Uma pequena praça comercial e seus agentes: integração mercantil ...

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A o referirmos à história econômica de Minas Gerais no século XIX, lembramos necessariamente de uma série de estudos que se debruçaram sobre temas como: a decadência econômica por decorrência da crise da mineração, ou ao seu contraposto, o dinamismo da economia mineira oitocentista, a utilização do trabalho escravo e a configuração de um circuito mercantil interno. Porém, talvez o maior desafio dessas abordagens seja ainda o de conectar realidades regionais (relações mercantis, propriedade e acumulação, por exemplo) com um universo mais amplo. Se identificamos a formação de um mercado interno, em fins do período colonial e sua consolidação na fase nacional, podemos também enxergar localidades conectadas, enriquecimento interno e inclusive pessoas que acumulam e dão vida e movimento à estes circuitos e lugares. Para tanto é necessário complementar abordagens que se valem da quantificação, seriação de fenômenos econômicos e demográficos com uma proposta de percepção de realidades locais conectadas com um universo maior, mas que possa demonstrar aspectos políticos, sociais e culturais da vida das pessoas que participam da produção de tais fenômenos quantificáveis. 1 Nesse sentido que podemos fazer alguns apontamentos sobre o comércio e os comerciantes de uma pequena praça, a antiga Mariana, tão famosa pelo auge da mineração, mas que vive no segundo quarto do século XIX, o papel de centro mercantil regional. Portanto, no bojo de consolidação do mercado interno, na fase nacional da história do Brasil, aspectos dos tempos coloniais se confundem com a mudança, assim como não se separam claramente vida social, familiar, econômica e política. Desde já, adiantamos que uma verdadeira hierarquização permeia esta praça comercial e que esta hierarquização estava diretamente ligada à conexão da localidade, através de seus agentes, com o contexto externo. Um comerciante da cidade e o mercado interno No dia 10 de janeiro de 1832, o futuro tenente coronel da Guarda Nacional de Mariana, Honório José Ferreira Armond, escreve para seu mano, Marcelino José Ferreira Armond, residente em Barbacena, comandante, também da Guarda Nacional naquela cidade. Após manifestar seus sentimentos pelos incômodos de saúde do irmão e pelo “prejuízo com as criações”, Honório reclama: “Aqui já se fez os oficiais para a Guarda Nacional, e saíram cabras e negros; se lá não acautelarem e ficarão entregues as armas a gente de nenhum patriotismo e nem caráter”. 2 1 LINHARES, Maria Yeda. Metodologia da História Quantitativa: balanço e perspectiva. In.:BOTELHO, Tarcísio R. (org) História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia. Anpuh MG, 2001, p. 13-24. FRAGOSO, João Luís. Para que serve a história econômica? Notas sobre a história da exclusão social no Brasil. Estudos Históricos. Numero 29. Rio de Janeiro. FGV. 2002. p. 3-28, p.4. 2 Museu Imperial. Arquivo da família do Conde de Prados. 399 - 5973 a 5997 Tomb. :2004. 157 Temporalidades - Revista Discente do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 2, n.º 1, Janeiro/Julho de 2010 - ISSN:1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades Uma pequena praça comercial e seus agentes: integração mercantil e hierarquia social em Minas Gerais no século XIX. Leandro Braga de Andrade Doutorando em História - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ [email protected] Resumo: A atuação de comerciantes de Mariana, pequena praça comercial na região central de Minas Gerais, serviu como ponto de partida para uma análise da circulação mercantil no perímetro do mercado interno, bem como da hierarquização sócio-econômica local. Através da variação da escala foi possível detectar os comerciantes em diferentes contextos e perceber os aspectos que perpassam suas relações comerciais, como os de caráter político, familiar e social. Dessa forma, apresentamos notas de pesquisa que abordam as conexões econômicas regionais com um universo maior. Não obstante, privilegia também a percepção de agentes que ao mesmo tempo formam e representam o processo de integração mercantil do Brasil que se consolida no século XIX, mas que germinara em tempos coloniais. Foram utilizadas listas de habitantes, relações de casas de negócio, correspondências e inventários post-mortem para mapear alguns dos principais comerciantes da cidade nas décadas de 1820, 1830 e 1840. Palavras-chaves: comerciantes, mercando interno, Minas Gerais. Abstract The actuation of merchants of Mariana, small commercial square on the central zone of Minas Gerais, was a starting point for an analysis of mercantile flow on the internal market’s perimeter, as well as of the local social-economic hierarchization. Using scale vari- ation, it was possible to detect merchants in different contexts and to notice aspects going through their commercial relationships, such as aspects with a political, familiar, and social characteristic. In this way, we present here research notes about the regional eco- nomic connections with a bigger universe. Nonetheless, we also favor the perception of agents which, at the same time, create and constitute the Brazilian mercantile integration process, consolidated at sec. XIX but developed in colonial times. We used lists of inhabitants, lists of business houses, mail and post-mortem inventories in order to map some of the city’s main merchants on the decades of 1820, 1830, and 1840. Keywords: merchants, internal market, Minas Gerais.

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Ao referirmos à história econômica de MinasGerais no século XIX, lembramos

necessariamente de uma série de estudos que sedebruçaram sobre temas como: a decadênciaeconômica por decorrência da crise da mineração,ou ao seu contraposto, o dinamismo da economiamineira oitocentista, a utilização do trabalhoescravo e a configuração de um circuito mercantilinterno. Porém, talvez o maior desafio dessasabordagens seja ainda o de conectar realidadesregionais (relações mercantis, propriedade eacumulação, por exemplo) com um universo maisamplo. Se identificamos a formação de ummercado interno, em fins do período colonial e suaconsolidação na fase nacional, podemos tambémenxergar localidades conectadas, enriquecimentointerno e inclusive pessoas que acumulam e dãovida e movimento à estes circuitos e lugares.

Para tanto é necessário complementarabordagens que se valem da quantificação, seriaçãode fenômenos econômicos e demográficos comuma proposta de percepção de realidades locaisconectadas com um universo maior, mas que possademonstrar aspectos políticos, sociais e culturais davida das pessoas que participam da produção de

tais fenômenos quantificáveis. 1

Nesse sentido que podemos fazer algunsapontamentos sobre o comércio e os comerciantesde uma pequena praça, a antiga Mariana, tão

famosa pelo auge da mineração, mas que vive nosegundo quarto do século XIX, o papel de centromercantil regional. Portanto, no bojo deconsolidação do mercado interno, na fase nacionalda história do Brasil, aspectos dos tempos coloniaisse confundem com a mudança, assim como não seseparam claramente vida social, familiar, econômicae política.

Desde já, adiantamos que uma verdadeirahierarquização permeia esta praça comercial e queesta hierarquização estava diretamente ligada àconexão da localidade, através de seus agentes,com o contexto externo.

Um comerciante da cidade e o mercado interno

No dia 10 de janeiro de 1832, o futuro tenentecoronel da Guarda Nacional de Mariana, HonórioJosé Ferreira Armond, escreve para seu mano,Marcelino José Ferreira Armond, residente emBarbacena, comandante, também da GuardaNacional naquela cidade. Após manifestar seussentimentos pelos incômodos de saúde do irmão epelo “prejuízo com as criações”, Honório reclama:“Aqui já se fez os oficiais para a Guarda Nacional, esaíram cabras e negros; se lá não acautelarem eficarão entregues as armas a gente de nenhum

patriotismo e nem caráter”. 2

1 LINHARES, Maria Yeda. Metodologiada História Quantitativa: balanço eperspectiva. In.:BOTELHO, Tarcísio R.(org) História quantitativa e serial noBrasil: um balanço. Goiânia. AnpuhMG, 2001, p. 13-24. FRAGOSO, JoãoLuís. Para que serve a históriaeconômica? Notas sobre a história daexclusão social no Brasil. EstudosHistóricos. Numero 29. Rio de Janeiro.FGV. 2002. p. 3-28, p.4.

2 Museu Imperial. Arquivo da famíliado Conde de Prados. 399 - 5973 a5997 Tomb. :2004.

157Temporalidades - Revista Discente do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, vol. 2, n.º 1, Janeiro/Julho de 2010 - ISSN:1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades

Uma pequena praça comercial e seus agentes: integraçãomercantil e hierarquia social em Minas Gerais no século XIX.

Leandro Braga de AndradeDoutorando em História - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

[email protected]

Resumo:A atuação de comerciantes de Mariana, pequena praça comercial na região central de Minas Gerais, serviu como ponto de partidapara uma análise da circulação mercantil no perímetro do mercado interno, bem como da hierarquização sócio-econômica local.Através da variação da escala foi possível detectar os comerciantes em diferentes contextos e perceber os aspectos que perpassamsuas relações comerciais, como os de caráter político, familiar e social. Dessa forma, apresentamos notas de pesquisa que abordamas conexões econômicas regionais com um universo maior. Não obstante, privilegia também a percepção de agentes que ao mesmotempo formam e representam o processo de integração mercantil do Brasil que se consolida no século XIX, mas que germinara emtempos coloniais. Foram utilizadas listas de habitantes, relações de casas de negócio, correspondências e inventários post-mortem paramapear alguns dos principais comerciantes da cidade nas décadas de 1820, 1830 e 1840.Palavras-chaves: comerciantes, mercando interno, Minas Gerais.

AbstractThe actuation of merchants of Mariana, small commercial square on the central zone of Minas Gerais, was a starting point for ananalysis of mercantile flow on the internal market’s perimeter, as well as of the local social-economic hierarchization. Using scale vari-ation, it was possible to detect merchants in different contexts and to notice aspects going through their commercial relationships,such as aspects with a political, familiar, and social characteristic. In this way, we present here research notes about the regional eco-nomic connections with a bigger universe. Nonetheless, we also favor the perception of agents which, at the same time, create andconstitute the Brazilian mercantile integration process, consolidated at sec. XIX but developed in colonial times. We used lists ofinhabitants, lists of business houses, mail and post-mortem inventories in order to map some of the city’s main merchants on thedecades of 1820, 1830, and 1840.Keywords: merchants, internal market, Minas Gerais.

As opiniões de Honório, certamentecomungadas por seu irmão, manifestam o desejode que postos na hierarquia militar local fossemocupados por membros da elite de homens bons da

cidade.3 Esta era a visão daqueles que viam emcargos políticos e patentes a oportunidade deformar e manter seu prestígio social, mando local egarantir suas vantagens econômicas. Honório eMarcelino faziam parte de uma extensa família deproprietários e negociantes, uma das maisinfluentes da Comarca do Rio das Mortes, radicada,sobretudo em Barbacena. Honório, por sua vez,representava o braço da família, na regiãotradicionalmente mineradora, no caso, a cidade deMariana.

Mas esses dois homens de prestígio, em suasrespectivas localidades de atuação, tinham mais doque o berço em comum. Eram grandescomerciantes de fazendas secas, gênerosalimentícios e, também de escravos. O capital quemovimentava os negócios da família teve origem naprodução agropecuária, destinada aoabastecimento interno, mas foi na mercancia queele se multiplicou. O adiantamento de mercadorias(entre elas, cativos) e o empréstimo de dinheiro ajuros representou o principal negócio quearticulava os interesses de Honório, Marcelino e os

seus outros 5 irmãos.4

Todavia, os rastros deixados por Honório e suafamília nos levam a paragens mais distantes. Ocomerciante recebeu carta remetida do Rio deJaneiro por Antônio José Moreira Pinto, em 31 deoutubro de 1828, que continha a seguinte oferta:

(...) no dia 28 se recolheu felizmente nesteporto vindo de Cabinda um dos barcos emque sou interessado com 461 escravos,gente toda limpa e boa, sendo esta dasmelhores negociações que tenhointeressado por prometer grandes lucros.Se precisar de alguns me avise para lhos

remeter, o que farei prontamente (...)5

A revelação de que pretendia ter grandes lucroscom aquela leva de africanos é mais bem entendidaquando se analisa as freqüentes correspondênciasremetidas por Antônio Moreira para Honório.Trata-se de uma profunda relação de amizade (pelomenos é isso que indicam os dizeres das cartas) quese confundia com o trato mercantil.

Mas quem era Antônio José Moreira Pinto e oque sua atuação pode nos dizer? Estamos falandode um grande negociante de grosso trato da praça

do Rio de Janeiro6, um dos maiores fornecedoresde cativos para Minas Gerais, inclusive para a família

Ferreira Armond, nas décadas de 1810 e 1820. 7

Seus negócios com Honório se estendiam tambémà venda de tecidos, ao repasse de metais (ouro,

cobre e prata) e gêneros alimentícios enviados pelonegociante mineiro para a capital do Império,conforme indica o trecho de uma dascorrespondências: “(...) Quando chegar a sua tropacumprirei as suas ordens e farei as diligências pelaboa venda dos gêneros assim como da Poaia e

Prata (...)”.8 Antônio Moreira também respondiapelos interesses de Honório, conforme indica cartaremetida em 14 de abril de 1831, por JoaquimAntônio Moreira, outro comerciante carioca:

Meu amigo e senhor. Junto ao extrato de suaconta corrente do qual aparecia hum saldo a meufavor de 2:903$967 que agora recebi por mão dosenhor Antônio José Moreira Pinto, ficando destemodo, nossas contas saldas até esta data. Emconformidade de minha participação, em tempo,não há de estranhar a última parcela de 134$367debitada do prêmio de 2:769$000, antecipadas a¼ conforme corre na praça 117 que se demorou(...)9

O triângulo comercial acusado por esta cartanão parece ter sido incomum. Ele representa,talvez, o auge da confiança e, porque não, dadependência construída na relação de Honório(que perpassava pelos negócios de sua família,radicada em Barbacena) com a praça mercantil doRio de Janeiro, principal centro de atraçãomercantil e financiamento da economia no Centro-Sul do Brasil, conforme falaremos adiante. Honório

tinha nesta ocasião, 38 anos, era solteiro,10 masdesde pelos menos 1820 realizava freqüentes

viagens para o Rio a negócios.11 A experiênciaconstruída em mais de uma década lhe permitiutratar a distância, mantendo o crédito e a confiançaentre os fornecedores de sua casa comercial.

E não foi por acaso que, a partir de então, seinaugura um período de maior inserção política esocial de Honório na cidade de Mariana. Ele seincorporou ao efetivo da Guarda Nacional em1831, fora eleito vereador na cidade para o períodode 1833 a 1836 (quando já havia alcançado apatente de Coronel da Guarda) e também para o

período de 1837 a 1840.12

É possível que Honório tenha deixado a cidadeapós este período, provavelmente por causa deproblemas de saúde. Entre as correspondências doacervo da família Ferreira Armond existem algumasremetidas por Antônio Coelho Martins, de Marianapara Barbacena. O autor das cartas informafreqüentemente as produções minerais e agrícolasdas propriedades de Honório, a situação dosescravos e equipamentos, assim como a situaçãode seu crédito com pessoas residentes na cidade.

Antônio Coelho Martins, além de manifestarpreocupação com a saúde de Honório, seucompadre, utiliza tratamento obsequioso, sempredemonstrando respeito e subordinação. Ao fim dacarta de dezembro de 1842, se despede: a comadre

3 A Guarda nacional foi a corporaçãoparamilitar criada pela Regência com oobjetivo de garantir a ordem pública.Era sujeita ao Ministério da Justiça esuas forças locais ficavam a disposiçãodo juiz de paz.

4 RESENDE, Edna Maria. Ecos doLiberalismo: ideários e vivências daselites regionais no processo deconstrução do Estado Imperial,Barbacena (1831-1840). Tese dedoutorado. FAFICH/UFMG. 2008,p.149-155.

5 Museu Imperial. Arquivo da famíliado Conde de Prados. 399 - 5973 a5997 Tomb. :2004.

6 Em 1828, Antônio Pinto havia sematriculado na junta do comércioinformando possuir loja, crédito,navios e um capital de giro no valor de40:000$000. Arquivo Nacional. Junta doComércio, agricultura, navegação efábricas. Pedido de Matrícula. Códice170.

7 PINHEIRO, Fábio. O tráfico atlânticode escravos na formação dos plantéismineiros. Zona da Mata. 1809-1830.Dissertação de mestrado. IFCS/UFRJ.2007, p. 145.

8 Carta de 21 de março de 1828.Museu Imperial. 399 - 5973 a5997/2004.

9 Museu Imperial. Arquivo da família doConde de Prados. 399 - 5973 a 5997Tomb. :2004

10 Arquivo Público Mineiro.Listanominativa de habitantes de 1831.Banco de Dados NPHED/Cedeplar

11 Arquivo Nacional. Despachos deescravos. Polícia da Corte. Banco deDados IPEA.

12 PIRES, Maria do Carmo; CHAVES,Claudia Maria G. (orgs.) Casa devereança de Mariana: 300 anos deHistória da Câmara Municipal. EditoraUFOP. Ouro Preto. 2008, p. 227-228.

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e todos dessa casa lhe recomendam saúde (...) Seucompadre, amigo, venerador e criado.

É possível que o prestígio local e o respeitopessoal tenham sido conquistados por Honórioatravés do conjunto de relações estabelecidas pelonegociante, não apenas as de caráter econômico,nem tampouco à revelia destas. Honório operavaempréstimos ou vendia a prazo tanto a gentemiúda, como seu correspondente e compadre,quanto a gente importante na cidade, como ocônego e vereador, Antônio José Bhering, outrovereador, o negociante Torquato Claudiano (dequem era credor de toda sua casa comercial) e deum grande minerador local, Gomes Freire deAndrade. Ao mesmo tempo, o fato de ser defamília tão rica e prestigiosa, mesmo radicada emoutra cidade, lhe conferia algum capital sócio-político de saída. Outro elemento importante é ofato de ter tido tantos afilhados e compadres,alguns referidos como herdeiros em seu

inventário.13 Honório faleceu em 1845.O enriquecimento da família Ferreira Armond,

em Barbacena, de negociantes de Ouro Preto,Mariana, Serro e Diamantina, além da emergênciada cidade de São João Del Rey, como o grandecentro atacadista e financeiro de Minas Gerais, naprimeira metade do século XIX (todas entrepostoscomerciais da produção agropecuária mineira e deimportação), nos mostram muito mais do que umareorganização do centro dinâmico da economia da

província, antes lotado nas áreas de mineração.14

As conexões mercantis da economia de MinasGerais, no período em que a mineração nãocorrespondia ao principal ramo de enriquecimento,atendiam a uma demanda interna (crescimento dapopulação livre e escrava) mas, também se ligavama um contexto maior de dinamização do mercadointerno. A chegada de D. João VI e toda a comitivaportuguesa, em 1808, provocou uma série demudanças que possibilitaram o aquecimento e umamaior integração do mercado interno. Medidasadministrativas, abertura de caminhos e a demandacriada com o inchaço populacional do Rio deJaneiro abriram espaço para a inserção dosmineiros dos negócios de grande monta. Dessaforma, o comerciante de diversas regiões de MinasGerais passava por um momento de amplaspossibilidades de negócios, incluindo um filãogerador de lucros que foi o comércio de

escravos.15

É evidente que pela proximidade e atraçãopolítico-econômica, o Rio de Janeiro era o principalalvo de interlocução comercial de áreasinterioranas, como Mariana, sede dos negócios deHonório José Ferreira Armond. Porém, não era oúnico. Segundo Cláudia Chaves, a administração deD. João VI no Brasil esteve sempre preocupada emmensurar e incentivar o mercado interno dacolônia. A autora aponta a confecção de mapas

estatísticos populacionais de produção, consumo eexportação das capitanias com intuito de gerarinformações que manifestassem as potencialidadesde desenvolvimento do comércio interno e

conseqüentemente da arrecadação.16 Istoimplicou em uma maior integração mercantil nointerior do Brasil.

A consolidação do mercado interno, em fins doperíodo colonial e primeiros anos do Império, podeser atestada pelos estudos de João Fragoso para apraça comercial do Rio de Janeiro. A pesquisaindica a integração então estabelecida entre ascapitanias, depois províncias, do Centro-sul doBrasil. Rio Grande do Sul, Santa Catarina, SãoPaulo, Minas Gerais e o interior fluminensecomporiam este complexo mercantilestabelecendo trocas da produção local,principalmente de alimentos, que tinham o Rio deJaneiro como centro unificador. O capitalacumulado por grandes negociantes da praçacarioca também tivera como alvo de seusinvestimentos o tráfico de escravos, sendo um dosvetores do financiamento da produção agrícola,

assim como o crédito.17 Além destes circuitos,podemos acrescentar aqueles de caráter“complementar”, como o de redistribuição demercadorias para o oeste mineiro, Goias e MatoGrosso, via porto de Santos, o histórico comércioentre Minas e Bahia, ou mesmo o caminhoterrestre de muares, vindos do Sul paro o Sudeste

brasileiro.18

Diante deste emaranhado de redes comerciais,de acordo com Cláudia Chaves, há uma crescentetendência da administração colonial em centralizara cobrança de impostos e incentivos à integraçãomercantil. O processo se mantém na fase nacional,quando as câmaras municipais, e seuparticularismo, perdem poder e os interessesregionais estão “comprometidos com a construçãodo Estado Nacional no processo de independência

e com a expansão do mercado interno”.19 AlcirLenharo já havia destacado, em pesquisa sobre ocomércio de Minas Gerais com a Corte, aparticipação do setor abastecedor da economia(proprietários, negociantes e fazendeiros-tropeiros) nos rumos da formação do Estado

Nacional. 20

Ao perceber a integração mercantil e aspotencialidades de acumulação que ela oferecia énecessário reconhecer a capilaridade de seualcance e a diversidade de sua formação. Porconseguinte torna-se imperioso o reconhecimentoe atenção às dimensões mais elementares dessateia: a propriedade, a casa comercial, os agentesmercantis e suas relações políticas, familiares,pessoais etc.

Dessa forma compreendemos porque atrajetória de Honório Ferreira Armond é tão

13 RESENDE, Edna. Ecos doLiberalismo: ideários e vivências daselites regionais no processo deconstrução do Estado Imperial,Barbacena (1831-1840), p. 153.

14 GODOY, Marcelo Magalhães. Nopaís das minas de ouro a paisagem vertiaengenhos de cana e casas de negócio.Um estudo das atividadesagroaçucareiras tradicionais mineiras,entre o setecentos e o Novecentos, e docomplexo mercantil da província deMinas Gerais. Tese de doutoramento.São Paulo. FFLCH/USP, 2004 e PAIVA,Clotilde. População e economias MinasGerais do século XIX. Tese doutorado.USP. São Paulo. 1996

15 CHAVES, Cláudia M. das Graças.Melhoramentos do Brasil: integração emercando na América Portuguesa (1780-1822). Tese de doutoramento. UFF.Niterói. 2001.

16 CHAVES, Cláudia. Melhoramentosdo Brasil: integração e mercando naAmérica Portuguesa (1780-1822).

17 FRAGOSO, João L. Homens degrossa aventura: acumulação ehierarquia na praça mercantil do Rio deJaneiro, 1790-1830. Rio de janeiro.Arquivo Nacional. 1992.

18 MOURA, Denise A. Soares. Ocomércio colonial e suas relaçõescomplementares (Santos, Bahia ePernambuco, 1765-1822). EncontroNacional de História. Anpuh -2009.RESTITUTI, Cristiano Corte. Asfronteiras da província. Rotas deComércio interprovincial, Minas Gerais,1839-1884. Dissertação de mestrado.FCLAR/ UNESP, 2006.

19 CHAVES, Cláudia. Melhoramentosdo Brasil: integração e mercando naAmérica Portuguesa (1780-1822), p.237.

20 LENHARO, Alcir. As tropas damoderação. O abastecimento da Cortena formação política do Brasil. 1808-1842. São Paulo. EditoraSímbolo.1979.

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reveladora. Ela nos conduz do local ao nacional, dasrelações pessoais, familiares e políticas àstransações econômicas, seja na cidade de Mariana,antiga vila mineradora e centro comercial depequeno porte no século XIX, até aos maiscomplexos tratos mercantis na Corte. Podemosvisualizá-lo também no tráfico de escravos, numacadeia de endividamento que circula entre a capitaldo Império e o interior, em seu estabelecimentocomercial e também no contexto de rearticulação

econômica da antiga região mineradora. 21

Se adotarmos essa perspectiva, veremos quemuitos elementos são comuns ao conjunto decomerciantes de Mariana, porém, veremostambém contradições, quando forem detectadosescolhas e destinos diferentes entre os indivíduos.É o que notaremos quando analisarmos o grupo decomerciantes da cidade. Ou seja, a experiência, oconjunto de relações sociais por eles travadas, osinvestimentos, sua história familiar, tudo issocontará para o destino de cada sujeito, não apenaso rótulo profissional ou ocupacional. Na seçãoseguinte aprofundaremos este olhar.

Uma praça comercial e seus agentes

No alvorecer do século XIX, as antigas áreasmineradoras na região central de Minas Geraissofreram com a falta de oportunidades econômicase com o despovoamento. Os distritos sedes dascidades de Mariana e Ouro Preto, por exemplo, defato tiveram estagnação econômica e perdapopulacional para as áreas rurais de suasrespectivas jurisdições.

Segundo Sônia Magalhães, nos primeiros anosdo oitocentos, houve um despovoamentogradativo da cidade de Mariana e alta concentraçãode “indigentes” e “pobres” atestada pelos dadosdo rol de confessados de 1809 e a lista nominativa

de habitantes de 1819.22 Com a análise das listasnominais de habitantes, inventários post mortem eRelações de Casas de Negócio é possível identificarsinais de recuperação econômica da vila deMariana, guiada, sobretudo pelo dinamismo docomércio e do setor de transformação doméstica.23 Já o cenário de decadência de Ouro Pretodescrito por Saint Hilaire, na segunda década doXIX, parece ter se alterado, de acordo com osdados demográficos levantados por Miriam Lott e

Iraci Costa.24

Mesmo quando o centro dinâmico da economiamineira migrou para a agropecuária, sobretudo a daregião sul da capitania/província, a estruturahistoricamente montada de uma rede de negóciose caminhos permanece, na área em questão. Essarealidade foi também demonstrada por minuciosapesquisa de Clotilde Paiva que apresentouproposta de regionalização baseada nodesenvolvimento econômico das regiões de Minas

Gerais, no segundo quartel do século XIX. Achamada região Mineradora Central Oeste, queinclui os municípios de Queluz, Sabará, Ouro Pretoe parcelas do município de Caeté e Mariana,apresentou alto nível de desenvolvimento atestadopela grande circulação de mercadorias, produzidasna região ou importadas, e pela concentração deengenhos e casas de negócio, muitas delas bemsofisticadas para os padrões vigentes.

Localizada bem no centro da Província a regiãoMineradora Central Oeste tinha pauta deexportação diversificada. Enviava para o mercadodo Rio de Janeiro ouro, pedras preciosas, tecidose doces e distribuía os importados vindo de lá.Nas partes onde havia mineração oabastecimento de víveres parecia estar vindo daprópria região, mostrando uma articulação intra-regional. As relações inter-regionais tambémeram importantes. Comprava matérias-primaspara serem transformadas ou revendidasinternamente. Distribuía internamente artefatosde ferro para lavoura e mineração, tecidos e

outros manufaturados.25

Alguns elementos ajudam a compreender operfil econômico dessa região. Tanto Marianaquanto Ouro Preto mantiveram antigos papéisfundamentais na estrutura política, administrativa ereligiosa de Minas Gerais. Mariana era sede doarcebispado, concentrava a formação de clérigos eeventos. Além disso, sua jurisdição administrativaera gigantesca, alcançando longínquas regiões daZona da Mata, onde estava em curso uma expansãoagrícola. Ouro Preto, com um território maismodesto, era o centro administrativo da capitania eposteriormente da província, além de principalpalco da vida política regional. A localizaçãoestratégica no caminho que ligava as movimentadaspraças de Diamantina, Serro e Sabará, ao Rio deJaneiro, dava à cidade um papel importante naarticulação comercial existente dentro e para forade Minas Gerais.

Utilizando-se de dados como o número e adiversidade de ocupações ligadas a serviços,profissões liberais, comércio e indústria, MárioRodarte e João Antônio de Paula identificaramOuro Preto e Mariana (em 1831) no grupo dascidades de maior “centralidade urbana” de MinasGerais, além de justificar a coincidência entreurbanização e desenvolvimento econômico: “Nasregiões mais urbanizadas, as demandas dasociedade são mais satisfeitas via mercado que nasáreas rurais. Com isto, criam-se mais mercadospara bens especializados, concentrados nos lugares

centrais”.26

Os comerciantes da porção urbana de Marianae Ouro Preto integravam-se na circulação internada produção local. É o caso do difundido comércioda aguardente, produto fabricado nas fazendasmistas dos distritos vizinhos e largamente

21 Aqui recorremos à variação daescala de análise, na concepção deJaques Revel, abordagem privilegiadapor revelar dimensões e níveisvariáveis, do mais local ao mais global epor se inscrever em contextosdiferentes. REVEL, Jacques.Microanálise e constru-ção do social.In.: REVEL, Jacques. (org). Jogos deescala: A experiência da microanálise.Rio de Janeiro. Editora FGV.1998. p.28.

22 MAGALHÃES, Sônia Maria. A mesade Mariana, produção e consumo dealimentos em Minas Gerais (1750-1850). Annablume. São Paulo. 2004.p.61.

23 Animada pelo crescimento daagropecuária regional e do comérciointerno, a cidade apresenta sinais derecuperação, aparecendo umverdadeiro exército de costureiras,fiandeiras, rendeiras, sapateiros,carpinteiros, ferreiros, saboeiros ecomerciantes na listagem dehabitantes de 1831 em comparaçãocom 1819. ANDRADE, Leandro Bragade. Senhor ou Camponês? Economia eEstratificação social em Minas Gerais noséculo XIX. Mariana: 1821-1850.Dissertação de Mestrado.FAFICH/UFMG. 2007.p.53-54.

24 LOTT, Miriam Moura. Na forma doritual romano: casamento e família – VilaRica (1804-1839). São Paulo:Annablume, 2008. e COSTA, Iraci. VilaRica. População. 1719-1826. São Paulo.IPE/USP. São Paulo. 1779.

25 PAIVA, Clotilde. População eeconomia em Minas Gerais no séculoXIX, p. 115.

26 Ouro Preto e Serro estavam noprimeiro grupo no nível decentralidade urbana da província. Nosegundo grupo estavam: Mariana, Viade Campanha, Diamantina, Barbacena,Caeté e São João Del Rey.RODARTE,Mario Marcos S.;PAULA, João A.;SIMÕES, Rodrigo F. Rede de cidadesem Minas Gerais no século XIX.História econômica & História dasEmpresas. VII.1 (2004), 7-45, p. 31-34.

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consumido nos arraiais e vilas. Nas áreas rurais deMariana, por exemplo, os maiores proprietários deterras e escravos investiam no cultivo da cana e nafabricação de seus derivados. Eram eles também osprincipais demandantes de mão-de-obra escrava,que por sua vez era comercializada pelosnegociantes estabelecidos na cidade e nos

arraiais.27

A relação da produção de aguardente com ocomércio local pode ser ainda atestada pelaresposta do juiz de paz do distrito de Ponte Nova(termo de Mariana) ao presidente da província, emcumprimento a sua solicitação de relacionarengenhos e casas de negócios, no ano de 1836:

Em observância ao ofício de Vossa Excelênciacom o fecho de 16 de junho de p.p. em que medetermina envie huma relação dos Engenhosdeste Distrito em que se fabricar aguardentecom declaração dos seus motores; e em segundolugar huma dita das cazas em que se venderaguardente simples ou beneficiada com distinçãode suas cituações assim mais das loges defazendas secas e cazas de Armazéns em que sevender espíritos importados com a declaraçãodos nomes de seus possuidores, e cada hum dos

ditos estabelecimentos (...)28

O objetivo das exigências do governo,cumprido pelo juiz de paz, não era apenas deconhecer as fábricas de aguardente, mas tambémos estabelecimentos onde era vendida a bebida.Portanto, a tradição na produção e no consumo daaguardente contribui para a concentração deestabelecimentos comerciais na região. Os distritosque compunham o imenso território pertencenteao termo de Mariana, ainda em meados de 1830,detinham parte considerável do comércio fixo daprovíncia (11,5%). Se considerarmos os dados deMarcelo Godoy para a região Mineradora CentralOeste, essa proporção chega a 35,3%. 29

Em geral, os estabelecimentos que comercia-lizavam os gêneros importados e da terra (gênerosalimentícios e bebidas) era o comércio de “molha-dos” ou “armazéns”, além das “vendas” (a maioriade aguardente). Enquanto que as “lojas de fazendassecas” vendiam: “tecidos, bem como artigos devestuário, livros, instrumentos musicais, utensíliosdomésticos, peças em metal, louças, especiarias,

objetos de armarinho, papelaria, etc” .30

Embora essa tipificação tenha sido esboçadapelos juízes de paz nas Relações de Casas deNegócio, o próprio documento informa adiversificação dos empreendimentos. Na verdade,na maioria dos casos, um mesmo estabelecimentoou proprietário comercializava todo tipo demercadoria. Em Mariana havia 17 armazéns, 21estabelecimentos identificados como loja earmazém e 46 vendas de aguardente. Mas, paraque estes números e classificações façam sentido, énecessário conhecer o universo dos comerciantes

arrolados.O recurso metodológico utilizado foi o

cruzamento nominal dos donos de estabele-cimentos, descritos na Relação de Casas deNegócio de 1836, com a lista de habitantes de

1838. De 84 rastreados, foram encontrados 48nomes e a classificação apontada atende mais a umahierarquia sócio-econômica do que a qualidade dasmercadorias comercializadas.

Os donos de vendas faziam parte da populaçãomais pobre da cidade, não só porque a venda eraum pequeno estabelecimento, onde se vendia,sobretudo a aguardente, mas também porque eraonde se concentrava a presença de mulheres epardos como proprietários. Enquanto que entre osdonos de Loja e Armazém predominava oelemento masculino e branco, sinal de que setratava de outro segmento social. Os dadosconcernentes a todos os domicílios da cidadeapontam uma coincidência entre ser vendeiro,artesão (sapateiro, alfaiate, ferreiro, fiandeira ecostureira) e principalmente, ser negro ou mestiço,

e estar entre os mais pobres da população local.31

Outro dado que contribui para a compreensãoda estratificação no universo do comérciomarianense é o da população livre e escravapresente nos domicílios. Vejamos a tabela II.

Mais da metade dos moradores brancos douniverso trabalhado estava nos 12 domicílios delojistas, enquanto que quase a metade dapopulação mestiça e negra estava nos domicíliosde vendeiros. É visível também a maior presençade escravos nos domicílios dos lojistas. A média éde 8,3 cativos por proprietário. Enquanto que essamédia cai substancialmente entre armazeneiros(1,9) e vendeiros (1,8).

Evidente que estamos tratando de um universo

27 Dados obtidos com o cruzamentode listas de habitantes, Relações deEngenhos e Casas de Negócio einventários post mortem, para traçar operfil da elite agrícola da Freguesia deFurquim, no interior do Termo deMariana, que demonstra o recorrentevínculo do enriquecimento com aprodução da aguardente. ANDRADE,Leandro. Escravo ou Camponês.Economia e estratificação social emMinas Gerais no século XIX. Mariana1820-1850, p. 199.28 Arquivo Público Mineiro. Relaçãode Engenhos e casas de negócio –1836: SPPP 1/6 – Cx7- D3

29 GODOY, Marcelo. No país dasminas de ouro a paisagem vertiaengenhos de cana e casas de negócio.Um estudo das atividadesagroaçucareiras tradicionais mineiras,entre o setecentos e o Novecentos, e docomplexo mercantil da província deMinas Gerais, p. 256.

30 GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro.A princesa do Oeste e o Mito dadecadência de Minas Gerais. São JoãoDel Rei ( 1831 – 1888). Editora

Annablume. São Paulo. 2002, p. 61-62

31 Em 1831, 90% dos chefes dedomicílios que não tinha escravoseram pretos, crioulos e pardos. Jáentre os que possuíam escravos,apenas 17% eram negros ou mestiços.Assim, a cor acompanhava o nívelsocial e econômico. ANDRADE,Leandro. Escravo ou Camponês.Economia e estratificação social emMinas Gerais no século XIX. Mariana:1820 -1850, p. 70

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em que o tamanho da posse de escravos (diferenteda agricultura) não é o melhor indicador deriqueza. Comerciantes direcionavam a maior partede seus investimentos em mercadorias, imóveis e,principalmente, dívidas ativas. Porém, a presençado elemento cativo, com alto valor comercial neste

período32, pode sim ser um indicador de statussocial e capacidade de acumulação. Entre os 12donos de lojas, todos possuíam escravos, entre os14 armazeneiros, 11 tinham cativos e já entre os 22donos de vendas, apenas 10 tinham escravos.

Por esse conjunto de indicadores percebe-seuma profunda hierarquia entre os comerciantes deMariana, não apenas pelo produto comercializado,mas pela posição social do proprietário, tamanho elocalização dos estabelecimentos. Entre os lojistasem que já foi possível detectar o inventário de seusbens, é possível verificar a preferência por casassituadas em duas localidades: a Rua Direita e asproximidades da “Ponte das areias”, ambas na área

que circunda a igreja da Sé de Mariana.33

Homens de negócio, Homens Bons

Os indícios até aqui trabalhados sugerem queesses donos de lojas (que também comercializavammolhados) eram os principais fornecedores demercadorias no atacado, de escravos e doempréstimo de dinheiro a juros na cidade. Porconseguinte, podemos concluir que eles eramtambém os sujeitos que conectavam a cidade comuma cadeia comercial mais ampla. Os contatos deHonório José Ferreira Armond na Corte para avenda de gêneros e compra de escravos não eramexclusivos. Pelo menos outros 5 comerciantes

marianenses circularam por lá na década de 1820.A tabela III descreve as passagens na Polícia daCorte para registrar o despacho de escravos paraMinas.

Entre 1817 e 1832, mesmo que em anosalternados, foram identificados diversos registrosde comerciantes de Mariana, sendo que ManoelJosé de Carvalho e Honório José FerreiraArmondes foram os mais assíduos. A primeira

conclusão que esses achados nos fornecem é que ocomércio de Mariana não estava restrito aoscircuitos locais. Mesmo que ainda não se possammensurar todos os elementos desse contato, dealguma forma a produção local também alcançava oprincipal centro da economia brasileira e por outrolado demandava escravos e manufaturados.Infelizmente, somente com os cruzamentos feitos,não se pode calcular a medida da entrada deafricanos na região. No entanto, já podemosafirmar que essa inserção existiu e que era feita,também pela elite de negociantes locais.

Em um trabalho minucioso, que está em faseinicial, é possível rastrear alguns destes agentes erecolher um maior número possível deinformações. Foi dessa forma que chegamos aoinventário dos bens de 10 dos comercianteslistados em 1836, como donos de Lojas ouArmazéns. O que mais chama a atenção, na análisedo conjunto dos processos, é marca de 52% dovalor dos bens deste pequeno universo investidoem dívidas ativas. Nos arrolamentos do crédito, foipossível atestar que servia a diversas situações:venda de mercadorias no varejo (a prazo),empréstimo de dinheiro a juros, fornecimento demercadorias a pequenos comerciantes e deescravos a proprietários locais.

A maior fortuna inventariada foi a do SargentoMor Manoel José de Carvalho. De 119:740.875(em contos de réis), 55% se referia a dívidas ativas.Entre os 15 devedores do comerciante,identificados na lista de habitantes, estão 9comerciantes, 1 mineiro, 1 advogado, 1 escrivão, 1

lavrador, 1 sapateiro e 1 carpinteiro.Todos eleseram brancos e proprietários de escravos. Asdívidas dos comerciantes decorriam da compra demercadorias no atacado para serem revendidas naspequenas vendas da cidade. O universo de 15pessoas é muito pequeno diante dos mais de 200devedores dos negociantes. A dificuldade deidentificação dos devedores nas listagens dehabitantes do termo de Mariana pode decorrer da

32 Após 1830, em todas as regiões deMinas Gerais há uma forte elevação dopreço de escravos por conta daproibição legal do tráfico. BERGAD,Laird W. Escravidão e HistóriaEconômica: demografia de Minas Gerais,1720-1888. São Paulo EDUSC. 2004

33 Partindo da Igreja da Sé até a Pontedas areias estaria ao final da mesmaRua Direita. DAMASCENO, Cláuidia.O espaço urbano de Mariana: suaformação e suas representações. In:Termo de Mariana: História eDocumentação. Editora da UFOP. OuroPreto. 1998, p. 65

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mobilidade espacial da população mais pobre oupelo fato de Manoel José de Carvalho também teratuado em outras regiões.

Os pequenos e médios empreendedores locaisdependiam do fornecimento de mercadoria e docrédito por parte dos maiores negociantes. Noinventário dos bens do Capitão-Mor José Ferreirade Oliveira, em 1845, foi arrolado o valor de35:704$518 em dívidas ativas. Desses, 7:300$000pertenciam à “dívida da casa falida de HenriqueLebet”. Henrique Lebet havia sido listado, em1838, como comerciante na cidade de Mariana.

O mesmo ocorreu com Torquato Claudiano deMoraes, dono de Loja de Fazenda Seca, que faleceuem 1843. Dois anos mais tarde, no arrolamento dasdívidas ativas do também lojista Honório JoséFerreira Armondes, a casa do já falecido Torquatoaparecia com uma dívida de 2:857$000. Sejaatravés de transações avultadas ou de pequenosempréstimos, o fato é que os lojistas podem teroperado como verdadeiros financiadores daeconomia local.

O capital produtivo também teve importâncianos investimentos dos negociantes. Somente 2deles não possuíam bens agrícolas (terras,benfeitorias e animais) e em 5 casos, o capitalrevertido em escravos foi superior ao valor dasdívidas ativas. Ainda assim, se agruparmos os bensagrícolas e escravos eles somariam 35%,proporção bem inferior aos 63% alcançados peloagrupamento das dívidas ativas, mercadorias eimóveis urbanos.

Afonso Graça Filho encontrou tendênciasemelhante para os grandes negociantes da praçade São João Del Rey.

(...) os investimentos de capitais nas atividadesprodutivas (terras, lavouras, animais e escravos)era inferior ao esterilizado em imóveis urbanos,apólices ou dívidas ativas. Resulta disso, que osnegociantes de grosso trato não eramfazendeiros e nem aplicaram a maior parte deseus capitais nas atividades do campo ou em

escravos.34

É necessário advertir que não se podeconsiderar irrelevantes os valores destinados aocapital produtivo. De fato, esses investimentos nãoeram pequenos entre alguns negociantes de

Mariana e tão pouco de São João Del Rey35. Alémdo mais, os investimentos em fazendas e escravostraziam a estabilidade que o comércio não ofereciae ainda possibilitava a produção de parte dasmercadorias revendidas no mercado local eexterno. A participação majoritária de dívidas ativasnos investimentos dos comerciantes inventariadosrevela que mesmo ao final da vida não haviatendência de conversão total do capital acumulado

no comércio para bens agrícolas.36 Essas atividadeseram exercidas concomitantemente e a busca por

status social poderia ser simbolizada pelo controledo crédito, títulos nobiliárquicos e patentes

militares.37

O “gozo do prestígio social, advindo do

domínio rural”, descrito por Sheila Faria38,também não parece ter convencido o homem maisrico de Mariana no final da década de 1830. ManoelJosé de Carvalho viveu até a sua morte na cidade emesmo investindo em atividades agrícolas nãoabandonou a mercancia. Provavelmente, ele eoutros comerciantes faziam parte de famíliasenraizadas na cidade e que no passado haviam sidoengajadas na mineração. Talvez Mariana, por tersido um centro econômico de dimensão regionalnão teria funcionado como zona de atração demuitos aventureiros e o comércio tenha sidodominado por antigos mineradores e/oufazendeiros.

Manoel José de Carvalho foi listado em 1819como lavrador, mineiro e negociante. Na ocasiãoforam registrados apenas 5 escravos em seudomicílio. Durante a década de 1820 até o ano de1832 houve 9 passagens do comerciante noregistro de escravos na Polícia da Corte do Rio deJaneiro. As remessas de cativos somaram 136 peçasem 11 anos (ver tabela III). Na lista nominativa de1831 Manoel José fora identificado como lavrador ecomerciante, além de trazer o título de Sargento-Mor. Este possuía também 13 cativos, dos quais 9eram africanos. O curioso é que a identificação demineiro desaparece ao passo que a mineração decaie os negócios de Manoel José parecemredirecionados para o comércio e a agricultura.

Já em 1836 o seu nome vem listado nasRelações de Casas de Negócio, como proprietáriode Loja de Fazendas Secas. Apenas 3 anos maistarde, por decorrência de seu falecimento, foraminventariados todos os seus bens. Além de 3 casassituadas na cidade, pequenas terras minerais emAntônio Pereira, o sargento-mor possuía tambémuma fazenda completa (no valor de 6:500$000)com engenho, moinho, plantação de milho, feijão,cana, arroz e criação de gado bovino e suíno. Cercade 19% de seus bens estavam investidos em 60escravos, dos quais 6 eram africanos e 54 eramcrioulos. A polivalência da trajetória de Manoel Joséde Carvalho ainda pode ser vista em sua constantepresença entre os vereadores eleitos para a

Câmara Municipal de Mariana.39

Como temos percebido, ao aproximarmos ofoco de análise da cidade, sua praça comercial ealguns indivíduos de destaque, revelou-se umcomplexo de atuações e relações que nos obrigampensar uma abordagem que extrapole o âmbitodos negócios. Portanto, os comerciantesmarianenses não formam um grupo homogêneo eseus destinos dependem da experiência acumulada

na trajetória.40

Nesse sentido é que podemos identificar o

34 GRAÇA FILHO, Afonso . A princesado Oeste e o Mito da decadência deMinas Gerais. São João Del Rei (1831 –1888). 2002, p. 89

35 Graça Filho apresenta acomposição da riqueza de 31negociantes grossistas da praça de SãoJoão Del Rey, dos quais 19 possuíamimóveis rurais. GRAÇA FILHO, Aprincesa do Oeste e o Mito dadecadência de Minas Gerais. São JoãoDel Rei (1831 – 1888), p. 86-88.

36 Referimo-nos ao pressuposto deum ideal aristocratizante quetransmutava o negociante emfazendeiro, advindo do desejo deinserção social, tornando transitória aprática comercial em núcleos urbanosinterioranos. FARIA, Sheila de Castro.A colônia em movimento. Rio de Janeiro.Nova Fronteira. 1998, p. 165-166.

37 Graça Filho faz referência à tese doarcaísmo como projeto de João Fragosoe Manolo Florentino que detectaramna elite mercantil carioca, da primeirametade do século XIX, uma tendênciaà conversão do capital mercantil emdireção ao capital produtivo. GRAÇAFILHO, A princesa do Oeste e o Mito dadecadência de Minas Gerais. São JoãoDel Rei (1831 – 1888), p. 89.

38 FARIA, Sheila. A colônia emmovimento, p. 166.

39CHAVES, Claudia Maria. G. (org)Casa de vereança de Mariana: 300 anosde História da Câmara Municipal.Editora UFOP. Ouro Preto. 2008, p.226-228.

40 Recorremos à Simona Cerutti paraquem a experiência relacional dosindivíduos pode revelar a criação degrupos sociais, ao contrário de tomar opertencimento como algo evidente eapriorístico. CERUTTI, Simona.Processo e experiência: indivíduos,grupos e identidades em Turim oséculo XVII. In.: REVEL, Jacques. (org).Jogos de escala: A experiência damicroanalise. RJ. FGV. 1998. p. 188.

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grupo que estamos estudando não apenas como“comerciantes”, mas como vereador, militar, pai,padrinho, irmão, agricultor, mineiro, senhor etc.Uma busca na formação da câmara de vereadoresde Mariana nas décadas de 1820 ,1830 e 1840 nospermitiu encontrar alguns negociantes eleitos.Outros indivíduos foram rastreados a partir daRelação de Casas de Negócio de 1836 eidentificados, quando possível, em outrosconjuntos documentais: listas de habitantes de1819, 1831 e 1838, além de inventários postmortem. A superposição de todas essas referênciasnos trouxe um quadro que retrata a variedade derelações sociais, políticas e econômicas em que seencontravam 14 comerciantes da cidade deMariana. Portanto, uma ênfase mais horizontal equalitativa de análise do que a busca de uma

representatividade numérica. A tabela IVapresenta o panorama resultado dos cruzamentosnominais.

Na categoria “Vereança” são identificados onúmero de mandatos e os períodos para os quaisforam eleitos os indivíduos selecionados. Em“atividades econômicas” aparecem o termo“comércio”, quando identificado na lista dehabitantes, e os termos “Loja” e/ou “Armazém”,quando identificados na Relação de Casas denegócio. Já a categoria “escravos” apresenta onúmero de escravos pertencentes ao comerciantedescritos no inventário ou na lista de habitantes.

Apesar de muitos comerciantes investiremtambém na agricultura, tudo indica que o comércioera, na maioria dos casos, a principal atividadeeconômica. Com exceção de Manoel José de

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Carvalho, que fora listado como “lavrador enegociante ”, todos os outros aparecem na lista dehabitantes como “negociantes”. É assim que eleseram identificados, como moradores da cidade,além da já mencionada superioridade de seusinvestimentos em mercadorias, imóveis urbanos edívidas ativas sobre terras e escravos. Porém seriademasiado reducionismo se não considerarmosoutros papéis econômicos, políticos e sociaisdesempenhados por esses agentes.

O reconhecimento por terem umestabelecimento comercial na região central dacidade, a rede de favores e amizades construídapela venda a prazo ou empréstimo em espécie eainda, as possíveis relações familiares podem terconferido certo prestígio e confiança aos maiorescomerciantes junto à população da cidade. Isto estásugerido pela identificação de altas patentes daguarda e de eleições para vereadores, alguns pormais de um mandato. A despeito da lamentávelausência de fontes, e conseqüente lacuna deinformações, é possível verificar certa coincidênciaentre propriedade de loja/patente militar/riqueza/vereança. Considerando que, como jáadiantamos, o lojista era o comerciante com maiorcontato com uma rede social e mercantil maisampla (no perímetro do mercado interno), estarligado ao mundo exterior era condiçãofundamental para ser “elite” no universo local.

Por outro lado, tais coincidências, não resumemo grupo. Nem todo rico comerciante era lojista,como no caso do armazeneiro José AlexandreRamos, e nem todo lojista, vereador e militar tiveramesma origem e destino.

Se considerarmos a cor como elementoindicativo da origem humilde do sujeito, veremosque este foi o caso de 4 dos indivíduos presentes natabela IV. Um deles,Torquato Claudiano de Moraes,pardo, aos 16 anos fora registrado, em 1819, comoagregado da casa do pequeno comerciante

Bernardo José Vilela.41 Apesar de listado como“estudante”, parece ter sido como agregado dacasa que o jovem aprendera a lidar com osnegócios. Em 1831, já podemos encontrarTorquato chefiando um domicílio e identificadocomo “comerciante”. Naquele fogo vivia umagregado, seu caixeiro, o pardo Fidélis José Vilela(que apesar do sobrenome não aparece comoherdeiro do finado Bernardo José Vilela) e 6escravos. Na relação de Casas de Negócio de 1836fora listado como proprietário de Loja e Armazém.Dois anos mais tarde, na lista de habitantes,Torquato aparece novamente como “comerci-ante”, agora já casado, dono de 5 escravos e com 5agregados, curiosamente listados com a mesmaocupação polivalente: “lavrador, criador emineiro”. Tudo indica que a essa altura o lojistaainda mantinha sua casa comercial na “Ponte dasAreais”, mas já investia na mineração e agricultura.

Em 1842, em correspondência enviada porAntônio Coelho Martins à Honório José FerreiraArmond, o primeiro diz ter passado a escritura deuma propriedade vendida por Honório a Torquato

Claudiano.42

Antes disso, Torquato havia sido eleito para avereança dos anos de 1841-1844. Porém, faleceuantes de completar o mandato, em 1843, compouco mais de 40 anos, quando o inventário deseus bens arrolou mercadorias, dívidas ativas, lavrasminerais, 7 escravos, além do seu imóvel na “Pontedas Areias”.

A julgar pelo tamanho do seu monte-mor (vertabela IV), a riqueza de Torquato era incomum, para

o padrão da população,43 porém modesta secomparada a grandes lojistas como Manoel José deCarvalho. No entanto, é sua trajetória que nos chamaa atenção, as prováveis escolhas, diante do quadro decrescimento do mercado interno e de recuperaçãode Mariana na passagem da crise da mineração. Estecaminho fez com que, de alguma forma, alcançasseascensão econômica, social e política.

Certamente que maiores conclusões a respeitoda trajetória biográfica de Torquato poderão sertiradas somente com a análise do conjunto dasrelações familiares, sociais e comerciais, nãocontempladas por referências pontuais, como aquiapresentadas. Mas alguns sinais podem apontarpara futuras investigações: já sabemos da origemhumilde de Torquato (era agregado de um pobrecomerciante), além de ser mestiço (com provávelorigem ou descendência na escravidão), diferentede quase todos os outros lojistas, elementos quedificultariam sua ascensão; e sabemos também que,quando pôde, fez escolhas semelhantes: alocalização de sua casa, vendas a prazo, a aquisiçãode escravos, terras e o cargo de vereador.

O nível de acumulação, a inserção e ascensãosócio-política dos grandes comerciantes locaisainda merecem pesquisas mais detalhadas. Porém,os indícios já coletados sinalizam para a importânciada presença desses agentes, no abastecimentoregional, na conexão com um universo mercantilmais amplo e por conseqüência na constituição deuma elite. Ao ganhar fôlego pelo desenvolvimentodo comércio e da agropecuária, a antiga regiãomineradora, se inscreve no crescimento domercado interno, gerando oportunidades deacumulação e ascensão de novos agentes, comoTorquato Claudiano de Moraes, e também paraantigos homens bons da sociedade mineira comoHonório José Ferreira Armond e Manoel José deCarvalho.

Assim ocorreu com os famosos negociantesgrossistas de São João Del Rey, já citados,financiadores da economia regional e com presençagarantida na praça comercial da capital do Império.A pujança de suas fortunas teve origem nacirculação da produção abastecedora regional enacional. 44

41 Arquivo Histórico da CâmaraMunicipal de Mariana. Lista nominativade 1819. AHCMM. Banco de dadosNPHED /Cedeplar/UFMG.

42 Carta de 25/04/1842. MuseuImperial. 397-5955/2004. Como jámencionamos a massa falida da casacomercial de Torquato aparece nadívida ativa do inventário de HonórioJosé Ferreira Armond, em 1845.

43Sobre o padrão de riqueza deMariana no século XIX ver ALMEIDA,Carla M. de Carvalho de. Alteraçõesnas unidades produtivas mineiras:Mariana 1750-1850. Dissertação deMestrado em História. Niterói.ICHF/UFF, 1994. e ANDRADE,Leandro. Escravo ou Camponês.Economia e estratificação social emMinas Gerais no século XIX, p.131 e132.

44 GRAÇA FILHO, Afonso. A princesado Oeste e o Mito da decadência deMinas Gerais. São João Del Rei (1831 –1888).

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Situada na Comarca do Rio das Mortes,Barbacena também foi identificada por EdnaResende como um importante entrepostocomercial com a Corte. Ao fazer uma análiseprosopográfica de famílias proeminentes da cidadee sua inserção na vida política da província e dopaís, a autora identifica que o consórcio entreprodução agropecuária, tráfico negreiro, casacomercial, o crédito e alianças familiares, eragerador de fortuna, prestígio e influência política.Entre essas famílias estavam os Ferreira Armond,de onde nasceu Camilo Maria Ferreira Armond,filho de Marcelino, deputado, futuro Conde dePrados e um dos propagadores das idéias liberais

via imprensa barbacenense.45

Essa rede de centros de comércio regional, daqual Mariana participava, com suas peculiaridades,fora gestada no período colonial e parece ganharforma no processo integração mercantil nacional.Este processo é bem representado pela atuaçãodos negociantes como interlocutores da economialocal com o centro de desenvolvimento domercado interno.

Em uma escala maior, Riva Gorenstein fala daascensão social dos negociantes do Rio de Janeiro,através do enriquecimento trazido peloincremento do comércio interno no períodojoanino e nacional. Este é um momento em que aspráticas comerciais passam por significativasinovações, forçadas pela abertura econômica econcorrência com agentes metropolitanos eingleses, ao mesmo tempo em que mantémcaracterísticas tradicionais:

Este negociante exerceu suas atividadescomerciais em uma sociedade escravista econservadora onde o prestígio social, as relaçõesfamiliares e as ligações com a burocracia poítico-administrativa tinham um peso considerável nosnegócios, mas na qual já se encontravampresentes forças renovadoras que o obrigarammudar seu padrão de comportamento.Continuou conservador e patriarcal (...) Aomesmo tempo adquiriu características“empresariais”, em função do desenvolvimento

do comércio, do aumento da concorrência (...)46

O processo histórico das práticas mercantis éentendido pela autora como manutenção de algunse inovação de outros aspectos, “uma continuidadedo velho para o novo, não no sentido de resistênciaa mudança, mas no sentido de adaptação àstransformações que ocorriam no período”.47 Háum cuidado de perceber que tanto as práticasmercantis quanto culturais não se alteramabruptamente por força do evento, mas queconvivem em um processo. Porém, a tese não abrepossibilidade de fraturas ou contradição no padrãode comportamento, no que diz respeito a escolhasindividuais que possam divergir da estruturaeconômica ou cultural.48

Em uma escala de observação local podemos

sugerir, com as poucas informações que temos, tais“divergências”. O já citado, Manoel José deCarvalho, negociante mais rico de Mariana nadécada de 1830, a despeito de sua história ligada amineração, atividade econômica de prestígionaquela região, tinha 61% de sua fortuna investidaem mercadorias e dívidas ativas, além de 35%,dedicados a escravos e bens agrícolas (terras,benfeitorias e animais). Portanto, uma notávelreorientação de seus investimentos, seguindo aconjuntura de consolidação do mercado internoabastecedor e aproveitando as oportunidadeseconômicas. Se houve busca de notabilidade porparte do negociante, esta não se deu aplicando ematividades menos rentáveis. Por outro lado,Torquato Claudiano, ainda jovem quando amineração era abandonada por muitos, adquiriuterras minerais, depois de duas décadas deatividades ligadas ao comércio e de ter se tornadolojista no centro da cidade. Somente umainvestigação mais detalhada pode revelar asmotivações e conseqüência dessa aquisição,porém, podemos dizer, a priori, não ter sido aprática daqueles que mais enriqueciam na região.

O que temos aqui não são conclusões, masapontamentos para uma abordagem que consigaperceber a prática de agentes comerciais de umapequena praça, diante de um processo históricomaior, a integração mercantil nacional. Ainda estápor fazer, por exemplo, uma análise das reações eações desses comerciantes no bojo de mudançasprocessuais e eventos políticos pelos quais passavao Brasil na primeira metade do século XIX.

Mais uma vez recorremos às correspondênciasrecebidas por Honório José Ferreira Armond.Desta vez para visualizar situações políticas e domercado sentidas em seu raio de integração.Escreve Antônio José Moreira Pinto em 12 demarço de 1828:

(...) Hoje saiu meu barco para a costa da África eespero esteja aqui até fins de julho ou meados deagosto. As fazendas têm subido o mais que setem dado todas em geral e por isso lherecomendo que repute as que tiverem ser, poisque apesar de estarem caras, contudo nem aomenos têm chegado, nem há sortimentos. Ocâmbio tem subido muito e por esse motivo temsubido a prata (...) e o ouro (...).Tem esta praça estado em um estado muito tristecom as tomadas que nos tem feito os corsáriospois que estes nos tem tomado trêsembarcações com mais de 1.200 negros, sendoduas de nosso amigo Constantino e outra de JoséJoaquim da Rocha, por esse motivo já se temvendido negros a 380$000 e 400$000, o que lhedeverá servir de governo pois que não torna a

comprar outra pechincha. (...)49

As dificuldades do mercado, seja do câmbio,dos preços das fazendas ou de escravos se devem

45 RESENDE, Edna. Ecos doLiberalismo: ideários e vivências daselites regionais no processo deconstrução do Estado Imperial,Barbacena (1831-1840).

46 GORENSTEIN, Riva. Comér-cio epolítica: enraizamento de interessesmercantis portugueses no Rio de Janeiro.(1808-1830). In: MARTINHO, LeniraM. e GORENSTEIN, Riva. Negocian-tes e caixeiros na sociedade daindependência. Rio de Janeiro.Biblioteca Carioca, 1993, p. 135

47 GORENSTEIN, Riva. Comér-cio epolítica: enraizamento de interessesmercantis portugueses no Rio de Janeiro.(1808-1830), p. 145

48 Lembramos Geovanni Levi, para oqual se deve perceber ambigüidades econtradições nos processos culturais,econômicos e políticos, sendo a açãodo indivíduo (dentro de sua margem deliberdade) campo privilegiado para talobservação. LEVI, Geovanni. HerançaImaterial. Trajetória de um exorcista noPiemonte do século XVII. Rio de Janeiro.Civilizaçao Brasileira. 2000. p. 45.

49 Museu Imperial.Arquivo da Famíliado Conde de Prados. 399 – 5976/Tomb. 2004.

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ao momento político do Brasil e internacional. Noauge do primeiro reinado, o país se envolvia emconflito armado com as Províncias Unidas do Pratao que desencadeou conseqüências para praçacomercial carioca. O Estado se achava em apurosfinanceiros o que o fez recorrer ao Branco Brasilpara obter capitais, sendo este obrigado a emitirmoeda, sobrevalorizando os metais. SegundoSebastião Soares Ferreira, o período da guerra(1825-1828), fora um dos momentos de pânicocomercial passageiros, desde a independência até a

grande crise de 186450. A situação de incerteza eoscilações dos preços chama atenção de AntônioMoreira que mantém Honório informado, mas éclaro, estimula a compra de mercadorias. Outrafaceta dos negócios indicada pela carta é ainformação das mudanças no câmbio, o queinteressava a Honório para o seu comércio demetais. O apresamento de navios negreiros porcorsários ingleses também interferia no principalramo da relação mercantil entre Antônio Moreira ea família Ferreira Armond, o comércio de cativos.

Em carta do dia 10 de outubro de 1828, asnotícias anunciadas por Antônio José Moreira Pintojá eram mais animadoras: “As fazendas tem tidogrande baixa em conseqüência das notícias que háde paz. Estas notícias tem causado outro tanto emtodos os metais e sobretudo as notas de 1$000 réise 2$000 que principiam agora a circular nesta

capital”.51

Tanto as correspondências quanto a própriarealização das transações comerciais colocavam osnegociantes lojistas em um lugar privilegiado navida econômica e política da cidade, por causa dasinformações que a eles chegavam e afetavam dianteda amplitude de seus negócios. Ou seja, aodebruçarmos sobre este universo verificamosgrandes possibilidades de variação do foco deanálise: de uma conjuntura político-econômicanacional até a oferta do produto noestabelecimento comercial, ou o caminho inverso,da absorção da produção agropecuária emineradora local até o abastecimento da Corte.

A aproximação de Honório com o centro dopoder, através de seus contatos comerciais,também servia a outros propósitos. Naquelamesma carta de 12 de março de 1828, o parceirocarioca avisava: “Ainda lhe não posso dar soluçãodas patentes dos seus afilhados pelas contínuasempulhações do procurador”. No dia 31 domesmo mês continua a prestar contas das“demandas” de Honório:

(...) Ainda por este correio lhe não possoremeter a profissão do Hábito doReverendíssimo Vigário Joaquim Leandro porcausa das férias que não podem ser registradassem elas acabarem. Quanto as patentes, agorame diz o procurador que ainda não estão

assinadas [...].52

Se Honório José fazia parte de uma rede deamizades e troca de favores permeada pelosnegócios e centralizada em Antônio José MoreiraPinto, ele também tinha no nível local os seusafilhados com quem, provavelmente, mantinharelações semelhantes. Na carta, Honório e AntônioJosé aparecem como intermediários do pleito doHábito da Ordem de Cristo (título honorífico dosmais cobiçados) por parte de um padre. Em relaçãoàs patentes dos indicados pelo negociante mineirorevela-se seu interesse de controlar a nomeaçãode oficiais, o que se mantém no momento decriação da Guarda Nacional, como já verificamosem carta enviada a Marcelino, que vale repetir: Aquijá se fez os oficiais para a Guarda Nacional, e saíramcabras e negros; se lá não acautelarem e ficarãoentregues as armas a gente de nenhum patriotismo e

nem caráter53

Todo o conjunto de relações e interesses deHonório não está inscrito apenas na busca do lucro,nem tampouco no objetivo cego de ter statussocial. É um emaranhado que certamente poderiaresultar em mais prestígio, mais poder e maisnegócios, mas também revelar solidariedades maishorizontais, nem tanto perpassadas pelainstrumentalização do ato em prol do interesse.

O fato é que a abordagem de aspectos da vidade Honório perpassou pelo grupo de comerciantesde Mariana, pelas relações econômicas, sociais epolíticas da praça e também pelo processohistórico mais amplo (integração mercantil na fasenacional). O entrecruzamento de escalas deobservação realmente deixa mais clarividente emenos impressionista o mundo social analisado,

como nos sugeria Jaques Revel.54

Porém, ainda muitos avanços estão por vir.Nesta fase de pesquisa poucos e esparsosdocumentos nos informam da trajetória pessoal, dotrato mercantil e da acumulação dos comerciantesda região. Do mesmo modo, ainda carecemos deuma série documental mais segura que demonstreas conexões estabelecidas entre uma pequenapraça comercial e os circuitos mercantis domercado interno. O que já podemos apresentarsão, tão somente, sinais e indicadores parainvestigações futuras. Por outro lado, este modelode abordagem que tenta aliar a tradição da seriaçãoe quantificação da história econômica de MinasGerais com uma variação da escala e a identificaçãodos sujeitos em diversos contextos ainda merecereflexões e experiências empíricas mais completas.

50 SOARES, Sebastião Ferreira.Elementos de Estatística:Comprhendendo a theoria da sciencia esua aplicação à estatística comercial doBrasil. Rio de Janeiro. Typographianacional. 1965. Tomos I, p. 222.

51 Museu Imperial. Arquivo da Famíliado Conde de Prados. 399 – 5997.Tomb. 2004

52 Museu Imperial. Arquivo da Famíliado Conde de Prados. 399 – 5978.Tomb. 2004

53 ALBUQUERQUE. Antônio LuizPorto. Formação e apogeu daaristocracia rural em Minas Gerais –1800 – 1888: Elementos para um estudode caso. Rio de Janeiro. Xerox doBrasil. 1988, p. 92

54 REVEL, Jacques. Microanálise econstrução do social. In:Jogos de escala:A experiência da microanálise

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