“Você ficou sabendo da música oficial da copa?”

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contramare.net http://www.contramare.net/site/pt/have-you-heard-about-the-official-world-cup-song/ Carlos Palombini 18/06/2014 Você ficou sabendo da música oficial da Copa? ___________________ Este artigo foi solicitado no dia primeiro de junho de 2014 pelo portal The Conversation (“um dos maiores sites de notícias e comentários da Austrália, com todas as nossas análises baseadas na comunidade acadêmica e de pesquisa”). Enviado no dia 4 de junho, ele não foi e não será publicado ali. Este texto foi originalmente escrito em inglês. Seu autor e tradutor para o português, Carlos Palombini, é professor de musicologia na UFMG, membro colaborador do programa de pós-graduação em música da UNIRIO, e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Recebeu o prêmio de musicologia Sir Jack Westrup, de Oxford University Press, pelo ensaio “Pierre Schaeffer, 1953: por uma música experimental” em 1993 e reconstituiu, com a colaboração de Sophie Brunet, o livro Ensaio sobre o rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, 1941-1942, publicado simultaneamente na França (Paris: Allia) e no Brasil (Belo Horizonte: UFMG/ Fapemig) em 2010. Sua pesquisa atual foca a história e a teoria do funk proibido e é apoiada pelo CNPq e pela Fapemig. Para conhecê- la, acesse o site Proibidão.org. Outros textos disponíveis na rede Academia.edu. ____________________ _______________ ______— Você ficou sabendo da música oficial da Copa? ______— Quem liga pra isso, quando essa Copa é disputada sobre os corpos mortos de jovens negros? Fiquei sabendo, através de australianos, que causou indignação à comunidade futebolística nacional — seja o que for isso — o fato de estrangeiros cantarem a música oficial da Copa do Mundo em línguas estrangeiras, e deixarem apenas uns poucos segundos ao final para uma cantora brasileira exibir-se em língua materna. E me perguntam por que isso é um problema, qual o processo de seleção da música oficial, e por que não escolheram cantores brasileiros. _____________ ______________ Isso não é um problema. Embora eu ignore completamente o processo de seleção, assumo que seja ditado por interesses corporativos, e portanto contrários ao que possa haver de representativo de aspirações populares em música. Não escolheram artistas brasileiros porque isso não é um evento brasileiro, mas algo que nos está sendo imposto, com recurso às Forças Armadas, em violação gritante de nossos direitos mais fundamentais. As redes de comunicação brasileiras são propriedade de um punhado de famílias, com concessões locais distribuídas entre parlamentares, mais uma vez em retumbante violação constitucional. Uma dessas famílias é a

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contramare.net http://www.contramare.net/site/pt/have-you-heard-about-the-official-world-cup-song/

Carlos Palombini 18/06/2014

Você ficou sabendo da música oficial da Copa?

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Este artigo foi solicitado no dia primeiro de junho de 2014pelo portal The Conversation (“um dos maiores sites denotícias e comentários da Austrália, com todas asnossas análises baseadas na comunidade acadêmica ede pesquisa”). Enviado no dia 4 de junho, ele não foi enão será publicado ali.

Este texto foi originalmente escrito em inglês. Seu autore tradutor para o português, Carlos Palombini, éprofessor de musicologia na UFMG, membrocolaborador do programa de pós-graduação em música

da UNIRIO, e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Recebeu o prêmio de musicologiaSir Jack Westrup, de Oxford University Press, pelo ensaio “Pierre Schaeffer, 1953: por uma músicaexperimental” em 1993 e reconstituiu, com a colaboração de Sophie Brunet, o livro Ensaio sobre orádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé, 1941-1942, publicado simultaneamente naFrança (Paris: Allia) e no Brasil (Belo Horizonte: UFMG/ Fapemig) em 2010. Sua pesquisa atualfoca a história e a teoria do funk proibido e é apoiada pelo CNPq e pela Fapemig. Para conhecê-la, acesse o site Proibidão.org. Outros textos disponíveis na rede Academia.edu.

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______— Você ficou sabendo da música oficial da Copa?

______— Quem liga pra isso, quando essa Copa é disputada sobre os corpos mortos dejovens negros?

Fiquei sabendo, através de australianos, que causou indignação à comunidade futebolística nacional — seja oque for isso — o fato de estrangeiros cantarem a música oficial da Copa do Mundo em línguas estrangeiras, edeixarem apenas uns poucos segundos ao final para uma cantora brasileira exibir-se em língua materna. E meperguntam por que isso é um problema, qual o processo de seleção da música oficial, e por que não escolheramcantores brasileiros.

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Isso não é um problema. Embora eu ignore completamente o processo de seleção, assumo que seja ditado porinteresses corporativos, e portanto contrários ao que possa haver de representativo de aspirações populares emmúsica. Não escolheram artistas brasileiros porque isso não é um evento brasileiro, mas algo que nos está sendoimposto, com recurso às Forças Armadas, em violação gritante de nossos direitos mais fundamentais.

As redes de comunicação brasileiras são propriedade de um punhado de famílias, com concessões locaisdistribuídas entre parlamentares, mais uma vez em retumbante violação constitucional. Uma dessas famílias é a

mais rica do Brasil. Seu império cresceu em condomínio com a ditadura, como Simon Hartog mostrou nodocumentário Muito além do cidadão Kane em 1993. Publicado no Bloomberg, de Nova Iorque, em 8 de marçode 2012, o artigo “Os ricos do Brasil não têm vergonha de construir residências em reservas naturais” mostra queessa família ergueu uma casa premiada “em parte da Mata Atlântica que, por lei, é intocável por sua ecologia”.Além disso, “dois seguranças armados de pistolas patrulham o terreno para expulsar quem tente utilizar a praiapública”. O império de comunicações dessa família e a Fifa são parceiros de longa data: a Rede Globo detémdireitos sobre produtos oficiais da Copa, além de direitos de transmissão sobre os jogos.

Morei no Rio entre maio e julho de 2013, no fastígio de uma revolta popular que levou milhões às ruas, e desdeentão tenho seguido o trabalho de pessoas e grupos que protestam contra o presente estado de coisas. Aatividade é imensa. Tento acompanhá-la porque sou musicólogo e a música que estudo vem daqueles que foramos mais afetados pelos Jogos Pan-Americanos de 2007 e por esta Copa.

Que eu saiba, essa música não chamou a atenção de ninguém. Temos mais com que nos preocupar. Cito apenasa execução diária de moradores das favelas cariocas, perpetrada em escala genocida por uma força policialinstruída a agir como uma organização criminosa, cujos feitos são aplaudidos, ao invés de condenados, pelamídia corporativa e por representantes do Estado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva incluso. Quando querque tais crimes virem notícia, eles são apresentados como se houvessem sido cometidos por suas vítimas.Covardemente torturados e executados pelo Estado, jovens negros — e às vezes senhoras idosas — sãoenterrados como indigentes, ou dados por desaparecidos, como “traficantes”.

No vídeo seguinte, MC Cidinho, da Cidade de Deus, faz “uma lista com os nomes dos amigos de infância” em “ Acapella ao vivo na Roda de Funk de São Gonçalo”, novembro de 2012:

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O termo “traficante” nunca me soa inocente. Aqueles que o usam com referência exclusiva àquela parte docomércio de substâncias ilícitas que ocorre nas favelas, imediatamente se apresentam como suspeitos de“associação para o tráfico de drogas”. É como se, por meio de uma metonímia naturalizada, na qual os setoresmais vulneráveis do varejo de substâncias ilícitas substituem todo o comércio de armas e cocaína, procurassemdesviar minha atenção, daqueles aos quais se associam enquanto criminosos, para aqueles cujo trabalhoexploram.

“No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso”, afirma Guy Debord em A sociedade doespetáculo. Não importa quão falsa, a música da Copa revela sua verdade. Isso acontece ao final, quando, numgrupo de quatro crianças pobres, duas das quais — a “democracia racial” exige — são negras, um meninobranco beija e ergue uma réplica em gesso do troféu mundial, em alusão ao compromisso da Fifa com aredenção de “futuros criminosos”. Temos reciprocado as boas intenções da Fifa com hostilidade generalizada,brutalmente reprimida pelo Estado. Seja como for esses jovens estão dizendo o que pensam da Fifa, da Copa edas Organizações Globo a quem queira ouvi-los. Infelizmente, muito poucos querem. Peço portanto ao leitor queolhe esses graffiti. Uma vez que neste país, agora, contas do Facebook têm mostrado propensão aodesaparecimento, tomei a precaução de copiar e colar alguns deles aqui, para sua ilustração.

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