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Revista História Hoje O lugar da formação dos professores nos cursos de História ANPUH - Brasil

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Revista História Hoje

O lugar da formação dos professores nos cursos de História

ANPUH - Brasil

Diretoria NacioNal • aNPUH - Brasil • GestÃo 2011-2013

Presidente: Benito Bisso Schmidt – UFRGSVice-Presidente: Margarida Maria Dias de Oliveira – UFRNsecretário Geral: Angelo Aparecido Priori – UEM1o Secretário: Antonio Celso Ferreira – UNESP2o Secretário: Carlos Augusto Lima Ferreira – UEFS1o Tesoureiro: Francisco Carlos Palomanes Martinho – USP2o Tesoureiro: Eudes Fernando Leite – UFGDeditora da revista Brasileira de História: Marieta Moraes Ferreira – UFRJ/FGVeditora da revista História Hoje: Patrícia Melo Sampaio – UFAM

coNselHo coNsUltivo • aNPUH - BrasilAlmir Félix Batista de Oliveira – ANPUH-RNAltemar da Costa Muniz – ANPUH-CEÁurea da Paz Pinheiro – ANPUH-PIBraz Batista Vas – ANPUH-TOCélia Costa Cardoso – ANPUH-SECélia Tavares – ANPUH-RJÉlio Chaves Flores – ANPUH-PBEurelino Coelho – ANPUH-BAHélio Sochodolak – ANPUH-PRHideraldo Lima da Costa – ANPUH-AMJaime de Almeida – ANPUH-DFJoão Batista Bitencourt – ANPUH-MAJulio Bentivoglio – ANPUH-ESLuís Augusto Ebling Farinatti – ANPUH-RSLuzia Margareth Rago – ANPUH-SPMarcília Gama – ANPUH-PEMaria da Conceição Silva – ANPUH-GOMaria de Nazaré dos Santos Sarges – ANPUH-PAMaria Teresa Santos Cunha – ANPUH-SCNeimar Machado de Sousa – ANPUH-MSRonaldo Pereira de Jesus – ANPUH-MGSérgio Onofre Seixas de Araújo – ANPUH-ALThereza Martha Borge Presotti Guimarães – ANPUH-MT

RePReSenTanTe da anPUH/BRaSil no ConSelHo naCional de aRqUiVoS (ConaRq)

Ismênia de Lima Martins – UFF (Titular)Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira – UERJ (Suplente)

Revisão: Armando OlivettiDiagramação: Flavio Peralta (Estúdio O.L.M.)

Revista História Hoje

O lugar da formação dos professores nos cursos de História

Revista História Hoje Vol. 1 No 3, ISSN 1806-3993 • Biênio: Agosto de 2011 a Julho de 2013

Editora ResponsávelPatrícia Melo Sampaio – UFAM

Conselho editorial da RHHJAndréa Ferreira Delgado – UFSCÂngela Maria de Castro Gomes – UFFCirce Maria Fernandes Bittencourt – USPDilton Cândido Santos Maynard – UFSEEduardo França Paiva – UFMGFlávia Eloisa Caimi – UFPFJosé Miguel Arias Neto – UELJosenildo de Jesus Pereira – UFMAKeila Grinberg – UniRioLuiz Carlos Villalta – UFMGMarcelo de Souza Magalhães – UniRioMauro Cézar Coelho – UFPAMônica Lima e Souza – UFRJNilton Mullet Pereira – UFRGSSusane Rodrigues de Oliveira – UnB

Conselho consultivo da RHHJAna Livia Bomfim Vieira – ANPUH-MAAntonio Jacó Brand – ANPUH-MS Carla Mary da Silva Oliveira – ANPUH-PBChrislene Carvalho dos Santos – ANPUH-CE Claudira do Socorro Cirino Cardoso – ANPUH-RS Cristiano Pereira Alencar Arrais – ANPUH-GO Franciane Gama Lacerda – ANPUH-PA James Roberto Silva – ANPUH-AM Janete Ruiz de Macedo – ANPUH-BAJosé Antonio Vasconcelos – ANPUH-SPLaurindo Mékie Pereira – ANPUH-MG Marcelo Balaban – ANPUH-DF Marcos Silva – ANPUH-SE Osvaldo Batista Acioly Maciel – ANPUH-AL Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes – ANPUH-SC Yonissa Marmitt Wadi – ANPUH-PR

Secretária da RHHJRoberta Kelly Lima de Brito – UFAM

Endereço na Web: http://rhhj.anpuh.org/ojs/index.php/RHHJ/index Email: [email protected] e [email protected]

A Revista História Hoje publica artigos relacionados à temática de História e Ensino com a finalidade de promover a divulgação de reflexões, projetos e experiências nesta área e também criar um espaço institucional de debate relativo aos campos de trabalho dos profissionais de História.

SUMÁRIO

Apresentação 9 Patrícia Melo Sampaio – Editora

Dossiê: O lugar da formação dos professores nos cursos de História

Apresentação • Dossiê 15 Helenice Rocha e Wilma Baía Coelho

Formação de professores: entre demandas e projetos 19Ana Maria Monteiro

Professores em formação, formadores de professores: que profissão ensinam os cursos de graduação em História? 43Aryana Lima Costa

A didática da história e o desafio de ensinar e aprender na formação docente inicial 65Cristiani Bereta da Silva e Luciana Rossato

Professores iniciantes ensinando História: dilemas de aula e desafios de formação 87Flávia Eloisa Caimi

Os dilemas da formação do professor de História no mundo contemporâneo 109Helenice Ciampi

Desafios da formação inicial para a docência em História 131Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas

Formação de professores e ensino de História em limiares de memórias, saberes e sensibilidades 149Sônia Regina Miranda

Entrevista

entrevista: Nilma Lino Gomes 171Wilma Baía Coelho e Patrícia Melo Sampaio

Artigos

Desafios e experiências do ensino superior no interior do Brasil: a implantação do curso de História em Porto Nacional, Tocantins 179Roniglese Pereira de Carvalho Tito

Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola e as aprendizagens para a vida 201Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Narrativa midiática e narrativa didática de história: caminhos entrecruzados na contemporaneidade 217Sonia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley

Habilidades de Estudos Sociais para a professora primária: circulação e apropriação de representações em um projeto de aperfeiçoamento de professores 235Aldaíres Souto França e Juçara Luzia Leite

Da didática da História à história da História ensinada 251Kazumi Munakata

“Parece que você está invadindo um espaço que não é seu”: professoras de História narram experiências do início de carreira 269Elison Antonio Paim

Falando de História Hoje

O historiador entre o ‘ofício’ e a ‘profissão’: desafios contemporâneos 285Benito Bisso Schmidt

E-storiaO passado em bytes: notas sobre os usos da internet nos livros didáticos de História 305Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

História Hoje na sala de aula

A análise de fontes e o modo de vida dos primeiros habitantes do nosso continente: pesquisa arqueológica na Educação Básica 315Pâmela Peregrino da Cruz

Trabalhando com a história romana na Wikipédia: uma experiência em conhecimento colaborativo na universidade 329Juliana Bastos Marques

Resenha

Tradição oral, narração e mito: a Mitoteca Baniwa 349Silvana Rossélia Santos

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ApresentAção

É com grande alegria que chegamos ao número 3 da revista História Hoje. Neste número, apresentamos o Dossiê “o lugar da formação dos professores nos cursos de História”, organizado pelas professoras Helenice Rocha (Uerj) e Wilma Baía Coelho (UFPA), e o resultado é um notável conjunto de textos que revela o vigor da reflexão na área de História e Ensino. Expõe, assim, os desafios que estão postos para a questão da formação de docentes na área de História.

Ana Maria Monteiro, em “Formação de professores: entre demandas e projetos”, discute projetos e concepções de formação de professores no Brasil, em particular na área de História, com a expectativa de refletir sobre a traje-tória dos seus processos de institucionalização articulando-a com as demandas contemporâneas e tendo como foco a questão da formação qualificada. O texto de Aryana Lima Costa, “Professores em formação, formadores de professores: que profissão ensinam os cursos de graduação em História?”, se debruça sobre fundamentos que pautam a formação de profissionais de História no ensino superior analisando também a organização dos cursos de graduação em História e a metodologia de ensino em nível superior. Na mesma direção temos a análise de Helenice Ciampi, “Os dilemas da formação do professor de História no mundo contemporâneo”, que coloca em discussão temas do nosso tempo e seus impactos na formação dos professores.

Abrindo outra frente de debate, temos o artigo de Cristiani Bereta da Silva e Luciana Rossato, “A didática da história e o desafio de ensinar e aprender na formação docente inicial”, onde as autoras apresentam questões associadas ao desafio de ensinar e aprender História na Educação Básica, uma discussão que ganha amplitude com o trabalho de Flávia Eloisa Caimi, “Professores iniciantes

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Apresentação

ensinando História: dilemas de aula e desafios de formação” e a análise insti-gante de Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas em “Desafios da formação inicial para a docência em História”.

Sônia Regina Miranda, em “Formação de professores e ensino de História em limiares de memórias, saberes e sensibilidades”, se lança ao desafio de problematizar a ideia de ensino de História como lugar de fronteira epistemo-lógica, com a intenção de avançar em um sentido renovado para o entendi-mento das múltiplas dimensões do saber docente. Por fim, os resultados da rica entrevista feita com Nilma Lino Gomes nos permitem redimensionar várias das questões que foram tratadas nos artigos deste número, em especial no que diz respeito à formação e à trajetória docente.

A sessão de artigos, também sob a responsabilidade das organizadoras do Dossiê, garante um espaço para aprofundamento de temáticas específicas como a que trata o texto de Aldaíres Souto França e Juçara Luzia Leite, “Habilidades de Estudos Sociais para a professora primária: circulação e apro-priação de representações em um projeto de aperfeiçoamento de professores”, e o de Elison Antonio Paim, “‘Parece que você está invadindo um espaço que não é seu’: professoras de História narram experiências do início de carreira”, retomando falas de professores recém-graduados e recém-chegados ao am-biente escolar para discutir o significado do ‘fazer-se professor’.

A questão da didática aparece, renovada e provocadora, no texto de Kazumi Munakata, “Da didática da História à história da História ensinada”. Mais uma vez, os processos de institucionalização e o cotidiano escolar ga-nham materialidade no artigo “Desafios e experiências do ensino superior no interior do Brasil: a implantação do curso de História em Porto Nacional, Tocantins”, de Roniglese Pereira de Carvalho Tito, e no olhar sobre os “Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola e as aprendizagens para a vida”, de Sandra Regina Ferreira de Oliveira. Sônia Wanderley agrega um com-ponente novo a essas reflexões quando discute “Narrativa midiática e narrativa didática de história: caminhos entrecruzados na contemporaneidade” preocu-pada em refletir sobre as relações entre cultura histórica, mídia e saber histó-rico escolar.

Na sessão Falando de História Hoje é a vez de Benito Bisso Schmidt discutir o tema da profissionalização do historiador, um debate candente em

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Apresentação

nossa área, no artigo “O historiador entre o ‘ofício’ e a ‘profissão’: desafios contemporâneos”.

e-storia, organizada por Dilton Maynard e Marcos Silva, discute os usos da internet nos livros didáticos de História, uma discussão oportuna que dia-loga com a experiência apresentada por Juliana Bastos Marques em História Hoje na sala de aula, “Trabalhando com a história romana na Wikipédia: uma experiência em conhecimento colaborativo na universidade”. Na mesma sessão, Pâmela Peregrino da Cruz em “A análise de fontes e o modo de vida dos primeiros habitantes do nosso continente: pesquisa arqueológica na Educação Básica” disponibiliza os resultados de uma entusiasmada incursão dos alunos do 6º ano no mundo dos artefatos arqueológicos.

A resenha de Silvana Rossélia Santos, “Tradição oral, narração e mito: a Mitoteca Baniwa”, fecha este número com a apresentação do potencial do uso das narrativas indígenas para a prática docente, e assim, mais uma vez chama a nossa atenção para a diversidade de caminhos disponíveis para o trabalho do professor de História. Desejamos a todos boa leitura!

Patrícia Melo Sampaio Editora

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ApresentAção

Dossiê: “O lugar da formação dos professores nos cursos de História”

Helenice Rocha* Wilma Baía Coelho**

Qual é o lugar da formação de professores de História no Brasil? Possi-velmente, não há apenas uma resposta a essa indagação. As continuidades e rupturas ocorridas ao longo das últimas oito décadas, desde a institucionali-zação da Formação de Professores para o Ensino Secundário Brasileiro nos anos 1930, até a entrada em vigor das últimas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em 2002, definem uma parte da diversidade de caminhos da formação dos professores de História, hoje. Outra explicação para essa diversidade é propiciada pelas interpretações e realizações locais das legislações acerca das Diretrizes, conferindo em cada curso um lugar para a formação de professores de História, com características diferenciadas.

Durante muito tempo concebido como um curso de duas faces desiguais, uma específica, disciplinar, outra pedagógica, instrumental, a formação de professores hoje apresenta o desafio de superação da formação docente como um ser de duas faces discrepantes. A licenciatura, no Brasil, conhece há déca-das um tipo de formação peculiar, resultado de uma história a ser contada: a formação é dividida em dois conjuntos de conhecimentos, o conhecimento

15Junho de 2013

* Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Rua Francisco Portela, 1470. 24435-000 São Gonçalo – RJ – Brasil. [email protected]** Faculdade de História, Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal do Pará (UFPA). Av. Augusto Correa, 1, Guamá. 66075-110 Belém – PA – Brasil. [email protected]

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Apresentação • Dossiê

específico da área escolhida pelo licenciado e o conhecimento pedagógico, mobilizado pelos fazeres docentes. Via de regra, ainda hoje essa característica se materializa nos currículos dos cursos de licenciatura: a maior parte deles concentra-se no aprendizado da área específica – seja ela Artes, Letras, Biologia, Matemática ou História – oferecido pelo próprio curso; a formação pedagógica docente, porém, ocupa parte reduzida do currículo em disciplinas ministradas tradicionalmente pelos departamentos ou cursos de Educação.

Essa estrutura acadêmica, representando parte das permanências a que nos referimos, está presente na maioria dos cursos de licenciatura e com-preende uma concepção específica do que vem a ser tanto a formação docente como o professor que resulta dessa formação. Ela sugere, inicialmente, que a docência é um acréscimo à formação específica – ou que a formação docente nada mais é que uma complementação necessária para a transformação do saber acadêmico, adquirido nos cursos de origem, em saber escolar. E, mais importante, sugere e naturaliza a existência de uma hierarquia entre esses sa-beres e conhecimentos.

É fala corrente, que muitas vezes ganha contornos espetaculares na im-prensa ou na divulgação dos resultados de pesquisas, que muitos de nossos novos professores ainda não têm apresentado uma atitude profissional diante dos problemas que os fazeres da educação escolar lhes colocam, bem como não têm conseguido desenvolver o domínio conceitual necessário para que reflitam sobre as questões enfrentadas pelo próprio conhecimento no qual são especia-listas. Não é possível ignorar, nesse quadro, a responsabilidade da formação inicial ou continuada.

Com base nessa problemática – presente em outras licenciaturas, mas com contornos peculiares na formação de professores de História –, selecionamos para o Dossiê “O lugar da formação dos professores nos cursos de História” artigos que evidenciam a diversidade de preocupações e olhares acerca dessa formação. Os textos apresentados problematizam-na sob perspectivas distin-tas, trazendo a lume questões sobre a formação de professores de História que merecem enfrentamento, mobilizando as possibilidades de superar dualidades históricas como as mencionadas aqui, a favor da formação de professores de História para a escola brasileira contemporânea.

Ana Maria Monteiro abre o Dossiê com seu artigo “Formação de profes-sores: entre demandas e projetos” discute concepções de formação de

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Apresentação • Dossiê

professores no Brasil, em especial aqueles voltados para o ensino da disciplina História, considerando características do processo de sua institucionalização em perspectiva histórica e demandas do tempo presente para a sua realização qualificada no contemporâneo.

Aryana Lima Costa no artigo “Professores em formação, formadores de professores: que profissão ensinam os cursos de graduação em História?” re-flete sobre os fundamentos que pautam a formação de profissionais de História no ensino superior. Para isso, articula dois momentos e materiais de pesquisa com alunos e com professores do curso de história.

Cristiani Bereta da Silva e Luciana Rossato apresentam no artigo “A di-dática da história e o desafio de ensinar e aprender na formação docente ini-cial” questões relacionadas a esse desafio presente na Educação Básica na for-mação em História com base na análise de documentos produzidos no âmbito das disciplinas de estágio focalizando o tema da aprendizagem, na perspectiva dos alunos da escola, dos graduandos e dos cursos de formação desses graduandos.

Flávia Eloisa Caimi apresenta o artigo “Professores iniciantes ensinando História: dilemas de aula e desafios da formação”. Ela se propõe a investigar os processos de aprendizagem profissional de acadêmicos em situação de es-tágio curricular supervisionado, na licenciatura em História, com vistas a iden-tificar de que conhecimentos e estratégias se valem esses sujeitos para dar conta das demandas e dos desafios que se colocam no contexto de iniciação à docência.

Helenice Ciampi traz o artigo “Os dilemas da formação do professor de História no mundo contemporâneo”, com uma instigante reflexão sobre as-pectos dessa formação relacionados à globalização, sobre concepções de cur-rículos e seu significado para a formação de seus profissionais, e ainda uma experiência de formação articulando os itens desenvolvidos.

Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas trazem o artigo “Desafios da formação inicial para a docência em História”, em que tratam das características dos cursos e formadores de professores de História hoje e de obstáculos existentes para a adequação dos currículos dos cursos às necessida-des de formação dos professores do Ensino Básico.

Finalizando o Dossiê, Sonia Regina Miranda problematiza a ideia de en-sino de História como lugar de fronteira epistemológica em seu artigo

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Helenice Rocha*Wilma Baía Coelho

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Apresentação • Dossiê

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“Formação de professores e ensino de História em limiares de memórias, sa-beres e sensibilidades”. Partindo do referencial benjaminiano acerca da noção de ‘limiar’, a autora pretende avançar no sentido do entendimento do saber docente como algo ancorado em estruturas de plausibilidade profundas, nas quais os componentes da sensibilidade e dos modos de olhar e problematizar o cotidiano convertem-se em balizadores essenciais na formação de professores.

Esperamos que os leitores usufruam da diversidade de perspectivas pre-sente neste Dossiê. Especialmente aos estudantes de nossos cursos de História, professores do Ensino básico ou professores universitários formadores de pro-fessores, desejamos que esta leitura propicie novas reflexões acerca do fazer de todos nós, a formação em História, contribuindo para o estabelecimento de novas representações acerca dessa formação.

Formação de professores: entre demandas e projetos

Teacher education: between demands and projects

Ana Maria Monteiro*

ResumoO artigo discute projetos e concepções de formação de professores no Brasil, em especial aqueles voltados para o ensi-no da disciplina História, considerando características do processo de sua insti-tucionalização em perspectiva histórica e demandas do tempo presente que en-tendemos precisam ser consideradas pa-ra a sua realização qualificada no con-temporâneo. A análise busca contribuir para a compreensão de processos que apresentam dicotomias e/ou contradi-ções, que imobilizam e/ou reduzem o potencial transformador dessa atividade que tem na relação com o saber uma di-mensão estratégica e diferencial. Enca-minhamentos para a realização de for-mação qualificada frente às demandas do tempo presente são apresentados co-mo perspectivas renovadoras.Palavras-chave: formação de professo-res; ensino de história; tempo presente.

AbstractThe purpose of this paper is to discuss projects and concepts of teacher educa-tion in Brazil, especially those directed to History teaching, considering aspects of the historical process of institutional-ization through a historical perspective and present-time demands which we believe to be needed in order to be con-sidered for its qualified accomplish-ment. The discussion aims to contribute to the understanding of processes which present dichotomies and/or contradic-tions, which immobilize and/or reduce the transforming potential of such ac-tivity, which has in its relationship with knowledge a strategic and differential dimension. Directions for the accom-plishment of qualified education faced by the demands of the present time are presented as renewed perspectives.Keywords: teacher education; history teaching; present time.

A formação de professores é território contestado em diferentes sentidos. Por um lado, essa formação envolve uma profissão objeto de grandes questio-namentos e desvalorização, mais grave em nosso país em decorrência dos bai-

* Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. Avenida Pasteur, 250, Fundos, sala 237. Campus da Praia Vermelha. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 19-42- 2013

Ana Maria Monteiro

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xos salários e das precárias condições de trabalho. Além disso, as crises e difi-culdades do sistema educacional são atribuídas por muitos aos professores por sua formação deficiente, que não os capacita para o enfrentamento bem-suce-dido dos desafios do cotidiano escolar.

A situação revela-se paradoxal, pois, ao lado dessa desvalorização dos professores e de seu status profissional, vemos a sua permanência, no discurso político e no imaginário social, como um dos grupos mais citados como fun-damentais para formação da cidadania e construção do futuro do país. Essa constatação, feita por Antonio Nóvoa em 1999,1 permanece ainda válida nos dias de hoje. Há, portanto, uma grande distância entre a condição profissional dos professores e a importância atribuída à sua ação. Sendo tão importantes, não cumprem as expectativas pelo fato de sua formação ser deficiente ou ana-crônica? Ou são as condições de trabalho inadequadas que geram esses pro-blemas e fracassos?

Outra questão refere-se às disputas em relação ao locus da formação: em nível médio ou superior? Em universidades ou institutos superiores de educação?

Ao longo do século XX, estudiosos e agentes estatais da educação2 defen-deram que a formação dos professores deve ser realizada em nível superior, mais especificamente em universidades, instituições nas quais a pesquisa é realizada, possibilitando que sua realização qualifique tanto a formação inicial como a continuada. Em concordância com esse posicionamento, o movimento docente nas últimas décadas no Brasil teve, entre os principais objetivos de sua pauta de reivindicações, a proposta de formação em nível superior e, mais especificamente, nas universidades, de modo que a articulação ensino-pesqui-sa-extensão fundamente e realimente o contexto dessa formação.

No entanto, indagamos: a crítica apresentada à formação de professores põe em questão, também, esse locus e seus agentes? Os formadores de profes-sores – professores universitários – são considerados também responsáveis por essa crise, ao não realizarem essa formação de modo adequado às demandas do tempo presente?

Essa questão nos leva a formular outra que consideramos relevante e ain-da não devidamente enfrentada em nosso país. Qual o perfil do professor uni-versitário que é responsável por formar professores da educação básica? Um professor recém-admitido com experiência no ensino fundamental e médio,

Formação de professores: entre demandas e projetos

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ou um professor pesquisador com experiência em investigação sobre a docên-cia e a cultura escolar?

Outra tensão presente na formação de professores refere-se às disputas que se desenvolvem no interior das instituições universitárias, entre as dife-rentes comunidades disciplinares e aquelas da área educacional, pela liderança/hegemonia dos projetos e atividades de formação docente.

Afinal, pergunta-se, em outro enfoque: nas universidades, quais profes-sores pesquisadores detêm o melhor perfil e a competência para formar os professores: os professores/pesquisadores das áreas específicas ou os professo-res/pesquisadores da área da educação? Ou ambos?

Em outra perspectiva, temos visto serem implementadas pelos sistemas educacionais brasileiros, inspirados em propostas norte-americanas, políticas de responsabilização e estímulo mediante o pagamento de prêmios em salário e gratificações aos professores no que tem sido designado como ‘políticas de performatividade’, ou seja, uma

tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que emprega julga-mentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudan-ça. Os desempenhos de sujeitos individuais ou de organizações servem de parâ-metros de produtividade ou de resultado, ou servem ainda como demonstrações de ‘qualidade’ ou ‘momentos’ de promoção ou inspeção.3

Essa tendência, nos parece, contradiz o que afirmam os críticos da forma-ção, pois, se os professores ‘não sabem’, o estímulo à competição para obter resultados vai gerar alguma mudança qualitativa?

Além disso, podemos entender que a implementação dessa política im-plica a reafirmação, por parte de autoridades governamentais e dirigentes de instituições públicas e privadas, da concepção de que o grande problema e origem dessa situação de crise na educação brasileira é a atuação dos profes-sores que, ou não estão ‘preparados’ para dar conta de enfrentar, de modo adequado e bem-sucedido, as questões que se apresentam no cotidiano de escolas e salas de aula, ou são inadimplentes, descompromissados. Daí uma política de responsabilização individual, competitiva, que tem por objetivo induzir os indivíduos a investir em sua formação e buscar melhorar sua atua-ção e obter bons resultados com os alunos, eximindo-se o Estado de sua res-ponsabilidade pela oferta de educação de qualidade.

Ana Maria Monteiro

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Do ponto de vista dos professores, principalmente dos iniciantes, críticas também são apresentadas. A formação recebida é questionada por não os pre-parar adequadamente para o enfrentamento dos desafios do cotidiano das escolas, nas quais encontram crianças e adolescentes de diferentes contextos sociais e culturais, muitos deles oriundos de áreas de violência ou de desagre-gação familiar. Questionam a formação que não os preparou adequadamente para atuar na prática em virtude de uma formação eminentemente teórica. A dicotomia teoria/prática é denunciada nessas críticas, indicando um dos pro-blemas ainda a serem superados.

A esse contexto agregam-se denúncias das precárias condições de trabalho em instalações escolares em sua maioria improvisadas, e que não são objeto de atenção qualificada de arquitetos e técnicos educacionais; da baixa remunera-ção e da carga horária fragmentada, que leva muitos a buscarem melhorar seus rendimentos acumulando o trabalho em duas, três ou até quatro escolas, em jornadas semanais de mais de 40 horas em sala de aula. Essas condições, na prática, inviabilizam um trabalho de melhor qualidade e a participação em cursos de formação continuada, e são parte dos problemas que ainda assolam nossos docentes da educação básica.

Aprofundando a discussão, podemos indagar: se os agentes das institui-ções e dos sistemas educacionais e os próprios professores questionam o pro-cesso de formação de professores, podemos concluir que problemas e desafios existem. Mas isso nos autoriza, em consequência, a responsabilizar a formação de professores pelas mazelas de nossa educação?

É necessário reformular todo o processo? Alguns chegam a propor que já não é preciso formar professores, pois, com o livre e fácil acesso à informação e às tecnologias da informação e comunicação na atualidade, não precisamos mais de escolas e, portanto, de professores.

Muitos professores reiteram que o principal aprendizado profissional em sua formação ocorreu ‘na prática’, mas essa afirmação recorrente seria outro indício da precariedade da formação? Consequentemente, podemos afirmar que a formação de professores é dispensável?

Pelo exposto podemos perceber a complexidade das questões envolvidas na formação de professores da educação básica, seja ela voltada para os

Formação de professores: entre demandas e projetos

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professores dos anos iniciais do ensino fundamental, ou para aqueles dos anos finais e do ensino médio.

Na perspectiva de contribuir para a compreensão desse processo que en-volve a participação de múltiplos sujeitos e saberes em ‘lugar de fronteira’,4 o objetivo deste artigo é discutir projetos pertinentes à formação de professores no Brasil considerando características do processo de sua institucionalização em perspectiva histórica e demandas do tempo presente que precisam ser ana-lisadas na sua realização. Enfrentar esses desafios implica a superação de dico-tomias que imobilizam e reduzem o potencial transformador dessa atividade que tem na relação com o saber sua dimensão estratégica e diferencial.

Na primeira parte, apresento algumas características do processo de ins-titucionalização da formação de professores no Brasil que nos ajudam a com-preender aspectos que se configuram como permanências e criam obstáculos aparentemente intransponíveis aos projetos de mudança e atualização.

Na segunda parte, discuto questões relacionadas à relação com o saber e que se configuram em dimensão estruturante e fundamental deste ofício e sua atividade formadora. A discussão toma por base o conceito de ‘saberes docen-tes’ articulado a questões pertinentes ao conhecimento historiográfico na for-mação de professores de História.

Na terceira parte, aspectos relacionados ao trabalho docente são focaliza-dos em duas perspectivas: a aparente contradição entre abordagens propostas para o desenvolvimento da formação, que se expressa na dicotomia entre for-mação com base no saber da experiência e formação fundamentada na pesqui-sa, voltada para formar o professor pesquisador. Essa questão, que envolve aspectos relacionados aos saberes necessários ao exercício da docência, está diretamente relacionada com a forma como entendemos a realização do tra-balho docente, o que remete à outra perspectiva: a aspectos relacionados à profissionalização que são abordados considerando-se a relação com a con-cepção de docência que defendo.

Nas considerações finais argumento em favor da (ainda) necessária for-mação de professores como demanda do tempo presente, com enfoque mais específico sobre questões relacionadas à formação para a docência em história.

Ana Maria Monteiro

Revista História Hoje, vol. 2, nº 324

Formação de professores no Brasil: a institucionalização de um processo

A época moderna foi marcada, no Ocidente, por um longo movimento de produção da chamada ‘forma escolar’ em sociedades nas quais processos de constituição de sistemas estatais estavam em curso. Formas distintas de trans-missão cultural e de organização de instituições conviveram e convivem ainda, mas, aos poucos, os Estados nacionais – ‘Estados docentes’, na acepção de Nóvoa (1991) –, buscaram afirmar a secularização do ensino mediante um sistema regulado, controlado e homogêneo.5

Nessa época, a preocupação com o ‘licenciar’ professores6 desenvolveu-se e, com ela, a preocupação com o ‘formar’, ação na qual é reconhecida a exis-tência de saberes próprios a esses profissionais.

Tal compreensão exigiu a criação de instituições que seriam responsáveis por essa formação. De inspiração francesa, as Escolas Normais sugiram no Brasil no século XIX, com a finalidade de formar os professores para educar crianças na escola primária.7 Com o objetivo de servir de modelo de instituição secundária, o Colégio de Pedro II foi fundado no período regencial, em 1837.

Sua função como matriz de um curso regular de estudos seriados foi se fortale-cendo, não sem retrocessos, ao longo do século XIX, em oposição aos tradicio-nais exames preparatórios que permitiam o acesso ao ensino superior, indepen-dente da exigência de comprovação de estudos secundários completos.8

Para o exercício da docência, ao longo do século XIX e ainda durante o início do século XX, juristas, médicos, bacharéis em Letras, integrantes de ordens religiosas e preceptores – que ofereciam serviços em domicílio – assu-miram esse lugar no qual atuavam, sem uma formação específica, seja no que se refere aos conhecimentos disciplinares, seja em relação a conhecimentos profissionais.

No Colégio de Pedro II, em meados do século XIX, os catedráticos res-ponsáveis por cadeiras de diferentes áreas do conhecimento assumiram a li-derança na realização das atividades docentes.

No interior destas instituições de ensino desenvolviam-se importantes movimen-tos instituintes relacionados às práticas culturais próprias aos processos escolares

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e às funções docentes, com a construção de dispositivos pedagógicos que confor-maram a instituição secundária e a formação de professores, dentre eles os estatu-tos, regulamentos, programas e matérias escolares, exames, concursos, estudos seriados e novas formas de ensinar e aprender. (Gasparello; Vilella, 2009, p.44)

No que se refere às instituições de ensino superior, as iniciativas que ocor-reram com a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, evidenciavam a preocupação com a organização do Império no Brasil e com a formação profissional de agentes que garantissem minimamente uma estrutura ao Estado imperial que aqui se instalava. Unidades isoladas e profissionalizan-tes, que assim se mantiveram ao longo do século XIX e no início do século XX, caracterizaram os primórdios do ensino superior no Brasil.

A preocupação com a formação de professores para a escola secundária foi um dos eixos da discussão sobre a questão da universidade nos debates travados pela intelectualidade brasileira no início do século XX. Para esse gru-po, a universidade deveria ter como seus objetivos preparar as classes dirigen-tes, formar o professorado secundário e desenvolver a obra nacionalizadora da mocidade.9

Na década de 1930 foram criadas a Universidade de São Paulo (USP), em 1934, a Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935, e a Universidade do Brasil, implementada a partir de 1937, organizadas com base em diferentes concepções. Nesse contexto, um processo sistemático de formação de docentes para o ensino secundário no Brasil nelas se estruturou, e foi desenvolvido com base no projeto hegemônico de Gustavo Capanema, ministro da Educação de Getúlio Vargas, no âmbito do Estado Novo (1937-1945).

O grupo que assumiu o controle da Associação Brasileira de Educação (ABE), constituído pelos renovadores da educação, defendia que a universida-de tivesse a tríplice função de criadora de ciências (investigação), docente ou transmissora de conhecimentos (ciência feita) e de vulgarizadora ou popula-rizadora, através da extensão universitária, das ciências e das artes.

Nesse modelo de universidade seriam formadas elites de pensadores, sá-bios, cientistas, técnicos e educadores – aí entendidos professores de todos os graus de ensino. Essa concepção de universidade informava os projetos da USP e da UDF, embora houvesse diferenças significativas entre eles. O projeto da USP visava recuperar a hegemonia perdida por São Paulo pela via da ciência e não pelas armas. Já a proposta da UDF assumia a ideia de uma universidade

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voltada para a pesquisa e produção de conhecimento técnico e científico, com mais radicalidade.

Na USP, essa proposta estava concentrada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), eixo da universidade em torno do qual se articulavam as demais escolas profissionalizantes. A UDF, no entanto, era radicalmente diferente das universidades até então criadas no país. De acordo com Anísio Teixeira, “É a universidade como um todo que assume o objetivo de se cons-tituir em instituição de cultura para ‘formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva’”.10

A incorporação dos Institutos de Educação no Rio de Janeiro e em São Paulo nos ajuda a compreender a forma como, nas duas universidades, a for-mação de professores foi implementada. No Instituto de Educação da USP oferecia-se o curso de formação pedagógica para os candidatos ao magistério. Na UDF, a Escola de Educação tinha por objetivos formar os professores em todos os graus, mas também se constituir como centro de documentação e pesquisa para a formação de uma cultura pedagógica nacional.

A incorporação do Instituto de Educação, responsável pela ‘instrumenta-ção didática’ dos professores na USP, contribuiu para viabilizar a eliminação de qualquer caráter prático e utilitário da Faculdade de Filosofia. Consequentemente, essa separação iniciou certa divisão entre cientistas e edu-cadores, com algum desprestígio dos segundos.

Na UDF, o processo que Anísio Teixeira chamava de ‘transformação am-pliativa’ da antiga Escola Normal em Instituto se completava com sua absorção pela Universidade. A Escola de Educação tinha papel absolutamente central no projeto de Anísio.

A criação da Universidade do Brasil em 1937 implicou a incorporação da UDF e, em 1939, a criação da Faculdade Nacional de Filosofia na Universidade do Brasil (UB) representou a ‘morte’ da UDF e de sua Escola de Educação, com consequências para o campo da educação que se fazem sentir até hoje.11

De acordo com a concepção de Anísio Teixeira sobre a Universidade, e sobre o caráter essencialmente educativo da missão do intelectual enquanto dirigente, a Escola de Educação ocupava no projeto da UDF um lugar proemi-nente. Pela perspectiva da ‘transformação ampliativa’, a universidade seria o locus de formação de professores para todos os graus de ensino.

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Capanema excluiu da UB a projetada Faculdade Nacional de Educação, decisão que expressava seu projeto de formação das elites baseado em ‘con-cepção organicista do ensino’ (expressão da visão orgânico-corporativa da sociedade) e que o levava a contrapor cultura à técnica. Por esse motivo, Capanema excluiu da educação superior a formação de professores e especia-listas para a escola primária. Ao mesmo tempo, contrapôs o pedagógico ao humanístico, em perspectiva reducionista, que restringia o pedagógico à di-mensão técnico-metodológica no próprio processo de formação do professor secundário.

Com base nessa perspectiva, foram criadas as Seções de Pedagogia e Didática, ao lado das secções de Filosofia, Ciências e Letras, no interior da Faculdade Nacional de Filosofia. A primeira era responsável pelo curso de Pedagogia que surgiu, portanto, nesse contexto educacional e político, com o propósito de formar bacharéis em Pedagogia, técnicos para atuarem no Ministério da Educação e Saúde exercendo, entre outras atividades, a inspeção escolar. Um curso criado dentro de uma política educacional instituída pelo Estado Novo e que, segundo Mendonça, pretendia restringir a pedagogia a aspectos estritamente técnicos, afastando o debate filosófico do campo da for-mação de professores como forma de conter e de controlar o campo educacional.

A seção de Didática era responsável pelo oferecimento das disciplinas da chamada ‘formação pedagógica’ e, conforme proposto por Capanema, deveria ser cursada pelos estudantes exclusivamente após a conclusão do bacharelado, em um ano de estudos especiais, o que evidenciava mais uma vez a preocupa-ção com a separação entre o ensino de humanidades, realizado no bacharelado, e o ensino das disciplinas pedagógicas – para ele técnicas e metodológicas.12

Em 1948 foi criado o Colégio de Aplicação da Universidade do Brasil como centro de experimentação pedagógica. Ligado à estrutura administrativa da Faculdade Nacional de Filosofia, constituiu-se como locus de realização do estágio de Prática de Ensino da formação pedagógica. Complementava, desse modo, a organização institucional estruturada para a formação de professores das diferentes disciplinas do currículo do curso secundário.

Assim foram criados, no Brasil, os cursos de ‘licenciatura’ nas suas diferen-tes ‘habilitações’, constituindo-se em ‘categoria institucional’ que se implemen-tava mediante a ‘forma organizacional’ conhecida como ‘3+1’. Baseavam-se em

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uma ‘necessária’ separação entre formação humanística e pedagógica, e assim inventou-se uma tradição que afirma uma concepção tecnicista de pedagogia. Essa tradição ainda se mantém, de certa forma, e sustenta resistências a propostas que buscam superar dicotomias que acirram o desprestígio da profissão docente ainda hoje:

O institucional remete para uma ‘ideologia cultural’ e é confrontado com o orga-nizacional, isto é, é protegido dentro de estruturas únicas e tangíveis como as escolas e as salas de aula. As categorias institucionais incluem níveis de ensino (como o primário), tipos de escola (como a unificada), funções educacionais (co-mo a de reitor) e tópicos curriculares (como a leitura, a reforma e a matemática). Em cada um destes casos, a forma organizacional criada e mantida pelos profes-sores (e por outros atores) é confrontada por uma categoria institucional signifi-cativa para um público (ou públicos) mais vasto.13

Nesse sentido, a possibilidade de criação dos cursos de licenciatura como ‘categoria institucional’ instaurou-se a partir de 1939 quando, através do Decreto-Lei 1.190, de 4 de abril, foi criada a Faculdade Nacional de Filosofia que instituiu a ‘forma organizacional’, conforme a concepção de Capanema, e que a configurou até a realização da ‘Reforma Universitária’, por meio da Lei 5.540/68. A Lei, entre outras medidas, extinguiu a Faculdade Nacional de Filosofia e viabilizou a criação das Faculdades de Educação.

Essa mudança tinha por objetivo racionalizar a oferta das disciplinas da formação pedagógica aos alunos concluintes de diferentes cursos de bachare-lado, em áreas de conhecimentos relacionados às disciplinas escolares ensina-das na educação básica. Para a realização das atividades de estágio, o Colégio de Aplicação foi mantido, vinculado à direção dessa Faculdade.14

Nessa nova forma organizacional mantinha-se a categoria institucional 3+1 para os cursos de licenciatura: três anos de bacharelado e mais um para a formação pedagógica, que concluía a formação de licenciatura mas que, para muitos, passou a significar que a licenciatura se realizava em um ano apenas. Estudos dos conhecimentos específicos nos Institutos, Faculdades e Escolas recém-criados a partir do desmembramento da FNFi, e formação pedagógica, entendida como formação técnica e metodológica, nas Faculdades de Educação, resultado da transformação/extinção da Seção de Didática, mais o estágio, no Colégio de Aplicação.15

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Ao longo dos últimos anos mudanças têm ocorrido com o objetivo de superar a dicotomia presente nesse modelo que fundamenta os cursos de li-cenciatura, conforme instituídos em 1939, e que, de algum modo, ainda se mantém: muitos consideram que, para ser professor, basta dominar conheci-mentos de determinada área e técnicas e procedimentos didáticos. A dicotomia presente nesse modelo de formação expressa e acirra disputas sobre o território da formação: a quem compete afinal formar os professores? Qual a forma organizacional mais adequada aos cursos de licenciatura? Às Faculdades/Institutos de formação específica ou às Faculdades/Departamentos de Educação? Ou a instituições superiores criadas com esse fim?

Nas últimas décadas, estudos e pesquisas no campo da Educação volta-ram-se para a busca da compreensão do papel da instituição e forma escolar, da construção social do currículo, das políticas curriculares, dos saberes do-centes e da profissionalização dos professores, entre outros. Reformas educa-cionais demandam professores que possam atuar como profissionais em ins-tituição que exige cada vez mais sua participação como educadores de crianças, adolescentes e jovens de diferentes origens sociais e culturais. A formação mediante a instrução que acontece na escola exige domínio de saberes outros que não apenas aqueles referentes às disciplinas que os professores vão ensinar.

Ao mesmo tempo, ainda encontramos professores de Institutos e Faculdades que reafirmam posicionamentos sobre a importância do domínio teórico dos conhecimentos específicos, mas com base em perspectiva ‘instru-mental’ no que se refere ao ensino.

Como alternativa para superar a dicotomia teoria/prática, defendem que as técnicas e metodologias devem ser ensinadas simultaneamente e nos pró-prios institutos. Mas, geralmente, com honrosas exceções, encontramos, nessas instituições, poucos profissionais com experiência e interesse pela docência na educação básica, situação decorrente da forma como os processos de seleção de docentes tem sido realizada, com base na perspectiva de fomentar o desen-volvimento da pesquisa científica na área específica. É nas faculdades e depar-tamentos de educação que têm sido contratados docentes com experiência em ensino e pesquisa em questões educacionais.16

Esse modelo de formação, mais do que formar o profissional professor, tem fortalecido, nos estudantes, o desejo de ser bacharel e pesquisador, e deslegiti-

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mado o interesse em ser professor. Território contestado, a formação de profes-sores do segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio perma-nece presa a uma tradição que resiste a mudanças e reconceitualizações.

A relação com o saber: didática e formação de professores

A formação de professores da educação básica, profissionais que atuam em escolas com crianças, adolescentes, jovens e adultos no contexto da forma-ção para a cidadania, envolve questões decorrentes das formas como se com-preende e se propicia a relação com o saber. Concordo com Chervel quando afirma que a escola tem por função ‘educar através dos saberes’.17 Explicitada de forma tão simples, essa afirmação aborda um processo de extrema comple-xidade que envolve técnicas e metodologias, mas não se esgota nelas.

Professores, ao atuar em contexto educacional, têm como desafios definir o que ensinar – em um processo de seleção político-cultural no qual atuam muitas vezes de forma tácita –, e como ensinar – processo de produção de saberes no qual realizam mediações didáticas para tornar possível de ser aprendido o que está sendo ensinado. Esse processo de didatização é processo de mediação cultural pelo qual sentidos são produzidos com base nos significados que os docentes atribuem aos saberes ensinados em suas explicações e que buscam controlar mediante as avaliações exigidas pelos sistemas educacionais.

Esse processo de tornar possível de ser aprendido o que é ensinado envolve domínio dos conhecimentos objeto de ensino, mas não somente. É preciso domínio teórico-metodológico dos modos de produção do conhecimento his-tórico e de formas de torná-lo compreensível pelos alunos – o auditório para o qual se dirige. Esse processo envolve desafios na medida em que pode se tornar refém de reducionismos, simplificações, anacronismos e pode implicar erros. Desenvolvê-lo de forma clara, coerente e compatível com a produção historio-gráfica contemporânea é desafio que exige rigor teórico e metodológico.

Mas esse rigor não se refere a um cuidado em reproduzir de forma clara os resultados da pesquisa historiográfica mais atualizada, embora o cuidado com a correção das informações e com a precisão conceitual seja necessário. Queremos nos referir aqui ao cuidado em atender às exigências da elaboração do conhecimento histórico escolar que, produzido na escola, não fique nela retido. Que sirva para um agir no mundo sob perspectiva esclarecida, crítica,

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responsável, capaz de subverter ordens opressoras, resistir e questionar discri-minações, enfim, enfrentar o grande desafio de desnaturalizar o social e histo-ricizar processos e acontecimentos.

Para isso, o professor precisa conhecer e desenvolver um repertório de atividades que possam ser realizadas com estudantes de diferenciadas origens sociais e experiências. É importante os docentes compreenderem que estão lidando com pessoas que irão se relacionar com o saber e que, para isso, muitas vezes, precisam vencer resistências, preconceitos e verdades estabelecidas.

Pesquisas por nós realizadas têm se voltado para a relação que os profes-sores estabelecem com seus alunos ao ensinar, e que se constroem com base em experiências que tiveram enquanto estudantes, nos diferentes momentos de sua formação, e na sua experiência docente.

Abordamos esse processo como ‘relação’ pois é constituído com base nas experiências vivenciadas por historiadores e professores, e porque produz ex-periências no seu auditório. Daí afirmarmos que esse processo é mediação cultural ao se desenvolver no currículo entendido como ‘lugar de fronteira’, no qual sentidos são produzidos com base nas articulações entre enunciados proferidos por docentes e alunos, e apresentados em livros e outros materiais didáticos.

Nesse contexto, a Didática assume lugar de importância estratégica como disciplina que oferece suporte teórico para essa produção. Didática em pers-pectiva epistemológica, política e cultural porque se relaciona com produção de saberes em contexto específico e variado.

Como afirma Forquin, a exposição teórica tem como preocupação central o estado do conhecimento. Na exposição didática, a preocupação é com o es-tado de quem aprende.18

Os professores que atuam na educação básica não estão ali produzindo conhecimento novo a ser validado pelos seus pares com base na utilização correta e adequada de referenciais teórico-metodológicos. No contexto escolar, realizam um trabalho de articulação entre saberes oriundos da produção cien-tífica e saberes dos alunos, seus próprios saberes e aqueles que circulam na sociedade, de modo a tornar possível sua compreensão, ou seja, uma reelabo-ração de forma que os sentidos atribuídos pelos alunos – e que dependem dos sentidos atribuídos pelos professores ao saber ensinado – se aproximem dos significados validados. Esse processo denominado ‘transposição didática’ 19

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não é apenas um deslocamento de um lugar – a produção científica – para outro – a sala de aula. É processo complexo que envolve produção de sentidos e, portanto, demanda análise em perspectiva que considere a dimensão epis-temológica e cultural.

É nessa perspectiva que temos trabalhado com o conceito de ‘mediação cultural’ para designar essa operação que implica certa produção diferenciada em relação à produção científica, mas não por isso mais simples ou reduzida.

Como afirma Tardif, pesquisador canadense voltado para os saberes do-centes, “o professor não é um cientista, pois seu objetivo não é a produção de novos conhecimentos, nem mesmo o conhecimento das teorias existentes. Os juízos do professor estão voltados para o agir no contexto e na relação com o outro, no caso os alunos. Ele não quer conhecer, mas agir e fazer, e, se procura conhecer, é para melhor agir e fazer”.20

Compreender essa diferenciação – que induz muitos a desvalorizar o tra-balho docente – é, em nosso entender, desafio que nem sempre é enfrentado de forma qualificada e bem-sucedida, mas que representa dimensão estratégica do processo de formação de professores.

A Didática é disciplina que tem como objeto o estudo das formas de ela-boração do conhecimento no ensino. Durante muito tempo considerada em perspectiva que levava em conta apenas aspectos de ordem técnica – recursos, tipos de exercícios e atividades –, tem hoje na abordagem de ordem epistemo-lógica/cultural perspectivas promissoras para elucidar questões que se apre-sentavam como ‘caixas pretas’ nos estudos e pesquisas no âmbito dessa disci-plina. A elaboração de exercícios, atividades e projetos, o uso de materiais e a produção de livros didáticos demandam a utilização de subsídios teórico-me-todológicos pertinentes à área de conhecimento em pauta. A sua correta e adequada utilização na produção do conhecimento escolar precisa levar em conta, também, as técnicas argumentativas necessárias para a obtenção da ‘ade-são do auditório’ – no caso os alunos envolvidos.

Nesse sentido, a Didática é disciplina estratégica nos processos de forma-ção de professores, embora a formação não se resuma a ela.

Para ser possível um trabalho de didatização coerente e válido, o docente precisa operar, também, com subsídios teóricos oriundos das ciências humanas – entre elas a psicologia, a sociologia e a antropologia – e da filosofia, que possibilitam a compreensão dos aspectos envolvidos nessa ‘elaboração’, uma

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vez que existe uma intencionalidade inerente ao contexto educativo no qual está inserido.

A História, não apenas a história da educação, mas a ciência histórica que contribui para a compreensão da historicidade do social, é também conheci-mento estratégico para que os professores em formação sejam capazes de des-naturalizar práticas cotidianas de uma instituição na qual estiveram inseridos durante muitos anos.

Compreender a escola e o currículo como espaço-tempo de fronteira so-ciocultural, no qual diferenças e identidades são produzidas, é questão neces-sária para uma atuação que supere práticas discriminatórias e viabilize o de-senvolvimento de posicionamentos críticos e aprendizagens significativas.

Defendo, então, que a didatização é processo de mediação cultural ou simbólica, pois sua realização implica a relação entre diferentes sujeitos e sa-beres e a possibilidade de atribuição de sentidos no fazer curricular, tanto pelos docentes como pelos alunos.

Assim, a formação de professores envolve, em nosso entender, uma gama complexa de saberes situados do ponto de vista pessoal (experiencial), disci-plinar, institucional, profissional, social e político mais amplo.

Do ponto de vista disciplinar, por exemplo, é necessário considerar espe-cificidades epistemológicas do conhecimento objeto de ensino e que, no pro-cesso de mediação didática/cultural, é objeto de reelaboração para que possa ser ensinado e aprendido pelo auditório ao qual é enunciado.21

No que se refere ao ensino de História, por exemplo, Ricoeur nos oferece uma contribuição importante para a compreensão dos processos em curso na relação com o saber que se estabelece no currículo. Ao tratar da produção do conhecimento histórico, esse autor afirma que ela envolve uma construção narrativa simultaneamente lógica e temporal. Ele nos diz, também, que a in-teligibilidade histórica não pode excluir o vivido. A inteligibilidade lógica não é incompatível com o vivido e com a busca da compreensão dos sentidos atri-buídos pelos diferentes sujeitos a esse vivido. Ricoeur afirma que “o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna condição da existência temporal”.22 Essa afirmação aborda uma questão estrutural e estra-tégica tanto para historiadores como para professores de história: a dimensão temporal na pesquisa empírica, na produção historiográfica e no ensino para

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crianças e adolescentes.Cabe indagar: como a temporalidade é operada como estruturante da

produção historiográfica? Ricoeur articula tempo e narrativa com base nas contribuições de santo Agostinho e Aristóteles, em constructo teórico original e no qual a noção de ‘intriga’ ocupa lugar estratégico.

De acordo com Ricoeur, a narrativa histórica não é uma abstração alheia ao tempo vivido, tampouco coincide com o tempo vivido, nem mostra o que efetivamente se passou, mas refere-se a ele e retorna a ele. O que articula tempo e narrativa? Os movimentos do círculo hermenêutico: a Mimese 1, ou campo prático da ‘prefiguração’, a Mimese 2, ou movimento de ‘configuração’ textual desse campo, e a Mimese 3, quando ocorre a ‘refiguração’ pela recepção da obra, como uma mediação.

A Mimese 2 é a própria composição poética, a obra escrita do historiador, que é a operação de configuração de uma intriga: “A hermenêutica reconstrói o conjunto das operações pelas quais uma obra se eleva do fundo opaco do viver, agir e sofrer, para ser oferecida por seu autor a um leitor que se verá modificado em seu viver. A hermenêutica não trata somente do texto, mas apresenta-o articulado à vida em M1 e M3, como uma mediação. O leitor é o operador por excelência, pois nele esses três momentos se unem”.23

Como essa operação se expressa na produção do conhecimento histórico escolar?

Conforme afirmamos anteriormente neste artigo, para o ensino na edu-cação básica é necessária uma elaboração que articula fluxos do conhecimento científico com saberes dos professores e alunos no processo de ‘negociação da distância’ 24 entre estes. É um processo de ‘reconfiguração’ da ‘configuração’ – M2, conforme Ricoeur. Ou seja, é um trabalho de produção de conhecimento escolar – oral e textual – que se referencia no ‘viver, agir e sofrer’ cotidiano de alunos e professores para por eles ser reconfigurado, em apropriações que possibilitam novas compreensões e leituras de mundo.

Essa proposta de Ricoeur nos auxilia a compreender e buscar alternativas para operar com a dimensão temporal no ensino, dimensão estruturante do raciocínio histórico e que ainda é vista por muitos docentes na perspectiva da datação de fatos a ser negada por se basear na memorização.

Para a explicação/compreensão histórica, a construção da ‘intriga’ implica articular acontecimentos e argumentos em perspectiva que envolve sincronias

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e diacronias, em um determinado regime de historicidade:25 “Um aconteci-mento somente existe quando ele é interpretado. Ele somente adquire uma importância histórica quando apropriado ao esquema cultural e é percebido através dele”.

Assim, nesse processo de nova configuração ou ‘reconfiguração’, profes-sores operam tarefa desafiadora de modo a tornar possível a explicação/com-preensão que articula conhecimentos científicos com conhecimentos cotidia-nos de docentes e alunos.

Para isso, muitas vezes, buscam relacionar acontecimentos com a ‘reali-dade do aluno’ para o que analogias, metáforas, exemplos e ilustrações são frequentemente utilizados, muitas vezes de forma inconsciente.26

Enfim, a Didática da história em nosso caso é área estratégica na formação de professores, mas sua aprendizagem exige um trabalho de contextualização e de problematização da área educacional de forma a não ficarmos reféns de perspectiva reducionista que transforma a disciplina a ser ensinada em fetiche, ignorando a questão da relação de alunos e professores com o saber, com re-percussões negativas que não precisamos lembrar.

Trabalho docente e formação

Outra questão importante a ser considerada na discussão sobre formação de professores refere-se ao trabalho docente. Como é desenvolvido? Como é percebido e significado pelos próprios docentes e pela sociedade? Valorizado, desvalorizado? Vocação, ofício ou profissão?

Maurice Tardif situa na carreira docente três ‘idades’: a ‘idade da vocação’, a ‘idade do ofício’ e a ‘idade da profissão’.27 De acordo com esse autor, a pri-meira se caracterizaria pelo fato de que a preocupação é mais com o ‘professar’ do que com o ‘instruir’. A opção profissional é naturalizada, assumida como missão. O trabalho é mal pago ou gratuito, sem exigência de formação e tendo como objetivo principal o controle dos alunos com o foco no ensino religioso e dos bons costumes. A ‘idade do ofício’ se caracterizaria pela nova ordem instaurada – os Estados-nação – e a separação entre Estado e Igreja. Com a criação da escola pública e laica, surgem as atividades docentes remuneradas, laicas, com base em contratos de trabalho celebrados entre o Estado e os pro-fessores. Tem início, também, a preocupação com a formação mediante a

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criação das escolas normais. Na ‘idade da profissão’ ocorre o surgimento de grupos com expertise na gestão das escolas, exigências de formação nas uni-versidades, vigilância sobre o trabalho dos docentes, políticas de responsabili-zação e controle dos professores.

A profissionalização do trabalho tem sido uma das bandeiras de luta do movimento docente, ao lado de reivindicações salariais e demandas por forma-ção qualificada. No Brasil, como já vimos na parte inicial deste artigo, esse movimento avançou ao longo do século XX, mas esse avanço veio acompanha-do de crescentes perdas salariais e deterioração das condições de trabalho.

A massificação da oferta de escolaridade pública foi acompanhada de cres-cente desvalorização do trabalho docente e responsabilização dos professores pelo fracasso do sistema educacional.

Além de perverso, esse posicionamento omite a responsabilidade dos go-vernantes pela oferta de condições adequadas correspondentes às determina-ções constitucionais. Por exemplo, como realizar um trabalho qualificado se o docente trabalha em três, quatro ou mais escolas, ensinando a mais de trezen-tos alunos?

Porém, no que se refere à formação, concordamos com Tardif quando aponta o paradoxo presente nos cursos de formação que, cada vez mais, têm seus currículos voltados para a formação do pesquisador, exigência do contex-to institucional das universidades onde estão localizados. Muito já se discutiu sobre a necessidade de o professor ser capaz de pesquisar sua própria prática para buscar encaminhamentos adequados às demandas do ensino. Mas o pró-prio Tardif, em seu texto de 1991, ao abordar a questão dos saberes docentes, afirma o lugar estratégico ocupado pelo ‘saber da experiência’ entre os saberes docentes. Assim, o que priorizar na formação: os saberes de professores expe-rientes ou a problematização para a realização de pesquisa e a busca de inovações?

Nos currículos dos cursos de licenciatura, a ênfase na formação em pes-quisa está centrada em temas relativos à produção de conhecimento no campo específico, no caso, a historiografia no bacharelado. Poucas são ainda as pes-quisas sobre ‘ensino de’; o saber da experiência é abordado nas disciplinas de Didática e Prática de Ensino e no estágio supervisionado.

Identificamos aqui mais uma dicotomia que paralisa a realização de ex-periências renovadoras e produtivas. Certamente o ‘saber da experiência’

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precisa ser abordado. Mas precisa ser, também, problematizado. Passamos a ter aí um campo a ser explorado por pesquisas que podem contribuir para formar professores pesquisadores capazes de problematizar e buscar alterna-tivas para as questões e desafios emergentes. Um repertório de atividades é necessário para ser usado não como receita, mas como potencial a ser explo-rado pela investigação nos diferentes contextos.

É preciso formar professores pesquisadores, conhecedores de questões teóricas e metodologia da história – afinal, vão produzir conhecimento histó-rico escolar – mas que estejam capacitados para atuar como pesquisadores de sua prática docente, o que possibilitará a constituição de saberes experienciais em novas bases.

A profissionalização tem sido acompanhada de políticas baseadas na res-ponsabilização docente. Entendemos que o professor é profissional responsá-vel por ações realizadas no contexto escolar. Mas essa participação não pode estar inserida em contexto de recuo do Estado de seu papel de provedor de condições dignas de trabalho.

Recentemente, temos acompanhado um processo de esvaziamento do papel do professor como detentor e produtor de saberes. Apostilas e materiais digitalizados são oferecidos para suprir a ‘incapacidade’ ou ‘inconsistência’ teórica dos professores. Esse processo de indução de alienação precisa ser in-terrompido sob pena de termos um esvaziamento intelectual de profissionais que educam mediante saberes e para quem a mobilização dos saberes é questão estrutural e estratégica.

A formação inicial ou continuada precisa investir e garantir que a profis-sionalização docente possibilite um trabalho enriquecedor e qualificado da-queles que são responsáveis pela educação das novas gerações e pela socializa-ção dos saberes de forma crítica.

Durante o curso, os estudantes precisam ter acesso e discutir também as questões relacionadas com a profissionalização, de modo a estarem capacitados para argumentar e realizar demandas pertinentes à realização de trabalho qua-lificado. Precisam participar de experiências de pesquisa sobre o ensino e a docência que os habilitem a propor alternativas às práticas de ensino em cons-trução. A pesquisa não pode servir para justificar o não compromisso com o ensino e o estabelecimento de relações com os alunos.

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Aliás, podem ter consequências graves no futuro os encaminhamentos que esvaziam a possibilidade de ação criativa de professores pelo uso de ma-teriais que substituem suas iniciativas em perspectiva de alienação de saberes próprios ao seu fazer.

Considerações finais

Reformas nos cursos de licenciatura foram induzidas a partir dos debates da década de 1990 que deram origem às Resoluções 1 e 2/2002 do Conselho Nacional de Educação.28 De acordo com essas resoluções, o curso de licencia-tura deve ter um projeto pedagógico próprio e acesso direto pelos estudantes já no vestibular. Decreta-se o fim dos cursos ‘3+1’.

As reformas curriculares realizadas por indução dessas resoluções buscam integrar as disciplinas pedagógicas ao currículo do curso. A ‘racionalidade prática’ substitui a ‘racionalidade técnica’ na forma da lei. A lógica das com-petências orienta a ação de formação a ser realizada. A necessidade de superar a distância entre teoria e prática é enfrentada com base nessas orientações e na ampliação da carga horária de atividades práticas e de estágio. Do mínimo de 2.800 horas exigido, 1.000 são horas de atividades práticas.

A ‘forma organizacional’ foi novamente modificada. Mas questionamos: a ‘categoria institucional’ licenciatura sofreu uma reconceitualização? Foi efe-tivamente modificada?

Além disso, a expansão dos cursos de pós-graduação nas diversas áreas de conhecimento e as políticas de fomento das agências governamentais e das próprias Universidades, realizadas a partir da década de 1970, abriram pers-pectivas novas para a realização de pesquisas nos programas de pós-graduação com a participação de estudantes apoiados por meio de programas de bolsas como o Pibic, de mestrado e doutorado.

No âmbito da universidade, essas atividades adquiriram um prestígio cada vez maior, por si mesmas e em comparação com a situação profissional dos professores da educação básica que têm vivenciado, desde a década de 1970, crises sucessivas decorrentes da compressão e mesmo do rebaixamento dos salários pagos e da piora nas condições de trabalho. A motivação para a reali-zação de cursos de licenciatura diminui. Professores que concluem o mestrado acadêmico muitas vezes trocam o trabalho na educação básica pelo no ensino superior. A procura por cursos de pós-graduação em educação – sempre

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crescente – termina por não representar um processo de qualificação em gran-de escala dos professores da educação básica.

A formação de professores na universidade permanece um território ‘con-testado’. Professores das unidades de formação específica muitas vezes desqua-lificam o trabalho realizado nas Faculdades de Educação ou destacam sua pretensa inutilidade. Muitos professores dos institutos não se reconhecem como formadores de professores, desconsiderando a sua participação nos cur-rículos. Por sua vez, professores das Faculdades/Departamentos de Educação defendem e valorizam a formação pedagógica como aquela efetivamente res-ponsável pela formação dos professores.

Esse território tensionado e disputado é, em meu entender, um lugar de fronteira no qual parceria, diálogo e a articulação entre os conhecimentos cien-tíficos e educacionais são condições fundamentais para sua realização.

Com base no exposto, consideramos que a formação de professores rea-lizada nas universidades apresenta marcas da tradição ‘inventada’ no Brasil desde a década de 1930, ‘categoria institucional’ que precisa ser objeto de aná-lise crítica para superar limites e viabilizar a integração necessária entre peda-gogia e conhecimentos específicos.

A universidade, apesar das tensões aqui discutidas, é locus que possibilita formação de professores que articule ensino, pesquisa e extensão de modo a viabilizar escuta sensível e politicamente orientada para se tornar formação efetiva, e não apenas a ‘licença’ para aqueles que demonstrem domínio de conhecimentos e técnicas para seu ensino, de modo fragmentado e descom-promissado, docentes, sujeitos autores de seu fazer profissional e não meros atores a serem condicionados por instrumentos de pressão e controle.

A formação de professores é, portanto, necessária principalmente para que possamos desnaturalizar práticas sociais que constituíram e constituem nossas identidades como pessoas e professores, e que nos paralisam ou dificultam a realização de reflexão mais aprofundada e a busca de alternativas criativas para projetos educacionais que venham a atender demandas do tempo presente.

NOTAS

1 Palestra ministrada para professores, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a convite do sindicato de professores do estado do Rio de Janeiro. Nóvoa informou, tam-bém, baseando-se em dados da época, que a formação de professores era considerada uma

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atividade muito rendosa nos Estados Unidos, pois sendo um profissional permanentemen-te necessário, envolvia investimentos de aproximadamente 3 bilhões de dólares anuais. NÓ-VOA, A. La profession enseignante en Europe: analyse historique et sociologique. Projeto PCSH/C/CED/908/95, 1995 (Mimeo.), citado em: LUDKE, M.; MOREIRA, A. F. B.; MAR-TINS, M. I. Repercussões das tendências internacionais sobre a formação de nossos profes-sores. Revista Educação&Sociedade, ano XX, n.68 Especial (Formação de profissionais da Educação, Políticas e tendências), dez. 1999. p.281.2 Com a finalidade de estruturar o ensino superior no país, o governo do presidente Getúlio Vargas, na gestão de Francisco Campos à frente do Ministério da Educação e Saúde Pública, por meio do Decreto 19.851, de 11 abr. 1931, estabeleceu o Estatuto das Universidades Bra-sileiras. Por esse Decreto, a formação de professores secundários no país foi elevada para o nível superior. Os estados da Federação logo normatizaram em seu âmbito as determina-ções federais. Ver PENIN, Sonia T. de S. A formação de professores e a responsabilidade das universidades. Estudos Avançados, São Paulo, v.15, n.2, maio-ago. 2001. p.2.3 BALL, Stephen. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesqui-sa, v.35, n.126, p.539-564, set.-dez. 2005.4 Esse conceito foi cunhado e discutido em MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de história: lugar de fronteira. In: ARIAS NETO, J. M. (Org.). História: guerra e paz. XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina: Anpuh; Mídia, 2007. p.71-97; e retomado e aprofundado em: MONTEIRO, Ana Maria F. C.; PENNA, F. de A. Ensino de história: saberes em lugar de fronteira. Educação&Realidade, v.36, n.1, p.191-211, jan.-abr. 2011.5 A discussão apresentada na primeira parte deste trabalho foi originalmente elaborada em MONTEIRO, Ana Maria F. C. Pesquisa em Pós-graduação em Educação e a formação de professores: tensões e desafios curriculares no tempo presente. In: FONTOURA, H. A.; SILVA, M. Formação de professores, culturas: desafios à pós-graduação em Educação em suas múltiplas dimensões. Rio de Janeiro: Anped, 2011. Disponível em: www.fe.ufrj.br/pp-ge/anpedinha.6 A origem do termo licenciatura decorre do fato de que o Estado concedia uma licença para aqueles nos quais se reconhecia uma competência específica para o ensino: o domínio de saberes a serem ensinados. Sobre esse tema ver NÓVOA, A. Profissão professor. Porto: Porto Ed., 1999. p.17.7 Sobre esse processo no Brasil ver VILELLA, H. de O. S. O mestre-escola e a professora. In: LOPES, E. M. T.; FARIA FILHO, L. M. de; VEIGA, C. G. (Org.). 500 anos de Educação no Brasil. 3.ed. 1.reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2007; e VILELLA, H. de O. S. A primeira escola normal do Brasil: uma contribuição à história da formação de professores. Disserta-ção (Mestrado) – UFF. Niterói (RJ), 1990.8 GASPARELLO, A. M.; VILELLA, H. de O. S. Intelectuais e professores: identidades sociais em formação no século XIX brasileiro. Revista Brasileira de História da Educação, Campi-nas (SP): SBHE; Ed. Autores Associados, n.21, p.39-60, set.-dez. 2009. p.42.9 As informações sobre o processo de criação da UDF, da USP e da UB estão referenciadas

Formação de professores: entre demandas e projetos

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no trabalho de MENDONÇA, A. W. Anísio Teixeira e a Universidade da Educação. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.10 TEIXEIRA, A. A. Educação pública: administração e desenvolvimento. Relatório do dire-tor geral do Departamento de Educação do Distrito Federal. Anísio S. Teixeira, dez. 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935, p.183, apud MEN-DONÇA, 2002, p.25.11 Por ocasião da organização da Faculdade Nacional de Filosofia em 1939, o projeto de absorção da Universidade do Distrito Federal excluiu a incorporação do Instituto de Edu-cação, com suas escolas secundária, primária e pré-primária, bem como alguns cursos man-tidos, como o de orientadores do ensino primário, o de administradores escolares e os de aperfeiçoamento, aproveitando apenas os cursos de formação de professores para o ensino secundário. Para Mendonça, os dois projetos mencionados – o da Universidade do Distrito Federal e o da Reforma Capanema – não podiam realmente coexistir porque representavam visões de reconstrução nacional distintas e excludentes, em que se opunham os papéis “do educador intelectual ao do educador burocrata”. Ver MENDONÇA, A. W. O educador: intelectual ou burocrata? Uma perspectiva histórica. In: CANDAU, V. M. (Org.). Magisté-rio: construção cotidiana. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997. p.15.12 É representativa dessa concepção a proibição de que normalistas pudessem ter acesso à Faculdade Nacional de Filosofia. O curso normal não era equiparado ao curso secundário pois misturava humanidades e pedagogia. Para Capanema a Pedagogia não tinha o status de humanidades. Ver MENDONÇA, 1997, p.20.13 REID, W. A. Curricular topics as institutional categories: implications for theory and re-search in the history and sociology of school subjects. In: GOODSON, Ivor; BALL, Stephen (Ed.). Defining the curriculum: histories and ethnographies. London: Falmer Press, 1984, p.68, apud GOODSON, I. F. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997. p.28.14 Regimento da Faculdade de Educação aprovado pelo Consuni da UB em 19 out. 1971. Documento sob a guarda do Arquivo Histórico da Faculdade de Educação.15 Nessas faculdades seria oferecido, também, o curso de Pedagogia para formar os especia-listas em Educação e docentes das disciplinas pedagógicas do Curso Normal. Ver FONSE-CA, M. V. R. da. Entre especialistas e docentes: percursos históricos dos currículos de forma-ção do pedagogo na FE/UFRJ. Dissertação (Mestrado) – PPGE/UFRJ. Rio de Janeiro, 2008.16 Nos últimos anos temos verificado um processo de mudança decorrente da abertura de concursos públicos para docentes que atuem em disciplinas relacionadas ao ensino de His-tória em institutos e departamentos de História. Mas nos parece que a concepção de forma-ção ainda permanece inalterada, ou que esse deslocamento implica a intensificação da preo-cupação com o domínio dos conhecimentos específicos em detrimento da abordagem das questões pedagógicas. Defendo que essas questões precisam ser abordadas na formação de forma articulada.17 CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria&Educação, n.2, 1990.

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18 FORQUIN, J.-C. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria&Educação, Porto Alegre: Pannonica, n.5, p.28-49, 1992.19 CHEVALLARD, Y. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Pa-ris: Ed. La pensée Sauvage, 1991.20 TARDIF, M. O professor enquanto ‘ator racional’. Que racionalidade, que saber, que juí-zo? In: _______. Saberes docentes & Formação profissional. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002. p.209.21 Sobre esse assunto ver a discussão sobre a transposição didática em GABRIEL, Carmen Teresa. Um objeto de estudo chamado História: a disciplina de história nas tramas da dida-tização. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Educação, Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003; MONTEIRO, 2007; 2009; MON-TEIRO; PENNA, 2011.22 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. p.85.23 REIS, José Carlos. História & teoria: Historicismo, modernidade, temporalidade e verda-de. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003. p.139-140.24 MEYER, M. Questões de retórica: linguagem, razão e sedução. Lisboa: Ed. 70, 1998; MON-TEIRO; PENNA, 2011. 25 HARTOG, F. Time, History and the writing of History: the order of time. KVHAA Konfe-renser 37, Stockholm, p.95-113, 1996. p.3-4.26 Sobre essa questão ver MONTEIRO, Ana Maria F. C. Tempo presente e ensino de histó-ria: o anacronismo em questão. In: GONÇALVES, M. de A. et al. Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2012.27 TARDIF, M. El oficio docente en la actualidade. Perspectivas internacionales y desafios a futuro. Conferência proferida no CONGRESSO INTERNACIONAL POLÍTICAS DO-CENTES, 2012. Formación, regulaciones y desarrollo profesional.28 BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resoluções CNE/CP n.1 e 2/2002. Instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professo-res da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Brasí-lia, 2002.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Professores em formação, formadores de professores: que profissão ensinam os cursos

de graduação em História?Teachers in training, professors of teachers: what profession is

taught in History university courses?

Aryana Lima Costa*

ResumoO presente artigo busca refletir sobre os fundamentos que pautam a formação de profissionais de História no ensino su-perior. Para tanto, nos baseamos nas conclusões obtidas em dois momentos: no primeiro trabalhamos com os resul-tados de trabalhos de alunos de gradua-ção sobre como planejariam suas aulas; no segundo, nos utilizamos de depoi-mentos de professores universitários sobre como planejam suas aulas para um curso de História. Assim, dispomos de falas tanto de professores em forma-ção quanto de formadores de professo-res de História. Esses casos nos permiti-ram verificar a permanência de práticas docentes presenciadas durante a vida escolar desses sujeitos, e assim refleti-mos sobre a organização dos cursos de graduação em História e a metodologia de ensino nesse nível.Palavras-chave: metodologia do ensino de História; formação de professores; ensino superior.

AbstractThe present article reflects upon the foundations that guide the formation of History professionals in universities. To do so, we base ourselves on the conclu-sions taken from two moments: the first one in which we work with the results of students’ essays on how to plan their History classes, and the second one in which we use statements of university professors on how they plan their class-es, so that we have both experiences from teachers being trained and from the professors who train future teachers. From these cases, we conclude for the permanence of practices teaching histo-ry marked by the school experiences of these subjects, from which we reflect upon the organization of the History university courses and the teaching of History on this level of education.Keywords: methodology of teaching History; teacher’s training; higher edu-cation.

* Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Departamento de História/Fafic (DHI/Uern). Campus Universitário Central. BR 110, km 48, Rua Prof. Antônio Campos, Costa e Silva. 59610-090 Mossoró – RN – Brasil. [email protected]

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Aryana Lima Costa

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Em que medida o conhecimento histórico pauta efetivamente a formação dos futuros profissionais de História?

Compreender o espaço específico de formação de historiadores – ou seja, as graduações em História – importa se pretendemos cada vez mais investigar o papel que cabe aos historiadores ou que é exercido por eles, e também o que produzem, tendo em vista que esses profissionais estão cada vez mais cons-cientes de que as relações que as sociedades estabelecem com o tempo não necessariamente passam pelos resultados específicos da academia. Esse movi-mento é reforçado ainda pelo contexto das inúmeras discussões em torno da definição do perfil do historiador, da luta pela regulamentação da profissão e da crescente discussão em torno do que seriam uma história e um historiador públicos.

Norteia-nos o chamamento que Joana Neves faz em outro texto, “Participação da comunidade, ensino de História e Cultura Histórica”, ao de-fender que “mais do que nunca os historiadores têm a responsabilidade de definir o seu próprio, específico e intransponível papel, bem como equacionar a relação entre conhecimento acadêmico ou cientificamente produzido e as outras formas de produção de saber, na construção da cultura histórica”.1

Como estamos formando nossos historiadores? O interesse aqui está em, por meio do ensino superior de História, entender como nos utilizamos do conhecimento histórico e, assim, mantemos nossa especificidade e forjamos um perfil – nossa identidade – nos cursos de graduação.

Retomando Joana Neves, “A história produz um conhecimento educativo por definição” (Neves, 2000-2001, p.36), logo, não pode estar alheia à socieda-de, com quem sempre precisa dialogar. “Mesmo as pesquisas de ponta, por mais que indiquem interesses ainda restritos a um único especialista, uma vez produzindo resultados, acrescentarão, de um modo ou de outro, algum aporte à cultura histórica” (p.38). O ensino de História em nível superior trabalha para contestar a tendência à constituição de uma cultura histórica “sem o con-curso ou até em oposição aos profissionais da área”, levando-nos à autorrefle-xão, à definição de nossa posição, ao lugar do conhecimento histórico, à “par-ticipação dos historiadores de ofício na discussão de intrincadas questões colocadas pelo ensino de história” (p.41).

Definido então o nosso quinhão, por meio de que mecanismos nosso espaço é conservado, alimentado e gerado pelo ensino superior de História?

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Professores em formação, formadores de professores

Quais os mecanismos por trás dos funcionamentos dos cursos de graduação que interferem na formação de novos profissionais, na produção de novo co-nhecimento histórico, na delimitação até do próprio campo?

Buscaremos responder a essas perguntas com base em dois estudos de caso relatados a seguir.

Os professores em formação

As conclusões deste tópico foram possíveis mediante a opção de se trans-formar em espaço de observação e reflexão sobre a formação de profissionais de História a disciplina de Metodologia do Ensino de História, ministrada no 3º período do curso de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, no núcleo avançado de João Câmara. Isso se deu com base no planeja-mento de atividades para a disciplina, apresentado no primeiro dia de aula à turma, que aceitou participar.

Os objetivos estabelecidos para a disciplina foram: estabelecer relações entre o conhecimento histórico aprendido nas demais disciplinas do curso e os objetivos do ensino de história para o ensino fundamental e médio; desen-volver autonomia na seleção e elaboração de conteúdos históricos para atuação em espaços escolares; e produzir material didático para o ensino de história.

A intenção inicial era reproduzir ao longo das 60 horas disponíveis o ciclo percorrido pelo professor de História: discussão dos conteúdos curriculares e objetivos do ensino de História; estudo da história do ensino de História no Brasil e a proposta de história nos documentos curriculares atuais; reconheci-mento das relações entre conhecimento histórico acadêmico e a história ensi-nada; usos do livro didático e historiografia didática; métodos e ensino de história; uso de recursos como fontes históricas, e, por fim, avaliação.

Dado o tamanho da turma, os alunos se dividiram em duplas no início do semestre. As aulas foram organizadas de modo que tivéssemos um momento de discussão teórica, seguido de outro de produção prática. Essa produção deveria se basear no tema da discussão teórica e versar sobre o tema escolhido pela dupla. Ao final do semestre, todos os textos produzidos pelas duplas se-riam reunidos, de modo a formar uma proposta de material didático referente aos temas escolhidos. Estes começariam pela justificativa da escolha da temá-tica de acordo com os objetivos do ensino de História; passariam

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pela apresentação daquela temática na historiografia acadêmica e didática; agregariam uma proposta de atividade em sala de aula, utilizando-se de algum recurso didático tratado enquanto fonte histórica; e finalizariam com propos-tas de avaliações, também referentes ao tema.

Para as discussões das aulas teóricas tivemos como auxílio leituras de textos de autores da área. Nesses momentos realizávamos discussões de cunho mais generalista, abrangendo a História e o ensino de História em geral. Entretanto, os alunos eram orientados a já buscarem realizar as leituras e par-ticipar dos debates estabelecendo relações entre as discussões travadas e suas próprias temáticas. A aula seguinte era reservada à discussão entre as duplas, sob a orientação da docente, ao final da qual deveria ser entregue uma produ-ção escrita que serviria como material para avaliação.

Tendo em vista a proximidade entre professora e alunos promovida pela constante orientação e o contato contínuo com as produções discentes, a ava-liação pôde ser realizada de modo processual, que se caracterizou pelas notas atribuídas aos trabalhos, mas também pelos momentos para discussão e reo-rientação dos textos entregues e, por vezes, envolvendo até sua reelaboração, após cada momento de produção prática.

É preciso registrar o empenho com que a turma se dedicou às atividades. A alternância entre aulas teóricas e produção prática revelou-se desafiadora quando da aproximação do final do semestre, mas a turma manteve até o final das atividades o mesmo nível de dedicação demonstrado no início, e a isso devemos atribuir em grande parte o êxito dessa experiência e a consequente oportunidade de compartilhá-la aqui.

É preciso considerar os ruídos do processo ensino-aprendizagem, não só no âmbito da comunicação entre docente e alunos, por isso tomaremos algu-mas situações como pontos de reflexão:

Já na primeira aula depois da apresentação da proposta, solicitou-se aos alunos que escolhessem uma temática na História. Não foram estabelecidas regras – poderiam escolher qualquer assunto, aquele de que mais gostassem ou aquele ao qual tivessem mais acesso. Dos 17 trabalhos, 16 se ativeram ao processo histórico, versando sobre recortes cronológicos da História, e um poderia ser enquadrado na categoria da meta-história, visto que elegeu as fon-tes históricas como tema de trabalho. Digno de nota também é o fato de alguns grupos terem retirado seus temas de índices de livros didáticos. Assim,

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Professores em formação, formadores de professores

reunimos uma lista bastante canônica de assuntos: América pré-colombiana; A corte portuguesa no Brasil; Ditadura Militar (1964-1974); Revolução Francesa; A Independência do Brasil; Revolução Industrial; Escravidão no Brasil Colonial; Chegada dos portugueses ao Brasil. Outros trabalhos cami-nharam em sua temática para uma verticalidade: Censura na Ditadura Militar; Revolução Industrial e consumismo; Relações de poder na sociedade feudal; Educação na Ditadura Militar; Religião egípcia; Desigualdade social no antigo Egito e no século XXI; por fim, Fontes históricas: revistas e livros.

A primeira atividade prática foi a justificativa da escolha do assunto: a) Por que estudar esse assunto é importante para o meu aluno?; b) Como essa temática se relaciona com os objetivos do ensino fundamental e médio?; e c) Quais habilidades do pensamento histórico se pretende trabalhar?”. Estas per-guntas deveriam ser respondidas com base nas discussões realizadas em sala de aula a respeito da história do ensino de História e da proposta de História nos currículos atuais.

Reproduzimos a seguir algumas das respostas a cada uma dessas pergun-tas, refletindo a tônica geral dos trabalhos:

a) Partindo do pressuposto de que a História deve contribuir para a for-mação do cidadão crítico, trabalharemos a temática de forma discur-siva e dinâmica, proporcionando ao aluno o desenvolvimento do sen-so crítico ... Através do tema abordado, pretendemos que o aluno aprenda de forma interativa, compreendendo o período de transição da época [em] que aconteceu o ocorrido até os dias atuais...

b) Os objetivos deparados com relação ao ensino médio buscam o estí-mulo do aluno para que o mesmo possa obter mais conhecimentos acerca do que está sendo estudado, o docente tem a preocupação de formar cidadãos críticos, com seus próprios conceitos sobre a vida e o mundo ... Nosso objetivo estará voltado para o ensino fundamental, trabalhando o tema de forma dinâmica, trazendo as discussões acerca de como e o que provocaram as mudanças e permanências que acon-teceram nesse período, tentando junto com os alunos um senso de criticidade...

c) A partir da referente temática pretendemos desenvolver a habilidade do aluno conseguir ter criticidade na temporalidade, visando o passado e

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o presente, tornando o mesmo apto a questionar lucidamente as mu-danças e imposições ocorrentes no período. Devemos incentivar nossos alunos à pesquisa, fazendo com que este alcance um desprendimento básico do livro didático, objetivando habilidade críticas diante das fontes e fazendo com que este busque confrontá-las entre si para obter uma análise concreta e eficaz.

Lembrando mais uma vez a complexidade do processo ensino-aprendi-zagem, sendo necessário computar o papel da docente na compreensão pelos alunos do que esteja sendo exigido, e também a própria relação que os alunos estabelecem com o conhecimento universitário, detectamos alguns pontos de partida comuns.

O primeiro é uma constante referência ao desenvolvimento de um senso crítico pelos alunos como um dos objetivos do ensino de História, seja na pergunta referente aos objetivos do ensino fundamental, seja na pergunta re-lativa às habilidades do pensamento histórico. O que não se verificou com igual incidência foi a explicitação de como aquela temática em especial deveria con-tribuir para o desenvolvimento dessa criticidade.

Percebe-se também uma preocupação com o que poderíamos chamar de conteúdo factual: compreender o período, o que causou o acontecimento, o que provocou as mudanças e permanências. Mas outras habilidades do pensamento histórico aparecem, ainda que com menos frequência: reconhecimento de mu-danças e permanências e uso de fontes para construção do conhecimento, evi-denciando um deslocamento da preocupação com aqueles conteúdos factuais para os mecanismos de construção do conhecimento histórico. É possível que esse despertar para habilidades outras que não referentes ao conhecimento do conteúdo factual tenha origem nas discussões em sala de aula e na orientação individual. Entretanto, já nas orientações, verificamos dificuldade por parte dos alunos em compreender o que seriam habilidades do pensamento histórico. E, apesar de uma suposta proposta renovadora de objetivos que esses textos ini-ciais nos apontam, é interessante confrontá-los com as sugestões de procedi-mentos metodológicos elaboradas algumas aulas mais adiante.

Em um trabalho temos: “O estudo desta temática é relevante para o alu-nado, pois contribuirá para o rompimento dos preconceitos existentes com relação a religiosidade ...; O objetivo desta temática é estabelecer um paralelo entre o pensamento religioso dos dois países”. Sua proposta metodológica,

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Professores em formação, formadores de professores

entretanto, não consegue sair dos moldes das aulas expositivas e dependentes do livro didático: “Na primeira aula, a metodologia a ser usada será a de utili-zação de contato verbal entre o professor e aluno, a professora irá introduzir o assunto à turma ..., logo em seguida ela utilizará a metodologia de ensino através do próprio livro”.

Em outro exemplo, o objetivo é: “As habilidades que serão utilizadas para execução desse trabalho partirão da análise e interpretação de diferentes fontes e linguagens a partir de imagens, texto, objetos etc. e comparação de informa-ções ...”. A metodologia, entretanto, sugere: “Levantamento dos conhecimentos prévios dos alunos ...; exposição da temática e discussão coletiva ...; exposição de cartazes”.

A dificuldade em materializar a intenção dos objetivos em procedimentos metodológicos nos parece resultante da permanência de uma relação com a História semelhante àquela estabelecida em outros níveis de ensino. Supondo que esses alunos tenham aprendido a História da forma que muitos chamam de tradicional na sala de aula, o que fica evidente é o fato de continuarem a conceber o conhecimento histórico como ‘passado’, como um saber que con-siste em processo histórico – acontecimentos e personagens em uma narrativa linear – delimitado pelos cânones historiográficos presentes nos livros didáti-cos. O espaço deste artigo não comporta discutir a legitimidade ou não dessa dita história tradicional na educação básica. Nos importa o fato de que o con-teúdo de uma graduação deva habilitar o graduando a compreender a cons-trução da História e não somente se ater a uma narrativa que assume o efeito de passado. É bem verdade que a experiência acumulada ao longo dos anos é que o fará apurar cada vez mais a História que produz, e para isso existem os programas de pós-graduação e as carreiras profissionais – na docência, no patrimônio, nos lugares de memória. Mesmo esse momento inicial que é a graduação não prescinde de que o aluno saiba adquirir certa autonomia na seleção de suas temáticas; no entanto, eles mantêm a mesma relação de depen-dência com o texto. Em outras palavras: História é o passado, que é o texto que se lê nos livros didáticos, comportamento que se perpetua nas nossas discipli-nas acadêmicas.

Reproduzimos na universidade a mesma forma de estudar a que esses alunos estão acostumados. Os conteúdos programáticos de nossos programas se organizam pelos títulos dos textos que selecionamos para leitura. Até que

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ponto é possível equacionar nossos objetivos entre procedimentos metodoló-gicos da História – capacidade de síntese e interpretação de fontes, análise e comparação historiográfica, formas de apresentação da História e linguagens historiográficas – e o conteúdo factual, sem os quais tampouco há História?

A própria estrutura curricular dos cursos de formação de profissionais de História é digna de revisão. Se após os debates historiográficos do século XX se insiste tanto na flexibilidade dos recortes temporais e da periodização, uma vez que os próprios documentos curriculares para o ensino fundamental ca-minham para uma história por eixos temáticos e enfatizam o caráter de cons-trução da História, lembrando que também o quadripartismo é histórico e resultado de interesses, como já denunciava Chesnaux,2 nossas disciplinas con-tinuam refletindo o processo histórico – da Pré-História até a História Contemporânea, passando por Brasil e pelas histórias dos estados – mais do que o fazer histórico. Mesmo assim, exigimos que nossos alunos saibam tran-sitar entre as diferentes temporalidades, que saibam periodizar de acordo com seus objetos de estudo e, mais grave ainda, que saibam ensinar essa habilidade a outros indivíduos que ainda estão em processo de desenvolvimento cognitivo.

Essas impressões iniciais foram constatadas à medida que progredimos na disciplina. O passo seguinte ao estabelecimento dos objetivos era a pesquisa acerca da temática nas historiografias acadêmica e didática – como os assuntos eram tratados pelos livros acadêmicos e pelos livros didáticos?

Mais uma vez, obtivemos respostas mais elaboradas e respostas que ser-viram para novas indagações. Por exemplo:

a) A historiografia didática dá uma percepção de uma produção narra-tiva histórica linear, que apresenta um quadro de periodização e de balizas espaciais e temporais com o intuito de delimitar para os alunos uma melhor compreensão sobre o tema proposto ... A historiografia acadêmica, ao contrário da historiografia didática, busca problemati-zar o evento ocorrido ... propiciando vários questionamentos e trazen-do para a discussão os reais motivos que impulsionaram a vinda da corte ao Rio de Janeiro.

b) O livro didático aborda a temática de um modo geral e objetivo abran-gendo os pontos principais desta religião, usa uma linguagem de fácil

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Professores em formação, formadores de professores

entendimento e explicação para seu público alvo que se trata de crian-ças. O livro didático em seu conteúdo destaca os principais pontos a qual a religião está ligada ... Na visão acadêmica, o autor Ciro Flammarion aborda a temática de forma ampla e objetiva, ele destaca de um modo mais profundo a questão da religião ligada a vida políti-ca, econômica e social da civilização egípcia. Ele retrata também a questão das crenças nos deuses e se aprofunda na questão de como os egípcios lidavam com a morte...

c) E a diferença é que na academia o estudo é mais aprofundado quando na escola é explanado de forma mais sucinta.

À pergunta “Como a temática é abordada nas historiografias acadêmica e didática?”, as três amostras de resposta nos revelam como alguns graduandos realizam a leitura de um texto e a análise de uma temática: centrando-se na detecção de quantos fatos históricos cada um abordava. É por isso que o último exemplo resume a impressão geral obtida das respostas: um é mais aprofun-dado, supostamente teria mais detalhes e explicações, ao passo que outro é mais curto, sintético.

Parece-nos razoável atribuir essa lógica de interpretação ao caráter infor-mativo da História a que os alunos são submetidos durante a escolarização básica. A diferença entre os níveis de ensino para esses alunos se caracteriza mais pelo acúmulo e acréscimo de informações de um nível para o outro (algo de que o ensino superior não está livre, como se verifica) do que pelo trabalho no desenvolvimento de uma consciência histórica, o que exigiria o encadea-mento de habilidades específicas para cada etapa de aprendizagem.

Porém, podemos citar respostas que caminham para um entendimento mais elaborado da construção do conhecimento histórico:

d) Em seu livro A Civilização do Ocidente Medieval, Le Goff afirma que o sistema feudal não foi uniforme em toda Europa, se adaptou a cada região e país em que foi aderido. Ele afirma também que as relações de poder ... não ocorriam apenas entre os senhores feudais e seus servos, ela se encontrava em todas as escalas da sociedade ... A partir das análises aqui realizadas convém observar que hoje a historiografia didática tem buscado disponibilizar aos estudantes uma visão mais contemporânea das pesquisas sobre a temática ... É importante que se

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destaque que os livros didáticos propõem-se a trabalhar com múltiplos e diversos conteúdos, o que leva-o a ser sintético em suas abordagens, o que difere das discussões acadêmicas, onde retratam-se conteúdos específicos, não havendo a preocupação com o processo de ensino e aprendizagem, o que nos leva a discutir os temas que trabalhamos de modo mais crítico.

Nessa resposta, ainda que se tenha a permanência de um olhar sobre o conteúdo factual da temática escolhida (“Le Goff afirma que...”, “o que leva-o a ser sintético...”), levam-se em consideração os objetivos de cada um dos tex-tos analisados, como o caráter heterogêneo dos textos didáticos, revelando uma visão que não reduz a diferença entre um e outro somente à quantidade de conteúdos que cada um aporta.

No exemplo seguinte podemos visualizar um esforço de interpretação mais elaborado acerca de como se constrói um texto historiográfico:

e) Analisando a historiografia didática a partir do livro ... percebe-se no que diz respeito ao recorte temporal que ela trabalha de uma maneira linear e sintética-factual, visando a melhor sistematização de informa-ções, apresenta a estrutura física da sociedade em aldeias, nomos e reinos ... No que diz respeito aos recursos visuais na historiografia didática, todas as imagens fazem referência ao papel de cada indivíduo na estrutura política, por exemplo, nas pinturas mostra a figura do faraó, do escriba ... Em relação aos exercícios contidos no livro didá-tico identificamos a preocupação do autor em paralelizar a temática em discussão ... Em contrapartida, a historiografia acadêmica, segun-do Ciro Cardoso, Perry Anderson e outros partem do pressuposto do modo de produção asiático, onde é explícito a presença do materialis-mo histórico de Karl Marx, o mesmo prega a luta de classes, opressor x oprimido. Nesta contextualização o objeto de estudo que ganha des-taque é a classe servil composta pelos camponeses e escravos ... Em relação às fontes que a historiografia acadêmica utiliza podemos citar as observações arqueológicas no que diz respeito à análise de tumbas ... Já em se tratando de análise literária, podemos citar obras como ...

Vê-se agora um olhar que considera não somente a quantidade de con-teúdo de cada um dos textos, mas também sua forma: periodização; formas de

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Professores em formação, formadores de professores

utilização de recursos (imagens e tipos de fontes); tipo de conhecimento vali-dado pelos exercícios e até mesmo um ensaio de interpretação teórica (modo de produção asiático, materialismo histórico).

Aqui se constata o reconhecimento dos dois sentidos básicos da palavra História na leitura dos textos analisados, tanto no nível do processo histórico – o que se sabe sobre a temática – quanto no nível do conhecimento histórico – como se sabe sobre a temática. Isso se traduziu em uma proposta metodoló-gica que não se prendeu somente aos conteúdos factuais, mas valorizou con-teúdos conceituais e análise de estruturas (civilização, política, mobilidade social), e também outros conteúdos procedimentais: “Após essa problemati-zação pediremos que os alunos identifiquem essas questões e as reproduzam por meio de desenhos ou texto escrito; nesse trabalho avaliaremos as suas ca-pacidades de síntese e redação, ou seja, a capacidade do alunado em organizar e produzir sua narrativa histórica”.

As respostas obtidas nos levaram a mais uma vez indagar sobre nossos próprios procedimentos na sala de aula universitária: Como trabalhar para diminuir a dificuldade dos alunos em realizarem uma análise que extrapole a identificação de quais fatos certo texto contém? A habilidade de perceber como um texto historiográfico é construído é exigida dos alunos? Trabalhamos com eles os ‘alicerces e fundações’ de um texto, ou permanecemos somente na sua ‘fachada’?

Verificamos que para o manejo mais seguro de práticas que atendam às discussões sobre o ensino de História hoje, nos níveis fundamental e médio, é preciso rever nossas práticas no ensino superior de modo que possam romper significativamente as pré-concepções que esses alunos carregam, ou, em lin-guagem mais familiar para muitos – transformar seus conhecimentos prévios acerca do que é História.

Se essa experiência de docência nos despertou para os elementos que constituem o processo de ensino-aprendizagem no tocante aos alunos – pro-fessores em formação –, outra experiência de pesquisa realizada nos forneceu elementos para compreender o processo de ensino-aprendizagem tendo como referência a outra parte desse processo: os professores universitários – forma-dores de professores.

Aryana Lima Costa

Revista História Hoje, vol. 2, nº 354

Os formadores de professores

As observações feitas neste tópico resultam de pesquisa realizada em outro momento, cujo objetivo era compreender a implantação do Projeto Pedagógico do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Buscando o componente que dá vida ao texto do Projeto Político-Pedagógico (PPP), que de certa forma finda por ser homogeneizador, visto falar em nome da coletividade, buscamos ouvir os seres humanos que estão conectados através do Projeto, pois são estes que lhe conferem legitimidade ou não, que se apropriam, que o executa, que o remodela, estendendo o processo para além do documento escrito e buscando o currículo vivido pelo alunos e pelos professores. Concordamos com Sacristán no tratamento do caráter vivo dos currículos:

Um campo do conhecimento é, antes de mais nada, uma comunidade de especia-listas e professores que compartilham uma parcela do saber ou determinado dis-curso intelectual, com a preocupação de realizar contribuições para o mesmo. Não estamos frente a uma visão acabada ou frente à crença de estar diante de al-go dado e monolítico, mas, pelo contrário, frente a uma comunidade que tem dimensões internas e onde seus membros realizam tarefas que diferem entre si ... Nessa comunidade com diferentes encargos se produzem desconexões e falta de comunicação importantes. Não é fácil encontrar referências nos currículos a esse caráter vivo, histórico e nem sempre coerente dos saberes como campo de ativi-dade humana.3

Para o nosso estudo do PPP de História da UFRN, utilizamos como fontes as entrevistas com professores, um momento privilegiado no qual percebemos a polifonia por trás de um documento único (o Projeto Político-Pedagógico) e que nos possibilita buscar esse “caráter vivo, histórico e nem sempre coerente” de que fala Sacristán (2000, p.68).

Partindo do pressuposto de que não é possível deixar de lado questões sobre a construção do currículo pelo seu corpo docente e de que este, sendo parte de uma instituição de ensino superior, logo portador de determinadas responsabilidades, configura práticas que fazem parte da constituição de um campo científico – campo este dentro do qual os alunos são formados –,

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Professores em formação, formadores de professores

passemos agora à abordagem de alguns tópicos importantes na execução de um currículo, frequentemente lembrados quando se fala em ensino superior.

Em texto não publicado, para fins de anotação para uma reunião interna da Pró-Reitoria de Graduação da UFRN, a professora Lúcia resume estas questões:

Uma outra fragilidade observada no processo de organização dos cursos refere--se à sua gestão. Na maioria dos cursos há muita dificuldade em acompanhar e controlar o processo de execução do PPC (projeto pedagógico de curso). O pacto coletivo, exigência do projeto pedagógico, ainda não foi transposto do documen-to para a prática docente. A interdisciplinaridade e a flexibilidade, princípios ba-silares da organização dos conhecimentos nas estruturas curriculares, têm sido inviabilizadas pela postura dos professores, que têm o mandato de suas discipli-nas, não se dispõem a fazer as mudanças propostas e a rever conteúdos. Ao con-trário, se isolam em seus laboratórios, demonstrando que o poder investido ao professor pela cátedra vitalícia ainda faz parte da cultura universitária. Diante da atitude desses professores, os coordenadores de cursos se veem impotentes, e as mudanças propostas para reorganização dos currículos permanecem na intenção expressa no documento. Prevalecem as estruturas curriculares rígidas, as disci-plinas com um caráter de terminalidade, dificultando a conexão de saberes e práticas na formação do aluno.4

Preocupamo-nos em investigar a relação entre os professores no Departamento de História, como norteiam sua prática de sala de aula (em que elementos eles baseiam o exercício da profissão de professor universitário).

Tomando como premissa o fato de os professores serem mediadores do currículo, lembramos que o envolvimento e a participação coletiva, ou ao me-nos o reconhecimento de que deveria ser assim, são necessários para a concre-tização de uma proposta curricular. Lembramos também que este foi um dos grandes compromissos do Projeto Político-Pedagógico: o engajamento do seu corpo docente nesse novo projeto comum.

Preservando-se a margem de autonomia individual no relacionamento com o currículo, é com base nele que se constitui uma identidade do curso, um propósito para os 4 anos que se planejam ali; 4 anos que devem ser estruturados sob uma lógica que lhes dê coerência, coesão e continuidade, pressupondo o exercício de uma articulação entre seus integrantes. A maior parte de seus ob-jetivos, aliás, consta como de competência de todos, como coletividade.

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Revista História Hoje, vol. 2, nº 356

Ao longo das entrevistas pudemos perceber que boa parte das explanações relatadas pelos professores acerca dos fatores que interferiam no planejamento de suas práticas docentes referiam-se à sua própria experiência enquanto alu-nos, o que entendiam que deveria ser o profissional de História, sendo isso transposto para as aulas. A seguir, vejamos como isso se revelou.

Respondendo sobre a maneira como percebia a construção coletiva do novo Projeto, o professor A afirmou que uma parte do corpo docente mal conhecia o PPP. E completou:

Mas mesmo que conhecessem, acho que isso também vai muito mais além. Aí é muito da concepção que se tem da universidade, ou que prevaleceu de uma ma-neira hegemônica, hoje menos: “Ah, o professor tem autonomia pra desenvolver seu plano de curso, desenvolve da maneira que quer”. Um pouco, ainda, o resquí-cio daquela coisa da cátedra, que vem diminuindo, mas ainda é bastante presen-te. Eu vejo um pouco isso: a resistência da própria formação dos professores. Aí é uma coisa que demora muito tempo, às vezes o professor tem uma concepção de ensino-aprendizagem que não bate exatamente com o que foi pensado no PPP, já é uma dificuldade. (Entrevista com professor A, em Costa, 2010)

Queremos destacar nessa resposta a atribuição desse desconhecimento sobre o PPP e da falta de engajamento à formação dos professores. Pelas res-postas dadas, pareceu-nos que a formação própria de cada um constitui-se em marco de referência para o exercício da docência. Por exemplo, o professor B faz várias referências à sua graduação como referencial para o seu julgamento sobre o que deveria ser ou não bom:

Eu peço as monografias de sempre porque eu estudei assim e foi bom no sentido de “foi bom, deu certo e vou repetir”.

A minha formação nos anos 80 em relação à Licenciatura e Bacharelado eu achava muito simples e prática e acho que era a solução que devia ser adotada aqui. O estudante entrava para ser potencialmente os dois, só que a opção por ser um licenciado vinha nos últimos períodos, quando nós pagávamos determinadas disciplinas na Faculdade de Educação. E quem quisesse concluía, quem quisesse não concluía.

Essa seria minha solução ideal. Por isso que eu digo que ao mesmo tempo possa achar ... por isso ou por aquilo, o fundamento é conservador, que foi a minha ex-periência que eu achei boa. (Entrevista com professor B, em Santos, 2010)

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Professores em formação, formadores de professores

Nisso não há muita novidade: são as instâncias pelas quais passaram e que lhes conferiram um ofício e um diploma e, portanto, meios para aceder aos postos ocupados atualmente.

Maurice Tardif, no texto “Saberes Profissionais dos Professores e Conhecimentos Universitários”, ressalta três aspectos do caráter temporal que caracterizaria os saberes docentes: primeiro, “uma boa parte do que os profes-sores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do professor e sobre como ensinar provém de sua própria história de vida e, sobretudo, de sua história de vida escolar”. Os outros dois aspectos referem-se aos fatos de os primeiros anos serem decisivos na estruturação da prática profissional e os saberes serem uti-lizados e adquiridos no âmbito de uma carreira/socialização profissional. É certo que Tardif refere-se, predominantemente, aos professores do que seria o correspondente americano e canadense ao nosso ensino fundamental e mé-dio. No entanto, acreditamos que essa pode ser uma afirmação também válida para o que ocorre com os professores universitários, em especial se nos deti-vermos sobre as prescrições acerca da formação de professores para o nível superior.5

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional sobre o tema da forma-ção docente para o nível superior afirma que: “Art. 66. A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, priorita-riamente em programas de mestrado e doutorado”.6 Em sendo assim, seria de esperar que houvesse algo a respeito do assunto na legislação sobre os cursos de pós-graduação stricto sensu. Porém, na Resolução CNE/CES nº 1,7 de 3 de abril de 2001, que estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós--graduação, não há menção a isso. De modo que:

A formação docente para a educação superior fica, portanto, a cargo das iniciati-vas individuais e dos regimentos das instituições responsáveis pela oferta de cur-sos de pós-graduação. O governo (MEC/Sesu/Capes/Inep) determina os parâ-metros de qualidade institucional, e muitas instituições de educação superior organizam e desenvolvem um programa de preparação de seus docentes, orien-tadas por tais parâmetros.8

Em um cenário já marcado pela relação conflituosa entre conhecimentos específicos e pedagógicos, entre teoria e prática, ensino e pesquisa, Bacharelados e Licenciaturas, são os parâmetros de avaliação de produtividade acadêmica

Aryana Lima Costa

Revista História Hoje, vol. 2, nº 358

que findam por orientar o que seria a atividade docente. Também pensamos ser esse um dos fatores que contribui para a afirmação de Miguel Zabalza: “Não se deve estranhar que nós, professores universitários, tendamos a construir nossa identidade profissional em torno da produção científica ou das ativida-des produtivas que geram mérito acadêmico e que redundam em benefícios econômicos e profissionais. Isso pode ser chamado, utilizando a denominação de Vandenberghe, de a ética da praticidade”.9

O fato de as atividades docentes poderem ser marcadas mais pela repeti-ção de experiências de vida escolar, considerando como ponto chave o mo-mento da graduação – em referência ao exemplo do professor B –, permite-nos a compreensão de falas como a do professor A, que cita a resistência dos do-centes e os resquícios dos períodos de suas formações, como, por exemplo, as cátedras.

Lembrando que a formação dos professores universitários depende, como disse Ilma Veiga, das iniciativas individuais das instituições responsáveis pelos cursos de pós-graduação, essas iniciativas, na maioria das vezes, são compostas pelos estágios-docência obrigatórios realizados pelos pós-graduandos que são bolsistas. Mas não fazem parte do conjunto de componentes curriculares co-muns a todos – o interessado deve se dispor a segui-los.

São esses os quesitos que permitem o ingresso nas vagas para professores universitários, portanto não é de causar estranheza que os padrões de um bom exercício docente sejam aqueles pelos quais se passou: a graduação, marcada pelo contexto histórico do período em que foi cursada, as etapas pelas quais se passou – mestrado e doutorado – para finalmente atingir o referido posto.

Por conta dos parâmetros dominantes sobre o que seria a atividade do professor universitário, a identidade de historiador – título dado aos profes-sores universitários sem contestação, e que se constitui sobre esses alicerces –, não há (e aqui lançamos mão mais uma vez dessa expressão) uma ampliação de perspectiva, pois as relações que se estabelecem com outras circunstâncias e atuações que não a dos ‘habitus científicos’ ou são frágeis ou são exceções. Um grande exemplo são as relações entre universidade e ensino básico, farta-mente discutidas e criticadas.

Isso nos ajuda a apreender, por exemplo, a dificuldade em se entender e se aplicar a Prática como Componente Curricular, pois não há visão ou mesmo imaginação capaz de ir além daquilo que se está acostumado a ter como ofício

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do historiador: o trabalho individual e o círculo acadêmico (além, é claro, de as implicações de resoluções como essa frequentemente ‘caírem no colo’ dos professores, culpa atribuída às instâncias superiores, mas também ao corpo universitário, professores e alunos, cuja maioria não se envolve nessas ques-tões). Ou então as Atividades Acadêmico-Científico-Culturais, que acompa-nham uma classificação muitas vezes seguida pelos próprios professores para fins de progressão de carreira.

Assim, o que sobra aos alunos são as reproduções de habitus científicos – como chama Bourdieu.10 O que conta como conhecimento histórico conti-nua sendo, em grande medida, marcado pelo conteúdo e pelas práticas em que é trabalhado, pois é em torno disso que se constroem as identidades.

É um conteúdo que reproduz práticas acadêmicas e que limita a formação dos graduandos, pois que restrito a certos parâmetros e círculos, os quais re-produzem uma ‘ordem científica estabelecida’, fruto de um campo de forças científicas tanto quanto políticas, cujos árbitros costumam estabelecer as pró-prias regras do jogo (Bourdieu, 1983).

Desse modo, a discussão ganha outra dimensão, pois seria necessário re-ver a formação de quadros para o ensino superior, repensando, portanto, nos programas de pós-graduação, a existência de um interesse mais profundo na preparação e formação para o exercício da docência universitária que ultra-passe os limites dos conteúdos da pesquisa de cada pós-graduando.

Some-se a isso a revisão sobre os processos de formação continuada entre os próprios quadros das universidades, de modo que as diferenças entre gera-ções pudessem ser discutidas e atenuadas, proporcionando uma atualização em termos de objetivos da instituição. Mais uma vez – salvo exceções – acre-ditamos que o individualismo tende a favorecer a imobilidade e a estagnação, conduzindo ao aumento das diferenças entre os professores.

Considerações finais

Gostaríamos aqui de lançar mão da noção de profissionalização didática dos historiadores, proposta por Jörn Rüsen, em que esta pode vir a auxiliar na for-mação de uma “concepção sólida da especialidade profissional de sua ciência”.11 Uma teoria da História, para Rüsen, dialoga com o ensino superior guiando os historiadores em formação em meio aos mecanismos de funcionamento de sua

Aryana Lima Costa

Revista História Hoje, vol. 2, nº 360

ciência, de maneira que possam produzir conscientemente no lugar de reprodu-zir ou consumir um conhecimento imposto por outrem.

O ensino superior de História deve, a nosso ver, atender dois quesitos, um derivado do outro: o primeiro é justamente a formação para a produção de pes-quisa, o ensino de História ou o uso do conhecimento histórico onde seja de-mandado; o segundo é a aquisição da competência necessária para compreender o lugar do conhecimento histórico especializado em meio às diferentes relações que as sociedades estabelecem com o tempo. Não é suficiente que só se aprenda a produzir conhecimento histórico – é preciso também compreender os meca-nismos de sua produção: como surge, de que surge, como se transforma em conhecimento específico, o que constitui esse conhecimento. É nesse ponto que acreditamos residir uma das características definidoras desse nível de ensino.

Portanto, se é isso que determina e diferencia o trabalho do historiador – o entendimento de que a produção de um conhecimento que estabelece re-lações entre passado e presente pode ser específico, possui características pró-prias e é executado por meio de regras, frutos de reflexões teórico-metodoló-gicas –, então é isso que poderia ser tomado como eixo norteador dos cursos de graduação em História, espaços de aquisição e produção de conhecimento histórico e, por que não, mão de obra para manejar esse saber.

É possível estabelecer essa conexão? Acreditamos que sim. Por entender que o núcleo da formação desse profissional reside justamente no conhecimento sobre as ferramentas de seu trabalho e nos objetivos da produção do conheci-mento é que não fazemos distinção entre bacharel e licenciado. E é por isso que enfatizamos a prática, o saber manejar as ferramentas, a pesquisa, pois qualquer que seja o espaço de atuação, o resultado de seu trabalho deriva de uma pesquisa que será transladada, aplicada, para onde estiver em ação. É por isso que não se pode considerar pesquisa, aqui, algo unicamente produzido para atender aos objetivos da academia ou nos moldes dela, mas sim, a base de trabalho do histo-riador, a sua operação básica – a operação historiográfica –, a qual ele terá de exercer em qualquer que seja seu espaço de atuação. A sensibilidade e o treino para compreender as carências de orientação temporal que a vida prática nos impõe e a formação adequada para saber ler essas carências e trabalhá-las pela perspectiva da disciplina, de suas discussões teórico-metodológicas.

O desafio que se coloca perante nós agora é este: o de transformar essa discussão em realidade no cotidiano das salas de aula universitárias.

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Professores em formação, formadores de professores

Na realidade, o que se propõe aqui é prestarmos atenção em como nossos alunos estudam e aprendem a História na (e da) graduação. Quando nos per-guntamos “por que, quando planejam aulas, reproduzem comportamentos já tão criticados?”, a resposta parece ser que a maioria, afora os beneficiados por bolsas de iniciação científica ou iniciação à docência, continua estudando História da mesma forma como o fazia na escola. Temos, aliás, o reconheci-mento por parte de professores universitários de que continuam fortemente marcados pela sua própria experiência enquanto graduandos. Em verdade, essa conclusão não chega a ser exatamente uma novidade. Como já citado, Maurice Tardif lembra, com base em pesquisas a respeito da carreira e dos saberes docentes, a predominância da experiência da vida escolar sobre a atuação do-cente. E afirma que “Essa imersão se manifesta através de toda uma bagagem de conhecimentos anteriores, de crenças, de representações e de certezas sobre a prática docente. Esses fenômenos permanecem fortes e estáveis ao longo do tempo” (Tardif, 2000, p.13).

Nossa experiência na disciplina de Metodologia do Ensino de História nos revelou, portanto, que, ao menos para aquela turma, se ensina História como se aprende História. Com base nessa indicação, se faz necessário discutir como o conhecimento acerca da prática historiográfica e do ensino de História cons-truído durante a graduação pode atuar no sentido de ‘abalar’ as representações dos alunos a respeito de como se ensina História, contribuindo para o exercício de uma prática docente pela qual tanto se combate na contemporaneidade.

Se os alunos demonstraram repetir procedimentos aprendidos durante a vida escolar no seu planejamento de aulas, não é porque simplesmente não sai-bam pesquisar, mas sim porque não dominam as habilidades necessárias para fazer História, e consequentemente, para praticá-las em sala de aula. Sua inse-gurança no tocante às questões metodológicas impede que consigam manejar a distinção entre os sentidos da História – enquanto processo histórico e enquanto conhecimento sobre esse processo –, predeterminando suas leituras, estudos e interpretação no nível do factual, tomando o texto escrito pelo processo históri-co. Assim é que tivemos estas etapas de aula: “trabalhar com os alunos o con-teúdo em sala de aula utilizando tudo o que foi exposto pelo livro”; “será plane-jada uma atividade avaliativa para a turma seguindo os padrões de tudo o que foi exposto pelo livro e pela professora”; “usarei o quadro escrevendo as causas que levaram a ocorrer a Revolução Francesa ... Farei uma retrospectiva de tudo

Aryana Lima Costa

Revista História Hoje, vol. 2, nº 362

que já foi passado em sala. Encerrarei a aula pedindo a cada um o que foi passa-do, ou seja, o que ficou na mente de todos”.

Por isso nosso incômodo diante da justificativa baseada no senso comum de que “para ensinar o professor precisa pesquisar”. Temos percebido que não é necessariamente a prática da pesquisa que tornará nossos alunos melhores professores. Os exemplos aqui reunidos nos mostraram que muitas vezes uma pesquisa pode se resumir a identificar quanto cada autor diz sobre determina-do assunto, e convenhamos, isso não é necessariamente pesquisar, tampouco fazer História. É preciso que os historiadores e especialmente aqueles que for-mam as próximas gerações de profissionais se voltem para o ainda mais básico, para o que é necessário antes do ato de pesquisar, que é compreender as cate-gorias básicas do fazer histórico, no que se traduz em discussões metodológi-cas, bem como compreender a função social da História – o que eu quero dizer quando produzo História? Por que e para que o faço? –, a que podemos chegar com base na teoria. Sem isso, como vimos, torna-se muito difícil para nossos alunos atingirem os objetivos do ensino proposto pelos documentos curricu-lares e pelas discussões da área, visto que a História se configura somente em acúmulo de fatos. Obviamente, há outros fatores a serem levados em conside-ração. Citando mais uma vez Tardif,

Desse ponto de vista, a prática profissional nunca é um espaço de aplicação dos conhecimentos universitários. Ela é, na melhor das hipóteses, um processo de filtração que os dilui e os transforma em função das exigências do trabalho; ela é, na pior das hipóteses, um muro contra o qual se vêm jogar e morrer conheci-mentos universitários considerados inúteis, sem relação com a realidade do tra-balho docente diário nem com os contextos concretos de exercício da função docente. (Tardif, 2000, p.12)

Porém, isso não significa que aquilo chamado pelo autor de ‘conhecimentos universitários’ não precise ser útil e significativo para a formação do graduando. E que no nosso caso, sirvam para distinguir entre a História que aprendem na escola e fora dela durante a educação básica com a História aprendida na gra-duação, não somente para a atuação em sala de aula, mas também para os outros espaços que demandam a presença de um historiador: museus, arquivos, setores do turismo e preservação de patrimônio, entre outros.

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Para tanto precisamos reconhecer a existência de um processo de ensino e aprendizagem de jovens e adultos também no ensino superior, o que pode vir a significar igualmente o reconhecimento e a investigação de uma didática da História específica referente ao aprendizado da cultura profissional do historiador.

NOTAS

1 NEVES, Joana. Participação da comunidade, ensino de história e cultura histórica. Saeculum: Revista de História, João Pessoa: DH/PPGH/UFPB, n.6/7, p.35-47, jan. 2000-dez. 2001. p.46.2 CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a História e os histo-riadores. São Paulo: Ática, 1995.3 SACRISTÁN, J. GIMENO. Currículo: uma reflexão sobre a prática. 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. p.68.4 SANTOS, Maria Lúcia Ferreira. Anotações para reunião do POSGRAD. Natal, RN, s.d., apud COSTA, Aryana. A formação de profissionais de História: o caso da UFRN (2004-2008). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2010. p.1205 TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conse-quências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, n.13. p.5-24, jan.-abr. 2000. p.13.6 BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm; Acesso em: 25 fev. 2013.7 BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES nº 1, de 3 abr. 2001. Estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação lato sensu, em nível de especia-lização. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rces001_07.pdf; Acesso em: 25 fev. 2013.8 VEIGA, Ilma P. A. Docência universitária na educação superior. In: _______. Docência na educação superior. Brasília: Inep, 2006. p.87-98. (Coleção Educação Superior em Debate, v.5).9 ZABALZA, Miguel A. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Ale-gre: Artes Médicas, 2004. p.103.10 BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983. p.122-155.11 RÜSEN, Jörn. A razão histórica. Brasília: Ed. UnB, 2001. p.38.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

A didática da história e o desafio de ensinar e aprender na formação docente inicial

History didactics and the challenge of teaching and learning for early-stage teacher education

Cristiani Bereta da Silva* Luciana Rossato**

* Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Departamento de História. Programas de Pós-Graduação em História e em Educação. Bolsista Produtividade CNPq. Av. Madre Benvenuta, 2007. 88035-001 Florianópolis – SC – Brasil. [email protected]

** Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História. Av. Madre Benvenuta, 2007. 88035-001 Florianópolis – SC – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 65-85 - 2013

Resumo

O artigo apresenta questões relaciona-das ao desafio de ensinar e aprender História na Educação Básica e como ele é enfrentado na formação docente ini-cial em História. Um conjunto de rela-tórios de estágio, planos e relatos de observação de aula, produzidos entre 2006 e 2012, servirá de base a nossa análise. Consideramos três ordens de questões que, embora em planos dis-tintos, entrecruzam-se e complemen-tam-se: a) elaboração de ideias históri-cas por crianças e jovens; b) como os acadêmicos, futuros professores de História, percebem e pensam a apren-dizagem quando ensinam História; c) de que forma os cursos de Licenciatura têm enfrentado o desafio da aprendiza-gem. As questões apresentadas, supor-tadas conceitualmente pela Didática da História, pretendem contribuir para adensar o debate sobre a aprendizagem

Abstract

This article presents issues related to the challenge of teaching and learning His-tory within the sphere of basic education, as well as the way in which such chal-lenge is faced in early-stage History teacher education. The basis for our analysis is comprised of a set of intern-ship reports, classroom plans, and class-room observation sheets produced be-tween 2006 and 2012. Three issue levels have been considered, albeit from differ-ent spheres, they intertwine and comple-ment each other: a) elaborating historical ideas by children and youngsters; b) the way in which History students and fu-ture History teachers perceive and think of learning when teaching History; c) the way in which Teaching Programs have been facing the challenge of learning. Under the conceptual support of History Didactics, the presented issues intend to contribute to expanding the debate on History Teaching and Learning in basic

Revista História Hoje, vol. 2, nº 366

Cristiani Bereta da Silva e Luciana Rossato

Numa oficina realizada na turma 201, 2º ano do Ensino Médio, na Esco-la de Educação Básica Padre Anchieta (Florianópolis/SC), um dos bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), acadêmico do curso de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), narrava uma situação de preconceito racial ocorrida recentemente com um amigo na Europa quando foi interrompido por um dos alunos que, sentado ao fundo da classe, perguntou indignado: “Ah, por que ele não deu um golpe de capoeira nele?”.

A pergunta provocou risadas gerais e certo desconcerto no acadêmico, e logo outro aluno respondeu: “Isso não é novela, cara!”.1

Esse pequeno trecho descreve uma situação bastante corriqueira no coti-diano de uma aula de História: o professor (nesse caso um acadêmico ainda em processo inicial de formação docente) recorreu a uma narrativa do presen-te, relacionada a uma experiência vivida, para iniciar uma aula em que preten-dia problematizar preconceitos e discriminações no contexto do pós-abolição entre o final do século XIX e o início do século XX, no Brasil. Por sua vez, os alunos da classe dispuseram-se a discutir o que estava sendo tratado com base em referências também de seu cotidiano vivido – no caso em questão, referên-cias de uma novela da Rede Globo que faz usos do passado. Essa oficina, parte das atividades do Pibid, foi realizada no dia 11 de setembro de 2012. No dia anterior, uma segunda-feira, estreara a novela ‘das seis’ Lado a Lado, ambien-tada no início do século XX, e uma das cenas principais do primeiro capítulo havia se desenvolvido justamente sobre o tema relativo à discriminação racial e à capoeira.

Escolhemos esse exemplo para introduzir as questões deste artigo porque evidencia o quanto História conhecimento e história vivida apresentam-se difusas no ambiente da sala de aula. Didaticamente o recurso de buscar refe-rências no presente para introduzir temas históricos é estimulado na formação docente. Grosso modo entende-se que seria uma forma de aproximar a criança

da História na Educação Básica e nos cursos de formação docente.Palavras-chave: formação docente ini-cial; didática da História; ensino e aprendizagem.

education, as well as in teaching educa-tion programs.Keywords: early-stage teacher educa-tion; History didactic; teaching and learning.

A didática da história e o desafio de ensinar e aprender na formação docente inicial

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ou o adolescente das muitas vezes áridas questões contidas nas narrativas dos processos históricos distantes temporalmente e espacialmente do cotidiano dos estudantes. Isso porque sabe-se que em termos cognitivos a compreensão de causas e efeitos é favorecida quando aproximamos o sujeito do objeto a ser conhecido – na situação aqui narrada, relações sociais e de poder no Brasil, no final do século XIX. Ensinar fenômenos históricos tão complexos quanto esse só não é mais difícil que aprendê-los... Desculpem não estarmos separando esse processo tão indissociável quanto ensino e aprendizagem, é apenas uma estratégia para explicitar o quanto o processo de ensinar aparece turvando e até ocultando o aprender nas representações construídas pelos nossos alunos – futuros professores de História – quando eles pensam o ensino de História escolar. E isso ocorre não apenas com nossos alunos, para sermos sinceras. Em diferentes momentos, observamos essa dimensão nas falas de colegas que tra-balham tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior, e muito prova-velmente ela está contida até mesmo em nossa própria atuação como profes-soras de História.

A despeito disso, aprendemos história o tempo todo, ela é componente inescapável da configuração de nossa existência no tempo e no lugar do mundo que habitamos e do qual nos identificamos como pertencentes. Mas a história como uma forma de ver o mundo é diferente da História disciplina, assim como são diferentes os modos pelos quais acessamos o passado e o significa-mos. Aliás, o passado possui distinções que importam para se pensar o apren-dizado da história. Peter Lee aponta, em “Por que aprender História”, as im-bricações e tênues fronteiras existentes entre o passado histórico e o passado prático na pesquisa e no ensino da História escolar. Com base no argumento de Michael Oakeshott, Lee lembra que o passado prático reorganiza os acon-tecimentos para que estes possam contribuir para as sucessivas condições das ações dos sujeitos individuais e coletivos. Ao passo que a história “representa um interesse nos eventos do passado ... respeitando sua independência nas sucessões do tempo ou nos eventos do presente”, o passado prático possuiria uma relação específica com o presente, que seria a de justificativa para a reali-zação de determinadas ações. “Este é o passado usado pelo advogado, político ou sacerdote.” O passado prático é habitado por eventos, personagens e lições exemplares, portanto, “na ausência da história o passado é apenas prático”.2

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Aproximar, juntar ou misturar elementos da história vivida ou mesmo da história como forma pública de conhecimento e da História disciplinar são estratégias que não se reduzem à sala de aula, uma vez que também par-ticipam da própria elaboração da consciência histórica dos sujeitos. Entendemos o conceito de consciência histórica como algo intrinsecamente ligado à necessidade de o ser humano se orientar temporalmente, ou melhor, de atribuir sentido a sua existência. Isso se faz tanto com base no tempo da história vivida quanto no tempo da história conhecimento. Nesse sentido, para Jörn Rüsen, a consciência histórica, assim como a memória, seria uma forma de discurso histórico, mas, apesar de ambos os conceitos cobrirem o mesmo campo, o tematizam de forma diferente. Consciência histórica, assim, seria uma forma específica de memória histórica e cognitivamente poderia ser descrita como uma forma de significar a experiência do tempo pela in-terpretação do passado, de modo a possibilitar a compreensão do presente e projetar o futuro.3

O processo de aprendizado sobre o passado não ocorre somente em sala de aula, mas em diferentes espaços e das mais variadas formas, por diferentes meios, sejam eles localizados em programas de TV ou nas relações sociais, entre outros. Na sala de aula, é impossível saber onde acaba uma dessas dimen-sões da história e se inicia outra, uma vez que são muitas as vias que conectam a abordagem acadêmica a outras formas de estabelecer relações com o passado. Não por acaso essa questão adiciona ainda mais complexidade à formação de professores para a Educação Básica, pois não basta identificar os elementos que participam do aprendizado histórico – também, e especialmente, é neces-sário compreender o lugar que a História escolar ocupa nesse processo, no presente. Supõe-se que o ambiente da sala de aula – ou ao menos os processos educativos formais – deva contribuir para o aprendizado de conceitos históri-cos que permitam às crianças e aos jovens compreender os processos e con-textos históricos do passado e do presente, bem como construir conhecimentos imprescindíveis a sua formação e atuação política.

Consideramos que se trata de questões-chave e de irrenunciável impor-tância na formação docente inicial, e há alguns anos temos buscado tornar o estágio supervisionado um espaço qualificado para se pensar e discutir os pro-cessos cognitivos que participam da construção do pensamento histórico. Há que se pesar, porém, que a despeito dessas iniciativas ainda persiste a

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ideia – incrustada na tradição acadêmica – de que para ensinar História os acadêmicos precisam prioritariamente dominar os conteúdos históricos. Muitos colegas ainda acreditam e defendem que basta formar bons historia-dores para que tenhamos bons professores de História. Resultam dessa tradi-ção atribuições de significados (re)construídos pelos acadêmicos dos cursos de História sobre o lugar que as disciplinas que abordam teorias da aprendi-zagem – sejam elas referentes a Jean Piaget, Lev Vygotsky ou mesmo aquelas situadas na teoria da História, como as elaboradas por Jörn Rüsen – ocupam no currículo. Não é raro que eles critiquem e, muitas vezes, negligenciem essas disciplinas ‘pedagógicas’ quando fazem a avaliação do currículo do curso, ou mesmo quando buscam atribuir sentido às práticas do estágio supervisionado em suas narrativas escritas. Nossa experiência na formação dos professores para a Educação Básica nos permite afirmar que ainda damos mais atenção às metodologias de ensino e à seleção dos conteúdos históricos a serem ensinados e deixamos pouco espaço para o estudo e a compreensão dos sujeitos da apren-dizagem e dos processos do aprender.

Este artigo pretende ser um exercício de reflexão em torno dessas questões que fazem parte do nosso cotidiano de trabalho. Para nós o desafio da apren-dizagem na formação docente não poderia ser pensado sem considerar três ordens de questões que, embora em planos distintos, conectam-se e comple-mentam-se em diferentes pontos:

• A elaboração de ideias históricas por crianças e jovens;

• Como os acadêmicos dos cursos de licenciatura percebem e pensam a aprendizagem quando ensinam História;

• De que forma os cursos de licenciatura têm enfrentado o desafio da aprendizagem na formação docente.

Buscaremos discutir essas questões com base em nosso cotidiano de tra-balho, na condição de professoras que atuam na formação de outros professo-res. Nossa análise foi pautada no desenvolvimento do projeto de ensino e pes-quisa O pensamento histórico de crianças e adolescentes e o ensino de História na Educação Básica, desenvolvido no Departamento de História e Programas de Pós-Graduação em História e em Educação da Udesc desde 2008 e que está em sua segunda versão. Na primeira versão foi desenvolvido em atividades de extensão, pesquisa e ensino apoiadas pelo Prodocência/Capes realizado com

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acadêmicos do curso de História e professores da Educação Básica. O objetivo da proposta é articular o exercício da docência em História às atividades de ensino e pesquisa na Educação Básica. O trabalho é realizado em escolas da rede pública de Florianópolis. A partir de junho de 2011, o projeto passou a ser desenvolvido em duas escolas, especificamente como subprojeto Pibid/Capes – área de História – com concessão de 18 bolsas para acadêmicos e duas bolsas para professores da Educação Básica. As atividades de ensino e pesquisa são coordenadas pelas professoras titulares da disciplina de Estágio Supervisionado em História, Cristiani Bereta da Silva, Luciana Rossato e Nucia Alexandra Silva de Oliveira.

As disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado historicamente pro-duzem vasta documentação que traz percepções e representações sobre os processos que movem a dinâmica de uma sala de aula. São diversas narrativas escritas que possibilitam a compreensão da relação que os estudantes estabe-lecem com o ensino e a aprendizagem da História, em seu processo formativo. Isso porque, ao narrarem o espaço escolar, a prática docente, a história e seu ensino, os estudantes elaboram sentidos sobre a própria formação docente. Para nossa análise selecionamos alguns recortes dessas narrativas: projetos de estágio, comentários sobre as aulas ministradas, conclusões dos relatórios, artigos individuais, bem como relatórios de observação. Esse conjunto de narrativas escritas foi produzido pelos alunos das disciplinas Estágio Supervisionado I, II e III, ministradas na 5ª, 6ª e 7ª fases respectivamente do curso de História da Udesc, entre 2006 e 2012. Esses recortes foram escolhidos porque são representativos de uma série que descreve práticas em sala de aula e impressões sobre esse processo. Neles buscamos identificar quais temas/preocupações relacionados com a prática docente e a aprendizagem em História motivaram os acadêmicos, e como eles os analisaram em suas produções.

O exercício proposto é o de reflexão, e estamos cientes dos limites aí im-postos. As questões apresentadas não servem à generalização, contudo podem contribuir para adensar o debate sobre a aprendizagem da História na Educação Básica e sobre o grau em que esse compromisso deve ser assumido pelos cursos de licenciatura em História.

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Deslocando o eixo da formação docente: do ensino para a aprendizagem

Nas últimas décadas as pesquisas realizadas no âmbito da Educação Histórica deslocaram o foco de ‘o que deve ser ensinado’ ou ‘como se deve ensinar História na escola’ para as operações cognitivas relacionadas ao desen-volvimento do pensamento histórico e da formação histórica de diferentes sujeitos.4 As questões tornadas pertinentes nesse contexto privilegiam a apren-dizagem, ou seja, centram-se na análise de como crianças, jovens e adultos elaboram conhecimentos sobre a história. A investigação desse processo se dá num determinado contexto social e histórico, e seria a tarefa empírica da Didática da História. Para Klaus Bergmann, as pesquisas orientadas desse cam-po devem incluir entre os objetos de suas investigações as recepções extraes-colares ou extracientíficas de história que atravessam o cotidiano e constituem o vivido dos indivíduos das mais diferentes formas. Entre esses objetos que influem na formação histórica estão a televisão, o cinema, a imprensa, as con-versas cotidianas, os museus, a literatura histórica, as propagandas históricas, as representações científicas e populares sobre o passado, os livros didáticos, os monumentos, os edifícios e nomes de ruas que lembram eventos históricos, entre outros.5

No trabalho que temos desenvolvido na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado, bem como nas atividades do Pibid, optamos por trabalhar com essa concepção da Didática da História que norteia nossas discussões relacionadas à formação docente. Vêm dela também nossas inserções relacio-nadas aos processos de ensinar e aprender História junto aos acadêmicos e aos professores envolvidos em nossa proposta. Embora tenhamos optado pelos referenciais da epistemologia da História para desenvolver nosso trabalho, importa notar que os demais estudos que fornecem suportes explicativos para o fenômeno da aprendizagem não são desconsiderados. Pesquisas relacionadas ao ensino e aprendizagem da História desenvolvidas com base nos pressupos-tos da Psicologia Cognitiva (principalmente aqueles relacionados aos estudos de Piaget e Vygotsky) servem de contraponto às nossas discussões com as turmas dos Estágios e também com o grupo do Pibid, ao mesmo tempo em que as complementam.

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Jörn Rüsen oferece uma discussão bastante instigante sobre as relações entre a História disciplina e outras formas e funções do conhecimento histórico. Seu trabalho nos fornece aportes teóricos que fundamentam o entendimento de que o ensino de História é apenas um dos fenômenos constituintes da formação histórica. Segundo Rüsen, existe todo um conjunto de processos de aprendiza-gem em História que atravessam a vida dos sujeitos e que não se destinam prio-ritariamente à obtenção de uma competência profissional específica, mas sim à orientação da vida prática, com base na consciência histórica.6 Essa perspectiva, em especial, amplia o horizonte de análise sobre o ensino de História, pois toma o sujeito como capaz de estabelecer sua própria relação com o mundo a que pertence, relação que é atravessada por percepções sobre o tempo histórico, per-passada por dimensões sobre o passado, o presente e o futuro.

Entendemos que numa formação docente de qualidade o ensino de História vai muito além de difundir conhecimentos sobre o passado e/ou con-tribuir para a formação de uma identidade nacional. Ensinar história nessa concepção estaria relacionado ao desenvolvimento da capacidade das crianças e dos jovens de pensar historicamente. Para isso, mais do que conhecer uma narrativa sobre o passado, entendemos que os alunos devem conhecer aspectos do processo de produção desse conhecimento. Isso significa desenvolver a capacidade de pensar o que ocorreu no passado com base no contato e na análise de diferentes evidências históricas e com isso construir uma narrativa histórica, com explicações provisórias e multidimensionais. A aprendizagem histórica adquire sentido na vida das pessoas porque decorre de questões e preocupações do presente, uma vez que o “saber histórico é um produto da experiência e da interpretação, resultado, pois, de síntese, e não um mero con-teúdo pronto a ser decorado”.7 Jörn Rüsen defende que o aprendizado histórico corresponde ao aumento da experiência, resulta em aumento da competência interpretativa e acarreta o aumento da capacidade de orientação, sendo essas três dimensões interligadas, afinal “não há experiência histórica livre de inter-pretação, nem orientação livre de experiência. Todo modelo de interpretação é relacionado simultaneamente à experiência e à orientação” (Rüsen, 2007, p.118). Para ele o ensino de História não pode ser centrado nem na aquisição de um determinado volume das informações disponíveis, nem somente nos interesses dos alunos. A saída deve ser um aprendizado histórico que estabeleça o equilíbrio entre a “história como dado objetivo nas circunstâncias da vida

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atual e a história como construto subjetivo da orientação prática movida pelos interesses” (Rüsen, 2007, p.120).

Aprender história não é somente acumular uma sequência de fatos e pro-cessos passados. O aprendizado histórico envolve apropriar-se de aspectos da epistemologia do fazer histórico, entre os quais a compreensão de conceitos do tempo, a identificação das evidências e de que estas são incompletas e limi-tadas, como são limitadas e provisórias as explicações históricas. Nessa pers-pectiva, ensinar História não se restringe a ensinar narrativas históricas elabo-radas pelos historiadores e organizadas em uma lista de conteúdos previamente definidos. Ensinar História é algo mais complexo, é ensinar a capacidade de pensar historicamente. Para isso, além de conteúdos devem ser desenvolvidas habilidades cognitivas que visem possibilitar que os sujeitos conheçam e ex-pliquem o mundo com base nas ferramentas próprias do conhecimento histó-rico. Segundo Lee, nos últimos 30 anos vem se desenvolvendo um debate entre duas posições diferentes, mas não excludentes, sobre a educação histórica no Reino Unido. Enquanto um grupo está preocupado em desenvolver a com-preensão histórica, o outro está mais interessado no que os alunos sabem ou devem saber sobre o passado. O autor não vê conflito entre os dois interesses, mas ao se privilegiar o aprendizado do conteúdo o outro aspecto não é neces-sariamente desenvolvido ou mesmo acaba sendo negligenciado.8 Nesse sentido “saber história não é a mesma coisa que pensar historicamente correto, pois o conhecimento histórico apreendido apenas como algo dado não desenvolve a capacidade de conferir significados à história e orientar aquele que aprende de acordo com a própria experiência histórica”.9

No entanto, essa concepção de aprendizagem em História é lacunar na experiência adquirida pela maioria dos graduandos de História no decorrer de sua formação escolar. Como as crianças e os jovens da Educação Básica, os graduandos que estão cursando História também possuem conhecimentos prévios sobre o passado e sobre o que significa “ser professor de história”. Dessa forma, é imprescindível tomarmos consciência, na condição de forma-dores de futuros professores de História, sobre em quais aspectos da cultura escolar os graduandos estiveram imersos durante sua formação básica e mes-mo universitária. Como salienta Maurice Tardif, “os saberes de um professor são uma realidade social, materializada através de uma formação, de progra-mas, de práticas coletivas, de disciplinas escolares, de uma pedagogia

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institucionalizada etc., e são também os saberes dele”.10 Esse aspecto também é analisado por Ana Maria Monteiro11 ao constatar que as experiências e os saberes dos professores de História influenciam sobremaneira suas escolhas nas práticas docentes. Nesse sentido, (re)significar essas experiências é funda-mental para a reflexão sobre o fazer docente, e, especificamente para quem trabalha com a formação de professores de História, significa abrir espaço para que práticas sejam repensadas e talvez superadas.

Concepções de ensino e aprendizagem no Estágio Curricular Supervisionado: o que pensam os estagiários?

O episódio relatado na abertura deste artigo aponta para singularidades envolvidas na formação inicial e relacionadas ao aprendizado histórico. Contudo, concordar em que aprendemos história nos mais variados lugares não significa prescindir da importância de se aprender História na escola. Nesse caso estamos relacionando a aprendizagem na Educação Básica com as noções relativas a esse processo postas em pauta na formação docente inicial. Certamente estamos fa-lando de circunstâncias de aprendizados diferentes, os objetivos e finalidades do ensino e aprendizagem da História na Educação Básica são muito diferentes daqueles disponibilizados para os cursos de licenciatura em História, que se vol-tam à formação de um profissional da área.12 Para nós as questões relacionadas ao aprendizado se encontram justamente nas percepções que os acadêmicos do curso elaboram sobre o tema ao longo de seu processo formativo e que vão in-cidir em sua atuação na sala de aula, nas representações que constroem sobre as capacidades e os fenômenos que participam da elaboração das ideias históricas pelas crianças e pelos adolescentes.

Em sua discussão sobre o ensinar e aprender História na Educação Básica, Flavia Caimi foi muito feliz ao introduzir as questões sobre o tema por meio do seguinte provérbio: “para ensinar história a João é preciso entender de ensinar, de história e de João”.13 Ou seja, os processos de ensinar e aprender História estão implicados em três elementos indissociáveis, quais sejam: a es-pecificidade da aprendizagem, a natureza da História e o sujeito que aprende. Parece-nos que, em certa medida, temos conseguido certo êxito no trabalho com a natureza da História, abordando as questões epistemológicas, teóricas e conceituais que sustentam esse campo de conhecimento. Contudo, em se

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tratando da especificidade da aprendizagem e, em especial, do sujeito que aprende, ainda há um longo caminho a percorrer. Isso porque estamos enre-dados no centramento da figura do professor, dos conteúdos e dos métodos que dimensionam o ensino e obliteram a aprendizagem.

Em nosso cotidiano de trabalho observamos que aspectos relacionados à natureza da História permanecem centrais na preocupação dos estudantes do curso em detrimento da especificidade da aprendizagem e do sujeito que aprende:

Uma avaliação superficial me faz pensar que ao aplicarmos um projeto de aulas, como pretendemos no próximo semestre, os alunos sentiriam grande dificuldade em acompanhar uma mudança no esquema habitual das aulas. Certamente isso não nos fará desistir e nem recuar quanto ao formato que pensamos, até porque em conversas com alguns deles, notamos alguma empolgação na formatação de um novo esquema de aulas ... Provavelmente o que contará ponto ao nosso favor, na atribuição das aulas, é que uma metodologia diferenciada tem grande chance de motivar os alunos aos estudos. Fica clara a falta de estímulo que os estudantes de nossa turma possuem ... O objetivo é proporcionarmos aos alunos uma abordagem diferente e mais estimulante no ensino da História, mesmo que por pouco tempo.14

Esse fragmento representa uma série de narrativas dos acadêmicos pro-duzidas entre 2006 e 2012, na qual fica bastante evidente a ênfase nas metodo-logias de ensino e no próprio desenvolvimento das aulas, centrada na figura do professor. Esse centramento é observado em duas ordens: num primeiro momento no professor da turma, posteriormente na figura do estagiário. Mesmo a análise relativa ao interesse e à atenção das crianças e jovens na sala de aula é também realizada tomando-se por base esse centramento, como se pode observar nestes comentários:

Apesar do esforço de preparar a aula, vimos que não adianta chegar com muita coisa para dizer aos alunos, sem dar o devido tempo para que eles parem e assi-milem tudo o que foi falado. Além disso, usar os dois períodos só falando é difi-cílimo para manter a atenção dos alunos presa, daí porque precisamos pensar em uma estratégia para mesclar atividades e aula expositiva.15

O que achamos mais marcante nas aulas foi a reação dos alunos com aulas mais expositivas, percebemos que não é um tipo de aula em que eles permaneçam mais

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calmos, com isso já optamos por algumas mudanças, a principal diminuir aulas desse tipo e incentivar mais debates entre os alunos. Importante ressaltar que a ex-posição sobre os personagens não teve tempo nas duas aulas da terça-feira e assim tivemos que continuar na quinta. Com isso, mais uma experiência, pois pecamos pelo excesso. Saímos dessa aula um pouco decepcionados por isso, mas essa ‘de-cepção’ nos fez buscar novas propostas de atividades, de aulas não apenas para agradar aos alunos, pois sabemos que há momentos em que é necessária aula expo-sitiva, mas para permitir uma aula mais próxima das características da turma.16

Esse aspecto – aulas centradas no professor – também foi tomado como tema de reflexão pelo acadêmico Thiago Oliva de Araújo, quando explica, no início de seu artigo, a escolha por discutir o cinema em sala de aula. Segundo ele, um dos motivos foi o “vício do professor e da aula conteudista em que nós acadêmicos estamos submetidos”. Essa opinião foi formada com base em sua experiência discente, que desde a Educação Básica até o Ensino Superior “con-tou com a atuação do professor como detentor da verdade e possuidor da in-formação privilegiada, do conhecimento especializado”. Essa experiência o influenciou no momento em que esteve diante da turma de alunos pela qual ficou responsável durante seu estágio: “procurei transmitir aos alunos incon-táveis informações históricas, buscando legitimar minha condição de profes-sor”. Ele relata, porém, que essa postura não gerou interesse e envolvimento dos alunos na aula, e os “resultados foram ordinários”.17

Outra questão que chama atenção nos relatórios é a preocupação em vin-cular o que está sendo estudado com aspectos do presente, com a vida dos alunos. Esse é um recurso didático que aparece com frequência no cotidiano das aulas de História. Contudo, observamos também que localizamos a apren-dizagem na compreensão de narrativas prontas, e não necessariamente na construção de processos cognitivos que desenvolvam capacidades autônomas e críticas de elaboração de novas concepções sobre a História, na elaboração de conhecimentos históricos:

Assim, com base no recorte sobre o conteúdo pensou-se o modo como este ia ser tratado, pensando em estabelecer um diálogo entre passado/presente, questionan-do-se principalmente sobre que sentido tal conteúdo poderia ter na vida dos alu-nos. Qual importância de tal conhecimento dentro, mas principalmente fora, dos muros da escola? E como fazer com que os estudantes compreendessem tanto a

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importância de conhecer sobre o conteúdo, quanto como aplicá-lo na prática, de-senvolvendo uma leitura histórica e crítica da realidade presente em suas vidas?18

Era esta uma das nossas maiores preocupações: a de não desvincular os conteú-dos da vida dos estudantes, pois, como já ouvimos e lemos diversas vezes ao longo do nosso curso, ‘só fica o que significa’. Nesses 3 meses de estágio, busca-mos trazer materiais distintos, fossem eles filmes, imagens e músicas, de forma a estimular a participação dos alunos.19

A preocupação em vincular a história ou o passado ao presente, a fim de tornar o aprendizado mais significativo para os jovens, é um aspecto muito marcante nos projetos de estágio. O grupo formado por Alexandre, Antonio, Filipe e Mariana constatou “o interesse dos alunos por temáticas que conectem o passado e o presente, em um sentido de analisar as repercussões do tempo passado na construção do tempo presente”.20

Outra dimensão salientada é o envolvimento dos alunos nas atividades de análise de diversas fontes audiovisuais, imagéticas e escritas. O trabalho com fontes é um aspecto que tem sido desenvolvido nos estágios realizados no curso de história da Udesc:

A diversidade de fontes e a diversidade de discurso são importantes tendo em vista que os alunos são confrontados diariamente com informações diversas e/ou contraditórias e devem transformar tais informações em utilizáveis no seu dia a dia. Tendo essa questão em vista, e pensando que o professor é responsável por apresentar conhecimentos históricos prévios para suscitar a discussão, utilizare-mos discussões em sala a fim de levantar questões acerca das multiplicidades da História e da historiografia a partir de diversas fontes. (Medeiros, 2012, p.28)

Procuraremos realizar diversas atividades visando não apenas transmitir fatos, datas e nomes, mas levantar discussões acerca do contexto e da utilização de fontes para ensinar história. (Gentil, 2012, p.24)

Uma preocupação que vem aparecendo nos relatórios dos estagiários, ainda que de forma muito incipiente, é a de identificar como os alunos aprendem, principalmente quando do relato e comentários referentes às atividades que não estão centradas no professor, como as oficinas de análise de fontes históricas:

Os estudantes compreendem que há a diversidade de documentos e as múltiplas explicações, mas não sabem como manusear isso a partir de uma análise especí-

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fica a cada documento. Apesar do gosto em discutir imagens e, principalmente, imagens em movimento, a maior dificuldade da turma está na análise desses ma-teriais. (Medeiros, 2012, p.75)

Mas, enfim, o que foi possível perceber de mudança, tomando como parâmetro a primeira investigação que buscou as ideias prévias dos alunos? De uma maneira geral, os alunos conseguiram perceber que são múltiplos os discursos que podem ser construídos sobre um mesmo personagem, sejam esses discursos escritos, se-jam, no nosso caso, imagéticos. E ainda mais importante, eles passaram a enten-der as imagens como fontes que também precisam ser questionadas, que não tra-zem em si a ‘realidade’ – principalmente no caso da fotografia. Foi notável a importância de se utilizar este tipo de abordagem [aula oficina com fontes] na aula de história, o que é ensinado parece adquirir mais sentido para os alunos, pois eles se inteiram, mesmo que de maneira superficial, do próprio ofício de historiador.21

O professor do Departamento de Educação da Universidade de Estocolmo Olla Halldén, em seus estudos, detém-se sobre os limites e possibilidades re-lacionados à aprendizagem da História escolar.22 Em sua discussão fica claro que a noção de que os alunos precisam abandonar suas ideias prévias, suas próprias concepções em favor dos conceitos científicos, tidos como válidos, é passível de questionamentos, já há bastante tempo. Isso porque há diferentes planos relacionados às concepções sob o domínio do mundo do vivido e àque-las baseadas em conhecimentos científicos, pertencentes ao domínio simbólico. A aprendizagem efetiva ocorreria quando o aluno consegue relacionar esses dois domínios. Nesse aspecto é bastante central o protagonismo do professor de História, não mais como detentor de um conhecimento que será narrado, mas no sentido de que caberia a ele elaborar as estratégias relacionadas ao ensino a fim de compreender as ideias históricas que os alunos já possuem e, somente a partir daí, possibilitar formas variadas de construir situações em que as crianças e os jovens possam identificar os diferentes domínios e então relacioná-los.

Com base nos relatórios de estágio podemos identificar também os prin-cipais desafios encontrados pelos futuros docentes no seu trabalho. Um deles é a dificuldade de romper com a prática de aula centrada no professor e na aula expositiva. Outro é o distanciamento entre o que é estudado na universidade e o que é vivenciado na Educação Básica:

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O principal objetivo do estágio era interagir com o conhecimento prévio dos alu-nos acerca da identidade brasileira e dos fluxos migratórios vivenciados pelo país ao longo do século XIX. Em diversos momentos desviamos deste objetivo, substi-tuindo esta interação pela exposição de conhecimento dado, pela metodologia mais segura e confortável, e nos perdemos em meio a um excesso de informação, com dificuldades para selecionar o que iríamos falar e mostrar durante as aulas.23

As aulas foram elaboradas com aporte teórico sobre o conceito de aulas oficinas e consciência histórica. Ambos caminham bem, juntos, um aplica o que o outro propõe, em tese. Porém, na prática a estrutura rígida escolar nos ‘convida’ à aula expositiva e por vezes sem diálogo! Sair deste padrão é difícil. Entrar em contato com os alunos diretamente e saber à medida que transpõe a autoridade do pro-fessor em autoritarismo é algo muito sutil ... Tentamos fugir de uma narração li-near presa aos fatos passados, buscando uma ligação com os fatos da atualidade que estão no cotidiano dos alunos.24

Também refleti sobre a possibilidade de problematizar o abismo existente entre a Universidade, suas pesquisas intelectualizadas e seu vocabulário rebuscado, e a unidade escolar básica, a qual tem dinâmica particular e propõe a formação geral do indivíduo, a partir de bases preferencialmente críticas. O entrave entre as duas instituições fica evidente quando é preciso, por parte do professor do ensino bási-co, tornar didática a informação minuciosa e perspicaz que apreende na Universi-dade, que muitas vezes é abstrata, a discentes que naturalmente possuem capacida-de de reflexão diferenciada. As inquietações que envolvem a vida de professor, seus desafios são demasiados. Logo, como transformar em texto articulado todas as sensações e reflexões experimentadas durante o decorrer do estágio?25

Uma das questões que mais têm chamado nossa atenção nessas narrativas produzidas durante o período de estágio (e que infelizmente pouco aparece no texto escrito) é a mudança de perspectiva em relação ao trabalho docente. Emoções diversas se completam: surpresa com a quantidade de conhecimentos e habilidades que envolvem o fazer docente, tristeza e decepção pelo que deu ‘errado’ e alegria por ter conseguido vencer as dificuldades e perceber que os alunos se envolveram nas atividades propostas e aprenderam alguma coisa.

O estágio foi, enfim, um lugar especial para as nossas primeiras visitas à sala de aula. Deu-nos a oportunidade de nos vermos como professores pela primeira vez. Ser chamado de professor, estranhar esse vocativo, ser convidado para expli-car algo sobre a matéria ou sobre as perguntas, contar piadas para descontrair a

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turma, chamá-los para a discussão proposta, chamar a atenção em alguns mo-mentos, resolver conflitos entre os alunos, dar as notas, corrigir provas, retorná--las aos alunos, ouvir algumas reclamações quanto às notas, escrever na lousa, ouvir que a sua letra não está legível, acordar mais cedo que o normal para dar aula, prepará-la, ficar amargurado por ela não ter ocorrido da forma que tinha sido planejada, replanejar no momento da aula, pedir para devolverem em outro dia a tarefa não terminada no tempo proposto, não devolverem a atividade no prazo marcado... Uma infinidade de relações de um cotidiano que só sendo pro-fessor para saber como é. Foi um momento divisor de águas, entre ser apenas aluno e ser aluno-professor. Uma dupla função muito interessante e instigante. Agora nos percebemos de outra maneira, diferente da qual no primeiro dia, ao entrar naquela sala de aula. (Gentil, 2012, p.147)

O primeiro contato com a sala de aula na condição de futuros professores é um momento que pode ser bastante difuso, pois a experiência se desenvolve numa dupla posição desses sujeitos: a de estudantes e também futuros profes-sores. Quando passam a frequentar uma sala de aula pela primeira vez, os es-tudantes do curso de História não se reconhecem nem como estudantes cole-gas daqueles outros estudantes que ali estão nem ainda como professores. São sujeitos que habitam entre lugares, posições que envolvem desafios permeados por medos, desconfortos, afetos e sensibilidades difíceis de precisar e organizar até mesmo numa narrativa escrita. O conjunto de narrativas escritas incide sobre a própria formação histórica desses sujeitos, que, ao escreverem, atri-buem sentido aos percursos e práticas docentes. Em razão disso esse material tem servido de base às nossas discussões junto às novas turmas que iniciam seu processo formativo no âmbito dos estágios. As mudanças são lentas, a despeito de nosso trabalho e esforço comprometido com uma formação do-cente de qualidade, mas existem.

Considerações finais

No século XIX os objetivos consoantes à História escolar eram claros: um meio de instrução cívico-nacional, cujo fim principal era fortalecer o Estado-nação ou legitimar a ordem social e política estabelecida, inculcando respeito e devoção aos cidadãos súditos. Ensinar significava ater-se às narrativas fun-dadoras dos eventos memoráveis e dos grandes personagens, e aprender era

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memorizar esse conjunto de acontecimentos que formariam uma memória comum. É Christian Laville quem aponta o quanto a história escolar mudou desde então em relação aos seus objetivos e pedagogias. No século XX, princi-palmente após a Segunda Guerra Mundial, os objetivos da história escolar se alteraram de modo importante e a ideia do cidadão-participante substituiria a do cidadão-súdito. Em seu lugar surgiria “uma pedagogia baseada no pensa-mento histórico, mais apropriada ao aprendizado das capacidades intelectuais e afetivas, necessárias ao exercício autônomo e competente de suas responsa-bilidades cívicas”.26 Para Laville as capacidades que se espera empregar na construção do conhecimento histórico serão exercitadas pelos alunos tendo como base a variedade dos acontecimentos de sua realidade social, de seu co-tidiano vivido e não necessariamente nas narrativas históricas aprendidas na escola. Na mesma direção, muito embora se concorde com a premissa de que é necessário aprender a pensar historicamente, poucos sabem como colocar em prática essa nova proposta. Sua crítica é de que as pesquisas relativas à Didática da História não produziram a ajuda esperada pelos professores no que se refere ao aprendizado do pensamento histórico; quando muito forne-cem contribuições à compreensão histórica, ou seja, dois processos distintos. Enquanto o pensamento histórico diz respeito a um conjunto de operações intelectuais mobilizadas na produção dos saberes históricos, a compreensão histórica estaria envolvida no entendimento das intenções e dos pressupostos de uma narrativa já construída.

Entendemos que esses dois processos não são concorrentes e que mesmo ensinar a pensar historicamente é possível no ambiente da sala de aula, mesmo considerando os desafios aí envolvidos. Da mesma forma, se de fato ainda pre-cisamos de pesquisas mais consistentes relativas ao aprendizado do pensamento histórico, nos termos explicitados por Laville, é inegável reconhecer as contri-buições das pesquisas da área da Didática da História para uma melhor com-preensão relativa aos aspectos cognitivos da elaboração das ideias históricas de crianças e jovens. Há mudanças importantes em relação à própria concepção de ensino e aprendizagem de História verificadas nas narrativas dos estagiários a partir de 2006, quando começamos efetivamente a desenvolver trabalhos rela-cionados à Didática da História no curso. Há permanências, claro, e os docu-mentos produzidos pelos nossos estagiários deixam isso bem claro, mas pode-se dizer que houve também algum descentramento dos conteúdos de História e das

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Cristiani Bereta da Silva e Luciana Rossato

metodologias de ensino que possibilitou a emergência de uma sensível preocupa-ção com as ideias históricas das crianças e dos jovens.

Em entrevista recentemente concedida a uma das autoras deste artigo,27 o pesquisador e professor do Reino Unido Peter Lee descreve o quanto as pesquisas relacionadas ao desenvolvimento cognitivo vêm crescendo desde 1960 em diferentes países, e isso inclui o Brasil, cuja principal referência é o Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (Lapeduh) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que tem à frente a professora e pesquisadora Maria Auxiliadora Schmidt. Tal crescimento e o teor dessas pesquisas vêm ao encon-tro da constatação de que pouco avançaremos no ensino de História escolar e na própria formação de docentes para a Educação Básica se não considerarmos compreender a aprendizagem e os processos cognitivos envolvidos na elabo-ração das ideias históricas. A questão que nos parece premente é pensar nos objetivos relacionados ao ensino e à aprendizagem de História no presente e de como relacioná-los de modo qualitativo à formação docente.

É mais fácil pensar em metodologias e conteúdos de ensino do que nos processos de aprender, até porque são muitas as dificuldades relacionadas à aprendizagem da História na Educação Básica. Joaquín Prats apontou seis muito pertinentes, das quais destacamos:

• A compreensão da História supõe o uso de altos níveis de pensamento abstrato e formal;

• Ao contrário das chamadas ciências experimentais, como a Física ou a Química, por exemplo, é impossível reproduzir os fatos do passado para melhor exemplificá-los aos estudantes;

• Na área da História não há um vocabulário conceitual único e aceito por todos, que possa servir de substrato aos modelos de aproximação aos dados empíricos;

• Ainda subsistem preconceitos que identificam a História como uma espécie de saber útil para concursos de conhecimentos gerais na televi-são ou ainda para se lembrar de datas e efemérides;

• Em determinadas situações a História escolar é utilizada pelos governos com o objetivo de configurar a consciência dos cidadãos, buscando oferecer uma visão do passado que sirva para fortalecer projetos políti-cos hegemônicos;

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• Em detrimento da complexidade envolvida no exercício da análise e da explicação de fenômenos históricos, os professores de História, em de-terminados momentos, optam por oferecer uma ideia de História com informações prontas e acabadas.28

Essas dificuldades não ocultam, porém, a relevância do lugar ocupado pela disciplina de História na Educação Básica, ou ainda, do lugar ocupado pela história em nossas vidas. Estamos mais bem situados com algum conhecimen-to da história do que com nenhum conhecimento, bem lembrou Peter Lee (2011). Mas isso é pouco, claro, para quem imagina que o conhecimento his-tórico possa converter-se numa ferramenta poderosa para que os sujeitos se compreendam e compreendam o lugar que habitam no mundo, e que sejam capazes de lutar por um lugar e uma existência melhor.

Talvez ainda estejamos longe de ensinar de modo que os alunos aprendam a pensar historicamente em virtude da sofisticação e das sutilezas aí envolvidas, haja vista que pesar as conexões entre as diferentes formas de acessar as nar-rativas sobre o passado disponíveis é apenas um dos desafios entre muitos outros igualmente relevantes. Se de fato ainda há muito a fazer no que tange a práticas possíveis que subsidiem um bom trabalho em sala de aula, voltado à aprendizagem histórica e nela interessado, é preciso qualificar os espaços de formação docente a fim de preparar professores capazes de compreender esse grau de dificuldade, e principalmente que não o negligenciem por isso, mas que o tomem como um desafio a ser enfrentado.

NOTAS

1 Diário de anotações de aula de Cristiani Bereta da Silva, 11 set. 2012. O curso de História possui 18 bolsistas do Programa institucional de bolsa de iniciação à docência (Pibid/Ca-pes/Udesc) que desenvolvem atividades em duas escolas de Educação Básica da rede públi-ca de Florianópolis (SC), sob a orientação das professoras Cristiani Bereta da Silva e Lucia-na Rossato e supervisão dos professores bolsistas Marcos Francisco da Silva (Escola Básica Municipal Vitor Miguel de Souza) e Valéria de Oliveira Florentino (Escola Estadual Básica Padre Anchieta).2 LEE, Peter. Por que aprender História? Revista Educar, Curitiba, v.42, n.4, p.19-42, 2011. p.24-25.3 RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Revis-ta História da Historiografia, n.2, p.163-209, mar. 2009. p.165-168.

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4 SCHMIDT, Maria Auxiliadora; GARCIA, Tânia Maria Braga. Pesquisas em educação histórica: algumas experiências. Educar em Revista, Curitiba, n. esp., p.11-31, 2006; BAR-CA, Isabel. Investigação em Educação Histórica: fundamentos, percursos e perspectivas. In: OLIVEIRA, Margarida Dias de et al. (Org.). Ensino de História: múltiplos ensinos em múltiplos espaços. Natal: Ed. UFRN, 2008. p.23-32; LEE, 2011.5 BERGMANN, Klaus. A História na reflexão didática. Dossiê História em Quadro-Negro: escola, ensino e aprendizagem. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n.19, set. 1989/fev. 1990. p.30-32.6 RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UnB, 2001.7 RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história: formas e funções do conhecimento histó-rico. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UnB, 2007. p.111.8 LEE, Peter. Em direção a um conceito de literacia histórica. Revista Educar, Curitiba, n. esp., p.131-150, 2006.9 SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Cognição histórica situada: que aprendizagem histórica é esta? In: BARCA, Isabel; SCHMIDT, Maria Auxiliadora (Org.). Aprender História: pers-pectivas da educação histórica. Ijuí (RS): Ed. Unijuí, 2009. p.40.10 TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002. p.16.11 MONTEIRO, Ana Maria. Professores de história: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.12 Apenas como exemplo, ver: BITENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004; e CAIMI, Flávia Eloisa. Por que os alunos (não) apren-dem História? Reflexões sobre ensino, aprendizagem e formação de professores de Histó-ria. Tempo, v.11, n.21, p.17-32, jul. 2006.13 CAIMI, Flávia Eloisa. História escolar e memória coletiva: como se ensina? Como se aprende? In: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos et al. (Org.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. p.65-79.14 Nelson (pseudônimo). Relatório de observação, 1º ano, turma 126, Instituto Estadual de Educação, 2006.15 MEDEIROS, Alexandre Pedro de; NAKAZIMA JUNIOR, Antonio Shigueo; NOGUEI-RA, Filipe Gattino; SILVA, Mariana Heck. Evidências do passado: a diversidade de fontes históricas e as múltiplas explicações em História do Brasil construídas pelos estudantes de Ensino Médio do primeiro ano B. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2012. p.59.16 GENTIL, Flávio Welker Merola; SCHUTZ, Karla Simone Willeman; MARTINS, Maria-ne. O uso das fontes: investigando a aprendizagem histórica na turma 1º D do Colégio de Aplicação. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2012. p.36.17 ARAÚJO, Thiago Oliva Lima de. O cinema como instrumento didático no ensino de His-

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tória. In: OLTRAMARI, Arthur Rebonatto et al. Os movimentos populares e a cidadania no Brasil: revoltas no Brasil República. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2011. p.85.18 CARMO, Catarina Lisboa do; FRANCISCO, Grasiela. Uma Europa nos trópicos? Repre-sentações de africanos, afrodescendentes e imigrantes europeus nos discursos histórico, midiático e turístico contemporâneo. UDESC: Relatório de estágio em História, 2012. p.77.19 PIERONI, Gabriella Cristina; SILVEIRA Mariana Rotili da; OLIVEIRA, Renan Ritz-mann de. A história vai ao cinema: narrativas fílmicas em sala de aula. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2011. p.9.20 MEDEIROS et al., cit. UDESC: Relatório de estágio em História, 2012. p.17.21 SCHUTZ, Karla Simone Willeman. Imagem e biografia: problematizando o uso de ima-gens e de personagens históricos em sala de aula. In: GENTIL et al., cit. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2012. p.131-132.22 HALLDÉN, Ola. Conceptual change and the learning of history. International Journal of Educational Research, v.27, n.3, p.201-210, 1997.23 KLANN, Carlos José; MELO, Mateus Cavalcanti; BOEING, Rafael Antônio Motta. Cons-truindo representações: a formação do conhecimento histórico dos alunos acerca das iden-tidades no Brasil do século XIX. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2010. p.61.24 LUNARDELLI, Daniel Henrique França; MARQUES, Fabiane Gabriela Lubian; AQUI-NO, Mariana Gonçalves de. Entre revoluções e cotidianos. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2012. p.114.25ARAÚJO, Thiago Oliva Lima de. O Cinema como instrumento didático no ensino de História. In: OLTRAMARI et al., cit. UDESC: Relatório de Estágio em História, 2011. p.85.26 LAVILLE, Christian. Em educação histórica, a memória não vale a razão! Educação em Revista, Belo Horizonte, n.41, p.13-41, jun. 2005. p.15.27 SILVA, Cristiani Bereta da. O ensino de História – Algumas reflexões do Reino Unido: entrevista com Peter J. Lee. Tempo e Argumento, Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Udesc, Florianópolis, v.3, n.2, p.216-250, jul.-dez. 2012. Disponível em: www.revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180304022012216; Acesso em: 20 jan. 2013.28 PRATS, Joaquín. Ensinar História no contexto das Ciências Sociais: princípios básicos. Revista Educar, Curitiba, Especial, p.191-218, 2006. p.205.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Professores iniciantes ensinando História: dilemas de aula e desafios da formação

Beginner teachers teaching History: class dilemmas and formation challenges

Flávia Eloisa Caimi*

ResumoA maneira como os professores apren-dem em contextos de formação e atuação tem constituído tema central nos debates sobre qualidade da educação e melhoria do ensino. Diante disso, este estudo segue o propósito de investigar os processos de aprendizagem profissional de acadêmicos em situação de estágio curricular supervi-sionado, na licenciatura em História, com vistas a identificar de que conhecimentos e estratégias se valem esses sujeitos para dar conta das demandas e desafios que se colocam no contexto de iniciação à do-cência. Nos limites deste artigo são anali-sados os registros de aula de uma acadê-mica cujo estágio realizou-se na última série do ensino fundamental. Além da análise dos registros (planejamento, ativi-dades, memórias de aula e memorial fi-nal), desenvolveu-se observação de aulas e entrevista não estruturada.Palavras-chave: História; estágio; apren-dizagem profissional.

AbstractThe way the teachers learn in formation and acting contexts has been the core is-sue in the debates about the education quality and education improvement. From this point, this study´s purpose is to investigate the academic’s profes-sional learning processes in History graduation overseen internship situa-tions, aiming to identify which knowl-edge and strategies these students use to deal with the demands and challenges that appear in the beginning of this teaching context. Within the limits of this study, the class records made by a student whose internship has been done in the last grade of elementary school are analyzed. Besides the records analy-sis (planning, activities, class memories and final memory), a class observation and a non-structured interview have been made.Keywords: History; supervised training; professional learning.

Na literatura educacional tem-se dedicado especial atenção aos saberes e competências necessários à atuação docente. Diversos autores1 vêm procuran-

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 87-107 - 2013

* Faculdade de Educação, Universidade de Passo Fundo (UPF). Campus I, São José. 99001-970 Passo Fundo – RS – Brasil. [email protected]

Flávia Eloisa Caimi

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do demonstrar a importância de prestar atenção aos modos como os profes-sores transformam os conhecimentos que possuem em saberes ensináveis e compreensíveis para os seus alunos. Ainda, apontam um conjunto de saberes necessários à docência, que dizem respeito, grosso modo, aos saberes da expe-riência, aos conhecimentos/conteúdos da área específica, aos saberes didático--pedagógicos, aos saberes curriculares e aos conhecimentos dos contextos educativos, dentre outros.

Ao nos debruçarmos sobre o contexto formativo da atividade de Prática de Ensino e Estágios na Licenciatura em História, interessou-nos investigar como os professorandos2 estão constituindo sua aprendizagem profissional, no intuito de identificar que elementos cognitivos e contextuais caracterizam seu desempe-nho competente na sala de aula. O que entendemos por desempenho competente, neste estudo, não é a capacidade de dar todas as respostas ou de solucionar todos os problemas da aula, e sim a disposição de identificar quais dificuldades se apresentam em dada situação; de reconhecer que limitações e potencialidades têm para enfrentá-la; de perceber o que sabem e o que lhes falta saber para en-frentar os dilemas que surgem no cotidiano da sala de aula, enfim, um conjunto de habilidades que Bransford, Brown e Cocking (2007) denominam ‘competên-cia adaptativa’, conceito associado ao de metacognição, consubstanciado na ta-refa de avaliar o próprio progresso, identificar e perseguir, de modo contínuo e sistemático, novos objetivos de aprendizagem.

Frente às inquietações que movem nossa prática de formadores de pro-fessores de História na licenciatura, temos buscado compreender como as trajetórias de formação dos sujeitos convergem para práticas qualificadas de ensinar-aprender em situação de estágio supervisionado. Dentre as principais indagações, destacamos: a) De que conhecimentos, instrumentos cognitivos, estratégias, recursos e características pessoais se valem esses sujeitos na medida em que necessitam mobilizar tais aportes para ensinar outros? b) Quais as mediações e/ou estratégias de aprendizagem implicadas na apropriação/cons-trução dos aportes necessários para viabilizar uma prática de ensino que atenda qualificadamente às demandas da aula, resultando em desempenho competente? c) Como reagem os sujeitos frente a situações que requerem a organização do conhecimento, a compreensão e resolução de problemas?

Para desenvolver o estudo, acompanhamos a trajetória de formação aca-dêmica de um grupo integrado por cinco sujeitos previamente identificados

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como estudantes destacados na licenciatura em História, cujo desempenho docente sobressai-se em relação à média da turma, em situação de estágio supervisionado, apesar de não possuírem nenhuma experiência docente até o momento de realizar tal prática na licenciatura. Do ponto de vista metodoló-gico, foram adotadas as seguintes estratégias: a) observação de aulas e acom-panhamento sistemático das suas práticas de estágio; b) coleta e análise de registros de aula produzidos pelos estagiários, tais como planos, atividades, memórias; c) entrevistas para a discussão de situações de aula, buscando iden-tificar como enfrentam os ‘dilemas práticos’3 da sua iniciação à docência.

No recorte definido para este texto, analisamos os registros formalizados nas memórias de aula4 de uma acadêmica integrante desse grupo-sujeito que realizou o estágio na disciplina de História no segundo semestre de 2011 com uma turma de 8ª série em escola da rede pública estadual. Na primeira parte do texto trazemos alguns pressupostos teóricos que orientam a proposta de formação que desenvolvemos na Prática de Ensino. Na segunda parte, dialo-gamos com os registros de aula da acadêmica de História em situação de está-gio curricular supervisionado, buscando analisar as estratégias metacognitivas mobilizadas por ela em seu percurso de aprendizagem e atuação inicial na docência.

Aprendizagem profissional e metacognição: alguns pressupostos orientadores da formação de professores

A aprendizagem profissional do professor vem sendo entendida, na lite-ratura educacional,5 como um processo complexo e contínuo, marcado por descontinuidades e oscilações. Aprender a/na profissão docente vai muito além de dominar conteúdos e estratégias de ensino, conforme preconizado pelo modelo da racionalidade técnica. Antes, significa atuar em contextos comple-xos e singulares, como o cotidiano da sala de aula, que exigem soluções possí-veis e adequadas (e também originais e criativas) para lidar com imprevistos e incertezas.

Nesse sentido, tanto a experiência pessoal quanto a prática profissional são fontes importantes de aprendizagem docente, na medida em que o profes-sor carrega consigo um conjunto de sistemas conceituais, crenças e juízos que orientam sua ação cotidiana e tendem a não se modificar tão facilmente frente

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a novos princípios e valores. Da mesma forma, a prática profissional pode contribuir para gerar, validar ou recusar determinados tipos de saberes, inte-grando-os ou alijando-os no/do dia a dia profissional.

Com Fernando Hernández compartilhamos a ideia de que a aprendizagem do professor, realizada em situações diversas de formação, manifesta-se em seus atos, que são, por sua vez, reveladores das aprendizagens que se converteram em representações pessoais da docência. Para esse autor, a aprendizagem profissio-nal está relacionada com a capacidade de transferência e generalização do apren-dizado, pois “alguém aprende quando está em condições de transferir a uma nova situação (por exemplo, à prática docente) o que conheceu em uma situação de formação, seja de maneira institucionalizada, nas trocas com os colegas, em situações não formais e em experiências da vida diária”.6

Na mesma direção, Bransford, Brown e Cocking consideram que os pro-fessores aprendem a ensinar de diversas maneiras e em diferentes situações, tais como: a) aprendem com a própria prática em sala de aula, na reação dos seus alunos, nos sucessos e insucessos cotidianos; b) aprendem ao interagir com outros professores, em situações informais na escola ou em situações de forma-ção continuada no âmbito escolar; c) aprendem com os educadores de profes-sores em suas escolas, nos programas de estágio, de iniciação à docência, nos cursos de aperfeiçoamento; d) aprendem em programas de pós-graduação, nos processos institucionais de educação continuada, em nível lato e/ou stricto sensu; e) por fim, aprendem sobre ensino fora do seu trabalho profissional for-mal, nos papéis de pais e nos trabalhos voluntários com crianças e jovens em suas comunidades, dentre outros.

Em virtude da imprevisibilidade do contexto da sala de aula, é fundamental que os professores tenham planos de trabalho com objetivos claros e mante-nham-se vigilantes sobre as ações e reações que os percursos da aula suscitam, além de exercerem atitude reflexiva na/sobre a docência. Assim, numa pesquisa que busca investigar em que medida e de que forma os processos formativos incidem sobre a aprendizagem profissional dos professores e contribuem para a qualificação da sua atuação em situações de ensino, voltamos nossa atenção tam-bém para o conceito de metacognição, no intuito de compreender os aspectos relacionados à autorregulação e à tomada de consciência da ação pedagógica diante dos dilemas da sala de aula vivenciados pelos estagiários.

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As pesquisas acerca da metacognição, segundo Fávero e Machado,7 estão diretamente relacionadas aos estudos sobre regulações, tomada de consciência e abstração refletida desenvolvidos por Jean Piaget, não obstante verificarmos que, ao longo de sua obra, esse autor não abordou de maneira explícita o con-ceito de metacognição com essa formulação. Com base nos estudos publicados por pesquisadores anglo-saxões, Fávero8 esclarece que o termo metacognição tem sido empregado para referir os conhecimentos que os indivíduos possuem sobre seus processos de pensamento, bem como para designar o controle que exercem sobre seus processos cognitivos. Citando Flavell (apud Fávero, 2005, p.288), a autora apresenta a seguinte definição para o termo:

A metacognição se refere ao conhecimento do sujeito dos seus próprios processos cognitivos, dos seus produtos e de tudo o que se relaciona a isso ... A metacognição diz respeito ao controle (monitoramento) ativo, à resultante regulação ou orques-tração desses processos em função dos objetos cognitivos ou dos dados sobre os quais eles se referem, habitualmente, para alcançar um objetivo concreto.

Fávero e Machado apontam alguns consensos existentes entre os pesqui-sadores do campo da metacognição sobre os elementos que caracterizam tal categoria, assim sumarizados: 1) o termo contempla tanto a dimensão dos conhecimentos quanto a das regulações, a primeira referindo-se a pessoas, tarefas e estratégias, que são as representações na memória a longo termo, e a segunda dizendo respeito à tomada de consciência dos processos cognitivos em ação; 2) essas duas dimensões se distinguem por seus objetos, estando, no entanto, em contínua interação numa instância comum de construção; 3) a par da dificuldade de definir fronteiras entre cognição e metacognição, autores procuram distingui-las caracterizando a cognição segundo os aspectos concei-tuais e estruturais do desenvolvimento em geral, ao passo que a metacognição engloba “as regulações funcionais, ativadas segundo graus variados de cons-ciência numa situação de aprendizagem”.

De acordo com Figueira, “indivíduos com competências metacognitivas bem desenvolvidas compreendem os objectivos das tarefas, planificam a sua execução, são capazes de aplicar e alterar, conscientemente, estratégias execu-tivas, bem como avaliar o seu próprio processo de execução”.9 Acredita-se que a prática metacognitiva possa colaborar na qualidade e eficácia da aprendiza-gem, especialmente nos aspectos de transferência e generalização, na medida

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em que possibilita reconhecer e avaliar dificuldades na execução de tarefas; produzir inferências sobre os saberes já apropriados e identificar os saberes ainda não apropriados; utilizar estratégias para organizar e mobilizar seus co-nhecimentos no sentido de resolver problemas; enfim, favorece a autorregu-lação, a autonomia e o aprender a aprender.

A prática do estágio supervisionado sob o suporte de estratégias metacognitivas

Ao chegar aos semestres finais de um curso de licenciatura, na iminência de entrar em sala de aula no papel de professores, os acadêmicos já vivenciaram incontáveis experiências na condição de alunos, ao longo de aproximadamente 15 anos frequentando os bancos escolares. Em virtude dessa trajetória, conse-guem identificar e exprimir a essência do que é ser professor, reconhecer em que consiste um bom (ou um insuficiente) trabalho docente, indicar as falhas e os acertos dos professores no exercício da sua função. Essas representações do trabalho docente incidem, em certa medida, sobre suas escolhas, decisões e ações, no momento de assumir a tarefa de ensinar, ainda que como orienta-ções intuitivas, sem os referenciais teóricos e o domínio técnico necessário para entendê-las e operá-las com autonomia.

Nosso propósito, nesta parte do estudo, é identificar algumas estratégias metacognitivas mobilizadas em situação de estágio curricular supervisionado, no sentido de compreender como a estagiária em questão lida com os dilemas, situações de emergência e incerteza da sala de aula, resultando no que se pode denominar desempenho competente. Reiteramos que esse desempenho com-petente não diz respeito, necessariamente, aos resultados quantitativos do en-sino, mas ao modo como dá encaminhamento às dificuldades que vão se ma-nifestando no cotidiano da sala de aula.

Posicionamo-nos contrariamente à imagem do professor como técnico, cujas competências devam ser treinadas, e recusamo-nos a conceber a apren-dizagem profissional apenas como aquisição de conhecimentos. Assim, defi-nimos os professores como profissionais cujas tarefas formativas compreen-dem a investigação e experimentação de novas ideias; a localização de si e dos alunos em contextos sociais, políticos e históricos mais amplos; a identificação

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e a exploração criativa de problemas; o confronto com discrepâncias e incon-gruências presentes no seu trabalho pedagógico.

Antes de prosseguir, cumpre-nos tratar brevemente do entendimento que adotamos neste estudo sobre o significado da escrita de ‘memórias de aula’. Trata-se de um instrumento de reflexão que possibilita ampliar a capacidade de ver e de pensar a própria ação docente na interlocução com seus pares, as-sim caracterizado:

consiste na elaboração escrita que o estagiário realiza após o ato pedagógico (uma aula, uma reunião, um conselho de classe), buscando, pela escrita, objetivar a ação e o pensamento sobre a ação. Compõe-se da observação, do registro, da análise, da teorização e do redimensionamento da situação vivenciada. Distin-gue-se do mero registro descritivo dos acontecimentos, embora também possa contemplá-lo, visto que tenciona uma primeira elaboração teorizada da ação rea-lizada e o levantamento de indicativos de redimensionamento do trabalho para uma nova intervenção.10

Os fundamentos que orientam a proposta de escrita de memórias de aula neste trabalho encontram ampla ressonância nos pressupostos apontados por Holly11 para a escrita de diários biográficos, destacando-se alguns aspectos em comum, como desconforto, distanciamento, transformação de perspectivas, atenção focalizada e voz. Escrever sobre si, sobre o seu trabalho, implica certo grau de exposição, o que, para muitos, gera desconforto. Tal sensação cresce à medida que o sujeito vai penetrando no seu trabalho, desnudando inconsis-tências, identificando incoerências, as quais vão se avolumando no papel, à espera de interpretação, de resposta, de atitude, de mudança.

A escrita de diários também provoca dois tipos de distanciamento da ex-periência: ao mesmo tempo em que permite explorar o significado da expe-riência cotidiana de um ponto de vista mais pessoal e biográfico, permite re-cuar espacial e temporalmente, mirando-a desde pontos de vista mais latos e menos pessoais. Esses dois tipos de distanciamento, afirma Holly, favorecem a identificação de outras dimensões de uma dada situação, o reconhecimento de determinados problemas, a interrogação sobre outras possibilidades de aceitá-los, compreendê-los ou, até, de resolvê-los. Enfim, contribui para “to-mar consciência das lentes que usamos e do espírito com que nos movemos” (Holly, 2000, p.105).

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Outra característica identificada nos processos de escrita de diários bio-gráficos é a transformação de perspectivas, que ocorre em diferentes graus entre os autores, mas em geral é provocada por acontecimentos marcantes – os di-lemas referidos por Zabalza – perante os quais o sujeito já não encontra alter-nativa de solução, requerendo, assim, outras formas de olhar, compreender e dar sentido. Produzir outros sentidos implica reexaminar pressupostos acerca de si, dos outros e das relações pedagógicas, requer tempo e sistematicidade de reflexão. Daí a quarta característica dos diários biográficos ser a atenção foca-lizada, posto que contribui para superar a aplicação de ‘estruturas de simpli-ficação’ sobre os acontecimentos da sala de aula, dirigindo a atenção com mais intencionalidade, observando aspectos que lhe pareçam mais relevantes, siste-matizando dados e informações que auxiliem a compreender determinada situação para além da emergência cotidiana.

Por fim, esclarece a autora, a escrita de diários pode dar visibilidade à voz do professor, na medida em que ele aprenda a interpretar a sua vida e o seu trabalho, assim como pode dar visibilidade à voz de outros, uma vez que o pro-fessor dialogue com a ‘multidão íntima’ que o habita. Ademais, a escrita do diário documenta a experiência de cada um para posterior análise, constituindo “uma base de discussão e de colaboração com outras pessoas” (Holly, 2000, p.108).

Durante o estágio, muitas situações exigem do professorando tomada de decisão, flexibilização de seu planejamento, soluções emergenciais para pro-blemas imprevistos. Selecionamos, nos registros da acadêmica cujo processo formativo está sendo aqui acompanhado, três longos trechos de memórias produzidos em diferentes momentos do estágio, o qual durou cerca de 10 se-manas, com três períodos semanais de 50 minutos. O primeiro trecho (Mem-1) é representativo das duas primeiras semanas de estágio; o segundo trecho (Mem-2) foi escrito pela metade do estágio; o terceiro trecho (Mem-3) é con-cernente às últimas aulas do estágio.

Em cada trecho selecionamos alguns recortes (identificados por letra e numeração crescente, R1, R2, R3...) que consideramos mais relevantes para os propósitos de análise do estudo. Optamos por manter o trecho com o mínimo de recortes, de modo que o leitor consiga visualizar a reflexão em seu conjunto. Na sequência de cada trecho, apresentamos a análise dos recortes selecionados.

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Ao entrar na sala, acompanhada da coordenadora da escola, que lembrou os alunos de que eu trabalharia com eles num período de pouco mais de um mês, senti o peso daquela responsabilidade.

(r1) Mesmo sabendo que não seguirei essa profissão, algo que decidi muito antes de iniciar o estágio, ao olhar para cada uma daquelas pessoas, eu pensei que deve-ria dar aquela aula como eu esperava que tivesse na idade daquelas meninas e meninos. Voltei no tempo... Lembro que eu queria mesmo era me divertir, aprender podia fazer parte disso.

(r2) Então, iniciei com uma dinâmica de apresentação dos colegas, o que não deu muito certo. Descobri que existem algumas meninas na sala que não se dão com outras, que os meninos são agitados, e ficam o tempo todo conversando. Definitiva-mente aquilo não deu certo. Alguns mentiam o nome e idade só pra fazer graça. Então decido me apresentar, todos silenciaram, estavam curiosos. Vi que meu erro foi não ter feito isso primeiro para que eles se acalmassem.

(r3) Falei do meu compromisso com eles, que pretendia dar uma aula como eu mesma não tinha tido, divertida, espontânea, mas que haveria regras, para que ao final deste caminho, eles soubessem tudo sobre o processo da Independência do Brasil, assunto que trabalharei com eles.

(r4) Com o mapa no centro da sala, pedi que todos levantassem, isso também não deu certo. Alguns – os mais interessados – procuraram os países que trabalharía-mos conforme a atividade solicitada. Outros ficavam nas cadeiras, em seus lugares, conversando. Aquilo foi me desanimando. Por que eles não queriam participar? O que eu devia fazer para a aula tornar-se atrativa para eles? Eu comecei a ficar per-dida, mas, ao mesmo tempo instigada com aqueles alunos. Eles de certa forma, me preocuparam. E a aula neste dia seguiu, de forma que enquanto eu explicava e fazia questionamentos a eles, alguns demonstravam interesse, outros nem sabiam do que eu estava falando, pelos olhares que trocavam, pelos gestos que faziam, estavam inquietos.

(r5) Ao final da aula, descobri que nem todos os pensamentos positivos e prepara-ções teóricas eram suficientes. Alguma coisa deveria ser feita, eu queria chamar toda a turma para gostar de História junto comigo. Fui para meu trabalho anima-da com o desafio. Apesar de a turma não ter sido muito participativa, eles me de-ram um novo desafio: juntar aqueles grupinhos separados e fazê-los, em conjunto, gostar de História, entender a importância do conteúdo. Porém, também fiquei

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frustrada, toda preparação das atividades em grupo que tinha programado tinha ido por água abaixo, não adianta, eles não gostam de fazer nada em grupo.

(r6) No dia seguinte tinha um período. Pensei em não juntá-los mais para as ati-vidades. Entreguei umas cópias em colorido de imagens de escravos em duas situa-ções: sendo transportados em navios negreiros e em atividades de trabalho. Como não levei para todos, alguns tinham que se emprestarem as figuras, vi que eles se interessaram, talvez pelo colorido, ou pelo que eu estava explicando, pois ilustra-va nas imagens. Sei que vi eles conversarem entre si: “nossa, coitados dos negros”. Alguns debatiam sobre isso: “Eu acho que eles deveriam sofrer bastante”. E assim consegui seguir este período.

(r7) Notei que a participação se tornou mais geral enquanto eles trabalhavam de forma individual do que em grupos, ou na forma de círculo, como no primeiro momento da primeira aula ... Naquele dia, terminei a aula numa pilha de ner-vos, não tinha dado uma aula boa, os alunos nem sequer sabiam o que tinham feito e para piorar, na saída da sala duas alunas brigaram. O motivo: uma tinha falado mal da outra.

(r8) Tentei novamente fazer aquela reflexão de sempre, de tentar voltar no tempo, imaginar o que eu pensaria naquela situação. Afinal, é claro que tinha vontade de rir do motivo da briga, mas não podia fazer isso na frente das meninas, que esta-vam achando tudo aquilo um caso seriíssimo de inimizade. Fechei a porta da sala e pedi que todos entrassem. Para finalizar, tive uma conversa séria com to-dos eles. Tentei ao máximo não fazer nenhum discurso moralista. Mas aos olhos deles, pode ser que tenha parecido isso. Minha intenção era fazê-los compreen-der que isso era normal, que logo elas já estariam bem novamente, e que isso poderia acontecer, e vai, em todos os lugares, pois encontraremos pessoas que criam afinidades, e pessoas que criam antipatia... Os meninos somente concorda-vam, e diziam que isso era normal entre as duas meninas em questão. Então libe-rei todos para o recreio, e pedi que aquilo não se repetisse na minha aula.

(r9) Só pensava em como eu sou inexperiente. Fui para o trabalho muito chateada e assim passei o meu dia. Afinal, isso só mudaria quanto mais e mais aulas eu des-se, só assim eu poderia adquirir essa experiência, em saber lidar com situações inesperadas. Aquela teoria que aprendi nos livros, somente me serviu de norte, pois percebi que cada aluno é diferente, logo, cada turma também deve ser. Assim, com os livros temos o “como fazer”’, na prática o “faça-o” depende de várias circunstân-cias. O desafio para mim está lançado, e por sinal será complicado.

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(r10) Para as próximas aulas sei que terei ainda muito que aprender, mas de certo modo, essas primeiras experiências já foram bem significativas. (Mem-1)

Os primeiros registros de memória dessa professoranda são, em geral, marcados por uma profusão de sentimentos, que poderiam ser sintetizados em três expressões utilizadas recorrentemente: ânimo, desânimo e desafio. Ao verbalizar sentimentos tão contraditórios que se sucedem de uma aula para outra ou nos diferentes momentos de uma mesma aula, a professoranda está tentando se apropriar dos acontecimentos intensos que vivencia nas aulas, para entendê-los em sua dinâmica veloz e fugaz. As pequenas conquistas (que lhe dão ânimo) e as supostas derrotas (que lhe trazem desânimo) nas aulas acabam sempre culminando na palavra desafio, o que se pode visualizar em R4, R5 e R9, especialmente.

No que diz respeito ao uso de estratégias para compreender as situações de aula, encontramos em R1, R2 e R9 o esforço de se colocar no lugar do aluno, posição de alteridade que, nos estudos bakhtinianos, significa “assumir o ho-rizonte concreto desse outro, tal como ele o vive”.12 Ao buscar na memória o seu tempo de escola, faz o duplo movimento de tentar reconhecer as expecta-tivas dos seus alunos adolescentes, como também renega determinadas práticas docentes, ao afirmar: “pretendia dar uma aula como eu mesma não tinha tido, divertida, espontânea” (R3). Essa prática supostamente divertida e espontânea, no entanto, não seria concretizada sem o cumprimento de determinadas re-gras, cuja presença garantiria, possivelmente, a aprendizagem dos alunos. Esse é um dilema muito próprio da iniciação à docência, consubstanciado no desejo de estabelecer a relação pedagógica em outras bases, que não aquelas vivencia-das na condição de aluna; desejo de fazer diferente, sem saber exatamente como isso pode ser concretizado.

Outra estratégia manifestada nos registros da estagiária se refere à iden-tificação do que não deu certo na aula – a dinâmica da apresentação, a ativi-dade em grupo, o trabalho com o mapa no centro da sala – e do que deu bom resultado – a disposição dos alunos em círculo, as tarefas individuais e a ativi-dade de análise de imagens. Reconhecer o sentido de tais experiências permite traçar novas estratégias para as aulas subsequentes, o que lhe dá certo fôlego e coragem para prosseguir, tal como evidencia em R6 e R7, por exemplo.

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No penúltimo recorte desse trecho (em R9) a estagiária esboça uma ten-tativa de reportar-se aos referenciais teóricos apropriados na graduação, cote-jando-os com as situações práticas do estágio. Trata-se de uma inserção ainda incipiente na tarefa de refletir sobre a “transferência do aprendizado”, definida por Bransford, Brown e Cocking (2007, p.77) como “a capacidade de estender o que se aprende em um contexto a novos contextos”, considerada “como um processo ativo e dinâmico, mais do que um produto final passivo de um con-junto específico de experiências de aprendizagem” (p.79), que exige dos apren-dentes que “escolham e avaliem estratégias, considerem recursos e recebam feedback” (p.94). Lamentando a pouca experiência, a professoranda aparente-mente atribui a esta a garantia de sucesso para enfrentar as emergências da sala de aula, ao afirmar: “isso só mudaria quanto mais e mais aulas eu desse, só assim eu poderia adquirir essa experiência, em saber lidar com situações inesperadas”.

Na sequência da reflexão, avança no entendimento do papel que o aporte teórico ocupa na sua formação: “Aquela teoria que aprendi nos livros, somente me serviu de norte”. E finaliza reconhecendo que são muitas as circunstâncias implicadas num contexto de aula. Essa é uma inferência muito próxima à que faz Gómez, quando afirma que “na prática não existem problemas, mas situa-ções problemáticas, que se apresentam frequentemente como casos únicos, que não se enquadram nas categorias genéricas identificadas pela técnica e pela teoria existentes”.13

O trecho que analisaremos na sequência corresponde à memória escrita ao final da segunda unidade, portanto, neste momento a professoranda já con-tava com dois terços do tempo de estágio cumpridos, cerca de sete semanas.

Nesta unidade, (R11) mesmo na ausência de experiência necessária para coman-dar uma turma como a minha, eu tinha obtido uma certeza: quanto mais ativida-de eu desse aos alunos, mais a aula teria andamento e, dessa forma, eu prenderia a atenção dos alunos. Esse era o caminho. E me senti começando tudo do zero, de novo. Encerradas as explicações e atividades sobre a crise no sistema colonial, fui para a escola, com meus textos xerografados, atividades e conteúdo na ponta da língua.

(r12) Mas é claro que ao chegar à sala, tudo se encontrava diferente do que plane-java. Todos estavam bem agitados, chovia e fazia um frio terrível. Não entendi por que naquele frio eles estavam tão agitados. Disse que tinha uma notícia ruim, e

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que todos deviam prestar bem a atenção. Falei que as notas do trabalho dado na última aula não tinham sido boas, mas que eu faria um exercício para fixar me-lhor aquela matéria, já que todos pareciam não ter entendido as revoltas no Bra-sil durante o período colonial. Levou uns 15 ou 20 minutos, mas enfim, eles se acalmaram.

(r13) Pode ser eu que eu tenha feito “tempestade em copo d’água” com as notas deles, que na verdade, nem tinham sido tão ruins. Mas encontrei uma forma de fazê-los se acalmar: assustando-os um pouquinho.

(r14) A aula se seguiu com as atividades, alguns perguntavam se valeria nota, se recuperaria o trabalho da aula passada. Eu disse que tudo que eles faziam em aula contava pontos positivos ou negativos. Percebi que assim a aula teve melhor anda-mento e aproveitamento.

(r15) Ao ver que estavam preocupados, tentei quebrar o gelo, fiz algumas pergun-tas, andei por entre as classes conversando com alguns deles, explicando a matéria. Perguntei por que estavam tão preocupados, eles me confessaram que estavam com problemas na disciplina de matemática. A professora estava sempre brigando, gri-tando com todos, e eles não entendiam nada da matéria. Perguntei quem era, e era justamente a minha antiga professora de matemática. Não resisti e tive que contar--lhes, ela também tinha sido minha prô, na idade deles. Reforcei que eu não era assim tão agitada como eles e que esse era o jeito de ela dar aula. Que eles deveriam respeitar e tentar entender a matéria, pois seria muito importante para os próximos anos. Um dos alunos gritou lá do fundão: “Nossa, mas aquela professora é um mu-seu!”. Todos caíram na risada, até mesmo eu, após ter dado um sermão. Mesmo a piada sobre a idade da professora tendo causado uma agitaçãozinha, eles continua-ram em seus lugares, fazendo as atividades. Eu explicando a matéria, um aluno disse: “queria que a prô de matemática explicasse que nem você, prô XXXX”. Aqui-lo foi gratificante, confesso que me emocionei um pouco. Neste dia fui ao meu tra-balho mais contente, parecia enfim ter dado uma aula boa. Apesar de ter que mo-dificar um pouco minha postura em relação às outras aulas, ter sido um tanto mais rígida, me senti com o meu papel cumprido nesta aula. (Mem-2)

Note-se que no primeiro trecho da memória, correspondente às aulas iniciais de estágio, a tônica da reflexão girou em torno das intensas emoções que o ingresso na prática docente lhe causou, especialmente pelo esforço em identificar condutas, estratégias, meios de estabelecer uma efetiva interlocução com os alunos, ou, pelo menos, de se fazer ouvir por eles.

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No trecho subsequente, embora essas preocupações ainda estejam pre-sentes, a professoranda acrescenta como fortes ingredientes de reflexão os fatores relativos à metodologia e à avaliação. Parece ter definido duas novas estratégias para o prosseguimento do estágio relacionadas a esses fatores. Em R11 esboça uma certeza e identifica um caminho para a continuidade do tra-balho. Acredita que conseguiria maior envolvimento dos alunos na medida em que trouxesse muitas (e variadas) atividades, afirmando: “quanto mais ativi-dade eu desse aos alunos, mais a aula teria andamento e, dessa forma, eu pren-deria a atenção dos alunos”.

A outra estratégia diz respeito à avaliação, da qual a professoranda se utiliza para manter os alunos sob certo controle. Essa conduta é verbalizada em R13, ao afirmar: “Pode ser que eu tenha feito ‘tempestade em copo d’água’ com as notas deles, que na verdade, nem tinham sido tão ruins. Mas encontrei uma forma de fazê-los se acalmar: assustando-os um pouquinho”. Em R14 se pode visualizar a intenção de fazer da avaliação também um elemento moti-vador do envolvimento dos alunos. Ao ser questionada pelos alunos se as ati-vidades ‘valeriam nota’, afirma: “tudo que eles faziam em aula contava pontos positivos ou negativos. Percebi que assim a aula teve melhor andamento e aproveitamento”.

Num primeiro olhar, essa estratégia em relação à avaliação pode parecer simples recorrência aos modelos de professor que vivenciou na sua escolari-zação, muitos dos quais tomou como exemplos a não serem seguidos, confor-me expressou em R3. Em outro estudo (Caimi, 2008) encontramos registros muito semelhantes, que denotam a inconformidade dos professorandos com a situação que encontram nas suas salas de aula: alunos desinteressados pelos conteúdos escolares, resistentes à realização de atividades que lhes demande algum esforço; turmas heterogêneas no que respeita à relação com o saber e à sua apropriação, dentre outras. Também fica evidente a expectativa (ou a nos-talgia?) de encontrar o aluno idealizado, que é naturalmente motivado para aprender, que tem plena consciência da finalidade da sua presença na escola, que é curioso, questionador, investigativo, participativo, colaborativo.

Ao lançar mão de estratégias para dar conta dessa realidade não esperada e não desejada, os professorandos apostam, muitas vezes, em ações e motiva-ções extrínsecas, tais como a ameaça de uma nota insuficiente; de uma possível reprovação; de uma sanção ou penalidade por parte da professora, da direção

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e/ou dos pais; da possibilidade de perder a estima do professor e, até mesmo, da eventualidade de um futuro profissional comprometido. Em certa medida, são estratégias apreendidas ao longo de sua própria escolarização básica, uma vez que todos nós, na condição de alunos, já vivenciamos situações disciplina-doras dessa natureza em algum momento (senão em muitos ou em todos os momentos) de nossa vida escolar.

O uso frequente de determinadas estratégias acaba por constituí-las como esquemas familiares,14 que desempenham função de organizadores decisivos no conhecimento de tipo privado, quer dizer, nos modos como os indivíduos mobilizam seus conhecimentos em novas situações e contextos. Inhelder e Caprona demonstram que é característica fundamental do sistema cognitivo reduzir e traduzir aquilo que o sujeito não conhece e não entende (o desco-nhecido e a ininteligibilidade) à forma de esquemas muito familiares, “em que as transformações são imediatamente operáveis, mentalmente ou material-mente, e em que os estados são imediatamente visualizados ou reconhecidos sem reconstituições, inferências ou planificações etc., intermediárias” (Inhelder; Caprona, 1996, p.29).

Um dos aspectos mais instigantes desse trecho de memória diz respeito ao longo relato apresentado em R15, sobre as dificuldades da turma com a professora de Matemática. Saber que uma profissional experiente, com longos anos de carreira, que fora sua professora no ensino fundamental, estava tendo tão baixa aceitação da turma, acaba por fortalecer sua condição de professora e legitimar sua estratégia de tentar conduzir uma aula diferente das que teve como aluna do ensino fundamental. Essa legitimidade se concretiza ainda mais quando um aluno declara: “queria que a prô de matemática explicasse que nem você, prô XXXX”.

Ao receber tal feedback dos alunos sobre o seu trabalho, a professoranda fica mais estimulada para prosseguir, além de ganhar confiança no caminho que escolheu lá no início do estágio, de estabelecer uma boa relação com a turma, de fazê-los gostar de História, de tornar a aula ‘atrativa’ para os alunos, conforme manifesta em R4. Já findando a segunda parte do estágio, verbaliza o reconhecimento de que os tradicionais ‘mecanismos de arbitragem’15 nas relações entre professor e alunos não funcionam mais, e o episódio com a professora de Matemática, relatado pelos alunos, mostra que “muitos

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professores não souberam encontrar novos modelos, mais justos e participa-dos, de convivência” (Esteve, 1995, p.107).

Vejamos, por fim, um trecho da última memória, escrita imediatamente após o término das dez semanas de estágio.

(r16) Estávamos, enfim, enturmados. Boa parte dos alunos correspondia às minhas propostas durante as aulas, e àqueles que uma vez ou outra atrapalhavam a explica-ção, eu procurava dar a atenção que pareciam buscar. Mas é claro, que até chegar neste ponto, como toda primeira experiência, eu tive que “sofrer” um pouquinho. Nes-ta unidade eu já sabia como “prender” a atenção dos alunos devido a todo processo de aprendizagem que eu mesma enfrentei nas sequências anteriores, e isso me ajudou a formar um certo roteiro, uma espécie de estratégia para atuar como professora. Na primeira atividade desenvolvida na programação da sequência didática, a leitura da análise da pintura de Pedro Américo, O Grito do Ipiranga, houve muitas conversas, risos, perguntas. Mas percebi, ao andar por entre as classes, que os alunos se refe-riam à atividade, então, deixei eles se soltarem um pouco.

(r17) Deixei a imaginação sobre aquele fato, a Independência do Brasil, tomar conta. Aos poucos, alterava meu tom de voz, chamando atenção para a continuida-de das atividades que se seguiram. Assim, via que a aula tinha um andamento mais divertido para eles, e o aproveitamento em relação ao conteúdo era bem me-lhor. Assim seguiram-se as demais leituras, análise de imagens e da charge sobre a primeira Constituição. Procurei desenvolver um diálogo aberto, com expressões mais conhecidas durante as explicações. Levei até mesmo um dicionário comigo, logo, quando nos deparávamos com palavras difíceis, pedia para que eles me cha-massem, anotassem no caderno, enquanto eu anotava no quadro, para que tro-cássemos esta palavra por uma mais fácil, e assim, eu iniciava a frase novamente, por exemplo: “constituição” por “organização”; “confederação” por “união de es-tados”, conforme o dicionário trazia. Ao fim da aula desta terceira unidade, lem-brei-os da prova na próxima aula. Todos demonstraram muita preocupação, per-guntaram o que iria cair, como eu ia perguntar, se podiam usar material, enfim, usaram até mesmo a desculpa de que, já que eu não ia continuar mais dando aula para eles, que eu desse a prova com material, como despedida. É claro que fiquei balançada, mas não dei o braço a torcer, caso contrário, todo meu esforço teria ido por água abaixo. Então no dia da prova fiz uma breve revisão no início da aula. Tirei a conclusão de que realmente estavam preocupados, ou deviam estar todos com sono, mas estavam todos muito quietos, não questionaram mui-to. Fiz algumas perguntas a alguns alunos, com os quais eu estava mais preocu-

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pada, faziam parte dos “bagunceiros” e, para minha certeza, não tinham estuda-do mesmo.

(r18) Apesar de me dar a resposta certa, o menino da “turma do fundão” respon-deu de acordo com as minhas explicações, vi que respondeu sem nenhuma base de leitura nos textos que eu havia entregado para que eles estudassem. Estava ansiosa após o final da prova. Havia muitas dúvidas: será que responderam todas? Será que aprenderam o que eu ensinei? O resultado das provas seria a resposta para as mi-nhas incertezas ... No final das contas: três alunos atingiram a nota máxima, um aluno quase atingiu, ficando com 12 pontos. Oito alunos tiraram 10 e treze alu-nos tiraram 8. Ou seja, alguns realmente entenderam o conteúdo, outros pare-ciam ter estudado, mas lembravam de algumas coisas, e outros pareciam somen-te ter estudado, não entendido o que trabalhamos ...

(r19) No último dia fui um pouco triste, afinal esperava um resultado melhor. Senti-me culpada pelas notas, pois eu era quem lhes tinha passado o conteúdo, concluí que talvez eu não tivesse feito isso da melhor forma ... Fizemos uma peque-na festinha, com salgadinhos e refrigerante no último período da aula. Fiquei feliz, pois cada um me deu uma cartinha no fim da aula, dizendo que sentiriam saudades, que tinham aprendido muito. Isso me animou um pouco depois do resultado da prova ter me deixado preocupada.

(r20) Apesar dos pesares, saí da escola com sentimento de missão cumprida. Afi-nal, aprendi muito, fiz o possível para passar-lhes o que sabia. Com certeza, eles não fazem ideia do quanto foram importantes para mim, por mais que eu tenha dito isso a eles no último dia. Todas as minhas experiências, com certeza serão úteis no próximo estágio. (Mem-3)

Fica claro, neste trecho final de memória, que a estagiária viveu aqui o pe-ríodo de maior tranquilidade e segurança do estágio. Diversos são os indícios e vários os recortes em que se podem visualizar referências tanto à aprendizagem dos alunos como ao seu próprio aprendizado docente. Uma situação exemplar é encontrada em R16, quando afirma: “Nesta unidade eu já sabia como ‘prender’ a atenção dos alunos devido a todo processo de aprendizagem que eu mesmo enfrentei nas sequências anteriores, e isso me ajudou a formar um certo roteiro, uma espécie de estratégia para atuar como professora”. Esse e outros registros evidenciam que a professora assume uma atitude investigadora, em que revisa suas suposições, questiona como os alunos compreenderam aquilo que procurou ensinar, descobre e traz à consciência as melhores estratégias para o trabalho

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neste contexto, mostrando sua própria disponibilidade para a aprendizagem. Concretiza, assim, diversas estratégias metacognitivas, na medida em que exerce uma importante capacidade apontada por Bransford, Brown e Cocking, a de “identificar os limites do conhecimento que se tem no momento, e então tomar providências para remediar a situação” (2007, p.71).

Uma vez superados os problemas interacionais mais emergentes que di-zem respeito à organização da classe, ao estabelecimento de determinadas ro-tinas, à antecipação de ações frente a algumas situações-problema, a professo-randa consegue voltar-se para questões mais centrais do trabalho docente. Por questões centrais entenda-se especificamente a atenção com os modos de en-sinar história e com a aprendizagem dos alunos que, afinal, é o propósito fun-damental de qualquer disciplina escolar.

Considerações finais

Recuperando um pouco as análises anteriores, no intuito de concluir o texto, localizamos no primeiro trecho uma escrita permeada por muitos sen-timentos contraditórios, expressos em palavras como frustrada, instigada, animada, desafiada, desanimada e chateada. Trata-se de um período inicial do estágio em que todo o esforço está voltado para garantir a ‘sobrevivência’16 naquele complexo e desconhecido universo, em que o professor se vê diante de um grupo de alunos, com todas as responsabilidades que essa tarefa impõe, e precisa encontrar estratégias diante de concretas e/ou possíveis resistências para desempenhar seu papel e nele obter êxito. Nas palavras de Michael Humerman, essa lógica da sobrevivência se expressa em ações como

O tactear constante, a preocupação consigo próprio (‘Estou-me a aguentar?’), a distância entre os ideais e as realidades quotidianas da sala de aula, a fragmenta-ção do trabalho, a dificuldade em fazer face, simultaneamente, à relação pedagó-gica e à transmissão de conhecimentos, a oscilação entre relações demasiado ín-timas e demasiado distantes, dificuldades com alunos que criam problemas, com material didáctico inadequado etc. (Huberman, 2000, p.39)

No segundo trecho o foco volta-se para aspectos metodológicos e avalia-tivos, com o intuito de exercer adequadamente a ‘gestão da classe’, entendida

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como um “conjunto de regras e de disposições necessárias para criar e manter um ambiente favorável tanto ao ensino quanto à aprendizagem” (Gauthier et al., 1998, p.240). Trata-se de uma atividade fundamentalmente cognitiva (mas permeada por muitas emoções), que requer dos professores a antecipação dos possíveis rumos da aula e a definição e consecução de regras e procedimentos, por exemplo.

Ao escrever o terceiro trecho, bem mais ambientada na dinâmica da sala de aula, a professoranda revela condições de refletir sobre a aprendizagem dos alunos, sobre as reações e os resultados que manifestam diante das suas inter-venções. Nesse momento do estágio, já consegue revelar a preocupação com a ‘gestão da matéria’, definida por Gauthier et al. (1998, p.196) como “o conjunto de operações de que o mestre lança mão para levar os alunos a aprenderem o conteúdo”. Tal definição remete-nos particularmente aos dados de planeja-mento, objetivos, conteúdos, estratégias de ensino, organização do trabalho pedagógico, avaliação etc.

O que se procurou demonstrar, fundamentalmente, é que o desempenho competente de professorandos inexperientes, em situação de estágio curricular supervisionado, está muito mais relacionado à ‘competência adaptativa’, no sentido de exercer uma prática deliberada e um monitoramento ativo das suas experiências de aprendizagem (Bransford; Brown; Cocking, 2007, p.85), do que ao resultado em si da sua intervenção docente sobre os estudantes. O re-curso de escrever memórias de aula, tal como vem sendo adotado nos proces-sos formativos em situação de estágio que acompanhamos, tem se mostrado bastante promissor para evidenciar as estratégias metacognitivas dos profes-sorandos em sua aprendizagem profissional. Esse registro escrito da aula, en-tendido também como um empreendimento cognitivo, cumpre a função de objetivar suas impressões, sentimentos e percepções, de informar o próprio sujeito sobre o ponto em que se encontra na atividade, de auxiliar na identifi-cação das suas dificuldades e dos progressos que já fez, potencializando sobre-maneira suas estratégias metacognitivas e competências adaptativas.

Essa externalização do trabalho mental, como estratégia de apropriação do fazer docente, segundo contribuição de Jerome Bruner, “produz um registro de nossos esforços mentais, um registro que fica fora de nós e não vagamente na memória”,17 e, na mesma medida, “resgata a atividade cognitiva do

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implícito, tornando-o mais público, negociável e solidário” (Bruner, 2001, p.32), criando condições de possibilidade para a reflexão e metacognição.

Os processos de formação profissional docente precisam oportunizar não só a prática em situação real de trabalho como se faz nos estágios supervisio-nados, mas especialmente garantir estratégias de reflexão, de produção de co-nhecimentos de natureza pedagógica e de tomada de consciência sobre as condições da docência. A prática, desacompanhada de uma criteriosa obser-vação e análise de si mesma à luz de quadros teóricos e de valores educativos internalizados, possui um efeito formativo bastante limitado.

Nesse sentido, podemos dizer que 10 anos de carreira docente, por exem-plo, não são o mesmo que 10 anos de experiência. Isso porque o professor pode exercer seus 10 anos de carreira replicando uma mesma experiência, sem to-mar seu trabalho como objeto de investigação e reflexão contínua. Dez anos de experiência significam refazer cotidianamente sua prática, debruçar-se so-bre os dados da sua experiência para organizá-los, refletir sobre eles e coorde-ná-los, transformando-os em conhecimentos profissionais que possibilitem o redimensionamento da ação e a implementação de novas ações, qualitativa-mente superiores.

NOTAS

1 Dentre muitos autores que se dedicam a estudos dessa natureza, podem-se destacar BRANSFORD, John D.; BROWN, Ann L.; COCKING, Rodney R. (Org.). Como as pessoas aprendem: cérebro, mente, experiência. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2007; GAU-THIER, Clermont et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o fazer docente. Ijuí (RS): Unijuí, 1998; POZO, Juan Ignácio. Aprendizes e mestres: a nova cultura da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2002; TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 2.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002.2 A literatura educacional apresenta diferentes expressões para denominar a condição dos sujeitos que se encontram na transição entre ser aluno e tornar-se professor, tais como practicum (SCHÖN, D. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, António (Coord.). Os professores e a sua formação. 2.ed. Lisboa: Nova Enciclopédia, 1995. p.77-90), aluno-mestre (ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa, 1993), estagiário (PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2004), professorando (MENDES, T. M. S. Os espaços pedagó-gicos de construção de possibilidades na sala de aula: um olhar sobre as microinterações. Tese [Doutorado em Educação] – UFRGS. Porto Alegre, 2000). Seguiremos, neste estudo, com as denominações predominantes na literatura brasileira – estagiário e professorando

Professores iniciantes ensinando História: dilemas de aula e desafios da formação

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– pendendo mais para esta última por entendê-la como portadora de uma expressão sono-ra (e de um efeito de sentido) que indica passagem, movimento.3 ZABALZA, M. Diários de aula. Contributo para o estudo dos dilemas práticos dos pro-fessores. Porto: Porto Ed., 1994.4 A memória é aqui entendida como um registro sistemático e reflexivo sobre a ação do-cente. Na sequência do texto, será devidamente tematizada.5 Pode-se referir, a título de exemplo, TARDIF, 2002; NÓVOA (Coord.), 1995.6 HERNÁNDEZ, F. A importância de saber como as pessoas aprendem. Pátio, Porto Ale-gre, n.4, p.8-13, fev.-abr. 1998.7 FÁVERO, M. H.; MACHADO, C. M. C. A tomada de consciência e a prática de ensino: uma questão para a psicologia escolar. Psicologia: reflexão e crítica, v.16, n.1, p.15-28, 2003.8 FÁVERO, M. H. Psicologia e conhecimento: subsídios da psicologia do desenvolvimento para a análise de ensinar e aprender. Brasília: Ed. UnB, 2005.9 FIGUEIRA, Ana Paula C. Metacognição e seus contornos. Revista Iberoamericana de Educación, Universidade de Coimbra, Portugal, 2011, p.14. Disponível em: www.campus--oei.org/revista/deloslectores/446Couceiro.pdf; Acesso em: 26 abr. 2011.10 CAIMI, Flávia Eloisa. Aprendendo a ser professor de História. Passo Fundo (RS): Ed. UPF, 2008. p.61.11 HOLLY, M. L. Investigando a vida profissional dos professores: diários biográficos. In: NÓVOA, A. (Org.). Vidas de professores. 2.ed. Porto: Porto Ed., 2000. p.79-110.12 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.45.13 GÓMEZ, A. P. O pensamento prático do professor. In: NÓVOA, António (Coord.), 1995. p.100.14 INHELDER, B.; CAPRONA, D. Rumo ao construtivismo psicológico. Estruturas? Proce-dimentos? Os dois ‘indissociáveis’. In: _______. et al. O desenrolar das descobertas da crian-ça: um estudo sobre as microgêneses cognitivas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p.7-37; BODER, A. ‘Esquema familiar’: a unidade cognitiva procedural preferida. In: INHELDER; CAPRONA, 1996. p.186-205.15 ESTEVE, J. M. Mudanças sociais e função docente. In: NÓVOA, A. (Org.). Profissão professor. 2.ed. Porto: Porto Ed., 1995. p.107.16 HUBERMAN, Michael. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA (Org.), 2000.17 BRUNER, Jerome. A cultura da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001. p.31.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Os dilemas da formação do professor de História no mundo contemporâneo

The dilemmas in the formation of History teachers in the contemporary world

Helenice Ciampi*

ResumoO artigo apresenta três partes: a globali-zação e a educação discutindo as altera-ções ocorridas nas relações cotidianas; as concepções de currículos e seu signi-ficado para a formação de seus profis-sionais; uma experiência de formação articulando os itens desenvolvidos. As considerações finais procuram encami-nhar questões, na tentativa de auxiliar o debate.Palavras-chave: ensino de História; for-mação de professores; currículos.

AbstractThe article presents three parts: the glo-balization and education, debating the changes which have occurred in the ev-eryday relationships; the concepts of curricula and their meaning for the training of professionals; an experience of the training, articulating the items developed. The final considerations at-tempt to address questionings, in order to aid the debate.Keywords: the teaching of History; training of teachers; curricula.

Acompanhando a discussão recente da lista do Grupo de Trabalho (GT) de Ensino de História e Educação da Anpuh, duas questões sobressaem: as exigências de titulação para os concursos nas universidades – doutorado em uma área específica – História ou Educação, o que parece expressar a separa-ção/dicotomia entre o bacharelado e licenciatura, ocasionando debates sobre a questão da formação e suas especificidades, e a reforma do ensino médio, suas possibilidades e incertezas sobre uma formação aligeirada em Ciências Humanas com o desaparecimento de disciplinas e sua reorganização em áreas. Enfim, preocupações sobre os possíveis desdobramentos das reformas sobre as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de História.

* Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Departamento de História e Programas de Pós-Graduação em Educação e História. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes. 05014-901 São Paulo – SP – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 109-130 - 2013

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Nesse sentido, a Coordenação do GT de Ensino e Educação da Anpuh, visando constituir formas de participação coletiva nesse debate, propôs

Para a Diretoria da entidade e colegas coordenadores regionais, uma estratégia nacional para a organização de debates em torno das reformulações curriculares, que estão tomando forma no país. Pensamos que cada GT regional de Ensino de História e Educação possa organizar e promover, num prazo até março de 2013 (em datas a serem agendadas por cada uma das regionais segundo sua disponibi-lidade), um debate com os associados da Anpuh, com o objetivo de elaborar um documento básico expressando a visão dos membros do GT regional sobre a mesma ... e que se constitua uma estratégia democrática para a construção de um documento que possa expressar a visão da Anpuh sobre o tema.1

Sabemos que para uma reforma curricular se desenvolver a figura/ação do professor é fundamental. Isso nos remete à premissa da importância e lugar do professor e sua formação na história da educação brasileira. No meu enten-dimento, faz emergir um dos pontos cruciais aos cursos de formação: a questão curricular. Foi essa a abordagem escolhida para discutir a questão do lugar da formação dos professores nos cursos de História.

O artigo apresenta três partes: a globalização e a educação discutindo as alterações ocorridas nas relações cotidianas; as concepções de currículos e seu significado para a formação de seus profissionais; e uma experiência de for-mação articulando os itens desenvolvidos. Considerações finais buscam enca-minhar questões, na tentativa de auxiliar o debate.

A globalização e a educação

Globalização é o conceito utilizado para caracterizar a peculiaridade do tempo presente, reconhecido como a segunda modernidade, que começou a se forjar nas últimas décadas do século XX. É um termo que se entrelaça com outros conceitos e expressões: o neoliberalismo, as novas tecnologias da co-municação e o mundo da informação. Cada um envolve temas e problemas peculiares.

A globalização é uma forma de ver o mundo em que estamos.2 Provoca um abalo nos grandes eixos da arquitetura da modernidade: o papel do Estado, a estruturação da sociedade, do trabalho, da cultura e do sujeito e,

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por decorrência, apresenta desafios para a educação. Entre eles, destaco: o solapamento do discurso e das políticas de distribuição da riqueza, que sus-tentam os sistemas públicos de educação, pois as políticas neoliberais desloca-ram a política educacional de uma incumbência do Estado para o âmbito das decisões privadas. Consequentemente, ocorre a desvalorização do sistema educativo como um fator de integração e inclusão social em favor do incre-mento da iniciativa privada, da ideologia que busca uma maior junção do sistema escolar ao mundo do trabalho e às necessidades da produtividade eco-nômica, acentuando as desigualdades sociais. A volubilidade das ocupações faz que as profissões e os empregos, ao mudarem com rapidez, deixem de ser referências seguras para alcançar e manter a identidade.

Luiz Carlos de Freitas denuncia um processo em curso, empreendido por grupos empresariais que, se prosseguir, irá destruir o sistema público de edu-cação brasileiro, como destruiu nos Estados Unidos. Isso ocorre pela privati-zação da gestão, acarretando a competição entre as escolas. Freitas afirma: “trata-se da lógica do capital, abrindo brechas por meio de institutos e funda-ções privadas em todas as esferas de governo, até mesmo no Ministério da Educação (MEC)”.3

Os resultados obtidos, pelo Brasil, no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), na interpretação dos reformadores empresariais, os levam à defesa de profundas mudanças no sistema educacional brasileiro. Constituem uma rede bem articulada, envolvendo a cooptação de profissionais da educação e da mídia para respaldar suas ações. Os reformadores empresariais possuem representantes em equipes governamentais interferindo diretamente nas políti-cas públicas de educação.4

Freitas destrói o discurso dos empresários argumentando que nos Estados Unidos, onde essas políticas vigoram há três décadas, a qualidade de ensino permanece congelada e o sistema público de educação americano foi destruído e aberto à privatização desenfreada. É a chamada privatização por concessão.

Freitas afirma: “É o público gerenciado pelo privado, mas mantida sua condição de público e de gratuidade para o aluno. É uma administração por contrato de gestão, então é a gestão da escola pública que está sendo privati-zada, um caminho de privatização aberto por meio de políticas dos reforma-dores empresariais” (Freitas, 2012, p.10). E explicita que há um número imenso de consultores envolvidos nas secretarias e escolas. Não se realizou a melhoria

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da qualidade educacional pretendida, mas produziu-se muito lucro. O pacote inclui também a desqualificação do professor e o apostilamento das redes de ensino. Não entendem o professor como um profissional, mas como um ins-trutor, um ‘tarefeiro’. “O suficiente é ter uma pessoa movida a bônus e uma apostila” completa o autor.

No mais, o próprio Conselho Nacional da Educação oficializou agora o que cha-ma de Arranjo de Desenvolvimento Educacional (ADE). E esses arranjos permi-tem que conjuntos de municípios se articulem por recursos provenientes da ini-ciativa privada e do Estado ... [No Brasil], o caso mais desenvolvido que conheço é do estado de São Paulo, onde um conjunto de fundações se organizou para ‘dar de presente’ à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo a consultoria da McKinsey & Company, uma consultoria internacional que opera em mais de 140 países, em várias áreas, inclusive a educacional, e hoje está dentro da Secretaria organizando a política educacional, com pagamento feito por meia dúzia de fun-dações privadas brasileiras. Então você nota que começam a se estabelecer rela-ções bem próximas entre financiamento privado, doações e o poder público, que aqui no Brasil ainda não se desenvolveu na mesma amplitude que nos EUA. (Freitas, 2012, p.12)

Considerando o mundo globalizado e a importância da tecnologia, a an-tropóloga argentina Paula Sibilia avalia o impacto das mídias eletrônicas no aprendizado num mundo dispersivo e refratário à reflexão. No artigo intitu-lado “Escola troca formação de cidadão pela capacitação de clientes”, publicado na Folha de S. Paulo (7 out. 2012), afirma que o Estado perdeu capacidade de dar coesão às instituições modernas e a escola, como hoje a conhecemos, pode desaparecer.

Isso ocorre porque o eixo da subjetividade está sendo deslocado. Não mais o interior, “mas o que se vê”. Daí a proliferação das redes sociais, assim como dos reality shows. A escola hoje, segundo ela, destina-se a formar “mão de obra para a sociedade industrial e bons cidadãos”. Entretanto, há, segundo a autora, uma incompatibilidade entre a ‘velha’ instituição – a escola – e a criança e o jovem de hoje, agravada pela popularização dos dispositivos móveis de cone-xão às redes informáticas. Paralelamente, o espírito empresarial vai impreg-nando todas as instituições da sociedade.

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A autora enfatiza que as novas tecnologias não resolverão por si só o problema da escola, podendo até mesmo acentuá-lo. A informatização das aulas é apenas o primeiro passo.

Há o risco de que os aparelhos se convertam num novo agente de dispersão ... É preciso ter um projeto pedagógico realmente inovador, capaz de reconcentrar a atenção dos alunos na aprendizagem – que continuará a ocorrer prioritariamente entre as paredes da sala de aula. Tudo isso parece conspirar contra a plena consu-mação da vida em rede ... Na escola deveríamos aprender a pensar. Não a usar as tecnologias, ou não somente isso. Mas ensinar a pensar é muito mais difícil e tem pouco a ver com a informação e com a opinião, dois ingredientes que saturam nosso cotidiano e que imperam nas redes. Ao contrário, para poder pensar hoje é preciso cultivar certa capacidade de resistir ao fluxo constante de informações e às conexões intermitentes. Sem procurar bloqueá-las ou se isolar, mas também sem sucumbir à dispersão promovida pelas infinitas distrações nem à banalidade da opinião. (Sibilia, 2012, p.6)

Tais considerações reforçam a intenção de pensar o currículo como peça central para a formação dos professores nos cursos de História, atenta à diver-sidade de concepções e significados que os constituem. É o que desejo explorar no próximo item, com a análise de dois estudiosos do currículo: Thomas Popkewitz e Ivo Goodson. Eles ajudam a entender o contexto atual aqui co-mentado e sugerem pistas para enfrentá-lo.

Perspectivas do currículo

Thomas Popkewitz,5 professor do Departamento de Currículo e Ensino da Universidade de Wisconsin-Madison nos Estados Unidos, tem graduação em História. Em sua tese de doutorado, articula a questão do currículo com a sociologia do conhecimento em um contexto das ciências políticas, intersecção esta que o levou a reconhecer a importância de uma ciência social da escolari-zação, a qual tem caráter histórico.

Sua investigação interdisciplinar o levou a problematizar e compreender as questões de mudança e poder presentes no processo de escolarização. Reformas, currículos e formação de professores são entendidos como constru-ções realizadas com base em disputas e relações de poder. Interessa entender

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de que maneira determinados processos de organização formal das práticas sociais se estruturam como um discurso capaz de produzir uma ordem insti-tucional, mas também capacidades e desejos individuais. Nesse sentido, o co-nhecimento configurado no currículo é entendido como prática social e política.

O autor trabalha com o conceito de regulação social para nomear os ele-mentos ativos de poder presentes nas capacidades individuais socialmente produzidas e disciplinadas. As reformas, para ele, constituem mecanismos de ajuste dos processos pedagógicos às demandas sociais, políticas e econômicas da sociedade em transformação.

Na análise das reformas educacionais de 1960 e de 1980 nos Estados Unidos, utiliza-se do conceito de epistemologia social, que fundamenta as re-formas contemporâneas relacionadas às transformações tecnológicas, políticas e econômicas. O autor busca enfatizar a importância da compreensão das re-lações estruturais e da história no estudo da escolarização contemporânea e, para tal, a epistemologia torna-se fundamental na definição de como o poder atua nas instituições. Ressalta a implicação relacional e social do conhecimento.

As mudanças econômicas impulsionam as reformas educacionais para a formação de mão de obra numa economia interligada à ciência e à tecnologia, acentuadamente marcada pelo sentido pragmático e competitivo: “A crença geral no mercado como elemento de equilíbrio e eficiência social acaba sendo assimilada pela própria educação, tornando-a palco de uma crescente vincu-lação com a racionalidade instrumental”.6

A proposta de Popkewitz concebe um mundo socialmente construído e o raciocínio como fundamental para a mudança social. Reconhece a autono-mia do sujeito e, consequentemente, do professor, como agente no processo educacional e transformador da realidade. Entretanto, o papel do sujeito, e o da burocracia escolar como central na construção desse poder, são relativiza-dos. A noção de regulação social o auxilia a “analisar as formas especificas e regionais através das quais o poder afeta e produz relações sociais”.7 Porém, a perspectiva histórica dos estudos do autor centra-se menos na ação dos sujeitos e mais nas regras e padrões discursivos que ‘produzem’ os sujeitos. Enfim, o currículo é compreendido como “Uma imposição do conhecimento do ‘eu’ e do mundo que propicia ordem e disciplina aos indivíduos. Não há imposição

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através da força bruta, mas através da inscrição de sistemas simbólicos de acor-do com os quais a pessoa deve interpretar e organizar o mundo e nele agir”.8

As políticas estatais de centralização para garantir a qualidade do ensino estão ligadas às práticas descentralizadoras que atribuem às coletividades um papel maior no processo de decisão. As práticas centralizadoras encarnam a ideia do contrato social, em que o Estado governa para o bem-estar coletivo. As práticas descentralizadoras expressam a ideia de parceria e exigem que o contrato político seja elaborado por indivíduos e grupos autorregidos. O con-tato social e a parceria são analiticamente distintos. Juntos constituem uma fórmula para governar a criança e o docente.

O anglo saxão Ivor Goodson é professor de Educação na Watner Graduate School of Educacion da University of Rochester, e responsável pela cadeira de Educação na University of East Anglia, na Inglaterra. Para ele, o conhecimento é uma construção social que expressa os padrões de status e de hierarquias sociais existentes. O autor interessa-se pelo que o currículo inclui e também pelo que exclui, pois o entende como parte de um processo de aprendizagem social mais global, inseparável de questões relativas aos privilégios e à opres-são.9 Coloca-se entre aqueles que estudam o currículo numa perspectiva polí-tica para focar os aspectos gerais das dinâmicas culturais, de modo a explica-rem as desigualdades educativas. Segundo ele, os professores que não levam a sério os conhecimentos ‘desvalorizados’, ‘descartados’ pela noosfera, tornam-se agentes transformadores que, ao ajudarem os indivíduos a reconhecerem a sua opressão ou a cumplicidade com essa opressão, alertam a comunidade para os perigos da sua própria memória.

Os professores críticos trabalham no sentido de expor memórias incômodas que implicam recordação do modo como a consciência de vários grupos e indivíduos foi construída. Essa consciência liberta os alunos, os professores e os membros da comunidade, no sentido em que lhes permite reclamar uma identidade distinta da que lhes foi imposta. (Kincheloe, 2001, p.15)

Na sua complexidade e ambiguidade, o poder é desenvolvido tanto pelos indivíduos e grupos dominantes como pelos dominados. O autor entende que os corpos de conhecimento disciplinar, formulados para regular o público, nunca terminam completamente a sua tarefa:

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Os indivíduos e grupos-alvo não se tornam tão submissos como os que exercem o poder gostariam, ou como os analistas políticos teorizam. Goodson apercebe--se de que, embora nem todo o comportamento de oposição seja emancipatório, o processo de dominação, ao suscitar quer aquiescência quer resistência, é um campo que exige um estudo sério ... Os seres humanos são agentes ativos que trazem para os espaços disciplinares as suas identidades e capacidades, construí-das ao longo da sua história de vida, muitas vezes fora de contextos regulares. Assim, os blocos de poder não possuem a capacidade de hegemonizar a paisa-gem cultural e de consolidar seus interesses com uma perfeição irrepreensível ... A questão é que os macroprocessos necessitam de ser analisados em nível parti-cular. (Kincheloe, 2001, p.24-25)

O autor enfatiza que os docentes foram cada vez mais controlados pelos exames, inspeções, manuais obrigatórios e pela formação dos professores. Nesse contexto, os praticantes perderam muito do seu poder para definirem a sua prática, pois os administradores e especialistas, distantes do cotidiano es-colar, ditaram as normas. É fundamental entender esses padrões de poder para haver o desenvolvimento de uma educação emancipatória e poderosa. Para Goodson, a maneira como a subjetividade é construída é um elemento central de estudo para os historiadores e outros investigadores interessados no pro-cesso pelo qual o poder influencia a atividade educacional e a formação da consciência.

O novo paradigma historiográfico do autor procura deslocar o diálogo entre o passado e o presente para um nível mais sutil, mas que envolve a aqui-sição de um entendimento crítico sobre as situações existentes e uma sensibi-lidade aos valores historicamente incrustados nessas realidades presentes. Nesse sentido, o paradigma de Goodson abarca a multidimensionalidade da relação entre práticas curriculares passadas e presentes.

Enfim, o currículo deve ser entendido não apenas como expressão, repre-sentação ou reflexo dos interesses sociais determinados, mas também como produtor de identidades e subjetividades sociais determinadas.

Nesse sentido, explicitar princípios e ações de uma prática pedagógica alimenta a discussão em pauta. Sabemos que as pesquisas na área educacional não implicam sua incorporação às práticas. A intenção é acompanhar o mo-vimento nessa direção.

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Princípios para a formação de uma prática ou relação entre formação e o ensino de História

Um trabalho de formação de professores, que enfrente devidamente os desafios diante dessa educação globalizada e neoliberal, não passa pela negação desse processo, mas por entender a educação nesse processo. Nesse sentido, o conceito de hibridação é uma forma de enfrentar a questão. Projetos de for-mação de professores de algumas universidades estão atentos a esse processo. No meu contexto de trabalho, na PUC/SP, procuro efetivar essa proposta com diferentes projetos.

Em função das exigências legais, a Lei 9.394/1996, estabelecendo as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e as Diretrizes Curriculares para os cursos de Graduação, mais especificamente o Parecer CNE/CP nº 01/2002,10 levou a PUC/SP a debater uma política de graduação, desenvolvendo uma discussão acadêmica para a definição de um Projeto Institucional para a Formação de Professores da Educação Básica (PIFPEB).

Esse Projeto Institucional, votado pelo Conselho de Ensino e Pesquisa (Cepe), entrou em vigor em 2006. Entre os seus pressupostos, destaco: 1º) a prática da pesquisa, voltada às problemáticas do processo de ensino-aprendi-zagem e às demandas da realidade escolar, norteadora da formação profissio-nal e da organização interna dos cursos; 2º) a articulação entre as áreas de conhecimento, no interior de projetos de atividades e pesquisas comuns entre diferentes áreas. Entre os princípios gerais do Projeto Institucional, menciono: compromisso com a prática educativa da escola pública, como referência para o desenvolvimento das atividades curriculares na formação inicial graduada e na educação continuada do professor; concepção de aprendizagem como pro-cesso de construção de conhecimentos e o desenvolvimento do pensamento autônomo, crítico e ético, como condição para a mudança de concepções, valores, atitudes, crenças e ações.11

Assume-se neste Projeto, como eixo articulador entre ensino, pesquisa e exten-são, o desenvolvimento de práticas de pesquisa inerentes aos objetos de estudo dos cursos de Licenciatura e adequadas à formação profissional de professores. A operacionalidade das práticas de pesquisa nesses moldes dar-se-á no âmbito dos projetos pedagógicos de cada curso de Licenciatura. (Projeto Institucional..., 2004, p.15)

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Sabendo da distância entre o currículo prescrito, o real e o ‘em ação’, das dificuldades de maior integração e discussão entre os profissionais que constituem o colegiado de um curso, a formação de professores apresenta-se como um espaço privilegiado e promissor para o questionamento de tradi-ções de ensino arraigadas e para o desenho de soluções criativas que a reali-dade presente parece exigir: “Privilegiado porque é o espaço possível do diálogo construtivo entre o saber acadêmico – produzido com o rigor da disciplina, mas por vezes dissociado das necessidades sociais mais urgentes e concretas – e o universo de problemas e possibilidades colocadas pelo en-sino fundamental e médio”.12

As discussões sobre a formação de professores têm expressado a preo-cupação em contemplar as imbricações do trabalho pedagógico no contexto de sua prática, para poder repensar a própria formação desses profissionais.

Em diferentes contextos institucionais de formação de professores, as preocupações se apresentam de maneira semelhante, como é o caso da USP.

A formação de professores deve partir da noção de que a docência não se realiza num quadro abstrato de relações individualizadas de ensino e aprendizagem, mas dentro de um complexo contexto social e institucional. As instituições esco-lares, embora em constante e forte diálogo com outras instituições, têm história, valores, saberes e práticas que lhes são específicos e, nesse sentido, têm um papel social peculiar. Não raramente, essa especificidade tem sido obscurecida pela in-corporação e transposição acrítica de teorias, conceitos, e perspectivas forjados a partir de interesses alheios à educação enquanto um direito público. Esse o caso, por exemplo, da recente difusão de ideias e conceitos oriundos de teorias da ad-ministração empresarial, como, por exemplo, ‘qualidade total’, ‘cliente’, veiculados de forma imediata e mecânica em discursos educacionais. Nesse, como em tan-tos outros casos análogos, a especificidade das relações, dos problemas, valores e das práticas sociais que historicamente caracterizam as instituições escolares não tem sido suficientemente reconhecida e problematizada. Importa, pois, que os princípios que norteiam a formação de professores se afastem da simples trans-posição, voltando-se para a análise das peculiaridades históricas dessas institui-ções, de seus agentes sociais e tarefas específicas de seus profissionais. Uma polí-tica de formação de professores comprometida com os problemas escolares contemporâneos deve centrar-se num esforço de compreensão das teorias, das práticas dos valores e da história das instituições escolares e seus agentes institu-

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cionais, tendo em vista que as escolas são entidades concretas em que os futuros professores exercerão suas atividades.13

Pensar em ensino significa pensar em políticas de formação de professo-res, e, consequentemente, nos compromissos do historiador em suas várias dimensões. Com base nos princípios e preocupações colocados pelo PIFPEB da PUC/SP, tenho procurado, nas disciplinas que leciono, desenvolver projetos de intervenção variados. Nesse contexto, emergiu a intenção de registrar as memórias, práticas e saberes de professores de História para, conjuntamente, repensar a formação do profissional dessa disciplina. Privilegiamos recortes da memória social dos docentes entrevistados, pois o senso de historicidade é formado com referências que extrapolam a universidade e o conhecimento sistematizado, implicando um campo social que coloca em destaque a força de outros processos, lugares e agentes sociais.

O objeto de estudo nesse projeto foram as memórias e práticas de profes-sores de História, buscando centrar a reflexão sobre o processo de constituição dos saberes docentes e sua relação com o saber escolar enquanto um saber de configuração cognitiva própria e original da cultura escolar; no caso específico, ‘o saber histórico escolar construído pelos professores de História de algumas Escolas Municipais da cidade de São Paulo’.

Nossa hipótese de trabalho era que os dados, coletados sobre os profissio-nais pesquisados, pudessem oferecer ‘vestígios’ sobre as marcas deixadas pela formação acadêmica e suas articulações com a cultura escolar, experiências de vida pessoal e práticas cotidianas. Procurava-se entender por que esses profis-sionais ensinam o que ensinam. Como redimensionam os conhecimentos e a cultura escolar? Como justificam a sua prática?

O projeto tinha como objetivos registrar memórias e práticas de profes-sores de História da rede pública municipal da cidade de São Paulo, das séries finais do Ensino Fundamental (5ª a 8ª), tendo, como pesquisadores, alunos da graduação, licenciatura em História; propiciar via estágio supervisionado e/ou elaboração do TCC, ‘um espaço para o exercício da pesquisa’, troca de expe-riências e diálogo entre o aluno universitário e o profissional de História da rede municipal de ensino.

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Esse projeto teve parceria com o Museu da Pessoa14 e, desenvolvido de 2005 a 2009, envolveu quarenta estagiários, entrevistando 26 professores da rede municipal de ensino.

Tenho concentrado esforços para enfrentar os desafios que a globalização coloca para a educação, e seus desdobramentos na formação de profissionais de História. O foco central é discutir a diversidade cultural existente na escola. Esta tem se organizado para discutir a diversidade social, cultural e étnico--racial de seus alunos? A questão da hibridização cultural me parece um bom caminho.

Nestor Garcia Canclini entende por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.15 A construção lin-guística e social desse conceito permitiu sair dos discursos biológicos e essen-cialistas da identidade, da pureza cultural, e pensar como os estudos sobre hibridação modificaram o modo de falar sobre identidade, cultura, diferença, desigualdade, multiculturalismo e sobre pares organizadores dos conflitos nas ciências sociais: tradição-modernidade, antigo-novo, local-global.

O autor esclarece que hibridação não é sinônimo de fusão sem contradi-ções, mas sim um possível auxílio para dar conta das formas particulares de conflito geradas na interculturalidade recente, em meio à decadência de pro-jetos nacionais de modernização na América Latina. Para ele, a modernidade latino-americana é sui generis, caracterizada pela mistura de culturas, pela proliferação de estratégias e pluralidade de temporalidades; expressão de uma história em que a modernização ocasionou poucas vezes a substituição do tradicional e do antigo. Hibridismo incorpora contatos interculturais que re-cebem nomes diferentes, como mestiçagem (fusões raciais ou étnicas), o sin-cretismo de crenças e outras misturas como o artesanal e o industrial, o culto e o popular, o escrito e o visual.

Canclini distingue três processos para explicar a hibridação: a descoleção, ou seja, a quebra e a mescla das coleções organizadas pelos sistemas culturais; a desterritorialização dos processos simbólicos; e a expansão dos gêneros impuros.

O primeiro processo, o das descoleções, refere-se às associações realizadas entre o culto e o popular, entre os estratos culturais de classes sociais diferentes e entre produções culturais aproximadas pelas tecnologias, entendidas como

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capazes de romper hierarquias, embora inaptas para dissolver as diferenças sociais. Por desterritorialização, entende a perda da relação entendida como ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas das velhas e novas produções simbó-licas. O terceiro processo refere-se à produção dos gêneros impuros, constitu-cionalmente híbridos, produzidos tanto pelas descoleções quanto pela desterritorialização.

Os estudos sobre identidades, que levam em conta os processos de hibri-dação, revelam ser impossível considerar as identidades como se elas tratassem apenas de um conjunto de traços fixos. Enfatizam um conjunto de seleção de elementos de diferentes épocas, articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloquência.

Por isso, Canclini propõe deslocar o objeto de estudo da identidade para a heterogeneidade e a hibridação interculturais. Em um mundo tão interco-nectado, as sedimentações identitárias organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis se reestruturam em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e transnacionais. As diversas formas em que os membros de cada grupo se apropriam dos repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais geram novos modos de segmentação dentro de uma sociedade nacional.

Nas condições de globalização atuais, ao se intensificarem as intercultu-ralidades migratória, econômica e midiática, percebe-se que ao lado da fusão e coesão, há a confrontação e o diálogo. A hibridação, como processo de in-terseção e transações, é o que torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação e se converta em interculturalidade. As políticas de hibridação serviriam para trabalhar democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza à guerra entre culturas.

Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade moderna quando criam mercados mundiais de bens materiais, mensagens e migrantes. Os fluxos e as interações que ocorrem nesses processos diminuíram fronteiras e alfândegas, assim como a autonomia das tradições locais.

Canclini argumenta que de um mundo multicultural (justaposição de et-nias ou grupos em uma cidade ou nação) passamos a outro, intercultural e globalizado. Concepções multiculturais admitem a diversidade de culturas, enfatizando sua diferença e propondo políticas relativistas de respeito, que

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frequentemente reforçam a segregação. Interculturalidade remete à confron-tação, ao entrelaçamento e àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam modos distintos de produção do social. Multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo. Interculturalidade implica reconhecer que os diferentes têm relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos.16

Tais colocações nos fazem pensar sobre as potencialidades do currículo de história em relação à educação para o patrimônio. O mundo no qual vive-mos é o resultado de processos que se desenvolveram no passado. Os processos são testemunhados pelas marcas produzidas pelos agentes naturais e humanos, e pelas interações que deram dinâmica aos processos. O território em que nos movemos é um mundo de marcas produzidas e deixadas pelos eventos naturais e atividades dos grupos humanos.

As marcas, nos processos de produção dos conhecimentos sobre o passa-do, assumem um valor cognitivo de instrumentos de informação, ou valor estético, afetivo ou simbólico, ou os quatro valores juntos. Ou seja, tornam-se bens culturais, e a história tem a ver com essas marcas.17

Nessa direção, o patrimônio tem sido um tema de discussão contemplado no curso de formação de professores de História. Ao lado da discussão con-ceitual há o debate com profissionais que trabalham com o patrimônio mate-rial e/ou imaterial. No ano de 2011, desenvolvemos um estudo do meio com duas turmas do curso de História, no Quilombo da Fazenda Picinguaba (refú-gio dos peixes) em Ubatuba.18 Ali é desenvolvido desde 2010, no Programa Mais Cultura, o Projeto “Ponto de Cultura Olhares de Dentro: Valorizando a Memória e Fortalecendo as Raízes do Quilombo da Fazenda”, promovido pelo MEC em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.

O Projeto Olhares de Dentro tem como objetivo central trabalhar junto à comunidade jovem para formar agentes culturais locais, incentivando o in-teresse pelos conhecimentos tradicionais da comunidade do Quilombo da Fazenda. Pretende fortalecer a identidade individual e coletiva e a autonomia quilombola, para garantir que o modo tradicional de existência não desapare-ça, mesmo com todos os obstáculos enfrentados. Durante os 3 anos do projeto, têm sido realizadas ações de preservação das manifestações da cultura material e imaterial da comunidade/região. Iniciaram-se com a preservação das músicas e danças e tiveram continuidade com o “Projeto Com Quantas Memórias se

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Faz uma Canção”, aprovado no final de 2010. Esse projeto tem como propósito a realização de oficinas de músicas, danças dos ritmos tradicionais caiçara/quilombola e afro-brasileiros, além da capoeira e construção de instrumentos.

Em 2011, iniciaram-se os trabalhos de preservação voltados para o arte-sanato local e a construção de habitações típicas, e, em 2012, ações de preser-vação voltadas para a agricultura tradicional, dialogando com técnicas ‘mo-dernas’ como a permacultura e a agroecologia, bem como a organização do acervo reunindo gravações, depoimentos, fotografias, músicas e outros docu-mentos de todo o trabalho desenvolvido.

Ciente de que estudo do meio e educação patrimonial são práticas distin-tas, desejo apenas enfocar a pertinência de um currículo aberto para a incor-poração de atividades que contemplem a realidade que o aluno, futuro profis-sional, irá trabalhar em um mundo intercultural e globalizado. Ambos os projetos citados são maneiras diferentes de enfrentar a questão da mercantili-zação do oficio docente. Porém, desejo enfatizar a importância na formação do profissional de História a reflexão sobre as questões pedagógicas, ou seja, a distinção entre o saber escolar e a ciência de referência.19

Para Jean-Claude Forquin, o saber escolar tem por base a compreensão de que a educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre o que há de disponível da cultura num dado momento histórico, mas tem a intenção de tornar, de fato, os saberes selecionados em transmissíveis e assimiláveis. Esse processo exige um trabalho de reorganização ou ‘transposição didática’, que dá origem a configurações cognitivas tipicamente escolares, capazes de compor uma cultura escolar sui generis, com marcas que transcendem os limites da escola.20

Yves Chevallard21 trabalha o conceito de transposição didática de forma diferenciada. Preocupado com a dimensão didática, opera com o conceito ‘sa-ber ensinar’ e ‘saber ensinado’ e não com o ‘saber escolar’, que traz implícita a dimensão cultural. Define transposição didática como a passagem do saber acadêmico ao saber ensinado, insistindo na distinção, separação e hierarqui-zação entre os dois saberes. Ressalta que a transposição didática inicia-se quan-do técnicos dos Ministérios, Secretarias e outras instâncias do poder definem, com base no saber acadêmico e por meio de um trabalho de seleção e estrutu-ração didática, o conhecimento a ser ensinado.

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Para a análise da história ensinada, a contribuição de Chevallard precisa ser complementada e revista, de forma que a relação hierarquizada com o saber acadêmico venha a ser repensada e possibilite a compreensão da dimensão educativa em sua estruturação. É fundamental a contribuição de Develay ao trazer para a análise o conceito de prática social de referência: “atividades so-ciais diversas (atividades de pesquisa, de produção, de engenharia, domésticas e culturais) que podem servir de referência às atividades escolares e a partir das quais se pode examinar, no interior de uma disciplina dada, o objeto de trabalho, ou seja, o domínio empírico que constitui a base de experiência real ou simbólica sobre a qual irá se basear o ensino”.22

O diálogo com o conhecimento científico é absolutamente fundamental para pensarmos a formação do professor de História. Mas é preciso compreen-der melhor como se dá a construção do saber escolar, que envolve a interlocu-ção com o conhecimento científico, mas também com outros saberes que cir-culam no contexto cultural de referência.

Nesse sentido, o conceito de saber escolar, referenciado em pesquisadores do campo educacional da área do currículo e da história das disciplinas esco-lares, oferece contribuição importante para a melhor compreensão dos pro-cessos educativos. Entre os primeiros, podemos citar, além dos trabalhos de Forquin, o de Goodson e, na história das disciplinas escolares, de André Chervel e Dominique Julia.23

Chervel argumenta serem as disciplinas escolares entidades epistemoló-gicas relativamente autônomas. Investigando a história do ensino de francês, verificou que a gramática escolar francesa foi “historicamente criada pela pró-pria escola, na escola e para a escola” (Chervel, 1990, p.181). Quer o autor enfatizar a especificidade epistemológica do saber escolar, não mera vulgari-zação ou adaptações do conhecimento de referência, e, longe de ligar a história da escola ou do sistema escolar às categorias externas a ela, a história das dis-ciplinas, dedica-se a encontrar nela própria o princípio de sua investigação: “Porque são criações espontâneas e originais é que as disciplinas merecem um interesse todo especial” (Chervel, 1990, p.181).24

Para Dominique Julia, o conceito de cultura escolar não pode ser com-preendido sem a análise “das relações conflituosas ou pacíficas que ... mantém, a cada período de sua história, com o conjunto das culturas que lhe são con-temporâneas”. Entende a cultura escolar como “um conjunto de normas que

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definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”. Esses saberes, normas e práticas são históricos, alte-rando-se mediante as finalidades da educação e a cultura das sociedades hu-manas (Julia, 2001, p.10).

Essa perspectiva, que reconhece a especificidade epistemológica dessa construção, tem na escola o lócus por excelência; a escola deixa de ser consi-derada apenas local de instrução e transmissão de saberes para ser compreen-dida como espaço educacional, configurado e configurador de uma cultura escolar na qual se confrontam diferentes forças e interesses sociais, econômi-cos, políticos e culturais.

O conceito de ‘transposição didática’ é, pois, polêmico e questionável. Perrenoud, por exemplo, questiona-o porque em suas análises não se considera a autonomia relativa do sistema escolar. De certo modo, o conceito de ‘trans-posição didática’ trabalha a ideia de que todo saber escolar é produzido fora da escola, sendo apenas apropriado por essa instituição. A abordagem ignora a capacidade e a possibilidade da escola como criadora de cultura.

Uma alternativa para superar a insuficiência do conceito e, também, da própria denominação ‘transposição didática’, sugerindo algo a ser deformado, pode ser o conceito de ‘mediação didática’: “um processo de constituição de uma realidade através de mediações contraditórias, de relações complexas, não imediatas, com profundo senso de dialogia”.25

Considerações finais

Ao professor compete dominar conhecimentos relativos à sua área disci-plinar, de tal forma que a interprete e comunique, segundo sua perspectiva, ao aluno a quem ensina. Paralelamente, como ser histórico, vivencia experiências marcadas pelo seu tempo e espaço, experiências forjadoras de sua trajetória familiar, pessoal, cultural e profissional. Qualquer que seja a valorização dada pelas pedagogias à ação do professor, sujeito central ou mediador do processo educativo, existem temas/conteúdos a serem redimensionados.

Os cursos de formação de professores precisam ser pensados para dar conta das demandas atuais: profissionais que dominem tanto os processos de produção do conhecimento histórico como os do conhecimento escolar. Quem

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não domina os fundamentos historiográficos e educacionais tem muitas difi-culdades para construir um saber histórico escolar. Acaba refém dos livros didáticos, nos quais a ‘transposição didática’ já está parcialmente realizada. A formação de profissionais de História deve exprimir o desafio de articular dois campos do conhecimento: o da história e o da educação, sem discriminação, pois trabalho complexo como esse exige uma conjugação de forças que apre-senta, hoje, consistência por demais frágil, independentemente dos inúmeros trabalhos e projetos realizados e em andamento.

Essa discussão é antiga, está presente desde a fundação da Anpuh, como podemos analisar nos Anais do I Simpósio de Professores de História do Ensino Superior em Marília, 1961.26 Neles, o diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, Eremildo L. Vianna, discute a constituição do currículo de História para os cursos superiores e, sobretudo, a inclusão ou não das ‘matérias auxiliares’ e das ‘complementares’ da História: “O que se quer exigir, e se deve exigir, como do professor de História, é que saiba de quem e do que se possa servir para cumprir o seu verdadeiro mister” (grifos do autor). Insiste no bom senso “para pensar que num simples curso de formação não se pode e não se deve prejudicar o conhecimento primordial” (Anais Anpuh, 1961, p.144).

No questionamento dos participantes do simpósio destaco dois: o do pro-fessor Eduardo França e o de Cecilia Westphalen. França discorda do relator quando este preconizou a pesquisa depois do ensino, pois acha “que não pode ser feito ensino válido de pesquisa sem que ao mesmo tempo se ensine aos alunos como pesquisar”. E Westphalen “acha que a Faculdade de Filosofia deve, também, cuidar da formação dos pesquisadores, com o mesmo carinho que o faz com relação aos professores secundários” (Anais Anpuh, 1961, p.156).

Nesse recorte, podemos perceber que a discussão entre ensino e pesquisa na formação do profissional já estava colocada, mas de forma invertida. A prática privilegiada era a da formação do professor, e a preocupação agora era cuidar da formação do pesquisador. O debate termina com a colocação do professor Eremildo L.Vianna considerando que, na graduação, o contato dos alunos com as fontes é apenas de aprendizagem: “considera a pesquisa algo muito mais elevado”. Acha, portanto, que “devemos dar ênfase aos cursos de pós-graduação, já que temos dificuldade de formar até bons professores e bons pesquisadores” (Anais Anpuh, 1961, p.157).

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Gostaria de ressaltar a posição dos dois autores discutidos na segunda parte deste texto. Popkewitz acredita que as reformas contemporâneas reedi-tam a dos anos 1980. Sua análise das reformas educacionais para a formação de mão de obra numa economia interligada à ciência e tecnologia, marcada pelo sentido pragmático e competitivo explica o que acontece hoje no Brasil reforçando as colocações do diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP, com o qual iniciamos este artigo.

Os estudos de Popkewitz contribuem para pensarmos sobre o conceito de professor que as reformas historicamente ajudaram a produzir, o do atual ‘instrutor’ ao qual nos referimos. Sua caracterização das políticas estatais de centralização para garantir a qualidade do ensino está ligada às práticas des-centralizadoras que atribuem às coletividades (indivíduos ou grupos autorre-gidos) papel relevante. Essas colocações explicam o que está ocorrendo no Brasil, especialmente no estado de São Paulo.

Porém, Popkewitz ressalta a importância do raciocínio para a mudança social, fazendo coro à posição da antropóloga Paula Sibilai para a solução do ensino contemporâneo. Como vimos, o conhecimento que se configura no currículo é entendido como prática social e política, e nele encontramos, pa-radoxalmente, a saída para o problema a ser enfrentado na formação de professores.

Goodson, por sua vez, considera os docentes que constroem seus currí-culos com os conhecimentos descartados e/ou desvalorizados pelos reforma-dores como agentes transformadores. No limite de suas práticas, alimentam nossa positividade para o enfretamento da situação.

Nesse sentido, a iniciativa do GT de Ensino e Educação da Anpuh é um bom começo.

NOTAS

1 PINTO JR., Arnaldo; MELLO, Paulo; ORIÁ, Ricardo (Coordenadores do GT de Ensino de História e Educação). Proposta de debate sobre as reformulações curriculares. (Proposal for a debate on reformulations curriculum - Coordination WG)11 abr. 2012. Disponível em: https://groups.google.com/forum/?fromgroups#!topic/gtensinoanpu/hf9_AsLRrU4; Acesso em: 5 jan. 2013.2 SACRISTAN, Gimeno. O significado e a função da educação na sociedade e na cultura

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globalizada. In: GARCIA, Regina Leite; MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa (Org.). Currí-culo na contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2003. p.41-80.3 Entrevista Luiz Freitas “Agenda dos reformadores empresariais pode destruir a educação pública no Brasil”. Revista Adusp, São Paulo, p.6-15, out. 2012.4 “PISA, um sistema que mede o nível educacional de jovens de 15 anos por meio de provas de leitura, matemática e ciências, tem sido um dos instrumentos principais empregados por grupos de reformadores empresariais como ‘Todos pela Educação’ e ‘Parceiros da Educação’ para justificar seus projetos. O PISA é realizado pela Organização para Coope-ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ‘herdeira do Plano Marshall’, nas palavras de Freitas. O Plano Marshall foi um programa econômico de recuperação dos países euro-peus devastados pela Segunda Guerra Mundial, concebido e executado pelos Estados Uni-dos da América (EUA) a partir de 1947, e foi fundamental para a hegemonia econômica norte-americana. A OCDE, na época ‘Organização para a cooperação Econômica Euro-peia’, foi criada para coordenar o Plano Marshall” Revista Adusp, São Paulo, cit., p.7.5 POPKEWITZ, Thomas. História do currículo, regulação social e poder. In: SILVA, To-maz Tadeu da (Org.). O sujeito da educação. Petrópolis (RJ): Vozes, 1994. p.173.6 MIRANDA, Marília Gouvêa; ROURE, Susie Amâncio Gonçalves de. Inter-Ação: Revista da Faculdade de Educação, UFG, v.27, n.2, p.1-54, jul.-dez. 2002.7 POPKEWITZ, Thomas S. Reforma educacional: uma política sociológica – poder e co-nhecimento em educação. Trad. Beatriz Afonso Neves. Porto Alegre: Artes médicas, 1997. p.13.8 POPKEWITZ, Thomas. Uma perspectiva comparativa das parcerias, do contrato social e dos sistemas racionais emergentes. In: TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude (Org.). Ofí-cio de professor: histórias, perspectivas e desafios internacionais. Petrópolis (RJ): Vozes, 2008. p.186. Ver também: CIAMPI, Helenice et al. O currículo Bandeirante. Revista Brasi-leira de História, São Paulo: Anpuh, v.29, n.58, p.361-382, jul.-dez. 2009.9 KINCHELOE, Joe L. Introdução. In: GOODSON, Ivor. O currículo em mudança: estudos na construção social do currículo. Porto: Porto Ed., 2001. p.7-37.10 Esse decreto instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professo-res da Educação Básica em nível superior, curso de Licenciatura de Graduação Plena.11 PROJETO Institucional para Formação de Professores da Educação Básica da PUC/SP. PIFPEB-PUC/SP, out. 2004. p.14-15.12 CRUZ, Heloisa. Projeto História, São Paulo, n.17, p.415-416, nov. 1998.13 PROGRAMA de Formação de Professores – USP, Comissão Permanente de Licenciatu-ras. São Paulo, 2004. p.4.14 Para este trabalho, buscamos a parceria com profissionais do Museu da Pessoa, uma or-ganização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Atuando desde 1991, é um mu-seu virtual de história de vida, tendo o seu acervo disponibilizado no portal www.museu-dapessoa.net.

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15 CANCLINI, Nestor. As culturas híbridas em tempos de globalização. Introdução à edição de 2001, p.XIX.16 CANCLINI, Nestor. Teorias da interculturalidade e fracassos políticos. Diferentes, desi-guais, desconectados: mapas da interculturalidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007. p.15-31.17 MATTOZZI, Ivo. Currículo de História e educação para o patrimônio. Educação em Revista, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, n.47, p.135-137, jun. 2008.18 Fomos acompanhar o Projeto – Ponto de Cultura Olhares de Dentro: valorizando a Me-mória e fortalecendo as raízes do Quilombo da Fazenda, desenvolvido em 2010-2012 por um ex-aluno do curso de História da PUC/SP, Leonardo Estevan.19 Os comentários que se seguem foram escritos em parceria. FESTER, Helenice Ciampi Ribeiro; MONTEIRO, Ana Maria. Balanço crítico das pesquisas, tendências e demandas de investigação sobre os saberes escolares e saberes docentes no ensino de História. EN-CONTRO NACIONAL DE ENSINO DE HISTÓRIA (ENPEH), 7. Lana Mara de Castro Siman e Claudia Regina Fonseca Miguel Sapag Ricci (Org.). Anais... Belo Horizonte: FAE/UFMG, 2006.20 FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conheci-mento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1993. p.16-17; _______. As abordagens sociológicas do currículo: orientações teóricas e perspectivas de pesquisa. Educação e Rea-lidade: currículo e política de identidade, Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul, Faculdade de Educação, v.21, n.1, p.187-198, 1996.21 CHEVALLARD, Yves. La transposicion didática: del saber sábio al saber enseñado. Bue-nos Aires: Aique, s.d. Nesse trabalho, Chevallard analisa a transposição didática no âmbito do ensino da matemática.22 MONTEIRO, Ana Maria. A história ensinada: algumas configurações do saber escolar. História e Ensino: Revista do laboratório de Ensino de História, Londrina: UEL, v.9, out. 2003. p.17.23 GOODSON, Ivor. Currículo: teoria e história. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995; CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre: Pannonica, n.2, p.177-229, 1990; DOMINIQUE, Julia. Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação. In: LOPES, A. R. C.; MACEDO, E. (Org.). Disci-plinas e integração curricular: história e políticas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002; _______. A cultura escolar como objeto histórico, Revista Brasileira de História da Educação, Campi-nas (SP), n.1, p.9-43, 2001.24 O saber acadêmico nem sempre é anterior ao saber escolar. A presença das disciplinas escolares no currículo (obrigatória ou optativa), sua legitimidade, não se restringe a pro-blemas epistemológicos ou didáticos, mas também políticos.25 LOPES, Alice Ribeiro Casimiro. Conhecimento escolar: processos de seleção cultural e

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mediação didática. Educação & Realidade, v.22, n.1, p.95-112. jan.-jun. 1997. Na sua tese de doutoramento defendida na UFRJ, Conhecimento escolar-ciência e cotidiano (Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 1999), Lopes amplia questões próprias da pesquisa em ensino de Ciên-cias e Química, desejando compreender a educação como fenômeno social mais abrangen-te. Procura situar as constituições e características entre conhecimento escolar e saberes específicos no interior das discussões da cultura e de suas diferentes manifestações. Con-clui que “o papel da epistemologia não se resume à discussão da validade epistemológica dos saberes, mas na possibilidade de introduzir uma nova forma de compreender e ques-tionar o conhecimento, internamente, na sua própria forma de se constituir. Assim, a epis-temologia contribui diretamente para a definição dos diferentes saberes sociais e de suas relações. Ao questionarmos a razão instrumental, os conhecimentos absolutizados, a uni-dade e universalidade da razão, não devemos desmerecer a razão, a epistemologia, a rela-ção dialética entre objetividade e subjetividade” (p.166-167). Sugere, portanto, o conceito de ‘mediação didática’ para superar a insuficiência do conceito de ‘transposição didática’.26 SIMPÓSIO DE PROFESSORES DE HISTÓRIA DO ENSINO SUPERIOR – ANPUH, 1. Marília (SP), out. 1961. Anais... (Relatório, p.143-157).

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Desafios da formação inicial para a docência em História

Challenges in initial formation for teaching in History

Margarida Maria Dias de Oliveira* Itamar Freitas**

ResumoEste artigo trata da formação inicial de professores de história no Brasil. Seu ob-jetivo é explorar alguns dos desafios im-postos aos gestores de cursos de licencia-tura em história. Na primeira parte, apresenta alguns dados da literatura es-pecífica no Brasil, Estados Unidos e Eu-ropa. Na segunda e na terceira, comenta sobre as carências do atual perfil do for-mador de professores de história e alguns dos principais obstáculos à construção de currículos de formação inicial condizen-tes com as necessidades profissionais exi-gidas, sobretudo, aos docentes da escola-rização básica contemporânea.Palavras-chave: formação de professo-res; docência em História; ensino de História.

AbstractThis article deals with the initial forma-tion of history teachers in Brazil. The goal is to explore some of the challenges faced by managers of undergraduate courses in History teaching. The first part presents some data from specific lit-erature in Brazil, the USA and Europe. In the second and third sections, there are comments on the shortcomings of the current profile of the formation of His-tory teachers and some of the main ob-stacles to the construction of initial for-mation curricula consistent with the required professional needs, especially for teachers of contemporary basic schooling.Keywords: teacher formation; teaching in History; History teaching.

Este texto discute algumas questões que nos desafiam na tarefa de formar professores de história para os anos finais do ensino fundamental e para o ensino médio. Examinamos problemas relativos ao perfil do formador e aos currículos constituintes da formação inicial.

* Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Departamento de História. BR 101, Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN – Brasil. [email protected]** Universidade Federal de Sergipe (UFS), Departamento de Educação. Campus de São Cristovão. 49100-000 São Cristovão – SE – Brasil. [email protected]

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Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas

O que nos move, evidentemente, é a constatação de que há algum tempo “alguma coisa parece estar fora da ordem”, mas não temos clareza de que coisa é essa e, o pior, não assumimos a responsabilidade sobre o enfrentamento desses problemas. O incômodo com o desempenho dos cursos de graduação em história é experimentado em todo o país e pode ser flagrado em professores e alunos dos mais de seiscentos cursos em funcionamento, durante ou imedia-tamente após a formação de determinada turma de graduandos. Contudo, é necessário esclarecer que os desafios são coletivos, mas a sua escolha, neste texto, é bastante particular. O que apresentamos aqui são posições mediadas por nossa experiência em departamentos de História e de Educação em uni-versidades públicas e privadas.

Além disso, é importante enfatizar, trata-se de desafios antigos e desafios recentes da experiência brasileira também detectados em outros países. Por isso, na primeira parte, examinamos – sem nenhuma pretensão de revisar exaustivamente a literatura – algumas das maiores preocupações dos profes-sores formadores na literatura recente no Brasil, apresentando em seguida alguns estudos de síntese sobre os Estados Unidos e a Europa. Na segunda parte, dissertamos sobre tais desafios aprofundando alguns pontos que consi-deramos mais urgentes, concluindo com alguns encaminhamentos e mais questões sobre aquilo que podem fazer os formadores atuais no sentido de enfrentar essas provocações.

Desafios da formação inicial em diferentes lugares

Os desafios são prementes, anunciamos, mas a pesquisa não contribui muito para esclarecer esses dilemas cotidianos relativos à formação inicial. Ainda que tenham modificado bastante o seu foco de interesses na última década,1 os investigadores do ensino de história permanecem ocupados, do-minantemente, com a ação do professor na escolarização básica ou da crítica às políticas públicas para o setor, a exemplo da Rede Nacional de Formação Continuada de Professores (2004), do Sistema Nacional de Formação de Professores (2007) e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – Pibid (2010). São indicativos dessa tendência o mais recente dossiê sobre o tema “formação de professores de história”, divulgado pela Revista das

Desafios da formação inicial para a docência em História

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Licenciaturas (2012), e os textos avulsos publicados na mais antiga revista es-pecializada em circulação no Brasil, a História & Ensino (1995-2012).

Se restringirmos a busca aos profissionais que atuam em departamentos de História ou que frequentaram cursos de pós-graduação na área, o resultado é preocupante, haja vista que, entre os trabalhos que exploram o ensino supe-rior em História, são comuns as teses sobre memória docente (Mattos, 1998) ou história do ensino (Bezerra, 2007; Roiz, 2011) e mais raros os textos que enfrentam desafios atuais (Costa, 2010). Essa carência de pesquisas sobre a formação inicial em história, dentro de programas de pós-graduação, parece nos induzir – a nós professores e alunos da universidade e à comunidade – à equivocada conclusão de que o ensino universitário é, apenas, uma consequên-cia natural das pesquisas empreendidas no seu interior.2

Se ampliarmos o campo de busca, chegaremos à constatação de que a pesquisa sobre formação inicial de professores de história é realizada, domi-nantemente, no interior dos cursos de mestrado e doutorado em Educação. Ainda assim, considerada a quantidade de trabalhos produzidos, no período 2005-2009, segundo informações colhidas e analisadas por Selva Guimarães Fonseca, constataremos que a participação dos pesquisadores da formação de professores de história é ínfima – entre 0,4 e 0,5 % – no cômputo geral dos trabalhos de formação de professor no Brasil.3

A raridade da temática também indica que a tarefa de ‘pôr o dedo na fe-rida’ da formação inicial em geral tem sido tarefa reservada a pesquisadores experientes. Os desafios mais frequentes vêm sendo traduzidos, nos últimos 5 anos, em termos de desarticulação entre as disciplinas pedagógicas e entre estas e as disciplinas de conteúdos específicos (Cerri, 2006), predominância do con-teúdo factual em detrimento de saberes curriculares e saberes relativo às prá-ticas pedagógicas (Martins, 2007), resistência à discussão sobre ensino de his-tória nas universidades de maior prestígio (Ferreira; Franco, 2008) e separação entre a cultura histórica e a didática da história (Cunha; Cardoso, 2011).4

São velhos e conhecidos desafios. Mas seriam desafios estritamente bra-sileiros? Buscaremos minorar, portanto, o caráter impressionista que a lista de questões, inevitavelmente, incorpora quando realizamos esse tipo de inventá-rio. Vejamos o que alguns estudos têm dito acerca das principais problemáticas que circundam os cursos de formação inicial do professor de história em rea-lidades muito distanciadas da brasileira: os Estados Unidos e a Europa.

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3134

Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas

Nos Estados Unidos, sabemos, história – do mundo e nacional – é um conteúdo da matéria Estudos Sociais. Assim, compreendemos que algumas demandas cotidianas, manifestas pela American Historical Association (AHA), por exemplo, estejam relacionadas à tentativa de manutenção do espaço reser-vado à história nos currículos, que também incorpora conteúdos oriundos da psicologia, da geografia, da economia e da política, entre outros (Townsend, 2010). Outra preocupação da AHA é a garantia de profissionais habilitados a manipular conceitos e procedimentos históricos junto aos alunos da high school (Ravitch, 2000). Em 2004, cerca de 52 mil professores tinham a história como principal campo de atuação docente nesses estabelecimentos responsá-veis, grosso modo, pelo que corresponde aos anos finais do ensino fundamental e ao ensino médio no Brasil, mas apenas 36% desses profissionais possuíam formação inicial em história (Townsend, 2008).5 Em 2011, estimava-se que cerca de 55% dos professores de história em atividade não haviam passado pela clássica formação oferecida pelos colleges.6

Esses desafios, entretanto, não são exatamente o que procuramos, ou seja, não estão diretamente relacionados ao interior da formação inicial de história. Nesse sentido, são mais rendosos os resultados das investigações de G. Williamson McDiarmid e Peter Vinten-Johansen (2000).7 Para esses pesqui-sadores do ensino, são de duas ordens os problemas relacionados à preparação de professores de história qualificados para a função minimamente exigida pelo cidadão médio estadunidense. A primeira é superar as diferenças culturais entre os profissionais dos departamentos de Educação e de História. A segunda é também superar a resistência das universidades à construção de cursos de formação colaborativa entre departamentos de Educação e de História.

Como o segundo problema é, dominantemente, constituído e alimentado pelo primeiro, vale a pena conhecer as razões apontadas para a divisão entre essas duas instâncias de formação. Para esses autores, os historiadores argu-mentam que têm objeto claramente definido – a história –, enquanto os pro-fessores dos departamentos de Educação justificam sua atuação com base no trabalho com variados campos do conhecimento. Somado a esse problema, digamos, epistemológico, os professores dos departamentos de História veem os colegas da educação com grande desprezo, enquanto estes representam os colegas da história como seres pedantes, mais preocupados com o seu próximo livro que com os próprios alunos. O resultado dessa divisão é o isolamento dos

Desafios da formação inicial para a docência em História

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futuros professores de história na tarefa de reunir produção do conhecimento histórico com possibilidades de aprendizagem desse mesmo conhecimento histórico (McDiarmid; Vinten-Johansen, 2000).

Considerados os parâmetros – Statement on Teacher Qualifications – pu-blicizados pelo National Council for History Education (NCHE),8 poderemos constatar quão distantes estão os formadores estadunidenses de superarem esse desafio. Os referidos parâmetros requerem dos cursos de formação o de-senvolvimento das habilidades de conhecer conceitos de política, geografia e economia, conhecer eventos, temas, períodos, ler e usar fontes históricas, com-preender e experimentar a pesquisa e a escrita da história, conhecer métodos de ensino e praticá-los sob a tutela de experientes professores de história. No total, as tarefas costumeiramente conhecidas como didáticas ocupam duas das sete expectativas de aprendizagem endereçadas aos cursos de história.

Do outro lado do Atlântico, pesquisadores europeus também expressam suas expectativas e desafios em relação à formação inicial de professores de história. Os modelos de curso são mais numerosos que nos Estados Unidos. Há preparação inicial em universidades, universidades pedagógicas, colleges e escolas politécnicas. E essas iniciativas podem durar 3, 4, 5 anos e meio e até 6 anos. Os desafios em relação às demandas sociais também são diferentes e, hoje, amplamente debatidos pela mídia no Brasil. Países como Albânia, Áustria, Bulgária, República Tcheca, Estônia, França, Hungria, Holanda, Noruega, Portugal, Federação Russa, Espanha e Reino Unido têm demonstra-do preocupações no sentido de estimular e induzir os princípios democráticos e a cultura dos direitos humanos entre os seus cidadãos. Cresce também o movimento de combate ao nacionalismo de direita e à força das histórias na-cionais frente à história da Europa ou à história do mundo.9

Para contribuir com a construção de modernas sociedades democráticas, os especialistas sugerem uma série de competências acadêmicas e de qualifi-cações didáticas na formação inicial do professor de história. Todavia, diferen-temente dos ‘parâmetros’ estadunidenses aqui citados, as expectativas do Council of Europe colocam as qualificações didáticas – planejar, refletir sobre aprendizagens, resolver conflitos em salda de aula etc. – em igualdade numé-rica com as competências acadêmicas – conhecer historiografia sobre o social e o político, problematizar e criticar conhecimento histórico etc. (Ecker, 2000).

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Não sabemos em que medida essa proposta – disseminada em The structu-res and Standards of initial training for history teachers in thirteen member states of the Council of Europe: a comparative study (2000) – foi apropriada pelos cursos europeus. Mas temos informações sobre o crescimento da importância do que no Brasil chamamos de ‘competências pedagógicas’ desde a década de 1970, naquele mesmo território – além de conhecimento da historiografia, da capaci-dade de transitar por outras áreas, como geografia, sociologia e economia, e também das capacidades de criticar e problematizar.10 À época da pesquisa com-parada em 13 países europeus, entretanto, apesar da diversidade da oferta, a si-tuação não era muito animadora para o desenvolvimento das qualidades didá-ticas. Traçado o perfil de centenas de cursos, os especialistas concluíram que entre 70% e 80% das horas totais dos cursos de história eram ocupados por ‘co-nhecimentos acadêmicos’ em detrimento dos cursos de ‘didática geral’, dos as-suntos de ‘didática da história’ ou da ‘prática de ensino’ (Ecker, 2000, p.30). Compreendemos, então, por que alguns pesquisadores têm afirmado que um dos maiores desafios das organizações e dos gestores da formação inicial de pro-fessores de história da Europa seria, exatamente, equilibrar competências aca-dêmicas e competências práticas no mesmo currículo.11

Até aqui, revisamos alguns desafios apontados por pesquisadores da for-mação inicial de história no Brasil, nos Estados Unidos e em alguns países da Europa na década passada. Concluímos, assim, que em contextos bastante diferentes, seja em relação ao lugar da história nos currículos da escolarização básica, seja em termos de modelos de formação inicial, as principais dicotomias são coincidentes. Que fazer, então? Uma saída é naturalizar o problema e dar--nos por vencidos. Outra bem diferente é refletir sobre aquilo que é possível solucionar com as ferramentas de que dispomos. É o que tentaremos fazer no tópico que se segue, como já anunciamos, de forma bastante impressionista. A ideia aqui não é propor um modelo de formação. Nosso intuito é refletir um pouco mais detidamente sobre alguns desafios que nos incomodam diariamen-te e que nos têm impedido de tomar posições claras e coerentes sobre questões contemporâneas, referentes, por exemplo, às reformas no ensino médio, aos exames nacionais e à produção de expectativas nacionais de aprendizagem histórica. Nossa experiência como formadores nos induz a classificar algumas das ‘feridas’ dos cursos de formação em dois grandes desafios: a mudança no

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perfil do professor formador e a mudança nos currículos de formação inicial em história, regidos pelos departamentos, faculdades ou cursos de história.

Como formar formadores sensíveis ao trabalho de ensinar história?

Um grande desafio imposto aos responsáveis pelos cursos de formação inicial em história é a formação dos formadores. Até meados da década de 1980, os cursos de história eram constituídos por professores que, de alguma forma, haviam experimentado a docência na escola básica. Não queremos afir-mar com isso que eram exemplares na formação. No entanto, apresentavam maior potencial de sensibilização às especificidades do seu trabalho. Com a expansão do sistema nacional de pós-graduação e a exigência do título de doutor para adentrar as universidades públicas – processo que avança de modo mais lento no setor privado – e o rebaixamento dos salários na escolarização básica, os formadores estão entrando cada vez mais jovens nos departamentos de História. Além disso, com o recrudescimento da disputa por financiamento de pesquisas e, consequentemente, por prestígio acadêmico, futuros formado-res são cada vez mais ignorantes a respeito das suas tarefas, dado que se em-penham na ampliação do seu Currículo Lattes, o qual, bem sabemos, concede ínfimo espaço à experiência docente nos ensinos fundamental e médio.

O resultado dessa mudança de perfil do formador se expressa em seu desempenho como professor, sobretudo nos primeiros 2 anos de atuação. Ele aprende algumas habilidades do ofício trabalhando – empregando os gradu-andos como ‘cobaias’ – sem a supervisão de um tutor, já que, não raro, é doutor e professor do quadro efetivo, isto é, um profissional autônomo dentro do seu departamento. Se ele tem ‘vocação’ ou se emprega o ‘modelo do seu último professor’ – para utilizar as expressões já criticadas pela pesquisa na área –, os alunos até podem ser beneficiados. Mas se assume que ‘não tem vocação para dar aulas’ ou que as suas qualificações estão relacionadas à investigação na sua área de doutoramento, o desastre está anunciado. O desdobramento desse problema aparece em várias situações de trabalho, mas vamos comentar apenas aquelas relacionadas ao primeiro contato com os alunos e às formas de apre-sentar a matéria e de avaliar as aprendizagens.

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Sobre os primeiros contatos com os alunos, constatamos a perplexidade dos professores frente à familiaridade dos graduandos com as novas tecnolo-gias, sobretudo os serviços de mensagens rápidas e as redes sociais. Os forma-dores – os que chegam agora aos cursos superiores e os que lá estão – ainda não compreenderam o novo perfil discente. Trata-se de um sujeito que ‘nasceu’ em ambiente digital – computadores e internet – e desenvolveu novas formas de relacionamento – com pessoas e informações – que alteraram até mesmo o seu modo de produzir ideias. Não desconhecemos a necessidade de discussão de temas como direito autoral e o crescimento de práticas de intolerância na internet, mas vivemos um momento de ruptura com as formas clássicas de apropriação da leitura e formulação de ideias, e isso precisa ser enfrentado pelas universidades.12

Em relação à forma de apresentar a matéria, é seguro afirmar que o modo clássico de ensinar nos cursos de história é a aula magistral ou, como a conhe-cemos no Brasil, a aula expositiva. Os formadores de história se orgulham ao falar que o curso é de história, que a história é uma ciência e, como ciência, tem de ser ensinada cientificamente, ou seja, refletindo os rudimentos do historia-dor em sua prática – um princípio para lá de centenário. Na prática, entretanto, seja nas disciplinas de conteúdo conceitual/factual – que correspondem à vul-gata do ensino básico (história antiga, média, moderna, contemporânea, do Brasil, da América ou do mundo), seja nas disciplinas de conteúdo conceitual/procedimental – que possibilitam a compreensão dos ‘segredos internos’ da pesquisa e da escrita históricas (introdução à história, metodologia da história, teoria da história e historiografia brasileira, entre outras), o professor formador é o mais clássico dos clássicos professores adeptos da disciplina formal: con-centração do aluno, exposição do mestre, questionamentos do aluno, revisão por parte do professor e avaliação, ou seja, recuperação na memória do aluno, segundo os limites conceituais impostos pelo professor. Dizendo de outro mo-do, a maioria das atividades da maioria dos professores formadores no Brasil, nos cursos de graduação, pauta-se pela expressão oral, somente. Até mesmo o clássico seminário-oficina que deu fama à formação dos historiadores alemães do século XIX transforma-se em uma exposição individual estruturada em seg-mentos desconexos do tema a ser explorado.

Nada contra a exposição oral. Ela sintetiza dezenas de obras, permite que o professor vá à Grécia ou à filosofia da linguagem em poucos minutos e volte

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ao assunto em pauta. Ela pode ser reelaborada constantemente para atingir determinado público, coisa que não poderia fazer com a assistência de um filme ou a leitura de um livro, posto que são obras fechadas. Nada contra a exposição oral se ela levasse em conta o que os alunos já conhecem do tema, se fosse instrumento para o desenvolvimento de capacidades como a constru-ção de argumentos ou a montagem de um plano de exposição, entre outros. No entanto, o que observamos, geralmente, é a apresentação de textos – tre-chos de livros – tal e qual indicados para a leitura. Embora admitamos que a leitura e a interpretação de textos sejam atividades importantes para qualquer profissional, não podemos mais restringir um curso inteiro de 60 ou 90 horas a esse tipo de atividade.

Aliado à exposição magistral – e como desdobramento desta – temos o problema da avaliação a serviço da seleção de alunos. São comuns as provas ditas ‘tradicionais’ – no estilo perguntas e respostas – com dia e hora rigida-mente marcados e objetivos pouco claros, resultando em uma verdadeira ope-ração divinatória por parte dos alunos, sobre o que o professor deles exigirá. Evidentemente, a escrita de resenhas e artigos é empregada como instrumento de avaliação. Elas, no entanto, são exigidas com maior densidade e frequência nos trabalhos de conclusão de curso, monografias e relatórios de estágio. Nesses momentos, observamos a enorme dificuldade dos alunos no desenvol-vimento de tais gêneros, exatamente porque, durante o curso, restringiram-se à audição da aula do professor. Quando se lhes exige, por exemplo, a aplicação dos procedimentos da crítica histórica ou o emprego da argumentação, até mesmo os trabalhos de conclusão da licenciatura ganham a forma de uma verdadeira via crucis.

O problema da prática avaliativa com fins de ‘caça-talentos’ é de ordem política e epistemológica – que é também política. Não é difícil encontrar um professor formador que entenda a ‘sua’ disciplina como o portal de entrada na carreira de historiador. É uma decisão política e legítima que determinado departamento entenda a teoria da história, por exemplo, como o filtro que deve barrar prováveis ‘maus professores’ de história. No entanto, é também um dever do professor formador atualizar-se na literatura específica. Há muito a avaliação educacional no interior da universidade deixou de ser – ao menos no plano da pesquisa – um exame de ‘corta-cabeças’. Está inscrito na vulgata pedagógica a ideia de que a avaliação é um recurso a serviço da regulação das

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aprendizagens, ou seja, ela informa ao aluno e ao professor formador sobre dificuldades e acertos, alimentando possíveis mudanças de rumo.

Dizer que a avaliação deve estar a serviço da aprendizagem das principais teses sobre a história antiga, dos principais procedimentos da pesquisa histó-rica e dos valores constitucionais que sustentam a sociedade brasileira significa empregar conceitos e estratégias como diagnóstico, retroalimentação, obser-vação do processo etc. Infelizmente, nenhuma dessas noções pode ser incor-porada com a rapidez que merece por uma simples razão: a grande maioria dos formadores é incapaz de responder a perguntas sobre o sentido da expres-são ‘aprendizagem histórica’.

Que saberes selecionar para formar o futuro professor de história?

A seleção dos saberes é um grande desafio porque reflete as identidades do profissional de história e, ainda mais preocupante, da disciplina escolar História. Exploremos algumas das principais dificuldades relativas à elabora-ção de projetos pedagógicos de história, sobretudo no que diz respeito à natu-reza dos saberes que devem compor os cursos de formação inicial.

Uma das conquistas recentes da pesquisa sobre o ensino de história – fru-to dos debates ocorridos nos últimos 20 anos – é a negação da ideia que reduz a disciplina escolar História a uma transposição pura do conhecimento pro-duzido no campo acadêmico para o ambiente das salas de aula. Consequentemente, um professor formador não pode considerar que prepara o futuro docente apenas apresentando conceitos, acontecimentos, períodos e processos históricos sob a mais atualizada historiografia.

Esse, contudo, não é o entendimento dominante entre os professores for-madores no momento em que discutem a elaboração dos projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura em história. Neste instante, o debate gira em torno da limitação espaço-temporal ou dos graus e formas de encadeamento da ma-téria a ser abordada. Em outras palavras, ganha centralidade a disputa pelos marcos que identificam História da América I ou II, a História do Brasil I, II ou III, por exemplo. Da mesma forma, ganha ênfase a discussão sobre os pré--requisitos disciplinares, como se a compreensão do conhecimento histórico

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estivesse restrita ao processo histórico ou à obediência a determinada sequên-cia cronológica.

Nesse jogo de disputas, que também reproduz o interesse de consolidados grupos de pesquisa e de associações de profissionais de história identificados por uma adjetivação – ‘de história da América’, ‘de história colonial’, ‘de his-tória antiga’ etc. – tal forma de seleção dos saberes necessários ao futuro pro-fessor de história vai cimentando o tão criticado modelo quadripartite linear de tratamento da experiência do homem no tempo.13 Esse ponto é importante porque remete a certa esquizofrenia experimentada pelos formadores. Sabemos que a divisão da história do mundo em quatro grandes blocos – antiga, média, moderna e contemporânea – foi uma invenção da escola e para a escola e já dura mais de quatro séculos. Ela ajudou a estruturar corporações de pesquisa-dores e acabou por constituir o currículo dos cursos de formação de professor na Europa, ou seja, foi consolidada pela universidade moderna. Nas últimas três décadas, por causas várias que não vamos aqui elencar, passou a receber duras críticas dos professores formadores, que por sua vez foram disseminadas entre os professores da escolarização básica. Dos livros didáticos, no entanto, seu domínio nunca foi abalado, significando dizer que alguma função a divisão quadripartite preenche no cotidiano do professor.

Mas, enfim, onde está a esquizofrenia do formador? Ela está no fato de criticarmos o quadripartitismo dos ensinos fundamental e médio e o praticar-mos nos cursos de formação. Dizendo de outro modo, não conseguimos trans-formar a crítica em mudança efetiva nos currículos da formação inicial. Parecemos enfrentar alguns dilemas: se aceitamos a divisão ‘história antiga, média, moderna e contemporânea’ como modelo de conhecimentos factuais/acontecimentais para a formação do professor, temos de encerrar a crítica ao currículo quadripartite da escolarização básica. Se encontrarmos outros arran-jos para a discussão dos ‘conteúdos conceituais’, ‘conteúdos factuais’ e ‘perío-dos’, seremos, provavelmente, convidados a negar a sedutora sugestão de transformar os currículos dos cursos de formação inicial em laboratórios das nossas associações, redes, linhas e grupos de pesquisa.

Afirmamos, então, que um professor formador não deve pensar que forma um professor de história apenas apresentando conhecimentos atualizados sobre a experiência dos homens no tempo – historiografia. É consenso a ideia de que o futuro docente deve compreender os modos de produção do conhecimento

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histórico. Assim, o currículo da formação inicial tem que reservar um tempo para atividades que desenvolvam habilidades relativas às operações processuais da pesquisa e da escrita da história.

Aqui, mais uma vez, somos assaltados por contradições e paradoxos. É con-senso que as habilidades de pesquisa e escrita devem ser desenvolvidas. No en-tanto, as atividades que viabilizam essas aprendizagens raramente ocupam o planejamento dos formadores. Claro que as disciplinas Introdução à História, Métodos e Técnicas de Pesquisa, Teoria da História e as mais diversas variantes estão presentes nos currículos, desde o final dos anos 1950. É também evidente que as disciplinas ‘de teoria e método’ foram largamente disseminadas nos cur-rículos das licenciaturas em história por toda a década de 1990, como parte de um movimento que pretendia minimizar a dicotomia professor/pesquisador. Ocorre que as atividades que exercitam os alunos nas operações processuais da pesquisa, por exemplo, lembram em grande medida as operações do historicis-mo alemão e da escola metódica francesa, e tudo o que a maioria dos formadores quer ver distante do seu cotidiano é o fantasma do ‘positivismo’ – não obstante o equívoco desse rótulo. Além disso, identificação, leitura, comparação, crítica de fontes e construção de argumentos com base em evidências demanda muito esforço, atenção individualizada, compreensão das limitações dos alunos etc., e isso é também motivo para a sua quase exclusão dos cursos de história. O resul-tado já o apresentamos no tópico anterior: são aulas expositivas, onde predomina a apresentação dos resultados da pesquisa histórica de ponta.

Qual é o problema de focar a formação na apresentação da pesquisa de ponta? A priori, nenhum. Claro que os estudos universitários devem ser atraves-sados pela investigação científica. Se for possível, durante o curso de licenciatura, produzir conhecimentos originais, ainda melhor. Mas, o que julgamos funda-mental é o exercício sistemático da pesquisa com todas as lições que a mais antiga das ideias de aprendizagem nos sugere: errar, corrigir, mudar o rumo, enfim, construir conhecimento. Mesmo que as descobertas sejam novas apenas para os alunos, elas devem ser exercitadas, afinal, o que pode não ser novidade para o professor pode representar uma descoberta transformadora para o aluno. Isso, certamente, terá desdobramentos em sua futura atuação docente.

Mas, só isso – apesar de não ser pouco – resolve a formação do profissio-nal de história? Consideramos que não. Há problemáticas que devem atraves-sar os cursos de graduação. É necessário conhecer o ambiente escolar,

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vivenciá-lo junto aos alunos de graduação, discutir, propor e participar da execução de políticas públicas que se relacionem com as atividades e ambientes nos quais as reflexões sobre a leitura e os usos do passado no trabalho de for-mação de pessoas estão em curso. Esses são os casos das ações de preservação, organização e acessibilidade de fontes, políticas de musealização e construções de expectativas de aprendizagem e de avaliação para os diversos níveis de en-sino escolar.

Se localizamos a dissociação entre ação e pensamento dos formadores no que diz respeito aos conteúdos conceituais/acontecimentais/procedimentais históricos, também podemos detectá-la a respeito dos conteúdos conceituais/procedimentais pedagógicos, ou seja, aqueles saberes e habilidades específicos ao trabalho de lidar com a formação de pessoas – um público não adulto. No entanto, constatar a dissociação não implica defender que a formação para a docência se encerre, exclusivamente, nas ‘disciplinas pedagógicas’. O ideal é reconhecer que ensinar história é um ofício que se aprende, que os estudos históricos não reúnem todas as informações e procedimentos necessários à formação – disponíveis em áreas como as que fundamentam a pedagogia. Importante é o diálogo e o regime de colaboração. Ele impõe uma barreira à ignorância do professor a respeito dos diversos ângulos de observação e reso-lução de um problema surgido em ambiente didático. Ele evita a subserviência de uma área a outra – também um tipo de ignorância. Evita, também, a prática corrente em muitas instituições onde os departamentos de Educação prescre-vem as orientações sobre a tarefa de ensinar história.

Reconhecer a necessidade de buscar em outras áreas os insumos necessá-rios ao bom desempenho na docência em história significa também apropriar--se da discussão sobre a natureza da disciplina escolar História. Aqui, defen-demos que uma das singularidades da disciplina é o seu poder de possibilitar a ampliação da experiência temporal para além do pouco tempo que caracte-riza a vida dos seres humanos. A disciplina escolar História, portanto, nos instrumentaliza para comparar e tomar decisões. Essa característica faz do ensino de história um direito extensível a todos os cidadãos.14

O apropriar-se da discussão – interessar-se por ela – pode ajudar a reduzir o impacto das equivocadas posições com as quais nos defrontamos no dia a dia: a disciplina escolar História é propriedade dos historiadores ou do Estado? Na primeira, a sociedade é excluída como sujeito demandante de passado. Na

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segunda, os alunos e os professores da escolarização básica são excluídos como sujeitos demandantes de presente. O ideal é que os cursos de formação incluam conhecimentos sobre os princípios constitucionais relativos à escolarização obrigatória, as limitações e as potencialidades da corporação de profissionais de história na construção das suas finalidades e conteúdos, frente aos diferentes grupos sociais que pressionam pela exclusão, inclusão ou ampliação deste ou daquele valor, deste ou daquele conhecimento.

Reconhecer a necessidade de buscar em outras áreas os insumos necessários ao bom desempenho na docência em história não implica dizer, entretanto, que devamos, necessariamente, migrar para os departamentos de Educação, que tra-dicionalmente discutem questões relativas à constituição das disciplinas escola-res, à natureza do aluno, a formas de apresentação e avaliação da matéria. Há décadas, teóricos da história têm efetuado esse diálogo e sintetizado, com bas-tante maestria, as teses e procedimentos que possibilitam ao futuro professor enfrentar suas tarefas cotidianas, a exemplo de refletir sobre as diferenças cog-nitivas entre alunos da escolarização básica e alunos do ensino superior, sobre os mecanismos empregados pelas crianças na rememoração e interpretação do passado, sobre a seleção de experiências básicas para o desenvolvimento de de-terminados valores e atitudes, sobre formas de organização desses conhecimen-tos em planos de estudo e currículos, sobre a construção de estratégias de dida-tização e apresentação que explorem e façam desenvolver determinadas dimensões do humano, sobre a relação entre os conteúdos da formação e os conteúdos exigidos por políticas públicas, entre outras. Os resultados dessas re-flexões podem até ser sistematizados em área de pesquisa chamada ‘Didática da História’ ou qualquer outro nome. Entretanto, não devem ser segregados a um componente curricular do curso de formação e, mais importante, ter como pon-tos de partida e de chegada a ciência de referência – a história.15

Conclusões

Ao longo deste texto, buscamos convencer os leitores de que ensino/pes-quisa, habilidades didáticas/habilidades investigativas, teoria da história/prá-tica de ensino e tantas outras dicotomias apontadas como causas da ineficiên-cia dos cursos de formação inicial em história não são singularidades da experiência brasileira.

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Dissertando sobre alguns desafios com os quais nos defrontamos na forma-ção em departamentos de História e de Educação – e que atravessam tais dico-tomias –, apontamos a necessidade de problematizarmos a formação dos forma-dores, pois é cada vez mais patente, por exemplo, o desconhecimento desse profissional no que diz respeito ao novo perfil do graduando de história, bem como a reprodução sistemática de práticas pedagógicas antiquadas e inadequadas.

Também buscamos explicitar algumas contradições e paradoxos dos do-centes envolvidos na construção e administração dos currículos para a formação inicial em história. Comentamos os equívocos de reduzir a preparação dos fu-turos professores de história à apresentação de informação historiográfica atu-alizada, de dar as costas aos múltiplos espaços nos quais os alunos experimentam o passado, de sonegar a investigação e a descoberta aos futuros professores.

Neste artigo, por fim, reiteramos a necessidade de o graduando em histó-ria conhecer melhor a natureza da disciplina escolar História, apropriando-se dos teóricos da história que refletem sobre esses temas com base na ciência da história. Ratificamos, assim, o pensamento dominante entre os profissionais da história, de que a formação inicial cabe aos departamentos de História.

No entanto, chamamos atenção dos colegas para as seguintes reflexões. Se os profissionais radicados nos departamentos de História pensam ser importante defender a manutenção do atual modelo de formação no interior dos departa-mentos de História e, consequentemente, sob a tutela de pós-graduados em his-tória, é importante que enfrentem esses desafios imediata e profundamente.

O que temos percebido, sobretudo nos últimos 5 anos, é a intervenção esporádica, pontual e com grandes doses de desinformação por parte dos co-legas quando há suspeitas de que a licenciatura em história pode vir a perder espaço e até se transformar em opcional na tarefa de formar os brasileiros dos 11 aos 17 anos em média. Os recentes debates sobre o lugar das ciências hu-manas no currículo do ensino médio são o exemplo mais recente. Os próximos eventos a provocarem essa atitude de prontidão – seguida por declarada indi-ferença em relação ao ensino de história – serão, provavelmente, o lançamento das Expectativas de Aprendizagem de História para o ensino fundamental e do Exame Nacional da Carreira Docente.

É mais que urgente a necessidade de os departamentos de História assumi-rem, efetivamente, que são formadores de professores de história. Da mesma

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maneira, devem os formadores de professores se conscientizar de que são também professores de história. Consequentemente, necessitam conhecer e desenvolver habilidades específicas que não podem ser transmitidas por cópia do modelo da geração anterior ou adquiridos por ‘vocação’. Apesar de recorrentes em outros países, como vimos aqui, os desequilíbrios entre as habilidades historiadoras e o emprego dessas habilidades na vida prática – em que a docência em história ocupa importante papel – geram entre nós um impacto negativo muito mais desastroso, uma vez que possuímos apenas um modelo de formação inicial.

NOTAS

1 Cf. MARTINS, Maria do Carmo. Currículo e formação de professores de história: uma alegoria. Educação em Revista, Belo Horizonte, n.45, p.145-158, jun. 2007.2 Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de (Org.). História do ensino de história no Brasil. Rio de Janei-ro: Access, 1998; BEZERRA, Francisco Chaves. O ensino superior de história na Paraíba (1952-1974): aspectos acadêmicos e institucionais. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2007; ROIZ, Diogo da Silva. Os caminhos (da escrita) da história e os descaminhos de seu en-sino: a institucionalização do ensino universitário de História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Curitiba: Appris, 2011. São mais raros aque-les que enfrentam desafios atuais: cf. COSTA, Aryana Lima. A formação dos profissionais de história: o caso da UFRN (2004-2008). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2010.3 Cf. GUIMARÃES, Selva. Formação de professores de Historia: reflexões sobre um campo de pesquisa (1987-2009). Cadernos de História da Educação, UFU, v.11, p.285-303, 2012. p.299.4 Cf. CERRI, Luis Fernando. Oficinas de ensino de história: pontes de didática da história na transição do currículo de formação de professores. Educar em Revista, Curitiba, n.27, p.221-238, jun. 2006; MARTINS, 2007; FERREIRA, Marieta de Moraes; FRANCO, Rena-to. Desafios do ensino de história. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.21, n.41, p.79-94, jun. 2008; CUNHA, Jorge Luiz da; CARDOSO, Lisliane dos Santos. Ensino de história e formação de professores: narrativas de educadores. Educar em Revista, Curitiba, n.42, p.141-162, dez. 2011.5 Cf. TOWNSEND, Robert B. What do we know about history in the schools. American Historical Association. Aug. 2010. Disponível em: http://blog.historians.org/education/1101/what-do-we-know-about-history-in-the-schools; Acesso em: 15 jan. 2013; RAVITCH, Diane. The educational backgrounds of history teachers. In: STEARNS, Peter N.; SEIXAS, Peter; KNOWING, Sam Wineburg. Teaching, and learning History: national and international perspectives – edited. New York: New York

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University Press, 2000. p.142-155; TOWNSEND, Robert B. A portrait of high school history teachers. American Historical Association, Sept. 2008. Disponível em: http://blog.historians.org/education/607/a-portrait-of-high-school-history-teachers; Acesso em: 12 jan. 2013.6 FEISTRITZER, Emily. Profile of teachers in the U.S. 2011. Washington: National Center for Education Information, 2011. Disponível em: www.ncei.com; Acesso em: 13 jan. 2013.7 McDIARMID, G. Williamson; VINTEN-JOHANSEN, Peter. A Catwalk across the Great Divide: redesigning the History Teaching Methods Course. In: STEARNS; SEIXAS; KNO-WING, 2000. p.156-177.8 NATIONAL COUNCIL FOR HISTORY EDUCATION. Statement for Teacher Qualifica-tions (Adopted by the NCHE Board of Trustees on Dec. 21, 2006). Disponível em: www.nche.net/teacherqualifications; Acesso em: 13 jan. 2013.9 Cf. ECKER, Alois (Org.). The structures and standards of initial training for history tea-chers in thirteen member states of the Council of Europe: a comparative study. Viena: Coun-cil of Europe, 2000.10 LEEUW-ROORD, Joke van der. History teacher education in Europe: some issues and case studies. Bulletin Euroclio, n.9, 1997.11 Cf. DROSNEVA, Elka; STROTZKA, Heinz. Academic and practical competencies in initial teacher training. In: ECKER (Org.), 2000, p.88-111.12 MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Intolerância em rede: apropriações da Internet pe-la extrema-direita (1999-2009). Boletim tempo presente, Rio de Janeiro, v.10, p.3, 2010.13 O quadripartite histórico está referenciado aqui como símbolo da divisão eurocêntrica e da concepção linear da História. Embora considerarmos esta uma divisão possível e que atendeu as perspectivas dos estudos históricos em um momento, o que estamos assinalan-do aqui é a divisão dos cursos de graduação em História – majoritariamente – somente nesta perspectiva.14 COSTA, Emília Viotti da. Os objetivos do ensino da História no curso secundário. Revis-ta de História, São Paulo, n.29, 1957; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O direito ao passado: uma discussão necessária à formação do profissional de História. São Cristovão (SE): Ed. UFS, 2011; RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história – fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UnB, 2001.15 CERRI, Luis Fernando. Didática da História: uma leitura teórica sobre a História na prática. Revista de História Regional, Ponta Grossa (PR), n.15, v.2, p.264-278, 2010; SA-DDI, Rafael. Didática da História como subdisciplina da Ciência Histórica. História & Ensino, Londrina (PR), v.16, n.1, p.61-80, 2010.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Formação de professores e ensino de História em limiares de

memórias, saberes e sensibilidadesTeacher training and teaching of history on the

thresholds of memories, knowledge and sensitivities

Sonia Regina Miranda*

ResumoProblematiza-se neste artigo a ideia de en-sino de História como lugar de fronteira epistemológica. À luz da adoção de um re-ferencial benjaminiano acerca da noção de ‘limiar’, pretende-se fortalecer a reflexão em torno do peso das sensibilidades en-quanto componente central dos processos de produção de memórias e saberes. As-sim, pretende-se avançar no sentido do entendimento do saber docente como algo ancorado em estruturas de plausibilidade profundas, nas quais os componentes da sensibilidade e dos modos de olhar e pro-blematizar o cotidiano, em suas múltiplas práticas sociais, convertem-se em balizado-res essenciais se queremos pensar a forma-ção de professores.Palavras-chave: ensino de História; me-mória; saberes docentes.

AbstractThis article discusses the idea of history as a place of epistemological frontier. In the light of the adoption of a Benjamin-ian reference about the notion of ‘thresh-old’, the aim is to strengthen the reflec-tion around the weight of sensitivities as a central component of production pro-cesses of memories and knowledge. Con-sequently, we intend to move towards the idea that what is composed as central plausibility structures of teacher’s knowl-edge is based, heavily, in components of sensitivity and ways of seeing and dis-cussing everyday events, in their multiple social practices, converting themselves into essential landmarks for understand-ing teachers’ training.Keywords: History teaching; memory; teacher’s knowledge.

Em busca de uma educação da sensibilidade Histórica

Há mais de 40 anos Marc Bloch1 nos convocava a pensar em um ensino de História que fosse capaz de, mais do que formar sujeitos eruditos, educar a

* Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Faculdade de Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação. Rua José Lourenço Kelmer, s/n, Campus Universitário, São Pedro. 36036-330 Juiz de Fora – MG – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 149-167 - 2013

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sensibilidade histórica. Nessa tarefa educativa residia, segundo o historiador, o desafio de provocar o pensamento com base na capacidade do movimento de inquirir o presente, tempo permanente de morada do homem em sua con-dição histórica. Essa inquirição pressupõe, segundo aquele autor, um olhar perspectivado sobre o mundo, pautado na condição de leitura das relações de autoria manifestas nas fontes utilizadas para acesso ao real ou às suas múltiplas formas de apresentação. Pressupõe, ainda, a possibilidade de permitir que se-jamos capazes de nos reconhecer em nossa condição histórica e coletiva, en-quanto sujeitos de um tempo. A obra clássica de Bloch transporia o tempo dos nazistas – responsáveis por sua morte em um campo de concentração –, pas-saria ao futuro e chegaria até nós, nos dias de hoje, em sua incompletude. Em sua última parte, um projeto inconcluso, segundo apontamento do filho de Marc Bloch num olhar atento sobre os escritos de seu pai: um capítulo que fecharia a obra discutindo o Ensino de História, após um longo tratado sobre a condição histórica e sobre o ofício do historiador.

Talvez graças a essa característica de abertura e de possibilidades infinitas de leitura em virtude de sua inconclusão aquela obra siga nos auxiliando a pensar nas fronteiras epistemológicas entre a História enquanto campo de conhecimento e seu ensino, especialmente quando pensamos que nosso grande desafio reside, cada vez mais, na educação da sensibilidade acerca de outros em outros tempos, conforme nos convoca a pensar Sandra Pesavento.2 Quando pensamos a tarefa educativa hoje, vemos que, cada vez mais, o desafio contem-porâneo pressupõe a capacidade de olhar o outro no interior de nosso próprio tempo. Nesse sentido, a História segue sendo convocada, continuamente, co-mo uma área de saber na qual os instrumentos de leitura permitem – ou mi-nimamente favorecem – o diálogo com as alteridades.

Numa outra ponta desse debate, frequentemente nos deparamos, no ce-nário acadêmico, com situações nas quais a discussão das fronteiras epistemo-lógicas envolvidas no espaço de formação do professor de História emerge como um debate potente e, algumas vezes, explosivo. Departamentos de História e Faculdades de Educação seguem, em muitos casos, evocando sua preeminência nessa formação, e são inúmeros os exemplos localizados, alguns deles tornados públicos, nos quais alguma cisão se evidencia. De modo geral, os currículos dos cursos de História pouco se submetem, em sua construção e modelagem, a diálogos multiperspectivados sob o ponto de vista daquilo que

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é essencial à formação do professor para além da dimensão particular do tra-balho historiográfico. Reuniões de reflexão sobre a natureza e o sentido das disciplinas formadoras, nos múltiplos lócus de formação são, paradoxalmente, raras e incomuns na academia, contrariamente ao que se observa, com muito mais frequência, na prática pedagógica cotidiana da escola básica que, muitas vezes e a despeito de todas as dificuldades, discute mais coletivamente seus modelos pedagógicos e projetos de atuação. Concursos para atuação na área de Ensino de História ou Didática da História seguem ainda, em grande me-dida, enfrentando ‘quedas de braço’ no tocante à formação e à qualificação exigidas para esses profissionais e, especialmente, à origem dos seus doutora-dos, validando-se a formação ora em História, ora em Educação. A própria configuração do cenário acadêmico da universidade brasileira hoje – em espe-cial a universidade pública, no tocante a exigências derivadas da expansão e avaliação da pós-graduação e ao aumento imensurável da carga de trabalho e atividades a que os professores têm sido expostos em função de demandas múltiplas – emerge como um fator a mais, e de peso, para que focos de mirada mantenham-se vinculados, de modo estrito, aos territórios investigativos particulares.

Em meio a esse debate e à cisão que ainda pauta, em grande medida, nossos processos de formação de professores de História, bem como os tênues trânsitos e diálogos epistemológicos entre os campos da História e da Educação – raciocínio que pode ser expandido também para os campos da formação de professores de Ciências, Matemática, Artes e Língua Portuguesa, dentre outros –, seguimos enfrentando, na condição de professores formadores de professo-res de História, desafios cotidianos dotados de aparente simplicidade, porém de profunda complexidade.

Refiro-me à ideia de ‘simplicidade’ porque focalizo, em minha prática como professora formadora de professores, situações que se revelam em aspectos usuais, banais e recorrentes da vida cotidiana. Aspectos despercebidos, corri-queiros, que se repetem em muitas dimensões do fazer pedagógico diário do professor. Mas penso também em ‘complexidade’ porque tais situações, muitas vezes, envolvem convicções e visões de mundo que se ancoram em estruturas de plausibilidade profundas, para utilizar uma feliz expressão empregada por Jean-Claude Forquin,3 sobre as quais o professor toma decisões em relação às suas condutas, valores e repertórios. Situações que não são resolvidas com supostas

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medidas de mero treinamento ou capacitação do professor quanto ao domínio de conteúdos e métodos. Em outra via podemos falar ainda em ‘complexidade’, porque ao pensarmos na ação individual profissional do professor, na verdade falamos de fenômenos da Memória Social e que nos remetem ao movimento interpretado por Paolo Jedlowsky4 como um presente estruturado pelos legados de seu passado, mas que, enquanto presente, faz seleções, toma decisões acerca do que será guardado e do que será esquecido.

Em certa medida é esse o grande desafio – o que guardar e o que esquecer – que nos é apresentado para refletir acerca do currículo em sua dimensão real. É sobre eleições daquilo que é substancial como projeto de tempo presente e futuro que pensamos quando tomamos decisões acerca do currículo. Sobre esse desafio Ivor Goodson nos incita a pensar a respeito da necessidade de mudarmos “de um currículo prescritivo para um currículo como identidade narrativa; de uma aprendizagem cognitiva prescrita, para uma aprendizagem narrativa de gerenciamento da vida”.5 O próprio Goodson segue nos desafian-do com relação à ideia de que essa perspectiva de um currículo como identi-dade narrativa – e consequentemente como exercício de autonomia intelectual docente – deve nos conduzir a um futuro social, no qual “devemos esperar que o currículo se comprometa com as missões, paixões e propósitos que as pessoas articulam em suas vidas. Isto seria verdadeiramente um currículo para empo-deramento. Passar da aprendizagem prescritiva autoritária e primária para uma aprendizagem narrativa e terciária poderia transformar nossas institui-ções educacionais e fazê-las cumprir sua antiga promessa de ajudar a mudar o futuro social de seus alunos”. Em última análise esse segue como o grande desafio, perseguido por todos nós, no enfrentamento da tarefa de educar, e em meio a esse desafio mesclam-se aspectos do binômio complexidade versus sim-plicidade, dimensões que podem ser evocadas em minha própria experiência repetitiva como professora formadora, na área de Didática de História, em inúmeras situações cotidianas. Vou basear a discussão em apenas uma delas neste texto.

Há algum tempo sigo buscando começar meus cursos, a cada nova turma, identificando a origem social de meus alunos que chegam à disciplina Didática, sempre, ou na maior parte dos casos, posicionados no último ano do curso de História e, portanto, bem próximos ao fim de sua graduação. Minha intenção didática primária por detrás nesse levantamento breve é, além de começar

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conhecendo-os melhor, criar um cenário sensível com base na opção de fazer uma cartografia dos alunos na cidade para, partindo desse plano inicial, con-vidá-los a apresentarem, para seus colegas, lugares de memória que, sob seus critérios de julgamento, sejam lugares significativos do ponto de vista das ope-rações de memória e dos processos de significação plasmados nas práticas culturais. Tomo aqui a ideia de ‘lugares de memória’ emprestada de Pierre Nora,6 ou seja, como lugares onde a memória se cristaliza e se refugia e, por essa razão, gera operações de sentido que se perpetuam.

Minha surpresa, nessa prática, tem sido aquilo que se projeta como recor-rência e repetição, ano após ano. Na maior parte dos casos tenho recebido alunos que vivem nas periferias da cidade de Juiz de Fora e, com raras exceções, alguns que vivem no Centro ou em áreas mais próximas ao Centro. Apesar desse mapa territorial definido e claro, seus lugares de vida, via de regra, estão ausentes em suas escolhas, seus discursos, suas possibilidades de eleição ou valorização didática. Alguns chegam mesmo a estranhar, e a questionar, a va-lidade de pensarmos algo, digamos, tão banal e familiar, para se refletir sobre a Didática de História. Até hoje, na maioria absoluta dos casos que já vivenciei como professora, os bairros da periferia não aparecem, em meu mapa inicial feito a cada ano, como lugares válidos para serem apresentados como lugares onde se possa perceber, no cotidiano, as marcas do tempo e da atividade hu-mana. É como se tais espaços, nos quais se pratica a vida sensível e consequen-temente suas inscrições, como sujeitos, numa dada temporalidade histórica, não tivessem voz ou lugar. Portanto, é como se toda a reflexão presente em boa parte dos cursos de formação que é posta no plano epistemológico acerca da renovação da História, desde os Annales franceses até a perspectiva engendra-da pela History from bellow, não encontrasse ressonância na própria vida.

Ao contrário disso, na grande maioria das situações são os espaços canô-nicos da cidade, junto a alguns de seus monumentos mais tradicionais, os ícones predominantemente eleitos, pelos futuros professores, como espaços válidos para se apresentar, na relação com a História da cidade, o estudo do tempo e da História.

Recentemente, em um processo de seleção de bolsistas de pesquisa entre aqueles que se encontravam na etapa final do curso, novamente o mesmo quadro se projetou diante de meus olhos. Ao provocar nos candidatos o exer-cício de apresentarem sua cidade tendo em vista a reflexão disparada pela

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leitura de Ítalo Calvino acerca de suas Cidades invisíveis, raros foram os casos em que a cidade era apresentada para além de seus pórticos, monumentos e bastiões. Os equivalentes simbólicos, no presente, às relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado – como a distância do solo até um lampião e os pés de um usurpador enforcado; ou a inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela, tal como nos convida a pensar Calvino7 – pouco aparecem, ou simplesmente não possuem ressonância no discurso que apresenta o sentido da cidade para o estudo da História. Um sentido que, na maioria das vezes, se esgota no conceito geográfico balizado por seus marcadores monumentais de um passado selecionado para ser guardado, desprovido da complexidade da experiência humana, em suas singularidades, pluralidades e invenções.

Meu desafio, portanto, como professora formadora desses professores, tem sido o mesmo: criar cenários e situações nas quais a reflexão necessária à formação de professores saia dos territórios demarcados pelas tradicionais fronteiras entre os campos da História e da Educação e permita a construção de experiências de conflitos, desestabilizações, nos quais a passagem, os fluxos, as dúvidas e os recuos se tornem mais importantes do que a própria compreen-são do espaço de fronteira, ou ainda, do território de fundação, no caso, o território da História. Trata-se do desafio, portanto, de construir situações li-mites, experiências de umbrais, conforme o convite de Benjamin ao refletir sobre as Passagens de Paris,8 nas quais o incômodo sobre o fugaz e corriqueiro converta-se em centelha de reflexividade, fecunda em possibilidades de transformação.

Meu objetivo neste texto é o de produzir algumas respostas, e muitas per-guntas, ao desafio de refletir sobre a produção de saberes escolares com base nesse entre-lugar de fronteira – ou talvez possamos passar a pensar em um espaço de limiar epistemológico – posto entre o território da História e o da Educação, o que nos conduz a pesquisas de ordens e naturezas diferentes e nem sempre convergentes, ainda que um campo se aproxime e se aproprie do outro amiúde, seja na discussão da formação profissional, especialmente do profes-sor, seja no âmbito do exercício da pesquisa. Tentarei, na relação com as refle-xões nesse entre-lugar de limiar, refletir sobre a nossa grande questão, que é pensar em perspectivas para o ensino de História entre memória, sensibilida-des e saberes e, mais especificamente, sobre a necessidade de complexificar

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nosso olhar sobre a produção e circulação de saberes históricos no interior dos espaços educativos.

O ensino de História como umbral entre tempos vividos e narrativas

Começo definindo um referencial enunciativo que vem se plasmando, de modo muito significativo, em minha experiência profissional ao longo dos últi-mos tempos: a noção de ‘limiar’. Para falar de limiar, ou de umbral, começo buscando inspiração direta na obra de Walter Benjamin (2009) e, especialmente, em duas de suas releituras e interpretações. De um lado aquela desenvolvida por Jeanne Marie Gagnebin9 acerca do conceito benjaminiano de limiar, e, de outro lado, sustentada nessa primeira, a releitura desenvolvida por Andrea Borges de Medeiros10 – cujo movimento de apropriação e escrita eu acompanhei de perto em seu percurso de construção de uma tese de doutorado – sobre o pensamento da criança acerca da memória e o papel atribuído por Benjamin à infância.

Para Walter Benjamin, a infância e a cidade, com os sonhos – donde se depreende sua tentação e encantamento pelo Surrealismo –, projetam-se como lugar de passagem e trânsito. Trata-se de espaços/estados que vão além de uma demarcação física e sensorial, que nos afetam e são afetados pela dimensão de sensibilidade, de produção de sentido e de possibilidade narrativa. Portanto, espaços de possibilidades, de restituição de experiência em uma perspectiva que me aproxima à reflexão ensejada por Paolo Jedlowsky acerca da possibili-dade da experiência nas situações cotidianas da contemporaneidade.11 Isso significa aprofundar a compreensão da contemporaneidade e da modernidade não exclusivamente como cenários nos quais se instala o fim da experiência e dos elos orgânicos com o passado e com a tradição, conforme muitas leituras aligeiradas da obra benjaminiana o fizeram, mas como uma temporalidade potente e grávida de múltiplas camadas temporais e múltiplos sentidos que nos são dados pelos sentidos ativados em função das experiências vividas e pela possibilidade narrativa.

Jeanne Marie Gagnebin nos fala sobre a ideia de limiar como aquilo que

pertence ao domínio das metáforas que designam operações intelectuais e espiri-tuais; mas se inscreve de antemão num registro mais amplo, registro de movi-

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mento, registro de ultrapassagem, de ‘passagens’ ... o limiar não faz só separar dois territórios (como a fronteira), mas permite a transição, de duração variável, entre esses dois territórios. Ele pertence à ordem do espaço, mas também, essen-cialmente, à do Tempo.

É, de certo modo, mais ou menos esse o desafio e o caminho a que temos assistido na configuração do campo da pesquisa em Educação: pela projeção de transições e porosidades entre territórios distintos, algumas delas bastante fluidas e que modificam substantivamente nossa condição de olhar a pessoa, sujeito da aprendizagem e do processo de construção do conhecimento.

Também nos é possível, numa dimensão paralela e coerente em relação ao que pode nos ser ativado pela leitura benjaminiana, avançar na compreen-são das relações entre memória, saberes e sensibilidades com base na leitura da obra de Paul Ricoeur e em suas interpretações acerca da dimensão objetal da memória, o que nos leva à compreensão da operação de memória não como uma mera operação de subjetividade, mas como operações socialmente engen-dradas e variáveis no tempo.12 Ao visitar a ruína de uma cidade antiga ou ao depararmos com uma caixa de fotografias antigas de uma família, um móvel ou uma carta guardada – para ficar em apenas alguns exemplos –, não temos mais a possibilidade, diante da materialidade daqueles objetos, de recompor a materialidade dos sujeitos que ali deixaram seus rastros, mas a dimensão social daquilo que foi guardado e foi apresentado a outro tempo, porém de modo irremediavelmente lacunar. Lidamos, portanto, com indícios abertos conti-nuamente à reinterpretação. Temos, assim, conforme nos destaca Ricoeur, a lembrança do ‘que’, e não, a priori, de ‘quem’ os guardou. Podemos, portanto, olhar uma dimensão do humano, construída numa escala de vivência social, que escapou ao seu tempo imediato e legou seus rastros a outro tempo. Por essa razão, de modo muito bem-humorado e, ao mesmo tempo, profundo, Ulpiano Bezerra de Menezes13 nos convida a pensar sobre o fato de que so-mente aos bombeiros é fornecida a possibilidade de resgate, sendo completa-mente vedada, ao historiador, a tarefa de ‘resgatar o passado’, ainda que este-jamos muito (mal) acostumados a ouvir tal expressão.

Podemos tentar interpretar – ou mesmo imaginar – emoções vividas, tra-balhos realizados, expressões de reação e conflitos, redes de relações e sociabi-lidades, mas não podemos restituir o tempo vivido tal como se passou, espe-cialmente porque o procedimento interpretativo subjetivo, com suas perguntas

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e possibilidades imaginativas, é também uma variável social e temporal, por-tanto mutável, transformado na passagem do tempo e na mudança da socie-dade. Sandra Pesavento, ao evocar a obra de Paul Ricoeur (2008) em relação à dimensão de sensibilidade, destaca que:

no âmbito da História Cultural, um conceito se impõe, dizendo respeito a algo que se encontra no cerne daquilo que o historiador pretende atingir: as sensibili-dades de um outro tempo e de um outro no tempo, fazendo o passado existir no presente. Logo, medir o imensurável não é apenas um problema de fonte, mas sobretudo de uma concepção epistemológica para a compreensão da história. (Pesavento, 2005)

O que se abre, portanto, como possibilidade de acesso a esse universo, é um limiar híbrido e passível de engendrar novos saberes, situado por entre universos de imaginação, conhecimento, fontes, explicação e produção de nar-rativas. Todas essas ferramentas de olhar nos chegam afetadas diferentemente em virtude das diversas possibilidades de sensibilização disparadas por dife-rentes linguagens mediadoras e por chaves de leitura e interpretação que são distintas em cada sujeito. Isso se dá porque, na realidade, são distintas as con-figurações nas quais cada sujeito constitui seus olhares sobre o mundo, ainda que não possamos abstrair o fato de que há uma dimensão social subjacente a tais práticas, que nos chegam, seja como senso comum, seja como experiência e conhecimento, por meio de contextos de Memória Social. Paolo Jedlowsky (2010), a esse respeito, afirma que o senso comum fornece a cada um o con-torno de sua experiência possível. Um horizonte, contudo, nem estável, tam-pouco homogêneo. No ato de experimentar, segundo Jedlowsky, movemo-nos numa síntese entre um passado sintetizado e um feito disponível no presente, como uma tradição. Essa síntese, contudo, não é produto do indivíduo em sua singularidade, mas da conjunção, na memória, entre determinados conteúdos desse indivíduo singular e seu passado coletivo (Jedlowsky, 2010).

Nesse sentido, com a passagem do tempo, seguimos continuamente no mo-vimento de ressignificar – e reapreender – o que foi preservado, graças à atitude humana que nos permite sempre olhar a ‘presença da ausência’, conforme acep-ção de Ricoeur, em múltiplos tempos, sem jamais nos ser facultada a possibili-dade de resgate do que se passou, ainda que nos pese a forte presença, no discur-so público, da acepção usual de que caberia à História o resgate do passado.

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Inquirir os resquícios e os fragmentos da cotidianidade e ao mesmo tempo reconhecer as conexões entre a dimensão individual e social tanto na existência social quanto na experiência da pesquisa, seja ela em História ou em Educação, seguem como grandes desafios de conhecimento interpostos para quem, nessa zona limiar, se aventura a refletir sobre a História Ensinada em suas múltiplas formas, linguagens e espaços.

Quando pensamos nessa comunidade de pesquisadores que se reúne em torno da Associação Brasileira de Ensino de História, por exemplo, estamos nos referindo, muitas vezes, a um território de fronteira. Por inúmeras vezes já me utilizei dessa expressão. Acredito que sua formatação mais sistemática tenha sido aquela dada por Ana Maria Monteiro14 que, amiúde, tem evocado o sentido de fronteira em seus textos e posições. Trata-se, certamente, de uma ideia que, num primeiro olhar, nos diz razoavelmente bem do que se passa em torno dessa comunidade investigativa singular. Pesquisadores/educadores que no entre-lugar situado entre a História e a Educação refletem acerca do conhe-cimento histórico, tomando como foco seus múltiplos processos educativos e suas múltiplas apropriações. É verdade que a perspectiva de fronteira sustenta--se como uma perspectiva potente para dizer de conhecimentos, conceitos e perspectivas teóricas que se encontram no campo investigativo da Educação que – para compor-se e avançar como um campo dotado de especificidade epistemológica – não o faz de um lugar intrínseco, mas a partir de um lócus de reflexão que se apropria de múltiplos constructos teóricos e múltiplos re-cortes possíveis da realidade social, pensada em um sentido mais amplo. A esse respeito, Bernard Charlot, em artigo provocativo e ainda atual, publicado há alguns anos na Revista Brasileira de Educação,15 nos chamou atenção, com certa ironia, para o fato de que nosso campo de atuação – a Educação – é um campo no qual o problema da identidade é central, o que se coloca como um desafio para o debate profissional e, consequentemente, epistemológico. Isso vale, substantivamente também, para se pensar o professor, cuja vida antes de se converter em professor esteve, de algum modo, estruturalmente, ligada à escola, o que nele cultivou, desapercebidamente, modos de ensinar, visões so-bre o aprender, perspectivas sobre currículo, saberes históricos provenientes de fontes sociais múltiplas, concepções de infância, concepções de professor, de disciplina escolar, de autoridade docente, de juventude e da própria ação escolar.

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A proposição de Jeanne Marie Gagnebin acerca da tênue, discreta e, ao mesmo tempo, profunda distinção entre ‘fronteira’ e ‘limiar’ tomando-se em conta a obra de Walter Benjamin talvez nos auxilie a projetar a possibilidade desse entre-lugar de pesquisadores na dimensão daquilo que se encontra na essência de nossa reflexão acerca da formação de professores: os saberes na relação com as sensibilidades e, portanto, o saber e o conhecimento transpas-sado pela experiência capaz de interpelar o sujeito epistêmico naquilo que lhe permite uma condição de reflexividade. Afinal, é de saberes, mas, sobretudo de sensibilidades, que falamos quando imaginamos um professor em processo de formação elegendo o seu espaço imediato de vida, ainda que seja um espaço de periferia urbana de ocupação recente (com todos os efeitos pejorativos e desqualificadores gerados por certa memória pública que projeta esse espaço como um não lugar), como um lugar plausível para se exercitar o pensamento quanto à presença de marcas do Tempo e do humano no mundo. Portanto, se esse professor não consegue enxergar seu próprio lugar como um lugar de memória, não conseguirá compreender os sujeitos desse lugar como sujeitos históricos cujas narrativas são legítimas para estarem presentes e autorizadas no currículo escolar.

Aquela autora – evocando as dificuldades de compreensão dessa distinção em Benjamin, em função dos problemas derivados da tradução, para língua portuguesa, das noções de Schwelle e Grenze – nos alerta para o fato de que a noção de fronteira contém e mantém algo, evitando o seu transbordar. Convertendo-se tal perspectiva em exemplos plausíveis ao nosso campo de debates, poderíamos dizer que trazer para o espaço da formação do pedagogo e da pesquisa em educação aspectos intrínsecos à operação histórica, em uma perspectiva de informação, seria uma das implicações importantes da apro-priação mais corriqueira dessa perspectiva de fronteira. Isso tem significado, em geral, tomar a História apenas sob uma das pontas do binômio proposto por Pierre Vilar,16 ou seja, como matéria de um conhecimento, o que significa deixar a acepção essencial de conhecimento de uma matéria em segundo plano. Nesse caso, a História tende a se travestir muito mais como explicação daquilo que se situa como componente localizador no tempo de algum fato, episódio ou escola de pensamento do que, propriamente, como forma de conhecer. Por vezes essa apropriação pode se dar num plano temático ou basear-se nos im-pactos gerados por determinados autores de referência. É o caso, por exemplo,

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da apropriação feita amiúde ao longo dos últimos anos, dos estudos emanados da História Cultural para a definição de categorias analíticas ou recortes epis-temológicos. Nesse sentido, autores como Michel de Certeau, Carlo Ginzburg, Roger Chartier ou Peter Burke vêm sendo amplamente evocados, no campo da pesquisa em Educação, em diversas investigações que buscam interpretar o cotidiano escolar ou práticas sociais múltiplas em espaços educativos. Muitas vezes essa apropriação ocorre sem se atentar para o fato de que tais autores produziram seus constructos teóricos no interior de um campo reflexivo e de lócus epistemológico próprio: aquele que busca compreender as mudanças humanas em sua historicidade e, portanto, no interior do processo de desen-volvimento do território do historiador.

Pensando-se na trajetória inversa, outra ordem de exemplos poderia ser dada quando se observam os efeitos gerados ao se provocar, no universo de reflexão do historiador, a compreensão das operações sociais e cognitivas que atravessam o processo de construção do conhecimento ou a relação entre os múltiplos saberes que se cruzam na complexidade do espaço escolar, entendido como espaço singular, criador e distinto de um mero espaço de transposição dos saberes de referência. Muitas vezes a dimensão de que o saber histórico escolar é dotado de especificidade, que a criança e o jovem conferem à expli-cação histórica configurações distintas daquelas validadas no âmbito historio-gráfico e, mais do que isso, pressupõe distintos modos de apropriação em função de distintas formas de mediação pedagógica pode soar, ao historiador, como estranha e inespecífica.

Contudo, a perspectiva ensejada pela reflexividade engendrada pela lei-tura benjaminiana possa, talvez, nos conduzir a um desafio adicional que, de acordo com Jeane Marie Gagnebin, nos conduziria ao limiar, a uma dimensão de trânsito, fluxo e instabilidade, com duração e intensidade indeterminada, situada na ordem do espaço e do tempo que nos permite fazer deslocamentos (Gagnebin, 2010, p.14).

Se o tempo da Modernidade já não nos permite usufruir de experiências liminares visíveis, talvez seja o caso de pensarmos nesses nossos espaços de agregação como espaços liminares, como espaços de trânsito e fluxos, nos quais nos seja possível propor passagens de modo mais livre e menos esqua-drinhado. Portanto, a pergunta sobre como promover experiências liminares

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no processo educativo – o que numa perspectiva benjaminiana nos conduz a evocar, para além do conhecimento sistematizado no plano da ciência, também a experiência dada pela arte, pelas linguagens múltiplas e pela condição narra-tiva dos sujeitos – talvez se projete, cada vez mais, como a nossa pergunta central para pensarmos tanto as aprendizagens das Ciências Humanas como as práticas escolares ou os processos de formação de professores.

Limiares, experiências e sensibilidades na relação com os saberes escolares

Começarei a refletir sobre essa pergunta com base em minha própria expe-riência como orientadora que tem, no campo da pesquisa em Educação, sua porta de entrada para a reflexão e o exercício profissional. É importante deixar isso claro porque, ainda que operando muitas vezes com as ferramentas de pen-samento advindas da reflexão histórica, é para focalizar os processos que ocor-rem dentro e ao redor da escola que o faço. Portanto, meu exercício de pesquisa tem se dado com o intuito de depreender inteligibilidades que pautam as diversas construções e interpretações acerca do tempo que se operam no estudante e no professor. Daí a zona de trânsito e o limiar. Portanto, é possível começar dizendo que a experiência de orientação, muitas vezes, nos coloca também em situações de trânsitos e desmobilizações profundamente provocadores.

Partirei de um pequeno fragmento da tese de doutorado de Andrea Borges de Medeiros, recentemente defendida, e de uma leitura anteriormente reali-zada desse fragmento, disponível em artigo de sua própria autoria, publicado no Caderno Cedes.17

Em um dos momentos chave de desenvolvimento de sua pesquisa – que buscava compreender, na complexidade do movimento escolar cotidiano, a construção social da memória da criança – ela deparou com um cenário de ativação de lembranças e narrativas de um grupo de crianças frente a um de-senho antigo, que a ela havia passado, num primeiro momento, completamen-te despercebido.

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Em torno do desenho, um grupo de crianças rapidamente se reuniu indi-cando tratar-se ‘daquele dia’ em que Sâmara havia se transformado em Lobisomem, o que podia, segundo elas, ser comprovado não pelo desenho propriamente dito mas por um indício singular atrás da folha. Eles não se re-feriam à suposta assinatura da menina, mas a um rasgo na folha de papel. A presumida autora, Sâmara, imediatamente negou sua autoria e disse que o episódio do Lobisomem se devera a outras circunstâncias, que agora ela já compreendia que aquilo não havia ocorrido de verdade, ou seja, ela não se transformara em Lobisomem, mas havia se desequilibrado em face de um epi-sódio familiar específico e descontado sua ira nos colegas e naquela folha de papel. A narrativa, portanto, seguiria sem abordar o trabalho que gerou o de-senho, mas evocando os sentidos daquele momento pessoal de desequilíbrio que, na verdade, vinculava-se não a um ato subjetivo, mas a uma dimensão social. O rasgo na folha de papel, portanto, era a substância objetal daquele ato coletivo de lembrança. Ou seja, as crianças se lembraram de uma circunstância porque havia o rasgo na folha, e não o inverso.

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O rasgo no papel disparou, naquele grupo de crianças, um vasto e denso movimento narrativo envolvendo sua condição de lembrar-se de um evento passado. Não vou aqui descrevê-los em detalhes porque o leitor poderá, por sua própria conta, consultar diretamente os trabalhos indicados onde, por certo, encontrará riqueza de detalhes que não me cabe, neste momento, des-tacar. Em suas narrativas, disparadas por aquele objeto capaz de suscitar uma cadeia de lembranças de fatos já em processo de esquecimento, todos os trân-sitos entre passado e presente apareciam devidamente refletidos acerca dos significados da mudança na passagem do tempo com base em um episódio banal da vida cotidiana e que aparecia não sob a forma de explicação, mas sob a dimensão de imaginação e devaneio, como um episódio limiar segundo a evocação benjaminiana.

O fato fundamental a ser destacado neste momento é que em nenhuma das narrativas de lembrança, que também envolviam a restituição e a ressigni-ficação do que havia sido esquecido, o conteúdo escolar, propriamente dito, aparecia como eixo de lembrança, o que, portanto, nos faz atentar para o quão significativo é pensar, na relação com a criança, a constituição de outros elos de produção de sentido que não se restrinjam à transmissão da informação disciplinarizada sob a forma dos conteúdos esquadrinhados, o que não signi-

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fica propor a dissolução dos conteúdos, mas a reflexão acerca das intenciona-lidades didáticas sobre aquilo que se ensina.

Minha opção por focalizar essas duas imagens não se deu, exatamente, pelo trabalho de doutorado em si e por sua capacidade exemplar para se pensar que o processo de apropriação do saber pela criança e pelo jovem envolve movimentos outros, para além dos processos de explicação histórica, mas pela condição desempenhada pela reflexividade advinda da operação histórica para o desenvolvimento daquela interpretação por parte de Andrea. Pensemos, por-tanto, em alguns dos significados inerentes ao exercício da operação histórica na relação entre saberes e sensibilidades para, em seguida, voltarmos a pensar o que aconteceu com Andrea no movimento de construção daquela tese.

O discurso histórico, portanto, opera por verossimilhança e, nesse senti-do, ainda que pautado na investigação reflexiva sobre marcas humanas deixa-das no real, será sempre sujeito a reavaliação. De certo modo, o mesmo pro-cesso artesanal e interpretativo se passa na pesquisa em Educação quando opta por compreender os processos de significação construídos pelos sujeitos nas operações de construção do saber, que são múltiplas, variadas, criativas e, mui-tas vezes, podem surpreender o professor acostumado a uma perspectiva trans-missiva do saber, fato ainda profundamente desafiador no universo educativo. É desse modo, pela dimensão interpretativa e artesanal da pesquisa, que a mão do restaurador, assim como a mão do oleiro na argila do vaso de Benjamin,18 deixam marcas significativas no modo de constituir o conhecimento gerado.

Trata-se de uma operação que não reconstrói a realidade, mas a interpre-ta, de modo variável no tempo, com base em seus fragmentos, que nem sempre permitem a recomposição de um cenário, mas abrem espaço para que o ima-ginemos a partir de dadas estruturas de plausibilidade. Esses fragmentos, re-veladores de momentos de cotidianidades passadas com cortes temporais nos quais se interpelam múltiplos estratos temporais, tampouco são descritores daquilo que aconteceu, tal como aconteceu. Antes disso, são modos de apre-sentar a realidade em um tempo dado, e também sua preservação submete-se a decisões políticas dilatadas no tempo, de guarda e destruição, ou seja, a dis-tintos procedimentos de monumentalização.

Nosso ofício de historiador, assim como nosso ofício docente, tem muito do exercício da restauração das capelas, lacunar, sendo o processo de proble-matização da realidade e do tempo sempre contingente, e subjacente

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Formação de professores e ensino de História

a permanentes forças sociais que têm na memória ferramentas de poder e produção de sentido. Portanto, isso reduz, para o próprio historiador, o sen-tido da História como ferramenta apenas de explicação da realidade. Ela pode explicar tendências do passado, pode explicar a mudança e o faz com frequên-cia, mas no interior de determinadas circunstâncias e de modo sempre reno-vado no tempo. Porém, como destacou Manoel Salgado Guimarães, o

procedimento disciplinar com relação à História resulta de uma intensa disputa pelo monopólio da fala com relação ao passado. Longe de uma natureza, o passa-do se constitui em objeto de disputa mobilizando interesses políticos e de conhe-cimento numa rede complexa em que, se o saber pode significar poder, é tam-bém do lugar do poder que se tecem saberes a respeito dos tempos pretéritos.19

Mais do que explicar o que se passou, portanto, a História se dedica a um procedimento de interpretação que interroga os processos de conhecimento no tempo e, por isso, converte-se em elemento chave para a possibilidade de conhecer porque, acima de tudo, faz perguntas aos vestígios do homem no tempo e, em função desses vestígios e dos olhares e perspectivas de cada tempo, interpreta-os.

Por isso a operação histórica e a compreensão/reflexão acerca de seus constructos foram decisivas, em virtude de seus constructos e de sua episte-mologia, para o movimento de construção do trabalho de Andrea Medeiros e para o exercício de interpretação do rasgo da folha, bem como de tantos outros indícios que, no cotidiano escolar, assim como no cotidiano da vida e da cida-de, nos expõem diariamente a diferentes estratos de tempo que se cruzam na simultaneidade do tempo vivido no presente.

Segue sendo, para o âmbito da pesquisa e da prática educativa, uma tarefa profundamente desafiadora a de evocar sensibilidades humanas relativas ao tempo passável, intangível e não recuperável a não ser por meio de operações verossímeis, reconhecer os sentidos ocultos no pensamento da criança, nessa zona de limiar que constitui sua capacidade de construção de pensamento e nos desafia a encontrar outras sensibilidades possíveis. Mas segue sendo, para o âmbito da pesquisa histórica, igualmente desafiador compreender que a ta-refa educativa pressupõe também o ato de evocar sensibilidades no presente, em uma multiplicidade de sujeitos num tempo simultâneo, e que isso

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pressupõe mediações outras que não a operação histórica e a explicação pau-tada no desenvolvimento da historiografia.

Não constitui tarefa fácil porque tocamos em algo muito complexo e plu-ral, com muitas possibilidades de emergência e cartografia de práticas múlti-plas, ainda que muitas vezes sejamos tentados a pensar o saber histórico escolar como passível de ser esquadrinhado num dado elenco de temas e formalizado em uma proposição programática homogeneizadora. Portanto, não é nada simples o desafio de evidenciar, para o jovem professor em processo de for-mação, a existência de múltiplas cidades no interior de uma cidade. Tal atitude e ação pedagógica representa uma das faces do desafio de provocar atitudes limiares de pensamento, nas quais múltiplos sujeitos e múltiplas práticas de rememoração podem ser disparadores de possibilidades de pensamento. Constitui, portanto, um grande desafio no sentido de permitir a emergência de outras sensibilidades, outros sujeitos e outras histórias possíveis.

O que quero dizer, para pensar a História e a Educação como limiares de passagem e não somente como territórios de fronteira, é que provocar a for-mação pautada nesses campos de saber e investigação significa, antes de tudo, colocar em movimento nossa capacidade de, no processo de formação do Educador e do Historiador, provocar experiências liminares, capazes de afetar não só conhecimento, mas sentido, experiência e sensibilidade.

NOTAS

1 BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Europa-América, 1997. Ed. revista e am-pliada por Etienne Bloch.2 PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Coloquios, 2005, Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/229; Acesso em: 13 jun. 2012.3 FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.4 JEDLOWSKY, Paolo. Memória, temas e problemas da sociologia da Memória no século XX. Pro-posições, v.14, n.1, jan.-abr. 2003.5 GOODSON, Ivo. Currículo, narrativa e futuro social. Revista Brasileira de Educação, v.12, n.35, maio-ago. 2007. p.241.6 NORA, Pierre. Entre Memória e a História, a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10), dez. 1993.

Sonia Regina Miranda

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7 CALVINO, Italo. Cidades invisíveis. 12.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.8 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009. C2.9 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Entre a vida e a morte. In: OTTE, Georg et al. Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. p.13-14.10 MEDEIROS, Andrea Borges. Memórias de crianças em crônicas de escola: modos de lem-brar, de narrar e de ser. Tese (Doutorado em Educação) – UFJF. Juiz de Fora (MG), 2011. 11 JEDLOWSKY, Paolo. Il sapede dell’a esperienza: fra l’abitudine e il dubbio. Roma: Caroc-ci Ed., 2010.12 RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o esquecimento. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2008.13 MENEZES, Ulpiano. Os paradoxos da Memória. In: MIRANDA, Danilo Santos (Org.). A importância da formação cultural humana. São Paulo: Ed. Sesc, 2007.14 Em uma das versões mais recentes pode-se observar a significância da expressão. Ver: MONTEIRO, Ana Maria; PENNA, Fernando de Araújo. Ensino de História: saberes em lugares de fronteira. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.36, n.1, p.191-211, jan.-abr. 2011.15 CHARLOT, Bernard. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação, Rio de Ja-neiro, v.11, n.31, jan.-abr. 2006.16 VILAR, Pierre. Iniciação ao vocabulário de análise histórica. Lisboa: Sá da Costa, 1985.17 MEDEIROS, 2011; _______. Crianças e narrativas: modos de lembrar e de compreender o tempo na infância. Caderno Cedes, Campinas (SP), v.30, n.82, set.-dez. 2010.18 BENJAMIN, Walter. O narrador. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994.19 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Entre amadorismo e profissionalismo: as tensões da prática histórica no século XIX. Topoi, Rio de Janeiro, p.184-200, dez. 2002.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Formação de professores e ensino de História

Entrevista – Nilma Lino GomesBelo Horizonte (MG), 6 de maio de 2013

Wilma Baía Coelho* Patrícia Melo Sampaio**

Nilma lino Gomes é pedagoga e mestre em Educação (UFMG), doutora em Antropologia Social (USP) e pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É professora da graduação e pós-graduação da Faculdade de Edu-cação (FaE) da UFMG. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Re-lações étnico-raciais e Ações Afirmativas (NERA) e o GT21 Educação e Rela-ções Étnico-raciais da Anped (2012-2013). É membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e integrante da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE). Atualmente, é reitora da Univer-sidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Professora, a senhora poderia sintetizar a sua trajetória acadêmica?

Sou uma educadora. Sempre fui educadora, desde que me formei no Instituto de Educação de Minas Gerais, no Ensino Médio. Após anos de do-cência na educação básica, fiz vestibular para o curso de Pedagogia na UFMG e a partir daí novas questões educacionais me foram colocadas.

Foi na vivência real da relação entre teoria e prática presente na minha atuação como docente da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fun-damental, bem como no meu envolvimento com a pesquisa durante a gradua-ção que a questão racial – presente na minha própria história de vida – emergiu como uma questão pedagógica, de pesquisa e política. Esse processo complexo me instigou a buscar o mestrado em educação.

** Faculdade de História, Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA). Av. Augusto Correa, 1, Guamá. 66075.110 Belém – PA – Brasil. [email protected]** Departamento de História, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Av. Rodrigo Otávio, Setor Norte, Campus Universitário, Coroado. 69080-005 Manaus – AM – Brasil. patrí[email protected]

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Wilma Baía Coelho e Patrícia Melo Sampaio

Após o mestrado, passei a ter uma compreensão mais densa dos processos educacionais e sua articulação com a questão étnico-racial. Paralelamente, a vivência como educadora da Rede Municipal de Ensino, a experiência de par-ticipar da implementação da proposta político-pedagógica Escola Plural, em Belo Horizonte, e os desafios dela advindos me motivaram a prestar concurso como docente na Faculdade de Educação da UFMG. Ao ser aprovada, dei continuidade como professora e pesquisadora às discussões sobre educação, cultura e movimentos sociais, com enfoque nas questões étnico-raciais. Essa escolha me acompanhou no doutorado e no pós-doutorado e continua sendo um eixo orientador da minha atuação até hoje.

Ao longo da minha trajetória profissional e de pesquisa, a preocupação com a formação de professores e a diversidade étnico-racial, a organização de ações e políticas antirracistas têm sido características marcantes. Junto a cole-gas da FaE [Faculdade de Educação], da ECI [Escola de Ciência da Informação] e do Centro Pedagógico da UFMG criamos o Programa de Pesquisa, Ensino e Extensão Ações Afirmativas na UFMG, o qual há 10 anos tem uma ação de intervenção na formação acadêmica de estudantes negros e de baixa renda dessa universidade, bem como tem sido um polo de realização de pesquisas e ações de formação continuada de docentes da Educação Básica, em Belo Horizonte.

Essa ação acadêmico-política contribuiu para a minha indicação como re-presentante do Movimento Negro na Câmara de Educação Básica do CNE [Conselho Nacional de Educação]. Penso que tudo isso, de alguma forma, tam-bém contribuiu para a minha nomeação pelo ministro da Educação como reitora Pro Tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Mas uma coisa é certa: não se trata de uma trajetória indivi-dual, construída no isolamento. Ela é fruto da nossa herança ancestral, dos elos Brasil/África, da formação que recebi da minha família, do processo educativo vivido no movimento negro e do trabalho coletivo que venho desenvolvendo ao longo dos anos, do qual participam tantos parceiros e parceiras.

Sua atuação acadêmica foi influenciada de alguma maneira pela formação recebida na Educação Básica?

Sim. Foi como mulher negra e professora da educação básica que passei a enxergar a presença da questão racial nos processos educativos, as tensões

Entrevista – Nilma Lino Gomes

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entre a identidade étnico-racial e a superação de estereótipos, o racismo, o preconceito e a discriminação racial, bem como a necessidade de construção de uma pedagogia antirracista e voltada para a diversidade. Fui educada e re-educada na minha atuação acadêmica pela prática pedagógica na Educação Básica e pelo Movimento Negro.

Como a senhora percebe a formação oferecida pelas escolas brasileiras ho-je, considerando, especialmente o Ensino Fundamental?

Acho que as educadoras e os educadores do Ensino Fundamental, sobre-tudo das escolas públicas, são profissionais de luta. A cada ano, a educação se torna mais complexa porque a vida social tem se tornado de alta complexidade. A formação que se exige, hoje, sobretudo para aqueles que irão atuar no Ensino Fundamental, é muito diferente da minha época. Os estudantes são outros, e os docentes também.

Todavia, persistem velhas estruturas escolares excludentes, condições de trabalho indignas, falta de uma real política de valorização do magistério e salários injustos. Haja vista os argumentos de vários estados e municípios para o não cumprimento da lei do piso salarial do magistério da Educação Básica. Sabemos das implicações, das diferentes situações e condições estruturais, eco-nômicas, geográficas e políticas dos entes federados, mas nada justifica a in-disposição a que assistimos por parte de alguns gestores públicos quanto ao pagamento do piso salarial do magistério. Isso tem implicações na prática pe-dagógica e na formação ofertada pelas escolas brasileiras.

Outra questão é a mudança estrutural e curricular necessária às licencia-turas para oferta de uma formação inicial condizente com as demandas edu-cacionais do nosso tempo e com o perfil de docente exigido, hoje, tanto na rede pública quanto da rede privada. Da mesma forma, os currículos em ação das escolas de Educação Básica precisam ser outros e são instados a dialogar com a comunidade real levando em consideração não somente as avaliações sistê-micas e os índices de alfabetização e matematização, mas, também, as vivên-cias, as experiências e as realidades da educação básica atual. Considerando, também, a tensa e necessária articulação entre desigualdades e diversidade.

Temos, hoje, avançado no entendimento da educação como direito social e humano, e isso implica lidar, administrar e considerar a convivência dentro dos sistemas de ensino de escolas urbanas, indígenas, quilombolas e do campo.

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Wilma Baía Coelho e Patrícia Melo Sampaio

Tudo isso se organiza nos níveis e modalidades de educação, o que está a exigir outra forma de administrar a escola básica e outra formação a ser ministrada aos educandos. Exige, também, propostas curriculares diversificadas e inova-doras que articulem dimensões pedagógicas comuns e realidades específicas.

Portanto, vejo a Educação Básica e não somente o Ensino Fundamental da atualidade diante de novos desafios trazidos não só pelas mudanças do ponto de vista teórico e da pesquisa como, também, pelas transformações sociais nacionais e internacionais. Há novos enfoques e práticas no campo das políticas públicas de combate a pobreza, e convivemos hoje com políticas universais e com as ações afirmativas. Os sujeitos sociais que antes estavam fora da educação escolar se encontram, hoje, no interior das nossas instituições, sobretudo as públicas. Quanto mais o direito à educação avança, mais os coletivos sociais diversos e tratados historicamente como desiguais passam a fazer parte do cotidiano esco-lar. Que escola eles querem? Que tipo de educação os atende? Que currículos construir? Como ampliar as formas de participação? Que sujeitos desejamos formar? São perguntas de sempre, mas que hoje exigem respostas diferentes.

Tudo isso impacta a formação ofertada pelas escolas brasileiras e exige mudanças na estrutura, nos currículos, na organização dos tempos e espaços escolares, na concepção de aprendizagem e nas metodologias de ensino. Podemos dizer que as nossas escolas estão impactadas por esse processo. Aquelas que se abrem para essa nova conjuntura, que se mostram abertas ao diálogo com a comunidade e com os movimentos sociais, possibilitando mu-danças pedagógicas, políticas, curriculares e na gestão da escola, dão passos mais bem-sucedidos. Aquelas que resistem e mantêm posições conservadoras apresentam maiores problemas. Aquelas que recebem apoio e suporte da ges-tão do sistema de ensino e da escola conseguem dar passos mais interessantes. Aquelas que funcionam sem uma intervenção política emancipatória da gestão e do coletivo de profissionais e ainda se fecham à comunidade e aos movimen-tos sociais enfrentam sérios problemas.

Qual sua avaliação da aplicação da Lei 10.639/2003 na Educação Básica, passados 10 anos de sua criação?

Acho que já avançamos. Não sou partícipe do discurso de que ‘nada mu-dou’. Porém, tenho uma leitura crítica do grau de alcance do que chamo de avanço. A implementação da alteração da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da

Entrevista – Nilma Lino Gomes

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Educação Nacional] trazida pela Lei 10.639/03 ainda não corresponde à radi-calidade da demanda que a originou. Há todo um processo irregular de enrai-zamento da referida lei nos sistemas de ensino, na formação de professores e nas escolas públicas e privadas.

Avançamos mais no público do que no privado. Isso tem a ver com ques-tões estruturais, financeiras, e com a gestão da escola e do sistema. Mas tem também uma profunda relação com o imaginário sociorracial brasileiro que se expressa na escola. A predominância do mito da democracia racial e a am-biguidade do racismo brasileiro presentes na sociedade e na escola colocam empecilhos para a implementação da alteração da LDB pela Lei 10.639/03, bem como para o atendimento da Resolução CNE/CP 01/2004 e do Parecer CNE/CP 03/2004.

As escolas, hoje, possuem diretrizes curriculares nacionais, emanadas pelo Conselho Nacional de Educação, as quais são orientadoras das práticas e do processo de implementação da temática afro-brasileira e africana e da educação das relações étnico-raciais na Educação Básica. Há também um Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Todavia, ainda há um desconhecimento desse processo, e muitos cursos de licenciatura que deveriam estudar, divulgar, conhecer e socializar todo esse aparato legal de reconhecimento à diversidade étnico-racial ainda se isentam da sua responsabilidade.

Tal situação exige ainda pressão dos movimentos sociais, dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e dos Fóruns de Educação e Diversidade Étnico-Racial, bem como dos demais partícipes da luta antirracista para que o cum-primento da LDB se faça uma realidade para todos e possamos dar passos mais avançados na superação dessa situação irregular de implementação da legisla-ção nos próximos anos.

Qual o papel das Universidades na construção de uma sociedade que respei-ta a diversidade? Qual o balanço que a senhora faz desse processo no ensino supe-rior brasileiro considerando a diversidade de experiências que existem no Brasil?

Penso que o papel da universidade é produzir conhecimento numa pers-pectiva emancipatória. É superar as concepções conservadoras de ciência. É se abrir para o diálogo franco e aberto com a sociedade e, nesta, com os

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Wilma Baía Coelho e Patrícia Melo Sampaio

movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil. A universidade – sobretudo a pública – deveria ser exemplo de instituição educativa e produ-tora de conhecimento capaz de reconhecer e valorizar as múltiplas formas e condições de produção de conhecimento.

Nos últimos anos, a universidade é instada, cada vez mais, a produzir conhecimento, tecnologias e pesquisas que articulem a ciência e os conheci-mentos construídos pelos setores populares e comunidades tradicionais. Mas isso não é uma tarefa fácil. Já temos algumas experiências acadêmicas e de pesquisa que caminham nessa direção, mas não é possível afirmar que essa seja a visão hegemônica entre os dirigentes de educação superior e dentro da pró-pria comunidade científica.

Como a senhora avalia a distinção dos percursos curriculares da Licencia-tura e do Bacharelado, estabelecida pela Legislação?

Há tentativas de superar essa distinção, mas não é simples. No momento, eu diria que se a divisão entre licenciatura e bacharelado privilegiar a visão conservadora de que uns são aptos para o fazer prático e outros são feitos para pensar e produzir pesquisa, então ela está equivocada. Se essa for a concepção de fundo dessa distinção, então não formaremos nem bons licenciados nem bons bacharéis, pois a sua formação estará pautada em um ‘vício de origem’ estrutural.

Esse processo acaba gerando uma distinção entre os próprios estudantes e quase que determina a sua trajetória acadêmica impondo um perfil estereo-tipado de graduando, proporcionando-lhes um currículo cindido no qual a pesquisa e a prática pedagógica se apresentam desarticuladas. Isso é muito sério. Sabemos, lamentavelmente, que essa cisão ainda é uma tendência muito forte na formação em nível superior brasileira.

Mas há experiências inovadoras em curso, as quais sinalizam outra forma de organização curricular e de prática pedagógica e científica. Precisamos torná-las públicas para conhecê-las, discuti-las e analisá-las, dando-lhes a de-vida visibilidade.

Entrevista recebida em 24 de maio de 2013. Aprovada em 24 de maio de 2013.

Desafios e experiências do ensino superior no interior do Brasil: a implantação do curso

de História em Porto Nacional, TocantinsChallenges and experiences of higher education

in inland Brazil: the implementation of the History course in Porto Nacional, Tocantins

Roniglese Pereira de Carvalho Tito*

ResumoO artigo discute a institucionalização do ensino superior de História no antigo norte de Goiás, região que atualmente corresponde ao estado do Tocantins. O texto aborda as motivações que levaram o governo estadual a promulgar a lei de criação da Faculdade de Filosofia do Nor-te Goiano (Fafing), no início dos anos 1960; os episódios que adiaram a sua im-plantação durante o Regime Militar; a po-lítica de interiorização do ensino superior em Goiás, que culminaram com a autori-zação de funcionamento dessa Faculdade, na década de 1980; e as transformações ocorridas após a sua encampação pela Universidade do Tocantins, no início da década de 1990. Na segunda parte aborda--se a estruturação do curso superior de História, marcada pelas definições/redefi-nições do currículo e pelas constantes re-formulações do corpo docente.Palavras-chave: ensino superior de His-tória; profissionalização docente; currí-culo.

AbstractThe article discusses the institutional-ization of History higher education in the old northern Goiás region, which currently corresponds to the state of Tocantins. This paper addresses the motivations that led the state govern-ment to promulgate a law creating the Faculdade de Filosofia do Norte Goiano (Fafing), in early 1960s; the episodes that have delayed its implementation during the military regime; the internal-ization of higher education policy in Goiás, which culminated with the li-cense to operate this college, in the 1980s; and the changes which took place after its takeover by the Universidade do Tocantins, in the early 1990s. The second part deals with the structuring of the History higher education course, marked by the definitions / redefini-tions of the curriculum and the constant reformulation of the faculty.Keywords: History higher education; teacher’s professionalization; curricu-lum.

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 179-199 - 2013

* Supervisor de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quadra 108 Norte, Alameda 04, Lote 38, Centro. 77006-100 Palmas – TO – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3180

Roniglese Pereira de Carvalho Tito

Estabeleceu-se, nas últimas décadas, uma área de produção sobre o ensino de História no âmbito do ensino superior, com trabalhos relacionados ao cur-rículo, ao livro didático, à formação profissional e à criação de cursos, Faculdades e Universidades. No que se refere aos estudos que contemplam a institucionalização dos cursos de História, em particular, a análise das temá-ticas abordadas, bem como dos caminhos e argumentos utilizados pelos pes-quisadores, evidencia que as pesquisas têm procurado conciliar a análise dos processos de ensino e os elementos que compreendem a formação e confor-mação das características que permeiam a questão da formação do profissional da área: contextos políticos, trajetória acadêmica dos professores, concepções de história e legislação educacional, entre outras.

Nesse viés, por exemplo, situa-se a pesquisa empreendida por Marieta de Moraes Ferreira sobre a institucionalização do curso de História junto à Universidade do Distrito Federal (UDF), criada no Rio de Janeiro, na década de 1920. Em síntese, a autora associa trajetória e perfil dos professores ao con-texto sociopolítico e educacional da época para problematizar as questões que envolviam as disputas político-educacionais, a concepção de história que nor-teou o curso em diferentes momentos, e as tentativas de conciliar formação pedagógica – privilegiando a formação de professores – e a preocupação em oferecer aos futuros mestres conhecimentos voltados para a pesquisa.1

A perspectiva analítica adotada por Ferreira está presente também, em grande medida, na pesquisa realizada por Diogo da Silva Roiz sobre o curso de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, entre 1934 e 1956.2 Roiz buscou verificar como professores histo-riadores, brasileiros e franceses, que fizeram parte do corpo docente inicial-mente contratado para as atividades de docência e de pesquisa, atuaram na delimitação do quadro curricular e nas suas redefinições, as quais foram ocor-rendo com a incorporação de uma nova geração de professores ao longo dos anos. Uma constatação assinalada por Roiz está no que denomina de ‘barreiras técnicas e administrativas’ no processo de institucionalização do curso de História da USP. Ao analisar as propostas de reformulações curriculares, o pesquisador evidenciou que as dificuldades encontradas pelos professores eram maiores do ponto de vista administrativo e não do teórico. Isso porque a Faculdade Nacional de Filosofia, órgão responsável, a partir dos anos 1940, pela padronização do currículo de todas as faculdades de filosofia do país,

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Desafios e experiências do ensino superior no interior do Brasil

impunha verdadeiras barreiras à autonomia acadêmica, interferindo de forma significativa no que se deveria ensinar nessas faculdades.

Algumas das tensões evidenciadas por Ferreira e por Roiz também são captadas por Mara Cristina de Matos Rodrigues em sua pesquisa sobre A insti-tucionalização da formação superior em história: o curso de Geografia e História da UPA/URGS – 1943 a 1950. A autora levanta hipóteses de trabalho para o contexto em que a Universidade esteve sob a gestão do governo do estado, “pro-fundamente sujeita às interferências da política partidária e da correlação de forças dos grupos intelectuais locais”. Durante aquele período, os professores tinham contratos provisórios ou eram interinos nas cátedras, e as decisões in-ternas na universidade estavam menos sujeitas às regras estabelecidas nacional-mente pela legislação federal. Entre os pontos relevantes assinalados por Rodrigues está a definição dos critérios utilizados para essa contratação dos docentes. De acordo com suas análises, requisitos como a experiência didática prévia em disciplinas idênticas ou próximas à que seria assumida nos cursos de Geografia e História eram observados somente em relação aos catedráticos, ao passo que a seleção dos professores assistentes se dava quase que exclusivamente com base na indicação pessoal do docente responsável pela cátedra.

Verifica-se, portanto, nessas três pesquisas realizadas em temporalidades semelhantes (décadas de 1930 e 1940), mas em contextos diferentes, uma gama de problemáticas em relação à institucionalização dos cursos superiores de História no Brasil que, com efeito, dão origem a diversas possibilidades analí-ticas: a concepção de história e a filiação teórica que permearam a implantação desses cursos; o dilema entre docência e pesquisa durante a formação profis-sional e as tentativas de conciliação; as associações entre ensino de história e a conjuntura sociopolítica local e nacional; a relação quase sempre conflituosa entre as proposições docentes em torno do currículo e o que preconizavam os organismos responsáveis pela normatização dos cursos; e a constituição do corpo docente, no que se refere ao perfil e aos critérios de seleção, entre outras.

Diante desse quadro, acredita-se que o alargamento dos estudos sobre o tema pode contribuir para identificar e compreender as configurações tomadas pelos cursos de História segundo as fases de urbanização e desenvolvimento econômico e o consequente processo de expansão do ensino superior pelo interior do país. É precisamente nesse ponto que este artigo se insere, ao

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Roniglese Pereira de Carvalho Tito

estabelecer como objeto o processo de institucionalização do curso superior de História na cidade de Porto Nacional, cidade do antigo Norte Goiano, hoje estado do Tocantins. O período de abrangência retroage ao ano de 1963, quan-do o governo do estado de Goiás criou em lei o referido curso, para funcionar junto à Faculdade de Filosofia do Norte Goiano, e se estende até o momento de sua encampação pela Universidade Federal do Tocantins, em 2002.

Da concepção à efetivação do ensino superior de História no Norte Goiano

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação.3

Em consonância com Benjamin, escavemos os ‘fatos’:Era uma quarta-feira, 4 de setembro de 1963. O Diário Oficial do estado

de Goiás publicava a Lei 4.505, criando a Faculdade de Filosofia do Norte Goiano, na cidade de Porto Nacional. O seu artigo primeiro estabelecia Línguas Modernas, Pedagogia, Matemática, Física, Geografia e História como as áreas que deveriam compor o quadro de cursos da instituição. O segundo ressaltava que o Poder Executivo tomaria as medidas necessárias para a implantação da Faculdade, e o terceiro autorizava o provimento das operações de créditos, fazendo constar dotação orçamentária para os anos subsequentes. Assinaram a Lei o então governador, Mauro Borges Teixeira, e o secretário de Educação e Cultura, Ruy Rodrigues da Silva.

Parecia ser a certidão de nascimento do ensino superior de História para atender as demandas de uma porção significativa do centro-norte brasileiro. A iniciativa foi recebida com grande alvoroço e entusiasmo pela população da cidade de Porto Nacional, município localizado a aproximadamente 800 qui-lômetros de Goiânia ou Brasília. Até então, em razão das distâncias, o acesso de alguém que residisse naquela região a um curso superior exigia alto inves-timento financeiro, privilégio restrito a algumas poucas famílias mais abastadas.

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Desafios e experiências do ensino superior no interior do Brasil

Contudo, a Lei 4.505 não sairia do papel naquela época.Antes de verificar o porquê do adiamento desse projeto político, ideal de

professores e sonho de uma população, faz-se necessário retomar alguns pon-tos importantes do contexto que motivou a promulgação da lei. Novamente invocando a metáfora elaborada por Benjamin, espalhemos os ‘fatos’ como se revolve a terra, numa tentativa de aproximação a um passado aparentemente soterrado.

Primeiro, cumpre destacar que Goiás vivenciava, naquele início dos anos 1960, uma série de transformações de ordem econômica e social que favore-ceram o processo de implantação do ensino superior no estado, especialmente aqueles voltados para a formação docente. As terras goianas começavam a ser vistas como a nova fronteira agrícola do país e um importante celeiro da pe-cuária nacional. Ao mesmo tempo, essa condição exigia uma infraestrutura que permitisse escoar a produção para os grandes centros consumidores, no-tadamente os estados das regiões Sul e Sudeste. Também se procuravam for-mas de integração aos portos, visando à exportação para a Europa, os Estados Unidos e a Ásia: novas estradas foram abertas, rodovias pavimentadas, pontes e aeroportos construídos. Para garantir a execução desse projeto, ao mesmo tempo em que Goiás ganhava evidência no cenário brasileiro, sua máquina estatal demandava o desenvolvimento de estratégias que promovessem a pro-fissionalização do seu corpo técnico-burocrático. Esses aspectos, associados à transferência da Capital Federal (1960), criaram as condições políticas que favoreceram a consolidação do ensino superior na região, com destaque para a Universidade de Brasília (UnB), em 1961, e para a Universidade Federal de Goiás (UFG), um ano antes. Nelas foram implantados cursos para a formação de mão de obra técnica especializada tanto nas áreas de engenharia, medicina e direito, quanto nas áreas humanas e sociais.

Em segundo lugar, é importante também destacar que é nessa atmosfera que, em 1961, Mauro Borges Teixeira assume o governo de Goiás pelo Partido Social Democrático (PSD). Filho do fundador de Goiânia, Pedro Ludovico Teixeira, Mauro Borges se inspirou na administração orientada pelo planeja-mento de caráter desenvolvimentista colocado em prática por Juscelino Kubitschek. Também incorporou bandeiras das chamadas ‘reformas de base’ propostas pelos movimentos sociais desde a década anterior: a reforma agrária,

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a universalização dos serviços de saúde e a erradicação do analfabetismo por meio da educação popular, entre outras.

Para compor seu grupo de Assessoramento Direto na Secretaria Estadual de Educação, Mauro Borges convidou o ex-padre Ruy Rodrigues da Silva, edu-cador influenciado pelo pensamento de importantes intelectuais da sua época, como se percebe em seus livros de memórias que revelam, em prosa e verso, a síntese dos seus ideais de educação, em grande medida coerentes com os de um dos seus grandes inspiradores, Paulo Freire: “A minha filosofia sempre foi a de que não basta você ler o mundo, conhecer o mundo ... Você tem que ter capacidade de transformar esse mundo”, escreveu em certo momento.4

Considerado profundo conhecedor da realidade educacional de Goiás, ao assumir a pasta, em 1962, Ruy Rodrigues qualificou de ‘quantitativamente insuficiente’ e ‘pedagogicamente desastroso’ o sistema de ensino:

a situação do ensino elementar em Goiás era de uma precariedade horrível. Basta julgar pelo seguinte: de 450 mil crianças na idade de escolarização, apenas 162 mil se achavam inscritas em escolas públicas e privadas, sob o regime multisse-riado. Apenas 5% dessas crianças chegavam ao quarto ano da escolaridade obri-gatória. Dentre os professores, 73% não tinham cursado sequer a escola normal e nem recebido uma formação pedagógica adequada. Não era raro encontrar, entre eles, alguns que ignorassem até mesmo os rudimentos da cultura geral, indispen-sáveis ao exercício da função. Como se admirar, então, que 68% da população fosse analfabeta?5

A falta de qualificação do corpo docente das escolas de ensino básico consistia no principal problema a ser enfrentado pela gestão de Ruy Rodrigues. Nesse aspecto, entre as principais medidas adotadas destacaram-se as iniciati-vas que podem ser consideradas avançadas para a época, embora os termos não sejam necessariamente os de hoje. Investiu na formação continuada de professores com a criação dos Centros de Aperfeiçoamento de Ensino, que ofereceram capacitação teórica e prática aos profissionais do Magistério, e im-plantou Delegacias Regionais de Educação e de Cultura que visavam descen-tralizar as decisões administrativas e pedagógicas, reduzindo as grandes dis-tâncias entre os municípios do interior e a capital. Essa aproximação permitiu a presença frequente dos técnicos da Secretaria nas escolas, com o objetivo de

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orientar e controlar o processo educativo, promover os ‘ajustes administrati-vos’ e apoiar a elaboração de planos políticos-pedagógicos.6

Graças a essas medidas, Ruy Rodrigues recorda que o ensino teve uma melhoria na qualidade e se expandiu quantitativamente, atingindo as camadas da população até então excluídas. Em termos numéricos, ressalta que:

o balanço de nosso primeiro ano no setor educacional, malgrado todas as limita-ções, fora positivo e encorajador. Tínhamos construído e equipado cem novas salas de aula; distribuído 8 mil carteiras novas; organizado estágios de aperfeiço-amento para todos os diretores das escolas de primeiro grau do estado; oferecido sessões de reciclagem de 45 dias, durante o verão, em 31 cidades espalhadas nas várias regiões. Dessas ações, conduzidas por mais de 1.500 especialistas, partici-param 2.250 professoras não diplomadas. A despeito da realização desse progra-ma, o primeiro executado no Brasil, continuávamos longe do objetivo visado. Basta lembrar que a equipe de pedagogos encarregada do enquadramento dos cursos foi apoiada por técnicos do serviço de higiene e de saúde, de agricultura e de engenharia rural, que faziam exposições relativas às suas áreas respectivas. (Silva, 2009, p.44)

Nessa fala evidencia-se a precariedade da formação docente na região, mesmo com as medidas paliativas adotadas. Segundo Ruy Rodrigues, a carên-cia de professores na época era tão grande que se fazia necessária a adoção de novos modelos de formação inicial, uma vez que as Escolas Normais não es-tavam conseguindo atender a demanda no estado. Constatava-se que essas Escolas tradicionalmente educavam as jovens de classe média ou rica, as quais não sentiam nenhum atrativo particular pela carreira de magistério, mal re-munerada e pouco gratificante. A situação se agravava quando era necessário ensinar em escolas periféricas ou rurais, muitas vezes mal equipadas, como as de Goiás na época.

Diante disso, a Secretaria de Educação decidiu criar o Centro de Formação de Professores, que oferecia uma escolarização em 3 anos, em regime de inter-nato e em nível equivalente ao das Escolas Normais. Os alunos eram bolsistas do estado, mediante o compromisso de ensinar por certo período na rede pública. Durante o curso eram submetidos a orientação psicopedagógica cons-tante, enriquecida por estágios práticos obrigatórios. Esse modelo chegou a qualificar duzentos novos professores por ano.

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Alinhada ao plano de desenvolvimento regional proposto por Mauro Borges, essa experiência foi decisiva para que a Secretaria de Educação de Goiás postulasse a criação de Faculdades estaduais no interior. É precisamente como parte integrante desse projeto político, graças à visão educacional de Ruy Rodrigues da Silva, conhecedor das implicações que a ausência de professores habilitados provocava sobre a baixa qualidade do ensino, e diante da inexis-tência de instituições de ensino superior naquela região do Brasil, que se pro-mulga a lei de criação da Faculdade de Filosofia do Norte Goiano (Fafing), em 1963, para ser instalada na cidade de Porto Nacional.

Esses são, certamente, alguns dos motivos que levaram à promulgação da Lei 4.505, que deveria ser a certidão de nascimento da formação de professores de História com nível superior naquela região do país.

O impedimento desse nascimento veio em 1964. A implantação da Fafing não ocorreu, inicialmente sob a alegação de que a região não dispunha de profissionais para trabalhar na nova Faculdade.7 Ao longo da década, as me-didas econômicas adotadas pelo governo federal, que em linhas gerais deso-brigavam o Estado do financiamento do ensino, também se constituíram em entrave. A própria Constituição de 1967, ao não vincular a porcentagem de verbas destinadas à educação ao Orçamento Geral da União, possibilitou que, a partir de então, o Estado passasse a diminuir, sucessivamente, os investimen-tos no setor educacional.8

Corroborou para o adiamento, ainda, aquilo que Germano (1993) deno-mina de “ataque central à formação de professores” durante o Regime Militar. No início de 1969, amparado pelo Ato Institucional nº 5, o governo federal, por meio do Decreto-Lei nº 547, autorizou a organização e o funcionamento de cursos profissionais de curta duração, admitindo habilitações intermediá-rias em nível superior para atender as ‘carências do mercado’. Naquele mo-mento, passou-se a considerar desnecessária a formação por meio das licen-ciaturas plenas, provocando uma acelerada ‘desqualificação estratégica’ dos professores. É importante registrar, ainda, que a Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, que estabelecia as diretrizes e bases para o ensino básico, reorientou o 2º grau para a habilitação profissional. Ao dar ênfase à profissionalização técnica em nível médio, as disciplinas das áreas específicas adquiriram centra-lidade no currículo em detrimento das de formação geral, em especial História,

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Sociologia e Filosofia. Com a redução de horas/aula menos professores foram necessários e, obviamente, menos cursos de formação.9

Não se pode desconsiderar a importância dessas medidas referentes ao fi-nanciamento da educação e da nova legislação para a formação docente, mas é possível afirmar que a explicação decisiva para a não implantação do ensino superior de História naquele interior do Brasil, à época, é encontrada na conjun-tura política e no perfil de parte da equipe técnica do governo de Goiás, em 1964.

Vale lembrar que, mesmo tendo apoiado o Golpe Militar de 31 de março, o então governador de Goiás, Mauro Borges, não demorou a ser acusado de manter um governo com tendências comunistas e subversivas, contrários às orientações da ‘Revolução’, e por ter participado da chamada Campanha da Legalidade, liderada pelo governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, que visara garantir a posse de João Goulart, em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros.10 Em 1964, o governo federal tentou intervir na administração de Goiás com a exigência de que Mauro Borges substituísse três de seus secretá-rios acusados de serem comunistas, entre eles Ruy Rodrigues, o qual compu-nha um grupo de assessores de Borges considerados promotores de ações contrárias aos militares, principalmente no campo da educação e da reforma agrária. Inicialmente o pedido não foi atendido, o que levou o próprio Mauro Borges a passar por um processo incriminatório com a instauração de um Inquérito Policial Militar (IPM), instrumento largamente utilizado após o Ato Institucional nº 1. Não obtendo resultado direto com o IPM, a chamada ‘linha dura’ do regime solicitou ao presidente Castello Branco que depusesse Mauro Borges. Após aprovação na Câmara, foi assinado o Decreto de Intervenção Federal em Goiás, cumprido no dia 26 de novembro de 1964.11

Esse movimento que resultou na queda do governador Mauro Borges Teixeira levou à destituição de Ruy Rodrigues do cargo de secretário de Educação, inviabilizando quaisquer de suas proposições. O próprio Ruy afirma que o impacto produzido por suas iniciativas e o eco provocado na imprensa o ajudariam a ganhar preciosos aliados, em âmbito estadual e nacional, entre os quais menciona as figuras de Anísio Teixeira, Paulo de Tarso e Darcy Ribeiro, além do reconhecimento da Unicef.

Mas foi precisamente por sua perspectiva de formar cidadãos críticos, sustentados em processos educacionais formais, que Ruy Rodrigues sofreu aquilo que para ele foi a sua maior derrota, como se observa em outra

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passagem de um dos seus livros: “eu tentei fazer uma revolução no ensino, razão pela qual fui interrogado, caçado e refugiado político” (Silva, 2009, p.44). De fato, no mesmo ano em que deveria ser implantada a Fafing e, consequen-temente, começaria a funcionar o primeiro curso superior de História naquela região do país, Ruy Rodrigues sofreria o destino de tantos outros brasileiros que ousaram praticar atividades contrárias à ideologia do regime que se ins-taurou com a chegada dos militares ao poder: teve de se autoexilar, deixando o país em direção a Europa, disfarçado de secretário de dom Fernando Gomes, bispo brasileiro que participaria de uma das seções do Concílio Vaticano II, em Roma, ainda em 1964.12

Apenas no contexto da redemocratização do país, duas décadas depois de sua concepção inicial, o projeto da Fafing ganharia novamente fôlego.

Vale lembrar que a década de 1980 é recorrentemente tratada, no Brasil, como um período de reorientação das políticas para o setor educacional, na direção de um modelo que atendesse a nova ordem do mundo globalizado e competitivo e suas respectivas demandas por qualificações. Também Goiás vivenciava um significativo processo de expansão das Instituições de Ensino Superior, sobretudo na sua parte sul, de maior poder aquisitivo, onde para garantir as estratégias de financiamento, os municípios criaram fundações que, embora públicas, tinham o atributo jurídico de cobrar mensalidades. No dis-curso de seus dirigentes, as faculdades municipais convertiam-se em mecanis-mos de desenvolvimento e atração de investimentos, ampliação da oferta de serviços e melhoria da qualidade de vida de sua população.13

Paralelamente, a Secretaria de Educação de Goiás pretendia criar três fa-culdades destinadas à formação de professores na região centro-norte do es-tado. Duas primeiras foram definidas para implantação nas cidades de Porangatu e Araguaína, o que levou a população de Porto Nacional a exigir a efetivação da Fafing, criada em lei desde 1963. Reativar a nomenclatura Faculdade de Filosofia do Norte Goiano significava a manutenção dos ideais de educação de Ruy Rodrigues, de se ter cursos voltados para a formação de professores na região.

Enquanto o governo estadual se ocupava com os procedimentos legais, a Prefeitura de Porto Nacional deparava com o primeiro grande desafio para a implantação da Faculdade: encontrar uma estrutura física. A missão não era fácil, pois, além das salas de aula para o primeiro ano de funcionamento, seria

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necessário considerar que a proposta previa a realização de vestibulares anuais, exigindo a expansão do espaço para os anos seguintes. O local escolhido foi o Colégio Sagrado Coração de Jesus, que possuía uma tradição de quase um século na área de formação de professores de níveis elementares. Além de um significativo acervo bibliotecário, o Colégio contava com um corpo docente reconhecidamente experiente na formação de profissionais do magistério.

A efetivação se deu em 1985. Uma faixa de tecido com a inscrição “Faculdade de Filosofia do Norte Goiano” simbolizava o caráter de improviso, dificuldades e superação em que o curso de História nasceu. Com duas décadas de atraso, torna-va-se possível a realização do primeiro vestibular. Em reportagem do jornal O Estado do Tocantins a manchete destacava: “Fafing se prepara para o seu primeiro vestibular: expectativa da Secretaria de Educação é positiva”. Ressaltava, ainda, trechos de entrevista com um dos vestibulandos, o qual afirmava ser ‘histórico’ aquele momento, pois “os nortistas não precisavam mais ir para Goiânia para ter um diploma de curso superior”.14

Recursos humanos e orientações curriculares na formação do profissional de História

Em meados da década de 1980, vivia-se um momento de expectativas para novos rumos do ensino da disciplina e da profissionalização dos historiadores, motivando a realização de eventos nas principais Instituições de Ensino Superior do país.15 Nessas oportunidades questionaram-se os conhecimentos escolares, tanto teóricos quanto metodológicos, e exigiu-se a abertura de espa-ços para a proposição e o debate de reformulações nos currículos educacionais herdados da ditadura, numa tentativa de superá-los.

Esse cenário favorável aos debates e às proposições esteve, contudo, em descompasso com parte da legislação sobre a organização e o funcionamento do ensino superior em vigência, elaborada e instituída ainda sob a orientação das políticas do Regime Militar. É nessa interface que o primeiro vestibular realizado pela Fafing previa o ingresso dos alunos no curso de Estudos Sociais (ES), o qual, segundo a autorização de funcionamento, consistiria em tronco comum de História e Geografia. Por esse modelo, um estudante que desejasse poderia se formar em Estudos Sociais em 2 anos, para lecionar da 1º à 8ª série, ou cursar mais 2 anos, em uma grade curricular complementar de História ou

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Geografia, e obter a titulação de Licenciatura Plena em uma dessas duas áreas de conhecimento.

Cabe lembrar que no final dos anos 1960 e começo dos 1970 ocorreram grandes mudanças na legislação educacional, como a introdução da disciplina de Estudos Sociais e a supressão do ensino de História no currículo do 1º Grau.16 Contudo, apesar da inflexão no mercado de trabalho, os cursos supe-riores de História continuaram existindo, principalmente nas maiores insti-tuições públicas. Mais ainda, na medida em que os ares da democracia favore-ceram a tomada de fôlego, os profissionais e as entidades representativas passaram a lutar pela progressiva retomada do ensino de História na educação primária e secundária. Em consequência disso, as instituições que ofereciam o curso de Estudos Sociais, sobretudo as particulares, não tardaram a propor formas alternativas ao modelo de formação de professores então vigente, so-licitando o aproveitamento desse curso como tronco comum para a habilitação em História.

A despeito dessas questões, em termos práticos, a carência de professores historiadores durante os 2 primeiros anos exigiu que a Diretoria da Fafing utilizasse a estratégia de concentrar na primeira parte do currículo o maior número de disciplinas que poderiam ser ministradas por pessoas que possuíam outras habilitações, favorecendo o que preconizava a legislação sobre o currí-culo mínimo do curso de Estudos Sociais.17

Essa característica inicial do curso de História da Fafing trazia dois aspec-tos positivos. O primeiro consiste na disposição das disciplinas ao longo dos 2 anos voltados para a formação em Estudos Sociais, em que os programas da área pedagógica foram intercalados com os conhecimentos da Geografia e da História. Esse desenho rompia com o tradicional modelo em que a formação em conteúdos específicos se dá em momentos separados das práticas de ensi-no.18 Em termos teóricos, percebe-se que o núcleo básico, que constituiu o tronco comum à História e à Geografia, conferiu unicidade em termos de projeto pedagógico da Faculdade, além de possibilitar que um mesmo profes-sor fosse aproveitado nos dois cursos. Isto poderia favorecer a troca de conhe-cimentos e a circulação de informações. O segundo aspecto advém de outra situação característica do momento de implantação da Faculdade, pois na medida em que não havia carga horária suficiente para os professores, a maio-ria deles atuava concomitantemente no ensino superior e no básico. Isso

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poderia contribuir para uma maior aproximação entre o que se ensinava na Faculdade e a realidade que o futuro profissional iria enfrentar na prática.

O curso de licenciatura curta em Estudos Sociais teoricamente poderia favorecer a formação de professores cujos conhecimentos assegurassem a sua ‘competência polivalente’. Mas essa estrutura curricular trazia duas questões complicadas. Primeiro, a perspectiva de uma história linear na qual os conteú-dos estavam distribuídos em uma única disciplina denominada Elementos de História Antiga, Medieval e Moderna, com 60 horas, e em outra chamada Elementos de História Contemporânea e do Brasil, com 120 horas. Segundo, não havia disciplinas teóricas que promovessem embasamentos em relação aos conteúdos, o que limitava muito em termos de docência, seja na História ou na Geografia, independentemente do nível de escolaridade em que os futuros professores fossem atuar.

Contudo, esse currículo não perduraria por muito tempo na Fafing. A sua alteração esteve associada à superação de algumas dificuldades iniciais enfren-tadas pela Faculdade nos seus 2 primeiros anos de funcionamento, sobretudo no que se refere à composição do quadro docente. A partir de 1987 começaram a chegar a Porto Nacional professores com formação específica em História, ainda que apenas em nível de graduação, permitindo que a direção solicitasse junto ao Conselho Estadual de Educação de Goiás modificações na Estrutura Curricular do curso de História, eliminando a opção de formação em Licenciatura curta em Estudos Sociais. O atendimento ao pleito veio por meio da Resolução no 217, que autorizou também mudanças nas disciplinas que antes compunham a parte diversificada.

A nova Estrutura estava em consonância com o currículo dos cursos de História em nível nacional, no qual os 2 primeiros anos eram reservados às disciplinas dos conhecimentos específicos e os últimos anos eram destinados quase que exclusivamente para as da área pedagógica, sobretudo para o ensino de Didática, Prática de Ensino e Psicologia da Educação. O diferencial da Fafing estava na inexistência de uma Faculdade de Educação na sua estrutura, presente na maioria das Universidades brasileiras, possibilitando que a forma-ção se desse integralmente no interior de cada curso. Esse desenho institucio-nal consistiu em um traço particular do curso de História em Porto Nacional, composto por professores que atuavam na parte específica e nas disciplinas

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pedagógicas, promovendo a formação integral do futuro profissional de História.

A eliminação do núcleo básico referente aos Estudos Sociais tornou pos-sível a expansão dos conteúdos programáticos específicos da História. A che-gada dos primeiros historiadores, com efeito, influenciou na melhoria geral da organização das disciplinas. Mas é importante destacar que essa nova compo-sição de professores parece ter dado início, igualmente, ao estabelecimento de um campo marcado pelo prestígio de determinadas disciplinas em detrimento de outras. O exemplo maior fica por conta de História Antiga, História Medieval e História Contemporânea, que passaram para 120 horas cada uma, ao passo que História Moderna ficou com ‘apenas’ 60 horas. Cabe registrar também a permanência da disciplina Geografia e o fato de o primeiro ano ter ficado quase todo dedicado às ‘complementares’ ao ensino de História, nor-malmente justificadas por sua contribuição para formar uma sólida base hu-manista nos discentes, como é o caso da Sociologia e da Filosofia.

Em 1988, mesmo ano em que se formou a primeira turma de História da Fafing, foi criado o estado do Tocantins.19 Um ano depois, o censo educacional revelou um significativo percentual de professores da rede básica de ensino sem curso superior no mais novo estado da Federação.

Foi nesse contexto que aconteceu a segunda reformulação curricular do curso de História em Porto Nacional, inspirada especialmente no currículo da UFG. Essa nova Estrutura se distanciava das duas anteriores (1985 e 1987), caracterizadas por uma orientação essencialmente voltada para a formação de professores, sob a justificativa de “adequação à realidade da instituição” e para “privilegiar com maior carga horária as disciplinas nucleares, específicas do curso”. Por um lado, esse currículo reorientado lançou bases para alicerçar o curso com disciplinas que favoreciam a formação de profissionais mais bem preparados em termos de conhecimentos históricos, mas por outro lado deixou em aberto a problemática que se faria presente nas discussões curriculares durante toda a década de 1990: como conciliar uma formação sólida tanto em conteúdos como nas ferramentas necessárias ao exercício da docência? Em outras palavras, como estruturar no currículo as orientações de um curso vol-tado para o ensino de primeiro e segundo graus e para a pesquisa histórica? Essas indagações seriam o fio condutor das discussões em torno do perfil do

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curso de História durante toda a década de 1990, não apenas em Porto Nacional, mas em todo o país.

Em 1991 a Fafing foi encampada pela Universidade do Tocantins, insti-tuição recém-criada pelo governo estadual. Nesse novo contexto, foram rede-finidos os mecanismos de contratação de novos professores. Se até aquele mo-mento a principal estratégia havia sido arregimentar pessoas que tinham ligação com a cidade, notadamente portuenses que haviam saído para se gra-duar em outros estados, daí em diante passou-se a priorizar a contratação de historiadores que já estivessem, ao menos, ingressados em Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu.20

Contudo, essa qualificação docente também teve um efeito contrário à melhoria do curso, pois em função da instabilidade institucional, vários pro-fessores que concluíam o mestrado acabavam deixando a Universidade, ru-mando para outras regiões do país. Para repor essas vagas continuaram che-gando a Porto Nacional novos professores. Uma comparação do quadro de professores revela que se durante os primeiros anos de funcionamento do curso a Universidade Federal de Goiás consistiu na principal instituição for-madora do quadro docente, o perfil dos mestres que foram chegando no trans-correr da década era notadamente caracterizado por jovens que vinham de diferentes instituições, tais como UFMG, USP, Unicamp, UFRJ e Unesp, pro-curando o Tocantins em busca de uma primeira oportunidade de lecionar no ensino superior.

Esses novos professores historiadores realizaram cursos de graduação em uma mesma época, embora em diferentes instituições: meados dos anos 1980. Além dos significados para a formação política, aquele momento também foi importante quando se considera que a abertura política favoreceu o surgimen-to de um contexto em que o mercado editorial foi significativamente ampliado pelas publicações estrangeiras. Essa situação permitiu a intensificação do pro-cesso de ‘revisionismo historiográfico’ em curso desde o final dos anos 1970, possibilitado pela entrada no Brasil de um número cada vez maior de livros, sobretudo franceses e ingleses, que traziam novas abordagens sobre a história. Esse processo contribuiu em diferentes sentidos para a historiografia brasileira, como se observa na criação da Anpuh, na ampliação dos cursos de pós-gradu-ação, na organização de centros de documentação, na realização de eventos nacionais, nas lutas pela revisão da legislação federal relativa ao ensino de

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história e nas alterações no currículo para expugnar as heranças do período anterior e se adequar às novas mudanças, dando um novo sentido para a for-mação e atuação do historiador no Brasil.

Como momento de rupturas, de transição e permanências em todos os sentidos, o conflito de gerações e filiações teóricas foi algo inerente ao contexto em que foram formados os professores do curso de História em Porto Nacional. Formaram-se em um momento em que na historiografia brasileira as aborda-gens marxistas às vezes associadas à militância política, característica do pe-ríodo ditatorial, dividiram espaço com outras vertentes da história. Por isso, é possível afirmar que os historiadores que tiveram sua formação teórica e aca-dêmica naquela atmosfera gerada entre meados da década de 1980 e início dos anos 1990 vivenciaram um marco para o ensino superior de História e para a historiografia no país. Em decorrência disso, ao chegarem a Porto Nacional, esses jovens traziam em suas bagagens não apenas titulação, mas um conjunto de novos referenciais teóricos, temáticas de pesquisas, abordagens metodoló-gicas e estratégias de ensino.

As ementas e o corpo da bibliografia básica, que foi sendo constituída e reconstituída, sinalizam as concepções de história que orientavam os profes-sores. Suas opções teóricas pareciam extrapolar o sentido de ‘referencial teó-rico’ das dissertações, influenciando nas proposições e redefinições da mode-lagem do curso, transformando o espaço acadêmico com a implantação de núcleos de pesquisas e a inserção de disciplinas optativas ligadas aos seus ob-jetos de pesquisas, com destaque para as questões de gênero, as relações étni-cas, os estudos indígenas e da história do cotidiano. Vários desses docentes, ao chegarem a Porto Nacional, rapidamente identificaram um rico campo de pesquisa praticamente inexplorado, pois o Norte não havia sido suficiente-mente estudado pelos historiadores goianos até 1988, salvo em alguns poucos trabalhos relacionados ao ‘ciclo da mineração’ e à questão do coronelismo, além de pesquisas referentes aos povos indígenas. As conversas com os alunos em sala de aula, sobre temas relacionados à criação do Tocantins, estimulavam os professores a tomar problemáticas locais como objetos de estudo e a iden-tificar alguns discentes interessados pela pesquisa histórica. Esse aspecto se associava à demanda social existente em torno da elaboração de uma história regional colocada pela mídia como necessária à construção da identidade dos tocantinenses.

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Por isso, em 1997 os professores elaboraram uma nova Proposta Pedagógica para o curso, que trouxe pela primeira vez a intenção oficial de implementação do bacharelado. Ora, se as Estruturas Curriculares formuladas a partir de 1987 foram sendo aperfeiçoadas com componentes que associavam formação peda-gógica e orientação para a pesquisa, por que haveria então a necessidade de se promover a diferenciação entre bacharelado e licenciatura? Um olhar sobre o cenário nacional da época permite inferir que essa proposta era uma tentativa local de se antecipar às exigências da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9.394/96 (LDBEN) e aos Pareceres do Conselho Nacional de Educação, que orientaram os cursos de licenciatura a se voltarem para a efetiva formação de professores, cujas ‘competências e habilidades’ deveriam ser alicerçadas em conhecimentos quase que exclusivos da área pedagógica.

Apesar dos argumentos apresentados, sinalizando que o campo de traba-lho para o profissional de história não se limitava às atividades de docência, a proposição do bacharelado não foi aceita pela direção da Universidade do Tocantins. A alternativa encontrada pelos professores, mais uma vez, foi a manutenção de um currículo misto, envolvendo o preparo dos alunos para a docência e para a pesquisa, o que culminou com a implantação em 1998 de uma Estrutura semestral, em substituição ao antigo regime anual.

Mas as pressões institucionais sobre o curso de História continuaram ocorrendo. O dispositivo da LDBEN de 1996 que estabeleceu, em seu art. 62, que “a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação...” provocou, em nível nacional, uma grande demanda por formação de professores. Instigadas pelos governos, muitas ins-tituições de ensino superior criaram diversos cursos a distância, semipresen-ciais ou de curta duração. Nessas condições, possibilitar aos professores ferra-mentas para a pesquisa tornou-se uma questão secundária, na medida em que uma boa formação em conteúdos e metodologias já seria o suficiente possível. No âmbito regional foi criado o Programa de Formação de Professores em Regime Especial, parceria entre a Universidade do Tocantins e a Secretaria de Educação e Cultura do Estado, que exigiu do curso de História a elaboração de um novo currículo.

Nessa nova organização Sociologia e Filosofia ganharam o adjetivo ‘da Educação’, e Teoria do Currículo apareceu como novidade, justificada pelo

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imperativo de que os alunos deveriam conhecer as questões que envolvem o complexo processo de seleção dos saberes a serem ensinados. Associada a essa disciplina, a de Tecnologias Educacionais propunha desenvolver conteúdos relacionados aos recursos tecnológicos e sua relação com a aprendizagem. Até o quinto período o docente especialista deveria trabalhar as noções gerais e teóricas sobre o ensino de história na Educação Básica, e a partir do sexto a disciplina deveria ser ministrada por um pedagogo, visando introduzir o aluno nas atividades de estágio propriamente ditas.

Os Tópicos em História apareceram sob a justificativa de associar o con-teúdo histórico constante na Estrutura Curricular às temáticas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do Ensino Fundamental e Médio. A título de exemplo, citam-se as disciplinas Metodologia do Ensino em História, História da Arte, História Indígena, História da Escravidão na América, História e Literatura e História e Cinema, além de Ciências Políticas. Na mesma direção, os Tópicos Interdisciplinares deveriam ser orientados por temas e/ou conteú-dos que possibilitassem ao discente a construção e socialização dos conheci-mentos de forma holística. Como exemplo, a Proposta Pedagógica do curso de Regime Especial cita as possibilidades de se trabalhar conjuntamente Geo-História, Cartografia, Ética e Cidadania, Ecologia e Meio Ambiente, Educação Sexual, Religião e Religiosidades.

Essa Estrutura Curricular introduziu, pela primeira vez, a disciplina Historiografia do Brasil, com uma abordagem sobre os marcos, as categorias de análises, o instrumental teórico e a contextualização dos quadros da produ-ção do conhecimento histórico do Brasil. Ao mesmo tempo, houve a substi-tuição na nomenclatura de História Regional por História do Tocantins, numa clara manifestação de que fossem privilegiadas, na formação dos alunos, algu-mas temáticas sobre o passado do antigo Norte Goiano.

Os resultados numéricos desse Programa de Formação em Regime Especial foram realmente expressivos e certamente contribuíram decisivamen-te para que o Tocantins superasse o alto índice de professores sem habilitação mínima lecionando na educação básica. Sem uma política dessa natureza, pro-vavelmente seriam necessárias décadas para formar tantos professores. Era a realização do sonho de Ruy Rodrigues da Silva, mentor da Fafing.

Contudo, ainda não é possível avaliar os impactos dessa orientação peda-gógica nas experiências construídas ao longo dos anos 1990, quando jovens

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Desafios e experiências do ensino superior no interior do Brasil

professores do curso de História, em Porto Nacional, procuraram construir um currículo que formasse o profissional de história integralmente.

Considerações finais

A criação da Faculdade de Filosofia do Norte Goiano, na cidade de Porto Nacional, teve um grande impacto no ensino de História na região central do Brasil, ainda nos anos 1980. O perfil do seu alunado sobressaía-se como uma das principais características da identidade da Instituição. Vários desses alunos tinham de percorrer distâncias significativas, em meios de transporte nada adequados, para poder chegar todos os dias a tempo de assistir às aulas. Outros eram profissionais da educação que havia anos se encontravam no exercício da docência, para os quais o diploma de nível superior consistia na realização de um sonho – distante até então, para muitos. Acrescente-se a possibilidade de conseguirem uma aposentadoria com remuneração mais digna.

Além disso, a despeito das adversidades, as estratégias criadas pelos pro-fessores possibilitaram que a década de 1990 fosse marcada por avanços no interior do curso de História, quando encampado pela Universidade do Tocantins. Embora não se tenha conseguido estabelecer, por longo período, um padrão que equilibrasse conhecimentos históricos e pedagógicos, as expe-riências se mostraram válidas quando comparadas com as tensões existentes no debate nacional em torno do ensino de história. Para tanto, além dos esfor-ços empreendidos pelos pioneiros, contribuíram sobremaneira a chegada de um conjunto de novos professores, os quais buscaram introduzir no curso novas concepções teóricas, possibilitando a formação de um incipiente campo de pesquisa, e o contato dos estudantes com novas temáticas e abordagens teóricas que diversificaram o campo de estudo.

O Tocantins deixou de ser o único estado do Brasil que não possuía uma instituição federal de ensino superior em 23 de outubro de 2000, quando o Ministério da Educação criou a Universidade Federal do Tocantins (UFT). Essa nova instituição recebeu, a partir de junho de 2002, a transferência de parte dos bens patrimoniais da Universidade do Tocantins, além dos alunos e cursos regulares, entre eles o de História, que vivenciaria mais de perto as perspectivas e os dilemas dos cursos congêneres em nível nacional.

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3198

Roniglese Pereira de Carvalho Tito

NOTAS

1 FERREIRA, Marieta de Moraes. Notas sobre a institucionalização dos cursos universitá-rios de História no Rio de Janeiro. In: SALGADO, Manoel (Org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p.145-151.2 ROIZ, Diogo da Silva. A institucionalização do ensino universitário de história na faculda-de de filosofia, ciências e letras da Universidade de São Paulo, 1934-1956. Dissertação (Mes-trado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista. Franca (SP), 2004; além dessa Dissertação, cabe destacar as referências encontra-das em CAPELATO, Maria Helena Rolim et al. Escola Uspiana de História. In: Revista de Estudos Avançados, São Paulo: Instituto de Estudos Avançados (IEA), textos online, 2005; EVANGELISTA, O. Formar o mestre na universidade: a experiência paulista nos anos de 1930. Educ. Pesqui., São Paulo, v.27, n.2, dez. 2001.3 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. v.2. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1995.4 Natural de Porto Nacional, Ruy Rodrigues da Silva formou-se em Filosofia, em Belo Ho-rizonte, e em Teologia, no Rio de Janeiro, onde se ordenou padre na década de 1950. Ao deixar as atividades sacerdotais mudou-se no início da década de 1960 para Goiânia, onde passou a lecionar na UFG.5 SILVA, Ruy Rodrigues. Exercícios de admiração: reflexões sobre pessoas, poder, cultura e cidades. Goiânia: Kelps, 2009. p.43.6 Goiás possuía na época uma extensão territorial bastante significativa. Segundo Ruy Ro-drigues, não raras vezes essa fiscalização por parte da Secretaria tinha de ser realizada com viagens em aviões, em função das distâncias e da precariedade das estradas.7 Cf. SANTOS, Jocyléia Santana dos. O sonho de uma geração: movimento estudantil em Goiás e Tocantins. Goiânia: UCG, 2007.8 A participação do Ministério da Educação e Cultura, que era de 10,6% em 1965, decres-ceu para 4,3% em 1975 e manteve-se na média de 5,5% até 1983. Contraditoriamente, essa redução ocorria precisamente em um momento no qual a Reforma Universitária de 1968 preconizava o aumento de matrículas no ensino superior. GERMANO, José Willington. Estado militar e educação no Brasil (1964-1985). São Paulo: Cortez, 1993.9 TANURI, Leonor Maria. História da formação de professores. Revista Brasileira de Edu-cação, São Paulo: Anped, n.14, p.61-88, maio-ago. 2000.10 TEIXEIRA, Maria Dulce Loyola. Mauro Borges e a crise político-militar de 1961 em Goiás: movimento da legalidade. Brasília: Ed. Senado Federal, 1994.11 SALLES, Antônio Pinheiro. A Ditadura Militar em Goiás. Goiânia: Kelps, 2008.12 O seu exílio durou 25 anos, morando a maior parte do tempo em Paris, onde também se formou em Sociologia. Ao retornar ao Brasil, após a Lei de Anistia, voltou para Porto Na-cional. Após a criação do estado de Tocantins, foi secretário da Educação e secretário ex-

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Desafios e experiências do ensino superior no interior do Brasil

traordinário da Ciência e Tecnologia. Em 1999, foi nomeado Reitor da Universidade do Tocantins.13 CASSIMIRO, Maria do Rosário; GONÇALVES, Oliveira Leite. Rumos da universidade brasileira. Goiânia: UFG, 1986. Cf. BRASIL. Ministério da Educação. Expansão do ensino superior em Goiás. Goiânia: Demec-GO,1986.14 FAFING se prepara para o seu primeiro vestibular: expectativa da Secretaria de Educa-ção é positiva. O Estado do Tocantins, 5 a 10 abr. 1985.15 Em 1982 foi realizado o Primeiro Encontro Perspectivas do Ensino de História, na USP, com a presença de pesquisadores e professores do ensino de 1º e 2º Graus. A partir dele foram criados outros eventos voltados para essa temática, como os Encontros de Pesquisa-dores do Ensino de História. Cf. CERRI, Luis Fernando. Ensino da História: fronteiras interdisciplinares, avanços e problemas. Caderno de História, Uberlândia (MG), v.1, n.12/13, p.7-21, 2004/2005.16 A criação dos cursos de Estudos Sociais ocorreu, sobretudo, nas faculdades privadas. Embora isso não tenha significado o fim dos cursos de História nas Universidades, egres-sos de ambos os cursos tiveram de concorrer às mesmas vagas oferecidas para a docência entre a 5ª e a 8ª séries. A partir de 1976, no entanto, com a tentativa oficial de se restringir o ensino dessas séries somente para os oriundos das licenciaturas curtas em Estudos So-ciais, passou a haver uma mobilização efetiva dos profissionais de História na defesa do seu mercado de trabalho.17 O currículo mínimo do curso de ES havia sido estabelecido pelo Parecer do Conselho Federal de Educação 106/66, que definia como disciplinas obrigatórias: História: Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea, do Brasil (incluindo Organização Política e Social do Brasil); Geografia: elementos da Geografia Física, Geografia Humana e Geografia do Brasil, e Fundamentos das Ciências Sociais.18 Cabe destacar que o modelo que historicamente predominou nas Universidades brasilei-ras foi o que se iniciou nos anos 1930 na USP, onde as Faculdades de Educação e de Filo-sofia atuavam separadamente. Nesse caso, a formação específica oferecida pela Faculdade de Filosofia precisava ser complementada com as disciplinas do curso de licenciatura, mi-nistradas pela Faculdade de Educação.19 O Estado do Tocantins foi criado pela Constituição Federal de 1988, que desmembrou as regiões norte e sul de Goiás. Pela nova divisão territorial o antigo Norte Goiano passou a se chamar Tocantins.20 Além das iniciativas individuais que cada professor empreendeu para realizar seus cur-sos de mestrado ou doutorado, organizou-se, pelo que se tem registrado, o primeiro Proje-to de Mestrado Interinstitucional no Brasil, entre a Universidade do Tocantins e a Univer-sidade Federal de Pernambuco, com a participação do CNPq.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola

e as aprendizagens para a vidaUndisciplined knowledge: the contents

of history in school and learnings for life

sandra regina Ferreira de oliveira*

ResumoComo ensinar História em uma sala de aula de alunos repetentes com muitos, muitos problemas? Investigamos como potencializar o processo de ensino e aprendizagem desses alunos. O cami-nho metodológico pautou-se em ações nas quais os alunos puderam se reco-nhecer como sujeitos, reconhecer o ou-tro e se reconhecer no outro. Utilizamos técnicas de filmagem, fotografia, auto-fotografia e rodas de discussões. O obje-tivo foi construir um ambiente que pro-piciasse o desenvolvimento de noções de identidade e alteridade. Os resulta-dos alcançados comprovaram em parte nossas hipóteses iniciais, mas também indicaram novas perspectivas e desafios. Este artigo é parte das ações do Projeto Pibid-Pedagogia da UEL, e conta com o apoio financeiro da Capes.Palavras-chave: ensino de História; identidade; alteridade.

AbstractHow does one teach History in a class of failing students with many, many pro-blems? We investigated how to enhance these students´ teaching and learning processes. The methodology was based on actions in which the students could recognize themselves as individuals, re-cognize each other and recognize them-selves on the other. We used filming, photographs, projections and collective discussions as techniques. The goal was to build an environment which would provide the development of notions of identity and otherness. The results achieved partially confirmed our initial hypotheses, but also showed new pers-pectives and challenges. This article is part of actions of Pibid Project-Pedago-gy of UEL, and relies on the financial support of Capes.Keywords: teaching of History; identity; otherness.

* Centro de Comunicação, Educação e Artes, Departamento de Educação, Universidade Estadual de Londrina. Rodovia Celso Garcia Cid, PR 445, km 380, Campus Universitário. Caixa Postal 10011. 86057-970 Londrina – PR – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 201-216 - 2013

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3202

A frase “É preciso saber viver”, muito além de um refrão de música, revela uma complexidade que enfraquece o anúncio de qualquer outra ideia impor-tante. Uma frase composta por verbos que nos desafiam a pensar sobre nossa constituição como seres humanos e a necessidade que temos em aprender saberes que nos propiciem viver em sociedade.

A escola, ou, mais precisamente, a sala de aula, foi compreendida neste texto com base no princípio anunciado logo no início: um lugar como tantos outros, de aprendizagem de saberes necessários para a vida. Porém, a comple-xidade que se encerra no que definimos por ‘vida’ não se encaixa na forma pela qual trabalhamos com os saberes na escola.

Ou, dito de outra forma: nos saberes escolares, muitas vezes, não há es-paço para a vida. Apropriando-nos das reflexões de Pineau e Le Grand1 sobre histórias de vida e aproximando-as de nosso objeto de discussão (a escola), perguntamo-nos: o fato de considerar a vida em sua totalidade não vai de encontro ao paradigma disciplinar que recorta essa vida em pedaços para compreendê-la?

O obstáculo que se coloca para professores, formadores de professores e pesquisadores, ao assumir a escola como lugar de aprendizagem para a vida e sobre a vida, é vencer a ideia de que tal posição afasta a escola de sua função como lugar de saberes científicos, “por isso, torna-se problemática a presença semiclandestina, não apenas dessa noção, mas, sobretudo, dessas práticas in-disciplinadas” (Pineau; Le Grand, 2010, p.86).

Esse desafio começa a ser enfrentado ao assumirmos dois argumentos: primeiro, que o conhecimento científico também compõe o que denominamos ‘vida’ e, desapegado da sua relação com a busca dos seres humanos por ‘apren-der a viver’, torna-se estéril e sem significado para ser ensinado na escola. Em segundo lugar, é preciso assumir que, na escola mais do que em qualquer outro espaço, interagem diferentes tipos de conhecimentos que compõem a ‘vida’, e essa situação é muito salutar para o processo de aprendizagem de qualquer conhecimento científico.

Forquin considera a escola inserida em um determinado contexto cultural e social, que dialoga com as demandas desse mundo quanto aos saberes a se-rem trabalhados. Esse autor adverte, porém, que a escola “não pode tampouco estar completamente a reboque desta demanda, nem se regular por ela, seguin-do mimeticamente todas as suas expressões, todas as suas contradições e todas

Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola e as aprendizagens para a vida

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as suas metamorfoses”.2 Estaríamos à frente de uma questão paradoxal? Como aliar o ensino de conhecimentos científicos com a aprendizagem de saberes necessários para a vida?

A resposta que conseguimos construir no desenvolvimento do projeto discutido neste texto transita por entender os problemas cotidianos como ele-mentos propulsores de uma prática pedagógica voltada para resolução de pro-blemas, de forma tal que as reflexões atinjam patamares diferenciados quanto ao uso do conhecimento. Trata-se de entender a escola como lugar no qual se faz possível obter

respostas a questões que não seriam jamais colocadas em outros lugares. Aqui a herança da experiência humana é comunicada sob a forma mais universal possí-vel, isto é, também a menos ‘concreta’, a menos pertinente em relação às interro-gações pontuais, aleatórias ou rotineiras suscitadas pelas situações triviais da vi-da. (Forquin, 1993, p.169)

São muitos os problemas, questões ou indagações que podem ser coloca-dos em análise no espaço escolar. Alguns advindos do desejo do professor em propor situações desafiadoras, instigantes e capazes de mobilizar os alunos na busca dos saberes necessários ao processo de solução dos problemas. Trata-se, nesse caso, de problemas planejados com intuito pedagógico de potencializar o processo de ensino e de aprendizagem dos conteúdos elencados como im-portantes para serem ensinados na escola. Na maioria das vezes, conteúdos referendados pela tradição curricular.

A relação entre resolução de problemas e aprendizagem é postulada por diversos autores, dentre os quais destacamos Jean Piaget.3 Para esse autor, o sujeito frente a uma situação-problema, ou seja, uma situação que não é resol-vida por meio dos conhecimentos que já possui, busca outros saberes com o intuito de ultrapassar a barreira da não possibilidade. Aliamo-nos àqueles que defendem um ensino, em qualquer área de conhecimento, pautado no espírito investigativo, porque aprender é estabelecer relações entre informações, pro-duzindo conhecimento no intento de solucionar problemas de diferentes tipologias.

Na esteira dessa definição, entende-se que ensinar algo na escola é propor problemas, gerar demandas que precisam ser resolvidas com base em deter-minados saberes, com ênfase progressiva na utilização do saber científico. No

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3204

decorrer de nossas vidas, dentro e fora da escola, as não possibilidades se apre-sentam das mais variadas formas e não podem ser agrupadas em fáceis ou difíceis. Tornar possível o que em algum momento nos é impossível é o grande desafio e força motriz na produção do conhecimento.

As situações-problema planejadas são, portanto, estratégias pedagógicas importantes, e revestem de significância o ensino e a aprendizagem de muitos conteúdos. Há, entretanto, outra tipologia de problemas no cotidiano escolar que, geralmente, são compreendidos como empecilhos para o trabalho do pro-fessor e, consequentemente, apontados como justificativa para um baixo nível de aprendizagem por parte dos alunos.

Neste texto, dedicamo-nos a analisar os contrastes e nuanças de uma sala de aula com muitos problemas, e acompanhar as estratégias desenvolvidas por acadêmicas de Pedagogia no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid).4 A ideia inicial era trabalhar com a temática “Patrimônio Histórico” junto a turmas de 3ª série (faixa etária de 8 anos) de escolas públicas municipais da cidade de Londrina, no Paraná. Em algumas escolas o trabalho foi plenamente realizado. Em uma delas o cenário encontrado obrigou-nos a buscar outros caminhos.

No ano de 2011, no processo de adaptação ao ensino fundamental de 9 anos, os alunos que em 2010 frequentavam a 2ª série e não conseguiram, por diversos fatores, a aprovação para a 3ª série, não tinham como frequentar a turma do 2º ano do ensino de 9 anos, pois, em termos de faixa etária, essa turma corresponde à 1ª série do ensino de 8 anos. Na tentativa de minimizar os problemas, foram agrupados em uma sala de 3ª série os alunos reprovados na 2ª série, em 2010.

O fato gerou uma atmosfera de fracasso, frustração e conformismo com a situação de não aprendizagem, tanto por parte dos alunos como dos profes-sores. A existência da sala especificada, ainda que não tenha sido este o obje-tivo, gerou uma situação-problema, tanto para a escola como para o nosso grupo de estudos, do qual também participavam os alunos pibidianos.

As explicações sobre a dificuldade dos alunos e a quase aceitação de que pouco poderia ser feito ancoravam-se, principalmente, no fato de que a grande maioria dos alunos em questão era proveniente de famílias com muitos proble-mas. O comportamento das crianças em questão refletia-se no linguajar, nos hábitos e na relação com a professora e os demais colegas, evidenciando o estado

Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola e as aprendizagens para a vida

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de abandono no qual se encontravam. Em síntese, não era um comportamento que se aproximasse do mínimo esperado pelos professores para desencadear um processo de aprendizagem sobre os mais variados assuntos. Os alunos agrediam--se constantemente, andavam pela sala e não se dispunham a fazer qualquer atividade que exigisse um pouco mais de esforço cognitivo. O desgaste da pro-fessora era intenso. O cansaço e o desânimo estavam estampados nas olheiras que, dia após dia, marcavam seus olhos. O único recurso era trabalhar com pro-postas que não colocassem os alunos em situação de exigência.

A primeira tentativa de desenvolvimento do trabalho sobre “Patrimônio Histórico” com essa turma foi um fracasso. Os alunos não pararam sequer para ouvir a proposta, então a professora aconselhou a estagiária pibidiana a não prosseguir com a aula, voltando às atividades simples e à conversa espontânea entre e com os alunos.

Dias depois, durante o grupo de estudo, a estagiária pibidiana que vivenciou a situação afirmou, com os olhos marejados, a um passo de desistir do projeto: “a gente fica discutindo sobre a importância da História... Na sala que estou, não dá para ensinar História nem outra matéria. Eles [os alunos] não têm respeito por mim e pelos colegas; eles não sabem viver juntos...”. Um silêncio assustador fez-se presente e todos voltaram os olhos para mim, na expectativa de uma res-posta. Rapidamente, outra aluna argumentou que, talvez, fosse mais adequado retirar o projeto dessa sala para evitar atrasos no cronograma, visto que o traba-lho com as outras salas desenvolvia-se sem maiores transtornos. Antes da minha intervenção, ouvi as seguintes palavras, entre soluços, raiva e desespero: “mas eles [os alunos] seriam abandonados de novo”.

Decidimos, então, não desistir, e contamos com o apoio e a dedicação de professoras que acreditaram e ousaram buscar outros caminhos. O tema “Patrimônio Histórico” continuou a ser trabalhado normalmente com as de-mais turmas, e com essa específica escolhemos trabalhar o tema “Identidade e Alteridade”, na tentativa de promover alterações na convivência social.

O que aconteceu com os alunos limítrofes, agressivos e indisciplinados? Aprenderam a conhecer e superar suas dificuldades cognitivas, a dialogar com o outro na tentativa de resolver os problemas, e, principalmente, aprenderam a viver junto ao outro, em sociedade, o que requer sempre controle e disciplina, aliados à liberdade e autonomia. Este texto é sobre essa história.

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3206

O que se relata neste texto ocorreu no ano de 2011. Um ano depois, o tema “Patrimônio Histórico”, como planejado, foi desenvolvido junto a esses alunos com resultados impressionantes quanto à aprendizagem dos conteúdos histó-ricos, geográficos e matemáticos e quanto à produção de texto. Mas isso é tema para outro artigo.

Os saberes indisciplinados e a lógica das disciplinas escolares

Compreendemos que aprender a viver em sociedade não é uma situação ro-tineira, tampouco trivial, e são muitos os saberes envolvidos nessa seara. Saberes que, como os demais, são ensinados e aprendidos em vários espaços sociais. A escola é um desses espaços, mas à medida que os alunos crescem, é comum na cultura escolar separar os saberes científicos, ensinados como conteúdos das dis-ciplinas escolares, dos saberes necessários para viver em sociedade. Esses saberes extrapolam a lógica disciplinar, assim como extrapolam o espaço e o tempo escolar. Por isso a ousadia em denominá-los ‘saberes indisciplinados’.

Tratando-se dos anos iniciais do Ensino Fundamental, faixa de escolari-dade foco deste artigo, os problemas gerados no processo de convivência social são desafiadores e carregados de possibilidades para o ensino de História. Um dos conteúdos clássicos para esse nível de ensino é o trabalho com a identida-de, com a história de vida dos alunos, de suas famílias, enfim, com questões relacionadas a seu entorno, capazes de desencadear noções de pertencimento a determinado grupo social. Pois bem, como poderíamos desenvolver um tra-balho com esses alunos, aliando o que precisávamos ensinar quanto ao conhe-cimento histórico e o que se fazia necessário aprender para melhorar o nível de socialização? Seria possível encontrar um denominador comum para essa situação?

O conceito de identidade foi compreendido com base nas contribuições de Bauman,5 que destaca o fato de estarmos expostos, simultaneamente, a vá-rias comunidades de ideias e princípios. Na sala de aula em questão era notório que os alunos constituíram, por suas relações familiares, formas de agir que não se adequavam às esperadas para o contexto escolar. No entanto, essa forma de agir retratava o que cada um trazia de seu contexto, de ‘sua gente’. Essa

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forma de ser e de agir era a identidade que conferia a eles segurança para so-breviver em um espaço com o qual não se identificavam.

Historicamente, o conceito de identidade, para Bauman, relaciona-se com o domínio do espaço geográfico e a constituição do Estado moderno, e altera--se na contemporaneidade em virtude do uso da tecnologia que redimensiona a noção de tempo e espaço, estabelece outras formas de estar junto nas redes sociais e influencia mudanças na identidade pessoal. A navegação em redes sociais não é recorrente entre as crianças com as quais trabalhamos, apesar de todas conhecerem computador e terem, vez ou outra, usado a lan house do bairro. O que nos interessa é cotejar o cenário da sala de aula com as ideias de Bauman, para compreender a importância que os alunos davam ao domínio e poder sobre o espaço e ao que entendiam por relacionar-se com o outro.

Sem dúvida, o ambiente familiar é o primeiro lugar de relacionamento com o outro. A compreensão que adquirimos de nós mesmos e dos outros carrega as marcas dos primeiros ‘modelos de gentes’ com os quais deparamos. Montoya afirma que “a estrutura social e familiar modela a comunicação e a linguagem e essas, por sua vez, modelam o pensamento e o estilo comunicativo que se revelam na solução dos problemas”.6

Entendemos por ambiente familiar o lugar em que são supridas as neces-sidades básicas do ser humano desde a mais tenra idade. O que somos consti-tui-se na relação estabelecida com as pessoas que cuidam de nós, nosso pri-meiro ponto de apoio para crescer e evoluir. De qualquer forma, todos os alunos daquela sala foram cuidados por alguém e tiveram suas necessidades básicas supridas para que pudessem sobreviver. Ocorre que viver envolve as-pectos muito mais complexos do que os essenciais para a sobrevivência. O ensino e a aprendizagem de diferentes saberes na escola só são possíveis se nos situarmos no campo da vida, e não apenas da sobrevida.

Não é possível trabalhar com o tema “Identidade e Alteridade” em sala de aula sem adentrar aspectos que nos levam a pensar sobre quem somos nós. No entanto, a pergunta “Quem você é?” só tem sentido quando há espaço para viver. No estreito espaço da sobrevivência são poucas as alternativas possíveis.

Afinal de contas, perguntar ‘quem você é’ só faz sentido se você acredita que pos-sa ser outra coisa além de você mesmo; só se você tem uma escolha, e só se o que você escolhe depende de você; ou seja, só se você tem de fazer alguma coisa para que a escolha seja ‘real’ e se sustente. (Bauman, 2005, p.26)

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3208

Muito cedo, em suas sobrevidas, essas crianças entendem a existência de fatores que são possíveis para os outros e não para elas. Esse entendimento é forjado e reforçado diariamente no embate das lutas sociais, e incide na ideia de identidade. Por esse caminho é possível compreender, entre outras questões, por que famílias de baixa renda dispõem de recursos importantes da receita familiar para comprarem celulares modernos para seus filhos, ou explicar por que a prostituição se faz presente cada vez mais cedo na vida dos nossos jovens, permitindo-lhes acesso a recursos financeiros com os quais compram artefatos da cultura contemporânea que, na concepção deles, conferem pertencimento a determinados grupos sociais. Ainda que pareça insensato, trata-se de uma luta para não aceitarem o lugar que lhes é destinado a sobreviver neste mundo.

É comum estabelecermos uma relação de causa e efeito entre condição financeira e dificuldade de aprendizagem que, em sua maioria, relaciona-se com a ausência de uma postura padrão esperada para frequentar os bancos escolares. Sabemos que são muitas as variáveis a serem analisadas quando se discute a razão pela qual os alunos não aprendem e não absorvem o conteúdo. A questão econômica, assim como o perfil familiar, não pode ser apontada como a única ou a mais importante característica a ser analisada.

Ao selecionar os conteúdos da História e a metodologia a ser utilizada em sala, tem-se um recurso importante que contribui na interpretação de si e dos outros, na compreensão de quem somos, do que podemos ser e do entendi-mento e valorização de nossas bagagens sociais, trazidas da convivência fami-liar. Acontece que, muitas vezes, ao trabalhar com conceitos de temáticas do tipo ‘quem sou eu’ e ‘família’, por exemplo, reforçamos um modelo que segrega e afasta aqueles que não se moldam ao padrão sugerido como ideal.

Justificamos a não aprendizagem indicando que o aluno está fora do pa-drão. Nesse não lugar encontram-se os alunos que repetem o ano, abandonam a escola; aqueles que vivem à custa da Bolsa Família, que convivem com vicia-dos em drogas, com presidiários e ex-presidiários, com prostitutas, com trafi-cantes; os que moram em lares formados por casais homossexuais, e os que provêm de famílias agnósticas – enfim, todos aqueles que, por diferentes as-pectos, não se ajustam ao modelo. Quando alguém ousa questionar tal pres-suposto, a resposta é uníssona e nos salva do desafio de romper com o precon-ceito: ‘fulano é exceção’.

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Recorrendo à perspectiva da epistemologia genética, Montoya explicita que a construção do conhecimento resulta da interação entre o sujeito cons-ciente de si mesmo com os outros, assim como com os objetos já constituídos. Ao nos afastarmos de modelos e promovermos o autoconhecimento e o res-peito mútuo, abre-se espaço para que as noções de identidade e alteridade sejam apreendidas. Contudo, em uma sala onde existem constantes conflitos e agressões físicas, esse espaço é inexistente.

A forma inicial que encontramos para abrir esse espaço foi o uso da tec-nologia e da linguagem imagética. A linguagem televisiva é usual na vida dos alunos, e vários comportamentos agressivos e ofensas verbais são repetições e/ou adaptações de cenas assistidas na televisão.

Em 1995, Moran pontuava sobre o uso de vídeo:

TV e vídeo encontraram a fórmula de comunicar-se com a maioria das pessoas, tanto crianças como adultas. O ritmo torna-se cada vez mais alucinante (por exemplo nos videoclipes). A lógica da narrativa não se baseia necessariamente na causalidade, mas na contiguidade, em colocar um pedaço de imagem ou história ao lado da outra. A sua retórica conseguiu encontrar fórmulas que se adaptam perfeitamente à sensibilidade do homem contemporâneo. Usam uma linguagem concreta, plástica, de cenas curtas, com pouca informação de cada vez, com rit-mo acelerado e contrastado, multiplicando os pontos de vista, os cenários, os personagens, os sons, as imagens, os ângulos, os efeitos.7

Escolhemos o tema “Amizade” para o trabalho com filmes, e nos preocu-pamos em selecionar filmes curtos, mas que não infantilizassem mais os alu-nos. Segundo Moran,

As linguagens da TV e do vídeo respondem à sensibilidade dos jovens e da gran-de maioria da população adulta. São dinâmicas, dirigem-se antes à afetividade do que à razão. O jovem lê o que pode visualizar, precisa ver para compreender. Toda a sua fala é mais sensorial-visual do que racional e abstrata. Lê, vendo. (Mo-ran, 1995, p.29)

Após a apresentação dos vídeos, pequenas rodas de discussão foram rea-lizadas no intuito de perguntar o que os alunos tinham compreendido. O tema “Amizade” favoreceu, em parte, a disposição de cada um em participar da roda, suscitando um ambiente menos agressivo. Entretanto, nas primeiras rodas foi

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3210

necessário conter os alunos utilizando recursos como: intercalar meninos e meninas; utilizar saquinho de sorteio para que cada um, se quisesse, expres-sasse sua opinião; usar a ampulheta para dar um tempo máximo e igual para todos. Recursos simples, mas que colocam as pessoas em situação de igualdade, fator importante na constituição de um lugar seguro, no qual cada um possa ser o que realmente é.

Vencemos as duas primeiras etapas: os alunos pararam para assistir aos vídeos e conseguimos conversar em roda com menos interrupções advindas de pequenas agressões físicas e verbais. Usamos a ideia de ‘não aula’ como estratégia de aproximação aos alunos.

O vídeo está umbilicalmente ligado à televisão e a um contexto de lazer, é entre-tenimento, que passa imperceptivelmente para a sala de aula. Vídeo, na cabeça dos alunos, significa descanso e não ‘aula’, o que modifica a postura, as expectati-vas em relação ao seu uso. Precisamos aproveitar essa expectativa positiva para atrair o aluno para os assuntos do nosso planejamento pedagógico. Mas ao mes-mo tempo, saber que necessitamos prestar atenção para estabelecer novas pontes entre o vídeo e as outras dinâmicas da aula. (Moran, 1998, p.78)

Todas as ações foram gravadas com a devida autorização dos envolvidos e seus responsáveis. Ao analisá-las, identificamos que as narrativas orais (for-ma possível para aqueles alunos naquele contexto) construídas pelos estudan-tes pautavam-se na descrição das imagens vistas. Segundo Custódio, “sabe-se que o ser humano é bombardeado o tempo todo por estímulos, dos quais pelo menos a metade – alguns teóricos dizem até 75% – é visual. Outros 20% são auditivos”.8 O desafio era passar da descrição para a interpretação dos filmes.

Planejamos, com o auxílio da professora, a etapa posterior: produzir um texto sobre a temática citada. Retomou-se a situação dos alunos já descrita aqui: frente a qualquer situação na qual se fizesse necessário um saber mais sistematizado, no caso o domínio da escrita, desencadeavam-se diversas situa-ções de conflitos na sala, as quais culminavam em confrontos físicos.

Optamos por solicitar uma produção pequena, dirigida ao outro, e que colocasse os alunos na situação de explicar o que entendiam por amizade. O gênero escolhido foi o classificado de jornal devidamente estudado: o que era, qual a finalidade e as diferentes tipologias. Os alunos foram desafiados a pro-curar um amigo utilizando-se desse recurso, e o resultado obtido ultrapassou

Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola e as aprendizagens para a vida

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as expectativas, mas também criou algumas situações de conflito, porque aden-tramos, pouco a pouco, o conhecimento de si e dos outros.

Para Montoya, um dos principais problemas das crianças com dificuldade de aprendizagem é a falta de oportunidade de realizar trocas simbólicas no meio social, ou seja, exteriorizar suas impressões. Tal fato prejudica o processo de construção do conhecimento, porque sem troca, sem retorno dos outros, o sujeito não tem elementos balizadores que permitam entender a si próprio. No conjunto (e vagamente), a atividade proposta (assistir aos vídeos, ouvir e falar nas rodas, estudar sobre o classificado, fazer o classificado e, finalmente, expor a todos o seu trabalho) reforçou a interiorização do conceito apresentado e levou os alunos a exteriorizarem suas impressões do que entendem por amizade.

A narrativa torna-se, então, o elemento-chave para entender a ação da linguagem e do meio social no processo construtivo do pensamento, isto é, no processo da interiorização ou de conceptualização das ações (Custódio, 2011, p.106-107). Nesse sentido, a roda de discussão é um procedimento inigualável para criar uma atmosfera propícia para construções de narrativas orais, ponto de partida para os mais variados diálogos. Quanto mais informal, melhor: no chão, sem nenhum material, sem posição de hierarquia entre professores e alunos, em contato direto uns com os outros, em uma disposição que favorece a troca, pois “Num meio social onde os adultos estejam dispostos a comparti-lhar as indagações da criança, onde se possa ouvi-la, onde se possa solicitar a reconstituição das suas ações, o processo da reconstrução das ações será favo-recido e garantido” (Custódio, 2011, p.109).

Depois de quase 2 meses, entre altos e baixos, conseguimos um nível de socialização que nos permitiu iniciar o trabalho com o tema “Identidade e Alteridade”. Continuamos utilizando a análise da imagem como recurso cen-tral do trabalho, no entanto, nesse momento, os filmes e as fotografias seriam dos próprios alunos, coletados nas etapas anteriores de trabalho e baseados na realização de novas filmagens. A ideia era propor reflexões acerca do compor-tamento deles mesmos e dos demais colegas. O olhar para o outro, a exotopia e o olhar para si poderiam propiciar uma compreensão melhor de si e dos outros, favorecendo alterações no relacionamento dos alunos.

Conforme Bakhtin,

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3212

reagimos com um juízo de valor a todas as manifestações daqueles que nos ro-deiam: na vida, todavia, nossas reações são díspares, são reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem, e mesmo quando o determinamos enquanto todo, definindo-o como bom, mau, egoísta etc., expressamos unicamente a posi-ção que adotamos a respeito dele na prática cotidiana, e esse juízo o determina menos do que traduz o que esperamos dele; ou então se tratará apenas de uma impressão aleatória produzida por esse todo ou, enfim, de uma má generalização empírica. Na vida, o que nos interessa não é o todo do homem, mas os atos isola-dos com os quais nos confrontamos e que, de uma maneira ou de outra, nos di-zem respeito ... é ainda em nós mesmos que somos menos aptos para perceber o todo da nossa pessoa.9

Durante as filmagens realizadas nas diferentes etapas de trabalho, alguns alunos criaram ‘personagens heroicos’ e passaram a agir de maneira diferente da habitual. A criação desses personagens é citada por Bakhtin:

De acordo com uma relação simples [entre autor e herói], o autor dever situar-se fora de si mesmo, viver a si mesmo num plano diferente daquele em que vivemos efetivamente nossa vida; essa é a condição expressa para que ele possa completar--se até formar um todo graças a valores que são transcendentes à sua vida, vivida internamente, e que lhe asseguram o acabamento. Ele deve tornar-se outro rela-tivamente a si mesmo, ver-se pelos olhos de outro. (Bakhtin, 1992, p.35)

Na concepção de cada um, os ‘heróis’ foram criados: alguns auxiliaram a professora na correção da tarefa, outros passaram em frente à câmera de fil-magem, outros ficaram quietos, e alguns ainda atrapalharam a correção com brincadeiras, para provocar risos.

O herói revelará muitos disfarces, máscaras aleatórias, gestos falsos, atos inespe-rados que dependem das reações emotivo-volitivas do autor ... O artista que luta por uma imagem determinada e estável de um herói, luta, em larga medida, con-sigo mesmo. (Bakhtin, 1992, p.26-27)

Na devolutiva dos vídeos, a luta com si mesmo se fazia presente e a rota de fuga era esquecer-se de si e focar a análise no outro. Como a roda não tem início nem fim, de alguma forma o olhar do outro levava o sujeito a olhar para

Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola e as aprendizagens para a vida

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si mesmo: “Depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre regressamos a nós mesmos” (Bakhtin, 1992, p.37).

O trabalho com os vídeos da turma e com a autofotografia (aquela que os jovens tiram de si mesmos e postam nas redes sociais) proporcionou adentrar um pouco mais na forma como cada um se entendia. Não foi um trabalho para fracos. Contudo, as abordagens anteriores sobre amizade criaram um cenário favorável para a realização das rodas de discussão sobre os vídeos. Após algu-mas rodas, sempre acompanhadas de atividades que exigiam construções de narrativas sobre diversas temáticas, iniciamos a última etapa de trabalho: “Identidade e Alteridade” a partir da questão “Quem você é?”.

A proposta de pensar sobre sua identidade aliava-se à reflexão sobre a situação de não aprendizagem. Qual o entendimento que aqueles alunos ti-nham sobre o fato de estarem agrupados em uma sala? Como se sentiam em relação aos demais colegas da escola? Foi inquietante identificar a nítida com-preensão que tinham sobre a situação de exclusão à qual estavam submetidos. Concluímos que uma das explicações para a forma como se comportavam em sala de aula relacionava-se com a revolta que sentiam por serem alunos daquela turma. Tinham noção de que estavam em uma situação diferenciada na escola, alocados em um espaço destinado aos ‘incapazes de aprender’.

Na roda de discussão, refletiu-se sobre o que cada um sabia fazer bem, o que sabiam fazer de maneira razoável, e o que lhes proporcionava muita difi-culdade. Nesta última categoria, os alunos incluíram todos os afazeres relacio-nados à escola, principalmente ler, escrever e fazer contas. Colocamos em discussão como e por que eram capazes de memorizar a letra de uma música e cantá-la inteira e tinham dificuldade para ler e escrever palavras e números; ou então, como apresentavam dificuldade para realizar uma operação de sub-tração no caderno, mas sabiam perfeitamente conferir o troco quando com-pravam balas no bar em frente à escola.

Fomos mapeando com os alunos algumas circunstâncias em que havia mais motivação e interesse do que em outras. No desenrolar dessas conversas, identificamos que o feedback negativo recebido durante a tão curta e já com-prometida história escolar de cada um pesava muito na compreensão que te-ciam sobre suas capacidades cognitivas. Sabemos que crianças que recebem constantemente devolutivas negativas têm menor probabilidade de serem re-alistas e efetivas no seu dia a dia, e têm mais probabilidade de manifestar

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3214

padrões de comportamento anticonvencionais. A devolutiva de pessoas signi-ficantes como pais, professores e amigos tem grande importância na vida des-ses alunos, assim como na vida de todos nós.

Todos os trabalhos realizados com a turma, desde então, finalizavam com rodas de discussões, cuja devolutiva pautava-se em três categorias: o que estava muito bom, o que precisava melhorar um pouco e o que precisava melhorar muito. Um feedback claro, positivo, aliado ao desafio de propor desafios para ampliar o cabedal de conhecimento, uma prática pedagógica essencial nos anos iniciais do Ensino Fundamental. É nesse período que as crianças constroem um conjunto de crenças sobre a sua capacidade intelectual e psicossocial, ba-silares para o sucesso escolar.

Bem, o ano terminou e não abordamos vários conteúdos que precisavam ser trabalhados. ‘Perdemos muito tempo’ nas rodas de discussões, filmagens, fotografias, e nem temos a certeza de que conseguimos trabalhar a contento com o tema ao qual nos dispusemos: “Identidade e Alteridade”.

Em 2012, essa turma frequentou a então denominada 4ª série, e, um ano depois do previsto, trabalhamos com o tema “Patrimônio Histórico”. Todavia, o tempo e a experiência nos mostraram que estávamos certos em apostar no ensino do que se fazia necessário naquele contexto em 2011: “Identidade e Alteridade”, com foco nas relações sociais. Finalizamos esta parte do texto com a fala dos alunos, identificados com seus nomes e sobrenomes, porque é muito gratificante ter sua identidade reconhecida.

As falas compõem uma reportagem sobre o trabalho. Deixamos para o leitor a difícil tarefa de analisar se valeu a pena ‘perder tempo’.

Foi legal porque eu aprendi que o patrimônio histórico não pode ser destruído. Há muitas coisas antigas e bonitas para se ver em Londrina. O meu avô sabe muitas histórias de locais importantes da cidade. A gente pode aprender muita coisa com o projeto. (Matheus Felipe dos Santos, 12 anos)

Foi interessante a atividade na Rua Sergipe, e gostei de escrever poesias. É fácil; é só aprender a brincar com as palavras. Foi a primeira vez que fui ao Bazar Ajimu-ra e à Pastelaria do Jorge, e adorei o passeio; os dois foram muito gentis com a gente. Foi um projeto gostoso de fazer. (Marcsiel Lopes Bem, 11 anos)10

Saberes indisciplinados: os conteúdos da história na escola e as aprendizagens para a vida

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O professor dos anos iniciais frente ao saber indisciplinado

Essa experiência é ponto de partida para a última parte deste texto, na qual tecemos algumas elucubrações sobre a formação do professor para os anos iniciais. Entendemos que a ação de tal profissional pode ser compreendida com base na imagem de um caleidoscópio: saberes com epistemologias específicas que formam desenhos diversos com o reflexo dos espelhos.

Os saberes estão lá, cada um com sua cor e forma, e somente a sua diver-sidade gera a possibilidade do desenho. O desenho chama a atenção da criança. Para compor o desenho escolhem-se as cores e o tamanho dos espelhos. Um universo de possibilidades se compõe com algumas cores e formatos. Saber construir tal instrumento, saber compor os saberes tendo em vista os desenhos que se deseja formar é o que denominamos ‘autonomia’.

O que se coloca para os professores e pesquisadores que atuam com a disciplina de metodologia e didática para o ensino de História nos cursos de Pedagogia é o desafio de ensinar a compor com autonomia e, paralelamente, garantir que a compreensão das características do saber histórico, assim como os demais saberes que se aliam ao saber histórico na escola, seja plena, a fim de se diferenciar cada campo do conhecimento.

Outro fator a ser considerado no processo de formação do professor para o trabalho com crianças é ditado pela diferença entre ensinar história para saber informações sobre o passado e ensinar história para pensar historica-mente o mundo. Ainda que a segunda aprendizagem possa incluir a primeira, o reverso não se faz verdadeiro, e pode-se perfeitamente transmitir conjuntos de informações sem que elas estabeleçam conexões com a forma como o sujeito compreende a sua vida e sua ação na sociedade, projetando o futuro. Para compreender a vida, o sujeito precisa fazer uma tessitura entre passado, pre-sente e futuro. A essa capacidade cognitiva denominamos ‘pensar historicamente’.

NOTAS

1 PINEAU, Gaston; LE GRAND, Jean-Louis. As histórias de vida. Trad. Carlos Eduardo Galvão Braga; Maria da Conceição Passeggi. Natal: EdUFRN, 2012. p.85.

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

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2 FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conheci-mento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p.169.3 PIAGET, Jean. Para onde vai a educação? Trad. Ivette Braga. 14.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed., 1998.4 O Pibid conta com apoio financeiro da Capes.5 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedito Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.6 MONTOYA, Adrian Oscar Dongo. Piaget e a criança favelada: epistemologia genética, diagnóstico e soluções. Petrópolis (RJ): Vozes, 1996. p.18.7 MORAN, José Manuel. O vídeo na sala de aula. Comunicação & Educação, São Paulo: Moderna, v.2, p.27-35, jan.-abr. 1995. p.28.8 CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro. Do quadro de giz ao youtube. In: OLIVEIRA, D. E. M. B.; SANTOS, A. R. J.; REZENDE, L. A. (Org.). Formação de professores e ensino: aspectos teórico-metodológicos. Londrina (PR): EdUEL, 2011. p.177.9 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.25-26.10 Folha de Londrina, 21 ago. 2012.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Narrativa midiática e narrativa didática de história: caminhos entrecruzados

na contemporaneidadeMedia narrative and history didactic narrative:

intersecting paths in contemporaneity

Sonia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley*

ResumoO artigo apresenta algumas reflexões acerca da cultura histórica produzida/permeada pela mídia e sua influência na produção do saber histórico escolar vi-sando ao desenvolvimento de pesquisa aplicada em turmas de ensino funda-mental. Considerando a crescente valori-zação da história e da memória nos espa-ços da comunicação midiática e a grande circulação dos significados produzidos por esses agentes na sociedade, torna-se fundamental o questionamento dos pro-fissionais da história (professores/pes-quisadores) acerca da influência das nar-rativas desenvolvidas por esses veículos no ensino da história escolar. Utilizo nes-sa reflexão autores e obras tanto do cam-po da Comunicação quanto da História, buscando bordar com eles uma teia de significados que permita construir meto-dologias para um mapeamento da rela-ção que se estabelece entre a competên-cia narrativa de uma escrita midiatizada da história e a escrita didática da história.Palavras-chave: cultura histórica; narra-tiva; saber histórico escolar.

AbstractThis article presents some of my reflec-tions on the historical culture produced/permeated by the media and its influence on the production of knowledge tran-scripts aiming at the development of ap-plied research in elementary school class-rooms. Given the growing appreciation of history and memory in spaces of mediat-ed communication and wide circulation of meanings produced by these agents in society, it becomes fundamental the ques-tioning of history professionals (teachers/researchers) about the influence of the narratives developed by these vehicles on teaching school History. I use on this re-flection authors and works from both the field of communication as well as History, trying to weave them in a web of mean-ings which allows building methodologies for mapping the relationship established between the narrative competence of a mediated writing of history and the di-dactic writing of history.Keywords: historical culture; narrative; school historical knowledge.

* Departamento de Ciências Humanas e Filosofia (CAP) e Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Rua Santa Alexandrina, 288, Rio Comprido. 20261-232 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 217-234 - 2013

Sonia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3218

A constituição da consciência histórica na contemporaneidade

A postura que adotamos com respeito ao passado, as relações que desenvolvemos entre passado, presente e futuro, não são apenas questões de interesse vital para todos: são indispensáveis. É inevitável que nos situemos no continuum de nossa própria existência, da família e do grupo a que pertencemos. É inevitável fazer comparações entre o passado e o presente: é essa a finalidade dos álbuns de fotos de família ou filmes domésticos. Não podemos deixar de aprender com isso, pois é o que a experiência significa. Podemos aprender coisas erradas – e, positiva-mente, é o que fazemos com frequência –, mas se não aprendemos, ou não temos nenhuma oportunidade de aprender, ou nos recusamos a aprender de algum pas-sado algo que é relevante ao nosso propósito, somos, no limite, mentalmente anormais.1

As palavras de Hobsbawm nos lembram de que o pensamento histórico é uma característica intrínseca à existência humana. A necessidade de conhecer o passado e relacioná-lo ao presente é algo imprescindível aos seres humanos por sua natureza. Essa epígrafe nos remete à ideia de que uma das funções da história é a de desnaturalizar o sentido que damos ao tempo e, com isso, de-senvolvermos nossa consciência histórica.

O teórico da história alemão Jörn Rüsen2 considera que a consciência histórica é algo universalmente humano e articula, fundamentalmente, dois elementos: o passado como experiência e o presente e o futuro como campos de ação orientados por esse passado, tendo como função auxiliar a compreen-são da realidade passada para entendimento da realidade presente. Dizer que a consciência histórica é algo inerente ao humano, portanto, não implica a negação de que ela seja mutável, melhor dizendo, a consciência histórica de cada indivíduo pode se tornar mais complexa por meio dos aprendizados que desenvolve em sua vida.

Rüsen é categórico quanto à importância da aprendizagem no desenvol-vimento da consciência histórica e afirma a relação necessária entre aprendi-zado e experiência. Hobsbawm em seu texto situa muito bem a relação precí-pua entre o aprendizado e a experiência. Os dois autores nos indicam que a

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

aprendizagem histórica pode ser explicada como um processo de mudança estrutural na consciência histórica.

O teórico alemão afirma, contudo, que o aprendizado que permite a apreensão da historicidade não se encontra vinculado unicamente a uma dis-ciplina acadêmica ou escolar. Para esse autor, a aprendizagem escolar é apenas uma forma dentre outras de se desenvolver a consciência histórica. Todos os diálogos que os homens realizam com a natureza, com os demais homens e consigo mesmos acerca do que sejam eles próprios e seu mundo desenvolvem a consciência histórica. Daí a importância que ele dedica ao que considera a estratégia privilegiada desse desenvolvimento – a narrativa.3

Produzidas para dar significados às experiências dos homens no tempo, as narrativas são organizadas com base em competências diferenciadas. Rüsen compreende ‘competência narrativa’ como a habilidade para narrar uma his-tória por meio da qual a vida prática recebe uma orientação no tempo.

Partindo desses pressupostos, devemos, pois, nos perguntar se estamos, enquanto profissionais da história – pesquisadores e professores –, sendo ca-pazes de desenvolver e interpretar narrativas que, em sua constituição de sen-tido, se vinculem à experiência do tempo de maneira que o passado possa tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contem-porânea. Ou seja, se estamos nos preocupando com a resposta que nosso tra-balho está oferecendo às demandas sociais por orientação em um mundo ca-racterizado por um processo frenético de mudanças.

Assumimos, aqui, um ponto de partida que caracterizará toda a reflexão que vamos desenvolver neste artigo – a discussão acerca das características de diferentes narrativas que se inter-relacionam durante o ensino de história no ambiente escolar e de que forma elas imprimem sua marca no desenvolvimen-to da consciência histórica dos alunos.

Esse objetivo nos obriga à reflexão acerca dos atuais problemas da escrita da história. Sem desconsiderar as especificidades do saber histórico escolar, ou a importância da narrativa midiatizada, carregada de memória, no atual con-texto de nossas salas de aula, compreendemos que o elo entre o desenvolvi-mento da ciência histórica e o seu ensino escolar é o que permite ao professor a constituição de narrativas que possam desnudar as reificações perpetradas pelo senso comum que podem turvar o caráter social transformador da apren-dizagem de história.

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Por isso mesmo devemos nos perguntar de que forma o desenvolvimento da ciência histórica em nosso país vem preocupando-se com a perspectiva apon-tada por Rüsen de que ensino e aprendizagem devam ser encarados como fenô-meno e processo fundamental da cultura humana, não restritos simplesmente à escola. Considerando que o aprendizado histórico incorpora as experiências adquiridas na convivência com outras instâncias socializadoras nas quais esta-mos mergulhados cotidianamente e que dão forma ao que se convencionou chamar de ‘cultura histórica’, as reflexões em nossos espaços de trabalho, mor-mente aquele formador de professores para a escola básica, devem considerar obrigatoriamente essas outras narrativas constitutivas da ‘cultura histórica’.

Estamos definindo ‘cultura histórica’ como uma forma específica de ex-perimentar e interpretar o mundo, que descreve e analisa a orientação da vida prática, a autocompreensão e a subjetividade dos seres humanos.4 Pode-se, então, dizer que cultura histórica é o resultado de manifestações da consciência histórica articuladas em diferentes espaços socializadores nos quais se produ-zem interpretações diversas para a relação passado/presente/futuro por meio da construção de narrativas.

Sendo assim, em um mundo midiatizado como o atual será possível definir, de forma monopolista, a quem é dado o direito de produzir sentidos acerca do passado? Dar-lhe forma e expressividade, principalmente se levarmos em conta o presentismo reinante, aliado à ‘sacralização’ da memória e de seus lugares?

Não há dúvida de que pensar a história na contemporaneidade nos obriga a considerar a produção midiática, haja vista sua capacidade de produzir even-tos e constituir sentidos. Assim, os campos da produção historiográfica – se-nhora, até há pouco tempo, da produção de sentido para o passado – e o da comunicação – no que tange à reflexão sobre sua capacidade na ‘fabricação’ de imagens simbólicas, conjunto de representações que forjam verdades/signifi-cados – se entrelaçam de tal forma no estabelecimento da cultura histórica que não podem, tanto historiadores, como jornalistas ou estudiosos da comunica-ção, deixar de refletir sobre a questão.

Narrativa histórica: arte e política

Antes que os historiadores viessem a olhar para seu trabalho como uma simples questão de metodologia de pesquisa e antes que se considerassem ‘cientistas’, eles

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

discutiram as regras e os princípios da composição da história como problemas de ensino e aprendizagem. Ensino e aprendizagem eram considerados no mais amplo sentido, como fenômeno e processo fundamental da cultura humana, não restrito simplesmente à escola. O conhecido ditado historia vitae magistra ... indica que a escrita da história era orientada pela moral e pelos problemas práticos da vida, e não pelos problemas teóricos ou empíricos da cognição metódica. (Rüsen, 2010, p.24)

Hoje, mais do que nunca, a história é uma disputa. Certamente, controlar o pas-sado sempre ajudou a dominar o presente: em nossos dias, contudo, essa disputa assumiu uma considerável amplitude. De fato, a democratização do ensino e a difusão dos conhecimentos históricos por outros meios – cinema, televisão – contribuem para esclarecer o cidadão, ao mesmo tempo sobre o funcionamento de sua própria cidade e sobre o uso e utilizações políticas da história ... Pois, na verdade, o Estado e o político não são os únicos a colocar a história sob vigilân-cia. Também o faz a sociedade, que, por sua vez, censura e autocensura qualquer análise que possa revelar suas interdições, seus lapsos, que possa comprometer a imagem que uma sociedade pretende de si mesma.5

I

Nestes tempos ditos pós-modernos, a chancela de conhecimento cientí-fico que diferencia o saber produzido pela história e, para alguns, o seu ensino, necessariamente não os qualificaria a ter um reconhecimento social maior que o de outras formas de saberes, muitas das quais formatando o que é chamado de senso comum. Essa afirmativa vem caracterizando diversas reflexões aca-dêmicas nos dias de hoje.

Apesar de discordar dos fundamentos das críticas pós-modernas à ciência histórica, Rüsen acredita que tais questionamentos, longe de fortalecerem a perspectiva de que a história não detém mais lugar cativo enquanto explicação do passado, refundam conceitos definidores para a visão moderna de história, obrigando-nos, como profissionais, a considerá-los, com o rigor teórico e me-todológico que caracteriza os estudos históricos, sem esquecer que a produção historiográfica não deve estar descolada dos problemas relacionados ao seu ensino e aprendizagem.

Aprendemos com os Annales que a história se faz com base no presente, sendo assim, uma das funções sociais da história (e aí incluímos o seu ensino)

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Revista História Hoje, vol. 2, nº 3222

é produzir caminhos por meio dos quais a sociedade possa “atravessar o rio dos tempos”, aprendendo a reconhecer-se nesses caminhos. Portanto, “uma das tarefas contemporâneas da história é ensinar e permitir a construção de maneiras de olhar o mundo, de perceber o social, de entender a temporalidade e a vida humana”.6 Ou seja, cabe à história utilizar-se das ferramentas que possui e redescobrir-se em um momento de profundas mudanças e de novas demandas sociais, ainda turvas pela incerteza que caracteriza o nosso tempo.

Acontece que nos dias de hoje, e como nos lembra Rüsen, outros atores so-ciais assumem para si a tarefa de construir significados acerca do tempo e ensinar à sociedade de que formas o ‘rio dos tempos’ foi atravessado no passado ou poderá sê-lo, no futuro. Estabelece-se, então, uma disputa, mesmo que de forma velada ou inconsciente, entre a história, incluído o seu ensino, e esses outros atores, com destaque para os meios de comunicação de cultura de massa.

Uma das ‘vantagens’ que tais meios têm nessa disputa refere-se ao fato de que suas narrativas não se encontram determinadas por um saber metodizado científico. Embora também se estabeleçam com base em um conjunto de nor-mas que procura garantir a sua inteligibilidade, as narrativas produzidas pelos meios de comunicação de cultura de massa funcionam dentro de um universo no qual dominam o lazer e o prazer dos sentidos, bem menos enfadonhos do que as regras científicas que cristalizaram a escrita da ciência histórica.

Se não devemos abrir mão do caráter científico de nossa disciplina – científico no sentido de ser um saber metodizado, que obedece a regras de produção cole-tiva e institucionalmente definidas, que implica o aprendizado do saber fazer –, isso não pode implicar o desconhecimento de que nosso ofício tem como resul-tado final a produção de uma narrativa. As tecnicalidades pedagógicas, por exemplo, não podem elidir o fato de que uma boa aula de história está assentada na capacidade do professor de urdir uma boa narrativa, em levar os alunos a construírem sentidos e significados para textos e relatos já tramados. (Rüsen, 2001, p.38)

Como esse aspecto está longe de se efetivar na narrativa histórica, seja na historiográfica ou mesmo na didática, a capacidade de produzir significados para a vida prática de indivíduos não iniciados é estonteantemente maior na narrativa da mídia.

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

Mas, afinal, de onde vem essa quase certeza que se impõe – a de que a escrita profissional da história será sempre menos capaz de enlevar os espíritos, além do intelecto, e tornar mais agradável e fácil a construção de sentidos por parte de não iniciados no campo da história?

Certamente a resposta a essa indagação tem a ver com o fato de a história ciência ter recusado, a partir da segunda metade do século XIX, a ‘história--narrativa’ ou ‘historicizante’ que em momentos anteriores caracterizou a es-crita da história. A narrativa era vista pelos historiadores científicos do século XIX como uma forma ingênua de escritura que não se adequava ao modelo das ciências naturais que se queria garantir à história. A narrativa didática da história seguia os mesmos rumos, presa que estava aos caminhos da ciência mãe que seguia “seu gosto sem consultar o do público”.7

Contudo, o que então se questionava na história-narrativa não era a forma pela qual o trabalho historiográfico se tornava concreto e sim o conteúdo desse trabalho: “o objeto primeiro do debate recaía no acontecimento e não na nar-rativa” (Hartog, 1998, p.200). Para Hartog, que se utiliza de Ricoeur em sua análise,

[O acontecimento] pertence a todos os níveis e pode ser mais precisamente defi-nido como ‘uma variante do enredo’. Tem-se aí uma nova confirmação de que rejeitar o acontecimento não significa fazer desaparecer a narrativa (nem o acon-tecimento), mas transformá-los ... Assim, a história não cessou de dizer os fatos e gestos dos homens, de contar, não a mesma narrativa, mas narrativas de formas diversas ... Também a história pode ser tratada como (e não reduzida a) um texto. (Ricoeur apud Hartog, 1998, p.201)

Ora, podemos questionar o porquê de essa narrativa ser tão árida aos não iniciados. Uma consideração importante nesse sentido foi apresentada por Guimarães em um texto no qual ele apresenta a história como Bildung. Tendo como base a formulação de Rüsen de uma didática da história,8 Guimarães agrega a preocupação relacionada ao seu ensino e busca na semântica do vo-cábulo alemão, que tem sua utilização primária no campo das artes, a ideia de que o papel da escrita da história é o de dar forma e expressividade. Diz ele:

A história formulada como Bildung contrapõe-se radicalmente a uma perspecti-va de tecnicização do passado, reinscrevendo-a no campo artístico, em seu senti-

Sonia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3224

do de criação, como forma de fazer frente a dois riscos importantes: o primeiro, a cientificização da história, entendida apenas por uma vertente metodológica ... segundo, a fuga do sujeito do campo de preocupações da reflexão histórica. Con-siderar a história nessa perspectiva significa não desvinculá-la dos processos di-dáticos voltados para a sua apresentação tendo em vista o público, necessaria-mente o ator central desse processo de conhecimento do passado, para quem essa tarefa de investigação deve ter algum sentido. (Guimarães, 2009, p.48-49)

II

Outro aspecto pertinente ao nosso questionamento inicial nos é dado por Ferro na epígrafe utilizada acima. Sua palavra nos lembra de que a vigilância à produção de significados sobre o passado não se faz apenas pelo Estado, com a história oficial. Diante da extensa produção sobre o modus vivendi contem-porâneo, a necessidade de os ambientes produtores de conhecimento, em es-pecial o escolar, refletirem as diferentes orientações de um mundo que reco-nhece (ou tolera) a diversidade de culturas que o compõe e o informacionalismo oriundo do desenvolvimento dos meios de comunicação de cultura de massa, a leitura clássica de Ferro nos faz pensar em como a preocupação didática com o ‘politicamente correto’ multicultural pode afastar as narrativas de caráter histórico produzidas nas escolas de um dos nossos objetivos mais primordiais – a formação da consciência histórica.

Até que ponto a confusão que se estabelece no senso comum, muitas vezes reificado pela mídia, entre o militante e o político tem afastado a prática do-cente de seu papel enquanto formadora de consciência história, como nos indica Rüsen? A busca do ‘politicamente correto’ midiatizado, afinal, está nos afastando da “tomada de posição política e da defesa de valores, mesmo quan-do não se está atento para esses aspectos” (Albuquerque, 2012, p.33).

Unindo a preocupação de Ferro à de Rüsen, entendemos que seja bastante profícuo ao pesquisador de história se debruçar sobre a diversidade de narra-tivas que compreendem a cultura histórica, mormente a midiática e a didática escolar, em busca do entendimento de como elas se entrelaçam no processo de ensino-aprendizagem de história. Como elas se aproximam ou se diferen-ciam do conhecimento histórico acadêmico. Essas pesquisas devem considerar

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

a necessidade de compreender a diversidade da cultura histórica; porém, não podem descuidar do caráter político formador da educação histórica.

Como afirma Ferro, também a sociedade “censura e autocensura qualquer análise que possa revelar suas interdições, seus lapsos, que possa comprometer a imagem que ... pretende de si mesma”. O perigo de não se diferenciar/avaliar as formas com as quais a consciência histórica vem à tona, muitas delas sim-plificadoras ou reificadoras enquanto processo, é muitas vezes capaz de retirar do ensino de história seu caráter formador, em essência, político.

Consciência histórica e cultura da memória

A reverberação do conceito de cultura histórica dentro e fora dos meios acadêmicos reflete o papel que a memória histórica vem adquirindo no espaço público. São exemplos desse processo o boom da patrimonialização nas socie-dades contemporâneas e o sucesso popular das narrativas acerca do passado levadas a cabo pelos meios de comunicação de cultura de massa.

El concepto de cultura histórica aborda un fenómeno que caracteriza desde años el papel de la memoria histórica en el espacio público: me refiero al boom conti-nuo de la historia, a la gran atención que han suscitado los debates académicos fuera del círculo de expertas y expertos, y a la sorprendente sensibilidad del pú-blico en el uso de argumentos históricos para fines políticos.9

Pierre Nora identifica como fator determinante no desejo de memória de nossa época a questão da mundialização, processo no qual os meios de comu-nicação de cultura de massa exercem papel primordial. Nora discorre acerca de um movimento de alteração do tempo, que passa a ser mais dinâmico. A duração do fato é a duração da notícia, o novo é quem comanda, propagando significado para a hegemonia do efêmero. Torna-se questão essencial, portan-to, refletir acerca da importância adquirida pela memória na constituição de manifestações da consciência histórica que se apresentam no espaço da sala de aula e nas narrativas escolares produzidas no ensino de história.

Os historiadores franceses François Hartog e Jacques Revel demonstram muita inquietação com esse processo de valorização social da memória que, segundo eles, empurra o profissional da história para o espaço público, dá uma

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dimensão pública à ciência histórica, colocando o historiador diante da neces-sidade de discutir os usos viáveis do passado pelo presente, ou melhor, os “usos políticos do passado”.10

Desde a década de 1980, Hartog vem escrevendo pequenos ensaios que anunciam sua tentativa de formular uma noção “que lhe permite conceituar a experiência de tempo” 11 – o regime de historicidade. Ele nos explica:

Entendo essa noção como uma formulação erudita da experiência do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nosso próprio tempo. Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaço de trabalho e de pensamento. Ele dá ritmo à escrita do tempo, representa uma ‘ordem’ à qual podemos aderir ou, ao contrário (e mais frequentemente), da qual podemos escapar, procurando ela-borar outra.12

Partindo da noção de ‘regime de historicidade’, Hartog nos apresenta outra – o presentismo – que importa considerar em nosso objetivo de pensar o papel do ensino de história como promotor de consciência histórica em um mundo marcado pelo consumismo e pelo efêmero midiático. O autor assim caracteriza essa noção:

Nessa progressiva invasão do horizonte por um presente mais e mais ampliado, hipertrofiado, está claro que a força motriz foi o crescimento rápido e as exigên-cias sempre maiores de uma sociedade de consumo, onde as descobertas científi-cas, as inovações técnicas e a busca de ganhos tornam as coisas e os homens cada vez mais obsoletos. A mídia, cujo extraordinário desenvolvimento acompanhou esse movimento que é sua razão de ser, deriva do mesmo: produzindo, consu-mindo e reciclando cada vez mais rapidamente mais palavras e imagens. (Hartog, 1996, p.135)

O foco de análise de Hartog está no que ele define como economia midiá-tica do presente. Essa não cessaria de produzir e consumir o acontecimento, dando ao presente, afirma, no momento mesmo em que ocorre, a marca de já histórico.

Como vamos demonstrar mais adiante, acreditamos que a perspectiva da noção de presentismo apresentada por Hartog carrega um toque de nostalgia do que ele mesmo define como regime de historicidade moderno. Apesar

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

disso, o conceito, sem pretender ser homogêneo e universal, como analisa Nicolazzi (2010, p.23), não deixa de ter utilidade:

Seu mérito e sua utilidade residem antes na sua capacidade em conceituar o tem-po, torná-lo, de uma forma bastante particular, pensável e, sobretudo, represen-tável ... As ideias de presentismo, com todas as suas fragilidades, são ainda uma formulação inquietante e que, por isso, aguçam a curiosidade.

História e mídia

Não há novidade alguma na apropriação do passado pelos meios de co-municação de cultura de massa. A começar, por exemplo, pela imprensa es-crita, a utilização recorrente em diversos momentos de retrospectivas e edições comemorativas é prova da existência de uma dimensão histórica no jornalis-mo. Temos de lembrar que a formulação narrativa dos meios de comunicação tem uma dimensão temporal que se encontra necessariamente ligada ao regime de historicidade de sua época.13

Estudiosos da mídia, como o intelectual alemão Andreas Huyssen, de-monstram preocupação com a forma como se concretiza essa apropriação nos dias de hoje. Segundo o autor, a ascensão de uma ‘cultura da memória’, para a qual o desenvolvimento da mídia tem papel significativo, tem a ver com a falência das utopias:

A reciclagem e exploração pela indústria cultural de tópicos relacionados à me-mória contribuem para a expansão de preocupações relativas à memória na esfe-ra pública. Num sentido mais amplo, contudo, a maior parte da cultura contem-porânea da memória, eu penso, resulta do naufrágio do imaginário de utopias futuras característico do século XX.14

Demonstrando paralelismo com o pensamento de Nora, Huyssen (2004, p.99) considera que nos dias de hoje tentamos combater o medo e o perigo do esquecimento com estratégias de sobrevivência de rememoração pública e pri-vada: “O enfoque sobre a memória é energizado subliminarmente pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido”.

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Essa ‘cultura da memória’ seria, então, uma forma de compensar a perda de estabilidade do indivíduo no tempo presente, uma forma de combater a nossa profunda ansiedade com a velocidade da mudança e o contínuo enco-lhimento dos horizontes de tempo e de espaço.

Apesar da aproximação com a argumentação de Nora, o pensador alemão considera a solução teórica dos ‘lugares de memória’ de Nora conservadora, já que, partindo de um princípio binário de lugar versus meio, não consegue dar conta de um “deslocamento fundamental nas estruturas do sentimento, expe-riência e percepção” contemporâneas, funcionando sempre como um discurso nostálgico de perda. Para Huyssen (2004, p.101), esse deslocamento caracteriza o “nosso presente que se expande e contrai simultaneamente”.

Apesar da ressalva, Huyssen (2004, p.101) considera que o discurso midiá-tico tem participação ativa na constituição social dessa ‘cultura da memória’, mas, embora considere o jornalismo investigativo sério essencial para a constru-ção pública de discursos de memória nacional, acredita que seu enquadramento temporal é necessariamente limitado ao presente e ao passado recente, por isso ele precisaria ser complementado pelo trabalho historiográfico.

Também no Brasil, recentes estudos na área da comunicação vêm reco-nhecendo uma série de impasses teóricos e problemas metodológicos quando o assunto é o estudo da interface entre a História e a Comunicação. A jornalista Ana Paula Goulart Ribeiro, em artigo que faz parte de uma obra coletiva que organizou em 2008, critica exatamente o predomínio, em grande parte dos trabalhos da área da comunicação, dessa perspectiva memorialista, constituin-do “uma ideia de história orientada e baseada em grandes feitos, singularida-des, particularidades dos grandes personagens” (Ribeiro; Herschmann, 2008, p.20). Embora reconheça a importância dos relatos memorialistas para a pes-quisa na área da História da Comunicação, alerta para o perigo da ‘cultura da memória’, e, como Huyssen, aponta a necessidade de se problematizar essa supervalorização da subjetividade.

Em outro artigo, na mesma obra, a jornalista e professora Marialva Barbosa (2008) afirma que temos nos dia de hoje um alargamento do presente, possibilitando um distanciamento em relação ao passado que se materializa a partir de sua reconstituição como espaço mítico. Dessa maneira, os tempos idos instauram-se como ‘universo de sonho’, e sua relação com o presente, cada vez mais fluida, promove um desejo contínuo de revigoramento desses

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

laços. Os meios de comunicação são pródigos na construção idealizada desses laços que caracterizam o atual regime de historicidade.

Recorrendo a François Dosse, Barbosa aponta o significado transitório que hoje se dá ao presente e a acentuação pitoresca de certo passado, visto como o verdadeiro, único:

O passado é apresentado como momento memorial que intensifica o presente, dilacerado por utopias, das quais a mais constante é a sua inclusão como nenhu-res, e no qual os recursos à tradição possuem apenas valor performativo. O pas-sado convocado para o presente se distingue deste através de uma nostalgia a ser preservada em lugares e momentos próprios: lugares de museificação e momen-tos de celebração. (Barbosa, 2008, p.89)

Com base na conjunção de ideias que se estabelece nas leituras de histo-riadores contemporâneos e teóricos da comunicação, apresentamos uma ques-tão que procura nos fazer retornar ao nosso objetivo inicial. Primeiramente, não se pode negar que a simplificação contemporânea da relação passado--presente-futuro é refletida na narrativa midiática, produzindo nos receptores uma leitura de senso comum do conhecimento histórico, já que a mídia o trata como doxa e não como episthéme, como informa Barbosa. Contudo, sem que se negue a necessidade de problematizar a cultura da memória vigente e o culto ao efêmero que caracteriza nossos dias, pode-se questionar até que ponto essas interpretações não seriam sintomas daquilo que elas mesmas se propõem ana-lisar – o presentismo. E, se assim for, não estariam elas sendo construídas a partir de instrumentos de análise que não são capazes de dar conta desse novo tempo, momento que se caracterizaria, por exemplo, pela necessidade de re-pensarmos o que chamamos conhecimento?

O saber histórico e os demais saberes

Vamos utilizar as ideias de Barbero15 na tentativa de desnaturalizar as dúvidas aqui enunciadas e refletir sobre elas. O que vemos em grande parte dos trabalhos que buscam caracterizar o saber escolar e sua relação com outros saberes, incluindo o conhecimento acadêmico, é, no mínimo, um silêncio quando se trata de discutir as transformações que a atual revolução tecnológica

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(comunicacional) está provocando nos modos de circulação do saber, e, no tocante aos saberes escolares, a defasagem destes em relação àquilo que Barbero denomina ‘saberes-mosaicos’.16 Esses saberes se relacionariam aos saberes es-colares, porém circulariam fora do ambiente educacional, sob a forma do que comumente denominamos informação, em contraponto ao conhecimento, que teria sua origem no ambiente escolar/acadêmico:

E frente a um alunado cujo meio ambiente comunicativo se ‘impregna’ cotidiana-mente desses saberes-mosaicos que, sob a forma de informação, circulam na so-ciedade, a escola, como instituição, tende, sobretudo, ao entrincheiramento no próprio discurso, uma vez que qualquer outro tipo de discurso é visto como um atentado a sua autoridade. (Barbero, 2008, p.237)

O que Barbero tenta demonstrar é que a atual revolução comunicacional provocou duas mudanças essenciais na forma como o conhecimento (que ele denomina saber) circula na sociedade. Em primeiro lugar, houve uma descen-tralização desse conhecimento. Ou seja, uma transcendência no tocante aos seus espaços tradicionalmente produtores/divulgadores:

O saber transcende os livros e a escola, entendendo por escola todo sistema edu-cativo, desde o fundamental até a universidade. O saber transcende, sobretudo, aquele que sempre foi seu eixo durante os últimos cinco séculos: o livro ... Esta-mos diante de uma descentralização culturalmente desconcertante, cujo descon-certo é disfarçado por uma grande parte do mundo escolar de forma moralista ... Essa atitude não nos ajuda em nada a compreender a complexidade das mudan-ças que estão atravessando as linguagens, as escrituras e as narrativas. São essas mudanças que, na realidade, são as causas de o adolescente não ler, no sentido que os professores ainda entendem por ler, ou seja, somente livros. (Barbero, 2008, p.238)

A outra mudança, aponta Barbero, refere-se ao que ele denomina deslo-calização e destemporalização dos saberes, de forma que estes deixam de ocu-par apenas aqueles espaços antes legitimados socialmente para sua distribuição e aprendizado:

Não é que o lugar escolar vá desaparecer, mas as condições de existência desse lugar estão sendo transformadas radicalmente, não só porque agora tem que

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

conviver com um monte de saberes-sem-lugar-próprio, mas porque o aprendiza-do se desligou da idade para se tornar contínuo, isto é, ao longo de toda a vida. (Barbero, 2008, p.237)

A consequência de todo esse processo seria a atenuação das fronteiras que separam o conhecimento do saber comum. Não apenas por meio da frenética divulgação científica produzida pela mídia, mas “pela crescente desvalorização da barreira que alçou o positivismo entre a ciência e a informação”:

A disseminação designa o movimento de atenuação tanto das fronteiras entre as disciplinas do saber acadêmico, quanto entre esse saber e os outros ... A única saída encontra-se na articulação de conhecimentos especializados com aqueles outros que provêm da experiência social e das memórias coletivas. (Barbero, 2008, p.238-239)

Percebe-se que Barbero trabalha com um significado para conhecimento que engloba todo saber que é produzido em um lugar por ele denominado sistema educativo e que inclui a escola básica e a universidade. Sem dúvida alguma, já avançamos na reflexão acerca da especificidade dos saberes escolares e da relativa autonomia que estes desempenham em relação ao conhecimento acadêmico. Mas isso em nada modifica a importância da reflexão de Barbero. Ela nos obriga a incluir uma variável nova em nosso questionamento quando relativiza a diferença entre conhecimento e informação, tendo em vista o con-texto caracterizado pela cultura da memória. Questiona as premissas que uti-lizamos na análise da influência das narrativas produzidas pela mídia e refle-tidas no ensino escolar de história.

Assim como a discussão que apontamos anteriormente em Rüsen, no tocante às críticas pós-modernas ao racionalismo que organiza a definição de conhecimento histórico, Barbero nos lembra de que nos dias de hoje não há como esperar que a realidade contemporânea, marcada pela desestabilização do sujeito cartesiano, seja constituída apenas pela capacidade de pensar e de raciocinar desse sujeito:

Hoje nos encontramos com um sujeito muito frágil, mais quebradiço, mas para-doxalmente muito mais obrigado a assumir-se, a ser responsável por ele mesmo em um mundo no qual as certezas no plano do saber, como no ético ou no polí-tico, são cada vez menores. (Barbero, 2008, p.240)

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Revista História Hoje, vol. 2, nº 3232

Onde ficaria o saber histórico escolar em toda essa discussão? De que forma devemos compreendê-lo a fim de dar conta dessas novas exigências no tocante aos espaços/sujeitos produtores de saberes que interagem na tessitura da consciência histórica de docentes e alunos?

Acreditamos que o caminho é pensarmos o conhecimento não apenas na perspectiva de como ele é produzido, mas, ao mesmo tempo, como é comuni-cado, aí incluindo, ensinado. Essas duas facetas devem ser compreendidas como indissociáveis, um saber marcado pela transversalidade:

Esses saberes transversais criarão mal-estares profundos nas áreas especializadas de formação, pois entranham uma progressiva indefinição do que está amarrado e ordenado de maneira linear, transformando-o em um conjunto intertextual po-lissêmico e polifônico, já que transversais são os saberes que duram por todo o exercício da profissão e por toda uma vida. (Barbero, 2008, p.250)

A perspectiva de Barbero aproxima-o do que se convencionou denominar história pública, pensada como “a possibilidade da construção de um conhe-cimento pluridisciplinar atento aos processos sociais, às mudanças e tensões”, tendo em vista a reflexão “sobre a atuação do profissional capaz de estimular a consciência histórica para um público amplo, não acadêmico”.17

A partir daí, nosso olhar sobre a repercussão da narrativa midiática na produção do saber histórico escolar ganha novos contornos, pois tentamos decifrar o hibridismo desse saber considerando sua produção e sua divulgação/ensino como metades de um todo, ao mesmo tempo sujeito e projeção de uma nova temporalidade.

Temporalidade que não nos permite ignorar o atual esfacelamento de memórias e identidades estáveis, sejam elas individuais ou de grupos sociais. As velhas abordagens de cunho sociológico, diz Huyssen, não dão conta dessa dinâmica tão bem aparelhada pelas novas tecnologias da mídia, que, embora também reflexo desse contexto, cada vez mais amplia a sua capacidade de forjar a percepção social e política do mundo:

As contrastantes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e étnicos específicos permitem perguntar se ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas de memória consensual coletiva e, em caso negativo,

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Narrativa midiática e narrativa didática de história

se e de que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem ela. (Huyssen, 2004, p.19)

Portanto, o fazer do professor e pesquisador do ensino de história deve, entre outras ações, levar em consideração a relação que se estabelece entre memória e história nas narrativas midiatizadas da história, entendendo que, apesar de nossas memórias cada vez mais estarem sendo modeladas pelas tec-nologias midiáticas, nunca serão redutíveis a estas. Dessa forma, devemos pen-sar como pode ser a nossa práxis visando à conformação da consciência histórica:

Se nós estamos, de fato, sofrendo de um excesso de memória, devemos fazer um esforço para distinguir os passados usáveis dos passados dispensáveis. Precisa-mos de discriminação e rememoração produtiva e, ademais, a cultura de massa e a mídia virtual não são necessariamente incompatíveis com este objetivo. (Huys-sen, 2004, p.37)

NOTAS

1 HOBSBAWM, Eric. Sobre a História: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.36.2 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história – fundamentos da ciência histórica. Bra-sília: Ed. UnB, 2001.3 Entenda-se narrativa como um processo de fazer ou produzir uma trama da experiência temporal tecida de acordo com a necessidade da orientação de si no curso do tempo. O produto desse processo narrativo, a trama capaz de tal orientação, é ‘uma história’ (RÜ-SEN, 2001).4 CARDOSO, Oldimar. Por uma definição de didática da história. Revista Brasileira de História [eletrônica], São Paulo, v.28, n.55, p.153-170, 2008.5 FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.1-2.6 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de A. et al. (Org.). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2012. p.31.7 O interessante é perceber que é exatamente nesse momento que a história é pensada co-mo disciplina ensinável – “uma matéria efetivamente organizada sob um sistema que pre-vê seu ensinamento, sua transmissão”. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Escrita de história e ensino de história: tensões e paradoxos. In: ROCHA, Helenice; SOUZA, Marcelo

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de; GONTIJO, Rebeca (Org.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. p.35-50. p.36; HARTOG, François. A arte da narrativa históri-ca. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Ed. FGV, 1998. p.193-202. p.199.8 Rüsen considera a didática da história uma disciplina do campo historiográfico que ana-lisa os fundamentos da educação histórica. Expandindo seus objetos de estudo para além do ensino e aprendizagem na escola, considera como problemáticas dessa disciplina “todas as formas e funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida cotidiana, prática”. RÜSEN, Jörn. Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir do caso ale-mão. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Resende (Org.). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. p.23-40.9 O texto está disponível em: www.culturahistorica.es/ruesen/cultura_historica.pdf.10 HARTOG, François; REVEL, Jacques (Ed.). Les usages politiques du passé. Paris: Éd. de l’ÉHESS, 2001. p.20.11 NICOLAZZI, Fernando. O tempo do sertão, o sertão no tempo: antigos, modernos, sel-vagens. Leitura de Os Sertões. Anos 90, Porto Alegre, v.17, n.31, p.261-285, jul. 2010.12 HARTOG, François. Tempo e história: como escrever a história da França hoje? Trad. Ana Cláudia Fonseca Brefe. História Social, Campinas (SP), n.3, p.127-154, 1996. p.129.13 BARBOSA, Marialva. Meios de comunicação e usos do passado: temporalidade, rastros e vestígios e interfaces entre Comunicação e História. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; HERSCHMANN, Micael. Comunicação e História: interfaces e novas abordagens. Rio de Janeiro: Ed. Mauad X; Globo Universidade, 2008. p.83-96.14 HUYSSEN, Andreas. Mídia e discursos da memória. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v.27, n.1, p.97-104, 2004. p.98.15 MARTÍN-BARBERO, Jesus. Saberes hoje: disseminações, competências e transversali-dades. In: GOULART; HERSCHMANN, 2008, p.237-252.16 Essa discussão é desenvolvida por Barbero em artigo inicialmente publicado na Revista Ibero-americana de Educação [eletrônica], Madrid: OEI, n.32, 2005. Disponível em: www.rieoei.org/rie32a01.htm; Acesso em: 10 fev. 2011. Sua tradução para o português encontra--se em RIBEIRO; HERSCHMANN, 2008.17 ALMEIDA, Juniele Rabelo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. p.7.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Habilidades de Estudos Sociais para a professora primária: circulação e apropriação

de representações em um projeto de aperfeiçoamento de professores

Social Studies Abilities for primary school teachers: circulation and appropriation of representations

on a project for the improvement of teachers

Aldaíres Souto França* Juçara Luzia Leite**

ResumoNo contexto da implementação do Pro-grama de Assistência Brasileiro-Ameri-cana ao Ensino Elementar (PABAEE), foi publicada em 1964 a coleção Biblio-teca de Orientação à Professora Primá-ria, composta por diferentes volumes, entre os quais Habilidades de Estudos Sociais, visando ao aperfeiçoamento de professores primários. O presente artigo discute esse livro considerando a noção de habilidades no contexto de formação de professores como parte de um pro-cesso de circulação e apropriações de representações de Estudos Sociais como conteúdos e como disciplina escolar.Palavras-chave: história do ensino de História; formação de professores; Estu-dos Sociais.

AbstractIn the context of the implementation of Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE), the collection Biblioteca de Orientação à Professora Primária (Guide lines for Primary School Teach-ers) was published in 1964, composed by different volumes, among them Habili-dades de Estudos Sociais (Social Studies Abilities), aiming at the improvement of primary teachers. This article discusses this book considering the notion of skills in the context of teacher’s training as part of a movement of representations and appropriations of Social Studies as content and as a school subject.Keywords: History of teaching history; teacher training; Social Studies.

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 235-249 - 2013

* Doutoranda em Educação. Universidade Federal do Espírito Santo SEDU/PPGE. Av. Fernando Ferrari, 514. 29075-910 Vitória – ES – Brasil. [email protected] ** Universidade Federal do Espírito Santo, Departamentos de História e Pedagogia e Programas de Pós-Graduação em História (PPGHis-UFES) e em Educação (PPGE-UFES). Av. Fernando Ferrari, 514. 29075-910 Vitória – ES – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3236

Aldaíres Souto França e Juçara Luzia Leite

Em 22 de junho de 1956, sob a articulação de Clóvis Salgado (ministro da Educação), José Francisco Bias Fortes (governador de Minas Gerais) e William Warne (diretor da Operação dos Estados Unidos no Brasil) foi assinado o Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE). Implementado no Instituto de Educação de Belo Horizonte (Minas Gerais) no período de 1956 a 1964, foi normatizado pela Portaria do MEC nº 7 de 1957 e pelo Decreto Legislativo nº 16 de 1959.

O envolvimento específico do governo de Minas Gerais, de acordo com Paiva e Paixão,1 justificava-se pelo objetivo de reviver a Escola de Aperfeiçoamento que funcionou em Belo Horizonte na década de 1920 e que levou a cidade ao título de Capital Pedagógica do Brasil na época das reformas de Francisco Campos.

Oficialmente, o PABAEE visava à melhoria do ensino fundamental bra-sileiro por meio da superação dos principais problemas enfrentados, então, pela Educação no Brasil: altos índices de evasão e repetência, elevado número de professores leigos e utilização de material didático que não contribuía para a escolarização. Por professores leigos compreendia-se aqueles que não pos-suíam formação regular e, de acordo com o Plano Trienal de Educação, “na sua maioria provindos da escola primária”.2 O PABAEE considerava, também, atingir as normalistas e os regentes de ensino.

Não obstante a centralidade no ensino fundamental, o PABAEE se preo-cupou com o ensino secundário. Como resultado disso, em junho de 1957 estabeleceu-se o primeiro convênio com os americanos, com o término pre-visto para junho de 1964, visando, junto à Diretoria do Ensino Secundário do MEC, o desenvolvimento de centro piloto no Rio de Janeiro com os objetivos de: aperfeiçoar professores secundários; elaborar um programa curricular para o ensino secundário brasileiro; melhorar o material didático utilizado na rede de ensino secundário; pesquisar a possibilidade de criação de mais dois centros de treinamento de professores.3

De acordo com Abreu e Eiterer,4 mesmo na ausência de estudos mais aprofundados analisando as concepções político-pedagógicas do PABAEE e suas contribuições didáticas, é preciso destacar o material produzido pela equi-pe do Programa. Esse material era composto, sobretudo, por livros, mas tam-bém por artigos em periódicos (criados ou não pelo PABAEE) e até mesmo

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Habilidades de Estudos Sociais para a professora primária

por material audiovisual. Os livros publicados dedicavam-se, em sua maioria, à exposição de conteúdos teórico-metodológicos.

O principal eixo do PABAEE era, assim, a elaboração de materiais e mé-todos para o ensino-aprendizagem e o aperfeiçoamento de professores para seu uso. Por meio dessas ações, pretendia-se alcançar também soluções para os demais aspectos considerados problemáticos. Nesse contexto, foi publicada a coleção Biblioteca de Orientação à Professora Primária (1964), cuja primeira edição foi realizada pela Editora Nacional de Direito. Os sete volumes da co-leção foram escritos por especialistas formados no Curso de Educação Elementar oferecido na Universidade de Indiana (Estados Unidos) visando ao aperfeiçoamento de professores, administradores e supervisores escolares do ensino primário, conforme informação fornecida na contracapa dos livros.

Essa coleção foi produzida para ser usada por educadores, principalmente professores de Metodologia e Prática de Ensino no planejamento de suas aulas, ou seja, no processo formativo de professores. Era constituída por volumes de capa dura, todos com ilustrações referentes aos temas abordados: Ver, sentir, descobrir a Aritmética, de Rizza Araújo Porto (com 166 páginas); Experiências de Linguagem Oral, de Maria Yvonne Atalécio de Araújo (com 274 páginas); Habilidades de Estudos Sociais, de Maria Onolita Peixoto (com 186 páginas); Formação e desenvolvimento de conceitos, de Maria Luiza de Almeida Couto Ferreira (com 192 páginas); Testes, medidas e avaliação, de Oyara Petersen Esteves (com 206 páginas); O que é Jardim de Infância, de Nazira Feres Abi-Sáber (com 186 páginas); e Ciências na Escola Moderna, de Maria José Berutti e Terezinha Nardell (com 279 páginas).

Neste artigo analisaremos o volume Habilidades de Estudos Sociais con-siderando o contexto de sua produção e a circulação e apropriação de repre-sentações de Estudos Sociais, presentes na constituição de uma cultura escolar.5

Uma professora-autora

Ampliando o raciocínio de Boto6 sobre o professor primário português no século XIX, pensamos os professores autores de livros didáticos e manuais de ensino como um grupo específico integrante da própria constituição da

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cultura escolar. Dessa forma nos questionamos: quem era a professora Maria Onolita Peixoto?7 De que lugar produzia sua escrita?

Ao considerarmos a autora e sua produção relacionalmente, apresenta-mos aqui um exercício de situá-las no contexto das representações, apropria-ções e práticas de escrita didática de professoras da década de 1960. Nesse sentido, compreendemos o livro Habilidades de Estudos Sociais como objeto cultural que dá a ler uma dada representação de Estudos Sociais para a norma-tização da disciplina e para o aperfeiçoamento de professores primários.

Maria Onolita Peixoto atuava como orientadora educacional e era forma-da no Curso de Orientadora Técnica e Administração Escolar do Instituto Educacional de Minas Gerais. Também era Técnica de Didática de Estudos Sociais do PABAEE e, para obter essa especialidade, participou do Curso de Educação Elementar na Universidade de Indiana (Estados Unidos). Em decor-rência dessa formação, atuava no Departamento de Estudos Sociais do PABAEE ministrando cursos de aperfeiçoamento de professores.

Como parte das ações oriundas de seu curso em Indiana, verificamos que participou de uma comissão interdepartamental cujo objetivo era, em caráter experimental, o planejamento curricular de uma classe de 5º ano do Grupo Escolar do Instituto de Educação de Belo Horizonte em 1956. Além disso, compôs a equipe de representantes do PABAEE, realizando viagens ao Nordeste do Brasil, especificamente ao Ceará e Rio Grande do Norte, entre 30 de novembro e 6 de dezembro de 1958, objetivando a divulgação dos trabalhos desenvolvidos pelo PABAEE. Em Natal, participou da elaboração do Relatório de Visita enviado à Secretaria de Educação, além de diversas atividades técnicas junto a essa Secretaria.

Em 1967, Maria Onolita Peixoto esteve entre os 17 nomes credenciados que participaram da Comissão de Especialistas responsáveis pela seleção de livros para compor as “Bibliotecas-amostra”, implantadas pela Comissão de Livros Técnicos e Didáticos (Colted). Os demais participantes foram: Cândida Luiza Cerne de Carvalho (professora de História e Filosofia da Educação da Escola Normal Carmela Dutra); Eunice da Conceição Macedo Rosa (professora de Português e integrante da equipe de assistência ao Ensino Primário MEC-Usaid); Heloisa Feital dos Reis (professora de Educação Física e Recreação no Curso Normal do Instituto de Educação da Guanabara); Leny Werneck Dornelles (professora de Teoria e Prática da Escola Primária na Cadeira de

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Prática de Ensino do Curso de Formação de Professores para o Ensino Normal do Instituto de Educação da Guanabara); Maria Augusta Joppert (professora de Educação Musical da Secretaria de Educação e Cultura da Guanabara); Maria Helena Novais (psicóloga do ISOP da Fundação Getulio Vargas); Maria José Berutti (professora de Didática de Ciências Naturais do Centro Regional de Pesquisas Educacionais João Pinheiro, de Belo Horizonte); Maria José Penna Firme (professora de Psicologia do Colégio Estadual Camilo Castelo Branco); Maria Luiza de Almeida Cunha Ferre (professora contratada do Instituto Central de Ciências Humanas da UFMG); Maria Vicentina de Campos Carvalho (professora da cadeira “Educação Alimentar” do Curso para Supervisores do Programa de Educação e Assistência Alimentar em Belo Horizonte); Nair Ferreira Tulha (professora de Matemática do Instituto de Educação da Guanabara); Newton Dias dos Santos (professor catedrático de Metodologia da História Natural e Ciências da Universidade Gama Filho); Norma Cunha Osório (professora da Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Guanabara); Maria Yvonne Atalécio de Araújo (professora de Didática da Linguagem); Lydinéa Gasman (professora do Colégio Pedro II e professora de Didática de História da Faculdade Nacional de Filosofia), e Terezinha de Jesus Casasanta (professora de Didática do Curso Colegial Normal do Instituto de Educação de Belo Horizonte).8

Assim como essa Comissão de Especialistas, pensamos os autores da co-leção Biblioteca de Orientação à Professora Primária como uma comunidade de interpretação, professores-autores que compartilham experiências e rela-ções sociais específicas em determinado contexto histórico e cultura escolar. Assim, formaram um grupo que a despeito das trajetórias de vida pessoais encontrou-se em um objetivo comum: o aperfeiçoamento de professores pre-visto no PABAEE.

No quinquênio de 1956 a 1960, administradores de sistemas escolares; especialistas em educação primária; supervisores, diretores e professores de escolas normais; diretores e professores de escolas de demonstração e experi-mentais; supervisores, diretores de oficinas e professores de artes industriais; professores especializados; e professores primários de classe em geral partici-param dos cursos oferecidos pelo PABAEE, todos divulgados na imprensa oficial. Os cursos eram realizados em diferentes Centros Regionais, mas a sede do PABAEE no Brasil permaneceu no Instituto de Educação de Belo Horizonte.

Habilidades de Estudos Sociais para a professora primária

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As despesas (custo com pessoal, material de ensino, auxílio aos bolsistas dos vários estados brasileiros) eram subsidiadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pedagógicos (Inep), que também financiou, anualmente, a viagem dos pro-fessores que foram se aperfeiçoar nos Estados Unidos.

Os cursos oferecidos prioritariamente pelo Inep foram:

• Especialistas em educação para a América Latina. Realizado anualmen-te, a partir de 1958, no Centro Regional de São Paulo, em colaboração com a Unesco, com a participação de 86 bolsistas (45 brasileiros e 41 latino-americanos);

• Aperfeiçoamento de Supervisores de Educação Rural e Orientadores--Adjunto. No Centro Regional de Minas Gerais, vagas oferecidas a 38 bolsistas;

• Supervisores do ensino primário, que ocorreu na Paraíba e no Rio Gran-de do Sul e teve 37 participantes;

• Diretores de escolas de demonstração, que aconteceu na Bahia e teve quatro participantes;

• Inspetores do ensino primário, cursos que ocorreram no Espírito Santo e em São Paulo, com a participação de 115 inspetores;

• Administradores escolares e Orientadores de ensino, oferecidos no Rio Grande do Norte e em São Paulo, com 185 participantes;

• Diretores de escolas primárias, na Paraíba e no Piauí, com 62 participantes;

• Aperfeiçoamento de professores primários, em Alagoas, na Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e Território de Rondônia, com 3.509 participantes;

• Aperfeiçoamento em cadeiras do currículo primário (Linguagem, Mate-mática, Ciências Naturais e Estudos Sociais), oferecido na Guanabara e no Rio Grande do Sul, com 79 participantes;

• Curso para professores de escolas normais e orientadores de ensino, que aconteceu em Minas Gerais e no Paraná, com 250 participantes.

Os cursos de aperfeiçoamento (nos Estados Unidos e no Brasil) eram espaços de circulação de representações e ideias norte-americanas sobre uma educação a ser efetivada no país. As alternativas propostas, entretanto, não

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consideraram a história e a cultura escolar brasileira, gerando, segundo Paiva e Paixão (2002), insatisfação entre os profissionais dos Institutos de Educação. Não obstante serem registradas situações de resistência, nosso objetivo, aqui, é compreender o Habilidades de Estudos Sociais como parte das estratégias formativas de professores primários no contexto do PABAEE.

Circulação e apropriação de determinados ‘Estudos Sociais’

O livro Habilidades de Estudos Sociais, como os demais da coleção Biblioteca de Orientação à Professora Primária, era representado por um sím-bolo, nesse caso o globo terrestre. Partimos do pressuposto de que essa escolha já anunciava a apropriação das ideias de John Michaelis9 para o ensino de Estudos Sociais no ensino primário, especialmente o livro Estudos Sociais para crianças numa democracia. Compreendemos que o processo de apropriação não pode ser visto como mera transposição de ideias e representações, mas encerra um processo de ressignificação. Dessa forma, de acordo com a professora-autora:

Hoje, Estudos Sociais podem ser definidos como sendo o estudo do homem e de todos os seus problemas nas suas relações com outros homens e com o seu am-biente. Segundo John Michaelis, os Estudos Sociais “são estudos concernentes às pessoas e sua inteiração [sic] com meio físico e social; são estudos que tratam das relações humanas”. Como apresentar um assunto tão complexo à capacidade in-fantil? De que forma seriam vistos os variados problemas envolventes do homem num programa da Escola Primária? Estas e outras seriam perguntas a pedir solu-ção. Dentre alguns educadores e sistematizadores dos últimos anos, salienta-se John Michaelis, que fundamenta um programa de Estudos Sociais mostrando implicações históricas, sociológicas, antropológicas, geográficas, econômicas, cí-vicas e políticas no estudo de um caso, ou seja, de uma área de estudo. Mostra-as sob a forma de funções sociais ou atividades do homem. Classificou em 10 as principais funções sociais do homem: Produção, Distribuição, Transporte, Co-municação, Governo, Educação, Conservação, Expressão Estética, Religião, Re-creação. (Peixoto, 1964, p.17)

O estudo da interação do homem com seu meio físico e social vai ser desta forma dimensionado no trabalho da professora Maria Onolita

Habilidades de Estudos Sociais para a professora primária

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Peixoto: produção, distribuição, transporte, comunicação, governo, educação, conservação, expressão estética, religião e recreação. Peixoto ainda esclarece, no que se refere à sua compreensão de aprendizagem: “Todas as habilidades aqui destacadas [na obra] foram treinadas pelas crianças e professoras da Escola de Demonstração do Instituto de Educação e nos permitiram ver o quanto e o como podem nossas crianças se adestrar para o bem aprender” (Peixoto, 1964, p.11).

Observamos, assim, que a apropriação das ideias de John Michaelis sofre uma adaptação no trabalho de Maria Onolita Peixoto, uma vez que o pensa-mento do americano fundamentava-se na Psicologia de Desenvolvimento da Criança com base na discussão sobre aprendizagem como um processo em que a criança modifica o seu comportamento à medida que realiza propósitos im-portantes e significativos. Maria Onolita Peixoto, diferentemente, evidencia a apropriação da Psicologia Behaviorista com ênfase no adestramento social da criança.

A professora-autora apresenta também os objetivos da metodologia dos Estudos Sociais na Escola Primária, isto é: a aprendizagem das habilidades próprias da área, bem como a visão geral das ‘habilidades sociais’ e das ‘habi-lidades específicas de conteúdo’ ou ‘habilidades de estudo’ a serem desenvol-vidas. Pensamos que sua finalidade é chamar a atenção para a dimensão prio-ritária das ‘habilidades’, conforme o título do livro, e orientar a ‘professora primária a ampliá-las, na medida do possível’. As expressões de que ‘as habi-lidades foram treinadas pelas crianças’ demonstra uma centralidade no expe-rimento como forma de desenvolver o conhecimento. Nessa concepção, Peixoto se aproxima mais uma vez das ideias de Michaelis.

Ainda no exercício de manifestação da sua singularidade na apropriação da obra de John Michaelis, Maria Onolita Peixoto explica que a Geografia e a História não são as únicas fontes de explicações das relações humanas. Para tanto, salienta que os programas de Estudos Sociais mostram implicações his-tóricas, sociológicas, antropológicas, geográficas, econômicas, cívicas e políti-cas no estudo das relações humanas. Nessa perspectiva, os Estudos Sociais na Escola Primária deveriam:

levar a criança à compreensão dos fatos e situações de vida, ajustando-se a seu meio, inteirando-se nos grupos a que vem pertencer, convivendo com os outros,

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resolvendo e vencendo os seus próprios problemas ... Cumpre formar e desenvol-ver uma mentalidade sadia em torno de tão poderosos instrumentos de progres-so [Ciência e Tecnologia]; que eles não sejam destruidores da Humanidade, mas exijam e obtenham dela alto senso de dever público, conhecimento esclarecido para as forças e aplicação do bem ... Educar para uma Democracia – educar para viver democraticamente, isto é, em bases de cooperação e ajuda mútua, de res-peito à integridade individual e responsabilidade social, constituem, pois tarefa de relevo na época atual. (Peixoto, 1964, p.18-19)

A professora-autora remete-se à procedência norte-americana de sua con-cepção dos Estudos Sociais explicitando a necessidade de adequar o currículo dessa disciplina às exigências da época. Dessa forma, quanto ao conteúdo, às técnicas e ao modo de ‘preparar e habilitar o educando’ de forma satisfatória, acrescenta: “a tendência de seu currículo na Escola Moderna é seguir objetivos de modo que se trace um programa, cujas bases de estruturação e metodologia sejam condizentes com as necessidades atuais” (Peixoto, 1964, p.20).

Além da influência explícita de John U. Michaelis, percebe-se que, em Habilidades de Estudos Sociais, Maria Onolita Peixoto dialoga com outros sete autores norte-americanos cujas obras constam da bibliografia relacionada ao final de seu livro em sessão denominada “Livros consultados”. Como esses títulos são listados em versão original, acreditamos que isso aponte para uma leitura efetivada na ocasião da realização dos cursos de especialização do PABAEE nos Estados Unidos. Dentre esses, destaca-se o Ensinando estudos sociais na escola primária, de Ralph C. Preston.10

Consta também da relação de livros consultados pela professora-autora o livro Human development and education, de Robert James Havighurst.11 Esse destaque é importante uma vez que foi Havighurst um conceituado cientista do comportamento, tendo identificado tarefas de desenvolvimento que as pes-soas desempenham à medida que crescem e amadurecem. Segundo esse autor, mesmo que as pessoas não tenham conhecimento de que realizam tais tarefas de desenvolvimento, a maneira pela qual executam essas tarefas ajuda a deter-minar suas personalidades em geral. Dessa forma, o sucesso nessas tarefas le-varia à felicidade e ao sucesso em outras tarefas de desenvolvimento que irão executar mais tarde na vida.

Havighurst também identificou seis grandes etapas da vida humana desde o nascimento até a velhice, destacando-se aquelas implicadas naquilo que se

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compreendia ser, então, a vida escolar: infância e primeira infância (nascimen-to até os 6 anos de idade), meia infância (6-13 anos) e adolescência (13-18 anos). Delineou tarefas de desenvolvimento para cada estágio de uma pessoa, compreendendo que a criança deveria aprender a se tornar um adulto digno e produtivo mediante restrições colocadas sobre ela pela sociedade. No Brasil, Havighurst atuou em pesquisas organizadas pelo Inep, tendo publicado obras em parceria com educadores brasileiros, inclusive sobre ensino secundário. Os seus estudos sobre a educação influenciaram a natureza da escolarização nos Estados Unidos e outros autores norte-americanos de sua geração.

Compreendemos que as apropriações das ideias de John Michaelis para o ensino de Estudos Sociais no ensino primário realizadas por Maria Onolita Peixoto e expressas em seu livro Habilidades de Estudos Sociais apresentam influências de Preston e Havighurst. Por isso pode-se perceber as distinções entre o pensamento dos americanos e da brasileira e a interseção da Psicologia do Desenvolvimento com a ênfase no ‘adestramento’ das crianças.

Dessa forma, Peixoto construiu uma argumentação sobre o desenvolvi-mento da aprendizagem da criança que parece dialogar com o referencial de Havighurst. Tais argumentos desdobram-se em sua análise sobre a noção de ‘habilidades’, bem como no relacionamento com os aspectos da aprendizagem e no processo de mudança no comportamento do indivíduo, provocando outra compreensão do arranjo teórico constituído na obra de Michaelis.

Em decorrência dessas apropriações, a professora-autora desloca o foco de sua abordagem do currículo do conteúdo para a aprendizagem da criança, destacando o desenvolvimento das potencialidades infantis com base na expe-riência e em experimentos. Assim, mesmo argumentando que a aprendizagem difere de uma criança para outra, procura traçar padrões que podem variar segundo as diferenças de “prontidão, potencial e experiência” (Peixoto, 1964, p.20). Argumenta, ainda, sobre a importância de o professor conhecer a crian-ça, suas necessidades e as possibilidades de que dispõe para que seja possível a orientação no processo de aprendizagem por meio do desenvolvimento de habilidades.

De acordo com Maria Onolita Peixoto:

Dizem os dicionários que “Habilidade” é a qualidade de quem é hábil, é a “capa-cidade que alguém tem de fazer alguma coisa”, “é destreza”, etc. Os educadores

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modernos, no entanto, reconhecendo a tese da aprendizagem, veem na “Habili-dade” a facilidade de fazer alguma coisa. Toda criança pode ter, aprender e de-senvolver habilidades. E mais: as crianças possuem habilidade criadora em vários estágios de desenvolvimento. Hoje a criatividade é considerada mais uma coisa de grau antes que de espécie ... o ato criador é primariamente alguma expressão que é nova para o indivíduo ou um melhoramento sobre sua expressão passada ... É sobre este prisma, isto é, como o da facilidade para fazer alguma coisa, ou da capacidade de realizar uma ideia, ou praticar uma ação, que iremos tratar do as-sunto de “Habilidades” em Estudos Sociais. (Peixoto, 1964, p.22)

Percebe-se, assim, a vinculação de uma dada representação dos Estudos Sociais como disciplina escolar a um conteúdo pluridisciplinar, cívico e axio-lógico, e à representação de uma educação moderna que deveria formar pro-fessores modernos mediante o desenvolvimento de habilidades. Para a profes-sora-autora, os critérios para a seleção das habilidades para Estudos Sociais modernos deveria considerar o fato de serem possíveis de se desenvolver (Peixoto, 1964, p.22-23):

• através de situações nas quais os alunos vejam uma real necessidade para elas;

• considerando a prontidão do educando;

• através de situações em que os alunos possam usá-las funcionalmente;

• através de situações que permitam à criança crescer na compreensão dos princípios que regem o uso de tal habilidade;

• dentro de uma sequência lógica de dificuldades, quando se trata de habilidades específicas da matéria;

• continuamente;

• através de toda experiência possível de aprendizagem, para proporcio-nar melhor assimilação.

Pensamos que o pressuposto de Maria Onolita Peixoto era que o progra-ma de Estudos Sociais deveria se preocupar com: quais habilidades (de que tipo) deveriam ser formadas e desenvolvidas em Estudos Sociais; quando de-senvolver tais habilidades; através de quais experiências seriam elas desenvol-vidas; e quais materiais seriam necessários para desenvolver habilidades em

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Estudos Sociais. Mais uma vez se distingue de Michaelis, o qual propunha um programa de Estudos Sociais que promovesse o desenvolvimento das crianças e dos jovens considerando o desenvolvimento de atitudes (bem como de com-preensões, aptidões, conceitos, apreciações e conhecimentos construtivos es-senciais à vida democrática): Peixoto enfatiza a socialização da criança com a finalidade de atender a expectativas sociais de uma sociedade comprometida com um desenvolvimento econômico em expansão. Em suas palavras:

A socialização tem também aspectos ativos e construtivos: anima, interessa, mo-tiva, leva o indivíduo a desejar a disputar, a desenvolver e realizar. Em termos gerais, a socialização é, pois, ao mesmo tempo, processo modelador e criador que promove mudanças de comportamentos individuais, de acordo com os valores ditados pela sociedade. (Peixoto, 1964, p.29)

Quanto às chamadas habilidades específicas de conteúdo, é possível ob-servar, principalmente, sua relação com os conhecimentos relacionados à Geografia: leituras de mapas, do globo, de escala, a explicação sobre o movi-mento da terra em redor do sol, a observação da direção do sol e a interpreta-ção de gráficos, por exemplo.

Na singularidade da escrita de Maria Onolita Peixoto, observamos que as habilidades específicas relacionadas aos conhecimentos da História limitaram--se à noção de tempo, de geração e organização dos períodos e fatos da História do Brasil em uma linha do tempo. Assim, de acordo com o livro Habilidades de Estudos Sociais, a linha do tempo seria um recurso didático que auxiliaria a criança a compreender fatos conceituais de tempo e cronologia em uma dada situação. A cronologia, no entendimento da professora-autora, podia se redu-zir a um arranjo de acontecimentos numa sequência de tempo, envolvendo uma compreensão das diferenças entre as datas. Esse estudo deveria ser inicia-do no jardim de infância e seguir gradativamente no decorrer da escola pri-mária, considerando as diferentes etapas do desenvolvimento das habilidades na infância.

Considerando esse desenvolvimento, orientava-se que no 2º ano a criança estudasse a história da sua cidade, e, no 3º ano, a história do seu estado. Peixoto considerava que essa sequência seria como uma volta ao passado, depois que a criança pudesse compreender as relações estabelecidas com a vida presente, e de acordo com uma concepção linear dos acontecimentos históricos. Para

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evitar a simples memorização de datas e nomes, Peixoto afirmava que a criança deveria guardar as datas de sua História, da Pátria, da cidade e de seu estado, por meio de processos associativos com outros acontecimentos.

No 4º ano, por sua vez, a criança aprenderia outros conceitos e noções re-lacionados à compreensão da cronologia, como, por exemplo, a noção de século. Dessa forma, exercitaria a habilidade de comparar e diferenciar épocas, utilizan-do-se do conceito de geração e realizando atividades práticas com base na data de nascimento de familiares. Além disso, Maria Onolita Peixoto estabeleceu princípios básicos para nortearem a construção de uma linha do tempo, consi-derando que “há necessidade de levar a criança a ‘realizar bem’ a sua tarefa, com técnica, com exatidão, com ordem e com capricho” (Peixoto, 1964, p.109). Tais princípios se faziam acompanhar de indicações precisas sobre, por exemplo, a necessidade de se obedecer a uma escala (1 cm representando 1 hora, ou 1 ano ou 1 século), para que a linha do tempo seja apropriada ao objetivo do assunto abordado, além de ser “simples, atraente e original” (Peixoto, 1964, p.109).

O sucesso no ensino e na aprendizagem seriam garantidos pelo fato de seguirem essas orientações fundamentadas em dada representação de Estudos Sociais e apropriadas com base em um referencial composto por diferentes pensadores norte-americanos cujos trabalhos circularam entre os professores aperfeiçoados pelo PABAEE.

Algumas considerações

Compreendemos que a coleção Biblioteca de Orientação da Professora Primária evidencia uma proposta técnica visando ao ‘aperfeiçoamento’ da pro-fessora primária concebida como a preparadora do futuro desenvolvimentista do país por meio da formação do cidadão ‘útil’.

Conforme já mencionado, para Maria Onolita Peixoto o ensino de Estudos Sociais seria responsável por socializar a criança e transformá-la em um adulto útil e produtivo, por meio do trabalho, da solidariedade social e da cooperação, ou seja, por meio do ‘treinamento social’ ou ‘ajustamento do com-portamento’ da criança às expectativas sociais. Essa concepção estava de acor-do com sua visão sobre a Escola Primária cuja tarefa principal seria o desen-volvimento eficiente de ‘habilidades básicas sociais’. Para alcançá-las, a autora argumentava que a melhor maneira possível seria a promoção de experiências

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em situações sociais, ou seja, por meio do trabalho em conjunto, cooperativa-mente, dividindo responsabilidades e partilhando ideias. Essas experiências, isto é, “o valor da cooperação e da responsabilidade, a necessidade de tolerân-cia e respeito pelas opiniões e ideias dos outros, a compreensão de aceitação de críticas, o uso do pensamento crítico, etc.” (Peixoto, 1964, p.28), ainda de acordo com a professora-autora, deveriam ser aprendidas na escola.

Esse conjunto de ideias ganha sentido mais amplo se inserido na concep-ção que Peixoto apresenta para uma escola primária que teria a função de desenvolver a criança em dois aspectos prioritários:

primeiro, o de aprendizagem social ou socialização, pelo qual a criança aprende todas as coisas que deve ou não fazer para se tornar um membro útil da socieda-de ... e responde pelos seus deveres. O segundo aspecto do desenvolvimento so-cial é a formação de vínculos sociais ou a expansão do horizonte social da crian-ça. Ela aprende a incluir maior número de pessoas no grupo a que pertence, ou, em outras palavras, expande o seu horizonte social, compreendendo, à medida que cresce, que é um cidadão da comunidade local do Estado, da Nação e do Mundo. (Peixoto, 1964, p.28)

Diante disso, observamos que a professora-autora lança mão, ao se apro-priar de diferentes pensadores norte-americanos, de dispositivos para criar um suposto consenso que residiria na dimensão das habilidades individuais dos alunos. Consequentemente, produz um velamento sobre a concepção de História, ou melhor, descaracteriza os conhecimentos históricos, enfatizando apenas habilidades sociais e comportamentais como, por exemplo: o processo de trabalho em grupo, a troca de ideias ou discussão informal, a construção de materiais e a solução de problemas.

Considerando a sua relação com o PABAEE e com a circulação das pu-blicações norte-americanas, sua obra também está inserida no contexto da implantação dos Estudos Sociais por meio de estratégias utilizadas para legiti-mar uma educação que atendesse ao ideal liberal de desenvolvimento econô-mico característico desse contexto histórico. De forma inventiva, tomando por base o proposto por Michaelis, que apresentou uma proposta de ensino de Estudos Sociais sob a expectativa de um projeto de sociedade democrática, ela escreve e publica imersa em sociedade que vivia as tessituras de uma ditadura militar.

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NOTAS

1 PAIVA, Edil; PAIXÃO, Léa P. PABAEE (1956-1964): a americanização do ensino ele-mentar no Brasil. Niterói (RJ): Eduff, 2002; este dialoga com o conceito de Chartier (2000, 2009). CHARTIER, Roger. El orden de los libros: lectores, autores, bibliotecas en Europa entre los siglos XIV y XVIII. Trad. Viviana Ackerman. Barcelona: Gedisa, 2000.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Trad. Cristina Antunes. Belo Hori-zonte: Autêntica, 2009.2 BRASIL. Plano Trienal de Educação (1963-1965). Brasília, 1963. p.11. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=28771; Acesso em: 10 nov. 2012.3 TAVARES, José Nilo. Educação e imperialismo no Brasil. Educação e Sociedade, n.7, p.5-52. São Paulo: Cedes, set. 1980.4 ABREU, Claudia Bergerhoff L.; EITERER, Carmem Lucia. A ênfase metodológica na for-mação de professores do PABAEE. Linhas, Florianópolis: Udesc, v.9, n.1, p.93-108, jan.--jun. 2008. Disponível em: www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/viewFi-le/1367/1173; Acesso em: 10 nov. 2012.5 JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de Histó-ria da Educação, Campinas (SP), n.1, p.9-45, 2001.6 BOTO, Carlota. O professor primário português como intelectual: eu ensino, logo existo. Revista da História das Ideias, Coimbra: Faculdade de Letras, v.24, p.85-134, 2003.7 PEIXOTO, Maria Onolita. Habilidades de Estudos Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Nacional de Direito, 1964.8 KRAFZIK, Maria Luiza de Alcântara. Acordo MEC/Usaid: a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático – Colted (1966/1971). Dissertação (Mestrado em Educação) – Progra-ma de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006. p.79.9 MICHAELIS, John. Estudos sociais para crianças numa democracia. Trad. Leonel Vallan-dro. Rio de Janeiro: Globo, 1963.10 PRESTON, Ralph C. Ensinando estudos sociais na escola primária. Rio de Janeiro: MEC/Usaid, 1964.11 HAVIGHURST, Robert James. Human development and education. New York: Long-mans, Green and Co., 1953.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Habilidades de Estudos Sociais para a professora primária

Da didática da História à história da História ensinada

From History Didactics to the history of taught History

Kazumi Munakata*

ResumoNas discussões atuais no campo do ensi-no de História, o grupo da autodenomi-nada Didática da História (ou Geschi-chtsdidaktik) postula que a questão deve ultrapassar os muros da escola para exa-minar todas as ‘elaborações da História sem forma científica’, ou seja, aquelas que não resultam de pesquisas acadêmi-cas. Essa Didática não pertenceria, por-tanto, ao âmbito da Educação, mas da própria Ciência da História. Pode-se, no entanto, perguntar se a atividade do pro-fessor (escolar) de História é da mesma natureza que a dos jornalistas, cineastas, profissionais de museu, autores de histó-ria em quadrinhos, conversas de donas de casa sobre a situação do país etc. O artigo discute essas questões e propõe co-mo alternativa um roteiro para a cons-trução de uma história da História ensi-nada, indicando as condições históricas implicadas na constituição da disciplina escolar denominada História, tendo co-mo referenciais a teoria curricular e a história das disciplinas escolares.Palavras-chave: ensino de História; di-dática da História; história das discipli-nas escolares.

AbstractIn the current discussions in the field of history teaching, the group of the so-called Didactics of History (or Geschich-tsdidaktik) postulates that the theme must overcome the walls of the school to examine all ‘elaborations of History without scientific way’, i.e. those which are not the result of academic research. This Didactics would not belong, there-fore, to the scope of education, but to that of Science of History itself. We can, however, ask if the activity of the (school) history teacher is the same na-ture as that of journalists, filmmakers, museum professionals, comics authors, conversations among the housekeepers on the neighborhood, etc. This article discusses these issues and proposes as an alternative a script for building a his-tory of taught History, indicating the historical conditions involved in the creation of the school subject called History, taking as references the curric-ulum theory and the history of school subjects.Keywords: teaching History; History di-dactics; history of school subjects.

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 251-267 - 2013

* Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade. Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Rua Ministro Godói, 969, 4º andar, Bloco A, Sala 4E-19, Perdizes. 05015-901 São Paulo – SP – Brasil. [email protected]

Kazumi Munakata

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3252

O Ensino de História é um campo de pesquisa que cresceu muito no Brasil desde o final do século XX. Prova disso são os numerosos eventos do campo – Perspectivas do Ensino de História, Pesquisadores de Ensino de História, os seminários temáticos nos Simpósios Nacionais, nos Encontros Regionais da Associação Nacional de História (Anpuh), as atividades dos Grupos de Trabalho (GTs) Nacional e Regionais de Ensino de História e Educação da mesma Anpuh – e a grande afluência de participantes nesses eventos. Para esse crescimento talvez tenha contribuído o surgimento, nos próprios cursos de graduação em História, de disciplinas referentes ao ensino de História, ultra-passando o confinamento da questão nos cursos de Licenciatura, ministrados nas Faculdades e Institutos de Educação. Mas com isso também se acirraram as disputas, já antigas, em torno do domínio sobre esse campo: qual área deve ter competência sobre o ensino de História – História ou Educação? Este artigo visa contribuir para essa discussão, primeiro examinando a proposição da Didática da História, tal qual formulada por Cardoso (2008),1 e em seguida apresentando algumas potencialidades que a abordagem da História da Educação propicia.

De acordo com Cardoso (2008, p.158), a Didática da História, Geschichtsdidaktik, é uma Ciência e “pertence à História, é uma parte indisso-ciável dela. A Geschichtsdidaktik abrange mais do que a realidade escolar, ela estuda a ‘consciência histórica na sociedade’. Essa didática não é apenas mais uma Didaktik der... (didática da...), mas um todo cuja definição numa única palavra – Geschichtsdidaktik – pode não ser casual”.

Para sustentar essa hipótese, Cardoso vale-se da noção, proposta por Chervel,2 de disciplina escolar, que teria sido ‘historicamente criada pela pró-pria escola, na escola e para a escola’, ou seja, mantendo distância, autonomia e diferença em relação à chamada ‘ciência de referência’, da qual não pode ser mera ‘transposição didática’. O raciocínio que segue dessa premissa é inusitado:

Se a História escolar é uma criação da escola, e não uma versão simplificada da ‘História dos historiadores’, a Didática da História não pode ser uma coleção de métodos – Unterrichtsmethoden – utilizáveis tanto no ensino de História quando no de outras disciplinas escolares. Quando reconhecemos a autonomia das disci-plinas escolares, a Didática da História perde seu caráter prescritivo, deixa de ser um conjunto de procedimentos para melhor transmitir aos alunos a ‘História dos

Da didática da História à história da História ensinada

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historiadores’. A Didática da História também perde o status de ‘dramaturgia do ensino’ ou ‘arte de ensinar’ – Lehrkunst –, que ela tinha tal como concebida no século XVII por Jan Comenius. (Cardoso, 2008, p.157-158)

Enquanto Chervel (1988) propõe uma imersão na chamada ‘cultura es-colar’, Cardoso (2008), ao contrário, mesmo invocando-o, conclama a sair da escola, já que, presume, a Geschichtsdidaktik é mais ampla do que o âmbito escolar e, portanto, está dispensada de cuidar das questões escolares. E se a História escolar é distinta da História dos historiadores de ofício, então aquela não é científica, tanto quanto as histórias divulgadas no cotidiano, nos meios de comunicação de massa, nos museus etc., tornadas doravante objeto dessa ciência histórica:

a Geschichtsdidaktik não é uma reflexão apenas sobre a História escolar, mas so-bre todas as ‘elaborações da História sem forma científica’ – nicht-wissenschafts--förmigen Geschichtsverarbeitungen. A Geschichtsdidaktik é uma autorreflexão empreendida pelos profissionais que trabalham com essas manifestações cultu-rais da História sem forma científica, definidas pelo conceito de ‘cultura históri-ca’ – Geschichtskultur. (p.158)

...

Como escola e sociedade se influenciam mutuamente, de um ponto de vista didático-histórico não faz sentido diferenciar a História escolar das outras elabo-rações da História sem forma científica. Não interessa à Didática da História es-tudar o contexto escolar apenas para compreendê-lo, mas como campo de pes-quisa para a compreensão da cultura e da consciência históricas na sociedade como um todo. Se a História escolar não é o objeto exclusivo da Didática da História conforme definida neste artigo, essa área de estudo não é pedagógica, mas histórica, ao contrário das representações mais comuns sobre ela no Brasil. (p.166)

O campo de Ensino de História está assim resgatado para a História; não precisa mais se imiscuir na Educação. Mas em que consistem essas nicht-wis-senschafts-förmigen Geschichtsverarbeitungen, essa ‘elaboração da História sem forma científica’? Cardoso recusa de saída uma discussão epistemológica: “A distinção entre a ‘História dos historiadores’ como científica e a cultura histó-rica como não científica obedece aqui a um critério puramente institucional.

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Os historiadores falam de um lugar que tem status e responsabilidades cientí-ficas – mesmo que recusados por eles –; todos os demais não têm essa prerro-gativa” (p.168, nota 7).

Essa recusa certamente evita alguns problemas. (Por exemplo, dispensa discutir questões do tipo: o teorema de Pitágoras, um componente curricular da matemática escolar, é, por ser exatamente escolar, não científico?) Mas também cria outros problemas, ao descortinar um imenso universo cultural, cuja determinação é meramente negativa: ‘aquilo que não é científico’. Como fazer dessa negatividade o objeto de uma ciência? Mais do que isso, como determinar, nessa imensidão do não científico, aquilo que pode ser tomado como ‘história não científica’? Se tudo é história, tudo o que é representado no mundo não científico é história não científica? Ou constituem matéria dessa história não científica apenas as representações de eventos e ações que certa historiografia (científica), dita tradicional, oficial, positivista etc. considerou ‘fatos históricos’ – ‘descobrimento do Brasil’ por Pedro Álvares Cabral; ‘inde-pendência do Brasil por d. Pedro etc.?

Permanecer no estrito ambiente escolar evita, pelo menos, essas aporias teóricas. É história escolar o que é ministrado na escola como tal – e não deve ser por acaso que Cardoso (2008, p.159), embora faça menção a “filmes, pro-gramas de televisão romances históricos [e romances ‘não históricos’ não con-teriam também elementos de história não científica?], comemoração de datas históricas [quais datas são históricas e quais não o são nessa esfera da não cientificidade?], revistas de divulgação científica e outros textos jornalísticos”, acabe sempre restringindo os exemplos de análise da Geschichtsdidaktik ao ensino de História na escola. “Por exemplo”, diz Cardoso (2008, p.163),

uma pesquisa de campo didático-histórica jamais ignora ou mesmo relega a se-gundo plano os conteúdos tratados numa aula. Quando um pesquisador das ciências da educação enfoca a organização das aulas e abstrai os conteúdos nelas tratados, está agindo de acordo com princípios metodológicos que são coerentes com seu objeto, mas que seriam incoerentes numa pesquisa didático-histórica. A cultura histórica sempre se apresenta tanto na forma como no conteúdo da aula. Ainda que possa espelhar-se em pesquisas educacionais, uma pesquisa de campo didático-histórica sempre se submete ao pressuposto de entender forma e con-teúdo da aula como um todo inseparável. Mais do que isso, ela sempre entende o que ocorre na sala de aula como apenas uma parte de um todo mais amplo, que

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engloba todas as elaborações da História sem forma científica. O que ocorre na sala de aula é só uma parte da cultura histórica, aquela chamada de História es-colar, que mantém relações indissociáveis com outras expressões dessa cultura – livros didáticos, filmes, programas de televisão, sites da internet etc. –, mesmo que tais reações não sejam sempre visíveis aos olhos dos atores de campo ou do pesquisador. Essas relações indissociáveis típicas da cultura histórica impedem o pesquisador de tratá-la como um texto – culture-as-text –, pois ela não é algo separado de seus autores e contexto histórico.

Embora não fique muito claro o que, afinal, deve ser investigado ‘numa aula’, o exemplo apresentado por Cardoso (2008, p.163) tem como referência a metodologia da antropologia, mesmo que seja para negá-la em seguida:

esse tipo de pesquisa não se limita ao que ficou conhecido como ‘antropologia de varanda’, em referência aos etnógrafos que coletavam informações dos nativos nas varandas das casas dos governantes coloniais. Apesar de deixarem seus gabi-netes para ir a campo, o que já representava uma mudança significativa para a antropologia, os antropólogos de varanda apenas entrevistavam os que se diri-giam até eles. A pesquisa de campo didático-histórica não se dirige até a escola para entrevistar professores e alunos, mas para conviver e experienciar com eles. (p.163)

Cabe aos colegas da Antropologia comentarem essa imagem que lhes foi atribuída de conselheiros do sahib na varanda da casa-grande colonial. Vale a pena, no entanto, esclarecer que essa proposta de não apenas “entrevistar pro-fessores e alunos, mas ... conviver e experienciar com eles” foi e é frequente-mente alardeada como uma modalidade da investigação, muito difundida exatamente na Pedagogia – a chamada ‘pesquisa-ação’.3 Além disso, resta a questão crucial: por que essa Geschichtsdidaktik, que faz parte da Ciência Histórica, não pode assumir os procedimentos e as metodologias da pesquisa propriamente histórica? Com essa questão inicia-se a segunda parte do pre-sente artigo, aquela que apresenta as contribuições da História da Educação para pensar o ensino de História.

Uma tal investigação, se se pretende histórica, deve buscar, como sugere Paul Veyne,4 o específico do seu objeto. Um ensino de História escolar, então, não ocorre simplesmente na esfera do não científico, mas num lugar bastante específico, a escola. Esta, por sua vez, é historicamente determinada. Não é

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porque o nome existe desde a Antiguidade que a escola possa ser considerada trans-histórica.5

Como afirmam Vincent, Lahire e Thin,6 a escola, tal qual se conhece até hoje, nasce no século XVII, marcando uma ruptura com os padrões prevalecen-tes de transmissão cultural. Esta, doravante, não ocorre mais em meio às práticas partilhadas por toda uma sociedade (por exemplo, numa sociedade indígena) ou por parte dela (por exemplo, a formação dos aprendizes na oficina de um mestre de corporação), mas se realiza em um lugar distinto de todos os lugares até então existentes da sociedade, numa temporalidade própria e sob a condução de mestres de um novo ofício, o de ensinar. O saber assim ministrado é também exercitado, avaliado e por fim certificado. Esses aspectos por si só já distinguem essa instituição de outros espaços de difusão cultural.

A escola, que assim se institui, não visa a nenhum ofício em particular, mas àquilo que se considera necessário para todos os jovens. Por isso mesmo, o ensino ali ministrado não pode se prender aos fazeres habituais dos ofícios; não há mais o ‘aprender vendo e fazendo’; passa-se da aprendizagem para o ensino. Mas qual deve ser o conteúdo desse(s) saber(es)? O que ensinar? Inicialmente, o ler, o escrever e o contar (e também o rezar). Aos poucos, po-rém, foram se introduzindo outros conteúdos, que comporiam as disciplinas escolares, entre elas a História. Como se processou a seleção e a delimitação desses saberes? Essa é uma questão que, salvo engano, continua em aberto, seja na bibliografia internacional, seja na nacional.

Em particular, o que interessa aqui é a invenção da disciplina História. A esse respeito, convém lembrar a observação de Furet (1979, p.18): “Se a história não é ensinada [no século XIII], é porque ela não se constituiu em matéria ensinável”.7 A questão, que antecipa em quase 10 anos a formulação progra-mática de Chervel (1988) sobre a pesquisa em história das disciplinas escolares, é fundamental: ela opera a desnaturalização dos saberes escolares (em parti-cular, da História) e adverte que nem tudo é ensinável.

Furet (1979), porém, talvez por seu pioneirismo, ignora certos aspectos fundamentais da questão. Segundo ele, a constituição da História como um conhecimento municiado de procedimentos científicos se fez com a incorpo-ração dos saberes eruditos dos antiquários, que, no entanto, não seriam “ensi-náveis” (p.12ss). A esse respeito, comenta Bruter:8

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Infelizmente, F. Furet ... resolve [o problema] de modo a priori, sem construir o objeto ‘ensino’, que desconhece aqui: “Ensina-se a numismática na escola ou no colégio?”, pergunta por exemplo a respeito da erudição, que considera como “uma arte ao mesmo tempo muito incerta e muito erudita [savant] para ser obje-to de uma transmissão escolar”, sem questionar as fontes que mostrariam como a concebiam os professores [régents]; quanto à numismática, ela foi efetivamente objeto de um ensino nos pensionatos dos jesuítas durante o Antigo Regime.

A História não é ensinável não só porque a ciência histórica não está plenamente constituída, como argumenta Furet, mas porque o próprio ensino não comporta conteúdos organizados em disciplinas, entre elas a História. Cabe aqui acompanhar mais de perto o que Bruter (1997a) denomina ‘a História ensinada no Grande Século’ – expressão que dá título à sua obra. Os exemplos são sempre franceses, mas ilustram as mudanças verificadas na História escolar. Se na França, no nível elementar, primário, só há o ensino de ‘ler, escrever e contar’, como foi dito acima, no secundário, em que imperam as chamadas ‘Humanidades’, tudo se organiza em torno da retórica.9 Segundo Bruter (1997b), a

retórica era de fato concebida, à maneira ciceroniana, como a ciência-rainha que engloba e coroa todas as outras, e a fala do orador não triunfava somente pela beleza da sua forma, mas também pela excelência do seu fundo. Não se pode, pois, de modo nenhum, opor o ensino das ‘palavras’ e o ensino das ‘coisas’, já que a retórica não foi concebida apenas como técnica, mas também como saber e mesmo como sabedoria.

...

Assim, as finalidades diversas (cognitiva, retórica, religiosa e moral) do ensino humanista não eram distintas: elas confluem para que toda a atividade escolar seja a ocasião ao mesmo tempo de exercitar o estilo em latim dos alunos, de me-lhorar seu conhecimento da Antiguidade, de aperfeiçoar seus costumes, de apro-fundar sua fé. Concebe-se pois a impossibilidade de se constituir uma ‘discipli-na’, regida por uma finalidade própria, nesse quadro de uma pedagogia cujos objetivos estão tão estreitamente imbricados: cada texto estudado, inclusive os textos poéticos ou de oratória, era a ocasião de fazer conhecer o passado antigo; reciprocamente, os textos históricos não eram, não mais que outros, especifica-

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mente voltados para esse objetivo; contribuíam também para melhoria do voca-bulário e do estilo latinos dos alunos e para a sua edificação moral.10

Trata-se, então, na perspectiva de Bruter (1997a; 1997b), de examinar em que consistia a História ensinada no interior da retórica. Mas como distinguir ali o que é propriamente História e o que não o é? Bruter (1997b, p.77) estabelece alguns critérios. Como essa autora comenta, Ratio Studiorum, manual de ensino dos colégios jesuítas, cuja versão definitiva é de 1599, estabeleceu que “o histo-riador deveria ser explicado ‘mais rapidamente’ do que o poeta, ‘quase correndo’ (historicus celerius fere excurrendus)”. Ela também aponta como um dos traços distintivos da história os conteúdos, que “eram geralmente fatos militares” (p.78), requerendo a descrição dos lugares que constituem o cenário das batalhas, ou seja, aquilo que se tornaria Geografia. Além disso, há nessa modalidade de texto “a exigência do encadeamento dos fatos, que é própria do gênero histórico” (p.80). Em todo caso, essas características não promoveram a autonomização “da história como matéria do ensino, porque se referiam às particularidades da história como gênero textual e não como domínio específico do saber” (p.80). Estava-se, então, sob o império da retórica.

A história do ocaso da retórica (e da sua língua, o latim) ainda está por ser feita. É elucidativo, no entanto, percorrer a trajetória da palavra ‘retórica’ nas sucessivas edições do Dictionnaire de l’Académie Française. Na primeira edição, a de 1694, a primeira entrada do verbete Rhétorique define-a como “Arte de falar bem” (Art de bien dire). Essa definição permanecerá invariável no Dictionnaire (com uma pequena modificação: o acréscimo do artigo ‘A’ antes de ‘Arte’), pelo menos nas edições sucessivas disponíveis. Retórica tam-bém se refere às aulas que a ministram ou ao livro clássico sobre ela.

A definição da retórica como ‘arte de falar bem’ é também adotado pelo Diccionario da Língua Portuguesa, de Antonio de Moraes Silva, publicado em Lisboa, em 1789.11 Nele, a definição “Arte de falar bem” tem um complemento: “para persuadir aos ouvintes”. Essa ideia de persuasão também aparece no dicionário da Academia Francesa, já na primeira edição: “Diz-se Empreguei toda minha Retórica para dizer Eu disse, fiz tudo o que podia para persuadi-lo. Diz-se também, Perdestes vossa Retórica para dizer Podes falar, não o persua-dirás em nada” (On dit, J’ay employé toute ma Rhetorique, pour dire, J’ay dit, j’ay fait tout ce que j’ay pû pour lui persuader. On dit aussi, Vous y perdrez

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vostre Rhetorique, pour dire, Vous avez beau parler, vous ne lui persuaderez point).

Na quarta edição (1762) do Dictionnaire aparecem dois verbetes Rhétorique, dos quais o segundo destina-se exclusivamente à persuasão: “Diz-se, por vezes, no estilo familiar, De tudo o que se emprega no discurso para persuadir alguém” (Se dit quelquefois dans le style familier, De tout ce qu’on emploie dans le discours pour persuader quelqu’un). Em seguida, esse verbete retoma o exemplo do uso apresentado na primeira edição. Na quinta edição (1798), esse segundo verbete Rhétorique recebe mais um acréscimo: “Diz-se também em sentido pejorativo, assim como Retor, para designar a afetação da eloquência. Tudo isso não passa de Retórica” (Il se dit aussi en mauvaise part, ainsi que Rhéteur, pour designer l’affectation d’éloquence. Tout cela n’est que de la Rhétorique). Na sexta edição (1835), à “afetação de eloquência” acrescem--se “os discursos vãos e pomposos” (L’affectation d’éloquence, les discours vains et pompeux) – fórmula mantida na oitava edição (1932-1935).

Do mesmo modo, o ‘lugar comum’ (locus communis), dispositivo da re-tórica que fornece ao retor o repertório de formulações adequadas para cada argumentação e reconhecíveis pelo destinatário do discurso, torna-se sinônimo de clichê, trivialidade, banalidade... No Dictionnaire, da Academia Francesa, as definições técnicas de lugar comum (lieu commun) recebem, na quarta edi-ção (1762), o acréscimo da conotação mais coloquial “certas reflexões gerais e comuns” (certaines réflexions générales & communes); na quinta edição (1798), também significa “coisas usadas e triviais” (Des choses usées et trivia-les); e, na sexta (1835), “ideias usadas, batidas” (Des idées usées, rebattues). Por fim, na oitava edição (1932-1935), desaparecem as definições de lieux com-muns como item do verbete ‘Lugar’ (Lieu), sendo remetidas ao verbete Commun, onde os significados técnicos e vulgares de ‘lugar comum’ aparecem juntos.

Esse rápido exame dos dicionários permite constatar a gradativa retração do valor atribuído à retórica no transcurso do século XIX. Oehler (1999) apon-ta para os traumas produzidos pela Revolução de 1848 como decisivos na mu-dança do paradigma literário. Com Baudelaire e Flaubert, entre outros, a emer-gente literatura moderna “afastou-se do palavrório”.12

A crise da retórica implica também a crise do ensino centrado nela. De um lado, condena-se cada vez mais um padrão de ensino baseado na leitura e

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na memorização dos livros (clássicos). De outro, o ensino começa a ser minis-trado em módulos de conteúdos, que serão chamados de matérias e disciplinas. Costuma-se imaginar que essas matérias são epistemologicamente ‘naturais’: os ‘entes matemáticos’ são naturalmente agrupados na Matemática; os ‘físicos’, na Física; e assim por diante. Cabe, no entanto, acompanhar a indagação de Bruter (1997a, p.31-32):

O teorema de Pitágoras, as peças de Molière ou as experiências de Buffon sobre a digestão não são menos históricos que o Tratado de Utrecht ou a Guerra de 1914-1918; mas há fortes chances de que seja no curso das matemáticas, do fran-cês e das ‘ciências da vida e da terra’, e não no curso de história, que o aluno aprende a conhecê-los. Considera-se em geral que não é necessário saber quem era Pitágoras para empregar seu teorema; quanto às peças de Molière, mesmo que seja útil saber quando viveu o seu autor para compreendê-las, a finalidade primeira de sua leitura na aula de francês não é essa. Os dados históricos intro-duzidos no francês ou nas matemáticas não aparecem como tais, pois são postos ao serviço da aquisição de competências de outro tipo: a aptidão para resolver um problema, a capacidade de expressão. Assim, não são os conteúdos que, por si sós, fazem a disciplina, é também o uso que deles se faz.

A um leitor atento não terá escapado que Bruter (1997a) não menciona mais o ‘Tratado de Utrecht’ ou a ‘Guerra de 1914-1918’, mas ele certamente compreenderá que esses acontecimentos – e, nesse exemplo, só eles – ficaram confinados na rubrica História. Como se processou essa partilha dos conteúdos do saber? Quem a determinou? Por que e para quê? Tais questões, como se afirmou acima, permanecem em aberto, embora cruciais para a história das disciplinas escolares.

Em todo caso, nesse processo de partilha de conteúdos, de acordo com Chervel e Compère,13 a História

desempenha efetivamente um papel iniciador no processo da autonomização das disciplinas. A criação de cadeiras de História nos liceus data de 1818; um concur-so de agregação de História desliga-se do tronco das letras em 1831. A partir desse momento, um curso magistral de História é assegurado nos principais es-tabelecimentos. Evolução disciplinar que marca a abolição do princípio unitário no ensino das humanidades clássicas mas que só será difundido muito lentamen-te no conjunto dos estabelecimentos franceses.

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Essa precedência da História talvez remonte a um tipo de ensino que se expandia, segundo Bruter (1997a; 1997b), fora dos colégios, onde se ministra-vam as Humanidades, mas nos quartos de pensões (chambres des pensionnats, 1997b, p.82) e na formação de jovens príncipes. Comenta Bruter (1997b, p.83-84) que

o ensino nos ‘quartos’ não se inscreve na tradição humanista: distingue-se não só por sua natureza privada (enquanto as aulas dos colégios, dado o caráter univer-sal da mensagem religiosa que ministravam, eram, em princípio, abertas a to-dos), mas também por seus mestres, seus conteúdos e métodos. Preceptores ou ‘prefeitos do quarto’ ensinam em francês, mediante ‘conversas’ mais adequadas que a lição magistral para o futuro status social dos alunos, matérias ausentes nas aulas de humanidades, como geografia, história, ‘fortificação’, ‘brasão’ ou ‘meda-lhas’ etc. ... Pode-se dizer, sem medo de anacronismo, que o ensino nos ‘quartos’ era uma espécie de ensino ‘profissional’ para preparar os jovens nobres para uma carreira no serviço do Estado: essa visada ‘profissional’ é inteiramente explícita na maior parte dos projetos ... por exemplo, no de [François de] La Noue [1531-1591] exortando os reis a assumirem a educação de sua nobreza, “pois dali saem os príncipes, os grandes chefes de guerra, os governadores e altos oficiais, embai-xadores e capitães”. É por isso que esse ensino deve ser em francês, pois se baseia nas realidades contemporâneas para as quais o latim não oferece nem o vocabu-lário nem mesmo conceitos adequados, e também para evitar o desvio, custoso em tempo e energia, da aprendizagem de línguas antigas ...

Ora, a história era um elemento constitutivo componente desse ‘programa’ de ensino aristocrático, como esboçam os textos que o abordam. Mas essa história não era a história humanista e não devia ser ensinada da mesma maneira. A nobreza aspirava a efetuar um tipo de educação menos livresco que a das humanidades ...

...Quanto ao conteúdo desse ensino em gestação, ele se apresenta tal como apa-

rece esboçado pelos projetos educativos em questão � como ‘moderno’ e ‘nacio-nal’, já que deveria se fazer em francês e incluir a história recente, notadamente a história da França.

Essa história que assim se autonomiza como disciplina História carrega, portanto, certo repertório de conteúdos. É como se a ela tivessem sido desde o seu nascimento destinados tópicos como ‘Tratado de Utrecht’ ou a ‘Guerra

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de 1914-1918’ (embora este último exemplo seja completamente anacrônico...). Além disso, esses conteúdos devem servir de exemplos para os jovens nobres e príncipes, de acordo com a célebre fórmula de Cícero. Comentam Garcia e Leduc:14

Na gama de finalidades sucessivas atribuídas ao ensino de História – e à própria História –, até as vésperas da Revolução e mesmo depois dela, a que predomina é claramente a da historia magistra vitae (a história como seleta de lições disponí-vel para a conduta da ação). Essa virtude emprestada da história traduz um tipo de relação com a historicidade na qual o passado é nunca é ultrapassado nem proscrito.

Essa história-exemplo, cujo teor ideológico já foi amplamente constatado e discutido, foi denunciada, como lembra Hery,15 por Lucien Febvre, em 1920: “A história que serve é uma história serva”.

Em todo caso, as ‘histórias mestras da vida’ bastam em si mesmas. É o feito notável, exemplar que deve ser narrado – e esse era o conteúdo da leçon d’histoire, lição de história. Como esclarece Hery (1999, p.157), leçon origina-se da palavra latina lectio (donde também surge o inglês lecture), que “designava, na liturgia romana, a ação de ler em alta voz textos da Escritura ou dos padres da Igreja, isto é, de propriamente recitar – recitare”. Uma leçon, observa Hery, não é uma ‘conversação’, mas uma ‘composição’, cujos critérios de excelência (clareza, extensão da cultura, talento da fala e a irradiação da personalidade) remetiam, portanto, à retórica ciceroniana, e o seu resultado era a aula magis-tral. Cada leçon versava sobre algum tema, certamente sempre moralizante.

Aos poucos, no entanto, a leçon vai dando lugar ao cours (curso), não apenas para não carregar na conotação religiosa, mas também para indicar a série completa das leçons de História. Essa questão da série completa era cru-cial, pois se entendia que o ensino da História obedecia à ‘regra absoluta do percurso integral’, segundo a Journal officiel de la République française, uma publicação oficial da Terceira República (Hery, 1999, p.157). A História, daí em diante, deveria ser narrada em seu suposto conjunto, percurso total, do qual cada aula (classe) era uma unidade. O curso deveria ser planejado aula a aula, de modo a não deixar lacunas, mas também de modo a adequar os con-teúdos nessas unidades temporais que, diga-se de passagem, haviam sido re-duzidas de uma hora e meia para uma hora apenas. Na prática, substituía-se

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uma concepção de história como narração de grandes feitos exemplares por outra, que privilegia os aspectos processuais.16

O cours, no entanto, mantém da leçon o seu caráter oral, que pode se apresentar como ditado (que, de resto, contribui para manter os alunos disci-plinados). O curso oral do professor, que pretende dar conta do ‘percurso integral’, é, no entanto, interrompido exatamente por essas unidades de hora--aula, o que exige um artifício de encadeamento entre o que foi dito antes e o que agora se dirá: tal artifício, que dura de um terço de hora a meia hora, é a interrogation, perguntas que podem ser dirigidas a um aluno individual, a um grupo de alunos ou à classe inteira. Daí o paradoxo: para assegurar a continui-dade do ‘percurso integral’, o curso oral (cujo ideal é ser magistral) do profes-sor torna-se descontínuo. Tal descontinuidade aprofunda-se cada vez mais, à medida que vão se introduzindo novas práticas, como a generalização dos diversos usos dos livros didáticos, o que solicita atividades dos alunos e diver-sificação dos atos do professor. O curso de História deixa de ser apenas o professor falando (Hery, 1999).

Paralelamente a essa passagem de uma concepção a outra, também ocorre, no final do século XIX, a discussão sobre o ensino de História e o ‘psitacismo’ (psittacisme), termo relativo a psitacídeos e que, coloquialmente, costuma-se denominar ‘papagaiada’ (perroquetage).17 As disciplinas escolares implicam exercícios e exames, mas como realizá-las na História? Chervel (1988, p.92), de certo modo, faz eco à questão já posta por Furet e indaga: “A história é disciplinável?”. A dúvida havia sido formulada pelo matemático e filósofo Augustin Cournot, que, num texto de 1864, constatou que o curso de História “presta-se mal à determinação de deveres e tarefas ... Aprender de cor um pequeno catecismo histórico ... só convém à primeira infância e apenas ativa a memória. Redigir com base nas anotações a lição do professor conduz rapi-damente à estenografia, em vez de à escuta e à assimilação” (apud Chervel, 1988, p.92).

Convém lembrar que, segundo Chervel (1988, p.96), �a renovação peda-gógica de 1880 proscreveu os exercícios �passivos� e deu preferência aos exer-cícios �ativos��. Como, porém, introduzir ‘exercícios ativos’ numa disciplina cuja didática requeria o “fazer entrar na memória” (Hery, 1999, p.192)? Prossegue Hery: “Os verbos ‘gravar na memória’, ‘lembrar-se’, ‘recordar’ e ‘rememorar’ são frequentemente empregados nos textos para exprimir o que

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se espera do aluno e, em 1890, as instruções mencionam que a História deve exercitar a memória e, ao fazê-lo, contribuir para a educação intelectual”.

Já no início do século XX, ainda segundo Hery (1999, p.195), a Société d’Histoire Moderne aplicou um questionário a professores de História com as seguintes questões: “É preciso fazer apelo à memória ou à inteligência dos alunos? A História deve ser mnemotécnica ou exercício de reflexão? Ela deve variar segundo as classes e as épocas?”. O resultado, publicado em 1920, apre-sentou elementos intrigantes:

De maneira geral, sublinha o relator, eles [os professores] respondem que a His-tória deve fazer apelo à memória, sobretudo nas classes iniciais, e à reflexão, nas mais adiantadas. De fato, a memória faz parte das faculdades mentais que o ensi-no secundário deve desenvolver, e uma cabeça bem feita’ é, antes, ‘uma cabeça bem cheia’. Como a inteligência procede por associação e combinação, é preciso que o espírito guarde na memória certo número de dados sobre os quais possam se enxertar as aquisições novas. A expressão ‘mobiliar a memória’ traduz essa ideia de que a inteligência não funciona no vazio...

Provavelmente, a passagem da história-exemplo para a história-processo possibilitou conferir menos importância às questões sobre ‘quem?’, ‘o quê?’, ‘onde?’ e ‘quando?’ para valorizar o ‘como?’.

__________

Se houve época em que era praticamente impensável ensinar História sem recorrer à memória, hoje, propor a ‘decoreba’ repugna à maioria dos profes-sores de História e dos aprendizes desse ofício. Isso, no entanto, não significa abandonar por completo a memorização, pois, afinal, ‘a inteligência não fun-ciona no vazio’. Em todo caso, hoje é quase inimaginável o esforço que os professores do século XIX e início do XX devem ter desempenhado para in-ventar práticas de ensino de História que superassem a memorização e valo-rizassem a reflexão, pois não se tratava apenas de mudança de metodologia na sua didática, mas de reformulação completa dos paradigmas epistemológicos e pedagógicos até então prevalentes.

É também com muita facilidade que hoje se critica a chamada ‘história oficial’, ‘positivista’, constituída de ‘Tratado de Utrecht’ e outros episódios relacionados com os poderosos, os vencedores, os donos do poder, a classe

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dirigente e dominante etc., enquanto aquilo que Cardoso (2008) chama de ‘história científica’ estende seu domínio para tudo e todos – mulheres, escra-vos, operários, música, medicina, praia, lágrima, comidas, conceitos, tecnolo-gia, clima, nádegas, roupas pretas, tudo, literalmente tudo, até mesmo o Tratado de Utrecht. Mas essa História escolar, no momento mesmo em que se autonomizou como disciplina, foi esvaziada da possibilidade de lidar com ou-tros temas, que hoje são tidos como ‘históricos’. No Brasil, criou-se algo deno-minado ‘História do Brasil’, cujas linhas gerais foram traçadas por Varnhagen, no século XIX, e que persistem até hoje, mesmo com conotações político--ideológicas diferentes: trata-se de uma história-processo que narra a trajetória ascendente de um sujeito, o Brasil, cujo destino se cumpre graças aos grandes feitos de alguns homens (mulheres, quase nenhuma).

Toda essa história da invenção da História do Brasil é muito conhecida. Mas há certo conformismo que a naturaliza como ‘já dada’, inexorável, irre-vogável, obscurecendo outras possibilidades, por exemplo, aquela inscrita no compêndio de Abreu e Lima, estudado por Selma Rinaldi Mattos.18 Talvez estejam faltando investigações sobre a expansão e a consolidação da versão varnhageniana da História ensinada do Brasil.

No Brasil, como alhures, já se fizeram tentativas da reforma curricular de História ensinada. As mais radicais ocorreram nos anos 1980 e, de certo modo, faziam parte dos esforços de desmontagem da ditadura militar. Sobre isso já há uma vasta bibliografia, assim como sobre as reformas que foram ensaiadas em outras partes do mundo, na mesma época, e em relação não apenas à História escolar, mas também a outras disciplinas. Para descrever esses movimentos que agitaram o universo escolar de muitos países, Ivor Goodson19 emprega a imagem de grandes ondas a inundarem vastas terras. As grandes ondas, no entanto, re-cuaram, fazendo reaparecer as ‘terras altas’, intactas, altaneiras: são as disciplinas escolares. Em outras palavras, de nada adiantam as agitações de superfície – al-terações em conteúdos aqui; mudanças nas abordagens didáticas acolá –, se não se promover séria interrogação sobre a invenção das disciplinas escolares, que constituem a escolarização contemporânea. Daí o convite de Goodson para o estudo das disciplinas escolares sob perspectiva histórica.

Este artigo, que aqui se encerra, reitera esse convite. Talvez seja importante que a formação do profissional de História tenha como uma de suas preocupa-ções a história do campo do saber e da profissão a que estará vinculado. O

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conhecimento da história da constituição desse campo permite avaliar o modo como ele se estruturou e quais os limites de alteração dentro dessa estrutura. A Geschichtsdidaktik, ao cancelar o que há de específico no ensino de História escolar, instituindo o campo indistinto do ‘não científico’, não propicia a possi-bilidade desse reconhecimento do campo.

NOTAS

1 CARDOSO, Oldimar. Para uma definição de Didática de História. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55, p.153-170, 2008.2 CHERVEL, André. L’histoire des disciplines scolaires: réflexions sur un domaine de re-cherches. Histoire de l’Éducation, Paris: INRP, n.38, p.59-119, mai 1988. p.66. No Brasil, o texto foi publicado como História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre: Pannonica, n.2, p.117-229, 1990.3 Sobre pesquisa-ação, ver TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação & Pesquisa, São Paulo: Feusp, v.31, n.3, p.443-466, set.-dez. 2005; e ENGEL, Guido Irineu. Pesquisa-ação. Educar, Curitiba: UFPR, n.16, p.181-191, 2000.4 Sobre o específico na investigação histórica, ver VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa: Ed. 70, 1983.5 ‘Escola’ deriva do grego skholé, que equivale ao latim otium, ócio, o que efetivamente não coincide com a imagem atual da escola.6 VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; e THIN, Daniel. Sur l’histoire e la théorie de la forme scolaire. In: VINCENT, Guy (Dir.). L’éducation prisonnière de la forme scolaire? Scolarisa-tion et socialisation dans les sociétés industrielles. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994. Há uma tradução brasileira, por Diana Gonçalves Vidal, em Educação em Revista, Belo Horizonte: UFMG, n.33, p.7-47, jun. 2001.7 FURET, François. La naissance de l’histoire. Histoire, Paris: Hachette, n.1, p.11-41, mar. 1979.8 BRUTER, Annie. L’Histoire enseignée au Grand Siècle: naissance d’une pédagogie. Paris: Belin, 1997a. p.22 (aqui e nas demais citações, trad. KM). O ‘Grande Século’ a que o título faz referência corresponde ao século XVII.9 A respeito das Humanidades, ver CHERVEL, André; COMPÈRE, Marie-Madeleine. Les humanités dans l’histoire de l’enseignement français. Histoire de l’Éducation, Paris: INRP, n.74, p.5-38, mai 1997.10 BRUTER, Annie. Entre rhétorique et politique: l’histoire dans les collèges jésuites au XVIIe. siècle. Histoire de l’Éducation, Paris: INRP, n.74, p.59-88, mai 1997b. p.62 e 63 (aqui e nas demais citações, trad. KM). Para uma síntese da pesquisa desenvolvida por Bruter,

Da didática da História à história da História ensinada

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ver: BRUTER, Annie. Um exemplo de pesquisa sobre a história de uma disciplina escolar: a História ensinada no século XVII. História da Educação, Pelotas: Associação Rio-Gran-dense de Pesquisadores em História da Educação, n.18, p.7-21, set. 2005.11 O Dictionnaire de l’Académie Française, nas edições de número 1 (1694), 4 (1762), 5 (1798), 6 (1835) e 8 (1932-1935), encontra-se disponível em http://artfl-project.uchicago.edu/content/dictionnaires-dautrefois; Acesso em: 15 dez. 2012. O Diccionário da Lingua Portuguesa, de 1789, pode ser consultado no site do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP): www.ieb.usp.br/catalogo_eletronico/.12 OEHLER, Dolf. O Velho Mundo desce aos infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.14. O autor, como declara no título da obra, identifica nos acontecimentos da Revolução de 1848 a grande virada na literatura, de que resulta a modernidade estética. A respeito do declínio da retórica, ver também MUNAKATA, Kazumi. O ocaso das palavras: mudanças nos pa-radigmas epistemológico e pedagógico no século XIX, a ser publicado numa coletânea.13 CHERVEL, André; COMPÈRE, Marie-Madeleine. Histoire de l’Éducation. Paris: INRP, n.74, p.5-38, mai 1997. p.34 (trad. KM).14 GARCIA, Patrick; LEDUC, Jean. L’enseignement de l’histoire en France de l’Ancien Régi-me à nos jours. Paris: Armand Colin, 2003. p.6-7 (trad. KM).15 HERY, Évelyne. Un siècle de leçons d’histoire: l’histoire enseignée au lycée, 1870-1970. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 1999. p.76-77.16 Hannah Arendt também aponta para essa passagem da história como narrativa de gran-des feitos memoráveis para a história como processo, embora sua abordagem seja anacrô-nica, situando em Descartes as origens da noção de processo. Cf. ARENDT, Hannah. O conceito de história – antigo e moderno. In: _______. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979.17 O Dictionnaire de l’Académie Française, em sua oitava edição (1932-1935), define “Psit-tacisme” como “didática. Disposição do espírito que consiste em repetir as palavras de outrem à maneira dos papagaios” (“didactique. Disposition d’esprit que consiste à répéter les paroles d’autrui à la façon des perroquets”).18 MATTOS, Selma Rinaldi. Para formar os brasileiros: compêndio de História do Brasil de Abreu e Lima e a expansão para dentro do Império do Brasil. Tese (Doutorado em Histó-ria) – FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.19 GOODSON, Ivor. ¿Por qué estudiar las disciplinas escolares? In: _______. Historia del curriculum: la construcción social de las disciplinas escolares. Barcelona: Pomares-Corre-dor, 1995. p.95-107.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

“Parece que você está invadindo um espaço que não é seu”: professoras de História

narram experiências do início de carreira“It seems you are trespassing a space that is not yours”: History

teachers narrate the career beginning experiences

Elison Antonio Paim*

ResumoO artigo apresenta uma retomada do diá-logo com depoimentos realizados para a pesquisa de doutorado desenvolvida na Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp). Centro a dis-cussão nas relações desenvolvidas entre os professores recém-graduados que che-gam às escolas e aqueles que lá estão. Com base nas falas dos professores, foi possível captar elementos que vão além da ideia de formar professores – há um fazer-se professor. Nesse sentido, consti-tui-se um emaranhado de relações quan-do os professores interagem com dife-rentes sujeitos, como os professores da graduação, da escola, com os alunos, pais, professores e direções das escolas. A pesquisa possibilitou perceber que, ao narrar suas memórias e experiências, os depoentes tornam-se sujeitos, passam a ter novamente a capacidade de ser auto-res de suas práticas.Palavras-chave: memória; experiência; fazer-se professor(a); início de carreira.

AbstractThis article presents a return to the dia-logues with testimonies made for my doctoral research, developed at the Fac-uldade de Educação at the Universidade de Campinas (Unicamp). The discus-sion is centered in the relationships de-veloped between the just-graduated teachers who have arrived at the schools and the teachers that were already there. Based on the teachers’ statements it was possible to capture elements that go be-yond the idea of training teachers – there is a making of a teacher. In this sense, a medley of relationships is con-stituted when the teachers interact with different subjects, such as the Gradua-tion professors, school teachers, stu-dents, parents and the school board. The research allowed us to realize that, when narrating their memories and ex-periences, witnesses became subjects, begin to have once again the ability of being authors of their practices.Keywords: memory; experience; be-coming a teacher; career beginning.

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 269-281 - 2013

* Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências da Educação, sala 400, Campus Universitário Trindade. 88010-970 Florianópolis – SC – Brasil. [email protected]

Elison Antonio Paim

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A origem dos fios

... consolidadas as habilidades necessárias, chega-se a uma certa proficiência pedagógica, o que modela um estilo pessoal no co-mando da classe. Uma flexibilidade maior na gestão diária da classe permite à pessoa encarar de modo mais cômodo o exercício da profissão. A autoridade passa a ser mais natural, realista, segu-ra e espontânea.

Antonio Bolívar 1

Como bem expressou Antonio Bolívar, os professores, ao longo da car-reira, vão construindo sua autonomia. Mas, como efetivamente acontece tal construção? Quais relações os professores recém-chegados à escola constroem com os que lá já estão, e também com os alunos, os pais de alunos, e a direção das escolas? Compreendendo que essa construção é social e historicamente datada, procuro, a seguir, aproximar-me dos processos de construção da au-tonomia pelo grupo de professores de História em início de carreira, com os quais dialogo.2

O texto ora apresentado é um fragmento da tese Memórias e experiências do fazer-se professor(a), apresentada na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).3 Como fontes de pesquisa, utilizei relatórios de estágio e de pesquisa produzidos pelos professores depoentes, materiais técnicos da universidade e vinte depoimentos orais. A seleção dos depoentes procurou expressar as múltiplas condições de trabalho, ou seja, escolas públi-cas municipais e estaduais e escolas privadas, bem como os diversos municí-pios da região Oeste de Santa Catarina, escolas de centro, de bairros e de co-munidades do interior. Como ferramentas teóricas, utilizei as contribuições apresentadas em várias obras por Bakhtin, Benjamin, Thompson e Vigotski.4

Para pensar as memórias e experiências do ‘fazer-se professor’ 5 foi neces-sário investigar: Como ocorreu a chegada dos novos professores às escolas? Como os professores focalizados iniciaram sua atuação profissional? Quais as relações estabelecidas com seus alunos, com os pais, a direção e os demais professores, nos primeiros tempos de trabalho? Quais as dificuldades encon-tradas e como as superaram, ou não? São algumas das questões que tangenciam este artigo cujo foco central é a chegada dos professores de História

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“Parece que você está invadindo um espaço que não é seu”

recém-graduados às escolas e suas relações com professores de História já estabelecidos.

Olhando algumas tessituras

Neste espaço abordarei, inicialmente, como diferentes pesquisadores vêm tratando o que denominam ‘choque de realidade’, ‘tempo de tensões’, ‘período de socialização pessoal’, ‘tornar-se professor’, ‘ritual de iniciação’ ou ‘formação de identidades’, expressões comumente utilizadas para denominar o momento em que os estagiários fazem a passagem da universidade para a escola. Num segundo momento, trago as vozes dos companheiros de diálogo – professores de História – para que expressem como viveram esses momentos iniciais em suas carreiras.

A experiência em sala de aula desencadeia o processo de relacionamento dos conhecimentos da formação com os dados da própria prática e com os do contexto escolar. A sala de aula fornece pistas fundamentais para que o pro-fessor articule esses conhecimentos. Porém, a relação entre formação e prática dificulta a identificação de quais acontecimentos pertencem à formação e quais conhecimentos são provenientes da prática.6

Ao ‘tornar-se professor’, o sujeito vai adotando comportamentos de en-sino em sala de aula, legitimados pela ‘realidade’ social, que implica interpretar os “padrões de comportamento dos alunos”, bem como “conhecer as suas le-gítimas expectativas e ajustar a elas os comportamentos de professor”. Esse movimento traduz-se “numa progressiva evolução, de uma concepção inicial-mente ingênua e liberal para uma concepção mais pragmática e conservadora do desempenho da profissão”.7 No mesmo sentido, apontando as mudanças, Silva8 afirma que os professores iniciantes “sentem que o medo começou a dar lugar à segurança adquirida através do trabalho com colegas, ao contentamen-to pela aquisição de experiência, ao desejo de afirmação como profissional, à espera de melhoria no seu desempenho e ao contentamento pela boa relação com os alunos, apesar de ter sido o campo onde percebem o maior número de dificuldades”.

Na formação de identidades é que os professores iniciantes se firmam como profissionais; ao desenvolverem experiências e trocas, vão percebendo

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a necessidade de ceder em determinados pontos, na relação com os alunos, e assim vão se consolidando como profissionais.

No contexto de familiarização com a escola vivida, os professores iniciantes encontram muitas dificuldades, decorrentes de vários fatores. Guarnieri (1996) ressalta que a escolha equivocada da profissão leva ao fracasso do professor ini-ciante, e atribui tal fracasso aos seguintes fatores: “à inadequação de atitudes e às características pessoais; à falta de treinamento adequado para o desenvolvimento de habilidades necessárias ao ensino; à situação escolar permeada por relações autoritárias, burocráticas e hierárquicas; à estrutura organizativa rígida; à falta de recursos e materiais; ao isolamento; à execução de múltiplas tarefas e, ainda, à destinação de classes difíceis aos novos professores” (p.13).

A estrutura da escola, sua organização político-administrativa, interfere muito nas experiências que serão vividas pelos professores iniciantes. Assim, a organização dos tempos e espaços é fundamental para uma maior ou menor facilidade na inserção do novo professor no mundo escolar. O fato de os pro-fessores trabalharem na maior parte do tempo isolados na sala de aula com os seus alunos vai constituindo uma cultura do individualismo, em que os pro-fessores se recusam a partilhar experiências, problemas, dificuldades, e em abrir as portas da sala de aula ao controle e à colaboração de outros colegas.9

Além da estrutura político-administrativa das escolas, existe explícita ou implicitamente em seu interior uma estrutura hierárquica entre os diferentes sujeitos e saberes que nela convivem. Ao chegarem às escolas, os professores iniciantes encontram-se, muitas vezes, desarmados e pouco preparados com relação aos problemas de organização do trabalho em um grupo social com-plexo, com uma intrincada dinâmica de forças. Assim, “aos professores ini-ciantes são designados os piores alunos, aulas e matérias, que seus companhei-ros mais experientes tenham descartado”.10

Numa perspectiva segundo a qual os professores constituem-se profissio-nalmente de forma relacional, ou seja, desenvolvem suas identidades por meio de múltiplos fios de “relações familiares, de classes, condições de gênero, ca-racterísticas relativas à idade, etnia, religiosidade, cidadania e outros, cada um deles matizados de anseios, limites, rupturas e possibilidades”, “cada um desses fios tem uma dimensão formadora”.11 Assim, por intermédio desses fios vão sendo tecidas múltiplas teias de relações no interior da escola.12

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Na trama das relações, para converter-se em professor é necessário nego-ciar com estudantes e colegas. No entanto, essa negociação não corre de ma-neira previsível, pois o processo é “altamente interactivo, lleno de contradic-ciones, con una iteración constante entre la elección y las restricciones, un proceso en el que influen los profesores y que ellos mismos configuran”.13

Esteve (1999) lembra que, assim que chegam à prática do magistério, os professores iniciantes começam uma revisão de suas atividades e ideais, para adaptá-los à “áspera e dura realidade da vida cotidiana em sala de aula”. Nos primeiros anos da prática profissional, os professores percebem que muitos dos seus ideais pedagógicos são “irrealizáveis, vistas as atuais limitações da prática” (p.43). Conforme avançam nas práticas docentes, os professores têm de enfrentar as dificuldades ‘reais’ do magistério; assim, entram em choque aquelas imagens idealizadas de sua profissão, as quais foram construídas du-rante seu período de formação inicial.

Mas nem só de problemas, dificuldades e renúncias vivem os professores em início de carreira. Existe uma série de conquistas, descobrimentos e possi-bilidades que vão descortinando-se conforme os professores colocam-se dis-poníveis para as diferentes aprendizagens, que ocorrem ao assumir os traba-lhos na escola. Esse momento do fazer-se professor vem sempre como complemento das experiências vividas na formação inicial.

Nesse sentido, são importantes as contribuições de Walter Benjamin e Edward Palmer Thompson quando propõem pensarmos a sociedade por in-termédio das experiências. Assim, podemos discutir a formação de professores com os professores, levando-se em consideração o que pensam, como vivem, quais experiências têm para contar, que metodologias desenvolvem, quais as relações que tecem entre teorias e práticas cotidianas, como constroem sua autonomia enquanto profissionais do ensino.

Novos tecelões se põem em movimento

Destacarei, aqui, como essas questões aparecem nas experiências vividas pelos professores depoentes, ou seja, como os professores de História em início de carreira, nas experiências cotidianas, no seu fazer-se, dialogam ou não com os professores mais experientes.

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Inicialmente, partilho com os leitores o depoimento da professora Neiva,14 docente em uma escola considerada grande entre os pequenos municípios da região Oeste de Santa Catarina, onde boa parte delas tem um ou dois professo-res para cada disciplina. Seu depoimento é calcado na experiência de organiza-ção de uma feira escolar, na qual desenvolveu com seus alunos uma série de trabalhos a serem expostos, o que lhe proporcionou elogios da diretora da es-cola. Evidenciam-se, nesse episódio, elementos significativos das relações entre os professores com maior experiência e os que acabaram de chegar às escolas:

Quando cheguei, quando me efetivei, tinha dois professores de História no final de carreira. Eu procurei, pedi ajuda, para que me dessem ideia, para que montás-semos essa feira juntos. No início beleza, disseram que sim, que iriam participar. Mas, quando era hora de participar, de fazer essa ajuda, de dar ideias... Montei toda uma sala dos 500 anos, mostrando as partes principais dos 500 anos e de-pois fazendo uma crítica dos dias de hoje. Disseram-me que sim, que iriam me ajudar, mas depois, quando chegou na hora de ajudar, não vi ninguém me aju-dando. Esses professores, geralmente, não estão mais dispostos a ajudar. Quem ajuda mesmo são os outros. Mesmo essa professora de Geografia, a professora M., é uma professora excelente, que – meu Deus do céu! – ela ajuda sempre, ela está sempre envolvida comigo. Mais com ela do que com os professores de Histó-ria. Parece que eles têm certa inveja da gente, fazer essas criatividades, fazer essas aulas diferentes. Porque a diretora chegou na sala de aula e disse assim: “Vocês viram o trabalho que a professora Neiva fez com os alunos? Vocês viram que coisa bonita, que os alunos estão aprendendo, estão fazendo coisas diferentes?”. Me parece que elas se sentem desvalorizadas porque não fizeram esse tipo de coisa. Então elas procuram não ajudar, procuram criticar. E, de vez em quando, dizem: “mas isso aqui, você poderia ter feito melhor”. Mas não ajudam a gente, na hora, dizendo: “Olha, Neiva, aqui, vou te dar uma ideia disso e daquilo”. Depois que aconteceu, se percebem alguma falha, dizem: “Na próxima vez, você pode fazer assim”. Mas elas não ajudam. Então é isso, a gente sente dificuldade com esses professores de História, porque pararam no tempo...

A professora Marilita narrou15 que as relações entre ela e a colega de História foram semelhantes às descritas pela professora Neiva e, em alguns aspectos, até mais difíceis. Isso porque, segundo a narradora, ela solicitou ajuda para seu início de trabalho e esta lhe foi negada. Porém, percebemos em sua narração sinais de reconhecimento de alteridade, tanto por quem

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estava chegando, como por quem já estava na escola. Podemos tecer aqui um diálogo com as reflexões de Norbert Elias,16 quando aponta as relações entre “os estabelecidos e os outsiders”, ou seja, aqueles que já estão na escola sen-tem-se ameaçados e recebem os novos de forma muitas vezes agressiva, pas-sando a desqualificar o trabalho dos que chegam, os de fora. Mas vejamos como ela narrou as suas experiências vividas, ao chegar para trabalhar na escola:

Você se depara com professores mais velhos ... E, muitas vezes, você se sente uma formiga. Porque ao invés de se unir a esse formigueiro você se sente uma formiga excluída. Por quê? Pelo fato de você iniciar, muitas delas acham que você tem que estar sempre submissa, porque elas sabem mais, elas estão se aposentando. Então, nós não temos direito nenhum de saber sobre um assunto a mais, ou ter uma forma diferente de trabalhar. Você é sempre contestada, pondo em dúvida o teu trabalho. Até se você precisar de um material, uma coisa, no meu caso eu não peço, vou atrás ou procuro outros professores. Única professora com que me acerto, mas, acho que é porque é minha geração, se formou um ano antes que eu, é a professora J. As demais têm um muro de Berlim, um muro americano entre nós, e que não é fácil ultrapassar, não porque eu não queira. Desde que comecei procurei ajuda, senti dificuldade, mas vi que não tinha retorno nenhum. Por exemplo, uma época fui pedir um material sobre o município, uma determinada professora me disse assim: “Vai lá na Prefeitura que eles têm!”. Em momento ne-nhum ela disse assim: “Eu tenho, se você quer eu te empresto. Se por acaso você não quiser pegar o meu, vai lá na Prefeitura”. Não, aquela coisa bem direta: “Vai lá na Prefeitura que eles têm!”. Eu sabia que ela tinha. Foi no primeiro ano, em 1996, quando comecei a minha Graduação, a partir daquele momento eu disse: “Não, vou ter que fazer tudo sozinha!”. Então não procurei mais. Tem até uma professora que passa raspando em mim, ela não me cumprimenta, a gente se ig-nora, finge que não existe. Então, além de você ter todo esse problema de mate-rial didático, de problema financeiro dos alunos, ainda você se depara com cole-gas achando que você está competindo e não achando que você vai trabalhar junto, que você vai contribuir um ao outro, ela com a experiência dela e, eu, diga-mos, com a minha forma nova de trabalhar, que seria diferente. Não existe isso. Aqui não existe.

Evidenciam-se, nas narrativas, elementos constituintes da racionalidade técnica, instrumental, que historicamente foi sendo implementada nas escolas:

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cada uma realiza o seu trabalho sem se vincular com as demais. Explicita-se, exatamente, o modelo de escola concebido pela modernidade capitalista, no qual predominam as relações verticalizadas, hierarquizadas entre os sujeitos, que nela convivem de maneira distanciada.

Nessa falta de relação de troca com o outro, revelam-se alguns elementos constitutivos do ser professor, que não encontra no outro a si próprio e, nesse sentido, repudia o outro, bem como, ao mesmo tempo, vai se fazendo nessa relação com o outro ao disputar espaços, tempos, saberes, atenções. Na relação com o outro, ao tentar colocar-se como diferente, como superior, como mais capacitado, escondem-se, muitas vezes, as fraquezas e as dificuldades. Portanto, se o outro pensar que sou diferente, que faço um bom trabalho, que tenho a simpatia e o respeito dos dirigentes, escondo, assim, as fraquezas e me torno alguém que precisa ser respeitado.

A professora Nanci relatou17 suas experiências de convívio com outra professora de História, no caso, a professora Gentília, também nossa depoente. Destacou que, em muitos momentos, planejaram juntas. Para ela, o que teria facilitado essa cooperação foi a proximidade de ideias e a formação inicial semelhante, vivida por ambas.

Olha, eu trabalhei com a professora Gentília, nós duas, ela se formou um ano antes que eu. Então, tínhamos a mesma postura, a mesma visão de História. A gente fechava, discutia algumas questões, algum momento até levantava os pro-blemas, que teria que montar um plano de curso melhor, dentro da Proposta Curricular. Questionava, muitas vezes, os PCNs, até que ponto podíamos aplicar o que tem, até que ponto os PCNs não são aplicados? Tínhamos esses problemas, falávamos muito sobre isso, de tempo para sentar... Nós trocávamos material, textos, tentamos trabalhar com algumas apostilas, a apostila do neoliberalismo, nós até trabalhamos aquela da consulta popular com a 8ª série ... Mas eu sentia muito, professores mais antigos que se diziam pós-graduados e, muitas vezes, não estavam nem formados ainda. E, às vezes, esse pós-graduado não contribuía em nada e, muitas vezes, atrapalhava. Uma das questões polêmicas que surgiram na escola foi quando tentamos implantar um projeto da questão dos 500 anos, tentando contrapor ao que a Rede Globo trazia na televisão, a maravilha dos 500 anos, e nós querendo trabalhar os outros 500. E a pessoa que mais resistiu foi a diretora, que é formada em História, porque ela não admitia a gente trabalhar História nessa versão. Não aceitava de forma alguma, foi bastante polêmico. As-sim, até certo deboche com quem lê dentro da escola, porque se você lê, você fala

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que está analisando conceitos de outros autores, você de certa forma é visto as-sim: “Você está querendo dar uma de intelectual”. Você é o bom que lê e está querendo aparecer frente aos teus colegas. É mais ou menos por aí que você sen-te que os profissionais mais antigos, que não se atualizaram, veem os novos que estão entrando hoje na escola. E eles ganham muito bem, a gente sabe disso. São pessoas que tiveram cargos comissionados, ganham suficientemente bem para se atualizar, para ter um acervo maior de livros, e são os que menos estudam e os que mais atrapalham dentro da escola. Infelizmente, é assim.

Se por um lado, a professora Nanci viveu o momento inicial de carreira em companhia de uma colega que também enfrentava, talvez, os mesmos pro-blemas, por outro lado, em conjunto enfrentou os problemas de resistência ao que propunha, quer da parte dos alunos, quer da parte da direção e de outros colegas. Percebemos, em sua narração, aspectos próprios da cultura escolar daquela unidade escolar na qual tanto a direção quanto colegas já estabilizados em suas carreiras rejeitaram propostas de trabalho mais questionadoras e so-brevalorizaram aqueles colegas que não se propunham à inovação e ao estudar permanente.

A professora Ângela Cechetti também narrou como foi recebida na esco-la.18 Relatou que inicialmente uma colega de História a acusou de estar rou-bando a sua vaga; no entanto, depois passou a tratá-la de forma diferente, com mais cordialidade, dialogando sobre atividades que poderiam desenvolver conjuntamente:

Até a metodologia de trabalho, a formação minha e de outros professores de His-tória no Colégio é um pouquinho diferente. Parece que você está invadindo um espaço que não é teu. Um dia, de brincadeira, uma professora me falou assim: “Então? É tu que veio para tomar o meu lugar? Tu que veio para tomar a minha vaga?”. Eu falei: “Não, eu não vim tomar tua vaga. Eu até gostaria de falar contigo sobre como vamos trabalhar. Preparar junto, conversar o conteúdo que vamos trabalhar com as turmas”. Mas foi só esse primeiro contato. Depois conversamos, combinamos algumas coisas, trocamos ideias, conteúdos, formas de trabalhar. O que ela acha importante, o que eu acho importante, aquilo que diverge também. Mas, um pouquinho tem, parece, uma espécie de competição.

Percebemos, assim, que a relação inicial foi de estranhamento de ambas as partes, evidenciando como a construção do professor é relacional, em que

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o desconhecido assusta, amedronta; porém, a partir do diálogo aberto ao outro as coisas foram esclarecendo-se.

Entrelaçando novos fios

Como percebemos, as professoras em início de carreira com as quais dia-logamos apresentaram dificuldades em seus relacionamentos com os colegas de História que já estavam nas escolas. Nesse sentido, permaneceram as vivên-cias e não as experiências vividas, tecidas de forma relacional.

Percebemos que essas professoras estavam se construindo em dinâmicas relacionais. Evidentemente são relações, muitas vezes conflituosas, a despeito de algumas parcerias. Dessa maneira, aquelas professoras iniciantes que esti-mularam para que os professores, os alunos e a direção entendessem por que estão fazendo determinadas atividades conseguiram maior aceitação ao seu trabalho.

Esses depoimentos constituem uma tentativa de recomposição dos sujei-tos nas suas totalidades; procurei ver os fragmentos, os estilhaços das experiên-cias nas narrativas das professoras, mas também a totalidade das relações, ao pensar a escola marcada, sobretudo, pela racionalidade instrumental. Possibilitou-me perceber, nessa relação com o outro dos depoentes, o quanto é necessário, para nós pesquisadores, respeitarmos e valorizarmos nosso outro na relação de pesquisa, fazendo que este – o depoente – se torne sujeito. Assim, “o objeto de estudo torna-se então sujeito, sujeito falante, autor, do mesmo modo que aquele que o estuda”.19

As professoras ao narrar suas experiências iniciais como docentes expli-citaram as tensões havidas na produção de seus saberes e práticas histórico--educacionais; deixaram marcas, que evidenciam suas resistências, em prol de outras concepções, de diálogos, pautados no respeito mútuo, nas trocas dos saberes, das experiências vividas; ousaram, muitas vezes, questionar as culturas escolares, fundamentalmente marcadas pela racionalidade técnica instrumen-tal; buscaram pequenas brechas de relações com os outros – a despeito da ri-gidez, da cristalização das práticas, relativas aos tempos, aos espaços e às rela-ções socioculturais.

As memórias dessas professoras trouxeram, além de informações, o re-gistro de experiências vividas, transmitiram saberes que foram construindo na

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relação com os diferentes sujeitos, com os quais conviveram na Graduação em História e posteriormente a ela. Percebi, assim, que, como escreveu Sacristán,20 outra racionalidade é possível no ato de fazer educação, quando pensamos para além da racionalidade científica, ou seja, a racionalidade estética, conforme Olgária Matos.21

Esta pesquisa entrecruzou diferentes trajetórias situadas em tempos e es-paços produzidos com diferentes sujeitos, cujo objeto fundamental foi buscar memórias e experiências iniciais do fazer-se professora de História. Nessa bus-ca procurei também a minha imagem de professor, o meu fazer, as minhas memórias e experiências, na tensão das imagens dos outros, as quais se entre-cruzaram ao trazer os significados relativos à questão do ser e fazer-se professor.

Ao anunciar a minha palavra e a do outro, fui tendo contato comigo e com as experiências vividas por mim e pelos outros, ou por nós em momentos historicamente datados. Tais experiências fazem sentido quando devolvem algo a cada um de nós, que rememoramos. Desse modo, reconhecemos que os professores depoentes são autores de seus saberes, de seus trabalhos, das ex-periências desenvolvidas em suas aulas ou em espaços diferenciados.

Evidenciaram-se muitas tensões entre o ‘eu’ e o ‘nós’ nos diferentes espaços e nas relações vivenciadas pelos professores participantes da pesquisa, mostrando como são pessoas inteiras, com dimensões consciente e inconsciente, com so-nhos, com desejos, com dúvidas, com medos, com angústias, enfim, com muitas tramas que se entretecem para além do ser professor ou professora.

NOTAS

1 BOLÍVAR, Antonio (Org.). Profissão professor: o itinerário profissional e a construção da escola. Bauru (SP): Edusc, 2002. p.53.2 Com a pesquisa, procurei respostas para a seguinte questão: “Como os alunos egressos do Curso de História da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), campus de Cha-pecó, nos anos de 1998 e 1999, avaliam as experiências vivenciadas na passagem de acadê-micos para profissionais?”.3 PAIM, Elison Antonio. Memórias e experiências do fazer-se professor(a) de História. Tese (Doutorado) –Faculdade de Educação, Unicamp. São Paulo, 2005.4 Algumas das obras: BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da lingua-gem. 10.ed. São Paulo: Hucitec; Annablume, 2002; BENJAMIN, Walter. Experiência e po-

Elison Antonio Paim

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breza. In: Magia e técnica, arte e política. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.114-119. (Obras Escolhidas, v.1); _______. O narrador. In: Magia e técnica..., 1994, p.197-221; _______. Infância em Berlim por volta de 1900. In: Rua de mão única. 5.ed. São Paulo: Bra-siliense, 1995. p.73-142. (Obras Escolhidas, v.2); THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. Ver também: PAIM, Elison Antonio. Fala professor(a): o ensino de História em Chapecó. Chapecó (SC): Grifos, 1997.5 A expressão ‘fazer-se professor’ foi o mote da pesquisa em relação direta com a obra A formação da classe operária inglesa, de Edward Palmer Thompson, em que o autor defende que há um fazer-se da classe operária. Em diálogo com a produção thompsoniana defendo a tese segundo a qual há um ‘fazer-se professor’ para além da ideia corrente do ‘formar professores’.6 GUARNIERI, Maria Regina. Tornando-se professor: o início na carreira docente e a con-solidação da profissão. Tese (Doutorado em Educação) – UFSCar. São Carlos (SP), 1996.7 CARROLO, Carlos. Formação e identidade profissional dos professores. In: ESTRELA, Maria Teresa (Org.). Viver e construir a profissão docente. Porto (Portugal): Ed. Porto, 1997. p.21-50. p.42.8 SILVA, Maria Celeste Marques da. O primeiro ano de docência: o choque com a reali-dade. In: ESTRELA, 1997, p.51-80. p.66.9 SARMENTO, Manuel Jacinto. A vez e a voz dos professores: contributo para o estudo da cultura organizacional da escola primária. Porto (Portugal): Ed. Porto, 1994; ALVES, Francisco Cordeiro. A (in)satisfação dos professores: estudo de opiniões dos professores do ensino secundário do distrito de Bragança. In: ESTRELA, 1997, p.81-115.10 ESTEVE, José Manuel. O mal estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. Bau-ru (SP): Edusc, 1999. p.131.11 VASCONCELOS, Geni A. Nader (Org.). Como me fiz professora. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p.11.12 JESUS, Regina de Fátima de. Sobre alguns caminhos trilhados... ou mares navegados... hoje, sou professora. In: VASCONCELOS, 2000, p.21-41.13 BULLOUGH JR., Robert V. Convertirse en profesor: la persona y la localización social de la formación del profesorado. In: GOODSON, Ivor F.; BIDDLE, Bruce J.; GOOD, Tho-mas L. (Org.). La enseñanza y los profesores. Barcelona: Paidós Ibérica, 2000. p.99-165. p.101.14 Depoimento oral de Neiva Bruneto Bês, abr. 2001.15 Depoimento oral de Marilita Claudia Bertolo Sagaz, 9 abr. 2001.16 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.17 Depoimento oral de Nanci Laufer Krindges, 15 maio 2001.

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“Parece que você está invadindo um espaço que não é seu”

18 Depoimento oral de Ângela Maria de Lima Cechetti, 10 jul. 2002.19 AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin e as Ciências Humanas. São Pau-lo: Musa, 2004. p.188.20 SACRISTÁN, J. Gimeno. Poderes instáveis em Educação. Porto Alegre: Artmed, 1999. Nesse livro o autor trabalhou com a possibilidade de trocarmos a racionalidade técnica – manifesta na educação quando esta se arvora científica – por outra racionalidade; de acor-do com ele, a educação deveria se constituir como arte e não como ciência.21 MATOS, Olgária. Vestígios: escritos de filosofia e crítica social. São Paulo: Palas Athena, 1998.

Artigo recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

O historiador entre o ‘ofício’ e a ‘profissão’: desafios contemporâneos

The historian between the ‘craft’ and the ‘profession’: contemporary challenges

Benito Bisso Schmidt*

ResumoO artigo pretende analisar as reconfigu-rações atuais da atividade do historia-dor. Inicialmente, busca, de forma es-quemática, traçar a trajetória do saber histórico nas sociedades ocidentais, ten-tando identificar nesse percurso o lugar do ensino e da pesquisa, objetivando mapear como tais práticas se evidencia-ram ao longo do tempo, com rupturas e continuidades, acabando por conformar o nosso ofício. Na segunda parte, discu-te brevemente a respeito de quem são os atuais destinatários do conhecimento histórico, o tipo de história que a eles deve ser dirigido e o papel que a Anpuh--Brasil (Associação Nacional de Histó-ria) tem assumido (ou deveria assumir) nesses diálogos.Palavras-chave: ofício do historiador; historiografia; ensino de história.

AbstractThis article aims to analyze the current reconfigurations of the historian’s ac-tivities. Initially, it seeks to trace, sche-matically, the trajectory of historical knowledge in Western societies, trying to identify the place of teaching and re-search along the journey. Additionally, it aims to map how such practices be-came evident over time – with ruptures and continuities – eventually forging the historian’s craft. The second part brings up a brief discussion about who the current recipients of historical knowledge are, the kind of history they should be exposed to and the role that Anpuh-Brazil (the National History As-sociation) has taken – or should take – in these dialogues.Keywords: historian’s craft; historiogra-phy; history education.

O tema deste artigo é bastante amplo e passível de ser enfrentado sob múltiplos enfoques. Ele diz respeito, nada mais nada menos, ao campo de exercício profissional do historiador, assunto que, se não é recente, vem ge-

* Presidente da Anpuh-Brasil (Gestão 2011-2013). Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História. Av. Bento Gonçalves, 9500 – Prédio A1 43311 – Sala 116. 90540-000 Porto Alegre – RS – Brasil. [email protected]

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rando debates acalorados nos últimos anos em função das novas demandas profissionais que têm sido colocadas a esse profissional e às próprias reconfi-gurações do mercado de trabalho. Nos Estados Unidos, em outubro de 2011, Anthony Grafton, então presidente da Associação Americana de História, e Jim Grossman, diretor-executivo da entidade, escreveram o artigo “No more plan B” (“Não mais plano B”), reivindicando que as denominadas carreiras alternativas, ligadas ao ensino e à chamada história pública, não deveriam ser mais a segunda opção dos recém-doutores na área de História, mas sim o seu caminho principal. E isso não apenas em razão da escassez de postos das uni-versidades, mas porque os historiadores deveriam rever a sua relação com a sociedade, deixando de considerar a si mesmos apenas como profissionais que pesquisam e ensinam no âmbito acadêmico. Nossa colega Keila Grinberg re-percutiu essa discussão no Brasil, afirmando que estamos ‘no mesmo barco’, o que se expressaria, por exemplo, no escasso número de cursos de pós-gra-duação voltados à formação de profissionais para atuarem no ensino básico e nas instituições de patrimônio.1 De minha parte, acredito que nosso ‘barco’ seja um tanto diferente, embora concorde com várias das ponderações de Kei-la, já que vivemos, ao contrário dos Estados Unidos, um período de expansão do ensino superior, o que obviamente implica um aumento significativo de vagas para professores universitários, aumento esse que talvez seja o maior já vivido no Brasil. Além disso, a Capes resolveu investir significativos recursos na constituição de mestrados profissionais, especialmente os voltados para a área de ensino e com ênfase na formação dos professores atuantes na educação básica, e a área de História, especificamente, tem procurado estimular cursos com esse perfil. Assim, em documento de 12 de março de 2012 contendo as orientações para a abertura de novos cursos de pós-graduação stricto sensu, o coordenador de nossa área, professor Carlos Fico, na seção referente aos mes-trados profissionais afirma:

A área de História valoriza a apresentação de propostas de mestrados profissio-nais que visem à formação de recursos humanos nas áreas em que o historiador possa atuar, tais como, entre outras: patrimônio histórico; arquivística; serviços de pesquisa e documentação; museologia e museografia; artes; turismo; organi-zação de informações históricas; consultorias e pareceres históricos; ensino e ma-terial didático.

O historiador entre o ‘ofício’ e a ‘profissão’: desafios contemporâneos

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E no item seguinte ressalta: “Em consonância com o anseio da Área e com recentes diretrizes emanadas do governo federal, a Área de História valoriza a apresentação de propostas de mestrados profissionais que visem à formação pós-graduada de professores de história do ensino fundamental e médio, e de forma preferencial os da rede pública”.2 Ainda não há como saber quais serão os resultados dessas iniciativas, mas não resta dúvida de que elas impactarão o nosso ofício em uma conjuntura na qual, ao menos por hora, há certa pos-sibilidade de escolha entre os planos ‘A’ e ‘B’.

No caso do Brasil, o debate sobre o nosso ofício é ainda fomentado pela proximidade da aprovação do projeto de regulamentação da profissão de his-toriador. Nele, tanto a indicação das atribuições desses profissionais quanto a justificação da matéria seguem a mesma direção do panorama brevemente exposto até aqui. Em seu artigo 6º, que me parece ser o cerne do projeto, fica explicitado que: “As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, Historiadores legalmente habilitados”.3

Obviamente, tais reconfigurações estão inseridas em um ambiente cultu-ral mais amplo de ‘sedução pela memória’, para usar a expressão consagrada do crítico literário Andreas Huyssen, em que o passado e sua reconstrução, por diversos motivos, tornaram-se objeto de controvérsias políticas e intelec-tuais, bandeira de partidos e movimentos sociais, inspiração para as artes e para a mídia.4 Além disso, não se pode esquecer que iniciativas como os mes-trados profissionais e a regulamentação profissional, de forma mais ou menos direta, respondem às demandas de colegas que já atuam faz bastante tempo no ensino básico e no campo da história pública, e que têm lutado pela visibilidade e valorização de suas práticas e espaços de trabalho.

Enfim, se nosso ofício não é novo, o contexto atual nos obriga a repensá--lo. O que fazemos como historiadores, desde que essa figura emergiu com alguma clareza como profissional específico (e essa emergência não é muito antiga), é ensinar e pesquisar. Claro está que as demandas do presente nos conduzem a rediscutir as características dessas atividades, levantando questões como: o que significa ensinar história hoje diante de tantos outros discursos, como os da mídia, por exemplo, que também ensinam sobre o passado? Se a disciplina histórica e o ensino de história, em sentido estrito, emergiram como parte de um processo mais amplo de constituição de uma ‘retórica da

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nacionalidade’,5 como podemos conceber as atividades de pesquisar e ensinar nessa área em uma época pós-nacional ou transnacional? Que pesquisa e que ensino realizam os colegas historiadores atuantes no âmbito da chamada ‘his-tória pública’?

Parece-me igualmente interessante pensar se a palavra ‘ofício’ ainda dá conta do que fazemos. Segundo o Dicionário Houaiss, o termo significa, ini-cialmente, “qualquer atividade especializada de trabalho, exercida por alguém de forma definitiva ou temporária”; ou “trabalho do qual uma pessoa obtém os recursos necessários à sua subsistência e à de seus dependentes; ocupação, profissão, emprego”; ou ainda “função de que alguém se encarrega; emprego, trabalho”. Nesse sentido mais amplo, penso que seu uso é plenamente justifi-cável. Mas, ao menos para mim, ‘ofício’ ainda lembra artesanato, algo feito individualmente, que requer algum tipo de habilidade específica não subme-tida à mecanização e à divisão do trabalho próprias da economia capitalista. Algumas motivações para eu pensar dessa forma: em seu livro Apologia da História ou o ofício [como tradução do francês métier] do historiador, leitura obrigatória de todos os historiadores, Marc Bloch afirma ao final de sua intro-dução que não buscou escrever um tratado filosófico, mas sim uma reflexão sobre o método histórico, ressaltando: “Só posso apresentá-lo pelo que é [o livro]: o momento de um artesão que sempre gostou de meditar sobre sua tarefa cotidiana, a caderneta de um colega que manejou por muito tempo a régua e o compasso, sem por isso se julgar matemático”.6 Evoco também o título do livro de François Furet, A oficina da História, tradução de L’atelier de l’histoire, lançado em 1982, e que fez muito sucesso entre nós.7 Diante dessas evidências, questiono: por que a imagem do artesão, do trabalhador de oficina, parece representar melhor a nossa atividade? Seria uma atitude política, no sentido de nos diferenciarmos, por exemplo, daqueles que trabalham em pro-fissões marcadas pela desqualificação e pela alienação do produto final, pró-prias do mercado capitalista? Mas dessa forma não estaríamos negando o ca-ráter profissional de nosso labor? Lembro ainda que tal imagem não é peculiar à área da História, também está presente em outros campos, sobretudo no âmbito das Ciências Humanas. Basta invocar, nesse sentido, a obra fundamen-tal de Bourdieu, Chamboredon e Passeron, Ofício do sociólogo [também uma tradução de métier], de 1968.8

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Talvez a pista para entendemos essa preferência pela representação pré--industrial de nossa atividade esteja em outra definição do Houaiss para a palavra ‘ofício’: “tarefa com que uma pessoa se compromete; incumbência, missão, mister”, e o exemplo dado para esse significado não poderia ser mais expressivo: “o importante ofício do magistério”.9 Será que, mais do que como uma profissão, não pensamos em nosso ‘ofício’ como uma missão e, em con-sequência, temos dificuldade de encarar os aspectos diretamente profissionais da atividade que exercemos? Vou apresentar dois indícios que sustentam esse meu sentimento: seguidamente ouço de colegas expressões como “milito há 20 anos no magistério” ou “milito no campo do patrimônio”, o que me leva a pensar se essa ‘militância’, na verdade, não envolve características comuns a qualquer profissão, ao menos na sociedade capitalista, como cumprimento de jornada de trabalho, remuneração etc. Outro indício: na secretaria da Anpuh-Brasil, não raras vezes recebemos pedidos de informação sobre quanto cobrar por determinados serviços da alçada do historiador (curadoria de exposições, elaboração de livros, organização de acervos, consultorias para assuntos his-tóricos etc.) e não temos como responder, pois não existe algo como uma ta-bela ou a definição do valor da hora de trabalho, como acontece, por exemplo, entre advogados e engenheiros. (Afinal, como cobrar por uma missão ou uma militância?)

Enfim, entre artesãos, missionários, militantes e profissionais, configura-mos e reconfiguramos a nossa identidade de historiadores e, sem dúvida, tal oscilação nos impele a repensar as nossas práticas profissionais básicas: ensinar e pesquisar. Não tenho a mínima pretensão, neste texto, de resolver tais pro-blemas que são densos e requerem, sobretudo, discussão. Optei, assim, por centrar meus argumentos em dois eixos. Inicialmente, e pretensiosamente, quero traçar a trajetória do saber histórico nas sociedades ocidentais, buscando identificar, nesse percurso, o lugar do ensino e da pesquisa. Evidentemente, serei esquemático e reducionista, mas meu anseio é, acima de tudo, mapear como tais práticas se evidenciaram ao longo do tempo, com rupturas e conti-nuidades, acabando por conformar o nosso ofício (sim, manterei o termo por enquanto) na atualidade. Na segunda parte do artigo, discutirei brevemente quem são os atuais destinatários do conhecimento histórico, do ponto de vista do ensino e da pesquisa; o tipo de História que, do meu ponto de vista, a eles

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deve ser dirigido, e o papel que a Anpuh-Brasil tem assumido (ou deveria as-sumir) nesses diálogos.

Ensinar e pesquisar História: um percurso

Se lançarmos um olhar de longa duração sobre a história da História como conhecimento, verificaremos que tal forma de narração e compreensão do passado sempre esteve ligada, de certa maneira, a uma dimensão pedagógica e a uma dimensão investigativa.

Assim, desde o seu surgimento na Antiguidade Clássica, o conhecimento histórico respondia à necessidade de aproximar os integrantes de certos grupos pelo delineamento de um passado supostamente comum entre eles, de ensinar quem eram e a que comunidades pertenciam. Obviamente, esse objetivo não é peculiar à narrativa histórica, mas diz respeito, de forma geral, aos discursos que evocam uma ancestralidade, uma genealogia, uma ligação do presente com o passado (o que parece ser comum a todas as coletividades humanas), como o mito e a epopeia. Porém, especialmente com Heródoto e Tucídides, assisti-mos à constituição de uma nova maneira de tecer essa ligação, pautada não pela revelação, mas sim pela investigação, pela pesquisa, pela capacidade de construir uma explicação humana dos fatos pretéritos, ancorada, inicialmente, na prova visual (“o que os meus olhos viram”) e auditiva (“o que ouvi de tes-temunhas confiáveis”).

Sobretudo com Cícero, e aqui acompanho as considerações de François Hartog,10 constituiu-se um regime de historicidade que encarava a História como ‘mestra da vida’, ou seja, como capaz de ensinar os homens do presente, de fornecer-lhes exemplos e contraexemplos de conduta e, portanto, de moldar comunidades políticas (da polis grega à civitas romana) unidas pelos modelos antigos e por eles instruídas para enfrentar os desafios que se colocavam no presente.

Esse regime de historicidade, ancorado no topos da historia magistra vitae, perdurou como hegemônico na sociedade ocidental, no mínimo, até o século XVIII, mas não é preciso muita pesquisa para constatarmos o quanto ele ainda está presente hoje, quando, por exemplo, temos de responder aos alunos do ensino básico e aos leigos de forma geral para que serve a História. Ao longo desse percurso, os ensinamentos vieram de vários sujeitos – dos santos, dos

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nobres, dos reis, dos homens ilustres, dos sábios, dos artistas – e tiveram como objetivo reforçar os sentimentos identitários de comunidades de diversos tipos – desde a cristandade até o Estado nacional, passando pela nobreza e pela ‘república das letras’ –, mas todos se estruturaram em torno de uma forma determinada de considerar o tempo, a articulação passado-presente-futuro, segundo a qual o polo dominante residiria no primeiro termo, no passado, capaz de iluminar o presente e o futuro com suas lições.

Obviamente, ao longo desse período não havia uma disciplina histórica, um conjunto de conhecimento elaborado e sistematizado com base em deter-minadas regras estipuladas por uma comunidade profissional e passível de ser ensinado. Apesar disso, havia uma noção de historicidade, ou seja, uma ideia de que o presente resulta de (ou repete) ações passadas, ações essas capazes de serem compreendidas e narradas; e tal noção era transmitida às elites sociais, econômicas e culturais de maneira escrita (por meio de manuais dirigidos aos príncipes, por exemplo) ou oral, em sermões, canções de cavalaria, odes dedi-cadas aos reis etc.

Na modernidade, como assinala Hartog, verifica-se uma ruptura com esse regime de historicidade passadista e a ascensão progressiva de um regime de historicidade futurista, ou modernista, segundo o qual o passado deve ser su-perado em função de um futuro que se percebe como melhor, como objetivo a ser atingido e como definidor do sentido das ações presentes e pretéritas. Nessa perspectiva, calcada na ideia de progresso, as lições do passado são substituídas pela exigência de previsões. As grandes filosofias da História do século XIX, como o Positivismo e o Marxismo, ancoraram-se justamente nessa ideia de que o passado e o presente (o Estado teológico e metafísico ou a so-ciedade dividida em classes) deveriam ser ultrapassados em função de um futuro visualizado como destino (o Estado positivo ou a sociedade comunista), cabendo aos sábios (ou às vanguardas), com base em conhecimentos conside-rados científicos, a tarefa pedagógica de difundir tal diagnóstico ao conjunto da sociedade e estabelecer os melhores caminhos para superar os entraves a essa trajetória considerada inevitável.

A História nasce no Oitocentos como disciplina com pretensões científi-cas justamente na tensão entre esses dois regimes de historicidade: por um lado, com a função pedagógica de buscar no passado as raízes dos Estados nacionais em construção; por outro, visando fornecer provas científicas da

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evolução e do progresso da Humanidade, periodizando seus conhecimentos de acordo com tal perspectiva temporal.

É justamente nesse contexto que emerge aquilo que podemos chamar, com mais propriedade, de ensino de História. Como nos alerta Manoel Salgado Guimarães:

falar em ensino de história traz consigo implícita a ideia de que ela, a história, é matéria de ensino e, portanto, já se constitui num corpo de conhecimento – em uma matéria efetivamente organizada sob um sistema que prevê seu ensinamen-to, sua transmissão. Isso implica concebê-la segundo certas regras, resultantes de certos procedimentos que não poderiam ser encontrados antes de sua transfor-mação em disciplina – o que significa dizer antes do século XIX e de sua trans-formação em pedagogia escolar com fins políticos. Ainda que inventada como gênero entre os gregos no espaço da polis democrática, não assumiria aí o caráter de um ensinamento, tão necessário à paideia do homem moderno, à constituição do cidadão nacional. Como parte importante da cultura humanista nos começos da modernidade, a história também não assumiria uma finalidade de matéria a ser ensinada e objeto de um currículo pedagógico. Pensar, portanto, a relação entre ensino e história é já se colocar em certo momento da história da história, perceber suas particularidades e as demandas que estão na base de um projeto que veio a se tornar comum para as sociedades modernas: a necessidade de ensi-nar história e torná-la parte obrigatória de um currículo.11

Antoine Prost nos ajuda a entender esse percurso com base no caso fran-cês. Segundo ele, naquele país a História foi introduzida precocemente como uma disciplina no ensino médio, desde 1818, e somente desde 1880 no ensino fundamental. Tal fato mostra que, “no século XIX, a história não diz respeito à escola do povo, mas trata-se de um assunto de notáveis”. Esse ensino era con-duzido pelas faculdades de letras, e só com a derrota da França para a Alemanha em 1870 e a chegada dos republicanos ao poder constituiu-se, “nas faculdades, o ensino científico da história com professores relativamente especializados, de alguma forma historiadores ‘profissionais’”. Com a democracia, a questão da História no ensino fundamental tornou-se uma preocupação de Estado: “Os republicanos contavam com a história para desenvolver o patriotismo e a ade-são às instituições; além de ter o objetivo de inculcar conhecimentos bem defi-nidos, o ensino de história deveria levar à partilha de sentimentos”. O grande

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historiador da época, Lavisse, afirmava nesse sentido: “O amor pela pátria não se aprende de cor mas nasce do coração” (Prost, 2008, p.17-18).

O que podemos aprender com esses dados? Primeiro, que, na França, a História, antes mesmo de se transformar em disciplina científica, elaborada por profissionais, servia à formação das elites dirigentes. Segundo, que, ao mesmo tempo em que esse conhecimento era, em determinadas instâncias, disciplinarizado e metodizado, em outras era proposto explicitamente como estratégia de fortalecimento da identidade nacional, pela via da educação, de uma ‘pedagogia dos afetos’.

No Brasil o percurso foi um pouco diferente, mas guarda igualmente al-gumas semelhanças com o caso francês. Nesse sentido, não é demais relembrar que, também no século XIX, sob o patrocínio do imperador Pedro II, nasceu o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Nele foi tecida uma ‘re-tórica da nacionalidade’, que mencionei antes como característica conforma-dora de nosso ofício, ou seja, uma narrativa capaz de conferir um passado ao Estado que, após os sobressaltos do período regencial, precisava se constituir como nação, portanto, como uma ‘comunidade imaginada’, o que implicava o estabelecimento de uma história comum aos habitantes de seus limites ter-ritoriais (igualmente em processo de definição). Também no IHGB foram elaboradas e discutidas, pela primeira vez de modo mais sistematizado em nosso país, as possíveis regras para a elaboração de um conhecimento consi-derado verdadeiro sobre o passado, de uma pesquisa histórica, embora os membros da instituição não possam ser tomados, de maneira alguma, como historiadores profissionais, já que transitavam por diversas funções e espaços: o jornalismo, a política, a literatura e as atividades religiosas e militares, entre outras. É interessante recordar que exatamente nesse período foi também cria-do o Colégio Pedro II, igualmente no Rio de Janeiro, cujos alunos, em sua maioria, pertenciam à elite econômica e política do país, apesar de haver a previsão de vagas para estudantes destituídos de recursos. Imbuídos dos valo-res europeus de civilização e progresso, os alunos do Imperial Colégio saíam com o diploma de Bacharel em Letras, aptos a ingressarem nos cursos supe-riores, em especial nos de Direito. Nesse educandário, a disciplina História era ministrada desde o 3º ano do curso até o final, ou seja, era uma matéria de peso em um currículo que valorizava a formação clássica e erudita.

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Enfim, também em nosso país o conhecimento histórico, nos primórdios de sua disciplinarização, estava vinculado sobretudo à formação de uma iden-tidade nacional e, no âmbito do ensino, era considerado essencial à formação das futuras elites dirigentes. Assim, tanto na França quanto no Brasil, apesar das fortes e evidentes diferenças entre seus percursos históricos, os objetivos e os destinatários da História parecem ser muito semelhantes, até em função da significativa influência cultural que sofremos daquele país europeu.

Com a já citada derrota na guerra franco-prussiana em 1870, os republi-canos franceses investiram, a exemplo do país vizinho, na criação de um ver-dadeiro ensino superior. Segundo Prost, “essa reforma recebeu o vigoroso apoio de uma geração de jovens historiadores, sensíveis ao prestígio da histo-riografia alemã e críticos relativamente ao amadorismo ‘literário’ dos historia-dores franceses”. E ainda: “A profissão de historiador construía-se na conjun-ção desse empreendimento de ‘cientifização’ da história que lhe conferia as normas metodológicas, com a política universitária dos republicanos ao ga-rantir-lhe uma moldura institucional” (Prost, 2008, p.34). Concretamente, esse processo envolveu a criação de postos universitários, a publicação de manuais onde as regras do método científico aplicadas ao conhecimento do passado apareciam sistematizadas (como a famosa “Introdução aos Estudos Históricos” de Langlois e Seignobos, de 1898) e a criação de revistas científicas, importan-tes veículos de projeção, socialização, seleção e crítica, como a Revue Historique, dirigida por Monod e Fagniez.

Nas primeiras décadas do século XX, sob a ameaça da Sociologia nascente, os historiadores franceses (e aqui estou detalhando o caso francês por ser ele, de certa maneira, a grande matriz da nossa historiografia) investiram ainda mais na proposta de disciplinar e cientificizar o conhecimento por eles produzido. O grande marco desse empreendimento foi, como sabemos, o surgimento da re-vista dos Annales em 1929, capitaneada por Marc Bloch e Lucien Febvre. Estes, novamente inspirados pelo modelo de pesquisa histórica alemão, tinham como objetivo fundar e divulgar uma nova história calcada nas perspectivas da histó-ria-problema, em contraposição à história narrativa; da história total, em oposi-ção ao que consideravam uma história meramente política e factual; e da história capaz de agregar os métodos das demais Ciências Humanas, em especial, naquele momento, da Sociologia, da Economia e da Geografia. Como estratégia de pro-jeção no campo acadêmico francês, Febvre, em especial, tratou, nos seus

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Combates pela História,12 de desqualificar a historiografia produzida até então, que ele chamava de ‘história historicizante’, caracterizada como superficial, ane-dótica, meramente descritiva, calcada no culto às fontes oficiais, aos grandes personagens e à cronologia. Hoje sabemos o quanto de caricatural tinha essa descrição, mas não podemos negar a sua eficácia como arma de combate inte-lectual. Afinal, os Annales se impuseram como o marco da renovação dos estu-dos históricos, e não é à toa que eu os estou evocando aqui.

Após a Guerra, os Annales institucionalizaram-se no meio acadêmico francês e passaram a exercer grande influência sobre a historiografia mundial. A ideia de uma compreensão total do passado, com base em problemas colo-cados pelo presente e com a contribuição de métodos de várias disciplinas, presidiu sobretudo os monumentais estudos de Fernand Braudel, como O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II 13 e Civilização material e capitalismo.14 Algumas das obras produzidas pelos historiadores ligados a essa segunda geração dos Annales tiveram algum apelo popular e midiático, mas, em sua maioria, ficaram restritas, em termos de repercussão social, aos círculos profissionais, mais capazes, por exemplo, de entender as abordagens seriais e quantitativas por eles utilizadas.

Como sabemos, com a morte de Braudel ocorreu uma fragmentação dos interesses e perspectivas dos chamados ‘novos historiadores’, herdeiros dos Annales. Nesse momento, a perspectiva de síntese, embora sempre louvada, pareceu se retrair em favor da multiplicidade temática (‘tudo é história’), da diversidade documental e da experimentação metodológica. Além disso, esses historiadores, cada vez mais, se abriram à mídia, ao mercado editorial voltado a não especialistas e, também, ao ensino de História. Nesse sentido, participa-ram de programas de televisão e rádio; escreveram livros, revistas e coleções dirigidas ao grande público; foram (e são) chamados a debater os grandes problemas contemporâneos; e atuaram também na reformulação do ensino de História na França, em favor de uma história temática e não factual, embora suas propostas tenham sido criticadas e revistas posteriormente.

Hoje, na França, nas palavras de Prost, a História ainda ocupa “uma po-sição privilegiada”, já que, “entre os franceses, existe unanimidade para consi-derar que sua identidade – e, praticamente, sua existência nacional – passa pelo ensino da história” (Prost, 2008, p.14, 16). Nesse ambiente, tal ensino é uma ‘questão de Estado’, objeto de discursos governamentais e debates públicos.

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Apesar disso, não se pode desconsiderar que as duas guerras mundiais e tantas outras catástrofes do curto século XX colocaram em xeque tanto a ideia de que a História ensina quanto a noção de progresso. François Hartog mostra que, desde meados do século passado, emergiu um novo regime de historici-dade, o presentismo, marcado pela crença em um presente infinito, totalizante e absorvente, desencantado com o passado e descrente do futuro. O slogan “Tudo imediatamente!”, pichado nos muros da convulsionada Paris de 1968, sintetizaria com precisão essa percepção do tempo. Porém, ressalta o mesmo autor, ainda no final do século XX manifestaram-se falhas nesse regime de historicidade presentista, expressas no interesse cada vez maior pelas ‘raízes’, pelas genealogias, pelo patrimônio, pela memória, pelas narrativas nostálgicas sobre o passado (da literatura à internet, passando pelo cinema e pela televisão) e pela moda retrô, entre outros indícios. Nesse sentido, diversas comunidades (locais, regionais, étnicas, de gênero ou religiosas, entre outras) manifestaram seu desejo de encontrar no passado respaldo para identidades presentes, redi-recionando a seu favor a perspectiva pedagógica e identitária da história na-cionalista e mestra da vida.

É nesse contexto que devemos compreender o recente diagnóstico do historiador alemão Hans Ulrich Gumbrecht:

Talvez possamos dizer que o interesse popular pelo passado tem alcançado certo apogeu, e, ao mesmo tempo, a legitimação da disciplina história, que passava por afirmar um ensinamento político, existencial e filosófico com a história, mais ou menos desapareceu.

Isso não tem acarretado nenhum problema para nosso interesse cotidiano pe-la história, mas cria um problema de legitimação para a historiografia. Vivemos numa situação ambivalente: um crescente fascínio pela história e pelo passado, de um lado, e um ceticismo enorme quanto à possibilidade de a história ou a historiografia ensinarem.15

Talvez se pudesse traduzir essa ideia com a seguinte equação: sedução pela memória e desinteresse pela história como disciplina científica e disciplina escolar, embora muitas vezes esses termos – história e memória – apareçam (perigosamente a meu ver) confundidos.

Obviamente, a situação no Brasil é diferente em função de suas próprias características políticas, sociais e culturais. Aqui, a história, como conhecimento

O historiador entre o ‘ofício’ e a ‘profissão’: desafios contemporâneos

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sistematizado e ‘ensinável’, não se constituiu – ou ao menos não preponderan-temente, a meu ver, apesar dos esforços de muitos governantes – na base para a nossa identidade nacional. Outros elementos foram mais decisivos nesse sentido, também por obra de certas engrenagens governamentais, como a música e o esporte. Mesmo entre as disciplinas acadêmicas, outras áreas foram mais deman-dadas do que a História a se pronunciarem a respeito dos grandes problemas brasileiros, como a Economia e a Sociologia. De todo modo, creio, assistimos hoje, como na Europa, a um interesse difuso, mas crescente, por temas históri-cos, manifestado, por exemplo, no aparecimento de várias revistas, com quali-dades bastante variadas, voltadas ao assunto, vendidas em bancas de revista; ou no sucesso de livros, em geral escritos por jornalistas, com foco em eventos e personagens do passado. Em relação a esses e outros produtos, parece-me, nós, historiadores profissionais, pesquisadores e professores dos diferentes níveis de ensino, não podemos deixar de colocar questões como: o que essas histórias ‘ensinam’? Elas resultam de que tipo de pesquisa? Qual o nosso papel diante de tais narrativas?

Enfim, nesta primeira parte do artigo, quis, de forma muito breve e es-quemática, traçar o percurso do conhecimento histórico, situando, em diversos momentos, o espaço do ensino e da pesquisa. A partir de agora, e de modo bastante sintético, quero me deter na pergunta “história para quem?”, buscan-do apontar algumas possíveis respostas (não transcendentais e abstratas, mas absolutamente vinculadas à nossa contemporaneidade) e mostrar como a Anpuh-Brasil tem trabalhado para colocá-las em prática.

História para ‘quens’?

O título desta seção, que fere a língua culta, é apenas uma brincadeira para alertar que, do meu ponto de vista, a História (e falo aqui do conhecimento produzido e ensinado por nós, historiadores profissionais) não pode e não deve se voltar a um público específico, mas sim a uma variedade de grupos sociais, o que se constitui em grande desafio intelectual e político.

Em primeiro lugar, a História é para os historiadores, para a nossa comuni-dade profissional. Quando produzimos conhecimento científico nesta área é aos nossos pares que ele deve se voltar. Afinal, são eles que dominam as regras do métier e, portanto, têm mais condições de validar ou refutar os conhecimentos

Benito Bisso Schmidt

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3298

produzidos conforme as determinações, permissões e interdições de nosso cam-po, de nosso ‘lugar’, para retomar a expressão consagrada de Michel de Certeau.16 Não é à toa que a formação profissional passa pela socialização nestas regras. Aprendemos, ao longo da vida acadêmica, não só como se pesquisa e como se narra a História, mas também sobre o funcionamento do campo, seus rituais, seus mecanismos de inclusão e exclusão. Escolhemos um orientador não apenas porque queremos aprender a disciplina, mas também por que queremos um ‘padrinho’, ou ao menos um ‘guia’ (um ‘orientador’ no sentido preciso do ter-mo), que nos direcione pelas sendas, por vezes conturbadas e conflituosas, da área. Como já lembrou Certeau, quando um de nossos alunos apresenta um trabalho em sala de aula, ele, via de regra, o expõe mais ao professor do que aos colegas, pois é do primeiro que espera aprovação e reconhecimento.

Assim, não temos de nos envergonhar ao dizer que produzimos um co-nhecimento acadêmico e que nossos textos são acadêmicos, porque, ao menos na nossa sociedade, é na Academia que se produz ciência. Tenho certeza de que nossos colegas da Química ou da Física, por exemplo, não se ofendem, nem têm dramas de consciência, se os seus artigos são taxados de acadêmicos ou científicos. Nossos trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses serão lidos por poucos, e isso, a meu ver, não é um problema, nem deve causar sofrimento, pois o campo científico funciona assim; a ciência é, em certo sen-tido, para poucos.

Uma das facetas da Anpuh-Brasil é, justamente, a de ser uma sociedade científica, voltada ao aprimoramento do conhecimento histórico acadêmico, e busca cumprir tal objetivo por meio da realização de eventos científicos na-cionais e estaduais; pela edição do mais importante periódico da área, a Revista Brasileira de História; pelo esforço em prol da preservação dos acervos docu-mentais, e pela manutenção do Fórum de Pós-Graduação, entre outras ações. Em função disso, determinados âmbitos de funcionamento da entidade não são democráticos (no sentido da democracia participativa), mas estruturados com base em hierarquias e dinâmicas próprias do campo científico (e isso, do meu ponto de vista, não é um problema, mas simplesmente uma característica estruturante desta instância de produção do conhecimento).

Porém, a História também é para os estudantes do ensino básico, ela é uma disciplina escolar e, desde essa perspectiva, volta-se a um grupo bem maior: todos aqueles que frequentam a escola ao longo de certo tempo. Em tal caso

O historiador entre o ‘ofício’ e a ‘profissão’: desafios contemporâneos

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não se trata de pares nem, em sua grande maioria, de futuros pares. Afinal, nesse âmbito, não formamos ‘pequenos historiadores’, mas cidadãos que, es-peramos, possam desenvolver uma leitura histórica do mundo, a qual envolve, por exemplo, a percepção da existência de múltiplas temporalidades; a com-preensão da historicidade, do dinamismo e do caráter relacional das identida-des; o entendimento de que o conhecimento histórico é construído a partir do presente, com base na análise de vestígios do passado, o que implica a possi-bilidade de se formular diversas interpretações sobre eventos e processos pre-téritos (isso não significa dizer que qualquer interpretação é válida); a capaci-dade de formular relações, estabelecer comparações e elaborar narrativas coerentes sobre os temas estudados, e o desenvolvimento de valores como o respeito à diversidade, entre outros pontos. Portanto, mais do que adaptar a ‘matéria’ à faixa etária dos alunos, ou seja, ‘tornar mais acessível’ o conteúdo, cabe à história ensinada permitir aos estudantes o desenvolvimento de habili-dades que lhes possibilitem a construção de um olhar mais sofisticado e crítico a respeito da realidade vivida.

Nesse âmbito, a Anpuh-Brasil também atua, por exemplo, por intermédio de seu GT de Ensino; da promoção de discussões sobre ensino de História em seus encontros científicos; da tentativa de influenciar políticas públicas refe-rentes ao tema (antigamente, tivemos a questão dos Estudos Sociais e hoje estamos debatendo, por exemplo, o novo ensino médio e o ensino a distância) e da Revista História Hoje, a qual desejamos que se torne um fórum para re-flexões e debates sobre ensino de História, com incidência junto à prática co-tidiana dos professores. Mas temos de reconhecer que esse tema, seguidamen-te, ainda parece configurar-se como um gueto, envolvendo minicursos e mesas específicas nos encontros, dossiês na RBH, eixo de um GT próprio, sem ‘con-taminar’ o conjunto da área e sem desestabilizar hierarquias nefastas como a que posiciona a questão do ensino como ‘inferior’ em relação aos assuntos ‘propriamente acadêmicos’, embora essa situação esteja se modificando, so-bretudo graças à ação militante e laboriosa dos colegas que atuam em prol da melhoria da história ensinada.

Por fim, a História é para todos, para o conjunto da sociedade, pois se trata de um ramo do conhecimento que participa ativamente das disputas do mun-do contemporâneo. Basta lembrar, por exemplo, as batalhas de memória a respeito do passado ditatorial brasileiro (que tendem a se intensificar com o

Benito Bisso Schmidt

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3300

trabalho da Comissão da Verdade) e os argumentos históricos que respaldam projetos políticos e movimentos sociais (como as comunidades quilombolas e indígenas). Não é à toa que os livros didáticos da área podem se transformar em objeto de fortes controvérsias políticas e até diplomáticas (como se dá entre a China e o Japão no que tange às atrocidades cometidas por esse último país contra o primeiro durante a Segunda Guerra Mundial, assunto omitido nos livros didáticos japoneses), evidenciando que seu impacto transborda os limi-tes escolares. Nesse sentido, como profissionais de História, temos, acredito, de ser capazes de estabelecer diálogos mais amplos, de participar dos grandes debates que dizem respeito ao nosso tempo, sem, contudo, deixarmos de ser historiadores para nos tornarmos, por exemplo, simples porta-vozes de causas políticas, por mais simpáticas que elas nos pareçam.

Nesse âmbito, a Anpuh-Brasil tem procurado atuar, por exemplo, auxi-liando a Comissão da Verdade; preocupando-se com o perfil profissional dos historiadores que atuam em arquivos, museus, órgãos de patrimônio, memo-riais, e outros espaços de divulgação do conhecimento histórico a públicos mais amplos; e realizando, assim espero, um Simpósio Nacional que realmente faça jus ao tema “Conhecimento histórico e diálogo social”.

Encerro reafirmando a ideia de que, no mundo contemporâneo, cabe aos historiadores, como comunidade profissional, estabelecerem múltiplas inter-locuções, já que são produtores e divulgadores de um conhecimento que se exprime como ciência, como disciplina escolar e como narrativa integrante dos debates e embates políticos, sociais e culturais de nosso tempo, o que, sem dúvida, só aumenta nossa responsabilidade como cientistas, professores e cidadãos.

NOTAS

1 GRINBERG, Keila. Historiadores pra quê? Ciência Hoje, 9 mar. 2012. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/em-tempo/historiadores-pra-que/; Acesso em: 18 jul. 2012.2 Ver: www.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/Comunicado_003_2012_APCNs_Historia.pdf; Acesso em: 18 jul. 2012.3 O projeto de Lei do Senado n. 368 de 2009 foi aprovado em plenário no ano passado. Agora tramita na Câmara dos Deputados sob o número 4699/2012.

O historiador entre o ‘ofício’ e a ‘profissão’: desafios contemporâneos

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4 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.5 Ver: PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008; e CEZAR, Temístocles. L’écriture de l’histoire au Brésil au XIXe siècle. Essai sur une rhétori-que de la nationalité: Le cas Varnhagen. Tese (Doutorado em História) – EHESS. Paris, 2002.6 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.50, grifo meu.7 FURET, François. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, 1986.8 BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean Claude; PASSERON, Jean Claude. Ofício do sociólogo. Metodologia da pesquisa na Sociologia. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004.9 Disponível em: http://200.241.192.6/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame?palavra=of%EDcio; Acesso em: 19 jul. 2012.10 As considerações sobre os regimes de historicidade feitas neste artigo são baseadas em: HARTOG, François. O tempo desorientado. Tempo e história. “Como escrever a história da França?”. Anos 90, Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, n.7, jul. 1997.11 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Escrita da história e ensino da história: tensões e paradoxos. In: ROCHA, Helenice et al. A escrita da história escolar: memória e historiogra-fia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. p.36-37.12 FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Presença, 1985.13 BRAUDEL, Fernand O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Filipe II. São Paulo: Martins Fontes, 1983.14 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 3v.15 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de “Depois de aprender com a história”, o que fa-zer com o passado agora. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAU-JO, Valdei Lopes de (Org.). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. p.26.16 CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: _______. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

Artigo recebido em 8 de abril de 2013. Aprovado em 15 de maio de 2013.

O passado em bytes: notas sobre os usos da internet nos livros didáticos de História

The past in bytes: notes on the uses of the Internet in history textbooks

Dilton C. S. Maynard* Marcos Silva**

Neste texto apresentamos algumas considerações pontuais sobre a pre-sença da internet nos livros didáticos. Afinal de contas, a popularização da internet nas primeiras décadas do século XXI praticamente obrigou as editoras e os autores a considerarem o potencial da rede mundial de computadores no processo de ensino-aprendizagem. Por conta disso, a inserção de endereços eletrônicos em livros didáticos e em seus respectivos Manuais do Professor tornou-se frequente.

Todavia, como tem sido feito uso da web? Ao que tudo indica, timida-mente. Em sua maioria, os livros didáticos apenas indicam o site, mas sem oferecer aos professores e aos alunos orientações que permitam uma correta abordagem dos conteúdos constantes em tais páginas. Se levarmos em conta que o livro didático permanece ainda como o grande aliado – em alguns casos, o único – disponível ao professor, questionar o que ele indica, assim como saber utilizá-lo adequadamente, é fundamental. Por isso, chama a nossa aten-ção o pouco zelo conferido ao modo como as páginas eletrônicas tem sido exploradas enquanto suportes didáticos para o ensino da História.

Desse modo, considerando a especificidade de nossa seção aqui na História Hoje, oferecemos uma reflexão sobre a internet, possivelmente o mais poderoso suporte pedagógico do novo século, e as suas ressonâncias na abor-dagem da aventura humana no tempo.1

De modo a exemplificar esse uso desatento, vamos até a home page de uma prestigiosa universidade paulista.2 Ali havia um curioso espaço. Tratava-se de

* Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.** Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 305-311 - 2013

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3306

Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

um ‘museu virtual’, um site dedicado a educar crianças na leitura de obras de arte. Entre os quadros exibidos (e traduzidos) para a criançada está Retirantes, um óleo sobre tela pintado em 1944 por Cândido Portinari. A descrição a se-guir, retirada do site, embora longa, merece ser citada pelas imagens que (re)produzia:

A obra Retirantes representa o povo nordestino ... Retirantes mostra a necessidade que o povo tem em abandonar sua terra em busca de uma vida melhor em outra parte do país (por isso o nome Retirantes – retirante é o homem nordestino que viaja de onde mora a outro lugar em busca de água e comida, fugindo da seca) ... Candinho precisava mostrar o sofrimento do povo brasileiro, pois ele sofria muito com o sofrimento de sua gente ... Os personagens ilustrados por ele são reais, muito magros (raquíticos), famintos. Eles estão descalços, com aparência horrível, dando a impressão de estarem sujos. Uma das crianças – de um total de cinco – tem um corpo muito feio e deformado. Outra tem barriga-d’água. Os dois homens – o chefe da família e seu pai – têm a aparência de quem viveu uma vida muito dura no sertão nordestino. A mulher – a esposa – carrega uma sacola. Isso quer dizer que ela está em busca de uma vida melhor. Observe, amiguinho, o olhar destas pobres e tristes pessoas: olhar que não traz esperança por uma vida melhor. As partes de corpo à mostra não têm pele, apenas ossos e músculos fracos. As roupas estão ras-gadas e não cobrem todo o corpo. O céu é mostrado em cinza escuro, apesar de não ter nuvens. É como que um céu seco, sem água (o Nordeste é seco), mas também sem luz ... Repare, amigo, como há muitos urubus à procura de alimento, seja um gado morto pela seca ou os próprios retirantes. Não há plantas nem flores. Assim, Candinho mostra o sertão em sua forma mais triste. O chão traz só restos de ossos de gado e pedrinhas. Retirantes é uma das obras mais tristes de Candinho, mas é real, pois mostra a realidade do povo nordestino.

Todos os grifos são nossos. Este texto, encontrado na internet em 2004, sugere que as representações elaboradas tempos atrás ainda estão em funcio-namento. Os sinais da miséria povoam a análise do quadro que, segundo se anuncia, ‘representa o povo nordestino’. O texto, destinado ao público infantil (daí o recurso ao apelido ‘Candinho’), supunha informar sobre o que é o Nordeste. É no tempo presente que ela se inscreve: espaço de gente faminta, céu seco e sem luz; lugar sombrio do qual se foge com os poucos trapos que se tem. Terra sem esperança, na qual ‘o chão traz só restos de ossos de gado e pedrinhas’. Por mais de uma vez, a ‘realidade’ das imagens pintadas por

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O passado em bytes: notas sobre os usos da internet nos livros didáticos de História

Portinari era afirmada na página eletrônica. Uma realidade construída em sintonia com outros campos, como a literatura regionalista dos anos 1930.

Conforme Durval Muniz de Albuquerque, a produção imagética sobre o Nordeste teve em Portinari um grande colaborador. Um contribuinte funda-mental para que o chamado ‘romance de 30’ e seus personagens ganhassem materialidade: “o retirante esquelético de Portinari, com seus bordões para se apoiar, com seus meninos barrigudos e tristes, com suas trouxas na cabeça, se tornou imagem difícil de ser esquecida e de se fugir quando se pretende mos-trar a realidade nacional”.3

Envernizado pelo suporte cibernético, o texto, ao propor-se inovador, repete e reforça estereótipos. Paralisa o tempo, cristaliza uma imagem grotesca e homogeneizadora e a difunde via ciberespaço. Através da menção a sites, blogs e outros suportes eletrônicos, a pretensão parece ser conferir aos livros didáticos um caráter atualizado. Todavia, é sempre conveniente lembrar que a internet oferece vantagens, mas também perigos, problemas a serem atenta-mente observados.

Variáveis como acessibilidade, reprodutibilidade, manipulabilidade e hi-pertextualidade convivem com a inacessibilidade, a baixa interatividade, o plágio virtual e as dificuldades em torno da autoria. Contudo, não acreditamos que tais dificuldades sejam suficientes para que deixemos de lado os recursos digitais. O que se deve fazer é reforçar a atenção em aspectos centrais que podem ajudar a manter a qualidade do material utilizado quando a preocupa-ção é de ordem didática.

O critério de acessibilidade é fundamental. Ao planejar o uso de uma página eletrônica, é preciso observar com cautela as suas condições. Páginas que oferecem restrições à navegação, exigindo cadastros complexos ou mesmo pagamento dos usuários, podem servir de exemplo entre os espaços que difi-cultam o acesso. Há outros problemas a serem considerados, tais como: a con-fusão de conteúdos, que ocorre quando a obra indica determinado assunto, mas o endereço por ela oferecido não corresponde ao tema indicado; a exis-tência de endereços que não funcionam mais; a indicação de endereços incor-retamente impressos nos livros; a demasiada oferta de páginas em idiomas estrangeiros; a demora da página para que todo o seu conteúdo possa ser vi-sualizado; o uso de imagens em baixa resolução, que não podem ser ampliadas,

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3308

Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

bem como a predominância de fontes em tamanho único. São muitos os obstáculos.

Tais problemas comprometem o acesso ao conteúdo proposto por cada livro. Por isso, ao indicar uma página para o aluno é preciso considerar as possibilidades de acessibilidade, assim como os percalços comuns a ela: sites inativos, páginas que cobram pelo acesso, exigem usuários previamente cadas-trados, possuem endereços divergentes dos conteúdos ou se mostram dema-siadamente lentas na apresentação dos conteúdos iniciais. Qual a relevância disto? Ora, dificuldades como essas podem afastar alunos e professores de um uso pedagógico da internet, numa lamentável confusão provocada pelo uso descuidado da rede mundial de computadores.4

E qual a importância de considerarmos se um site exige ou não cadastro prévio para ser acessado? Basta considerarmos que diante de um obstáculo como este, o visitante se desloque para um ambiente que lhe pareça menos burocrático, menos exigente à visitação. O resultado desse desvio pode ser vislumbrado quando – como mostraram pesquisadores norte-americanos – o site mais acessado sobre Thomas Jefferson não é necessariamente um site de referência, mas o blog de um colecionador, de um diletante, alguém bem dis-tante da Academia.5

Se o livro didático resolver investir em recomendar e explorar sites, o suporte metodológico para lidar com as páginas da internet deve ser oferecido pelo Manual do Professor, já que este é concebido para ser uma ferramenta de suporte impresso diferenciada, em seu conteúdo e objetivos, do livro didático do aluno. Para cumprir esse papel no planejamento das melhores estratégias de ensino-aprendizagem, o Manual do Professor deve se apresentar como uma obra detalhada em suas sugestões e sintonizada com as dificuldades de imple-mentação de determinadas experiências em sala de aula. O Manual deve nor-tear o professor sobre os caminhos que ele pode tomar ao explorar determi-nado endereço eletrônico, orientando o docente sobre as vantagens e percalços que a página indicada oferece. As páginas devem oferecer possibilidades de exploração de fontes históricas, devem atuar como complementos do material impresso.

Portanto, é desaconselhável que o Manual do Professor se limite a listar inúmeras páginas da internet sem oferecer a possibilidade de um efetivo su-porte metodológico que ajude a responder à pergunta: “o que podemos fazer

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O passado em bytes: notas sobre os usos da internet nos livros didáticos de História

com a internet nas aulas de História?”. Tal questionamento nos leva a outro critério considerado na avaliação das páginas eletrônicas indicadas, a funcionalidade.

Insistimos, é preciso atenção quando a internet for indicada ao aluno ou ao professor, e sempre que ela for utilizada para a elaboração de textos e ativi-dades. Afinal de contas, como qualquer outro tipo de suporte, a rede mundial de computadores é falível, seletiva e muitas vezes inadequada a certas aborda-gens. Por isso, o cuidado deve ser constante.

Não se trata de limitar a discussão aos sites bons ou ruins. O que exige a nossa reflexão é o fato incontestável de que os vários tipos de páginas eletrô-nicas têm sido explorados como se formassem um grupo homogêneo e facil-mente manejável. Longe disso, os diferentes websites possuem uma tipologia própria, carregam consigo propostas ideológicas e merecem ser pensados den-tro das suas especificidades.

Como se pode ver, vivemos uma situação desconfortável. Em primeiro lugar, pela desconfiança que muitos profissionais da educação ainda demons-tram em relação à web. Evidentemente, as sucessões de escândalos, fraudes e crimes virtuais diariamente noticiados justificam, ao menos em parte, essa atitude. Todavia, é salutar considerar que fazer de conta que a internet não existe não resolve o problema.

Porém, a mera inserção de enormes listagens e de atividades a partir da rede mundial de computadores também não traz solução. De nada adianta encontrar obras que possuem dezenas de indicações de páginas eletrônicas se não há uma reflexão metodológica adequada sobre o que se pode e se deve fazer com esse material. Sendo assim, como proceder? O professor deve, sem-pre que encontrar indicações de sites ou sugestões de atividades através deles, ter o cuidado de conhecer primeiro o ambiente proposto. Alguns cuidados básicos podem ajudar a evitar maiores problemas no uso das páginas.

Uma pergunta fundamental a ser feita é: os conteúdos dialogam satisfa-toriamente com aquilo que se pretende abordar em classe? Muitas vezes, fica-mos empolgados com bons sites que oferecem uma imensidão de informações. Porém, não é disso que o aluno precisa, mas de páginas que contribuam ade-quadamente para o seu desenvolvimento. De nada adiantará deixar o estudante sem saber por onde poderá começar sua navegação. Por isso, é importante ao professor ser ele mesmo um usuário antecipado das páginas, verificando as

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3310

Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

possibilidades pedagógicas de uso, observando as fontes utilizadas pelo site. Não são poucas aquelas que simplesmente reproduzem os conteúdos dos livros didáticos, apenas alterando a ordem ou a qualidade de imagens e mapas.

Também vale a pena olhar com cuidado as muitas vezes imensas listagens de páginas da internet constantes nos livros didáticos (tanto no exemplar do aluno, quanto no Manual do Professor). Acredite: o simples exercício de ob-servar poderá ajudar a perceber aquelas mais recorrentes e o nível de cuidado da obra com as suas indicações.

E tenha certeza, caro colega professor: nem tudo é ruim. O zelo com que certas páginas eletrônicas são exploradas em algumas obras pode torná-las auxiliares valiosos no cotidiano da sala de aula. Páginas de qualidade podem enriquecer as aulas, pois nelas podemos ampliar mapas, detalhar imagens, encontrar reproduções de fontes históricas, vídeos com registros de aconteci-mentos mencionados nos textos dos livros. Enfim, como escreveu o historiador norte-americano Robert Darnton, a internet “pode fazer a História cantar”.6

Portanto, cabe lembrar ao professor que o uso dos chamados ‘ambientes telemáticos’ deve ser feito da forma mais contextualizada possível. Longe de ser apenas uma versão eletrônica da página de um livro, uma mera reprodução de um texto impresso e desatualizado, uma página da internet deve se mostrar integrada aos conteúdos abordados pelo livro do aluno e, ao mesmo tempo, deverá ser amparada pelo Manual do Professor quanto ao seu potencial de uso, além de possibilitar o máximo de opções de interatividade. Desse modo, é importante avaliar como as páginas são incorporadas a cada livro didático, se seu uso ambiciona realmente uma ampliação na abordagem, se este ou aquele site é um aliado ou, por suas características ou pela forma com que é apresen-tado, um obstáculo à construção do conhecimento histórico.7

NOTAS

1 ROSENZWEIG, Roy. Scarcity or Abundance? Preserving the past. In: Clio Wired: the future on the past in the digital age. New York: Columbia University Press, 2011, p.3-27.2 www.puccampinas.edu.br/404.aspx?urlFrom=centros/clc/jornalismo/projetosweb/1998/portinari/retirante.html/; Último acesso em: 2 maio 2005.3 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. Prefácio de Margareth Rago. Recife: FJN; Massangana; São Paulo: Cortez, 1999, p.249-250.

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O passado em bytes: notas sobre os usos da internet nos livros didáticos de História

4 Cf. CHARTIER, Roger. A história na era digital. In: _______. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.60-61.5 Sobre isto ver: COHEN, Daniel J.; ROSENZWEIG, Roy. Digital History: a guide to gathe-ring, preserving, and presenting the past on the web. Philadelphia: University of Pennsyl-vania Press, 2006.6 DARNTON, Robert. As notícias em Paris: uma pioneira sociedade da informação. In: _______. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.40-89.7 Ver também: BROCKMAN, John (Org.). Is the Internet changing the way you think? New York: Harper Perennial, 2011.

A análise de fontes e o modo de vida dos primeiros habitantes do nosso continente:

pesquisa arqueológica na Educação Básica 1

Source analysis and the way of life of the first inhabitants of our continent: archaeological research in Basic Education

Pâmela Peregrino da Cruz*

ResumoO artigo apresenta o plano de uma aula com uso de fontes arqueológicas para es-tudantes do 6° ano, bem como o relatório de sua realização. O objetivo é contribuir para que professores de História realizem esta e outras atividades práticas e lúdicas no desenvolvimento de um processo de ensino-aprendizagem prazeroso, consis-tente e produtivo, possibilitando que os estudantes sejam ativos frente ao objeto a ser conhecido. Atividades como essa po-dem contribuir para desenvolver a capa-cidade de análise e construção de conhe-cimentos históricos dos estudantes, permitindo que eles adquiram habilida-des e instrumentos da pesquisa em Histó-ria e possam utilizá-los para analisar não somente fontes, mas também a própria realidade que os cerca.Palavras-chave: ensino de História; aná-lise de fontes; Arqueologia.

AbstractThis article presents a lesson plan with the use of archaeological sources for 6th grade students, as well as the report of its accomplishment. The aim is to assist history teachers in performing this and other practical and ludic activities in the development of an enjoyable, consistent and productive teaching-learning pro-cess, allowing students to be active in relation to the object to be known. Such activities can help to develop the ability to analyze and construct students’ his-torical knowledge, enabling them to ac-quire skills and tools of research in His-tory and use them not only to analyze sources, but also the very reality sur-rounding them.Keywords: History teaching; source analysis; Archaeology.

Neste artigo apresentarei o plano de uma aula com uso de fontes arqueo-lógicas para estudantes do 6° Ano, bem como o relatório de sua realização.

* Mestre em História Social pela UFF e em Educação pela PUC-Rio. Secretaria Estadual de Educação, Rio de Janeiro. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 315-327 - 2013

Pâmela Peregrino da Cruz

Revista História Hoje, vol. 2, nº 3316

Meu objetivo é contribuir para que professores de História possam realizar esta e outras atividades práticas e lúdicas no desenvolvimento de um processo de ensino-aprendizagem prazeroso, consistente e produtivo. Note-se que não falo apenas de uma aprendizagem prazerosa, mas sim de um processo no qual todos os sujeitos possam se envolver sem dicotomizar o conhecimento do prazer em acessá-lo e produzi-lo.

Em julho de 2009 iniciei minhas atividades profissionais na Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro, lecionando História para turmas do ensino fundamental. Busquei basear minha prática nos fundamentos educacionais e políticos com os quais me comprometi ainda na graduação, quando minha prática docente teve início. Sendo assim, busquei desenvolver um ensino de História que tivesse o diálogo como referência central e a emancipação huma-na como objetivo final, contribuindo para a formação de pessoas comprome-tidas com a participação e transformação coletiva da realidade. Para tanto, iniciei o desenvolvimento de diversas atividades práticas que articulavam ne-cessidades e interesses dos estudantes ao conhecimento historicamente acu-mulado, possibilitando a construção de novos conhecimentos ao criarmos um processo ativo frente ao objeto a ser conhecido. Nesse processo os estudantes deparam com objetos de estudo que precisam de procedimentos presentes também na pesquisa acadêmica para serem compreendidos. Essa prática vai ao encontro do que afirma Sonia Wanderley sobre o campo de pesquisa em História e o seu ensino:

A preocupação de educadores e profissionais antecipa uma metodologia de ensi-no-aprendizagem em História consolidada na necessidade do desenvolvimento de instrumentos que possibilitem o incremento da autonomia intelectual dos alunos a partir de um refinamento do pensamento. Este refinamento relaciona-se à preocupação com o desenvolvimento de habilidades cognitivas facilitadas pelas especificidades da produção do conhecimento histórico. Classificar, descobrir critérios contidos em classificações, comparar, relacionar, levantar hipóteses etc. são algumas das atividades mentais que podem caminhar juntas com o ensino de História.2

Nas primeiras aulas do ano busco compreender o que os estudantes de-sejam, o que os limita e o que os estimula. Desenvolvo então um planejamento em diálogo com os estudantes que também leva em consideração a experiência

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A análise de fontes e o modo de vida dos primeiros habitantes do nosso continente

e os conhecimentos acumulados na minha prática nos anos anteriores. Nesses diagnósticos, desde o início ficou claro (e cada vez mais se reafirma) a neces-sidade de desenvolver aulas utilizando recursos variados que possibilitem a participação intensa dos estudantes. Essa interação encontra respaldo na pro-dução da pesquisadora Maria Auxiliadora Schmidt. Segundo ela, é a relação do aluno com o procedimento de pesquisa do conhecimento da História que possibilita a produção de conhecimento em sala de aula. Assim:

O professor de História pode ensinar o aluno a adquirir as ferramentas de traba-lho necessárias; o saber-fazer, o saber-fazer-bem, lançar os germes do histórico … Ensinar História passa a ser, então, dar condições para que o aluno possa par-ticipar do processo de fazer, de construir a História … A aula de História é o momento em que, ciente do conhecimento que possui, o professor pode oferecer a seu aluno a apropriação do conhecimento histórico existente, através de um esforço e de uma atividade com a qual ele retome a atividade que edificou esse conhecimento.3

Busquei, portanto, estimular o desenvolvimento de diversas formas de expressão, assim como utilizei diversas linguagens para trabalhar com conhe-cimento dos processos históricos selecionados para o currículo. Sabemos, en-tretanto, que poucos cursos de formação de professores de História possibili-tam/aprofundam a construção de ferramentas de ensino diversificadas e isso, muitas vezes, impõe limites ao processo de ensino-aprendizagem. Neste artigo, apenas uma atividade será apresentada, o que certamente é muito pouco. No entanto, essa atividade apresenta alguns aspectos importantes a serem consi-derados no planejamento e construção das aulas. A aula que será apresentada começou a ser construída no início da minha carreira profissional, em 2009, na Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Ao longo do tempo foi revista e reformulada com base nos resultados, bem como nas colocações e demandas trazidas pelos estudantes. Além disso, as condições de realização também va-riaram e nem sempre foi possível a realização com todos os recursos, mas ainda assim atingia seus objetivos. Em 2012, a atividade foi contemplada com o 1° lugar do Prêmio de Ensino Anpuh-Rio José Luiz Werneck da Silva.

A atividade relatada ocorreu no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-Uerj), com três turmas do 6° Ano do Ensino Fundamental. Para a série citada o programa de História do CAp-Uerj prevê,

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para o primeiro período letivo, a abordagem de dois pontos: o primeiro ins-trumental (sobre a pesquisa histórica, fontes, organização do tempo, o ser hu-mano como objeto e sujeito da História) e o segundo sobre as primeiras co-munidades humanas. A aula “Pesquisa Arqueológica: analisando fontes e conhecendo modos de vida dos primeiros habitantes do nosso continente”, que será apresentada neste artigo, foi desenvolvida como uma ponte entre esses dois pontos. O objetivo era analisar fontes visuais e fósseis para a construção do conhecimento histórico sobre comunidades sem registros escritos. Privilegiou-se o contato com fontes ligadas ao modo de vida de povos do nosso continente (pré-colombianos), como forma de iniciar o tópico seguinte do planejamento anual que trata justamente desses povos. Nessa aula, os estudan-tes puderam vivenciar um dia como arqueólogos. Munidos de luvas, pás, pin-céis e pranchetas eles foram até o pátio da escola e escavaram em busca de artefatos dos primeiros humanos que habitaram nosso continente (minirré-plicas de ossos, crânios, casas, fogueiras, roupas de peles, ferramentas etc.). Depois de encontrar seus artefatos, os estudantes os analisaram em busca de descobrir onde e como viviam aqueles seres humanos, como era o clima, do que se alimentavam, quais eram seus hábitos etc. A aula desenvolveu-se ao longo de três tempos de 50 minutos (1 hora e 40 minutos no primeiro dia de atividade e mais 50 minutos no segundo dia), nas turmas 61, 62 e 63 do Instituto, em abril de 2012.

Figura 1 – Pesquisa Arqueológica em Escola Estadual, RJ, 2010.

Figura 2 – Pesquisa Arqueológica no CAp-Uerj, 2012.

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A análise de fontes e o modo de vida dos primeiros habitantes do nosso continente

A realização da aula contou com estas etapas:

Etapa Atividade Materiais utilizados Envolvidos

Pesquisa Pesquisa sobre os modos de vida dos povos pré-colombianos e os vestígios por eles deixados.

Livros e sites. Professora

Pré-produção Modelagem e construção de fósseis em miniaturas.

Gesso, biscuit, silicone, madeira, pedra, pelúcia, argila sintética, verniz e betume.

Professora

Organização do espaço

Compra de terra e caixas de plástico (caixa de fazer massa para obra); escolha de um espaço da escola com pouco trânsito de pessoas para colocar as caixas com terra nas quais foram enterrados os fósseis

Terra e caixas. Professora, Direção e funcionário do CAP-Uerj

Organização dos materiais de trabalho

Compra e organização de pincéis, espátulas de madeira e plástico, luvas descartáveis, bandejas de plástico para os fósseis encontrados.– Aviso para os estudantes levarem luvas e jalecos utilizados na aula de Ciências (buscando evitar o contato com o solo).– Preparação do kit de emergência para consertar os fósseis que pudessem vir a ser danificados (supercola e adesivo epóxi).

Pincéis, espátulas de madeira e plástico, luvas descartáveis, bandejas de plástico.

Supercola e adesivo epóxi.

Luvas e jalecos.

Professora

Estudantes

continua na página 320

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Breve aula expositiva sobre a pesquisa arqueológica

Retomada de explicações de aulas anteriores sobre a permanência de objetos e fósseis ao longo dos anos, sobre o processo de escavação e análise de fontes visuais e fósseis.

Giz e quadro negro. Professora e estudantes do 6º ano do ensino fundamental do CAP-Uerj

Pesquisa arqueológica

Deslocamento dos estudantes até o ‘sítio arqueológico’ da escola, escavação e limpeza dos fósseisem grupos.

– Luvas, jalecos, pincéis, espátulas, bandejas, pranchetas com fichas de pesquisa, terra, caixas e fósseis

Professora, estagiários da licenciatura em História da Uerj e estudantes do 6º ano do CAP.

Análise dos fósseis

Deslocamento para a sala de aula com os fósseis encontrados e finalização do preenchimento das fichas de pesquisa em grupo.

– Fósseis e fichas de pesquisa

Professora e estudantes do 6º ano

Apresentação Apresentação oral dos grupos, expondo o que descobriram sobre as fontes encontradas.

– Fósseis e fichas preenchidas

Professora e estudantes do 6º ano

Debate e exposição oral

Debate com toda a turma sobre as diferenças encontradas por cada grupo e explicação sobre os primeiros modos de vida das populações do nosso continente.

– Mapa-múndi e Mapa da América

Professora e estudantes do 6º ano

Após todo o processo de pré-produção com a modelagem e construção dos fósseis eles foram enterrados em caixas de plástico para que os estudantes pudessem escavar. As caixas foram necessárias porque o CAP-Uerj não possui um espaço com terra, sua superfície é completamente cimentada.

No primeiro dia de aula, encontrei os estudantes na sala de aula e fiz uma breve explicação sobre a pesquisa arqueológica, retomando pontos que já havíamos

continuação

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A análise de fontes e o modo de vida dos primeiros habitantes do nosso continente

trabalhado em aulas anteriores. Durante a aula expositiva os estudantes foram estimulados a apresentarem suas questões. Algumas estudantes colocaram dúvidas sobre, por exemplo, os fósseis estarem embaixo da terra. Após cerca de 25 minutos, solicitei que os estudantes se organizassem em grupos de até quatro estudantes e vestissem seus jalecos e luvas para irmos até o ‘sítio arqueológico’ da escola. Como as turmas do Instituto possuem entre 30 e 32 estudantes, foram formados 8 grupos. Avisei que os fósseis a serem encontrados eram réplicas em miniatura feitas por mim, mas mereciam o mesmo cuidado que o arqueólogo precisa ter com os fósseis reais. (Claro que, ainda assim, alguns acidentes aconteceram...) Em seguida, entre-guei as ferramentas de pesquisa para cada grupo. Cada kit era composto por:

• 1 bandeja de plástico;

• 1 prancheta com ficha de pesquisa;

• 3 espátulas de madeira;

• 3 pincéis;

• 3 espátulas de plástico.

Munidos com suas ferramentas e vestidos com seus jalecos e luvas, os alunos foram para a parte de trás da escola (chamada popularmente de “Mangueira” em razão da árvore que lá se encontra), onde estavam as caixas previamente preparadas. Avisei que cada grupo encontraria 5 fósseis diferen-tes, e que a ficha deveria ser preenchida à medida que eles fossem encontrados. Começou, então, a animada escavação. Cada fóssil encontrado era uma alegria. Aos poucos os estudantes foram percebendo que os fósseis dos demais grupos eram diferentes. Havia quatro conjuntos de fósseis diferentes (relativos a mo-dos de vida diferentes), por isso cada conjunto de fósseis era encontrado por um par de grupos. Foram estes os conjuntos de fósseis:

Modo de vida ártico

– Crânio humano (homo sapiens)– lança– anzol– restos de fogueira– casaco de pele de animal

continua na página 322

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Modo de vida litorâneo

– crânio humano (homo sapiens)– bastão de madeira– anzol– concha– peixe fossilizado no solo

Modo de vida baseado na caça e coleta generalizadas

– crânio humano (homo sapiens)– lança– machado– cesta de palha– crânio de tigre dente de sabre

Modo de vida sedentário

– crânio humano (homo sapiens)– enxada– vaso de cerâmica– partes de uma moradia feita de pedra– crânio bovino

Durante a escavação e coleta dos fósseis os estudantes iam preenchendo sua ficha. Quando todos os grupos encontraram cinco fósseis (depois de apro-ximadamente 30 minutos), retornamos para a sala de aula com a bandeja. Em sala, os estudantes tiveram cerca de 30 minutos para analisar os fósseis encon-trados, motivados pelas questões da ficha de pesquisa. As questões buscavam estimular a problematização das fontes encontradas, tentando reconstituir como aquele humano poderia ter vivido.

Alguns grupos apresentaram dificuldade para começar a interpretação das fontes. Nesses casos eu me aproximava e fazia mais algumas perguntas – por exemplo, pegava um dos objetos encontrados e perguntava o que devia ser aquilo, para que era usado, em quais situações ele seria importante, como poderia ter sido feito... Assim, os alunos iam se envolvendo, tentando recom-por o passado. Logo descobriam as lacunas, os pontos que não poderiam ex-plicar em razão da falta de fontes. A seguir podemos ver um exemplo de pre-enchimento da ficha pelos estudantes:

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Na aula seguinte teríamos 50 minutos para que cada grupo apresentasse seus fósseis e sua análise, bem como para um debate geral e fechamento com uma breve aula expositiva sobre os diversos modos de vida que se desenvolve-ram em nosso continente muito antes da chegada dos europeus.4

À medida que os grupos se apresentavam, alguns pontos interessantes para o estudo da História foram surgindo. Por exemplo, várias versões de in-terpretação para uma mesma fonte, as lacunas que as fontes deixam, o quanto a falta de vestígios impossibilita certas afirmações. Além dessas questões, sur-giam também análises importantes sobre os modos de vida primitivos, como a dependência e a transformação da natureza, o papel da agricultura, o seden-tarismo, o intenso trabalho para construção dos conhecimentos e ferramentas necessários para as primeiras comunidades humanas.

Após a última apresentação fizemos um rápido debate sobre a possibilidade de construir conhecimento relacionado a um povo que não deixou registros escritos. Retomamos a questão que eu já havia levantado em outra aula sobre o conceito de “Pré-História” e sobre a ligação dessa ideia à fonte escrita.

Por fim, abri um mapa-múndi e comentei as diferenças climáticas do continente americano e como cada povo que nele se desenvolveu precisou produzir ferramentas e utensílios que possibilitassem a sobrevivência nesses locais. Vimos a importância dos recursos naturais para esses povos e diferen-ciamos os conceitos de ‘economia de depredação’ e ‘economia de produção’. Comentei, também, que dois povos podem ter modos de vida baseados eco-nomicamente nos mesmos aspectos e mesmo assim apresentar compreensões de mundo bastante diferentes, produzindo culturas diferentes em locais com os mesmos recursos naturais.

Minha avaliação dessa aula se baseou em dois aspectos: a reação dos es-tudantes à atividade e o conhecimento produzido, expresso nas fichas de pes-quisa e nas apresentações orais dos grupos.

O primeiro aspecto me leva a realizar uma avaliação extremamente posi-tiva. Realmente, percebo que essa aula vai no caminho que não dicotomiza prazer e aprendizagem. Pelo contrário, os estudantes realizam toda a atividade de forma concentrada, mas demonstrando alegria em descobrir, em conhecer. Além disso, os estudantes assumem uma posição ativa na produção do

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conhecimento e percebem que eu não devo transmitir todo o conhecimento – eles mesmos já possuem ferramentas para interpretar a realidade.

Quanto ao segundo aspecto, avaliei que as fichas e apresentações revelam o quanto os estudantes puderam desenvolver sua capacidade de analisar e construir conhecimento histórico em sala de aula. Em geral, os estudantes conseguiram preencher as fichas de forma interessante, elaborando suas aná-lises e reflexões. Embora algumas fichas tenham apresentado respostas muito simplistas e diretas (e, sem dúvida, estimular uma escrita mais desenvolvida é parte dos desafios da educação), as apresentações foram muito ricas e o debate fluiu com facilidade, pois todos estavam motivados a participar e aprender.

Creio que a aula alcançou todos os objetivos propostos no planejamento (Possibilitar a análise de fontes fósseis para construção do conhecimento histó-rico sobre comunidades sem registros escritos; Diferenciar modos de vida com economia baseada na depredação e na produção; Relacionar modos de vida e ferramentas aos recursos naturais e ao clima de cada região; Reconhecer os seres humanos como parte da natureza ao mesmo tempo em que a transformam).

Além dos objetivos planejados para essa aula, a pesquisa arqueológica realizada atende aos objetivos mais amplos com os quais me comprometi. Ou seja, a atividade articula as necessidades e interesses dos estudantes ao conhe-cimento historicamente acumulado, possibilitando, também, a construção de novos conhecimentos. Permite que os estudantes adquiram habilidades e ins-trumentos da pesquisa em História e possam utilizá-los para analisar fontes e a própria realidade que os cerca.

NOTAS

1 Artigo produzido com base no trabalho “Pesquisa Arqueológica: analisando fontes e co-nhecendo modos de vida dos primeiros habitantes do nosso continente”, vencedor do Prê-mio de Ensino Anpuh-Rio José Luiz Werneck da Silva, 2012.2 WANDERLEY, Sonia. Repensando o ensino da História, produzindo conhecimento. Ca-derno de graduação ensino e formação de professores na perspectiva das licenciaturas em Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Uerj/Departamento de Ensino de Graduação, v.4, p.36-43, 2002.3 SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do professor de história e o cotidiano da sala

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A análise de fontes e o modo de vida dos primeiros habitantes do nosso continente

de aula. In: BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998. p.57.4 Algumas aulas antes os estudantes haviam confeccionado comigo um globo terrestre no qual puderam marcar os caminhos que os humanos percorreram para chegar à América, desde seu surgimento na África. Ou seja, já possuíam conhecimento sobre as datas de che-gada e as teorias explicativas, principalmente o caminho pelo Estreito de Bering e pelo Oceano Pacífico.

Texto recebido em 20 de dezembro de 2012. Aprovado em 14 de abril de 2013.

Trabalhando com a história romana na Wikipédia: uma experiência em

conhecimento colaborativo na universidade1

Working with Roman history on Wikipedia: an experience with collaborative knowledge at the university

Juliana Bastos Marques*

ResumoEm razão de sua imensa popularidade, a Wikipédia é hoje uma fonte inescapável, ainda que muito do seu conteúdo em História se apresente fraco, impróprio ou mesmo errôneo. Este texto visa apre-sentar os resultados de uma experiência didática com a leitura crítica e edição de artigos da Wikipédia em sala de aula em uma disciplina de História Antiga na graduação.Palavras-chave: Wikipédia; educação e internet; conhecimento colaborativo.

AbstractNowadays, due to its tremendous popu-larity, Wikipedia is an unavoidable source, even though its History content may still be weak, improper, or even er-roneous. This text aims to present the results of a learning experience with crit-ical reading and editing of Wikipedia articles on classroom, at an Ancient History undergraduate course.Keywords: Wikipedia; education and internet; collaborative knowledge.

A influência da Wikipédia

O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem julgo, com a pin-tura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos mas, se alguém as interrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coi-sas como se estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter algum esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem quanto aos que não podem compreendê-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve. Quando é menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre

* Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Centro de Ciências Humanas, Departamento de História. Av. Pasteur, 458, Edifício José de Anchieta, sala 216, Urca. 22290-240 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

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necessidade da ajuda do seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo.2

No diálogo Fedro, de Platão, Sócrates fala sobre os defeitos da escrita em comparação com o discurso oral. O discurso escrito teria dois grandes proble-mas, um derivado do outro: o texto é fixo, imutável, frágil e necessita de seu autor para ter sentido, e isso advém do fato de preservar não a memória, como aparenta, mas sim a lembrança. Perde, então, a característica vibrante do dis-curso oral, a participação ativa do receptor e a capacidade de mudança da percepção cognitiva. A forma do texto escrito criticada por Sócrates é a que predominou nos 2.400 anos seguintes, mas tem sido desafiada agora pelo novo paradigma da plataforma wiki,3 sistema em que qualquer usuário da internet pode escrever e editar um texto, em tempo real. Os wikis também subvertem outra visão do conhecimento deixada pelos gregos antigos, a divisão que Aristóteles faz na Retórica entre produtor/autor – produto/discurso escrito – receptor/leitor: nessa nova forma do texto, o leitor também é autor, e interfere na produção do texto de uma forma sobre a qual o autor não tem controle. A dinâmica desorganizada e sem hierarquias da escrita na plataforma wiki é, de certa forma, a epítome da fragmentação e do pastiche típicos do pós-moder-nismo, que, no entanto, malgrado as críticas dos modernos nostálgicos, pode ter consequências positivas na produção do conhecimento.

A enciclopédia online Wikipédia, a mais popular e bem-sucedida expe-riência na plataforma wiki, foi criada em 2001 por Jimmy Wales e Larry Sanger, com a proposta de oferecer, em um site gratuito e de copyright livre,4 um nú-mero ilimitado de verbetes relacionados a todo e qualquer assunto de relevân-cia enciclopédica que refletissem o conhecimento da humanidade.5 Para isso, utiliza a plataforma wiki como um grande repositório colaborativo de natureza voluntária.

Nos seus 11 anos de existência até agora, a Wikipédia tem sido cada vez mais popular entre os usuários da internet como um todo. Disponível em 285 idiomas e contando com um número total de mais de 20 milhões de artigos na metade de 2012,6 é avaliada como o sexto maior website do mundo em termos de número de visitantes.7 No caso da Wikipédia em português, a terceira a ser criada, ainda em 2001, o número corrente de artigos é de 751 mil, e o de visitas únicas por mês é de 287 milhões.8 Com tais números, não é surpreendente

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Trabalhando com a história romana na Wikipédia

perceber a grande popularidade do site entre estudantes brasileiros. Já há al-guns anos vem se verificando em todos os níveis de ensino uma tendência de uso disseminado e acrítico do conteúdo didático da Wikipédia pelos alunos como principal fonte de estudo, até mesmo suplantando as bibliografias e o material didático utilizados pelas disciplinas.

Duas questões principais permeiam a análise do uso da Wikipédia pelos estudantes. Em primeiro lugar, nota-se uma tendência generalizada entre do-centes, de Ensino Básico ou Superior,9 de se proibir ou ao menos coibir o uso da enciclopédia como fonte de pesquisa, com base na precariedade de muitas informações apresentadas no site e por receio de plágio. Em última instância, essa proibição vem se provando inviável, dado que a facilidade com que os estudantes consultam e acessam a Wikipédia ultrapassa de longe sua iniciativa de pesquisa em fontes impressas, seja como fotocópias ou em livros das biblio-tecas disponíveis. Se tal tendência parece irreversível – como reflexo da vivên-cia da geração digital atual e das que virão10 –, é portanto imperioso dominar a ferramenta e revertê-la para uma fonte de consulta a mais sólida e confiável possível, orientando os estudantes a consultá-la como ponto de partida, em consonância com os próprios objetivos do texto enciclopédico.11

Somado a isso, um problema paralelo e igualmente importante que se encontra atualmente no uso indiscriminado da Wikipédia pelos estudantes é o plágio. Algumas vezes até mesmo incentivado durante o Ensino Básico, o plágio nem sempre é percebido pelos alunos como erro ou crime.12 Mesmo quando se reconhece o caráter ilícito da cópia do texto, o aluno ainda assim apresenta pouca capacidade de retrabalhar as ideias que lê e apresentá-las com suas próprias palavras,13 de forma que o plágio, se não detectado e corrigido, consolida-se como prática corrente até mesmo em textos finais durante a pós-graduação.

Esses dois aspectos se mostram especialmente preocupantes pelo fato de que o conteúdo da Wikipédia em português, aqui em se tratando especifica-mente dos artigos relacionados a História, é em sua maioria bastante fraco, apresentando formulações simplistas, antiquadas, incompletas, sem referência ou simplesmente errôneas. Isso se deve à própria natureza da plataforma wiki: como a redação e a edição dos artigos é livre, qualquer pessoa pode escrever sobre qualquer assunto.14 Em tese, isso tem a princípio o caráter positivo de permitir que todo e qualquer tema seja passível de fixação na enciclopédia,

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desde que reconhecida a sua relevância, pois o caráter virtual do site permite, por definição, não haver um limite físico para seu tamanho, como nas enciclo-pédias em papel. Assim, assuntos relevantes para diversos grupos contempo-râneos (cultura da internet, temas de minorias, preservação de culturas locais) têm o mesmo espaço de expressão que os grandes temas consolidados. No entanto, esse mesmo pressuposto da Wikipédia tem levantado um sério pro-blema de confiabilidade dos seus verbetes, muitas vezes também alvo de van-dalismos ou conflitos de interesse.15

Diferentemente do que pode parecer a princípio, a Wikipédia tem regras de funcionamento,16 que, embora sejam sucintas e claras, geram uma série de restrições à adição indiscriminada de conteúdo – o que o site chama de pila-res.17 Em essência, são uma combinação do formato da escrita enciclopédica com o conceito de wiki, no sentido em que presumem que as informações deverão ser relevantes, apresentadas com base em fontes externas confiáveis, com imparcialidade e equilíbrio das diferentes opiniões sobre o tema, e não devem conter pesquisa inédita. Junto a isso, o conteúdo acrescentado deverá ser de compartilhamento livre, de acordo com a licença autoral usada no site (CC-BY-SA 3.0), as interações com outros editores e usuários devem manter um grau aceitável de civilidade e boa-fé e, por fim, resumindo o espírito de colaboração voluntária e descentralizada do projeto, a última regra convida o editor a ‘ser audaz’, tomando a iniciativa para modificar o conteúdo do site. Dada justamente essa característica descentralizadora e a magnitude do vo-lume de dados continuamente acrescentados, nem sempre é possível garantir que essas regras sejam seguidas, assegurando a qualidade das informações.

Quanto a esses problemas, a resposta dos defensores da Wikipédia tem sido em torno da autorregulamentação gradual do site,18 graças à vigilância constante feita por editores experientes e administradores para corrigir erros, reverter vandalismos e eventualmente bloquear usuários que ajam repetidas vezes de má-fé. Com o tempo, as contribuições construtivas tenderiam a pre-valecer sobre as prejudiciais, calibrando o texto dos verbetes em uma melhora gradual. Embora o estado atual da Wikipédia em inglês já aponte para a pre-sença de um número razoável de artigos de boa qualidade,19 é possível que ainda sejam necessários alguns anos de autorregulamentação para que os ver-betes adquiram uma correção e completude compatíveis com uma qualidade amplamente aceitável. No caso da Wikipédia em português, o fato de que o

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Trabalhando com a história romana na Wikipédia

número de editores é bem mais baixo que o da versão anglófona torna a velo-cidade de desenvolvimento da enciclopédia proporcionalmente mais baixa. Vários fatores são responsáveis por essa baixa adesão de editores, fatores esses que a própria Wikimedia Foundation ainda está tentando mapear.20

Faltava à Wikipédia, portanto, uma iniciativa mais sistemática para melho-rar a qualidade dos seus artigos e aumentar o número de editores.21 Com isso em vista, no início do ano letivo americano de 2010, em setembro, a Wikimedia Foundation realizou o seu primeiro projeto-piloto com universidades ao recrutar professores e alunos para editar artigos sobre políticas públicas na versão em língua inglesa.22 O Public Policy Initiative teve a princípio a participação de nove professores de cinco universidades americanas, os quais utilizaram a Wikipédia como plataforma para a elaboração dos trabalhos finais de seus cursos, que se-riam essencialmente melhorias nos artigos ou elaboração de novos tópicos na enciclopédia. Os professores tiveram liberdade para definir o quanto tal atividade pesaria em seus programas e quais eram seus critérios de avaliação, ao passo que a Wikimedia Foundation providenciou o treinamento de monitores técnicos para as turmas, denominados ‘embaixadores’, os quais atuavam tanto em sala (“Embaixadores de Campus”) quanto na internet (“Embaixadores Online”) para ajudar os alunos na utilização das ferramentas técnicas de edição.23 Dado que vários alunos já eram wikipedistas (como se denominam os editores regulares) experientes, os embaixadores foram recrutados dentro do corpo discente, muitas vezes entre os alunos da pós-graduação.

A ideia de se trabalhar a Wikipédia em sala de aula não é nova. Iniciativas isoladas têm sido adotadas desde os primeiros anos de funcionamento do site,24 com diferentes objetivos e graus de sucesso. Sistematizar os resultados em busca de metodologias passíveis de reprodução ainda é, no entanto, um traba-lho a ser realizado. Além disso, as bases teóricas que analisam as implicações da Wikipédia enquanto produção coletiva em espaço aberto também são in-cipientes. Em um esforço pioneiro, Robert Cummings, em livro de 2009,25 procura entender o processo de criação de conteúdo na Wikipédia por meio do conceito de commons-based peer production,26 de Yochai Benkler. Cummings defende que a Wikipédia é a plataforma ideal no sistema em que um grupo grande de pessoas se envolve na produção de um bem material de custo ínfimo, dedicando apenas o tempo que desejam e fazendo a atividade que lhes interessa, sistema esse cuja efetividade é possível exatamente graças à

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‘revisão por pares’ feita pelos outro usuários do site. Como o resultado desse esforço coletivo é altamente perceptível, pois a visibilidade do trabalho é muito grande e a interação produtor-receptor é facilmente percebida, a Wikipédia seria a plataforma ideal para o trabalho em disciplinas de escrita acadêmica, curso padrão nos colleges americanos.

A disciplina “História romana na Wikipédia” 27

No segundo semestre de 2011, depois de estabelecer contato e uma par-ceria informal com a Wikimedia Foundation para um projeto pioneiro no Brasil em moldes semelhantes ao projeto americano, ministrei a disciplina optativa Tópicos Especiais em História Antiga – “A história romana na Wikipédia” para o curso presencial de História da UniRio. A disciplina era indicada para o 6° período, mas os vinte alunos variavam entre o 2º período e aqueles prestes a se formar – o que indica uma grande heterogeneidade da turma. O eixo inicial das atividades partiu da proposta de que os alunos esta-riam em última instância produzindo material didático, dada a percepção ge-neralizada de que artigos relativos a História na Wikipédia são utilizados com frequência como meio principal (e muitas vezes único) de obtenção de infor-mações entre os estudantes, e que em seu estado corrente necessitavam inter-venção. Nesse sentido, os dois planos principais de desenvolvimento da disci-plina foram, em primeiro lugar, o trabalho de crítica do conteúdo existente e, em segundo, a edição dos artigos com vistas à correção e ao desenvolvimento dos temas específicos escolhidos.

A disciplina envolveu uma composição de aulas expositivas tradicionais sobre o mundo romano e aulas em laboratório de informática sobre edição técnica na Wikipédia, combinando nas duas situações atividades de leitura crítica, pesquisa e redação. Embora eu já tivesse conhecimento básico sobre edição de artigos, a disciplina também utilizou o apoio técnico de um Embaixador de Campus e dois Embaixadores Online, todos editores experien-tes e conhecedores do ambiente social da Wikipédia lusófona, recrutados me-diante solicitação na comunidade dos editores por meio de anúncio na própria Wikipédia (na seção Esplanada28) e na lista de e-mails do movimento Wikimedia Brasil.29

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Trabalhando com a história romana na Wikipédia

A metodologia de aula e avaliação foi em grande parte empírica, dado que a iniciativa era inédita no Brasil até então.30 A disciplina foi dividida em três fases distintas, ao fim das quais uma avaliação deveria ser entregue:

Fase 1: Enquanto a estrutura de navegação e o funcionamento da edição na Wi-kipédia eram explicados no laboratório de informática, os alunos eram encorajados a explorar os temas sobre Roma Antiga encontrados no site, escolhendo os artigos em que gostariam de trabalhar. Questões como o plágio, a necessidade de referências e a propriedade das informações contidas nos artigos foram analisadas, tendo como resultado um relató-rio individual entregue por escrito, incluindo uma proposta sobre o que deveria ser melhorado. Enquanto isso, um artigo foi elaborado em con-junto por toda a turma, com base em leituras prévias e discussão em aula.31

Fase 2: Os artigos escolhidos pelos alunos foram agrupados em cinco temas principais, com base nos quais foram elaboradas as aulas expositivas. O propósito dessas aulas era trabalhar conceitos mais amplos ligados aos temas escolhidos, deixando claro que as pesquisas individuais sobre os artigos escolhidos deveriam ser feitas não como cópia dos conteúdos aprendidos em sala, mas com base nas questões historiográficas levanta-das nas discussões e da própria pesquisa em fontes primárias e secundá-rias. Foram feitos exercícios de redação baseados na leitura e interpreta-ção da bibliografia indicada, abrangendo as principais vertentes da discussão historiográfica sobre os temas. No caso do tema sexualidade e amor na Roma antiga, a aula foi substituída por uma palestra com uma pesquisadora especialista na questão, a profa. dra. Marina Régis Cavic-chioli, da UFBA, o que enriqueceu ainda mais o debate.

Ao fim dessa fase, os alunos deveriam apresentar seus artigos para avalia-ção de conteúdo e de adequação técnica ao formato da Wikipédia. Caso esco-lhessem, os alunos poderiam apresentar seu trabalho sob a forma de traduções dos mesmos artigos em outras línguas, caso argumentassem pela adequação desses textos – afinal, traduções são permitidas na Wikipédia (no entanto, apenas dois alunos escolheram essa forma de trabalho). As edições eram feitas e monitoradas em páginas de testes dos alunos, criadas como subpáginas das páginas de usuário depois do registro no site. Foi considerada para avaliação a última edição até as 23h59 do dia marcado como prazo final. Até então os

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alunos recebiam feedback meu e dos embaixadores sobre o trabalho, pelas abas de discussão32 das suas páginas de teste. Concedidas as notas, os artigos foram migrados das páginas de teste para o espaço final apenas após correção técnica e de conteúdo, para evitar que fossem revertidos a suas versões anteriores por editores externos críticos a alguma eventual regra infringida (por exemplo, texto plagiado, sem referências ou ‘acadêmico’ demais).

Fase 3: Nessa última fase todos os alunos opinaram e ficaram livres para editar os próprios artigos e os dos colegas, aperfeiçoando os textos e corrigindo pequenos erros de português ou referências incompletas. Nessa fase ocorreu maior interação com outros editores, pelas abas de discussão dos artigos. Como avaliação final, requereu-se um segundo relatório no qual os alunos avaliariam sua experiência, incluindo sua percepção do resultado de seu trabalho e possíveis críticas ao formato do curso e à efetividade do projeto como um todo.

Balanço da experiência

O trabalho de edição resultou na redação em grupo ou individualmente de 17 artigos, novos ou já existentes, que melhoraram significativamente o estado dos seguintes temas: “Amor na Roma Antiga”, “Arquitetura da Roma Antiga”, “Culto imperial”, “Floralia”, “Fronteiras do Império Romano”, “Grécia Romana”, “História do Estudo da Sexualidade”, “Liberto (Roma Antiga)”, “Magna mater”, “Muralha de Adriano”, “Religião na Roma Antiga”, “Romanização”, “Sacramentum”, “Saturnália”, “Sexualidade na Roma Antiga”, “Vestais” e “Vestália”. Além do objetivo primário de melhorar o estado dos verbetes, as características da Wikipédia permitiram que algumas deficiências estruturais de aprendizagem fossem percebidas de maneira mais clara e traba-lhadas com mais atenção:

leitura crítica: as primeiras aulas foram dedicadas à análise do texto de alguns artigos, bem como à compreensão da parte técnica de navegação e dos recursos do site. Em uma leitura conjunta, muitas vezes frase por frase, os alunos foram questionados quanto à clareza e pertinência das informações apresentadas e on-de, por que e quais fontes externas deveriam ser referenciadas. Com isso, eles aprendiam sobre a natureza do texto enciclopédico como fonte terciária e as es-

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pecificidades da Wikipédia como obra de referência: ela não pode ser utilizada como fonte de pesquisa sem antes a compreensão de que é uma obra aberta, co-letiva, introdutória e não necessariamente escrita por especialistas – motivo pelo qual muitas vezes incorre em erro. Na segunda fase, foi necessário um trabalho detalhado na leitura da bibliografia selecionada, para que os alunos tivessem a máxima exatidão e clareza na exposição sucinta das diferentes ideias e do debate historiográfico referente aos temas trabalhados. Foi também nesse sentido que se fez premente uma reflexão sobre as subcategorias dos temas dos artigos, já que a estrutura do texto na Wikipédia é esquematizada em vários tópicos, e não em um texto corrido.

Pesquisa: para preparar os textos dos novos verbetes, além das aulas expositivas, os alunos foram encorajados a aprender como pesquisar, tanto na internet quanto nas vias tradicionais. A habilidade de saber como procurar uma informação, atributo próprio do bibliotecário, é essencial na internet, e os alunos aprenderam a trabalhar com ferramentas de pesquisa especializadas, como o Google Scholar33 e portais de periódicos, como o SciELO34 e o JSTOR.35 Paradoxalmente, um lugar que muitos alunos descobriram como fonte de informações para suas pesquisas foi a própria biblioteca, (re)descobrindo assim o valor dos livros impressos.

redação: este foi o elemento crucial do trabalho durante o semestre. Os alunos precisavam aprender a organizar suas próprias ideias, evitando o plágio direto ou indireto, aprendendo a citar corretamente as fontes que utilizavam, e também sintetizar e comparar as diferentes ideias de autores sobre um tema. Em razão das características da Wikipédia, a escrita também deveria ser clara, objetiva e fluida, de modo que qualquer pessoa pudesse entender conceitos muitas vezes complexos, como o de romanização. Gramática e ortografia também deveriam estar corretas, pois, como o resultado do texto é público e monitorado, qualquer erro ou imprecisão iria sobressair facilmente. Por isso, o trabalho de redação precisou de um acompanhamento minucioso, tanto por mim quanto pelos em-baixadores (de campus e online). Sabe-se que esse é um ponto deficiente de mui-tos alunos desde o ingresso na faculdade, e a falta de tempo para trabalhar em tópicos de redação nas disciplinas regulares dos cursos faz que muitas vezes os estudantes se formem e até ingressem na pós-graduação sem conhecimento se-guro de técnicas de escrita e retórica e mesmo de tópicos pontuais, como a cita-ção de referências em ABNT.

Um ponto importante trabalhado com os alunos foi a discussão sobre autoria na Wikipédia, cujo padrão é o oposto do padrão acadêmico tradicional.

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Na academia supõe-se como condição sine qua non que haja um ou mais au-tores para determinado texto, responsáveis pelo conteúdo e que tenham uma qualificação mínima reconhecida por seus pares para que se justifique a auto-ridade de sua argumentação. São proprietários do texto na sua forma total, e a reapropriação, fragmentação e modificação deste sem prévia autorização constitui plágio, reconhecido legalmente como crime. O texto wiki subverte totalmente essa lógica, pois, como vimos, ao inverso do discurso escrito criti-cado por Sócrates, não tem autoria definida nem é fixo.36 A rigor, é possível detectar quem escreveu os artigos, porque a Wikipédia conserva o histórico de todas as edições com a identificação dos editores registrados, passíveis de iden-tificação caso o usuário se registre com seu próprio nome ou se identifique na página de usuário a que tem direito. No entanto, a proposta do site é clara: ninguém é dono de um artigo, que eventualmente será modificado – para melhor ou para pior. Cabe ao editor interessado acompanhar as mudanças e revertê-las ou aceitá-las, e para reverter é importante poder argumentar pela mudança, dentro das regras dos cinco pilares, no resumo da edição feita ou na aba de discussão do artigo. Esse é um elemento de difícil assimilação no mundo acadêmico, mas acredito que tal dinâmica colaborativa e aberta venha a pos-sibilitar o desenvolvimento de habilidades argumentativas que podem vir a ser revertidas para a própria escrita acadêmica.

Para um resultado bem-sucedido dentro do quadro empírico da metodo-logia adotada, observou-se, no entanto, a presença de alguns fatores funda-mentais. Embora ainda não tenhamos elementos para afirmar que tais fatores sejam obrigatórios, em maior ou menor grau, nos modelos de trabalho a serem delineados com a Wikipédia em sala de aula, observou-se que outros cursos já ministrados no Brasil dentro do mesmo projeto não conseguiram alcançar resultados satisfatórios no mesmo grau,37 em razão de uma ou mais deficiências estratégicas relacionadas aos seguintes pontos:

• O professor deve se envolver na aprendizagem das técnicas de edição e nas dinâmicas das páginas de discussão dos alunos, ainda que minima-mente. Isso inclui a verificação contínua dos trabalhos feitos no site pelos alunos e o acompanhamento das monitorias dos embaixadores. Registrar-se no site e fazer algumas edições possibilitam ao professor entender melhor os eventuais problemas dos alunos com as atividades propostas.

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• Até que esteja disponível uma capacitação testada e eficiente dos em-baixadores, é necessário que o/a Embaixador/a de Campus (de prefe-rência) ou os Embaixadores Online já sejam editores experientes e sai-bam lidar com eventuais problemas na relação com os wikipedistas regulares. Existe a possibilidade de que durante o andamento da disci-plina os alunos se vejam envolvidos em processos de reversão de edi-ções, promovidos por editores que julguem que as alterações feitas in-fringem algum dos cinco pilares, ou em discussões sobre conteúdos que podem vir a ser extensas e desgastantes. A Wikipédia lusófona é uma das mais propensas a longas discussões sobre a propriedade das infor-mações inseridas, com eventuais disputas acirradas entre editores38 – portanto, a não ser que sejam exatamente essas dinâmicas o objetivo da disciplina, é importante não desmotivar os alunos em suas edições, evitando o máximo possível esse tipo de conflitos. Assim, para que o professor encontre voluntários capacitados e dispostos, faz-se necessá-ria a mediação com a coordenação da Wikimedia Foundation para o programa.39

• Uma maneira bastante segura de evitar conflitos com wikipedistas du-rante a realização da disciplina é fazer que os alunos escrevam seus artigos apenas em suas páginas de teste, e que após a avaliação eles se-jam corrigidos pelo/a professor e embaixadores, para que então possam ser ‘colocados no ar’. Este modelo não é consenso entre os professores que adotaram o projeto até agora, mas se provou fácil e seguro.

• A utilização de uma lista de e-mails paralela às atividades na Wikipédia foi muito importante para solucionar as dúvidas técnicas e conceituais dos alunos durante o curso, especialmente no final da segunda fase, quando se aproximava o prazo de entrega dos artigos. Os wikipedistas costumam usar e recomendar os espaços apropriados para ajuda dentro do próprio site, como, por exemplo, o chat IRC, o Café dos Novatos (ambos com links na Esplanada40) e as próprias abas de discussão de todas as páginas, mas esse formato pode ser pouco familiar aos alunos.

Junto aos resultados positivos, algumas dificuldades específicas foram en-contradas, em especial a paradoxal postura passiva dos alunos em diversos mo-mentos. Acostumados ao ambiente da internet e da participação constante nas redes sociais, tiveram, no entanto, certa resistência à iniciativa das atividades propostas em aula. Talvez pelo pouco ou nenhum contato com laboratórios de

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informática no curso superior de História, muitas vezes foram altamente disper-sivos. É possível que o ineditismo da proposta tenha sido um fator inibidor, como também a percepção – confirmada ao longo do semestre – de que editar na Wikipédia não é algo tão fácil quanto parece a princípio. De fato, parece necessário explicitar o alcance dos resultados do trabalho nos artigos, pois os alunos não tinham uma percepção evidente desse aspecto de início. Foi apenas depois da publicação dos artigos no site que cresceu a consciência de que os alunos estavam, de fato, produzindo material didático e elaborando conteúdo para um público extraordinariamente amplo. Como exemplo desse alcance, o artigo “Religião na Roma Antiga” tem uma média de 4 mil visitas por mês.41 Além dessas dificuldades, provou-se que a apresentação dos tópicos técnicos de edição longe do prazo final de entrega dos artigos, intercalados pelas aulas ex-positivas, levou os alunos a esquecerem vários procedimentos, os quais tiveram de ser relembrados pelos embaixadores na lista de e-mails. Sendo assim, é pos-sível que a divisão entre o conteúdo tradicional da disciplina e o trabalho no site seja mais bem-sucedida se a edição em si for ensinada concomitantemente ao trabalho dos alunos.

Os relatórios finais entregues na Fase 3 da disciplina explicitam algumas percepções das atividades e do projeto como um todo. Quase todos os alunos reportaram um considerável desconhecimento no início do semestre sobre o que era a Wikipédia, sobre como ela funcionava e quem a editava e monitora-va. Muitos se mostraram surpresos ao saber que eles mesmos poderiam adi-cionar e corrigir informações, e relataram tanto o uso regular quanto uma forte desconfiança em relação à qualidade do que liam antes no site. Uma resistência em particular também se fez presente: deixar a postura acadêmica de lado e evitar pesquisa inédita e uma complexidade maior do texto – aspecto ressalta-do especialmente pelos alunos com Iniciação Científica em curso. Além disso, muitos se sentiram inseguros por terem de escolher os artigos que trabalha-riam, e manifestaram preferência por artigos predefinidos. No geral, porém, os alunos compreenderam os objetivos da disciplina e a importância de um uso consciente da Wikipédia, bem como do alcance de suas contribuições.

São dois os motivos principais que justificam a importância do projeto. Em primeiro lugar, como já apresentado, o caráter quase onipresente da Wikipédia entre os estudantes brasileiros de todos os níveis torna imperioso melhorar a qualidade dos verbetes, em particular no campo da História. Tal

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iniciativa também tem como ponto positivo uma aproximação maior da pro-dução intelectual nas universidades com a sociedade, ponto recorrente nas críticas ao distanciamento dos acadêmicos. Desta forma, a universidade res-ponde a uma demanda social e dialoga diretamente com milhões de pessoas em todo o mundo de língua portuguesa.

Concomitantemente, o fazer em si do trabalho leva os alunos a desenvol-verem e aperfeiçoarem habilidades e competências cruciais para seu desenvol-vimento acadêmico. No entanto, é importante frisar novamente que nem todas as atividades relacionadas à edição na Wikipédia são análogas à produção aca-dêmica. Como vimos, o caráter enciclopédico do texto dos verbetes deve, a princípio, seguir os chamados ‘cinco pilares’ da Wikipédia:42

• a pesquisa não deve ser inédita, mas deve ser rigorosa e se basear em fontes fiáveis;

• o texto deve ser imparcial;

• o conteúdo é de licença livre (não há crédito explícito para autoria);

• devem-se seguir determinadas normas de conduta na relação entre edi-tores, com um debate equilibrado e que assuma a boa-fé; e

• a iniciativa de editar deve ser encorajada, respeitadas as regras anterio-res (‘seja audaz’).

Isso implica uma diferença crucial em relação ao mundo acadêmico, que se resume nas questões da autoria, da autoridade e da originalidade da pesqui-sa. No entanto, acredito que, devidamente contextualizadas, as diferenças aca-bam por se complementar na formação ampla do aluno, ao invés de se anta-gonizarem. Sendo assim, o uso da Wikipédia se mostra como uma forma específica de aprendizagem, que vem a complementar a formação universitária dos alunos envolvidos. É nesse mesmo sentido que Cummings afirma que a atividade com a Wikipédia seria um passo intermediário entre o ambiente de absorção de conteúdo generalista do Ensino Médio e o de produção de conhe-cimento especializado da academia.43

Existem várias wikis já em uso em diferentes iniciativas didáticas no am-biente universitário, desde a Plataforma Moodle44 amplamente utilizada nos cursos brasileiros de Educação a Distância, inclusive na própria UniRio, até wikis individuais de instituições, como a da Fundação Getulio Vargas.45 Suas

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possibilidades e vantagens têm sido estudadas,46 mas apresentam significativas desvantagens em relação à Wikipédia. A imensa popularidade desta torna pa-tente para os alunos-editores a utilidade de seu trabalho, que será lido por milhares de pessoas, e a presença constante de editores e administradores que monitoram as edições e o cumprimento dos cinco pilares resulta em um acom-panhamento contínuo do trabalho realizado.47

Dado que os verbetes da Wikipédia estão em constante aperfeiçoamento, os alunos aprendem que seu texto será eventualmente alterado, para melhor ou para pior, de modo que podem se tornar atentos para acompanhar o traba-lho realizado após o fim do semestre (como observado com alguns alunos da turma, que continuam a editar). Também aprendem a justificar suas alterações, um hábito encorajado entre os editores da Wikipédia, argumentando seus pontos de vista com a comunidade de editores e aperfeiçoando a troca de ideias e dinâmicas de trabalho colaborativo. Embora a pesquisa acadêmica seja emi-nentemente autoral e individual, incentivar também o diálogo colabora para construir um ambiente de aprendizagem e pesquisa mais rico e estimulante.

NOTAS

1 Agradeço a Otavio Louvem e ao prof. dr. José da Costa Filho (UniRio) a ajuda e as suges-tões.2 PLATÃO. Fedro, 275 d-e. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Ed., 2000. p.122-123.3 Palavra havaiana que significa ‘rápido’.4 O sistema de direitos autorais da Wikipédia é a Atribuição-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Não Adaptada  (CC BY-SA 3.0). Para mais informações: http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/deed.pt_BR; Acesso em: 28 ago. 2012.5 O slogan da Wikipédia, criado por Jimmy Wales, é “Imagine a world in which every sin-gle person on the planet is given free access to the sum of all human knowledge”. Wikime-dia Foundation annual report 2011-2012. Disponível em: http://wikimediafoundation.org/wiki/Annual_Report; Acesso em: 28 ago. 2012.6 As principais estatísticas sobre a Wikipédia podem ser encontradas em http://stats.wikimedia.org/EN/Sitemap.htm; Acesso em: 28 ago. 2012.7 De acordo com as estatísticas em http://www.alexa.com/topsites, ago. 2012.8 http://stats.wikimedia.org/wikimedia/squids/SquidReportPageViewsPerCountry Over view2011Q4.htm; Acesso em: 28 ago. 2012.

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9 SOYLU, Firat. Academics’ Views On and Uses of Wikipedia. GNOVIS, v.IX, n.2, Spring 2009. Disponível em: http://gnovisjournal.org/2009/05/13/academics-views-and-uses-wikipedia; Acesso em: 28 ago. 2012.10 Sobre a importância do desenvolvimento de competências em informação no Brasil, ver CAVALCANTE, Lídia Eugênia. Políticas de formação para a competência informacional: o papel das universidades. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação – Nova Série, São Paulo, v.2, n.2, p.47-62, dez. 2006, disponível em: http://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/view/17/5; e DUDZIAK, Elizabeth Adriana. Os faróis da sociedade de informação: uma análise crítica sobre a situação da competência em informação no Brasil. Informação e Sociedade: Estudos, João Pessoa, v.18, n.2, p. 41-53, maio-ago. 2008, disponível em: www.producao.sibi.usp.br/handle/2012.1/16882; Acessos em: 28 ago. 2012.11 VIEIRA, Marli Fátima Vick. A Wikipédia é confiável? Credibilidade, utilização de uma enciclopédia online no ambiente escolar. Dissertação (Mestrado em Educação) – Univale. Santa Catarina, 2008. Disponível em: http://siaibib01.univali.br/pdf/Marli%20Fatima%20Vick%20Vieira.pdf; Acesso em: 28 ago. 2012.12 BARBASTEFANO, Rafael Garcia; SOUZA, Cristina Gomes de. Plágio em trabalhos aca-dêmicos: uma pesquisa com alunos de graduação. In: ENCONTRO NACIONAL DE EN-GENHARIA DE PRODUÇÃO, 27. Anais... Foz do Iguaçu (PR): Abepro, 2007. Disponível em: www.abepro.org.br/biblioteca/ENEGEP2007_TR660482_9513.pdf; Acesso em: 28 ago. 2012.13 SILVA, Aletéia Karina Lopes da; DOMINGUES, Maria José Carvalho de Souza. Plágio no meio acadêmico: de que forma alunos de pós-graduação compreendem o tema. Pers-pectivas Contemporâneas, Campo Mourão (PR), v.3, n.2, p.117-135, ago.-dez. 2008. Dispo-nível em: www.revista.grupointegrado.br/revista/index.php/perspectivascontemporaneas/article/viewFile/448/247; Acesso em: 28 ago. 2012.14 ROSADO, Autoria textual coletiva fora do âmbito acadêmico: delineando o perfil dos wikipedistas. In: COLÓQUIO DE PESQUISAS EM EDUCAÇÃO E MÍDIA: diálogo entre culturas, 1. Rio de Janeiro: PUC-Rio/UniRio, 2007. Disponível em: http://alexandrerosado.net/attachments/005_Coloquio1AlexandreRosado.pdf; Acesso em: 28 ago. 2012.15 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Críticas_à_Wikipédia; Acesso em: 28 ago. 2012.16 SANTOS, J. D.; PANDINI, M. J. Wikipédia: descrição dos métodos de organização e recuperação da Enciclopédia Colaborativa. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIO-TECONOMIA, DOCUMENTAÇÃO E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, CBBD, 23. Bonito (MS), 2009.17 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia:Cinco_pilares; Acesso em: 28 ago. 2012.18 O cofundador do site, Larry Sanger, afastou-se do projeto por discordar desses argumen-tos e fundou outra enciclopédia livre em 2007, o Citizendium (http://en.citizendium.org/), atualmente disponível apenas em inglês. A princípio, as edições estariam restritas apenas a

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especialistas, mas isso tem resultado em um número muito baixo de verbetes – em 28 de agosto de 2012, não passavam de 16.272.19 Como no estudo comparativo entre artigos sobre ciência na Wikipédia e na Encyclopae-dia Britannica: GILES, Jim. Internet encyclopaedias go head to head. Nature, v.438, n.7070, p.900-901, Dec. 15, 2005. Um estudo de 2012 patrocinado pela Wikimedia Foundation corrobora os dados: CASEBOURNE et al. Assessing the accuracy and quality of Wikipedia entries compared to popular online encyclopedias: a comparative preliminary study across disciplines in English, Spanish and Arabic. Epic, Brighton, UK. Disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/29/EPIC_Oxford_report.pdf; Acesso em: 28 ago. 2012.20 http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia:Central_de_pesquisas/Tendências_e_comportamento_de_editores; Acesso em: 28 ago. 2012.21 A proporção entre usuários e editores nas Wikipédias em diferentes línguas pode ser acompanhada com atualizações mensais em http://stats.wikimedia.org/EN/TablesCurrentStatusVerbose.htm; Acesso em: 28 ago. 2012. Note-se que, entre as dez maiores Wikipédias, a versão em português está atrás apenas da chinesa em menor proporção de editores para usuários (coluna Participation).22 O artigo de Steve Kolowich no Inside Higher Ed do mesmo mês, “Wikipedia for Credit”, foi o que me trouxe a atenção para o projeto: www.insidehighered.com/news/2010/09/07/wikipedia. Cf. OBAR, Jonathan A.; ROTH, Amy. The Wikipedia public policy initiative: exploring the potential benefits of using Wikipedia in the University classroom as a tool for innovative e-pedagogy (Working paper, Aug. 29, 2011). Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1923888; Acessos em: 28 ago. 2012.23 http://outreach.wikimedia.org/wiki/Wikipedia_Ambassador_Program e http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia:Embaixadores.24 Ver análise e bibliografia citada em WANNEMACHER, Klaus. Experiences and perspectives of Wikipedia use in higher education. International Journal of Management in Education, v.5, n.1, p.79-92, 2011. Disponível em: http://inderscience.metapress.com/content/31g167957k810464/; Acesso em: 28 ago. 2012.25 CUMMINGS, Robert E. Lazy virtues: teaching writing in the Age of Wikipedia. Nashvil-le: Vanderbilt University Press, 2009.26 Termo ainda sem tradução corrente para o português; cf. SIMON, Imre. Commons-ba-sed peer production, disponível em: www.ime.usp.br/~is/Benkler/cbpp.html; Acesso em: 28 ago. 2012. Simon define o termo como “uma comunidade aberta e vagamente delimita-da [que] coopera, de forma essencialmente espontânea, descoordenada e voluntária para a produção de um bem informacional ou cultural que é compartilhado pela comunidade de forma neutra e transparente. Em particular, o novo método produtivo não se baseia nos mecanismos tradicionais de organização social do trabalho através de hierarquias, sinais de preços via mercados e relações de contrato e de propriedade”.27 A página da disciplina na Wikipédia está disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/

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Wikipédia:Embaixadores/Disciplinas/Segundo_semestre_de_2011/A_História_Romana_na_Wikipédia_(Juliana_Bastos_Marques); Acesso em: 28 ago. 2012.28 http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia:Esplanada.29 https://lists.wikimedia.org/mailman/listinfo/wikimediabr-l.30 Metodologias de trabalho adotadas pelos professores americanos serviram como referência, mas não foram adotadas integralmente em razão das diferenças entre as realidades educacionais e entre as Wikipédias. Algumas das disciplinas foram publicadas como estudos de caso em uma brochura elaborada pela Wikimedia Foundation em julho de 2012: http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ficheiro:Como_os_professores_estão_ensinando_com_a_Wikipédia.pdf&page=1.31 http://pt.wikipedia.org/wiki/Romanização; Acesso em: 28 out. 2012 (a última edição fei-ta pela turma é de 5 dez. 2011).32 Sobre esse recurso, ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ajuda:Página_de_discussão.33 http://scholar.google.com. 34 http://www.scielo.org.35 http://www.jstor.org. 36 JESUS, Ana Maria Ribas de. Wiki: ferramenta de autoria e colaboração na Web 2.0. In: ENCONTRO NACIONAL DE HIPERTEXTO E TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS., 4. Anais... Uniso, 2011. Disponível em: http://www.uniso.br/ead/hipertexto/anais/07_AnaRibas1.pdf; Acesso em: 28 ago. 2012.37 http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia:Wikipédia_na_Universidade/Cursos. As abas de discussão dessa página, da página dos embaixadores e das páginas de cada curso trazem questões sobre as dificuldades encontradas e os resultados conseguidos nas disciplinas.38 As razões para isso ainda estão sendo estudadas. Cf. CAMPOS, Aline de. Conflitos na colaboração: um estudo das tensões em processos de escrita coletiva na web 2.0. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/16928; SERRANO, Paulo H. Participações em uma comunidade de prática; O sustentáculo da Wikipédia. In: ENCONTRO NACIONAL SOBRE HIPERTEXTO, 3. Anais... Belo Horizonte: Anais Hipertexto, 2009. Disponível em: www.ufpe.br/nehte/hipertexto2009/anais/p-w/participacoes-em-uma-comunidade.pdf; e SERRANO, Paulo Henrique. Coerência entre princípios e práticas na Wikipédia lusófona: uma análise semiótica. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011. Disponível em: http://dspace.lcc.ufmg.br/dspace/handle/1843/DAJR-8M6R2F; Acessos em: 28 ago. 2012.39 http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia:Wikipédia_na_Universidade/Ajuda.40 http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia:Esplanada.41 As estatísticas de visitação dos artigos podem ser visualizadas na aba “Ver histórico”, “Ferramentas: (...) número de visitas”.

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42 Cf. nota 16.43 “CBPP [commons-based peer production] writing assignments assist them in unders-tanding the role of producing knowledge for our culture rather than only consuming it”. CUMMINGS, 2009, p.6.44 ROSADO, Luiz Alexandre da Silva; BOHADANA, Estrella. Autoria coletiva na Educa-ção: análise da ferramenta wiki para cooperação e colaboração no ambiente virtual de aprendizagem Moodle. In: ENCONTRO DE EDUCAÇÃO E TECNOLOGIAS DE IN-FORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO, 5. Anais... Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, 2007. Disponível em: http://etic2008.files.wordpress.com/2008/11/unesaluizalexandre.pdf; Acesso em: 28 ago. 2012.45 http://epge.fgv.br/we.46 GOMES, Maria Rodrigues. A ferramenta wiki: uma experiência pedagógica. Comunica-ção & Educação, v.XVII, n.2, maio-ago. 2007. Disponível em: www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/ced/v12n2/v12n2a12.pdf; BOTTENTUIT Jr., João Batista; COUTINHO, Clara Perei-ra. Wikis em educação: potencialidades e contextos de utilização. In: ENCONTRO SOBRE WEB 2.0, Braga, 2008. Actas... Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/8460; Acessos em: 28 ago. 2012.47 SAORÍN PÉREZ, Tomás; DE HARO Y DE SAN MATEO, María Verónica; PASTOR SÁNCHEZ, Juan Antonio. Posibilidades de Wikipedia en la docencia universitaria: elaboración colaborativa de conocimiento. Ibersid – Revista de sistemas de información y documentación, v.5, p.89-97, 2011. Disponível em: http://ibersid.eu/ojs/index.php/ibersid/article/view/3915; Acesso em: 22 ago. 2012.

Texto recebido em 1º de setembro de 2012. Aprovado em 20 de novembro de 2012.

Tradição oral, narração e mito: a Mitoteca BaniwaOral tradition, narration and mith: the Baniwa Mythotec

Silvana Rossélia Santos*

Pereira, Maria luiza Garnelo; albuquerque, Gabriel arcanjo santos; sampaio, sully; Brandão, luís carlos (org.) Cultura, escola tradição: mitoteca na escola baniwaTrad. Guilherme Fernando, Trinho Paiva, Daniel Silva, Irineu LaureanoManaus: Edua/Fapeam, 2005. 174p.

A Mitoteca Baniwa é composta de uma coletânea de narrativas orais do povo Baniwa, habitante do noroeste da Amazônia brasileira. A coleta, trans-crição e tradução desses textos orais aconteceram no trecho médio do rio Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, na sede da Escola Indígena Pamáali, no período de 2004 a 2005, por uma equipe coordenada por Maria Luiza Garnelo, médica sanitarista e antropóloga do Centro de Pesquisa Leônidas & Maria Deane da Fiocruz/Amazonas, e por Sully Sampaio, cientista social e técnico do projeto Rede Autônoma de Saúde Indígena (Rasi) da Universidade Federal do Estado do Amazonas (Ufam). Nessa equipe de pesquisa, a tarefa de organizador coube ao prof. dr. Gabriel Albuquerque e o design gráfico a Carlos Brandão. Essas narrativas vieram por meio das vozes de narradores anciãos que, convidados a lembrar o que sabiam sobre a atividade pesqueira de seu povo, prontamente recorreram às histórias contadas pelos seus pais e/ou avós, apresentando os mitos que explicam a origem dos rios e peixes do Içana para os Baniwa que habitam esta região do Amazonas.

Para uma percepção aprofundada da beleza do traçado mítico formador dessas histórias, é preciso antes fazer um esforço de compreensão do signifi-cado que essas narrativas têm para o povo que as profere. Cléo Busatto, para esclarecer a função da narrativa oral e para revelar como o mito atua sobre o

* Mestre em Estudos Literários. Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Avenida General Rodrigo Otávio, 6200, Coroado 1. 69077-000 Manaus – AM – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 2, nº 3, p. 349-353 - 2013

Silvana Rossélia Santos

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imaginário dos Yanomami, relembra a fala da liderança Davi Kopenawa Yanomami:

Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esqueci-mento. Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo, e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos dos xamãs, e depois querem ver os espíritos por sua vez. É assim que muito antigas, as palavras dos xapiripê sem-pre voltam a ser novas.1

Os narradores da mitologia baniwa compartilham do mesmo ideal de Kopenawa destacando-se que, além de repassarem os conhecimentos às novas gerações, querem que elas conheçam o quase esquecido, porque “Hoje em dia, só alguns sabem, outros não têm a mínima ideia do que seja isso”, justifica o narrador sobre a importância da rememoração das histórias dos antepassados. Essa constatação revela um dos grandes males que os povos colonizadores – destaquem-se os catequizadores e evangelistas – causaram aos povos indígenas: o apagamento da cultura, em especial, do seu principal veículo, o mito. Esse que é carregado de um simbolismo, uma emoção, um pensamento, compor-tamentos sociais e morais muito particulares.

O mito remete os povos tradicionais à sua origem, ao início de todas as coisas, principalmente, do homem. Todos, na origem mítica, surgem por meio de ações sobrenaturais de deuses que objetivam estabelecer os padrões com-portamentais pelos quais a sociedade deve se pautar sob pena de castigos in-suportáveis e irreversíveis, caso esqueçam tais ensinamentos. Esses aspectos são legitimados no conteúdo das histórias da Mitoteca. O mito também é uma história que alimenta o sentimento de pertencimento ou enraizamento, ado-tando esse termo antropológico sobre a profunda ligação sentimental do ho-mem ao seu espaço físico. O vínculo desse homem à terra e à natureza é fun-damental para que sua herança sociocultural seja mantida. O elo homem-terra baseia sua vida e o mundo na tradição recebida e repassada essencialmente pela fala nas sociedades sem escrita durante as realizações das atividades diárias ou em celebrações específicas para esse fim, como é o caso do rito. O vínculo dos Baniwa com os espaços celestiais e geográficos também mostra como se dão suas ligações e relações terrenas, com as quais criam uma rede social e

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Tradição oral, narração e mito: a Mitoteca Baniwa

religiosa de difícil compreensão para os de visão dicotomizada e maniqueísta do mundo.

O mito baniwa, revivido não só no rito, mas também na rememoração desses narradores, traz à tona histórias de um tempo original marcadas de preocupações ainda atuais, tais como as relações entre os habitantes do mesmo espaço tribal, os acordos tácitos ou formais de bem viver, o sagrado como fonte de toda a vida, realizando a intersecção entre mundos extremos e complemen-tares na dicotomia céu e terra, bem e mal, vida e morte.

Os mitos são, conforme Jack Goody, formas orais e, como tais, apresen-tam o elemento narrativo, apesar de os elementos da narratividade terem pre-sença ‘tênue’ em sua composição. Por considerá-lo um texto que surgiu não de povos com acesso à escrita, mas anteriores a esta, o estudioso desconsidera o conteúdo do mito uma narrativa propriamente dita, justificando que ela nasce em povos com acesso à escrita. Contudo, o caráter narrativo desse texto eminentemente oral é passível de uma leitura literária em razão da presença dos elementos de narratividade, dos sentimentos e da visão de mundo que seus personagens, em tramas simples, com personagens metaforizando humanos tanto no mundo visível quanto no invisível, revelam sobre suas relações sociais e o espaço físico onde vivem.2

Sem pertencer a uma literatura popular ou erudita, estas demarcadas por aspectos conceituais carregados da distinção clássica inaugurada na moderni-dade entre a civilização e a primitividade, o mito resiste, apesar das interferên-cias que naturalmente ocorrem. Interferências estas que dizem respeito ao contágio, por exemplo, que os povos indígenas sofreram durante o contato com outras culturas, em especial, a do branco.

Uma segunda dicotomia surge da distinção entre as literaturas oral e es-crita. As narrativas de tradição oral de povos indígenas são muitas vezes clas-sificadas indevidamente por aqueles mais desatentos que tendem a considerar as narrativas míticas como uma manifestação oral, popular, de um determina-do povo, no sentido de narrativas folclóricas. É necessário salientar que os textos míticos transcritos da cultura oral não são folclóricos para quem os profere, ao contrário, são verdade suprema e revelada aos homens pelos deuses que aqui viveram num tempo primordial. Como afirma Junito Brandão, “são a linguagem imagística dos princípios. ‘Traduzem’ a origem de uma institui-ção, de um hábito, a lógica de um gesto, a economia de um encontro”. Os mitos

Silvana Rossélia Santos

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são herdados dos deuses, portanto sua origem sagrada lhes confere autoridade e autoria únicas. Cada povo tem os mitos que constituem a sua identidade. Não há estilos de narrativa no universo tribal. Para o indígena, o seu relato oral não é folclore, é, conforme a visão socioantropológica do mito, a história da sua origem, do começo do mundo e de todas as suas diversas relações com o sagrado. Eis a razão por que eles não podem ser confundidos com expressões de uma literatura oral popular: não são ficção, ou seja, histórias ‘inventadas’ pelo homem. Eles são verdade no sentido antropológico do termo. Por isso é bem mais complexo analisar textos oriundos da cultura oral do que puramente aplicar classificações tradicionais da crítica literária a eles.3

Para Câmara Cascudo, o mito não é folclore, não é literatura oral, mas os influencia, porque seu conteúdo sagrado trata também de sentimentos e pen-samentos comuns ao homem. Os mitos indígenas baniwa contribuem não só para uma melhor compreensão da cultura amazonense, mas também para o entendimento das práticas folclóricas amazonenses das quais são referência, formando um conjunto muito particular de expressão. O mito circula entre as conversas do índio, do caboclo, do colonizador. Ele extrapola os limites da aldeia e permite aos de fora desse contexto conhecer o pensamento, os anseios, as inquietações, as explicações, os sonhos que povoam as narrativas míticas, as quais trazem também a compreensão e criação da nossa história, do homem como um ser movido por dúvidas, emoções e religiosidade, ávido por explica-ções e sedento de uma vontade de controlar e ordenar o mundo.4

Os relatos míticos baniwa levam a um tempo primordial em que a preo-cupação dos deuses do seu panteão era organizar o mundo atual de tal maneira que fosse muito melhor para a humanidade futura. Nesse contexto da tradição oral é que os relatos baniwa são uma manifestação da pluralidade de expressões culturais que pertencem à região amazônica, posto que trazem a cor, o tom, os lugares, as gentes, os sabores e o cheiro não só do indígena, mas também do caboclo amazonense. Esses relatos foram negligenciados por quatro séculos em função de uma preferência pela cultura erudita que valorizou muito os mitos gregos compilados por Homero e, em certa medida, pela cultura popular que, em última instância, aparece como um reflexo da mestiçagem brasileira, valorizando mais os elementos branco, negro e índio de outras regiões do país.

Os textos da Mitoteca provêm de uma sociedade iletrada. Sociedade de tradição oral cuja transcrição de mitos para sua própria língua e a tradução

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para o português são meios para o registro e compreensão da sua história, da sua tradição. Assim, a parceria entre narradores e tradutores não só rememora os saberes dos antepassados sobre as técnicas de pesca, os tipos de peixes, a forma de como prepará-los para o consumo, mas também dá a conhecer a base da sua formação social, cultural e religiosa por meio do conteúdo de sua lin-guagem poética carregada de metáforas e analogias a que a riqueza simbólica dessas histórias remete.

NOTAS

1 BUSATTO, Cléo. A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. 3.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2001. p.10-11.2 GOODY, Jack. Da oralidade à escrita: reflexões sobre o ato de narrar. In: MORETTI, F. (Org.). A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p.47.3 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. v.1. Petrópolis (RJ): Vozes, 1986. p.38.4 CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio Ed.; Brasília: INL, 1978. p.105.

Resenha recebida em 20 de dezembro de 2012. Aprovada em 23 de maio de 2013.

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trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título em itálico: subtítulo. Dissertação/Tese (Mestrado/Doutorado em .....) – Unidade, Instituição. Cidade, ano. nnnp.

texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www..........; Acesso em: dd mmm. ano.

trabalho apresentado em evento: SOBRENOME, Nome. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO, número (se houver), ano, Local do evento. Anais... Local: Editora (se hou-ver), ano. p.xxx-yyy.