Aesthetics and Ethics in Levinas: From reality and its shadow to ethics as first philosophy...

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Publicado primeiramente em Juiz de Fora (MG) na Revista Ética e Filosofia Política, vol. 3, nº 1 (janeiro-junho de 1998), pp. 7-25 (publicado, em 2000, na Suma Sinóptica do Colóquio Filosófico II da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, pp. 42-62). ESTÉTICA E ÉTICA EM LÉVINAS: Da realidade e sua sombra à ética como filosofia primeira* (Aesthetics and Ethics in Levinas: From reality and its shadow to ethics as first philosophy) Theresa Calvet de Magalhães RESUMO: Em um ensaio pouco comentado, La réalité et son ombre(1948), Lévinas afirma que a arte não conhece um tipo particular de realidade mas é o próprio evento do obscurecimento. Considerada como uma modalidade do il y a, ou como ostensão da essência, a arte faz parte da própria ordem ontológica. Ora, antes da cultura e da estética, escreve Lévinas, a significação situa-se na ética. A ética é a própria origem da significação. Ao retomar o argumento de Lévinas, este texto mostra que a metafísica não é considerada como ontologia, mas precede a ontologia (e a critica). ABSTRACT: In La réalité et son ombre(1948), Levinas underlines that art does not know a particular type of reality: it is the very event of obscuration. As a modality of the there is, art belongs to the order of ontology. But before culture and esthetics, writes Levinas, signification, or meaning, is ethical. Ethics is, then, the very origin of meaning. Retracing his whole argument, this paper aims to present Levinas' view of metaphysics - metaphysics is not ontology, but precedes ontology and criticizes it. Os primeiros conceitos (como também as primeiras metáforas) próprios ao pensamento de Emmanuel Lévinas (1906-1995) foram elaborados, sob a pressão dos acontecimentos políticos contemporâneos, através do tema da experiência de uma perda de sentido ou da experiência do não-sentido (non-sens). 1 Perda de sentido, não-sentido, que Lévinas fixou, ao abandonar o clima da filosofia de Martin Heidegger, com a sua noção do “il y a” (“): Alguma coisa que não é nem sujeito nem substantivo, como um campo de forçasanônimo. 2 * Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Belo Horizonte, a 17 de abril de 1998, para o Grupo de Pesquisa “Hermenêutica da Arte” do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG. Uma versão mais elaborada foi apresentada no Ciclo de Debates em torno da problemática Arte e Ética, no Teatro Marília, em Belo Horizonte, a 10 de agosto de 1998. 1. Para Hannah Arendt, é justamente na perda simultânea do mundo e do sentido, na experiência do desamparo ou do abandono, que reside a origem do totalitarismo (ver H. Arendt, The Origins of Totalitarianism [1951]. New York: Harcourt, Brace & World, 1966, pp. 460-479). 2. E. Lévinas, Le temps et l'autre (1946-1947), Paris: PUF, 1983, p. 26. Lévinas relaciona aqui a noção do il y a com um grande tema da filosofia antiga, não propriamente a imagem do rio, “onde, segundo Heráclito, não nos banhamos duas vezes”, mas a sua versão no Crátilo: um rio, onde “não nos

Transcript of Aesthetics and Ethics in Levinas: From reality and its shadow to ethics as first philosophy...

Publicado primeiramente em Juiz de Fora (MG) na Revista Ética e Filosofia Política, vol. 3, nº 1

(janeiro-junho de 1998), pp. 7-25 (publicado, em 2000, na Suma Sinóptica do Colóquio Filosófico

II da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, pp. 42-62).

ESTÉTICA E ÉTICA EM LÉVINAS:

Da realidade e sua sombra à ética como filosofia primeira*

(Aesthetics and Ethics in Levinas: From reality and its shadow to ethics as first philosophy)

Theresa Calvet de Magalhães

RESUMO: Em um ensaio pouco comentado, “La réalité et son ombre” (1948), Lévinas afirma que a arte

não conhece um tipo particular de realidade mas é o próprio evento do obscurecimento.

Considerada como uma modalidade do il y a, ou como ostensão da essência, a arte faz parte da

própria ordem ontológica. Ora, antes da cultura e da estética, escreve Lévinas, a significação

situa-se na ética. A ética é a própria origem da significação. Ao retomar o argumento de

Lévinas, este texto mostra que a metafísica não é considerada como ontologia, mas precede a

ontologia (e a critica). ABSTRACT: In “La réalité et son ombre” (1948), Levinas underlines that art does not know a particular

type of reality: it is the very event of obscuration. As a modality of the there is, art belongs to the

order of ontology. But before culture and esthetics, writes Levinas, signification, or meaning, is

ethical. Ethics is, then, the very origin of meaning. Retracing his whole argument, this paper

aims to present Levinas' view of metaphysics - metaphysics is not ontology, but precedes

ontology and criticizes it.

Os primeiros conceitos (como também as primeiras metáforas) próprios ao

pensamento de Emmanuel Lévinas (1906-1995) foram elaborados, sob a pressão dos

acontecimentos políticos contemporâneos, através do tema da experiência de uma perda

de sentido ou da experiência do não-sentido (non-sens).1 Perda de sentido, não-sentido,

que Lévinas fixou, ao abandonar o clima da filosofia de Martin Heidegger, com a sua

noção do “il y a” (“há”): “Alguma coisa que não é nem sujeito nem substantivo”, como

um “campo de forças” anônimo.2

* Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Belo Horizonte, a 17 de abril de 1998, para o Grupo

de Pesquisa “Hermenêutica da Arte” do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG. Uma versão

mais elaborada foi apresentada no Ciclo de Debates em torno da problemática Arte e Ética, no Teatro

Marília, em Belo Horizonte, a 10 de agosto de 1998.

1. Para Hannah Arendt, é justamente na perda simultânea do mundo e do sentido, na experiência do

desamparo ou do abandono, que reside a origem do totalitarismo (ver H. Arendt, The Origins of

Totalitarianism [1951]. New York: Harcourt, Brace & World, 1966, pp. 460-479).

2. E. Lévinas, Le temps et l'autre (1946-1947), Paris: PUF, 1983, p. 26. Lévinas relaciona aqui a noção do

il y a com um grande tema da filosofia antiga, não propriamente a imagem do rio, “onde, segundo

Heráclito, não nos banhamos duas vezes”, mas a sua versão no Crátilo: um rio, onde “não nos

2

Esse conceito não se confunde com o “es gibt” heideggeriano ou com a

significação dada a essa expressão pelo poeta Guillaume Apollinaire [1880-1918] em Il y a

... (coletânea de poemas inéditos, publicada em 1925 e reeditada em 1947), ou seja, não se

confunde com a alegria do que existe, com a abundância, ou com a generosidade do “es

gibt”.3 Lévinas acentua sempre a impessoalidade do il y a: “il y a” (“há”), forma impessoal

como “il pleut” (“chove”), ou “il fait nuit” (“anoitece”). Em De l'existence à l'existant

(obra redigida durante a guerra e só publicada em 1947)4, ele tenta descrever o evento

impessoal do il y a, o anonimato do il y a (“um ruído que volta após toda negação desse

ruído”), e descreve então essa situação paradoxal (“uma situação que é a exclusão

absoluta da luz”) como horror (“horror da noite sem saída”, “o silêncio e o horror das

trevas”).5 Um horror que permite imaginar “o vazio absoluto (...) antes da criação” e nos

leva a pensar esse instante originário do ser que, na Bíblia, precede a palavra e a luz.

Lévinas opõe aqui o horror do il y a, “o silêncio e o horror das trevas”, à angústia

heideggeriana.6

Shakespeare, em Macbeth, Racine, em Phèdre, Blanchot, em Thomas l' Obscur,

nos fizeram sentir esse horror. É esse horror que constitui o mais profundo do trágico

shakespeareano: “A fatalidade da tragédia antiga torna-se a fatalidade do ser

irremissível”.7 Em Le temps et l'autre, Lévinas afirma que “toda a filosofia”, pelo menos é

o que lhe parece por vezes, “é apenas uma meditação de Shakespeare”.8

banhamos nem sequer uma vez; onde não pode se constituir a própria fixidez da unidade, forma de todo

existente; um rio, onde desaparece o último elemento de fixidez em relação ao qual o devir é

compreendido” (E. Lévinas, Le temps et l'autre, p. 28).

3. Ver E. Pontremoli, “Sur l'“il y a” qui n'est pas “es gibt”“, Études Phénoménologiques Nos 13-14 (1991),

pp. 165-187.

4. E. Lévinas, De l'existence à l'existant. Paris: Editions de la Revue Fontaine, 1947 (Paris: Vrin, 1977;

1981; 1993).

5. E. Lévinas, De l'existence à l'existant, p. 102. Essa descrição do ser em seu anonimato está muito

próxima dos temas de Maurice Blanchot (da noção de Neutro, do horror da noite, do medo do ser). Em

L'Ecriture du désastre (1980), Blanchot chama a isso desastre. Ver F. Collin, Maurice Blanchot et la

question de l'écriture. Paris: Gallimard, 1971; “La peur: Emmanuel Lévinas et Maurice Blanchot”,

Cahier de l'Herne. Emmanuel Lévinas. Paris: Ed. de l'Herne, 1991, pp. 313-327.

6. E. Lévinas, Éthique et Infini, Dialogues avec Philippe Nemo. Paris: Le Livre de Poche (Fayard-France

Culture), 1982, p. 38. Para a análise da angústia em Heidegger, ver J. Taminiaux, “La phénoménologie

de l'angoisse dans Sein und Zeit”, Figures de la Finitude (Études d'Anthropologie philosophique, vol.

3). Ghislaine Florival (ed.). Louvain-la-Neuve: Librairie Peeters / Paris: Vrin, 1988, pp. 1-31.

7. E. Lévinas, De l'existence à l'existant, p. 101

8. E. Lévinas, Le temps et l'autre, p. 60.

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A arte (toda obra de arte) é sempre considerada por Lévinas, pelo menos nos seus

escritos logo após a Segunda Guerra Mundial, como uma modalidade do il y a. As suas

posições no que diz respeito à arte são extremas e foram apresentadas, em 1948, com uma

certa provocação, na revista Les Temps Modernes9, num ensaio pouco conhecido,

intitulado “La réalité et son ombre”.10

Ora, tanto pela unilateralidade das teses propostas

como pela presença de noções como as de passividade, de sensibilidade, de

exterioridade, as reflexões de Lévinas sobre a arte, apresentadas nesse texto, são

fundamentais para compreender seu pensamento. As noções de passividade, de

sensibilidade, de exterioridade acabam sendo os conceitos do pensamento de Lévinas.

Na primeira divisão desse ensaio, intitulada “Art et Critique” [Arte e Crítica] (pp.

771-773), Lévinas se posiciona contra a tese, geralmente admitida como um dogma, de

que a função da arte consiste em expressar e de que a expressão artística se apoia em um

conhecimento - que o artista (e até mesmo o pintor, até mesmo o músico) diz, que o

artista “diz o inefável” (p. 771). Segundo essa tese, a obra de arte prolongaria e

ultrapassaria a percepção ordinária: é justamente o que esta percepção torna banal (e

aquilo que ela não capta) que a obra de arte (coincidindo com a intuição metafísica)

captaria em sua essência irredutível. A obra de arte, mais real que a realidade, atestaria a

dignidade da imaginação artística. O realismo só é, portanto, negado em nome de um

realismo superior, ou seja, o realismo conservaria aqui todo o seu prestígio:

“Surrealismo”, observava então Lévinas, “é um superlativo” (p. 771).

Ora, a própria crítica professa esse dogma. E a crítica parece assim viver uma vida

de parasita: “um fundo de realidade” – um fundo de realidade “inacessível à inteligência

conceitual”– “torna-se sua presa”. Ou, então, a crítica ocupa o lugar da arte (“se substitui

à arte”). Mas, perguntava Lévinas: “Interpretar Mallarmé não é trair Mallarmé? Interpretar

Mallarmé fielmente, não é suprimir sua obra?”. A interpretação fiel é supressão: “Dizer

9. O que permite talvez compreender porque a revista Les Temps Modernes decidiu introduzir esse ensaio

com uma nota editorial (escrita por Maurice Merleau-Ponty).

10. E. Lévinas, “La réalité et son ombre”, Les Temps Modernes, n. 38 (1948), pp. 771-789; reimpresso in

Revue des Sciences Humaines, n. 185 (1982), pp. 103-117. Ver G. Franck, “Estetica e ontologia. Il

problema dell'arte nel pensiero di E. Lévinas”, Aut aut, Nos 209-210 (1985), pp. 35-59; F. Armengaud,

“Éthique et esthétique. De l'ombre à l'oblitération”, Cahier de l'Herne. Emmanuel Lévinas, Paris: Ed. de

l'Herne, 1991, pp. 499-507.

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claramente o que ele [um artista] diz, de modo obscuro, é simplesmente revelar o quanto é

vão o seu falar obscuro” (p. 771).

Lévinas faz aqui uma distinção entre a crítica como função independente da

própria arte –a crítica especializada, que se manifesta como artigo de jornal ou de revista,

ou como livro– e a crítica como comportamento mesmo do público. Não contente

simplesmente em absorver-se no prazer estético, o público sente uma necessidade

irresistível de falar. Não podemos contemplar em silêncio, insistia Lévinas: o que justifica

o crítico é justamente que há algo a dizer, do lado do público. O crítico pode ser definido

então como “o homem que tem ainda algo a dizer quando tudo já foi dito; [alguém] que

pode dizer da obra outra coisa que essa obra” (p. 772). Uma outra coisa, não a “mesma

coisa” de modo diferente, ou a “mesma mensagem” de modo mais claro. E se é isso o que

o crítico faz, se ele tem ainda algo a dizer quando o próprio artista, por seu lado, “recusa-

se a dizer da obra outra coisa que não seja a própria obra”, cabe aqui perguntar “se,

verdadeiramente, o artista conhece e fala”. “Num prefácio ou num manifesto, certamente”,

mas o próprio artista, dizia Lévinas, “é então ele mesmo público” (p. 772).

Se a arte não fosse, originariamente, nem linguagem nem conhecimento, a crítica

estaria reabilitada: a crítica marcaria “a intervenção necessária da inteligência para integrar

na vida humana e no espírito a inumanidade e a inversão da arte” (p. 772). Ou seja, a

própria arte escaparia à inteligibilidade se não fosse falada, se não fosse sempre de novo

falada.

A tendência a captar o fenômeno artístico na literatura,“lá onde a palavra fornece a

matéria ao artista”, comentava Lévinas, pode talvez “explicar o dogma contemporâneo do

conhecimento através da arte”. As próprias noções de “arte-palavra” (art-parole) e de

“arte-conhecimento” (art-connaissance) introduzem o problema da arte engajada, da arte

politicamente engajada, o problema de uma literatura engajada (p. 772). Ora, segundo

Lévinas, a obra de arte é essencialmente acabada –em todos os sentidos desta palavra– e

esse acabamento “desengaja” a obra de todo engajamento. É necessário apenas, dizia ele,

concordar aqui quanto ao valor desse desengajamento e, em particular, quanto à sua

significação (p. 773).

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O acabamento da obra não a coloca na “claridade”. O desengajamento do mundo,

na arte, não significa necessariamente ir além, comunicar com as ideias, compreender: a

função da arte não consistiria justamente em não compreender? Para Lévinas, é a

obscuridade que fornece à arte o seu próprio elemento e um acabamento sui generis,

estranho à dialética e à vida das ideias. E esse “comércio com o obscuro, como

acontecimento ontológico totalmente independente, não descreve”, perguntava Lévinas,

“categorias irredutíveis às do conhecimento?”. O que ele queria mostrar aqui, na arte, era

esse acontecimento ontológico. A arte não conhece um tipo particular de realidade, mas é

“o próprio evento do obscurecimento, (...) uma invasão da sombra” (p. 773). Se a

obscuridade é o elemento próprio da arte, podemos então falar de um desengajamento

aquém: a arte é refluxo em direção ao aquém e não pertence, portanto, nem à ordem da

revelação nem à ordem da criação (p. 773). Ou seja, o próprio movimento da arte é

considerado como um movimento de retorno ao il y a.11

Em 1948, Lévinas introduziu, assim, a ideia intempestiva de uma arte

“desengajada”. A obra não seria arte para ele se não tivesse essa estrutura formal de

acabamento. Um romance abandonado, um quadro inacabado, ou uma sinfonia incompleta

não podem então ser considerados como obras de arte? O acabamento da obra de arte

não se confunde com “a pura e simples interrupção que limita a linguagem, as obras da

natureza e as da indústria”. Lévinas afirma que o artista para porque a obra parece

saturada, porque ela recusa-se a receber algo mais: a obra acaba-se apesar das causas

materiais ou sociais de interrupção. A obra “não se dá para um começo de diálogo” (pp.

772-773) – o seu acabamento a subtrai à comunicação.12

Se Merleau-Ponty afirmou várias vezes, em trabalhos tão diversos como “Le doute

de Cézanne” (1945), “Le langage indirect et les voix du silence” (1952), L’oeil et l’esprit

11. Ver E. Lévinas, De l'existence à l'existant, pp. 83-92.

12. Mas, em 1949, ao comparar a obra dos pintores modernos, e em particular alguns quadros de Charles

Lapicque, com o procedimento das rasuras-bifurcações [biffures] de Michel Leiris, Lévinas comenta que

o inacabamento (e não o acabamento), “seria, paradoxalmente, a categoria fundamental da arte

moderna” (E. Lévinas, “La transcendance des mots. A propos des Biffures de Michel Leiris” [Les Temps

Modernes, n. 44 (1949), pp. 1090-1095], in Hors Sujet. Montpellier: Fata Morgana, 1987, p. 218).

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(1961), uma proximidade e semelhança (um parentesco profundo) entre arte e filosofia13

,

Lévinas, ao insistir na especificidade da obra de arte, é mais sensível à distância entre arte

e filosofia.

Na segunda divisão deste ensaio, intitulada “L'imaginaire, le sensible, le musical”

[O imaginário, o sensível, o musical] (pp. 774-777), Lévinas apoia-se no próprio

procedimento da arte para afirmar que a arte não é nem “desinteresse” nem “liberdade” (a

alusão a Kant é óbvia). “O procedimento o mais elementar da arte”, dizia ele, “consiste em

substituir ao objeto sua imagem” (p. 774). Sua imagem e não seu conceito (o conceito

seria o objeto apreendido e, portanto, inteligível). O famoso “desinteresse” da visão

artística –uma alusão à concepção kantiana do belo– significa no fundo, e antes de tudo,

uma cegueira em relação aos conceitos e não um verdadeiro desinteresse (já que não

procede da liberdade). Em vez de nossa iniciativa, a imagem marca uma passividade

fundamental: não temos a imagem, é a imagem que nos possui. Esse possesso (o artista)

faz de todos nós possessos. Inspirado ou possesso, o artista escutaria uma musa – a

imagem é musical; ela nos possui numa passividade diretamente visível na magia do canto,

na magia da música, na magia da poesia (p. 774). Esse termo singular de magia,

introduzido pela própria estrutura da existência estética, é usado por Lévinas para

“concretizar a noção, um pouco gasta”, dizia ele, “de passividade” (p. 774).

Eficiente na imagem, a magia também se exerce, no registro temporal, através do

ritmo. O ritmo é a situação única em que não se pode falar de consentimento, de iniciativa,

de liberdade, porque nos capta (capta o sujeito), porque somos levados por ele. É isso

mesmo o enfeitiçamento da música (e da poesia): “um modo de ser ao qual não se aplicam

nem a forma de consciência (...), nem a forma do inconsciente (...). Sonho acordado” (p.

775). O sujeito é levado pelo ritmo: há, assim, no ritmo, algo como uma passagem do Soi

ao anonimato (e não o si-mesmo). O modo de relação ao il y a, determinado como

passividade, seria a tradução de uma exposição ao ser anônimo, que torna-se um

13. Para Merleau-Ponty a arte é, como a filosofia, expressão. E precisamente enquanto expressão, a arte

(assim como a filosofia) é interminável, essencialmente interminável - a expressão nunca está acabada.

Ver M. Chauí, “Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia”, Artepensamento. Adauto Novaes (org.). São

Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 467-492; E. Lévinas, “La signification et le sens”, Revue de

métaphysique et de morale 69 (1964), pp. 125-156 (reimpresso em Humanisme de l'autre homme

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entrelaçamento com esse ser. Nessa reversão ao anonimato, a intimidade com o ser se

anuncia como perda da identidade pessoal, ou como a “extinção do sujeito” (p. 775).

Seria então mais correto falar em interesse a propósito da imagem: a imagem é

interessante, no sentido de “cativante”, de “envolvente” [entrainante]. Ou no sentido

etimológico: ser entre as coisas. “Entre as coisas”, distinto do “ser-no-mundo”

heideggeriano: o sujeito é, nessa situação única que o ritmo representa, “entre as coisas,

como coisa, como fazendo parte do espetáculo”. Trata-se de uma exterioridade total,

onde o sujeito ele mesmo é exterior a si (uma exterioridade do íntimo), e não apenas da

exterioridade de um corpo. A imagem e o ritmo induzem êxtases que são “exterioridade

do íntimo” (p. 775).14

Esse paradoxo fundamental do ritmo, “que descreve uma esfera

situada fora do consciente e do inconsciente e cujo papel foi mostrado pela etnografia em

todos os ritos de êxtase”, teria sido ignorado –e isso é espantoso, dizia Lévinas– pela

análise fenomenológica (p. 775).

O ritmo e o musical são considerados, aqui, como uma categoria estética geral.

Insistir na musicalidade de toda imagem é ver na imagem a sua separação do objeto, a sua

independência no que diz respeito à categoria de substância. E se a arte consiste em

substituir a imagem ao ser, então o elemento estético é, aliás de acordo com sua

etimologia (do grego aisthetikos, derivado de aisthanesthai “sentir”), sensação (p. 776).

Na arte, a sensação “retorna à impessoalidade de elemento”. O movimento da arte

consistiria, assim, em abandonar a percepção para reabilitar a sensação como uma função

própria (uma função de ritmo): “O conjunto de nosso mundo, com seus dados tanto

elementar como intelectualmente elaborados, pode nos tocar musicalmente, tornar-se

imagem” (p. 776). A imagem enquanto tal entra, portanto, em categorias originais.

Lévinas pode agora dizer que a “desencarnação da realidade pela imagem” não é

simplesmente uma diminuição de grau: “ela provém de uma dimensão ontológica que não

se estende entre nós e uma realidade que será apreendida, mas lá onde o comércio com a

realidade é um ritmo” (p. 777).

(1972), Paris: Le Livre de Poche, 1987, pp. 17-63; tradução de Pergentino S. Pivatto (coord.) et al.:

Humanismo do Outro Homem. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 19-80).

14. Ver também E. Lévinas, De l'existence à l'existant, pp. 83-92.

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Ao contrário da fenomenologia da imagem, que insiste na sua transparência,

Lévinas acentua a sua opacidade, na terceira e importante divisão de seu ensaio, intitulada

“Ressemblance et Image” [Semelhança e Imagem] (pp. 777-781). Essa opacidade é

pressuposta pela semelhança que caracteriza a imagem. Não se trata aqui simplesmente de

uma volta à noção da imagem como uma realidade independente que é semelhante ao

objeto original. A semelhança pressupõe que o pensamento para ou detém-se sobre a

própria imagem e, por conseguinte, uma certa opacidade da imagem. Lévinas põe então a

semelhança como o próprio movimento que gera a imagem, e não como o resultado de

uma comparação entre a imagem e o original. Daí a ideia de que a realidade, pelo

movimento da semelhança, produz de certo modo sua imagem, suas imagens: “A realidade

não seria apenas o que ela é (...) mas também seu duplo, sua sombra, sua imagem” (p.

778). Lévinas defende aqui a tese de que a coisa é ela mesma e é sua imagem (uma pessoa

é o que ela é e é estranha a ela mesma) e de que há uma relação entre esses dois

momentos. A relação entre a coisa e sua imagem é a semelhança, compreendida

justamente como a produção dessa imagem.

A imagem, sugeria então Lévinas, é a alegoria do ser (o ser é aquilo que é e, ao

mesmo tempo, ele é sua própria imagem). O exemplo que ele apresenta é o da alegoria

exposta na fábula: os homens são vistos como esses animais (cuja opacidade detém o

pensamento) e não, ou não apenas, através dos animais (p. 778). A alegoria ofereceria,

assim, o “comércio ambíguo com a realidade onde esta não se refere a ela mesma, mas (...)

a sua sombra” (p. 779). Ao utilizar a imagem, a arte realiza essa alegoria.15

A imagem e a verdade são então duas possibilidades exatamente contemporâneas

do ser: o ser é o que é, ou seja, o que ele se desvela em sua verdade e, ao mesmo tempo,

ele é sua própria imagem. A noção de sombra da realidade permite a Lévinas situar a

15. Mas dizer que a imagem é alegoria não equivale a aventurar-se numa zona por assim dizer interdita,

já que a alegoria foi durante quase dois séculos condenada como uma aberração estética, como a antítese

da arte? Ver F. Collin, Maurice Blanchot et la question de l'écriture, pp. 160-189). Ver também a

doutrina benjaminiana da alegoria, no último capítulo do livro Origem do Drama Barroco Alemão (um

ensaio submetido em 1925 por Walter Benjamin, como dissertação de livre-docência, à Universidade de

Frankfurt -rejeitada não apenas pelo Departamento de Literatura Alemã mas pelo Departamento de

Estética-, e publicado em livro, três anos depois), São Paulo: Brasilense, 1984, pp. 181-258. Para uma

leitura da reabilitação da alegoria, em Benjamin, como uma reabilitação da temporalidade e da

historicidade, ver J.-M. Gagnebin, História e Narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva,

FAPESP / Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1994, pp. 37-62.

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noção de semelhança na economia geral do ser. A semelhança não é considerada aqui

como “imitação” (não é mimesis) mas é a própria estrutura do sensível enquanto tal. O

sensível é o ser na medida em que é semelhante a si mesmo e em que lança uma sombra. E

o artista, na medida em que oferece uma espécie de paródia, uma caricatura, uma sombra

da criação, mover-se-ia num universo que precede o mundo da criação.

Mas dizer que a imagem é uma sombra do ser seria, por sua vez, apenas uma

metáfora se Lévinas não mostrasse onde se situa esse “aquém” que acaba de mencionar.

Ele apresenta, na quarta divisão deste ensaio, intitulada “L'entretemps” [O entre-tempo]

(pp. 781-786), uma noção que é crucial para a sua consideração da arte, a ideia de “entre-

tempo”. A arte como modalidade do il y a separa-se do tempo do mundo para imobilizar-

se no entre-tempo. Já não se trata de considerar a imagem como a caricatura, a alegoria ou

o pitoresco que a realidade carrega consigo, mas de desqualificar a imagem como ídolo. É

impossível esquecer aqui toda a alergia judaica à plasticidade enfeitiçadora da imagem. A

arte das belas formas (a arte dita clássica), na medida em que “corrige a caricatura do ser”,

não seria um contra-exemplo a essa tese que assimila imagem e caricatura? A beleza,

segundo Lévinas, “é o ser dissimulando sua caricatura, recobrindo ou absorvendo sua

sombra” (p. 781). Haveria, no entanto, um elemento insuperável de caricatura até mesmo

na mais perfeita imagem: “a caricatura insuperável da imagem a mais perfeita se manifesta

em sua estupidez de ídolo” (p. 781).

Dizer que a imagem é um ídolo seria então afirmar “que toda imagem é,

finalmente, plástica e que toda obra de arte é, finalmente, estátua” (pp. 781-782). Ou seja,

seria afirmar que toda imagem é “uma parada do tempo ou melhor seu atraso sobre ele-

mesmo”. A estátua (a imagem como ídolo) realiza, assim, “o paradoxo de um instante que

dura sem futuro” (p. 782). Lévinas não se refere apenas à duração da própria obra de arte

como objeto (à sua durabilidade), à permanência das obras de arte nos museus, mas à

duração no interior da vida da obra (“uma vida sem vida”), onde o instante dura

infinitamente: “(...) eternamente, a Gioconda sorrirá” (p. 782). O artista deu à obra uma

caricatura de vida, uma vida sem vida. Toda imagem, até mesmo a mais perfeita imagem, é

já caricatura (p. 783). A imagem como ídolo nos conduz à significação de seu caráter

irreal.

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Lévinas considera o instante imóvel da estátua, “impotente para forçar o futuro”,

como o próprio destino:

“No instante da estátua –no seu futuro eternamente suspenso– o trágico –

simultaneidade da liberdade e da necessidade– pode realizar-se: o poder da

liberdade congela-se em impotência. E aqui mais uma vez, é conveniente

aproximar arte e sonho: o instante da estátua é o pesadelo” (p. 783).

Isso não significa que o artista representa seres prostrados pelo destino: “os seres

entram em seu destino porque são representados (...) – mas é justamente isso a obra de

arte, evento do obscurecimento do ser” (p. 783; grifos nossos). A arte é agora considerada

por Lévinas, na economia geral do ser, como “o movimento da queda aquém do tempo,

no destino” (p. 783).

Para Lévinas, o tempo aparentemente introduzido na imagem pelas artes não

plásticas (como a música, a literatura, o teatro e o cinema) não abala a fixidez da

imagem. Ele descreve então os personagens do romance como seres encarcerados, como

prisioneiros:

“A sua história nunca termina, ela dura ainda, mas não avança. O romance

encerra os seres em um destino apesar de sua liberdade. (...) Os

acontecimentos narrados formam uma situação – aparentam-se com um ideal

plástico. O mito – é isso: a plasticidade de uma estória” (p. 784).

O ídolo constitui, portanto, a perfeição da imagem, o seu acabamento. Lévinas é

particularmente sensível ao próprio paradoxo que o instante pode parar: “O fato que a

humanidade tenha podido se dar uma arte revela no tempo a incerteza de sua continuidade

e (...) [revela] a petrificação do instante no seio da duração” (p. 785). A noção de “entre-

tempo” designaria, assim, a eterna duração do instante-intervalo onde se imobiliza a

imagem (a estátua) – “alguma coisa de inumano e de monstruoso” (p. 786).

O entre-tempo é o tempo próprio da obra de arte: “A arte realiza precisamente

essa duração no intervalo, nessa esfera que o ser tem a potência de atravessar, mas onde

sua sombra se imobiliza” (p. 786). Se o monoteísmo é definido como uma “doutrina que

supera o destino – essa criação e essa revelação à rebours”, dizia Lévinas, então “a

proscrição das imagens é, verdadeiramente, o mandamento supremo do monoteísmo” (p.

786).

11

Na última parte, intitulada “Pour une critique philosophique” [Por uma crítica

filosófica] (pp. 786-789), Lévinas termina este ensaio admirável com uma breve discussão

das relações entre arte, crítica e filosofia. A arte é criticada por largar a presa pela sombra.

O seu valor, segundo ele, é ambíguo: “único porque não superável, porque, incapaz de

terminar, (...) não pode ir para o melhor, não tem a qualidade do instante vivo (...). O

valor desse instante é assim feito de sua infelicidade” (p. 787). Por outro lado,

“essencialmente desengajada, a arte constitui, em um mundo da iniciativa e da

responsabilidade, uma dimensão de evasão” (p. 787). Na arte, insistia ainda Lévinas, “o

mundo a acabar é substituído pelo acabamento essencial de sua sombra. Não é o

desinteresse da contemplação, mas da irresponsabilidade. Le poète s'exile lui-même de la

cité” (p. 787; grifos nossos). A desqualificação da arte é, portanto, de ordem ética. Para

Lévinas, há alguma coisa de egoísta, de covarde e de mau, no próprio prazer estético. Ou,

como ele mesmo disse depois: há, no belo, “a possibilidade de uma fascinação e, por

conseguinte, de uma indiferença ou crueldade ética”.16

O que é visado aqui é a arte pela arte. O desengajamento essencial da arte, a

irresponsabilidade cívica da existência estética, caracterizam a arte separada da crítica. A

crítica integra a obra inumana do artista no mundo humano. O papel da crítica seria, assim,

o de salvar a arte, da arte pela arte. A crítica já trata o artista, ao abordar a sua técnica,

como um homem que trabalha. E, ao buscar as influências que o artista sofreu, a crítica

volta a ligar “esse homem desengajado e orgulhoso” à história real. Mas trata-se ainda

aqui de uma crítica preliminar. Ela não considera o evento artístico enquanto tal, ou seja,

essa crítica não aborda o próprio obscurecimento do ser na imagem, nem a fixidez da

imagem.

Para a filosofia, dizia Lévinas, “o valor da imagem reside em sua situação entre

dois tempos e em sua ambiguidade” (p. 788). O filósofo (o crítico) interpreta. Por meio da

interpretação, o crítico capta todas as possibilidades da imagem. Interpretar uma obra é

então colocar ou recolocar essa obra no tempo: “a obra pode e deve ser tratada como um

mito; aquela estátua imóvel tem de ser posta em movimento” – o crítico faz essa estátua (a

16. E. Lévinas, Répondre d'autrui. Emmanuel Lévinas. Jean-Christophe Aeschlimann (ed.). Boudry-

Neuchâtel: La Baconnière (“Langages”), 1989, p. 15.

12

imagem petrificada) falar (p. 788). A interpretação (a exegese filosófica) tem de medir a

distância que separa o mito do ser real, a sombra da realidade, para aperceber o próprio

evento criador, um evento “que escapa ao conhecimento, que vai de ser em ser ao pular os

intervalos do entre-tempo” (p. 788). Ao interpretar, a crítica escolhe e limita: “Mas como

escolha ela permanece aquém do mundo que se fixou na arte” (p. 788).

Lévinas não aborda, nesta parte final, a “lógica” da interpretação da arte. Isso

exigiria, segundo ele, um alargamento da perspectiva, necessariamente limitada, de seu

ensaio. Ele teria de introduzir a perspectiva da relação com outrem, “sem a qual o ser não

poderia ser dito em sua realidade, isto é em seu tempo” (p. 789).17

Tempo e alteridade são

indissociáveis: “a própria duração torna-se visível na relação com Outrem, em que o ser se

ultrapassa”.18

A transcendência não está do lado do belo, mas do lado do bem. Para Lévinas, a

questão fundamental da filosofia não é “ser ou não ser”, mas “como o ser se justifica”.19

É

necessário então colocar, antes da ontologia da compreensão do ser, a exigência de sua

justificação, a ética de sua justiça. Ao plano da ontologia, preexiste o plano ético. A ética

torna-se, assim, a filosofia primeira, e a transcendência, escreve Fabio Ciaramelli, “é o

próprio evento de uma subjetividade aberta à alteridade radical”.20

“Eu é um outro” – a

subjetividade é abertura. E essa abertura é considerada por Lévinas como uma

vulnerabilidade que é, desde logo, relação a outrem:

“A abertura é o desnudamento da pele exposta à ferida e à ofensa. (...) A

descoberto, aberta como uma cidade declarada aberta à aproximação do

inimigo, a sensibilidade (...) é a própria vulnerabilidade. Será que ela é? Seu

ser não consiste em se despir de ser (...), em alterar-se, em “outramente que

ser”? Subjetividade do sujeito, passividade radical (...). Passividade mais

passiva que toda passividade (...). O Eu [Moi] (...) é vulnerabilidade. (...) Na

vulnerabilidade encontra-se (...) uma relação com o outro (...). Desde a

sensibilidade, o sujeito é para o outro: substituição, responsabilidade,

expiação. (...) A descoberto (...) e, assim, fora de todo desdobramento

17. Ver os primeiros textos de Lévinas e, mais particularmente, Le temps et l'autre (1946-1947).

18. E. Lévinas, Totalité et Infini. Essai sur l'extériorité. La Haye : Martinus Nijhoof, 1961; Paris: Le Livre

de Poche, 1990, p. 337.

19. E. Lévinas, “L'éthique comme philosophie première”, Justifications de l'éthique. Actes du XIXème

Congrès de l'Association des Sociétés de Philosophie de langue française. Bruxelles: Ed. de l'Université

de Bruxelles, 1982, p. 51.

20. F. Ciaramelli, “De l'errance à la responsabilité”, Études Phénoménologiques, Nº 12 (1990), p. 49.

13

temático, eis a subjetividade do sujeito (...), subjetividade do sujeito anterior à

essência: juventude. (...) Juventude que o filósofo ama – o “antes do ser”, o

“outramente que ser”.”21

A exposição tem aqui um sentido radicalmente diferente da tematização. Trata-se

de uma exposição ao outro, ou de um Dizer que é des-inter-esse22

, não-indiferença:

“A subjetividade do sujeito, é a vulnerabilidade, exposição à afecção,

sensibilidade, passividade mais passiva que toda passividade, tempo

irrecuperável, dia-cronia (...) da paciência, exposição sempre a expor,

exposição a exprimir e, assim a Dizer, e assim a Dar”.23

O termo “ética” significa sempre para Lévinas o fato do encontro, o fato da

relação de um eu com outrem: “cisão do ser no encontro. Transcendência e proximidade”.

Não se trata, portanto, em sua obra, de partir nem da universalidade da lei moral, nem da

noção de utilidade. Ele parte, ao contrário, da ideia que a ética surge na relação a outrem -

uma relação sem correlação, uma relação que não destrói a transcendência.

A busca e a interrogação do sentido da transcendência caracterizam toda a obra de

Lévinas. Se a transcendência tem um sentido, é assim que começa Autrement qu'être ou

au-delà de l'essence (1974), “ela só pode significar o fato, para o evento de ser (...), de

passar ao outro do ser. (...) Passar ao outro do ser, outramente que ser. Não ser

outramente, mas outramente que ser”.24

O enunciado do outro do ser -do outramente que

ser- pretende enunciar a diferença da transcendência (uma diferença para além daquela que

separa o ser do nada). A ética é o desdobramento e a realização da transcendência. O que

Lévinas propõe é uma ideia muito simples, embora dita de uma maneira complicada:

“opor um ser-para-outrem –responsabilidade (...)– rompendo (...) com o ser

(com o ser no sentido verbal, em que se distingue dos entes) que, perseverança

no ser ou esforço de ser, se afirma e, assim, se capta e se com-preende, se faz

21. E. Lévinas, Humanisme de l'autre homme, pp. 102-106.

22. Ver S. Petrosino e J. Rolland, La vérité nomade. Introduction à Emmanuel Lévinas. Paris: La

Découverte, 1984, pp. 44-48.

23. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence. La Haye: Martinus Nijhoff, 1974; Paris: Le

Livre de Poche, 1991, p. 85.

24. Ibidem, p. 13.

14

ontologia ao se atar em sua firmeza em si-mesmo (...). Ser-para-outrem-

generosidade (...), melhor que o “em-si” e o “para si” (...)”.25

Em 1984, numa conferência que aborda a questão da inteligibilidade ética da

transcendência, Lévinas contesta a ideia segundo a qual o lugar natural e a própria origem

da filosofia estariam situados “no psiquismo humano entendido como saber - que vai até a

consciência de si”.26

A recusa do privilégio do saber significa a recusa de uma concepção

da inteligibilidade que reduz, segundo ele, o Outro ao Mesmo. Antes da ordem do logos e

do ser, a ética é a própria origem do sentido e da significação na “desordem” do

psiquismo; a inteligibilidade da transcendência não é ontológica.

O que Descartes chamava a ideia-do-infinito-em-nós, “pensamento pensando para

além do que é capaz de conter em sua finitude de cogito”, faz eco para Lévinas às

exigências, impossíveis para o pensamento teórico, de uma significação irredutível à

assimilação do Outro ao Mesmo.27

A ética, diz ele, “é o campo que desenha o paradoxo

de um Infinito em relação com o finito sem se desmentir nessa relação”.28

. A ideia de

Infinito supõe um psiquismo, não redutível ao saber, que seria capaz de acolher mais do

que contém, ou seja: “mais do que sua capacidade de cogito. Ela [essa ideia] pensaria de

algum modo para além do que pensa”.29

Isso não é outra coisa senão desejar: “um

pensamento que pensa mais do que pensa é Desejo”.30

A definição do desejo metafísico,

logo no início de Totalité et Infini, já indica todo o empreendimento de Lévinas: “O desejo

metafísico não aspira ao retorno, porque é desejo de um país onde não nascemos. De um

país estrangeiro (...), que não foi nossa pátria (...)” (p. 22). Desejo sem fim, desejo do bem

25. E. Lévinas, Autrement que savoir - Emmanuel Lévinas (Les entretiens du Centre Sèvres). Paris: Ed.

Osiris, 1988, p. 29.

26. E. Lévinas, Transcendance et intelligibilité. Genève: Labor et Fides, 1984, p. 11 (tradução portuguesa

de José Freire Colaço: Transcendência e Inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 13).

27. E. Lévinas, De Dieu qui vient à l'ídée [1982]. Paris: Vrin, 1986 (2ªed.), p. 9. Ver E. Lévinas,

Transcendance et intelligibilité, p. 22 (tradução portuguesa, p. 20).

28. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, p. 232.

29. E. Lévinas, De Dieu qui vient à l'ídée, p. 10.

30. E. Lévinas, “La philosophie et l'idée de l'infini” (1957), in En découvrant l'existence avec Husserl et

Heidegger. Paris: Vrin, 1974, p. 174. Ao dar uma interpretação ética da ideia do infinito, Lévinas

separa-se da letra do cartesianismo. Ver J.-F. Lavigne, “L'idée de l'infini: Descartes dans la pensée

d'Emmanuel Lévinas”, Revue de métaphysique et de morale 92, n. 1 (1987), pp. 54-66.

15

para além do ser: des-interesse (ou saída da persistência na essência), transcendência.31

A

filosofia torna-se a sabedoria do Desejo.

A relação com a transcendência é considerada, em Autrement qu'être ou au-delà

de l'essence, como traumatismo. Na ideia do infinito, se descreve uma passividade, mais

passiva que toda passividade: “sob o peso que ultrapassa minha capacidade, uma

passividade mais passiva que toda passividade (...), minha passividade explode em

Dizer”.32

A teoria da significação, desenvolvida nessa obra, é inteiramente comandada pela

oposição do Dizer e do Dito.

A significação ética significa a uma subjetividade (e não para uma consciência que

tematiza):

“A filosofia ocidental nunca duvidou da estrutura gnosiológica –e, por

conseguinte, ontológica– da significação. Dizer que essa estrutura é

secundária na sensibilidade e que, no entanto, a sensibilidade, enquanto

vulnerabilidade, significa, é reconhecer um sentido em outro lugar e não na

ontologia, e até mesmo subordinar a ontologia a essa significação para além da

essência”.33

Lévinas retoma, assim, toda uma tradição –uma tradição filosófica– que não

considera a filosofia primeira como ontologia: “Contra os heideggerianos e os neo-

hegelianos para quem a filosofia começa pelo ateísmo, é preciso dizer que a tradição do

Outro não é necessariamente religiosa, que ela é filosófica”.34

. É só lembrar aqui Platão

quando coloca o Bem para além da essência; ou Descartes e a ideia do infinito em nós. Em

Descartes, essa ideia permanece um saber. Ao contrário, para Lévinas, a relação com o

infinito não é um saber, mas é Desejo. E é o espanto perante o próprio paradoxo de uma

ideia “posta” em nós que provoca, então, toda a sua reflexão.

A sombra do il y a (o não-sentido do il y a) permanece, no entanto, em toda a sua

obra: essa sombra é ainda necessária, insistia Lévinas, como a própria prova do des-inter-

esse. À transcendência, ou ao para além da essência, dizia ele, é necessária a ambiguidade:

31. Ver E. Lévinas, De Dieu qui vient à l'ídée, p. 111.

32. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, p. 229.

33. Ibidem, p. 104.

34. E. Lévinas, “La philosophie et l'idée de l'infini” (1957), in En découvrant l'existence avec Husserl et

Heidegger, p. 171.

16

“(...) o esquecimento da ambiguidade seria também pouco filosófico. É em sua

ex-cepção e ex-pulsão de responsável que se deixa pensar um sujeito fora do

ser. Na significação – (...) o si [le soi] não é um ser provisoriamente

transcendental esperando um lugar no ser que ele constitui (...). (...) não é um

ser fora do ser, mas significação, (...) si [soi], substituição ao outro,

subjetividade enquanto sujeição a tudo, enquanto um tudo suportar e um

suportar o todo”.35

O não-sentido possível, tão presente nas primeiras obras de Lévinas, é novamente

abordado, no último capítulo de Autrement qu'être ou au-delà de l'essence. Na

passividade, mais passiva que toda passividade, o sujeito suporta o não-sentido do il y a, e

isso seria a prova suprema de seu des-inter-esse:

“O il y a – é todo o peso que pesa a alteridade suportada por uma

subjetividade que não a funda. Mas não digam que o il y a resulta de uma

“impressão subjetiva”. Nesse transbordamento de sentido pelo não-sentido, a

sensibilidade –o Si– acusa-se apenas, em sua passividade sem fundo, como

puro ponto sensível, como des-interesse, ou subversão da essência”.36

A subjetividade atinge, então, “a passividade sem assunção”. É justamente esse

transbordamento do sentido pelo não-sentido que atesta a passividade (sem fundo) do

sujeito, sua sujeição ao outro (esse si de substituição, esse sujeito que é sujeito do

outramente que ser, da paciência e do sofrer, sujeito da sujeição). O pensamento da

subjetividade como lugar (ou como não-lugar) da transcendência constituiria, sem dúvida,

escreve Ciaramelli, “o gesto especulativo maior da obra de Lévinas, o próprio centro de

sua filosofia e sua novidade fundamental”.37

A arte, considerada enquanto “ostensão da essência”, faz parte da própria ordem

ontológica. Para Lévinas, a arte não é “um feliz desvario [égarement] do homem que se

põe a fazer o belo. A cultura e a criação artística (...) são ontológicas por excelência:

tornam possível a compreensão do ser”. E ele afirma então que, “antes da Cultura e da

Estética, a significação situa-se na Ética”.38

A ética é antes da ordem do ser (antes da

35. E. Lévinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essenc, pp. 254-255.

36. Ibidem, p. 255.

37. F. Ciaramelli, Transcendance et Éthique. Essai sur Lévinas. Bruxelles: Ousia, 1989, p.186.

38. E. Lévinas, Humanisme de l'autre homme, p. 28; e p. 58.

17

ontologia) –a ética “é mais ontológica que a ontologia, mais sublime que a ontologia”39

–,

ela é a própria origem da significação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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18

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