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Derecho y Cambio Social
IDENTIDADE DE GÊNERO PLENA:
UMA PROPOSTA DE
RESSIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE MULHER
PARA O DIREITO
André Porto1
Andrea dos Santos Nascimento2
Jorge Luis Windler3
Júlio César Pompeu4
Raphael de Angelo Jogaib Bomfim5
Fecha de publicación: 01/07/2015
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Violência, violência doméstica e
familiar contra a mulher e violência de gênero. 3. Qual mulher
sou eu? Qual mulher é você? Quais mulheres somos nós? 4. O
reconhecimento brasileiro dos direitos de todos e todas à
igualdade, independentemente de sua orientação sexual e
identidade de gênero. 5. O compromisso brasileiro de combater
a violência contra a mulher. 6. O Direito, suas significações e a
1 Aluno de graduação do curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
dedeco008@hotmail.com
2 Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora
Substituta do Departamento de Psicologia Social e Desenvolvimento da UFES. Professora da
Faculdade Multivix. andreanas@gmail.com
3 Aluno de graduação do curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
jorge_windler@hotmail.com
4 Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor de Ética e
Teoria do Estado do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo.
julio.pompeu@ufes.br
5 Aluno de graduação do curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
raphaeljogaib@gmail.com
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jurisprudência 7. Considerações finais 8. Referências
bibliográficas.
RESUMO:
O Brasil é signatário de todos os acordos internacionais que
asseguram de forma direta ou indireta os direitos humanos das
mulheres bem como a eliminação de todas as formas de
discriminação e violência baseadas no gênero. Além disso, tem
contribuído para o reconhecimento internacional dos direitos de
todos e todas à igualdade, independentemente de sua orientação
sexual e identidade de gênero. Dissonante a essas afirmações,
encontra-se a realidade de milhares de mulheres biológicas,
travestis e transexuais que sofrem, diariamente, algum tipo de
violência, seja a doméstica e familiar, seja a negação estatal de
exercício pleno de suas identidades de gênero, como ocorrido na
cidade de Vitória/ES, onde uma mulher transexual, ao procurar
atendimento em uma Delegacia Especializada de Atendimento à
Mulher, teve seu acolhimento negado. Se há um descompasso
entre as demandas sociais e as legislações, pois essas estão
relativamente “obsoletas” em relação ao dinamismo das
sociedades, promover uma revisão de conceitos apresenta-se
como uma possível alternativa em estabelecer um equilíbrio
entre o “dever-ser” (Direito) e o “ser” (realidade social), a
exemplo das diversas mudanças nas significações do instituto
“família” ocorridas no direito brasileiro. A partir de um
importante diálogo entre o Direito, suas leis, pesquisadores e
jurisprudência, e a Psicologia no seu saber sobre violência, sexo,
gênero e sexualidade (desejo), discute-se, sem a pretensão de
encerrar o assunto, mas sim para introduzi-lo, o conceito de
mulher e sua possível ressignificação no Direito, acreditando-se
na possibilidade de promoção de uma verdadeira justiça social.
Palavras-chave: Violência. Identidade de gênero. Direitos
humanos. Lei Maria da Penha.
COMPLETE GENDER IDENTITY: A
RESSIGNIFICATION PROPOSAL ABOUT THE
CONCEPT OF WOMAN IN LAW
ABSTRACT
Brazil is signer to all international agreements that provide
directly or indirectly human rights to women and the foreclosure
of all sorts of discrimination and violence based on gender.
Moreover, Brazil has contributed to the international recognition
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of the rights of all people to equality, regardless of their sexual
orientation and gender identity. Dissonant to these assertions lies
the reality of thousands of biological women, transvestites and
transsexuals who suffer daily many sorts of violence in their
house, families or by the state denial of full exercise of their
gender identities, as occurred in Vitória/ES, where a transgender
woman, seeking care in a specialized Police Service to Women,
had her order denied. If there is a mismatch between social
demands and the law, because there are relatively "outdated"
compared to social, to foster a review of concepts is itself a
possible alternative to equalize the balance between "should be"
(law) and "being" (social reality), such as the various changes in
the meanings of the institute "family" occurred in Brazilian law.
From an important dialogue between law, jurisprudence and
researchers, and psychology in their knowledge about violence,
sex, gender and sexuality (desire), it is argued, without intending
to finish this debate, but to introducing it, the concept of a
woman and her possible ressignification by the law, believing in
the possibility to foster a true social justice.
Key words: Violence. Gender identity. Human Rights. Law
Maria da Penha.
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1. INTRODUÇÃO
A luta por direitos perpassa praticamente toda a história da humanidade.
Esses direitos variam de acordo com as sociedades em que se encontram,
sendo o resultado de suas transformações, de novas necessidades sociais,
declínio e ascensão de paradigmas, como também de uma releitura de seus
princípios e seus valores morais.
No entanto, excetuando-se as situações de revolução, há certo atraso
entre as demandas sociais e as legislações, geralmente atrasadas em relação
ao dinamismo das sociedades porque apesar da diversidade de interesses e
valores característicos de qualquer sociedade complexa, tanto a produção
legislativa quanto a jurisprudência encontram-se nas mãos de grupos
sociais específicos cujos valores e interesses nem sempre coincidem com
os dos demais segmentos dessa mesma sociedade. No caso brasileiro, o
ordenamento jurídico é falho ao defender os direitos daqueles considerados
hipossuficientes nas relações jurídicas, em prover tutela abrangendo a
diversidade de identidades que compõe grande parte das sociedades
contemporâneas.
Entre as alterações ocorridas no ordenamento jurídico brasileiro, ao
longo de sua história, buscando uma adequação da lei à realidade social,
está a progressiva conquista de direitos pela mulher. A luta histórica pela
plena emancipação e plena igualdade social da mulher tem como objetivo
eliminar do imaginário social representações machistas, impeditivo
simbólico da assunção pelas mulheres do papel de protagonistas de sua
própria vida. Essa luta causou significativas mudanças no direito brasileiro
como a consolidação do direito ao voto sem restrições em 1934 (Pereira;
Daniel, 2009); em 1962, a sanção da lei 4.121, conhecida como o Estatuto
da Mulher Casada que garantia, entre outros direitos, que a mulher não
precisaria mais pedir autorização ao marido para poder trabalhar, receber
herança e no caso de separação poderia solicitar a guarda dos filhos
(Miranda, 2013); tendo como o ápice dessas conquistas a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 que em seu artigo 5º, inciso I,
proclamou a total igualdade de gênero no ordenamento jurídico brasileiro,
tornando não recepcionadas pela nova ordem constitucional todas as
normas que estabeleciam diferenças de direitos entre homens e mulheres ao
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afirmar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”
(Brasil, 1998, sp).
Porém, se por um lado houve profundas mudanças formais no mundo
do “dever-ser”, a realidade social da mulher no Brasil ainda está muito
longe de ser aquela descrita na Carta Magna nacional, principalmente
quando se verificam os números de mulheres que sofrem algum tipo de
violência relacionada ao gênero. Conforme apresentado no relatório da
pesquisa do Instituto Avon/Data Popular – “Percepções dos homens sobre a
violência doméstica contra a mulher” (2013), a cada quatro minutos uma
mulher é vítima de agressão no Brasil e a cada uma hora e meia ocorre um
feminicídio, morte de mulher por conflito de gênero.
Na tentativa de uma maior proteção à mulher e combater esse tipo de
violência destacam-se duas ações vigentes: a primeira foi a instituição das
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), sendo que
no Espírito Santo ocorreu por meio do Decreto nº 2.170-N, de 24 de
outubro de 1985. De acordo com o Portal do Governo do Espírito Santo6,
“o ato de criação da DEAM 7 , no ES, foi baseado na preocupação do
governo Estadual em oferecer atendimento específico à classe feminina
vítima de violência, que em muitas oportunidades não procurava uma
unidade de polícia judiciária para denunciar seus agressores por se sentirem
constrangidas”. A segunda foi a criação, em 2006, da lei federal nº 11.340,
conhecida como lei Maria da Penha – LMP – reconhecida pela
Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores
legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres8.
Essa lei foi editada com o objetivo expresso de criar mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
definindo conceitos importantes como as modalidades de violência e
gerando uma sistematização dos mecanismos de prevenção e punição da
violência no ambiente familiar ou em qualquer relação íntima de afeto
6 Disponível em: <http://www.es.gov.br/Cidadao/paginas/mulher_delegacia_direitos.aspx>.
Acesso em: 21 jul. 2014.
7 De acordo com a Lei Complementar n° 756 de 27 de dezembro de 2013 da Assembleia
Legislativa do estado do ES que “dispõe sobre a divisão das circunscrições da Polícia Civil do
Estado do Espírito Santo e dá outras providências”, fazem parte da estrutura da referida polícia:
as Delegacias Especializadas de Homicídio Contra a Mulher, os Distritos Policiais de
Atendimento à Mulher, os Plantões Especiais da Mulher, e as Delegacias de Polícia de
Atendimento à Mulher.
8 Sítio Compromisso e Atitude. Disponível em:
<http://www.compromissoeatitude.org.br/sobre/legislacao-sobre-violencia-contra-as-mulheres-
no-brasil/>. Acesso em: 24 jul. 2014.
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contra a mulher, baseado na igualdade material preconizada pela
Constituição.
O texto do Decreto nº 2.170-N e a redação da LMP são claros no
sujeito tutelado, ou seja, a mulher, ainda que o Art. 44 da Lei inclua os
parágrafos 9° e 11° ao Art. 129 do Código Penal, agravando as penas para
crimes de lesão corporal não somente contra a mulher, mas a todos aqueles
que se valem de relações domésticas ou da convivência para praticá-la. No
entanto, surgem dúvidas quanto aos casos concretos que são apresentados
na realidade social cotidiana, considerando-se, para fins desse trabalho,
como principal pergunta a ser respondida qual o conceito de mulher a que
se referem aquelas legislações, pois não há a definição expressa em seus
dispositivos legais.
Tal indagação, motivação principal deste trabalho, surgiu a partir do
caso concreto de uma mulher transexual que teve atendimento negado em
uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) na cidade
de Vitória, ES, pelo fato de seu registro civil ainda constar o seu sexo
biológico masculino, embora já tivesse realizado a cirurgia de
transgenitalização.
Como consequência desse questionamento, outros surgem. As
mulheres transexuais e as mulheres travestis podem ser protegidas pelas
mesmas ações que as mulheres biológicas ao se encontrarem em situações
de violência de gênero? Essa tutela estaria condicionada à cirurgia de
redesignação genital? A formalidade documental pode ser mitigada em face
da dignidade da pessoa humana?
2. VIOLÊNCIA, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA A MULHER E VIOLÊNCIA DE GÊNERO
O conceito de violência pode ser definido, segundo Strey (2004, p.14)
como sendo “qualquer comportamento que vise a satisfação própria em
detrimento de outra pessoa”. Isto é, qualquer comportamento que intente
em satisfazer a vontade própria contrariamente a vontade alheia é
considerado violência. Essa característica, conforme Souza (2004, p.58),
representa o caráter anti-humano da violência, pois não é aquela exercida
contra a natureza (caráter humano da violência), mas “se dirige contra
outros homens, não contra seus corpos apenas, mas contra o seu existir
social”.
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A violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser entendida,
conforme o artigo 5º da LMP qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da
família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva
ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Essa lei, também determina em seu artigo 7º que são formas de
violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras a violência
física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e
a violência moral.
Sobre violência de gênero Strey (2004, p.13) afirma que “incide,
abrange e acontece sobre/com as pessoas em função do gênero ao qual
pertencem. Isto é, a violência acontece porque alguém é homem ou
mulher”. Contudo, o conceito de violência de gênero a ser adotado nesse
trabalho é o apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sendo a
violência sofrida pelo fato de se ser mulher, sem distinção de raça, classe
social, religião, idade ou qualquer outra condição, produto de um sistema
social que subordina o sexo feminino9.
3. QUAL MULHER SOU EU? QUAL MULHER É VOCÊ? QUAIS
MULHERES SOMOS NÓS?
Vaitsman afirma que “A crise da família e do casamento modernos foi
provocada pelo abalo de seus fundamentos: a divisão sexual do trabalho e a
dicotomia entre público e privado atribuída segundo o gênero” (Vaitsman,
2001, p.16), onde o espaço público era ocupado pelos homens e o privado,
restrito ao seio familiar, ocupado pelas mulheres.
Com o avançar das sociedades, e a busca de direitos para as
mulheres, a igualdade sexual fez despontar as fragilidades da antiga
configuração familiar. O matrimônio alicerçado no amor singular do
outrora romantismo burguês cede lugar ao dinamismo das relações da
sociedade contemporânea. Com isso, a tradicional formatação de família e
sua imobilidade ou falta dela foi levada para um novo patamar em que não
mais se enfrenta um casamento para a “vida toda”, um relacionamento
baseado apenas no amor romântico à moda moderna (Vaitsman, 2001).
9 Formas de violência contra a mulher. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-
a-z/pj-lei-maria-da-penha/formas-de-violencia>. Acesso em: 22 jul. 2014.
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Todo esse dinamismo social resultou em uma crise do papel
masculino na sociedade, em que um homem oitocentista comedido nas suas
emoções, viril, forte, másculo, dá lugar a um homem mais dinâmico, que
também possui características outrora somente femininas, saindo de um
caráter mais rígido para uma definição mais ampla do que é ser homem e
como ser homem.
Segundo Silva,
A crise da masculinidade contemporânea se configura a partir de
um conflito identitário vivido pelo homem. No nosso entender,
esse conflito se constitui a partir de dois momentos distintos:
primeiro, a partir da tentativa de se manter um modelo de
identidade de gênero hegemônico e, ao mesmo tempo, pluralista,
ora baseado em modelos tradicionais ora em modelos modernos
de masculinidade, e segundo, a partir da impossibilidade de
sustentar essa hegemonia no que se refere às subjetividades da
maioria dos homens (Silva, 2006, p.121).
Ainda segundo o autor, esse novo homem estaria pautado na
possibilidade de demonstrar seus sentimentos, de expressar-se
emocionalmente sem se constranger, de realizar tarefas domésticas, de
participar da educação dos filhos, de assumir posições que pertenciam
somente às mulheres numa sociedade moderna burguesa.
Dentro dessa crise, libertam-se das amarras aquelas pessoas que não
se identificam com o binarismo homem/mulher, masculino/feminino. Não
supre mais, para a nossa sociedade contemporânea, apenas um parâmetro
biológico e anatômico para definir a identidade de uma pessoa – se nasceu
com pênis é homem, se não, é mulher. Não existe mais uma definição
estática, mas dinâmica de acordo com as necessidades e anseios sociais
atuais.
Consequentemente, se anteriormente havia uma suposta ordem
compulsória natural entre sexo, gênero e sexualidade (desejo), atualmente
pode-se afirmar que não há.
Jesus afirma que o
sexo é biológico, gênero é social, construído pelas diferentes
culturas. E o gênero vai além do sexo: o que importa, na definição
do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a
conformação genital, mas a autopercepção e a forma como a
pessoa se expressa socialmente. Se adotamos ou não
determinados modelos e papeis de gênero, isso pode independer
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de nossos órgãos genitais, dos cromossomos ou de alguns níveis
hormonais (Jesus , 2012, p.8).
Butler aponta seus estudos na mesma direção de forma a defender
que a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que
o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é
culturalmente construído: consequentemente, não é nem o
resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo
quanto ao sexo (Butler, 2003, p.24).
Para essa pesquisadora, supor um binarismo de gênero, masculino e
feminino, seria correlacioná-lo, implicitamente ao sexo, não havendo razão
para supor que os gêneros também devam permanecer em número de dois.
Na legislação brasileira encontra-se definido gênero apenas como
masculino e feminino. O direito Alemão, por exemplo, contempla um
terceiro gênero (indefinido) para ser utilizado em certos casos previstos em
sua legislação e, na Austrália, um caso de uma pessoa que não se identifica
com o gênero masculino e feminino, decidindo-se por um gênero neutro,
foi reconhecido pela justiça australiana, conforme noticiado pela BBC
Brasil em seu sítio eletrônico10.
Quanto ao desejo, no exercício da sexualidade, pode ser
compreendido como
as práticas erótico-sexuais nas quais as pessoas se envolvem, bem
como pelo desejo e atração que leva a sua expressão (ou não)
através de determinadas práticas. Esse dado também é chamado
por alguns/as de “orientação sexual”, e comumente classifica as
pessoas em “heterossexuais”, “homossexuais” e “bissexuais”
(Musskopf, 2008, sp).
Diante da pluralidade de possibilidades de sujeitos ao se “combinar”
sexo, gênero e desejo, faz-se necessária uma identificação do conceito de
mulher a ser adotado nesse estudo.
É importante esclarecer que a escolha realizada e nomenclatura
adotada foram meramente didáticas, a fim de proporcionar um melhor
entendimento a respeito dos indivíduos objetos desse trabalho,
problematizando-os. Em nenhum momento objetivou-se categorizar os
10 Alemanha cria “terceiro gênero” para registro de recém-nascidos. Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/08/130820_alemanha_terceirosexo_dg.shtml>.
Acesso em: 22 jul. 2014.
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tipos de mulher, muito menos sugerir uma qualificação (ou distinção) onde
se pudesse deduzir que uma seria melhor (ou “mais” mulher) que a outra.
A partir desse corte metodológico tem-se: a mulher como conceito já
culturalmente construído a partir da ciência biológica, ou seja, aquela
identificada pela genitália de nascimento (vagina) e por seus cromossomos
(xx). A mulher travesti, que para fins desta discussão será entendida como
aquela que irá alterar (definitivamente ou provisoriamente) o seu corpo,
suas vestimentas e seu comportamento social de forma a obter
características representadas socialmente como do universo feminino e
mesmo ser identificada visualmente como uma mulher. Desta forma a
travesti é aquela que
promove modificações nas formas de seu corpo visando deixá-lo
o mais parecido possível com o das mulheres; vestem-se e vivem
cotidianamente como pessoas pertencentes ao gênero feminino
sem, no entanto, desejar explicitamente recorrer a cirurgia de
transgenitalização para retirar o pênis (Benedetti apud Carrieri,
Souza & Aguiar, 2013, p. 81).
Já as mulheres transexuais são aquelas que abandonam o sexo
original (pênis) e realizam a cirurgia de transgenitalização, são
as que nascem em um sexo, mas que se identificam como
membro do sexo oposto, tomam hormônios e submetem-se a
intervenções cirúrgicas para remodelar a genitália (Namaste apud
Carrieri, Souza & Aguiar, 2013, p. 81). As mulheres transexuais
reivindicam a cirurgia de mudança de sexo como condição sine
qua non da sua transformação, sem a qual permaneceriam em
sofrimento e desajuste subjetivo e social (Benedetti apud Carrieri;
Souza; Aguiar, 2013, p. 81).
Outra consideração importante a se fazer é que, nesse trabalho,
desconsiderou-se o desejo/sexualidade das mulheres, sejam as biológicas,
as travestis ou as transexuais, uma vez que não é objetivo desse estudo
relacionar o desejo sexual à questão da mulher. O que está sendo discutido
é a LMP e a possibilidade de sua aplicabilidade para os casos de violência
doméstica e ou familiar, independente da genitália, tal como se observa no
parágrafo único do artigo 5º da LMP, “as relações pessoais enunciadas
neste artigo independem de orientação sexual” (Brasil, 1998, sp).
A discussão sobre o tema não se pode restringir a conceitos somente,
mas principalmente na inclusão desses grupos na sociedade de forma geral,
na quebra de preconceitos e na liberdade das pessoas viverem sem anular
sua individualidade em favorecimento de uma falsa tranquilidade com o
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ambiente social a sua volta. O tema só será extinto quando a violência não
mais for algo já internalizado e que se perpetua culturalmente através das
gerações como a imposição do forte sobre o fraco, do rico sobre o pobre,
do homem sobre a mulher, do masculino sobre o feminino e o respeito ao
outro for algo “natural”.
Por fim, intencionando-se consubstanciar a discussão, transcreve-se
o discurso extraído de uma publicação da página de internet “Travesti
Reflexiva”11 (2014) onde, a administradora do sítio, ao ser questionada se
já havia mudado de sexo, responde:
Muita gente me pergunta: "Sofia, você já mudou de sexo?" Pra
sanar as dúvidas... Eu já mudei de sexo. Na realidade, terceiros
mudaram o meu sexo no dia que eu nasci, eu não fui consultada.
Nasci menina, mas me designaram menino. Ocorreu uma série de
mudanças de sexo nesse dia, primeiro teve a verbal, o médico
comunicou que eu era um menino por causa de um pênis... E com
isso, teve a mental, os meus pais construíram uma teia de
significados masculinos após essa notícia. Depois teve a escrita,
algum funcionário anotou que eu era um menino... Alguns dias
depois, teve a institucional, a receita federal me intitulou "Sexo:
Masculino" e com tudo isso, eu havia sofrido a minha primeira
metamorfose compulsória logo no primeiro mês de vida. Se
alguém tivesse esperado pra me perguntar, eu não teria dito "Sou
menino". Só eu poderia responder essa pergunta.
4. O RECONHECIMENTO BRASILEIRO DOS DIREITOS DE
TODOS E TODAS À IGUALDADE, INDEPENDENTEMENTE
DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE
GÊNERO
O Ministro Antonio de Aguiar Patriota, em seu discurso no ano de 2013,
durante o lançamento do Sistema Nacional de Promoção de Direitos e
Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transgêneros declarou que “de forma consistente, o Brasil tem contribuído
para o reconhecimento internacional dos direitos de todos e todas à
igualdade, independentemente de sua orientação sexual e identidade de
gênero”, conforme transcrito no sítio do Ministério das Relações
Exteriores12. No seu pronunciamento, também relacionou diversas ações
11 Disponível em: <https://www.facebook.com/TReflexiva?fref=ts>. Acesso em: 20 jul. 2014.
12 Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-
e-outras-comunicacoes/ministro-estado-relacoes-exteriores/discurso-do-ministro-antonio-de-
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que endossavam sua afirmação como a proposta realizada pelo Brasil, em
2003, à antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU de uma resolução
sobre o tema, então intitulada "Direitos Humanos e Orientação Sexual".
Que em 2008, durante as comemorações do 60º Aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o Brasil, junto com outros 66 países,
apresentou ao plenário da Assembleia Geral da ONU a "Declaração sobre
Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero" e entre
outras atuações, copatrocinou a resolução 17/19, intitulada Human rights,
sexual orientation and gender identity aprovada durante a durante a 17ª
Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU no ano de 2011.
Além dessas ações, citou que em 2007, Brasil, Argentina e Uruguai,
juntamente com organizações da sociedade civil, promoveram o
lançamento, na sede das Nações Unidas, dos Princípios de Yogyakarta. A
partir da crença da integralidade que todos os seres humanos nascem livres
e iguais em dignidade e direitos, mas que grande parte desses direitos ainda
são violados, e dentro desse rol de violações destacam-se os abusos e as
discriminações sofridas em decorrência da orientação sexual e identidade
de gênero, a fim de sanar, ou pelo menos minimizar essas violações, surgiu
um movimento internacional que buscou junto às legislações
internacionais, princípios, projetos e programas voltados à equivalência de
direitos com atenção voltada à diversidade de orientações e identidades
sexuais. O constatado foi o grande atraso dos países em relação a esse
tema, quase a totalidade das nações não apresentava sequer estudos ou
estatísticas específicas, e as que apresentavam uma atenção especial,
apresentavam-na de forma desconexa.
Com o propósito de enfrentar as deficiências encontradas, um grupo
de especialistas em direitos humanos, sem a participação de Estados, cria
em 2006 uma série de princípios – os Princípios de Yogyakarta. Em suma,
são 29 princípios vinculantes que tratam de um amplo espectro de normas
de direitos humanos e de sua aplicação a questões de orientação sexual e
identidade de gênero que devem ser seguidas por todas as nações.
Diante do rol de direitos prescritos no documento, destacam-se:
Princípio 1: Direito ao gozo universal dos direitos humanos.
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. Os seres humanos de todas as orientações sexuais e
identidades de gênero têm o direito de desfrutar plenamente de
aguiar-patriota-durante-o-lancamento-do-sistema-nacional-de-promocao-de-direitos-e-
enfrentamento-a-violencia-contra-lesbicas-gays-bissexuais-travestis-e-transgeneros>. Acesso
em: 22 jul. 2014.
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todos os direitos humanos. Princípio 2: Direito à igualdade e a
não-discriminação. Todas as pessoas têm o direito de desfrutar
de todos os direitos humanos livres de discriminação por sua
orientação sexual ou identidade de gênero. Todos e todas têm
direito à igualdade perante à lei e à proteção da lei sem qualquer
discriminação, seja ou não também afetado o gozo de outro
direito humano. A lei deve proibir qualquer dessas discriminações
e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra
qualquer uma dessas discriminações. A discriminação com base
na orientação sexual ou identidade gênero inclui qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na orientação
sexual ou identidade de gênero que tenha o objetivos ou efeito de
anular ou prejudicar a igualdade perante à lei ou proteção igual da
lei, ou o reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária,
de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Princípio 5: Direito à segurança pessoal. Toda pessoa,
independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero,
tem o direito à segurança pessoal e proteção do Estado contra a
violência ou dano corporal, infligido por funcionários
governamentais ou qualquer indivíduo ou grupo.
A partir dos Princípios de Yogyakarta, o caso concreto, motivador
desse estudo, apresenta-se como um verdadeiro fato violador do documento
em que o Brasil é signatário. A recusa do atendimento à mulher transexual
na DEAM vai de encontro a todos os esforços empenhados na consolidação
do direito individual à identidade de gênero, compreendida como
a profundamente sentida experiência interna e individual do
gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo
atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que
pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou
função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras
expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e
maneirismos (Princípios de Yogyakarta, 2006, p.7).
A mulher transexual que relatou13 sua experiência encontrou-se, no
mínimo, em duas situações de violência. A primeira, aquela cujo autor foi
seu companheiro – a violência doméstica; a segunda pelo Estado, que por
meio de seu agente público, não a reconheceu como mulher e negou-lhe
atendimento na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.
13 Relato realizado durante evento na faculdade MULTIVIX na cidade de Vitória em 2014.
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5. O COMPROMISSO BRASILEIRO DE COMBATER A
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Conforme a publicação “Instrumentos Internacionais de Direitos das
Mulheres” da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2006, p.9),
o Brasil é signatário de todos os acordos internacionais que asseguram de
forma direta ou indireta os direitos humanos das mulheres bem como a
eliminação de todas as formas de discriminação e violência baseadas no
gênero. Desses, destacam-se a Convenção sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979), a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), a Declaração de Pequim
(1995) e a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
(CIPD), mais conhecida como Conferência do Cairo (1994).
Entre as ações governamentais direcionadas a combater a violência
contra a mulher, uma das primeiras foi a criação das Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM’s), ainda na década de
1980. “Foi criada com o objetivo de assegurar atendimento digno à
população feminina, vítima de violência doméstica e familiar. O serviço é
oferecido por meio das atividades de investigação, prevenção e repressão
aos delitos praticados contra a mulher”, conforme apresentado no sítio
Portal do Governo do Estado do Espírito Santo14. Porém, os números da
violência, desde o início de suas atividades até a atualidade, demonstram
que seu objetivo, até então, não foi alcançado.
Em 2006, tem-se outro importante marco brasileiro no combate à
violência contra a mulher, a edição da LMP, que
cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8o do artigo 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências
(Brasil, 2006).
A partir das determinações da LMP, alguns instrumentos foram
reestruturados e outros foram criados compondo a Rede de Atendimento às
14 Disponível em: <http://www.es.gov.br/Cidadao/paginas/mulher_delegacia_direitos.aspx>.
Acesso em: 21 jul. 2014.
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Mulheres em Situação de Violência que reúne ações e serviços das áreas da
assistência social, justiça, segurança pública e saúde, integrando a Rede de
Enfrentamento, ao contemplar o eixo de assistência previsto na Política
Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Entre as
instituições e serviços cadastrados estão: Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAMs); Centros de Referência de Atendimento à
Mulher (CRAMs); Casas Abrigo; Centros de Referência da Assistência
Social (CRAS); Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; Órgãos da Defensoria Pública; Serviços de Saúde Especializados
para o Atendimento dos Casos de Violência Contra a Mulher.
Dentre aqueles que foram reestruturados, encontram-se as DEAM’S.
Conforme apresentado no sítio Compromisso e Atitude, objetivando uma
atualização do atendimento nas DEAM’s com o determinado pela LMP, o
governo federal revisou, em 2010, a Norma Técnica de Padronização das
Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAMs)15,
reforçando a importância destes equipamentos como espaços
públicos para enfrentamento da violência contra a mulher e
atualiza o seu funcionamento, conforme determina a referida lei e
os tratados e convenções internacionais dos quais o Estado
brasileiro é signatário, entre os quais a Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de
Belém do Pará, 1994).
No Brasil, nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010, foram
assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última
década (2000-2010). O número de mortes nesse período passou de 1.353
para 4.465, que representa um aumento de 230%, mais que triplicando o
quantitativo de mulheres vítimas de assassinato no país, posicionando o
Brasil, entre 84 países, em 7º colocado no ranking de feminicídios de
acordo com o Mapa da Violência 2012 (Waiselfisz, 2012).
O relatório da pesquisa “Instituto Avon/Data Popular – Percepções
dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher de 2013” aponta
que, desde a sanção da LMP, a Central de Atendimento à Mulher atendeu
três milhões de denúncias, mas estima-se que mais de 13 milhões e 500 mil
brasileiras já sofreram algum tipo de agressão de um homem, sendo que
15 Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres.
Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/norma-tecnica-de-padronizacao-das-
delegacias-especializadas-de-atendimento-as-mulheres/?print=1>. Acesso em: 22 jul. 2014.
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31% destas mulheres ainda convivem com o agressor e 14% continuam a
sofrer violências. Isso significa que 700 mil brasileiras são alvo de
agressões cotidianamente.
É importante destacar que esses valores representam a violência
sofrida pelas mulheres “biológicas”, não sendo encontradas estatísticas
sobre essa forma de agressão contra as mulheres travestis e as mulheres
transexuais. Identifica-se, assim, outra violência a que as mulheres travestis
e transexuais são submetidas, negando-lhes, inclusive, a visibilidade
necessária para que medidas específicas e efetivas sejam tomadas para
promover a sua proteção.
Uma vez que o Brasil promove, até internacionalmente, o
reconhecimento da identidade de gênero, deve garantir, prioritariamente,
que suas instituições e seus agentes públicos sejam ativos promotores, na
realidade social, desse preceito, sendo contraditória e violadora de direitos
qualquer recusa de tutela, que normalmente é concedida às mulheres
biológicas, às mulheres travestis e transexuais, seja o atendimento nas
DEAM’s, nos Centros de Referência de Atendimento à Mulher, o amparo
pela LMP, a possibilidade de acolhimento nas Casas Abrigo ou qualquer
outro mecanismos de proteção existente.
A realização plena do direito à identidade de gênero pressupõe o
exercício de todos os direitos e deveres relacionados não apenas ao
indivíduo, mas também ao gênero que se identifica. Sempre que houver no
ordenamento jurídico especificidades relacionadas ao gênero, essas devem
alcançar todos e todas que se sentem pertencentes aquele gênero.
6. O DIREITO, SUAS SIGNIFICAÇÕES E A JURISPRUDÊNCIA
Em uma leitura da Constituição da República Federativa do Brasil, ou de
qualquer outro texto legal nacional onde se encontra a palavra “mulher”,
será constatado que, em momento algum, será encontrado sua
definição/conceito. É certo que, historicamente, foi consolidada a
significação da mulher biológica, mas isso não se traduz na certeza que
essa seja a única possível ou que atenda, plenamente, às necessidades da
sociedade contemporânea nacional.
Se, por um lado, o Direito pode ser um instrumento de manutenção
do status quo, é urgente que ele, cada vez mais, seja um instrumento de
transformação social, de construção da autonomia e cidadania da sociedade
como um todo, principalmente, daqueles em situação de vulnerabilidade
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social (Montoro apud Rocha, 2012), promovendo, verdadeiramente, uma
justiça social. E, é esse contexto um dos que possibilita sua mudança, seja
por meio do processo legislativo (edição e revogação de leis), seja através
do poder judiciário (sentenças, acórdãos, súmulas vinculantes, decisões
interpretativas, entre outros).
Essa expressão do Direito pode ser verificada, entre tantas outras, nas
ressignificações ocorridas nos conceitos de família, ao longo da história
brasileira, buscando uma adequação do mundo do dever-ser à realidade
social. Se família já foi compreendida apenas como o núcleo formado a
partir do casamento (em um primeiro momento apenas o religioso,
posteriormente aceito o civil) monogâmico entre homem e mulher e seus
filhos “legítimos”, a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 trouxe mais dois novos modelos de família: a união estável e a
monoparental. Em 2011, o Superior Tribunal Federal, ao reconhecer a
união estável homoafetiva nos julgamentos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 132, introduziu no Direito outro modelo de
família, estendendo a essas relações a mesma proteção destinada à união
estável prevista no artigo 226, §3º da Constituição da República Federativa
do Brasil, e no artigo 1723 do Código Civil (Miranda, 2011), sendo uma
das sustentações do Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto que “a
união homoafetiva estável no tempo e pública é hoje uma realidade, tanto
que, no último senso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) apurou a existência de 60 mil casais em união homoafetiva no
Brasil”, conforme o Supremo Tribunal Federal16. O referido argumento
baseia-se, inegavelmente, na constante necessidade de atualização do
Direito em face às novas demandas sociais. Cabe ressaltar que o exemplo
citado não é exceção, essa dinâmica é característica essencial do Direito,
possibilitando sua renovação e sua manutenção ao longo do tempo.
As referidas decisões, devido à natureza das ações e à competência
legal do tribunal que as julgou, foram proferidas com eficácia vinculante à
Administração Pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário. Decisão
semelhante ainda se aguarda do Supremo Tribunal Federal garantindo
igualdade de direitos e deveres a todas as mulheres, independente de serem
biológicas, mulheres transexuais ou mulheres travestis.
16 Ministro Ricardo Lewandowski inclui união homoafetiva no conceito de família. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178876>. Acesso
em: 23 jul. 2014.
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Entretanto, uma jurisprudência começa a se formar, mesmo que de
forma modesta, como se pode constatar no julgamento do processo nº
201103873908, da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis, Tribunal de
Justiça do Estado de Goiás, onde a juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães,
em 2011, proferiu favorável a aplicação da LMP no caso de Alexandre
Roberto Kley vítima de violência doméstica, que embora fizera a cirurgia
de mudança de sexo há mais de 17 anos, ainda mantinha seu nome de
nascimento. Segundo a juíza, tal condição não a excluiria da proteção
decorrente da LMP. Durante toda a sentença a juíza enfatizou o fato de a
vítima ser reconhecida perante a sociedade como mulher, e se sentir como
tal. Conclui afirmando:
A mulher Alexandre Roberto Kley, independentemente de sua
classe social, de sua raça, de sua orientação sexual, renda, cultura,
nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas
as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar
sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual
e social17 (Magalhães, 2011, p.10).
Identifica-se uma grande semelhança entre esse caso e o ocorrido na
cidade de Vitória (ES), mas com resultados completamente diferentes. Em
ambos, embora as mulheres agredidas tivessem realizado a “mudança de
sexo”, ainda constavam no documento civil o nome e o sexo registrados no
nascimento. No fato julgado em Anápolis, devido a sua profunda percepção
sobre a atual realidade social e os fins a que se destina o Direito, a juíza foi
capaz de tomar medidas efetivas que contemplassem tanto o
reconhecimento da identidade de gênero quanto a proteção à mulher
agredida. Em Vitória (ES), ao negar atendimento à mulher transexual na
DEAM o agente público foi, em realidade, autor de nova violência àquela
cidadã.
Recentemente, em 2013, com base no entendimento que
[...] a identificação sexual é um estado mental que preexiste à
nova forma física resultante da cirurgia. Não permitir a mudança
registral de sexo com base em uma condicionante meramente
cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual
às amarras de uma lógica formal que não permite a realização
17 Decisão do processo nº 201103873908. 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis. Tribunal
de Justiça do Estado de Goiás. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/homologacao-
flagrante-resolucao-cnj.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2014.
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daquele como ser humano [...]18 (17ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, 2013, p.10),
a 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a
sentença do juízo de primeiro grau e, por unanimidade, deu provimento ao
recurso da autora que requeria autorização para alterar seu nome civil e
adotar o sexo feminino, independentemente de realização de cirurgia de
transgenitalização uma vez que optou por não realizá-la devido os riscos
envolvidos no procedimento. Segundo o relator do acórdão,
Desembargador Edson Aguiar de Vasconcelos,
não permitir a mudança de sexo no registro civil com base em
condicionante meramente cirúrgica equivale a prender nas
amarras de uma lógica formal a liberdade que clama o transexual
de ser e de realizar-se como ser humano, constituindo mais um
obstáculo a que o indivíduo venha a ser o que sempre foi, sendo
ainda uma resistência ao convite ético feito pelo poeta grego
Píndaro: “torna-te o que já és, aprendendo com a experiência da
vida” 19 (17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, 2013, p.1).
Também sobre a temática, tramita no Superior Tribunal de Justiça a
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275 ajuizada pela Procuradoria
Geral da República em 2009 visando
a que seja proferida decisão de interpretação conforme a
Constituição do art. 58 da Lei 6.015/7320, na redação que lhe foi
conferida pela Lei 9.708/98, reconhecendo o direito dos
transexuais, que assim o desejarem, à substituição de prenome e
sexo no registro civil, independentemente da cirurgia de
transgenitalização21.
18 Acórdão da Apelação Cível nº 0013986-23.2013.8.19.0208. Décima Sétima Câmara Cível.
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://s.conjur.com.br/dl/alteracao-nome-nao-condicionada-mudanca.pdf>. Acesso em: 24 jul.
2014.
19 Acórdão da Apelação Cível nº 0013986-23.2013.8.19.0208. Décima Sétima Câmara Cível.
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://s.conjur.com.br/dl/alteracao-nome-nao-condicionada-mudanca.pdf>. Acesso em: 24 jul.
2014.
20 Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências.
21 ADI 4275. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 24 jul. 2014.
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Na seara do Direito Penal, o Projeto de Lei do Senado nº 236 de
201222, que intenciona reformar o Código Penal Brasileiro, prevê a inclusão
da identidade de gênero em vários dispositivos, como no artigo 121 que
prevê o crime de homicídio, inserindo na forma qualificada (§1º, inciso I)
se o crime for cometido por preconceito de identidade de gênero.
Embora de forma lenta, mudanças podem ser observadas no Direito.
Deve ser recorrente a afirmação que nunca bastará, como direito do
indivíduo à identidade de gênero, apenas a alteração de seu registro civil
para ser “reconhecida formalmente” como mulher. A diretriz 7, do
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) 23 estabelece a
“Garantia dos Direitos Humanos de forma universal, indivisível e
interdependente, assegurando a cidadania plena”. A plena cidadania,
princípio fundamental da Carta Magna, das mulheres travestis e das
mulheres transexuais somente será realizada quando elas forem
reconhecidas, apenas, como mulheres, e puderem assumir todas as
obrigações e usufruir todos os direitos que o ordenamento jurídico
brasileiro reserva às mulheres.
Torna-se imperioso, portanto, diante da ausência de uma restrição
literal do texto ao conceito de mulher (visto que em nenhum momento se
aborda o aspecto biológico), bem como visando a atender a finalidade
social a que o Direito se destina – como assevera Karl Larenz (1997,
p.531), a teleologia da lei deve ser considerada em sentido amplo,
abarcando os propósitos e as decisões conscientemente tomadas pelo
legislador, bem como os fins objetivos do Direito e princípios jurídicos
gerais – cabe à comunidade jurídica promover a ressignificação de seus
conceitos, em especial o conceito de mulher que se impõe na realidade
social contemporânea.
22 Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2013/08/veja-a-integra-do-
relatorio>. Acesso em 24 jul. 2014.
23 O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) foi instituído pelo Decreto nº
7.037, de 21 de Dezembro de 2009 e Atualizado pelo Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010.
“O PNDH-3 representa um verdadeiro roteiro para seguirmos consolidando os alicerces desse
edifício democrático: diálogo permanente entre Estado e sociedade civil; transparência em todas
as esferas de governo; primazia dos Direitos Humanos nas políticas internas e nas relações
internacionais; caráter laico do Estado; fortalecimento do pacto federativo; universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e
ambientais; opção clara pelo desenvolvimento sustentável; respeito à diversidade; combate às
desigualdades; erradicação da fome e da extrema pobreza”. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2014.
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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As sociedades e suas legislações não evoluem na mesma velocidade. O
Direito sempre está e (provavelmente) estará atrasado em relação ao
dinamismo social como uma consequência dele ser o produto de uma
comunidade específica (a dos juristas e daqueles que podem de alguma
maneira influenciá-los) e não de toda a sociedade (Bourdieu, 1986).
O caso inicialmente relatado, embora viole, entre tantos outros, o
princípio basilar constitucional da dignidade da pessoa humana, ainda não
pode ser considerado como uma exceção, mas reproduz, essencialmente, o
comportamento diário de agentes públicos no atendimento às mulheres que
não correspondem ao “modelo padrão biológico”, como também pode ser
observado na maioria dos julgados24 relacionados ao tema. Corroborando
este fato, o relatório de Santos e Pompeu (2014) baseado em pesquisa
etnográfica em delegacias de atendimento à mulher da Grande Vitória
aponta que o não atendimento de mulheres que se enquadrem no “padrão
biológico” é uma regra nos procedimentos policiais. Ademais, o mesmo
relatório aponta que mesmo algumas mulheres que não se enquadram no
“perfil” da “boa mãe” ou da “mulher direita” de família também são muitas
vezes desestimuladas a noticiar crimes dos quais são vítimas.
O presente escrito não pretende esgotar o assunto, mas fomentar a
discussão sobre crise das referências tradicionais, no caso desse trabalho,
sobre identidade de gênero. Promover o reconhecimento da identidade de
gênero, mas negar seu pleno exercício é sujeitar à violência,
cotidianamente, não apenas as mulheres travestis e as mulheres transexuais,
mas todos aqueles e aquelas que fazem parte do seu convívio.
Se, ao longo de sua existência, o Direito não tem se demonstrado
propulsor de grandes mudanças sociais, faz-se necessário, atualmente, que
seus operadores busquem mecanismos para diminuir a lacuna entre a
realidade social apresentada e o direito positivado nos códigos,
contribuindo com uma reconstrução da dogmática jurídica e possibilitando
o Direito assumir, definitivamente, a sua função de promoção, mais do que
24 A Diretriz 17 – Promoção de sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, para o
conhecimento, a garantia e a defesa dos direitos do Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH-3), recomenda ao Poder Judiciário, entre outras ações programáticas, “a promoção de
cursos regulares de formação dos servidores da Justiça em Direitos Humanos, com recortes de
gênero e raça, que contemplem as demandas específicas dos segmentos sociais em situação de
vulnerabilidade ou historicamente vulnerabilizados”. Disponível em: <
http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2014.
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a de sanção. A interpretação dos dispositivos infraconstitucionais [e
inclusive da própria Constituição, pelo STF] “norteada” pelos conteúdos
sociais, objetivos, valores e princípios constitucionais faz do Direito um
instrumento de verdadeira transformação da realidade social (Radaelli,
2008, p.68).
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