntar: Se precisamos usar alinguagem para se referir a algo no mundo, mesmo se somentecom termos singulares, como teríamos certeza que essestermos estão apontando para algo além da linguagem? Se forverdade que somente temos um acesso hermenêutico ao mundoda vida intersubjetivamente partilhado, ou seja, de umaperspectiva performativa, como é possível adotar a atitudeobjetivante do observador na interação com um objeto nomundo? Aqui Habermas fala, um pouco misteriosamente, de uma“divisão de trabalho ontológico” que corresponde a umadivisão de trabalho metodológico, entre uma perspectivahermenêutica de compreensão e uma perspectiva objetivadorade descrever o mundo (ibid). No entanto, na tentativa desuperar uma possível reificação da “estrutura dosenunciados com os quais descrevemos algo no mundo,tornando-a uma estrutura do próprio ente” (ibid: 42), eleparece abandonar o princípio epistemológico hermenêutico,ou seja, o princípio de que todo conhecimento se fundamentaem interpretação, princípio esse que ele quer preservar,aparentemente, quando diz que o mundo da vidalinguisticamente articulado tem primazia epistêmica.

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Obviamente, não é suficiente dizer que a concepção “domundo como totalidade dos objetos, não dos fatos” explicacomo a linguagem entra em contato com o mundo” (ibid).Para isso, é necessária uma teoria de referência.

Então, como termos singulares se referem aosobjetos no mundo, segundo Habermas? Não podem fazer issoatravés de uma correspondência entre palavras e objetos,pela mesma razão que não é mais possível uma teoria deverdade como correspondência entre proposições e fatos: nãosomos capazes de “`sair fora da linguagem` enquanto autilizamos” para comparar “expressões linguísticas a umpedaço de realidade não-interpretada ou `realidade nua ecrua` - isto é, a uma referência que fuja a nossa inspeçãolinguisticamente atrelada” (ibid). Por isso, Habermas adotaa teoria de referência de Putnam, que, na essência, diz queuma referência invariável ao objeto é um pressupostopragmático tanto na pesquisa cientifica como no dia-a-dia.A prática de pesquisa, bem como a prática cotidiana deargumentar sobre interpretações do mundo, pressupõe que “ofenômeno a ser explicado não se perca na transição de umainterpretação para outra. Deve-se poder manter a referenciaao mesmo objeto, a despeito de diferentes descrições”(ibid: 42). Essa posição pode ser chamada “realismopragmático”, porque infere a existência de um mundoobjetivo a partir de uma suposição pragmática deinquietação, qualquer que seja. Utilizando um argumentotranscendental, Habermas concorda com Putnam que essepressuposto “desempenha o papel de um a priori sintético”para a práxis de pesquisa empírica. Mas não somente aprática especializada de pesquisa precisa pressupor o mesmomundo objetivo. Atores que se entendem ou desentendem sobrealgo no mundo também tem que pressupor “contato com osobjetos do trato prático”. Por isso, Habermas diz que “asreferências semânticas que os participantes de comunicaçãoexplicitamente produzem com seus anunciados enraízam-se empráticas” (ibid: 44). Elas são “performativamente

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garantidas”. Além disso, é na “referência constante [que]podemos melhorar uma determinação conceitual de um objeto”.Se não estamos falando do mesmo objeto, então os enunciadosde falantes não são nem interpretações em conflito e oprocesso de justificação, no qual a melhor interpretação serevela, não pode nem começar.

Já analisei as dificuldades nessa teoria dereferência em outro lugar e não vou me deter repetindominhas críticas aqui (Bannell, 2009: 97-103). Basta dizerque as dificuldades que Habermas encontra na sua análisepodem ser superadas se olharmos o problema de uma maneiradiferente, como vou tentar mostrar na última parte desseartigo.

No entanto, qualquer teoria de cognição tem que,também, enfrentar a questão de significação. Então, qual aanálise que Habermas faz de como um ouvinte compreende umaenunciação de um falante? Como se sabe, a semântica dereferência, corrente na filosofia até o inicio do séculoXX, foi duramente criticada por Frege, que desenvolveu asemântica formal. O argumento principal foi o de que arelação entre linguagem e o mundo não pode ser explanada emtermos da relação entre símbolos e objetos, porque sãofatos que fazem com que uma sentença assertórica sejaverdadeira. Isso porque, como vimos, são termos singularesque se referem a objetos no mundo e não frases que, por terpredicados, representam um estado de coisas e não um objetosingular. Portanto, a relação entre linguagem e o mundo nãopode ser assimilada à relação entre nomes ou designações eseus objetos. Assim, a explanação do significado desentenças assertóricas precisa ser diferente. Nas palavrasde Habermas (1998: 282-282),

Se o significado de uma sentença assertória é umestado de coisas que a representa, e se essasentença é verdadeira precisamente quando o estadode coisas expressado por ela existe ou é o caso,então compreendemos a sentença somente se sabemos

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as condições sob as quais ela é verdadeira. Ascondições de verdade de uma sentença assertóricaservem como um explanans de seu significado:“Entender uma proposição quer dizer saber o que é ocaso se for verdadeira”.

No desenvolvimento de sua pragmática formal,Habermas critica essa teoria, porque abstrai o significadode enunciações das regras pragmáticas para o seu uso emenunciados, bem como privilegia sentenças assertóricas e afunção representativa de linguagem. 6 No entanto, mesmoassim Habermas acha que essa teoria revelou um insightessencial: a conexão entre significado e validade. Alémdisso, supera psicologismo ao fixar a autonomia delinguagem com relação ao individuo, ou seja, pensamento épossível somente através da linguagem, que é sempre sociale nunca privada. No entanto, no decorrer de seu pensamento,Habermas é forcado a aceitar de novo uma teoria semânticade significado, como tentarei mostrar abaixo. No entanto,antes disso, talvez seja interessante elaborar outrasteorias de significado que o próprio Habermas rejeita.

Mais duas tiveram impacto forte na filosofia dalinguagem Anglo-Saxão:a semântica intencionalista e ateoria de significado enquanto uso. A primeira,desenvolvida por Paul Grice e outros, relaciona osignificado de uma frase as intenções do falante quando a

6 Como Habermas observa, a semântica formal foi criticada por Dummettnos seguintes termos. Conhecimento de condições de verdade é possívelsomente para sentenças simples, cuja verdade pode ser testada porevidência de percepção. No entanto, para sentenças assertóricas taiscomo previsões, condicionais contrafautuais, etc., não há testes quepodem facilmente verificar se as condições de verdade estãopreenchidas ou não. Por isso, Dummett (1993) adotou a distinção entreverdade e justificação (warrantedassertability), substituindo conhecimentode condições de verdade com um conhecimento indireto: o ouvinte temque saber quais razões um falante poderia utilizar para vindicar suapretensão de que as condições de verdade estão satisfeitos. “Em suma,se compreende uma sentença assertórica quando se sabe quais razões umfalante poderia fornecer para convencer um ouvinte que o falante temdireito (isentitled) a levantar uma pretensão de verdade para a sentença”(Habermas, 1998: 288).

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utiliza. No entanto, segundo Habermas, isso concebelinguagem como somente uma ferramenta no serviço daatividade intencional de um sujeito soberano diante deoutros sujeitos soberanos. Ou seja, pressupõe a filosofiada consciência. Mais uma vez, nas palavras de Habermas(ibid: 280),

Essa estratégia é guiada pela intuição que o uso delinguagem é somente uma manifestação específica deuma soberania geral de atores que agemintencionalmente – uma soberania que, a respeito domeio de linguagem, se revela, por exemplo, no fatoque podemos relacionar aos objetos quaisquer nomesque queiramos, bem como dando significado aossignos aleatoriamente.

Assim a linguagem perde sua autonomia com relaçãoao sujeito individual. Em vez disso, Habermas insiste que ouso de linguagem tem que ser vista como reguladoantecedentemente por uma forma de vida: uma rede deintenções e ações possíveis dentro de um mundo da vidaqualquer.

Uma análise de significado que captura essaúltima dimensão é a semântica pragmática do ‘segundo’Wittgenstein, segundo a qual é a prática de um jogo delinguagem – um conjunto de enunciações linguísticas eatividades não linguísticas – que determina o uso deexpressões linguísticas. Ou seja, é “o comportamento comumda humanidade” (Wittgenstein) que determina o significado euso de expressões linguísticas e não as intenções doindividuo isolado. Habermas expressa assim essaperspectiva:

Aprendendo a dominar uma língua ou aprender comoexpressões numa língua devem ser compreendidasrequer uma forma de vida. (…) Com a gramática dejogos de linguagem, a dimensão de um conhecimentode pano de fundo partilhado intersubjetivamente nomundo da vida, que carrega as funções múltiplas delinguagem, é revelado (ibid: 283).

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Além disso, essa abordagem foi responsável paratirar a função representativa de linguagem da sua posiçãoprivilegiada nas outras teorias de significação. O insightde Wittgenstein de que usamos a linguagem para não somentedescrever fatos no mundo, mas também comandar, resolverproblemas, contar piadas, agradecer, falar mal, rezar,etc., foi desenvolvido depois na teoria de atos de fala deJohn Austin e John Searle, teoria essa que Habermas criticae se apropria para elaborar sua teoria de pragmáticaformal.7

Habermas insiste que a função representativa delinguagem é somente uma das suas funções e não deveriaestar dada prioridade. Partindo de uma idéia de Bühler, elecoloca a função de linguagem de representar o mundo no péde igualdade com outras duas funções: a de expressar asintenções e experiências subjetivas do falante e a deestabelecer relações com um ouvinte (Habermas, 1998, cap.6). Portanto, em cada ato de fala, o falante levanta trêspretensões de validade – da verdade do conteúdoproposicional do ato de fala; da sinceridade de suasintenções subjetivas; e da legitimidade das regras ounormas sociais que seu ato de fala pressupõe como validas –com a garantia implícita que poderia justificar essaspretensões, com razões num processo argumentativo, se fornecessário, ou seja, se o ouvinte não aceita uma ou maisdelas. Então, não são as condições de verdade que servemcomo explanans do significado de um ato de fala, mas asrazões que poderiam ser empregadas para justificar as

7 Não há espaço para elucidar a critica que Habermas faz da teoria deatos de fala de John Searle, nem para explicar sua teoria depragmática formal. Para uma exposição detalhada da ultima, ver meulivro Habermas e a Educação, Autentica, 2006, capitulo II. A crítica queHabermas faz de Searle foca no fato de que Searle somente reconheceuma pretensão de validade – a de verdade, privilegiada pela semânticaformal, orientada somente para a relação entre linguagem e o mundo –que não é suficiente para distinguir as categorias de atos de falaproposta na sua própria teoria. Em outras palavras, Searle tambémprivilegia a função representativa de linguagem. Ver Habermas, 1998,cap. 5.

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pretensões de validade que o falante levanta. Nas palavrasde Habermas, “compreendemos um ato de fala quando sabemos oque faz com que ele seja aceitável” (ibid: 199).

Assim, Habermas insiste, na sua pragmaticaformal, numa relação interna entre a compreensãolingüística e o entendimento alcançado comunicativamente.Ou seja, para entender um enunciado temos que saber como ousaríamos como o objetivo de alcançar um entendimento sobrealgo com alguém. Isso captura, segundo ele, as três funçõesque são servidas quando empregamos expressões lingüísticaspara comunicar: um falante quer chegar a um entendimentocom uma outra pessoa sobre algo no mundo. Portanto, noentender de Habermas, não é possível separar a compreensãode uma expressão lingüística da orientação ao entendimento.Como ele próprio diz: “Alguém teria falhado completamenteem compreender o que é entender o significado de umenunciado se não soubesse que ele serve ao propósito dealcançar um entendimento sobre algo” (ibid: 199). Isso éimportante, porque alcançar um entendimento sobre algopoderia ser considerado um dos mecanismos centrais aaprendizagem, como veremos mais adiante.

Uma objeção a essa teoria pode ser formulado doponto de vista da aprendizagem da criança. A conexãoestabelecida entre o significado e a capacidade de resgatarpretensões de validade ou, pelo menos, saber quais razõespoderiam ser utilizadas nesse processo, é demasiado fortejá que implica uma capacidade que a criança pequena nãoadquiriu ainda. Se uma competência comunicativa plena é acondição necessária para compreensão lingüística, entãoparece impossível que crianças poderiam aprender acompreender até as palavras e frases mais simples da línguana qual estão sendo socializadas. Como Dummett diz, asprimeiras frases que uma criança aprende são de tal tipoque elas mesmas são capazes de verificar se são verdadeirasou não. Como Dummett (2006: 79) afirma:

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é sabido que as primeiras formas de frase queaprendemos são aquelas que podem ser decididas, talcomo “está nublado lá fora”. (…) Porém, à medidaque nossa linguagem se sofistica aprendemos acompreender formas de sentenças mais complexas.

Isso implica que compreender o significado defrases simples, pelo menos, nao depende de saber quandoseria aceitável por outros, algo que a criança pequena nãoestá capaz de fazer por falta de competência comunicativa.Convêm perguntar, todavia, por que razão Habermasdesenvolve uma teoria de significação que vinculacompreensão lingüística aos mecanismos de chegar a umentendimento mútuo via argumentação ao invés de adotar ateoria cunhada pelo segundo Wittgenstein, segundo a qual osignificado é simplesmente determinado pelo seu uso numaforma de vida. A resposta é que, segundo Habermas, a teoriade Wittgenstein amarra o significado ao seu uso factual emuma determinada comunidade lingüística e, portanto, nãoabre espaço para a possibilidade de erros em afirmaçõesempíricas sobre o mundo, ou seja, exclui a possibilidade deaprendermos mediante os embates contra um mundorecalcitrante.

Wittgenstein introduz a conexão interna entresignificado e validade independente da relação delinguagem ao mundo: assim não vincula as regraspara o significado de palavras com a validade, nosenso de verdade, de sentenças. Ao invés disso,compara a validade de convenções de significado coma validade social prevalente de costumes einstituições e assimila às regras gramaticais dejogos de linguagem as normas sociais de ação.Claro, assim ele abre mão de qualquer relação devalidade que transcende os contextos de um dadojogo de linguagem. Enunciações são validas ouinvalidas somente com relação aos padrões de umjogo de linguagem ao qual já pertencem. Assim,quase imperceptivelmente, a relação com a verdadede uma fala que afirma fatos é perdida. (Habermas,ibid: 288)

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Eis o cerne da questão. Como já vimos, Habermasinsiste que a significação de qualquer afirmação empíricatem que transcender o contexto do uso da linguagem. É porisso que vincula a compreensão lingüística com oentendimento mútuo entre falante e ouvinte. Assim,compreender uma enunciação do outro permite a possibilidadede chegar a um conhecimento intersubjetivo do mundo porprocessos de argumentação, conhecimento isso que transcendeo contexto específico do falante e do ouvinte. Isso porque

A questão da validade de uma sentença não é maisuma questão – desvinculado do processo decomunicação – sobre a relação entre linguagem emundo. Tampouco a pretensão de validade, com aqual o falante se refere às condições de validadede sua enunciação, pode ser definida somente doponto de vista do falante. Pretensões de validadetêm uma orientação intrínseca ao reconhecimentointersubjetivo do falante e ouvinte; podem servindicadas somente com razões, ou seja,discursivamente, e o ouvinte reage a elas com umaposição de “sim” ou “não” racionalmente motivada.(ibid: 292)

No entanto, podemos levantar mais uma vez a objeçãoacima. Se a compreensão de uma enunciação tem uma relaçãointerna com sua validade que, por sua vez, depende em sabero que faz com que ela seja aceitável, que implica numacapacidade discursiva, como é possível uma criança pequenacompreender enunciações simples sobre o mundo empírico? Apossibilidade, sugerida por Dummett, que a própria criançaseja capaz de verificar, por observação, se as condições deverdadede frases assertoricas estão preenchidas émodificada para a possibilidade de que a criança seja capazde reconhecer que o falante pode oferecer razões para suaafirmação. Também, pressupõe que a criança pode adotar umapostura de “sim” ou “não” com relação à enunciação dofalante e, portanto, seja capaz de oferecer razões para nãoacreditar na afirmação.

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Assim, no pensamento habermasiano questõespuramente epistemológicas, sobre a relação entre fatosexpressos em linguagem e a realidade empírica, não assumemmais o lugar de destaque para analisar a possibilidade deaprendizagem. Não é o caso que o ouvinte compreende oconteúdo proposicional do ato de fala pelo conhecimento desuas condições de verdade. Aliás, essa teoria parece atécircular, como Dummett (2006) tem argumentado recentemente,porque a compreensão de uma proposição é explicada peloconhecimento das condições para a proposição serverdadeira, o que, por sua vez, implica compreender aproposição! Ao contrário disso, “o lócus da racionalidade étransferido do componente proposicional ao componenteilocucionário, enquanto, ao mesmo tempo, as condições devalidade não são mais fixadas na proposição” (Habermas,ibid: 294). Em outras palavras, a relação epistemológicaentre linguagem e o mundo é substituída com a relaçãopragmática entre falantes e as razões que podem fornecerpara afirmar ou negar uma proposição. Isso quer dizer que oouvinte não infere as condições de validade de umaenunciação diretamente do conteúdo semântico da expressãoutilizada,

mas somente indiretamente através da pretensãoepistêmica que o falante levanta para a validade desua enunciação no proferimento de seu ato de fala.Com sua pretensão de validade, o falante apela a umreservatório de razões potenciais que poderiam serfornecidas para apoiá-la. As razões interpretam ascondições de validade, e assim são, elas mesmas,parte das condições que fazem com que umaenunciação seja aceitável. Nessa maneira, ascondições de aceitabilidade apontam para aconstituição holística de línguas naturais. Numalíngua, cada ato de fala individual é conectado portecidos lógico-semânticos a muitos outros atos defala, que podem assumir o papel pragmático derazões. (Habermas, ibid: 297).

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Mas, se as razões interpretam as condições devalidade, deveria ser possível compreender tais condiçõessem as razões, ou seja, diretamente, digamos assim. Alémdisso, dizer que há tecidos lógico-semânticos entre atos defala presumivelmente quer dizer que uns podem ser inferidosdos outros, tanto pelo ouvinte como pelo falante. Seja comofor, o ponto principal da teoria de significação deHabermas é o de que “a orientação as pretensões de validadeé parte das condições pragmáticas da possibilidade doentendimento mútuo – e da compreensão lingüística em si” (Habermas,ibid: 298, grifos meus).

No entanto, parece que essa teoria de significaçãonão é menos circular que a semântica formal, porque parasaber quais razões um falante possa fornecer parajustificar sua afirmação é necessário já compreender o queele está dizendo! Chegar a um entendimento mútuo parecealgo separado do ato de compreensão lingüística. Alias,afirmar uma relação interna entre compreensão e validade –seja elaborada em forma de uma semântica ou uma pragmática- sempre vai esbarrar nesse problema, porque a noção devalidade já pressupõe a compreensão lingüística.

Em suma, se há motivos para questionar a relaçãointerna entre significação e validade na semantica formal,é igualmente questionável a idéia habermasiana de que osignificado de uma enunciação necessariamente passa peloprocesso de comunicação, como elaborada na sua pragmaticaformal. Aliás, o próprio Habermas parece notar essadificuldade na sua revisão do conceito de racionalidadecomunicativa (Habermas, 2004: 99-132). Nessa revisão,Habermas separa a racionalidade comunicativa daracionalidade epistêmica e racionalidade teleológica, nãodando a primeira uma função fundamentadora como antes. Emvez disso, agora as três “raízes” de racionalidade seencontram no mesmo nível. No entanto, ele insiste em negaro mentalismo e a filosofia da consciência, enfatizando que“a racionalidade epistêmica e teleológica não são de

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natureza pré-linguística” (Habermas, 2004: 102). Vamosanalisar essas ideias mais de perto.

Segundo Habermas, uma pessoa racional é capaz de sedistanciar de si mesmo e adotar uma atitude reflexiva paracom suas opiniões, convicções e ações, ou seja, prestarcontas de seus proferimentos e ações. Nisso reside a “plenaresponsabilidade” do individuo, além de ser uma condiçãonecessária de sua liberdade (ibid). No entanto, a “possereflexiva de juízos verdadeiros não seria possível se nãopudéssemos representar nosso saber, ou seja, exprimi-lo emproposições, e se não pudéssemos corrigi-lo e ampliá-lo,isto é: também aprender algo mediante o relacionamentoprático com uma realidade que nos resiste. (…) [U]mrelacionamento racional com o saber é possível graças àrepresentação lingüística do que se sabe e a confrontaçãodo saber com uma realidade no contato com a qual umaexpectativa fundamentada pode falhar” (Habermas, ibid:105). Pelo fato de que o saber ter uma estruturaproposicional e é “por natureza, lingüístico” deve serpossível representar nosso saber antes de ter uma possereflexiva dele. Isso quer dizer, entre outras coisas, quepodemos usar a linguagem, não comunicativamente,mas comouma representação “pura”,mental.

Por isso, Habermas volta a afirmar a semânticaformal para explicar uma representaçãomental, porque

o uso epistêmico (…) da linguagem (…) não dependede uma relação interpessoal entre falante e ouvinteenvolvidos numa situação de comunicação. Os atosilocucionarios e as pretensões de validade a elesvinculadas e talhadas para o reconhecimentointersubjetivo não desempenham um papel essencial(…) no uso lingüístico epistêmico, que serveprimariamente a representação do saber (…): poisaqui os usuários da linguagem não perseguem metasilocucionarias. Embora a linguagem, em todo caso,deva ser conquistada comunicativamente, asexpressões lingüísticas podem em tais casos ser

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empregadas monológicamente, isto é, sem referênciaa uma segunda pessoa. (Habermas, ibid: 110)

O conteúdo semântico de proposições enunciativas,então, “existe independentemente dos atos ilocucionarios emque elas podem encaixar”. Assim, Habermas adota a semânticaformal para a compreensão de enunciados, ou seja,“compreende-se uma proposição enunciada aplicada em sentidoepistêmico, quando se conhecem as condições de verdade e sesabe portanto quando são verdadeiras” (ibid). No entanto,essa teoria é sujeita a acusação de ser circular, comovimos acima.

No entanto, Habermas não abandona sua teoriapragmática de significação com relação ao uso comunicativode proposições enunciativas em atos de fala. Aqui a metailocucionária é a de que “o outro reconhece “p” comoverdadeiro” (ibid: 111) e isso, Habermas insiste, querdizer que para compreender a enunciação o ouvinte tem que“interpretá-la com base nas razões que, sob condiçõesnormais, podem servir para o resgate d[a] pretensão devalidade correspondente” (ibid: 131-132). Mas, mesmo se nãoaceitamos a acusação de circularidade, parece que Habermasjá aceita que é possível compreender uma proposiçãodesconsiderando “uma possível situação comunicativa em queum falante afirmaria o enunciado “p” com o propósito deconseguir o assentimento de um destinario” (ibid: 110-111).Ou seja, no meu entender, isso quer dizer que umaproposição pode “serv[ir] a representação de um estado decoisas ou de um fato”, sem isso ser comunicado ou afirmadoa ninguém e que a compreensão de tal proposição é explicadapela análise da semântica formal. No entanto, quandoafirmado num ato de comunicação, essa proposição assume umsignificado ilocucionário que somente poderia ser explicadoa partir da teoria pragmática de significado. Em suma, paracompreender uma proposição em sentido epistêmico, basta“relacionar [a] proposição a algo no mundo objetivo, ouseja, conhecer o estado de coisas e a direção de ajuste

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(directionoffit)” (ibid), ou seja, se a proposição seajusta a realidade no sentido de que a realidade é como eladiz que é.

No entanto, isso rouba a teoria pragmática designificação do que era interessante nela, ou seja, apretensão de que a compreensão lingüística em si depende dacapacidade do ouvinte de reconhecer as razões que o falanteteria para justificar sua enunciação. O que resta, pareceeu, é uma teoria de interpretação de enunciações empregadasem atos de comunicação, pressupondo que”falante edestinário (…) dominem uma linguagem comum (ou possamproduzir uma por meio da tradução)” (ibid: 131). Isso é umaexplicação do “que significa compreender um ato de fala”,ou seja, do sentido ilocucionário de uma enunciação, masnão como compreender uma proposição sobre o mundo empírico.As objeções levantadas acima, com relação à possibilidadede uma criança compreender tais frases, e a de que a teoriaé circular, não se aplicam a uma teoria de interpretação deatos de fala, porque já está pressuposto que osparticipantes na comunicação dominam a mesma língua, quequer dizer que dominam o sistema semântico dessa linguagem.Claro, isso não rouba dessa teoria de seu poder em explicaro sentido ilocucionário de um ato de fala e é isso no qualHabermas vai se apoiar na sua teoria de cognição.

A virada pragmática na teoria de significação,junto com sua teoria de referência, levou Habermas adesenvolver uma teoria pragmática de cognição, no sentidode aprendizagem. Como vimos, quando sujeitos agem “dedentro do horizonte de seu mundo da vida [eles] se engajamem suas práticas se referindo a algo no mundo objetivo queeles pressupõem como existindo de modo independente e comosendo o mesmo para todo mundo” (Habermas, 2003: 16). Noentanto, às vezes nossas práticas comuns sofrem distúrbios,porque falham. Quando isso acontece, somos forçados aproblematizar as crenças que fundamentam tais práticas e

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que foram tidas por verdadeiras. “De um ponto de vistapragmático, ‘cognição’ é resultado do processamentointeligente de desenganos vivenciados de modo performativo”(Habermas, ibid: 13). Também, a tarefa principal daepistemologia muda. Não se trata mais de uma explicação darelação semântica entre proposições e a realidade. Ao invésdisso, a principal tarefa de epistemologia passa aconsistir na explicação de “processos de aprendizagemcomplexos e profundos que acontecem quando as expectativasque guiam nossas ações são problematizadas. Isso faz comque a totalidade das práticas que constituem uma forma davida seja epistemologicamente relevante”. Assim, a funçãocognitiva da linguagem é amarrada a “contextos deexperiência, ação e justificação discursiva” (Habermas,ibid: 26).

Obviamente, “cognição” aqui quer dizer mais quesimplesmente apreender algo no mundo empírico. O sentidodessa palavra para Habermas é o de modificar nossas crençassobre o mundo a partir de nossas falhas em agirintencionalmente. Nesse sentido, é o contexto de ação quepermite a cognição.

Quando nossa ação falha, estamos forçados aquestionar as crenças por trás de nosso agir. Nessasituação, proposições aplicadas em sentido puramenteepistêmico somente podem ser resgatadas ou rejeitadasdiante de outros em processos de justificação, ou seja, “nofórum publico de argumentação”.

Entretanto, o uso teleológico da linguagem, na açãoinstrumental (quando o objetivo não é interagirestrategicamente ou comunicativamente com outros) nãodepende de uma relação interpessoal entre falante e ouvintenuma situação de comunicação. Posso intervir no mundosozinho. Faço isso quando me levanto de manhã, tomo banho,escovo meus dentes e por ai vai. Nessas ações estamosagindo racionalmente se nossa ação é bem sucedida e “(a)

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sabe[mos] por que teve êxito (…) e se (b) esse saber motiva(ao menos em parte) o ator de modo tal que ele execute suaação por razões que ao mesmo tempo podem explicar seuêxito” (Habermas, ibid: 106). Mas, como sabemos, podemosagir racionalmente nesse sentido e ainda falhar em nossaação. Pois, às vezes, o mundo não coopera, digamos assim,com nossas intenções. Nossa ação não é bem sucedida. Nessasituação, seria irracional continuar agindo a partir domesmo saber. Então, teríamos que mudar do contexto de açãoao contexto de discurso, ou seja, a única maneira, segundoHabermas, para avaliar o saber por trás de nossa ação épela argumentação. E isso, por sua vez, exige a formareflexiva de ação comunicativa, na qual pretensões devalidade podem ser resgatadas ou rejeitadas pelo usocomunicativo da linguagem. Quando nossos planos de ação, eas representações por trás deles, estão postos em questãopelo próprio mundo, digamos assim, temos que justificar“nossas deliberações monológicas discursivamente” (Ibid:111). Nesse caso, o que foi tido por verdadeiro estátematizado e sua verdade decidida num discurso, um usocomunicativo de linguagem orientado ao entendimento mútuo.

É importante notar que a ação não social, umaintervenção no mundo dirigida a um objetivo, mas que nãoenvolve outras pessoas, como escovando meus dentes, éestruturada linguisticamente, mesmo o uso da linguagemnesse caso não sendo comunicativo. Obviamente, eminterações sociais, tantas estratégicas como comunicativas,o uso de linguagem é comunicativo (ou orientado para asconseqüências da ação ou orientado para o entendimentomútuo). O fato que toda ação é estruturada linguisticamenteé visto no caso de escovar meus dentes. Essa intençãomental, digamos assim, é resultado de uma deliberaçãoprática, que depende de informações confiáveis, mesmoincompletas. E tais informações somente podem serprocessadas “no médium de representação lingüística”(Habermas, ibid: 107). Assim, até intenções de ação bem

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simples são linguisticamente estruturadas. A linguagem nãosomente estrutura nossas representações sobre o mundo, mastambém nossas ações intencionais, sejam sociais ou não-sociais. No caso de uma ação simples como escovar osdentes, temos-por-verdadeiras uma série de proposiçõessobre o mundo: que o banheiro está num certo lugar na casa;que minha escova está no lugar onde deixei; que a água natorneira está correndo, etc. Obviamente, não questionamos averdade dessas proposições no agir normal. Como Habermasobserva, a vida prática seria impossível se tomamos todasessa proposições como hipóteses a serem testadas! Noentanto, se falhar nossa ação, teríamos que questionar seuma (ou mais) dessas proposições são falsas.

Ora, segundo Habermas, a única maneira de testarse crenças são verdadeiras ou falsas é pelo usocomunicativo da linguagem na forma reflexiva da açãocomunicativa. Aliás, a ciência é, digamos assim, a formainstitucionalizada e sistematizada dessa prática. Portanto,a cognição, no sentido de mudança de crenças na direção deum conhecimento mais confiável (porém sempre falível) sobreo mundo necessita o uso comunicativo da linguagem orientadopelo entendimento mútuo.

Em qual sentido a linguagem tem um poderformativo, no sentido de promover processos deaprendizagem? A linguagem tem, com certeza, uma função deabertura ao mundo, mas em qual sentido? Como Habermas diz,quando falamos sobre algo no mundo, nossos atos decomunicação são “incrustados no contexto de um mundo davida que, por seu turno, é linguisticamente estruturado”(ibid: 126). Tal forma da vida constitui o pano de fundonecessário para o desenvolvimento de capacidades reflexivasatravés de discursos. Nesse sentido, segundo Habermas, taisformas de vida “fomentam a solução de problemas” através denossas capacidades reflexivas. No entanto, elas mesmas nãosão racionais; elas possibilitam um comportamento racional.

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Desse modo, o mundo da vida, que se articula, elemesmo, no médium da linguagem, abre para seusmembros um horizonte de interpretação para tudo oque eles podem experienciar no mundo, tudo aquilo apropósito do que podem entender e com o que podemaprender (Habermas, ibid: 127).

No entanto, para Habermas, essa “forçaestruturante” da linguagem não pode ser confundida com suaforça de resolver problemas. Fornece, até, o reservatóriode razões que falantes e ouvintes utilizam para avaliarpretensões de validade, que vem das tradições que compõemuma forma da vida. No entanto, o “complexo deracionalidade, do qual depende a capacidade deinterpretação e aprendizagem de uma sociedade em todas assuas dimensões”, por mais que seja dependente desse pano defundo, não pode ser identificado com ele. Por isso,Habermas rejeita a hermenêutica filosófica de Heidegger eGadamer, por exemplo, por compreender o mundo da vida nãosomente como um pano de fundo para a racionalidade, masracional em si mesmo8. Para ele, tradições não podem serracionais ou irracionais, não importam quais sejam. Somenteindivíduos são capazes de operações racionais, pelos quaisaprendem ao solucionarem problemas colocados pelo própriomundo. Essas operações racionais “encontram-se numa relaçãocomplementar (…) com a abertura lingüística ao mundo”(ibid: 129), no sentido de que não seriam possíveis sem afunção da linguagem de desvendar o mundo. No entanto, nãopodem ser reduzidas a essa função, como, por exemplo,Charles Taylor argumenta quando define a racionalidade comoo processo de articular o horizonte de nosso mundo da vida(Taylor 1985).9

8 Como Gallagher (1998) nos diz: “Não sou racional porque decido agirnuma maneira racional; pelo contrário, só posso agir numa maneiraracional porque estou envolvido numa racionalidade que vai além de mima que não posso escolher, mesmo sendo o fundamento de todas as minhasescolhas”. 9 Para o debate entre Habermas e Taylor sobre esse ponto, ver Habermas,1982, Taylor, 1982.

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Para Habermas, então, são processosinterpretativos, que somente acontecem na e pela linguagem,que “abre[m] o acesso ao mundo para uma comunidadelingüística”. No entanto, é por “processos intramundanos deaprendizado”, também possibilitados pela linguagem, queesse saber do mundo é ampliado e revisado. A práxis deentendimento mútuo somente é possível dentro de um mundo davida intersubjetivamente partilhado, porque é a articulaçãolingüística desse horizonte que faz com que tais processossejam possíveis. É nessa práxis que a abertura para o mundoe processos de aprendizagem interagem. Por isso énecessário pressupor que nosso ato de referência abre paranós o mundo empírico, que existe independentemente dalinguagem, para essa práxis ter um ponto de encontro com omundo como ele é. Se isso não fosse possível, aaprendizagem, no sentido forte de revisar nosso saber domundo empírico, não seria possível.

O que pensar dessa teoria? Em atos de referêncianos referimos a fatos e estados de coisas no mundo, nãosomente objetos individuais. E atos de significação nãopodem ser explicados pelas condições de verdade de umaproposição, porque esse argumento é circular: conhecimentode tais condições de verdade já pressupõe que sabemos osignificado da proposição. Se essas teorias podem serquestionadas, então a teoria pragmática de aprendizagem deHabermas também pode ser questionada. Acho que um dosproblemas aqui é a insistência em termos que escolher entreposições-padrão10, ou seja: entre realismo e idealismo (ou,pelo menos, um realismo conceitual), no plano ontológico; eentre o poder formativo da linguagem de desvendar o mundoou resolver problemas. Na última parte desse artigo vousugerir uma saida das aporias da teoria de Habermas, mebaseando na obra de John McDowell.

10 A estratégia filosófica de questionar posições-padrao para resolverproblemas filosóficos pego emprestado de John Searle, 2000.

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(3) Racionalidade é parte do que John McDowell (1994)chama de nossa segunda natureza, o que faz com que sejamoshumanos é a espécie que evoluiu de uma maneira específica.Assim, não precisamos pensar na racionalidade como algoextra-mundano, separada da nossa existência enquanto seresempíricos e naturais. É embutida, digamos assim, dentro dasestruturas de pensamento e ação, nas capacidades queutilizamos para interpretar o mundo e agir nele. Somosanimais racionais porque somos animais que tem a linguagem.Ate aqui, Habermas e McDowell paracem de acordo.

No entanto, MacDowell desenvolve uma análisediferente da de Habermas sobre a relação entre mente,linguagem e mundo. Ele faz uma distinção entre o ato depensar e o conteúdo sobre o qual nos pensamos. Isso permitea ele afirmar que o ato de pensar é constrangido por umarealidade externa, mas o que é pensado não é. Não há comoseparar o conteúdo pensado, que é conceitual, e a“realidade”. Mas isso não quer dizer que são duas coisasseparadas. Pensar assim é não conseguir se livrar deposições-padrão. Percepção não seria possível sem alinguagem, mas a percepção revela o mundo como ele é.Habitamos o que McDowell chama de um “espaço de razões” noqual somos iniciados por um Bildungsprozess e é esse espaçode razões que constitui nossa experiência do mundo. Nossaexperiência do mundo já é constrangida por esse espaço.Ora, para McDowell, nossa percepção do mundo já depende dascapacidades conceituais, que, por sua vez, depende dalinguagem.

A análise que McDowell faz da relação entre mentee mundo sugere que “já nós encontramos engajado no mundonuma atividade conceitual dentro de um sistema dinâmico”(ibid: 34). Não há nenhuma fronteira entre a esfera doconceitual além da qual se encontra algo não conceitual.Isso quer dizer, além de outras coisas, que chegar acompreender a interpretação do mundo do outro não é umaquestão de ver como seus pensamentos se relacionam com um

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mundo independente, mas “chegar a compartilhar o ponto devista dela, o ponto de vista do qual podemos direcionarnossa atenção compartilhada ao mundo, sem a necessidade desair da fronteira que contém nosso sistema de conceitos”(ibid: 35-36).

No entanto, pode se levantar a objeção de que issonos deixa presos num círculo mágico de conceitos (e, porextensão, de linguagem), sem conexão ao mundo. Será queassim perdemos o mundo, digamos assim, como Habermasargumentaria? Entretanto, podemos contra argumentar quepensar assim pressupõe uma dicotomia filosófica entreidealismo e realismo, do qual McDowell está lutando paranos livrar. Insistir que não há nada além do sistema deconceitos, sobre o qual conceitos se referem, não é negarque conceitos são sobre o mundo ou que nossa experiência domundo não pode alterar como pensamos sobre ele. Assim, omundo é, sim, um constrangimento sobre nosso pensamentosobre ele.

Mais importante ainda é que essa análise permitever como a experiência perceptual pode ser uma razão paranosso juízo. Se a coisa à qual apelamos para avaliar nossopensamento sobre o mundo for não-conceitual, então somentepoderia ter uma relação causal com o juízo e não umarelação racional. E isso rouba nossa liberdade de pensaruma coisa em vez de outra. Assim, a preocupação de Habermasde que a experiência seja algo passiva e não ativarealmente se aplica. O espaço de razões seria irrelevantepara gerar pensamento e, assim, o processo seria não-racional. Como McDowell diz, nesse caso é “impossível vercomo uma experiência poderia ser a razão de alguém para oexercício paradigmático de espontaneidade como um juízo”(ibid: 69). Ver exercícios de pensamento e juízo comonaturais aos seres humanos não é reduzi-los a relaçõescausais no domínio de natureza, mas “enfatizar seu papel emcapturar padrões numa maneira de viver” (ibid: 78) que éespecificamente humano.

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Habermas acusa McDowell de elaborar um realismoconceitual que, como já vimos, “sobrecarrega a experiênciacom a função de perceber os fatos como uma presençasensível ou de ter uma intuição intelectual deles”(Habermas, 2004: 41). Assim, “a afecção dos sentidos nãofornece os desapontadores estímulos ou impulsos aos quais aimaginação do espírito construtivo responde cominterpretações; ela não intermedeia confrontações, por meiodas quais um espírito falível testa e corrige suasinterpretações” (ibid;: 163).11 O problema com essacrítica, no entanto, é o de que pressupõe uma separaçãoentre um esquema conceitual, a partir do qual percebemos omundo e o mundo objetivo em si.

McDowell concorda com Donald Davidson quandorejeita a ideia de um esquema conceitual a partir da qualolhamos ao mundo, com a implicação de que há váriosesquemas desse tipo separáveis do mundo objetivo. 12 Comoele mesmo diz:

O argumento [de Davidson] subverte uma concepção delinguagem, ou um esquema conceitual, como algo quepermite uma espécie de confrontação com o mundoconcebido como “algo neutro e comum que fica forados esquemas” (...) Contra isso, Davidson insisteque quando utilizamos (make play with) uma concepçãode linguagem como confrontando o mundo, podemosconceber o mundo somente como o mundo como algo como qual estamos engajados através de nossaspráticas. Assim, ele diz: ”abrir mão de um dualismode esquema [conceitual] e mundo [concebido comoalgo neutro e comum que fica fora dos esquemas],não abrimos mão do mundo, mas reestabelecemoscontato não mediado com os objetos familiares cujastravessuras (antics) fazem com que nossas sentenças

11 Habermas inclui Brandom na mesma crítica, mas não há espaço aquipara desenvolver uma análise da sua crítica de Brandom. Ver Habermas,2004, capítulo 3.12 Não há espaço aqui para analisar como McDowell apropria o pensamentode Davidson.

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e opiniões sejam verdadeiras ou falsas”. (McDowell,2009: 136).

É, sem dúvida, difícil nos livrar do dualismoesquema-mundo, principalmente porque a tendência é de acharque tal manobra vai inevitavelmente cair em relativismoe/ou idealismo. É difícil pensar num acesso direto, nãomediado, ao mundo, tão forte é a herança da filosofiamoderna, com seu dualismo mente-mundo e a consequentenecessidade de construir algo que faça a mediação entre umae o outro.

Ora, é importante notar que isso não quer dizerque o mundo é criado pela nossa atividade conceitual. Não éidealismo. Seria insano, como diz McDowell, achar isso, bemcomo não ver nosso pensamento como sendo influenciadocausalmente pelo mundo. A dificuldade é a de aceitar que“fatos tipicamente não concernam pensamento” e, ao mesmotempo, aceitar que “podemos compreender os impactos domundo na formação de crenças como estando já dentro de umaesfera conceitual e não como algo que impinge em nossopensamento de lado de fora”. (ibid: 138-9). Aliás, daperspectiva dessa análise, não há um lado de fora, um“dado” que é além do conceitual.13 A relação entre o mundoe nosso pensamento é racional além de ser causal. 14 Aideia aqui não é a de negar que a realidade independe donosso pensamento.

Como Gadamer, apropriado por McDowell, nos diz,“o ser-no-mundo do homem é primordialmente linguístico"(Gadamer: 443). Isso quer dizer, além de outras coisas, queo ser-no-mundo de qualquer sujeito humano é moldado por umalíngua. Uma consequência dessa ideia é a de que uma línguacompartilhada é uma condição da possibilidade de nos13McDowell segue Sellars em argumentar contra o mito do Dado (myth of theGiven). Ver Sellars, 1956.14 Pode parecer que isso vai contra a ciência e sua fisicalismo comrelação às relações causais. McDowell segue Gadamer em não dar aciência física prioridade em “penetrar à conexão real das coisas”. Oconceito de causalidade não precisa ser reduzido a essa concepção.

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constituir enquanto sujeitos capazes de compreender o mundo(McDowell, ibid: 145). Ser iniciado em práticaslinguísticas é a única maneira pela qual seres humanospodem ser sujeitos de compreensão e serem inseridos numaforma de vida humana.15 Como McDowell diz: “a ideia de tero mundo em vista (have the world in view) se torna inteligívelem termos de ter sido inserido numa tradição, que é partedo que é de ter aprendido a falar uma língua no sensoordinário” (ibid: 146).

Além da acusação de idealismo, a análise deMcDowell é muitas vezes acusada de ser relativista. Noentanto, ele responde a essa crítica dizendo que “não hárelativismo em dizer que não podemos fazer uma distinçãoentre o mundo ele próprio e o tópico de nossa visão demundo” (ibid: 137). Para que visões de mundo sejamrelativasentre si, seria necessário opô-las ao ‘ mundo emsi’, como Gadamer (ibid: 447) nota, com a implicação de quea visão correta seja aquela de uma possível posiçãoextramundana. Mas é exatamente esse ponto arquemediano quenão está disponível a nós humanos, como Habermas tambémreconhece. A diferença entre McDowell e Habermas aqui, queé crucial, é a de que para Habermas o mundo objetivo é umpressuposto pragmático por trás das atividades decompreensão, enquanto para McDowell temos acesso nãomediado ao mundo, ele mesmo, mas um acesso que é racional enão meramente causal. Porque toda visão de mundo é aberta aqualquer outra, o tópico de todas é o mundo ele mesmo e nãoalgum item constituído por nosso pensamento. Pela mesmarazão, visões de mundo diferentes não são sobre mundosdiferentes. São maneiras diferentes de ver o mesmo mundo;mas isso não é relativismo.

No entanto, isso deixa duas perguntas: Comoadquirimos as capacidades conceituais necessárias para a

15 Aqui a ideia de uma forma de vida humana remete ao conceito de jogode linguagem em Wittgenstein, que abrange não somente a fala, mastambém práticas e instituições não linguísticas.

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percepção?; O que é que provoca uma mudança de pensamento,ou seja, aprendizagem? McDowell responde à primeirapergunta aproveitando a ética aristotélica. “Segeneralizarmos a maneira pela qual Aristóteles concebe aformação do caráter ético, chegamos à noção de ter os olhosabertos às razões pela aquisição de uma segunda natureza(...) o que na filosofia alemã chama-se Bildung” (Ibid:84). A capacidade da racionalidade é resultado de umprocesso formativo de estar iniciado numa maneira de viverque é humano e, portanto, já racional.16 A linguagem naqual somos iniciados já contém relações racionais entreconceitos. Assim, a função central da linguagem é a de um“repositório de tradição, um armazém de sabedoriahistoricamente acumulado sobre o que é uma razão para oque”. Em outras palavras, nossa “rede de capacidadesconceituais [é] vinculada por supostas conexões racionais”,conexões essas que aprendemos quando aprendemos uma língua.Mas, mesmo assim, funcionam como constrangimentos ao nossopensamento.

Mas, ainda resta a pergunta: Como essa tradiçãopode sofrer modificações? Como McDowell diz, “a tradição ésujeita a modificação reflexiva por cada geração que aherda” (Ibid: 126). Aqui, acho que o modelo de reflexãoracional desenvolvido por Habermas, por mais que capturaaspectos necessários para a reflexão sobre nosso saber domundo, é racionalista demais, no sentido de que nãocontempla outras maneiras de questionar e modificar nossascrenças sobre o mundo que não necessitam de processos deargumentação em condições aproximadamente idéias de fala.McDowell diz: “Nossa visão de mundo inclui sua própriareceptividade à possibilidade de correção, não somente peloesforço de melhorá-la que é interna a nossas práticas deinquietação, mas também pela apreciação de insights deoutras visões de mundo no processo de compreendê-las”(ibid: 138). O horizonte que é constituído pela nossa16 Para uma análise extensiva desse processo, ver David Backhurst, TheFormationofReason. Wiley-Blackwell, 2011.

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situação numa determinada tradição nunca é fechado; “ésempre aberto a ‘fusão’ com o horizonte constituído por umasituação específica diferente” (ibid: 137).17

Por isso, compreender a outra ou sua visão de mundoé “chegar a compartilhar o ponto de vista dela, o ponto devista do qual podemos juntar a ela em direcionar nossaatenção compartilhada ao mundo, sem a necessidade de sairda fronteira que contém nosso sistema de conceitos”(McDowell, 1994: 35-36). Nada podia ser mais importantepara educação, a meu ver, porque educação pode sercompreendida como o processo de “ter seus olhos abertos arazões em geral pela aquisição de uma segunda natureza”, deser iniciado em capacidades conceituais, como a capacidadede responder a exigências racionais. E isso quer dizer seriniciado num espaço de razões. Podemos compreenderprocessos de aprendizagem como aqueles que ajudam jovens (eadultos) a desvendar, digamos assim, a geografia do espaçode razões que habitem. A preocupação aqui não é somente comprocessos de justificação, mas em ocupar um espaço derazões através da aprendizagem de práticas linguísticas nasquais sujeitos estejam engajadas. Em outras palavras,adquirir as capacidades conceituais que constituem nossaexperiência do mundo.

17McDowell pega emprestado a expressão “fusão de horizontes” deGadamer.

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Referências Bibliográficas

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