Habermas e a Desobediência Civil Livro

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E a Desobediência C· I·V·I·L

María Fernanda Salcedo Repolês Mestre em Fi'losofia (UFMG)

Doutoranda em Direito (UFMGl Professora do Centro Universitário lzabela Hendrix

E a Desobediência C·I·V·I·L

Belo Horizonte - 2003

CATALOGAÇÃO NA FONTE DA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG ISBN DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO

REPOL~S, Marra Fernanda Salcedo. 048s Habermas e a desobediência civil.- Belo Horizonte: Man­

damentos, 2003.

Inclui Bibliografia.

15,5 x 22,5 - 152 páginas

ISBN: 85-87054-004-2

1. Direito- Filosofia. 2. Desobediência civil. 3. Demo­cracia - Interpretação e construção. 1. Título.

CDU: 340.1 11 .5 340.12

EDITOR: ARNALDO OLIVEIRA JUNIOR

Produção grâíica: A lexandre Cardoso

COPYRIGHT © 2003 BY

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"TEMOS UM ADVOGADO JUNTO AO PAI, JESUS CRISTO, O JUSTO." (1 JO 2:1)

NENHUMA PARTE DESTA EDIÇÃO PODE SER REPRODUZID!-, SEJAM QUAIS FOREM OS MEIOS OU FORMAS. SEM A EXPRESSA AUTORIZAÇÃO DA EDITORA

IMPRESSO NO BRASIL PR/NTED IN BRAZIL

À minha avó Carmelita Passos Repolês (in memoriam) por ser símbolo de fé, de força, coragem,

por representar o meu passado, meu presente e meu futuro,

por me ensinar de onde venho.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer ao CNPQ pelo financiamento deste trabalho, e sem o qual a instrumentalização desta e de outras idéias e pesquisas se tomaria impossível.

Agradeço ao Professor Doutor Francisco Xavier Herrero Botin, o meu orientador, por ter me ensinado disciplina e rigor, ter acompanhado com tanta dedicação todas as etapas deste trabalho e por ter desvelado para mim a misteriosa linguagem da Fi losofia.

Ao Professor Doutor Menelick de Carvalho Netto, meu pro­fessor, amigo e orientador no curso de Direito (F.D.-UFMG), junto a quem comecei, já na graduação, a idealizar o projeto hoje concretiza­do e a ler a obra de Jürgen Habennas.

À Professora Doutora Theresa Calvet de Magalhães pela interlocução crítica, e ao mesmo tempo amiga, fundamental para o crescimento das idéias aqui apresentadas.

Aos Professores Doutores José Henrique Santos e Newton Bignorto, por terem enriquecido a minha formação intelectual e tam­bém me permitido amadurecer muitas das idéias desenvolvidas neste trabalho; e pelo seu maravilhoso dom de ensinar.

Gostaria também de agradecer ao Professor Hugo Amaral, pela força que sempre me deu, por ter me estimulado a ingressar no curso de Mestrado em Filosofia e pela confiança que depositou em mim.

Às queridas Norma e Andréia, secretárias dos cursos de Pós­graduação em Filosofia, pela disposição e alegria em ajudar sempre.

Aos colegas da Pós-graduação e professores amigos, Cássio, Lilian, Jairo, Luiz Moreira, Hélder, pela amizade e pela possibilidade de discutir várias das idéias contidas neste trabalho.

À Professora Doutora Miracy Barbosa Gustin, pelo exemplo de profissional e de mulher, por ser uma maravilhosa orientadora, por toda a energia e força de vontade que nos ensina a ter.

À Professora Juliana Neunschwander Magalhães, pela sua alegria, pela viagem a Nova Iorque e por me estimular no estudo da teoria dos sistemas.

Aos queridos colegas Maria Tereza Fonseca Dias, José Eduar­do Eli as Romão e Ctáudia de Cássia Batista, por todas as experiênci­as que temos vivido juntos.

Aos pesquisadores do Projeto Pólos Reprodutores de Cidada­nia, em especial à Gisele, CecOia e Larissa, pela oportunidade que me deram, com o seu convívio, de crescer como profissional, mas acima de tudo, como ser humano.

Aos queridos amigos Marcelo Galuppo e Carla Pirfo, pelo grande apoio em todas as horas.

Às amigas e parceiras de todas as horas, Cintia Garabini e Marina Hermeto, pela paciência, pela doçura e pelo carinho com que me esperaram.

À querida Flávia Albuquerque, pela sua "mágica" e pela paz que me transmitiu nos momentos mais difíceis.

Ao Marquinho, por tudo que me ensinou a ver em mim e sobre mim mesma.

À tia Coramar, tio Renato e tia Vanessa, por serem meus "tutores", pelo amor e cumplicidade que nos une.

Ao Marcelo, por termos trilhado este e muitos outros caminhos juntos.

Finalmente, mas talvez acima de todos, gostaria de agradecer ao meu pai, Eugenio, à minha mãe, Maria Helena, à Maria Cristina e Maria Eugenia, minhas irmãs. Foram eles que me ensinaram o sentido de lutar pelo que acredito.

Prefácio

A atual filosofia pura, após a passagem da filosofia da consciên­cia para a filosofia da linguagem, o denominado giro hermenêutico e o pragmático, ou seja, a partir do momento em que, das mais diversas vertentes ou tradições filosóficas, a questão acerca do conhecimento deixa de ser ingenuamente posta como se o ato de conhecer não fosse constitutivo de nós mesmos, lingüística, histórica e socialmente con­formado por redes de pré-significação enraizadas nos horizontes demarcados por distintas e complexas gramáticas de práticas sociais não só herdadas como em permanente mutação, lida com uma racionalidade bem mais modesta do que tanto aquela que animava a pretensão do contemplativo conhecimento absoluto das estáticas es­sências que ordenavam hierarquicamente o olhar do homem antigo e medjeval quanto a racionalidade que impulsionava a ação de conhe­cer as leis eternas que regeriam o mundo para possibilitar o seu domínio e exploração. Uma racionalidade que agora, vencido o mito de uma ciência eterna, imutável, absolutamente verdadeira, capaz de eliminar os mitos, de irradiar suas luzes por todos os confins, sabe-se um saber limitado, datado, marcado pela situatividade histórica do seu processo de produção constitutivo não somente dos objetos que delimita para o seu estudo como também do cientista que o conduz.

Portanto, é também óbvio para a filosofia atual ao tomar como objeto de sua reflexão a questão da justiça que, tal corno vimos no tocante ao problema da verdade, essa nunca poderá ser resolvida de urna vez por todas e de sorte a nos dispensar da árdua tarefa da sua construção e reconstrução cotidiana em um processo infindo e com-

plexo no qual toda inclusão gera e expõe novas exclusões. Assim é que a tematização filosófica acerca dessa matéria é hoje necessaria­mente um questionamento reflexivo da riqueza potencial e da fragilida­de fnsitas à idealidade paradoxal que fundamenta o direitos por nós reciprocamente reconhecidos a nós mesmos e os diversos empreen­dimentos constitucionais modernos a reger a vida em comum dos povos em escala universal e de acordo com as especificidades de cada um deles.

O mergulho filosófico ao qual Fernanda Salcedo Repolês nos convida possibilita uma compreensão profunda da complexidade ine­rente ao constitucionalismo moderno e do seu paradoxal potencial libertário e de segurança jurídica em termos da recorrente efetivação da pretensão de sermos uma comunidade de homens, mulheres e crianças, a um só tempo, livres e iguais.

O instituto da desobediência civil , explicitado e tomado teórica e praticamente disponível por Thoreau no bojo da tradição consLiLU­cionaJista e liberal norte-americana, pode revelar, como demonstra a autora, uma racionalidade inclusiva profunda de nossa herança consti­tucional a ser retrabalhada em termos discursivos, como garantia do não fechamento do sujeito constitucional, da sua permanente abertura ao horizonte dos novos direitos tal como prefigurado no § 2º do art. 5° da Constituição da República de 1988.

Desse modo é que, para além do valor filosófico inegável de que se reveste a obra que me coube a honra de apresentar ao leitor, essa é uma leitura obrigatória para todos os que pretendam aprofun­dar-se na tradição constitucionalista que herdamos para a solução democrática da regência da nossa vida em comum.

Os desenvolvimentos teoréticos aqui realizados revelam todo o potencial contrafático típico dessa herança e intimamente vinculado às constrUções sociais consubstanciadas nos institutos da constituição formal e do controle difuso de constitucionalidade das leis enquanto conquistas evolutivas capazes de viabilizar a defesa do constituciona­lismo contra todas as tentativas de abuso do mesmo, inclusive e sobretudo, a garantia do não assenhoramento excludente e arbitrário,

sem contestação, do sentido do texto constitucional por parte daque­les que deveriam ser o seu guardião. Esse é um risco sempre presente cm todos os ordenamentos constitucionais e que só pode ser enfren­tado mediante a possibilidade insti tucionaJ de se trazer para a arena do debate público as leituras conflitantes no sentido de que a comunidade aberta de intérpretes da constituição, ou seja, os seus destinatários, a cidadania, possa efetivamente afirmar a sua existência de forma con­creta, como fluxo comunicativo, definindo o sentido fundamentado na vida cotidiana que, para nós, aquele texto porta, a um só tempo, limitando essas autoridades e constituindo o próprio objeto que lhes incube guardar e preservar.

O profundo, instigante e provocador texto de Fernanda Salcedo Repolês cumpre plenamente o difícil desafio posto à reflexão que se quer filosófica, ele nos conduz à reflexão sobre nós mesmos e a considerarmos a inafastável responsabilidade de cada um de nós pela construção de uma forma de vida em comum que possa merecer o qualificativo de democrática, pois que nela a liberdade e a igualdade de todos e de cada um é institucionalmente possibilitada. Democracia e constituição são construções sociais que, se guardam uma inaplacá­vel e permanente tensão entre si, são absolutamente complementares e reciprocamente requerentes, de tal sorte que só há democracia se houver limites constitucionais que garantam a minoria e impeçam ares total e só há constitucionalismo se a constituição possibilitar a forma­ção de uma vontade política e jurídica que possa ser assumida como de todos e de cada um.

Bem-vindos à reflexão acerca de uma desobediência essencial para justificar a legitimidade da obediência às leis, imprescindível para esclarecer por que em nossas sociedades complexas a legalidade é capaz de produzir legitimidade e a legitimidade requer a legalidade.

Menelick de Carvalho Netto Belo Horizonte, 28 de janeiro de 2003.

Sumário

Introdução - COLOCAÇÃO DO PROBLEMA ......... ... ... .. .... 15

1 O que é desobediência civil?.... .. .. .... .... .. ...... ...................... 17 2 Delinútação da hipótese .. .. .. .. .. . .. . . .. .. .. ... .. . .. .. . .. .. . .. .. .. .. . . . . . .. . 23 3 Justificativa . .. . .. . . ... .. ... . . . ... .. . . . .. . ... .. . . . . . . . . . .. .. .. . . . . . .. . . . ... .. ... . . . . 23 4 Contextualização .... .. .... ......... ................... .. .. .. . .. ......... ...... .. 28 5 Metodologia . . .. . . .. . .. . .. .. ... . .. . .. . .. ...... .... ... ........ ............. .. . . . .. . 33

Capítulo 1- A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADEEVALIDADENODIREITO ... 41

1 Da razão prática à razão comunicativa .. ............... .. . ....... .. ... 43 2 A tensão entre facticidade e validade imanente à linguagem:

pressupostos da teoria habeanasiana da linguagem .. ....... .... 52 3 Processo de racionalização do mundo da vida e o problema

da integração social . . . ... . .. . .. .. .. .. . . . . . . .... ........ .. . . . . . . . . . . . . . .. . ... . . . 65 4 Sobrecarga do mecanismo do entendimento, a tensão

imanente entre facticidade e va.lidade no Direito, e o seu papel de integrador social ............... . ......... .. ... ...... ... .... .. ... .. . 67

Capítulo 2-PROCESSO DELEGITIMIDADEDO DIREITO.. 77

1 O antagonismo entre autonomia pública e privada, direito subjetivo e direito objetivo: do Estado Liberal ao Estado Social ........ ................... ....... .. .... ................ .... ............ ... ..... 81

2 As tentativas de superação dos antagonismos e o problema da legitimidade do Direito....... ..................................... ... .... 86

3 Autonomia moral e autonomia política, direitos humanos e soberania popular nas tradições democráticas liberal e republicana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . ... . . . . . . . . . . . . . .. . . 90

4 Concretização do princípio do discurso em princípio da moralidade e em princípio da democracia ... .. ..... ............... .. 95

5 Co-originalidadeecomplementaridadeentre moral e Direito. 103 6 Gênese do Direito: a conexão entre direitos humanos e

soberania popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Capítulo 3 - A DESOBEDIÊNCIA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DOESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...... ................. 115

1 O princípio da democracia e a institucionalização do processo Jegislati vo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118

2 A desobediência civil como mecanismo que consolida o princípio da democracia ... ...... ... . .. ... ... ... . .... ..... .. . .. .. . ...... ..... 127

3 A desobediência civi l e o Estado Democrático de Direito como projeto inacabado ..... .. .......... ...... ............................. 133

4 A circulação do poder político no paradigma do Estado Democrático de Direi to e a implementação da desobediência civil como direito .......... .. ..... .. .................... .. 135

Conclusões . . . . . . . . . . . . .. . . . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Bibliografia ............................................................................ 145

Introdução

COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

1 O QUE É DESOBEDIÊNCIA CIVIL?

"Leis injustas existem: Ficaremos satisfeitos em obedecer a elas ou tentaremos corrigi-las? Sob um governo como o nosso, muitos acreditam que devem esperar até convencer a maioria da necessidade de alterá-las. Acham que se resistissem o remédio seria pior do que o mal. O governo piora as coisas. Por que não seria melhor para ele estar atento para prevenir e procurar reformas? Por que não apreciar o valor da minoria prudente? Por que grita e resiste antes de ser ferido? Por que não encoraja seus cidadãos a estarem alerta e a assinalarem os erros e a melhorarem sua ação? Por que tem de sempre crucificar Cristo, excomungar Copérnico e Lutero e declarar Washington e Franklin rebeldes? (Thoreau, 1993:7)1

"Se a injustiça tem uma mola, ou uma roldana, ou uma corda ou uma manivela exclusivamente para ela, então talvez você pode­rá considerar se o remédio não seria pior que o mal; mas se é de uma tal natureza que requer que você seja o agente da injustiça,

1 Tradução Livre para o português do original em inglês: "Unjust /aws exist: sha/I we be conrenr to obey them, or slla/I we endeavor to amend rhem ar once? Men generally. under suc/1 a government as this, thi11k rhar rhey oug/11 ro watt 11nril rhey have persuaded rhe majoriry to alter rirem. They rhink rhar, if rhey sho11/d resisr, rhe remedy 111011/d be worse rhan rhe evil. Ir makes ir worse. Why is ir 1101 more apr to anticipate and provide for refom1? Why does ir not cherish its wise minoriry? Why does iJ cry and resisr before ir is /111rt? Why does ir nor encourage citizens to be 011 the alert to point 0111 irs fa11/ts, a11d do better rhan lt would have them? Why does ir a/ways cmcify Chris1, a11d excommunicate Copernicus and Luther, a11d pro1101111ce Washillg1011 and Franklin reheis?"

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HABERMAS E A DESOBED l~NCIA CIVIL

então, digo a você, desobedeça à lei. Que a sua vida seja o freio que detenha a máquina. O que tenho a fazer é ver que eu não me presto a fazer um dano que eu mesmo condeno." (Thoreau, 1993:8)2

Em 1848, Henri David Thoreau, romancista e poeta norte­americano, pronunciou um discurso, que veio a ser publicado sob o título Acerca do Dever da Desobediência Civil, em que defendia a atitude de não se pagar um imposto específico destinado a financiar a Guerra do México (1846-1848), promovida com o fim de ampliar tenitórios ao sul dos Estados Unidos, aumentando, assim, o número de Estados em que a escravidão fosse legal, como estratégia para assegurar a economia norte-americana. Thoreau alegava ser contra o regime escravocrata e contra guerras que tivessem fins imorais. Ele acreditava que a atitude do governo norte-americano era imoral e contrária aos princípios da liberdade dos indivíduos que estavam submetidos às leis e às políticas adotadas por esse governo. Nessas circunstâncias, os indivíduos teriam direito e, mais, o dever, de deso­bedecer à lei ou à política governamental que contrariasse esses princípios, como uma forma de provocar a mudança na lógica da política adotada pelo governo.

Esse discurso e outros que se seguiram a ele tornaram Thoreau um marco não somente inaugural na discussão sobre a Desobediência Civil, mas influenciaram e influenciam todo o debate sobre o tema ainda hoje. A construção da definição de Desobediência Civil, que é apresentada nesta exposição, como ponto de partida, é ainda tributá­ria em vários aspectos dos princípios por ele delineados.

2 Tradução livre para o português do original em inglês: "lf tire lnj11stice lws a spring, or a pu//ey. ar a rape, ar a crank. exclusively for itself. tlren perlraps yau may cansider wlretlrer tire remedy will be warse tlran tire evil; bw if it Is of such a nacure tirar it requires yo11 to be tire agent of injustice to another, then, I say, break tire /aw. let your life be a cow1ter friction to stop the machine. What f have to do is to see, at any rate, that I do not /end myself to the wrang wlrich I conde11111."

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INTROD UÇÃO

A Desobediência Civi l é um ato público lícito, pois, embora ilegal , não é antijurídico, ou seja, embora não preserve a legalidade do Direito, levanta uma pretensão de legitimidade do mesmo, o que o diferencia de um crime. O crime pode possuir um caráter de clandes­tinidade e é sempre um ilícito e um ato antijurídico. Aquele que pratica uma desobediência civil quer que o máximo possível de pessoas o vejam transgredindo a lei injusta e que, assim, eles também sejam levados a questionar a juridicidade daquela lei.

É que a Desobediência Civil é utilizada como estratégia extrema com dois fins precípuos: primeiro, sensibilizar a opinião pública em torno de questões que até então não eram apresentadas como prioritárias ou críticas; e, segundo, atingir o círculo oficial do poder político (o legislativo, os partidos políticos, a administração pública e o judiciário), tentando provocar uma mudança no direcionamento da produção legislativa, das políticas governamentais ou da interpretação das leis e de políticas, tendo como base a Constituição, entendida como medida (paramoum Law) de estabelecimento do jurídico.

A Desobediência Civil é um ato não violento. Os desobedientes civis visam mobilizar a opinião pública, buscando mostrar, a uma maioria desatenta, a princípio insensível, o caráter geral e não particularista dos problemas que levantam. A violência seria uma renuncia ao diálogo e a toda tentativa de justificação das ações, como jurídica e racionalmente válidas, o que desqualificaria ambos, desobe­dientes civis e interlocutores (poder público e "maioria insensível"), despojando-os de sua condição de participes em um diálogo público, instaurando a guerra e a força bruta como alicerces únicos do poder político e jurídico. Como será demonstrado nesta obra, a coerção, sobre a qual se assenta o Direito moderno, não pode ser entendida como violência legitimada; a violência é contrária à própria idéia de Direito. Deve sim ser entendida como capacidade de implementação e de efetivação do Direito legitimamente produzido.

A Desobediência Civil se apoia em bases constitucionais e, por isso mesmo, enquanto fenômeno específico, não se confunde com o direito de resistência, que, ao contrário, questiona a própria autorida-

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HABERMAS E A DESOBEOl~NCIA CIVIL

de do governo como governo legitimamente instituído. Quem exerce o clireito de resistência opõe suas ações ao governo como wn todo, porque não reconhece legitimidade alguma ao governo enquanto Lal. Os desobedientes civis defendem os princípios constitucionais adotados na sociedade em que vivem e, com base nesses princípios, questionam a validade de um determinado preceito normativo ou de determinada política governamental, alegando que esse preceito ou essa política, em última instância, não estão em conformidade com a Constituição .

Definimos a Desobediência Civil da seguinte forma:

"A Desobediência Civil envolve atos ilegais,3 normalmente por parte de atores coletivos, que têm caráter público, simbólico e movido por princípios, envolvendo primariamente meios não violentos de protesto e apelando para a razão e para o senso de justiça da população. O objetivo da Desobecliência Civil é o de persuaclir a opinião pública na sociedade civil e na política (ou na sociedade econômica) de que uma lei ou política específica é ilegítima e de que uma mudança é justificada. Atores coletivos envolvidos em atos de Desobediência Civil evocam os princí­pios ut6picos4 dos Estados Democráticos de Direito, chaman-

3 No original em inglês, o lc.nno utilizado é 'illegal '. que na tradição jurídica anglo-saxã lem o sentido de antijurídico. Diferentemente , na tradição jurídica romano­germãnica, um alo ilegal não é necessnrinrnente antijurídico. Optnmos por traduzir o termo 'illcgal' por ilegal, j~ que assim apontamos para perspectivas teóricas interes­san1es e muito aluais a respeito da desobediêncio civil Por exemplo, o grande debate entre constitucionalistas norte-americanos gira em lorno dos limJ1es do reconheci­mento da desobediência civil. No caso de um tribunal se pronunciar sobre a constitu­cionalidade da lei ou ato administrativo questionado, ainda asssim poderia aceitar-se a ação dos desobedien1es civis como legflima? Para compreender melhor esta discussão ver: (Oworlcin, 1996); (Fortas, 1968); (Perry, 1988); (Bedau, 1969). As referencias comple1as a estas obras se encontram na bibliografia deste crabnlho.

4 Como veremos ao longo deste trabalho, os princípios do Estado Democrático de Direito, embora fervilhem de idealidade, não são precisamcn1e u16picos. Tnl idealidade tem que ser compreendida como um dos pólos da tensão permanente entre facticidade e validade.

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INTRODUÇÃO

do a atenção para as idéias de direitos fundamentais ou de legitimidade democrática. A Desobediência Civil, portanto, é meio de reforçar o vínculo entre sociedade civil e sociedade política (ou sociedade civil e sociedade econômica), quando tentativas legais da primeira exercer influência sobre a segunda falharam ou outros meios tenham sido exauridos."5 (Cohen, Arato, 1997: 587-588)

As circunstâncias que servem de pano de fundo para a constru­ção de um conceito de Desobediência Civil , desde Thoreau, passan­do por Ghandi,6 Martin Luther King Jr.,7 até os "objetores de cons­ciência'',8 os manifestantes contra testes nucleares do final da década

S Tradução livre para o português do original em inglês: "Civil disobedienu involves illegal acrs. 11s11nl/y 011 the pari of col/ective acrors, thar are public, principled, and symbo/ic in character, 111volve primarily 11011 viole111 mearis of protest, and appeal to the capaciry for rcason and rlie sc11sc of j11sricc of r/ie populace. Tlie aim of civil d1sobedie11ce is to persuade p11blic opinion in civil a11d political society (or eco110111ic society) tliat a particular law or policy is illegitimate and a cha11ge is warra111ed. Collecrive acrors lnvolved in civil disobedience itivoke clie utopian principies of co11s1i1111io11al democracies. appeallng co rlie ldeas of fundfimentol rig/11s or democracic legitimacy. Civil disobedlence Is c/111s a means for reasserting the link be1wee11 civil and polltical society (or civil and economic society). W11en legal auemprs ar exeni11g the i11jl11e11ce o/ the former 011 rhe lauer have failed and other ave1111es /1ave been exltausted."

6 Ghandi é considerado um autor clássico quando se trata do tema desobediência civil, por ter defendido a necessidade de questionamento de atos governamentais sem utilização da violência. Ghandi assenta, assim, muitos dos princípios que boje se aplicam à desobediência civil. Contudo, ao nosso ver, cabe questionar se as ações por ele empreendidas não tinham mais um caráter de resistência do que propriameoLC de desobediência civil, nesse caso, é ainda maior a sua contribuição. Levando-se em conta a distinção anteriormente referida, Ghandi prega o direito de resistência a todo um regime sem o emprego da violência.

7 Líder que lutou pela implementação dos 'direitos civis' nos Estados Unidos e que considerava a desobediência civil um dos meios possíveis para tomá-los efetivos. Considerando inclusive a sua formação como pastor, Martin Luther King Jr.

1 justificava os atos de desobediência civil sob bases morais e religiosas. Só que graças a sua atuação, as ações judiciais que foram parar nas Cortes americanas abriram caminho para se pensar uma base constitucional e jurídica de justificação da desobediência civil.

8 Pessoas em idade para prestar serviço militar que se recusam a fazê-lo por motivos morais, religiosos ou polflicos. Por serem pacifistas, por exemplo.

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HABERMAS E A DESOBEDIENCIA CIVIL

de oitenta, e, no Brasil, pelos petroleiros9 e pelo Movimento dos Sem-Terra, 10 são as mais diversas. Essas histórias se confundem com a luta pela ampliação e reinterpretação dos direitos humanos, contra a escravidão, a desigualdade, e a injustiça; elas se confundem, sobretu­do, com a luta pelo aperfeiçoamento dos regimes democráticos no Ocidente, com a permanente construção de um Estado Democrático de Direito sempre inacabado, em constante fie ri.

E, nesse sentido, o problema comum suscitado é o da possibi­lidade de justificação da Desobediência Civi l no contexto da Mo­dernidade, em que as lutas políticas se confrontam com uma crise de legitimação, porque a política dessacralizada não permite mais re­correr a fundamentos absolutos. Durante muito tempo, tais lutas políticas encontraram guarida em argumentos apoiados em uma leitura jusnaturalista de direitos humanos que, frente à crise de legitimação acima mencionada, não tem mais espaço. Aqui , a idéia moderna de Constituição se apresentará, sob a tensão entre facticidade e validade constitutiva do Direito, por um lado, como substitutivo funcional desses direitos naturais e, por outro, como parâmetro normativo de legitimidade do sistema de direitos como um todo. Por isso, todo ato jurídico tem um caráter de precariedade que o torna passível de ser confrontado frente à Constituição. Essa afirmativa pode ser confirmada dentro das próprias tradições do pensamento político moderno, como a liberal e a republicana, que tentam se desvencilhar das redes metafísicas do jusnaturalismo, mas ainda ficam presas a elas, o que será desenvolvido ao longo do segundo capítulo desta obra.

9 Referimo-nos aqui ao conflito suscitado em 1995 em virtude da greve dos funcio­nários da Petrobrás, que íoi considerada ilegal pelos tribuna.is. Apesar dessa decisão. esses funcionários insistiram no direito de greve e utilizaram da desobedi­ência civil para fazer valer tal cüreito.

10 O Movimento dos Sem-Terra é possivelmente o maior movimen10 popular no Brasil atualmente. Para a implementação de suas reivindicações pela distribuição mais igualitária de terras na área rural, esse movimento tem recorrido a atos de desobediência civil. Ver: (Stédile. 1997).

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INTRODUÇÃO

A parti r das obras de Jürgen Habermas, em especial de Direito e Democracia entre facticidade e validade, a presente obra irá dfacutir a tentativa de justificação pós-metafísica da Desobediência Civil, com base em urna leitura discursiva do paradigma do Estado Democrático de Direito, que apresente um conceito de política deliberativa normativamente mais fraco do que a alternativa do republicanismo, porém, mais forte do que a da alternativa liberal.

2 DELIMITAÇÃO DA HIPÓTESE

O presente trabalho visa repensar a Desobediência Civil como direito fundamental à configuração do paradigma do Estado Demo­crático de Direito; refletir sobre o papel do direito à Desobediência Civil como modo de fortalecimento e construção desse paradjgma, analisando a teoria atual do Direito e da Democracia de Jürgen Habermas, tal como delineada no livro Direito e Democracia entre facticidade e validade.

Não será tratada a Teoria do Discurso em toda a sua amplitu­de, mas apenas nos aspectos que se tomam relevantes para a com­provação de que é possível e importante para a consolidação do paradigma do Estado Democrático de Direito a justificação de atos de Desobediência Civi l; porque esta toma manifesto o problema central por trás da ruscussão das teorias políticas modernas: a tensão entre factic idade e validade traduzida para o Direito como a tensão entre legalidade e legitimidade.

3 JUSTIFICATIVA

Após a publicação de Teoria do Agir Comunicativo, a obra de Jürgen Habermas dá urna reviravolta aos pressupostos que adota, por um lado, renunciando a um projeto de "reconstrução do materia­lismo histórico", assim como à via da psicanálise; e, por outro,

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVI L

buscando avançar na ruscussão com a hermenêutica filosófica, com a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, com o projeto de crítica da Modernidade dos mestres da Escola de Frankfurt, e com o projeto de fundamentação da ética, da política e da moral na Modernidade, empreendida por Karl Otto Apel. A teoria do agir comunicativo é desenvolvida como projeto em três aspectos rustintos: ela pretende ser uma teoria da sociedade, uma teoria da Modernidade e uma teoria da racionalidade; todos esses aspectos tendo como base uma metodologia reconstrutiva, como se explicará adiante.

A segunda grande reviravolta na obra de Habermas ocorre onze anos depois com Direito e Democracia entre facticidade e validade, em que se mantém o projeto inicial de construção de uma teoria englobando os três aspectos, com base na filosofia da lingua­gem e no método reconstrutivo, mas na qual alguns pontos cruciais da primeira obra são totalmente revistos, entre eles, o que para a presen­te pesquisa é o mais relevante, a concepção de Direito.

A Desobediência Civil apresenta-se, nesse contexto, como o tema que permitirá, de forma ímpar, compreender o eixo central dessa reviravolta: a tensão entre facticidade e validade constitutiva do Direito. A Desobediência Civil explicita essa tensão na medida em que reclama para si a necessidade de se compreender a legitimidade - a qual ela reivindica - como condição da legalidade - que ela questiona-, e vice versa, contrapondo-se a uma visão tradicional11 que insiste em utilizar as categorias comuns de ideal e real quando tenta explicar a crise de legitimidade e de eficácia por que passa o Direito. A visão tradicional explica tal crise como um hiato entre a produção do Direito positivo e a normatividade social efetiva, entre o teor de suas normas e as condutas efetivamente verificadas, questionando a sua capacidade de regular, influenciar e acompanhar o desenvolvimento da realidade. A Desobediência Civil coloca em evidência que tal interpretação não

11 Como por exemplo as leorias do Direito Natural. Para uma análise interessante desta perspectiva ver: (Larenz, 1983).

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INTRODUÇÃO

consegue mais explicar como o Direito funciona nas sociedades modernas, e que, portanto, há que tratar do ideal e do real como uma tensão e não como um hiato. Esse é o primeiro motivo que podemos apresentar como relevante' para a escolha do desenvolvimento da problemática da Desobediência Civil no Estado Democrático de Direito a partir do tratamento dispensado ao tema por Jürgen Habennas em Direito e Democracia entre facticidade e validade.

Dois outros motivos norteiam a nossa opção por desenvolver o tema da Desobediência Civil em Direito e Democracia entre facticidade e validade. O primeiro deles é que Habcnnas apresenta nessa obra uma Filosofia do Direito que está aberta a uma pluralidade de enfoques metodológicos; nas palavras do próprio autor:

"O que antigamente podia ser mantido coeso em conceitos da filosofia hegeliana, exige hoje um pluralismo de procedimentos metodológicos que inclui as perspectivas da teoria do direito, da sociologia do direito, e da história do direito, da teoria moral e da teoria da sociedade." (Habennas, 1997-1: I,9)

O enfoque metodológico que Habermas chama de reconstrutivo visa rein~erpretar-partindo de urna descrição hjstórico­teorética, tendo como base o paradjgrna da filosofia da linguagem -, os conceitos centrais na filosofia politica, entre eles, o de Direito. O texto não é apenas descritivo, como pretendem ser os da sociologia em geral12 (Habennas, 1997-1: II), e nem desconstrutivo, como se propuseram alguns autores pós-modernos, como Derrida, por exem-

12 Habermas discute que a tensão entre facticidade e validade já está presente mesmo no contexto dessas teorias. por isso. o caráter descritivo não passa de uma pretensão. Senão lembremos de Durkheim como exemplo dessa teoria sociológica clássica que reivindica a objetividade e o caráter descritivo. Para este autor a sociologia teria o papei de construção de uma sociedade melhor. Ou seja, será que tal sociologia descreve um real ou será que ela na verdade age de forma a justificar um determlnado modelo de sociedade? Ou ainda, podemos pensar no positivismo e no papel legitimador que teve.

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HABERMAS E A DESOBEDltNCIA CIVIL

plo. A metodologia reconstrutiva nos permite entrar em contato com uma gama ampla de enfoques atuais, mas, ao mesmo tempo, mantém a abertura para a tensão entre facticidade e validade, que se traduz na tensão entre uma dimensão nonnativa e outra objetiva. (Habermas, 1997-1:1, 65, 66)

Por um lado, Habermas está discutindo com visões como as de Luhmann, que, pela ausência de perspectiva normativa, desconhecem a dimensão de idealidade que fervilha no interior de toda facticidade e acabam por privilegiar uma visão exclusivamente externa, do obser­vador, descurando da perspectiva interna do participante. (Habermas, 1997-1: I, 72) Por outro lado, ele também discute com autores que, como Rawls, têm uma visão idealista e apenas interna, e que, como Luhmann, embora pelos motivos opostos, igualmente são incapazes de perceber a tensão constilutiva do Direito moderno entre suas dimensões de facticidade e de validade (Habennas, 1997-1: 1, 83 et seq. ). Habermas procura explorar essa tensão, busca desenvol­ver ao máximo o potencial dos pressupostos idealizantes - e nesse sentido sua visão é normativa - bem como revisitar e circunscrever todas as recônditas ctimensões em que se infiltra a facticidade - e, nesse segundo aspecto, sua visão é também descritiva. É precisamen­te dado à natureza constitutiva dessa tensão para o Direito moderno, que Habermas não permite que tais pressupostos idealizantes se desvencilhem de sua carga fática, em um puro discurso filosófico, nem que a facticidade perca as potencialidades ideais a que serve, em urna

1

sociologia do Direito exclusivamente descritiva. Habermas coloca o que foi considerado conflito pelas teorias

tradicionais como tensão, da seguinte forma:

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"Arrastada para cá e para lá, entre facticidade e validade, a teoria da política e do direito decompõe-se atualmente em facções que nada têm a dizer umas às outras. A tensão entre princípios normativos que correm o risco de perder contato com a realidade social, e princípios objetivistas, que deixam fora de foco quaJquer aspecto normativo, pode ser entendida

INTRODUÇÃO

como admoestação para não nos fixannos numa única orienta­ção disciplinar e, sim, nos mantermos abertos a diferentes finalidades metódicas (participante versus observador), a dife­rentes finalidades teóricas (explicação hermenêutica do sentido e análise conceptual versus descrição e explicação empírica), a diferentes perspectivas de papéis (o do juiz, do político, do legislador, do cliente e do cidadão) e a variados enfoques pragmáticos na pesquisa (hermenêuticos, críticos, analíticos, etc.). (Habennas, 1997-1: 1, 23)

Finalmente, a teoria de Habermas nos faz refletir sobre a possibilidade de construir uma sociedade razoavelmente justa e democrãtica hoje. Podemos nos perguntar, por outro lado, se não seria razoável aceitannos o fim da nossa inocência política, assu­mindo uma posição cínica ou cética como mais "realista" e deixar de lado os "conteúdos radicais do Estado Democrático de Direito", como mera utopia.

Ao formularmos uma questão como essa, mesmo que hipoteti­camente, cabe perguntar-nos também sobre as conseqüências de adotarmos tais posições como válidas. Habermas aposta na possibili­dade de que se cumpram as promessas da Modernidade, em uma perspectiva em que se leve em consideração a sociedade atual em toda a sua complexidade, mas que não abandone todo o potencial de realização da democracia e da justiça, não sucumbindo a "estados de ânimo melancólicos''. Nas palavras do próprio autor:

"Não me iludo sobre os problemas e os estados de ânimo provocados por nossa situação. Todavia, estados de ânimo - e filosofias de estados de ânimo melancólicos - não conseguem justificar o abandono derrotista dos conteúdos radicais do Estado Democrático de Direito; eu proponho, inclusive, um novo modo de ler esses conteúdos, mais apropriado às circuns­tâncias de uma sociedade complexa. Caso contrário, eu deve­ria escolher um outro gênero literário - talvez o diário de um

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HABERMAS E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

escritor helenista, preocupado apenas em documentar para a posteridade as promessas não cumpridas de uma cultura deca­dente." (Habennas, 1997- l: 1, 13-14)

Essa nova fonna de ler os conteúdos radicais do Estado Demo­crático de Direito passa por uma retomada das tradições liberal e republicana do pensamento político moderno, que buscam pensar a possibilidade de uma tal sociedade e trabalhar com as suas constru­ções teó1icas em torno da autonomia, da soberania popular, dos direitos humanos, do Direito, só que da perspectiva da tensão entre facticidade e validade, a qual, aqui, se traduz na tensão entre essas mesmas duas tradições. É nesse contexto que nos será possível construir um marco adequado à discussão sobre Desobediência Civil.

4 CONTEXTUALIZAÇÃO

O problema apresentado pela obra está inserido em uma dis­cussão mais ampla a respeito dos fundamentos da democracia e do Direito desenvolvidos hoje pela Fi losofia Política e pela Filosofia do Direito. O nosso objetivo é o de retletir acerca da De~obediência Civil no contexto do processo de racionalização do mundo da vida, que passa pela renúncia do fundamento absoluto da política, do Direito e dos demais âmbitos normativos. A complexidade da sociedade, por um lado, exige a especialização funcional dos sistemas sociais como os da política e da economia, e, por outro, torna os conteúdos do mundo da vida questionáveis e carentes de uma fundamentação racio­nal, com base nas esferas normativas da religião e da ética.

Em tal contexto moderno, o Direito passa a ter um papel totalmente novo frente à sociedade, pois, por ele, a política pode se institucionalizar, possibilitando que, com base em um sistema de direitos, a comunidade jurídica tenha uma base de legitimidade sem, contudo, apelar para motivos religiosos ou metaffsicos. Isto é, um "Direito Moderno" é um Direito laicizado, formal , coercitivo,

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INTRODUÇÃO

institucionalizado em proceclimentos e que se pretende fundamentado em princípios universais, que ao mesmo tempo deve garantir a pluralidade de formas de vida que coexistem em sociedades comple­xas, estando também atento às motivações pragmáticas e de interes­ses que devem ser atendidas. Um tal Direito tem estreita relação com a organização política da sociedade, que, na Modernidade, centrou­se na forma do Estado Nacional , marcado pelo dualismo Estado/ Sociedade Civi l, defenclido pelas duas tradições do pensamento polí­tico contemporâneo de maior sucesso - a tradição liberal e a traclição repubUca:na.

A forma do Estado Nacional é hoje questionada, embora muitos dos seus pressupostos estejam consolidados. Referimo-nos ao Estado de Direito, que consta de um sistema jurídico formal, visando garantir as liberdades fundamentais, sob a base de leis gerais e abstratas, com a separação e distribuição dos poderes. Sob o para­digma Liberal, o Estado de Direito consagra-se como o primado da lei - a Administração só atua quando autorizada em lei - mas é precisamente o mínimo de leis gerais e abstratas que pode garantir o maior espaço possível para o exercício das liberdades individuais, viabilizando assim, sobre a base da livre concorrência e da livre iniciativa, os princípios jurídicos basilares do próprio mercado, a igualdade formal de todos cliante da lei e a capacidade juríclica de contratar que lhe é conelata. A Sociedade Civil é reduzida à esfera da família e da economia, isto é, a uma rede de interações de pessoas privadas que se estrutura seguindo o modelo de mercado. O Estado é o guardião dessa ordem, reproduzindo, na forma da competição entre partidos políticos e entre governo e oposição, a estrutura da socieda­de. Frente ao Estado, a Sociedade detém liberdades negativas, isto é, garantias, por um lado, de que o poder administrativo não intervirá nas interações privadas "espontâneas" e, por outro, da institucionalização, por meio do Direito, de interesses e preferências majoritários e apolfticos - posto que o processo de deUberação conjunta dos cidadãos é secundário e, como se clisse acima, segue o modelo de livre concorrência do mercado.

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HABERMAS E A DESOBEDIENCIA CIVIL

Sob o paradigma repubLicano, a sociedade apresenta-se como um todo político, constituído no processo de fonnação de opinião e vontade democráticas. A sociedade se auto-organiza politicamente para constituir uma totalidade política que, de certa forma, contrapõe­se a um Estado burocratizado (Arendt, 1978: 50-58). A sociedade é a societas civilis. Por isso, os processos de deliberação são centrais, pois são a maneira mediante a qual se afirma e se reafirma a comuni­dade ética, que, por meio desses processos, aposta na possibilidade de discussão, entre cidadãos conscientes, das orientações de valor que aquela comunidade quer seguir. Ou seja, mediante processos democráticos, a comunidade constrói uma auto-consciência comum, buscando responder à questão acerca de "quem queremos ser en­quanto comunidade?".

A Teoria do Discurso irá problematizar essas duas compreen­sões que se apoiam no dualismo Estado/Sociedade Civil , buscando manter e recuperar alguns aspectos centrais de cada uma delas, mas sob uma nova ótica, como será visto no final do capítulo primeiro e retomado no capítulo terceiro desta obra. A proposta de Habennas é que, com base na Teoria do Discurso, se passe a interpretar o dualismo Estado/Sociedade Civil a partir da idéia de política deliberativa. Sob tal perspectiva, a Sociedade Civil não se reduz ao modelo de mercado do liberaLismo, que tenta encerrá-la numa esfera privada apolítica, na esfera dos interesses egoísticos. A Sociedade Civil é o substrato de uma esfera pública que inaugura constantemente espaços públicos de discussão e de levantamento de temas. É ela, por excelência, manancial inesgotável do instituinte, das novas diferenças, dos novos direitos, por isso mesmo, ela é portadora de uma dimensão inegável e inafastávelmente pública. Por outro lado, a visão habermasiana do caráter público da Sociedade Civil não é tão "forte" como a republicana1 que pretende institucionalizar todos os espaços discursivamente construídos, sob o pressuposto de que a realização da felicidade comum se dê no âmbito da política. Para Habermas, que nisso concorda com os liberais, a esfera privada é um processo de comunicação importante - já que fundamental para se resguardar a

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INTRO DUÇÃO

própria possibilidade de uma esfera efetivamente pública, ou seja, para se impedir que a eventuaJ maioria privatize o público - enquanto conjunto de processos no qual os indivíduos não precisam justificar suas ações e no qual há possibilidade das diferenças em relação ao todo. A posição republicana acaba por burocratizar a esfera privada. No entanto, é nos processos públicos de discussão, no nível da esfera pública, que se definem os processos de não problematização que constituiem a esfera privada. Portanto, é também em uma relação de tensão entre público e privado, não mais vistos como dimensões antitéticas e excludentes, que podemos compreender a noção de esfera pública, como uma dimensão que também envolve a sociedade civil em suas arenas de discussão.

Nesse conceito ampliado de esfera pública, o Estado, enquan­to forma de organização do sistema político, é apenas o centro da esfera pública política, encarregado de tomar decisões, ou, na termi­nologia de Habermas, de transformar poder comunicativo em poder administrativo.

Em segundo 1 ugar, iremos problematizar o paradigma da filoso­fia da consciência, a partir do quaJ as tradições liberal e republicana procuraram dar resposta ao problema da Desobediência Civil. Cada uma delas, ao abordar o problema da Desobediência Civil, chega a um impasse no que se refere ao nosso tema. Ao final, ambas terão uma relação de ambigüidade com a Desobediência Civil. Pretende-se demonstrar que os pressupostos da Filosofia da consciência aprofundam ainda mais a improbabilidade de um tratamento adequa­do da Desobediência Civil.

No contexto da tradição liberal , a Desobediência Civil é defendida por alguns autores sob o argumento de que os direitos do indivíduo, assim como a Sociedade, preexistem ao Estado, e postu­lam que este possui a tarefa precípua da garantia daqueles . Não cumprindo o governo com essa tarefa, estaria ele subvertendo ou corrompendo o seu fim, a razão de ser do Estado enquanto organi­zação político-jurídica da Sociedade. Neste caso, o indivíduo não tem por que submeter a sua consciência a ordens emanadas de um

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HAOERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

governo corrompido. Locke chega a defender a resistência ao governo que venha a ameaçar o pacto social fundamental (Locke, 1965: 314, 315, 372). Thoreau sonha com um Estado livre e culto que não interfira na esfera privada e em que o indivíduo seja reconhecido como o poder superior (Thoreau, 1994: 57). Ao mes­mo tempo, para outros autores dessa tradição, como Kant, é o Estado que vai impor os limites às liberdades individuais de forma a conciliar o máximo de espaço para a esfera privada com o restrito arbítrio estatal e com a liberdade dos outros indivíduos, na base da igualdade jurídica, mediante normas jurf dicas gerais e abstratas, válidas para todos (Kant, 1995: 74-75). A Desobediência Civil põe em risco a segurança das relações sociais com base naquela igual­dade. Na tradição liberaJ não há, pois, resposta para a nossa questão, mas, ao contrário, encontraremos um impasse no que se refere à Desobediência Civil.

Na tradição republicana, há, mais uma vez, um impasse a respeito desse tema. Por um lado, aJguns autores dessa tradição, corno Rousseau, por exemplo, consideram que a Desobediência Civil é um contradição de conceitos porque, se o Estado é a expressão de uma vontade geral solidariamente construída, ele nunca poderá estar equivocado, ele estará sempre direcionado à consecução dos valores éticos comuns (Rousseau, 1983: 113, 118). Já autores, corno Hannah Arendt, por outro lado, defendem a possibilidade da Desobediência Civil, limitando sua afirmativa à possibil idade de o governo desrespei­tar os valores fundamentais que constituem a autoconsciência de um povo (Arendt, J 972:94). Contudo, também aqui o impasse se revela na medida em que a totaJização da política continua a existir, ainda que apenas no domf nio da Sociedade.

Estabelecendo-se, portanto, que a Desobediência Civil não pode mais ser pensada sob os pressupostos das teorias liberal e republicana, pois em ambas perspectivas é o impasse que se coloca, buscaremos construir um novo paradigma filosófico capaz de nos ajudar a justificar a Desobediência Civil como um direito fundamental , sob novas bases.

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INTRODUÇÃO

Desenvolveremos, assim, esse novo paradigma filosófico, o da linguagem, a partir da preocupação central do livro Direito e Demo­cracia entre facticidade e validade: a tentativa de se pensar a possibilidade de integração social em sociedades modernas comple­xas, a partir das categorias filosóficas fundamentais da facticidade e da validade, que se colocam em tensão permanente. Nessa perspec­tiva, a categoria do Direito moderno guarda um espaço especial , por mediar essa tensão de várias maneiras muito particulares.

5 METODOLOGIA

Como delimitado acima, esta obra pretende tratar da possibi ­lidade de justificação da Desobediência Civil no Estado Democráti­co de Direito, como chave para a compreensão e estruturação desse paradigma, do ponto de vista da Teoria do Discurso de JUrgen Habermas. Parte-se da hipótese de que a possibilidade de justificação da Desobediência Civil é importante para a consolida­ção do paradigma do Estado Democrático de Direito, porque ela evidencia a tensão entre facticidade e validade imanente ao Direito e apresenta o Estado Democrático de Direito como um projeto em constante construção.

Iremos interligar três capítulos que permitirão a reconstrução e a análise conceptual dos aspectos da Teoria do Discurso relevan­tes para o desenvolvimento e a comprovação das hipóteses ao longo da obra.

O primeiro capítulo buscará assentar as bases para construir o conceito discursivo de Direito, desenvolvendo a tensão entre facticidade e validade e transmutando a teoria do agir comunicativo para o Direito. A tensão entre facticidade e validade na linguagem, que marca o ponto fulcral na Teoria do Discurso de Habennas, explicita a tensão entre o uso pragmático da Linguagem comum e os pressupostos ideais levantados quando fazemos uso dessa linguagem. Além disso, a Teoria do Discurso faz a ligação entre o uso da

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

linguagem, pelo qual levantamos pretensões de validade, e a coorde­nação da ação, por meio de uma teoria do agir comunicativo.

A seguir iremos discutir precisamente a teoria do agir comuni­cativo e a coordenação da ação. A partir do agir comunicativo, a linguagem pode ser, e é, usada como meio de integração social. Dessa forma, o agir comunicativo é o meio pelo qual podemos construir a integração social , porque, por um lado, podemos por ele alcançar o entendimento sobre "objetos" e, por outro, quando o entendimento não é possível de ser alcançado, podemos fazer um uso reflexivo que nos permite problematizar as pretensões de vali­dade levantadas. Essa capacidade de problematização, Habermas chama de discurso. (' Disku.rs' )

Essa tensão entre facticidade e validade está presente no Direi­to, já que ele deve atender à exigência funcional de estabilizar expec­tativas de comportamento e, ao mesmo tempo, deve manter-se aber­to à ação comunicativa, de forma a satisfazer as precárias condições de integração social.

"Para preencher a sua função de estabilização das expectativas nas sociedades modernas, o direito precisa conservar um nexo interno com a força socialmente integradora do agir comunica­tivo." (Haberrnas, 1997-1: 1,115)

Em suma, este primeiro capítulo mostra em detalhe o desenvol­vimento da tensão entre facticidade e validade da linguagem até o Direito, e coloca, a partir da teoria do agir comunicativo, a função socialmente integradora do Direito.

Já no segundo capítulo, passaremos a tematizar o processo de legitimidade do Direito que será evidenciado a partir da Teoria do Discurso. O objetivo central desse capítulo é o de apresentar a formulação habermasiana do princípio do discurso, do qual, concreti­zado à luz de diferentes normas de ação, morais e jurídicas, resultam, respectivamente, o princípio da moralidade e o princípio da democra­cia. A separação entre esses dois princípios mostra que o processo de

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INTRODUÇÃO

validade do Direito na Modernidade não se apoia mais em uma moral superior, mas precisa procurar uma fundamentação no interior do próprio Direito. Na Teoria do Discurso, a relação entre Direito e Moral não é de dependência, mas de complementaridade.

O segundo capítulo tem, como ponto de partida, o paradoxo que o processo moderno de diferenciação do Direito, da moralidade, da política e da eticidade desvela: o fato da legitimidade emergir da legalidade, a partir do qual Habermas lança a sua hipótese:

" ... eu desejo reconstruir, nos próximos capítulos, a autocom­preensão destas ordens jurídicas modernas. E tomo como ponto de partida os direitos que os cidadãos têm que atri­buir uns aos outros, caso queiram regular Legirimamellte sua convivê11cia com meios do direito positivo. Esta formu­lação deixa entrever que existe uma tensão enà·e facticidade e validade permeando o sistema dos direitos em sua totalidade, caraterística do modo ambivalente da validade jurídica." (Habermas, J 997-1: I,113) (grifos nossos)

A gênese do Direito moderno encontra-se no pressuposto, assim delimitado: Caso os cidadãos queiram regular Legitimamen­te a sua convivência por meio do Direito, eles terão que atribuir uns aos outros detenninados direitos.

Esta hipótese parte do pressuposto de que não é mais possí­vel para o Direito moderno procurar um fundamento na tradição, na religião, ou mesmo, como foi acima explicitado, na moral. O recurso ao qual o Direito moderno pode recorrer é o de explorar a tensão entre facticidade e validade que permeia o sistema de direitos; a tensão entre direitos humanos e soberania popular. Haberrnas nos diz que:

"Os direitos humanos e o princ1p10 da soberania do povo fonnam as idéias em cuja luz ainda é possível justificar o direito

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HABERMAS E A DESOBEDIENCIA CIVIL

moderno; e isso não é mera casualidade." (Habennas, 1997-1 : 1, 133)

É assim, entre os dois aspectos - relação entre Direito e Moral e gênese do Direito moderno-, que poderemos tratar da fundamenta­ção jurídica, e não moral , do Direito, a partir da Teoria do Discurso, explicitando a correlação entre direitos humanos e soberania popular, que serão a base de justificação do sistema de direitos. Essa é base para a redefinição do conceito de autonomia em face ao Estado Democrático de Direito. A necessidade de produção de um Direito legítimo tem como consequência a incorporação do exercício da autonomia pública dos cidadãos para o âmbito do Estado. A prática de autodetenninação dos cidadãos, que se dá no entrelaçamento jurídico das autonomias pública e privada, deve ser estendida ao poder político de forma que o reconhecimento recíproco de direitos não seja mero evento metafórico. O Estado Democrático de Direito só se realiza na medida em que se estabelece a relação entre produ­ção do Direito legítimo e poder político. Esse é precisamente o ponto de partida do capítulo três.

Para explicar a relação entre produção do Direito legítimo e poder político, o capítulo três começa por aprofundar no significado do princípio da democracia e no processo pelo qual a correlação entre direitos humanos e soberania popular é realmente estabelecido, isto é, as condições de institucionalização jurídica por via do processo legislativo. A fonnulação do princípio da democracia é a seguinte:

"Ele [o princípio da democracia] significa, com efeito, que somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de nonnatização discursiva." (Habennas, 1997-1: 1, 145)

Explicitado o princípio da democracia, que servirá de regula­dor dos processos de insfüucionalização do Direito por via do

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INTRODUÇÃO

processo legislativo, analisaremos o conceito de formação discursiva da vontade e como se dá a institucionalização das condi­ções de instauração do Direito.

Uma vez explicado como o Direito moderno pode ser legitima­do racionalmente sem se recorrer a uma fundamentação absoluta, e nem moral, e como esses processos de legitimação dependem de canais institucionais de instauração do Direito, a primeira questão que o capítulo n·ês deverá responder é como é reinterpretada, nesse contexto, a relação entre Direito e Política.

A tensão entre facticidade e validade no Direito, que se apre­sentava como tensão entre legalidade e legitimidade, no interior do sistema de direitos, se apresenta, em outra perspectiva, como tensão entre autonomia pública e autonomia privada. A tensão entre Direito e Política se instaura em uma via de mão dupla. Por um lado, o poder político depende do Direito para se legitimar. Por outro, o Direito depende do aparato político estatal para ser implementado. Nesse sentido, a Política precisa manter a conexão entre os imperativos sistêmicos do poder administrativo e a capacidade de integração do poder comunicativo. O Direito é a linguagem capaz de traduzir e sustentar essa conexão.

Assim, os canais de institucionalização do Direito dependem de um modelo de circulação de poder político que especificamente atenda às exigências normativas e fácticas do paradigma do Estado Democrático de Direito, isto é, dependem de um sistema político que consiga manter a conexão entre poder administrativo e poder comunicativo.

Da perspectiva de um tal modelo de circulação de poder político, a esfera pública política se divide em centro e periferia o primeiro tendo como locus de decisão central o Estado, e a periferia tendo como substrato principal os grupos, movimentos, associações e organizações que no conjunto de suas interações conformam a Socie­dade Civil. Toda possibilidade de formação de opinião e de vontade que ocorre no nível da esfera pública política trabalha com a constante pressão sobre o sistema político entre centro e pefiferia. Por isso, a

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HABERMAS E A DESOBEDIENCIA CIVIL

questão que se coloca é que o centro, tendo uma ligação com o poder administrativo, em função da necessidade de tomada e implementa­ção de decisões, tende a se afastar da periferia, de fonna a simplificar os seus processos e tomar-se mais eficaz. Contudo, esse afastamento gera uma crise de legitimidade, porque significa o afastamento tam­bém do potencial do poder comunicativo. Em última instância, há, igualmente, uma crise de eficácia, pois o centro - sem manter a conexão com a periferia - toma decisões que não conseguem dar uma resposta aos problemas de seu público alvo, que é a própria periferia.

Daf que, a partir do Direito, sejam institucionalizadas fonnas de resolução de confütos dentro do sistema político que atendem à necessidade de manutenção da conexão entre poder administrativo e poder comunicativo, e entre centro e periferia. Dentre esses modos de resolução de conflitos, há aqueles que Habennas chama de modos "extraordinários"; entre eles, a Desobediência Civil.

O papel da Desobediência Civil no Estado Democrático de Direito é o de medida extrema utilizada para pôr em evidência uma situação de crise, isto é, de déficit de legitimidade, resultante de um fechamento do processo decisório do centro em relação à periferia da esfera pública. O ato de Desobediência Civil atualiza a relação do princípio do discurso com a forma do Direito, em que este institucionaliza juridicamente processos comunicativos que evidenci­am os princípios basilares do Estado Democrático de Direito. A Desobediência Civil é, por isso, direito fundamental à consolidação de uma democracia procedimental.

Além disso, a Desobediência Civil põe em evidência a tensão imanente entre facticidade e validade no Direito. Ela levanta a perple­xidade de se conceber, no Estado Democrático de Direito, um orde­namento jurídico positivo que a todo momento tem que ceder às pressões decorrentes do déficit de legitimidade das decisões que são tomadas. É por meio de ações de Desobediência Civil que a socieda­de civil pode provocar, de forma mais radical, o sistema político e questionar a legitimidade das decisões que são tomadas em seu centro. É só pelo processo de constante construção de um Direito ao

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INTRODUÇÃO

mesmo tempo coercitivo e legítimo que este pode cumprir o papel de integrador social.

Essa visão do papel da Desobediência Civil e do Direito traça, sob um determinado enfoque, o paradigma do Estado Democrático de Direito, que pressupõe uma relação de interdependência entre soberania popular e direitos humanos, a equiprimordialidade entre esferas pública e privada. a abertura da democracia para a justifica­ção a partir de razões diversas do tipo ético, moral e pragmático e, finalmente, a estreita ligação que hão de manter o Direito e a Política. Essa reconstrução permitirá a consolidação de um direito fundamental à desobediência civil na forma da Constituição.

A conclusão visa recapitular a discussão travada e expor siste­maticamente a hipótese desenvolvida, a saber: que a Desobediência Civil pode ser redefinida e justificada no paradigma do Estado Demo­crático de Direito como um direito fundamental a sua consolidação. No contexto traçado ao longo dos capítulos primeiro e segundo, fica clara a relação entre Direito e Moral, Direito e Política, e o pano de fundo dessas relações, que é o princípio do discurso. A partir daí podemos perceber os elementos que são necessários para a consoli­dação do paradigma do Estado Democrático de Direito e por que a Desobediência Civil é chave para a consolidação desse paradigma. A Desobediência Civil se apresenta como mecanismo capaz de consoli­dar o princípio da democracia, atualizando os pressupostos normativos do Estado Democrático de Direito, denunciando a todo momento o perigo de separação entre poder administrativo e poder comunicativo. A Desobediência Civil poderã ser justificada no marco do Estado Democrático de Direito por meio das bases constitucionais construídas, sob a égide desse paradigma, em sociedades políticas e jurídicas concretas.

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Capítulo 1

A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO

DIREITO

Este capítulo visa reconstruir a tensão entre facticidade e vali­dade, explicada a partir das bases de uma específica teoria da lingua­gem, e como essa tensão migra para o centro da categoria do Direito como constitutiva do mesmo. Esses passos nos ajudarão a compreen­der o Direito da perspectiva de uma Teoria do Discurso, que o coloca no centro da solução ao problema da integração social em sociedades cujo solo de fundamentação toma-se frágil, corno explicitado por Habermas da seguinte forma:

" ... como explicar a possibilidade de reprodução da sociedade num solo tão frágil como é o das pretensões de validade transcendentes? O medium do direito apresenta-se como um candidato para tal explicação, especialmente na figura moderna do direito positivo. As normas desse direito possibilitam comu­nidades extremamente artificiais, mais precisamente, associa­ções de membros livre e iguais, cuja coesão resulta simultanea­mente da ameaça de sanções externas e da suposição de um acordo racionalmente motivado." (Habermas, 1997-1:1, 25)

1 DA RAZÃO PRÁTICA À RAZÃO COMUNICATIVA

A filosofia moderna tinha, como fio condutor da relação entre sociedade e racionalidade, o conceito de razão prática como faculda­de subjetiva. Isto é, a filosofia moderna precisava pressupor o sujeito como condição lógica a partir da qual a razão se desenvolveria. Sob as bases de tal antropocentrismo, sustentava-se a construção do paradigma da filosofia da consciência, a partir da qual é possível uma

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HABERMAS E A DESOBED l ~NCIA CIVIL

reflexão sobre a razão por si mesma, imanente e desvinculada de tudo, exceto do "Eu". Kanl representa, de um certo modo, a síntese das idéias desse paradigma quando, ao escrever a Crítica da Razão Pura, se pergunta pelos limites do conhecimento. O sujeito, dotado de razão, possui faculdades diversas. Por um lado, a ele é possível conhecer usando a razão teórica. Mas taJ capacidade é limitada. Há queslões melafísicas à quais o seu conhecimento não tem acesso - a alma, Deus, a liberdade - embora ele possa reconhecê-las como absolutamente necessárias. Daí que, no uso da razão corno razão prática, partindo do princípio de que a liberdade é absolutamente necessária, ele possa determinar o seu agir conforme um princípio auto-evidente (pois não é possível conhecê-lo) de liberdade. A razão prática permite ao sujeito determinar a sua máxima de vontade. (Kant, s/d (1788): 25)

A razão prática como faculdade subjetiva abre duas perspecti­vas para os modernos: a da felicidade individual e a da autonomia moral. A liberdade moderna é a do homem, sujeito privado, que larnbém pode assumir o papel de membro da sociedade civil , do Estado e do mundo. Ele pode ao mesmo tempo ser cidadão e sujeito, homem singular e geral. E o Estado e a sociedade, constituídas por esses homens livres e dotados de direitos inatos, assentam suas base de legitimidade nas formas jurídicas que determinam uma ordem social bem organizada. O Direito racional é prescritivo e se constitui formaJmente em um sistema de regras.

A essa concepção normativa, o século XIX veio acrescentar a dimensão da história. A realização da felicidade e da autonomia são construídas nas histórias individuais de vida e na dos Estados, teleologicamente conduzidas. Essa visão, que inicialmente foi desen­volvida por Hegel, explica a realização da autonomia e da felicidade não mais no nível do sujeito isolado e sim no nível de um macro­sujeito, porque o indivíduo pertence a uma sociedade como membro de uma coletividade em uma relação entre parte e todo. Assim, a sociedade encontra sua unidade na vida política e na organização do Estado. Quem fará a ligação entre as partes para constituir o todo?

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A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

Quem encarna o espírito objetivo?, para usar a expressão de Hegel: o Estado. (Hegel, 1993: § 258)

Habermas questiona, frente à complexidade das sociedades modernas, se é possível manter os conceitos construídos pela filosofia da consciência de a) uma sociedade centrada no Estado, b) da relação entre partes e todo e, consequentemente, e) da sociedade composta pela soma de indivíduos.

Essa visão normativa de Kant e Hegel foi questionada muito antes mesmo de Habermas por Marx, por exemplo. Marx não procura o fundamento do Estado e nem defende ser ele o ápice da sociedade. Para Marx o fundamento da sociedade é encontrado nas condições materias de vida. A normatividade é relegada a uma superestrutura que não se sustenta por si só. Por isso, o poder estatal, tendo como base a infraestrutura, é passageiro, histórico e contingente. Mudando o modo de produção, o poder político entra em contradição com os meios e relações de produção e acaba tendo que mudar.

Mas mesmo nessa visão materialista, Habermas acredita haver vestígios de uma razão prática e de normatividade, como expressas pelo conceito de "sociedade que se administra democraticamente e na qual o poder burocrático do Estado deve fundir-se com a economia capitalista" (Habennas, 1997-l:I, 18). Ou seja, a visão utópica de que a história caminha para a tomada do poder pelo proletariado, fazendo a transição do capitalismo para o comunismo, em que se abole o Estado e o meio de produção capitalista, e a sociedade passa a se auto-gerir, realizando a autonomia do indivíduo, que poderá então desenvolver todas as suas potencialidades. Mesmo essa tentati­va de explicação esbarra no conflito de não ter como fundamentar imperativos nonnati vos que conduzam ações de maneira racional por uma teleologia da história.

Ainda uma terceira visão teórica, a teoria sistêmica de Luhmann, se contrapõe às teorias normativas de Kant e Hegel e tenta renunciar a qualquer vestígio de razão prática que ainda teria restado em Marx. Luhrnann descreve a sociedade como um conjunto de subsistemas

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funcionalmente diferenciados, que historicamente foram se especifican­do no processo de modernização. Entre eles há uma relação "sistema -mundo circundante" (Habennas, 1997-1: I, 18). Isto é, frente a cada subsistema, os outros se apresentam como "ambiente", 13 "autopoieti­camente", o que significa que cada subsjsterna opera confonne sua própria linguagem, sendo, em relação aos outros, fechado operacionalmente e aberto cognitivamente. A implicação disso é que um sistema consegue, no máximo, "irritar" os outros, mas nunca exercer um papel regulador. Dentro dessa perspectiva, não cabe mais falar num Direito que pretenda regular todas as relações sociais. O Direito é mais um subsistema cuja função é a de estabilizar expectativas de comporta­mento, contrafactualmente. Ele não regula a sociedade - a não ser em um sentido metafórico; na medida em que se modifica a si mesmo, ele é ambiente para os outros sistemas.

A teoria dos sistemas interpreta todas as questões colocadas pela Modernidade funcionalmente e não finalisticamente, inclusive a questão do sujeito, que é eliminada em favor da mesma lógica acima explicada. Não faz sentido, pois, falar em sociedade formada pelo conjunto de indivíduos. O conjunto de subsistemas sociais formam o sistema da sociedade, que se apresenta como ambiente para o siste­ma psíquico. Cada indivíduo constitui um sistema psíquico que, por sua vez, é ambiente para a sociedade.

Recapitulando, Habennas mostra corno urna visão normativa de sociedade e de Estado, sustentada pelo conceito de razão prática, vai perdendo a sua força explicativa frente as questões colocadas pela ética, pela política, pelo Direito, pela Filosofia moral e pela teoria social. Essas questões não mais conseguem se justificar em tradições imemoriais ou na religião, como na Antigüidade. Também não conse­guem se justificar em tradições modernas bem sucedidas. Nem a constituição do sujeito e nem a teleologia da história são capazes de

13 Todas as expressões colocadas entre aspas são Lípicas da teoria dos sistemas. Ver: (Corsl et al, 1996).

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produzir um conceito de razão prática que se substitua a elas, garan­tindo, pelo Direito - como categoria chave capaz de mediar todas as relações sociais-, a integração pela idéia de totalidade social .

Assim, a visão fortemente normativista de razão prática implode quando urna visão sociológica, empírica, passa a descrever sociedades altamente complexas que se estruturam a partir de dife­renciações funcionais das quais emergem subsistemas sociais que irão obedecer cada um à sua própria racionalidade. As teorias sociológi­cas, seguindo a teoria dos sistemas, descrevem o desencantamento objetivo do Direito, fazendo uma critica ao dualismo ideal e real. O Direito teria tomado-se periférico frente a uma complexidade social crescente, que confronta uma realidade cínica com a autocompreen­são normativa. O Direito, persistindo em seu caráter de normativida­de, não seria capaz, pela complexidade social, de cumprir suas funções (Habermas, 1997-1: L 65 et seq.). Há, assim, a extinção de todo vestígio de autocompreensão normativa, bem como o fim do nexo interno entre Direito, política e moral ainda sustentados pelas visões kantianas e hegelianas. O Direito é incapaz de promover a integração social. Os argumentos por ele levantados - como por exemplo nas teorias da justiça pós-kantianas - não têm a força de fundamento, apenas servem para convencer ao próprio Direito de suas decisões, promovendo, assim, uma integração sistêmica.

Frente a esse quadro, parece que a única opção é recorrer a visões que assumam a total ruptura entre razão e sociedade, seja na versão pós-oietzschiana, seja na funcionalista de Luhmann. A primei­ra, irracionalista, contudo, é contraintuitiva, isto é, não se sustenta frente às práticas cotidianas de participantes que, mesmo no contexto de sociedades complexas, insistem em tentar fundamentar suas ações em princípios como a justiça, a igualdade e a liberdade (Habermas, 1997-1: 1, 71). Finalmente, uma visão funcionalista consegue romper com os conceitos básicos da filosofia moderna - sujeito e razão - mas explica todo o processo a partir de urna racionalidade instrumental que deixa em aberto muitas das questões já delimitadas por aquela filosofia (Habermas, 1997-1: 1, 71 et seq.).

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Habennas propõe que se dê resposta à questão da integração social colocada pela Modernidade sem negar a razão. Para isso há que reconstruir a tensão entre facticidade e validade já presente desde a própria colocação do problema da integração social por parte das teorias modernas, como acima delineado: ao mesmo tempo que tais teorias partem de pressupostos nonnativos de construção de comuni­dades livres e iguais, elas são obrigadas a manter uma conexão com pontos de vista funcionalistas e empíricos.

A proposta de Habermas é de "substituir" o conceito de razão prática, que até então mediava a relação entre sociedade e racionalidade, pelo conceito de razão comunicativa, a partir do qual seria possível compreender em larga medida o problema da integração social sob a ótica da tensão entre facticidade e validade e, com isso, romper com as categorias falidas da filosofia da consciência, sem contudo fugir aos problemas que se impõem pelo mundo da vida e que já se apresentam nos pressupostos daquele paradigma de filosofia.

E é que a razão comunicativa vai ser compreendida a partir do medium da linguagem cotidiana, liberando-se, portanto, do elemen­to moral que estava presente na razão prática. Sob a sua base moral , a razão prática tinha necessidade de pressupor um possível ator individual ou um macro-sujeito no nível do Estado ou da sociedade. A razão prática, sendo uma faculdade subjetiva, diz aos atores o que "devem" fazer, sendo, assim, uma fonte imedjata de prescrição que estabelece regras de ação. A razão prática, em definitivo, estabeleceria um dever transcendental forte e centrado, que indica concretamente como agir. E tem, por isso, uma ligação direta com a prática social, a qual interpreta teleologicamente: válida é a "máxima de ação" que passa pelo crivo do imperativo categórico (Kant, s/d (1788).

Já a razão comunicativa, liberta dessa base moral, é capaz de se abrir ao mesmo tempo para discursos morais, éticos e pragmáticos (Habennas, 1991-1). Ela pressupõe interações e fonnas de vida estruturadas, tendo como elemento de mecliação a linguagem e o uso

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da linguagem. Não é, pois, uma faculdade subjetiva e sim um conjunto de condições, estruturado por meio da linguagem coticLiana, que possibilita e limita a interação entre atores que visam ao entendimento. Ela possui, por isso, um conteúdo nonnativo fraco na medida em que "prescreve" que indivíduos que se comunicam, pelo meio da lingua­gem coticLiana, visando alcançar o entencLimento mútuo. devem em­preender detenninadas idealizações. Apenas obriga os indivíduos comunicativamente atuantes a se comprometerem com pressupostos pragmáticos contrafactuais, cujo telos é o entendimento mútuo. A razão comunicativa mantém uma ligação indireta com a prática social, porque não diz aos atores como agir. São os próprios atores, que ao usarem a linguagem com vistas ao entencLimento mútuo, estabelecem determinadas condutas como válidas.

E em quê consistem essas idealizações que atores visando alcançar o entendimento devem empreender? As idealizações empre­encLidas pela razão comunicativa se apresentam como condições intransponíveis de uma prática de se alcançar o entendimento. Em primeiro lugar, pessoas que se comunicam visando alcançar o enten­dimento devem pressupor que estão atribuindo idêntico significado aos proferimentos que utilizam, isto é, devem pressupor a generalida­de dos conceitos: presume-se que falantes e ouvintes podem entender as expressões gramaticais que utilizam de forma idêntica.

Em segundo lugar, eles devem pressupor que os destinatários estão sendo responsáveis, autônomos e sinceros uns com outros. Ou seja, devem pressupor que entre falante e ouvinte se estabelece uma relação de respeito e reconhecimento mútuo, caso contrário se estaria desqualificando o outro como interlocutor.

E em terceiro lugar, pressupor que falante e ouvinte vinculam os seus proferimentos a pretensões de validade que ultrapassam o contexto. Essas pretensões de validade são 1) à verdade propo­sicional: falante e ouvinte pressupõem que os proferimentos que cada um emite podem ser aceitos como verdadeiros, já que na comunicação ambos visam poder compartilhar o seu saber com o outro; 2) à veracidade subjetiva: eles pressupõem que um diz ao

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outro o que realmente pensa, que ele não está mentindo, pois cada um quer que o outro acredite no que ele diz; 3) à correção normati­va: eles pressupõem que o proferimento pode ser aceilo como justo, que tem como referência normas e valores vigentes, intersubjetiva­mente reconhecidos.

Todo contexto, isto é, toda fala que ocorre factualmente, pres­supõe condições ideais, e é a partir delas que a fala pode ser questionada. Isto é, falante e ouvinte visam entender-se sobre algo no mundo, esse entendimento é um processo de obtenção de um consen­so sobre a base pressuposta das condições de validade reconhecidas por ambos. O consenso se constróe nos quatro níveis: da inteligibilidade, da verdade, da veracidade e da correção normativa. Quando uma dessas condições fica em suspenso porque não se atingiu um consenso sobre ela, uma das opções que falante e ouvinte têm é de problematizar o ponto controverso passando a fazer um exame discursivo da pretensão posta em suspenso. O sentido da palavra Discurso na teoria de Habermas é justamente o de uso reflexivo da razão comunicativa que permite a problematização.

Essa explicação sobre o uso da razão comunicativa nos discur­sos e falas individuais é transposto no nível geral da organização das sociedades modernas; elas também são estruturadas sob as bases da linguagem cotidiana - como será explicado adiante - e é dela que decorrem todas as interações e consensos que vão sendo formados nessas interações. Por sua vez, tais sociedades, podem, usando suas próprias bases, questionar os consensos nelas estabelecidos e mudã­los. Uma tal ruptura fortalece e evidencia a tensão entre facticidade e validade desde sempre jã presente na forma de concepção das interações lingüístico-sociais. Daí Habermas dizer que:

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"Um leque de idealizações inevitáveis forma a base contrafac­tual de uma prática de entendimento factual, a qual pode voltar­se criticamente contra seus próprios resultados, ou transcen­der-se a si própria. Deste modo, a tensão entre idéia e realida­de [inlrinseca à linguagem] irrompe na própria facticidade de

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fonnas de vida estruturadas lingüisticarnente" (Habermas, 1997-1 :1, 20-21).

Assim, a partir das pretensões de validade, podemos ter uma orientação para formular inúmeros tipos de discursos: científicos, jurídicos, psicológicos, morais, entre outros. O papel das pretensões de validade é de fornecer o processo pelo qual fazemos isso quando falamos; e não a prescrição de uma regra de ação.

Nesse contexto, a partir do conceito de razão comunicativa, o próprio conceito de razão prática é modificado frente à reconstrução das teorias do Direito e da Moral. Nessas reconstruções ainda persis­te aquele conceito de razão, só que despojado de sua força no.nnativa com fins a uma orientação direta da ação. Mesmo assim elas ainda podem ser, como diz Habermas:

" ... [o] fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos fonnadores da opinião e preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercitado confonne o Direito" (Habermas, 1997-1:1, 21).

E ainda:

"Nessa perspectiva, as formas de comunicação da fonnação política da vontade no Estado de Direito, da legislação e da jurisprudência, aparecem como partes de um processo mais amplo de racionalização dos mundos da vida de sociedades modernas pressionadas pelos imperativos sistêmicos" (Haber­mas, 1997-1 :1, 22).

Finalmente, a questão central , de como garantir a integração social, a partir de sociedades complexas, que precisam equilibrar tanto as exigências de uma integração sistêmica quanto levar em conta a regulação imparcial de conflitos e a garantia de identidades e fonnas de vida, será respondida desenvolvendo-se a tensão entre facticidade

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e validade, que emerge no próprio processo de racionalização ocorri­do na Modernidade.

Esse será o último passo deste capítulo. Antes será preciso adentrar os fundamentos da Teoria do Discurso de Habermas. É a partir dessa guinada, de uma filosofia da consciência para uma filoso­fia da Linguagem, que Habermas terá condições de explicar como a teoria do agir comunicativo pode colocar a categoria do Direito no centro da problemática da integração social , em sociedades moder­nas, com base em um princípio do discurso.

"Apoiada no princípio do discurso, a teoria do direito precisa sair dos trilhos convencionais da Filosofia política e do direito, mesmo que continue assimilando seus questionamentos" (Habermas, 1997-L:I, 25).

2 A TENSÃO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE IMANENTE À LINGUAGEM: PRESSUPOSTOS DA TEORIA HABERMASIANA DA LINGUAGEM

Para se chegar à questão da integração social, há que se entender que a tensão entre facticidade e validade é constitutiva da linguagem. Essa tensão tenta ser assimjlada por uma teoria do agir comunicativo, já sob as bases da razão comunjcativa e não da razão prática. Sob essas bases, o agir comunicativo garante a integração social por meio do mecanismo do entendimento. A tensão entre facticidade e validade penetra na sociedade mediante esse mecanismo, que faz possível a coordenação das ações. Isto quer dizer que a Teoria do Discurso pretende preservar o nexo interno entre sociedade e razão, mas não nos mesmos termos das teorias normativas. É a partir desse nexo que será possível a reprodução da vida social, valendo-se de condutas conscientes. E tais pressupostos levantam o problema da integração social na medida em que, ao substituir a razão prática pela razão comunica-

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tiva, renuncia-se ao caráter diretamente prescritivo. A razão co­municativa produz "obrigações fracas'', pretensões de validade criticáveis. Habermas coloca o problema:

"Como explicar a possibilidade de reprodução da sociedade num solo tão frági 1 como é o das pretensões de validade transcendentes?" (Habermas, 1997-1 :1, 25).

O Direito, na fonna moderna do direito posilivo, apresenta-se como candidato a fornecer a resposta. Isto porque ele possibilita, por meio do sistema de normas, comunidades artificiais, na forma de associação de membros livres e iguais, cuja coesão se garante por dois fatores simultaneamente: 1) sanções externas, isto é, o caráter coercitivo; 2) pela suposição de um acordo racionalmente motivado, isto é, pela pretensão de legitimidade. Eis a tensão entre facticidade e validade explicitada no direito positivo moderno.

Ou seja, ao compreender a guinada lingüística, será possível ver como a teoria do agir comunicativo assimi la a tensão entre facticidade e validade, introduzindo-a no modo de coordenação da ação, tendo, por isso, que sustentar as exigências para manutenção de ordens sociais daí decorrentes, e a transpõe para o Direito, tendo este o papel de integrador social em sociedades econômicas e pós-industri­ais como as que vivemos.

Por esse caminho, a Teoria do Discurso de Habennas permite fazer a ligação entre racionalidade comunicativa e prática social que, com a crise da razão prática, não é mais direta, mas mediada pela linguagem.

O paradigma da filosofia da linguagem apresenta-se não apenas como uma maneira de articular novas respostas às perguntas coloca­das pela filosofia da consciência, mas muito mais do que isto, trata-se de uma guinada lingüística, sob o pressuposto de que a filosofia é impossível se não passar por uma filosofia sobre a linguagem, visto que a linguagem é medium pelo qual se constitui o ser humano. Como bem o explica o professor Manfredo de Oliveira:

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"É nesse sentido que K.O. Apel14 vai dizer que a Filosofia Primeira não é mais a pesquisa a respeito da natureza ou das essências das coisas e dos entes (ontologia), nem tampouco a reflexão sobre as representações ou conceitos da consciência ou da razão (teoria do conhecimento), mas reflexão sobre a significação ou o sentido das expressões lingüfsticas (análise da linguagem). A superação da ingenuidade da metafísica clássica implica, hoje, a tematização não só da mediação consciencial, como se fez na filosofia transcendental da Modernidade en­quanto filosofia da consciência, mas também da mediação lingüística" (Oliveira, 1996:13-14).

No contexto do paradigma da linguagem, estã pressuposto uma comunidade de falantes e ouvintes que constróem sentidos na medida em que interagem por meio da linguagem. A filosofia da consciência pressupunha que o sujeito constróe sentidos por si só a partir de estruturas intrínsecas. Nessa perspectiva, o "Outro" se coloca como limite para o "Eu"15 (Kant,1995: 75 - A 234,235,236). No paradig­ma da filosofia da linguagem, sendo a construção de sentido intersub­jetiva1 o "Outro" é um pressuposto e não um limite.

A problemática que a filosofia da consciência levanta é a dos limites do conhecimento, por isso prioriza a racionalidade cognitivo­instrumental, que será tão criticada pelos seus excessos, desde Nietzsche, Heiddegger, a Escola de Frankfurt, e até os pensadores "pós-modernos". Já a problemática priorizada pela filosofia da linguagem de Habermas é a do processo de comunicação entre sujeitos que procuram entender-se. A questão do entendimento é

14 Em que pesem as diferenças entre o pensamento de Apel e o de Habermas. ambos têm como ponto de partida a guinada linguística, fazendo possível se traçar o paralelo entre o que Manfredo de Oliveira fala sobre Apel e a idéia defendida por Habermas.

15 Esta concepção estruturou totalmente o pensamento da filosofia política moderna.

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Um exemplo é a concepção paradigmática de liberdade moderna: "A minha liberda­de acaba onde começa a liberdade do outro".

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subjacente à linguagem cotidiana. Com isso, o enfoque antes centrado na racionalidade cognitivo-instrumental se volta para o da racionalidade comunicativa.

A partir desses pressupostos, há que se estabelecer a relação entre entendimento, racionalidade comunicativa e linguagem. Para tanto, iremos explicar os pressupostos principais da Teoria do Discur­so de Haberrnas a partir de quatro eixos: 1) a teoria do significado por ele proposta, 2) a ligação entre significado e validade, 3) a teoria dos atos de fala e, a partir desses três, 4) o agir comunicativo como coordenador de ação e suas conseqüências para a integração sociaJ.

A formulação dos pressupostos de uma teoria do significado à luz da Teoria do Discurso são bastante antigas. Habermas mantinha uma discussão já em 1964 com Karl Popper e com Hans Albert sobre a chamada "teoria dos três mundos" inserida numa discussão sobre o status da ciência (Calvet de Magalhães, 1997: 65 et seq.). A formulação da teoria dos três mundos que Habermas utiliza remonta a Karl Bühler. É a teoria de Bühler que interessa a Habermas, e não a ontologização que Popper teria feito dela. Retomar a teoria pela qual se tenta pensar a conexão entre um mundo "objetivo", um mundo "subjetivo" e um mundo "social", só faz sentido para Habermas pensando no contexto de uma teoria da ação em que cada um desses "mundos" possa ser correlacionado a uma função da linguagem, a de apresentação, a de expressão e a de apelo, respectivamente.

Essa tese coloca Habennas no contexto da teoria pragmática do significado desenvolvida por Wittgenstein nas Investigações Filo­sóficas (concluído em 1949, mas publicado postumamente), na qual o autor vai reconhecer inúmeras espécies de proposições para além daquelas por meio das quais se constata um estado de coisas. A linguagem pode ser empregada de diversos modos: dar ordens, des­crever, relatar, conjeturar, traduzir, pedir, .agradecer, etc. (Wirtgens­tein, 1995:189-§ 23). Ou seja, a função da linguagem não se limita à representação. Essa corrente desenvolve uma concepção dialógica de filosofia da linguagem, não mais voltada para a ciência e sim para a ação e para a interação, não mais em busca de uma metalinguagem

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que consiga exprimir com exatidão aquilo que é científico16 e sim priorizando a linguagem cotidiana, explorando toda sua ambigüidade como uma riqueza e não como uma deficiência.

A teoria habermasiana do significado será compreendida em toda sua extensão a partir da ligação do significado com a validade, ponte necessária para se explicar as pretensões de validade. E é a partir da teoria do significado de Frege - a semântica formal - que Habermas estabelece tal ligação.

A semântica formal de Frege toma a linguagem como uma construção própria e independente das intenções e da consciência. A chave de compreensão do significado está nas expressões lingüísticas e não nos sujeitos que falam, por isso, são as características formais e as regras de uso das expressões que se tornam o elemento da semântica formal. Para essas teorias, a função que a linguagem tem é bastante restrita, ela é capaz de exprimir estados de coisas, ou seja, basicamente a linguagem tem uma função de representação. Esse eixo é marcado por uma visão monológica de linguagem que, como se viu acima, Habermas abandona graças ao segundo Wittgenstein.

De qualquer forma, o grande mérito da teoria de Frege foi o de ter conseguido fazer a correlação entre significado e validade da proposição. Isto porque, pela análise da construção lógico-semânti­ca da linguagem, é possível conhecer as condições sob as quais uma proposição pode ser dita verdadeira ou falsa. O significado, para esse eixo teórico, inclui a proposição e as suas condições de verdade. Além disso, o significado não é uma questão meramente gramatical, isto é, de regras formais de construção de proposições. O significado depende do uso das proposições dentro de contextos sociais, que ao mesmo tempo são formados por elas e as confor­mam, mediante regras de uso nesse contexto. Portanto, comu­nicamo-nos não por proposições mas por proferimentos, isto é, por

16 Este era o projeto do empirismo lógico. Ver os textos dos autores do Círculo de Viena. (Caraap. R .. Hahn. H. e Neuralh, O., 1986)

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proposições gramaticalmente corretas e que dizem algo confonne a regras sociais de seu uso.

Há, conseqüentemente, uma ligação direta entre as pretensões de validade e o significado. Habennas pretende formular uma teoria pragmática do significado, como se verá detalhadamente. Portanto, ele não pode reduzir o significado à proposição. Significado nesse contexto marca a distinção entre dizer que se compreende o significa­do de uma expressão lingüística e o entender-se com alguém sobre expressões tidas como válidas. É a distinção entre um proferimento válido e um proferimento tido como vál ido.

A comunicação, para Habennas, não se reduz a uma questão de nexo objetivo entre linguagem e mundo. Entre falante e ouvinte, há um jogo de argumentação que está envolvido no processo de com­preensão. A compreensão do ato de fala se dá quando se conhecem as razões que um falante poderia aduzir, a fim de convencer o ouvinte de que ele, em certas circunstâncias, tem direito a pretender a valida­de de sua expressão. Habennas conclui que:

" ... o meio da linguagem natural dispõe de um potencial de forças de ligação utilizável para fins de coordenação da ação. No momento em que um falante assume, através de sua preten­são de validez criticável, a garantia de aduzir eventualmente razões em prol da validade da ação de fala, o ouvinte, que conhece as condições de aceitabilidade e compreende o que é dito, é desafiado a tomar uma posição, baseado em motivos racionais; caso ele reconheça a pretensão de validez, aceitando a oferta contida no ato de fala, ele assume a sua parte de obrigatoriedade decorrentes do que é dito, as quais são rele­vantes para as conseqüências da interação e se impõe a todos os envolvidos" (Habermas, 1990: 82).

A adaptação e a ligação entre a teoria dos três mundos e as funções da linguagem, e entre a teoria do significado e a validade, permite a Habermas fundar urna tese da racionalidade num conceito,

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mesmo que provisório, de agir comunicativo. Permite fazer uma ponte entre racionalidade, ação e linguagem. O novo subsídio que será necessário para construir o elo é a teoria dos atos de fala.

Habermas quer, em especial, priorizar o caráter pragmático da teoria dos atos de fala, ou seja, a relação única que se estabelece entre atos de fala e ação. Para que isso seja possível, há que se abandonar duas perspectivas que tinham sido até então utilizadas pelas teorias da linguagem: a primeira, de que a linguagem se remete à condição psicológica do falante e; a segunda, daquelas teorias que, por via da análise formal , incorrem numa falácia 'abstrativa'.

A primeira questão é levantada por Habermas graças ao deba­te entre Grice e Searle e entre este e Saussure. O argumento de Searle é que o estudo dos atos de fala é um estudo a partir da perspectiva da linguagem (langue) e não da perspectiva de um falante particular que emite "falas" (parole), como comprovado em Speech Acts:

"Pode parecer que a minha abordagem é simplesmente, em termos Saussirianos, um estudo sobre a 'parole' ao invés de um estudo sobre a ' tangue' . Meu argumento, contudo, é que um estudo adequado sobre atos de fala é um estudo da tangue. [ ... ]Não há, portanto, dois tipos irredutíveis de estudos semân­ticos, um estudo dos significados das sentenças e um estudo sobre a performances dos atos de fala. [ ... ] E por todos estes motivos o estudo do significado de sentenças não é em tese distinto do estudo dos atos de fala. Propriamente falando, eles são o mesmo estudo [ ... ] o estudo do significado de sentenças e o estudo de atos de fala não são dois estudos . independentes mas um estudo de dois pontos de vista. "17

(Searle, 1969: 17,18) (grifos nossos)

17 Tradução livre do inglês " /1 still might seem 1ha1 my approach is simply, in Sa11ss11riarr terms, a s111dy o/ "parole" rather 1lla11 "langue". I am arg11i11g, however, tltat a11 adeq11a1e s111dy o/ speeclt acts is a st11dy o/ "langue" ( .. . ) Tltere are, tlterefore, not two írreducibly distinct semantic sllldies, 011e a st11dy o/ tlte meani11gs

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Habermas está de acordo com a posição de Searle em Pensa­mento Pós-metafisico, onde faz a crítica à visão das teorias lingüísti­cas que, como a de Grice, se remetem à condição psicológica do falante:

"Na minha visão, ao contrário, uma ação de fala, que o falante utiliza a fim de entender-se com um destinatário sobre algo, expressa simultaneamente três coisas: a) uma intenção do falante, b) um estado de coisas e c) uma relação interpessoal. De acordo com a interpretação intencionalista primitiva, é necessário expli­car esse processo global de comunicação na perspectiva do falante e de sua intenção, portanto, de tal modo que (c) e (b) sejam deduzidas de (a). Searle amplia esse modelo, pois, percebe que a representação de estados de coisas traz à tona uma dimenséio de validez e uma referência ao mundo capa­zes de fornecer critérios para que uma intenção comunicati­va seja realizada com sucesso. Mantendo as pretensões da explicação intencionalista, Searle modifica a estratégia de expli­cação, fazendo com que o sucesso comunicativo dependa de uma representação bem-sucedida do estado de coisas, ou seja, que (c) e (a) dependam de (b)" (Habermas, 1990: 138).

Tanto Habermas quanto Searle querem fundamentar uma teoria dos atos de fala em que a comunicação possa ser explicada sem se remeter à condição psicológica do falante. Mas Searle, e nisto é criticado por Habermas, mancém a intenção, como elemento funda­menta] para a explicação das representações dos estados de coisas (Searle, 1995-2 e 1997).

of sentences and one a study of the perfon11ances of speech acts (. .. ) And for ali these reasons a srudy of the meaning of sentences is not in principie distinct from tlie study of speec/1 acts. Properly construed, they are tlie same study ( ... ) the study of the meanings of semences a11d the s111dy of speec/1 acts are 1101 two i11dependent studies but one st11dy from two dif!erent points of view."

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O segundo argumento de Habennas em favor do caráter prag­mático da teoria dos atos de fala parte da distinção, feita pela lingüis­tica e pela filosofia desde Saussure, que separa um sentido abstrato de fala, como estrutura, e um de fala, como processo. A linguagem é um sistema de regras que gera expressões - as sentenças. Essas são os elementos da língua. Outra coisa são os sujeitos capazes de utilizar essa expressões, nos processos de comunicação dos quais eles fazem parte, isto é, compreendendo e respondendo a essas sentenças.

Habermas concorda com essa abstração da linguagem em relação ao uso da linguagem na fa la, mas não acredita que é por esse corte analítico que se poderá chegar à dimensão pragmática, que simplesmente não pode ser submetida a uma análise formal (Habennas, 1994-2: 303). Assim ele defende que:

"A separação dos níveis analíticos ' lingua' e 'fala' não deve fazer-se de fonna a que a dimensão pragmática da linguagem fique abandonada a uma análise exclusivamente empírica, isto é, às ciências empíricas tais como a psicolingüística ou a sociolingüística. Vou defender a tese de que não só a Linguagem senão também a fala, isto é, o emprego de sentenças em emissões, é acessível a urna análise fonnal . Assim como as unidades elementares da linguagem (sentenças), também as unidades elementares da fala (emissões) podem analisar-se em uma atitude metodológica de uma ciência reconstrutiva"18 (Habermas, 1994-2: 304).

18 Tradução livre do texto em espanhol "la separació11 de los 11iveles 0110/ftlcos 'le11gua' y 'hab/a' 110 debe hacerse de s11erte que la dime11sió11 pragmática dei le11g11ajt qutde abandonada a "" a11álisis exc/11sivame11te empírico, es decir, a cie11cias empíricas tales como la psicolingliistica o la sociolingliisticas. " " Voy a sostener la tesis de que no só/o e/ ltng11aje sillo tambié11 el hab/a, es decir, el empleo de oraciones en emisiones, es accesib/e a tm a11álisis formal. AI igual que las unidades elementares dei /e11g11aje (oraciones), también las unidades elemen­tares del habla (emisiones) p11eden analizarse en la actiwd metodológica de una ciencia reco11strnctiva."

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A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

Se ligarmos a crítica da falãcia abstrativa à compreensão das condições de validade, explicadas na primeira parte deste capítu­lo, se percebe que, ao se limitarem a um estudo da estrutura, as teorias analíticas da linguagem preenchem apenas a condição de inteligibilidade, que é a única pretensão universal que se satisfaz dentro da própria linguagem, pois requer que uma sentença esteja sintática e semânticamente correta. Mas uma emissão, para ser bem sucedida, deve ainda completar três outras condições: a da verdade, que se remete a algo no mundo (mundo objetivo), a da veracidade, que se remete à intenção do falante (mundo subjeti­vo), e a da correção normativa, que é ligada a expectativas social­mente reconhecidas (mundo social). Nesse sentido é que a teoria da linguagem de Habermas é inovadora em relação às outras teorias.

E ainda, ela é inovadora, pois vai compreender a linguagem a partir da tensão permanente entre facticidade e validade explicitada como a tensão entre perspectiva do observador e perspectiva do participante. As teorias analíticas explicam a fala apenas do ponto de vista do observador, ligando a compreensão da linguagem à estrutura da própria linguagem. A teoria de Habermas se faz tributá­ria desta visão na medida em que reconhece a perspectiva do observador como um dos pólos da tensão. Mas a compreensão de proposições linguísticas devem também considerar a perspectiva do participante. É dessa perspectiva que as proposições são intro­duzidas em atos de comunicação a partir da relação falante/ouvinte. A idéia de entendimento surge aqui quando perguntamos o que é compreender um ato de fala? O que torna válido um ato de fala? São as pretensões de validade que se colocam da perspectiva do participante.

Portanto, de forma a poder reconstruir uma teoria dos atos de fala em que a dimensão pragmática - do participante - se torne o ponto fulcral, Habermas recorre a Austin. Habermas está interessado na teoria de Austin primeiramente porque ela tematiza as unidades elementares da fala, porque ela postula a questão da competência

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

para se utilizar sentenças (unidades elementares da linguagem) nos atos de fala e finalmente porque ela permite fazer a ligação que fizemos acima entre as condições de validade e a ação.

Para Austin, quando dizemos algo, fazemos algo e, ao realizar­mos o ato de fala, dizemos também o que fazemos. Isto é, os atos de fal a revelam a intenção do agir a partir de si mesmos. Eles possuem uma estrutura auto-referencial porque a força ilocucionária determina o sentido da aplicação do que é dito19 (Austin, 1962). Os atos de fala encerram, por isso, a perspectiva do participante pois a intenção expressa na dimensão ilocucionária é sempre uma intenção direcionada a alguém, já que pressupõe a relação bipolar entre falante e ouvinte. Diferentemente, ações não-lingilísticas trabalham do ponto de vista do observador, em que não se conhece a intenção que comanda a ação, a partir da qual se traçam e executam planos de ação; sendo assim, apenas se é capaz de identificar a ação e talvez inferir possíveis significados.

O sentido "performativo", isto é, o direcionamento para o sucesso de uma ação ou prática social por meio da linguagem, característico de todo ato de fala, pressupõe a virada para uma perspectiva participante, e por isso mesmo, pressupõe um falante

19 Pela teoria de Austin, há três dimensões do ato de fa la: locucionária, ilocucionária e perlocucionária. A primeira diz respeito à correção sintática e semântica do ato. Se ele pretende ser compreendido, ele deve seguir determina­das regras gramaticais e as palavras utilizadas devem poder ter um sentido atribuído comum no ouvinte. Mas o "sentido" não se dá somente nessa primeira dimensão semântica. A dimensão ilocucionária expressa a intenção pressuposta no ato de fala. a partir da qual ele ganha uma força de direção especffica. Por exemplo, o ato de fala "eu prometo que virei na quinta-feira" expressa a intenção do falante de se comprometer a efetivamente cumprir. Quando se diz isto. não apenas se diz, como já se está fazendo algo: comprotendo-se a cumprir. A partir da força ilocucionária, estabelece-se uma relação com o ouvinte, que pode passar a ter a expectativa de encontrar o falante naquele local na quinta-feira. Mas há ainda a dimensão perlocucionária, que se refere aos efeitos extrfnsecos que podem ser gerados a partir do ato de fala. Esses são inúmeros e imprevisíveis. No nosso exemplo: pode ser que para o ouvinte a afirmação seja totalmente indife­rente e, embora, o falante esteja se compromentendo com ele, o ouvinte resolva não aparecer na qufota-feira.

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A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

e um ouvinte que têm como objetivo chegar a um entendimento sobre algo no mundo. Assim, os atos de fala, diferentemente de atividades não lingüísticas, interpretam a si próprios, possuem uma estrutura reflexiva e, visam fins ilocucionários, realizáveis somente por cooperação e assentimento livre dos destinatários. Habermas escreve:

"Este sentido performativo de uma ação de fala só é captado por um ouvinte potencial que assume o enfoque de uma segun­da pessoa, abandonando a perspectiva do observador e ado­tando a do participante. É preciso falar a mesma linguagem e como que entrar no mundo da vida, compartilhado intersubjeti­vamente, por uma comunidade lingüística, a fim de tirar vanta­gens da peculiar flexibilidade da Linguagem natural e poder apoiar a descrição de uma ação executada por palavras sobre a compreensão do auto-comentário implícito nessa ação verbal." (Habermas, 1990:67)

Assim, recorrendo-se à estrutura da linguagem, podemos com­preender duas dimensões da ação, uma das quais visa, da perspectiva da relação entre falante e ouvinte, a um entendimento mútuo, e outra, que visa, da perspectiva do observador, a fins. Habermas faz, então, a distinção entre uma racionalidade orientada para o entendimento mútuo e uma racionalidade orientada para fins como tipos elementares de ação: a ação comunicativa e a ação estratégica.

Esses tipos de ação se distinguem pelos seguintes fatores: em primeiro lugar, pelo uso que fazem do mecanismo comum de coorde­nação de ação que é a linguagem comum. O agir estratégico usa a linguagem comum como meio para transmissão de informações, já o agir comunicativo, como fonte de integração social. No agir comuni­cativo, a própria linguagem é que coordena a ação pela força consensual do entendimento; no agir estratégico a coordenação se dá pela influência dos atores uns sobre os outros e sobre a situação da ação. A racionalidade do agir estratégico é teleológico em relação aos

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HABERMAS E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

planos individuais de ação, enquanto que a racionalidade do agir comunicativo exige que se definam cooperativamente os planos de ação, levando-se em conta uns aos outros, sobre a base de interpreta­ções comuns e horizontes compartilhados.

Em suma, no agir estratégico, a linguagem transforma-se num simples meio de informação, pois suspende-se o pressuposto de que a orientação tem como base pretensões de validade, em favor de pretensões de poder ou de influência. No agir comunicativo, o ato de fala se justifica normativamente conforme pretensões de validade, pretensões à verdade proposicional, à correção normativa e à veraci­dade subjetiva.

Apresentada a teoria da Linguagem reconstruída por Habermas, pode-se concluir que a linguagem pode ser uma forma de integração social bastante efetiva porque é por meio dela que as práticas sociais podem se dar tendo como fim o entendimento mútuo, por via do agir comunicativo. Ou seja, sendo o agir comunicativo, e seu objetivo de alcançar o entendimento mútuo, um mecanismo de coordenação da ação, os pressupostos contrafactuais da linguagem, de atores que orientam sua ação por pretensões de validade, mantêm uma ligação com a construção e preservação de ordens sociais. Isto porque também as ordens sociais existem pelo reconhecimento de proferimentos normativos de validade.

"[As] idealizações embutidas na linguagem podem assumir[ ... ] um significado relevante para a teoria da ação, caso as forças ilocucionárias de atos de fala venham a ser utilizadas para a coordenação de planos de ação de diferentes atores" (Habermas, 1997-l: 1, 35).

A integração social, isto é, o processo em que atores procuram a construção e preservação de uma ordem social, traz em si, como na linguagem, a tensão imanente entre facticidade e validade. Como essa tensão se manifesta pode ser aqui explicado a partir de sua reconstru­ção nos processos de racionalização do mundo da vida próprios da

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A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

Modernidade, e na conseqüente especialização funcional dos siste­mas sociais.

3 PROCESSO DE RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO DA VIDA E O PROBLEMA DA INTEGRAÇÃO SOCIAL

A racionalidade estratégica, utilizada pelos sistemas para sua auto-reprodução, é tipicamente moderna. Na Modernidade, determi­nados sistemas sociais, o da economia, por meio do dinheiro, e o da política, por meio do poder administrativo, utilizam a racionalidade estratégica para exercer a sua função, que é a de integradores sistêmicos na sociedade. Mas esse mesmo processo de racionaliza­ção libera também um outro tipo de racionalidade, a comunicativa, em que a integração depende da solidariedade, que supre as deficiências e os limites do dinheiro e do poder administrativo de promoverem a integração social.

Isso porque os mecanismos do dinheiro e do poder administra­tivo não levam em consideração a "regulação moral de conflitos, ou a garantia ética de identidades e formas de vida" (Habennas, 1997-1: II, 47). O tipo de integração que eles conseguem é apenas no nível do sistema. Já a solidariedade considera, adicionalmente, os pontos de vista moral e ético.

Mas para promover a integração social em sociedades econô­micas, pós-industriais, em que a racionalidade sistêmica estratégica prevalece, a solidariedade deverá utilizar-se do Direito. Em socieda­des modernas e complexas, como as que vivemos, o terceiro meca­nismo de integração social - a solidariedade - é promovida pelos âmbitos normativos da religião, da moral ou da ética, de forma deficitária.

O tipo de solidariedade presente na ética e na religião é promovida "entre conhecidos e em contextos concretos do agir comunicativo" (Habermas, 1997-1: Il, 308). Ou seja, eles depen­dem da construção de identidades mútuas e da 'fraternidade'. Tais

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HABERMAS E A DESOBED l ~NCIA CIVIL

estruturas de reconhecimento recíproco são transpostas para o Direito, em que a solidariedade se dá em formas abstratas e impositivas, sendo que o reconhecimento mútuo ocorre "por titula­res abstratos de direitos subjetivos" (Habermas, 1997-l: II, 308 et

seq. ). Portanto, o Direito é capaz de garantir sociedades em que não existe apenas uma visão de vida boa, mas várias, e não apenas uma religião dominante e oficial, mas um Estado laico sob o princí­pio da liberdade de crença.

A Moral pós-convencional (Colby, A. e Kolbberg, L. , 1975) é, como o Direito, abstrata. Contudo, ela enfrenta deficiências do tipo operacional, motivacional e cognitivo. A relação de comple­mentariedade entre Direito e Moral será analisada no segundo capítulo deste trabalho. Por ora basta assinalar que a possibilidade de integração pela solidariedade é transposta para o Direito, por ser este um meio social capaz de agir como sistema, impondo coerciti­vamente as decisões, mas em constante procura da legitimidade racional de tais decisões, explorando os fragmentos de racionalida­de já existentes e liberados no processo de modernização. O Direito tem essa capacidade de promover a inlegração social via solidarie­dade, ou seja, via ação comunicativa. Nesse sentido ele age como o tradutor entre a lógica estratégica dos sistemas e o mundo da vida racionalizado.

A garantia de inlegração social em sociedades pós-industriais passa por equilibrar tanto as exigências da integração sistêmica quan­to em levar em consideração a regulação imparcial de conílitos (mo­ral) e a garantia de identidades e formas de vida (ética), tendo presente a tensão entre factic idade e validade, que no Direito abre a possibilidade aos agentes de regularem de forma legítima seu agir estratégico.

A fim de estabelecer esta possibilidade, será necessário com­preender a sobrecarga que a linguagem e a ação comunicativa devem enfrentar, como se dá a integração por via do mundo da vida e das tradições, o duplo sentido da validade jurídica e finalmente como o sistema de direitos é chave para a integração social.

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A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

4 SOBRECARGA DO MECANISMO DO ENTENDIMENTO, A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO, E O SEU PAPEL. DE INTEGRADOR SOCIAL

Frente à reconstrução teórica de Habermas, a partir da qual o agir comunicativo pode utilizar-se do mecanismo do entendimento para a coordenação de planos de ação que assegurem a criação e manutenção de ordens sociais, uma pergunta ainda resta:

"Como é possível surgir ordem social a partir de processos de formação de consenso que se encontram ameaçados por uma tensão explosiva entre facticidade e validade?"(Habermas, 1997-1: 1, 40)

A categoria do agir comunicativo implica no problema do risco de dissenso para fazer frente a tal questão. Isso porque toda interação pressupõe estar embutido, no mesmo mecanismo do entendimento, o risco de dissenso. Ao tentar entrar em acordo, na problematização das pretensões de validade, o ouvinte é obrigado a tomar uma posição 'sim ou não' frente às pretensões levantadas pelo falante. Essa possibilidade de dizer não tem conseqüências sérias para a coordenação da ação. Se hã urna grande possibilidade das pessoas discordarem entre si, corno é possível coordenar ações conjuntas? E mais, como é possível se garantir a integração social?

A integração sociai'ainda é possível sobre o pano de fundo comum que faz possível a comunicação entre falante e ouvinte, e que é, inclusive, pressuposto para o desacordo entre ambos. O mundo da vida é o horizonte presente em toda interação entre atores e, ao mesmo tempo, a fonte a partir da qual os atores podem elaborar suas interpretações e atos de fala. No mundo da vida está presente um saber não problematjzado que é visto pelos atores como uma certeza óbvia e imediata. Quando rematizado, ele deixa de ser mundo da vida para entrar em contato com as

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pretensões de validade, mas é justamente por meio desse proces­so de problematização que o mundo da vida se reproduz, enquan­lo pano de fundo, e forma um complexo de 'tradições entrelaça­das, de ordens legitimas e de identidades pessoais' (Haberrnas, 1997-1 : 1, Cap. 1 parte 2).

Em sociedades pós-industriais, o mundo da vida opõe pro­blemas para a integração social. Em sociedades arcaicas, ele se apresentava suficiente para garantir a integração social, porque era possível estabilizar expectativas de comportamento e criar o com­plexo cristalizado de convicções, crenças e tradições por meio da formação de instituições fortes , regidas por uma autoridade inquestionável, que ritualizava os processos de entendimenlo de forma a limitar a comunicação, protegendo aquele complexo da instabilidade provocada pela problematização dos conteúdos. A tensão entre facticidade e validade em tais sociedades aparente­mente desaparece numa fusão em que a validade desse complexo está revestida com o poder do factual (Haberrnas, 1997: I,41-42). O Direito ainda está ligado e incorporado nos conteúdos éticos e religiosos não questionáveis, os quais dão a unidade e identidade da sociedade.

Mas no processo da Modernidade, o risco de dissenso é incorporado à própria dimensão da validade. A diferenciação funcio­nal característica desse processo, amplia os papéis sociais, os interes­ses, as concepções de vida boa, portanto, amplia os espaços de opção. Assim, o agir comunicativo é libertado 'das amarras ins­titucionais' e intensifica as interações do agir estratégico (Haberrnas, 1997-1: I, 50 et. seq.).

Por isso, o problema típico das sociedades modernas é, nas palavras de Habermas:

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"como estabilizar, na perspectiva dos próprios atores, a valida­de de uma ordem social, na qual as ações comunicativas tor­nam-se autônomas e claramente distintas das interações estra­tégicas" (Haberrnas, 1997-1: 1,45).

A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

Os mecanismos de agir comunicativo e do mundo da vida estão sobrecarregados, o primeiro pela tensão entre dissenso e consenso, o segundo porque se encolhe frente ao constante risco de dissenso. Neste contexto, o Direito ganha uma capacidade cada vez maior de garantir a integração social em função de suas características. Em primeiro lugar, o Direito moderno é capaz de absorver o agir orienta­do por interesses e neutralizá-lo no sentido de que as normas jurícticas encontram a sua validade no próprio Direito e não mais em garantias meta-sociais, como será tr~tado no capítulo seguinte.

Em segundo lugar, o Direito moderno regulamenta, a partir de suas normas, as interações estratégicas. Com isso, uma opção con­creta é apresentada tanto a atores que agem estrategicamente quanto a atores que se guiam pelo entendimento mútuo, e que, em última instância, criam essas normas sob a base de um entenctimento. Claro que do ponto de vista de cada um - aqueles que agem estrategica­mente e aqueles que agem comunicativamente - essas regras apresen­tam um caráter ambivalente, pois parecem conciliar pontos de vista inconciliáveis. Para o ator orientado pelo próprio sucesso, todos os compontentes de uma dada situação são fatos a serem analisados à luz de suas preferências. Por isso, as normas jurídicas se apresentam como limites fáticos aos quais o ator se vê forçado a se adequar. Já os atores que agem comunicativamente dependem da compreensão re­cíproca da situação dada e da negociação de seus componentes à luz de pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas. Sob essa ótica, as normas jurídicas precisam desenvolver uma força social integradora, em que a obrigação de obedecer a tais normas esteja sustentada sob pretensões de validade normativas reconhecidas inter­subjeti vameote.

Esta ambivalência, assim explicitada, separa claramente a cti­mensão da facticidade da dimensão da validade. Não há mais, como na Antigüidade, a fusão, na dimensão da facticidade, da tensão entre facticidade e validade, assegurada pelo âmbito do sagrado. As nor­mas modernas que garantem a tensão entre facticidade e validade e, com isso, dão conta dos dois pontos de vista a princípio excludentes,

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

são aquelas que asseguram os direitos subjetivos privados. Elas criam as condições para o exercício das liberdades subjetivas de ação, ao garanti-las por meio da coação do direito objetivo. E, por isso, Habermas conclui que:

"Do ponto de vista histórico, os direitos subjetivos privados, que foram talhados para a busca estratégica de interesses privados e que configuram espaços legítimos para as liberdades de ação individuais, constituem o núcleo do direito moderno" (Haberrnas, 1997-1: I,47).

A ambivalência dos direitos subjetivos privados, tal como colo­cados pelo Direito moderno, demonstra o duplo sentido da vaJ idade jurídica, que já havia sido explicitada por Kant ao tratar da relação interna entre coerção e liberdade no Direito. Para Kant, normas jurídicas são ao mesmo tempo, e sob dois distintos aspectos, leis de coerção e leis de liberdade.

"Em toda comunidade deve haver uma obediência ao meca­nismo da constituição política segundo leis coercitivas (que concernem ao todo), mas ao mesmo tempo um espírito de liberda­de, porque, no tocante ao dever universal dos homens, cada qual exige ser convencido pela razão de que semelhante coação é con­forme ao direito, a fim de não entrar em contradição consigo mes­mo" (Kant, 1995: 92).

A norma jurídica é cumprida seguindo a simples condição de que a ação esteja em conformidade com a lei. Enunciando esse princípio da legalidade, Kant consegue explicar por que é possível a obediência à lei independentemente da motivação moral dos destina­tários. Contudo, essa duplicidade, manifesta do ponto de vista dos destinatários como a possibilidade de obedecer tanto finalisticamente, por motivos não morais, quanto por respeito à lei , isto é, moralmente, só é possível porque a associação dos destinatários enquanto mem-

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A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

bros livres e iguais já está a priori assegurada pela lei moral de liberdade.

"Por isso, o estado civil , considerado simplesmente como situ­ação jurídica, funda-se nos seguintes princípios a priori: l. A liberdade de cada membro da sociedade, como homem; 2. A igualdade deste com todos os outros, como súbdito; 3. A independência de cada membro de uma comunidade como cidadão" (Kant, 1995: 75).

A coerção e a liberdade como componentes da validade jurídi­ca explicitam a tensão entre facticidade e validade no interior da próp1ia validade. Da perspectiva empírica, o Direito só é taJ porque passou por processos jurídicos de reconhecimento do seu caráter jurídico, e só por processos também jur.ídicos é que pode ser derrogado. Como diz Kelsen sobre a definição do Direito como ordens da conduta humana:

"Uma 'ordem' é um sistema de normas cuja unidade é consti­tuída pelo fato de todas eJas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é- como veremos - uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordemjuríctica quando a sua validade se funda na norma funda­mental dessa ordem" (Kelsen, 1987:34).

Mas esse sentido tautológico da validade do Direito só se explica com referência à validade social e à validade no sentido de legitimidade. A vaJidade social ctiz respeito à capacidade de imposi­ção das normas entre os destinatários, isto é, a sua aceitação fáctica e que na teoria do Direito se chama de eficácia. Já a validade, no sentido utilizado na teoria do Direito sob o nome de legitimidade, "se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade

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nonnativa" (Habennas, 1997-l :I, 50). Isto é, pode-se pressupor que a nonna ingressou no ordenamento jurídico por meio de um processo legislativo raciona.! e que ela pode ser a qua.lquer momento justificada aduzindo razões morais, éticas e/ou pragmáticas. A legitimidade independe da eficácia da norma e, inclusive, há uma dependência contrária, é a eficácia que depende da crença dos destinatários na fundamentação das nonnas em vigência, isto é, de sua legitimidade.20

Ao analisar todas as facetas da validade jurídica, há como perceber todas as conseqüências que isso acarreta para os processos de produção do Direito e para a desobediência civil, como mecanis­mo ' legal' de produção, posto que se pode concluir que o Direito positivo, para ser considerado como tal, deve legitimar-se. Isto quer dizer que o Direito positivo não pode garantir a sua legitimidade apenas por meio da lega.lidade. Mas por outro lado, as liberdades garantidas nos direitos subjetivos o são quando positivadas em leis legítimas que dependem do legislador político para preencherem este status. Esse aspecto será analisado na segunda parte do capítulo dois desta obra. Por ora basta dizer que, assim sendo, os direitos subjeti­vos não podem mais ser interpretados sob a ótica egoísta e limitada de 'direitos subjetivos privados', mas Lêm que ser vistos denlro do processo complexo de validade/.legitimidade do Direito que se realiza no processo legislativo e para o qua.I o 'sujeito' surge não mais como indivíduo privado, mas como cidadão - co-partícipe do processo político de formação da vontade política. É nesse sentido que o conceito moderno de Direito, ao operacionalizar a tensão constitutiva entre facticidade e va.lidade:

" ... absorve o pensamento democrático, desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o qua.I a pretensão de legitimidade

20 Note-se, no entanto, que parn Kelscn legitimidade e eficácia são equivalentes. A tentativa de reduzir a tensão entre facticidadc e validade inerente do Direito será um dos grandes impasses do Positivismo, mas esse é assunto para outro livro. (Kelsen, 1960: 28).

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A TENSÃO IMANENTE ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE NO DIREITO

de uma ordem jurídica construída com direitos subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da 'vontade coincidente de todos ' os cidadãos livres e iguais" (Habennas, 1997-1: 1, 53).

Mas, em relação à desobediência civil, um problema adicional se coloca. Se Kant percebeu, como se viu acima, a tensão entre facticidade e validade presente no Direito, por que ele não admite a desobediência civil como possibilidade no interior do pensamento democrático? Porque a autonomia política, para Kant (e este é um problema presente também em Rousseau), está reduzida ao exercício coletivo da autonomia moraJ e sob esse corolário as leis sempre serão leis justas, como o próprio explica:

"Mas é uma simples idéia da razão, a quaJ tem no entanto a sua realidade (prática) indubitável: a saber, obriga todo o legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade colectiva de um povo inteiro, e a considerar todo o súbdi to, enquanto quer ser cidadão, como se ele tivesse assen­tido pelo seu sufrágio a semelhante vontade. É esta, com efeilo, a pedra de toque da legitimidade de toda a lei pública. [ ... ] "se é apenas possível que um povo lhe dê o seu assentimento, então é um dever considerar a lei como justa" (Kant, 1995: 83)'21

21 A esse respeito é ainda interessante ver a nota de pé de página que Kant foz após esta passagem: "Se, por exemplo, se decretasse um imposto de guerra proporcional para todos os súbditos, estes não poderiam. lá por ele ser pesado, dü:er que é injusto, porque talvez a guerra , segundo a sua opinião, seria desnecessária: pois não têm competência para sobre isso julgarem; mas, porque permanece sempre possível que ela seja inevitável e o imposto indis­pensável, é necessário que ela se imponha como legítima no juízo dos súbditos. Mas se, numa tal guerra. certos proprietários fossem importunados por contri­bulções, enquanto outros da mesma condição eram poupados, fáci l é ver que um povo inteiro não poderia consentir em semelhante lei, e é autorizado a fazer pelo menos protestos contra a mesma. porque não pode considerar justa a desigual repartição de encargos."

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

Por outro lado, Habermas considera que autonomia moral e autonomia política são independentes uma da outra, sendo que o processo de legitimidade do Direito será construído no exercício da autonomia política de forma a fundamentar o Direito a partir de si próprio e não mais a partir da moral, como fez Kant. Esse é precisa­mente o ponto de partida do capítulo dois desta dissertação. Antes de enfrentar esse problema, contudo, resta ainda a afirmação inicial deste capítulo sobre a integração social dar-se por meio do Direito, em sociedades modernas.

Viu-se que em sociedades complexas o mecanismo do enten­dimento, próprio do agir comunicativo e do mundo da vida, respon­sável pela integração social, sofre uma sobrecarga que será aliviada pelo Direito. Compreendendo esse papel do Direito é possível também compreendê-lo em seus dois aspectos, que estão em cons­tante tensão: por um lado, a coerção e a positividade, por outro, a aceitabilidade racional e a legitimidade. Viu-se também que a coer­ção e a positividade devem fundar-se na aceitabilidade racional e na legitimidade sob pena de produzirem decisões arbitrárias, tendo como conseqüência a desintegração social. A coerção garante um nível de aceitação da norma - o da eficácia - mas ela deve procurar a ligação constante com um segundo nível da validade que está expresso na idéia de auto-legislação, isto é, que os destinatários das normas, sujeitos de direitos subjetivos privados, são também parti­cipantes nos processos de produção do Direito, nos quais exercem a sua autonomia política. E esse suposto faz com que as normas jurídicas sejam racionalmente passíveis de aceitação. A relação entre Direito e política aqui pressuposto será tratado no capítulo três desta dissertação.

De qualquer modo, o que se pode perceber desde já é que a idéia de Estado de Direito é corolário para a compreensão desse mecanismo circular de legitimidade/legalidade do Direito a partir do quaJ as sociedades modernas podem garantir a sua integração social. O Direito deve a todo momento confrontar a sua autocompreensão normativa em face do 'poder ilegítimo das circunstâncias', para usar a

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expressão de Habermas. O Direito, por essa razão, é capaz de se ligar ao mesmo tempo às três fontes de integração explicitadas acima. Ele é capaz de fazer frente à necessidade da integração sistêmica por via do dinheiro e do poder administrativo, inclusive essas,:

"também devem permanecer 1 igadas, segundo a autocom­preensão constitucional da comunidade jurídica, ao processo integrador da prática social da autodetenninação dos cida­dãos" (Habermas, 1997-1: I, 63).

Por isso, o Direito ganha a sua força de integração social principalmente da fonte da solidariedade, por meio da prática de autodeterminação dos cidadãos. É assim que o estabelecimento do mercado e do Estado por meio das instituições e da forma do Direito (legalidade) está ancorado a todo momento na pretensão de legitimi­dade que é alimentada pela capacidade comunicativa - garantida na forma do sistema de direitos (Habermas, 1995).

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Capítulo 2

PROCESSO DE LEGITIMIDADE DO DIREITO

A integração social , delineada no primeiro capítulo da obra, a partir da tensão imanente à linguagem transposta ao Direito, é radicalizada quando confrontada a ordens jurídicas concretas em sociedades modernas e complexas. A questão agora é, portanto, mais específica: como é possível a integração social em sociedades moder­nas, com espaços de ação moralmente neutros?

Para desenvolver essa indagação, Habermas pretende fazer a reconstrução da autocompreensão das ordens jurídicas modernas, que parte dos direitos que co-associados jurídicos devem atribuir uns aos outros conforme a hipótese por ele lançada:

" ... eu desejo reconstruir, nos próximos capítulos, a autocom­preensão destas ordens jurídicas modernas. E tomo como ponto de partida os direitos que os cidadãos têm que atribuir uns aos outros, caso queiram regular legitimamente sua convivência com meios do direito positivo" (Habermas, 1997-1: l, 113).

Essa hipótese pressupõe dois pontos de vista. Por um lado, um ponto de vista teórico que pretende explicar como são reconstruídas as ordens jurídicas modernas da perspectiva de paradigmas histórico­teoréticos dominantes e, por outro, um ponto de vista do participante que compreende as ordens jurídicas enquanto destinatário eco-autor.

Tomando ambas perspectivas, Habermas visa compreender quais normas podem ser reconhecidas como válidas, não mais do ponto de vista da autonomia moral (Kant), nem mais do ponto de vista de uma eticidade substancial (Rousseau); mas do ponto de vista da ambivalente validade jurídica à quaJ a tensão interna entre facticidade e vaJ idade está ligada. Essa ambivalência ou tensão interna está

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presente no duplo aspecto das normas jurídicas, que, por um lado, são direilo positivo, e, nesse sentido técnico-jurídico, são válidas (vigentes), e, por outro, o da pretensão de legitimidade por elas levantada, uma legitimidade que é inerente ao próprio Direito, e que, na Modernidade, deve separar-se da ética, da moral e da política.

Para reconstruir esse caminho, em primeiro lugar Habermas tem que responder qual a linguagem que fará a mediação, em socieda­des modernas complexas, entre os subsistemas funcionalmente dife­renciados e o mundo da vida. Como se viu no capíLulo anterior desta obra, é a linguagem do Direito que cumpre essa tarefa. A partir dela, pode-se pensar em uma teoria do Direito que tenha como fundamento o próprio Direito a partir da Teoria do Discurso. A definição do Direito nesses termos é fundamental para a compreensão da proble­mática do direito à Desobediência Civil no Estado Democrático de Direito, em que todos os direitos, inclusive o de desobediência civi l, encontram fundamento no interior do próprio sistema jwídico. Esse fundamento é construído no duplo aspecto da validade jurídica e é por isso que não há uma contradição ou um hiato em se conceber um direito fundamental a desobedecer o Direito. Um tal direito apenas coloca em evidência esse duplo aspecto da validade que está desde sempre presente no Direito.

Neste capítulo começar-se-á por contextualizar o problema da integração social, do ponto de vista da tensão inlema, tal como aparece no pensamento filosófico e na teoria do Direito na modernidade. Para os paradigmas do Estado Li bera! e do Estado Social, a autonomia pública e a autonomia privada se colocam como realizações antagônicas. Isso influencia a forma como será entendida a legitimidade no Direito. A seguir, iremos aprofundar nas visões liberal e republicana - tradições modernas de maior sucesso em termos de teoria do Direito e de filosofia política - sobre as relações entre autonomia moral e autonomia política e entre direitos humanos e soberania popular, que é a forma como o antagonismo público/ privado se manifesta no Direito.

Para apresentar a crítica de Habermas a essas visões e atualizar nosso tema da Desobediência Civil conforme o paradigma do Estado

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Democrático de Direito - o qual pretende ter superado os paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social - iremos explicitar o princípio do discurso e seu desdobramento em dois princípios: o da moralidade e o da democracia. Com a demonstração dessa dedução, Habermas explica como a Modernidade opera a separação entre Moral e Direito e como essa ruptura se mostra, ao mesmo tempo, conflituosa.

O que leva à quinta parte deste capítulo, que irá discutir uma reinterpretação da relação entre Moral e Direito, confonne a Teoria' do Discurso, pelo qual não há conflito ou subordinação, mas co­originaridade e complementaridade.

Finalmente, uma fundamentação jurídica, não moral, do Direito, a partir do princípio do discurso é mostrada na própria gênese do Direito moderno, na conexão entre direitos humanos e soberania popular, reinterpretados também conforme o paradigma do Estado Democrático de Direito. ·

1 O ANTAGONISMO ENTRE AUTONOMIA PÚBLICA E PRIVADA, DIREITO SUBJETIVO E DIREITO OBJETIVO: DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL

Em primeiro lugar, Habermas irá analisar a questão da autono­mia a partir da clássica divisão no Direito entre direito público e direito privado. Foi a partir da idéia kantiana de autonomia jurídica funda­mentada na autonomia moral que surge, no século XIX, o conceito de direito subjetivo, que será desenvolvido, na tradição jurídica alemã, de Windscheid à Kelsen21 (Habermas, 1997-1: l , 116 et seq.). Esse conceito vai se Ligando cada vez mais ao conceito de direito objetivo, o que explica o movimento das concepções jusnaturalistas de Direito, predominantes nos séculos XVill e XIX, para o positivismo jurídico

21 Essa mesma tradição iníluencia em todos seus mat.izes a tradição jurídica brasileira. que seguirá o mesmo cam inho na determinação do conceito de direito subjetivo. Ver, nesse sentido, (Maua Machado, 1957).

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do final do século XIX e no século XX. Kelsen é representativo de tal movimento levando-~ às últimas conseqUências12 (Kelsen, 1987) e (Habermas, 1999).

Para Kelsen, a discussão sobre o dualismo direito objetivo/ direito subjetivo se mantém por uma lógicajusnaturalista pela qual o direito subjetivo é anterior e superior ao direito objetivo. Esse dualismo não faz sentido, posto que o 'direito jurídico' deve ser interpretado à luz do dever. Isto é, há apenas o conceito unitário de direito, ao qual pode corresponder tanto o 'direito subjetivo' , quanto o 'direito objetivo', dependendo de como ele se afirme frente ao dever que dele decorre. Por isso, explica Kelsen, é que para toda obrigação corresponde um 'direito jurídico'. Se esse é direito objeti­vo ou direito subjetivo isso é mera questão de perspectiva. Da perspectiva do sistema jurídico, o direito jurídico é 'direito objetivo' porque é norma jurídica provida de sanção. Mas do ponto de vista do indivíduo é 'direito subjetivo'. Isso porque é a partir da vontade do indivíduo que a sanção pode ser executada. A norma jurídica objetiva depende, para a sua aplicação, da vontade do indivíduo voltada para esse objetivo, por exemplo, quando essa vontade decide propor uma ação judicial para efetivar e aplicar o direito.

"Um direito não é o interesse ou a vontade do indivíduo a qual ele pertence [ ... ] O direito jurídico é [ ... ] a norma jurídica [direito objetivo] em sua relação com um indivíduo determinado pela norma, a saber, o queixoso em potencial" (Kelsen, 1992:87).

Esse dever-ser é entendido não deontologicamente, mas empi­ricamente, como a validade de fato conferida pelo legislador político que na sua decisão entrelaça o Direito legislado com sanções.

22 Sobre isso, ver o novo prefácio de Mudança Es1ru111ral da Esfera Pública , cm que Habermas esclarece que essa distinção entre direito subJellvo e objetivo, privado e público. garantiu um Estado Constitucional sem Democracia, na Alemanha; algo inconcebível nos Estados Unidos.

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Dessa forma, Kelsen "des-moraliza" o Direito, desvinculando totalmente a concepção de direito subjetivo das idéias de interesse ou de vontade subjetiva. A vontade, produzida por um indivíduo, só é juridicamente relevante se estiver estabelecida uma autorização pela norma jurídica. Assim, o indivíduo ao qual Kelsen se refere é àquele que detém o status de indivíduo perante o Direito, e é nessa perspec­tiva que se pode falar em 'direito subjetivo' e em sujeito de direito (Gonçalves, 1992).

A perspectiva teórica inaugurada por Kelsen e pelo positivismo jurídico do século XX é puramente funcionali sta na medida em que o sistema jurídico autônomo constrói, artificialmente, todos os conceitos - de Direito, de sujeito, etc. - e lhes dá um papel funcional dentro do sistema conforme a sua própria lógica.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e do período do Nacional-socialismo, levanta-se uma desconfiança e aversão a esse tipo de visão desmoralizada. Surgem então as críticas moralizadas à posição funcionalista, que se perguntam sobre o alcance e limites do direito objetivo, não respeitados nos regimes totalitários. A reação da dogmática jurídica alemã do pós-segunda guerra, da qual Raiser é representante, procura refundar o direito subjetivo sob bases "neo­jusnaturalistas", tentando achar o lugar dos direitos subjetivos na teoria do Direito (Habermas, 1997-1: I, 119 el seq. ). Mas, como Habennas observa, tal tentativa é frustrada por uma disputa que perpassa todo o caminho perconido pela elaboração do conceito de direito subjetivo: a disputa entre público e privado.23

Ainda um outro problema desponta nesse caminho. Nenhuma das correntes que o trilharam consegue responder de onde o direito objetivo retira sua legitimidade. As teorias jusnaturaJistas ainda conse­guiam tentar fundamentar a legitimidade na autonomia moral kantiana, tendo a intuição de levar em consideração para isso a intersubjetivida-

23 É o problema geral da jurisprudência dos valores; uma elic ização do direito objetivo e a uansformação do direito subjeti vo em bens ou valores da comunidade e não do indivíduo. Sobre isso ver o livro de (Larenz, 1983).

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de subjacente à própria moralidade. Mas com a 'objetivação' perde­se esse aspecto interno, do participante, em favor de uma atitude descritiva.

Por sua vez, tal movimento de objetivação se dá em um contex­to da passagem do paradigma do Estado Liberal para o paradigma do Estado de Bem-estar Social, em que os direitos individuais são 'materializados'. Sob a égide do paradigma do Estado Liberal, os direitos individuais eram interpretados como direitos subjetivos supe­riores e anteriores ao direito objetivo, sob bases jusnaturalistas. O pressuposto era que a sua fundamentação vinha da moral, pois, na Modernidade, o jusnaturalismo não pode mais apelar para motiva­ções religiosas ou tradições inquestionáveis.

Com a objetivação do direito subjetivo, é o fundamento moral que será colocado em xeque, em favor de uma versão funcionali sta que separa direito e moral. Aos direitos individuais consagrados nas declarações de direitos do século xvm e nas codificações do século XIX é garantido, por meio de sua positivação, o status de normas jurídicas. Contudo, a crise do paradigma do Estado Liberal, pelo menos do ponto de vista do Direito, é a crise de eficácia dos direitos individuais, que são consagrados pelo legislador polílico, mas que não conseguem a sua aplicabilidade frente a um Direito colonizado pela economia do laissezjaire.

Frente a essa situação, o paradigma do Estado de Bem-Estar Social pretende garantir a efetiva aplicação dos direitos subjetivos clássicos complementando-os com direitos sociais. Essa é precisa­mente a proposta de Raiser (Habermas, 1997-1 : I, L20). Essa pro­posta de reintrodução da perspectiva ética no Direito não se dá nos mesmos termos que no século XIX porque não há mais como apelar para a distinção entre direito objetivo e direito subjetivo, já superada por Kelsen. Portanto, Raiser reintroduz a perspectiva ética por meio da sociologia do Direito. Assim, o ordenamento jurídico toma-se uma ordem de valores objetivamente concretizados, sob o respaldo da sociologia do Direito que consegue empiricamente demonstrar os conteúdos éticos objetivos subjacentes ao Direito. É com essa 'eticização' do Direito que a dogmática jurídica alemã consegue

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sustentar o paradigma do Estado de Bem-estar Social e "materializar" os direitos individuais.24

Ainda uma nova série de problemas é explicitada na discussão da dogmática alemã. Frente à objetivação do direito subjetivo, um paradoxo se instaura na forma como serã entendida a correlação entre autonomia pública e autonomia privada. É problemático poder estabelecer de que maneira a autonomia pública se entrelaça com a autonomia privada de forma a explicar que os indivíduos são co­autores de seus direitos porque esses conceitos foram construídos, dentro dos paradigmas do Estado Liberal e do Estado de Bem-Estar Social, como antagônicos: ora a autonomia privada é moral (Kant), ora é utilitarista (lhering). Enquanto que a autonomia pública ora se apresenta sob os fundamentos de valores e de uma eticidade substan­cial no Estado Liberal, ora, no Estado de Bem-Estar Social, essa eticização é levada também para o âmbito da autonomia privada, sendo que a autonomia pública toma-se o espaço por excelência de realização dos direitos fundamentais .25

Para reconstruir o caminho da relação de antagonismo que é estabelecida entre autonomia pública e privada, e entre direito subjeti vo e direito objetivo, de forma a ultrapassar esses antagonismos, e passar a entender essas relações como co-originárias, e, por isso, mais adequa­das ao paradigma do Estado Democrático de Direito, Habermas irá retomar a discussão entre Hobbes e Kant e entre este e Rousseau, reconstruindo assim a ligação entre as teorias filosóficas modernas do Direito, do Estado e da Sociedade com a discussão filosófica contem­porânea sobre Direito e Democracia entre liberais e republicanos, para finalmente apresentar a perspectiva da Teoria do Discurso. Pretende-

24 Ainda sobre este ponto é possível traçar um paralelo com a Filosofia do Direito brasileira. Ver: (Mata Machado, 1957).

25 Não cabe no contexto desta obra aprofundarmos mais sobre esse tema. Contudo, gostaríamos apenas de apontar que o surgimento de regimes totalitários nesse período são um fenômeno aparte, com suas especificidades, e digno de um novo livro. Nosso camlnho se concentra nas tradições político-filosóficas das democra-cias de massa ocidentais. ·

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mos aqui também seguir esses passos de fonna a comprovar o proces­so de legitimidade do Direito, seus impasses e alternativas.

2 AS TENTATIVAS DE SUPERAÇÃO DOS ANTAGONISMOS E O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DO DIREITO

A ligação entre direito subjetivo (liberdades individuais) e direito objetivo, Hobbes quer resolver de uma vez só. Para Habermas, essa perspectiva de Hobbes desconsidera o status político de cidadão que se afirma no Direito e na atividade democrática (Habennas, J 997-1: I, 123-126). Hobbes toma o cidadão como o indivíduo privado, proprie­tário, que no pacto de fundação transfere direitos em função de uma vontade racionaJ de paz. Não há em Hobbes, segundo Habermas, um processo de reconhecimento recíproco de direitos subjetivos.

A concepção de Lei e de Estado hobbesiana está, nesse sentido, totalmente amoralizada. Lei e Estado são formas de expressão do desejo de autoconservação que parte não da razão, mas da vontade que o ser humano cem de evitar a morte. Assim, Hobbes questiona o pressuposto da AntigUidade pelo qual o costume é a origem da organi­zação política e a fonte principaJ do Direito. Hobbes defende que não seriam as tradições e, sim, a vontade racionalmente orientada para fins que pactuaria em favor de um limite que permjte a preservação do ser humano e a paz, e que constitui o Estado e o Direito.

A vontade, sendo racionaJ, é conduzida pelo direito natural de todo ser humano à consecução da liberdade em prol da conservação da vida. Tal lei naturaJ é limitadora do soberano. A lei civil , do qual o soberano é autor, não o pode limitar, mas a lei natural, que é anterior a sua constituição como soberano, sim. Hobbes, portanto, admite a possibilidade do súdito ter a liberdade de negar um comando do soberano quando este for contra a lei natural (Hobbes, 1993: 158).

As liberdades individuais pressupostas e anteriores ao Estado são garantidas na fonna do Direito (direito objetivo) e limitam o soberano. Portanto, a ordem emanada do soberano é colocada na

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linguagem do Direito. Em outras palavras, a política se utiliza do Direito. Esse fundamento utilitarista de um "egoísmo ordenado" é a principal crítica de Kant a Hobbes, retomada por Habermas, pois, sob uma tal ordem, não é possível fundamentar valores ou princípios. Hobbes pressupõe que as nonnas que regulam a sociedade partem daqueles que agem da perspectiva da primeira pessoa, estrategica­mente, de maneira a satisfazer interesses próprios.

A questão seria resolvida de uma tacada só, pela invenção artificial do Leviathan, que instrumentalizaria os direitos subjetivos. Dessa maneira, a tensão entre facticidade e validade é dissolvida na facticidade porque a legitimidade (validade) dependeria apenas de uma ordem jurídico-política instituída e coercitiva que reduz o Estado ao governo.

O modelo contratualista de Hobbes acaba sendo uma transpo­sição do modelo do contrato de direito privado para o de contrato social, do qual a Constituição seria o insLrurnento utilizado pelo gover­no para comprometer determinadas pautas.

Por isso Habermas vai retomar ainda outras críticas de Kant a Hobbes. Ao argumento sobre considerar o cidadão como o titular de direitos subjetivos privados, Kant opõe a idéia de que iguais direitos subjetivos são garantidos por uma lei universal. Essa lei universal se legitima por um conceito de autonomia como autolegislação, que Kant resgata de Rousseau, e que funda o sistema de direitos, como se verá à frente. ·

Ao modelo contratualista hobbesiano, Kant opõe a crítica de que um indivíduo, para renunciar a suas liberdades, requer uma visão mais abrangente daquela da primeira pessoa do singular, como assu­mido pelo direito privado. Uma tal renuncia requer uma noção de reciprocidade e urna capacidade de distanciamento e crítica às liber­dades subjetivas.

Para Hobbes, a reciprocidade é imposta - daí, por exemplo, a colocação da "regra de ouro"26 (Hobbes, 1985:214) - considerando os sujeitos incapazes de assumir um ponto de vista plural. É o que Kant chama de heteronornia, agir de uma determinada maneira não porque é

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certo, mas porque não quero que ajam assim contra mim. A visão de Kant é contrária à de Hobbes porque, como ele próprio define (Kant, 1995: 57 et seq. ), a Constituição não pode ser tratada como um instrumento de direito privado. Ela é, na verdade, instauradora de uma ordem de cooperação entre sujeitos, sendo um fim em si mesma. Por isso ela se funda no direito público e não no direito privado.

A partir dessas críticas é possível concluir que a autonomia pública e a autonomia privada são definidas por Kant da perspectiva moral porque, para ele, leis públicas aspiram legitimidade pela vonta­de permanente de co-associados livres e iguais. As leis públicas asseguram os direitos subjetivos numa perspectiva moral em que todos atribuem reciprocamente esses direitos. O que garante a reci­procidade é a universalidade da lei que compatibiliza as liberdades subjetivas. Em termos contemporâneos, dir-se-ia que é a semântica da lei universal que garante a reciprocidade porque compatibiliza as liberdades de todos.

E agir moralmente quer dizer, em termos kantianos, agir confor­me o dever. A diferença, para Kant, entre Direito e Moral se faz pelo critério formal da conformação da obrigação que cada um estabelece. A moral se guia por uma boa vontade que é boa porque não está submetida a nenhum parâmetro exterior, com vista a fins ou interesses. Só o critério interno do dever é capaz de motivar uma boa vontade a agir. Por isso, agir moralmente não é apenas constatar a coerência da minha ação com o dever, mas também cumprir a norma movido internamente apenas pelo dever.

Já, agir juridicamente, conforme à legalidade, requer apenas que minha ação se mostre coerente com as leis, não importando se fui compelido a seguir a norma por motivos externos de interesse ou fins, ou se o que me motivou foi o dever. Daí a classificação da ação moral como autônoma e da jurídica como heterônoma (Kant, s/d 1788).

26 " Do not that to another, which tirou wouldest not have done to thy selfe" (Não faça ao outro aquilo que você não gostaria que fizessem com você).

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Conforme essa classificação, a validade das leis jurídicas independem da pureza da intenção do agente, enquanto que a valida­de das leis morais é interna, depende da adesão à norma ter ocorrido pela convicção de que a norma é correta.

Segundo Habermas, Kant estabelece que a autonomia polí­tica é fundada na autonomia moral , porque o direito inato a iguais liberdades subjetivas deve estruturar-se por um sistema de direi­tos, pelo meio de leis públicas positivadas. Essas leis públicas seriam legitimadas pela reunião da vontade de todo o povo, por­que no corpo político é que se dá as leis públicas (autonomia como auto-legislação). Assim, o que possibilita a positivação do direito natural à liberdade é sua fundamentação na autonomia .do povo, na soberania popular. Desse modo, é o exercício da autonomia políti­ca que cria o direito positivo, fazendo a correspondência entre o exercício da soberania popular e a construção do Direito (Haber­mas, 1997-1: 1, 127).

Só que o exercício da autonomia política carrega em si a tensão constitutiva do próprio Direito. Numa visão típica do paradigma de Estado Liberal, Kant defende que a produção de normas jurídicas no âmbito do Estado só se dá pelo exercício de um poder externo ao Estado, que se encontra no espaço privado de liberdade dos indivídu­os, que está no âmbito de suas consciências. Esse poder indivídual se exerce no Estado por meio do Direito. Esse espaço privado é um espaço moral em que a liberdade é interiorizada e utilizada como autonomia e não como Liberdade natural A liberdade natural é fazer o que se quer. A liberdade moral é agir conforme o dever fornecido pelas leis da razão. A liberdade moral se exerce como autonomia, isto é, corno vontade individual que legisla para si mesma (Kant, 1995: 104 - § 454).

Para Kant - e outros autores da Modernidade - a partir da di scussão sobre liberdades subjetivas (direitos humanos) e soberania popular, e sobre autonomia privada e autonomia pública, é possível afirmar que o princípio do direito parece mediar o princípio moral e o princípio da democracia.

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"O princípio do direito parece realizar uma mediação entre o princípio da moral e o da democracia." (Habennas, 1997-1: 1, 127).

Mas essa "intuição" dos autores modernos - em especial de Kant- não consegue ser tratada, em última instância, sem se cair em uma oposição entre autonomia moral -que fundará os direitos huma­nos - e autonomia política - que fundará a idéia de soberania popular, como se verá a seguir. Por isso, esses autores não conseguiram, na visão da Teoria do Discurso, resolver satisfatoriamente a relação entre princípio moral , princípio da democracia e Direito.

Antes, contudo, de explicar como se dá a relação entre princí­pio moral, princípio da democracia e Direito confonne a Teoria do Discurso, iremos aprofundar na discussão sobre autonomia moral e autonomia política e sobre direitos humanos e soberania popular, no marco de duas tradições político democráticas da Modernidade identificadas por Habennas.

3 AUTONOMIA MORAL E AUTONOMIA POLÍTICA, DIREITOS HUMANOS E SOBERANIA POPULAR NAS TRADIÇÕES DEMOCRÁTICAS LIBERAL E REPUBLICANA

Habennas explica que na Modernidade se opera uma separa­ção entre Direito e Moral, bem como entre estes e a Ética. O produto do processo de diferenciação e de racionalização do mundo da vida assim delimitado é, por um lado, a idéia de auto-realização, tributária do pensamento de Rousseau, ligada à construção de sua idéia de soberania popular e de autonomia política. Por outro lado, temos como produto a autodeterminação, idéia desenvolvida por Kant junto aos direitos humanos e à autonomia privada. Habennas defende que essas duas idéias podem ser traçadas como marco para duas tradi­ções do pensamento político moderno: a republicana, da qual é

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representante a idéia de auto-realização de Rousseau, e a liberal, como a idéia de autodeterminação de Kant.

Rousseau e Kant tinham o ideal comum de conceber a noção de autonomia como se a razão prática e a vontade soberana fossem unificadas, de tal forma que a idéia de direitos humanos e o princípio da soberania popular se interpretassem mutuamente. Mas nenhum dos dois alcança este objeLivo.

A relação de concorrência que se estabelece entre autonomia pública e autonomia privada permanece, inclusive contemporanea­mente, entre os liberais, 27 que invocam, com Kant, os direitos huma­nos como expressão da autodeterminação moraJ e que, desde Locke, priorizam tais direitos como forma de evitar o perigo das maiorias autoritárias; e os republicanos,28 que Lendem a interpretar a soberania popular como expressão da auto-realização ética e colocam a auto­nomia pública dos cidadãos como prioritária sobre as liberdades privadas "naturais" dos indivíduos. Para os liberais, os direitos huma­nos funcionam como barreiras, legitimadas em um direito suprapositi­vo, que freiam e previnem que a vontade soberana do povo venha ao encontro de esferas invioláveis de liberdade individual. Já os republi­canos concebem a gênese legítima dos direitos humanos no princípio de autodeterminação soberana e de autocompreensão ética só atingi­da dentro da comunidade política atuante.

Por isso, de ambas as perspectivas, direitos humanos e sobera­nia popular não se complementam, mas, ao contrário, competem entre si. Tanto liberais quanto republicanos não conseguem explicar a co-originariedade entre direitos humanos e soberania popular, não conseguindo articular duas idéias: por um lado, os direitos humanos, expressos no direito de iguais liberdades individuais, não podem ser externamente impostos pelo legislador soberano como se fossem uma

27 O liberalismo político remonta à tradição lockeana, seguindo por Kant, e boje John Rawls. Ronald Dworkin, Robert Nozick.

28 O republicanismo remonta à tradição aristotélica e ao humanismo cívico renascen­tista. acentando-se em Rousseau, em determinado aspecto, Hegel, e hoje, Charles Taylor, Mac lntyre, Michael Waltzer.

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barreira. Por outro lado, tais direitos não podem ser instrumentaliza­dos como requisitos funcionais para se atingir objetivos legislativos estabelecidos na comunidade política.

A concepção liberal prioriza a esfera privada da propriedade e da vida do indivíduo como espaço de realização da liberdade, garan­tida por um sistema de direitos naturais devidos a todo ser humano em virtude de sua humanidade, sustentados pela coerção autorizada, e legitimados antes de sua diferenciação como direito positivo, na base de princípios morais, e, portanto, independentes da autonomia políti­ca, que só é posteriormente estabelecida no contrato social. Já o republicanismo prioriza a esfera pública como único espaço possível de realização do ser humano, na medida em que esse é parte integran­te de uma comunidade política que se apropria conscientemente de sua tradição e corresponde à vontade ético-política de uma coletivi­dade auto-atualizada.

A Teoria do Discurso reconhece o aporte de' cada uma dessas tradições para o pensamento político contemporâneo; a teoria repu­blicana nos ensina que o processo de auto-consciência é feito por meio da solidariedade obedecendo a estruturas de comunicação pública e ao diálogo envolvendo questões de valor; seu legado é, pois, a discursividade. A tradição liberal nos mostra uma característica fundamental do direito moderno que é a formalização e a procedi men­talização.

A Teoria do Discurso quer recuperar tais aspectos de cada uma dessas tradições, só que construindo um conceito de democracia mais forte do que o conceito liberal, que reduz a democracia a um mero jogo em que se quer tirar vantagens, levando em consideração a pluralidade de éticas, valores e interesses; e um conceito de democra­cia mais fraco que o da tradição republicana, em que não seja necessário pressupor um bloco ético monolítico. Assim, a discussão pública não se reduziria a um processo hermenêutico de auto-esclare­cimento, como no republicanismo, e nem a razoabilidade dos proces­sos polfticos poderia ser imposta externamente, como no liberalismo.

A proposta para trabalhar a Desobediência Civil a partir da tensão do Direito entre facticidade e validade exige que se retome

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aquilo que já fora explicitado acima, que o direito moderno cumpre uma função sistêmica de estabilizador das expectativas nonnativas de comportamento, ao mesmo tempo que a sua capacidade de impor o direito positivo depende dele conseguir manter urna conexão com a força integradora do agir comunicativo, isto é, satisfazer a condição de aceitabilidade das pretensões de validade levantadas no Direito.

Cada uma dessas tradições prioriza o aspecto validade da tensão, como teorias normativas que são, colocando-se em excludência e contradição uma frente a outra. Isso porque ambas percebem a tensão entre facticidade e validade não como tensão e sim como oposição entre real e ideal. Daí que, a preocupação de tentar justificar uma política deliberativa29 racional passe, para cada uma delas, por construir um sistema de direitos abstrato, não ligado às Constituições históricas (liberal) ou à implementação dessas em or­dens institucionais (republicana). Em nenhuma delas os direitos fundamentais são colocados como a própria condição de seu exerctcio. Ao invés disso, para os liberais, eles são limite à democra­cia e, para os republicanos, eles são valores coletivos não acessíveis aos sujeitos, a não ser coletivamente. Finalmente, ambas partem de uma separação hierárquica e vertical entre Estado e Sociedade.

A concepção liberal entende o Estado como o protetor da sociedade econômica. O modelo de mercado é transposto ao pro­cesso democrático, visto como a realização de compromissos de interesses. A formação desses compromissos é regulada, em última instância, pelos direitos fundamentais. Eles são limites no jogo de fonnação de compromissos, operam como as próprias regras do jogo democrático, que é a única alternativa para a superação da radical separação entre Estado e Sociedade. A abstração do sistema de direitos está na interpretação que os liberais fazem do Estado de Direito, que é o mecanismo 'inventado' para nonnatizar as regras do jogo democrático. A regulação do poder é externa, no sentido de que

29 Sobre esse ponto nos deteremos no próximo capítulo.

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independe do efetivo exercício da cidadania. A política é centrada no Estado, que pode se mostrar mais ou menos eficaz na sua tarefa de não intervenção e não obstaculização do intercâmbio social espontâ­neo das pessoas privadas. O bem comum e a felicidade são apolíticas, estão no nível da satisfação das relações privadas.

O modelo republicano também se serve da hierarquização entre Estado e Sociedade, porque é na forma do Estado que se institucionaliza uma comunidade ética formada no nível da sociedade. A princípio, o modelo republicano não apresentaria um sistema de direitos abstrato, pois, ao contrário, é essa a crítica que ele faz ao modelo liberal. O sistema de direitos é construído com a participação dos cidadãos na vida política, espaço no qual atingem um entendimen­to ético meruante as práticas assentadas numa cultura comum. Para que as práticas políticas tenham um tal peso na integração social, todo procedimento de decisão é elevado a rito de rememoração do ato de fundação, em que valores comuns são reforçados. Nessa linha, os direitos fundamentais e as garantias processuais, derivados do concei­to de Estado de Direito, tomam-se secundários frente à necessidade das decisões terem o respaldo nesse consenso ético-político, encar­nado na figura do 'órgão' ou 'sujeito' que tem a tarefa de emitir tal decisão.

Tal idealização do processo político é difícil de sustentar quando se trata de sociedades complexas. Principalmente pela pluralidade de formas de vida que convivem em tais sociedades, o que faz com que um consenso ético unitário não seja possível e nem sequer desejável. E ainda porque exige dos cidadãos um constante envolvimento na prática de autodeterminação da sociedade, corno se todos os aspectos da descoberta de quem são (somos) esses sujeitos tivesse que passar pela política. Tudo, para o republicanismo, se reduz à política.

Feito o paralelo entre republicanismo e liberalismo, Habermas aponta um problema adicional que é comum a essas tradições. Ambas se assentam sobre os pressupostos da Filosofi a da Consciência (Habermas, 1997-1: Il, 21 et seq.). As consequências disso já foram tratadas no primeiro capítulo deste trabalho. Retomaremos aqui uma

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delas espec.ificarnente. A intersubjetividade está posta, mas não teorizada pela filosofia da consciência, o sujeito está posto, em fonna de evidência lógica. Sob o pressuposto de uma filosofia da linguagem já é possível, e mais do que possível, fundamental, se teorizar a intersubjetividade, porque ela é constitu tiva do discurso e o sujeito é construído na interação lingüístka.

Em suma, as tradições liberal e republicana não conseguem fundar um sistema de direitos auto-reflexivo, que se reconheça no papel de integrador social elaborando os dois pólos da tensão a ele inerente. Cada uma daquelas tradições analisa um dos aspectos da tensão, o prioriza, e se coloca em contradição e excludência frente ao outro.

Tendo esse problema em perspectiva, será possível discutir a seguir a relação que se estabelece entre princípio mora l, princípio da democracia e Direito confonne a Teoria do Discurso. É compreen­dendo a articulação desses princípios que haverá possibilidade de reinterpretar a autonomia e, conseqüentemente, compreender os di­reitos humanos e a soberania popular como co-orgininários e comple­mentares. Todos esses passos se tomam sem perder a perspecti va de nossa indagação inicial, visamos explicar, ao reinterpretar essas rela­ções, como o Direito moderno pode ser fundado em si mesmo.

4 CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DO DISCURSO EM PRINCÍPIO DA MORALIDADE E EM PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA

A resolução das questões acima delineadas nos leva à explicitação da relação de equiprimordialidade entre autonomia priva­da e pública e direitos fundamentais e soberania popular a partir da explicação da distinção entre princípio moral e princípio da democra­cia. Habermas coloca o princípio moral30 e o princípio democrático

30 É chamado de princípio U, veremos a seguir por quê.

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como desenvolvimentos específicos do princípio do discurso,31 cuja fonnulação é a seguinte:

"São válidas as nonnas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais" (Habermas, 1997-1 : 1, 142).

O primeiro problema que desponta nessa definição é o que Habennas chama de 'válido' . A validade aqui está ainda indetennina­da, pois não se refere especificamente à validade moral ou à legitimi­dade. A validade está remetida à possibilidade de satisfação discursiva das pretensões de validade (verdade, veracidade, correção nonnativa). Ou seja, ela está remetida à razão comunicativa, indireta­mente prescritiva,32 em contraposição à razão prática kantiana que tem que se apoiar na moral por ser diretamente prescritiva.

Nesse sentido é que a posição de Habennas em Direito e Democracia entre facticidade e validade se diferencia radicalmente daquele de Consciência Moral e Agir Comunicativo, em que a distinção entre princípio D e princípio U não está de todo clara, como o próprio autor admite.33 O princípio D se abre para a possibilidade de vários tipos de fundamentação confonne os discursos desenvolvi­dos. Por exemplo, Habermas faz a distinção entre discursos teóricos e práticos (Habermas, 1984: 22-23). Nos primeiros, a forma de argu­mentação visa tematizar pretensões de validade sobre a verdade dos fatos. É o tipo de controvérsia que surge no embate de teorias científicas, por exemplo. Já nos discursos práticos, a argumentação se volta para a tematização de pretensões de validade sobre a correção

31 É chamado de princípio D. 32 Ver capítulo primeiro desta obra. 33 "Nas minhas pesquisas sobre élica do discurso, publicadas até o momento, não há

uma distinção satisfatória enlre principio moral e princípio do discurso" (Habermas, 1997-1 : 1, 143).

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PROCESSO DE LEGITIM IDADE DO DIREITO

de normas. Controvérsias desse tipo podem surgir tanto no âmbito da moral como no do Direito.

Note-se que a definição do princípio D refere-se a discursos racionais e não somente a discursos práticos. Portanto, ele não se remete diretamente à moral, mas, ao conrrário, o princípio moral será deduzido do principio D, como explicaremos adiante. Assim, tanto discursos teóricos quanto práticos têm um objetivo em comum, que é o de tomar decisões racionalmente motivadas, tendo como base a resolução discursiva das pretensões de validade, que podem ser aceitas ou recusadas. Sob esse pressuposto podemos então concluir que discursos práticos levantam pretensões de validade, por isso, eles podem ser decididos racionalmente.

A questão da aceitabilidade racional é o segundo aspecto que tem que ser aqui desenvolvido. A definição do princípio D diz que as normas válidas pressupõem a possibilidade dos participantes darem o seu assentimento sobre elas. E a satisfação das pretensões de valida­de se dã pelo assentimento racional, como foi demonstrado no primei­ro capítulo desta obra. Isso quer simplesmente dizer que é possível, se exigido for, justificar o consenso que leva à decisão por razões. E ademais, esse assentimento não se dá pela presença atual de todos os participantes e sim pela forma e pelas perspectivas de construção da argumentação. Então no caso dos discursos práticos, que envolvem conrrovérsias sobre normas, o importante é que o reconhecimento das mesmas seja racionalmente motivado.

As conseqüências desse pressuposto para a validade das nor­mas e para a desobediência a elas é crucial. Primeiramente, não podemos fundamentar a validade de uma norma na obrigação de não modificá-la.34 Se os interesses que levaram à norma se modificassem, a norma mudaria, só que de forma aleatória e arbitrária. Sob essa base, não haveria como explicar o que significa levantar pretensões de

34 Veremos adiante o impacto desse ponto para os dois íundamentos do Direito usados pelos liberais: a certeza jurídica e o princípio da maioria.

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validade, ou quaJ a diferença entre elas e uma exigência imposta. Por outro, ao se recorrer apenas a motivos empíricos para justificar a norma, qualquer motivo serviria para modificá-la, pois qualquer um seria tão bom quanto o outro, o que nos levaria a um relativismo total.

A proposta de Haberm<i:s, ao formular o princípio D, é que só se pode distinguir o 'bom' motivo, ou o melhor motivo, para validar uma norma, ao se apresentarem razões, em favor da aceitação das mesmas. Assim, uma norma de ação toma-se válida se as pretensões de validade por ela levantadas podem ser reconhecidas pelos possí­veis atingidos (intersubjetivemente) na medida em que esses levantam razões; ou seja, pelo reconhecimento motivado racionalmente e que a Lodo momento pode ser problematizado.35

Em suma, Habermas diz que: "A introdução de um princípio do discurso já pressupõe que questões práticas em geral podem ser julgadas imparcialmente e decididas racionalmente" (Habermas, 1997-1 :1, 143-144) porque elas levantam pretensões de validade e o significado dessas pretensões se encontra na conexão interna que há entre elas e a sua justificação, ou seja, sua aceitabilidade por razões.

Portanto, o princípio D é neutro, pois refere-se a normas de ação em geral. Ele é abstrato porque apenas explicita o ponto de partida do qual é possível fundamentar imparcialmente normas de ação. Ele é ainda sem conteúdo uma vez que os argumentos que poderão ser uti lizados para a fundamentação das normas de ação não podem ser determinados a não ser posteriormente, na discussão. Pode-se dizer ainda que ele é procedimental já que exige que toda forma de vida comunicativamente estruturada tenha como condição de realização o reconhecimento mútuo, a simetria entre os participan­tes, e relações de inclusão entre eles. Finalmente, o princípio do discurso tem um sentido normativo na medida em que determina como 'as questões práticas podem ser julgadas imparcialmente e

35 Note-se que uma tal teoria se contrapõe às teorias contratualistas modernas que baseiam a validade das normas cm um ato de vontade. isto é. no contrato social.

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PROCESSO DE LEGITIMIDADE DO DIREITO

decididas racionaJmente', mas ainda assim é neutro em relação à moral e ao Direito. Ele se limita a indicar que é possível, com base nos dois pressuposcos acima, fundamentar normas de ação em geral, de um ponto de vista imparcial.

Ao se especificar o princípio D conforme às normas de ação a que ele se refere, podem-se deduzir dois princípios, com relação aos discursos práticos: o princípio moral ('U') e o princípio da democracia.

O princípio Ué formulado assim:

"Só é imparciaJ o ponto de vista a partir do qual são passíveis de universalização exatamente aquelas normas que, por encarnarem manifestamente um interesse comum a todos os concernidos, merecem assentimento intersubjetivo" (Habermas, 1989: 86).

O princípio moral se refere a normas de ação que unicamente podem ser justificadas levando em consideração o interesse de todos simetricamente. Nesse sentido é que Habermas diz que ele opera como critério de construção do jogo argumentativo. O princípio Ué regulador dos argumentos, em outras palavras, uma regra de argu­mentação pela qual se pergunta: 'o interesse X pode ser justificado como universal?'

O princípio Ué também um princípio de universalização, isto é, exige que toda pretensão levantada seja passfvel de ser aceita por todos os afetados a qualquer tempo e em qualquer contexto espacial. Isso quer dizer que as únicas razões que decidem em um discurso moral são aquelas que justificam os interesses incorporados nas normas como universalizáveis. Ao regular quais razões podem ser aduzidas para justificar os interesses incorporados nas normas, o princípio U opera no plano da constituição interna do jogo argumenta­tivo. É nesse sentido também que se pode afirmar, novamente, que ele é uma regra de argumentação.

É necessário ainda deixar claro o que Haberrnas chama de moral no contexto do princípio moral. A modernidade desloca as questões morais para o ãmbito privado, excluindo-as do ãmbito público, como

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será exaustivamente· discutido no próximo segmento deste capítulo. Mas não é este o sentido de moral aqui usado. A moral não é reduzida à responsabilidade pessoal. O princípio moral ultrapassa a distinção entre público e privado, para ganhar um novo sentido ligado à prática pública que leva em consideração o ponto de vista normativo, pelo qual examinamos qual a melhor forma de regular nossa vida em comum, no interesse de todos, universalmente, como membros da 'humanidade'. Cada membro da humanidade se coloca na situação abrangente do Outro generalizado, que lhe dá a perspectiva da simetria entre membros quése comunicam, por meio da prática da assunção ideal de papéis.

A norma moral é fundamentada em discursos morais, que fundam deveres cuja prática correspondente é considerada justa. Ou seja, os discursos sobre moral e os discursos sobre justiça não têm diferença entre si, são um e o mesmo discurso. Em outras palavras, não há distinção entre questões referentes à responsabilidade pessoal, que advém das relações sociais, e questões de justiça ligadas às esferas institucionais de interação, que se dão pela relação entre Direito e política.

Este contexto geral da definição do princípio U é seguido por Habermas ao longo de seus trabalhos. Todavia, mais uma vez aqui surge uma distinção entre Consciência Moral e Agir Comunicativo e Direito e Democracia entre facticidade e validade. Neste úJtimo, Habermas se submete à crítica de Günther (Günther, 1993), quem vai fazer uma distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação. Os discursos de justificação se referem à validade abstrata e descontextualizada, em que os participantes examinam casos típi­cos, para refletir se, hipoteticamente, esses encontrariam assentimento de todos os afetados. As normas daí derivadas só podem se aplicar fora de contextos e circunstâncias concretos, dentro das situações standard, consideradas de antemão, sob a formula condicional. 'se'. Nesses discursos de justificação não é possível levar em consideração de antemão todos os possíveis casos singulares que no futuro podem surgir. Nos casos concretos futuros as circunstâncias de aplicação têm que se dar em termos distintos e mais específicos do que por meio

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de um princípio de universalização. Günther introduz um novo critério que irá suplementar U, o princípio de adequação (Günther, l993:203, 247-249).

O princípio da democracia é fonnulado como segue:

" ... somente podem pretender validade legitima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de nonnatização discursiva" (Habennas, 1997-1: l, 145).

FaJar em validade legítima já é falar em Direito. Por isso, o princípio da democracia muda de perspectiva dos membros da 'huma­nidade' para os membros livres e iguais, associados, que se reconhe­cem mutuamente como sujeitos de direito, ao mesmo tempo autores e destinatários da ordem jurídica por eles instituída. É precisamente esse ponto que pennhirá reinterpretar a autonomia, ligando o princípio da democracia e a forma do Direito, já que, como explica Habe1mas:

"O princípio da democracia explica, noutros termos, o sentido performativo da prática de autodeterminação de membros do direito que se reconhecem mutuamente como membros iguais e livres de uma associação estabelecida livremente" (Habermas, 1997-1: l, 145).

O sentido perfomativo pressuposto no princípio da democracia está nessa mudança de perspectiva para o ponto de vista dos partici­pantes que, como sujeitos de direito, se autodeterminam, e constróem urna 'associação'. Nesse sentido, o princípio da democracia coloca uma regra de constituição do jogo argumentativo, de institucionaliza­ção de discursos de justificação jurídica e de instrumentalização de espaços que tornem possível as diversas formas de argumentação.

Por isso, o princípio da democracia se situa num plano distinto ao do princípio moral. U refere-se ao plano interno do jogo argumen­tativo, examinando se os argumentos utilizados para justificação de uma norma passam pelo crivo da universalização. Já o princípio da

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democracia opera no plano de institucionalização externa da partici­pação simétrica nos processos de formação da opinião e da vontade. Ou seja, ele permite que tais processos sejam eficazes ao instituciona­lizar as condições de participação. Para tal, ele lança mão da forma do Direito, visto o papel que esse desempenha em sociedades comple­xas,36 é possível garantir juridicamente as formas de comunicação, por meio de um sistema de direitos, cm que a participação nos processos de formação das normas jurídicas se dê em condições de igualdade. Essas condições já estão, por sua vez, garantidas nos pressupostos da comunicação, enunciados no p1incípio do Discurso.

Como foi dito acima, o princípio moral valida as normas por meio de discursos morais, e tem como resultado normas morais, já o princípio da democracia abre espaços de discussão que sejam per­meáveis a vários tipos de discurso - morais, éticos, prágmáticos, e inclusive às negociações, a partir dos quais se modelam normas jurídicas. As normas jurídicas têm um caráter artificial, no sentido de que elas são produzidas intencionalmente e de modo reflexivo, apli­cando-se a si mesmas. Por esse motivo, não basta que o princípio da democracia fixe os procedimentos de normatização legítima do Direi­to, como ele deve também dirigir a produção do próprio Direito. Isto é, não basta que o processo de instauração de normas seja legítimo. Antes há que pressupor a possibilidade de criação de uma comunida­de jurídica que institucionalize os direitos de participação de todos os seus membros, no processo de instauração dessas normas. Assim, ao sistema de direitos são colocadas duas tarefas que ele deve resolver:

"Este [sistema de direitos] não deve apenas institucionalizar uma formação da vontade política racional, mas também pro­porcionar o próprio medium no qual essa vontade pode se expressar como vontade comum de membros do direito livre­mente associados" (Habermas, 1997-1: J, 147).

36 Ver análise do capítulo um desta obra.

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Foi visto acima que Kant e a dogmática jurídica moderna não conseguiram resolver o problema sobre a relação entre Direito e moral, colocando o primeiro subordinado à segunda, sendo que o Direito seria o termo intermediário entre princípio moral e princípio da democracia. Habermas, diferentemente, defende que a idéia de autolegislação dos cidadãos não pode ser deduzida da idéia de autolegislação moral , de sujeitos individualmente considerados. Por isso, a autonomia tem que ser reinterpretada de maneira mais geral e neutra, partindo do princípio do Discurso, quando trata dos discursos práticos em geral. Desse princípio, ligado à forma do Direito, poderia ser deduzido o princípio da democracia. Assim, para Habermas, o Direito é o reverso da medalha do princípio da democracia:

"Os conceitos 'princípio moral ' e 'princípio da democracia' estão interligados; tal circunstância é encoberta pela arquitetônica da doutrina do direito [de Kant]. Se isso for correto, o princípio do direito não constitui um membro intermediário entre princípio moral e princípio da democracia, e sim, o verso da medalha do próprio princípio da democracia" (Habermas, 1997-1: 1, 128).

Para compreendermos toda a extensão desse problema, a seguir iremos tratar da relação de co-originalidade e complementa­ridade entre Direito e moral , em termos da Teoria do Discurso. Depois voltaremos ao ponto que nessa parte sobre princípios ainda ficou em suspenso: a gênese do sistema de direitos constituída pelo princípio da democracia, isto é, a conexão entre direitos humanos e soberania popular.

5 CO-ORIGINALIDADE E COMPLEMENTARIDADE ENTRE MORAL E DIREITO

Vimos anteriormente neste capítulo que Kant e os autores modernos influenciados pelo seu pensamento colocam como contra-

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ditórios os princípios da democracia e da moralidade, subordinando o primeiro ao segundo. O pressuposto é que a autoridade moral está apresentada como evidência anterior ao direito democrático, e este nada mais é do que um discurso especial da moral; por isso, hierarqui­camente subordinado a ela. Sob tal pressuposto da existência de uma hierarquia, Kant pretende transformar o Direito em uma mediação entre a Moral e a Democracia.

Para Habermas, tanto a Moral quanto o Direito têm como base comum o princípio do Discurso. Mas eles são esferas normativas distintas. Essa separação se dá historicamente, no processo de raciona­lização moderno, que exige que o Direito atue enquanto instituição neutra. A moral é regulada pelo princípio U e o Direito, pelo princípio da democracia. O Direito não medeia a moral e a democracia, ele é tensão permanente entre facticidade e validade.37 E é que o Direito moderno, que se apresenta como direito positivo, pode tanto ser visto como urna instituição social, que regula a ação, quanto corno um 'texto de proposições e de interpretações normativas', por meio das quais o Direito é Direito legítimo. Nesse sentido é que Habermas afirma que:

"O direito não representa apenas uma forma de saber cultural, como a moral , pois forma, simultaneamente, um componente importante do sistema de instituições sociais. O direito é um sistema de saber e, ao mesmo tempo, um sistema de ação" (Habermas, 1997-1: I, 110-111).

Por outro lado, dizer que Direito e moraJ são distintos não implica em dizer que eles sejam excludentes, assim, é necessário esclarecer a relação de complementaridade entre ambos.

O Direito possui um caráter funcional que a moral não tem, porque aquele requer a tomada de decisõe~ e a implementação das mesmas em um nível institucional. Essa necessidade de chegar a uma

37 Como já comprovado no primeiro capítulo desta obra.

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decisão, e ao mesmo tempo fazê-lo legitimamente, evidencia a tensão entre facticidade e validade. A moral opera no jogo interno de argumentação, não tendo por isso que institucionalizar as decisões que são tomadas. Ela pretende a aceitabilidade universal das normas que se submetem ao princípio moral, e pretende que esta aceitabilidade se dê na discussão. Em suma, o princípio moral é um critério de argumentação construído racionalmente, que reduz a decisão ao âmbito da validade e que opera como princípio de universalização na construção das regras do jogo argumentativo. Como tal , a moral não estabelece uma ligação direta entre o processo de discussão, que ela promove e garante, e a ação, ou seja, a efetiva implementação das decisões tomadas no pro­cesso, já que ninguém pode ser constrangido a agir moralmente, a não ser pela força do melhor argumento.38

O princípio democrático, pelo qual é regulado o Direito, cons­titui o jogo argumentativo, institucionalizando processos de elabora­ção legislativa. O nível institucional do Direito, ou seja, o Direito enquanto sistema de ação, interliga as decisões tomadas nos proces­sos de discussão com a institucionalização dessas decisões para tomá-las efetivas para a ação. Habermas explica que:

" ... dado que motivos e orientações axiológicas encontram-se interligados no direito interpretado como sistema de ação, as proposições do direito adquirem uma eficácia direta para a ação, o que não acontece nos juízos morais" (Habermas, 1997-1: I, 110-111).

38 Vale fazer um parênlese para explicar que a idéia de Direito, constituído pela tensão entre facticidade e validade, vale dizer, entre imposição de suas normas e pretensão de legitimidade das mesmas, e que toma possível compreender a relação de moral e Direito como equiprimordiais. é defendida em Direito e Democraô" entre facticidade e validade. A posição de Habermas sobre o Direito em obras anteriores difere bastante. Em Teoria do agir comunicativo , em que ele trabalha com a idéia de ·comunidade ideal de comunicação' . a explicação do que seja Direito pode levar a uma interpretação com base cm uma dualidade platônica entre ideal e real: ora o Direito se apresentaria como ação comunicativa, ora, como sistema.

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HABERMAS E A DESOBEDIENCIA CIVIL

O princípio da democracia já pressupõe a possibilidade de se tomar racionalmente decisões acerca de questões práticas, tributário que é do princípio D. Sendo regulado pelo princípio da democracia, o Direito se abre para a justificação de diversos tipos de discurso, dos quais depende a sua legitimidade. É a isso que Habennas se refere quando diz que esse princípio:

"não é capaz de dizer se e como é possível abordar discursiva­mente questões políticas - esse problema teria que ser esclare­cido preliminarmente numa teoria da argumentação" (Haber­mas, 1997-1:1, 145,146).

A teoria da argumentação diz respeilo à formação discursiva da vontade e da opinião, em que cabem razões pragmáticas, éticas, morais, assim como a formas de negociação. Em todas essas formas de argumentação há uma dimensão normaliva, um marco que estabe­lece "regras do jogo" e permite que eles aconteçam.

" ... as matérias a serem reguladas pelo direito não visam apenas a questões morais, uma vez que abordam, não somente aspec­tos empíricos, pragmáticos e éticos, mas também o ajuste eqüitativo entre interesses que podem ser tema de um compro­misso. Por isso a formação da opinião e da vontade do legisla­dor democrático depende de uma vasta rede de discursos e de negociações - e não apenas de discursos morais. E a pretensão de legitimidade que acompanha as normas do direito e a prática legislativa, ao contrário da pretensão de validade normativa dos mandamentos morais, que é claramente delineada, apóia-se em tipos diferentes de argumentos" (Habermas, 1997-1: II, 312).

Toda argumentação tem um marco normativo, e nesse sentido, o âmbito do Direito, no qual esses discursos enconrram espaços públicos institucionalizados para se desenvolver, mantém uma ligação com a moral. Isso porque, embora o Direilo se desline a um círculo limitado de pessoas, ele tem que regular as condutas no igual interesse

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de lodos os seus destinatários e não apenas de grupos específicos. Pressupondo um pluralismo ético-social moderno, isso só é possível se ele se abrir a razões de caráter universalizante.

Na argumentação jurídica, não existe um 'rnetadiscurso' no qual nos possamos apoiar para justificar a escolha entre os vários tipos de argumentação. Há urna diferença entre justificar uma norma jurídica por argumentos pragmáticos (com vista a fins), éLicos (do bem), ou morais (do justo), mas esta é uma diferença que não pode ser estabelecida a priori. Ela depende da 'competência' comunicati­va de conseguir discriminar quais problemas exigem qual tipo de justificação. Nas palavras de Habennas:

" ... a unidade da razão prática pode ser realizada de maneira inequf voe a somente dentro de uma rede de fonnas públicas de comunicação e de práticas nas quais as condições da formação da vontade coletiva racional tenham tomado formas institucio­nais concretas" (Haberrnas, 1993: 17).39

Por outro lado, a moral , quando precisa de um grau de maior densificação de suas nonnas, recorre à forma do Direito. E é que a moral pós-convencional não é capaz de enfrentar o problema da integração social de sociedades complexas em virtude de três tipos de deficiência: cognitiva, motivacional e operacional, deficiências essas que não permitem à moral fazer a transposição efetiva, constante e geral da argumentação para a ação.

A moral é descrita por Habennas como "especializada em questões de justiça'', abordando "tudo à luz forte e restrita da univer­salidade" (Habermas, 1997-1: 1, 149). Apesar de constituir um pro­cedimento que permite avaliar situações controversas, a partir do qual os sujeitos podem elaborar juízos, a moral não chega a estabelecer um

39 Tradução livre do inglês: '' ... rhe rmiry o/ praclical reason ca11 be realized in a11 1111eq11ivocal manner 011ly 111ithi11 a rumvork of public f orms o/ com1111111icatio11 a11d practices ln which the conditions of rational collective will formation /iave taken 011 concrete institucional fom1s".

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catálogo de deveres ou sequer um sistema hierárquico de normas, que orientem esses sujeitos para a ação. Por isso a moral pós-convencio­nal é deficiente cognitivamente, porque ela não gera obrigações institucionais, não gera nonnatividade nesse sentido. Já o Direito mantém um nível de saber altamente ·acional e artificial, por meio da formação de uma dogmática jurídica e de uma ciência do Direito, que lhe permitem estruturar-se cognitivamynte. E ainda, o Direito constitui fonte&~ nonnatividade pelo pronunciamento do legislador polílico e dos tribunais que resolvem o que é Direito e o que não é Direito.

A resolução dessa prirP. ira deficiência da moral pelo Direito permite aliviar os sujeitos singulares do fardo de decidir o que é justo ou injusto a todo momento. Eles podem se apegar ao leque de obrigações jurídicas institui das para direcionar suas ações, se respal­dando ainda na legitimidade dos procedimentos internos de tomada de decisão e de formação da vontade.

A deficiência de caráter motivacional surge na moral porque ela se baseia na possibilidade de realização de nonnas morais por via da argumentação. N1 processo argumentativo o risco de dissenso é sempre presente, isto é, há sempre a possibilidade de que os partici­pantes não cheguem a um consenso. Com o dissenso, a adoção de comportamentos tidos por alguns como corretos fica prejudicada, gerando m:i is um problema para a integração social. A moral não consegue estabili zar expectativas de comportamento, ou pelo menos não como o Direito.

O Direito resolve esse problema "sistêrnicarnente", pelo mono­póli" estatal da força, que lhe permite instituir sanções que possam coibtr comportamentos desviantes. Para o Direito não importam os motivos e pontos de vista pelos quais os sujeitos são compeLidos a agir, basta a análise das conseqüências: agiu-se ou não conforme a norma. A moral institui suas normas tendo como base a consciência de que se deve agir compelido pelo consenso de que um cfeterrninado comporta­mento passa pelo crivo da universalidade. Só que ela não tem meios de exigir das consciências que elas ajam de certa maneira. O Direito garante maior aderência a suas normas por meio das sanções, que não passam pelo crivo da universalidade, mas sim pelo da legi tirnidade.

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Finalmente, a possibilidade de imputação de condutas morais exigiria um sistema organizacional bastante complexo e especiaUzado, e nesse aspecto a moral também enfrenta uma deficiência. Ela teria que ser capaz, em termos organizacionais, de resolver as frustrações decor­rentes da constante falta de legitimidade que as instituições incorrem. O Direito é, mais uma vez, candidato a preencher esse problema em sociedades altamente complexas, pois ele é constituído como ordenamento sistemático e encadeado de normas jurídicas, capazes de solucionar suas próprias lacunas internas. Adicionalmente, por meio desse ordenamento, é possível organizar as instituições como sistemas de ação em um nível de cc. - •)!ex.idade compatível com os riscos que decorrem de seu funcionamento. Assim, é possível surgirem mercados, empresas, administrações, sistema educacional, etc.

6 GÊNESE DO DIREITO: A CONEXÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS E SOBERANIA POPULAR

Tendo visto a relação de complementaridade e co-originalida­de entre Direito e moral , resta ainda explicarmos a gênese do Direito moderno que não se dá apenas pela diferenciação entre Direito e moral e entre Direito e ética, mas também entre ética e moral, que vão constituir duas dimensões que irão encontrar expressão no próprio Direito enquanto auto-realização e autodetenninação. E ainda, o Direito terá que fazer frente à dimensão pragmática e a uma de negociação, que se guiam por urna racionalidade estratégica, de adequação de meios a fins, que pressupõe a possibilidade da escolha racional.

Assim, pela redefinição de um conceito de autonomia que faça frente tanto à. autonomia púbUca quanto a privada, poderemos com­preender o nexo interno entre direitos humanos e soberania popular, como a única base sobre a qual se pode justificar o Direito moderno, em virtude desse não poder mais ser fundado em tradições religiosas e metafísicas, e nem sequer na moral.

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Como já se viu, nas tradições do republicanismo cívico e do liberalismo político as dimensões da autodeterminação e da auto­realização não são complementares, mas competem entre si. Kant e Rousseau tinham um ideal comum que era o de conceber a autonomia como a unificação entre razão prática e vontade soberana; assim, direitos humanos e soberania popular se interpenetrariam. Mas ne­nhum dos dois alcança esse objetivo.

Kant parte de um direito devido ao indivíduo em virtude de sua humanidade. O sistema de direitos naturais é legítimo antes de toma­se direito positivo, com base em princfpios morais e, portanto, inde­pendente da autonomia política dos cidadãos que só se estabelece posteriormente no contrato social. Já Rousseau parte da constituição da autonomia política que não se dá pela moral, mas pela realização da apreensão consciente de uma forma de vida particular. Pelo contrato social os indivíduos se transformam em cidadãos direciona­dos à promoção do bem comum e da comunidade ética. A comunida­de ética se realiza no direito por via de leis gerais e abstratas que vão garantir os direitos individuais.

Para Habermas, ambos perdem o processo constitutivo entre autonomia pública e privada, que para serem entendidas como com­plementares têm que partir da base de um Direito autônomo, que se distingue da moral. Foi estabelecido ao longo deste capítulo que não basta que se introduza um princípio do discurso a partir do qual os co­associados do Direito estabeleçam se o Direito é legítimo ou não, é necessário ainda que o próprio processo de formação discursiva da vontade política seja institucionalizado juridicamente. Ou seja, que por meio do Direito se garanta a formação do status de membros em uma associação de membros livres e iguais, titulares de direitos subjetivos, com pretensões jurídicas efetivas.

Sob esse pressuposto, de simetria na participação e respeito mútuo, garantidos pelo princípio do discurso e densificados pela forma do Direito, no princípio da democracia, é que se pode afirmar que a autonomia privada é condição de discurso, e mais, condição da existência do Direito positivo.

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Isto é, sem os direitos liberais clássicos, garantidores da auto­nomia privada, não haveria condições de instituição de um código (sistema de direitos) que institucionalize as condições de abertura de espaços de discussão e de formação da vontade política. Os indivídu­os não teriam, pois, condições de exercer a sua autonomia enquanto cidadãos. Ao mesmo tempo, esses direitos subjetivos privados têm que ser divididos simetricamente, garantindo a igualdade de participa­ção nos processos de formação de opinião e de vontade. E isso só é possível pela abertura de espaços em que essa simetria seja garanlida. Como vimos, essa condição só é satisfeita através de um processo democrático que aposta na formação racional da vontade e da deci­são políticas. Desse modo, a autonomia privada e a pública se pressupõem muluamente, e são co-originárias, uma não podendo se sobrepor à outra.

O nexo inlerno entre soberania popular e direitos humanos nasce dessa redefinição da autonomia. O problema da soberania popular é os destinalários das normas se sentirem também co-autores das mesmas. Para que isso seja possível, os direitos humanos não podem mais ser vistos como direitos moralmente fundados que se impõe externamente ao legislador político (Kant). E, embora os direitos humanos possam ser fundamentados como direitos morais, porque são vistos do ponto de vista universal e não apenas do ponto de vista de uma comunidade específica de membros do Direito, ao adentrarem a justificação do Direito, por via de uma leoria da argu­mentação, que lhes dá precedência, eles não podem ser impostos como fatos.

Por outro lado, do ponto de vista de uma análise normativa,40 o ' legislador político', soberano que é nas suas decisões, não pode,

40 No próximo capítulo iremos demonstrar como essa definição nonnaliva da relação entre direitos humanos e soberan.ia popular está em tensão com a prática política cotidiana, em que o legislador polícico de fato se volta constantemente contra os direitos humanos. A desobediência civil visa precisamente resgatar essa dimen­são normativa para tellfar coibir as pr6ticas que atentam contra esse sentido normativo que é a base de legítimidade do Direito.

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mesmo assim, decirur contra os rureitos humanos, porque eles são a garantia e a condição de manutenção da soberania popular e do exercício da autonomia política dos cidadãos, que só reconhecendo a simetria de participação podem fundar processos democráticos de instauração dos espaços públicos de discussão e decisão.

Assim Habermas conclui que:

"Por conseguinte, o almejado nexo interno entre soberania popular e dheitos humanos só se estabelecerá, se o sistema dos rureitos apresentar as condições exatas sob as quais as formas de comunicação - necessárias para uma legislação política autônoma - podem ser institucionalizadas juridicamente" (Ha­bermas, 1997-1: 1, 138).

Podemos concluir que a necessidade de legitimidade do Direi­to, evidenciada na conexão entre soberania popular e rureitos huma­nos, traz como conseqüência a incorporação do exercício da autono­mia pública dos cidadãos para o âmbito do Estado. Isso porque a prática de autodeterminação dos cidadãos dada pelo entrelaçamento jurídico entre autonomia pública e privada não basta para tomar jurídicos os direitos subjetivos de ação e os direitos comunicativos dos cidadãos. Esses devem ser estendidos ao poder político, por meio do Direito, de forma a garantir a obrigatoriedade fáctica das normas jurídicas que os consagram, que como se verá a seguir, são aquelas que consagram os direitos fundamentais.

A soberania popular em ligação com o poder politicamente organizado concretiza-se pelos procedimentos e pressupostos comu­nicativos da formação da opinião e da vontade institucionalizada. É daí que se pode deduzir a forma do Estado de Direito, que se concentra no 'poder comunicativamente diluído' e na sua ligação com o poder administrativo do Estado, atento a esses círculos de comuni­cação e de decisão estruturados racionalmente. A soberania popular não consiste pois em uma reunião de cidadãos autônomos identi­ficáveis corno o 'povo' , mas em um emaranhado de redes de comuni-

1 1 2

PROCESSO DE LEGITIMIDADE DO DIREITO

cação, de foros, de corporações, em que a discussão e a decisão podem ocorrer de forma racional. Nesse sentido é que no Estado de Direito não se pode mais falar em um soberano, ou, como dito acima em tennos kantianos, em um 'legislador político', e sim em uma dominação organizada juridicamente que deve ser exercida em sua ligação a um direito legítimo, e que deve lidar a todo momento com a tensão, na dimensão da validade do Direito, entre positividade e legitimidade, e no interior do sistema de direitos, entre autonomia pública e autonomia privada.

Finalmente, podemos compreender que pelo sistema de direi­tos é possível explicitar os pressupostos nos quais a comunicação no âmbito do Direito moderno se apoia, quando levanta a pretensão de legitimidade. Vimos que a institucionalização jurídica da autonomia política_é um ato auto-referencial, isto é, o Direito busca a legitimidade dentro do sistema de direitos e não apelando para motivos religiosos, metafísicos, sequer morais.

Vimos também que o reconhecimento recíproco de direitos não é apenas um evento metafórico, porque o princípio da democracia não apenas positiva liberdades subjetivas de ação e liberdades comu­nicativas dos cidadãos, como regula a própria produção do Direito, que de nada valeria se não se estende-se ao poder político. O Estado Democrático de Direito resulta da ligação entre o meio do Direito e o poder político, vale dizer, da necessidade de legitimidade jurídica e da obrigatoriedade fáctica da normalização e implantação efetiva do próprio Direito. Assim, Habermas pode afirmar que:

"O visado nexo interno entre soberania popular e direitos humanos reside no conteúdo normativo de um modo de exercí­cio da autonomia política, que é assegurado através da for­mação discursiva da opinião e da vontade, não através da forma das leis gerais" (Habermas, 1997-1: I, 137).

A relação entre Direito e poder político que está suposto na idéia de Estado Democrático de Direito será o escopo do próximo

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

capítulo, visto que a questão da integração sociaJ não se resolve apenas garantindo espaços de ação em esferas moralmente neutras, isto é, compatibilizando as liberdades de todos com a de cada um, como pretendiam Kant, e hoje Rawls,41 mas requer que a compatibi­lidade de tais liberdades seja assegurada em leis que retirem a sua legitimidade de um processo legislativo por meio do princípio da soberania popular, tendo que explicar, para tanto, o paradoxo mo­derno da legitimidade emergir da legalidade.

41 Ver John Rawl em Political Liberalism: "Now a social contract is a hypothetical agrument a) between all ratller tllan some members of society, and it is b) befllleen tllem as members of society (citizens) and 11ot as i11divid11a/s who ho/d some particular positio11 or role withi11 it. ln tlle Kantian form of this doctrine, 111/iicll I shou/d cal/ 'justice as faimess'. c) the parties are t/1011gh1 of as free and eq11a/ mornl perso11s, and d) tire corrtell/ of tire agrec111e11t is tire first prf11cip/e tlrat reg11/a1e tire basic struct11re" (Rawls: 1993, 258).

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Capítulo 3

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Nos capítulos primejro e segundo reconstruimos as bases da Teoria do Discurso de Habermas e discutimos o processo de legitimi­dade do Direito. Tendo feito esse fechamento a partir da questão da validade do Direito, poderemos concluir que toda lei é questionável porque democraticamente elaborada, sendo que esta elaboração se dá a partir da inerente tensão ao Direito entre a construção do sentimento de co-autoria e a conformação a procedimentos institucio­nalizados.

Neste capítulo iremos aprofundar nessa perspectiva para com­provar que a desoberuência civil , redefinida no paradigma do Estado Democrático de Direito, pode ser justificada dentro do marco do próprio Direito. E mais, o tema da desobediência civil é capaz de evidenciar a tensão permanente entre facticidade e validade presente no Direito, demonstrando assim que o pararugma do Estado Demo­crático de Direito é um projeto inacabado, pressupõe um processo constante de aprenruzado e está em continua reestruturação. ·

Com o fim de comprovar tal hipótese, formulada desde a introdução desta obra, começaremos o capítulo ruscutindo mais a fundo o princípio da democracia e a instauração do processo legisla­tivo, dando ênfase ao conceito de fonnação discursiva da vontade e à institucionalização das condições de instauração do Direito. Aprofundaremos no processo de constituição do sistema de direitos, regulado pelo princípio da democracia, por meio da institucionaliza­ção do processo legislativo. Depois adentraremos a relação entre Direito e Política, delineada a partir de um modelo de circulação do poder polf ti.co adequado ao paradigma do Estado Democrático de Direito, assim legitimado. Aprofundaremos no processo de legitimida­de do poder político demonstrando, primeiro, a comunicação entre

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HABERMAS E A DESOBEDIENCIA CIVIL

centro e periferia da esfera pública e, depois, os modos de solução de conflito ordinários e extraordinários. Finalmente, dentro destes, confi­guraremos a desobediência civil como um modo extraordinário de solução de conflitos do sistema político democrática e constitucional­mente configurado.

1 O PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO LEGISLATIVO

Neste capítulo ainda resta dar resposta à indagação colocada pela hipótese lançada por Habermas: quais, afinal, são esses direitos que os cidadãos devem atribuir uns aos outros se pretendem regular sua convivência por meios do direito positivo? Nesta parte, mostrare­mos passo a passo a constituição desses direitos lançando mão de um conceito de formação discursiva da vontade política e da instituciona­lização das condições de instauração do Direito.

Foi explicado ao longo deste trabalho que o único princípio normativo, que tem possibilidade de ser fundamentado racionalmen-

. te, em um mundo pós-metafísico, em que não é suficiente recorrer à moral, e em que não se pode mais recorrer à religião ou à ética, é o Discurso. Vimos também que esse princípio pode ser concreti zado no princípio da democracia, quando implicado nos pressupostos da argumentação que servem como base para a justificação de normas jurídicas. Em outras palavras, o próprio princípio do discurso, quando aplicado aos procedimentos de instauração do Direito, deduz-se no princípio da democracia. Este se aplica às normas de ação que surgem na forma do Direito e podem ser justificadas por razões pragmáticas, ético-políticas e morais, e ainda no âmbito das negociações.

A democracia é necessária porque o Direito legítimo só é possível por meio de procedimentos democráticos. Por isso, aquele que quiser direitos legítimos terá que reconhecer o princípio da demo­cracia, como visto pela hipótese lançada por Habermas e já enuncia-

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A DESOBEDl ~NCIA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DO ESTADO ...

da nesta obra. A partir desse processo de fundamentação da legitimi­dade do Direito, vários problemas surgem. Em primeiro lugar, como reconstruir a relação entre autonomia pública e autonomia privada e entre soberania popular e direitos humanos, de fonna que os direitos humanos não sejam postos em perigo e a soberania popular não seja limitada pelos direitos postos, como vimos na discussão sobre as teorias de Hobbes, Kant e Rousseau.

Um segundo problema diz respeito à possibilidade de pensar a legitimidade do Direito de um ponto de vista especificamente jurídico, e não moral. Um primeiro passo em favor da solução deste problema já foi indicado no capítulo anterior. A compreensão tradicional de autono­mia, típica da filosofia da consciência, deve ser substituída por uma compreensão adequada aos pressupostos do Discurso. A autonomia como autolegislação só se realiza na medida em que autonomia pública e privada mantêm um nexo interno. Dessa idéia de autolegislação resulta a conexão entre soberania popular e direitos humanos.

A necessidade de legitimidade do Direito traz como conse­qüência a incorporação do exercício da autonomia pública política dos cidadãos no âmbito do Estado. A gênese do Direito moderno ocorre na ligação que o exercício da autonomia gera entre os direitos humanos e a realização desses no processo de instauração do Direito e nos pressupostos comunicativos que os insti tucionalizam. Nas pala­vras de Haberrnas:

"O direito não consegue o seu sentido nonnativo pleno per se através de sua forma [positivismo], ou através de um conteúdo moral dado a priori uusnaturalismo], mas através de um pro­cedimento que instaura o direito, gerando legitimidade" (Ha­bennas, 1997-1: I, 172) (grifos originais).

Dessa forma, o Direito moderno retira dos sujeitos concretos o fardo da validade jurídica e o desloca para os procedimentos fonnais de instauração do Direito, em que os pressupostos universais serão institucionalizados.

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HABERM AS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

O segundo passo para a efetivação de uma fundamentação jurídica do Direito é a modificação de uma ética do Discurso (Habennas, 1989) e (Haberrnas, 1997-1: 193) para uma Teoria do Discurso (Habennas, 1997-1). Habermas distingue um princípio do discurso abstrato das diferentes configurações que ele pode assumir: princípio moral e princípio da democracia. Ele rompe com a represen­tação tradicional de que o Direito se subordina à moral . Na sua concepção, normas jurídicas e morais estão entre si como regras diferentes e complementares, e não subordinadas. O sentido dessa modificação é dar uma fundamentação jurídica do Direito.

Finalmente, Habermas explica em quatro passos como se re­constrói a gênese lógica do sistema de direitos, partindo da hipótese de que os cidadãos querem regular legitimamente sua vida em comum com meios do direi to positivo. O objetivo é fundamentar esse sistema de forma a assegurar a correlação entre autonomia pública e privada.

Os primeiros três passos se dão em um nível teórico, do ponto de vista do observador e não do participante, fazendo um movimento do abstrato para o concreto, à maneira de um artifício.42 O primeiro é a certificação da validade do princípio abstrato do discurso, feito no capítulo precedente. Depois, é necessário perceber teoricamente que a idéia de forma do Direito, que é reivindicada para a regulação da vida em comum dos cidadãos, implica na idéia de liberdades subjeti­vas de ação. O medium do Direito já pressupõe essas liberdades, que são as que definem, desde Kant, o status dos sujeitos de direito, reconhecendo-os como indivíduos privados.

Só que Kant justifica tais liberdades pela moral. Ou seja, o status de sujeitos de direito é garantido aos indivíduos por uma lei

42 Habermas alerta que esses passos teóricos se fazem à maneira de um artifício. parn conseguir explicar a gênese lógica dos direitos fundamentais. "Ninguém é capaz de lançar mão de um sistema de direitos no singular, sem apoiar-se em interpretações já elaboradas na história" (Habermas, 1997-1: 1, 166) A gênese lógica é, pois, apoiada em uma reconstrução dos 200 anos de história constitucional, que fornece modelos e princípios para La!.

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A DESOBEDIENCIA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DO ESTADO ...

externa e superior, que determina a liberdade subjetiva desses, opondo a lei como teste de generalização da razão frente as máxi­mas por eles levantadas. A autonomia só pode ser exercida, segun­do Kant, por pessoas morais, aquelas que percebem, em um exercí­cio de autoreflexão privado, que podem por si mesmas determinar as normas jurídicas. Para os demais, sujeitos politicamente heterônomos, o Direito é colocado desde fora como uma ordem de dominação.

Como já foi comprovado, uma Teoria do Discurso não assenta a 'fundamentação do Direito na moral, mas no próprio Direito, a partir da tensão que se instaura na sua gênese entre direitos humanos e soberania popular, e dentro do sistema de direitos, entre autonomia pública e privada. Assim, a liberdade subjetiva tem que ser entendida na sua tensão com a liberdade comunicativa.

A Hberdade comunicativa é, no dizer de Habermas:

"a possibilidade, pressuposta no agir que se orienta pelo entendimento - de tomar posição frente aos proferimentos de um oponente e às pretensões de validade aí levantadas, que dependem de um reconhecimento intersubjetivo"(Habermas, 1997-1: 1, 155).

A Hberdade comunicativa pressupõe que atores levantem pre­tensões de validade em uma atitude performativa, desejando, assim, entrar em um entendimento sobre elas. Por isso, a liberdade comuni­cativa é exercida no espaço público de uma esfera pública social ampliada, em que os atores têm que justificar suas escolhas, valores e princípios uns para os outros. A liberdade subjetiva, ao contrário, pressupõe que os atores podem agir dentro da esfera privada, livres do peso de ter que justificar suas decisões e pouco preocupados em saber se os motivos que os levam a tomar tais decisões serão aceitos pelos outros. Nesse sentido é que a liberdade subjetiva pode ser entendida como uma liberdade negativa - a abertura para a possibili­dade dos atores retirarem-se da posição de participante na arena

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HABERMAS E A DESOBEOl~NCIA CIVIL

pública e assumirem uma posição de observador, que age estrategica­mente e influencia os outros no sentido de uma determinada decisão. Habennas pode então concluir que:

"Liberdades de ação subjetivas justificam a saída do agir co­municativo e a recusa de obrigações ilocucionárias; elas funda­mentam urna privacidade que libera do peso da liberdade comunicativa atribuída e imputada reciprocamente" (Haber­mas, 1997-1: I, 156).

Dessa maneira, a tarefa dos direiros subjetivos no código do Direito é a de "imunizar" os sujeitos de direito "contra a imputação da liberdade comunicativa" (Habermas, 1997-1: 1, 157). E a partir daí uma nova dimensão se coloca na medida em que as liberdades subjetivas de ação não são simplesmente postas (isto é, pela moral autônoma kantiana que exige do legislador político a positivação dessas liberdades). Elas são liberdades subjetivas de ação reciproca­mente reconhecidas, por meio do Direito, por todos e para todos. Por isso, elas implicam na idéia de autolegislação dos cidadãos, que não se percebem apenas como destinatários das normas jurídicas, mas também como co-autores.

Em outras palavras, a correta compreensão do Direito e das liberdades subjetivas de ação, expressas nos direitos subjetivos, im­plicam a compreensão dos atores como detentores não apenas de uma autonomia moral como também de uma autonomia política. Dessa forma, nenhum ator é colocado frente ao Direito de forma heterônoma, porque a própria coerção jurídica deve ser entendida como uma das dimensões da tensão entre facticidade e val idade, e como tal, ligada à legitimidade, isto é, aos motivos racionais que impelem à obedecer ao Direito. Logo, a obediência ao Direito por motivos racionais não pode ser imposta externamente pelo Direito coercitivo. Os sujeitos de direito detêm uma faculdade frente ao Direito coercitivo de renunciar ou não à sua liberdade comunicativa e à possibilidade de ter que posicionar-se frente às pretensões de

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A DESOBEDl~NC IA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DO ESTADO ...

legitimidade levantadas pelo Direito. Ou seja, eles têm a opção de assumir, em face do Direito, uma atitude performativa de participante ou uma atitude estratégica, daquele que calcula vantagens e age conforme a fins.

Com isso é possível compreender porque a idéia de autolegislação não pode ser deduzida da idéia de autolegislação moral, mas sim de uma idéia de autonomia geral e neutra, a partir do princípio do discurso. E mais, se a própria idéia de liberdades subjeti­vas de ação pressupõe uma idéia de autonomia política, então, o princípio do discurso em conjugação com a forma do Direito fazem surgir o princípio da democracia, que aparece como o núcleo do sistema de direitos, ou seja, é a partir dele que é possível introduzir teoricamente a categoria de direitos que gera o código jurídico ao determinar o status dos sujeitos de direito.

Em suma, o movimento do 'abstrato' para o 'concreto' na gênese do sistema de direitos se inicia com: (a) a idéia de liberdades subjetivas de ação, que, dada a dimensão pública-política pressupos­ta nela, tem como princípios correlatos; (b) a idéia de status de membro da sociedade a constituir; (c) a idéia de reclamabilidade dos direitos; (d) a idéia de instauração do Direito e de legislação; (e) a idéia de condições de vida que são pressupostas para as atividades de um membro.

Essa compreensão pode mostrar aos atores, ainda teoricamen­te, o que resultaria da aplicação do princípio do discurso a essas implicações da idéia de forma de Direito: (aa) direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do Direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação; (bb) a idéia dos direitos fundamentais que resultam da configuração politica­mente autônoma do status de um membro em uma associação livre de parceiros de Direito; (cc) a idéia dos direitos fundamentais que resu ltam imediatamente da reclamabilidade dos direitos e da configu­ração politicamente autônoma da proteção jurídica individual; (dd) a idéia dos direitos fundamentais à participação com iguais oportunida­des nos processos de formação da opinião e da vontade nos quais os

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HABERMAS E A OESOBEDl~NCIA CIVIL

cidadãos exercem a sua autonomia política e por meio dos quais instauram direitos legítimos.43 (Haberrnas, 1997-1:1, 159 et seq).

Finalmente (ee), que diz respeito a todos os acima citados: do princípio do Discurso resulta não só que deve haver um direito fundamental às Liberdades de ação, o que o conceito de forma do Direito já contém, mas que cada um tem o direito, na maior medjda possível, às mesmas liberdades subjetivas de ação. Todas as pessoas devem ter a mesma proteção do direito, as mesmas chances de participação.

Se a compreensão teórica esclareceu a aplicação do princípio do discurso, se ficou clara a quarta implicação (instauração do direito e legislação), se ficou claro para os participant~s, do ponto de vista teórico, o que implica uma aplicação do princípio do Discurso à forma do Direito, ENTÃO o próximo passo - e decisivo- tem que consistir em que os cidadãos por si mesmos assumam em suas mãos a tarefa e realizem praticamente o que compreendem teoiicamente (Habermas, 1997-1 :1, 163).

Essa mudança de perspectiva do observador para a do partici­pante é necessária caso os cidadãos pretendam se colocar frente ao Direito positivo não apenas como destinatários, mas também como co-autores. Para isso, eles próprios devem poder aplicar por si mesmos o princípio do cliscurso. Dessa forma, os cidadãos, não mais como teóricos, mas enquanto participantes, aplicam o princípio do Discurso à forma do Direito, como legisladores historicamente con­cretos, sem os quais é impensável a idéia de direito positivo. Esses legisladores configuram e interpretam os direitos fundamentais, postu­lados teoricamente como condição para a gênese do Direito e apre­sentados como categorias formais, como direitos fundamentrus con­cretos, que, ao seu ver, são exigidos para a instauração de um código jurídico. Pois, como diz Habermas:

43 Acreditamos que nessa categoria é possível inserir a idéia de desobediência civil como direito fundamental. Este ponto será defendido posteriormente.

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A DESOBEDl~NCIA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DO ESTADO ...

"O código do direito não pode ser instaurado in abstracto e sim, de modo a que os cidadãos, que pretendem regular legiti­mamente sua convivência com o auxílio do direito positivo, possam atribuir-se reciprocamente determinados direitos" (Habennas, 1997-1 : I, 162).

Desta maneira, o direito geral à liberdade subjetiva de ação pode traduzir-se nos direitos liberais clássicos: dignidade, vida, liber­dade, igualdade, propriedade, etc.44 O status geral de membro em uma associação de parceiros livres e iguais se traduz na concretização da cidadania,45 e a garantia de reclamabilidade dos direitos, nas garantias processuais fundamentais e nos princípios do Direito.46

E, assim, pela fusão do princípio do discurso e da forma do Direito e da mudança para a perspectiva do participante, chega-se à validade especificamente jurídica, que na verdade se funda no princí­pio do discurso, mas que, na sua validade específica, apresenta-se como princípio da democracia.

Com essa construção, Habermas pode resolver os problemas indicados no segundo argumento (de onde procede o direito legítimo, como pensar a autonomia e como pensar a legitimidade jurídica). A

44 No Brasil, a nossa Constituição elenca muitos desses direitos no arl. 5º. Por exemplo: arl 5º, caput "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, gara11ti11do-se oos brasileiros e aos estra11geiros residen­tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes". An 5º, IV "é livre a manifes­tação do pensamento, sendo vedado o anonimato" ou art. 5°, VI "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos rel igiosos e garantida. na forma da lei , a proteção aos locais de culto e a suas liturgias" (Brasil. 1998).

45 Ver na Constituição o seguinte exemplo do arL 14, caput "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos." (Brasil. 1998).

46 Ver a nossa Consliluição como exemplo da primeira: art.5º, LXVID " conceder-se­á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder" E do segundo: art.5º, XXXV "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (Brasil, 1998).

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

resposta é: o princípio da democracia, como concretização do princí­pio do Discurso, por via da institucionalização jurídica, é condição necessária para o surgimento do Direito legítimo e, como tal, pode ser legitimado.

Explicados os quatro passos da gênese do Direito, um terceiro e último argumento é utilizado para comprovar a fundamentação jurídica do Direito moderno. É a definição do Estado Democrático de Direito. O pressuposto lançado por Habermas é que sem democracia nenhum Estado de Direito é possível. Quem quer um Estado de Direito tem que querer a democracia. O segundo argumento se referia à legitimidade do Direito e dos procedimentos de instauração do Direito. Esse se refere à legitimidade de uma ordem de dominação, à legitimidade do exercício do poder político.

O pressuposto de Habermas é que a idéia moderna de Estado de Direito e a democracia têm uma conexão intrínseca. A questão que Habermas visa responder em Direito e Democracia entre facticidade e validade é: Por que seria possível construir uma sociedade razoavelmente justa e democrática hoje? E porque a idéia de Estado Democrático de Direito cruza-se com a de democracia é que Habermas recorre aos modelos normativos de democracia republicano e liberal para depois fundamentar o modelo conforme a Teoria do Discurso, o procedimentalista. Esse modelo tem como base, de uma perspectiva reconstrutiva, a idéia de auto-organização política de uma comunidade, perspectiva priorizada pela tradição republicana, e a idéia de que a autonomia política alcançada nesta auto-organização se dá com base em um sistema de direitos que membros Jjvres e iguais se atribuem reciprocamente, como priorizado pelos liberais.

O Estado de Direito, tal como reconstruído por Habermas, conforme o paradigma lingüístico, deve garantir o exercício de fato dos direitos fundamentais por meio dos procedimentos jurídicos que permitam que a formação racional da vontade e da opinião se mani­feste. O Estado de Direito deve encontrar expressão na formação de programas jurídicos concretos (isto é, produção de leis), na imple-

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A DESOBEDIÊNCIA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DO ESTADO ...

mentação desses programas pelas vias administrativa e judicial, e, sobretudo, desenvolver a capacidade de integração social pela esta­bilização de expectativas e efetivação coletiva desses programas (Habermas, 1997-1: 1, 220 et seq.).

Assim, o Estado de Direito recorre à Constituição para estruturação do sistema de direitos, por ser ela a forma dentro do medium do Direito de tomar efetivos esses programas sociais que fervilham no âmbito do mundo da vida. É pela Constituição, enten­dida como estatuto jurídico da Sociedade e do Estado, que é hierarquicamente superior no ordenamento jundico como um todo, que o sistema de direitos pode se institucionalizar e regular a trans­formação do poder comunicativo em poder administrativo de ma­neira legítima.

Para compreendermos melhor esses passos, trataremos a se­guir da relação entre Direito, Política e Constituição, já do ponto de vista do direito à desobediência civil.

2 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO MECANISMO QUE CONSOLIDA O PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA

Como vimos acima, o princípio da democracia é a base de construção do Direito, ao mesmo tempo que pressupõe a forma do Direito para se consolidar. A partir dessa dupla face do princípio da democracia, que, por um lado pressupõe a forma do Direito, e, por outro, especifica o princípio do Discurso, decorrem, histórico­teoréticamente, determinados direitos fundamentais, que serão con­cretizados dentro das comunidades jlllÍdicas espacial e temporalmen­te situadas. Dentre esses direitos fundamentais estão os direitos de participação nos processos de formação da opinião e da vontade em igualdade de condições (dd), a partir dos quais os cidadãos podem exercer a sua autonomia política e instaurar um Direito legítimo. Para Habermas, o objetivo dessa categoria de direitos, que podemos chamar de direitos políticos, é o seguinte:

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HABERMAS E A DESOBEDIENCIA CIVIL

"Essa categoria de direitos encontra aplicação reflexiva na interpretação dos direitos constitucionais e na configuração política posterior dos direitos fundamentais elencados de l até 4 .47 Os direitos políticos fundamentam o status de cidadãos livres e iguais; e esse status é auto-referencial na medida em que possibilita aos civis modificar sua posição material com relação ao direito, com o objetivo da interpretação e da configuração da autonornia pública e privada" (Haberrnas, 1997-1: 1, 160) (grifos nossos).

É precisamente o sentido da desobediência civil no Estado Democrático de Direito: o de possibilitar aos cidadãos modificar os rumos pelos quais é interpretado o Direito. Por isso, a desobediência civil é um dos direitos que pode ser positivado, em comunidades jurídicas concretas no tempo e no espaço, a partir da categoria desses direitos políticos.48

Para compreender a gênese do Direito não mais do ponto de vista lógico e sim do ponto de vista do participante, é preciso ainda retomar aquilo que Habermas entende por democracia e por proces­so democrático. Esse ponto foi tratado no segundo capítulo, ao se

47 A citação se refere aos direitos, à maior medida possível, de iguais liberdades subjelivas de ação, direitos à configuração polilicamente autônoma do status de membro numa associação voluntária de parceiros do direito; aos direi tos que possibilitam a postuJação jucliciaJ dos dois primeiros e aos direitos políticos de participação em simetria de oportunidade. Ver o início do capítulo três desta obra.

48 Embora não seja um objetivo especCfico desta obra a comprovação de que a desobediência civil é um direito fundamental do Estado brasileiro, esta foi a motivação inicial para a realização desta pesquisa. A Constituição Federal de 1988 diz, no art. 5° § 2º: Os direitos e garanlias expressas nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federaliva do Brasil seja parte." Acreditamos que a desobediência civil pode ser defenclida como um direito decorrente do Estado Democrálico de Direito brasileiro. hipótese já defendida pela professora de Direito da PUC de São PauJo, Maria Garcia (Garcia. 1994). Concordamos com a hipótese dela, conrudo, por moúvos totalmeDLe diversos. Acreditamos que a fundamenta­ção da desobediência civil que ela constrói não é jurídica e sim moral, incorrendo em todos os problemas já explicitados nos pressupostos desta obra.

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A DESOBEDIENCIA CIVIL REDEFINIDA NO PARADIGMA DO ESTADO ...

apresentar os modelos liberal e republicano de política deliberativa, e neste instante iremos explicar, a partir das críticas de Habermas a esses modelos, o modelo procedimentalista de política deliberativa, para finalmente, na próxima e última seção, aprofundarmos na con­cepção de Constituição.

Lembremos que, em linhas gerais, para a concepção liberal, o processo democrático significa programar o Estado em função dos interesses dos particulares. Para a republicana, o processo democrá­tico envolve um conceito de sociedade em que pessoas se estruturam como uma comunidade de cidadãos livres e iguais que se autodeterminam.

Habermas reconhece uma vantagem do modelo republicano sobre o liberal, que é a de resguardar a idéia de democracia com base no entendimento. Mas a crítica que ele opõe aos republicanos é que a sua visão é por demais idealista, porque se funda na virtude (virtu) dos cidadãos, e conta com que esses estarão constantemente envolvi­dos nas práticas políticas de auto-realização da comunidade. Tal compreensão não resiste à facticidade de sociedades complexas, em que o que se constata muitas vezes é a apatia dos cidadãos na participação política.

O modelo de democracia que Habennas irá propor é o da Política Deliberativa procedimental, baseado na correlação entre di­reitos humanos e soberania popular e conseqüente reintepretação da autonomia nos moldes da Teoria do Discurso.

Republicanos reduzem o entendimento ao entendimento ético. Habennas quer ampliar isso, para não cair no estreitamento ético dos discursos políticos, que colocam em risco o pluralismo cultural. Esse pluralismo esconde interesses e valores de uma forma de vida não constitutivos ou compartilhados por todos. Assim, esses interesses e valores em conflito precisam de um ajuste, só que não de caráter ético. Eles devem ser negociados.

No entanto, mesmo essas negociações pressupõem a disposi­ção para cooperar, a observação das regras do jogo para chegar a um ponto, a um resultado aceitável mesmo que por razões diferentes.

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HABERMAS E A DESOBEDl~NCIA CIVIL

Então são as regras do jogo que devem ser eqüitativas de forma a garantir a solução consensual, e por isso, essas devem ser justificadas.

A política deliberaúva vai consistir em levar em consideração a pluralidade de formas de comunicação e de deliberação - morais, éticas, pragmáticas e de negociação. O marco que possibilita essas formas de comunicação e de deliberação é a justiça, entendida como a garantia processual da participação em igualdade de condições. Dessa forma, Haberrnas procura a formação da opinião e da vontade comum não só pelo caminho do auto entendimento ético mas também por ajuste de interesses e por justificação moral.

Na política deliberativa procedimental, tanto formas de delibe­ração dialógicas quanto instrumentais são institucionalizadas e válidas (legítimas) na formação da opinião e da vontade política. Transferem­se as condições de virtude do cidadão para a institucionalização de formas de comunicação e de deliberação em que possam ser feitos discursos éticos, morais, pragmáticos e de negociação. A política deliberativa tem como base, portanto, as condições de comunicação, que permitem pressupor que decisões racionais podem ser tomadas no processo político. Dessa forma, retira-se o peso da autonomia real das pessoas para as condições de discurso, em que a realização da autonomia se amplia para todos os modos deliberativos. Dessa forma o modelo de política deliberativa procedimental é, assim como o liberal e o republicano, normativo, só que a sua normatividade está no procedimento.

No modelo liberal , o processo de formação da opinião e da vontade, que está concentrada nas eleições, se realiza apenas como compromisso de interesses e a deliberação se apoia no Direito e nos princípios liberais da Constituição. No republicano, a política depen­de do auto-entendimento ético e a deliberação se apoia no consenso de fundo dos cidadãos, que se renova no ato de refundação da república, em cada eleição. Já no modelo de política deliberativa de Habermas, o procedimento ideal para deliberação integra a visão liberal e a republicana. Ele visa compreender a conexão interna entre negociações, discussão de auto-entendimento e de justiça e, sob tais

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condições, como se obtém decisões racionais. A razão prática se retira dos direitos humanos universais ou da eticidade concreta para as regras do discurso e para formas de argumentação que tiram seu conteúdo normativo do agir orientado para o entendimento.

É a partir daí que se compreende a relação entre Estado e Sociedade. Vimos que tanto o modelo republicano quanto o Liberal estão centrados no Estado. O primeiro concebe a formação política como medium de constituição da Sociedade como um todo. A Sociedade está, portanto, centrada no Estado. E a democracia de­pende da auto-organização política dos cidadãos. A concepção libe­ral também é centrada no Estado, a ponto de defender que a separa­ção entre Estado e Sociedade não pode ser eliminada, mas transposta na sociedade de pessoas privadas em concorrência.

A Teoria do Discurso visa uma concepção mais forte do que a liberal, mas mais fraca do que a republicana. Contra a republicana, ela diz que a formação da vontade política e da opinião está no centro, sem contudo compreender o Estado de Direito como algo secundário, posto que os direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito visam à institucionalização dos pressupostos da comunicação.

Frente a isso a Teoria do Discurso conta com a intersubjetivi­dade de deliberação nas corporações parlamentares e, por outro lado, com a rede das esferas públicas políticas que têm a sociedade civil como sua base. Estado e dinheiro são elementos a mais. Tudo gira em tomo das esferas públicas políticas que se relacionam com o Estado e a economia. Essas comunicações sem sujeitos fora e dentro das corporações políticas programadas formam arenas a partir das quais se formam opinião e vontade mais ou menos racionais.

A formação informal da opinião pode transformar-se durante as eleições em poder administrativo, mas nem por isso se dissolve nele, já que o espaço da sociedade civil distingue-se do da administra­ção pública e do da economia. Normativamente, há uma exigência de deslocamento do peso das relações entre dinheiro e poder adminis­trativo para a solidariedade, que irá promover a integração e direção.

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As implicações normativas daí decorrentes são que as forças da solidariedade devem poder desenvolver-se por meio de esferas públi­cas e procedimentos institucionalizados no Estado de Direito e sobre­por-se ao dinheiro e ao poder.49

Da sociedade que se tomava autônoma em um macro sujeito, há uma transferência para os pressupostos da comunicação, em que ela toma-se autônoma em termos intersubjetivos. A produção do Direito legítimo, regulada pelo princípio da democracia, só é possível na abertura entre o poder comunicativo, que é o rnedium da solidari­edade, e o poder administrativo e o dinheiro, de forma a que o primeiro produza integração social, por um lado e, por outro, direcione a produção da integração sistêmica do poder administrativo e do dinheiro.

Por esse motivo, a desobediência civil não pode ser sobreposta a argumentos formais do tipo "legitimação pelo procedimento". Ou seja, não basta que uma lei ou ato administrativo sejam produzidos conforme a circulação oficial do poder político, esse poder, tem que manter a conexão com o poder comunicativo gerado fora da circula­ção oficial para ser legítimo. O desobediente civil vai justamente chamar a atenção para a crise de legitimidade gerada pela falta de conexão entre as decisões do círculo oficial do poder e as do poder comunicativo. Assim, a democracia, sob o fundamento da reversibilidade das decisões, precisa manter a conexão entre centro e periferia do sistema político, ou seja, entre sistema político e esfera pública. O sistema político que se fecha a essa relação não apenas perde a legitimidade, mas acaba também por perder a sua eficácia, pois terminará por tomar decisões que não valem nada.

Assim, o princípio da soberania popular é reafirmado pela desobediência civil porque essa denuncia a ameaça contra a ligação entre sociedade civil e sociedade política, pelo fracasso, em determi­nadas circunstâncias, da primeira influenciar a segunda, tendo se

49 Ver o final do capítulo um desta obra.

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esgotado todos os meios ordinários. Por isso, mesmo que decisões sejam formalmente legais, elas podem ser ilegítmas.

Então, para finalizar, resta explicar como a desobediência civi l faz isso possível, apelando para um fundamento dentro do próprio Direito, pela função que a Constituição exerce em um Estado Demo­crático de Direito.

3 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL EO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO PROJETO INACABADO

A desobediência civil nos ensina que a Constituição e o para­digma de Estado e de Direito que ela estrutura - o Estado Democrá­tico de Direito - são projetos inacabados e em constante construção, que necessitam a todo momento ter o seu sistema de direitos atualiza­do, isto é, interpretá-los, institucionalizá-los, e esgotar seu conteúdo cada vez mais adequadamente. Habermas explica:

"A justificação da desobediência civil apóia-se, além disso, numa compreensão dindmica da consti tuição, que é vista como um projeto inacabado. Nesta ótica de longo alcance, o Estado democrático de direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim, como um empreendimento arrisca­do, delicado e, especialmente, falível e carente de revisão ... " (Habermas, 1997-1: 118).

A Constituição, nos moldes em que foi implementada desde o período pós-revolucionário do século XVIII, nos Estados Unidos e na França, é inovada em três sentidos distintos (Luhmann, 1996: 84). Em primeiro lugar, estas Constituições modernas vão, pela primeira vez, ter um sentido de estatuto fundamental do sistema jurídico, a partir do qual tudo aquilo que quer ser chamado de Direito terá que se adequar. A Constituição passa a ser, assim, a medida pela qual se estabelece o que é direito e o que não é direito. Ao ganhar esse

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sentido, é possível pensar em um fundamento do Direito dentro do próprio Direito.50 Não se incorre mais em um retrocesso infinito a um fundamento externo, no mais das vezes, problemático. O Direito Natural, seja na sua versão cosmológica, seja naquela racionalista da tradição kantiana, por exemplo, vai ser substituído funcionalmente pela idéia de Constituição. Em terceiro e último lugar, a dubiedade do conceito de Constituição antes da formação da idéia de Constituição moderna, era que nas cliversas tradições, ele podia tanto expressar um conceito político (constitutio como corpo do soberano, como corpo político), quanto um conceito jurídico (consrilucío como decretos de direito posiúvo com força de lei). O conceito moderno de Constitui­ção se confronta com o problema de pretender construir uma unidade entre o sistema político e o Direito, tentando evitar uma total diferenci­ação entre ambos. Por isso, aquela dubiedade é aproveitada, e o conceito moderno de Constituição terá que fazer frente tanto a um aspecto político como a um aspecto jurídico (Luhmann, 1996: 85-87). Assim é que a ligação entre Direito e políúca é possível por meio da Constituição. Ela será, como se disse acima, a medida pela qual poderemos determinar o Direito.

Essas características das Constituições modernas têm um impacto muito grande na própria concepção do Direito e do nosso tema. Se a Constituição opera como uma tal medida, isso abre a possibilidade de que todo Direito, com exceção da própria Consti­tuição, não seja Direito, seja inconstitucional. Então a possibilidade de questionamento do Direito não se encontra fora dele - em argumentos morais, religiosos, éticos, etc. - e sim dentro do próprio Direito, na Constituição: estatuto político-jurídico da sociedade (Canotilho, 1995). O desobediente civil não age ilegalmente porque age confonne a Constituição; ilegal, pelo menos até que se chegue a uma decisão sobre a sua constitucionalidade, é a lei ou ato colocado em xeque.

50 Ver capítulo segundo desta obra.

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E quem diz o que é ou não constituicional? Sob um Estado Democrático de Direito fundamentado em uma teoria discursiva do Direito, todos os membros de uma comunidade jurídica concreta, detentores dos direitos fundamentais por ela legitimados. Com base nos pressupostos desse fundamento, nenhuma norma (lei ou ato ) é de per se uma norma jurícLica; como nos diz Peter Haberle: 'não existe norma jurídica, senão normajurídica interpretada' (Haberle, 1997: 9). E tal interpretação não se limita àquela feita pelo juízes e administra­dores no centro da esfera pública política, como também inclui a feita pelos cidadãos, que nas arenas dessa mesma esfera pública, exercen­do a soberania difusa na mesma, discutem, repensam, reestruturam, atualizam e aperfeiçoam o Estado Democrático de Direito.

4 A CIRCULAÇÃO DO PODER POLiTICO NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A IMPLEMENTAÇÃO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO DIREITO

A política, no contexto da Teoria do Discurso, pode ser tanto o 'sistema da política', que é o sistema social funcionalmente diferencia­do, cujo fim é de ser instância de decisão e resolução de conflitos sociais, quanto a 'esfera pública política', que é a instância de proble­matização social especializada em questões de integração social.

A partir da tensão gerada entre essas duas cLimensões da política, Habermas resolve o impasse no qual as teorias norma­tivistas incorreram ao tentar correlacionar o Estado e a sociedade civil, por um lado, e a esfera pública e a privada, por outro. Habermas quer, em última instância, poder justificar nesse processo como a política aparece, na Modernidade, como o espaço no qual o poder administrativo e o poder comunicativo se correlacionam, e faz isso, descrevendo um modelo de circulação de poder político que se apresenta como mais adequado ao paradigma do Estado Democrá­tico de Direito.

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Do ponto de vista da primeira dimensão da política, a esfera pública é o âmbito social, constituído de interações intersubjetivas, que se caracteriza pela sua capacidade de problematização. A esfera pública não tem como fim precípuo chegar à decisão, mas sobretudo instaurar espaços públicos de discussão, em que se formem redes de interações que utilizem a linguagem como forma de adensar a comuni­cação e levantar temas. Nesse sentido, podemos não falar em esfera pública e sim em esferas públicas, mais especializadas ou não, mais ampliadas ou menos ampliadas. Em suma, a esfera pública é a instân­cia de problematização onde se levantam pretensões de validade (Habermas, 1997-1 :II,92), de forma a estabelecer uma rede de interações consensuais. Dentre as várias esferas públicas, a esfera pública política é a instância de problematização especializada em questões de integração social.

Do ponto de vista sistêmico, a política pode ainda serdes­crita como um sistema conformado por centro e periferia, interli­gados democraticamente. O centro tem como organização e ins­tância de decisão mais importante, o Estado, e a periferia, como substrato principal, os grupos, movimentos, associações e organi­zações que no conjunto de suas interações conformam a socieda­de civil. Assim, a sociedade civil é definida como um conjunto de associações, organizações e movimentos que reivindicam mudan­ças na perspectiva do processo comunicacional da esfera pública no qual estão inseridos. A ligação entre Estado e sociedade civil só é possível quando se preservam e se alimentam níveis de discussão diferenciados. Por um lado, se for respeitada a perspec­tiva em que se dão todas as interações simples e particulares, isto é, a esfera privada, e por outro, preservando-se a esfera pública, uma instância em que as interações da esfera privada possam vir a ser tematizadas em uma perspectiva generalizante, aí sim podendo ser problematizadas em um nível abstrato e, eventualmente, se tomando decisões universalmente vinculantes, estas já dentro do centro do sistema político. Em suma, Estado e sociedade civil são diferenciados, mas, sob o paradigma do Estado Democrático de

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Direito, ambos devem manter uma conexão que será efetivada no âmbito da esfera pública social.

A tensão entre facticidade e validade no Direito, que se apre­sentava como tensão entre legalidade e legitimidade, no interior do sistema de direitos, se apresenta como tensão entre autonomia pública e autonomia privada. Adicionalmente, o poder político depende do Direito para se legitimar. Nesse sentido, ele precisa manter a conexão entre os imperativos sistêmicos do poder administrativo e a capacida­de de integração do poder comunicativo. O Direito é a linguagem capaz de traduzir e sustentar essa conexão.

Assim, os canais de institucionalização do Direito dependem de um modelo de circulação de poder político que especificamente atenda às exigências normativas e fáticas do paradigma do Estado Democráti­co de Direito, isto é, dependem de um sistema político que consiga manter a conexão entre poder administrativo e poder comunicativo.

Toda possibiJidade de formação de opinião e de vontade que ocorre no nível da esfera pública trabalha com essa constante pressão dentro do sistema político entre centro e periferia. Por isso, a questão que se coloca é se é possível adotar como critério de mobilidade dos temas da periferia para o centro do sistema político o da força do melhor argumento e o da possibilidade, por esse meio, de chegar a um consenso e, em última instância, à legitimidade das decisões imple­mentadas no centro.

' O problema reside em que o centro, tendo uma ligação com o

poder administrativo, .em função da necessidade de tomada e imple­mentação de decisões, tende a se afastar da periferia, de forma a simplificar os seus processos e tornar-se mais eficaz. Contudo, esse afastamento gera uma crise de legitimidade porque significa o afasta­mento também do potencial do poder comunicativo. Em última instân­cia, há, igualmente, uma crise de eficácia, pois o centro - sem manter a conexão com a periferia - toma decisões que não conseguem dar uma resposta aos problemas de seu público alvo, que é a própria periferia.

Daf que, a partir do Direito, sejam institucionalizadas formas de resolução de conflitos dentro do sistema político que atendam à

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necessidade de manutenção da conexão entre poder administrativo e poder comunicativo, e entre centro e periferia. Dentre esses modos de resolução de conflitos, há aqueles que Habermas chama de modos "extraordinários"; entre eles, a Desobediência Civil.

O papel da Desobediência Civil no Estado Democrático de Direito é o de medida extrema utilizada para pôr em evidência uma situação de crise, isto é, de déficit de legitimidade, resultante de um fechamento do processo decisório do centro em relação à periferia da esfera pública. Além disso, a Desobediência Civil põe em evidência a tensão imanente entre facticidade e validade no Direito. Ela levanta a perplexidade de se conceber, no Estado Democrático de Direito, um ordenamento jurídico positivo que a todo momento tem que ceder às pressões decorrentes do déficit de legitimidade das decisões que são tomadas. É por meio de ações de Desobediência Civil que a socieda­de civil pode provocar, de forma mais radical, o sistema político a questionar a legitimidade das decisões que são tomadas em seu centro. Somente pelo processo de constante construção de um Direi­to ao mesmo tempo coercitivo e legítimo que esse pode cumprir o papel de integrador social.

Essa visão do papel da Desobediência Civil e do Direito traça, sob um determinado enfoque, o paradigma do Estado Democrático de Direito, que pressupõe uma relação de interdependência entre soberania popular e direitos humanos, a equjprimordiaLidade entre esferas pública e privada, a abertura da democracia para a justifica­ção a partir de razões diversas do tipo ético, moral e pragmático e, finalmente, a estreita ligação que hão de manter o Direito e a Política.

O funcionamento do sistema político, a relação desse com as esferas pública e privada, e o papel da sociedade civil nesse processo, permitem abordar o problema das barreiras e estruturas de poder que surgem no interior da esfera pública e, finalmente, dos mecanismos de superação das barreiras em situações críticas. É nesse último item que se insere a discussão sobre Desobediência Civil na obra Direito e Democracia entre facticidade e validade.

O problema central é discutir maneiras em que o sujeito pode colocar temas e determinar a orientação dos fluxos da comunicação

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de forma a influenciar o sistema político pelas vias aberlas na esfera públjca, em situações de crise na periferia. Haberrnas parte do mode­lo proposto por Cobb, Ross e Ross, que se divide em três perspecti­vas de atuação, que funcionam em um sistema de escalonamento, que parte de uma parcela ou um grupo grande de pessoas com capacida­de de mobilização e de crítica, que visa influenciar desde o nível mais simples de interações até o nível mais complexo, no centro do sistema político, onde se mudam decisões.

Primeiramente está o modelo de acesso, cuja iniciativa parte do próprio centro do sistema político e visa influenciar também o centro, durante o processo decisório, em detrimento da circulação entre esfera pública e sistema político. Um segundo modelo é o modelo de mobilização, cuja iniciativa parte do centro do sistema político, que é obrigado a mobilizar a periferia externa para o centro durante o processo decisório porque precisa do apoio dela para efetivar a decisão. Finalmente, há o modelo de iniciativa que parte da periferia externa e visa a mobilização do centro para a periferia do sistema político. Este último modelo corresponde a situações em que grupos que estão excluídos da estrutura governamental conseguem articu lar demandas, Lentam levantar o interesse da população para questões não problematizadas, e fazem pressão naquel.es que têm poder decisório para incluir determinados temas nas agendas formais.

Em circunstâncias normais são mais uti lizados o primeiro e segundo modelos. O terceiro modelo vem mostrar que, quando conscientes de situações de crise, os atores da sociedade civil, "ape­sarda diminuta complexidade organizacional, da fraca capacidade de ação e das desvantagens estruturais ... " são capazes de " ... inverter a direção do fluxo convencional da comunicação na esfera pública e no sistema político, transfonnando destarte o modo de solucionar pro­blemas de todo o sistema político" (Habermas, 1997-1: 115).

A vantagem que essa mobilização da periferia para o centro tem em relação aos outros dois modelos é que a sociedade civil transita nos domínios da esfera privada e nas redes comunicacionais da esfera pública, das quais faz uso. Por ter esse trânsito, a sociedade

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civil é mais aberta e sensível a novos problemas do que os centros do sistema político. O acesso por via do modelo de iniciativa é funda­mental para a atualização dos temas e dos procedimentos no interior dos centros de decisão política, de forma a que eles se mantenham legítimos e eficazes e fortaleçam a circulação do sistema político em conformidade com os princípios do Estado de Direito.

A desobediência civil é um modo extraordinário de utilização do modelo de iniciativa, que tem como destinatários os detentores de cargos públicos, contra os quais se questiona a legitimidade das decisões que tomam, e também a comunidade, a quem se visa convencer de apoiar determinados temas até então minoritários ou considerados pouco relevantes. Nas palavras de Habermas:

'Tais atos [de desobediência civil] de transgressão simbólica não-violenta das regras se auto-interpretam como expressão do protesto contra decisões irnpositivas as quais são ilegítimas no entender dos atores, apesar de terem surgido legalmente à luz de princípios constitucionais vigentes." (Habermas, 1997-1: 117).

O que esses atos implicitamente evidenciam é que o sistema político, que tem como estrutura constitucional os princípios do Esta­do Democrático de Direito, deve manter a conexão com a sociedade civil e com a periferia. Dessa forma ele mantém a tensão entre faticidade e validade. Por um lado, a circuJação oficial do poder político funciona pela lógica sistémica, por outro, o sistema político mantém a ligação com os canais comunicativos da esfera pública, responsáveis pela produção de legitimidade. No dizer de Habermas a desobediência civil serve para:

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" ... atualizar os conteúdos normativos do Estado democrático de direito, e para contrapô-los à inércia sistêrnica da política institucional." (Habermas, 1997-1 : 117).

Conclusões

Esta obra conseguiu solucionar o problema do giro pragmático lingüístico, a partir do qual se definiu o paradigma de Filosofia e se justificou a utilização da Teoria do Discurso como marco teórico (Capítulo l ). O pano de fundo para a introdução desse marco teórico foi o questionamento sobre a possibilidade de integração social em sociedades pós-industriais. Viu-se o papel central que o Direito exerce nessa tarefa devido à particular característica adquirida no processo de modernização, em que é ele o âmbito normativo em que a tensão entre facticidade e validade se transpõe de uma maneira específica. O Direito moderno, ao mesmo tempo que é coercitivo, levanta uma pretensão de legitimidade, sob a qual se assenta tal coerção (Capítulo 1).

A tensão entre facticidade e validade presente no Direito levan­ta a questão sobre o fundamento do mesmo. Por isso, no capítulo dois tratou-se do problema da relação entre Direito e Moral. Conclui-se que essas duas esferas normativas são equiprimordiais e complemen­tares, e não subordinadas uma à outra. Portanto, o Direito não decorre do princípio da moralidade e sim do princípio da democracia, embora ambos sejam deduzidos de um mesmo princípio: o do Discur­so. É a partir do princípio da democracia que se justificam os proces­sos de institucionalização das condições de instauração do Direito. Ao afirmar que o princípio da democracia utiliza a forma do Direito para institucionalizar os processos comunicativos (capítulo 2), ainda resta explicitar a relação existente entre Direito e Política, a forma do Direito e o "lugar" onde se formam os processos comunicativos.

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No capítulo três se comprovou que não basta fundamentar um sistema de direitos sob bases teóricas democráticas, há que se pensar como implementar de fato esse sistema de direitos, dando um passo adicionaJ do "abstrato" para o "concreto", permitindo que os cida­dãos assumam em suas mãos a tarefa de reaJizarem aquilo que foi teoricamente fundamentado.

Do ponto de vista do participante, a gênese do Direito moderno depende do sentimento de co-autoria desse participante em relação aos processos de formação de vontade e de decisão polílica. A Desobediência Civil é uma das formas desse participantes darem esse passo decisivo à implementação do sistema de direitos na medida em que o direito político à desobediência civil é pedra de toque do Estado Democrático de Direito.

A implementação da Desobediência civil corno direito funda­mentaJ depende de uma compreensão procedimental do processo político de tomada de decisão, em. que se dê prioridade à ampliação de espaços de discussão públicos, em que as esferas públicas oficiais e o sistema político mantenham-se abertos às opiniões e vontades geradas em esferas informais da periferia da esfera pública, no âmbito da sociedade civil. É necessário que se opere um deslocamento das relações entre dinheiro e poder administrativo para a solidariedade, como principal produtor de integração social.

É com base na teoria do Discurso de Jürgen Haberrnas, lançan­do mão dos pressupostos sobre uma teoria do agir comunicativo, sobre uma teoria do Direito, e do desenvolvimento das relações entre Direi lo e Moral e Direito e Política, que podemos defender a Desobe­diência Civil como direito fundamentaJ delineado no Estado Demo­crático de Direito.

A Desobediência Civil não precisa mais ser tratada como um paradoxo, uma vez que ela, não apenas se insere, como explicita a tensão imanente ao Direito entre facticidade e vaJidade. A Desobedi­ência Civil evidencia a tensão interna no nível da validade jurídica, na medida em que demonstra que esta se dã em dois níveis: o nível da legalidade/vigência e o nível da aceitabilidade racional/legitimidade.

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CONCLUSÕES

Assim, não basta que uma lei ou ato administrativo sejam produzidos conforme os processos oficiais do poder admjnistrativo. Esses pro­cessos têm que manter uma conexão com o poder comunicativo gerado em outros níveis da esfera pública política para realmente produzirem Direito.

Adicionalmente, a Desobediência Civil evidencia a tensão ex­terna entre facticidade e validade no Direito, na medida em que coloca a Constituição e os princípios do Estado Democrático de Direito nela enunciados frente a frente com a realidade política e as forças históri­cas e circunstanciais, de um lado, de um poder administrativo que tende a se fechar e agir contra esse princípios, e, de outro, de uma sociedade civil inerte. Dessa forma, os desobedientes civis propugnam de maneira contrafactual a necessidade de se construir o Estado Democrático de Direito e de se implementar a Constituição no nível das práúcas cotidianas.

Por isso, a Desobediência Civil é mecanismo juríruco efetivo que possibilita a atuaJização dos conteúdos normativos do Estado Democrático de Direito, contrapondo à tendência de fechamento e "cegueira" dos centros de decisão e elaboração de políticas púbUcas e de leis.

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