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Publicado primeiramente em Juiz de Fora (MG) na Revista Ética e Filosofia Política, vol. 3, nº 1
(janeiro-junho de 1998), pp. 7-25 (publicado, em 2000, na Suma Sinóptica do Colóquio Filosófico
II da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, pp. 42-62).
ESTÉTICA E ÉTICA EM LÉVINAS:
Da realidade e sua sombra à ética como filosofia primeira*
(Aesthetics and Ethics in Levinas: From reality and its shadow to ethics as first philosophy)
Theresa Calvet de Magalhães
RESUMO: Em um ensaio pouco comentado, “La réalité et son ombre” (1948), Lévinas afirma que a arte
não conhece um tipo particular de realidade mas é o próprio evento do obscurecimento.
Considerada como uma modalidade do il y a, ou como ostensão da essência, a arte faz parte da
própria ordem ontológica. Ora, antes da cultura e da estética, escreve Lévinas, a significação
situa-se na ética. A ética é a própria origem da significação. Ao retomar o argumento de
Lévinas, este texto mostra que a metafísica não é considerada como ontologia, mas precede a
ontologia (e a critica). ABSTRACT: In “La réalité et son ombre” (1948), Levinas underlines that art does not know a particular
type of reality: it is the very event of obscuration. As a modality of the there is, art belongs to the
order of ontology. But before culture and esthetics, writes Levinas, signification, or meaning, is
ethical. Ethics is, then, the very origin of meaning. Retracing his whole argument, this paper
aims to present Levinas' view of metaphysics - metaphysics is not ontology, but precedes
ontology and criticizes it.
Os primeiros conceitos (como também as primeiras metáforas) próprios ao
pensamento de Emmanuel Lévinas (1906-1995) foram elaborados, sob a pressão dos
acontecimentos políticos contemporâneos, através do tema da experiência de uma perda
de sentido ou da experiência do não-sentido (non-sens).1 Perda de sentido, não-sentido,
que Lévinas fixou, ao abandonar o clima da filosofia de Martin Heidegger, com a sua
noção do “il y a” (“há”): “Alguma coisa que não é nem sujeito nem substantivo”, como
um “campo de forças” anônimo.2
* Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Belo Horizonte, a 17 de abril de 1998, para o Grupo
de Pesquisa “Hermenêutica da Arte” do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG. Uma versão
mais elaborada foi apresentada no Ciclo de Debates em torno da problemática Arte e Ética, no Teatro
Marília, em Belo Horizonte, a 10 de agosto de 1998.
1. Para Hannah Arendt, é justamente na perda simultânea do mundo e do sentido, na experiência do
desamparo ou do abandono, que reside a origem do totalitarismo (ver H. Arendt, The Origins of
Totalitarianism [1951]. New York: Harcourt, Brace & World, 1966, pp. 460-479).
2. E. Lévinas, Le temps et l'autre (1946-1947), Paris: PUF, 1983, p. 26. Lévinas relaciona aqui a noção do
il y a com um grande tema da filosofia antiga, não propriamente a imagem do rio, “onde, segundo
Heráclito, não nos banhamos duas vezes”, mas a sua versão no Crátilo: um rio, onde “não nos
2
Esse conceito não se confunde com o “es gibt” heideggeriano ou com a
significação dada a essa expressão pelo poeta Guillaume Apollinaire [1880-1918] em Il y a
... (coletânea de poemas inéditos, publicada em 1925 e reeditada em 1947), ou seja, não se
confunde com a alegria do que existe, com a abundância, ou com a generosidade do “es
gibt”.3 Lévinas acentua sempre a impessoalidade do il y a: “il y a” (“há”), forma impessoal
como “il pleut” (“chove”), ou “il fait nuit” (“anoitece”). Em De l'existence à l'existant
(obra redigida durante a guerra e só publicada em 1947)4, ele tenta descrever o evento
impessoal do il y a, o anonimato do il y a (“um ruído que volta após toda negação desse
ruído”), e descreve então essa situação paradoxal (“uma situação que é a exclusão
absoluta da luz”) como horror (“horror da noite sem saída”, “o silêncio e o horror das
trevas”).5 Um horror que permite imaginar “o vazio absoluto (...) antes da criação” e nos
leva a pensar esse instante originário do ser que, na Bíblia, precede a palavra e a luz.
Lévinas opõe aqui o horror do il y a, “o silêncio e o horror das trevas”, à angústia
heideggeriana.6
Shakespeare, em Macbeth, Racine, em Phèdre, Blanchot, em Thomas l' Obscur,
nos fizeram sentir esse horror. É esse horror que constitui o mais profundo do trágico
shakespeareano: “A fatalidade da tragédia antiga torna-se a fatalidade do ser
irremissível”.7 Em Le temps et l'autre, Lévinas afirma que “toda a filosofia”, pelo menos é
o que lhe parece por vezes, “é apenas uma meditação de Shakespeare”.8
banhamos nem sequer uma vez; onde não pode se constituir a própria fixidez da unidade, forma de todo
existente; um rio, onde desaparece o último elemento de fixidez em relação ao qual o devir é
compreendido” (E. Lévinas, Le temps et l'autre, p. 28).
3. Ver E. Pontremoli, “Sur l'“il y a” qui n'est pas “es gibt”“, Études Phénoménologiques Nos 13-14 (1991),
pp. 165-187.
4. E. Lévinas, De l'existence à l'existant. Paris: Editions de la Revue Fontaine, 1947 (Paris: Vrin, 1977;
1981; 1993).
5. E. Lévinas, De l'existence à l'existant, p. 102. Essa descrição do ser em seu anonimato está muito
próxima dos temas de Maurice Blanchot (da noção de Neutro, do horror da noite, do medo do ser). Em
L'Ecriture du désastre (1980), Blanchot chama a isso desastre. Ver F. Collin, Maurice Blanchot et la
question de l'écriture. Paris: Gallimard, 1971; “La peur: Emmanuel Lévinas et Maurice Blanchot”,
Cahier de l'Herne. Emmanuel Lévinas. Paris: Ed. de l'Herne, 1991, pp. 313-327.
6. E. Lévinas, Éthique et Infini, Dialogues avec Philippe Nemo. Paris: Le Livre de Poche (Fayard-France
Culture), 1982, p. 38. Para a análise da angústia em Heidegger, ver J. Taminiaux, “La phénoménologie
de l'angoisse dans Sein und Zeit”, Figures de la Finitude (Études d'Anthropologie philosophique, vol.
3). Ghislaine Florival (ed.). Louvain-la-Neuve: Librairie Peeters / Paris: Vrin, 1988, pp. 1-31.
7. E. Lévinas, De l'existence à l'existant, p. 101
8. E. Lévinas, Le temps et l'autre, p. 60.
3
A arte (toda obra de arte) é sempre considerada por Lévinas, pelo menos nos seus
escritos logo após a Segunda Guerra Mundial, como uma modalidade do il y a. As suas
posições no que diz respeito à arte são extremas e foram apresentadas, em 1948, com uma
certa provocação, na revista Les Temps Modernes9, num ensaio pouco conhecido,
intitulado “La réalité et son ombre”.10
Ora, tanto pela unilateralidade das teses propostas
como pela presença de noções como as de passividade, de sensibilidade, de
exterioridade, as reflexões de Lévinas sobre a arte, apresentadas nesse texto, são
fundamentais para compreender seu pensamento. As noções de passividade, de
sensibilidade, de exterioridade acabam sendo os conceitos do pensamento de Lévinas.
Na primeira divisão desse ensaio, intitulada “Art et Critique” [Arte e Crítica] (pp.
771-773), Lévinas se posiciona contra a tese, geralmente admitida como um dogma, de
que a função da arte consiste em expressar e de que a expressão artística se apoia em um
conhecimento - que o artista (e até mesmo o pintor, até mesmo o músico) diz, que o
artista “diz o inefável” (p. 771). Segundo essa tese, a obra de arte prolongaria e
ultrapassaria a percepção ordinária: é justamente o que esta percepção torna banal (e
aquilo que ela não capta) que a obra de arte (coincidindo com a intuição metafísica)
captaria em sua essência irredutível. A obra de arte, mais real que a realidade, atestaria a
dignidade da imaginação artística. O realismo só é, portanto, negado em nome de um
realismo superior, ou seja, o realismo conservaria aqui todo o seu prestígio:
“Surrealismo”, observava então Lévinas, “é um superlativo” (p. 771).
Ora, a própria crítica professa esse dogma. E a crítica parece assim viver uma vida
de parasita: “um fundo de realidade” – um fundo de realidade “inacessível à inteligência
conceitual”– “torna-se sua presa”. Ou, então, a crítica ocupa o lugar da arte (“se substitui
à arte”). Mas, perguntava Lévinas: “Interpretar Mallarmé não é trair Mallarmé? Interpretar
Mallarmé fielmente, não é suprimir sua obra?”. A interpretação fiel é supressão: “Dizer
9. O que permite talvez compreender porque a revista Les Temps Modernes decidiu introduzir esse ensaio
com uma nota editorial (escrita por Maurice Merleau-Ponty).
10. E. Lévinas, “La réalité et son ombre”, Les Temps Modernes, n. 38 (1948), pp. 771-789; reimpresso in
Revue des Sciences Humaines, n. 185 (1982), pp. 103-117. Ver G. Franck, “Estetica e ontologia. Il
problema dell'arte nel pensiero di E. Lévinas”, Aut aut, Nos 209-210 (1985), pp. 35-59; F. Armengaud,
“Éthique et esthétique. De l'ombre à l'oblitération”, Cahier de l'Herne. Emmanuel Lévinas, Paris: Ed. de
l'Herne, 1991, pp. 499-507.
4
claramente o que ele [um artista] diz, de modo obscuro, é simplesmente revelar o quanto é
vão o seu falar obscuro” (p. 771).
Lévinas faz aqui uma distinção entre a crítica como função independente da
própria arte –a crítica especializada, que se manifesta como artigo de jornal ou de revista,
ou como livro– e a crítica como comportamento mesmo do público. Não contente
simplesmente em absorver-se no prazer estético, o público sente uma necessidade
irresistível de falar. Não podemos contemplar em silêncio, insistia Lévinas: o que justifica
o crítico é justamente que há algo a dizer, do lado do público. O crítico pode ser definido
então como “o homem que tem ainda algo a dizer quando tudo já foi dito; [alguém] que
pode dizer da obra outra coisa que essa obra” (p. 772). Uma outra coisa, não a “mesma
coisa” de modo diferente, ou a “mesma mensagem” de modo mais claro. E se é isso o que
o crítico faz, se ele tem ainda algo a dizer quando o próprio artista, por seu lado, “recusa-
se a dizer da obra outra coisa que não seja a própria obra”, cabe aqui perguntar “se,
verdadeiramente, o artista conhece e fala”. “Num prefácio ou num manifesto, certamente”,
mas o próprio artista, dizia Lévinas, “é então ele mesmo público” (p. 772).
Se a arte não fosse, originariamente, nem linguagem nem conhecimento, a crítica
estaria reabilitada: a crítica marcaria “a intervenção necessária da inteligência para integrar
na vida humana e no espírito a inumanidade e a inversão da arte” (p. 772). Ou seja, a
própria arte escaparia à inteligibilidade se não fosse falada, se não fosse sempre de novo
falada.
A tendência a captar o fenômeno artístico na literatura,“lá onde a palavra fornece a
matéria ao artista”, comentava Lévinas, pode talvez “explicar o dogma contemporâneo do
conhecimento através da arte”. As próprias noções de “arte-palavra” (art-parole) e de
“arte-conhecimento” (art-connaissance) introduzem o problema da arte engajada, da arte
politicamente engajada, o problema de uma literatura engajada (p. 772). Ora, segundo
Lévinas, a obra de arte é essencialmente acabada –em todos os sentidos desta palavra– e
esse acabamento “desengaja” a obra de todo engajamento. É necessário apenas, dizia ele,
concordar aqui quanto ao valor desse desengajamento e, em particular, quanto à sua
significação (p. 773).
5
O acabamento da obra não a coloca na “claridade”. O desengajamento do mundo,
na arte, não significa necessariamente ir além, comunicar com as ideias, compreender: a
função da arte não consistiria justamente em não compreender? Para Lévinas, é a
obscuridade que fornece à arte o seu próprio elemento e um acabamento sui generis,
estranho à dialética e à vida das ideias. E esse “comércio com o obscuro, como
acontecimento ontológico totalmente independente, não descreve”, perguntava Lévinas,
“categorias irredutíveis às do conhecimento?”. O que ele queria mostrar aqui, na arte, era
esse acontecimento ontológico. A arte não conhece um tipo particular de realidade, mas é
“o próprio evento do obscurecimento, (...) uma invasão da sombra” (p. 773). Se a
obscuridade é o elemento próprio da arte, podemos então falar de um desengajamento
aquém: a arte é refluxo em direção ao aquém e não pertence, portanto, nem à ordem da
revelação nem à ordem da criação (p. 773). Ou seja, o próprio movimento da arte é
considerado como um movimento de retorno ao il y a.11
Em 1948, Lévinas introduziu, assim, a ideia intempestiva de uma arte
“desengajada”. A obra não seria arte para ele se não tivesse essa estrutura formal de
acabamento. Um romance abandonado, um quadro inacabado, ou uma sinfonia incompleta
não podem então ser considerados como obras de arte? O acabamento da obra de arte
não se confunde com “a pura e simples interrupção que limita a linguagem, as obras da
natureza e as da indústria”. Lévinas afirma que o artista para porque a obra parece
saturada, porque ela recusa-se a receber algo mais: a obra acaba-se apesar das causas
materiais ou sociais de interrupção. A obra “não se dá para um começo de diálogo” (pp.
772-773) – o seu acabamento a subtrai à comunicação.12
Se Merleau-Ponty afirmou várias vezes, em trabalhos tão diversos como “Le doute
de Cézanne” (1945), “Le langage indirect et les voix du silence” (1952), L’oeil et l’esprit
11. Ver E. Lévinas, De l'existence à l'existant, pp. 83-92.
12. Mas, em 1949, ao comparar a obra dos pintores modernos, e em particular alguns quadros de Charles
Lapicque, com o procedimento das rasuras-bifurcações [biffures] de Michel Leiris, Lévinas comenta que
o inacabamento (e não o acabamento), “seria, paradoxalmente, a categoria fundamental da arte
moderna” (E. Lévinas, “La transcendance des mots. A propos des Biffures de Michel Leiris” [Les Temps
Modernes, n. 44 (1949), pp. 1090-1095], in Hors Sujet. Montpellier: Fata Morgana, 1987, p. 218).
6
(1961), uma proximidade e semelhança (um parentesco profundo) entre arte e filosofia13
,
Lévinas, ao insistir na especificidade da obra de arte, é mais sensível à distância entre arte
e filosofia.
Na segunda divisão deste ensaio, intitulada “L'imaginaire, le sensible, le musical”
[O imaginário, o sensível, o musical] (pp. 774-777), Lévinas apoia-se no próprio
procedimento da arte para afirmar que a arte não é nem “desinteresse” nem “liberdade” (a
alusão a Kant é óbvia). “O procedimento o mais elementar da arte”, dizia ele, “consiste em
substituir ao objeto sua imagem” (p. 774). Sua imagem e não seu conceito (o conceito
seria o objeto apreendido e, portanto, inteligível). O famoso “desinteresse” da visão
artística –uma alusão à concepção kantiana do belo– significa no fundo, e antes de tudo,
uma cegueira em relação aos conceitos e não um verdadeiro desinteresse (já que não
procede da liberdade). Em vez de nossa iniciativa, a imagem marca uma passividade
fundamental: não temos a imagem, é a imagem que nos possui. Esse possesso (o artista)
faz de todos nós possessos. Inspirado ou possesso, o artista escutaria uma musa – a
imagem é musical; ela nos possui numa passividade diretamente visível na magia do canto,
na magia da música, na magia da poesia (p. 774). Esse termo singular de magia,
introduzido pela própria estrutura da existência estética, é usado por Lévinas para
“concretizar a noção, um pouco gasta”, dizia ele, “de passividade” (p. 774).
Eficiente na imagem, a magia também se exerce, no registro temporal, através do
ritmo. O ritmo é a situação única em que não se pode falar de consentimento, de iniciativa,
de liberdade, porque nos capta (capta o sujeito), porque somos levados por ele. É isso
mesmo o enfeitiçamento da música (e da poesia): “um modo de ser ao qual não se aplicam
nem a forma de consciência (...), nem a forma do inconsciente (...). Sonho acordado” (p.
775). O sujeito é levado pelo ritmo: há, assim, no ritmo, algo como uma passagem do Soi
ao anonimato (e não o si-mesmo). O modo de relação ao il y a, determinado como
passividade, seria a tradução de uma exposição ao ser anônimo, que torna-se um
13. Para Merleau-Ponty a arte é, como a filosofia, expressão. E precisamente enquanto expressão, a arte
(assim como a filosofia) é interminável, essencialmente interminável - a expressão nunca está acabada.
Ver M. Chauí, “Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia”, Artepensamento. Adauto Novaes (org.). São
Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 467-492; E. Lévinas, “La signification et le sens”, Revue de
métaphysique et de morale 69 (1964), pp. 125-156 (reimpresso em Humanisme de l'autre homme
7
entrelaçamento com esse ser. Nessa reversão ao anonimato, a intimidade com o ser se
anuncia como perda da identidade pessoal, ou como a “extinção do sujeito” (p. 775).
Seria então mais correto falar em interesse a propósito da imagem: a imagem é
interessante, no sentido de “cativante”, de “envolvente” [entrainante]. Ou no sentido
etimológico: ser entre as coisas. “Entre as coisas”, distinto do “ser-no-mundo”
heideggeriano: o sujeito é, nessa situação única que o ritmo representa, “entre as coisas,
como coisa, como fazendo parte do espetáculo”. Trata-se de uma exterioridade total,
onde o sujeito ele mesmo é exterior a si (uma exterioridade do íntimo), e não apenas da
exterioridade de um corpo. A imagem e o ritmo induzem êxtases que são “exterioridade
do íntimo” (p. 775).14
Esse paradoxo fundamental do ritmo, “que descreve uma esfera
situada fora do consciente e do inconsciente e cujo papel foi mostrado pela etnografia em
todos os ritos de êxtase”, teria sido ignorado –e isso é espantoso, dizia Lévinas– pela
análise fenomenológica (p. 775).
O ritmo e o musical são considerados, aqui, como uma categoria estética geral.
Insistir na musicalidade de toda imagem é ver na imagem a sua separação do objeto, a sua
independência no que diz respeito à categoria de substância. E se a arte consiste em
substituir a imagem ao ser, então o elemento estético é, aliás de acordo com sua
etimologia (do grego aisthetikos, derivado de aisthanesthai “sentir”), sensação (p. 776).
Na arte, a sensação “retorna à impessoalidade de elemento”. O movimento da arte
consistiria, assim, em abandonar a percepção para reabilitar a sensação como uma função
própria (uma função de ritmo): “O conjunto de nosso mundo, com seus dados tanto
elementar como intelectualmente elaborados, pode nos tocar musicalmente, tornar-se
imagem” (p. 776). A imagem enquanto tal entra, portanto, em categorias originais.
Lévinas pode agora dizer que a “desencarnação da realidade pela imagem” não é
simplesmente uma diminuição de grau: “ela provém de uma dimensão ontológica que não
se estende entre nós e uma realidade que será apreendida, mas lá onde o comércio com a
realidade é um ritmo” (p. 777).
(1972), Paris: Le Livre de Poche, 1987, pp. 17-63; tradução de Pergentino S. Pivatto (coord.) et al.:
Humanismo do Outro Homem. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 19-80).
14. Ver também E. Lévinas, De l'existence à l'existant, pp. 83-92.
8
Ao contrário da fenomenologia da imagem, que insiste na sua transparência,
Lévinas acentua a sua opacidade, na terceira e importante divisão de seu ensaio, intitulada
“Ressemblance et Image” [Semelhança e Imagem] (pp. 777-781). Essa opacidade é
pressuposta pela semelhança que caracteriza a imagem. Não se trata aqui simplesmente de
uma volta à noção da imagem como uma realidade independente que é semelhante ao
objeto original. A semelhança pressupõe que o pensamento para ou detém-se sobre a
própria imagem e, por conseguinte, uma certa opacidade da imagem. Lévinas põe então a
semelhança como o próprio movimento que gera a imagem, e não como o resultado de
uma comparação entre a imagem e o original. Daí a ideia de que a realidade, pelo
movimento da semelhança, produz de certo modo sua imagem, suas imagens: “A realidade
não seria apenas o que ela é (...) mas também seu duplo, sua sombra, sua imagem” (p.
778). Lévinas defende aqui a tese de que a coisa é ela mesma e é sua imagem (uma pessoa
é o que ela é e é estranha a ela mesma) e de que há uma relação entre esses dois
momentos. A relação entre a coisa e sua imagem é a semelhança, compreendida
justamente como a produção dessa imagem.
A imagem, sugeria então Lévinas, é a alegoria do ser (o ser é aquilo que é e, ao
mesmo tempo, ele é sua própria imagem). O exemplo que ele apresenta é o da alegoria
exposta na fábula: os homens são vistos como esses animais (cuja opacidade detém o
pensamento) e não, ou não apenas, através dos animais (p. 778). A alegoria ofereceria,
assim, o “comércio ambíguo com a realidade onde esta não se refere a ela mesma, mas (...)
a sua sombra” (p. 779). Ao utilizar a imagem, a arte realiza essa alegoria.15
A imagem e a verdade são então duas possibilidades exatamente contemporâneas
do ser: o ser é o que é, ou seja, o que ele se desvela em sua verdade e, ao mesmo tempo,
ele é sua própria imagem. A noção de sombra da realidade permite a Lévinas situar a
15. Mas dizer que a imagem é alegoria não equivale a aventurar-se numa zona por assim dizer interdita,
já que a alegoria foi durante quase dois séculos condenada como uma aberração estética, como a antítese
da arte? Ver F. Collin, Maurice Blanchot et la question de l'écriture, pp. 160-189). Ver também a
doutrina benjaminiana da alegoria, no último capítulo do livro Origem do Drama Barroco Alemão (um
ensaio submetido em 1925 por Walter Benjamin, como dissertação de livre-docência, à Universidade de
Frankfurt -rejeitada não apenas pelo Departamento de Literatura Alemã mas pelo Departamento de
Estética-, e publicado em livro, três anos depois), São Paulo: Brasilense, 1984, pp. 181-258. Para uma
leitura da reabilitação da alegoria, em Benjamin, como uma reabilitação da temporalidade e da
historicidade, ver J.-M. Gagnebin, História e Narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva,
FAPESP / Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1994, pp. 37-62.
9
noção de semelhança na economia geral do ser. A semelhança não é considerada aqui
como “imitação” (não é mimesis) mas é a própria estrutura do sensível enquanto tal. O
sensível é o ser na medida em que é semelhante a si mesmo e em que lança uma sombra. E
o artista, na medida em que oferece uma espécie de paródia, uma caricatura, uma sombra
da criação, mover-se-ia num universo que precede o mundo da criação.
Mas dizer que a imagem é uma sombra do ser seria, por sua vez, apenas uma
metáfora se Lévinas não mostrasse onde se situa esse “aquém” que acaba de mencionar.
Ele apresenta, na quarta divisão deste ensaio, intitulada “L'entretemps” [O entre-tempo]
(pp. 781-786), uma noção que é crucial para a sua consideração da arte, a ideia de “entre-
tempo”. A arte como modalidade do il y a separa-se do tempo do mundo para imobilizar-
se no entre-tempo. Já não se trata de considerar a imagem como a caricatura, a alegoria ou
o pitoresco que a realidade carrega consigo, mas de desqualificar a imagem como ídolo. É
impossível esquecer aqui toda a alergia judaica à plasticidade enfeitiçadora da imagem. A
arte das belas formas (a arte dita clássica), na medida em que “corrige a caricatura do ser”,
não seria um contra-exemplo a essa tese que assimila imagem e caricatura? A beleza,
segundo Lévinas, “é o ser dissimulando sua caricatura, recobrindo ou absorvendo sua
sombra” (p. 781). Haveria, no entanto, um elemento insuperável de caricatura até mesmo
na mais perfeita imagem: “a caricatura insuperável da imagem a mais perfeita se manifesta
em sua estupidez de ídolo” (p. 781).
Dizer que a imagem é um ídolo seria então afirmar “que toda imagem é,
finalmente, plástica e que toda obra de arte é, finalmente, estátua” (pp. 781-782). Ou seja,
seria afirmar que toda imagem é “uma parada do tempo ou melhor seu atraso sobre ele-
mesmo”. A estátua (a imagem como ídolo) realiza, assim, “o paradoxo de um instante que
dura sem futuro” (p. 782). Lévinas não se refere apenas à duração da própria obra de arte
como objeto (à sua durabilidade), à permanência das obras de arte nos museus, mas à
duração no interior da vida da obra (“uma vida sem vida”), onde o instante dura
infinitamente: “(...) eternamente, a Gioconda sorrirá” (p. 782). O artista deu à obra uma
caricatura de vida, uma vida sem vida. Toda imagem, até mesmo a mais perfeita imagem, é
já caricatura (p. 783). A imagem como ídolo nos conduz à significação de seu caráter
irreal.
10
Lévinas considera o instante imóvel da estátua, “impotente para forçar o futuro”,
como o próprio destino:
“No instante da estátua –no seu futuro eternamente suspenso– o trágico –
simultaneidade da liberdade e da necessidade– pode realizar-se: o poder da
liberdade congela-se em impotência. E aqui mais uma vez, é conveniente
aproximar arte e sonho: o instante da estátua é o pesadelo” (p. 783).
Isso não significa que o artista representa seres prostrados pelo destino: “os seres
entram em seu destino porque são representados (...) – mas é justamente isso a obra de
arte, evento do obscurecimento do ser” (p. 783; grifos nossos). A arte é agora considerada
por Lévinas, na economia geral do ser, como “o movimento da queda aquém do tempo,
no destino” (p. 783).
Para Lévinas, o tempo aparentemente introduzido na imagem pelas artes não
plásticas (como a música, a literatura, o teatro e o cinema) não abala a fixidez da
imagem. Ele descreve então os personagens do romance como seres encarcerados, como
prisioneiros:
“A sua história nunca termina, ela dura ainda, mas não avança. O romance
encerra os seres em um destino apesar de sua liberdade. (...) Os
acontecimentos narrados formam uma situação – aparentam-se com um ideal
plástico. O mito – é isso: a plasticidade de uma estória” (p. 784).
O ídolo constitui, portanto, a perfeição da imagem, o seu acabamento. Lévinas é
particularmente sensível ao próprio paradoxo que o instante pode parar: “O fato que a
humanidade tenha podido se dar uma arte revela no tempo a incerteza de sua continuidade
e (...) [revela] a petrificação do instante no seio da duração” (p. 785). A noção de “entre-
tempo” designaria, assim, a eterna duração do instante-intervalo onde se imobiliza a
imagem (a estátua) – “alguma coisa de inumano e de monstruoso” (p. 786).
O entre-tempo é o tempo próprio da obra de arte: “A arte realiza precisamente
essa duração no intervalo, nessa esfera que o ser tem a potência de atravessar, mas onde
sua sombra se imobiliza” (p. 786). Se o monoteísmo é definido como uma “doutrina que
supera o destino – essa criação e essa revelação à rebours”, dizia Lévinas, então “a
proscrição das imagens é, verdadeiramente, o mandamento supremo do monoteísmo” (p.
786).
11
Na última parte, intitulada “Pour une critique philosophique” [Por uma crítica
filosófica] (pp. 786-789), Lévinas termina este ensaio admirável com uma breve discussão
das relações entre arte, crítica e filosofia. A arte é criticada por largar a presa pela sombra.
O seu valor, segundo ele, é ambíguo: “único porque não superável, porque, incapaz de
terminar, (...) não pode ir para o melhor, não tem a qualidade do instante vivo (...). O
valor desse instante é assim feito de sua infelicidade” (p. 787). Por outro lado,
“essencialmente desengajada, a arte constitui, em um mundo da iniciativa e da
responsabilidade, uma dimensão de evasão” (p. 787). Na arte, insistia ainda Lévinas, “o
mundo a acabar é substituído pelo acabamento essencial de sua sombra. Não é o
desinteresse da contemplação, mas da irresponsabilidade. Le poète s'exile lui-même de la
cité” (p. 787; grifos nossos). A desqualificação da arte é, portanto, de ordem ética. Para
Lévinas, há alguma coisa de egoísta, de covarde e de mau, no próprio prazer estético. Ou,
como ele mesmo disse depois: há, no belo, “a possibilidade de uma fascinação e, por
conseguinte, de uma indiferença ou crueldade ética”.16
O que é visado aqui é a arte pela arte. O desengajamento essencial da arte, a
irresponsabilidade cívica da existência estética, caracterizam a arte separada da crítica. A
crítica integra a obra inumana do artista no mundo humano. O papel da crítica seria, assim,
o de salvar a arte, da arte pela arte. A crítica já trata o artista, ao abordar a sua técnica,
como um homem que trabalha. E, ao buscar as influências que o artista sofreu, a crítica
volta a ligar “esse homem desengajado e orgulhoso” à história real. Mas trata-se ainda
aqui de uma crítica preliminar. Ela não considera o evento artístico enquanto tal, ou seja,
essa crítica não aborda o próprio obscurecimento do ser na imagem, nem a fixidez da
imagem.
Para a filosofia, dizia Lévinas, “o valor da imagem reside em sua situação entre
dois tempos e em sua ambiguidade” (p. 788). O filósofo (o crítico) interpreta. Por meio da
interpretação, o crítico capta todas as possibilidades da imagem. Interpretar uma obra é
então colocar ou recolocar essa obra no tempo: “a obra pode e deve ser tratada como um
mito; aquela estátua imóvel tem de ser posta em movimento” – o crítico faz essa estátua (a
16. E. Lévinas, Répondre d'autrui. Emmanuel Lévinas. Jean-Christophe Aeschlimann (ed.). Boudry-
Neuchâtel: La Baconnière (“Langages”), 1989, p. 15.
12
imagem petrificada) falar (p. 788). A interpretação (a exegese filosófica) tem de medir a
distância que separa o mito do ser real, a sombra da realidade, para aperceber o próprio
evento criador, um evento “que escapa ao conhecimento, que vai de ser em ser ao pular os
intervalos do entre-tempo” (p. 788). Ao interpretar, a crítica escolhe e limita: “Mas como
escolha ela permanece aquém do mundo que se fixou na arte” (p. 788).
Lévinas não aborda, nesta parte final, a “lógica” da interpretação da arte. Isso
exigiria, segundo ele, um alargamento da perspectiva, necessariamente limitada, de seu
ensaio. Ele teria de introduzir a perspectiva da relação com outrem, “sem a qual o ser não
poderia ser dito em sua realidade, isto é em seu tempo” (p. 789).17
Tempo e alteridade são
indissociáveis: “a própria duração torna-se visível na relação com Outrem, em que o ser se
ultrapassa”.18
A transcendência não está do lado do belo, mas do lado do bem. Para Lévinas, a
questão fundamental da filosofia não é “ser ou não ser”, mas “como o ser se justifica”.19
É
necessário então colocar, antes da ontologia da compreensão do ser, a exigência de sua
justificação, a ética de sua justiça. Ao plano da ontologia, preexiste o plano ético. A ética
torna-se, assim, a filosofia primeira, e a transcendência, escreve Fabio Ciaramelli, “é o
próprio evento de uma subjetividade aberta à alteridade radical”.20
“Eu é um outro” – a
subjetividade é abertura. E essa abertura é considerada por Lévinas como uma
vulnerabilidade que é, desde logo, relação a outrem:
“A abertura é o desnudamento da pele exposta à ferida e à ofensa. (...) A
descoberto, aberta como uma cidade declarada aberta à aproximação do
inimigo, a sensibilidade (...) é a própria vulnerabilidade. Será que ela é? Seu
ser não consiste em se despir de ser (...), em alterar-se, em “outramente que
ser”? Subjetividade do sujeito, passividade radical (...). Passividade mais
passiva que toda passividade (...). O Eu [Moi] (...) é vulnerabilidade. (...) Na
vulnerabilidade encontra-se (...) uma relação com o outro (...). Desde a
sensibilidade, o sujeito é para o outro: substituição, responsabilidade,
expiação. (...) A descoberto (...) e, assim, fora de todo desdobramento
17. Ver os primeiros textos de Lévinas e, mais particularmente, Le temps et l'autre (1946-1947).
18. E. Lévinas, Totalité et Infini. Essai sur l'extériorité. La Haye : Martinus Nijhoof, 1961; Paris: Le Livre
de Poche, 1990, p. 337.
19. E. Lévinas, “L'éthique comme philosophie première”, Justifications de l'éthique. Actes du XIXème
Congrès de l'Association des Sociétés de Philosophie de langue française. Bruxelles: Ed. de l'Université
de Bruxelles, 1982, p. 51.
20. F. Ciaramelli, “De l'errance à la responsabilité”, Études Phénoménologiques, Nº 12 (1990), p. 49.
13
temático, eis a subjetividade do sujeito (...), subjetividade do sujeito anterior à
essência: juventude. (...) Juventude que o filósofo ama – o “antes do ser”, o
“outramente que ser”.”21
A exposição tem aqui um sentido radicalmente diferente da tematização. Trata-se
de uma exposição ao outro, ou de um Dizer que é des-inter-esse22
, não-indiferença:
“A subjetividade do sujeito, é a vulnerabilidade, exposição à afecção,
sensibilidade, passividade mais passiva que toda passividade, tempo
irrecuperável, dia-cronia (...) da paciência, exposição sempre a expor,
exposição a exprimir e, assim a Dizer, e assim a Dar”.23
O termo “ética” significa sempre para Lévinas o fato do encontro, o fato da
relação de um eu com outrem: “cisão do ser no encontro. Transcendência e proximidade”.
Não se trata, portanto, em sua obra, de partir nem da universalidade da lei moral, nem da
noção de utilidade. Ele parte, ao contrário, da ideia que a ética surge na relação a outrem -
uma relação sem correlação, uma relação que não destrói a transcendência.
A busca e a interrogação do sentido da transcendência caracterizam toda a obra de
Lévinas. Se a transcendência tem um sentido, é assim que começa Autrement qu'être ou
au-delà de l'essence (1974), “ela só pode significar o fato, para o evento de ser (...), de
passar ao outro do ser. (...) Passar ao outro do ser, outramente que ser. Não ser
outramente, mas outramente que ser”.24
O enunciado do outro do ser -do outramente que
ser- pretende enunciar a diferença da transcendência (uma diferença para além daquela que
separa o ser do nada). A ética é o desdobramento e a realização da transcendência. O que
Lévinas propõe é uma ideia muito simples, embora dita de uma maneira complicada:
“opor um ser-para-outrem –responsabilidade (...)– rompendo (...) com o ser
(com o ser no sentido verbal, em que se distingue dos entes) que, perseverança
no ser ou esforço de ser, se afirma e, assim, se capta e se com-preende, se faz
21. E. Lévinas, Humanisme de l'autre homme, pp. 102-106.
22. Ver S. Petrosino e J. Rolland, La vérité nomade. Introduction à Emmanuel Lévinas. Paris: La
Découverte, 1984, pp. 44-48.
23. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence. La Haye: Martinus Nijhoff, 1974; Paris: Le
Livre de Poche, 1991, p. 85.
24. Ibidem, p. 13.
14
ontologia ao se atar em sua firmeza em si-mesmo (...). Ser-para-outrem-
generosidade (...), melhor que o “em-si” e o “para si” (...)”.25
Em 1984, numa conferência que aborda a questão da inteligibilidade ética da
transcendência, Lévinas contesta a ideia segundo a qual o lugar natural e a própria origem
da filosofia estariam situados “no psiquismo humano entendido como saber - que vai até a
consciência de si”.26
A recusa do privilégio do saber significa a recusa de uma concepção
da inteligibilidade que reduz, segundo ele, o Outro ao Mesmo. Antes da ordem do logos e
do ser, a ética é a própria origem do sentido e da significação na “desordem” do
psiquismo; a inteligibilidade da transcendência não é ontológica.
O que Descartes chamava a ideia-do-infinito-em-nós, “pensamento pensando para
além do que é capaz de conter em sua finitude de cogito”, faz eco para Lévinas às
exigências, impossíveis para o pensamento teórico, de uma significação irredutível à
assimilação do Outro ao Mesmo.27
A ética, diz ele, “é o campo que desenha o paradoxo
de um Infinito em relação com o finito sem se desmentir nessa relação”.28
. A ideia de
Infinito supõe um psiquismo, não redutível ao saber, que seria capaz de acolher mais do
que contém, ou seja: “mais do que sua capacidade de cogito. Ela [essa ideia] pensaria de
algum modo para além do que pensa”.29
Isso não é outra coisa senão desejar: “um
pensamento que pensa mais do que pensa é Desejo”.30
A definição do desejo metafísico,
logo no início de Totalité et Infini, já indica todo o empreendimento de Lévinas: “O desejo
metafísico não aspira ao retorno, porque é desejo de um país onde não nascemos. De um
país estrangeiro (...), que não foi nossa pátria (...)” (p. 22). Desejo sem fim, desejo do bem
25. E. Lévinas, Autrement que savoir - Emmanuel Lévinas (Les entretiens du Centre Sèvres). Paris: Ed.
Osiris, 1988, p. 29.
26. E. Lévinas, Transcendance et intelligibilité. Genève: Labor et Fides, 1984, p. 11 (tradução portuguesa
de José Freire Colaço: Transcendência e Inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 13).
27. E. Lévinas, De Dieu qui vient à l'ídée [1982]. Paris: Vrin, 1986 (2ªed.), p. 9. Ver E. Lévinas,
Transcendance et intelligibilité, p. 22 (tradução portuguesa, p. 20).
28. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, p. 232.
29. E. Lévinas, De Dieu qui vient à l'ídée, p. 10.
30. E. Lévinas, “La philosophie et l'idée de l'infini” (1957), in En découvrant l'existence avec Husserl et
Heidegger. Paris: Vrin, 1974, p. 174. Ao dar uma interpretação ética da ideia do infinito, Lévinas
separa-se da letra do cartesianismo. Ver J.-F. Lavigne, “L'idée de l'infini: Descartes dans la pensée
d'Emmanuel Lévinas”, Revue de métaphysique et de morale 92, n. 1 (1987), pp. 54-66.
15
para além do ser: des-interesse (ou saída da persistência na essência), transcendência.31
A
filosofia torna-se a sabedoria do Desejo.
A relação com a transcendência é considerada, em Autrement qu'être ou au-delà
de l'essence, como traumatismo. Na ideia do infinito, se descreve uma passividade, mais
passiva que toda passividade: “sob o peso que ultrapassa minha capacidade, uma
passividade mais passiva que toda passividade (...), minha passividade explode em
Dizer”.32
A teoria da significação, desenvolvida nessa obra, é inteiramente comandada pela
oposição do Dizer e do Dito.
A significação ética significa a uma subjetividade (e não para uma consciência que
tematiza):
“A filosofia ocidental nunca duvidou da estrutura gnosiológica –e, por
conseguinte, ontológica– da significação. Dizer que essa estrutura é
secundária na sensibilidade e que, no entanto, a sensibilidade, enquanto
vulnerabilidade, significa, é reconhecer um sentido em outro lugar e não na
ontologia, e até mesmo subordinar a ontologia a essa significação para além da
essência”.33
Lévinas retoma, assim, toda uma tradição –uma tradição filosófica– que não
considera a filosofia primeira como ontologia: “Contra os heideggerianos e os neo-
hegelianos para quem a filosofia começa pelo ateísmo, é preciso dizer que a tradição do
Outro não é necessariamente religiosa, que ela é filosófica”.34
. É só lembrar aqui Platão
quando coloca o Bem para além da essência; ou Descartes e a ideia do infinito em nós. Em
Descartes, essa ideia permanece um saber. Ao contrário, para Lévinas, a relação com o
infinito não é um saber, mas é Desejo. E é o espanto perante o próprio paradoxo de uma
ideia “posta” em nós que provoca, então, toda a sua reflexão.
A sombra do il y a (o não-sentido do il y a) permanece, no entanto, em toda a sua
obra: essa sombra é ainda necessária, insistia Lévinas, como a própria prova do des-inter-
esse. À transcendência, ou ao para além da essência, dizia ele, é necessária a ambiguidade:
31. Ver E. Lévinas, De Dieu qui vient à l'ídée, p. 111.
32. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, p. 229.
33. Ibidem, p. 104.
34. E. Lévinas, “La philosophie et l'idée de l'infini” (1957), in En découvrant l'existence avec Husserl et
Heidegger, p. 171.
16
“(...) o esquecimento da ambiguidade seria também pouco filosófico. É em sua
ex-cepção e ex-pulsão de responsável que se deixa pensar um sujeito fora do
ser. Na significação – (...) o si [le soi] não é um ser provisoriamente
transcendental esperando um lugar no ser que ele constitui (...). (...) não é um
ser fora do ser, mas significação, (...) si [soi], substituição ao outro,
subjetividade enquanto sujeição a tudo, enquanto um tudo suportar e um
suportar o todo”.35
O não-sentido possível, tão presente nas primeiras obras de Lévinas, é novamente
abordado, no último capítulo de Autrement qu'être ou au-delà de l'essence. Na
passividade, mais passiva que toda passividade, o sujeito suporta o não-sentido do il y a, e
isso seria a prova suprema de seu des-inter-esse:
“O il y a – é todo o peso que pesa a alteridade suportada por uma
subjetividade que não a funda. Mas não digam que o il y a resulta de uma
“impressão subjetiva”. Nesse transbordamento de sentido pelo não-sentido, a
sensibilidade –o Si– acusa-se apenas, em sua passividade sem fundo, como
puro ponto sensível, como des-interesse, ou subversão da essência”.36
A subjetividade atinge, então, “a passividade sem assunção”. É justamente esse
transbordamento do sentido pelo não-sentido que atesta a passividade (sem fundo) do
sujeito, sua sujeição ao outro (esse si de substituição, esse sujeito que é sujeito do
outramente que ser, da paciência e do sofrer, sujeito da sujeição). O pensamento da
subjetividade como lugar (ou como não-lugar) da transcendência constituiria, sem dúvida,
escreve Ciaramelli, “o gesto especulativo maior da obra de Lévinas, o próprio centro de
sua filosofia e sua novidade fundamental”.37
A arte, considerada enquanto “ostensão da essência”, faz parte da própria ordem
ontológica. Para Lévinas, a arte não é “um feliz desvario [égarement] do homem que se
põe a fazer o belo. A cultura e a criação artística (...) são ontológicas por excelência:
tornam possível a compreensão do ser”. E ele afirma então que, “antes da Cultura e da
Estética, a significação situa-se na Ética”.38
A ética é antes da ordem do ser (antes da
35. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essenc, pp. 254-255.
36. Ibidem, p. 255.
37. F. Ciaramelli, Transcendance et Éthique. Essai sur Lévinas. Bruxelles: Ousia, 1989, p.186.
38. E. Lévinas, Humanisme de l'autre homme, p. 28; e p. 58.
17
ontologia) –a ética “é mais ontológica que a ontologia, mais sublime que a ontologia”39
–,
ela é a própria origem da significação.
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18
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