DOSSIÊ - Universidad Autónoma Metropolitana

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CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 68, p. 211-215, Maio/Ago. 2013 211 José Ricardo Ramalho, Roberto Véras de Oliveira DOSSIÊ INTRODUÇÃO José Ricardo Ramalho * Roberto Véras de Oliveira ** A ATUALIDADE DO DEBATE SOBRE TRABALHO E DESENVOLVIMENTO Uma das questões mais importantes do de- bate contemporâneo sobre o trabalho tem sido a demanda por explicações teóricas e por pesquisas empíricas mais consistentes acerca de sua mani- festação em países com situações permanentes de pobreza e deficit de cidadania. Discutir o trabalho nessa perspectiva requer uma ampliação dos hori- zontes de investigação, uma revisão de conceitos clássicos e uma abertura de novas frentes de refle- xão. Foi com esta intenção que reunimos o con- junto de artigos desse Dossiê, articulando a pro- blemática atual do trabalho com a retomada do tema do desenvolvimento. A discussão sobre desenvolvimento ganhou centralidade nas Ciências Sociais brasileiras e lati- no-americanas desde a metade do século XX. Sus- citou diversas interpretações sobre as dinâmicas econômicas e sociais alteradas pela ação do Estado em uma perspectiva nacional-desenvolvimentista, que se voltaram para a “modernização” com ênfase na industrialização, para projetos de infraestrutura e para a constituição de um sistema de regulação jurí- dica face a um mercado de trabalho pouco estruturado e pouco adaptado ao emprego industrial. Tida como uma “década perdida”, quando analisada pelo ângulo estrito da economia, a déca- da de 1980, em perspectiva política, esteve marcada por uma maior participação de setores populares e de trabalhadores no debate sobre democracia, na luta por direitos, quando, por essa via, se “consti- tuiu a base fundamental para a emergência de uma nova noção de cidadania” (Dagnino, 1994, p. 104). Na virada dos anos 1990, no entanto, os im- pactos sociais da globalização econômica e das polí- ticas neoliberais se fizeram sentir nas sociedades lati- no-americanas. Observou-se “uma desconcentração do poder do Estado nacional, reorientado por re- formas em favor do mercado”. Tal perspectiva aprofundou a ruptura do pacto nacional- * Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) e pós- doutorados na Universidade de Londres (UK) e na Uni- versidade de Manchester (UK). Professor titular do De- partamento de Sociologia e do Programa de Pós-Gradua- ção em Sociologia e Antropologia da Universidade Fede- ral do Rio de Janeiro (UFRJ). Largo de São Francisco 1, sala 418, Centro. Cep: 20051070 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected] ** Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Gran- de (PPGCS/UFCG). [email protected]

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INTRODUÇÃO

José Ricardo Ramalho*

Roberto Véras de Oliveira**

A ATUALIDADE DO DEBATE SOBRE TRABALHO EDESENVOLVIMENTO

Uma das questões mais importantes do de-bate contemporâneo sobre o trabalho tem sido ademanda por explicações teóricas e por pesquisasempíricas mais consistentes acerca de sua mani-festação em países com situações permanentes depobreza e deficit de cidadania. Discutir o trabalhonessa perspectiva requer uma ampliação dos hori-zontes de investigação, uma revisão de conceitosclássicos e uma abertura de novas frentes de refle-xão. Foi com esta intenção que reunimos o con-junto de artigos desse Dossiê, articulando a pro-blemática atual do trabalho com a retomada do temado desenvolvimento.

A discussão sobre desenvolvimento ganhoucentralidade nas Ciências Sociais brasileiras e lati-

no-americanas desde a metade do século XX. Sus-citou diversas interpretações sobre as dinâmicaseconômicas e sociais alteradas pela ação do Estadoem uma perspectiva nacional-desenvolvimentista,que se voltaram para a “modernização” com ênfasena industrialização, para projetos de infraestruturae para a constituição de um sistema de regulação jurí-dica face a um mercado de trabalho pouco estruturadoe pouco adaptado ao emprego industrial.

Tida como uma “década perdida”, quandoanalisada pelo ângulo estrito da economia, a déca-da de 1980, em perspectiva política, esteve marcadapor uma maior participação de setores popularese de trabalhadores no debate sobre democracia, naluta por direitos, quando, por essa via, se “consti-tuiu a base fundamental para a emergência de umanova noção de cidadania” (Dagnino, 1994, p. 104).

Na virada dos anos 1990, no entanto, os im-pactos sociais da globalização econômica e das polí-ticas neoliberais se fizeram sentir nas sociedades lati-no-americanas. Observou-se “uma desconcentraçãodo poder do Estado nacional, reorientado por re-formas em favor do mercado”. Tal perspectivaaprofundou a ruptura do pacto nacional-

* Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) e pós-doutorados na Universidade de Londres (UK) e na Uni-versidade de Manchester (UK). Professor titular do De-partamento de Sociologia e do Programa de Pós-Gradua-ção em Sociologia e Antropologia da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro (UFRJ).Largo de São Francisco 1, sala 418, Centro. Cep: 20051070– Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

** Doutor em Sociologia. Professor do Departamento deCiências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologiada UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação emCiências Sociais da Universidade Federal de Campina Gran-de (PPGCS/UFCG). [email protected]

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desenvolvimentista (entre Estado, elites empresa-riais e trabalhadores assalariados urbanos), que ti-nha vigorado até os anos 1970 (Ivo, 2012, p. 198).Se, nos anos 1980, tendo o caso brasileiro comoemblema, a questão social foi ressignificada naperspectiva dos direitos de cidadania, na décadaseguinte o que se viu foi um movimento de“refilantropização da pobreza” (Yazbek, 1995). Adívida social cresceu com o desemprego elevado,o aumento da informalidade e da vulnerabilidadedas mulheres e dos jovens trabalhadores, o esva-ziamento das negociações coletivas e das ações sin-dicais, a “precarização” das relações de trabalho(DIEESE, 2001).

As dinâmicas socioeconômicas e políticasse alteraram ao longo da década de 2000. SegundoBoschi e Gaitán (2008, p. 305 e 306), ocorre, nesseperíodo, “o enfraquecimento da hegemonianeoclássica e uma retomada de trajetórias de inter-venção estatal na economia, observando-se umadiversidade de caminhos neodesenvolvimentistas”.O principal desafio dos países latino-americanospassou a ser o de “quebrar um círculo vicioso ereverter as trajetórias prévias sinalizadas pelo sub-desenvolvimento, pelo atraso relativo e pela desi-gualdade na distribuição de renda” (Idem, p. 305).

Na retomada do debate sobre o tema do de-senvolvimento, a dimensão social tem sido maisenfaticamente reivindicada. É o caso deKerstenetsky (2011), que propõe uma articulaçãoentre as propostas de desenvolvimento e o estadodo bem-estar social, de modo a compatibilizar cres-cimento econômico e equidade social. Para Ivo(2012, p. 206), a relevância social da agenda dedesenvolvimento deve ser considerada para alémdas políticas de transferência de renda, visto queo enfrentamento das desigualdades sociais nãopode prescindir de “políticas vigorosas de prote-ção e integração social”, as quais “dependem dascondições estruturais da distribuição, da qualida-de das políticas públicas e da qualidade de inser-ção dos indivíduos na esfera do trabalho...”.

A problemática atual do trabalho, referida àretomada de um discurso desenvolvimentista, ga-nha particular relevância quando associada, seja

às diversas experiências de participação política einstitucional dos trabalhadores e dos movimentossociais nas últimas décadas, seja ao modo comopolíticas de desenvolvimento lidam com estratégi-as empresariais de flexibilização e precarização dasrelações de trabalho, de desrespeito à legislaçãoprotetiva do trabalho, de descaso com asconsequências ambientais e seu impacto sobre di-ferentes setores da população.

Os estudos sobre o trabalho em um cenáriode globalização, em contextos de países periféri-cos, trouxeram desafios de interpretação, tendo emvista substantivas diferenças no perfil do mercadode trabalho e nas estratégias empresariais com re-lação às condições de emprego e à reestruturaçãodas atividades produtivas. As mudanças no mun-do do trabalho, originadas nos processos dereestruturação produtiva; a introdução de um pa-drão flexível na organização dos processos de tra-balho, como forma de lidar com as novastecnologias e, ao mesmo tempo, estabelecer novosparâmetros para as relações salariais; a capacidadede deslocamento geográfico das empresas e suaestruturação em rede, como forma de obter vanta-gens comparativas; todos esses elementos apare-cem de forma diferenciada na realidade econômicae social dos países da America Latina (Ramalho,2000). Na tradição crítica do pensamento socioló-gico brasileiro e latino-americano, os destacadosaspectos da flexibilização foram objeto dequestionamento e valorizou-se uma linha de inter-pretação que mostrava as consequências sociaisdesse processo, a “precarização” do trabalho e seusefeitos sobre a organização da sociedade. Tal pers-pectiva, ao mesmo tempo em que ressalta a impor-tância de identificar as situações de “precarizaçãosocial”, demonstra as contradições entre os proces-sos de modernização percebidos como progresso eprocessos de regressão social cada vez mais visíveis.

A proximidade política da reestruturaçãodas empresas e da expansão das redes globais deprodução com os modelos de política econômicade perfil neoliberal tiveram um impacto imediatonas dinâmicas do trabalho no Brasil. As pesquisasrealizadas sobre o período que se inicia nos anos

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1990 identificaram efeitos sociais que fragilizaramtrabalhadores e desempregados. A flexibilizaçãodas empresas através da “terceirização”, por exem-plo, reduziu direitos, rebaixou salários e tornouinstáveis os empregos. O alto grau deinformalização do mercado de trabalho e a presen-ça da exclusão e da pobreza permaneceram comotraços marcantes. Esse perfil do trabalho se mante-ve também nos anos 2000, quando uma maiorênfase no crescimento econômico se consolidouno cenário político. Tal retomada resultou em ummaior incremento das políticas sociais, com mu-danças relevantes nos indicadores sociais e do tra-balho, sem, no entanto, trazer alterações de tipomais estruturais (Pochmann, 2012).

Toda uma linhagem especialmente delimita-da pela noção de “economia solidária” se estabele-ceu, enquanto ação coletiva e política pública,recolocando em cena as experiências associativas esolidárias nos campos da produção, comercialização,crédito e trabalho. Por outro lado, o novo contextode desenvolvimento tem exigido uma necessária li-gação da temática do trabalho com os contextos es-pecíficos dos “territórios produtivos”, as estratégi-as de investimento das cadeias produtivas e as po-líticas de desenvolvimento local e regional.

Por tudo isso se justifica um olhardirecionado para as implicações recíprocas entre anova agenda de desenvolvimento e as novas dinâ-micas do trabalho. De um lado, a necessidade deinvestigar as consequências das novas políticas dedesenvolvimento para as relações de trabalho. Emque medida e de que modo as pressões mundiaispela flexibilização e precarização das relações detrabalho se aplicam ao Brasil e a outros países daAmérica Latina? De outro lado, até que ponto osmovimentos sociais, o sindicalismo e outras for-mas de ação coletiva, referidas ao mundo do traba-lho e às questões sociais e ambientais, vêm conse-guindo influenciar os padrões de desenvolvimen-to que se estabelecem?

A proposta deste Dossiê não é o de cobrirtodo esse conjunto de considerações e questões,mas de demonstrar, através dos artigos escritos ediferentes abordagens, um campo possível de arti-

culação entre as temáticas do trabalho e do desen-volvimento, sinalizando a sua complexidade paraos estudos sociológicos.

Começamos com um estudo sobre como umadas expressões de maior destaque do sindicalismobrasileiro vem tematizando a questão do desenvol-vimento, justo na região de maior tradição indus-trial do país. No texto “Sindicato, desenvolvimen-to e trabalho: crise econômica e ação política noABC”, José Ricardo Ramalho e Iram JácomeRodrigues, a partir da atuação do sindicato dosmetalúrgicos do ABC paulista nas últimas duas dé-cadas, especialmente durante a crise de 2008, discu-tem e problematizam o envolvimento direto de enti-dades de representação de trabalhadores em espaçosnão-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvi-mento e seus desdobramentos em contextos regio-nais. O texto revela as diferentes inserções e pers-pectivas dos atores sociais locais, regionais e nacio-nais na busca de alternativas para a crise econômicamundial e demonstra como, através de um eventopúblico, sem apagar as contradições e os conflitos deuma realidade social marcada pela assimetria de po-sições na estrutura social, o sindicato exerceu seupoder de mobilização e criou alternativas concretaspara enfrentar o desemprego e as ameaças de umaconjuntura hostil aos trabalhadores.

Na sequência, em contraste com o caso an-terior, trazemos uma abordagem sobre os conflitosdo trabalho e a ação sindical em um território naperiferia do país, onde vem ocorrendo um boom

de industrialização, induzido por políticasdesenvolvimentistas. No texto “Suape em cons-trução, peões em luta: o novo desenvolvimento eos conflitos do trabalho”, Roberto Véras de Olivei-ra analisa a emergência de uma nova agenda dedesenvolvimento no Brasil através da ótica do tra-balho e de seus conflitos. Tomando como exem-plo a construção de empreendimentos industriaisno Complexo Industrial Portuário de Suape, emPernambuco, e enfocando, principalmente, as re-voltas e greves de trabalhadores envolvidos nasobras de construção das principais plantas indus-triais, o autor mostra como tais conflitos permitemapreender os processos desencadeados (conflitos,

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mediações e negociações) e o que está em disputa(com as demandas dos trabalhadores e os discur-sos e práticas governamentais, empresariais e sin-dicais). A questão que se coloca ao final é se essasmobilizações, além de ganhos imediatos para ostrabalhadores, são capazes de lhes dar reconheci-mento como legítimos portadores de demandassociais. E se tais demandas não colocam em xequeos termos do novo discurso desenvolvimentista.

Um elemento em evidência nesse novo ar-ranjo discursivo se refere à sua associação com aquestão ambiental. Neste particular, um dos aspec-tos mais controversos diz respeito ao modo comose articulam os temas da “energia limpa” e da pro-dução de etanol. No texto “A imagem do etanol como“desenvolvimento sustentável” e a (nova) morfologiado trabalho”, Maria Aparecida Moraes e Silva et al

analisam as relações e condições de trabalho noscanaviais paulistas e alagoanos, resultantes de umprocesso de reconfiguração do trabalho pela inten-sificação da mecanização do corte de cana. A pro-posta é mostrar, criticamente, como a ideologiadesenvolvimentista relacionada a essas mudanças,introduzidas pelas empresas sucroalcooleiras e es-timuladas pelo Estado, tem resultado em uma in-tensificação da exploração da força de trabalho noquadro de uma (nova) morfologia que combinatecnologias avançadas com um aumento dadesqualificação dos trabalhadores.

Discutir modelos de desenvolvimento im-plica, também, abordar as mudanças no mercadode trabalho e no modo como se tratam questõescomo a flexibilização dos empregos e a manuten-ção de direitos. Em “A retomada do desenvolvi-mento e a regulação do mercado de trabalho noBrasil”, Paulo Baltar e José Dari Krein argumentamque a retomada do crescimento da economia brasi-leira permite redefinir os termos do debate sobre otrabalho. Sob tal pressuposto, estabelecem umarelação entre a dinâmica do capitalismo contem-porâneo e os desafios de uma regulação públicado trabalho. Ressaltam que a crise econômica mun-dial abre a possibilidade de o Estado ter um papelmais ativo nas políticas de desenvolvimento ealertam, no caso brasileiro, para os desdobramen-

tos do aumento do peso da PEA adulta, em rela-ção ao funcionamento do mercado de trabalho. Osautores identificam, nesse contexto, um embateentre os que defendem uma estruturação do mer-cado de trabalho com implicações na qualidadedas relações sociais e os que destacam a necessi-dade de uma maior flexibilização na contratação,no uso e na remuneração do trabalho. E associamestas diferentes posições ao modelo de desenvol-vimento e às políticas públicas do trabalho que opaís vem implementando.

O texto seguinte se dedica às possibilida-des de uma regulação pública do trabalho, maisespecificamente à relação entre o segmento de tra-balhadores jovens sem escola e sem trabalho e areprodução da pobreza. Em “Juventude, trabalhoe desenvolvimento: elementos para uma agendade investigação”, Adalberto Cardoso discute a si-tuação dos jovens que não estudam nem trabalham,fenômeno que vem chamando a atenção no con-texto pós-crise econômica de 2008, especialmentena Europa. O autor argumenta que, no Brasil, a con-dição “nem nem” é estrutural, e propõe um modeloanalítico de explicação das transformações ocorridasentre 2000 e 2010. Sugere que as mudanças estrutu-rais por que passou o país e as políticas públicas deredução de barreiras ao acesso à escola e ao mercadode trabalho reduziram o impacto das desigualdadesregionais e aumentaram o peso da pobreza na expli-cação da condição “nem nem” dos jovens.

O último texto, de cunho mais teórico, tratada adequação das interpretações sobre as tendên-cias e os sentidos do trabalho na sociedade capita-lista contemporânea a partir da especificidade darealidade latino-americana. No artigo “Trabajo noclásico y flexibilidad”, Enrique de la Garza Toledofaz um balanço dessa literatura e atribui destaquea uma dimensão insuficientemente explorada dateoria através do uso do conceito de “trabalho nãoclássico”. No texto, ele relaciona esse tipo de tra-balho com as atividades de serviço, que adquiremimportância nas economias capitalistas centrais,mas também nas economias menos desenvolvidas.E, ao recapitular a discussão sobre flexibilidade,reivindica a sua ampliação para incluir os traba-

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lhos não-clássicos, em especial a subcontratação.O autor finaliza com a discussão sobre a fragmen-tação de identidades e a servidão voluntária e seusvínculos com o trabalho não-clássico e sugere aten-ção à possibilidade de constituição de sujeitos dotrabalho mesmo nestas condições.

Ao final, esperamos que as questões apre-sentadas e discutidas nesse Dossiê tragam novoselementos para o debate sobre a centralidade dotrabalho na sociedade contemporânea e para umareflexão mais aprofundada sobre os diferentes des-dobramentos que envolvem os processos de de-senvolvimento econômico, com ênfase na necessi-dade da participação da sociedade e dos trabalha-dores na sua formulação e na distribuição dos seusresultados.

Recebido para publicação em 14 de junho de 2013Aceito em 26 de junho de 2013

José Ricardo Ramalho - Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pós-doutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular doDepartamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPQ. Sua atuação acadêmica está mais voltada para a áreada Sociologia do Trabalho e seus principais temas de pesquisa são: relações de trabalho na indústria; sindica-to e sindicalismo; reestruturação produtiva e distritos industriais; trabalho, emprego e desenvolvimentoeconômico regional e local; identidade operária. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicase livros. Entre estes, Estado Patrão e Luta Operária: o caso FNM. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Trabalho

e Sindicato em antigos e novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007.

Roberto Véras de Oliveira - Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamen-to de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduaçãoem Sociologia da UFPB (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UniversidadeFederal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). Pesquisador do CNPQ. Preferencialmente, orienta seus estudose pesquisas para os campos da Sociologia do Trabalho e da Sociologia Política. Tem concentrado sua atenção(na forma de publicações, orientações e participação em eventos) sobre temas como sindicalismo, relações detrabalho, qualificação profissional, políticas públicas de trabalho, emprego e renda, economia solidária,diálogo social, cidadania, entre outros. É autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros.Entre estes, Sindicalismo e Democracia no Brasil – do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. São Paulo:Annablume, 2011.

REFERÊNCIAS

BOSCHI, Renato; GAITÁN, Flavio. Intervencionismo es-tatal e políticas de desenvolvimento na América Latina.Caderno CRH. Salvador: EDUFBA, v. 21, n. 53, p. 305-322, Maio/Ago, 2008.

DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergên-cia de uma nova noção de cidadania. In: DAGNINO, E.(Org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo:Brasiliense, p. 103-115. 1994.

DIEESE. A situação do trabalho no Brasil. São Paulo:Dieese, 2001.

IVO, Anete B. L. O paradigma do desenvolvimento: domito fundador ao novo desenvolvimento. Caderno CRH.Salvador: EDUFBA, v. 25, n. 65, p. 187-210, Maio/Ago.2012.

KERSTENETZKY, Celia Lessa. Welfare state e desenvol-vimento. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 129-156,2011.

POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho nabase da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo,2012, 128p.

RAMALHO, José Ricardo. Trabalho e sindicato: posiçõesem debate na sociologia hoje. Dados, Rio de Janeiro, v.43,n. 4, p. 761-777, 2000.

YAZBEK, Maria Carmelita. A política social brasileira nosanos 90: refilantropização da Questão Social. In: Cader-nos ABONG, n. 11, 1995.

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SINDICATO, DESENVOLVIMENTO E TRABALHO: criseeconômica e ação política no ABC

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O objetivo deste texto é discutir e problematizar as novas práticas sindicais dos metalúrgicos doABC paulista, que implicam o envolvimento direto de entidades de representação de trabalha-dores em espaços não-fabris, no debate sobre estratégias de desenvolvimento e seus desdobra-mentos em contextos regionais de uma economia globalizada. Vamos analisar a ação sindicaltomando como base dois períodos distintos – décadas de 1990 e 2000 – , e colocar em foco, comosíntese desse processo, a realização de um evento político organizado pelo sindicato dosmetalúrgicos em 2009, o Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”, que revela asdiferentes inserções e perspectivas dos atores sociais locais, regionais e nacionais na busca dealternativas para a crise econômica mundial de 2008. Trata-se de um exemplo de reuniãopública que, sem apagar as contradições e os conflitos de uma realidade social marcada pelaassimetria de posições na estrutura social, criou um momento de consenso provisório diantedas ameaças de uma conjuntura hostil aos trabalhadores.PALAVRAS CHAVE: Ação sindical. Desenvolvimento regional. ABC paulista. Crise econômica

A intervenção de sindicatos no debate so-bre estratégias de desenvolvimento econômico noBrasil pode ser considerada uma novidade no elen-co das habituais demandas associadas às questõessalariais e às condições de trabalho. A tentativa detrazer para o espaço público as decisões normal-mente tomadas em esferas privadas e a preocupa-ção em avaliar os efeitos sociais dos projetos deinvestimento que atingem localidades e regiões têmexigido das entidades sindicais, com acúmulopolítico no mundo do trabalho, uma ação diferen-ciada de engajamento em disputas de poder e ex-periências institucionais inovadoras.

O sindicato dos metalúrgicos do ABCpaulista, pelo protagonismo que exerceu na luta

de resistência política à ditadura civil-militar ins-taurada em 1964, e pela experiência histórica dereivindicação por melhores salários e empregosdesde o final dos anos 1970, é um bom exemplode como usar legitimidade e poder de convocaçãopara atuar em instâncias de discussão sobre osproblemas criados pelas crises econômicas regio-nais e para exigir das empresas e dos governossoluções em favor da sociedade local e de seustrabalhadores.1

Pelo fato de ser um complexo distrito in-dustrial, berço da indústria automotiva brasileirae com uma concentração de empresasmultinacionais e suas redes de fornecedores, oABC, como território produtivo, foi atingido, nasúltimas duas décadas, em especial nos primeirosanos dos 1990 e nos anos finais dos 2000, porcrises mundiais (Ramalho e Rodrigues, 2010 e2007; Ramalho, Rodrigues e Conceição, 2009).Cenários de recessão e diminuição de atividades

* Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) e pós-doutorados na Universidade de Londres – UK – e naUniversidade de Manchester – UK. Professor titular doDepartamento de Sociologia e do Programa de Pós-Gra-duação em Sociologia e Antropologia da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro – UFRJ.Largo de São Francisco 1, sala 418, Centro. Cep: 20051070– Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

** Doutor em Sociologia e pós-doutoramento pela Uni-versidade de Cambridge – UK. Professor Associado (Li-vre-Docente) do Departamento de Economia da Univer-sidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade de São Paulo (PPGS-USP)[email protected]

1 Os dados, informações e entrevistas que sustentam otexto são resultados parciais de projetos de pesquisa emandamento, que vêm sendo desenvolvidos pelos auto-res, apoiados pelo CNPq e pela Faperj (Programa Cientis-tas do Nosso Estado).

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econômicas são conhecidos dos trabalhadores edos sindicatos: em geral resultam em aumento dodesemprego e pressão empresarial por redução desalário e flexibilização de direitos trabalhistas. Aessa intimidação conjuntural, a reação habitual dossindicatos tem sido a da busca de mecanismos dedefesa do emprego, evitando abrir mão de avançosjá consolidados. No caso dos metalúrgicos do ABCnão foi diferente, e o sindicato adotou uma linhade ação pró-ativa para atenuar os efeitos negativosdas crises e não se furtou a fazer valer o seu poderpolítico para, junto com outros setores, como ospequenos e médios empresários e a administraçãopública local, discutir propostas de ativação daeconomia e do emprego regional.

O objetivo deste texto é discutir eproblematizar as novas práticas sindicais dosmetalúrgicos do ABC, que implicam o envolvimentodireto de entidades de representação de trabalha-dores em espaços não-fabris, no debate sobre estra-tégias de desenvolvimento e seus desdobramentosem contextos regionais de uma economiaglobalizada. Vamos analisar a ação sindical, toman-do como base esses dois períodos distintos (déca-das de 1990 e 2000), e colocar em foco, como sínte-se desse processo, a realização de um evento políti-co organizado pelo sindicato dos metalúrgicos em2009, o Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvol-vimento”, que revela as diferentes inserções e pers-pectivas dos atores sociais locais, regionais e nacio-nais na busca de alternativas para a crise econômicamundial de 2008. Trata-se de um exemplo de reu-nião pública que, sem apagar as contradições e osconflitos de uma realidade social marcada pelaassimetria de posições na estrutura social, criou ummomento de consenso provisório diante das amea-ças de uma conjuntura hostil aos trabalhadores.

O contexto de crise nos anos 1990 e anos2000 no ABC paulista apresentou diferenças deformato e de impacto sobre a região, assim comoencontrou motivações distintas por parte dos go-vernos federais. Em 2008, por exemplo, a presen-ça de Lula na presidência da república desobstruiuos canais de interlocução do governo federal coma região e com o sindicato dos metalúrgicos. Da

mesma forma, a participação diferenciada das ad-ministrações municipais nos dois períodos é mo-tivo para uma reflexão, tendo em vista que os pre-feitos ligados ao Partido dos Trabalhadores inau-guraram novas práticas institucionais ao reuniratores sociais diversos, com heranças históricasdiversas, em combinações políticas que sinaliza-ram caminhos pouco explorados de associação ede debate na esfera pública.

UMA DISCUSSÃO TEÓRICA SOBRE MOVI-MENTO SINDICAL

A estratégia sindical implementada no ABCtraz desafios para os trabalhadores, seus represen-tantes e para os estudiosos do tema do sindicalismo.Como explicar uma postura política que implicacooperação institucional com empresários e admi-nistração pública, quando, em termos da estruturasocial, permanecem inalteradas as contradiçõesirreconciliáveis do capitalismo e as assimetrias quemarcam as relações capital/trabalho nas fábricas?O sindicato teria esquecido sua função de repre-sentante de classe e deixado de lado a veia de con-testação, característica de sua ação nos anos 1970/1980? Existem argumentos para justificar essasnovas práticas? Houve benefícios concretos para apopulação trabalhadora do ABC?

O sindicalismo metalúrgico do ABC tornou-se, durante os anos 1980, um exemplo do que, nodebate mundial sobre novas formas de ação coleti-va na área trabalhista, ficou conhecido como“sindicalismo de tipo movimento social” (social

movement unionism, conforme o original em in-glês), por suas características de contestação polí-tica e de associação com outros movimentos soci-ais (entre outros Moody,1997; Waterman, 1998,2008; Munck, 2002; Seidman, 1994). Ao longo dosanos 1990, no entanto, com a globalização dosmercados e a imposição de uma reestruturação daprodução, este sindicato foi obrigado a adotar umaestratégia defensiva, evoluindo de uma fase maismarcada pelo conflito aberto com as empresas paraum processo de “cooperação conflitiva” (Rodrigues,

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1995), situação na qual os trabalhadores, sem ab-dicar das marcas e diferenças de classe, se viramobrigados a “negociar” as transformações na esferada produção. A luta pela preservação do seu espa-ço, enquanto instituição de representação dos traba-lhadores nesse novo contexto, levou o sindicato a

[...] se projetar para além das negociações diretascom as empresas”, a buscar “uma nova forma deinserção na sociedade, diversificando sua agendade preocupações, ampliando sua participação emespaços públicos, instituindo novas frentes deação2 (Véras de Oliveira, 2011, p. 286 e 287).

Um modo de problematizar a ação sindicalno ABC, tomando como base as várias interpreta-ções existentes na literatura sobre as diferentes fa-ses do sindicalismo, é o de avaliar essas práticas,levando em consideração as particularidades doscontextos sociais, econômicos e políticos, das tra-dições políticas incorporadas historicamente, dasconjunturas econômicas globais e nacionais e seusdesdobramentos sobre o mercado de trabalho. Mas,além disso, perceber que os sindicatos estão per-manentemente sob pressão de um dualismo uni-versal entre ser uma “organização de negócios” ouuma “expressão e veículo do movimento históricodas classes trabalhadores subalternas” (Fairbrother;Webster, 2008, p. 309-313; Hyman, 2001).

Na avaliação de Fairbrother e Webster (2008,p. 309-313), por exemplo, “os sindicatos são um tipode movimento social que contém dimensões progres-sistas e acomodativas” e a questão que se coloca paraos analistas é identificar “como e em que circunstân-cias os sindicatos podem desafiar e questionar a rela-ção capital/trabalho”. Para esses autores, cabe aos sin-dicatos, como associações de trabalhadores, regulara relação salário-trabalho e, por essa razão, não po-dem ignorar o mercado. Mas os sindicatos “são tam-bém parte da sociedade, coexistindo com outras ins-tituições e outras constelações de interesses”.

Discutir essas estratégias sindicais pós-dita-dura, em comparação com exemplos de outros paí-ses, é uma boa oportunidade para examinar asespecificidades de tempo e espaço, as conjunturasparticulares com suas próprias dinâmicas e, aomesmo tempo, identificar dilemas e práticas queaproximam as ações sindicais diante de conjuntu-ras econômicas desfavoráveis. A contribuição teóri-ca de Hyman (2001, p. 3), ao analisar a experiênciaeuropeia diante da reestruturação produtiva, pare-ce-nos adequada para o caso do ABC. Sua sugestãode investigar a ação sindical a partir do triângulomercado/sociedade/classe, também se aplica ao con-texto brasileiro das duas últimas décadas. Para esteautor (2001, p. 3-5), todos os sindicatos estão referi-dos a cada ponto do triângulo: “[...] sindicatos denegócio focam, no mercado; sindicatos integradores,na sociedade; sindicatos de oposição radical, naclasse”. No entanto, afirma Hyman, os exemploshistóricos mostram que os sindicatos, com base emapenas um vértice, ficam instáveis:

[...] sindicalismo de negócio puro raramente oununca existiu. Mesmo com a atenção principalvoltada para o mercado de trabalho, os sindica-tos não podem [...] negligenciar o amplo contex-to social e político das relações de mercado. [...].

Do mesmo modo, como veículos de integraçãosocial, os sindicatos podem sustentar umarationale que justifica sua existência como insti-tuições autônomas, mas essa postura esbarra nofato de que seus membros, como empregados, têminteresses econômicos distintos, “o que pode sechocar com os interesses de outros setores da so-ciedade”. Por outro lado,

[...] os sindicatos que abraçam uma ideologia deoposição de classe precisam ao menos conseguiruma acomodação tácita com a ordem social exis-tente; e devem também considerar o fato de quenormalmente seus membros esperam que seusinteresses econômicos de curto prazo sejam ade-quadamente representados.

Sem desconsiderar a perspectiva macro deanálise, que problematiza a estrutura de classes dasociedade capitalista e as estratégias das empre-

2 Para Véras de Oliveira (2011, p. 270), o I Congresso dosMetalúrgicos do ABC, ocorrido em 1993, foi uma marcaimportante quando “aprovou-se a participação do Sin-dicato na campanha denominada Ação da Cidadania con-tra a Miséria e Pela Vida, que ganhava visibilidade e mo-bilizava a sociedade”. Embalado pelo apelo da campanhaao resgate da cidadania, a resolução do Congresso sooucomo um manifesto do “sindicato cidadão”.

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sas, a intenção do nosso texto é enfatizar a capaci-dade de agência dos trabalhadores organizados e oseu poder coletivo de alterar disputas políticas emarenas locais. Embora as empresas multinacionaistenham sua lógica de acumulação articulada glo-balmente, os territórios produtivos, que constitu-em seus elos locais, são arenas políticas de dispu-ta de poder, onde os atores sociais exercem suacapacidade de contestar decisões de investimentoe projetos de desenvolvimento econômico. ComoOlivier de Sardan (2005, p. 183-186), considera-mos que estes atores têm “recursos de poder desi-guais e desequilibrados”, mas não estão, nunca,“destituídos de poder”.

UMA VOLTA AO PASSADO RECENTE: a crisedos anos 1990 e a reação sindical

A participação do sindicato dos metalúrgicosna organização e liderança de uma iniciativa do tipodo Seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvi-mento”, na verdade, permite remontar a uma histó-ria que começa no início dos anos 1990. O ABC,nesse período, segundo Conceição (2008),

[...] vivenciou, de modo mais agudo que no res-tante do país, a reestruturação industrial, cujoresultado foi, entre outros, a desnacionalizaçãodo capital, a falência de inúmeras empresas, adesativação de várias fábricas de grande, médioe pequeno porte, a redução de cerca de 50% dospostos de trabalho.

E a crise serviu para que empresários justifi-cassem o deslocamento para outras regiões, especi-almente por causa do “regime automotivo” de 1995,e colocassem a responsabilidade exatamente na in-tensidade da atividade sindical.

O processo de reestruturação produtiva é extre-mamente perverso quando não acompanhadopor um movimento sindical que procureminimizar os seus efeitos redutores de mão deobra e de mercado. A ausência de crescimentoeconômico é o pior dos mundos. Você vive a de-missão da reestruturação aliada a não geração deemprego pela ausência de crescimento econô-mico. Então discutimos a reestruturação produ-tiva para minimizar seus efeitos ou buscar ao

menos interromper o curso natural do que seriao investimento do capital. Mas estamos preocu-pados também com o desenvolvimento que é nasequência a contrapartida de geração de empre-go, de recolocação de pessoas e de ampliação dopróprio mercado. Isso é o que tem nos levado auma preocupação com política industrial, compolíticas setoriais, com desenvolvimento local(José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dosMetalúrgicos do ABC, 18/06/2004).

No entender de Abrucio e Soares (2001, p.152-156), a crise no ABC dos anos 1990 fez comque os atores locais fossem “tomando uma postu-ra de organizar-se regionalmente”. Segundo essesautores,

[...] nem todos os grupos atuaram (com a) mesmaintensidade, [...] bem como nem todas as ques-tões tiveram o mesmo potencial agregador”. Masas dificuldades econômicas colocaram a regiãosob um dilema: “ou reagia coletivamente, ou secorria o risco de todos perderem, em proporçõesdiferentes, porém com um impacto de soma-ne-gativa no geral.

Esse processo coincide, também, com asmudanças resultantes das eleições municipais de1988, com a posse de novos grupos políticos, es-pecialmente aqueles ligados ao Partido dos Traba-lhadores.3 Para o ex-prefeito do PT, Celso Daniel(2001b, p. 78 e 79), o principal formulador e reali-zador das novas propostas de articulação para odesenvolvimento regional,

[...] a crescente consciência coletiva da crise es-trutural do Grande ABC – em substituição à au-sência de tal consciência na década de 1980 –criou condições para a constituição de complexainstitucionalidade regional.

Para Daniel, a superação da crise não pode-ria estar baseada em decisões exógenas à região efazia-se necessário

3 “É bom recordar, ainda, que o diagnóstico sobre a situaçãoregional não era o ponto mais importante no discurso dospetistas [...]. Foi com a assunção ao poder e oenfrentamento de seus problemas, numa época marcadapelo acirramento e conscientização de dimensão da criseeconômica e social do ABC, atingindo em cheio um mo-delo de desenvolvimento bem sucedido por trinta anos,que os prefeitos petistas procuraram atuar em prol datemática regional“ (Abrucio e Soares, 2001, p. 152-156).

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uma proposta alternativa de desenvolvimentolocal endógeno, isto é, calcado, sobretudo emdecisões tomadas internamente à região, pelosseus protagonistas, ou ao menos fortemente in-fluenciadas por estes últimos”.4

Uma primeira reação institucional à criseda indústria no ABC foi a criação da Câmara Setorialda Indústria Automobilística pelo governo federal(entre outros, Arbix, 1996 e 1997; Oliveira, 1992 e1993; Diniz, 1993; Cardoso e Comin, 1995 e Car-doso, 1999a; Bresciani e Benites Filho, 1995;Anderson, 1999; Silva, 1997). Experiência nova,pelo exercício de um mecanismo democrático degestão pública setorial, que reuniu sindicatos,empresas e governo para elaborar saídas para aredução das atividades do setor e para o desem-prego, representou um aprendizado para o sindi-cato dos metalúrgicos.

Entre as diversas iniciativas articuladas naregião do ABC destaca-se, inicialmente, o papel de-sempenhado pelos prefeitos na organização do Con-sórcio Intermunicipal do ABC, de 1990, reunindosete municípios, com o objetivo de atuar de modointegrado no tratamento dos temas de interesse co-mum, em especial no que tange à infraestrutura, de-senvolvimento econômico e meio-ambiente (entreoutros Daniel, 2001a; Abrucio & Soares, 2001; Reis,2005; também http://www.consorcioabc.org.br).

O outro exemplo foi a criação, em 1994, doFórum da Cidadania do Grande ABC, que articu-lou setores da sociedade civil regional para priorizar,nas eleições municipais, o voto nos candidatos da

região, em movimento que ficou conhecido como“vote no Grande ABC” (Petrolli, 2000; Horta,2003).5 O Fórum se institucionalizou em seguidae agregou cerca de 80 entidades (associações em-presariais da indústria e do comércio, sindicatosde trabalhadores, representações da mídia local,organizações não governamentais etc.), com o ob-jetivo de produzir subsídios para resolver os pro-blemas regionais.

Mas a experiência mais completa e reveladorada busca institucionalizada de alternativas para acrise econômica trazida pela reestruturação indus-trial ocorreu com a constituição da Câmara Regio-nal do ABC, em 1997, diferenciada do ConsórcioIntermunicipal e do Fórum da Cidadania pela ten-tativa de juntar em uma mesma instância de dis-cussão atores públicos e da sociedade civil (entreoutros, Daniel & Somekh, 1999 e 2001; Gomes,1999; Leite, 1999; Guimarães, Comim e Leite, 2001;Boniface, 2001; Klink, 2000 e 2001; Albuquerque,2001; Camargo, 2003; Bresciani, 2004).6

O desdobramento das atividades da CâmaraRegional resultou na constituição, em 1998, da Agên-cia de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC,uma instituição não governamental, sem fins lucrati-vos, com a missão de dar suporte institucional aosacordos debatidos dentro da Câmara.7

A Agência de Desenvolvimento Econômico, hoje,é a entidade mais forte, abaixo do Consórcio[Intermunicipal], que faz gestão de projetos, pro-

4 Para Abrucio e Soares (2001, p. 128 e 129), embora aregião do ABC apresentasse as características principaisdas metrópoles brasileiras, com o seu desenvolvimentoindustrial e urbano desordenado, desigual e concentra-do, houve, também, razões para a consolidação de umaidentidade regional devido: “a) fator histórico – até me-ados do século XX todo o território que abriga hoje oABC era apenas um município; b) fator geográfico – [...]como fator agregador a situação da área de mananciais,que abrange todos os municípios e ocupa mais de 50%do território regional; c) fator econômico – a industriali-zação nas décadas de 1960 e 70 definiu um perfil econô-mico para a região, assim como a crise a partir da décadade 1980 [...] impacta de forma direta ou indireta, todosos municípios do ABC; d) fator social e político – osmovimentos sociais, o novo sindicalismo e o nascimen-to do PT nas décadas de 1970 e 80 enfatizaram umacultura associativista e politizada; e) fator cultural – aolongo dos últimos anos vem se reforçando o sentimen-to dos atores sociais de pertencerem a uma região, decompartilharem uma identidade regional”.

5 Nas eleições de 1994, a Região do ABC elegeu cincodeputados federais e oito deputados estaduais, o que foia maior representação parlamentar observada em suahistória até aquele momento.

6 Os componentes da Câmara Regional do ABC, na segun-da metade da década de 1990, foram: o Governo do Esta-do de São Paulo, o Consórcio Intermunicipal (sete pre-feituras), os legislativos municipais, os parlamentaresdo ABC na Assembleia Legislativa e no Congresso Naci-onal, o Fórum da Cidadania, as associações empresariaise os sindicatos de trabalhadores.

7 A Agência tem como sócios o Consórcio Intermunicipal(que envolve as sete Prefeituras); as quatro diretoriasregionais do Centro de Indústrias do Estado de São Pau-lo (CIESP); as Associações Comerciais e Industriais dossete Municípios; os Sindicatos de Trabalhadores (Sindi-cato dos Metalúrgicos do ABC, Sindicato dos Químicosdo ABC, Sindicato das Costureiras, Sindicato da Cons-trução Civil); o Serviço de Apoio às Micro e PequenasEmpresas (SEBRAE), as empresas do pólo petroquímicoregional (Petroquímica União, Solvay, Cabot, PolietilenosUnião, Polibrasil, Crevron, Oxicap e Petrobrás) e as uni-versidades (IMES, UNI-A, Fundação Santo André,UNIBAN, UNIABC, Metodista, FOCO).

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move o debate, que recebe os setores... A Agên-cia é composta por trabalhadores, por empresá-rios, por universidades, e pelos prefeitos. O Con-sórcio tem 49% do direito a voto na Agência... .Os demais setores: universidades, empresários etrabalhadores têm os outros 51% (Rafael Mar-ques, Vice-Presidente do Sindicato dosMetalúrgicos do ABC, em 24/02/2010).

Essas iniciativas podem ser vistas como umesforço coletivo de fugir da decadência econômicae apresentaram alguns desdobramentos positivos.Nos anos 2000, verificou-se uma retomada dosníveis de produção e da atividade econômica nosetor metalúrgico. Menos fábricas foram fechadase reduziu-se o deslocamento de empresas paraoutros municípios. O emprego formal cresceu emcerca de 35%, entre 1999 e 2005, e em 16%, nocaso específico do setor industrial , segundo da-dos da RAIS-CAGED; e a taxa de desemprego caiudo patamar de 21% em 1999, para 16% em 2005(PED/SEADE/DIEESE).

Todo esse processo de renovaçãoinstitucional teve a participação decisiva dos sin-dicatos da região, em particular do sindicato dosmetalúrgicos. Para Abrucio e Soares (2001, p. 152-156), “ao longo da transição e redemocratização dopaís, os sindicatos tornam-se o principal persona-gem da cena política da região e estabelecem umafeição muito peculiar, de contínua mobilização, aeste espaço político territorial [...]”.

De fato, o sindicalismo do ABC inauguravauma prática sindical nova ao incluir nas suas preo-cupações políticas as questões sociais que afloravamcom a crise econômica regional. Desse contexto sur-giu, inclusive, a denominação de “sindicato cida-dão” (Véras de Oliveira, 2011, Rodrigues, 2006 e2011, entre outros) para definir essas atividades sin-dicais, além de ter se transformado em referênciano debate político da principal central sindical dopaís, a Central Única dos Trabalhadores – CUT.

E o sindicato está voltado hoje para as ações decidadania, ou seja, pensar trabalhador e traba-lhadora como cidadão [...]. Ser trabalhador e tra-balhadora é parte do tempo. A integralidade dotempo é cidadania. Então, meio ambiente, polí-tica de gênero, raça, questão de etnia, [...] contrao trabalho infantil, exploração sexual, abuso se-

xual de criança e adolescente... [...] Então umsindicato voltado pra uma concepção de plenitu-de cidadã. Então eu diria que nós continuamosalicerçados num forte processo de organização,capacidade e mobilização, de clareza com rela-ção às nossas lutas, nossas maneiras, nossos obje-tivos e, envolvidos com a comunidade, com asnecessidades da cidadania e, sintonizado com anecessidade de desenvolvimento que a regiãoprecisa, que o Brasil precisa e que resulta ememprego (José Lopes Feijó, Presidente do Sindi-cato dos Metalúrgicos do ABC, 18/06/2004).

A novidade desse processo está na inclu-são da economia como um todo e dos projetos dedesenvolvimento regional em particular, como te-mas importantes da pauta sindical e na ampliaçãoe responsabilidade dos sindicatos sobre os desti-nos do território produtivo e dos trabalhadores.Nesse contexto, ocorreu a incorporação da discus-são sobre a “regionalidade”, ou seja, a introduçãode uma preocupação com as consequências daspolíticas macroeconômicas para a vida dos traba-lhadores do ABC. Segundo Conceição (2008),

nesse processo o Sindicato dos Metalúrgicos doABC criou o entendimento de que era necessárioempreender esforços para influir na área daspolíticas públicas, tendo em vista sua importân-cia no nível de produção e emprego. [...] Um dosmarcos da ação sindical em relação ao tema daregião foi a elaboração, em novembro de 1995,da publicação “Rumos do ABC: a economia doABC na visão dos metalúrgicos”.

Neste trabalho, elaborado pela Subseção doDIEESE do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,realizou-se diagnóstico de alguns dos obstáculosenfrentados pela economia local e foram apresen-tadas algumas diretrizes gerais para uma políticade desenvolvimento da Região (Camargo, 2003;Bresciani, 2004.).

A CRISE ECONÔMICA DOS ANOS 2000

A segunda crise econômica a atingir a re-gião do ABC e seu parque industrial, em 2008,teve características diferentes daquela ocorrida aolongo da década de 1990, e o corte nos empregosdeveu-se a uma falência dos mecanismos do capi-

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tal financeiro internacional, com desdobramentosprejudiciais para a economia das empresas, especi-almente as da indústria. Os atores políticos da are-na regional eram os mesmos, mas, nesse novo con-texto, o protagonismo dos sindicatos, especialmen-te do sindicato dos metalúrgicos (o mais atingidopelas demissões) foi decisivo para uma mobilizaçãoem busca de alternativas para reverter o desempre-go. Isto se deveu, não só ao acúmulo de práticas dediscussão em instâncias como a Agência de Desen-volvimento Regional do ABC, mas, também, à pro-ximidade política dos dirigentes sindicaismetalúrgicos com a administração pública regionale nacional que viabilizaram iniciativas como o Se-minário ABC do Diálogo e do Desenvolvimento.

A participação no debate sobre desenvolvimen-to e economia regional foi definitivamente incorpora-da à pauta sindical e se traduziu em documentos comoo do VI Congresso dos Metalúrgicos do ABC (Cons-

truindo um Brasil justo e democrático: emprego e tra-

balho decente), ocorrido em maio de 2009:

Os atores regionais, entre eles os sindicatos, de-vem colocar em debate o próprio modelo de de-senvolvimento que se quer para a região, cujoselementos básicos devem ressaltar: aquele que,primeiro combina crescimento econômico cominclusão social e proteção ao meio ambiente; se-gundo, que promove uma nova cultura empresa-rial, baseada na democratização das relaçõescapital-trabalho e na responsabilidade social dasempresas; terceiro, que estimula formas inova-doras de mobilização dos recursos econômicosatravés de redes de pequenas empresas, cujasustentabilidade (social, técnica e institucional)é assegurada a partir dos efeitos sistêmicos (aglo-meração e proximidade) proporcionados pelosterritórios em que as redes operam (Construindoum Brasil justo e democrático: emprego e traba-lho decente – VI Congresso dos Metalúrgicos doABC. Caderno de teses, 2009, p.42).

Se, por um lado, houve um maiorenvolvimento dos trabalhadores, através do sindi-cato, na cruzada por alternativas para o modelo dedesenvolvimento estabelecido e origem da criseeconômica, o mesmo não pode ser dito do setorempresarial, dividido em termos de estratégiasgerenciais e tamanho do negócio. Pode-se dizer quehouve uma variação significativa de perspectivas.Assim, enquanto os pequenos e médios empresá-

rios, que têm menos mobilidade e dependem dosarranjos produtivos locais para o sucesso dos seusnegócios, tiveram um engajamento efetivo nas no-vas articulações, as empresas multinacionais, ha-bitualmente não envolvidas em negociações e pla-nos desenvolvidos a partir do espaço regional oulocal, mas beneficiadas pelas medidas de incentivofiscal estabelecidas pelo governo federal como for-ma de reativar a economia industrial e preservar osempregos, tiveram uma atuação tímida diante dasnovas iniciativas. Na verdade, a discussão sobre arevitalização industrial do ABC exigiu um compro-misso que questionava as diretrizes estabelecidaspelas matrizes localizadas fora do Brasil.

As dificuldades no relacionamento com asmultinacionais da indústria automotiva permane-cem e demonstram uma divergência de perspecti-va empresarial no que diz respeito aos vínculos eao enraizamento no território produtivo. As inici-ativas locais e regionais de discutir alternativas paraas crises econômicas acabaram por criar situaçõesde constrangimento ao demandar um compromis-so em termos de participação e de contrapartidaseconômicas e sociais.

Há uma dificuldade em convencer esseempresariado multinacional. [...] As montadorasnão têm uma concepção regional, elas não acre-ditam nisso. Preferem não ter essa concepçãopara não ficar amarradas a uma determinadaregião. Elas querem ter a liberdade de transitar –hoje não mais pelo país, mas pelo mundo do jeitoque quiser. Então hoje, as montadoras, a gentenão consegue trazer eles para o debate. Para elas[...] é tudo como se fosse uma concessão. O em-prego é uma concessão, o ICMS, os impostosmunicipais, estaduais que ela paga, é um favorque ela está prestando a sociedade. Essa é a visãoque elas têm (Wagner Santana, Secretário Geraldo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 2013).

O poder de convocação investido no sindi-cato nesse contexto lhe confere legitimidade paraacionar outras instituições e atores que são essen-ciais para a construção de uma proposta de desen-volvimento regional. É o caso da relação com arecentemente criada Universidade Federal do ABC:

As universidades participam, mas não com todoo potencial que elas têm. Mas algumas estão se

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incorporando mais, o que pode ajudar. [...] Olhaque a UFABC é nova aqui na região, mas nósestamos forçando a UFABC. Eu faço parte tam-bém de conselho universitário, e quando consigoir nas reuniões, o meu discurso é: a Federal temque se relacionar com a sociedade. [...] Então estáse criando essa massa crítica importante naUFABC, que pode gerar bons frutos para a região(Rafael Marques, Vice-Presidente do Sindicatodos Metalúrgicos do ABC, em 24/02/2010).

A articulação sindical, se ainda carece depolíticas regionais mais estáveis, proporcionouuma reação ao desemprego ocasionado pela crise.Segundo o jornal ABCD Maior,8 o ABCD tinha cri-ado, já em agosto de 2009, mais de cinco mil no-vos postos de trabalho, revertendo a queda dosmeses anteriores. E, para confirmar essa inserçãoregional, o atual presidente do Sindicato dosMetalúrgicos do ABC, Rafael Marques, foi eleitoem 2013 para o cargo de presidente da Agência deDesenvolvimento Econômico do Grande ABC.

É a primeira vez que um sindicalista assumirá adireção da agência, criada em 1998 a partir daunião entre instituições públicas e privadas dossete municípios da região [...]. O vice-presidentena próxima gestão, representante do meio aca-dêmico, será o [...] pró-reitor de extensão da Uni-versidade Municipal de São Caetano do Sul. [...]O presidente eleito destacou o fato inédito de umrepresentante do movimento sindical assumir apresidência pela primeira vez. “E assumimosnuma composição tão importante, pioneira, jun-to com a universidade. Uma união do trabalhocom o conhecimento, ambos fundamentais parao desenvolvimento econômico”, afirmou [...]”.(“Metalúrgico assumirá comando da Agência deDesenvolvimento Econômico do ABC”, Rede Bra-sil Atual, 26/03/2013).

O SEMINÁRIO “ABC DO DIÁLOGO E DODESENVOLVIMENTO”

O Seminário “ABC do Diálogo e do Desen-volvimento”, ocorrido em março de 2009, em SãoBernardo do Campo (SP), idealizado e convocadopelo sindicato dos metalúrgicos do ABC, sintetizao engajamento institucional de duas décadas deiniciativas políticas de enfrentamento da questãodo desemprego e da precarização das condiçõesde trabalho. Uma breve descrição desse evento,com seus protagonistas, suas propostas e seus re-sultados, serve como um retrospecto elucidativodas dinâmicas, conflitos e consensos que se pro-duziram na arena política desse distrito industri-al, em função de contextos de crise econômica.

O Seminário realizou-se logo após adeflagração de uma das mais graves crises econô-micas do capitalismo mundial, que atingiu as ati-vidades industriais no Brasil ao final de 2008. Odesemprego que se confirmou nos meses posterio-res a outubro desse mesmo ano alertou os dirigentesdo sindicato dos metalúrgicos para a necessidade deinterferir na lógica do processo de desenvolvimentoeconômico regional. Na verdade, o estopim para estamobilização se deu a partir dos protestos organiza-dos pela base sindical nas portas de fábrica do ABCe nas ruas do município de São Bernardo do Campo(SP), o que, segundo o vice-presidente do sindicatona época, chegou a mobilizar “mais de 18 mil com-panheiros”, que “declararam guerra contra demis-sões e redução de salários”.

O Seminário não nasceu inicialmente do sindi-cato. Nasceu em frente à RW, em Diadema, emum protesto contra as demissões. [...] E começa-mos a discutir com a diretoria, [...] precisamoslançar uma proposta de seminário para maispessoas... outros grupos se integrarem (RafaelMarques, vice-presidente do sindicato dosmetalúrgicos do ABC, em 24/02/2010).

Esse contexto permitiu, então, não só recu-perar pautas e práticas sindicais anteriores,exercidas pelo sindicato no ABC dos anos 1990,como, também, acionar diretamente um dos seusprincipais aliados e ex-dirigente, o Presidente da

8 “Os dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados eDesempregados), divulgados nesta quarta-feira (16/09/2009) pelo Ministério do Trabalho, representam um saltona criação de emprego na Região, já que em julho o resul-tado ainda era negativo [...]. Agosto [...] marcou a recupe-ração do emprego nas indústrias de transformação daRegião. [...] Vale destacar que as principais atividades eco-nômicas apresentaram [resultados positivos] na geraçãode emprego [...].” (“Criação de emprego dispara no ABCDem agosto”, Jornal ABCD Maior, 16/09/2009).

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República, Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez, poressa razão, o poder de mobilização sindical tenhaultrapassado a esfera regional e o evento ganhadooutra dimensão ao propor um amplo debate sobreos efeitos da crise econômica no país. Importantesatores políticos foram convocados e compareceramao Seminário, como a ministra-chefe da Casa Ci-vil, à época, Dilma Rousseff, o então governadorde São Paulo, José Serra e outros membros da ad-ministração pública estadual e federal. O Seminá-rio contou, também, com a adesão de atores políti-cos regionais: a Universidade Federal do ABC,associações, centros comerciais e industriais daregião, a Agência de Desenvolvimento Econômicodo ABC, a associação das empresas do PoloPetroquímico, além da ANFAVEA e do Sindipeças,representando o setor automotivo.

O grande diferencial do governo Lula foi trazerestes atores para dentro da vida do País, abrir odiálogo e construir políticas conjuntas. No ABCD,nós conquistamos esta autoridade. O Sindicatodos Metalúrgicos do ABC é uma instituição daRegião, a comunidade nos entende e quer nosouvir. Nós criamos historicamente espaços dediálogo de onde surgiram sugestões importantesmesmo em momentos de crise (Para Sérgio No-bre, valorizar salário é garantir desenvolvimen-to, ABCD Maior, 03/08/2009).

A ação sindical envolveu, também, a admi-nistração pública regional. O fato de o prefeito deSão Bernardo do Campo ser um ex-sindicalistametalúrgico, e com experiência adquirida comodirigente sindical durante a crise econômica dosanos 1990 no ABC, consolidou o apoio à ideiadesse evento.

O Seminário contou com a presença de maisde 1.500 pessoas. Foi estruturado em grupos dedebate sobre os principais problemas da região erefletiu a complexidade de interesses dos diversossetores econômicos ali presentes: problemas decrédito; acesso a mercados e potencialidades regi-onais com vistas à geração de empregos, e aumen-to da renda e da competitividade local; tributos equestão fiscal; desemprego; e relações de trabalhoe trabalho decente. Ao final, uma carta resumo foienviada ao Presidente da República, apresentan-

do demandas e pedindo soluções.9

Após o evento, as avaliações foram, majori-tariamente, no sentido de reconhecer avanços: empolíticas públicas; no exercício de mecanismos depressão sobre as administrações municipal, esta-dual e federal; na possibilidade de acordos maiscompreensivos sobre a manutenção de empregoscom empresários; no estímulo aos arranjos pro-dutivos locais envolvendo pequenas e médiasempresas; na preocupação com a qualidade do tra-balho e na formação mais eficiente do jovem traba-lhador. Segundo o presidente, à época, do sindi-cato dos metalúrgicos, Sérgio Nobre,

a gente sabia que o seminário não apontaria umasaída imediata para a crise. Seu grande méritofoi juntar atores econômicos e políticos em tornode uma agenda de negociação. A maior parte daspropostas apresentadas depende de ações do se-tor público e esse é o foco da Câmara Regional.Temos a chance de uma participação efetiva, nãosó para discutir como superar a crise, mas tam-bém discutir como é possível melhorar o ABC.[...] Não é qualquer um que consegue juntar tan-tas pessoas com tamanha representatividade –empresários, trabalhadores e três esferas do po-der público – para discutir problemas comuns.Nós conseguimos (Tribuna Metalúrgica – Sindi-cato dos Metalúrgicos do ABC, 17/03/2009).

9 Trechos da carta: Exmo. Sr. Luiz Inácio Lula da Silva -Presidente da República Federativa do BrasilA Região do Grande ABC, que vem mantendo diálogoconstante com Vossa Excelência desde o início de seuprimeiro mandato, volta a solicitar sua atenção em ummomento em que o Brasil começa a superar os efeitos dacrise econômica internacional. [...].A Região vem sendo beneficiado por várias medidas doGoverno Federal desde 2003. Diversos pleitos regionaisforam atendidos [...].Entre os anos de 2003 e 2008, foram gerados na região173 mil novos postos de trabalho formais, revertendo atendência anterior e levando a taxa de desemprego noperíodo a quase metade, de 18,1% a 10,0%.Apesar da evolução positiva dos indicadoressocioeconômicos regionais no período citado, a partir deoutubro de 2008 os efeitos da crise internacional se fize-ram sentir no Grande ABC [...].O Grande ABC não está inerte. Face ao novo contexto,mostrou-se mais uma vez capaz de agir como arranjosocial articulado em busca de alternativas deenfrentamento das dificuldades. Esse foi o motor doSeminário “O ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”[...]. Soluções criativas e compromissos comuns foramadotados na ocasião e estão em andamento. Dando con-tinuidade a esse processo, os representantes da regiãodirigem-se a V. Excia., resgatando as demandas aindapendentes e complementando-as. [...]O Grande ABC conta, mais uma vez, com a atenção e oapoio de V. Excia. Consórcio Intermunicipal do GrandeABC (25 de agosto de 2009).

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Para o vice-presidente do sindicato, o Se-minário teve o efeito de recuperar atividades volta-das para o desenvolvimento regional, que vinhampassando por diversos ciclos de vitalidade em fun-ção das diferenças políticas das administraçõespúblicas ao longo da década de 2000.

Nos últimos cinco anos, seis anos, houve um re-cuo da integração regional por conta das lideran-ças que acabaram se consolidando no ABC naseleições municipais. [...] Uma das propostas doseminário foi rearticular a Câmara Regional(Rafael Marques, 24/02/2010).

Os resultados desse esforço foram incorpo-rados à dinâmica local, e a ênfase regional pareceter se transformado em ponto fundamental nasconcepções econômicas e políticas das adminis-trações públicas.

Existe um conceito hoje na região, para qualqueradministrador que seja mais ou menos sério, de queele não pode correr do debate sobre regionalidade.[...] E aquele momento [do seminário] foi impor-tante para criar unidade em torno dessa questão,de que não existe saída para nenhum municípioou para nenhuma gestão independente de quepartido seja, sozinho (Wagner Santana, Secretá-rio Geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,26/02/2013).

Passados quatro anos da realização do Se-minário, já é possível identificar alguns dos seusdesdobramentos concretos. No final de 2009, aagenda do trabalho decente foi implantada comofruto do evento.

A primeira Agenda Regional do TrabalhoDecente no Brasil começou a ser desenhada noABC [...], com a assinatura da carta de compro-misso e a criação de um grupo de trabalho tripartiteformado pelo poder público, sindicatos e empre-sários para tratar do assunto. [...] O assunto foipara a agenda regional com o seminário O ABC doDiálogo e do Desenvolvimento, realizado em mar-ço, diante da conclusão de que trabalho de quali-dade e com direitos é uma maneira de combate àcrise e de estímulo ao desenvolvimento social eeconômico (Tribuna Metalúrgica - Sindicato dosMetalúrgicos do ABC, 08/12/2009).

Avaliação mais recente confirma o êxito des-

sa iniciativa e sua incorporação às práticas decontratação regionais. O secretário-geral do sindi-cato dos metalúrgicos do ABC, Wagner Santana(2013), em entrevista, ressalta o fato “da agenda dotrabalho decente ter sido adotada pela Câmara Re-gional (do ABC)”, e de que as administrações pú-blicas regionais precisarem “ter aquela agenda emmãos nas suas contratações de terceiros”.

Outro empreendimento que se desenvolveua partir do Seminário de 2009 foi a constituição deum Polo Tecnológico e o incentivo à criação de“Arranjos Produtivos Locais”. A interferência lo-cal na lógica do sistema produtivo se coloca natentativa de criar condições para viabilizar a com-petição das empresas da região com empresas es-trangeiras e habilitar o produtor do ABC para adisputa por melhores produtos e qualidade, comoé o caso da ferramentaria e das autopeças. Sobre aferramentaria, diz Wagner Santana (2013), atualsecretário geral do sindicato, “conseguimosestruturar uma APL de um setor que estava sendoterceirizado para a China, para a Coréia, para aAlemanha” e sobre as autopeças:

Queremos fazer um debate sobre as autopeçasda região, aquelas não sistemistas, que empre-gam 40 mil trabalhadores, e que condições – aíprecisa da intervenção do poder público mesmo– a gente consegue criar para que as empresasbrasileiras se tornem competitivas diante dasgrandes multinacionais fornecedoras.

CONCLUSÃO

A inclusão do debate sobre desenvolvimento(regional e nacional) à pauta do sindicato dosmetalúrgicos do ABC e, mais ainda, a participaçãoefetiva da entidade sindical em instâncias demobilização institucional e política fora das fábri-cas e na formulação de alternativas para as crisesproduzidas pelas falhas do sistema capitalista comrepercussão sobre a vida dos trabalhadores, a nos-so ver, constitui uma inovação no contexto dosindicalismo brasileiro das duas últimas décadaspor significar uma percepção e um posicionamentoque reúne os três pontos da geometria sindical da

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formulação de Hyman (2001), ou seja, uma sensi-bilidade e uma ação equilibrada na relação com aclasse, com o mercado e com a sociedade.

Sem deixar de ser uma agência de classe,confirmada pela permanente manifestação de des-contentamento com as empresas em manifestaçõespúblicas de protesto e greves, o sindicato dosmetalúrgicos negociou, nos contextos de crise ereestruturação produtiva, não só a preservação deempregos, e obteve até mesmo aumentos reais desalário,10 como, também, voltou suas atividades epreocupações também para a sociedade, para asquestões sociais como um todo, reivindicando doEstado, através das administrações e suas políti-cas públicas, uma mudança de foco visando àmelhoria das condições de vida da população.

O Seminário “ABC do Diálogo e do Desen-volvimento”, por ter sido uma iniciativa sindical epor ter demonstrado um poder de convocação dosdiversos setores e interesses da sociedade local eregional para debater uma crise que atingia, mes-mo que de forma diferenciada, a todos, confirmaum estilo único de sindicalismo, que reúne e com-bina o acúmulo de um histórico de lutas e de ex-periências de confronto político de classe, em va-riados períodos de tempo ao longo do processo deindustrialização brasileiro, com uma estratégia deconversão desses recursos políticos em umaexpertise para negociar com o mercado e as empre-sas as questões salariais e de reestruturação pro-dutiva impostas pelas crises do sistema.

A novidade das últimas duas décadas foi aaproximação com as demandas sociais mais am-plas da sociedade, ultrapassando os limites dacorporação e atuando nas instâncias de decisãosobre políticas sociais e sobre projetos de desen-

volvimento regional. O termo “sindicato cidadão”,criado no início dos anos 1990, reflete, em parte,essa preocupação. Diríamos que hoje, com o exem-plo do Seminário, o debate sobre desenvolvimen-to e “regionalidade” acrescentou outros elementosàs práticas sindicais já voltadas às demandas pormelhores condições de habitação, saúde e educa-ção. Está em jogo uma relação mais complexa dosindicato com o território produtivo do qual fazparte, ao se colocar na arena política local comoum ator social que reivindica a participação emespaço público nas decisões econômicas e políti-cas que afetam o bem comum e que contesta, nocaso das crises, as justificativas econômicas “mo-ralmente” insustentáveis de atribuir aos trabalha-dores os custos dos equívocos do sistema.

A minha tese é que o desenvolvimento econômicoé local, tem a sua limitação macroeconômica, éóbvio, taxa de juros, câmbio, política industrial,tem essa limitação macro, mas o território deve,pode fazer muito pelo seu desenvolvimento. Acre-dito que a mobilização da comunidade é funda-mental, ter vários atores, lideranças interessadasem promover o desenvolvimento. Perceber que odesenvolvimento é uma relação ganho a ganho, ondeo público ganha a arrecadação, o trabalhador ga-nha porque gera mais emprego e o empresário ga-nha porque gera um ambiente mais favorável parao seu negócio (Paulo Eugênio Pereira Júnior, Secre-tário Executivo da Agência de DesenvolvimentoEconômico do Grande ABC. 27/07/2004).

Se os dados empíricos fornecem elementospara uma interpretação com um caráter depositividade para esta e outras experiências do sin-dicato dos metalúrgicos do ABC, não há dúvida deque os dilemas presentes na atividade sindical mun-dial e brasileira permanecem e apontam questõesque merecem ser mais discutidas pelos própriossindicalistas, técnicos e pesquisadores. A produ-ção de conhecimento neste campo de estudos sem-pre esteve marcada por disputas políticas de inter-pretação, e as práticas sindicais passam sempre,necessariamente, pelo crivo da luta política e dasênfases variadas que se adequam às concepções dopapel que deve desempenhar a instituição sindicalno contexto do capitalismo contemporâneo.

A postura pró-ativa do sindicato do ABC,de buscar envolver empresários e administração

10 Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, a repre-sentação sindical no ABC garante, não só melhores salá-rios, como uma série de benefícios e segurança aos traba-lhadores. “O sindicato conseguiu segurar as demissõesna Mercedes em 2012, quando a produção de caminhõesdespencou. Fechamos um turno de trabalho, mas nin-guém foi demitido”, diz Wilson José da Silva (montadorque trabalha há 18 anos na fábrica da Mercedes-Benz emSão Bernardo do Campo). O piso salarial dos metalúrgicosdo ABC está em R$1.560. Esse valor é 131% maior que opiso dos metalúrgicos no Amazonas, por exemplo, queestá em R$ 675 (Piso do ABC é 131% maior do que naAmazônia, Valor, 04/02/2013).

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pública na constituição de instâncias de debatesobre desenvolvimento, por exemplo, mantéminalteradas as contradições capital/trabalho e asassimetrias insuperáveis do capitalismo, e pode-ria significar o abandono da perspectiva de con-testação dos anos 1970/1980. As greves e manifes-tações de protesto, ocorridas na década de 2000no ABC, não confirmam esta interpretação, alémdo que, houve ganhos reais de salário, acima damédia de outras categorias nesse período.11 Aomesmo tempo, o fortalecimento da instituição sin-dical ao longo dessas décadas, o que leva a algumtipo de “acomodação”, se comparado com épocasde autoritarismo e confronto político, e que impli-caria o descaso com o trabalho de base fabril, tam-bém não se confirma. São várias as manifestaçõesde dirigentes sindicais metalúrgicos enfatizando aimportância e a legitimidade alcançada pelo traba-lho de base, através das comissões de fábrica ecomissões sindicais de empresa.

Um ex-presidente do sindicato dos metalúrgicos,com mandato durante a década de 2000, ao serentrevistado, atribuiu grande significado ao traba-lho de base, à proximidade com os trabalhadoresdentro das fábricas, pelo fato de ser elemento es-sencial para manter a confiança e respeitabilidadeda instituição sindical.

Entendemos que a estrutura sindical hoje é abso-lutamente inadequada, cada vez menos capaz deresponder à geografia econômica dos setores eco-nômicos e se torna também incapaz de responderàs demandas surgidas nas bases dos sindicatos. Enós, nesta filosofia de um sindicato organizadodentro do local de trabalho, fomos à prática. Entãona década de 1980 conquistamos as primeirascomissões de fábrica, o modelo se espalhou. De-pois avançamos de modo que a composição dadiretoria fosse iniciada pela eleição de comitês

sindicais de empresa; hoje temos, 85% da catego-ria com representação no local de trabalho. Estaproximidade cotidiana na fábrica nos permite aobservação de como está a produção e a economiado nosso setor. Então, de quem a gente compra,para quem a gente vende, os novos modelos degestão, de tecnologia que vão sendo introduzidosno local de trabalho e as suas consequências. Estefoi um dos primeiros sindicatos a discutir paravaler os novos métodos de trabalho e a introduçãode novas tecnologias. [...] E tínhamos que tomaruma decisão; ou as empresas farão essareestruturação como bem entenderem, ou o sin-dicato vai interferir. E nós optamos por interferir(José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dosMetalúrgicos do ABC, 18/06/2004).

Para Bresciani (2004, p. 8), o sindicalismodo ABC se reinventa, sua atuação política se di-versificou ao longo dos últimos 25 anos e sua ca-pacidade política, no debate e coordenação da agen-da regional do desenvolvimento econômico, apre-senta um “adequado equilíbrio no que diz respei-to à presença sindical na microesfera do cotidianoprodutivo” e na participação dos trabalhadores natransformação dos seus locais de trabalho. Para esteautor, a sintonia fina da política sindical, queenfatiza o vínculo entre as duas esferas, a região eo local de trabalho, é que coloca os maiores desafi-os às lideranças dos trabalhadores na “perspectivaconcreta de um desenvolvimento regional efetiva-mente democrático e inclusivo”.

Na sua função de regular a relação de traba-lho, o sindicato permanece exercendo sua funçãode representação, já que não pode “ignorar o mer-cado”. E, como parte da sociedade, necessita, parasua sobrevivência, coexistir com outras institui-ções e outras constelações de interesse (mesmo comaquelas que certos sindicatos proclamam um anta-gonismo imutável) (Hyman, 2001, p. 3-4). No casodo ABC, no entanto, o sindicato não pode deixarde ser uma “agência de classe” ao se distinguirdos empregadores pelo fato de incorporar, em suaconcepção institucional, os interesses coletivos dostrabalhadores e reafirmar sua identidade coletiva.Em resumo, podemos dizer que a ação sindicaldos metalúrgicos do ABC, voltada para a partici-pação política na discussão sobre projetos de de-senvolvimento econômico regional (e nacional),contestando decisões que prejudicam a criação e

11 “Numa década governada em 80% do tempo por um ex-líder sindical dos metalúrgicos de São Bernardo do Cam-po (SP), as negociações salariais envolvendo os operári-os das quatro montadoras da região do ABC paulistaregistraram o avanço mais expressivo num grupo dequatro categorias tradicionais. Enquanto os petroleirosda Petrobras acumularam ganhos de 1,3% acima da in-flação registrada entre 2000 e 2010 e os bancários viramseus rendimentos reais crescerem 3,4%, os operáriosdas montadoras do ABC registraram ganho real de 37,4%,mais que o dobro do já expressivo resultado alcançadopelos químicos - 15,2% acima da inflação no período[...]“. (Com Lula em Brasília, reajuste real foi mais eleva-do no ABC, Valor Econômico, 19/01/2011).

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manutenção de empregos e que afetam o bem estare as condições de vida da população em geral,aproxima a instituição das demandas da socieda-de e reforça sua legitimidade como instância derepresentação dos interesses dos trabalhadores.

Recebido para publicação em 30 de março de 2013

Aceito em 14 de junho de 2013

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Rafael Marques, Vice-presidente do Sindicato dosMetalúrgicos do ABC, em 24/02/2010.

José Lopes Feijó, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicosdo ABC, em 18/06/2004.

Paulo Eugênio Pereira Júnior, Secretário Executivo daAgência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC,em 27/07/2004.

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UNIONS, DEVELOPMENT AND WORK:economic crisis and political action in the ABC

Region

José Ricardo RamalhoIram Jácome Rodrigues

The goal of this text is to discuss andproblematize the new practices by the metal workerunionists in São Paulo’s ABC region, whichimplies the direct involvement of the entities whichrepresent workers outside the actual factory in thedebate regarding development strategies and theirramifications in the regional context of a globaleconomy. We will analyze union actions duringtwo different periods (the 1990s and 2000 – 2009)and as a synthesis of this process, we will focuson a political event organized and held by the metalworkers’ union in 2009, a seminar called “The ABCof Dialog and Development”, which reveals thedifferent insertions and perspectives of the socialactors at the local, regional and national levels inthe search for alternatives regarding the worldwideeconomic crisis of 2008. The event exemplifies apublic meeting which despite not doing away withthe contradictions and conflicts of a social realitymarked by the asymmetry of positions in the soci-al structure, created a moment of temporaryconsensus regarding the threats of a setting hostileto workers.

KEY WORDS: Union Action. Regional Development.São Paulo’s ABC. Economic Crisis.

José Ricardo Ramalho – Doutor em Ciências Sociais (Ciência Política) na Universidade de São Paulo, e pós-doutorados na Universidade de Londres (UK) e na Universidade de Manchester (UK). Professor titular doDepartamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPQ. Sua atuação acadêmica está mais voltada para a áreada Sociologia do Trabalho e seus principais temas de pesquisa são: relações de trabalho na indústria; sindica-to e sindicalismo; reestruturação produtiva e distritos industriais; trabalho, emprego e desenvolvimentoeconômico regional e local; identidade operária. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicase livros. Entre estes, Estado Patrão e Luta Operária: o caso FNM. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; Trabalhoe Sindicato em antigos e novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007.

Iram Jácome Rodrigues – Doutor em Sociologia. Professor Associado (Livre-Docente) do Departamento deEconomia da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade deSão Paulo (PPGS-USP). Atua na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Trabalho, principalmentenos seguintes temas: ação coletiva, sindicalismo e desenvolvimento regional; relações de trabalho e organiza-ção de interesses; sindicalismo e política; trabalho e sindicalismo; emprego, desenvolvimento econômicolocal e regional. Autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Sindicalismo

e Política: a trajetória da CUT (1983-1993). 2º. ed. São Paulo: LTr, 2011; Trabalho e Sindicato em antigos e

novos territórios produtivos. São Paulo: Annablume, 2007.

SYNDICAT, DÉVELOPPEMENT ET TRAVAIL:la crise économique et l’action politique dans la

région de l’ABC

José Ricardo RamalhoIram Jácome Rodrigues

L’objectif de cet article est de discuter et deremettre en question les nouvelles pratiquessyndicales des métallurgistes de la région de l’ABCpauliste. Ceci fait que les organes représentatifsdes travailleurs non-manufacturiers sontdirectement concernés et mène à un débat sur lesstratégies de développement et leurs conséquencesdans les contextes régionaux d’une économiemondialisée. Nous analyserons l’action syndicalesur deux périodes distinctes (les décennies de 1990et 2000) et nous mettrons en évidence, comme unesynthèse de ce processus, la réalisation d’unévénement politique organisé par le syndicat desmétallurgistes en 2009, le Séminaire “L’ABC duDialogue et du Développement”, qui révèle lesdifférentes insertions et perspectives des acteurssociaux locaux, régionaux et nationaux dans larecherche d’alternatives à la crise mondiale de 2008.C’est un exemple de réunion publique qui, sanséliminer les contradictions et les conflits d’uneréalité sociale marquée par des positionsasymétriques dans la structure sociale, a créé unmoment de consensus provisoire face aux menacesd’une conjoncture hostile aux travailleurs.

MOTS-CLÉS: Action syndicale. Développementrégional. Région de l’ABC pauliste. Criseéconomique.

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SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA: o novodesenvolvimento e os conflitos do trabalho1

Roberto Véras de Oliveira*

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Este artigo discute, pela ótica do trabalho e de seus conflitos, a emergência de uma nova agendade desenvolvimento no Brasil. Tem como foco as revoltas e greves dos trabalhadores que atuamna construção de dois dos principais empreendimentos do Complexo Industrial Portuário deSuape, a Refinaria Abreu e Lima e a Petroquímica Suape, durante os anos de 2011 e 2012. Estaabordagem pretende apreender os processos desencadeados pelos conflitos, mediações e nego-ciações e o que tem estado em disputa, com as demandas dos trabalhadores e os discursos epráticas governamentais, empresariais e sindicais. Perguntamo-nos se essas mobilizações, alémde trazerem ganhos imediatos para os trabalhadores, têm permitido que estes se façam reco-nhecer como legítimos portadores de demandas sociais. E em que medida tais demandas vêmsendo não só objeto de denúncia pública, mas, também, um modo de problematizar os termosque dão sustentação ao novo discurso desenvolvimentista.Palavras-chave: Desenvolvimento. Trabalho. Sindicalismo. Construção civil. Suape.

INTRODUÇÃO

Este artigo discute, pela ótica do trabalho e deseus conflitos, a emergência de uma nova agenda dedesenvolvimento no Brasil. Tem como foco as revol-tas e greves dos trabalhadores que atuam na constru-ção de dois dos principais empreendimentos doComplexo Industrial Portuário de Suape, a RefinariaAbreu e Lima e a Petroquímica Suape, durante osanos de 2011 e 2012. Busca problematizar, a partirdeste caso, a reedição de uma construção práticodiscursiva de teor desenvolvimentista no País.

O Complexo Industrial Portuário Governa-dor Eraldo Gueiros – Suape, ou CIPS, está situa-do na Região Metropolitana de Recife – RMR,2

Litoral Sul de Pernambuco, nos municípios deIpojuca e Cabo de Santo Agostinho, abrangendouma área de 13,4 mil hectares. A partir da primei-ra edição do Programa de Aceleração do Cresci-mento – PAC, em 2007, se constituiu em um dosmaiores polos de investimentos do país.

Pernambuco vive um boom econômico, apósum período de declínio. A economia regional es-teve, por décadas, sob forte impacto dos incenti-vos fiscais da Superintendência do Desenvolvimen-to do Nordeste – SUDENE. De 1963 a 1969, o es-tado foi o principal beneficiário dessa política, re-cebendo 36,9% dos incentivos (seguido da Bahia,com 32,8%). Tal participação caiu, entre 1970 a1974, para 25,7% e, de 1975 a 1984, para 16,6%.Acompanhando a evolução dos investimentos in-centivados pela Sudene, o PIB estadual cresceu

* Doutor em Sociologia. Professor do Departamento deCiências Sociais da Universidade Federal da Paraíba –UFPB – e membro do Programa de Pós-Graduação emSociologia da UFPB – PPGS– e do Programa de Pós-Gra-duação em Ciências Sociais da Universidade Federal deCampina Grande – PPGCS/UFCG.Av. Washington Luis, 268, apto 201, Bessa. Cep: 58035-340.João Pessoa – Paraíba – Brasil. [email protected]

1 Este artigo resulta de reflexões realizadas a partir doprojeto “O novo desenvolvimentismo no Brasil visto apartir de suas implicações sociais no Nordeste”, desen-volvido no âmbito do Laboratório de Estudos e Pesqui-sas sobre Políticas Públicas e Trabalho – LAEPT/UFPB,em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJe o Observatório PE – UFPE. Ao mesmo tempo em queagradeço as contribuições dos colegas, assumo toda res-ponsabilidade pelo seu conteúdo. Agradeço, ainda, asimportantes contribuições dos pareceristas anônimos.

2A RMR inclui os municípios de Abreu e Lima, Araçoiaba,Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Igarassu, Ipojuca,Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, More-no, Olinda, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata.

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10,6% ao ano de 1970 a 1975, 6,6% de 1975 a1980 e 2,4% de 1980 a 1985, invertendo sua rela-ção com o PIB regional (com médias anuais, res-pectivamente, de 10,2%, 7,2% e 4,4%). Após al-guma recuperação no final dos anos 1980,Pernambuco cresceu, na década de 1990, commédias anuais de 2,0% e o Nordeste, com 3,0%.Concorreu para tal evolução a exclusão do estadodo II Plano Nacional de Desenvolvimento – PND,lançado em 1975, o qual previu investimentos paraa Bahia (Pólo Petroquímico de Camaçari), Alagoase Sergipe (Complexo Cloroquímico), Maranhão(Pólo Minerometalúrgico) (Lima e Katz, 1993).

A proposta do Porto de Suape surgiu nosanos 1960, inspirando-se nos complexos indus-trial-portuários de Marseille-Fos, na França, e deKashima, no Japão (Suape/Governo Pernambuco,2010).3 Ainda durante os procedimentos prelimi-nares, em 1975 foi publicado um manifesto assi-nado por intelectuais pernambucanos, lideradospelo economista Clóvis Cavalcanti, em um protes-to (sobretudo de teor ambiental) à construção doporto,4 evidenciando a relevância pública que oprojeto já havia adquirido, assim como o seu cará-ter controverso (Cavalcanti, 2008). O processo, noentanto, seguiu. Em 1977, foi realizada a desapro-priação da área e foram iniciadas as obras deinfraestrutura (porto, sistema viário, abastecimen-to d’água, energia elétrica e telecomunicações). Em1978, foi formalizada a criação da empresa públicaestadual “com a finalidade de administrar a im-plantação do distrito industrial, o desenvolvimen-to das obras e a exploração das atividades portuá-rias” (Suape/Governo Pernambuco, 2010). Quantoàs comunidades locais, estabeleceu-se um mistode esperança e medo, conforme apurou o relatórioque deu suporte ao Plano Diretor de preservação e

revitalização do Cabo de Santo Agostinho, Vila de

Nazareth, povoados de Baibu e Suape, realizadopor Sena Caldas & Polito Arquitetos AssociadosLtda (1980, apud Rocha, 2000).

O Complexo de Suape começou a funcio-nar com a incorporação, em 1986, da BR Distri-buidora, Shell, Texaco e Esso, oriundas do Portodo Recife. Em 2005, foi anunciado o projeto daRefinaria Abreu e Lima, produto, inicialmente, deuma negociação entre a Petrobras e a Petróleo deVenezuela S.A. – PDVSA. Conforme Santos (2012),até esse momento, “Suape se caracterizaria porinvestimentos no porto e na instalação de empre-sas de médio porte, com baixa complexidadetecnológica, pouca exigência de qualificação pro-fissional e limitada capacidade de irradiação naeconomia regional”. A partir de 2007, com o Pro-grama de Aceleração do Crescimento - PAC, o Com-plexo passou a atrair grandes investimentos pú-blicos e privados, convertendo-se, desde então, comseu entorno, em um gigantesco “canteiro de obras”.Os investimentos públicos no CIPS passaram deR$ 155 milhões (entre 1995 e 1998) para R$ 136milhões (1999 a 2002) e R$ 147,6 milhões (2003 a2006); enquanto, entre 2007 e 2010, pularam paraR$ 1,46 bilhões. Quanto aos investimentos priva-dos, totalizaram US$ 2,2 bilhões até 2006; sendoque, de 2007 a 2010, reuniram US$ 17 bilhões(Suape/Governo Pernambuco, 2010).

O Complexo, na atualidade, compreendemais de 100 empresas instaladas e dezenas de ou-tras em fase de instalação. Alguns destaques: Refi-naria Abreu e Lima e Petroquímica Suape (Petrobrás);Estaleiro Atlântico Sul – EAS; Energética Suape(termelétrica); Impsa Wind Power (fabricação de ge-radores eólicos); Bunge (refinaria de óleos vegetais,fabricação de margarinas e moinho de trigo); TeconSuape (logística do porto). Oficialmente, estima-seem 25 mil o número de empregos diretos projetadospara as empresas instaladas e em instalação (Suape/Governo Pernambuco, 2010). A Refinaria represen-ta, de longe, o maior investimento, estimado emUS$ 13 bilhões. A previsão oficial é que gerará 1,5mil empregos diretos e algo em torno de 130 milindiretos. As obras de construção tiveram inícioem 2007, com previsão inicial de conclusão para

3 A ideia originou-se de um estudo realizado pelo Padrefrancês Louis Lebret, para a Comissão de Desenvolvi-mento Econômico de Pernambuco, o qual foi publicadoem Lebret (1955). Isso sugere o quanto o projeto Suape,desde suas mais remotas origens, se encontra associadoao pensamento e às políticas desenvolvimentistas.

4 O “Manifesto Suape” foi publicado no semanário Jornalda Cidade (ano II, n. 24, 6, 12/4/75). Encontra-se dispo-nível em: http://cloviscavalcanti.blogspot.com.br/p/ma-nifesto-suape.html (Acesso em 25/06/2012).

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2011, sendo adiada para 2012 e, depois, para 2013.O número de trabalhadores envolvidos na cons-trução da Refinaria e da Petroquímica foi avaliadoem cerca de 50 mil no final de 2012 (Santos, 2012).

Para Moutinho et al (2011), o bom momen-to da economia pernambucana resultou, sobretu-do, de definições estratégicas de desenvolvimentonacional e regional, materializadas nos grandesinvestimentos do PAC, nos quais se destacam, alémde Suape: a Ferrovia Nova Transnordestina, aTransposição do Rio São Francisco, o PóloFarmacoquímico. Acrescente-se a esses: a fábricada Fiat, a Cidade da Copa, entre outros.5 Com isso,o projeto Suape adquiriu peso nas agendas doGoverno do Estado e dos governos municipais doentorno, ganhou posição de destaque na mídia locale no imaginário dos pernambucanos. No discursode Eduardo Campos, o tom é sempre eufórico e oconteúdo, desenvolvimentista:

Pernambuco vive um momento muito especialem sua economia. Investimentos públicos e pri-vados estão tirando do papel empreendimentosimportantes, que transformam a sociedade e avida dos pernambucanos de uma maneira nuncavista em sua história [...] Nesse contexto,Pernambuco, que é destaque no País, centralizaas atenções dos investidores, sendo Suape a molapropulsora desse desenvolvimento (Suape/Gover-no Pernambuco, 2010).

As críticas às consequências ambientais esociais do projeto estiveram presentes desde assuas origens (Cavalcanti, 2008). Contudo, o em-preendimento seguiu. Especialmente, ganhou mai-or legitimidade e força quando da retomada de umaagenda desenvolvimentista no país e na região. Dealgum modo, se estabeleceu incorporando elemen-tos da crítica, em um esforço de justificação.6 Foi

assim que o novo Plano Diretor Suape 2030, pu-blicado em 2011, buscou compatibilizar suas ra-zões econômicas (portuário-industriais) com de-mandas ambientais, culturais, sociais. Em desta-que, incorporou uma ampliação da Zona de Prote-ção Ecológica, de 48% para 59% da área total (Fo-lha de Pernambuco, 30/09/2011). O adjetivo “sus-tentável” ganhou importância crescente nos dis-cursos dos agentes estratégicos de Suape. Em maiode 2008, empresários e políticos se reuniram nasede da Federação das Indústrias de Pernambucopara tratar do tema do “Desenvolvimento Susten-tável do Território Estratégico de Suape”. Na oca-sião, o BNDES apresentou um projeto para a re-gião, prevendo apoio a ações em: controle urbano-ambiental; tratamento de resíduos sólidos; articu-lação de arranjos produtivos locais; sistema viá-rio; transporte público; educação; qualificação pro-fissional; preservação do patrimônio histórico, tu-rístico e cultural (JC,7 17/05/2008). Entretanto, oconvênio só foi firmado em setembro de 2010, coma denominação de Programa Especial de Controle

Urbano-Ambiental no Território Estratégico de

Suape, com recursos não reembolsáveis de R$ 10,9milhões. O representante do BNDES emPernambuco, Paulo Guimarães, em declaração aoJC (12/08/2011), deixou escapar um elemento decompensação nessa iniciativa: “temos uma grandepreocupação com o desenvolvimento social do ter-ritório, porque o banco financiou os principaisgrandes empreendimentos instalados em Suape”.Daí derivou o Programa Suape Sustentável, lança-do em 2011, envolvendo os gestores do CIPS, oitosecretarias de estado, prefeituras, as empresas ins-taladas em Suape, o BNDES, o Banco do Nordes-te, ente outros. Declarou-se, com o referido Pro-

5 As conexões entre a trajetória histórica do ComplexoSuape e as economias estadual, regional e nacional, so-bretudo no que se refere ao seu momento atual, com osinvestimentos do PAC em Pernambuco, no Nordeste eno país, assim como com os investimentos públicos,privados e mistos, impulsionados a partir de então, nãopodem ser menosprezados. Trata-se da atualização dainserção do Nordeste e de Pernambuco na divisão regio-nal do trabalho, que se consumou com forte base naimplementação do projeto da Sudene (Oliveira, 1981).

6 Usamos o termo em um sentido próximo ao atribuídopor Boltanski e Chiapello (2009, p. 52-53): “Já lembra-mos a importância que tem, para o capitalismo, a possi-bilidade de apoiar-se num aparato justificativo adaptado

às formas concretas assumidas pela acumulação do ca-pital em determinada época, o que significa que o espíri-to do capitalismo incorpora outros esquemas, que nãoos herdados da teoria econômica (...) Mas o capitalismonão pode encontrar em si mesmo nenhum recurso parafundamentar motivos de engajamento e, em especial,para formular argumentos orientados para a exigênciade justiça (...) A justificação do capitalismo, portanto,supõe referência a construtos de outra ordem, da qualderivam exigências completamente diferentes daquelasimpostas pela busca do lucro”.

7 Utilizamos as siglas “JC”, para Jornal do Commercio, e“DP”, para Diário de Pernambuco.

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grama, o propósito de transformar o ComplexoSuape e seu Território Estratégico em um modelode “desenvolvimento sustentável”, “equilibrandoo crescimento econômico, a inclusão social e apreservação do meio ambiente” (http://www.suape.pe.gov.br).

Um esforço de justificação das atuais polí-ticas de desenvolvimento parece estabelecido noconstruto discursivo dos agentes estratégicos deSuape, o que não tem ocorrido senão sob uma con-traditória composição entre racionalidades de teoreconômico, social e ambiental. Quanto ao lugardo trabalho no novo discurso desenvolvimentistaem Pernambuco e Suape, ao que tudo indica, temse fixado em dois pontos principais: na capacida-de dos empreendimentos gerarem empregos e nocrescente desafio de qualificar e incorporar os tra-balhadores pernambucanos em mão de obra apta aocupar os agora exigentes postos de trabalho. Umadeclaração de Eduardo Campos ao JC (01/01/2012),no início do seu segundo mandato, é ilustrativaquanto a isso:

Tivemos um tempo em que tínhamos pessoas pre-paradas e não tínhamos oportunidades. Isso eraconstrangedor. Agora, em cinco anos se gerou quase500 mil empregos, o desemprego caiu [...] As opor-tunidades estão chegando e os pernambucanosestão entrando nessas oportunidades. Vamos leros números como eles são! Nós tínhamos 15% dedesemprego. Reduzimos dois terços em cincoanos. Estamos fazendo um grande esforço na edu-cação, que não se muda de um ano para o outro,mas sim de uma geração para outra.

Entretanto, a eclosão de uma onda de con-flitos, protagonizada pelos peões8 dos canteiros deobra de Suape, realçou outros aspectos, produzin-do deslocamentos nas dinâmicas das relações detrabalho, com repercussões econômicas e políti-cas. Especialmente a partir de 2011, revoltas, pa-ralisações e greves, acompanhadas por confusos etensos processos de negociação social e sindical,envolvendo os próprios peões, sindicatos, empre-

sas, governos estadual e municipais, MinistérioPúblico do Trabalho – MPT, Ministério do Traba-lho e Emprego, Justiça do Trabalho, órgãos demídia, entre outros, vêm marcando fortemente acena da região.

Uma abordagem com foco em tais conflitosnos permitirá apreender os processos desencade-ados (conflitos, mediações e negociações) e o quetem estado em disputa em tais processos (com asdemandas dos trabalhadores e os discursos e prá-ticas governamentais, empresariais e sindicais).Perguntamo-nos se, com essas mobilizações, paraalém de estarem conseguindo trazer ganhos ime-diatos para os trabalhadores, estes têm sido capa-zes de se fazer reconhecer9 como legítimos porta-dores de demandas sociais. Em que medida taisdemandas vêm sendo não só objeto de denúnciapública, mas, também, de alguma elaboração, demodo a problematizar os termos com base nos quaisemergiu uma nova perspectiva desenvolvimentistaem Pernambuco e no país?10

8 Não se sabe, precisamente, onde e quando a expressão“peão” passou a ser usada, no Brasil, com o sentido deoperário pouco ou sem qualificação. Um dos primeirosestudos a incorporar o termo com tal conotação foi o deRainha (1980).

9 Aqui, usamos a noção em um sentido mais próximo deNancy Fraser (2008), em sua polêmica com Axel Honneth,a qual prefere tratar “reconhecimento” (dimensão cultu-ral, simbólica) em associação com “redistribuição” (di-mensão social). Quanto à situação que aqui analisamos,realçamos o quão imbricados, embora distintos, se en-contram esses dois movimentos.

10 Tanto quanto no contexto de implementação do proje-to da Sudene, também agora, com o PAC e outras inici-ativas de políticas de desenvolvimento do Governo Fe-deral, a dinâmica econômica do Nordeste e de Pernambucose encontram sob fortes vínculos com tais políticas.Mesmo se efetivando uma dissidência na coalizão deforças que dá sustentação ao Governo Dilma,protagonizada pelo Governador de Pernambuco, Eduar-do Campos (questão essa que não será tratada aqui),consideramos que a orientação desenvolvimentista nãosó foi marcante no seu primeiro mandato (embaladopela proximidade política com Lula), como essa conti-nua sendo uma referência no seu mandato atual (quan-do o mesmo tem mantido certa ambiguidade entre oapoio ao Governo Dilma e a assunção de uma posição deoposição). As obras do PAC, os projetos “estruturantes”,os investimentos em Suape, os vinculam fortemente aum realce desenvolvimentista, não obstante certasnuances diferenciadoras entre ambos os projetos políti-cos e as possíveis divergências que venham a serexplicitadas entre seus expoentes (veja-se, por exemplo,polêmica entre Eduardo Campos e o Governo Dilma,quando da publicação da Medida Provisória 595, conhe-cida como MP dos Portos, em dezembro de 2012, tidapara o primeiro como ameaça de perda de autonomia doGoverno pernambucano sobre o Porto de Suape (JC, 26/03/2013). A análise das diferenciações práticas ediscursivas aí implicadas certamente será de muita im-portância para o aprofundamento dessa reflexão.

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A VOLTA DO DESENVOLVIMENTISMO: agen-da e debate

O emblema maior do novo discursodesenvolvimentista do Governo Federal tem sidoo PAC, lançado em 2007. O Governo Lula passoua incorporar o referencial do papel indutor do Es-tado com vistas ao crescimento econômico, real-çando, ao mesmo tempo, o seu compromisso coma geração de emprego e renda e a estabilidademacroeconômica (Pêgo; Campos Neto, 2008).Objetivou-se, por meio de investimentos, princi-palmente em infraestrutura, aumentar a produti-vidade das empresas, estimular investimentos pri-vados, gerar emprego e renda e reduzir as desi-gualdades regionais. Até 2010, segundo dados ofi-ciais, foram investidos mais de R$ 600 bilhões,oriundos do Governo Federal, de empresas estatais edo setor privado, com destaque para os setores deenergia, transporte, habitação, saneamento, recursoshídricos, além de programas de impacto social, comoo “Minha Casa Minha Vida” (habitação) e o “Luzpara Todos” (distribuição de energia elétrica). A par-ticipação do investimento total no PIB passou de16,4%, em 2006, para 18,4%, em 2010 (Brasil, 2010).Em 2010, foi lançado o PAC 2, redefinindo, mas,sobretudo, confirmando, os eixos estruturantes dasua primeira edição (Brasil, 2012). Para Batista Jr.(2007), não obstante as críticas, ocorreu “uma mu-dança na orientação da política econômica”, ondeessa “pode ser excessivamente cautelosa ou lenta,mas ela é significativa. O governo Lula está migran-do, aos poucos, para o desenvolvimentismo, talvezum desenvolvimentismo ‘light’”.

Os indicadores econômicos e sociais que, apartir de 2004, passaram a apresentar tendênciassistematicamente positivas, podem ser creditadosduplamente ao novo dinamismo econômico e àsnovas condições políticas, nas quais se estabele-ceu um certo patamar de lutas salariais e sindi-cais. Em balanço recente, Krein et al (2012, p. 119)admitem que, na Era Lula, não só devem ser com-putados “os impactos positivos do aumento pro-gressivo do dinamismo econômico sobre o merca-do e as relações de trabalho no Brasil”, mas, tam-

bém, é preciso que sejam destacadas que “as polí-ticas públicas e as lutas e conquistas do movimen-to sindical foram decisivas para acrescentarmelhorias ao mercado de trabalho brasileiro”. Es-pecialmente para os segmentos ligados à CentralÚnica dos Trabalhadores – CUT, constituída sobrelações históricas com o Partido dos Trabalhado-res, prevaleceu, nesse momento, a adoção de umaestratégia ambivalente, que reforçou uma situaçãojá presente nos anos 1990: a perda de protagonismopolítico do sindicalismo no cenário nacional, aomesmo tempo em que o mesmo se manteve pre-sente e atuante (Araújo; Véras de Oliveira, 2011).

Ao lado da emergência de uma nova agendae um novo discurso político orientado ao desen-volvimento, ressurgiu um debate acadêmico sobreo tema. O primeiro a utilizar a expressão “novodesenvolvimentismo” foi Bresser-Pereira (2003),para quem o fracasso da “ortodoxia neoliberal” emgarantir estabilização macroeconômica e crescimen-to coloca a possibilidade de uma nova política eco-nômica, na América Latina. Em contraste com o“populismo da esquerda burocrática e sindical”(herdeira do nacional desenvolvimentismo), pro-põe uma estratégia nacional de desenvolvimentosem protecionismo e com rigor fiscal e monetário,baseada em uma indústria competitiva, voltada àexportação. Requer Estado e mercado fortes, polí-ticas públicas permanentes e flexibilização das re-lações de trabalho (Bresser-Pereira, 2006). Sicsú et

al (2007) apostam no fortalecimento do“empresariado nacional” como “núcleo endógeno”do desenvolvimento, associado a um “Estado for-te” e a um “pacto nacionalista”, mas sem que setrate de um retorno à política de substituição deimportações, ao protecionismo e ao Estado empre-sa. Atribuem maior ênfase, comparativamente aBresser-Pereira, à compatibilização entre crescimen-to econômico e equidade social.

Ridenti (2009) questiona a pertinência do re-torno do desenvolvimentismo, tão criticado no pas-sado. Lembra que, sob tal referência, omitiram-se ascontradições de classes, ao priorizarem-se as contra-dições entre nações. Por isso, é preciso não deixar dese perguntar: a quem serve o desenvolvimento? Isso,

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sob pena de serem reeditados os mesmos problemasdo passado. Quanto a Fiori (2012a e 2012b), pergun-ta-se: por que o “desenvolvimentismo de esquer-da”, ressurgido recentemente, estreitou-se tanto noseu “horizonte utópico”, tornando-se uma “ideo-logia tecnocrática”, sem capacidade de mobilizaçãosocial, não sendo, também, capaz de construir umanova base teórica? Na sua crítica, o autor argumentaque a “Escola Campineira”, embora surgida de umacrítica ao paradigma cepalino, teria sido sufocada,mais recentemente, com a crise socialista e a ondaneoliberal, tendo perdido sua capacidade teórica eseu conteúdo político. Com a retomada do discursodesenvolvimentista, restaria a sensação de um “hori-zonte utópico” estreito, sem poder de mobilização.Em resposta a Luis Fiori, Carneiro (2012) propõeque o “novo desenvolvimentismo” é uma formula-ção da equipe da Fundação Getúlio Vargas – FGV/SP, que privilegia as políticas macroeconômicas, su-bordinando a essas as políticas sociais,condicionando ganhos salariais à elevação da pro-dutividade. Enquanto o “desenvolvimentismo deesquerda”, centrado na UNICAMP (“EscolaCampineira”) e na UFRJ, priorizaria a dimensãosocial do desenvolvimento.

Boschi (2011), discutindo o retorno dointervencionismo estatal na América Latina, insis-te na dimensão social como fator de desenvolvi-mento e no papel estratégico do Estado como seuindutor e garantidor de inclusão social. Coloca,assim, em evidência a política, o projeto nacional,a necessidade de constituição de coalizões de apoioa um novo compromisso desenvolvimentista. Tam-bém para Pochmann (2012), a condição para umsalto no desenvolvimento da América Latina é aconstituição de uma “nova maioria política”. So-bre o Brasil, haveria duas alternativas: uma orien-tada à exportação de commodities e a outra, a in-vestimentos em valor agregado e em conhecimen-to. Apenas com investimentos nesta direção seriapossível superar o subdesenvolvimento.

Para outros, a retomada de políticas de de-senvolvimento justifica um novo ciclo de pesqui-sas sobre o tema. Eli Diniz (2011) destaca que, nomundo, vem ressurgindo um pensamento crítico

ao liberalismo, assim como retorna a referência dodesenvolvimento, com nova ênfase no papel doEstado, nas liberdades substantivas (Amartya Sen),na questão ambiental. Quanto ao Brasil, o cresci-mento e o emprego ganham importância. Observa,ainda, que, no debate atual, embora com diferen-ças, em geral se busca associar mercado e Estado,o econômico e o social, ganhos salariais e elevaçãoda produtividade. Mas admite que ainda não seconstituiu uma articulação de forças capaz de darsustentação a um projeto desenvolvimentista. Draibee Riesco (2011) propõem a adequação dos referenciaisanalíticos ao estudo das mudanças recentes nas po-líticas econômicas e sociais na América Latina, paramelhor se avaliar sobre se está em gestação um novodesenvolvimentismo na região. Formulam a noçãode Estado Latino-Americano Desenvolvimentista de

Bem Estar – ELADBES, visando realçar a relação en-tre economia e política social. Sugerem que as atuaispolíticas desenvolvimentistas estariam repondo asarticulações entre os dois âmbitos. Acrescentam,ainda, que, embora haja sinais de esgotamento dociclo neoliberal, não parece se tratar de mero retor-no ao desenvolvimentismo, nem simplesreafirmação do neoliberalismo. O rumo a seguirserá decidido no campo da política. Kerstenetzky(2011) também evidencia a relação entre desenvol-vimento e equidade. Após constatar umasegmentação entre tais termos, propõe a sua conci-liação, opondo-se ao argumento de que a possibili-dade de construção de um Estado do bem estar socialrequer a existência prévia de desenvolvimento e deque o gasto social é, por si só, economicamenteineficiente. Defende como condição para tanto que aspolíticas sociais sejam economicamente orientadas eas políticas econômicas, socialmente orientadas.

O debate, aqui brevemente mapeado, alimen-ta-se de uma agenda que vem se estabelecendo, noBrasil e na América Latina, sob um novo discursodesenvolvimentista. As diversas posições em ge-ral reconhecem o retorno a um papel mais centraldo Estado na economia. Muitas vezes, sugeremalguma compatibilização entre desenvolvimento eequidade. Mas o modo de conceber essa relação éum aspecto de importante diferenciação entre as

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perspectivas adotadas. Destacar o lugar do social

requer dar um realce especial ao momento da polí-

tica, assim como tomar esta para além da discus-são sobre o papel do Estado. Para Boschi (2011, p.16), “as diversas políticas que se busca colocar emprática mobilizam atores e interesses que enfren-tam um jogo de estratégias, uma dinâmica que, pornatureza, é incerta”. Pôr em evidência a dimensãosocial do desenvolvimento requer tratar comcentralidade a problemática do trabalho referida àquestão da cidadania. Com Ivo (2012, p. 206):

Da minha perspectiva, considero que avaliar arelevância da agenda social do desenvolvimentohoje implica analisar um padrão decisivo do Es-tado na distribuição e no enfrentamento da di-mensão estruturante e qualificada de inserçãopelo mercado de trabalho e na proteção susten-tada em direitos sociais, ou na regulação das re-lações não mercantis (base de que tratam as po-líticas sociais).

Para os estudiosos do trabalho, por seu lado,está posto o desafio de levar em conta as implica-ções da retomada das políticas de desenvolvimen-to quanto às condições, relações e ações coletivaslaborais. É o que, por exemplo, se traduz emRamalho e Fortes (2012, p. 09), quando se detêmsobre as experiências de desenvolvimento da Bai-xada e Sul fluminense, sob a perspectiva de “pen-sar as regiões como espaços sociais e históricos,com organizações políticas e identidades própri-as, buscando nas particularidades regionais ele-mentos que possam influenciar na construção denovos projetos de desenvolvimento e seus impac-tos sociais e econômicos”. Entra, aqui, o elementodo território. A abordagem desses espaços regio-nais se faz com um foco nas questões do trabalho,sob a referência dos seus nexos com os modelos dedesenvolvimento implementados no país ao longodo século XX e na passagem para o século XXI:

[...] se, na era nacional-desenvolvimentista, o tra-balho assumiu um papel central na constituiçãode identidades coletivas e formas de participa-ção política, como repensar a articulação entreesses elementos quando se retoma o debate so-bre o desenvolvimento em um novo contexto?(Idem, p. 10).

É nesse registro que pretendemos discutirSuape (considerando seus vínculos com a novaagenda e discurso desenvolvimentistas emPernambuco e no país) pela ótica dos conflitos dotrabalho que lá vêm tendo lugar mais recentemen-te (com suas implicações recíprocas frente a talagenda e discurso).

TRABALHO E TRABALHADORES NA CONS-TRUÇÃO CIVIL EM SUAPE

Evidências de um desenvolvimento contraditório

É evidente o excelente momento da econo-mia pernambucana. Enquanto o PIB do Brasil cres-ceu, de 2005 a 2012, a taxas anuais de 2,9%, 3,8%,5,4%, 5,1%, -0,2%, 7,5%, 2,7% e 0,9%, respecti-vamente; o de Pernambuco, na mesma sequênciade anos, teve um melhor desempenho: 4,2%, 5,1%,5,4%, 5,3%, 5,2%, 9,3%, 4,5% e 2,3% (IBGE, 2005a 2012). Tal performance se reflete nos indicado-res econômicos de Ipojuca e Cabo de Santo Agos-tinho, graças a Suape. Em 2003, Ipojuca já detin-ha o quarto maior PIB de Pernambuco (5,9%), comCabo em terceiro (6,2%), Jaboatão em segundo(8,5%) e Recife em primeiro (33,3%). Em 2005, oPIB per capita de Ipojuca se tornou o maior doEstado, representando mais de 4,6 vezes o da ci-dade de Recife. Em 2007, o PIB de Ipojuca passoua terceiro, invertendo sua posição com Cabo. Em2010, chega ao segundo lugar (com 9,6% do PIBestadual), alcançando um PIB per capita de 5,8vezes o da capital (IBGE, 2003 a 2010). O cresci-mento populacional em Cabo e Ipojuca tambémteve evolução expressiva, sendo de 21,0% e 36,0%,respectivamente, em 2000 e 2010; enquanto o Nor-deste e Pernambuco cresceram no mesmo perío-do, correspondentemente, 11,1% e 10,9% (IBGE,2000 e 2010).

Entretanto, a problemática social persiste.Enquanto Ipojuca registrou um PIB per capita, em2010, a preços correntes, de R$ 112.924,25, o va-

lor do rendimento nominal médio mensal per capita

dos domicílios particulares permanentes, para o

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mesmo ano, ficou em R$ 416,18 – abaixo do Salá-rio Mínimo, que, na época, era de R$ 510,00 (IBGE,2010). Em Ipojuca, a taxa de analfabetismo, embo-ra tenha caído, entre 2000 e 2010, de 28,7% para19,2%, manteve-se acima das verificadas paraPernambuco, 18,0%, Nordeste, 19,1%, e Brasil,9,6% (IBGE, 2000 e 2010). Uma já comprometidainfraestrutura urbana e de serviços passou a sofreruma forte pressão com o extraordinário fluxo mi-gratório para a região (Monteiro, 2011).

Nessa fase de implantação dos maiores em-preendimentos de Suape, ganham destaque osimpactos da construção civil nas dinâmicas eco-nômica e social da região.

Emprego na RMR e na construção civil emCabo e Ipojuca

Entre fevereiro de 2003 e de 2013, a taxa dedesocupação da RMR caiu de 12,1% para 6,5%.No mesmo período, os empregados com carteira

de trabalho assinada no setor privado passaram de35,0% para 47,1% do total e os empregados sem

carteira de trabalho assinada no setor privado, de15,1% para 10,0%. Um claro sinal de melhora noperfil da ocupação da região, mesmo consideran-do-se que esta passou a receber significativos flu-xos migratórios, invertendo-se a direção históricados mesmos. Quanto ao rendimento médio real

habitual da população ocupada, para o mesmoperíodo, também cresceu, passando de R$ 1.057,25para R$ 1.376,00, embora sempre se mantendo empatamares mais baixos, quando comparados aoconjunto das RM pesquisadas (que passou de R$1.555,33 para R$ 1.849,50, no mesmo intervalo)(IBGE/PME, 2003 a 2013).

Nesse contexto, o setor da construção civilna RMR, observado pela distribuição da popula-ção ocupada, ganhou crescente participação, comestoques de ocupação cada vez maiores. Passou de5,7%, em fevereiro de 2005, para 7,6%, em feve-reiro de 2007 e 7,8%, em fevereiro de 2013. Entrefevereiro de 2005 e de 2013, os empregados com

carteira de trabalho assinada no setor privado tive-ram aumento expressivo, passando de 24,7% para42,5% do total de ocupados no setor, respectiva-mente. Isso, enquanto os empregados sem carteira

de trabalho assinada no setor privado passaram de24,9% para 13,5% e os “por conta própria”, de43,9% para 37,2% (IBGE/PME, 2005, 2007 e 2013).

Para o município de Ipojuca, a Tabela 1mostra a evolução da dinâmica do emprego formalna Construção Civil, de janeiro de 2006 a marçode 2013. Destaque-se a elevação do nível decontratação em 2009 (coincidindo com o início dasobras de terraplanagem da Refinaria e daPetroquímica), assim como em 2010 (quando co-meçaram as obras de construção das duas plantasindustriais11). Mas o grande salto no nível de

11 Para a construção da planta da Refinaria Abreu e Lima, aPetrobras firmou contratos com cinco consórcios, novalor global de R$ 8,9 bilhões: Camargo Corrêa – CNEC(R$ 3,4 bilhões); Conest-UHDT, formado pelas empre-

sas Odebrecht e OAS (R$ 3,19 bilhões); RNEST - Conest,constituído pela Odebrecht e OAS (R$ 1,48 bilhão); Con-duto – Egesa (R$ 649 milhões); Construcap – Progen(R$ 120 milhões) (Revista Grandes Construções, 2010).

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contratação ocorreu a partir de 2011, quando asreferidas obras ganharam ritmo. Sobressai, ainda,a rotatividade no emprego, atingindo em 2012 asimpressionantes marcas de 36.992 admissões e29.451 demissões.12

Ainda sobre o perfil do emprego formal naconstrução civil em Ipojuca, entre janeiro de 2008e de 2013, destaca-se, pelo elevado volume de con-trações, baixo nível salarial e extraordináriarotatividade no emprego, o segmento de serventes

de obras (17.612 admissões, 10.428 desligamen-tos, 7.184 de saldo, com salário médio de admis-são de R$ 637,05). Mas, de outra parte, evidencia-se, também, a elevada e diversificada demanda porocupações com maiores exigências de qualificaçãoprofissional (exemplos: instalador de tubulações,montador de estruturas metálicas, soldador, entreoutros) (MTE/CAGED, 2003 a 2013).

Qualificação como necessidade, oportunida-de e justificação

Em reportagem da Revista Exame (07/04/2010), evidenciando o descompasso entre o cres-cimento econômico e a disponibilidade de mão deobra qualificada, Marcelo Odebrecht, presidentedo grupo que leva seu nome, comentou: “a faltade gente qualificada é uma de nossas piores fra-quezas, pois impede que o país cresça por váriosanos seguidos”. Órgãos de mídia, em tom sensaci-onalista, têm falado de “apagão de mão de obra”.13

Estudo de Moutinho et al (2011), diante da cres-cente carência de trabalhadores qualificados para

os diversos novos segmentos produtivos emSuape, evidenciou o desafio de converter traba-lhadores com baixa escolaridade em operários qua-lificados. Também Monteiro (2011) comentou queas elevadas exigências de qualificação profissionalcontrastavam com o perfil da mão de obra dispo-nível na região, destacando esse como um grandeproblema para os novos empreendimentos.

Essa questão se tornou, assim, um decisivodesafio da política de desenvolvimento no Brasil eem Pernambuco, ao se situar entre, de um lado, asdemandas empresariais (para que sejadisponibilizada mão de obra que atenda às suasnecessidades de qualificação e em quantidade su-ficiente para que os salários possam ser mantidosem padrões competitivos) e, de outro, as deman-

das dos trabalhadores (para que agora sejam cria-das – especialmente para os pernambucanos –oportunidades de uma melhor inserção no merca-do de trabalho). A legitimação das políticas públi-cas de qualificação profissional dependem, nessecontexto, de sua capacidade de se colocarem comocentrais, para ambas as demandas, ao mesmo tem-po em que as venham atender, em alguma medida.Notamos, quanto a esse aspecto, um quê deambiguidade discursiva. No caso aqui em tela, naspalavras de Eduardo Campos, diante do sucessoeconômico de Suape,

[...] o desafio agora é capacitar a população para anova realidade do nosso mercado de trabalho. Par-cerias, convênios e contratos estão promovendouma inédita mobilização em prol da formação eespecialização da mão de obra pernambucana(Suape/Governo Pernambuco, 2010).

O elemento de ambiguidade, para fins dejustificação, requer que os agentes estratégicos daagenda desenvolvimentista, governantes e empre-sários, afinem o discurso. Neste, as demandas aci-ma referidas tendem a ser enunciadas como (qua-se) uma mesma questão. Não fica suficientementeexplícito no discurso governamental, como indicao fragmento acima, que a ação do Estado nessaárea não pode, necessariamente, deixar de lidarcom, pelo menos, essas duas visões do problema,diferentes nos seus sentidos, podendo implicar

12 Isso, provavelmente, se deve a causas diversas. Entre asquais, podemos considerar: essa é uma característica dosetor (contratações por empreitadas e alto grau desubcontratação); trata-se de uma estratégia empresarialrecorrente na gestão do emprego no Brasil, com o fim derebaixar salário; pode ser um recurso usado pelos traba-lhadores, em condições de demanda de mão de obraaquecida, com o propósito de barganhar melhores salári-os e condições de trabalho. No caso em particular, avali-amos que tal questão merece análise mais detida, aomesmo tempo em que admitimos que o primeiro ele-mento tem tido um peso mais decisivo.

13 Ver, por exemplo, matéria do Jornal Nacional, no siteGlobo.com (http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/08/dificuldade-de-encontrar-mao-de-obra-qualifi-cada-afeta-economia-brasileira.html).

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diversas formas de conflitos de perspectivas, as-sim como de acertos, composições.14 Entretanto,como o encaminhamento do problema não temimplicado uma franca explicitação dessas diferen-ças de perspectiva, nem o reconhecimento públi-co dos conflitos que implicam, a questão não temsido posta claramente em termos de contrataçãosocial, mas de atendimento, por parte do Estado(monologicamente), da demanda da sociedade.

O encaminhamento prático da questão, noentanto, ao mesmo tempo em que confirma essaperspectiva, problematiza-a parcialmente. A primeiragrande ação de qualificação profissional no territó-rio de Suape foi, segundo Arioneide Belém, daSuperintendência Regional do Trabalho e Empregode Pernambuco – SRTE/PE (entrevistada pelo au-tor em março de 2013), a realização do Plano Setorialde Qualificação – PLANSEQ da Construção Civil,contando com recursos do Fundo de Amparo aoTrabalhador – FAT e das empresas beneficiadas.Uma edição esteve voltada à qualificação para má-quinas pesadas (de 2007 a 2010), e outras duas parasegmentos mais leves (2007-2008 e 2010-2011). Emambas foram constituídas Comissões deConcertação, reunindo empresas, sindicatos, SRTE,Senai, e outras instituições. Destacou a entrevista-da que, diante da baixa escolarização dos trabalha-dores da região, foi preciso diminuir as exigênciasinicialmente estabelecidas, de modo a ampliar onúmero de cursistas. Para a Secretária Executiva deTrabalho e Qualificação de Pernambuco, AngelaMochel (entrevistada pelo autor e equipe da Fundaj,em dezembro de 2012), o Estaleiro Atlântico Sul –EAS foi um marco no perfil da demanda por mãode obra no estado. Intenso processo de discussãose estabeleceu em torno do cadastramento, seleçãoe treinamento, envolvendo o Estaleiro, as Agênciasdo Trabalho, prefeituras da região de Suape, Senai.Segundo informações do Senai-Pe (O Estado de São

Paulo, 30/08/2010), o número de alunos formados

pela instituição passou, de 19,4 mil para 48,6 mil,entre 2003 a 2010. Com as demandas do setor depetróleo e gás, o Senai-Pe executou, em 2009, o Pro-grama de Mobilização da Indústria Nacional de Pe-tróleo e Gás Natural – PROMINP (do Ministériodas Minas e Energia em parceria com a Petrobras).Segundo Soares Júnior e Martins (2010), o orça-mento do Proninp/Senai-Pe, para 2009, foi de maisde R$ 10 milhões, envolvendo 14 cursos, 389 tur-mas e mais de 6,2 mil alunos. Até 2010, o governode Pernambuco havia criado 13 novas escolas téc-nicas, frente a um total de 16, disponibilizando 13mil vagas. Outras ações nesse campo se estabelece-ram, envolvendo a FIEPE, governos municipais,Universidades, SEBRAE, BNDES, grandes empre-sas (Monteiro, 2011; Soares Júnior e Martins, 2010).

Após tantas iniciativas no campo da quali-ficação profissional, embora tenham sido anunci-adas como oportunidades de uma nova inserçãodas populações locais no mercado de trabalho, ficao alerta do ex-prefeito de Ipojuca, Pedro Serafim,em entrevista para o JC (12/08/2011): “ainda fica-mos com os menores salários”. Mesmo havendosignificativa incorporação de trabalhadores locaisaos empreendimentos de Suape (com destaque paraa construção civil) e mesmo considerando que talincorporação tem implicado conversão ocupacional(com os segmentos majoritários sendo oriundosda lavoura da cana de açúcar), com elevação signi-ficativa dos empregos com carteira assinada, issonão tem significado a instauração de um padrãosalarial e de condições de trabalho muito diferen-tes dos padrões históricos da região. Os conflitosque serão analisados denunciam tal situação.

Reconstituições identitárias

A região de Suape tem a marca histórica dotrabalho na cana-de-açúcar, na pesca artesanal e,mais recentemente, no turismo. Com o ComplexoSuape, estabeleceu-se entre este e as comunidadeslocais uma dinâmica de conflitos, intensificados,nas décadas de 1990 e 2000, com ações de expro-priação (Pérez e Gonçalves, 2012). Para Santos

14 Vista como construção social, em perspectiva relacional,enquanto produto das disputas sociais e dos aspectosvalorativos que se encontram na base dos julgamentos eclassificações sociais sobre o trabalho, a noção de qualifi-cação se refere às possibilidades trazidas com as diversascondições sociais, econômicas, políticas e culturais (verquanto a isso a clássica abordagem de Naville, [1956] 2012).

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(2012), existem, ainda, 28 mil pessoas residindodentro do perímetro do Complexo. Tais conflitos,associados à decadência da base produtiva anteri-or, têm afetado, significativamente, as comunida-des locais, em sua reprodução e identidades.15

Quanto aos moradores da região, absorvidosnos novos empreendimentos, estão vivenciando umprocesso de reconversão ocupacional e identitária.16

Em contraste com suas trajetórias ocupacionaisanteriores, veem-se, agora, imersos na rotina deempresas estruturadas, formais, algumas de gran-de porte. Para muitos desses, o sentimento é demelhora de vida e até de euforia, a exemplo de umaoperária citada por Rodrigues (2012, p. 39):

[...] esse é o meu primeiro emprego. Antes eu erauma dona de casa, agora sou metalúrgica-soldadora do EAS, que vai construir grandes navi-os. O presidente Lula sabe o que isso significa. Mesinto honrada em fazer parte disso, em saber quecada um desses navios terá um pedacinho de mim.

O discurso desenvolvimentista encontranesse tipo de manifestação (da parte dos trabalha-dores oriundos da região e recém-incorporados aosnovos empreendimentos de Suape) uma percep-ção que o complementa e o legitima.

Os trabalhadores dos empreendimentos deSuape são de dois tipos principais: os moradoresda região e os trabalhadores vindos de fora, os“trecheiros”.17 Quanto aos primeiros, “normalmen-

te, são contratados para ocupar os postos de traba-lho mais baixos na hierarquia da obra” (Rodrigues,2012, p. 43). Conforme apurou Rodrigues (2012),as empresas, em Suape, se utilizaram da estratégiade treinamento de trabalhadores agrícolas, comoforma de poder dispor de mão de obra barata edócil. Entre os trabalhadores oriundos da região eos “trecheiros”, em Suape, as diferenças de perfiltêm redundado em tensões. Sendo que esses últi-mos, segundo apurou Rodrigues (2012), têm trazi-do, de andanças pelo Brasil, não só uma experiên-cia profissional, mas, também, sindical e política.

Sindicatos em Suape

Para o sindicalismo, Suape tornou-se umgrande desafio. Requer saber lidar com: grandesempresas; concentrações de trabalhadores;heterogeneidade no seu perfil; discrepâncias sala-riais e de condições de trabalho; caráter explosivodos conflitos; intensas disputas sindicais. Em ge-ral, os sindicalistas não têm conseguido se legiti-mar como representantes das demandas dos tra-balhadores. Para os principais sindicatos filiadosà CUT, com base na região, o Sindmetal-Pe(Metalúrgicos), o Sindipetro-Pe/Pb (Petroleiros), oSindiquímica-Pe (Químicos), o Sticc/Pe (Constru-ção Civil), prevalece, ainda, uma postura de certaperplexidade, segundo evidenciou um dirigentedo Sindmetal-Pe (entrevistado pelo autor em mar-ço de 2013). Isso tem se traduzido, em geral, emníveis baixíssimos de sindicalização. Para um di-rigente do Sindipetro-Pe/Pb (entrevistado pelo au-tor em março de 2013), este tem uma situação dife-renciada, visto que as empresas da Petrobras, emSuape, são suas principais bases de atuação. Quan-to à Força Sindical, antecipando-se ao boom daconstrução civil, trazido com o PAC, criou, em2000, o Sintepav-Pe (para a construção civil “pesa-da”), aproveitando-se da desatenção do Sticc/Pe(conhecido como “Marreta”), criado em 1919 efiliado à CUT desde os anos 1980. O Sintepav-Pepassou a representar, legalmente, os trabalhadoresda Construção Civil “pesada” em Pernambuco,

15 Em depoimento a Cavalcanti e Rocha (2013, p. 10), umdos moradores da comunidade Tatuoca, assim se colo-cou: “tudo que sou tá ligado a Tatuoca! Pra nós, nativos,SUAPE não trouxe benefício. Tiraram muito da nossasobrevivência. Vivo da pesca e de outro giro das frutasque comercializo. Aqui muitas empresas desmataram,não deram satisfação à gente. E a gente manteve a terra”.

16 Em depoimento a Cavalcanti e Rocha (2013, p. 13), umdiretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojucaadmitiu: “o trabalhador rural, 60% deles foi trabalharem Suape. Quem foi trabalhar em Suape, não volta maispara o campo, não quer ser mais cortador de cana. Essejá fez treinamento, já adquiriu outro conhecimento, nãovolta mais para ser um cortador de cana”.

17 Para Guedes (2011, p. 182), a origem dos termos “tre-cho” e “trecheiro” pode ter tido relação com a prática dedivisão, entre empreiteiras, do serviço referente a umagrande obra de construção de estrada, em “trechos”. In-dica que, em trabalhos mais recentes, o termo “trecheiro”passou a ser usado com um sentido alargado, como“intinerante”. Propõe que a noção se estabeleça em con-traste com a de “migrante”, cujo “trajeto se justifica peloponto que está em seu fim”, enquanto para o primeiro“a circulação é um objetivo em si mesmo”. Nesseenquadramento inclui os “peões de obra“.

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incluindo Suape. O seu fundador e presidente é omesmo que, atualmente, preside a Força Sindicalno estado, Aldo Amaral. A Conlutas também temtido atuação em Suape. Embora não detenha re-presentação legal nas empresas do Complexo, essaCentral tem deslocado militantes para atuarem nosconflitos da região, tendo conseguido conquistar odireito de participar em assembleias e mesas denegociação (Rodrigo, 2012).

A atuação sindical no setor da construçãocivil no Brasil tem tido, nos processos deterceirização, um desafio especial. Segundo Cockelle Perticarrari (2010, p. 635), embora tais práticastenham como motivação a busca de serviçosespecializados, visam, sobretudo, reduzir custostrabalhistas, quando são subcontratadas empresasarregimentadoras de mão de obra, denominadas“gatos”. As subcontratações podem levar a proces-sos sucessivos, quando subcontratadas subcontratamoutras empresas. As condições de trabalho se di-ferenciam ao longo dessa cadeia. O mesmo ocorreem Suape, onde são praticadas diferençascontrastantes em aspectos como salários, acomo-dações,18 alimentação, transporte, entre outros(Monteiro, 2011; Rodrigues, 2012).

Os contrastes salariais e de condições de tra-balho entre “trecheiros” e trabalhadores da região eentre contratados diretos e subcontratados, associ-ados a atrasos em pagamentos, relações com chefi-as, entre outras situações, têm sido fatores de im-portantes conflitos nos canteiros de obra em Suape.

AS LUTAS DOS PEÕES DE SUAPE: O QUEquerem dizer?

No processo de construção dos empreendi-mentos de Suape, os conflitos foram se acumulan-do no ritmo das obras. Em janeiro de 2008, ocor-reu uma paralisação de dois dias dos 2 mil traba-

lhadores atuantes nos serviços de terraplanagemda Refinaria. Queixas: não-pagamento de horasextras, atraso de salários, maus tratos pelas chefes(Jornal Tribuna Popular, 30/01/2008). No mesmoano, ocorreu a primeira greve dos trabalhadoresdo EAS, com duração de três dias (Rodrigues,2012). No início de 2009, os dois mil trabalhado-res ainda atuantes nas obras do EAS realizaramparalisação de um dia, em protesto pelo não paga-mento da Participação nos Lucros (DP, 04/03/2009).Em 2010, os 3 mil trabalhadores do ConsórcioConest, formado pelas construtoras Odebrecht eOAS, realizaram uma paralisação de um dia, con-tra o plano de compensação das folgas de fim deano. Em novembro, os mesmos trabalhadores pro-testaram pelos salários inferiores pagos aos traba-lhadores da região, mesmo para funções iguais (AVerdade, 04/11/2010, www.averdade.org.br).

Revoltas e greves em 2011

Em 25 de janeiro de 2011, os sete mil traba-lhadores da Odebrecht, envolvidos na construçãoda Petroquímica, paralisaram o trabalho, por au-mento de 30% de adicional de periculosidade emelhorias nas condições de trabalho (DP, 09/02/2011). No dia 2 de fevereiro, o Tribunal Regionaldo Trabalho – TRT decretou a greve ilegal. Na noitedo mesmo dia, em protesto, um alojamento foiincendiado. Ocorreram demissões e um trabalha-dor foi preso. Sucederam-se novas depredações(JC, 03/02/2011). No dia seguinte, foi formada umacomissão de seis trabalhadores, para representarsuas demandas (JC, 20/02/2011). No dia 9, emassembleia no pátio de acesso à Refinaria, com maisde cinco mil trabalhadores, e sob um clima de ten-sões, o Sindicato defendeu que as reivindicaçõesdeveriam ser remetidas para a data-base da catego-ria, em agosto. Um conflito se estabeleceu, sendoprotagonizado, de um lado, pelos “baianos”, re-voltados com a posição dos sindicalistas e, de outrolado, por estes, que passaram a desqualificar aque-les como “preguiçosos” e descomprometidos como desenvolvimento de Pernambuco. Procurado

18 Os trabalhadores chegados de fora são abrigados emalojamentos das empresas, hotéis, pousadas,“puxadinhos” em residências. Os consórcios constituí-dos para empreenderem as obras de construção civil emSuape construíam alojamentos. O Conest instalou umcom capacidade para 3.688 trabalhadores, a CamargoCorrêa, para 3.500, a Odebrecht, para 1.296, a KMA 992,totalizando 9.476 lugares. (Monteiro, 2011).

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pelo JC (20/02/2011), o presidente do Sintepav-Penão admitiu as “expressões mais fortes”, mas re-conheceu que acusou os “baianos” de “falta deinteresse no crescimento econômico do Estado”.Chamam a atenção três aspectos da participaçãodo Sindicato no episódio: as dificuldades de afir-mação da sua liderança perante os trabalhadoresinquietos; a adoção de uma estratégia divisionista,alimentando uma tensão latente (entre“pernambucanos” e “baianos”); o recurso ao argu-mento do “compromisso com o desenvolvimentode Pernambuco”, para justificar a desmobilizaçãodos trabalhadores. Entretanto, os acontecimentosevoluíram na direção oposta: a revolta uniupernambucanos e “forasteiros”. A tensão cresceu,houve empurra-empurra, e os dirigentes do Sin-dicato se viram acantonados... Um tiro foi dispara-do, atingindo um trabalhador baiano. Um seguran-ça do Sintepav-Pe foi preso, acusado de “atirar namultidão” (JC, 20/02/2011). Grupos de trabalhado-res se dirigiram à rodovia PE-60, bloqueando, assim,a principal via de acesso a Suape. Com a chegada dapolícia, se estabeleceu um momento de negociação.A principal reivindicação dos manifestantes foi a“presença da imprensa” (Rodrigues, 2012, p. 54).Curioso o fato de ter imperado entre os revoltosos,na ocasião, a necessidade de buscar tornar visíveis,para a sociedade, as suas demandas. Sintomático quea superexposição dos assuntos de Suape, do novodiscurso e agenda desenvolvimentistas tenham con-vivido, até então, com o silêncio dos seus protago-nistas (governantes e empresários, mas, também,sindicalistas), sobre as condições de trabalho decontingentes tão significativos de trabalhadores.

No dia 14 de fevereiro, previsto para a voltaao trabalho, o clima era ainda tenso, com policiaispresentes. No pátio de acesso à Refinaria, formou-se uma assembleia, com o apoio de militantes daConlutas. A paralisação foi mantida, sendo cons-tituída uma comissão de oito trabalhadores(Rodrigues, 2012). Na versão do presidente doSintepav-Pe, as manifestações tinham motivaçãopolítica (DP, 15/02/2011). Já para Adalberto Silva,um dos membros da comissão, o Sindicato defen-dia “os interesses da construtora e não as necessi-

dades dos trabalhadores” (DP, 15/02/2011). A co-missão seguiu para o MPT, que passou a mediaras negociações. A primeira audiência ocorreu nodia 16 de fevereiro. Estiveram representados: oGoverno Estadual (Secretarias do Trabalho, Quali-ficação e Empreendimentos, da Articulação Sociale Regional, da Defesa Social e do Corpo de Bombei-ros Militar de Pernambuco); os empresários (Conest,Petrobras, Sindicato Nacional da Indústria da Cons-trução Pesada – SINICON, Confederação Nacionalda Indústria e Construção); os trabalhadores(Sintepav-Pe; Federação Nacional dos Trabalhado-res da Indústria da Construção Pesada –FENATRACOP, Comissão dos Trabalhadores); aSRTE-PE/MTE; a Prefeitura Municipal de Ipojuca,entre outros (Rodrigues, 2012). Chamou a atençãoo fato de não haver, ali, uma pauta de reivindica-ções. A dificuldade (ou indisponibilidade) do Sin-dicato em atuar como uma agência social19

processadora das demandas dos trabalhadores, eo caráter incipiente da comissão, mesmo diante dequeixas e exigências que pululavam entre os traba-lhadores, é o que, provavelmente, explica tal situ-ação. Nas palavras do Procurador Geral, FábioFreitas: “naquele primeiro momento de reivindi-cação, o Sindicato, praticamente, ele não falou”;acrescentando: sua presença se justificou pelo “as-pecto legal” (depoimento dado a Rodrigues, 2012,p. 58). Os primeiros resultados das negociaçõesforam: a suspensão do pedido de dissídio peloSinicon; o reconhecimento da comissão para com-por a mesa de negociação e a garantia de estabili-dade de 60 dias para seus membros; garantia deque não seriam descontados os dias parados en-quanto durassem as negociações; suspensão ime-diata do movimento grevista enquanto durassemas negociações. Para Adalberto da Silva, a audiên-cia legitimou o processo de negociação. Agora, erapreciso validar, junto aos trabalhadores, os acor-dos firmados: “estamos no processo de convenci-mento entre nossos companheiros para mostrar

19 Faço uso dessa expressão por alusão ao sentido dado porSader (1988, p. 143), ao se referir à emergência entre osanos 1970 e 1980, no Brasil, de “novas formas deagenciamento social”, capazes de elaborarem novas “ma-trizes discursivas”.

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que essa é a melhor maneira encontrada de atingirnossos objetivos” (DP, 17/02/2011). Para a comis-são, em particular, estava sendo travada uma duplaluta por reconhecimento: de um lado, das deman-das dos trabalhadores frente à mesa de negociações;de outro, de si mesma junto aos trabalhadores.

No dia 23 de fevereiro, na segunda audiên-cia, ainda sem que fosse apresentada uma pautade reivindicações, foi formulada uma proposta, aqual foi assinada pela comissão, Fenatracop e Con-federação Nacional da Indústria e Construção, masnão pelo Sintepav-Pe. Entre os 13 pontos apresen-tados, constaram: pagamento de 3hs in itinere aostrabalhadores; estabilidade para a comissão por umano; reclassificação dos trabalhadores em desviode função, com correção salarial; reajuste do valealimentação de R$ 40,00 para R$ 300,00, por mês;pagamento de adicional de horas extras aos sába-dos, de 50% para 100%; não desconto dos diasparados (Rodrigues, 2012). As audiências e o pro-cesso de negociação seguiram. Entre uma e outra,os trabalhadores se reuniam em assembleia. Entre-tanto, conforme observou Fábio Freitas, o Sindica-to estava tão “desprestigiado” que não participoudaquelas assembleias (depoimento dado aRodrigues, 2012, p. 63). Embora se tenha chegado,na audiência no dia 15 de março, a um acordo so-bre alguns itens (ajuste no vale alimentação para R$130,00, estabilidade de um ano para a Comissão,abono dos dias parados, pagamento de 80% parahoras extras), com outros sendo remetidos a umaavaliação posterior (pagamento das horas in itinere)e ou à data base (auxílio residência), os trabalhado-res recusaram o valor do auxílio refeição, que nãodeveria ser menor do que R$ 160,00, e o percentualde aumento pelas horas extras, que não deveria sermenor do que 100% (JC, 18/03/2011). Era mais umforte indicativo da falta de representatividade doSindicato, e mesmo da comissão.

A insatisfação entre os trabalhadores per-manecia.20 Um operário do Conest, em depoimen-

to ao jornal A Nova Democracia (Ano IX, nº 75,mar/2011, http://www.anovademocracia.com.br),comenta: “o governo na televisão fala que Suape éuma maravilha” (um elemento de fissura na dimen-são justificadora do discurso desenvolvimentista?).A paralisação, agora, havia sido estendida para osdemais canteiros de obras de Suape, envolvendocerca de 35 mil trabalhadores. Após outra rodadade negociações, os trabalhadores, em assembleia,no dia 25, optaram pela manutenção da greve (JC,25/03/2011). Na nona audiência, ocorrida no dia 28de março, o Procurador admitiu que havia chegadoao limite sua tentativa de mediar as negociações (ATA,28/03/2011, apud Rodrigues, 2012, p. 65). No dia29 de março, o TRT declarou a greve ilegal e, aomesmo tempo, foram atendidos os 100% no paga-mento das horas extras e os R$ 160,00 de vale ali-mentação (DP, 29/03/2011).

Segundo Adalberto Silva, com vistas à con-venção coletiva da categoria, em agosto, era preci-so buscar a unificação dos salários e benefíciosentre as empresas em âmbito nacional. No dia 15de abril, na décima audiência, as negociações fo-ram concluídas sem que as partes chegassem a umacordo sobre o desconto dos dias parados (Rodrigo,2012). Nos canteiros de obras, os conflitos conti-nuaram. Os trabalhadores seguiam insatisfeitos:

Quando reclamamos do péssimo tratamento, dashoras extras que quase nunca pagam e das péssi-mas condições de trabalho, eles gritam com agente coisas como: “vocês eram cortadores decana, passavam fome e hoje tem profissão e salá-rio, tão reclamando de que? Até fardinha vocêstêm.” Veja que absurdo! (A Nova Democracia,Ano IX, nº 76, abril de 2011).

Naquele momento, em levantamento feito peloDIEESE (UOL Notícias, 04/04/2011), foi estimado em170 mil o número de grevistas da construção civilem todo o país, sobretudo envolvendo as obras doPAC. Em geral, as reivindicações se relacionavam a:condições de trabalho; salários; alojamentos, paga-mento de horas extras; equalização de direitos entre

20 Nesse período, a SRTE/PE, com apoio do MPT, realizouuma Auditoria Fiscal do Trabalho no Complexo Suape(incluindo o EAS e os canteiros da Refinaria e daPetroquímica), na qual se registraram “casos de excessode jornada, ocorrências de acidentes, falta de registro emcarteira de trabalho, atrasos nos pagamentos e

superlotação de alojamentos” (SINAIT, 25/04/2011 -http://www.sinait.org.br). Para Vera Jatobá, que coorde-nou a missão, chamou a atenção o alto grau desubcontratação praticado na região (entrevistada peloautor em março de 2013).

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contratantes e subcontratadas, entre outros. Dianteda repercussão das mobilizações, as Centrais Sindi-cais obtiveram do Governo Federal o compromissocom uma agenda nacional de negociações, sobre con-dições de trabalho nas obras do PAC, envolvendoempresários, Governo e sindicalistas.

Em Suape, nas mobilizações da data-base emjulho, havia um clima de insatisfação com a resis-tência das empresas em abonar os dias parados nagreve de fevereiro e março. No dia 1º de agosto, foiaprovado o indicativo de greve. Diante do fato, emnota oficial, o Sinicon entra com pedido de ilegali-dade da greve e justifica, acusando o Sintepav-Pede “atropelar as negociações”, quando “vários itensda pauta de reivindicação já tinham sido concedi-dos pela categoria patronal” (G1.globo.com, 02/08/2011 - http://g1.globo.com/economia/noticia/2011/08/trabalhadores-do-complexo-de-suape-estao-em-greve.html). Segundo o Sintepav-Pe, a propostapatronal não era suficiente. A luta era por 15% deaumento, cesta básica de R$ 300,00, abono dos diasparados na última greve (Força Sindical, 02/08/2011– http://www.fsindical.org.br). Em 5 de agosto, ostrabalhadores suspendem a greve. Foram negocia-dos: aumento salarial de 11%, cesta básica de R$200; abono de 50% dos dias parados na greve demarço; abono total da greve de agosto; concessão depassagens aéreas para os que moram a mais de 1mil km; redução do tempo de folga de campo (cincodias), com 90 dias de intervalo. Desta vez, o secretá-rio de Articulação Social e Regional de Pernambucoparticipou das negociações (G1.globo.com, 05/08/2011). O apelo discursivo do “desenvolvimento dePernambuco” ganha, assim, mais evidência. Não àtoa, a advogada do Sinicon introduziu a seguintefrase: “nós temos um compromisso com o desen-volvimento de Pernambuco” (DP, 06/08/2011).

Em 2012, nova onda de mobilizações

Em fevereiro, os cerca de dez mil trabalhado-res da Odebrecht entraram em greve, por pagamen-to de 150 horas referentes à Participação nos Lucrose Resultados – PLR – de 2011. Para o presidente do

Sindicato, teria contribuído para a revolta o trata-mento desrespeitoso da Odebrecht para com os tra-balhadores (JC, 17/02/2012). Seis dias depois, omovimento foi encerrado, com um acordo firmadoentre a empresa e o Sindicato. Para capitalizar essesresultados, o presidente do Sintepav-Pe assim sepronunciou: “venceram os trabalhadores e o bomsenso. Mas é importante lembrar que sem amobilização a empresa não aceitaria rever a sua po-sição” (DP, 23/02/2012). Esses trabalhadores, noentanto, voltaram a paralisar o trabalho em 18 dejunho, reivindicando cumprimento de normas desegurança do trabalho e o pagamento do adicionalde periculosidade de 30%. A esses se juntaram 400trabalhadores do Consórcio Cabeços, revoltados comum acidente que matou um trabalhador na semanaanterior. As explosões espontâneas continuavamdando o tom das mobilizações em Suape, com aação do Sindicato vindo sempre em seguida (DP,18/06/2012). No dia 19, houve acordo na greve doConsórcio Cabeços, pondo fim à paralisação. En-tretanto, a greve na Odebrecht continuou. O Siniconentrou com pedido de dissídio junto ao TRT, masseguiu negociando. No dia 26 de junho a greve foiencerrada (DP, 26/06/2012).

Em 27 de julho, o Sintepav-Pe assinou acor-do com o Sinicon, incluindo: aumento salarial de10,5%; aumento da cesta básica para R$ 260; equi-paração salarial entre trabalhadores de mesma fun-ção, nas diversas empresas. O acordo foi homolo-gado em assembleia, em 1º de agosto. Entretanto,logo após a homologação, houve revolta, sendodesencadeada uma onda de protestos, com de-predações de alojamentos e a paralisação do traba-lho (JC, 02/08/2012). Em nota oficial, o Sinicon,argumentou: “diante desta posição, as empresasrepresentadas pelo Sinicon analisam a possibili-dade de demissão e outras medidas legais, vistoque as negociações já foram encerradas e a con-venção já foi assinada junto ao sindicato da cate-goria” (JC, 02/08/2012). O Sintepav-Pe, em notaoficial, admitiu que foi tomado de surpresa pelomovimento, criticou os “atos de vandalismo, do-cumentos apócrifos ou pessoas encapuzadas” e sedisse em defesa dos interesses dos trabalhadores

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(DP, 02/08/2012). Frente às acusações de que aassembleia que votou o acordo havia sido esvazia-da, o presidente do Sindicato justificou que teriacomeçado a chover na ocasião, com alguns operá-rios tendo deixado o lugar, acrescentando: “masquem saiu é como se tivesse assinado uma procu-ração para quem ficou” (JC, 02/08/2012). Em 6 deagosto, em sessão de conciliação, realizada no MPT,não houve acordo. No dia seguinte, o TRT decre-tou a greve ilegal (JC, 07/08/2012). O Sintepav-Peorientou os operários para o retorno ao trabalho etentou acordo para evitar o desconto dos dias pa-rados. Mas houve revolta na assembleia do dia 8,que começou com pedras sendo arremessadas con-tra os diretores do Sindicato, que tiveram que sairàs pressas. Dali, a revolta se alastrou, com ônibus ealojamentos sendo depredados. Com a chegada daPolícia, balas de borracha e bombas de efeito moralforam detonadas e prisões efetuadas (JC, 08/08/2012). O Sintepav-Pe divulgou nota, condenando a“ação de vândalos”, afirmando que realizava uma“assembleia informativa”, para poder cumprir seu“papel institucional” de repassar aos trabalhadoresa decisão do TRT. E, na sequência, retorna com oapelo ao discurso desenvolvimentista:

O Sintepav-Pe chama a atenção de toda sociedadepernambucana, em especial o Governo do Estadode Pernambuco, para as consequências de açõesisoladas como as que vêm ocorrendo em Suapenos últimos dias. Atitudes como as que se viramhoje afastam novos investimentos, diminuindoassim o número de empregos e consequentementedesaquecendo a economia estadual.

Por fim, assegurou seu apoio à “causa dosseus filiados”, defendeu os meios legais de luta erecomendou a volta ao trabalho (JC, 08/08/2012).Nesse contexto, de conflitos explosivos, o Sindi-cato, que se propunha a se manter em estrito mar-co institucional e aderente aos termos do discursoestabelecido, se via em apuros. O Sintepav-Pe es-colhe um alvo e parte para o ataque: “O PSTU,que é ligado ao Conlutas, tenta dividir a categoria,distribuindo panfletos afirmando que Pernambucotem um dos piores salários do Brasil e pleiteandoum reajuste de 15%” (declaração do presidente,

no JC, 08/08/2012). A resposta do Conlutas veiocom a dirigente estadual Cláudia Ribeiro: “OSintepav-Pe faz acusações falsas, levianas e menti-rosas. O que os trabalhadores querem são melho-res condições de trabalho. Tudo que aconteceu foigerado por insatisfações da base, que está jogadaem galpões ou em casas onde moram 10, 20 pes-soas amontoadas” (JC, 08/08/2012).

No dia 9 do mesmo mês, o retorno ao traba-lho foi parcial. Um clima de insegurança se insta-lou na região, ocupada por policiais. Muitas em-presas liberaram os trabalhadores para sóretornarem no dia 13. Diante dos acontecimentos,a Secretaria de Articulação Social e Regional foiescalada para atuar no caso (DP, 09/08/2012). Nodia 10, tentativas de retorno ao trabalho encontra-ram a resistência de piquetes. As empresas deci-diram flexibilizar as punições (DP, 10/08/2012). Trêsdias depois, muitos não retornam ao trabalho, emprotesto pelo anúncio de desconto dos dias para-dos e pelo atraso no pagamento do adiantamentoquinzenal. Alguns incidentes foram aindaregistrados. O Sintepav-Pe procurou se afirmarcomo condutor das reivindicações, abordando ostrabalhadores e orientando-os a baterem o ponto,mas sem retornarem ao trabalho. Em nota, a enti-dade propõe que só haja retorno quando houvergarantias de que as empresas abonarão “todos osdias da paralisação iniciada no último dia 1º deagosto” (DP, 13/08/2012). No dia 14, também nãohouve retorno ao trabalho. Um acordo só veio ocor-rer no dia seguinte: o pagamento da quinzena foiliberado e as empresas concordaram em abonar70% dos dias parados (DP, 15/08/2012). As ativi-dades foram retomadas no dia 16 de agosto.

Entretanto, com as notícias de que haveriademissões e descontos de parte dos dias parados,retornou um clima de nova paralisação. Novas ne-gociações foram iniciadas, desta vez com a partici-pação de uma comissão de trabalhadores. Houveretorno ao trabalho, mas ficou no ar uma operação“braços cruzados” (DP, 16/08/2012). Um novoimpasse se estabeleceu. Os trabalhadores exigiam100% de abono dos dias parados. Uma expectativase criou com a reunião prevista para ocorrer em

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Brasília, com representantes das empresas, das cen-trais sindicais e do próprio governo. Na pauta, oimpasse em Suape. Mas os representantes das cen-trais sindicais não compareceram, não havendo in-dicações de solução para os impasses (DP, 17/08/2012). Um representante do MTE foi designado parainiciar nova rodada de negociações (DP, 18/08/2012).No dia 20, ainda sem solução, a situação em Suapevoltou a ficar tensa com o anúncio de centenas dedemissões. No dia seguinte, continuaram as demis-sões “por justa causa” (DP, 21/08/2012). Ocorreu,no dia 23, a volta ao trabalho (DP, 23/08/2012).

Matéria do JC (26/06/2012) chama a atençãopara o que, na visão do órgão, se deve apreendercom os acontecimentos: “vinte dias deste mês deagosto abalaram o marco inicial do desenvolvimentoeconômico de Pernambuco”; “a paralisação agres-siva e sem norte [...] escancarou o despreparo dosindicalismo local”; a “escassez de mão de obraqualificada” e os “prazos e orçamentos rígidos paratirar os empreendimentos do papel” “conferem umpoder de negociação distorcido para os trabalha-dores”. Um ator (outsider), ao tentar entrar em cena,para, assim, poder ser reconhecido como portadorlegítimo de demandas sociais, testa os limites dadimensão justificadora do novo discursodesenvolvimentista (aqui incluído seu componentemidiático). Até onde vai o seu alcance?

Os conflitos seguem. Ainda em 2012, umanova greve geral atingiu os canteiros de obras daRefinaria e da Petroquímica, com duração de 24dias (de 30 de outubro a 23 de novembro). Nova-mente o TRT declarou a greve ilegal. Diversosmediadores foram convocados para solucionar osconflitos, entre eles o próprio Brizola Neto, entãoMinistro do Trabalho, e o presidente nacional daForça Sindical, Paulo Pereira da Silva. Mas a grevesó acabou quando o Sinicon e o Sintepav-Pe che-garam a um acordo, com a criação de uma tabelaprevendo novos pisos salariais para 32 categoriasprofissionais (O Estado de São Paulo, 23/11/2012).

Os conflitos em Suape seguem no mesmo rit-mo em 2013, mesmo com o início da desmobilizaçãodas obras de construção da Refinaria e daPetroquímica. Um outro cenário se anuncia, no en-

tanto, quanto mais tal desmobilização avança, cujaprevisão é que se estenda até a virada para 2014.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, nos detivemos sobre conflitosenvolvendo os peões e as empresas das grandes obrasde Suape. Vimos que esses conflitos se desdobram ese articulam sob focos diversos, opondo: peões “fo-rasteiros” e aqueles de origem local; trabalhadoresdiretos e terceirizados; trabalhadores e forças polici-ais; trabalhadores e Sindicato; militantes da Conlutase do Sindicato; comunidades locais e gestores públi-cos e privados de Suape, entre outros.

Pudemos notar que, não obstante a ausênciade uma organização sindical capaz de captar, siste-matizar e expressar os interesses e demandas coleti-vas dos trabalhadores, estes se mobilizaram e obti-veram conquistas relacionadas a salário, vale refei-ção, horas extras, condições de alojamento, abonode dias parados, reconhecimento e estabilidade paracomissões de trabalhadores, entre outras.

Para além disso, percebemos que, entrandoem cena, sob formas explosivas e inesperadas, ospeões de Suape e suas condições de existência etrabalho se tornaram visíveis para a sociedade. Quequestões, com isso, colocam para o novo discurso eagenda desenvolvimentista? Vimos o quanto ele-mentos das críticas ao projeto Suape foram sendoincorporados, de algum modo, nos discursos e prá-ticas dos atores estratégicos ali implicados. Não àtoa, em agosto de 2011, no auge das mobilizaçõesem Suape, o governador assim se pronunciou:

Cresce na nossa consciência a importância de pla-nejar a expansão dessa região. Não queremos repe-tir desigualdades que se arrastam por quatro sécu-los de história. Porque de desigualdade esse territó-rio de Suape entende. São marcas muito profun-das, que começaram com a exploração dos índios edos escravos, e não poderão se repetir nesse novociclo de desenvolvimento (JC, 12/08/2011).

Em que medida o discurso estabelecido donovo desenvolvimentismo, diante dessa dimensãoque se visibiliza com os conflitos, incorpora algo dacrítica como reconhecimento ou tão somente como

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justificação? Por outro lado, até onde os trabalhado-res têm sido capazes de se fazer reconhecer?21 Comos conflitos aqui sumarizados, sobressai o fato deque aqueles conseguiram, protagonizando aconteci-mentos espetaculares, se tornar visíveis. Ao mesmotempo, ficou evidenciado que a mediação sindical,ao contrário de se constituir como um novoagenciamento social, no sentido de Sader (1988), nãotem sido capaz de processar tais demandas e de seconverter em canal de elaboração de uma nova ma-triz prático-discursiva. Conversas com sindicalistasatuantes em Suape e as evidências trazidas com odesenrolar dos conflitos e negociações nos indicamo quanto o sindicalismo na região está longe de cum-prir esse papel, o que, para tanto, requereria um ou-tro patamar de elaboração estratégica de suas linhasde ação, de modo a contemplar, entre outros aspec-tos: consolidação de sua capacidade de representa-ção diante dos trabalhadores; enraizamento e proje-ção como ator influente no arranjo político einstitucional local; articulação em perspectiva de ca-deias produtivas, de modo a compor ações nacio-nais e internacionais referidas às conexões de Suapecom a economia nacional e global; articulação emuma perspectiva de ação mais ampla, reportada aodebate sobre os rumos do desenvolvimento do país.A abordagem da experiência sindical em Suape, apartir das dimensões propostas acima, certamente,pode vir a ser bastante enriquecida quando postavis-à-vis experiências outras, de relevância internaci-onal, assim como nacional. Neste caso, sobressai ocaso do ABC Paulista (Véras de Oliveira, 2011;Ramalho e Rodrigues, neste dossiê).

Na ausência de uma atuação sindical maisconsistente, os trabalhadores de Suape, se têm con-seguido dar visibilidade a si e às suas demandas,não necessariamente têm sido capazes de se fazerreconhecidos (na sua condição de agentes e porta-dores de demandas) como parte do empreendimentodesenvolvimentista. Voltamos, assim, ao tema dojogo de tensões entre as razões econômicas (referi-

das a noções tais como eficácia, competitividade,crescimento, acumulação) e sociais (reportadas àequidade, redistribuição, proteção social, participa-

ção e controle social), enquanto parâmetros paradiscutirmos os termos e possibilidades do novodiscurso/agenda desenvolvimentista. Os conflitosdo trabalho, no entanto, continuam; as disputas desentidos, também. Migrando desses canteiros aoutros (seja para se integrar a construção da plantada Fiat, que já se inicia, ou para atuar em outrasgrandes obras país afora) e daí aos novos empreen-dimentos, na medida em que vão entrando em fun-cionamento (estaleiros, refinaria, petroquímica, si-derúrgica, indústria de alimentos e bebidas etc.), asreconversões identitárias, as disputas sindicais eos conflitos do trabalho continuarão ganhando no-vos impulsos e seguirão impactando as dinâmicaseconômicas, sociais e políticas na região. A questãoque fica se refere à capacidade dos trabalhadores esuas representações sindicais se afirmarem comoprotagonistas na construção de um novo padrão derelações de trabalho e de uma perspectiva de desen-volvimento que venha a ter nos elementos daequidade social e da sustentabilidade ambiental,aspectos tão estratégicos como o da eficiência eco-

nômica. Isso implicará tensionar e levar ao limiteos termos atuais do padrão de desenvolvimentoembalado na nova edição, em Pernambuco e no Bra-sil, da agenda e discurso desenvolvimentistas.

Recebido para publicação em 21 de abril de 2013Aceito em 10 de junho de 2013

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21 Todo o processo da constituição de mesas de negocia-ções, com a mediação do MPT, as dificuldades de repre-sentação efetiva por parte do Sintepav-Pe e da comissãodos trabalhadores, as ameaças empresariais, as sentençasdo TRT, que aqui vimos, ganha relevância quanto a isso.

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SUAPE EM CONSTRUÇÃO, PEÕES EM LUTA ...

Roberto Véras de Oliveira – Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais daUniversidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB(PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande(PPGCS/UFCG). Pesquisador do CNPQ. Preferencialmente, orienta seus estudos e pesquisas para os camposda Sociologia do Trabalho e da Sociologia Política. Tem concentrado sua atenção (na forma de publicações,orientações e participação em eventos) sobre temas como sindicalismo, relações de trabalho, qualificaçãoprofissional, políticas públicas de trabalho, emprego e renda, economia solidária, diálogo social, cidadania,entre outros. É autor e coautor de várias publicações em revistas científicas e livros. Entre estes, Sindicalismo

e Democracia no Brasil – do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. São Paulo: Annablume, 2011.

SUAPE UNDER CONSTRUCTION,UNSKILLED LABORERS IN STRUGGLE: new

development and labor conflicts

Roberto Véras de Oliveira

Taking the labor and conflicts point of view,this article discusses the emergence of a new agen-da for development in Brazil. Its focus is theconstruction worker protests and strikes at two ofthe Suape Port Industrial Complex’s main sites,the Abreu e Lima Refinery and the SuapePetrochemical Plant, in 2011 and 2012. Throughthe use of this approach we intend to comprehendthe processes touched off by the conflicts,mediations, and negotiations, as well as what hasbeen at stake with workers’ demands and alsounion, management and government discourseand practices. We ask ourselves if thesemobilizations, besides giving them immediategains, have given workers recognition as legitimateagents of social demands. We also ask to whatdegree such demands have become not only a targetof public outcry but also a way of problematizingthe terms that give sustenance to the newdevelopment discourse.

KEY WORDS: Development. Labor. Unionism. Civilconstruction. Suape.

LA CONSTRUCTION DE SUAPE, DESOUVRIERS QUI LUTTENT: le nouveaudéveloppement et les conflits du travail

Roberto Véras de Oliveira

Cet article examine l’émergence d’un nouveauprogramme de développement au Brésil dansl’optique du travail et de ses conflits. L’accent estmis sur les émeutes et les grèves des ouvriers quitravaillent dans la construction de deux desprincipales entreprises du Complexe IndustrielPortuaire de Suape, la Raffinerie Abreu et Lima etl’entreprise pétrochimique Suape, au cours desannées 2011 et 2012. Cette approche se veutd’analyser les processus déclenchés par les conflits,les médiations et les négociations et ce qui a étéremis en question, en parallèle aux demandes destravailleurs ainsi que les discours et les pratiquesdes gouvernements, des entreprises et des syndicats.Nous nous demandons si ces mobilisations ontpermis, au-delà des gains immédiats obtenus parles travailleurs, que ceux-ci soient reconnus commeles porteurs légitimes des revendications sociales.Et dans quelle mesure de telles revendications nesont pas seulement l’objet d’une dénonciation pu-blique mais représentent aussi une manière deremettre en cause les termes du nouveau discourssur le développement.

MOTS-CLÉS: Développement. Travail. Syndicalisme.Construction civile. Suape.

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Maria Aparecida de Moraes Silva, LúcioVasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno

A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVEL” E A (NOVA) MORFOLOGIA DO TRABALHO

Maria Aparecida de Moraes Silva*

Lúcio Vasconcellos de Verçoza**

Juliana Dourado Bueno*** DO

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O objetivo deste texto é a análise das relações e condições de trabalho nos canaviais, resultantesdo processo de reconfiguração do trabalho, em face do momento atual, caracterizado pelaintensificação do processo de mecanização do corte de cana. Em função da rapidez das mudan-ças ocorridas no processo de trabalho, considera-se que estas relações de trabalho devam seranalisadas no contexto da imagem do “desenvolvimento sustentável” produzida pelas empre-sas sucroalcooleiras e pelo Estado brasileiro. A intensificação da exploração da força de traba-lho no quadro de uma (nova) morfologia combina, de um lado, tecnologias altamente avança-das, e, de outro, aumento da desqualificação da força de trabalho. As reflexões procurarãotrazer à superfície a realidade social escondida atrás da ideologia fabricada para sustentar essaatividade econômica. Visa-se a uma análise crítica da ideologia desenvolvimentista inerente aessa produção. A metodologia empregada baseia-se na história oral e observação direta noscanaviais paulistas e alagoanos.PALAVRAS-CHAVE: Relações de trabalho. Condições de trabalho. Capitalismo no campo. Cana-de-açúcar.

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre a produção açucareira noBrasil remontam ao início da colonização portu-guesa no século XVI. De lá para cá, cronistas, pin-tores, biólogos, viajantes, literatos, sociólogos, eco-nomistas, historiadores, cineastas, inter allia, re-gistraram suas análises e impressões sobre a vidasocial, política, cultural e econômica derivada dessaprodução ao longo dos cinco séculos de história.Essa cultura, aliada à exploração de outros recur-sos naturais – pedras preciosas – formaram a baseda colonização, que contribuiu para o processo deacumulação primitiva do capitalismo europeu, pormeio, não somente da apropriação dos excedentesproduzidos pela colônia, como, também, pela sus-

tentação do comércio de escravos.A face atual do Brasil, sobretudo desde o

último meio século, vem sendo, em boa parte,matizada pelas gigantescas áreas cobertas com cana-de-açúcar, não mais denominada matéria-primadestinada à metrópole, mas commodity, destinadaaos mercados globais, segundo a lógica da acumu-lação do capitalismo contemporâneo, no contextodo novo imperialismo, segundo Harvey (2004). Se,no passado colonial, os canaviais concentravam-se na Zona da Mata nordestina, atualmente, a mai-oria deles se localiza na região Centro-Sul, sobre-tudo no território paulista, responsável por quasedois terços de toda a produção do país.1 São perto

* Doutora em Sociologia. Professora livre-docente apo-sentada da UNESP. Professora visitante do Departamen-to de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos –UFSCAR.Rua Alvarenga Peixoto, 55 Ap/11. Parque ArnoldSchimidt. Cep: 13566-582 São Carlos – São Paulo – SãoPaulo. [email protected].

** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Socio-logia da UFSCAR. [email protected]

*** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Socio-logia na UFSCAR. [email protected]

1 Em 1997, foram exportadas 3.844.224 toneladas de açú-car. Dez anos depois, em 2007, este montante passoupara 12.223.221, havendo um acréscimo de quase qua-tro vezes (IEA, 2009). Segundo dados do MAPA (Minis-tério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), em 2012,houve acréscimo de 57,5% na quantidade de etanol ex-portada, passando de 1,57 para 2,48 milhões de tonela-das. No que tange à produção, na safra de 2005-2006,foram 15.808.184.000 de litros e, em 2010-2011, estemontante subiu para 25.780.404.000, portanto, haven-do um acréscimo de quase 70%, num período de apenascinco anos. Quanto à produtividade, segundo dados daUNICA (União da Indústria Canavieira), em 1976, eranecessária uma tonelada de cana para produzir 45 litrosde álcool. Em 2004, esse montante passa para 75 litros,

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de seis milhões de hectares distribuídos ao longodas bacias hidrográficas e das águas subterrâneasdos aquíferos que atravessam essa região. Se, nopassado colonial, o açúcar era o produto funda-mental, hoje, além dele, o etanol utilizado comocombustível constitui-se, não somente em merca-doria, cuja finalidade é movimentar os automó-veis flex fluel, como, também, na ideologia do com-bustível limpo, sustentável, que vem sendo pau-latinamente fabricada pelo Estado, visando con-templar os interesses de capitais nacionais e in-ternacionais em busca de lucros e apropriação darenda da terra (incluindo as águas).2 Trata-se, por-tanto, de um processo de territorialização do ca-pital, cujas fronteiras estão delimitadas pelos re-cursos naturais – terra e água – e pela ação doEstado para garantir, não apenas a logística dessaprodução – estradas, alcoodutos, portos –, como,também, os subsídios por meio de empréstimosvultosos para a instalação de usinas e financia-mento da produção agrícola em geral (Xavier et

al., 2012). E mais ainda. A criação de normativasinstitucionais para regular o mercado e as rela-ções de trabalho, sobretudo na agricultura, anali-sada mais adiante.

Na conferência Rio-92, oficializou-se a no-ção de “desenvolvimento sustentável”, definida noRelatório Brundtland, em 1987, como paradigmapara o desenvolvimento socioeconômico aliado àconservação dos recursos naturais. O Estado bra-sileiro e outros países signatários da Agenda 21

Global se comprometeram a adotá-la como orien-tação para suas políticas de desenvolvimento(Teixeira, 2005, p. 53). Levando-se em conta osproblemas advindos da expansão produtiva docapitalismo em várias partes do globo, vários estu-dos têm mostrado que as práticas relacionadas à

depredação ambiental se chocam com as normativasdessa Agenda institucional. Nos limites deste arti-go, não nos cabe adentrar o debate sobre o concei-to e ou noção de “desenvolvimento sustentável”.Teixeira (2005) faz um balanço desse debate, res-saltando o confronto entre os ambientalistas e oschamados desenvolvimentistas, apoiados na lógi-ca do crescimento econômico, que veem a conser-vação ambiental e a sustentabilidade como obstá-culos. Por outro lado, há autores que criticam oconceito de “desenvolvimento sustentável”. Segun-do Leis (1999, p. 159, apud Teixeira, p. 54), o con-ceito de “desenvolvimento sustentável” faz partede um processo de “[...] adoção oportunista e ins-trumental [...]” por parte dos estados e das empre-sas, de novos valores trazidos pelo ambientalismo,com o objetivo de garantir a continuidade do siste-ma produtivo. Nesse caso, haveria um processode cooptação das noções do ambientalismo parajustificar a lógica produtivista atual.

Para além da noção de “desenvolvimentosustentável”, o discurso do desenvolvimento, emsua concepção mais ampla, tem pautado a discus-são sobre a agricultura em diferentes momentoshistórico-sociais no Brasil e também no contextointernacional. No Brasil, alguns setores da agricul-tura foram apresentados como verdadeiros moto-res do desenvolvimento: isso ocorreu no períododa chamada “agricultura moderna”, e também apartir da década de 1980, com a ascensão da“agroindústria” e dos Complexos Agroindustriais– CAI. Estes podem ser caracterizados pela expan-são da participação do capital internacional, parti-cipação do Estado nas políticas de terras, inova-ções tecnológicas, pesquisas e implantação deinfraestrutura local e presença de grandes gruposempresariais e empresas multinacionais (Herediaet al., 2010).

No que diz respeito, especificamente, àagroindústria canavieira, o discurso do desenvol-vimento promovido pelo setor foi e tem sido bas-tante acentuado. Silva et al. (2013) demonstramque o Estado tem um papel fundamental na ma-nutenção desse discurso, na garantia dos padrõesde acumulação dos capitais nacionais e internaci-

havendo um aumento de 64% (www.unica.com.br -acesso em 30/11/2012). Dentre os estados nordestinos,Alagoas é o maior produtor de cana-de-açúcar. Na safrade 2011/12, foram 27.705 milhões de toneladas; em SãoPaulo esse montante chegou a 304.230 milhões, segun-do dados da UNICA. No que diz respeito ao conjunto dopaís, foram 551.215 milhões de toneladas(www.unica.com.br. Acesso em 03/04/2013).

2 Para produzir um litro de etanol são necessários 13 litrosde água (considerando-se apenas a parte industrial doprocesso produtivo).

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onais e na construção de uma nova “ideologia doetanol”. O Estado conta com a colaboração de em-presários, representantes dos trabalhadores e mei-os de comunicação para difundir essa ideologia. Anova imagem revela os números gigantescos da pro-dução, mas esconde a degradação socioambiental eas formas de superexploração dos trabalhadores.3

No que tange ao aspecto político, o agribusiness

tem sido o símbolo do desenvolvimento econômi-co do país, por meio do saldo positivo do comér-cio exterior, graças ao aumento das exportações,sobretudo de produtos agrícolas, que vem garan-tindo, especialmente nos últimos anos, o saldo po-sitivo da balança comercial do país.4

É importante destacar que a lógicadesenvolvimentista, ao evidenciar as questõesambientais, procura apagar a situação laboral, namedida em que a tecnologia pressupõe o empregode máquinas tão somente. Essa evidência se mani-festa no caso brasileiro nos sítios das empresascanavieiras, nos quais as imagens veiculadas sãoas das grandes máquinas colheitadeiras, onde osoperadores das mesmas não aparecem, bem comoos locais onde estão os cortadores manuais, cober-tos pela fuligem da cana queimada. Por outro lado,tais imagens são ancoradas em normativasinstitucionais que asseguram ou a invisibilidadedos trabalhadores ou a visibilidade dos mesmosinseridos em relações laborais “sustentáveis” soci-

al e ambientalmente.Quanto à degradação socioambiental, mui-

tos estudiosos já apontaram os efeitos negativosdesse monocultivo (Szmrecsány, 1994; Andrade,2009; Thomaz Jr, 2009; Silva e Martins, 2010).Além dos males causados pela queimada de cana(Bosso, 2006; Ribeiro, 2008; Ribeiro, Pesqueiro,2010, dentre outros), há aqueles relacionados aoutras fases do processo produtivo da cana, semcontar que os milhares de veículos empregadosnessa atividade – caminhões, tratores, máquinascolhedeiras, ônibus para o transporte dos traba-lhadores etc. – são todos movidos à energia deri-vada dos combustíveis fósseis. Ainda que tenhahavido o crescimento da mecanização e a proibi-ção das queimadas a partir de 2017 (no estado deSão Paulo),5 nota-se que essa prática ainda conti-nua, pois, ao queimar a palha da cana, diminui-seem 50% a quantidade de água do caule, resultan-do em menores custos advindos do transporte edas operações industriais da transformação da canaem açúcar ou etanol. Outra fonte de poluição re-porta-se à utilização do resíduo gerado no proces-so de destilação do etanol – vinhoto ou vinhaça –como fertilizante. A cada litro de etanol, são pro-duzidos de 10 a 18 litros de vinhoto, espalhadosnos canaviais sob o sistema de fertirrigação. Estu-dos apontam que o poder poluente desse resíduochega a ser cem vezes maior do que o esgoto do-méstico, além dos danos provocados pela alta tem-peratura ao sair dos destiladores (70 a 80 graus)que, ao ser lançado no solo, torna-se prejudicial àfauna, flora, microfauna, além de contaminar aságuas subterrâneas, quando utilizado em grandesquantidades e, sobretudo, durante as chuvas (Plá-cido Jr. et al., 2007; Xavier et al., 2012, p. 44). Aparte que não é utilizada como fertilizante é depo-sitada diretamente no solo. Em décadas passadas,esse subproduto era lançado nos rios, provocan-do o desaparecimento de muitas espécies de pei-

3 A construção da ideologia carregada de elementos sim-bólicos foi analisada por Burke (2009), referenciando-seà fabricação da imagem do poder absoluto do rei LuizXIV. Em artigo recente, Bruno (2012) utiliza essa noçãopara analisar o habitus das elites agrárias do Brasil pormeio da propaganda midiática SOU AGRO. A “fabrica-ção dessa imagem” está presente na letra do samba-en-redo da campeã do carnaval do Rio de Janeiro de 2013,Vila Izabel, patrocinada pela BASF, uma das maioresvendedoras de agrotóxicos no Brasil. A homenagem aosagricultores (familiares?) é sem dúvida uma forma deconfundir e dissimular a maneira de produzir das gran-des empresas do agribusiness. A imagem simbiótica dosamba-agricultura é mais uma empreitada das elites paraassegurar suas vendas no exterior, além de cooptar umdos traços mais importantes da cultura popular.

4 Em recente artigo, Roberto Rodrigues (ministro da Agricul-tura do governo Lula) defendendo a melhoria dos portospara escoamento dos grãos, sobretudo da soja, afirmouque a exportação do agronegócio passou de 24,8 bilhões dedólares em 2002 para 95,2 em 2012, quase quatro vezesmais. Sua tese, “meu porto, minha vida” é a de que essamelhoria traria benefícios não somente para os produtorescomo também para todos os brasileiros (Folha de S. PauloTendências/Debates, 29 de mar. 2013, p.3).

5 Em junho de 2007, o governo do estado de São Paulofirmou com a UNICA o Protocolo Agroambiental visan-do ao fim das queimadas até o ano de 2014 nas áreasmecanizáveis e 2017 nas não mecanizáveis. Houve aadesão de 127 usinas e 23 associações de fornecedoresde cana. Disponível em: http://homologia.ambiente.sp.gov.br/estanolverde/listas.asp. Acesso em 28 de mar. 2010.

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xes, sobretudo no estado de São Paulo.No intuito de desfazer o mito do etanol como

combustível limpo, o estudo de Cardoso et al.(2008) revela que o nitrogênio ativo com atividadequímica e biológica possui potencial para modifi-car as propriedades físicas do ambiente ou da biota,pelos seguintes mecanismos: a) arraste pela águade chuva do nitrogênio contido nos adubos; b)ação de microrganismos no solo, transformandoparte do adubo em gases; c) produção de nitrogê-nio ativo por bactérias existentes em raízes deleguminosas, que transforma o nitrogênio inertedo ar em nitrogênio ativo; d) formação de gasesnitrogenados como produto da combustão de qual-quer combustível.

As considerações precedentes compõem umdos retratos da produção sucroenergética brasilei-ra e visam desmistificar a imagem de energia lim-pa, sustentável, exportada para o mundoglobalizado e também para os consumidores inter-nos. Outro aspecto da insustentabilidade dessaprodução, pouco levada em conta em muitos estu-dos, reporta-se à acumulação por espoliação pormeio da ocupação das terras. A fim de aprofundarnossas reflexões sobre o conceito de acumulação

por espoliação, abordaremos, nos próximos itens,o caso recente da ocupação de terras pelaagroindústria canavieira alagoana e a destruição dasflorestas de babaçu no Maranhão.

ACUMULAÇÃO POR ESPOLIAÇÃO NASTERRAS ALAGOANAS

Segundo Lima (2006, p. 101), a evoluçãoda agroindústria canavieira alagoana, entre o perí-odo de construção do Instituto do Açúcar e doÁlcool – IAA até 1990 está constituída por trêsetapas: “[...] a da consolidação do parque usineiro(1930-1950), a do processo de expansão e moder-nização (1950-1975) e a de um segundo surto ex-pansivo ligado ao Proálcool (1975-1989)”. De acor-do com o mesmo autor, no que tange a todo esselongo período, a decisão de expandir as lavourasde cana para os tabuleiros (na década de 1950) foi

o fato “mais importante para moldar a estruturaprodutiva alagoana” (idem, p.101). Mas o que sãoos tabuleiros? Por que eles foram tão decisivos paraos rumos da agroindústria canavieira alagoana?

O geógrafo Manuel Correia de Andrade(1959) descreve os tabuleiros como zonas que seestendem desde o pediplano de Arapiraca (muni-cípio localizado no Agreste Alagoano) até as for-mações do litoral, possuindo em Alagoas muitomaior largura do que em Pernambuco. “Acha-seinclinada, grosso modo, em direção ao mar, alcan-çando quase 200m de altitude a Oeste de Arapiraca,para descer até os 40 ou 50m nas proximidades dapraia onde forma abruptas falésias” (p. 24).

A subida dos canaviais alagoanos para ostabuleiros (até o início da década de 1950 os cana-viais eram tradicionalmente concentrados nas vár-zeas dos vales úmidos) está relacionada a um con-junto de fatores que acarreta economia para a usi-na, como: “por ser plano, é o tabuleiro menos atin-gido pela erosão, facilitando, por conseguinte, amecanização, o tratamento e a colheita da lavoura[...]; nos tabuleiros as canas suportam melhor aestiagem, são mais uniformes e menos sujeitas adoenças.” (Idem, ibidem, p. 56). A iniciativa pio-neira foi da usina Sinimbu que, por meio de umaadubação adequada, logrou êxito na incorporaçãodos tabuleiros (Andrade, 1959 e 1994; Loureiro,1969; Sant’Ana, 1970). Essa experiência bem su-cedida (do ponto de vista do usineiro) foi seguidapor outras usinas do estado. Assim, os tabuleirospossibilitaram uma drástica expansão da fronteiraagrícola da cana, sendo hoje a principal área pro-dutora dessa cultura em Alagoas.

Apesar de as áreas dos tabuleiros se esten-derem do Rio Grande do Norte ao estado de Sergipe(Andrade, 1994), elas se destacam em Alagoas porserem, em geral, mais largas e compridas, quandocomparadas às dos outros estados. No entanto, elasnão são homogêneas: ao sul de Alagoas, os tabu-leiros se caracterizam por sua maior dilatação delargura e profundidade, enquanto ao norte, sãomenos extensos (Lima, 2006). Por isso, atualmen-te a maior concentração de usinas de Alagoas estána microrregião dos tabuleiros de São Miguel dos

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Campos, ao sul do estado.6

Consideramos que essa breve contextua-lização do papel dos tabuleiros na expansão doscanaviais seja fundamental para compreendermospor que, atualmente, Alagoas é líder nordestina deprodução dessa matéria-prima. Todavia, é impos-sível compreender tal liderança se nos limitarmosapenas às potencialidades dos aspectos geográfi-cos. Por trás do período “de expansão e moderni-zação” (Lima, 2006) dessa agroindústria emAlagoas, estão, dentre múltiplos aspectos, váriosepisódios de expropriação. Comecemos investigan-do as expropriações dos pequenos produtores.

No livro Açúcar: notas e comentários,Osman Loureiro, que foi usineiro e ex-governadordo Estado, comete um “ato falho” ao revelar aquiloque ele próprio queria esconder. Vejamos o seguin-te trecho:

A esta primeira primazia quanto à posse de tre-cho geográfico especial, é preciso adir-se a zonados chamados tabuleiros [...] esses altiplanos, ti-dos e havidos de velha data como impróprios àcultura da cana, e apenas admitindo as peque-nas lavouras de subsistência, como a mandioca,a batata e algumas frutas, serviam, entretanto,por igual, para a grande lavoura. Tudo eracontemperá-los [sic] com adubação adequada.As experiências, por eloqüentes, tiveram segui-dores. Em breve, vastos canaviais começaram adesertar-se por esses chapadões, outrora relega-dos por inadequados, e hoje avocados ao serviçode nossa cultura maior. [...] Para quem atravessouessas solidões semidesérticas e hoje entresachadas[sic] de vigorosos canaviais, o coração se lhe desa-perta na antevisão do futuro que nos aguarda (Lou-reiro, 1969, p. 244 e 245, grifos nossos).

Nessa passagem, Loureiro descreve os ta-buleiros de duas formas: a primeira é como áreadas pequenas lavouras de subsistência, enquanto asegunda é como espaço das solidões semidesérticas.

Ora, se esses espaços admitiam as pequenas la-vouras de subsistência como poderiam ser soli-dões semidesérticas? Então, era insignificante onúmero de pequenos produtores nessas áreas? Essaquestão é de suma importância, pois, se aceitar-

mos a premissa das solidões semidesérticas, a ex-propriação dos pequenos produtores nessas áreasteria sido quase nula. Por outro lado, recusandoessa premissa – e adotando a de que seriam áreasocupadas por pequenas lavouras de subsistência–, a vertiginosa expansão da cana nos tabuleirossó poderia ter ocorrido por meio de um “xequemate” nos pequenos produtores.

Heredia (2008) foi a pesquisadora que seaprofundou de forma mais minuciosa nessatemática, em estudo realizado no fim da década de1970 e início dos anos 1980, que incluía pesqui-sas de campo em parte da área que deu origem aomunicípio de Teotônio Vilela (situado namicrorregião dos tabuleiros de São Miguel dosCampos). A autora mostra que os pequenos pro-dutores, inclusive os proprietários, faziam usodessas áreas situadas fora da grande propriedade,denominando-as terras de “hereu” ou “terras semdonos”, onde plantavam para a sua subsistência eessa prática passou para as distintas gerações(Heredia, 2008, p. 60).

Nessa pesquisa, Heredia conseguiu reunirdiversos depoimentos, além de outras evidênciasque comprovam que a expansão da cana para ostabuleiros só foi possível por meio da expropria-ção dos pequenos produtores.7 Dentre os meca-nismos de expropriação identificados pela autora,destacamos os seguintes: 1) boatos de que osusineiros tomariam as terras daqueles que não ti-nham o documento que comprovasse a posse re-sultaram em vendas de terras por um preço muito

6 A microrregião dos Tabuleiros de São Miguel dos Cam-pos é formada pelos seguintes municípios: São Migueldos Campos, Roteiro, Jequiá da Praia, Boca da Mata, Cam-po Alegre, Anadia, Junqueiro, Teotônio Vilela e Coruripe.

7 Conforme o Censo agrícola de 1920, no município deCoruripe (que faz fronteira com Teotônio Vilela), as la-vouras do coco (1.217 ha.), de feijão, milho e mandioca(1.102 ha.) ocupavam uma área plantada superior à dacana-de-açúcar (863 ha.) (Heredia, 1988, p. 49). Noventaanos após o Censo de 1920, a área do plantio de feijão,milho e mandioca foi reduzida pela metade (restando,atualmente, o equivalente a 650 ha, segundo levanta-mento das lavouras do IBGE em 2009), enquanto a dacana-de-açúcar cresceu vertiginosamente, de 863ha para52.238 ha. No tocante à produção agrícola do municípiode Teotônio Vilela, segundo o levantamento do IBGE so-bre as lavouras (realizado 2009), a plantação de cana-de-açúcar é líder, com aproximadamente 1 milhão de tonela-das de cana colhidas numa área plantada de 15.500 hecta-res. A esmagadora liderança só se torna evidente quandocomparamos esses números com os dos cultivos de ou-tros produtos: o que mais se aproxima da cana-de-açúcaré o do feijão, que ocupa apenas 200 hectares de área plan-tada, seguida do milho, com 100 hectares e da mandioca,com inexpressivos 55 hectares de área plantada.

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abaixo do valor de mercado; 2) as usinas compra-vam o lote de um herdeiro, mas, por fim, registra-vam como se a compra fosse da área total de todosos herdeiros; 3) aqueles que não vendiam sua ter-ra, muitas vezes ficavam cercados por grandes pro-priedades e sofriam diversos tipos de pressão, queiam desde fechamento da saída da propriedade,até a invasão paulatina de parte de sua terra (Idem,1988 e 2008).

Essas formas fraudulentas de acumulação eexpropriação remetem ao conceito de “acumula-ção por espoliação,” proposto por Harvey (2004,p. 120-121), ao analisar as formas contemporâne-as de acumulação. Para este autor, traços caracte-rísticos daquelas formas de acumulação, descritascomo restritas ao período da “Acumulação Primi-tiva do Capital” (Marx, 1985), não se extinguiriamao longo da consolidação e expansão mundial docapitalismo, muito pelo contrário: formas de acu-mulação baseadas no uso de fraudes e da violên-cia seriam intrínsecas ao capitalismo.

Mecanismos de expropriação e acumulaçãomuito semelhantes aos descritos por Heredia tam-bém ocorreram (e ainda ocorrem) em nível nacio-nal. O período estudado por Heredia foi marcado,nacionalmente, pelo processo de “modernizaçãotrágica” (Silva, 1999) da agricultura brasileira, queintensificou diversas formas de expropriação depequenos produtores e alterou as relações de tra-balho. Como demonstrou Silva (1999), esse pro-cesso não pode ser entendido somente como im-pulsionado pela lógica da acumulação do capitalagroindustrial. O papel do Estado, por exemplo,foi fundamental para a sua consolidação. Por meioda análise do Estatuto da Terra (ET) e do Estatutodo Trabalhador Rural (ETR), a autora demonstracomo estes mecanismos, que aparentemente po-deriam representar algum avanço para os trabalha-dores, no fundo regulamentaram a intensificaçãoda exploração da força de trabalho (Idem). Na aná-lise do processo de expropriação dos pequenosprodutores alagoanos também não podemos negli-genciar o papel desempenhado pelo Estado.

A incorporação das terras dos tabuleirospelas usinas recebeu o estímulo direto do Estado,

por meio do IAA e de diversos programas8 que,naquele momento, objetivava elevar a produtivi-dade do setor e reduzir os custos da produção.Nesse contexto, foram adotadas diversas medidasque acabaram beneficiando as principaisagroindústrias canavieiras do estado, dentre estasse destacam: financiamento público para a com-pra de terras, melhoramento genético da cana eisenção de impostos para importação demaquinários (Heredia, 2008; Lima, 2006; Mello,2002). Essa conjuntura possibilitou uma vertigi-nosa expansão dos canaviais alagoanos, sobretu-do na microrregião dos tabuleiros de São Migueldos Campos.9

No momento presente, a invasão da cana-de-açúcar nas áreas dos tabuleiros está consolida-da. O fato de a atual usina líder nordestina emprodução de cana, situada no município deCoruripe, ter 90% de seus canaviais em terras detabuleiros10 ilustra bem esse processo. Mas enga-na-se quem imagina que, após a expropriação dostabuleiros, tenha acabado o processo de expropri-ação nos canaviais alagoanos, pois os trabalhado-res continuam sendo expropriados pelas usinas –seja em canaviais das terras planas, das várzeasencharcadiças, ou das encostas de grotas e serras.Nessa agroindústria, o trabalho não pago assumetaxas altíssimas. A acumulação por espoliação nãose realiza, apenas, quando a terra é espoliada dopequeno produtor, mas continua em cada metrocortado subtraído do salário do cortador de cana,em cada caso de “canguru” ou “birôla”,11 decor-rente do excesso de trabalho para atingir as metas8 Dentre os principais programas do Estado nesse período

estão: 1) Plano de Expansão da Agroindústria Canavieira(1963); 2) Programa de Racionalização de AgroindústriaCanavieira (1971); 3) Programa Nacional de Melhora-mento da Cana-de-açúcar (1971); 4) Programa Nacionaldo Álcool (1975). Para uma leitura detalhada dessas po-líticas, ver Lima (1998).

9 É válido ressaltar que essa expansão também provocoudestruição da vegetação nativa dos tabuleiros.

10 Conforme depoimento do chefe do setor de recursoshumanos da referida usina. Entrevista realizada no dia21 de março de 2013, no município de Coruripe/AL.

11 “Canguru” e “birôla” são expressões regionais cunhadaspelos canavieiros em Alagoas e São Paulo, respectivamen-te. Significam o momento em que, em razão dos altosníveis de sudorese, provocados pelo calor, eles são acome-tidos por câimbras por todo o corpo, podendo, até mesmo,levá-los, em alguns casos, à morte, como ocorreu a 23trabalhadores no período de 2004 a 2011 em São Paulo.

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mínimas diárias de produtividade, em cada traba-lhador demitido por ter a sua força de trabalhodesgastada prematuramente.

ACUMULAÇÃO POR ESPOLIAÇÃO NASFLORESTAS DE BABAÇU MARANHENSES E ATERRITORIALIZAÇÃO DO CAPITAL

Outro exemplo de acumulação por espolia-

ção, embora fora das fronteiras geográficas da pro-dução canavieira, porém dela resultante, reporta-se à destruição das florestas de babaçu no sudoes-te maranhense. Em pesquisa levada a cabo nessaregião em 2007,12 constatou-se um processo deexpropriação de camponeses que aí viviam na con-dição de ocupantes, rendeiros e moradores, pormeio de toda sorte de violência. Ademais da coletados depoimentos com homens e mulheres (70depoentes), foram analisados 85 processos jurídi-cos movidos por camponeses expulsos de suasterras por meio do uso da violência e ameaças demorte, muitos dos quais passaram a viver nas pe-riferias de Timbiras e Codó, cidades maranhenses,hoje fornecedoras de mão de obra para as usinasde São Paulo. Analisando os processos jurídicosmovidos por 85 camponeses expropriados em 2004nos municípios de Coroatá, Timbiras e Codó, cons-tatou-se que essas famílias eram constituídas demoradores que pagavam a renda em produto aodono da terra. Plantavam arroz, feijão, milho, man-dioca e frutas. Além disso, viviam da economiaextrativista do coco babaçu, atividade essencial-mente desenvolvida pelas mulheres. Viviam emcasas de taipa cobertas de folhas da palmeira dobabaçu. No ano de 2004, homens armados desalo-jaram 100 famílias da Fazenda São Raimundo,pertencente a José Ribamar Thomé. Os homenseram mandantes de Ricardo Reis Vieira, que, porintermédio de escrituras falsas, afirmava ser o legí-timo proprietário da terra. Segundo relatos de cam-poneses, a queima das casas foi feita pela Empresado Grupo Maratá, que possui negócios relaciona-

dos ao comércio, agricultura e indústria no Nor-deste. No Maranhão, esta empresa possui exten-sas áreas com pecuária.

Os camponeses não resistiram a este ato deviolência, pois, caso contrário, seriam mortos, se-gundo vários depoimentos. Muitos ainda não re-correram à Justiça em razão do medo de represáli-as por parte da empresa expropriadora. Ademaisda expropriação, a empresa destruiu as florestasde babaçu por meio de máquinas e do fogo. Emseguida, foi semeado capim para o gado. O fogorepresenta o apagamento dos vestígios, das mar-cas da cultura e do modo de vida. Por esta razão,trata-se de uma prática empregada pelos pistoleirossob o mando das grandes empresas e dos latifun-diários. Quanto aos camponeses expropriados deoutra fazenda, denominada Campestre, de 40 milhectares, os depoimentos revelam que a violência,além da destruição material e até mesmo impingindoa morte aos camponeses, produz-lhes o medo, cujadurabilidade impede a ação de resistência, em mui-tos casos. No caso dessa fazenda, em razão do mo-vimento de resistência, uma área de 14.402 hecta-res foi desapropriada pelo INCRA e o Assentamen-to em 2007 estava se iniciando (Silva, 2010).

Esses fatos são fundamentais para a com-preensão do processo de acumulação por espolia-

ção, tendo em vista que a maioria dos camponesesexpropriados se transforma, de um dia para ou-tro, em migrantes e cortadores de cana em São Pau-lo. Por outro lado, as áreas, antes destinadas à pe-cuária do estado de São Paulo, em virtude do au-mento da renda da terra, são vendidas ou arrenda-das para a produção de cana, por meio do movi-mento de territorialização do capital, no qual “[...]o gado paulista sobe, enquanto os homens do nor-deste descem” (Silva, p. 77-78, 2008).

No que tange, ainda, ao processo deterritorialização, observa-se que, com a instalaçãode usinas, sobreleva-se o preço das terras, e atémesmo a impossibilidade de muitos pequenosproprietários se dedicarem a outras atividades agrí-colas, forçando-os ao arrendamento ou à venda dasmesmas. Em estudo recente, Melo (2012) consta-tou que muitos sitiantes da região nordeste do es-

12 Pesquisa financiada pelo CNPq e coordenada por MariaAparecida de Moraes Silva.

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tado são obrigados a isso, em virtude de proble-mas como a proliferação da “mosca do estábulo”;o abandono da manutenção das estradas rurais pelausina durante os períodos de entressafra; os pro-blemas causados às pequenas propriedades vizi-nhas às plantações de cana, cujos pastos são afeta-dos tanto pelo depósito de poeira como doagroquímico que é aplicado nos canaviais paramaturação do cultivo e que, ao atingir os pastos,tem o efeito de secá-los. Com o pasto comprometi-do, o gado perdendo peso e diminuindo os rendi-mentos obtidos com o leite ou com a carne, mui-tos sitiantes se viram forçados a arrendar sua pe-quena propriedade.

A (NOVA) MORFOLOGIA DO TRABALHO

As reflexões à luz da crítica do “desenvol-vimento sustentável” da produção sucroenergéticabrasileira, a partir de nossos achados de pesquisaem São Paulo e Alagoas, conduzem-nos, igualmen-te, a outro viés crítico referente às relações de tra-balho. Para esse intento, incorporamos alguns es-tudos realizados em outros países, a fim deaprofundar a compreensão da lógica da acumula-ção do capitalismo contemporâneo globalizado.

Ao cotejarmos a realidade brasileira comaquela de outros países, observamos que há vári-os pontos em comum, ainda que nesses últimosos trabalhadores sejam imigrantes, portanto, trata-se da mobilidade internacional do trabalho. Tantoem países da América Latina, tais como Argentinae México, como na Espanha, observa-se que areestruturação produtiva no campo seguiu a viada flexibilização produtiva e das relações de traba-lho (De La Garça, 2000). Há a mesma lógica impos-ta pelo modelo agroalimentar globalizado, onde asagriculturas intensivas ou enclaves de exportaçãoutilizam mão de obra migrante ou imigrante, pormeio de contratos temporários regulados pelos res-pectivos Estados (Flores, 2010). No que tange àscondições de trabalho, verificam-se os mesmos tra-ços: precarização, salários baixos, flexiblização,etnificação, discriminação de gênero, precarieda-

de das condições de moradia (Grammont; Flores,2010). Há, assim, impedimento da vida em famí-lia, haja vista que o contrato é individual, além docontrole policial exercido sobre os imigrantes paraque retornem aos seus lugares de origem no finaldo contrato.

O dossiê da Revista Regiones (2012),publicada na Espanha, sob o título Mercados de

trabajo en la agricultura mediterrânea, reúne arti-gos que tratam das questões acima analisadas nasplantações de hortaliças e morango nas regiões deMurcia e Andalucía. A produção é destinada àexportação para os demais países europeus. Em-pregam-se basicamente imigrantes – as mulheressão em maioria – provenientes do Leste Europeu,da África Central, Marrocos, Equador e Bolívia.As relações de trabalho nessas plantações, segun-do os autores, segue o modelo californiano, isto é,precariedade combinada ao avanço tecnológico e àreestruturação produtiva (Cánovas, 2012, p. 16-20). Essas imigrações são ordenadas e ascontratações em geral são feitas na origem. O go-verno espanhol, visando resolver os problemas dademanda de mão de obra, em 2000, implantou osistema de Contratação na Origem, pelo qual ospaíses da Europa do leste eram os principais for-necedores de trabalhadores para a região deAndalucía. Em 2007, os maiores fluxos eram pro-venientes de Marrocos. A investigadora Reigada(2012, p. 22-26) mostra que a preferência por mu-lheres marroquinas deu-se em virtude de se tratarde uma força de trabalho mais barata. No entanto,no período de 2008 a 2010, em razão da crise eco-nômica na Espanha e o regresso de famíliasandaluzes ao campo, houve a diminuição da pre-sença do número de imigrantes marroquinos esubsaarianos. Para os empresários, governo e re-presentantes sindicais, esse modelo de imigraçãoordenada e temporária é o ideal, pois evita a pre-sença dos ilegais e resolve a questão da demandade força de trabalho nessas plantações.

A política estatal de Contratação na Origemé uma forma evidente de controlar o quantum detrabalhadores necessários à execução de tarefas tem-porárias, por meio de critérios seletivos como gê-

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nero, etnia, idade e, também, garantir o retorno aopaís de origem após o final dos contratos de traba-lho. No caso das mulheres, há a preferência poraquelas com filhos, pois o retorno ao país de ori-gem é mais garantido, em razão do reencontro comos filhos, vis-a-vis os empresários espanhóis.Reigada (2012, p. 25) critica a imagem e o discursodos empresários de que a Contratação na Origem,com a obrigatoriedade de firmar o compromissode retorno, se apresente sob uma “gestão ética ehumana da imigração”.

Por outro lado, a pesquisa de Rodriguez(2011) revela o papel de outro agente importanteneste processo de regulação, o sindicato. Nas plan-tações de frutas catalãs, o sindicato agrícola Unió

de Pagesos é o responsável pelo recrutamento detrabalhadores imigrantes na origem e também pelocontrole despótico exercido sobre os mesmos nosalojamentos nas áreas agrícolas da Catalunha. Aautora, baseando-se nas reflexões foucaultianas,desenvolveu uma singular pesquisa etnográfica nosalojamentos, concluindo que os encarregados,nomeados pelo sindicato para exercerem o contro-le e a disciplina, assemelham-se aos capatazes deescravos da época da Roma antiga. Na verdade, oajuntamento dos imigrantes nos alojamentos criaas condições para o exercício do poder coletivosobre eles, tornando-os dóceis e domesticados paraa aceitação das regras impostas pelos empresários.Os alojamentos se assemelham às prisões, ondeocorre a “gestão fordista dos homens”, produzidapelo Sindicato. Essa autora se refere ao alojamentocomo exemplo de Instituição Total descrita porGoffman.13 Para aqueles que resistem, a única saí-da é a fuga, transformando-se em ilegais, sujeitos àperseguição policial. Caso sejam aprisionados,antes de serem extraditados para seus países deorigem, são submetidos às leis do estatuto do es-trangeiro irregular, pelas quais são enviados a tra-

balhos forçados nos setores produtivos menos ren-táveis da economia. Assim, essas práticas, apro-vadas pelo Parlamento Europeu, resultam da de-bilidade do estado Social e Democrático de Direitoimperante na Espanha. Com isso, o Estado elimi-na a figura do estrangeiro nômade, que circulavaem busca de trabalho nos municípios frutícolas,cerceando o direito de ir e vir consagrado na Cons-tituição burguesa desde a Revolução Francesa nosfinais do século XVIII.

Cada vez mais essas normativas vão se con-figurando como um fenômeno global. Outro paísonde a regulação das relações de trabalho pelo es-tado tem sido posta em prática nas últimas déca-das é o México. Vários programas foram assinadosentre os governos do México, EUA e Canadá, taiscomo: H2-A (entre México e EUA); o Programa de

Trabalhadores Agrícolas Temporários – PTAT –,firmado entre México e Canadá em 1974 (Binfordet. al., 2004). Contrariamente ao que ocorre comas migrações desreguladas internas e asindocumentadas aos EUA, as migrações para oCanadá são estritamente reguladas para impedirdesajustes entre oferta e procura de mão de obra.Diferentemente do Programa Bracero (1942-1964)entre México e EUA, cujas falhas ocorreram emrazão da deserção dos trabalhadores, o Programacom o Canadá possui as seguintes características:retorno da maioria dos imigrantes a seus locais deorigem; provimento da agricultura canadense demão de obra barata, flexível e temporária (Quintana,2003, p. 1). Trata-se, portanto, de uma imigraçãocontrolada e temporária, cujo crescimento foi ex-pressivo com o passar dos anos. Esse mercado detrabalho não somente é regulado quantitativamente,como, também, por meio de critérios seletivos re-lativos ao gênero e etnia. As mulheres viúvas emães solteiras são as preferidas pelos empresárioscanadenses, sem contar a discriminação que ho-mens e mulheres sofrem pelo fato de desconhece-rem os idiomas francês ou inglês e por não serembrancos. O processo de trabalho é rigorosamentecontrolado; as condições de trabalho são marcadaspelo desgaste físico em razão da postura corporal,pois recolhem o morango agachadas ou sentadas

13 A análise dos alojamentos como forma de controle edisciplina da força de trabalho no tempo de trabalho e denão trabalho foi realizada por Menezes (2002) para ocaso dos trabalhadores migrantes do Estado da Paraíbaem usinas do Estado de Pernambuco. Análise similar foielaborada por Cover (2011) para alojamentos de traba-lhadores migrantes paraibanos em usinas da Região deCampinas e Piracicaba, Estado de São Paulo.

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no chão durante jornadas de 10 a 12 horas pordia. Nos alojamentos, há o controle de hábitos,moral e sexualidade (Quintana, 2006). Após o tra-balho de três a cinco meses, os (as) trabalhadores(as) são obrigados (as) a retornar aos seus locais deorigem para, em seguida, imigrarem no ano seguin-te, configurando-se, assim, a imigração permanen-temente temporária. Em razão do tempo de dura-ção desse fenômeno, há, por parte dos empresári-os, a preferência pelos (as) mesmos (as) trabalha-dores (as), cujas condutas lhes são condizentes,selecionando-os (as) pelos respectivos nomes. Esseé mais um fator para a garantia da oferta de traba-lho, segundo suas necessidades, sem, contudo,arcarem com os custos de reprodução dessa forçade trabalho, haja vista que esses homens e mulhe-res não possuem os mesmos direitos sociais elaborais vigentes no Canadá.

Flores (2008) mostra que a ação sindical épraticamente nula no processo migratório no Mé-xico. Ademais, no mesmo estudo, a autora questi-ona a existência do trabalho decente no México,mostrando, ao contrário, que lá predominam tra-ços de vulnerabilidade, precarização e eterna cir-culação nacional e internacional de trabalhadorespara os enclaves agroalimentares globais.

Outros autores têm demonstrado que omodelo de agricultura intensiva de exportação con-tinua sendo considerado como elemento de de-senvolvimento e modernização (Ramirez e Olaizola,2012, p. 5), ao mesmo tempo em que oculta astransformações nas cadeias agrícolas globais e suasconsequências em diferentes âmbitos: a estruturado mercado de trabalho, a relação com o território,os movimentos migratórios e as formas de organi-zação da vida social.

As referências, ainda que incompletas, darealidade laboral de outros países, reforçam o ar-gumento de que a lógica da acumulação do capita-lismo contemporâneo é a mesma nos diferentespaíses, ainda que as particularidades históricassejam diferentes. Assim sendo, notamos que oprincípio da contratação na origem dos trabalha-dores migrantes é fundamental para garantir a for-ça de trabalho imigrante ou migrante nos enclaves

produtivos, com o aval dos Estados.No caso brasileiro, a normativa institucional

que rege a contratação na origem é o Compromisso

Nacional para Aperfeiçoar as Condições do Trabalho

na Cana de Açúcar, firmado em 2009 pelo governofederal, representantes dos trabalhadores rurais e dasusinas. Este documento revela que, nos canaviaisbrasileiros, se estabelece o controle do mercado detrabalho e da gestão das relações de trabalho peloestado e pelas empresas, consubstanciando-se odeclínio do poder sindical. Pelo Compromisso, afiscalização das relações de trabalho cabe às pró-prias empresas, retirando dos representantes dostrabalhadores essa função, haja vista que, sequerpodem adentrar os locais de trabalho semcredenciamento ou prévia autorização dos patrões,buscando soluções conjuntas para possíveis pro-blemas. Consubstancia-se, assim, o rearranjo dasrelações de força e dos conflitos, caracterizado nãosomente pelo enfraquecimento do poder dos sindi-catos, mas, também, pela desconstrução dos confli-tos de classe, agora tratados em mesas de diálogos ede negociações tripartites. Ao invés da verticalização,observa-se a horizontalidade das relações de classe,por intermédio da fabricação de novas matrizesdiscursivas e novas práticas. E mais ainda: esse“modelo” horizontal deveria servir de exemplo paraoutros países da América Latina produtores de açú-car e etanol.

O item referente à contratação na origemcorrobora o controle do mercado laboral pelasempresas e impede que as famílias dos trabalha-dores também migrem, posto que o contrato é in-dividual. Após serem selecionados, os trabalha-dores são transportados pelas usinas e destinadosaos alojamentos (nas áreas da cana) ou nas chama-das “casas da usina” (nas cidades), onde a presen-ça das famílias é proibida.

Uma vez apresentado o debate sobre as re-lações de trabalho no contexto da agriculturaglobalizada, retomaremos o caso brasileiro para darvisibilidade aos trabalhos desenvolvidos em di-versas frentes nos canaviais paulistas e alagoanos.Tanto o modelo de agricultura intensiva de expor-tação, como a nova “ideologia do etanol” brasilei-

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ra, reforçam, em seu discurso, o uso intenso dealta tecnologia nos maquinários empregados noscampos. No que diz respeito ao emprego das má-quinas para o corte de cana-de-açúcar, em ocasiãoda entrevista com o gerente de usina de álcool dointerior paulista, foi possível identificar o discur-so do elevado emprego de maquinaria na colheitada cana-de-açúcar, como pode ser verificado naslinhas que seguem:

Lúcio: Pensando no tema do corte manual, a gen-te vê que cada vez tem menos cortadores de cana...Cleiton:14 A tendência é acabar. Acabar não. Anoque vem, provavelmente, a maioria das usinasestarão 100% mecanizadas. Nós vamos ser mes-mo uns dos que vai estar. Ou até a partir de agos-to, 100% mecanizado (...). A tendência é essa, amão de obra está muito difícil e caro de se traba-lhar. Qualquer coisinha o pessoal faz greve aqui,greve ali... E outra coisa, tem que respeitar asNRs 31,15 as leis trabalhistas... Então hoje é me-canização. E outro fato: não vai poder queimar.Pode queimar só as canas que você já tinha anti-ga. Você faz uma programação, manda pra Se-cretaria do Meio Ambiente, pede autorização praqueimar. Nós não fazemos nada sem autorizaçãodo Meio Ambiente. Nada. Tem que pedir anteci-pada a autorização com 72 horas, eles liberam,você tem que ver temperatura, umidade relativado ar... Então é uma coisa bem criteriosa (Entre-vista realizada em julho de 2012, no escritóriode uma usina na região de Fernandópolis/SP).

No transcorrer da narrativa do gerente dausina, fica claro, não só o discurso da colheita to-talmente mecanizada, como, também, a preocupa-ção com a questão ambiental, que levaria a empre-sa a tomar a decisão de interromper o corte manu-al de cana-de-açúcar. Entretanto, no mesmo trechodestacado de sua narrativa, é possível encontraroutras justificativas que passam pela questão fi-nanceira e os custos de se manter uma quantidadegrande de trabalhadores, fazendo cumprir as legis-lações trabalhistas. Em outro momento da conver-sa, o gerente da usina afirma que, segundo cálcu-los realizados pela empresa, o trabalho mecaniza-do representa uma economia de três a quatro reais

por tonelada quando comparado ao corte manualda cana. Na narrativa de Cleiton, os trabalhadoresempregados na colheita manual são invisibilizados,assim como os migrantes:

Lúcio: Tem outra coisa que a gente queria saber:os cortadores de cana não estão mais encontran-do trabalho e a gente queria saber se essa migra-ção diminuiu ou se eles continuam migrando,mas agora para outras atividades.Cleiton: Olha, eu posso falar da nossa região. Nóstemos três municípios que trabalham com a gen-te. O operador, esse pessoal que tá no corte aí, épessoal da região, pessoal antigo que está aquicom a gente.Lúcio: Ah, é pessoal daqui mesmo da região. Temessa característica, então?Cleiton: É. Não temos ninguém de fora. (Entre-vista realizada em julho de 2012, no escritóriode uma usina na região de Fernandópolis/SP).

Os migrantes empregados no corte manualde cana-de-açúcar não são os únicos a sereminvisibilizados no contexto do “desenvolvimento”promovido pelo agronegócio sucroenergético, otrabalho das mulheres também é ocultado nessesetor. Esse contexto tem sido apresentado e deno-minado por Silva (2011) como o “trabalho ocultodas mulheres nos canaviais”. Entre outras refle-xões, a autora mostra que as mulheres têm sidoalijadas do trabalho no corte manual da cana-de-açúcar. Muitas delas estão empregadas em ativida-des que são ainda mais invisibilizadas que aque-las realizadas pelos homens nos eitos dos canavi-ais. Muitas das mulheres que são expulsas do cor-te manual de cana-de-açúcar permanecem no setorcanavieiro, sendo empregadas como “faxineiras doscanaviais” (Silva, 2011, p. 28), em atividades comoa bituca, abrir eito e o recolhimento de pedras noscanaviais. Bituqueiras são as trabalhadoras querecolhem, no chão, os restos da cana deixados apóso corte manual e o carregamento pelo guincho. Asmulheres trabalham em dupla, carregando as“bitucas” de cana para a “rua do monte”, de ondeserão levadas para a usina. “Abrir eito significa cortaras fileiras de cana que estão sobre as curvas denível – sulcos feitos para a drenagem das águasfluviais – antes da utilização das máquinas, poisestas só cortam as canas em terras planas” (Silva,

14 Os nomes das pessoas entrevistadas durante a pesquisade campo que são citados nesse texto são fictícios.

15 Norma Regulamentadora 31 - Dispõe sobre a segurançae saúde no trabalho na agricultura, pecuária, silvicultu-ra, exploração florestal e aquicultura.

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2011, p. 26). As mulheres empregadas na “pedra”também fazem a limpeza do canavial, retirando aspedras do campo para que as máquinascolheitadeiras de cana possam passar pelo terrenosem obstáculos.

Há, ainda, outras atividades nos canaviaispaulistas que são camufladas no discurso da “ide-ologia do etanol”, que destaca somente o empregode tecnologias elaboradas. Dentre as tarefas reali-zadas manualmente nos canaviais, podemos citar:a retirada de cercas e divisões de currais de pro-priedades arrendadas recentemente para o plantiode cana-de-açúcar,16 aplicação de veneno utilizan-do bomba-costal para eliminar as casas de formi-gas nos canaviais, aplicação de veneno “mata-mato”para eliminar o colonhão e o cipó,17 plantio e car-pa de árvores plantadas pela usina em áreas dereflorestamento. A realização dessas atividades estáinserida em um contexto hierárquico, na medidaem que as trabalhadoras e os trabalhadores encar-regados de executar as tarefas manuais não rece-bem os mesmos direitos que as demais categoriasde trabalhadores da usina – aqueles são excluí-dos, por exemplo, do convênio médico pago pelaempresa com uma cooperativa de saúde, além dereceber o “vale alimentação” com valor inferior aodos demais trabalhadores. Outras irregularidadespersistem na execução das atividades manuais:

Os trabalhadores da Turma do Veneno realizamsuas refeições vestidos com as mesmas roupascom as quais aplicam os herbicidas, o que apre-senta nítidos riscos de contaminação. As turmasdo trabalho manual cumprem um regime de tra-balho de 6X1 (trabalham de segunda a sábado, efolgam apenas aos domingos), enquanto todas asoutras categorias cumprem um regime de traba-lho de 5X1. Sendo o trabalho agrícola manualpraticamente o único para o qual mulheres sãocontratadas (em menor número também traba-lham no Posto de Gasolina da Usina e noalmoxarifado), e sendo as mulheres frequente-mente as únicas responsáveis pelo trabalho do-

méstico e o cuidado dos filhos, resulta que a re-produção social das famílias destes trabalhadoresé prejudicada e precarizada. As consequênciasinevitáveis deste quadro são: (a) as mulheres ocu-pam todo o domingo com as atividades domésti-cas, não lhes restando tempo para o lazer, a soci-abilidade, o acompanhamento da vida de seusfilhos... (b) como as creches municipais não fun-cionam aos sábados, aquelas mulheres que nãopodem deixar seus filhos sob os cuidados de pa-rentes ou outra pessoa de sua rede de sociabili-dade e confiança, se veem obrigadas a pagar umababá para realizar este trabalho, então, remune-rado, e, desse modo, reduz-se ainda mais seusparcos ganhos. Por estas e outras razões é fre-quente, no discurso das mulheres, a comparaçãode sua situação como de “escravidão”, já que “vi-vem para a Usina” (Trecho do diário de campode Beatriz Medeiros de Melo, julho de 2012).

A sensação de viver como “escravo” tam-bém foi descrita pelos trabalhadores e trabalhado-ras do corte manual de cana na usina onde Cleitontrabalha. Ao contrário do que diz o gerente, a mai-oria das pessoas empregadas no corte manual dacana é proveniente de outros estados brasileiros,como Bahia, Maranhão, Piauí e Alagoas. Muitosdos quais receberam, antes de realizar a viagempara o interior de São Paulo, promessas por parteda empresa de que ficariam em alojamentos provi-denciados pela usina, sem necessitar pagar as des-pesas com aluguel. Entretanto, quando chegaramà região de Fernandópolis se depararam com outrarealidade. Muitos despendem um valor de aproxi-madamente 250 reais para viver em uma residên-cia com instalações bastante precárias, sem camas,com espaço bastante reduzido.

Na ocasião em que as entrevistas foram rea-lizadas, em julho de 2012, encontramos algumasturmas em greve em razão das inúmeras irregulari-dades encontradas na execução da atividade. Umadas trabalhadoras nos apresentou o seguinte rela-to: “o povo diz que a escravidão acabou, mas ain-da não acabou”. A caracterização do trabalho comoescravidão se dá não só pelo fato de a remunera-ção ser bastante reduzida (na safra de 2012 a tur-ma chegou a receber apenas seis centavos pelometro de cana cortada; em outros períodos a tur-ma recebeu de nove a doze centavos pelo metro dacana embolada), mas, também, pela forma

16 Essas tarefas foram encontradas durante incursão emcampo empírico na região de Fernandópolis/SP e descritaspela pesquisadora Beatriz Medeiros de Melo, membro dapesquisa “Novas configurações do trabalho nos canavi-ais. Um estudo comparativo entre os estados de São Pau-lo e Alagoas”, coordenada pela professora Maria Aparecidade Moraes Silva, com o apoio financeiro do CNPq.

17 Tais plantas são consideradas agressivas para o desen-volvimento da cana-de-açúcar.

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desumanizadora como os fiscais tratam os traba-lhadores e as trabalhadoras, comparando-os comanimais. Na imagem do recibo (Figura 1) de umadas trabalhadoras empregadas no corte manual decana-de-açúcar é possível visualizar o valor extre-mamente reduzido pago pela metragem da cana.Há dias em que a trabalhadora recebeu apenas R$7,00.

Os trabalhadores grevistas denunciaram,ainda, as seguintes irregularidades: preço reduzi-do do vale-alimentação (60 reais por mês); a em-presa fazia descontos salariais e do vale-alimenta-ção mesmo quando a falta do trabalhador erajustificada com atestado médico; alguns trabalha-dores tinham que iniciar o corte da cana poucosminutos após a queima do canavial, o que impli-cava a realização do labor sob um calor extrema-mente excessivo. Em razão da intensa mecaniza-ção, é possível constatar que as melhores planta-ções são destinadas às máquinas. Por sua vez, ascanas que estão “deitadas”, desalinhadas, que cres-cem na curva de nível são destinadas aos homense mulheres que têm ao seu lado somente o facãopara “enfrentar” tal atividade, que os suga física eemocionalmente – ao contrário do “palco” prepara-do para a atuação das máquinas, que passam peloscanaviais planos, com o terreno livre das pedrasque as mulheres recolheram anteriormente.

Tamanha intensificação e exploração da for-

ça de trabalho (Silva, 1999, 2004 e 2011; Alves,2007; Verçoza, 2012) ocasionaram inúmeros aci-dentes de trabalho e doenças advindas da ativida-de no corte manual da cana. Um dos trabalhado-res relatou a ocasião em que se feriu gravemente aocortar o próprio dedo com o facão e recebeu porparte da empresa um atendimento após horas desangramento. Ao receber o atendimento, seus cole-

gas relataram ao enfermeiro dausina o que tinha acontecido eque o sangramento estava mui-to intenso. Ao ver o desesperodo trabalhador e seus colegas,o enfermeiro lhes disse: “Cor-tou o dedo, não foi a cabeça”.

O descaso com proble-mas de saúde ocasionadospela atividade também foi re-latado por uma das trabalha-doras: após realizar um exa-me em razão de dores inten-sas na coluna e levar o resul-tado para o médico, recebeucomo resposta a seguinte sen-

tença: “você vai morrer com esse desvio na colu-na”, sem receber a recomendação de qualquer tipode tratamento ou encaminhamento a um afasta-mento por doença adquirida no trabalho.

Durante a realização do corte manual dacana-de-açúcar, muitos trabalhadores são acometi-dos pela chamada “câimbra de nó”.18 Um dos traba-lhadores apresentou a seguinte descrição da sen-sação provocada pela câimbra de nó: “a dor vaientrando pelo pé e aos poucos vai subindo pordentro do corpo como se fosse um inseto. Eu sin-to como se tivesse um bolo se formando no estô-mago, por isso chamam de câimbra de nó”. Umdeles sentiu uma câimbra intensa durante o cortee percebeu que “a morte estava perto e que ela ti-nha uma cara feia”. Seus colegas interromperam otrabalho, solicitando que ele fosse levado para ohospital, mas isso não aconteceu. Alguns dos tra-balhadores estiveram presentes nos canaviais em

18 Outra expressão para se referir às câimbras, além das do“canguru” e “birôla”.

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outros municípios paulistas quando colegas detrabalho faleceram no eito do canavial após sentira “câimbra de nó”. Um deles acompanhou umcolega que perdeu a vida em 2010 no municípiode Monte Alegre:19 “meu colega foi encontrado empé, morreu abraçado com a cana”.

Em meio às narrativas que demonstravam asituação de humilhação no ambiente de trabalho,o tratamento desumanizado era o fio condutor daconversa. Esse teor ficou bastante claro quando asseguintes frases apareceram: “a ordem é acabar como povo”; “O sonho foi entrando por água abaixo”;“O ‘gato’ da usina só quer que a gente morra”; “Ausina só quer ferrar o pobre”; “Ninguém aqui éescravo, ninguém aqui é bicho”.

O cenário de humilhação e desrespeito éconfigurado, também, a partir da relação que seestabelece com os fiscais de turma. Um dos traba-lhadores contou que o fiscal de turma os tratavade forma bastante hostil, exigindo que intensifi-cassem o ritmo da produção. Esse mesmo fiscalameaçou um trabalhador maranhense de morte,dizendo a ele que, se não trabalhasse direito, vol-taria para sua terra “com o paletó de madeira”.

Assim, os elementos apresentados pelos tra-balhadores e trabalhadoras, tais como a elevadaexploração da força de trabalho, o tratamento de-sumano, a humilhação nos eitos de cana e a com-paração com animais e escravos, nada disso pare-ce combinar com a imagem de grandeza e a“sustentabilidade” que caracterizam o “desenvol-vimento” gerado pelo setor sucroalcooleiro. Naspróximas linhas, recorreremos à realidade dos ca-naviais alagoanos para trazer mais experiências quedestoam da grandeza da “ideologia do etanol”.

No tocante aos canaviais de Alagoas, na safra2012/2013, a agroindústria canavieira alagoana con-tou com o uso de 50 máquinas colheitadeiras (todasoperando em parte das terras planas dos tabuleiros).20

O processo de mecanização do corte encontra-se emfase embrionária quando comparado ao de São Pau-

lo.21 O plantio de cana em vastas áreas de topografiaacidentada – sobretudo no norte do estado – é umdos fatores que dificulta (ou inviabiliza) um maciçoprocesso de mecanização da colheita em curto prazo.Em algumas dessas áreas, consideradas até o mo-mento como inacessíveis às modernas máquinascolheitadeiras (guiadas por GPS, equipadas de arcondicionado e movidas com tração por esteiras),ainda transitam burros e mulas carregando cana (gui-ados por cambiteiros, que se abanam com o chapéu,e movidos por tração animal). O cambiteiro é o traba-lhador “que vem com um burro com cangalha, e levaa cana até onde o caminhão está, e depois o cami-nhão leva para a usina”.22

O serviço de cambitagem, que, com a deca-dência dos engenhos, parecia condenado à extinção,continua usual em algumas encostas de Alagoas.Como um transporte que ainda requer amarraçãode feixes de canas cortadas, que, em cada viagematé o caminhão, leva apenas aproximadamente entre20 e 30 feixes de cana no lombo do burro (emtorno de no máximo 100 kg de cana) pode sobrevi-ver na contemporaneidade? Talvez (a) (o) leitor (a)imagine que esse tipo de transporte sobreviva noséculo XXI por ser essa cana destinada a algumaprodução artesanal de cachaça, à produção de umamercadoria inserida em um pequeno mercado de-veras específico, que, por não encontrar concor-rentes, seria competitiva. No entanto, não é dissoque se trata. A cambitagem em questão não leva acana para um engenho que produz alguma cacha-ça especial, ela transporta parte da cana que éesmagada por uma usina de médio porte deAlagoas.23 A cana transportada nesse serviço decambitagem é transformada em açúcar para ser ex-

19 No município de Monte Alegre a média mínima quecada trabalhador deveria cortar por dia era de 12 tonela-das e meia de cana.

20 Conforme informação concedida pelo coordenador deplanejamento e administração rural de uma usina loca-

lizada na região dos tabuleiros de São Miguel dos Cam-pos, em entrevista realizada no dia 21 de março de 2013.

21 Segundo estimativa do Sindaçúcar/AL, em 2011 o cortemecanizado correspondia a 20% da colheita de canaalagoana (Padilha, 2011), enquanto em São Paulo, deacordo com a União da Indústria da Cana de Açúcar(UNICA), mais 60% da colheita já era mecanizada nomesmo ano.

22 Conforme relato de Iracema, no município de Ibateguara/AL, em 14/06/2012, durante entrevista concedida para aequipe da pesquisa, ”Novas configurações do trabalho noscanaviais. Um estudo comparativo entre os estados de SãoPaulo e Alagoas”, mencionada na nota 15 deste artigo.

23 A referida usina fica localizada na Microrregião Serranado Quilombo dos Palmares, área marcada pela grande

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portado para países de outros continentes, viraálcool, que é vendido nos postos de combustível.

Além do trabalho de cambitagem – que érequisitado em áreas de difícil acesso, onde nem amáquina carregadeira de cana e nem o caminhão

se aproximam –, existe, nas encostas maisíngremes, a embolada da cana. Esse ser-viço consiste em emaranhar as canas queforam cortadas por outros trabalhadorespara rolá-las ladeira abaixo, de modo queelas cheguem até uma área que possa seracessada por máquinas carregadeira oupor animais de tração. Para tal tarefa, otrabalhador utiliza um longo cabo de ma-deira que serve como alavanca para levan-tar as canas, que se amontoam cada vezmais a cada levantada. A atividade con-siste em se agachar, colocar o cabo demadeira embaixo do monte de canas, epuxar o cabo para cima, de modo que omonte de cana seja empurrado para bai-xo. À medida que o trabalhador segueavançando morro abaixo, vai se forman-

do um bolo de cana cada vez mais pesado. Próxi-mo ao pé do morro o esforço é ainda maior. Aembolada termina quando o bolo de cana chega aolocal acessível para os animais ou máquinas. Apóso término da embolada, o trabalhador sobe o mor-

ro para embolar mais cana. A jornada detrabalho segue em desce e sobe, em aga-cha e levanta, em puxa e empurra. Esseciclo se repete até acabarem as canas deembolada.

Em pesquisa de campo realizadaem Ibateguara, município localizado aonorte de Alagoas, pudemos acompanharo dia de trabalho de uma frente de corte,transporte e carregamento da cana.24 Oscanaviais queimados estavam em morrosimensos, alguns trechos eram tão íngre-mes que, como bem expressou um traba-lhador canavieiro: “para subir a rampa,tem que subir de quatro, tem quadra queaconteceu isso, que o trabalhador não temcondições de subir cortando, que é mui-

quantidade de morros e serras. Durante a pesquisa decampo, uma trabalhadora nos informou que todas asfazendas da usina possuem criação de burros. Um mo-rador de uma das fazendas da usina nos relatou que oserviço do cambiteiro é desempenhado por alguns traba-lhadores canavieiros específicos que são deslocados paracambitagem quando existe necessidade desse serviço.

24 A referida pesquisa de campo ocorreu no dia 21 de janei-ro de 2013, no âmbito da pesquisa “Novas configura-ções do trabalho nos canaviais. Um estudo comparativoentre os estados de São Paulo e Alagoas”, mencionadana nota 15 deste artigo.

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to alto”.25 O risco de quedas era grande, não sópela inclinação acentuada ao extremo, mas, tam-bém, devido aos trechos de erosões e cortes nosmorros. Em determinados casos, essas erosõespodem ultrapassar 4 metros de altura. Algunscortadores de cana nos falaram de amigos que já semachucaram em quedas nesses paredões. Os ca-naviais se estendem até à beira dessas aberturas.Nessas condições, é preciso ter muito equilíbrio eperícia para manusear os facões. Além disso, nãobasta ter esses requisitos, é preciso cortar no míni-mo 5,2 toneladas para manter-se empregado nessausina. O calor era enlouquecedor, não havia umasombra. O ambiente era tão hostil que tornava ex-tenuante até a simples tarefa de subir e descer omorro acompanhando o trabalho alheio. A fuli-gem se misturava à poeira que se misturava ao suor.Imagine para aqueles que estavam cortando cana!Imagine para os que as embolavam!

À GUISA DE CONCLUSÃO

Buscamos, nesse texto, fazer vibrar uma vozdestoante da “ideologia do etanol”. Na introduçãode nosso argumento, remontamos à realidade bra-sileira do século XVI para mostrar as interfaces daprodução de açúcar, a escravização de africanos eo desenvolvimento de uma cultura para o enri-quecimento da metrópole. No desenrolar de nos-sas reflexões, procuramos mostrar que alguns ele-mentos, tais como o incentivo do Estado na per-petuação de interesses do capital nacional e inter-nacional, a superexploração da força de trabalho eo discurso do desenvolvimento gerado pelo setorpersistem e marcam a história da produçãosucroalcooleira.

Trouxemos algumas reflexões sobre a (nova)morfologia do trabalho nos canaviais paulistas ealagoanos no contexto do processo de acumulaçãodo capital globalizado. Nosso intento foi no senti-do de desmistificar, a partir de pesquisas empíricasno eito dos canaviais desses dois estados, a ima-

gem do desenvolvimento sustentável dessa pro-dução, bem como a miséria do trabalho que se es-conde atrás das cortinas desse palco. Vimos, tam-bém, que essa miséria se estende a outros países,não sendo, portanto, uma exceção, porém, fazen-do parte da lógica da acumulação por espoliação

do capitalismo contemporâneo.As condições de trabalho nos canaviais não

podem ser simplesmente consideradas precárias,o que seria eufemismo. Consideramos o trabalhosem as máscaras “protetoras” do Estado brasileiro,signatário das Convenções internacionais do cha-mado “trabalho decente”. Não adjetivamos essetrabalho. Apenas revelamos as cruezas de sua es-sência. Esse trabalho nos canaviais das grotas,morros e serras alagoanas e nos planaltos paulistasnos remete ao mito de Sísifo, personagem que foicondenado por Zeus a empurrar uma enorme pe-dra morro acima, porém, ao alcançar o topo, a pe-dra invariavelmente rolaria morro abaixo, fazendocom que o esforço de Sísifo fosse sem fim. Tanto omito de Sísifo, quanto o labor nesses canaviais,apontam quão degradantes são determinadas for-mas de trabalho. No entanto, existe uma grandediferença entre ambos: enquanto o mito de Sísifo éproclamado ao longo de muitos séculos comoexemplo de trabalho abominável, a imagem mas-carada do labor nos canaviais brasileiros é maisuma das falácias que compõe o mito do “desen-volvimento sustentável” do etanol. Resta-nos per-guntar: “Desenvolvimento” de quê? “Sustentável”para quem?

Recebido para publicação em 05 de abril de 2013

Aceito em 11 de junho de 2013

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A IMAGEM DO ETANOL COMO “DESENVOLVIMENTO ...

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Maria Aparecida de Moraes Silva, LúcioVasconcellos de Verçoza, Juliana Dourado Bueno

Maria Aparecida de Moraes Silva – Doutora em Sociologia. Professora livre-docente aposentada da UNESP.Professora visitante do Departamento de Sociologia da UFSCAR. Pesquisadora (1A) do CNPq. Autora, entreoutros, do livro Errantes do fim do século, publicado pela EDUNESP. As linhas de pesquisa se encaixam naSociologia Rural e na Sociologia do Trabalho Rural. Os temas versam sobre trabalho, memória, migração,gênero e raça/etnia, referentes à realidade rural do estado de São Paulo e outras regiões do país.

Lúcio Vasconcellos de Verçoza – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UniversidadeFederal de São Carlos. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Membro dosGrupos de Pesquisa “Terra, Trabalho, Memória e Migração” e “Trabalho e Capitalismo Contemporâneo”. Emsua dissertação de mestrado, analisou o processo de exploração-dominação do trabalho e as formas deresistência construídas pelos trabalhadores nos canaviais de Alagoas. Publicou um capítulo no livro Trabalhoe Capitalismo Contemporâneo. Atualmente, se dedica ao estudo da relação entre trabalho e saúde no univer-so canavieiro.

Juliana Dourado Bueno – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Fede-ral de São Carlos. Membro do Grupo de Pesquisa Terra, Trabalho, Memória e Migração, coordenado porMaria Aparecida de Moraes Silva. Desde 2004, desenvolve pesquisa no interior do grupo na temática dotrabalho rural e relações de gênero. Em sua dissertação de Mestrado pesquisou as trajetórias laborais demulheres e homens empregados em um abatedouro de frangos no interior de São Paulo. Publicou um capítulono livro Questão Agrária e Saúde dos Trabalhadores: desafios para o século XXI. Atualmente, desenvolvepesquisa sobre as experiências de trabalho no processo de produção de flores na região de Holambra (SP).

THE IMAGE OF ETHANOL AS“SUSTAINABLE DEVELOPMENT” AND THE

(NEW) MORPHOLOGY OF LABOR

Maria Aparecida de Moraes SilvaLúcio Vasconcellos de Verçoza

Juliana Dourado Bueno

The aim of this text is to analyze laborrelations and conditions in sugar cane fields whichhave resulted from the labor reconfiguration processas related to the current situation of intensifiedmechanization of the sugar cane harvest. Due tothe rapid changes which have occurred in theharvest, we feel that these labor relations must beanalyzed within the context of the “sustainabledevelopment” image projected by sugar and ethanolcompanies and by the Brazilian government.Intensification of the exploitation of the work for-ce in the setting of a (new) morphology combineshighly advanced technology with increasing under-qualification of the labor force. These reflectionswill aim to bring to the surface the social realityhidden behind the ideology fabricated to sustainthis economic activity. We seek a critical analysisof the developmentalist ideology inherent to thistype of production. The methodology employedis based on oral history and direct observation inthe sugar cane fields of the states of São Paulo andAlagoas.

KEY WORDS: Labor relations. Working conditions.Capitalism in the fields. Sugar cane.

L’IMAGE DE L’ÉTHANOL EN TANT QUE“DÉVELOPPEMENT DURABLE” ET LA

(NOUVELLE) MORPHOLOGIE DU TRAVAIL

Maria Aparecida de Moraes SilvaLúcio Vasconcellos de Verçoza

Juliana Dourado Bueno

Le but de ce texte est d’analyser les relationset les conditions de travail dans les plantations decanne à sucre, suite au processus de reconfigurationdu travail et au moment actuel, caractérisé parl’intensification du processus de mécanisation dela coupe de la canne à sucre. En raison de la rapiditédes changements dans le processus de ce travail, ils’avère que ces relations de travail doivent être analyséesdans le contexte de l’image de “développementdurable” produite par les fabriques de sucre et d’alcoolet par l’Etat brésilien. L’intensification de l’exploitationde la main d’œuvre dans le cadre d’une (nouvelle)morphologie associe, d’une part, des technologiesde pointe et, d’autre part, l’augmentation d’un man-que de qualification de la main d’œuvre. Lesréflexions faites essaient de mettre en lumière laréalité sociale qui se cache derrière une idéologiefabriquée pour soutenir cette activité économique.On cherche à faire une analyse critique de l’idéologiedu développement liée à cette production. Laméthodologie utilisée se base sur la tradition oraleet l’observation directe dans les plantations de canneà sucre des états de São Paulo et d’Alagoas.

MOTS-CLÉS: Relations de travail. Conditions detravail. Capitalisme à la campagne. Canne à sucre.

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Paulo Eduardo de Andrade Baltar, José Dari Krein

A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO DOMERCADO DO TRABALHO NO BRASIL

Paulo Eduardo de Andrade Baltar*

José Dari Krein**

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O artigo estabelece uma relação entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo no Brasil e osdesafios para a discussão de uma regulação pública do trabalho. O debate no Brasil consideraos seguintes aspectos: 1) as mudanças no capitalismo contemporâneo vêm apresentando impli-cações desfavoráveis à regulação pública do trabalho e à ação coletiva dos trabalhadores; 2) aretomada do crescimento da economia possibilitou redefinir os termos do debate do trabalhono Brasil; 3) a crise atual coloca em discussão a possibilidade de o Estado ter um papel maisativo no desenvolvimento da economia; 4) as tendências demográficas vêm aumentando o pesoda PEA adulta, o que traz implicações para o funcionamento do mercado de trabalho. Asposições se localizam entre dois polos: 1) a defesa de uma estruturação do mercado de trabalhocom implicações na qualidade das relações sociais; 2) a afirmação dos negócios, que destaca anecessidade de maior flexibilização na contratação, no uso e na remuneração do trabalho.PALAVRAS CHAVES: Trabalho. Regulação. Economia e desenvolvimento. Flexibilização.

INTRODUÇÃO

As discussões sobre mercado e relações detrabalho no Brasil envolvem velhas e novas ques-tões. As velhas questões referem-se à história dotrabalho no país, em que o processo deassalariamento não constituiu um sistema univer-sal de direitos. A proteção social tem sido umarealidade apenas para segmentos da sociedade,dado o excedente estrutural de força de trabalho, osignificativo número de trabalhadores sem regis-tro em carteira profissional, o elevado contingentede autônomos sem acesso à seguridade social e aexpressiva fração da população ativa trabalhandosem remuneração em negócios de outros membrosda família. Ou seja, o mercado de trabalho assala-riado é pouco estruturado e a proteção social ain-da está em construção. As questões novas do de-bate sobre trabalho e proteção social decorrem da

forma como o Brasil se inseriu recentemente noprocesso de globalização e internacionalização dasatividades produtivas e de como as mudançasprovocadas pela abertura econômica e financeiraredefiniram a agenda de discussão sobre mercadoe relações de trabalho.

O impacto inicial da abertura da economiasobre o emprego foi muito forte. Devido à crise dadívida externa na década de 1980, o consumo foicontido, o investimento diminuiu, a importaçãorestringiu-se a um mínimo e o país ficou fora daconstrução das cadeias internacionalizadas de pro-dução de bens manufaturados. Ao abrir-se ao co-mércio e à finança internacional em um momentode grande interesse por aplicações financeiras emmercados emergentes, o desempenho da econo-mia foi beneficiado, aumentando o consumo e di-minuindo a inflação, com forte aumento de im-portações de bens manufaturados. A valorizaçãoda moeda nacional ajudou a baixar a inflação, masacentuou os efeitos destrutivos da abertura sobre aprodução manufatureira doméstica, rompendo elosdas cadeias produtivas existentes, e o país conti-nuou fora das principais cadeias internacionaliza-

* Doutor em Ciência Econômica. Professor Associado da Uni-versidade Estadual de Campinas – UNICAMP.Cidade Universitária Zeferino Vaz Barão Geraldo. Cep:13083970 – Campinas – São Paulo – Brasil – Caixa-postal:6135. [email protected]

** Doutor em Economia Social e do Trabalho. Professor daUniversidade Estadual de Campinas. [email protected]

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das de bens manufaturados. As crises financeirasdos mercados emergentes (México em 1994/1995,países da Ásia em 1997, Rússia em 1998 e Brasil em1999) agravaram a deterioração do mercado de traba-lho, porque levaram o governo a estabelecer uma taxade juros elevada e a conter a atividade econômica.

O aumento do desemprego aberto, a redu-ção do emprego formal, principalmente nas gran-des empresas, a ampliação do número de assalari-ados sem carteira profissional, notadamente nasempresas menores e no serviço doméstico remu-nerado, a elevação da participação das pessoas ati-vas no trabalho por conta própria e no trabalhonão remunerado, dominaram a agenda de debatessobre mercado e relações de trabalho na década de1990. A posição de resistir à inserção passiva naglobalização, com uma interferência estatal maisfirme na economia, para ter uma melhor evoluçãodo emprego e da renda do trabalho foi vencidapela posição que enaltecia os efeitos de uma aber-tura brusca e indiscriminada para acirrar a compe-tição e promover a eficiência no uso dos recursosexistentes. O predomínio dessa posição restringiua agenda de discussões sobre mercado e relaçõesde trabalho à questão da adaptação das normas einstituições à abertura da economia, sob o argu-mento de que essas normas e instituições teriamsido construídas para uma economia fechada eestariam prejudicando a incorporação dos efeitosvirtuosos da abertura sobre a concorrência e ummelhor uso dos recursos.

A abertura comercial e financeira, entretan-to, expôs o país às vicissitudes do sistema finan-ceiro globalizado, marcadas pela instabilidade dadécada de 1990, quando se incorporou os diver-sos mercados emergentes. A alternância de fortesentradas e saídas de capital perturbou o funciona-mento da economia brasileira, motivando inten-sas flutuações nas taxas de juros e de câmbio, agra-vando os efeitos da abertura sobre o emprego e arenda do trabalho. Na visão predominante, porém,o mau desempenho do emprego e da renda dotrabalho foi atribuído à inadequação das normas einstituições que regem a contratação, o uso e a re-muneração da força de trabalho, que não estariam

induzindo a um comportamento apropriado detrabalhadores e empregadores, prejudicando osefeitos da abertura e de maior eficiência no usodos recursos.

Os equívocos desta posição nos debatessobre mercado e relações de trabalho no Brasil tor-naram-se evidentes quando a situação internacio-nal ficou mais favorável às exportações, a partir de2003. O crescimento do PIB levou a um aumentodo emprego formal, diminuindo a participação naabsorção das pessoas ativas do emprego sem car-teira profissional e dos trabalhos por conta pró-pria e não remunerado. Neste quadro de melhorado mercado de trabalho, a queda da inflação foiacompanhada de um aumento do poder de com-pra da renda do trabalho. Tudo isso ocorreu semmudanças nas normas e instituições que regem acontratação, o uso e a remuneração do trabalho.

Em um ambiente político mais favorável aostrabalhadores, os efeitos positivos do desempenhoda economia sobre o emprego e a renda do traba-lho foram ampliados pela valorização do saláriomínimo e pela implementação de um amplo con-junto de políticas sociais. Entretanto, as mudan-ças recentes na organização da produção, que ten-dem a uma maior desverticalização e flexibilidade,colocam uma série de desafios novos a serem en-frentados pela regulação pública do trabalho. Oequacionamento adequado desses problemas foiprejudicado pelos acontecimentos da década de1990. O mau desempenho do mercado de traba-lho e o quadro político existente enviesou a dis-cussão sobre regulação do trabalho. A crise mun-dial recolocou a questão da necessidade de inter-ferência estatal para construir uma economia maissólida e poder ter uma melhor evolução do empre-go e da renda do trabalho.

A redefinição da agenda de debates sobremercado e relações de trabalho no Brasil é o objetodeste artigo. O texto contém três partes, além daintrodução e das considerações finais. Na primeiraparte, é apresentado, brevemente, o padrão maisregulado de relações de trabalho dos países desen-volvidos e as alterações que ocorreram no centro docapitalismo, a partir da reorganização da economia

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mundial após a crise da década de 1970. Este qua-dro de mudanças constituiu um ambiente desfa-vorável às ações coletivas dos trabalhadores, emconsequência da descentralização1 e flexibilizaçãodas relações de trabalho. A segunda parte abordaas mudanças na economia brasileira a partir dainserção na globalização. Foi nesse contexto que aagenda da descentralização e flexibilização das re-lações de trabalho foi introduzida no debate nacio-nal. O quadro de crescente desemprego foi agrava-do pelo aumento da ilegalidade na contratação daforça de trabalho. Os termos do debate, então, fo-ram marcados pelo mau desempenho do empregoe da renda do trabalho. A posição que predomi-nou privilegiou a questão das mudanças nas nor-mas e instituições que regem a contratação, o uso ea remuneração da força de trabalho. A terceira par-te, finalmente, trata da redefinição dos termos des-se debate com a volta do crescimento econômico emelhora dos indicadores do mercado de trabalho.As mudanças na organização da produção colocamdesafios para a regulação pública do trabalho, queprecisa ser capaz de fazer com que essas novas ten-dências não resultem em precarização das condi-ções de emprego, permitindo dar continuidade àmelhoria dos indicadores do mercado de trabalho.

CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: implica-ções desfavoráveis aos trabalhadores

As implicações desfavoráveis aos trabalha-dores das mudanças observadas no capitalismodesde meados da década de 1970 são ressaltadaspelo contraste com o que se verificou nos paísesdesenvolvidos, especialmente da Europa, ao lon-go dos anos 1950 e 1960, quando ocorreu um cír-culo virtuoso de avanços na economia e no social.Nesse círculo virtuoso de avanços econômicos esociais destacou-se a atuação de estados nacionais,apoiando o desenvolvimento da produção de bens,

a construção de grandes aparelhos de prestaçãode serviços em áreas como educação, saúde eseguridade social e a constituição de uma regulaçãopública do trabalho2 (Oliveira, 1994).

O desenvolvimento de sistemas nacionaisde produção de bens, acarretando aumentos ex-pressivos de produtividade, foi fundamental paraviabilizar a ampliação do consumo privado e pú-blico de bens e serviços. Nesse avanço dos siste-mas nacionais de produção, o comércio com ou-tros países desempenhou papel complementar,acentuando os ganhos de produtividade e man-tendo relativo equilíbrio nos aumentos de expor-tação e importação. Para esse desenvolvimento daprodução nacional com equilíbrio no comércio comoutros países foi importante a estabilidade, em ní-vel adequado, das taxas de câmbio entre as moe-das dos diferentes países (Belluzzo, 2004).

O desenvolvimento da produção de bens eserviços ocorreu com crescente participação dosserviços na absorção de força de trabalho e na apro-priação da renda. A construção e utilização dosgrandes aparelhos de prestação de serviços sociais(educação, saúde e seguridade social) foram fun-damentais para a existência de baixas taxas de de-semprego da população ativa nos anos 1950 e 1960(Gimenez, 2003).

O crescimento do PIB – bem acima do cres-cimento do emprego – e a ampliação da carga tri-butária fizeram o aumento da arrecadação dos im-postos acompanhar as despesas do Estado, evi-tando déficit fiscal e aumento da dívida pública.

Além da ampliação do consumo público debens e serviços, houve aumento do consumo pri-vado. A segurança proporcionada pelo acesso aosserviços públicos, pelo pleno emprego e pelosaumentos no poder de compra da renda do traba-lho, apoiado pela regulação pública do trabalho,levaram as famílias a antecipar as compras de bens

1 Descentralização das relações de trabalho em que a de-terminação das condições de contratação, uso e remu-neração do trabalho tende a ser realizada no âmbito dasempresas, em detrimento das negociações gerais por se-tor econômico.

2 Por regulação pública do trabalho compreende-se que adeterminação das regras e normas que regem a relação deemprego é realizada pelo Estado e/ou pela negociaçãocoletiva entre os agentes sindicais de trabalhadores eempregadores. Em contraposição, há a regulação priva-da, em que a determinação realiza-se pelo mercado oupelo poder discricionário do empregador (Krein, 2007;Dedecca, 1999).

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de consumo, através do endividamento. O baixonível das taxas de juros e o aumento de renda nociclo de vida das pessoas facilitaram a ampliaçãodo grau de endividamento das famílias e a manu-tenção de baixos níveis de inadimplência. Aregulação pública do sistema financeiro, procuran-do preservar baixas taxas de juros, foi fundamen-tal para que os financiamentos, não somente doconsumo, mas também da produção e do investi-mento, ocorressem em moedas nacionais e comprazos e taxas adequadas.

A atuação dos Estados nacionais foi, então,fundamental para o círculo virtuoso de avançossociais na Europa, depois da Segunda GuerraMundial. A ordem econômica, constituída depoisde Bretton Woods e em meio à guerra fria, permitiuexpressivo grau de autonomia de ação aos EstadosNacionais. Na Europa, essa capacidade de açãoautônoma do Estado Nacional se materializou po-sitivamente para o avanço econômico e social cons-tatado, porque coalizões políticas domésticas res-paldaram aquela atuação, mesmo quando se suce-deram governos articulados por diferentes forçaspolíticas (Belluzzo, 2004).

Uma vez completadas as construções dossistemas nacionais de produção e dos aparelhosde prestação de serviços sociais, os ritmos do in-vestimento e do crescimento do PIB tenderam adiminuir, problematizando a continuidade do cír-culo virtuoso do pós-guerra. Na culminação dessaonda de crescimento e antes do seu arrefecimento,os protestos sociais, do final da década de 1960,evidenciaram a insatisfação, principalmente, deuma juventude bem mais educada do que a gera-ção anterior, com os valores e padrões de compor-tamento que se consolidaram em uma sociedadede massa mais regulada e burocratizada. Simulta-neamente, houve uma deterioração nas relaçõesentre estados nacionais que levou a uma rupturada ordem internacional construída a partir deBretton Woods.

A desaceleração do PIB em meio à crescentedesordem internacional, acompanhada do aumentode preços das commodities – destacando-se aquadruplicação do preço do petróleo –, levou ao

aumento do desemprego e da inflação, minando,na década de 1970, a base das coalizões políticasque sustentaram a ação dos Estados Nacionais nasdécadas anteriores. A desordem internacional aba-lou a hegemonia americana no concerto das na-ções ocidentais. A maneira como os Estados Uni-dos reagiram ao enfraquecimento de sua hegemonia,no final dos anos 1970, impulsionou a globalizaçãofinanceira e internacionalização da produção, emmeio a importantes avanços técnicos e mudançasna organização da produção de bens e prestaçãode serviços (Belluzzo, 2004).

A nova ordem internacional, que resultou dareafirmação da hegemonia dos Estados Unidos atra-vés da globalização financeira e internacionalizaçãodo sistema de produção, reduziu para a maioriados países o grau de autonomia de ação dos Esta-dos Nacionais. Em particular, a facilidade de des-locamento entre países de fundos aplicados nomercado financeiro instabilizou as taxas de câm-bio das moedas dos países, e o comércio entrenações tornou-se desequilibrado e deixou de sermero complemento do desenvolvimento de siste-mas nacionais de produção.

O déficit de comércio dos Estados Unidosimpulsionou a internacionalização da produção debens manufaturados, especialmente o desenvolvi-mento da produção asiática, inicialmente no Japãoe, posteriormente, na Coréia do Sul, Taiwan, naChina e em outros países. A Ásia tornou-se o gran-de fornecedor mundial de produtos manufatura-dos, contribuindo para a redução de seus preçosrelativos e ajudando a manter baixa a inflação.

Em outros países, que não os asiáticos eseus fornecedores de matéria prima, o PIB passoua crescer de forma mais lenta e a carga tributáriadeixou de aumentar. A arrecadação de impostos,então, reduziu o ritmo de ampliação. As despesasdo Estado continuaram aumentando em ritmo for-te com a ampliação e diversificação das demandaspor serviços sociais, através das alterações na com-posição etária da população, das mudanças na es-trutura familiar devido à crescente participação fe-minina no mercado de trabalho, do aumento dodesemprego, da diminuição do nível e ampliação

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da dispersão dos salários e da proliferação de rei-vindicações vindas de novos movimentos sociais.Os recursos públicos se mostram insuficientes paraatender às demandas e cresceram os déficits fiscais.A dívida pública aumentou e as despesas financei-ras dos Estados agravaram o déficit do fisco.

Os problemas de financiamento do Estadoforam, inicialmente, contornados pelo crescimen-to dos mercados financeiros com a globalização.Nesse contexto, a inflação diminuiu e o crescimen-to do PIB mostrou-se muito irregular e com ten-dência a ser relativamente pouco intenso. A taxade desemprego continuou elevada e aumentou afração de ocupações não submetidas à regulaçãopública do trabalho. Esta, por sua vez, tendeu adescentralizar, voltando-se para questões maispontuais ao nível da relação de emprego, notan-do-se uma diferenciação de condições de trabalhoe de remuneração dos trabalhadores (Mattos, 2009).

As mudanças na absorção da população ati-va e na regulação do trabalho são manifestações deum contexto econômico de maior instabilidade,menor crescimento e ampliação da exposição àconcorrência internacional. Nestas condições, osempregadores passaram a reivindicar maior liber-dade de ação, o que facilitou a prevalência das te-ses neoliberais e sua difusão na sociedade e noaparelho do Estado.

A demanda pela liberdade do capital paradeterminar as condições de contratação, uso e re-muneração do trabalho ocorreu em simultâneo auma desverticalização da produção de bens e ser-viços, em um quadro de intenso avanço dastecnologias de informação e comunicação. Afinanceirização da economia obrigou a racionalizara produção, visando aumentar a rentabilidade docapital aplicado, mantendo somente os ativos es-tratégicos para o desenvolvimento da empresa erecorrendo mais intensamente a serviços de ter-ceiros (Braga, 2009).

No contexto dessa reorganização econômi-ca e em um quadro político desfavorável aos traba-lhadores organizados, ocorreram transformações naregulação do trabalho, reforçando a tendência deflexibilização e de descentralização das condições

de contratação, uso e remuneração do trabalho. Ocapitalismo globalizado é mais instável e acirra a com-petição. A empresa reclama por maior liberdade deação para poder competir, exigindo mais e compro-metendo-se menos com o bem estar de seus empre-gados (Sennett, 1999; Uriarte, 2000; Krein, 2007).

A demanda empresarial por liberdade deação ocorreu em um contexto de desverticalizaçãoda produção. Paradoxalmente, com a globalizaçãofinanceira e a internacionalização da produção, fu-sões e aquisições de empresas levaram a umaestruturação mundial da competição, com estratégi-as que consideram o conjunto de mercados nacio-nais e não mais cada um deles separadamente. Cadaunidade da empresa, entretanto, mantém somenteos ativos estratégicos para o seu desempenho e re-corre a serviços de terceiros. A busca da flexibilida-de e a descentralização dificultaram ações coletivasmais amplas dos trabalhadores e corroeram as ba-ses da regulação pública do trabalho, que se conso-lidaram no pós-guerra nos países desenvolvidos.

Esses efeitos da reorganização da economiaafetaram os empregados permanentes e temporári-os. Quanto aos permanentes, os empregadoresbuscaram a flexibilidade funcional, ampliando sualiberdade para determinar os elementos centraisda relação de emprego, tais como a alocação detarefas, a jornada e a remuneração do trabalho.

A liberdade para alocar a força de trabalhorefere-se à determinação, sem amarras, das funçõesa serem exercidas pelos empregados, exigindo maispolivalência. A tendência é exigir multifunciona-lidade dos empregados permanentes, controlandosuas atividades por meio de metas e projetos, de-finidos pela empresa, debilitando a relação entreprofissão, tarefas a realizar e remuneração, marcadasno passado por negociação coletiva mais ampla decontratos de trabalho, frequentemente envolven-do a interferência do Estado.

A remuneração do trabalho tendeu a ser maisvariável, ficando cada vez mais vinculada ao de-sempenho do trabalhador, individualmente ou empequenos grupos na empresa. Programas de parti-cipação nos lucros e/ou resultados e remuneraçãopor comissão passaram a ser uma prática corrente

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nos segmentos empresariais mais dinâmicos. Comisso, esvaziou-se a determinação da remuneração pornegociação coletiva mais ampla (Freyninnet, 2006).

A regulação do tempo de trabalho tambémtendeu a ficar mais flexível e adaptada às peculia-ridades da empresa, com a modulação da jornadae o descanso não coincidindo, necessariamente,com os fins de semana. A tendência tem sido afas-tar-se da jornada padrão de 8 horas por dia e 5dias por semana, que contribuiu para estruturaras políticas públicas e a vida das pessoas em soci-edade. Atualmente, prevalece o interesse das em-presas, que ajustam a jornada de acordo com suasnecessidades. O tempo de trabalho não se separamais tão claramente do tempo livre das pessoas eos trabalhadores tendem a ficar mais conectadosao trabalho, mesmo fora dele (Dedecca, 1999).

A flexibilidade funcional dos empregadospermanentes diz respeito ao núcleo estratégico daempresa. A empresa exige o envolvimento dessesempregados na vida da organização, aumentandoo desgaste emocional decorrente da pressão porresultados, em uma situação econômica marcadapela instabilidade e acirramento da competiçãoentre empresas. As consequências referem-se tan-to à insegurança quanto ao futuro profissional comoà proliferação de novas doenças profissionais(Barreto, 2003).

Para a maior parte dos empregados, entre-tanto, prevalece a flexibilidade quantitativa, em quea empresa contrata para a prestação de serviços es-pecíficos e o contrato dura tanto quanto a necessi-dade desses serviços. A variedade de situações temlevado a uma ampla diversidade de contratos (a ter-mo, part time, temporário, subcontratados, especi-al para segmentos da força de trabalho, etc.), au-mentando, expressivamente, a heterogeneidade dosassalariados. Essa heterogeneidade é alavancadapelo avanço da subcontratação e crescente uso deterceiros. Freyssinnet (2006) mostrou como essasnovas modalidades de contratação proliferam naEuropa desde os anos 1980. Assim, a flexibilizaçãoquantitativa proporciona graus adicionais de liber-dade às empresas, ao facilitarem o ajustamento do“volume do pessoal empregado às flutuações da

demanda por seus produtos”. A pressão da con-corrência por maior racionalização da produçãoleva, simultaneamente, a ampliar a flexibilidadefuncional dos empregados permanentes e a flexi-bilidade quantitativa dos empregados temporári-os. Nos dois casos, aumenta-se a intensificaçãodo trabalho, acentuando a redução do custo daprodução (Leal Filho, 1994, p.39). A flexibilidadequantitativa é ainda mais importante em setoresde atividade com expressiva sazonalidade. Emtodo caso, a atividade das empresas tende a sermais instável, em decorrência da maior instabili-dade da demanda dos produtos e do próprio acir-ramento da competição entre empresas. O elevadodesemprego no quadro político hegemônico des-favorável aos trabalhadores organizados temdiversas implicações: 1) aumenta a pressão dasempresas sobre os empregados permanentes paraque obtenha melhores resultados; 2) amplia a fra-ção de postos de trabalho correspondentes a em-pregos temporários; 3) incrementa as diferençasentre os empregados permanentes e temporários.Esta segmentação da classe trabalhadora atinge maiscontundentemente os jovens e as mulheres.

A desverticalização da produção e aflexibilização do trabalho foram acompanhadas deoutros dois fenômenos com efeitos desfavoráveisà situação dos trabalhadores. De um lado, a ampli-ação e diversificação das demandas de proteçãosocial não foram acompanhadas pela elevação dosrecursos necessários para o atendimento dessasdemandas. Uma parte dessas demandas foi cana-lizada para o sistema privado de proteção social,que se desenvolveu como desdobramento do sis-tema financeiro (por exemplo, os planos de saúdee fundos de pensão). De outro lado, os sindicatostiveram dificuldade para encaminhar soluções aosnovos problemas trabalhistas, notando-se uma re-dução do poder de barganha dos sindicatos namaioria dos países (Baglioni, 1994). No pós-guer-ra, a contratação coletiva do trabalho foi parte deum processo virtuoso de estruturação mais amplada sociedade, contribuindo para evitar que aheterogeneidade dos empregos gerados se refletis-se em amplas diferenças de renda do trabalho e

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estilos de vida dos trabalhadores.As leis do trabalho, o sistema de proteção

social e os sindicatos interagiram positivamenteno pós-guerra, ajudando a dar legitimidade à atua-ção do poder público a favor do desenvolvimentodo sistema nacional de produção de bens e servi-ços. Esta construção política da regulação públicado trabalho fez com que a compra e venda da forçade trabalho fosse bastante diferente de uma bolsade mercadoria.3 Oliveira (1994) acrescenta que aregulação pública das relações de trabalho e a ele-vação do padrão de vida dos assalariados são tes-temunho de que foi possível encaminhar, positi-vamente, a luta de classe, compatibilizando o lu-cro das empresas com a melhora de condições devida dos trabalhadores.

A desregulação da economia, o acirramentoda concorrência e a hegemonia política neoliberalcolocaram a agenda de flexibilização do trabalhoinvertendo a lógica de regulação pública anterior-mente prevalecente nos campos econômico, polí-tico e trabalhista. De fato, os anos 1980 representa-ram uma ruptura da regulação social do mercado edas relações de trabalho, procurando restabelecero livre arbítrio dos empregadores na contratação ena determinação das regras de uso e remuneraçãoda mão-de-obra (Krein, 2007; Dedecca, 1999).

A flexibilização do trabalho não somente co-locou em xeque o padrão de relações de trabalhoconstruído no pós-guerra, mas descortinou umaperspectiva de fortalecimento da lógica de mercadona contratação de força de trabalho, que tem se tor-nado mais parecida a uma bolsa de mercadoria.4

INSERÇÃO BRASILEIRA NA GLOBALIZAÇÃO

A maneira como o Brasil se inseriu naglobalização agravou os efeitos desfavoráveis aos

trabalhadores trazidos com as mudanças na orga-nização da produção, promovidas pelo acirramen-to da competição, levando à internacionalizaçãode importantes cadeias produtivas. As vendas dosprodutos finais dessas cadeias internacionalizadasforam as que apresentaram maior ritmo de cresci-mento no capitalismo contemporâneo, sendo ex-pressão do avanço técnico que permitiu a criaçãode uma série de novos produtos. A crise da dívidaexterna e o modo como ela foi enfrentada paralisoua acumulação de capital no país, que ficou defasa-do diante das grandes mudanças ocorridas na orga-nização de bens, ao longo da década de 1980.

A internacionalização dessas importantescadeias de produção de bens fez com que o de-sempenho das economias nacionais, abertas aocomércio e às finanças entre países, dependessemuito da evolução de suas exportações, mesmoquando estas são relativamente pequenas em com-paração com o consumo e o investimento. Para usu-fruir, plenamente, da redução de custo que ainternacionalização da produção de bens trouxe, énecessário que o país tenha capacidade para ampli-ar as suas exportações, de modo a manter sólido obalanço de pagamentos. O contexto pós-abertura,em que a ampliação do consumo e do investimentocontinuam sendo os principais determinantes decrescimento do PIB, acarreta forte aumento da im-portação. Além disso, o financiamento internacio-nal da economia implica expressivos déficits naconta renda financeira do balanço de pagamentos(Baltar, 2003).

A entrada na globalização, de modo a favo-recer o país, exigia a promoção do desenvolvimentode seu sistema de produção de bens, que tinhaficado defasado na década de 1980, de modo agarantir as possibilidades de ampliação da expor-tação e de competição com a importação, para queesta última não aumentasse desproporcionalmente,fazendo com que um expressivo crescimento doPIB pudesse ocorrer com um balanço de pagamen-to sólido. Isto não foi feito. As cadeias internacio-nais de produção de bens foram estruturadas porgrandes empresas transnacionais. A liberalizaçãoda importação no Brasil foi indiscriminada e sem

3 Nas palavras de Esping-Andersen (Hyman, 2005), hou-ve uma “desmercantilização“ da força de trabalho.

4 A visão de que a humanidade estava caminhando param processo de “desmercadorização” da força de traba-lho, na expressão de Esping-Andersen (1990), perdeusentido, pois tem havido uma fragilização do sistema deproteção social e da contratação coletiva do trabalho(Hyman, 2005).

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exigir dessas grandes empresas contrapartida naexportação de produtos manufaturados pelo país.Além disso, a entrada de capital não foi controla-da e permitiu-se a valorização da moeda nacional,que dificultou, ainda mais, o desenvolvimento daprodução e a capacidade de exportação e de com-petição com a importação (Santos, 2013).

Na realidade, a entrada na globalização foiprecipitada e passiva, porque foi usada para redu-zir a inflação, que tinha ficado muito alta com acrise da dívida externa e o modo como ela foi en-frentada. A ilimitada importação barata de produ-tos manufaturados, coberta pela entrada de capi-tal, ajudou a baixar a inflação, mas agravou os efei-tos da falta de ação do poder público para desen-volver o sistema de produção de bens de modo aampliar a exportação e evitar o aumento despro-porcional da importação.

Além disso, o país ficou muito exposto àinstabilidade do sistema financeiro internacional.A crise do México, logo depois da implantação doReal, ameaçou a eficácia do plano de estabilização,que dependia da preservação do nível da taxa no-minal de câmbio. Para evitar o aumento da taxa decâmbio, com a fuga de capital, o governo aumen-tou a taxa de juros, prejudicando todos que usa-vam o crédito em moeda nacional, particularmen-te o próprio governo, que precisa administrar orefinanciamento da dívida pública. Imobilizadopelo ônus do refinanciamento da dívida públicacom altas taxas de juros e sem mais contar com asempresas estatais que foram privatizadas, o Esta-do brasileiro perdeu grande parte de sua capacida-de para coordenar a realização dos investimentospúblicos e privados necessários para ampliar ainfraestrutura e desenvolver o sistema produtorde bens e para viabilizar o crescimento continua-do da economia. O PIB cresceu lentamente, a taxade investimento pouco aumentou e houve déficitno comércio com outros países, agravando o défi-cit de conta corrente do balanço de pagamentos,associado, basicamente, às contas de serviços eespecialmente dos serviços financeiros.

A produção industrial foi especialmenteprejudicada e sua interrelação com a prestação de

serviços é fundamental para a geração de empre-gos de melhor qualificação e renda. A escassa cri-ação desses empregos foi um aspecto importantedo agravamento das consequências deletérias ge-rais das novas formas de organização da produçãosobre os trabalhadores. As novas formas de orga-nização da produção dificultaram a construção deempregos de nível de renda intermediário e tam-bém fizeram proliferar os empregos de baixo nívelde renda. Já os efeitos da maneira como o Brasilentrou na globalização limitaram, também, osurgimento de empregos de alta renda (Quadros,2008; Baltar, 2003).

As repercussões negativas da inserção doBrasil na globalização sobre os trabalhadores apa-recem na condição de atividade da população, naposição das pessoas na ocupação e no tipo dessasocupações. (Baltar et al, 2010) O crescimento dapopulação economicamente ativa (PEA) continuoumuito intenso ao longo da década de 1990. A cres-cente participação das mulheres adultas na ativi-dade econômica foi a principal responsável pelacontinuidade desse crescimento da População Eco-nomicamente Ativa – PEA, pois o declínio do cres-cimento demográfico, que vem ocorrendo desde ofinal da década de 1960, já estava começando a re-duzir o contingente de população que alcança a ida-de ativa. A economia brasileira não gerou oportuni-dades para ocupar essa crescente população ativa ea taxa de desemprego, no final da década, ficou maisdo que o dobro da que prevaleceu no final da déca-da anterior (Pochmann, 2001; Santos, 2013).

O emprego na agropecuária diminuiu aolongo da década de 1990 apesar da expressivaampliação da produção. A elevação da produtivi-dade e as mudanças na composição da produçãopor tipo de bens agrícolas explicam essa reduçãona geração de oportunidades de emprego neste setorde atividade. No conjunto das demais atividadesda economia, a ocupação de pessoas aumentou,porém em ritmo bem menor do que no passado,menor, inclusive, do que a década de 1980, quan-do a crise da dívida paralisou a economia brasilei-ra. A produção dessas atividades não-agrícolascontinuou com um medíocre crescimento e os se-

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tores com produtos suscetíveis de comércio comoutros países, seja exportação ou importação, per-deram a capacidade de geração de emprego e ren-da, em consequência da globalização. Foi notável aredução do emprego nas grandes empresas, espe-cialmente as da indústria de transformação, cons-trução civil, serviços de utilidade pública, finan-ças e transporte. Nem toda a redução do empregonas grandes empresas foi eliminação pura e sim-ples de postos de trabalho. Foi intensa a contrataçãode serviços de terceiros, que deslocou emprego dasgrandes empresas para as menores, além de provo-car a ampliação do trabalho por conta própria. Ocrescimento do emprego continuou expressivo nocomércio, em serviços de apoio às empresas e nasatividades sociais do tipo educação, saúde, previ-dência e assistência social (Baltar, 2003).

O crescimento do emprego em estabeleci-mento econômico, entretanto, foi muito pequeno,proporcionalmente bem menor do que a amplia-ção do emprego no serviço doméstico remuneradoe no trabalho por conta própria. Além disso, onúmero de empregadores também aumentou mui-to com a proliferação de pequenas empresas. Es-sas mudanças na composição das oportunidadespara ocupar a PEA em atividades não-agrícolasforam acompanhadas de forte redução na propor-ção dos empregos formalizados em conformidadecom a legislação trabalhista (Baltar, 2003).

A proliferação de empregos que desrespei-tam as leis do trabalho foi uma manifestação pecu-liar dos anos 1990, evidenciando os efeitos deleté-rios sobre os trabalhadores da inserção brasileirana globalização e teve a ver com um relaxamentona imposição dessas leis, por um governo que es-timulou a iniciativa privada, diante de um quadrode forte estreitamento do mercado de trabalho ecom uma PEA que continuou aumentando forte-mente (Baltar, 2003).

No sistema brasileiro de relações de traba-lho, as leis são muito importantes na definição dasregras e normas que estabelecem a relação de em-prego e proteção social. A legislação é detalhada,mas o empregador tem muita liberdade para dis-pensar força de trabalho e, no caso dos empregos

onde é elevada a rotatividade, os salários podemser alterados em função das empresas, sem des-respeitar a legislação. Nesses empregos de altarotatividade não se acumula tempo de serviço e,portanto, o montante da indenização ao dispensa-do é relativamente pequena.

Não obstante, a proliferação de pequenosnegócios na década de 1990 foi acompanhada decrescente ilegalidade, com ausência do registro daempresa no CNPJ e o não cumprimento das leisdo trabalho e da previdência social. A ilegalidadeprejudicou os trabalhadores e a arrecadação deimpostos e contribuições sociais, mas a reação dopoder público não foi impor a lei, mas criar umsistema (SIMPLES) que não somente simplificou,mas também diminuiu os encargos trabalhistas dasmicro e pequenas empresas (MPE). Os efeitos des-se sistema na formalização das MPE e de seus con-tratos de trabalho aumentou somente depois que ogoverno de orientação neoliberal teve que reforçar aarrecadação de impostos e contribuições sociais,quando foi obrigado a obter superávit de arrecada-ção em relação às suas despesas não financeiras,para absolver no orçamento uma parte importantedos juros pagos pela crescente dívida pública.

Ocorreram, nos anos 1990, diversas inicia-tivas governamentais para promover alteraçõespontuais nas leis do trabalho e da previdência so-cial. Essas mudanças pontuais proporcionaramainda mais liberdade de ação aos empregadores nacontratação e na definição da jornada e da remu-neração. Ampliaram-se as possibilidades do con-trato temporário, para além das excepcionalidadesprevistas na legislação anterior, criou-se o contratopor tempo determinado, antes proibido pela legis-lação e facilitou-se a contratação como pessoa jurí-dica (PJ) – que não contrata nenhum empregado -, além de facilitar a existência de cooperativas demão-de-obra. Quanto à jornada de trabalho, per-mitiu-se o trabalho aos domingos no comércio einstituiu-se o banco de horas para facilitar a mo-dulação da jornada trabalhada, evitando o paga-mento de adicional por horas extras. Finalmente,quanto à remuneração, proibiu-se a indexação dossalários e facilitou-se o uso da remuneração variá-

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vel, que não é considerada salário, e, portanto, variamais facilmente e nela não incidem os encargostrabalhistas. Além dessas mudanças pontais nalegislação, tentou-se, sem êxito, alterar o conjuntoda legislação trabalhista ao estabelecer que o nego-ciado pelas partes prevalecesse sobre o determina-do pela legislação (Krein, 2007).

Num quadro de desemprego e ilegalidadedas relações de trabalho e com uma posição dogoverno relutante na imposição da lei e promo-vendo alterações visando a dar maior liberdade deação aos empregadores, observou-se uma tendên-cia da negociação coletiva se descentralizar, predo-minando acordos por empresas em relação à con-venção coletiva. Nesses acordos por empresa, ten-deu a prevalecer uma estratégia defensiva de fazerconcessões, procurando preservar os empregosexistentes ou buscando compensar a dificuldadeda negociação salarial na convenção por acordosde participação nos lucros e resultados.

O quadro se modificou e ficou mais desfa-vorável aos trabalhadores quando, depois da criseda Ásia e da Rússia, o Real se desvalorizou noinício de 1999, gerando como consequência o au-mento da inflação e a diminuição do poder de com-pra dos salários. A fuga de capital, provocada pelarepercussão no mercado financeiro internacionaldas crises dos mercados emergentes, paralisou ocrescimento do PIB e aumentou o desemprego. Semcrescimento do PIB, com aumento do desempregoe da inflação, os reajustes da grande maioria dascategorias profissionais não conseguiram impedira queda no poder de compra dos salários. O go-verno, entretanto, aumentou o valor do saláriomínimo acima da inflação, de modo que a quedada renda do trabalho, ocorrida entre 1999 e 2004,foi acompanhada pela redução nas diferenças derenda entre os trabalhadores.

O aumento do poder de compra das remu-nerações mais baixas já vinha ocorrendo desdemeados da década de 1990, acompanhando a ele-vação do valor do salário mínimo e o aumento daidade das pessoas nessas ocupações de baixa re-muneração. Apenas em categorias ocupacionais derenda muito baixa como o emprego agrícola sem

carteira, o trabalho familiar na prestação de servi-ços para as indústrias de calçados e confecções nonordeste e empregos domésticos de pessoas mui-to jovens sem carteira de trabalho não foram bene-ficiados pelo aumento no valor do salário míni-mo, que aconteceu desde 1995 e que se encontra-va em um nível muito baixo.

Na década de 1990, entretanto, a posiçãopredominante no debate sobre o trabalho no Bra-sil deu como dado a continuação do lento cresci-mento da economia e centrou a discussão na ne-cessidade de redefinir as regras e normas que re-gem a relação de emprego para dar liberdade deação às empresas (Krein, Santos e Nunes, 2011).Os aumentos do desemprego e da ilegalidade doscontratos de trabalho evidenciaram a deterioraçãodo mercado de trabalho. Para aqueles que opinamnão haver alternativa a uma inserção passiva naglobalização, duas posições diferentes sobressaí-ram quanto à agenda de problemas a ser enfrenta-da na área trabalhista. Uma dessas posições(Pastore, 1995; Zylbertjan, 1988) destacou a ne-cessidade de acabar com a rigidez provocada pelasregras que regulam a relação de emprego, que, noBrasil, são fortemente marcadas por um arcabouçolegal muito detalhado, que estabelece direitos eobrigações, deixando pouco espaço de adaptaçãoem negociação direta das partes da relação de em-prego. Ou seja, conforme essa posição, as leis teri-am que ser modificadas para permitir maior flexi-bilidade na contratação, uso e remuneração do tra-balho. Empresas e empregados teriam mais liber-dade para se adaptar à realidade da economiaglobalizada e de produção internacionalizada. Aempresa pagaria estritamente pelas horas trabalha-das e não teria tantos encargos associados àcontratação de mão-de-obra e o salário pela horatrabalhada seria negociado diretamente pelas partesem função das circunstâncias enfrentadas pela em-presa, levando em conta as dificuldades de recruta-mento e de adaptação dos trabalhadores aos postosde trabalho. Nessa perspectiva, portanto, a agendaé a de desconstrução das leis do trabalho, deixandopara as partes a negociação dos contratos, sem pre-visão dos mecanismos que viabilizassem uma

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contratação coletiva, mesmo que estritamente aonível do local de trabalho.

A outra posição (Camargo; Amadeo, 1996),que também valoriza o efeito da abertura da econo-mia, no sentido de liberar a iniciativa privada eintensificar a competição, achando inconvenienteuma interferência pública para melhorar o desem-penho da economia e geração de emprego e renda,destaca, na raiz do aumento do desemprego e dailegalidade dos contratos de trabalho, problemasde adaptação das empresas ao acirramento da com-petição, que não estaria induzindo comportamen-tos adequados de patrões e empregados na dire-ção de um maior compromisso no local de traba-lho, que favoreceriam o aumento da produtivida-de e da competitividade. Esta posição tem umaopinião diferente sobre o arcabouço legaldeterminante das normas de contratação, uso eremuneração do trabalho. A lei não impediria aliberdade de ação da empresa, mas aspectos im-portantes do arcabouço legal tendem a induzir com-portamentos inadequados de trabalhadores e em-pregadores, prejudicando aquele compromisso fa-vorável à produtividade e à competitividade. As-sim, por exemplo, FGTS e seguro-desemprego ge-neroso e com base em impostos estimulam com-portamentos oportunistas de trabalhadores e em-pregadores, contribuindo para a existência de umregime de trabalho em que se evita o ônus de umaseleção mais criteriosa na contratação à custa daduração dos vínculos de emprego, em prejuízo daadaptação dos trabalhadores às características dospostos de trabalho e ao desenvolvimento de com-promissos favoráveis à produtividade. A lei pres-supõe que os contratos de trabalho têm duraçãoindefinida e impõe penalidades e indenizaçõespela ruptura dos contratos, mas a reclamação dosdireitos na Justiça do Trabalho pressupõe o desli-gamento dos empregados e a morosidade da Justi-ça termina estimulando acordos entre as partes quenegociam o montante das indenizações. O própriosindicato, mantido com recursos decorrentes deimpostos e contribuições obrigatórias, não é indu-zido a buscar uma verdadeira representação dosempregados, cujo emprego e remuneração pressu-

põem a competitividade do empregador.As duas posições mencionadas destacam

as virtudes da abertura, no sentido de promover ainiciativa privada e a competição, e, se levaram aresultados negativos de emprego e renda, foi por-que o ambiente legal e institucional não se mos-trou adequado para uma resposta positiva de em-presas e empregados aos estímulos do acirramen-to da competição. O debate, então, deveria secentrar na necessidade de modificar o arcabouçolegal e institucional. Uma terceira posição (Cardo-so, 1999), menosprezada ao longo da década de1990, destacou a própria maneira como se fez aabertura da economia na globalização financeira einternacionalização da produção e não oscondicionantes legais institucionais do comporta-mento de empregadores e empregados nacontratação, uso e remuneração do trabalho. Asmudanças na organização da produção, com lentocrescimento do PIB, aumentaram o desemprego ea ilegalidade dos contratos de trabalho e as altera-ções pontuais no arcabouço legal institucional ape-nas agravaram a precariedade do trabalho (Krein,Santos e Nunes, 2011).

A REDEFINIÇÃO DOS TERMOS DO DEBATESOBRE TRABALHO NO BRASIL COM ARETOMADA DO CRESCIMENTO ECONÔMICOEM 2004

A maneira como o Brasil fez a abertura dei-xou a economia extremamente dependente da si-tuação internacional em termos de finanças e co-mércio. Assim, as crises da Ásia e da Rússia em1997 e 1998 provocaram fuga de capital, deterio-rando ainda mais a situação do mercado de traba-lho como mostra a elevação da taxa de desempre-go e a queda expressiva do poder de compra darenda do trabalho entre 1998 e 2003. O desempre-go aumentou com a queda na taxa de crescimentodo PIB. A combinação de aumentos do desempre-go e da inflação provocou uma diminuição subs-tantiva do poder de compra da renda do trabalho(Baltar et al, 2008).

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A situação se reverteu completamente comos efeitos sobre a economia brasileira do cresci-mento da demanda e aumento dos preços interna-cionais das commodities, a partir de 2003. O cres-cimento do PIB ficou mais forte, a inflação dimi-nuiu, cresceu muito o emprego formal e recupe-rou-se o poder de compra da renda do trabalho.Fortes aumentos do valor do salário mínimo e rea-justes das categorias profissionais maiores do quea inflação fizeram com que a elevação do poder decompra da renda do trabalho acontecesse com di-minuição das diferenças entre trabalhadores. Foi aprimeira vez, desde 1960, que um aumento subs-tantivo da renda do trabalho ocorreu com dimi-nuição do índice de GINI. O crescimento do PIB, adiminuição do desemprego, o aumento do poderde compra da renda do trabalho e a queda da infla-ção, e tudo isso ocorrendo com ampliação das re-servas internacionais em relação à dívida externado país, criaram um clima na economia brasileiraem que as famílias passaram a se endividar paraampliar o consumo, apesar das elevadas taxas dejuros, e os bancos atenderam a essa maior deman-da de crédito. O intenso crescimento do consumofoi fundamental para o bom desempenho da eco-nomia brasileira e a melhora dos indicadores domercado de trabalho desde 2004 (Baltar et al, 2008).

Esse quadro de crescimento da economia ede melhora dos indicadores do mercado de traba-lho redefiniu os temas da agenda de debates naárea trabalhista. A melhora nas condições de fun-cionamento da economia brasileira, permitida pelaexpansão das exportações, viabilizou a simultanei-dade de intensos aumentos de emprego e de salá-rios com redução da inflação, contrariando opini-ões pessimistas que costumam relacionar, inver-samente, os níveis de emprego e salário, e, direta-mente, o aumento dos salários e inflação. Essa si-multaneidade de indicadores positivos da produ-ção, do emprego, do salário e dos preços ocorreusem qualquer alteração mais substantiva doarcabouço legal institucional que determina as con-dições de uso, contratação e remuneração do tra-balho, mostrando a precipitação das conclusõesdas duas vertentes predominantes do debate da

área trabalhista nos anos 1990, que minimizaramo papel de tentar influir nas condições de funcio-namento da economia, destacando, exclusivamen-te, as alterações no arcabouço legal institucionalda regulação pública do trabalho, adequando-o,enviezadamente, às mudanças na organização daprodução, de modo a facilitar a flexibilização dotrabalho e a liberdade de ação das empresas.

A experiência dos anos 1990 e 2000 mos-trou que os temas relevantes da discussão sobreregulação do trabalho são muito afetados pela ma-neira como evoluíram a produção, os preços, oemprego e os salários. As transformações na orga-nização da produção, com sua internacionalizaçãonos anos 1990, colocam problemas novos para aregulação pública do trabalho ao apontar para umaampliação, como mencionado, da flexibilidade fun-cional e quantitativa. Nas condições políticas e demercado de trabalho em que essas transformaçõesocorreram, na década 1990, a flexibilização foi si-nônimo de precarização do trabalho, resultandoem simples ampliação da liberdade de ação daempresa em um contexto desfavorável aos traba-lhadores. No entanto, em uma situação política ede mercado de trabalho mais favorável aos traba-lhadores, como nos anos 2000, os problemas no-vos, decorrentes das mudanças na organização daprodução, poderão ser enfrentados pela regulaçãopública (leis e contratos coletivos), de um modoque não resulte em precarização do trabalho e, aocontrário, contribua para uma melhor estruturaçãodo trabalho assalariado diante das novas tendên-cias na organização da produção (Krein, Santos eNunes, 2011).

Uma das principais alterações na organiza-ção da produção foi o crescente uso de terceiros(terceirização). A terceirização coloca sérios pro-blemas e tem sido uma fonte de precarização dotrabalho. Em uma situação econômica mais favo-rável, é possível realizar um debate mais relevanteacerca da terceirização. Esse debate tem, pelo me-nos, os seguintes aspectos: que atividades podemser terceirizadas; proibição da atividade que sejasimplesmente a alocação de mão-de-obra por partede outra empresa; a representação dos terceirizados

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seja a mesma que a dos empregados da empresa e,portanto, que ambos sejam protegidos pelo mes-mo instrumento normativo;e responsabilidade so-lidária da contratante em relação à contratada, casonão sejam respeitados os instrumentos normativos.A regulamentação da terceirização deveria garantiressas condições no uso de terceiros para evitar queconduza à precarização do trabalho.

As mudanças na organização foram acom-panhadas pela proliferação de novas formas decontratos de trabalho. Algumas dessas formas decontratação não aparecem como relação de empre-go, ou seja, a relação de emprego fica disfarçada: ouso abusivo de estagiários substituindo profissio-nais, as falsas cooperativas de trabalho, emprega-dos contratados como autônomos ou pessoa jurí-dica. Essas modalidades de contratação buscamburlar a legislação vigente para diminuir despe-sas, constituindo fraudes que devem ser duramentereprimidas. No caso das contratações em que apa-rece o vínculo de emprego, destacam-se os dife-rentes tipos de contratos temporários (setor públi-co e privado), por obra certa, safra, por prazo de-terminado. O que chama atenção é a ampliação dafrequência e continuidade destes tipos de contra-tos. No caso das fraudes, é preciso fortalecer osinstrumentos de fiscalização e as punições. No casodas contratações temporárias, é preciso melhorarsua regulamentação para evitar os abusos de con-tratos temporários em relação de emprego que po-deria ser mais duradora.

As mudanças na organização da produçãotêm levado a uma diminuição do corpo perma-nente dos empregados da empresa, intensificandoa flexibilidade funcional dos permanentes e a fle-xibilidade quantitativa dos demais. Para muitosempregados, o próprio local de trabalho fica inde-finido como no caso do teletrabalho. Além da pro-liferação dos contratos atípicos, observa-se a con-tinuidade de altas taxas de rotatividade dos con-tratados por tempo indefinido. A rotatividade éagravada pela inexistência ou pela inoperância demecanismos contra a dispensa imotivada e a debi-lidade da organização dos trabalhadores no localde trabalho. O fortalecimento desses mecanismos

e organizações é fundamental para a redução darotatividade, que prejudica uma melhor adaptaçãoda força de trabalho às peculiaridades dos distin-tos postos de trabalho.

A internacionalização da produção coloca anecessidade de uma ampla revisão do sistema deimpostos e contribuições para a seguridade social.Nesse contexto, coloca-se a questão da desoneraçãoda folha de salários, de modo a não penalizar aprodução, que gera mais emprego sem prejudicara arrecadação de recursos públicos. A discussãorefere-se, explicitamente, à forma de cobrar os im-postos e não à magnitude da carga tributária, hojeem 35% do PIB, sendo fundamental para a conso-lidação das políticas sociais definidas na Consti-tuição Federal de 1988.

As mudanças na organização da produçãotêm implicado em aumentos tão expressivos deprodutividade que se coloca a discussão de comoaproveitar esse avanço em termos de favorecer obem estar da população. Nesta perspectiva, pode-se fazer uma contraposição entre ampliar o consu-mo privado de bens e serviços, ampliar os servi-ços públicos ou reduzir a jornada de trabalho emsentido amplo, que envolve, não apenas a jornadadiária e semanal, mas também as férias e feriados,a aposentadoria, o retardamento da entrada dosjovens no mercado de trabalho. A opção na formade como aproveitar os ganhos de produtividadetem diferentes implicações na regulação do traba-lho. Por exemplo, a ampliação dos serviços públi-cos coletivos exigirá maior carga tributária. A opçãode reduzir jornada e produção de bens e serviçostem implicações no sentido de diminuir a utiliza-ção de recursos naturais com benefícios ecológicos.

As mudanças na organização da produção,com tendência de flexibilização e descentralização,têm implicado a intensificação do trabalho comefeitos deletérios sobre a saúde dos trabalhadores.O debate deste assunto é extremamente importan-te para informar a regulação pública do trabalho eampliar as políticas de proteção social.

A tendência de flexibilidade funcional temsido acompanhada do aumento do peso da remu-neração variável e constituído formas diferencia-

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das de organização da jornada de trabalho (modu-lação, turnos, escalas). Estas duas tendências têmprovocado uma enorme diversidade de situaçõesentre os trabalhadores, problematizando a própriaexistência da regulação pública do trabalho, queterá que contemplar a remuneração variável e aorganização da jornada para delimitar a variedadede situações dos trabalhadores que dificulta aregulação pública do trabalho.

As atuais tendências de flexibilização e dedescentralização da produção colocam desafios paraa regulação pública do trabalho, que terá que aper-feiçoar as normas, desde o marco legal até os apoi-os para fortalecer as instituições (públicas/estatais eentidades classistas) que produzem e fazem cum-prir as normas do trabalho. Neste particular, hoje émais necessário do que nunca o fortalecimento daorganização dos trabalhadores no local de trabalho.

Deste modo, uma evolução mais favorávelaos trabalhadores da produção, emprego, saláriose preços permitiu colocar, de modo mais adequa-do, as novas questões que devem ser enfrentadaspela regulação pública do trabalho, levantadas pe-las tendências de mudanças na organização daprodução. Essa evolução da produção, emprego,salário e preços ocorreu sem mudanças significati-vas na forma de inserção do país na economiamundial, mas esta última se comportou de modomais favorável ao desempenho econômico do país.Esta realidade vem se modificando a partir da cri-se mundial.

A melhora nos indicadores do mercado detrabalho no Brasil vem ocorrendo desde 2004 enão foi interrompida pela crise mundial. Com re-serva internacional e com pouca dívida indexadaao dólar, a reação do governo ao impacto inicial dacrise foi eficaz. A desvalorização do Real, em vezde piorar, melhorou as contas públicas ao aumen-tar o valor em reais das reservas internacionais.Dispondo de recursos, o governo pode agir paraamortecer o impacto da crise. Reduziu, temporari-amente, impostos indiretos sobre produtos, man-teve a programação dos investimentos públicos,continuou aumentando o salário mínimo e fortale-ceu os bancos públicos para que pudessem com-

pensar a retração dos privados no atendimento dademanda de crédito.

O PIB caiu somente 0,3% em 2009 e au-mentou 7,5% em 2010. A intensidade da recupe-ração fez o novo governo, em 2011, atuar no senti-do de conter a atividade da economia. Isto preju-dicou a continuação dos investimentos públicos ea sustentação do crescimento do consumo. Diantedesse quadro e dada a incerteza da situação inter-nacional, o investimento privado, que tinha se re-cuperado fortemente em 2010, perdeu muito doseu ímpeto. O crescimento do PIB foi de somente2,7% em 2011, evidenciando os efeitos da estraté-gia de conter o ritmo da recuperação neste ano. Ogoverno, então, procurou reanimar a economia,mas o resultado foi muito menor do que o obser-vado em 2010, e o crescimento do PIB foi somente0.9% em 2012. Os estímulos determinados pelogoverno contiveram a desaceleração do consumo,mas não impediram a queda do investimento que,em 2012, foi menor do que 2011.

Existe um relativo consenso de que, atual-mente, um crescimento mais forte do PIB requer aampliação da taxa de investimento. O país nãopode contar mais com uma evolução favorável dostermos de troca do comércio internacional que fa-voreceu o desempenho da economia brasileira em2007 e 2008. Atualmente, é preciso aumentar aprodutividade da economia para continuar melho-rando a condição socioeconômica da população eisto requer investimento em infraestrutura e nofortalecimento da competitividade da produçãomanufatureira existente no país.

A crise mundial prejudicou a atividade eco-nômica nos países desenvolvidos e acirrou a com-petição internacional pela demanda de produtosmanufaturados. A sustentação do crescimento doconsumo no Brasil tem provocado um forte au-mento da importação de produtos manufaturadosem detrimento da produção doméstica, que che-gou a diminuir em 2012. O déficit de comércioexterior com produtos manufaturados que tinhafica muito grande em 2008, multiplicou por 2,5em 2011 e se repetiu em 2012.

O comércio internacional de produtos ma-

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nufaturados é, em grande medida, no interior daspróprias empresas transnacionais. O Brasil ficoufora das cadeias de produção internacionalizadas e,mesmo onde não é grande essa internacionalização,as empresas multinacionais têm optado por im-portar partes e componentes da matriz ou de ou-tras filiais onde apresenta grande capacidade ocio-sa, em vez de investir na ampliação da capacidadede produção instalada no Brasil. Esse movimentocomercial reflete a estratégia das matrizes para en-frentar os efeitos da crise mundial e se mostroupouco afetado pelo aumento da taxa de câmbio noBrasil. É preciso reverter esse movimento, negoci-ando com as empresas investimentos no Brasil,como pré-condição para o acesso ao crescente mer-cado doméstico (Sarti; Hiratuka, 2011).

A desaceleração do PIB em 2011 e 2012mostrou as dificuldades encontradas para aumen-tar a taxa de investimento no quadro de crise mun-dial. A partir de então, existe um debate na socie-dade brasileira sobre o papel do Estado para au-mentar a taxa de investimento. Por um lado, o go-verno tem tomado uma série de medidas para esti-mular o investimento, tais como: a redução da taxabásica de juros, a elevação da taxa de câmbio, aredução do preço da eletricidade, a criação deempresas estatais para coordenar os investimen-tos privados em infraestrutura realizados por meiode concessões, entre outros. Por outro lado, é cres-cente a crítica a essas ações por parte dos setoresconservadores e neoliberais, estabelecendo, emarticulação com a grande mídia, um contrapontona perspectiva de reduzir o papel do estado e am-pliar a liberdade de ação da iniciativa privada. Éum embate que começa com o PAC e o fortaleci-mento dos bancos públicos, a partir de 2006. Essaé uma questão vital para a retomada do desenvol-vimento da economia brasileira.

A política econômica, entretanto, tem con-seguido preservar a melhora nos indicadores domercado de trabalho, amortecendo a desaceleraçãoque tem ocorrido no crescimento do consumo. Estecresceu em média 5,4% ao ano em 2007 e 2008,manteve a média de 5,5% ao ano em 2009 e 2010 ese ampliou em média 3,2% ao ano em 2011 e 2012.

A comparação dos períodos 2003/2008 e2008/2012 mostra que o crescimento do PIBdesacelerou da média de 4,8% ao ano para 2,6%.A desaceleração do crescimento da população ocu-pada, calculada pela PME/IBGE, foi menor ao pas-sar da média anual 2,7 para 2.1%. O PIB por pes-soa ocupada aumentou mais em 2003/2008 do queem 2008/2012, mas o poder de compra da rendamédia do trabalho continuou aumentando, apesardo aumento da inflação. O aumento nominal darenda média do trabalho foi maior do que a infla-ção. Contribuiu para isto tanto a ampliação dos ser-viços que explicam o aumento do emprego, apesarda desaceleração do PIB, quanto o enorme déficitde comércio externo de produtos manufaturados.

O déficit de comércio externo de produtosmanufaturados foi coberto pelo superávit decommodities, mas ocorreu expressivo déficit deconta corrente de balança de pagamento por causados serviços, especialmente a remessa de lucros edividendos. O déficit de conta corrente foi cobertopor entrada de capital, especialmente investimen-to direto estrangeiro. Porém a continuidade destasituação exigiria manter forte aumento das exporta-ções, que até agora tem ocorrido com os altos preçosdas commodities. Estes, provavelmente, não reverte-rão no futuro próximo, mas não continuarão aumen-tando com tanto vigor como no passado recente.

Portanto, a continuação da melhora nos in-dicadores no mercado de trabalho pressupõe oaumento da taxa de investimento, que aceleraria ocrescimento do PIB e aumentaria mais fortementeo PIB por pessoa ocupada. O governo tem atuadonesta direção, como mencionado acima. É, entre-tanto, fundamental para o aumento da taxa de in-vestimento a ampliação dos investimentos públi-cos e a negociação com as empresas multinacionaispara que ampliem o investimento no Brasil e mo-derem a importação de partes e componentes deseus produtos. O crescimento mais vigoroso doPIB viabilizaria o crescimento mais robusto do con-sumo, ajudando a preservar o crescimento do nú-mero de pessoas ocupadas e mantendo a taxa dedesemprego relativamente baixa.

A PME indica que o número de desempre-

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gados, que tinha atingindo o equivalente a 19,2%dos empregados assalariados em 2003, diminuiupara 11,3% em 2008 e alcançou 7,5% em 2012. Ataxa da rotatividade do emprego assalariado for-mal é 4,5% ao mês. Para aumentar em 2% o em-prego em um ano, é preciso contratações mensaisda ordem de 4,7% do total do emprego assalaria-do. A existência de um número de desempregadoequivalente a 7,5% do emprego assalariado nãoparece indicar que a economia esteja operando empleno emprego.

As empresas que estão aumentando o empre-go não reclamam da dificuldade de encontrar traba-lhadores disponíveis, mas sim, da inadequação dostrabalhadores às características dos postos de traba-lho. Esse tipo de problema não tem tanto a ver com abaixa taxa de desemprego quanto reflete a existênciade altas taxas de rotatividade no emprego.

As empresas alegam que alta rotatividadereflete a inadequação dos trabalhadores disponí-veis para os postos de trabalho. Porém, esse pro-blema é reflexo da desestruturação do mercado detrabalho, devido, principalmente, à excessiva li-berdade de ação dos empregadores que, além depagar mal frente à sofisticação já alcançada do apa-relho produtivo existente no país, dispensa o em-pregado logo que já não precisa dele. Não tem quejustificar a ninguém a causa da dispensa, bastan-do indenizar o dispensado, sendo que essa inde-nização é pequena para quem não tem como acu-mular tempo de serviço.

A rotatividade no emprego aumenta quandomelhora o mercado de trabalho por iniciativa dosempregadores e dos próprios empregados. Isto co-loca problemas no recrutamento e esses problemasficam ainda mais graves com as tendênciasdemográficas que vêm alterando, substancialmen-te, a composição da população brasileira por idade.

No passado, enquanto a industrializaçãoprovocava forte crescimento do PIB e intensa ex-pansão do mercado de trabalho, a elevadarotatividade no emprego renovava, constantemen-te, a força de trabalho assalariada. A parcela deempregados jovens continuava muito grande,realimentada por rápido crescimento da popula-

ção, que, com baixa escolaridade, entrava precoce-mente no mercado de trabalho. Os jovens transita-vam por empregos sem vínculo estável e, com aidade, encontravam crescentes dificuldades derecolocação, tendendo a ser expulsos do mercadode trabalho. Isto provocava uma alta fração da PEAadulta em trabalhos por conta própria. O adultoexpulso do mercado de trabalho tinha que inven-tar um negócio próprio tivesse ou não condiçãopara fazê-lo. Isto provocava uma dispersão de ren-da do trabalho por conta própria que era aindamaior do que a dos salários dos empregados.

A população jovem está diminuindo e oaumento de sua escolaridade tem levado ao adia-mento da entrada no mercado de trabalho. Isto temmudado rapidamente a composição da PEA porgrupo de idade. Uma força de trabalho assalariadamais adulta é menos maleável, tendendo a aumen-tar as reclamações dos empregadores quando háinadaptação dos trabalhadores disponíveis às ca-racterísticas dos seus postos de trabalho.

O que deve ser corrigido é a alta rotatividadeno emprego, estruturando o trabalho assalariado,com as pessoas se vinculando a determinadospostos de trabalho. O momento oportuno para essacorreção de rumo é, justamente, quando a econo-mia está crescendo e ampliando o mercado de tra-balho. Não tem sentido a proposta de conter a ati-vidade da economia na espera que melhore a ofer-ta de trabalho. Ao contrário, uma economia cres-cendo cria as condições necessárias para construiro seu mercado de trabalho.

Não nos parece adequado aumentar o mon-tante da indenização visando reduzir a rotatividade.É mais eficaz fortalecer os instrumentos institucionaisde controle da dispensa imotivada. A exigência deter que justificar a dispensa perante um inspetordo trabalho ou um sindicato significa uma rigidez,mas, nesse caso, é, justamente, a extrema flexibili-dade que está prejudicando o funcionamento domercado de trabalho.

Quando se trata da inadaptação da força detrabalho aos postos de trabalho, muitos remetem oproblema ao baixo nível de qualificação profissio-nal. Alguns chegam a pensar que esse baixo nível

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de qualificação profissional tem a ver com baixograu de escolaridade da força de trabalho. Esse tipode questionamento, entretanto, diz respeito a umapequena parcela da força de trabalho assalariada,que é altamente especializada e relativamente bemremunerada. A inadequação dos empregados aospostos de trabalho é uma questão muito mais am-pla e atinge, também, postos de trabalho que nãotêm tantas exigências de qualificação profissional.

Para essa grande maioria, o problema prin-cipal é a alta rotatividade, que impede a fixaçãodos trabalhadores no entorno de determinadospostos de trabalho, que ajudaria os assalariados ase adaptarem às características dos empregos exis-tentes. Caso isso acontecesse, as empresas passa-riam a contar com empregados profissionalmentemelhor capacitados e os trabalhadores teriam me-lhores condições para se organizar e construir po-sições de barganha, na perspectiva de reivindicar,coletivamente, uma melhor participação nos au-mentos de produtividade, reduzindo as enormestaxas de exploração que ocorrem no Brasil.

A continuidade da melhora do mercado detrabalho pressupõe aumentar a taxa de investimen-to, o crescimento do PIB e o aumento da produti-vidade do trabalho na indústria e nos serviços fun-cionalmente relacionados ao desenvolvimento daindústria. Isto, provavelmente, aumentará a fraçãoda força de trabalho que é mais especializada emelhor remunerada. Nesse caso, será fundamen-tal estruturar o conjunto da força de trabalho assa-lariado, reforçando os mecanismos institucionaisque reduzem a rotatividade e promovem aumen-tos mais generalizados da renda do trabalho (salá-rio mínimo e reajustes das categorias profissionais),para que o aumento do poder de compra da rendado trabalho prossiga com redução das diferençasentre os trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência dos países desenvolvidosmostrou a importância da regulação pública do tra-balho para a estruturação da sociedade e o bem

estar coletivo da população. Essa experiência res-saltou. não somente os efeitos positivos da cons-trução da regulação pública do trabalho, mas tam-bém os efeitos deletérios da perda de eficácia destaregulação. De um lado, a regulação pública do traba-lho, junto com a proteção social, estruturou a com-pra e venda da força de trabalho de modo a contri-buir para estabilizar e reforçar a tendência de cresci-mento da produção e do emprego. De outro lado,mudanças contemporâneas no capitalismo desafia-ram a regulação pública do trabalho e a ação coletivados trabalhadores. A perda de eficácia desta regulaçãoajudou a reforçar a instabilidade e a redução da ten-dência de crescimento da produção e do emprego,implicando desemprego e aumento das diferençassocioeconômicas entre os trabalhadores.

A globalização financeira e a internacionalizaçãoda produção de bens e serviços estão no cerne dastransformações contemporâneas no capitalismo. Aorganização da produção se modificou com ten-dência à descentralização e flexibilização do traba-lho. O quadro político gestado pela predominân-cia do neoliberalismo, não somente promoveu es-sas mudanças, mas também ajudou a ampliar oimpacto desfavorável na regulação pública do tra-balho, que, em vez de moldar as mudanças demaneira a evitar a precarização das relações deemprego, reforçou esses efeitos, apoiando a liber-dade de ação dos empregadores para se adaptaremao ambiente de acirramento da competição.

A maneira como o Brasil entrou naglobalização financeira e internacionalização daprodução reforçou os efeitos deletérios sobre aregulação pública do trabalho. O oportunismo deaproveitar a globalização para diminuir, rapidamen-te, a inflação prejudicou o fortalecimento da eco-nomia na perspectiva de aumentar a exportação ea competitividade da produção doméstica dianteda importação. O Brasil, que não tinha participa-do da internacionalização das cadeias de produ-ção, continuou fora delas e com um sistema deprodução voltado, fundamentalmente, para o mer-cado doméstico.

O desempenho da economia brasileira, emtermos de crescimento do PIB e inflação, ficou

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muito dependente da situação do comércio e dasfinanças internacionais. Na década de 1990, o co-mércio e as finanças internacionais foram desfavo-ráveis ao desempenho da economia brasileira eaumentou muito o desemprego e a ilegalidade doscontratos de trabalho.

No debate sobre trabalho duas posições bá-sicas se confrontaram: (1) a que valoriza os efeitosda abertura da economia, aumentando a competi-ção entre empresas e advogando por uma mínimainterferência estatal e; (2) a que destaca a impor-tância desta última interferência para fortalecer aeconomia nacional, o que é particularmente im-portante diante da abertura que expõe essa econo-mia à competição internacional. A primeira posi-ção avalia o marco regulatório em função dos estí-mulos ao comportamento de empregadores e em-pregados, contribuindo, de modo consistente, parao uso eficiente dos recursos diante do aumento dacompetição provocado pela abertura. Deste pontode vista, a flexibilidade do trabalho seria parte deuma acomodação da maneira de realizar os negóci-os sob intensa competição internacional, permi-tindo o aproveitamento das oportunidades exis-tentes. A segunda posição, ao contrário, destaca ainterferência do poder público para garantir aregulação pública do trabalho, na perspectiva deque as oportunidades de negócios sejam maisamplas e aproveitadas de um modo que ajude aconstruir relações de trabalho que contribuam parauma estruturação melhor da sociedade, legitiman-do a atuação do Estado.

O comércio e a finança internacional favo-receram o desempenho da economia brasileira naprimeira década dos anos 2000. Sem grande inter-ferência estatal para fortalecer a economia nacio-nal, foi possível um crescimento mais forte do PIB,gerando mais empregos formais, a inflação dimi-nuiu e a renda do trabalho aumentou. Um quadromais favorável aos trabalhadores reforçou a me-lhora nos indicadores do mercado de trabalho eintensificou o crescimento do PIB. Destacaram-seo aumento do valor do salário mínimo, os reajus-tes das categorias profissionais acima da inflação ea implementação de um sistema de proteção social

em conformidade com os ditames da ConstituiçãoFederal de 1988.

A melhora dos termos de troca do comércioexterior do país, favorecida pelos preços interna-cionais das commodities, desempenhou um papelanálogo ao correspondente aumento da produtivi-dade, sem que tivesse havido um aumento maissubstantivo da taxa de investimento. No auge docrescimento, em 2007 e 2008, a produção indus-trial chegou a aumentar em ritmo significativo,apesar da explosão de produtos manufaturados.A ampliação do consumo e do investimento deuoportunidade para desenvolver a produção maiscompetitiva com importações. A crise mundial, queatingiu o Brasil no final de 2008, mostrou que oquadro internacional deixou de ser tão favorávelao desempenho da economia brasileira. É, então,necessário fortalecer a economia, ampliando a taxade investimento para que o aumento da produtivi-dade permita a continuação da melhora dos indi-cadores do mercado de trabalho e o PIB volte acrescer mais forte em benefício do conjunto dapopulação brasileira. Isto, entretanto, pressupõe oaperfeiçoamento da regulação pública do trabalhode modo a impedir que as mudanças na organiza-ção da produção levem a uma precarização do traba-lho. A retomada do crescimento, com maior taxade investimento e o maior aumento da produtivi-dade, deve aumentar a proporção de ocupaçõesmais especializadas e melhor remuneradas. Nestecontexto, é fundamental melhorar a regulação pú-blica para reduzir a rotatividade, elevar o saláriomínimo e ter reajustes das categorias profissionaiscompatíveis com a maior produtividade, evitandoque a ampliação da fração de ocupações maisespecializadas resulte em aumento da dispersãodos salários.

O momento que o país atravessa é crucialna definição das possibilidades de desenvolvimen-to futuro da economia e da sociedade. As posi-ções no debate se localizam entre dois polos: 1) adefesa de uma estruturação do mercado de traba-lho com implicações na qualidade das relaçõessociais; 2) a afirmação dos negócios, que destaca anecessidade de maior flexibilização na contratação,

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no uso e na remuneração do trabalho. O embatedessas posições na sociedade se reflete no conteú-do e na forma das políticas públicas do trabalho eno modelo de desenvolvimento do país. Nesta ava-liação mais ampla, não é possível desvincular a dis-cussão da regulação ou estruturação do mercado detrabalho das questões centrais que definem qual seráo modelo de desenvolvimento do país.

Recebido para publicação em 06 de abril de 2013Aceito em 11 de junho de 2013

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A RETOMADA DO DESENVOLVIMENTO E A REGULAÇÃO ...

Paulo Eduardo de Andrade Baltar – Doutor em Ciência Econômica. Professor Associado da UniversidadeEstadual de Campinas. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia do Bem-Estar Social.Entre várias publicações em periódicos e livros, é coorganizador (com José Dari Krein e Carlos SALAS) deEconomia e trabalho: Brasil e México. 1ª ed. São Paulo: LTr, 2009. v. 7. 271p. Universidade Estadual deCampinas, Instituto de Economia, Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho.

José Dari Krein – Doutor em Economia Social e do Trabalho. Professor da Universidade Estadual de Campi-nas - UNICAMP. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Emprego, Relações de Trabalho,Sindicalismo e Negociação Coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: flexibilização, legislaçãotrabalhista, reforma, sindicalismo, trabalho, reestruturação produtiva, emprego, tecnologia, trabalho, saláriomínimo e desenvolvimento econômico. Publicou, entre artigos e livros, As relações de trabalho na era do

neoliberalimo no Brasil. 1a. ed. São Paulo: LTR, 2012, v. 8, 319p. Universidade Estadual de Campinas,Instituto de Economia.

RESUMPTION OF DEVELOPMENT AND THEREGULATION OF THE LABOR MARKET IN

BRAZIL

Paulo Eduardo de Andrade BaltarJosé Dari Krein

This article establishes a relationshipbetween the dynamics of contemporary capitalismin Brazil and the challenges of discussing publicregulation of labor. The debate in Brazil takes intoconsideration these aspects: 1) changes tocontemporary capitalism have led to implicationswhich are unfavorable to public regulation of la-bor and to collective action by workers; 2) theresurgence of economic growth has made it possibleto redefine the terms of the debate on labor in Brazil;3) the current crisis brings into discussion thepossibility of the State taking a more active role ineconomic development; 4) demographic trendshave increased the weight of the adult EAP, whichhas implications in the functioning of the labormarket. The positions are polarized thus: 1) thedefense of structuring the work market withimplications in the quality of social relations; 2)business affirmation, which stresses the need formore flexibility in hiring, duties and pay for work.

Key words: Labor. Regulation. Economy anddevelopment. Flexibilization.

LA REPRISE DU DÉVELOPPEMENT ET LARÉGULATION DU MARCHÉ DU TRAVAIL AU

BRÉSIL 

Paulo Eduardo de Andrade BaltarJosé Dari Krein

L’article établit une relation entre ladynamique du capitalisme contemporain au Brésilet les défis concernant la discussion pour unerégulation publique du travail. Le débat au Brésilprend en considération les aspects suivants: 1)les transformations du capitalisme contemporaindémontrent avoir des implications négatives pourla régulation publique du travail et pour l’actioncollective des travailleurs; 2) la reprise de lacroissance économique a permis de redéfinir lestermes du débat sur le travail au Brésil; 3) la criseactuelle remet en question la capacité de l’Etat àjouer un rôle plus actif dans le développement del’économie; 4) les tendances démographiques sonten train d’augmenter le poids de la populationéconomiquement active adulte, ce qui a desconséquences sur le fonctionnement du marchédu travail. Les positions se situent entre deuxtendances: 1) la défense d’une structuration dumarché du travail avec des implications pour laqualité des relations sociales; 2) la déclaration desentreprises qui met en évidence le besoin d’uneplus grande flexibilité au niveau des contrats, del’utilité et de la rémunération du travail.

MOTS-CLÉS: Travail. Régulation. Économie etdéveloppement. Flexibilité.

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JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO: elementospara uma agenda de investigação

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A crise econômica pós-2008, acompanhada de grandes protestos sociais em toda parte, acen-deu a luz vermelha nos países mais ricos quanto às oportunidades de trabalho e estudo dosjovens. Aumentou muito a proporção daqueles que não estudam nem trabalham, em especialna Espanha e na Grécia, mas o fenômeno é disseminado nos países mais ricos. O artigo mostraque, no Brasil, a condição “nem nem” é estrutural, e propõe um modelo analítico de explicaçãodas transformações ocorridas entre 2000 e 2010. Sugere que as mudanças estruturais por quepassou o país e as políticas públicas de redução de barreiras ao acesso à escola e ao mercado detrabalho reduziram o impacto das desigualdades regionais e aumentaram o peso da pobreza naexplicação da condição “nem nem” dos jovens.PALAVRAS CHAVE: Juventude. Mercado de trabalho. Mudanças estruturais. Condição “nem nem”.Modelos causais.

APRESENTAÇÃO

A crise econômica iniciada em 2008, quecompleta seu quinto ano enquanto escrevo, acen-deu a luz vermelha nos países mais ricos do mun-do no que respeita às chances de inserção dos jo-vens no mercado de trabalho. Uma situação queera pensada como típica dos países do sul da Eu-ropa (em especial Espanha, Itália e Portugal) disse-minou-se pelo continente. Refiro-me à condição“ni ni”, denominação espanhola para os jovensque não estão nem na escola nem trabalhando.Dados para os 34 países da Organização para aCooperação e o Desenvolvimento Econômico –OCDE – revelam que 16% dos jovens de 15 a 29anos estavam nessa condição em 2010,1 sendo que

a taxa era de 18% entre as mulheres e 14% entreos homens (OCDE, 2012, p. 382).

Em razão da disposição militante dos jo-vens, depois da crise de 2008, esse quadro de 2010foi tratado por muitos como crítico, isto é, fruto desurpreendente dissolução das estruturas anterio-res de probabilidade de acesso a posições na esco-la ou no mercado de trabalho. Contudo, olhandoos dados da OCDE em mais detalhe, descobre-seque a incidência do fenômeno é bem mais disse-minada e extensa no tempo, isto é, a “condiçãonem nem” não é uma novidade nas dinâmicassocial e econômica contemporâneas. Tomando-seo período de 1997 a 2010, entre os jovens de 20 a24 anos a média de “nem nem” naqueles paísesmais ricos nunca foi inferior a 13%, atingindo opico de 17,6% em 2010.2 A novidade, então, pare-ce ser o aumento importante da intensidade dofenômeno, concentrado num período muito curtode tempo, que lhe deu estatura de problema soci-al e político de monta.

Neste artigo, não se pretende analisar o fe-

* Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Insti-tuto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Esta-dual do Rio de Janeiro – IESP-UERJ –, Pesquisador Asso-ciado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento edo Warwick Institute for Employment Research, Cientis-ta do Nosso Estado da FAPERJ e Pesquisador 1 do CNPq.Rua da Matriz, 82. Cep: 22260-100. Botafogo – Rio deJaneiro, RJ – Brasil. [email protected]

1 A OCDE utiliza o acrônimo NEET (Neither Employed,nor in Education and Training) para designar o fenôme-no dos jovens que não estudam nem trabalham. VerOCDE (2012). 2 Ver a tabela total em http://dx.doi.org/10.1787/888932667520.

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nômeno nos países mais ricos, e sim, tomá-loscomo referência para a análise do caso brasileiro.Por que, entre nós, o problema, também geral eextenso no tempo, não tinha ganhado, até pelomenos meados de 2013, as mesmas tintas explosi-vas? Depois de comparar as duas realidades e ela-borar teoricamente a persistência do problemageracional no mundo contemporâneo, procuro res-ponder a essa pergunta construindo um modelologístico de explicação da probabilidade de umjovem estar na condição “nem nem” no país, com-parando 2000 e 2010 a partir dos dados dos cen-

sos demográficos do IBGE. Argumento que a “con-dição nem nem” é fruto da conjunção de dois fei-xes de determinantes: de um lado, os contextosde inserção social dos jovens (a família, o sistemaescolar e o mercado de trabalho); e, de outro, astrajetórias dos indivíduos. Os dois feixes são mar-cados por desigualdades de todo tipo, e o objetivoda análise é identificar tendências e mudanças notempo, formular hipóteses sobre a direção dessasmudanças e seu efeito na relação dos jovens com acondição “nem nem”, e, por fim, levantar ques-tões de pesquisa e de políticas públicas para o país,

relacionadas ao problema dajuventude e sua relação como trabalho e o desenvolvi-mento. Um dos principaisargumentos sustentadosaqui é o de que o caráter es-trutural do fenômeno “nemnem” no Brasil é um dos ele-mentos centrais da tambémestrutural resistência à que-da dos indicadores de desi-gualdade econômica e soci-al, o que abre os horizontesdo combate à desigualdadepara a inclusão desse fenô-meno, estrutural e persisten-te, na agenda das políticaspúblicas e da pesquisa soci-al por aqui.

UM FENÔMENO ESTRU-TURAL

Desdobremos os da-dos disponíveis para algunspaíses ricos segundo o sexo.O Gráfico 1 ilustra a evolu-ção da proporção de homense mulheres entre 15 e 29anos de idade que não esta-vam nem estudando nemtrabalhando nos 21 países da

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União Europeia,3 para o período 1997-2010, segun-do faixas etárias. Chama a atenção a dessemelhançasegundo o sexo, tanto nas proporções quanto nomovimento das curvas temporais das diversas fai-xas etárias. As proporções de homens “nem nem”são sempre menores do que as de mulheres, e oimpacto da crise de 2008 foi muito mais intensono caso deles, que viram a taxa de exclusão daescola e do trabalho subir mais de 3 pontospercentuais nos dois anos posteriores ao estouroda bolha imobiliária norteamericana, contra 1 pontopercentual no caso delas.

Descendo aos detalhes, a linha micropontilhadaexpressa o total da população analisada (15 a 29anos) de cada sexo. Por ela vemos que, entre 1997e 2008 a taxa de mulheres “nem nem” caiu quaseconstantemente (ficando estável entre 2003 e 2005),saindo de pouco mais de 20% para atingir 15% aofinal do período de 12 anos, voltando a aumentarum ponto percentual de 2008 a 2010. O ano de2008, pois, foi momento de inflexão num proces-so contínuo de redução do que eu denominareiaqui, provisoriamente, de “taxa nem nem de ex-clusão” das mulheres. Esse movimento pode serexplicado pela também contínua entrada delas nomercado de trabalho, processo cujas raízes remon-tam, na Europa, aos anos 1960, mas que, aparen-temente, ainda não se completou.4 Note-se que a

queda mais intensa ocorreu junto às mulheres entre25 e 29 anos, seguidas pelas de 20 a 24. No pri-meiro grupo, boa parte, senão a maioria delas, jáhavia completado seus estudos. Logo, o que estásendo ilustrado é um processo constante de troca,pelas mulheres, de formas de inscrição socialcentradas no mundo doméstico, pelo mercado detrabalho. A queda na faixa de 20 a 24 anos tam-bém é expressiva (7 pontos percentuais até 2008) edenota o mesmo processo de incorporação ao mer-cado de trabalho, elemento menos presente na fai-xa etária mais jovem (15 a 19 anos), cujas propor-ções das que estavam na escola ainda eram muitoaltas. Na verdade, segundo a mesma fonte de da-dos, para essas adolescentes a redução da propor-ção de “nem nem” se deveu não à entrada no mer-cado de trabalho, mas, sobretudo, ao aumento daproporção que continuou estudando.

No caso dos jovens homens, os movimen-tos são menos intensos até 2008, e mais abruptosa partir de então. A linha micropontilhada (queilustra toda a amostra de 15 a 29 anos) revela pe-quena variação em torno da média de 11% entre1997 e 2004, caindo mais fortemente até 2008 para,então, crescer de forma importante até 2010, atin-gindo quase 14% de “nem nem”. Tal como no casodas mulheres, as maiores taxas de exclusão dobinômio escola-trabalho se deram na faixa de 20 a 24anos e de 25 a 29 anos (ambas com crescimento de 5pontos percentuais, ou mais, em apenas dois anos),e as proporções foram bem maiores no caso deles.

É importante notar que, tanto no caso doshomens quanto no das mulheres nessas faixasetárias, entre 2008 e 2010 aumentou um pouco aproporção dos que permaneciam na escola (comisso adiando sua entrada no mercado de trabalho),o que quer dizer que o aumento dos “nem nem”deveu-se, quase exclusivamente, ao desempregode jovens antes ocupados, e que já tinham deixa-do a escola. E o processo é mais intenso para oshomens do que para as mulheres.5

3 A OCDE inclui os países mais ricos, como os da UniãoEuropeia, Estados Unidos, Japão, Austrália e Canadá,além de países de renda média como México e Chile. Amaior diversidade interna à OCDE justifica um olharmais refinado nos países europeus, que, ademais, so-frem de maneira muito pronunciada os efeitos da crisede 2008 sobre o emprego dos jovens.

4 Para análise de longo curso sobre o processo de inclusãodas mulheres no mercado de trabalho na Europa comoum todo, ver Crouch (1999) e também Costa (2000). Avasta literatura sobre o tema enumera uma série de ex-plicações, concomitantes ou concorrentes segundo ocaso, tais como a redução da taxa de fecundidade, dosencargos com filhos (assumidos pelos Estados de Bemestar, como creches e escolas), maior duração das licen-ças maternidade e paternidade (que reduzem a incompa-tibilidade entre ter filho e manter o emprego), mudançasde mentalidade quanto à divisão sexual do trabalho nomundo doméstico, mudanças na divisão social do tra-balho por sexo, redução do emprego industrial e aumen-to do emprego nos serviços e comércio, políticas ativasde emprego em favor das mulheres, expansão de formasflexíveis e temporárias de emprego (como mostrado emOCDE, 2002), atraentes para mulheres com filhos e osdesempregados, dentre as mais importantes. Para estu-dos comparativos mais recentes numa literatura sempreem expansão, ver Thevenon (2009) e, numa perspectivaeconométrica, Cipellone et al (2012).

5 A literatura econômica sobre a entrada das mulheres nomercado de trabalho tem chamado a atenção para o fatode que elas competem, sobretudo, com os homens maisjovens, com isso contribuindo para aumentar sua taxade desemprego (Pissarides et al., 2003).

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Desse ponto de vista, parte do fenômenomidiaticamente tratado como novo, que estaria afe-tando de forma diferenciada uma geração específi-ca, agora rotulada de “geração nem nem”, na ver-dade é desemprego juvenil em larga escala, ocor-rendo entre jovens que já haviam deixado a escolapara trabalhar e que, diante da redução das pers-pectivas do mercado de trabalho, já não conseguememprego, ou decidiram, ou estão em condições (ten-do em vista as salvaguardas dos estados de bemestar na Europa ou as redes de proteção familiar)de esperar por uma ocupação num futuro melhor.6

Pequena parte dos afetados pela crise retomou osestudos, enquanto outra pequena parte dos que,de outro modo, teriam deixado a escola, decidiupermanecer nela, aspecto mais saliente entre asmulheres de 15 a 24 anos. Mas proporção elevadados jovens europeus (mais de 18% dos jovens de20 a 29 anos, valor que chegou a 22% na Grécia e28% na Espanha em 2010, segundo a mesma fon-te do Gráfico 1) simplesmente não tinha empregopara si, já tendo abandonado a escola.7

O mais importante a reter desses dados,contudo, é que estamos diante de um fenômeno

estrutural, que atinge proporções relevantes dehomens e mulheres jovens há muito tempo (por-tanto, devemos falar de gerações sucessivas de “nemnem”), tendo-se agravado depois de 2008, a pontode provocar uma crise social de proporções conti-nentais, colocando os jovens, uma vez mais, nocentro da contestação à ordem econômica global esuas instituições de sustentação, nacionais esupranacionais.8 O agravamento do fenômenotransformou-o de questão estrutural em problema

social e inflamou a disposição militante de jovenspor todo o mundo desenvolvido.

É uma trivialidade sociológica afirmar que aentrada na vida adulta, enquanto realização deprojetos de inscrição social e afirmação de identi-dades, não tem o mesmo significado para homense mulheres. Mas o esquecimento dessa trivialida-de pode levar a interpretações equivocadas, cegasem relação às diferenças de gênero. É preciso in-sistir, pois, que, no caso das mulheres, estar forada escola e do trabalho não necessariamente deno-ta frustração de expectativas ou desestruturaçãode projetos de vida, como pode ser o caso para amaioria dos homens, em especial os mais velhosentre os jovens. Uma proporção significativa delasestará, na verdade, realizando projetos de mater-nidade ou de casamento (em especial entre as maisvelhas), com isso adiando sua entrada no merca-do de trabalho, embora já tenham completado ociclo escolar. Mas a proporção do fenômeno nocontinente europeu permite suspeitar que, tambémno caso delas, a crise afetou parte significativa dasque tinham projetos de vida centrados no mundodo trabalho.

GERAÇÕES “NEM NEM” NO BRASIL

O Brasil viveu momento semelhante ao quese viu na Europa em anos recentes, tanto no quese refere ao desemprego juvenil quanto na propor-ção de “nem nem” na população mais jovem. Mas,aqui, os movimentos têm sido bem menos inten-sos. Em primeiro lugar, como na Europa, as mu-lheres vêm deixando cada vez mais a condição de“nem nem” rumo ao mercado de trabalho, mas emritmo mais brando. Como mostra o Gráfico 2, em1999, 30,5% das jovens entre 15 e 29 anos (linhapontilhada superior do gráfico das mulheres) esta-vam nessa condição, proporção que atingiu poucomenos de 27% em 2008, subindo um pontopercentual daí a 2011. E, tal como no caso euro-peu, a queda mais acentuada ocorreu na faixa etáriade 25 a 29 anos (queda de 40% para 33% de “nemnem”), portanto de mulheres entrando na maturi-

6 Para os regimes mistos de bem estar na Europa e naAmérica Latina, ver Dombois (2012).

7 Estudo importante da condição “nem nem” no Japão éBrinton (2011). A autora mostra como a crise dos anos1990 rompeu o padrão de transição de escola para o tra-balho naquele país, principalmente, mas não exclusiva-mente, entre as classes mais baixas, tornando o termoNEET corrente na literatura dos anos 2000, algoimpensável nos 20 anos anteriores.

8 Os movimentos sociais contra a crise não são objetodesta análise, e, obviamente, não se restringiram aosprotestos de jovens “nem nem”. Mas não há dúvida deque sua energia contribuiu para radicalizar os movimen-tos. Ver, por exemplo, Givans e Soule (2011), os váriosartigos em Gohn e Bringel (2013), além de Estanque etal. (2013).

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dade e que, mesmo estando em sua maioria já ca-sadas ou com filhos (segundo a mesma fonte dográfico), passaram a estar mais intensamenteengajadas no mercado de trabalho (e estudandoem menor proporção). Aqui, como na Europa, aredução da proporção de mulheres fora da escolae do mercado de trabalho expressa a crescente pro-cura por inserção produtiva por parte delas, e nãotanto o retorno à escola para retomada dos estu-dos. Ainda assim, a proporção de jovens mulhe-

res “nem nem” no Brasilfoi de pelo menos 13pontos percentuais acimada média europeia aolongo do período.

Aqui, ao contrárioda Europa, não podemosfalar numa “geração nemnem”, ou de um grupoetário específica e inten-samente afetado pela cri-se de 2008. A linha pon-tilhada do gráfico relati-vo aos homens de 15 a29 anos deixa clara a pe-quena variação em tornoda média de 11,2% (des-vio padrão de apenas 0,3pontos percentuais) dejovens excluídos do tra-balho e da escola ao lon-go dos 12 anos retratadosaqui. A partir de 2008,houve pequeno aumen-to na taxa, de 10,8% para11,9%, mas não a pontode provocar uma “explo-são” de exclusão capaz,por exemplo, de ser per-cebida como crítica. Ainflexão observada ocor-reu no interior da zona devariação (em torno da mé-dia) típica da década an-terior. E, vale notar que

esse comportamento médio, isto é, relativo a todo ogrupo de 15 a 29 anos, se repetiu em cada faixaetária em particular, com possível exceção dos maisjovens entre eles (15 a 19 anos). Aqui, o desviopadrão foi um pouco maior (0,6 pontos percentuais),com crescimento de 10% para 11,4% na taxa “nemnem” de exclusão entre 2008 e 2011. Ainda assim,trata-se de crescimento longe de poder ser conside-rado explosivo, mesmo se imaginarmos que, nessafaixa etária, quando fora dos ambientes de sociali-

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zação secundária mais importantes (a escola e o lo-cal de trabalho), os jovens estão em posição maisvulnerável vis-à-vis o que se poderia denominar “osapelos do mundo”, isto é, as redes sociais concor-rentes que convocam constantemente seuengajamento.9

O caso das mulheres é algo diverso, porquea queda na taxa “nem nem” de exclusão vinha ocor-rendo de maneira lenta, mas contínua, queda quefoi interrompida bruscamente em 2008. Ainda as-sim, a interrupção, aparentemente, não foi tal quetivesse potencial para gerar a percepção de que seestava vivendo uma crise social.10

Esse rápido quadro mostra que a faixa etáriaescolhida pela OCDE apresenta problemas analíti-cos importantes. Idades entre 15 e 29 anos expres-sam momentos biográficos muito distintos. Aosquinze anos, estar fora da escola é uma “anomalia”que diz muito sobre o sistema escolar, que deveria

ser o destino de todos eles, ainda mais na novaconfiguração do Ensino Fundamental no Brasil,com duração de 9 anos ou séries. Aos 15 anos, atotalidade dos(as) jovens deveria estar estudando,de preferência na nona série (num currículo nor-mal, sem atrasos ou repetência), enquanto outraparte poderia estar no primeiro ano do EnsinoMédio.11

Na outra ponta do espectro etário sugeridopela OCDE (que mantive para efeito desta compa-ração), os/as jovens de 29 anos, em princípio, jáderam início à sua vida produtiva, e, ao contráriodos muito jovens, deles deve-se esperar que este-jam procurando emprego ou trabalhando em suamaioria ou, no caso das mulheres, em parte viven-

do projetos de construção familiar.12 Em todo caso,ainda que ter filho estivesse associado à maior pro-porção de mulheres adultas “nem nem”, as quetrabalhavam eram a maioria (62% das mães e 76%das que não tinham filho), e uma pequena propor-ção apenas estudava.

Isso recomenda parcimônia na delimitaçãodo espectro etário relevante para a análise da con-dição “nem nem”. Abro, então, um parêntese paraavaliar o problema com maior rigor.

SOBRE JUVENTUDE E GERAÇÕES

Num momento dado da biografia de umapessoa (indivíduo de uma geração determinada), elaé o produto de sua trajetória, o resultado acabado,até aquele ponto, de suas escolhas e ações passadasou, quando muito jovens, das escolhas, ações eomissões (mais ou menos restritas ou favorecidaspela classe social ou trajetória de vida) de seus paisou responsáveis quanto a em que escola estudar,em que bairro morar, que atividades físicas ou artís-ticas desenvolver, que amigos favorecer ou evitaretc. Como ponto de chegada de biografia mais oumenos escolhida, mais ou menos vivida como resí-duo das escolhas de outros, ou seu resultado, apessoa é, também, um conjunto multidimensionalde possibilidades, cuja finitude é função dos recur-sos socialmente disponíveis, disponibilidade queestá, desde logo, desigualmente distribuída. As pes-soas não nascem iguais em suas potencialidades epossibilidades. A desigualdade está inscrita no ter-ritório de nascimento (campo ou cidade, cidade gran-de ou pequena, o Brasil ou a Suécia), na existênciaou não de hospitais e condições adequadas de sa-lubridade do local de nascimento, nos recursos fi-nanceiros e culturais das famílias, no acesso à saú-de pré-natal da mãe e do bebê etc., e nada disso estáigualmente distribuído. Isso é uma trivialidade so-ciológica, e serve apenas para deixar claro, desde

9 Refiro-me ao mundo do crime, ao ócio improdutivo, àsredes sociais reais (as gangs, turmas e galeras) ou virtu-ais, e, também, o mundo religioso etc.

10 Os movimentos coletivos de junho de 2013 no Brasilnão parecem ter sido detonados pela crise de desempre-go juvenil. O estopim da mobilização foi o Movimentopelo Passe Livre (MPL), uma organização estudantil, e,na infinidade de demandas difusas propostas pelos jo-vens nas ruas, não estava o fim do desemprego, comofoi o caso na Europa, muito especialmente em Portugale na Espanha.

11 E, de fato, 92% dos jovens daquela faixa etária estavamestudando em 2011, segundo a mesma fonte do Gráfico2. Mas 8,3% dos homens e 7,8% das mulheres já nãoestavam na escola. E dois terços desses jovens tampoucoestavam no mercado de trabalho, seja empregados ouprocurando emprego.

12 Na verdade, ter tido um filho impacta mais intensa-mente as mulheres mais jovens. Nada menos que 70%das mães de 15 anos eram “nem nem”, taxa que caía a35% no caso das mães que tinham 29 anos. Entre asmulheres sem filhos nesta faixa etária, a proporção de“nem nem” caía para 21%.

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logo, que as pessoas não são potencialidades

indeterminadas ao nascer. Seus caminhos possíveisconfiguram um conjunto de probabilidades de des-tino em etapas sucessivas da vida que apenas mui-to tardiamente são vividas pela pessoa como pro-priamente fruto de escolhas suas.13

Num momento determinado da vida, pois, apessoa é o ponto de chegada de potencialidadesdesiguais no ponto de partida tornadas, na trajetó-ria de vida, corpos desiguais, habilidades físicas ementais desiguais, recursos socioeconômicos desi-guais inscritos em redes institucionais e de interaçãoque configuram capitais econômico, cultural e soci-al desiguais. Toda pessoa, queira ou não, saiba dis-so ou não, traz consigo o seu passado. Mas ela é,também, um conjunto de potencialidades que nãoestão jamais inscritas inteiramente em seu passadocomo campo de determinações já realizadas em seucorpo e em sua mente. O que a pessoa é (na totali-dade finita de suas determinações atuais em termosde recursos econômicos, habilidades cognitivas,disposições físicas, constituição emocional, prefe-rências, projetos de vida e padrões éticos) nos per-mite tecer hipóteses bastante plausíveis sobre suasoportunidades de vida no futuro, mas essas hipó-teses estão destinadas a ser negadas em boa parte.Isso porque a sociedade moderna é aberta até certoponto,14 fluida até certo ponto, obviamente de ma-neira diversa para as diversas classes sociais, mas éindubitável que está em constante transformação,sendo esta uma característica definidora damodernidade (Giddens, 1991). Se o médio prazoestá sendo parido nas entranhas do presente, e terádele aquilo que, em toda sociedade, é acomodaçãode processos de história lenta (as mudançaspopulacionais, as transformações na estrutura pro-dutiva, a configuração institucional do Estado, nela

o sistema educacional etc.), permitindo, com isso,grande previsibilidade dos movimentos em grandeescala, por outro lado, é muito difícil prever, comsegurança, o destino de um indivíduo em particulare mesmo de comunidades inteiras. Quando as co-munidades imaginadas que são as nações (Anderson,1993) atingem certo patamar de renda e riqueza, omundo de possibilidades e oportunidades abertas aseus membros deixa de ser um conjunto de impossi-

bilidades ou barreiras à mobilidade ou à fruição dosrecursos socialmente disponíveis, e isso para parce-la crescente dos concidadãos. Isso porque o cresci-mento econômico, em toda parte, ganha a forma,dentre outras coisas, de recursos materiais e simbóli-cos públicos, mesmo quando destinados a favorecera atividade econômica e a acumulação de capital. Ro-dovias, ferrovias, energia e os muitos serviços de co-municação são apenas alguns exemplos desses mei-os e recursos que, criados pela e para acumulaçãocapitalista, melhoram as condições de vida de parce-las crescentes da população. A materialização dessesrecursos no território lhes dá durabilidade, e, umavez materializados, eles mudam as probabilidadesde percurso de grupos inteiros de indivíduos, comisso dificultando a construção de prognósticos plau-síveis sobre sua vida no futuro.

O acesso a esses recursos é desigualmentedistribuído, claro, e um dos marcadores centraisdessa desigualdade é, justamente, a idade. Maisainda quando se miram os mercados de trabalho eescolar. Mudanças sociais ocorrendo num perío-do específico não afetam da mesma maneira as di-ferentes gerações. Uma crise no mercado de traba-lho que reduza de forma importante as chances deemprego dos mais jovens (como o que ocorre hojena Europa e muito especialmente na Grécia e naEspanha) tem efeitos sobre todos, mas os jovensterão comprometidas suas chances de vida pormuitos anos, provavelmente para o resto de suasvidas.15 Do mesmo modo, uma hecatombe nuclear

13 Bourdieu (2007[1979]) chamou a atenção para o carátersistemático e de classe das probabilidades de trajetóriasde vida. Uma crítica interna ao constructo bourdieusianoé Lahire (2001), que recusa a ideia de habitus comocorporificação das trajetórias pessoais. Sua noção de dis-posições é mais próxima do que proponho aqui.

14 É conhecida a formulação “tudo que é sólido desman-cha no ar” de Marx no Manifesto Comunista, apropriadapor Marshall Berman em seu livro de mesmo nome, noqual a modernidade é apresentada como uma era fáustica.O próprio Berman (1982) sugere que o faustianismo damodernidade bebe do sangue dos trabalhadores.

15 A literatura sobre impactos de eventos de desempregojuvenil na vida produtiva posterior tem longa história naEuropa, onde pesquisas longitudinais são comuns. Paracomparações entre vários países, ver Russel e O’Connell(2001), Bradley e van Hoof (2005) e Wolbers (2007). Pers-pectivas de longo prazo são Steijn (2006), sobre a Holanda,e Vanttaja e Järvinen (2006) sobre a Finlândia. Ver aindaShildrick e MacDonald (2007) sobre as trajetórias de ex-clusão dos mais pobres na Inglaterra.

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tem o mesmo efeito sobre a saúde de todos, mas oefeito é mais duradouro para os mais jovens, queprecisarão construir suas vidas com um handicap

sanitário que terá duração mais curta para os maisvelhos, muitos deles já aposentados. As geraçõeschegadas ao sistema educacional num momentode universalização da oferta ou de melhoria gene-ralizada de sua qualidade terão condições melho-res de acesso a melhores posições no mercado detrabalho do que gerações imediatamente posterio-res, ou eventualmente anteriores, que sofram commomentânea, mas duradoura (tendo em vista asjanelas temporais de suas vidas) crise do ensinono futuro (por exemplo por desinvestimento, comoocorreu na Argentina nos anos 2000 e tende a ocor-rer na Grécia e na Espanha hoje, fruto da falênciados estados de bem estar nos dois países). Guerrascivis têm efeito semelhante, e assim por diante.

Além disso, as sociedades demarcam bar-reiras à entrada em dimensões institucionais quesão, muitas vezes, em parte ou exclusivamenteetárias: classificação etária de eventos culturais, porexemplo, com fronteiras rígidas (proibindo a en-trada de menores de 18 anos – como nos cinemasou casas noturnas) ou mais latas, mas, ainda as-sim, importantes, como a proibição do trabalhopara menores de 14 ou 16 anos, dependendo dopaís, a obrigatoriedade de aposentadoria a certaidade etc. Se essas barreiras se aplicam a todos osmembros de uma certa idade em qualquer tempo(desde que as regras não mudem), num momentodado do tempo é uma geração específica que asvivencia, aquela que tem 14 ou 16 anos ou a idadeobrigatória de aposentadoria, por exemplo. No anoseguinte, serão outras pessoas etc., mas é um gru-po específico de pessoas a cada vez que vive amesma experiência e ao mesmo tempo.16

É nesse sentido que é possível falar-se numageração “nem nem” em certos países europeus,um grupo etário que trará consigo uma marca cole-

tiva e comum a todos os seus membros, de dificul-dade ou impossibilidade de acesso ao sistema edu-cacional e ao mercado de trabalho num mo-mento crucial de suas trajetórias de vida.

Pois bem, avaliado contra esse pano de fun-do, o espectro etário de 15 a 29 anos (utilizadopela OCDE no estudo apresentado mais acima)marca momentos muito distintos nas biografias dosjovens, suas potencialidades e possibilidades. Emtermos substantivos, comparar um/a jovem “nemnem” de 15 anos com outro/a de 29 não faz senti-do, já que boa parte das condições sociais e daspossibilidades biográficas e identitárias dessas ida-des polares é, a rigor, incomensurável. Na seçãoanterior, utilizei a faixa de 15 a 29 anos porque ointeresse era comparar com a situação na Europa,cujos dados foram tornados públicos quando euiniciava a redação deste artigo. Agora, é preciso sermais rigoroso na delimitação do escopo empíricoda análise, se o que se tem em mente é compreen-der, de maneira adequada, a condição “nem nem” eformular uma agenda de pesquisas para o país, ten-do em vista, sempre, determinações epotencialidades de trajetórias sociais que, de algummodo, permitam a realização de projetos virtuososde inclusão social, isto é, longe das zonas devulnerabilidade representadas por empregos precá-rios, desemprego, ausência de proteção social etc.

Proponho como faixa etária de interesse parao estudo da condição juvenil “nem nem” comoum problema social digno de se transformar emproblema sociológico, aquela entre 18 e 25 anos.Sustento que, nessa faixa etária, faz sentido usar otermo “taxa nem nem de exclusão” como umamedida da vulnerabilidade social dos jovens, ten-do em vista que:1. Aos 18 anos a maioria dos jovens brasileiros já

deixou ou está em vias de deixar o ensino mé-dio.17 Como a taxa de transição para o ensino

16 O problema das gerações frequenta a discussão socioló-gica de tempos em tempos, sem nunca deixar a cenateórica ou de pesquisa. Os trabalhos pioneiros são, obvi-amente, Ortega y Gasset (1987) e Manheim (1928), mascrises periódicas, que afetam gerações de jovens, colo-cam de novo o tema em evidência. Foi o caso com omovimento estudantil de 1968 no mundo e é o casoagora, na discussão da “geração nem nem”. Para o maiode 1968, analisado do ponto de vista geracional, verEisenstadt (2002). Domingues (2002) é uma boa siste-matização do debate teórico sobre o tema.

17 Ver Leão et al. (2011); Silva et al. (2012). Pesquisa quan-titativa importante sobre as mudanças nos padrões deentrada no mercado de trabalho é Tomás et al. (2008).

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superior é historicamente baixa no país (Pinto,2004; Comin e Barbosa, 2011, Torche e Ribeiro,2012), deixar o ensino médio significa, para amaioria dos jovens, deixar o sistema escolar,mesmo que provisoriamente.18 No caso das mu-lheres, por exemplo, a proporção de “nem nem”saltou de 19% aos 17 anos para 30% aos 18 em2011 (segundo a PNAD), mantendo-se nessepatamar ou em nível levemente superior nas ida-des subsequentes. No caso dos homens, segun-do a mesma fonte (PNAD), a proporção saltoude 11% para 18% entre os 17 e os 18 anos, cain-do a partir daí até 11% aos 25 anos, taxa que semanteve nas idades subsequentes. Trata-se, pois,de idade (18 anos) marcadora do abandono daescola e da possível entrada no mercado de tra-balho para boa parte dos jovens. Geradora, por-tanto, das tensões e inseguranças típicas das tran-sições biográficas cruciais, e que resulta em frus-tração de expectativas de emprego para boa par-te deles ou, ainda, de inserção precária e insegu-ra no mercado de trabalho.

2. Aos 25 anos, as taxas de exclusão “nem nem” estãoestáveis para homens e mulheres, em torno de 11%no primeiro caso e de 32% no segundo. A idadeparece perder influência a partir desse marcadorbiográfico. Isto é, parece plausível imaginar que, naexplicação da condição “nem nem”, ganham rele-vância características multidimensionais,extraetárias, relativas ao ambiente social maisgeral em que os jovens passam a circular.

Isto posto, voltemos à questão central quenos guia nesta investigação: o que explica as taxas“nem nem” de exclusão no Brasil? Por que, poraqui, elas não provocaram a mesma comoção quena Europa? Para oferecer respostas tentativas a es-sas perguntas e extrair delas elementos para umaagenda de pesquisas e políticas públicas, no quese segue, apresentarei dois modelos logísticos, ten-do a condição “nem nem” de jovens de 18 a 25anos como variável dependente para os anos 2000

e 2010 no Brasil. Os modelos foram construídos apartir dos dados dos Censos Demográficos reali-zados naqueles anos. Diferentemente do que foifeito até aqui, a condição “nem nem” será definidacomo a totalidade dos jovens de 18 a 25 anos quenão estavam nem na escola nem no mercado detrabalho, quer dizer, não tinham um emprego enão estavam em busca de um. Na discussão ante-rior, incluí os que procuravam trabalho (ação quedefine um desempregado) porque o interesse eracomparar com os dados disponíveis para a OCDE.Agora, interessa a condição “nem nem” purificadados jovens que tinham, ao menos, a expectativa deum emprego, expectativa expressa nas ações que to-maram para conseguir um. Essa definição torna maisapropriado falar-se em “taxa nem nem de exclusão”,já que os jovens deveriam estar na escola ou, se foradela, ao menos procurando trabalho. Não estandonem numa nem noutra condição, estão, de fato, ex-cluídos de duas das principais estruturas de sociali-zação e construção de identidades sociais para pes-soas nesse estágio de suas biografias.

UM MODELO PARA EXPLICAR A CONDIÇÃO“NEM NEM”

Partamos da conhecida formulação de Marxno 18 Brumário: as pessoas fazem sua própria his-tória, mas “não a fazem sob circunstâncias de suaescolha e sim sob aquelas com que se defrontamdiretamente, legadas e transmitas pelo passado”(Marx, 1978, p. 331). Essas circunstâncias estãomaterializadas na estrutura dos mercados de tra-balho dos locais onde vivem; na rede de estrutu-ras estatais de suporte à vida e à atividade econô-mica; no conjunto de recursos existentes no terri-tório onde as pessoas constroem sua trajetória devida. Como já se sugeriu, tudo isso está desigual-mente distribuído em termos geográficos. Um mo-delo de explicação das probabilidades de exclu-são da escola e do mercado de trabalho deve terem conta essas diferenças. Alguém pode ser “nemnem” não por escolha ou acaso, mas por morarnum município desprovido de recursos econômi-

18 No Brasil, como se sabe, é grande a proporção de jovens quedeixa os estudos para trabalhar ou ajudar a família e, depois,retomam sua formação escolar quando estão em condiçõesde financiar a universidade, em geral privada. Ver Cardoso(2013), Ribeiro (2011), Comin e Barbosa (2011).

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cos e institucionais, isto é, escola ou emprego paratodos os que queiram estudar ou trabalhar.

Isso delimita a hipótese central a se investi-gar: a condição “nem nem” é fruto tanto de esco-lhas e trajetórias individuais quanto de contextosnos quais as pessoas tomam suas decisões, sobreos quais elas têm pouca ou nenhuma capacidadede intervir diretamente, e que, por isso, funcio-nam como condicionantes mais gerais de suasoportunidades de vida. Uma pessoa pode esco-lher mudar de cidade ou estado (ou mesmo depaís) para melhorar suas probabilidades futuras,mas, num momento dado, essas escolhas já sematerializaram no que estou denominando aquide “taxa nem nem de exclusão” e não podem sermudadas pelo indivíduo isolado.

A segunda hipótese, derivada da anterior,sustenta que, no caso do Brasil, a persistência detaxas elevadas de jovens “nem nem” (que dá cará-ter estrutural a essa condição) vem sendocontrabalançada por mudanças na direção opostaàs observadas na Europa. Por aqui, o contexto eco-nômico era, em 2010, bastante mais favorável doque o de dez anos antes, com isso renovando oshorizontes de expectativa dos jovens e tornandocríveis as perspectivas de inclusão no futuro.

A Tabela 1 apresenta os dados agregadospara o Brasil nos dois pontos no tempo, isto é, adistribuição da taxa “nem nem” de exclusão, queé, também, a variável dependente dos modelospropostos. A proporção total variou pouco, deperto de 21% para perto de 20% de “nem nem”em 10 anos. Estamos falando de 5,5 milhões dejovens em 2000 e 5,3 milhões em 2010. Essa apa-rente estabilidade esconde mudanças importantessegundo o sexo. Confirmando a tendência detec-tada nos dados da PNAD, a taxa “nem nem” deexclusão das mulheres caiu quase 4 pontos

percentuais, enquanto a dos homens cresceu 1,6ponto. Havia 4 milhões de mulheres “nem nem”em 2000, e 3,5 milhões em 2010, enquanto elessubiram de 1,5 para 1,8 milhão de excluídos. Em2000, as mulheres representavam 72% do total dos“nem nem”. Em 2010, 66%. A “taxa nem nem” deexclusão continua a ser muito mais alta entre asmulheres, mas a mudança detectada permite ali-mentar a hipótese de que o efeito das variáveisselecionadas não será o mesmo nos dois pontosno tempo, tanto pelo aumento da proporção dehomens quanto pela queda das mulheres. Issoporque sabemos que homens e mulheres têm des-tinos sociais distintos quando deixam a escola, emgrande parte condicionados pelas hierarquias so-cialmente construídas com base nas relações degênero (Hirata, 2002). E, também, porque ocorre-ram muitas mudanças nos padrões familiares ecomportamentais nos 10 anos que separam os doisrecenseamentos,19 para não falar das mudançaseconômicas discutidas mais abaixo.

A condição social de interesse é fruto dehistória, circunstâncias atuais e escolhas que nãosão adequadamente mensuradas nas pesquisasdomiciliares. Qualidade do ambiente familiar, es-trutura do mercado de trabalho, estrutura da ofer-ta educacional, preferências pessoais ou projetosde vida, nada disso é coberto pelos censosdemográficos. Tudo o que podemos fazer é cons-truir medidas aproximadas a partir dos dados dis-poníveis, e tecer, a partir dessas aproximações,hipóteses sobre as condições subjacentes às práti-cas dos jovens (como a disposição para se mobili-zarem ou não para mudar o destino coletivo deuma eventual “geração nem nem”).

Um modelo multivariado apresenta muitasvantagens, porque permite mensurar o impactoindependente de uma variável, num ambiente com-plexo em que múltiplos determinantes atuam aomesmo tempo. O modelo proposto mescla indica-dores de contexto (familiar e municipal) com indi-cadores de trajetória pessoal dos jovens de 18 a 25

19 Extensa discussão sobre as mudanças na composiçãodas famílias é encontrada em Alves e Cavenaghi (2012).E, ainda, em Leoni, Maia e Baltar (2010).

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anos. Trata-se, portanto, de modelo multinível, queopera com variáveis enquanto agregados construídosa partir das informações sobre os indivíduos, e comvariáveis propriamente individuais. Três agregadosforam construídos para dar suporte à hipótese deque diferentes contextos oferecem chances diversasde inserção social dos jovens:1. Tamanho do município. Variável fruto do agrega-

do dos moradores do município. Os municípiosforam agrupados em faixas de tamanho, como severá. Espera-se encontrar menos “nem nem” quan-to maiores os municípios, na hipótese de que elesoferecem maiores oportunidades de emprego e,também, é a maior a oferta escolar;

2. Mercado de trabalho municipal. Foi construídoum proxi da capacidade de o município oferecerempregos, composto da taxa de participação daspessoas de 10 anos ou mais na PEA, ou seja, aproporção de pessoas com essa idade que estavaempregada ou procurando emprego. A variávelassume o mesmo valor para todos os moradoresdo mesmo município. Logo, ela distingue nãoas pessoas, mas os próprios municípios, unsem relação aos outros, como ambientes em quese gera ou não empregos. Para tornar-seoperacionalizável e comparável nos dois pontosno tempo, transformei a distribuição em decis.Em 2000, os primeiros 10% tinham taxa de par-ticipação na PEA de até 39,09%, enquanto os10% de maior participação tinham taxa de60,79% ou mais. Em 2010, os números eramsuperiores a esses (47,61% e 64,67% respectiva-mente), como era de se esperar, já que foi umano de boom econômico e de geração de empre-gos, o que contribuiu para elevar a taxa de parti-cipação, sobretudo das mulheres. A hipótese,aqui, é a de que, quanto maior a taxa de partici-pação na PEA, menor a proporção de “nem nem”na população mais jovem.

3. Oferta escolar municipal. Trata-se, também, deum proxi. Definiu-se como indicador aproxima-do da existência de uma rede municipal de ensi-no a proporção de pessoas com idade entre 7 e17 anos que estava fora da escola no município.Evitou-se incluir jovens de 18 anos porque essa

faixa etária define a população de interesse (jo-vens de 18 a 25 anos), o que geraria um proble-ma de autocorrelação. Aqui, também, a variávelassume o mesmo valor para todos os morado-res, distinguindo, portanto, os municípios emsua capacidade de manter os jovens na escolaantes dos 18 anos. A variável também foi trans-formada em decis de sua distribuição, pelas mes-mas razões da variável anterior. A hipótese a setestar é a de que quanto mais jovens estejam forada escola num município (expressão da baixacapacidade de investimento municipal), maior achance de que um jovem de 18 a 25 anos seja“nem nem”.

4. Região do país. Ainda como tentativa de contro-le das diferenças geográficas, incluí a região dopaís no modelo. Explorações iniciais do proble-ma mostraram que as regiões Norte e Nordesteapresentam as maiores taxas “nem nem” de ex-clusão, e a região Sul, as menores.

5. Mora na cidade. Esse indicador complementaaquele sobre tamanho do município, ao distin-guir os que moram na cidade e no campo. Ahipótese é que o campo terá menor proporçãode “nem nem” do que a cidade, tendo em vista atradição brasileira de trabalho precoce no mun-do rural.

Os indicadores de contexto familiar são, em boaparte, oferecidos pelos censos demográficos, al-guns sendo perguntados diretamente (como arenda e o número de moradores do domicílio),outros sendo construídos depois pelo IBGE.Além dessas, criei outras para dar mais substân-cia à hipótese da importância da família nas de-cisões e oportunidades dos jovens.

6. Renda familiar per capita. Utilizei a informaçãoque veio originalmente nos censos, transforman-do-a em decis de sua distribuição, também parafacilitar a comparabilidade. A hipótese é a deque quanto mais pobres as famílias, maior a taxa“nem nem” de exclusão, já que é potencialmen-te menor a capacidade das famílias sustentaremseus filhos na escola, menor a escolaridade mé-dia destes e menores as chances de emprego,dada a baixa qualificação.

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7. Tamanho da família. O número de membros dafamília não terá impacto direto, supõe-se, mas pelamediação da renda (de modo que famílias grandescom renda baixa terão chances diversas de famíli-as grandes com renda alta) e das condições estru-turais dos municípios. Ainda assim, quis-se averi-guar se essa variável tem impacto independentedesses outros determinantes e em que direção.

8. Número de filhos de 4 anos ou menos na famí-

lia. Essa é uma variável típica dos estudos sobredeterminantes da renda pessoal ou da participa-ção no mercado de trabalho. A hipótese é queum filho pequeno na família aumenta as chancesde jovens mulheres deixarem os estudos e o tra-balho (seja porque são as mães dessas crianças,seja porque são instadas a cuidar das criançasda família enquanto os adultos trabalham).

9. Há outro “nem nem” na família. Essa variávelfoi incluída na suposição bastante plausível deque, se há um jovem na família em condição vul-nerável, haverá outros na mesma condição. Avariável apresenta dificuldades, já que a pessoaque é “nem nem” está contida em sua definição,isto é, onde há dois “nem nem”, há, necessaria-mente, um. Ao transformar a informação numacaracterística familiar, o problema é, em parte, so-lucionado, sobretudo num modelo multivariadoem que outras variáveis familiares ou contextuaisestão em operação. É um problema decolinearidade, mas decidi pagar o “preço estatís-tico” para ganhar em compreensão do problemacomo algo que parece estar para além dos própri-os indivíduos, embora seja vivenciado por eles.Além dessas variáveis de contexto, geradas se-cundariamente a partir das informações sobre aspessoas, o modelo inclui indicadores individu-ais sobre os jovens, suas características inatas easpectos de sua trajetória pessoal. Já vimos queas probabilidades de se estar na condição “nemnem” são diversas segundo o sexo e a idade.Mas há outras dimensões relevantes disponíveisnos censos demográficos.

10. Sexo. O modelo toma as mulheres como refe-rência, isto é, mede o efeito de ser homem naprobabilidade de ser “nem nem”, por compara-

ção com ser mulher. Espera-se efeito negativo (re-dução da probabilidade), já que esse resultadojá foi apresentado na Tabela 1.

11. Cor. Agregou-se a informação dos censos numadummy distinguindo brancos e não brancos. Osnão brancos são a referência da regressão. Sigo,aqui, a sugestão de Hasenbalg e Silva (2003), quemostraram que as probabilidades de pretos, in-dígenas e pardos distam consistentemente dasde brancos e amarelos, e são muito próximasentre si, tendo em vista o acesso à renda, à edu-cação e ao mercado de trabalho.20

12. Escolaridade. Trata-se de outra dummy agru-pando os que tinham escolaridade menor do queensino fundamental completo (8 anos ou menos),e a referência na regressão são os com mais esco-laridade do que isso. Espera-se que os menosescolarizados sejam “nem nem” em maior pro-porção, já que, tendo 18 anos ou mais, é grande aprobabilidade de que estejam fora da escola. Combaixa qualificação formal, terão, por hipótese, mai-or chance de estar também fora de um emprego.

13. Tem uma restrição física grave. Trata-se de umadummy que indica se a pessoa tem dificuldadepermanente de enxergar, ouvir, caminhar ou temuma doença mental. Supõe-se que qualquer des-sas dificuldades impõe restrições à atividadeescolar ou de trabalho.

14. Mulher com filho. Outra dummy, agora distin-guindo as que têm e não têm filho. É sabido queos filhos são os principais determinantes da sa-ída das mulheres do mercado de trabalho, e sa-bemos, pelos dados do próprio censo, que elesafetam, também, a frequência à escola.

15. Vive com os pais ou padrastos. Supõe-se quejovens vivendo em família têm maior probabili-dade de permanecer estudando, reduzindo aschances de que sejam nem nem.

16. Tem ou teve cônjuge. A vida conjugal, presen-te ou passada, é outro determinante importantedas chances das mulheres (e em menor partedos homens), resultando, frequentemente, noabandono da escola e do trabalho.

17. Morou em outro município além do atual. A20 Ver também Cardoso (2013: cap 3).

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migração dos jovens, para acompanhar os paisou por si mesmos, em geral se acompanha deincerteza quanto à inserção escolar e por vezesempregatícia. Procurou-se mensurar o efeito deter migrado, ainda que sem o controle do perío-do em que essa migração ocorreu, e espera-seque ele seja positivo, quer dizer, aumente a pro-babilidade de ser “nem nem”.

18. Idade. Vimos que a probabilidade de ser “nemnem” varia com a idade, e pretende-se medir adireção do efeito independente desse indicador.

DISCUSSÃO

Os modelos para os anos 2000 e 2010 sãoapresentados na Tabela 2. Ela traz os efeitos líqui-dos de cada indicador, isto é, tem-se o quanto aprobabilidade de ser “nem nem” aumenta ou di-minui quando a condição ocorre, por comparaçãocom a categoria escolhida como referência em cadavariável, mantidos constantes os efeitos de todosos outros indicadores. Com exceção do númerode componentes do domicílio e do número de cri-anças com 4 anos ou menos, todas as variáveis deinteresse foram transformadas em dummies (assu-mem o valor 0 ou 1), e o efeito de cada categoria deuma variável se mede em relação à probabilidadeda categoria de referência. Por exemplo, no casoda renda familiar, se o jovem morava numa famíliaentre as 10% mais pobres em 2000, a probabilida-de de ser “nem nem” era 232,9% maior do que ade um jovem de família entre as 10% mais ricas,categoria de referência selecionada no modelo,mantida constante (pela média) a probabilidade deser “nem nem” em todas as outras variáveis. Em2010, essa probabilidade havia saltado para 797,5%.

Com exceção dos indicadores marcados com(**), todos os outros são estatisticamente significa-tivos em pelo menos 0,01, a maioria superior a0,001, sendo, portanto, muito robustos. Além dis-so, os modelos apresentam falsos R2 de 0,39 em2000 e 0,36 em 2010, indicando que 36% ou maisda variância da taxa “nem nem” de exclusão sãoexplicados por eles.

Os modelos confirmam a hipótese geral so-bre os efeitos de contexto e trajetória, e, com pou-cas exceções, as hipóteses específicas sobre os efei-tos de cada indicador também se confirmam. Ehouve mudanças importantes no impacto indepen-dente de cada indicador, entre 2000 e 2010, tendoem vista as profundas transformações por que pas-sou o país no período. Desçamos, então, a algunsdetalhes desse quadro geral.

Os contextos familiar e municipal se mos-traram preditores poderosos das taxas “nem nem”de exclusão. Tomando-se o tamanho da família,cada novo membro adicionado reduzia entre 8 a11% as chances de um jovem de 18 a 25 anos ser“nem nem” em 2000 e 2010. Vale marcar que aredução é contraintuitiva, já que a proporção de“nem nem” é sempre maior quanto maior o grupodoméstico, quando se trabalha com essa variávelfora do modelo.21 Isso significa, como sugerido,que o efeito do tamanho da família se dá pela me-diação de outros indicadores. E, de fato, se ajusta-mos o modelo passo a passo, adicionando umavariável de contexto por vez, o efeito do tamanhoda família é sempre positivo até a inclusão da ren-da. É o controle pela renda familiar que inverte osinal. Ou seja, o contexto familiar, de fato, confi-gura-se como um campo onde interagem diversasdimensões, e não faz sentido tratar cada variávelindividualmente, sendo a renda a dimensão maisimportante, mediadora dos demais indicadores.

O número de crianças de 4 anos ou menosno domicílio também mostrou-se relevante, comcada criança a mais reduzindo, em quase 10%, aprobabilidade de um jovem “nem nem” na famí-lia. A queda do impacto desse indicador entre 2000e 2010 ocorreu no interior do intervalo de confi-ança dos parâmetros, portanto, não é significativaem termos estatísticos. Seria de se esperar mudan-ças mais pronunciadas, tendo em vista, por exem-plo, que, em 2000, 2,6% das famílias tinham umneto ou bisneto residindo no domicílio. Em 2010,a proporção subira para 4,8%. Isto é, havia au-

21 Uma regressão linear, contendo apenas a proporção de“nem nem“ segundo o número de membros da família,gera um R2 de 0,899 em 2010, com cada membro a maisgerando um aumento médio de 4,3% naquela proporção.

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mentado a proporção de convivência de mais deuma geração no mesmo espaço doméstico, com fi-lhas (e filhos em menor medida) morando com ospais, sendo elas mesmas mães precoces. Mas essamudança não aumentou o efeito independente deter criança em casa. E, como no caso do númerode membros da família, é a mediação da renda fa-miliar que inverte o sinal do efeito, de outro modopositivo. Isto é, famílias mais ricas com criançastêm menor probabilidade de ter um jovem “nemnem” do que famílias pobres com crianças. Volto aisso na conclusão.

E, como esperado, a inclusão do indicador“tem outro nem nem na família” mostrou-se es-

sencial na construção do contexto familiar. Oparâmetro está enviesado, já que há um problemade colinearidade (o indicador “tem outro jovemnem nem no domicílio” contém a variável depen-dente), e é o que explica o elevado impacto inde-pendente dessa variável. Mas ela é teoricamenterelevante, além de empiricamente consistente: em2010, por exemplo, nas famílias com mais de umjovem com idade entre 18 e 25 anos de idade, seum deles era “nem nem”, a chance de que o se-gundo também fosse era de espantosos 32%, se-gundo o mesmo censo demográfico. Havendo umsegundo “nem nem” nas famílias, com três ou maisjovens da mesma idade, a chance de haver um

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terceiro era ainda maior, de 41% (em 2000 as pro-porções eram de 21% e 32% respectivamente).Logo, haver um “nem nem” na família é umpreditor poderoso das chances de haver outro,sendo a condição “nem nem” um indicador davulnerabilidade diferencial das famílias.

O mais importante a reter nessa dimensão éque os efeitos das variáveis contextuais foram muitosemelhantes nas duas pontas do tempo, com exce-ção da renda. Sabemos, pela literatura já citada, queas famílias passaram por mudanças importantes emsua estrutura no período, com aumento de famíliasunipessoais, famílias conviventes, mães solteiras,homens vivendo sozinhos, famílias homoafetivas, etc.Mas os efeitos dos indicadores de morfologia da fa-mília se mantiveram quase constantes. A mudançamais importante ocorreu no impacto da renda famili-ar, com crescimento substancial do risco entre as fa-mílias mais pobres em 10 anos. Em 2000, famíliasentre as 10% mais pobres tinham 233% mais chancesde ter um “nem nem” entre os seus do que famíliasentre os 10% mais ricos. Em 2010, esse valor haviaaumentado para quase 800%. Isto é, a disponibilida-de de recursos familiares, tal como expressa pela ren-da enquanto capacidade de aquisição de bens comosaúde e educação para seus membros, por exemplo,confere um caráter de classe às mudanças ocorridasno período, com aumento da vulnerabilidade dosmais pobres. Isto é, é maior a proporção de “nemnem” em 2010 entre as famílias que, em termos rela-tivos, tinham menores condições materiais de darrespaldo a eles.

Na outra ponta, o contexto extrafamiliar tam-bém se mostrou relevante, mas em menor propor-ção do que a família. Os indicadores selecionadosde infraestrutura municipal são quase todos esta-tisticamente significativos, mas apenas o indica-dor de robustez do mercado de trabalho local (taxade participação de pessoas de 10 anos ou mais naPEA) tem incidência incontestável, ainda que te-nha perdido intensidade entre 2000 e 2010. Essaperda parece estar associada à melhoria nas condi-ções dos mercados de trabalho municipais, já quecresceu de forma importante a taxa de participaçãono tempo. Por exemplo, o valor de corte do pri-

meiro decil foi de perto de 37% em 2000, subindopara quase 48% em 2010. A diferença entre o pri-meiro e o nono valor de corte foi de 24 pontospercentuais no primeiro ano, caindo para 17 pon-tos em 2010. Ou seja, a desigualdade entre osmercados de trabalho municipais foi reduzida demaneira importante, muito em função do aumentoda taxa de participação das mulheres (Nonato etal., 2012), e isso explica boa parte da perda deintensidade do efeito da variável. Ainda assim,morar num município no primeiro decil de taxade participação, aumentava em 56% a chance deum jovem ser “nem nem” em 2010, em compara-ção com um município no topo da distribuição(65% ou mais de pessoas na PEA).

Perdeu intensidade, também, o indicadorde investimento municipal na rede escolar, e pelamesma razão, isto é, houve melhoria nas condi-ções de escolaridade da maioria dos municípiosbrasileiros, com isso reduzindo a desigualdadeentre eles e, por conseguinte, o efeito diferencialnas chances de um jovem ser “nem nem”. Em 2000,o valor de corte do primeiro decil foi de 6,11% dejovens entre 7 e 17 anos fora da escola, proporçãoque caiu para 3,25 em 2010 (queda de 2,86 pontospercentuais). No topo (nono decil), a queda foi maisintensa, de 5,37 pontos percentuais (os valoresestão entre parênteses na tabela). Isso aproximouas características municipais, reduzindo o impac-to independente dessa variável.

Os demais indicadores de contexto têm efei-to mais brando sobre as taxas “nem nem” de ex-clusão. Morar na Região Sul tornou-se um poucomais vantajoso em 2010, por comparação com2000, e no Nordeste, um pouco menos. O sinal doefeito de se morar no Sudeste mudou de negativopara positivo, mas numa faixa muito pequena devariação. O tamanho do município, por sua vez,ganhou maior relevância no tempo, com os meno-res municípios apresentando condições mais van-tajosas em 2010 do que os maiores, por compara-ção com 2000. Isso também deve ser creditado àmelhoria geral das condições dos mercados de tra-balho no interior do Brasil, como vem mostrandoa literatura especializada (IBGE 2012).

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A terceira dimensão de interesse é a trajetó-ria individual, que, no censo demográfico, é apre-endida a partir de uma série de indicadores sobreas características atuais das pessoas, boa parte de-las fruto de escolhas, decisões e ações passadas. Oponto mais importante a se salientar é que, comexceção da idade dos jovens, todos os outros indi-cadores de trajetória perderam intensidade no tem-po, ainda que permaneçam estatisticamente signi-ficativos. Ter uma restrição física grave, por exem-plo, aumentava a chance de um jovem ser “nemnem” em 407,6% em 2000, por comparação comos que não tinham uma restrição. O efeito foi re-duzido a menos de 117% em 2010. Efeito aindaimportante, claro, mas a queda estará, com certe-za, associada ao impacto das políticas de ação afir-mativa para portadores de necessidades especiais,que obrigam empresas a contratá-los numa pro-porção de sua força de trabalho e as escolas a de-senvolverem mecanismos de inclusão de deficien-tes visuais, auditivos ou físicos. A adaptação dasescolas para cadeirantes e o aumento da acessibili-dade no espaço urbano são políticas com efeitossemelhantes: reduzir as restrições de acesso des-sas pessoas aos espaços da escola e do trabalho. Apersistência do efeito na casa dos 117% é indica-dor de que se está muito longe de universalizar aacessibilidade, e esse é, certamente, um tema im-portante para uma agenda de pesquisas e políticaspúblicas de desenvolvimento que tenha no hori-zonte a emancipação da maioria.

A redução do efeito da cor deve ser credita-da ao mesmo processo de mudança nas relaçõessociais no país, fruto de políticas públicas e deredução da desigualdade daí decorrente. As polí-ticas de ação afirmativa para negros estão longe deresolver o problema secular que é a persistência ereprodução da desigualdade racial, mas parecemestar reduzindo a distância entre os jovens no querespeita às chances de serem “nem nem”. Os bran-cos tinham quase 16% de chances de estarem nes-sa condição, por comparação com os não brancos(tudo o mais permanecendo constante), efeito quecaíra a 2% em 2010. Lembre-se: está-se falando doefeito, independente da cor, num ambiente em que

várias outras dimensões atuam ao mesmo tempo.Logo, a cor não-branca, que, tomada individualmen-te, aumenta a probabilidade de um jovem ser “nemnem”, por outro lado, quando controlada pelos efei-tos de contexto, inverte o sinal. Ainda assim, o queimporta para nossa discussão é que a cor perdeu

intensidade no tempo como componente explicativoda probabilidade de um jovem ser “nem nem”.

Os filhos, como previsto, aumentam muitoa probabilidade de as mulheres jovens serem “nemnem”, embora, como no caso das variáveis anteri-ores, tenha havido queda no efeito desse indica-dor no tempo. Em 2000, ter filho aumentava em300% a chance de uma mulher jovem ser “nemnem”, por comparação com as que não tinham.Em 2010, a probabilidade caíra para pouco maisde 170%. A queda é importante e indica reduçãodo peso dos filhos como elemento de ruptura nastrajetórias escolar e empregatícia das mulheres, oque pode estar associado à melhoria das condi-ções econômicas de suas famílias (que permitemacesso a creches privadas), aumento da oferta decreches públicas ou escolas maternais etc. Retomoo ponto na conclusão.

Viver ou ter vivido com um cônjuge perdeumuito de seu impacto de um ano ao outro. O casa-mento (efêmero ou duradouro) tem, historicamen-te, maior efeito de ruptura para as mulheres doque para os homens. Esse efeito vem caindo, como tempo, para as faixas etárias mais velhas entre osjovens. Mulheres casadas estão mais inseridas nomercado de trabalho hoje do que em 2000, frutodo processo já mencionado de transformação (em-bora lenta) das relações de gênero. E homens jo-vens experimentam relações conjugais precocesmais intensamente hoje do que há dez anos, aindaque não duradouras. A conjugação desses vetoresde mudança deve estar contribuindo para explicarboa parte da anulação do efeito dessa variável en-tre os dois censos demográficos.

Por fim, e ao contrário do que seria de seesperar, viver com os pais ou padrastos aumentaas chances de o jovem ser “nem nem”, por compa-ração com os que não vivem. Aqui, também, o efeitoda variável se dá mediado por outros indicadores

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da família, sobretudo a renda. Isso porque, toma-do isoladamente (fora do modelo), há mais jovens“nem nem” entre os que não estão morando comos pais do que entre os que vivem em família. Aose controlar pela renda familiar, porém, o efeitomuda de sinal, sugerindo que morar com os paisreduz o risco de ser “nem nem” apenas em deter-minadas condições de bem estar econômico fami-liar. Como há mais “nem nem” nas famílias maispobres, morar com os pais, nessas condições, au-menta a chance de ser “nem nem”. É o que explicaa mudança de sinal, ainda que a uma taxa nãomuito alta (em torno de 10%).

CONCLUSÃO

A condição “nem nem” dos jovens é umproblema social de monta. Na Europa, ela adqui-riu proporções explosivas, em parte por ter afeta-do diretamente jovens de classe média, que viramruir seus projetos de inserção social em condiçõesequivalentes ou melhores do que a de seus pais.A condição “nem nem” é um problema geracional

e de classe por lá, e é vivida, em parte, como trai-ção das promessas de emancipação pelo mercado,tendo, portanto, a forma da luta contra oneoliberalismo.22 No Brasil, a recorrência no tem-po da taxa “nem nem” de exclusão (que lhe confe-re um caráter estrutural) não produziu os mesmosprotestos que na Europa, em parte porque ela afetamais as classes subalternas e as famílias mais po-bres. E é exatamente por essa razão que o país nãopode considerar normal ou aceitável que um emcada dez de seus jovens do sexo masculino entre18 e 25 anos esteja fora da escola e do mercado detrabalho. Essa proporção não é homogeneamentedistribuída no território, sendo muito pior nas re-giões e municípios mais pobres do país e, maisainda, nas famílias de baixa renda. Isto é, a taxa“nem nem” de exclusão é maior nas regiões e famí-lias mais vulneráveis, e, nesse sentido, deve ser

tratada como um dos elementos centrais dessavulnerabilidade. Isso quer dizer que o país está

transmitindo a vulnerabilidade de uma geração a

outra em proporção significativa. A taxa “nem nem”de exclusão, por ser estrutural e muito resistente àqueda, configura-se, então, como um dos elemen-tos estruturantes da persistência das desigualda-des entre nós. Proporções sempre altas de jovens(que variaram pouco em torno da média de 11% nocaso dos homens nos últimos 15 anos e, mais ainda,no caso das mulheres) carregarão para o resto de suasvidas o peso de ter deixado cedo a escola, com issoreduzindo suas chances no mercado de trabalho.

O problema é importante, também, no casodas mulheres. Mesmo que parte significativa delasseja “nem nem” porque constituiu família, a insta-bilidade dos laços afetivos no mundo contempo-râneo torna mais do que provável a tentativa deretorno delas seja ao mercado de trabalho, seja àescola, caso os casamentos por ventura se desfa-çam. A instabilidade dos vínculos empregatíciosdos maridos menos qualificados também pode le-var a que elas procurem inserção ocupacional nofuturo, e isso se fará em condições de desvanta-gem vis-à-vis aquelas de sua geração que se quali-ficaram. Essa circunstância torna mais resistentesà queda as desigualdades de gênero no mercadode trabalho e, também, as desigualdades de rendapara mulheres de uma mesma geração. A taxa “nemnem” de exclusão, pois, é um dos mecanismosrecônditos da persistência secular das desigualda-des no Brasil. Atacar a condição “nem nem” é ata-car, insisto, um mecanismo gerador de exclusão edesigualdade a longo prazo.

Os modelos ajustados para a explicação dastaxas “nem nem” de exclusão, e as mudanças en-contradas nos dois pontos no tempo sugerem ele-mentos para uma agenda de pesquisas e políticaspúblicas de desenvolvimento. O crescimento eco-nômico e o maior acesso à renda têm efeitosmultiplicadores importantes num país em que osserviços públicos de melhor qualidade sãomercantilizados, como é o caso do Brasil. Há edu-cação e saúde públicas, mas o acesso a elas temnítido corte de classe, já que os serviços são consi-

22 Ver os importantes artigos sobre os novos movimentossociais em Gohn e Bringel (2013) e também Estanque etal. (2013).

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derados de má qualidade. A melhoria na rendaleva as famílias a procurar serviços melhores nomercado (escolas privadas, incluindo creches, pla-nos privados de saúde, automóvel em lugar dotransporte público etc.), com isso reduzindo, emparte, o peso das desigualdades de acesso àinfraestrutura urbana. O adensamento da malhaescolar pública e sua extensão a novas áreas geo-gráficas no interior das regiões mais pobres do paístem o mesmo efeito redutor de desigualdades regi-onais, abstraindo-se, para efeitos dessa discussão,a qualidade dos serviços ofertados.

O fato de as taxas “nem nem” de exclusãoserem muito mais altas nas famílias de baixa rendarevela a importância das políticas de distribuiçãode renda, sejam os programas de transferência con-dicional (tipo bolsa família), seja a política de valo-rização do salário mínimo. Essas políticas miramo curto prazo, isto é, dar acesso imediato ao mun-do dos serviços públicos que as décadas dedesinvestimento estatal acabaram transferindo aomercado. No longo prazo, a melhoria dos serviçospúblicos oferecidos pelo Estado, decorrente doaumento do investimento hoje em curso,23 tornarámenos relevante, espera-se, esse aspectomercantilizado das relações sociais, reduzindo,ainda mais, as desigualdades que sustentam asdiferentes probabilidades de um jovem ser “nemnem”. Nesse sentido, estão corretos os que insis-tem no caráter estratégico de uma educação públi-ca e universal de qualidade.

Políticas de estímulo à manutenção dos jo-vens mais pobres na escola, a partir dos 18 anos,também são absolutamente cruciais. As políticasde cotas para estudantes em escolas públicas e paranegros no ensino superior podem ter esse efeitono médio prazo, e devem ser intensificadas euniversalizadas no território nacional. Aspectodecisivo, e não atentado pelas discussões sobre otema, é o de que alunos do ensino médio públicoque hoje o abandonam adotam atitude perfeitamen-

te racional. As chances de admissão no vestibulardas melhores universidades, em sua maioria pú-blicas, são diminutas, já que não há vagas paratodos e a concorrência com jovens de classe mé-dia, oriundos de escolas privadas, é grande e des-leal. O acesso ao ensino superior para aqueles jo-vens (em geral de classes sociais mais baixas) de-pende, em geral, do investimento no custeio dosestudos por parte do próprio estudante. Isso re-quer a entrada no mercado de trabalho, o que sedá em condições de competição também muitoruins: jovens de 18 anos, saídos do ensino médiode má qualidade, competem em condições muitodesfavoráveis com os que já estão empregados eos que demandam emprego ao deixar a universi-dade. É isso que explica o salto na taxa “nem nem”de exclusão entre os 17 e os 18 anos, que vimosantes, para homens e mulheres igualmente. Partesubstancial deles e delas se torna “nem nem” pornão ter condições de acesso ao ensino superior, epor não ter poder de barganha no mercado de tra-balho. Para esses jovens, a sociedade brasileira seapresenta como um ambiente enclausurado, con-denando seu futuro.

As políticas de cotas, nessas condições, têmgrande potencial transformador das chances devida dos jovens das classes mais baixas. A pers-pectiva de entrar numa universidade pública, mes-mo quando oriundos do ensino público, é um in-centivo para a redução da evasão, ainda muito alta,que ocorre na passagem dos jovens das classesmais baixas do ensino fundamental para o médio.24

E a dedicação à própria qualificação média mudade sinal se há perspectivas reais de progressão nosestudos rumo ao ensino superior de qualidade.Um dos efeitos disso pode ser o aumento da pres-são dos pais e dos próprios alunos para a melhoriado ensino público, pressões até aqui vistas comoinócuas, já que a mobilidade escolar dos mais po-bres encontrava no ensino médio um beco semsaída. Isso permite prever o aumento da pressãopopular por melhoria do ensino público em geral.

No caso específico das mulheres jovens, é23 O investimento por aluno no ensino médio atingiu 20%

do PIB per capita in 2009, contra 25% nos países da OCDE.Isso representa o dobro da média dos anos 1990, quegirou em torno de 10%. Dados do Banco Mundial emhttp://data.worldbank.org/indicator/SE.XPD.SECO.PC.ZS.

24 Estudos importantes dessas transições são Hasenbalg(2003); Torche e Ribeiro (2012).

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hora de se discutir a criação de creches nas esco-las públicas do ensino médio. A incidência de“nem nem” entre as jovens de 15 anos com filhosé de mais de 70%, e esse evento continuará co-brando seu preço no futuro dessas adolescentes.Educação sexual é, obviamente, crucial, mas elanão parece capaz de evitar a gravidez precoce nascamadas populares. Uma rede local de crechespúblicas, oferecida pelas prefeituras, poderia cum-prir essa função, dando prioridade para criançasde jovens em idade escolar. Uma pesquisa quedimensione o problema em escala municipal, aten-ta às regiões do país, é estratégica para orientaruma política dessa natureza.

Inclusão emergencial via mercado, por meiode políticas de renda; investimentos na qualidadedos serviços públicos de educação, visando aolongo prazo; incentivos aos jovens para que per-maneçam na escola (mesmo quando esta apresen-ta má qualidade no momento), como as políticasde cotas para o ensino superior (e também ao ensi-no técnico) e as de acessibilidade para jovens por-tadores de necessidades especiais; educação sexu-al para as adolescentes; num ambiente de incenti-vos ao crescimento econômico e à geração de em-pregos de qualidade: eis uma agenda de políticaspúblicas com potencial para desativar esse meca-nismo gerador de desigualdades de longo prazoque é a taxa “nem nem” de exclusão.

Sugiro que essa taxa não produziu explosãosocial no país em razão da combinação entre caráterestrutural do problema e melhoria nas condições dosmercados de trabalho e educacional nos últimos anos.As variáveis de contexto, nessas duas dimensões,perderam muito de sua incidência, o que indica re-dução real de desigualdades intermunicipais e regi-onais. A hipótese, aqui, é a de que a melhoria dascondições materiais de vida, ao se disseminar pelopaís, contribuiu para reduzir a percepção declausura das condições de mobilidade social, am-pliando o horizonte de expectativas de inclusãodos jovens “nem nem”, em especial as mulheres.Ao contrário, pois, de aparecer como deterioraçãode condições antes favoráveis e, portanto, comofrustração de suas expectativas, como é hoje o caso

de vários países europeus.Por fim, mesmo correndo o risco de ver o

diagnóstico negado pela história, expresso minhasdúvidas quanto ao fato de a população diretamen-te beneficiada pelas políticas públicas de inclusãoem curso se sentir representada nos movimentosiniciados em junho de 2013, que apresentam níti-do recorte de classe média, e, mais ainda, estu-dantil. Logo, não parece ser alimentada pela ju-ventude “nem nem”, hoje concentrada nas regiõese famílias mais pobres do país.

Recebido para publicação em 4 de maio de 2013Aceito para publicação no dia 21 de junho de 2013

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JUVENTUDE, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO ...

Adalberto Cardoso – Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticosda UERJ (IESP-UERJ). Pesquisador Associado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento e do WarwickInstitute for Employment Research. Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e Pesquisador 1 do CNPq. Atual-mente coordena três projetos de pesquisa (dentre eles um PRONEX) e atua em diversas áreas da Sociologia doTrabalho, da Sociologia Urbana (incluindo desigualdades sociais) e da Teoria Social. Sua produção maisrecente inclui “Ensaios de sociologia do mercado de trabalho”, Rio de Janeiro, FGV, 2013, e “Brazil Emerging:inequality and emancipation”, New York, Routledge, 2013 (organizado com Jan Nederveen Pieterse).

YOUTH, WORK AND DEVELOPMENT:elements for an investigation agenda

Adalberto Cardoso

The post-2008 economic crisis, accompaniedby large social protests everywhere, turned on astop light in the richer countries in terms of workand study opportunities for young people. Thenumber of youth who neither study nor workincreased greatly, especially in Spain and Greece,but this phenomenon has spread to the wealthiercountries. This article shows that in Brazil the “nemnem” (neither nor) condition is structural and itproposes an analytical model to explain thetransformations that occurred from 2000 to 2010.It suggest that the structural changes that thecountry went through and the public policies tolower the barriers to enter schools and the labormarket reduced the impact of regional inequalitiesbut increased the burden of poverty in explainingthe “nem nem” condition of young people.

KEY WORDS: Youth. Labor market. Structuralchanges. “Nem nem” condition. Causal models.

JEUNESSE, TRAVAIL ET DÉVELOPPEMENT:éléments pour un programme d’investigation

 Adalberto Cardoso

 La crise économique d’après 2008,

accompagnée un peu partout de grandesprotestations sociales, a déclenché un signald’alarme dans les pays plus riches quant auxopportunités de travail et d’étude pour les jeunes.Le nombre de ceux qui n’étudient ni ne travaillenta beaucoup augmenté, tout spécialement enEspagne et en Grèce, mais le phénomène s’est trèsrépandu dans les pays riches. L’article montrequ’au Brésil la condition « ni-ni » est structurelleet propose un modèle analytique pour expliquerles changements survenus entre 2000 et 2010. Ilmontre que les changements structuraux subis parles pays et les politiques publiques de réductiondes barrières d’accès à l’école et au marché de travailont réduit l’impact des inégalités régionales et ontaugmenté le fardeau de la pauvreté capabled’expliquer la condition de « ni-ni » des jeunes.

MOTS-CLÉS: Jeunesse. Marché du Travail.Changements structuraux. Condition “ni ni”.Modèles de causalité.

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En este ensayo presentaremos el concepto de trabajo no clásico (De la Garza, 2010), como unintento de dar cuenta no solo de las diferencias en los tipos de trabajo, sino de dimensionesamplias de lo laboral incluidas en forma parcial en otras teorizaciones (Thompson, 1983).Buscaremos precisar el concepto y su alcance, así como las relaciones con las actividades deservicios, que se han vuelto cada vez más importantes en las economías modernas, sin olvidarsu peso en las menos desarrolladas. Entraremos a recapitular sobre el concepto clásico deflexibilidad (Durand, 2004) y la ampliación que sería pertinente al incluir trabajos no clásicos.En particular incluiremos una forma de flexibilización que probablemente se esté convirtiendoen dominante en el capitalismo luego de la última gran crisis económica, la subcontratación(Moncada y Monsalvo, 2000) y sus vínculos con el trabajo no clásico. Finalmente, discutiremoslas tesis de la fragmentación de identidades (Sennet y Coob, 1972) y la servidumbre voluntaria(Durand, 2006) al calor del enfoque mencionado de trabajo no cásico, para culminar conconsideraciones acerca de la posibilidad de constitución de sujetos laborales en estas condiciones.PALABRAS CLAVE: Trabajo. Trabajo clásico. Trabajo no clásico.

INTRODUCCIÓN

El concepto clásico de trabajo, en el sentidode la forma teórica que adoptó en muchas cienciassociales este tipo de actividad, se vincula con laRevolución Industrial (Thompson, 1972), cuandoel capitalismo adquirió una forma moderna ycuando en algunos procesos productivos centralesfueron introducidas las máquinas para larealización de la transformación de la materia pri-ma, impulsadas no por la fuerza de los obrerossino, inicialmente, por la del vapor. Es lo que Marxllamó la fase maquinista de la transformación delos procesos productivos capitalistas. Estosprocesos productivos implicaban también el usode trabajo asalariado por el capital, la subsunciónreal del primero no solo al capital sino al ritmo delas máquinas; también la segmentación espacial (lafábrica) y temporal (jornada de trabajo) entre el

mundo del trabajo y otros mundos de vida de lostrabajadores (Moore, 1995). Este tipo de trabajosirvió de basamento empírico a teorías muy diver-sas en cuanto a los conceptos de lo que es trabajo,producción, producto, relación laboral. Porejemplo, para la teoría neoclásica solo sería trabajoel que produce para el mercado, con esto se incluyeal trabajo no asalariado que produce para el mer-cado, pero el eje de la teorización sería laproducción capitalista fabril. Otro tanto sucede enel marxismo, con el añadido de que trabajo no essolo transformación de objetos de trabajo a travésdel trabajo para el mercado sino que también puedeincluirse el que produce para el autoconsumo. Sinembargo, casi toda la teorización de El Capital sinduda que tiene como referente a la produccióncapitalista maquinizada. En su forma másdesarrollada, en torno del capital los conceptos devalor, valor de uso, mercancía y dinero, exceptoobservaciones al margen, los conceptos de esta obrase refieren a dicha producción (capital constante,variable, plusvalía, acumulación de capital,rotación, etc.). Implicaba también una separacióntemporal y espacial entre producción (fábrica),

* Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Autô-noma Metropolitana, Departamento de Sociologia. Pro-fessor visitante da Universidade Autônoma de Barcelo-na, Universidade de Cornell e de Evry (França).Caixa Postal 55536, 09340, México, D.F., Purísima y Michoacán,Col. Vicentina, Edificio H-141 [email protected]

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circulación con puntos de venta fuera de la fábricay consumo en otras empresas o en los hogares (Dela Garza, 2011). Es decir, el cliente aparecía en elmercado y en el consumo pero no directamente enel proceso productivo. Este implicaba unacercamiento que solo permitía la relación directaentre dos sujetos y sus representantes, el del trabajoy el del capital.

Otro tanto podríamos decir de las teoríasoriginarias de la Sociología del Trabajo (Mayo,Friedman, Touraine, Naville, Golthorpe, Panzieri,Braverman) centradas en el proceso de produccióncapitalista de tipo industrial; o bien las teorías deorganizaciones o la psicología del trabajo (De laGarza, 2006).

La apuesta a ver a la producción industrialcapitalista, inicialmente maquinizada, como elparadigma de toda producción no era gratuito.Mostraba que efectivamente, hasta los años sesentadel siglo XX, decir capitalismo era casi sinónimode industrialización. En esta medida fueron creadoslos conceptos centrales de las teorías que analizanel trabajo teniendo como referencia al sector in-dustrial y sus transformaciones. Hubo diversasformas de conceptualizar las transformaciones deltrabajo capitalista al industrial, pero una de lasmás simplificadas era la que distinguía etapas his-tóricas en el desarrollo de los modelos deproducción capitalistas. Comenzando por el trabajode oficio capitalista – no hay que confundirlo conel artesanal puesto que se realizaría contrabajadores asalariados del capital – en procesosque Marx llamó “de cooperación simple ymanufactureros” (Offe, 1998). No se entendía portales, como ahora la economía hegemónica, unsector de la economía, sino procesos capitalistasno maquinizados dependientes de las habilidadesde los trabajadores. Luego vendría el trabajo su-bordinado a las máquinas y, posteriormente, conla introducción primero del Taylorismo y luegodel Fordismo, se completaría la subsunción realdel obrero al capital, pero no solo a la máquinasino también a la organización del trabajo (obreromasa, descalificado, que realiza trabajo segmenta-do, rutinario, monótono). La Gran Crisis de los

Setenta del siglo XX habría conducido a una pro-funda reestructuración de las grandes empresas,primero en el sentido del Toyotismo (reintegraciónde tareas a través de la polivalencia, el trabajo enequipo, la calidad total, el control estadístico delproceso y el justo a tiempo, trabajadoresrecalificados, involucrados, con iniciativa en latoma de decisiones en el puesto de trabajo)(Burawoy, 1979), junto con la introducción de lacomputación en el control del proceso productivoy de toda una planta o conjunto de plantas;primero en las tareas productivas, luego tambiénen diseño, compras, ventas, contabilidad, finanzas.Todo esto sin olvidar la importancia que algunosautores dan en este proceso a la formación declusters y otras redes entre empresas.

Con diferentes conceptos y salvedades acer-ca de cómo definir las etapas, esta sería más o me-nos la línea de desarrollo clásico de la producciónindustrial, a veces extendida a servicios modernose incluso a una parte de la agricultura.

Este trabajo clásico siempre convivió conotras formas laborales (artesanal, de oficio, enservicios, agricultura no industrial), pero se pensóque en el PIB la parte más importante iríacorrespondiendo a la industria e incluso en elempleo. Y así fue hasta 1950. Sin embargo, a partirde este año en los Estados Unidos y otros paíseseuropeos los servicios comenzaron a crecer yactualmente en la mayoría de estos representan lamayor parte del PIB y del empleo. En países nodesarrollados la importancia de los servicios no esnueva, pero una parte muy elevada de estoscorresponde a los servicios precarios, inclusoinformales que existían de larga data. Es decir, loclásico o lo no clásico no se relaciona con suimportancia en el empleo o en el producto, tampococon su antigüedad histórica (Handy, 1986).

Muchos conceptos se han propuesto comoalternativos a lo que llamamos trabajo no clásico(García, 2006). Uno de los primeros fue el de trabajoinformal (Portes, 1995; Tokman, 1987), que en suacepción original (misión de la OIT a Africa en lossetenta del siglo pasado) apuntaba a un conceptocolindante con el más actual de modelo de

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producción porque incluía tecnología,organización, relaciones laborales, característicasde la mano de obra, relación con la unidad do-méstica. Esta línea, desde nuestro punto de vista,hubiera sido más fructífera que las actuales,enfrascadas en cómo medir la informalidad, quelas ha llevado a simplificar lo que empezó comoun concepto muy complejo. Las dos definicionesmás socorridas actualmente son: sector informal,que no lleva una contabilidad racional separandolas cuentas de las familia de las del negocio, queno está registrada y que no paga impuestos; y la derelación laboral informal, relativa a los trabajadorescon los que no se cumplen las protecciones de lasleyes laborales, específicamente derecho a la saludpor ser trabajador y a la pensión. Es decir, estasdefiniciones están centradas en la relación de launidad económica o del trabajador, coninstituciones externas al trabajo (fisco y segurosocial), pero no en el contenido del trabajo que eslo que nos interesa destacar, como veremos con elconcepto de trabajo no clásico (Salas, 2006).

Otro tanto sucede con los conceptos de trabajono estructurado, concepto poco acertado puesto quelas estructuraciones del trabajo no pueden quedarreducidas al cumplimiento de regulaciones legales.Trabajo atípico (Senise, 2001), nuevamente se centraen el cumplimiento o no de las regulaciones laborales.Precario, muy centrado en variables sociolaborales(inestabilidad, inseguridad o falta de protección so-cial, vulnerabilidad social y económica) más que enel contenido del trabajo, trabajo no estándar (Reglia,2003), que mira hacia protecciones legales o no.Trabajo decente, con el que se amplía la mirada delas protecciones hacia el derecho a sindicalizarse, afirmar contratos colectivos, seguridad social, diálogosocial. Exclusión, vulnerabilidad e inseguridad,apuntan no tanto a derechos no cumplidos sino a larelación del trabajador con la sociedad,desarticulación de relaciones sociales entreindividuos, pérdida de solidaridad, fragilidad delvínculo social; el trabajo deja de articular el tiempocotidiano. Estos últimos conceptos colindan con losque criticaremos más delante de fragmentación delas identidades.

Es decir, ninguno de estos conceptos,acuñados en los últimos tiempos – el deinformalidad es el más antiguo – nos ayuda a darcuenta del cambio en los contenidos del trabajo,del producto, de las relaciones sociales en el trabajo,independientemente de que se cumpla lo dispuestoen las leyes laborales.

El concepto más antiguo que sirve deinspiración al de trabajo no clásico es el de Marxasociado a la producción inmaterial. En la HistoriaCrítica de las Teorías sobre la Plusvalía Marx acuñacon gran perspicacia este concepto, notando des-de su época que hay trabajos que no se ajustanexactamente a su propia teorización sobre el trabajoindustrial. Un ejemplo que utiliza es larepresentación de una obra de teatro en donde elteatro es propiedad de un capitalista, los actoresson asalariados y el público paga por el espectáculoy el negocio debe generar ganancias para sostenersey acumular capital. Según Marx, en este tipo deproducción, primero el producto es inmaterial yno material como lo es en la industria. Marx comobuen filósofo no entendía por material solo lo físi-co material, que está diferenciado del productor ypuede ser observado a través de los sentidos, sinoentiende por material lo objetivado; es decir que,aunque es producto del trabajo humano adquiereuna existencia separada de su productor. Sin em-bargo, en la obra de teatro en un solo acto seproduce el espectáculo (que no es sino unaconfiguración de símbolos que adquieren signifi-cados para los espectadores), al mismo tiempo secircula como mercancía hacia los compradores queson los espectadores y se consume en el mismoteatro por estos. Es decir, la producción simbólicaque es la obra termina subjetivándose en el espec-tador y no puede ni almacenarse ni revenderse. Elproducto no se objetiva sino se subjetiva. Paranosotros este sería un primer tipo de trabajo yproducción no clásica, pero que no lo agota.También puede haber una producción puramentesimbólica objetivada, es decir, los símbolosgenerados adquieren una existencia separada desu productor (el diseño de software, el film, ellibro, etc.). De acuerdo con el concepto de

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materialidad expuesto, esta producción no seríainmaterial sino material pero eminentemente sim-bólica – por supuesto que a toda producción emi-nentemente simbólica siempre se le asocia algo fí-sico material, la depreciación del teatro, el CD, elcosto del material del libro, pero esta parte de suvalor no es lo que lleva a ser comprado sino sucontenido simbólico.

Dentro del trabajo no clásico tambiénestamos incluyendo el trabajo eminentementeinteractivo en el sentido no de que se interaccionapara trabajar (esto es propiedad de todos lostrabajos sean cara a cara o virtuales), sino que lainteracción es la condición para producir y, almismo tiempo, lo más importante del producto.Trabajo interactivo lo llaman algunos, válidosiempre y que se acote que todos lo son, pero noen todos es parte de lo que se vende (cuidado debebés, de ancianos, educación tradicional, cuida-do en hospitales, parte importante en las ventasdirectas al cliente, en el trabajo de call centers, encomida rápida, el del taxista, etc.). Si en cierto tipode trabajos es muy importante la forma deinteracción con el cliente, esta triada puedeampliarse a más sujetos, especialmente cuando setrabaja en el espacio público (taxistas queinteraccionan con el pasajero, con agentes detránsito, automovilistas, peatones). Estasinteracciones pueden ser cara a cara o virtuales através de teléfono, internet. Habría que añadir quetoda interacción entre sujetos es simbólica puesimplica la generación e intercambio de símbolosque son transformados en significados en lasubjetividad de los involucrados. En otraspalabras, el trabajo interactivo es también trabajode generación y transmisión de símbolos y de allílas dificultades del consenso en lo que se quisodecir. Es decir, una parte del trabajo es creación desímbolos comprensibles para el otro, que impacta

nuevas calificaciones de los trabajadores para

lograrlo e implica a un externo a la relación capi-tal trabajo, clásica en esta actividad. En esta medi-da, en el trabajo no clásico, por su énfasis en losimbólico – no reducido a lo cognitivo sino queimplica además lo emocional, moral, estético-, con

mayor razón cuando es interactivo, el concepto detrabajo – que es trabajar, como se trabaja y que seproduce – tiene que implicar cómo se generan lossímbolos, y cómo interviene el cliente u otrossujetos como en el caso del taxista en esaconstrucción simbólica. La Sociología del Trabajo,al menos desde inicios de los ochenta, acepta elconcepto de trabajo emocional; de fines de los no-venta el de trabajo estético y con mayor facilidadaceptó el de trabajo cognitivo relacionado con laciencia y la tecnología y la innovación (Micheli,2006). Si bien estas denominaciones indican énfasisen el tipo de códigos o símbolos producidos, nun-ca pueden presentarse solos, lo que habla de lanecesidad no de tipologías de trabajo no físico ma-terial sino de cómo se combinan en diferentesconfiguraciones y con énfasis diversos los códigoscognitivos, emocionales, estéticos, morales y seconforman en red (configuración) (De la Garza, 2001)a través de formas de razonamiento lógico formal,pero también del razonamiento cotidiano (metáfo-ra, analogía, regla práctica, hipergeneralización, re-tórica, etc.). Es decir, cómo, para la actividad con-creta de trabajar, se construyen configuracionesconcretas de códigos o símbolos que no dependensolo del trabajador sino también de la actividad yconsenso del cliente o de otros actores, según elcaso. Es decir, el cliente en estos trabajos no clásicosno puede verse como un ente pasivo que compray consume, porque lo que compra no se llega agenerar sin su propia actividad. A pesar de no serasalariado de la empresa que le vende, en estamedida, dentro de la idea de extensión deconceptos habría que considerar en este tipo detrabajos el del cliente (Jurgens, 1995). Trabajo noasalariado que si no se realiza no se tiene elproducto: la compra en supermercados, en un res-taurante de hamburguesas. Por esta razón, en losdiseños organizacionales de cadenas de supermer-cados, cines, comida rápida, se contempla laactividad del cliente como parte de lo que permiti-rá la generación del servicio.

Una última dimensión del trabajo no clásico(simbólico, interactivo) es el tema de los traslapesentre espacio convencional del trabajo y otros

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mundos de vida, sea del propio trabajador, de losclientes o de otros actores que intervienen, sin sertrabajadores ni compradores, en el proceso detrabajo (De la Garza, 1997). Es el caso del trabajo adomicilio, sea tradicional (costurera) o moderno(teletrabajo en casa). Trabajar es también poner enjuego la imbricación de espacios, de tal forma queel espacio y el tiempo de trabajo no se puedenseparar de esas imbricaciones (para el taxistadetenerse a comer durante la jornada en un res-taurante es parte de su jornada y de las actividadeslaborales) (Pogliaghi, 2011).

El concepto no clásico de trabajo debe serconsiderado como un concepto ampliado, tantoen el nivel de la valorización como en nivel delproceso de trabajo. Desde este último nivel habríaque pensar en ampliar, como hemos mencionado,el concepto de que es trabajar y quien trabaja, perotambién el de control sobre el trabajo. Al estar eninteracción con no asalariados (el cliente, perotambién pueden ser otros actores dependiendo decual trabajo se trate) estos también ejercen controlsobre el trabajo del asalariado, además del patrón.En esta medida se impacta también el concepto derelación laboral – entendida estrictamente comorelación social en la producción - que en el clásicoqueda reducida, cuando se trata de trabajoasalariado, a la del capital con el trabajo, pero en elno clásico esta relación puede ser tríadica (inclusióndel cliente) o poliádica (interviene otros agentesfavoreciendo u obstaculizando el trabajo)(Muckenberger, 1996). Y se impacta también elconcepto de construcción social de la ocupación,que no depende solo de quien quiere trabajo yquien necesita trabajadores (oferta y demanda detrabajo) sino que pueden intervenir otros actores,redes sociales, además de la propia subjetividadde los que intervienen (Zucchetti, 2003). Final-mente la imbricación de espacios de relacionespuestas en juego, al mismo tiempo que se trabaja,puede requerir conceptos bisagra que den cuentade esos espacios, a la vez que ya no aparecen seg-mentados ni espacial ni temporalmente.

En síntesis entendemos por trabajo noclásico aquel en el que la intervención del cliente

es indispensable para que se realice la produccióny se tenga el producto. Ya sea porque se generansímbolos y se transmiten al cliente, o porque elproducto es la interacción misma. La intervencióndel cliente implica interacción con los trabajadoresclásicos y, a veces, con otros actores aparentemen-te ajenos a dicho trabajo, e intercambios simbóli-cos entre los sujetos del trabajo, incluyendo al cli-ente. Esto porque parte importante del trabajo noclásico es la producción e intercambio de símbo-los (cognitivos, emocionales, morales, estéticos).

En última instancia el concepto de trabajono clásico puede ser más que un tipo de trabajo,un enfoque de análisis.

LOS SERVICIOS

En el centro de los trabajos no clásicos estánlos servicios, aunque puede incluir trabajos en laindustria y la agricultura. Su definición siguesiendo objeto de controversia. Sin embargo, lasdificultades de la definición dependen también delenfoque de análisis del fenómeno laboral que seadopte. En el enfoque sociodemográfico yeconómico, en el que se trata de relacionar variablespropias de cualquier tipo de trabajo (edad,escolaridad, nivel educativo, estado civil, duraciónde la jornada laboral, antigüedad en el trabajo,salario, disposición de prestaciones, etc. ) noimportaría si la producción fuera material oinmaterial, física o simbólica, interactiva concreación de significados, pues las variables solo sediferenciarían en nivel entre los diversos trabajos,de tal manera que la diferenciación entre trabajoclásico y no clásico sería ociosa. Así mismo, parala perspectiva jurídica lo fundamental es laobservancia de la norma, independientemente deltipo de trabajo, salvo excepciones contempladasen la misma Ley. De tal manera que las diferenciasmencionadas en el Apartado I serían irrelevantes.

En cambio en las tradiciones de la Sociologíadel Trabajo, la Antropología, la Psicología, LasRelaciones Industriales, la Administración y lasOrganizaciones es, o puede ser, muy importante

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analizar el trabajo como actividad por la cual setransforma una materia prima, a través de la fuerzade trabajo, utilizando ciertos medios deproducción (Korezynski, Hodson y Edwards,2006). Es la perspectiva de analizar el trabajo enacción en el proceso de trabajo, la cual puede tenerimportancia para entender el comportamientoproductivo de las empresas, así como para aquellosque piensan que el trabajo no es un simple factorde producción o costo laboral, sino sujetos enacción dotados de subjetividad que interaccionanen los procesos de trabajo y generan productos.En esta medida, cuanto trabajo incorporado alproducto generará la fuerza de trabajo, no está de-terminado por su salario. El trabajador puede generarmás valor de lo que su fuerza de trabajo cuesta. Detal manera que su productividad se defina en lasrelaciones cotidianas de producción, día por día,dependiendo de la resistencia o cooperación deltrabajador con la gerencia. Pero, la perspectiva deanálisis del trabajo en el proceso de trabajo puedetambién orientarse en cuanto a la posible formaciónde sujetos colectivos de trabajadores, como vere-mos en la última parte de este ensayo.

En esta tesitura, los servicios han sidoprimero definidos como un residuo, lo que quedaen el producto nacional luego de descontar a laindustria, agricultura, pesca, silvicultura, ganadería.Los que han tratado de darle contenido analítico ala definición de servicios han comenzado porconsiderarlo como el sector de producción deintangibles. El concepto de intangible a estas altu-ras resulta muy elemental para dar cuenta de lacomplejidad de los servicios. Primero, porqueremite a uno sólo de los sentidos del cuerpo, eldel tacto, lo que se puede o no tocar, por ejemplo,la música se oye pero no se toca. Sin embargo, lacomida en el restaurante si se puede tocar y seconsidera servicio, aunque el buen trato delpersonal “no se puede tocar”. El ejemplo lo queindica es que los servicios comúnmente combinanproducto material con inmaterial, aunque con unpeso importante de lo inmaterial, de lo simbólicoy/o de lo interactivo. Otros han tratado de reducirlos servicios a los que están basados en el

conocimiento. Nuevamente, no podríamos encon-trar aislado conocimiento de emoción, moral y es-tética, por decir algo, aunque uno de estos campossimbólicos podría tener más peso. En todo caso,en el placer por la música lo más importante no esel conocimiento sino la emoción y lo estético.También hay quienes han definido los servicioscomo interactivos directamente, y hay muchosservicios así (restaurante, concierto en vivo). Pero,hay servicios sin interacción directa entretrabajadores y clientes, como en buena parte delas telecomunicaciones. Finalmente, se les ha de-finido como productos no almacenables, aunquelos paquetes de cómputo si lo son.

En otras palabras: puede haber intangiblesobjetivados (software); servicios que ofrecen untangible (comida en restaurante); tangibles con fa-ses intangibles en su producción (diseño enautomotriz); intangibles observables (concierto); lapercepción de tangibles es, a su vez, un intangible;una parte de lo material es intangible. Resultan máspertinentes, ante estas confusiones, las diferenciasentre material e inmaterial, observable e inobservable,interactivo cara a cara y mediatamente.

Es decir, resulta más conveniente unadefinición bidimensional de lo que es un servicio:producción eminente de símbolos y/o producciónde interacciones con los clientes y otros actorescon significado, es decir, el centro del trabajo noclásico estaría en los servicios definidos de estamanera. Aunque una parte de la producción ma-terial puede ser no clásica al crecer la importanciadel cliente y de las interacciones como en lapreparación de hamburguesas en un McDonald’s.

FLEXIBILIDAD Y TRABAJO NO CLÁSICO

El tema de flexibilidad del trabajo se havuelto un lugar común a partir de la última décadadel siglo pasado para analizar las relacioneslaborales. La gran crisis capitalista de mediadosde los setenta de dicho siglo fue atribuida porsectores pro empresariales a la rigidez de las rela-ciones laborales, resultado del largo período de

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Estado benefactor y keynesiano, que implicó pac-tos entre Estado, sindicatos y empresas. En estamedida había que flexibilizar el mercado laboral.Aunque el término de flexibilización no era usadoen la economía neoclásica, resultaba fácil asimilarloal concepto de eliminar rigideces al libre encuentroentre oferta y demanda de trabajo. Es decir, el cen-tro estaba en el mercado de trabajo. Sin embargo,las primeras reestructuraciones productivas nofueron tanto al mercado sino al proceso de trabajo,rescatando la tradición de las grandes empresasautomotrices japonesas y que luego se llamaría elToyotismo. En otras palabras, aunque parecieranreferirse a lo mismo los que hablan de flexibilizar elmercado y el proceso de trabajo, las connotacionesson diferentes. Entre estas dos posicionesempresariales se encontraba la idea de flexibilizarel sistema de relaciones industriales. La primera y

la tercera fueron asimiladas por las propuestasneoliberales al coincidir con la economíaneoclásica, siendo traducidas como eliminarrigideces (protecciones) contenidas en las leyeslaborales y en la contratación colectiva, así comoestablecer limitaciones a los pactos con los sindi-catos, en especial marginarlos del diseño de polí-ticas económicas, laborales o sociales. En otraspalabras, se trataba de flexibilizar un sistema derelaciones industriales relativamente benefactor deltrabajo y, de esta manera, permitir que salarios yempleo se fijasen por productividad marginal deltrabajo y oferta y demanda del mismo. Aunquerelacionada con la flexibilidad en el proceso detrabajo, desde el momento en que este obedecía anormas de las relaciones laborales internas y ex-ternas de la ley laboral, se trataba de facilitar elempleo y el despido (flexibilidad numérica), lamovilidad interna de los trabajadores entrepuestos, categorías, departamentos (flexibilidadfuncional) y poner el salario en función de laproductividad (la calidad, la puntualidad yasistencia, el tener menos desperdicios), a las quehabría que añadir la flexibilidad a través deloutsourcing (Uriarte y Tusso, 2009; Novella et al.,2007; Martínez, 2008).

Todo esto fue pensando directamente para

el sector industrial, aunque extendido a losservicios. En la doctrina estrictamente toyotista,como era importante la identidad con la empresa,el trabajo en equipo, el involucramiento y laparticipación de los trabajadores para aumentar laproductividad, no necesariamente la máximaflexibilidad daría la máxima productividad; lanueva cultura laboral se consideraba muy impor-tante, en particular cuando entraba a jugar, ademásde la productividad, la calidad. Estas concepciones,especialmente las neoclásicas, de entender laflexibilidad como desregulación, han estado pre-sentes en el centro de las disputas entre el capitaly el trabajo en el nivel internacional desde los añosochenta hasta la actualidad.

El problema es que los conceptos dedesregulación y de flexibilidad neoclásica ytoyotista fueron creados mirando al sector indus-trial (Piore y Sabel, 1988). El problema es cómo sepresenta para el trabajo no clásico que implicaproducción eminente de símbolos con intervencióninmediata o mediata del cliente (además de otrosposibles actores) y la interacción entre estos. En elcaso de la producción físico material clásica la dis-puta directa puede ser capital-trabajo en torno aobligar o convencer al trabajador de ser másproductivo (valor agregado/hora-hombre). En estecaso el trabajador se puede resistir o cooperar. Enla producción no clásica el problema es que el cli-ente que intervine no puede ser controladoestrictamente por la gerencia, como se intenta conel trabajador por estar este al mando del capital. Elcliente puede cooperar o no, pero también puedeimponer durante la interacción productivavariaciones no estandarizadas que rompen la rutinay pueden afectar la productividad y la calidad. Enesta medida una extrema rigidez en losordenamientos de cómo trabajar puede ser contra-producente para la productividad y sobre todo parala calidad. Asimismo, la producción de símboloscompartidos entre trabajador y cliente pueden en-trar en desacuerdo más allá de que el trabajador secomporte de acuerdo con la normatividad empre-sarial (Hochschild, 1983). Además, se presenta elproblema de qué tanto puede estandarizarse la

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producción y el intercambio de símbolos, en parteporque el cliente no es estrictamente controlado,pero también porque no hay cadenas de montajede símbolos para formar configuraciones, ni muchomenos tiempos estándar para genera un símbolocompartido. En el caso de la producción objetivadade símbolos (producción de software), sinintervención directa del cliente (aunque puedeintervenir directamente en el llamado software a lamedida), el problema es nuevamente si se puedeestandarizar las operaciones cognitivas y fijartiempo estándar de producción. Ilustraremos estecaso con la producción de software:

El diseño de software es un ejemplo deproducto simbólico objetivado: el programa existeal margen de su creador y sus consumidorespueden intervenir directamente en el proceso detrabajo (software a la medida) o bien a través de lademanda; se puede almacenar y revender; elproceso de trabajo usa como insumos símbolos ovocablos del lenguaje de programación yalgoritmos; las operaciones más importantes detransformación se dan en la subjetividad del pro-gramador y son de carácter cognitivo; se producenen un campo de interacciones entre gerencia, líderdel proyecto y programadores. Lo que implica con-sensos acerca de cuál camino seguir, aunque es elprogramador el que decide la secuencia de códi-gos a utilizar para resolver el problema. Es decir,en la solución del problema influye la habilidaddel programador, la cual es de resolución simbó-lica de problemas, aunque supone colaboracióncon líderes y gerencia, también con probadores dela calidad e incluso con comunidades virtuales deprogramadores que se ayudan más allá de lasfronteras de la empresa. Las metodologías que sigueel programador no son lineales, no aceptan en ge-neral su asimilación a reglas burocráticas y siemprehay incertidumbre en cuanto a si se tendrá lasolución, si habrá errores y sobre todo respecto altiempo de producción. En esta medida, para evi-tar la “aflicción de software” (errores en el mismoy falta de tiempos estándar) aparecen propuestasde estandarización y rutinización en el diseño comola Ingeniería del Software. Es una propuesta aná-

loga a la de la administración científica del trabajode Taylor para la manufactura, aunque en este casoel intento es estandarizar tiempos y pensamientosy no movimientos. Esta perspectiva se enfrenta alas limitaciones que provienen de la incertidumbredel proceso que no se reduce al ensamble de par-tes de cadenas de códigos, las soluciones estánmuy relacionadas con las habilidades “artesanales”de los programadores y las soluciones muchasveces no son generalizables sino son ad hoc.También se enfrenta la estandarización al hechode que los programadores no documentan en for-ma suficientemente explícita la manera comodiseñaron software previos, a veces por la luchapor el saber-pensar y el intento del monopolio delconocimiento por parte del diseñador. Por estasrazones el diseño de software se ha resistido a suestandarización y al establecimiento estricto detiempos estándar para su producción. Una soluciónparalela para lograr la estandarización en el diseñode software ha sido la separación entre lo más im-portante de la concepción del diseño a cargo de lagerencia, dejando las tareas menores decodificaciones de logaritmos a los programadores.Todos estos intentos solo han fructificado parcial-mente y la incertidumbre sigue en esta actividad.

En este ejemplo se puede observar que laproducción de símbolos tiene una parte decreatividad en la concepción que no puedereducirse a rutinas, sino que depende de las habi-lidades subjetivas de este tipo de trabajador, asícomo de las relaciones que se entablen con lajerarquía, de cooperación o conflicto con la em-presa. Estas circunstancias marcan límites no soloa la estandarización sino al control de la empresade los tiempos de producción e incluso de lacalidad del producto. No es posible estandarizarradicalmente las redes neuronales – además de que,si existieran estas es imposible ubicarlas conprecisión y mucho menos reconfigurarlasplaneadamente para producir diseños en menostiempo y de mejor calidad – que supuestamentese pondrían en funcionamiento para el diseño;ellas tienen que ver con la biología y la experiencia,con el conocimiento pero también con otros cam-

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pos de la subjetividad del diseñador, así como conestructuras y relaciones. En el caso de trabajo noclásico es difícil pensar en la taylorización de laasimilación de códigos y la creación de significa-dos estrictamente a voluntad, así como elestablecimiento de interacciones proactivassiempre, erradicando el conflicto y la competenciaentre los propios trabajadores o con los mandos.No es posible separar tajantemente concepción yejecución en el trabajo simbólico pues todo trabajosimbólico implica concepción y mucho menosreducirlo a microoperaciones simbólicas detransformación claramente identificable, todo locual dificulta la aplicación de estandarización,rutinización, simplificación de las tareas desimbolización y también la constitución de cadenasde montaje de símbolos, estrictamente sincroniza-das. En estas actividades de creación de símbolospuede ser importante el trabajo en equipo, perocada uno de sus miembros tendrá funciones me-nos claras que en la producción material; en estasrelaciones juegan más las interacciones simbólicaspara lograr la cooperación, de tal forma que elcontrol total de la calidad, muchas veces no puedefuncionar para operaciones parciales sino para re-sultados y el justo a tiempo puede ser un conceptoexótico por lo que mencionamos. Es decir, en estetipo de producción no basta, aunque importa, elToyotismo, para lograr productividad y calidad, yla tecnología es un instrumento que no resuelvelos problemas principales. En cambio, ladependencia del producto y del proceso respectoal trabajador y sus cualidades, potencia sus capa-cidades de resistencia. En el diseño de software

los programadores pueden ocultar códigos, es decirno explicar con detalle cómo llegaron a la solución,lo que les da el monopolio sobre ese conocimientoy los hace menos sustituibles. De la misma manera,la formación de redes virtuales de solidaridadposee componentes personales que no sonestrictamente transferibles a otros.

Cuando en la generación de software

interviene el cliente, como en el llamado software

a la medida, la situación se complica. El cliente seencuentra en interacción en varios momentos con

el programador durante el diseño del software. Eneste caso, se amplían las interacciones,cooperaciones o conflictos con un tercero endiscordia que no es empleado ni directivo. Estasrelaciones influyen en las soluciones, en lostiempos y calidades, así como en el control delproceso de trabajo, complicando la relación socialde trabajo a tres partes.

Otra situación de trabajo no clásico es elrestaurante de hamburguesas (McDonald’s). Estees un caso que combina un trabajo interactivo ysignificativo con otra parte de producción físicomaterial. La segunda es propiamente la preparaciónde la hamburguesa que sigue un procesotaylorizado y maquinizado, con participación late-ral del sistema informático para transmitir lasórdenes. El trabajo de los empleados es pococalificado, rutinario (se producen pocos productosestandarizados, sencillos, en masa, para su ventaal menudeo, se trabaja en condiciones precarias).Esta parte no se diferencia de la producción deropa en maquiladoras. Sin embargo, la partemanufacturera está íntimamente imbricada con ladel servicio de venta en el propio restaurante y elconsumo en el mismo, puesto que el producto segenera por pedido del cliente y no se almacena.Para ser atendido el cliente tiene no solo que pa-gar, sino escoger, formarse, ordenar con precisión(siguiendo ciertas frases ya hechas por la empre-sa), esperar a que se surta su orden, tomar elproducto, sentarse, consumir y depositar losdesperdicios en recipientes para tal efecto. Es decir,aunque el cliente no es un empleado, ni tampocoun directivo tiene que “trabajar” para lograr la com-pra y el consumo. De tal forma que la empresahace diseños organizacionales que incluyen al cli-ente que no es su empleado: mostrador y caja re-gistradora especialmente diseñada para que el cli-ente haga una fila, pizarrones con la lista limitadade productos para que no se pierda el tiempo usan-do otro lenguaje que confunda al empleado o evi-tar las preguntas ambiguas como “¿Qué hay decomer?”. Los asientos donde se consume estándiseñados para no hacer agradable permanecermucho tiempo y los contenedores de desperdicios

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se diseñan para que se depositen estos confacilidad e inmediatamente las charolas. Es decir,se hace un diseño del espacio, de los instrumen-tos de acarreo de las hamburguesas y para el depó-sito de desperdicios que ahorran tiempo de trabajodel cliente. Esto es porque si el cliente no trabajano se realiza el servicio o si lo hace en forma torpeo perezosa ocupa espacio y tiempo que afecten laeficiencia del restaurante. En otras palabras, eltrabajo en este tipo de negocios no puededesentenderse del cliente. Este trabaja en los pedi-dos, circulación y consumo que normalmente serealizan en el mismo espacio que se da laproducción de la hamburguesa. En este procesoimportan las interacciones entre el cliente y algunosde los empleados, al momento de ordenar y pagar;interacciones superficiales y estereotipadas que,sin embargo, pueden sufrir de muchasdisrupciones imprevisibles y afectar con esto alproceso global de producción-circulación y con-sumo de la hamburguesa. Es decir, el empleadopuede ser controlado en forma más o menos estrictapor la gerencia en cuanto a la fase de producciónfísico material, a través de gerentes de restaurante,supervisores o el cliente misterioso, pero no puedecontrolar estrictamente la interacción del empleadocon el cliente, porque no depende solo del primero,que puede estar muy bien capacitado paraestandarizar dicha interacción, porque el clientepuede salirse del guión y en el peor de los casos laconsecuencia puede ser que no sea atendido. Lomismo sucede con cada operación que el clientetendría que realizar con su trabajo para que elservicio se realice con eficiencia (el cliente puedeno depositar los desperdicios en el recipienteadecuado). El empleado sufre la presión de la em-presa a través de gerentes y supervisores, perotambién del cliente que puede protestar si conside-ra deficiente el servicio. Es decir, el cliente en partecontrola al empleado y en parte es controlado por laempresa en el intento de taylorizar su trabajo.

En este caso, como en el del diseño delsoftware, la relación de trabajo se complica conrespecto del trabajo clásico, en esta relacióninterviene el cliente en varios momentos y se

convierte en una tríadica entre asalariado, directivoy cliente. Otro tanto pasa, como decíamos con elcontrol y quien controla al trabajador. El taylorismoes una realidad en la fabricación de la hamburguesa,se puede combinar con principios de toyotismo,pero la relación del cliente es de una persona conun trabajador, comúnmente el que recibe los pedi-dos y cobra. Aunque se presiona al cliente paraque emplee poco tiempo en el consumo esto nopuede garantizarse y no hay circulación y consu-mo justo a tiempo, ni tampoco se puede garantizarcon el establecimiento de palabras y frases estándarla compresión mutua entre cliente y empleado. Elempleado es en buena medida, en cuanto a latransformación físico material de la carne enhamburguesa un obrero masa poco calificado, peroel trabajo del cliente se parece más al artesanal queincluso trabaja con sus manos, lo que dificulta laestandarización del tiempo global de prestación delservicio (producción-circulación-consumo). Asímismo, el concepto de resistencia del trabajadordebería ampliarse y no referirse solo a la gerenciasino al mismo cliente. Esta última forma deresistencia toma una forma eminentemente simbó-lica (Hall, 1997).

En cuanto a la flexibilidad: en el diseño desoftware, a causa de la dependencia del diseño delas habilidades del trabajador, se dificulta laflexibilidad numérica; en cambio en el McDonald’s,el trabajo taylorizado en la parte propiamente defabricación de la hamburguesa la facilita, no así enla venta. Por lo que respecta de la flexibilidad fun-cional, está se presenta como flexibilidad cognitivaen el software porque el diseñador puede partici-par simultáneamente en varios proyectos sin cam-biar de puesto o departamento; en los McDonald’sse facilita por la simplificación de las tareas y por-que los empleados son capacitados para desarrollarcualquiera de estas; la presencia de bonos puedeestar presente en ambos.

En síntesis la producción capitalista queimplica trabajo no clásico históricamente ha en-contrado obstáculos para su estandarización, porlas dificultades de estandarizar la producción desímbolos, la propia interacción del empleado con

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el cliente y el trabajo del cliente. De tal forma que,paradójicamente, en el momento actual habría dosestrategias del capital en este tipo de trabajador,una la de estandarizar aquello que no había sidoposible y otra arriesgarse a dar más poder dedecisión al empleado que a su contrapartes en eltrabajo físico material de la industria y agricultura.

TRABAJO NO CLÁSICO YSUBCONTRATACIÓN

Cuando se inició en la década del ochentala discusión actual sobre la flexibilización deltrabajo, la subcontratación aparecía como un ane-xo de la misma; el acento se ponía al interior delproceso de trabajo. Para los noventa lasubcontratación pasó al primer plano de laflexibilidad, relacionada con el concepto de em-presa red y también con el de cadena de valor,clúster y distrito industrial. La subcontratación seha facilitado desde los noventa por lainformatización (Taylor, 2005). En la actualidad sedebate si la subcontratación es el paradigmaproductivo que nacerá de la crisis actual. Porsupuesto que hay varias circunstancias desubcontratación: la de tareas complementarias a laprincipal actividad de transformación de la em-presa, tanto en bienes como en servicios – lacontabilidad, el diseño, la comercialización, el co-sido de pantalones, etc. – o bien si se subcontratantareas del core de las actividades que definen auna industria. Hay quienes plantean que soloconviene a la empresa lo primero y debería de di-rigir directamente a los trabajadores en el segundocaso para garantizar calidad, productividad, lealtad,identidad con la empresa. Un problemacomplementario es el uso de agencias decontratación de personal, que no dirigen a lostrabajadores productivamente sino que losseleccionan, los contratan como si fueran de lapropia agencia y los destinan a trabajar en lacompañía que subcontrata con esta. Lasconsecuencias generales de la subcontrataciónserían la precarización de los empleos y la pérdida

de fuerza de los sindicatos. Los trabajadoressubcontratados en general tendrían jornadaslaborales y riesgos en el trabajo mayores y unapérdida de derechos e identidad con la empresa(García, Mertens y Wilde, 1998).

Por supuesto que el trabajo no clásico sepuede subcontratar, sin embargo, como es menoscontrolable, al depender la forma de la interaccióny la creación de símbolos compartidos en buenamedida del trabajador en su relación con el clien-te, la subcontratación podría implicar una menorsatisfacción del cliente (menor calidad del servicio)lo que marcaría limites a esta forma deflexibilización o bien la necesidad de que la em-presa que subcontrata destine personal desupervisión directamente en las instalaciones dela subcontratada. Es el caso de call centers

subcontratados por grandes corporaciones en don-de estas llegan a establecer oficinas cerca de lasmesas de trabajo combinando su supervisión conlas de la empresa de call centers, lo que puedeoriginar conflictos y órdenes que se contraponen.Cuando sea posible estandarizar las interaccioneso la comunicación con clientes resultará másfactible la subcontratación que en trabajos más so-fisticados de creación de confianza con el cliente ode códigos o configuraciones simbólicas más pro-fundas. Es decir, la “fábrica de sonrisas” tienetambién su límite en la percepción de la sinceridadque puede no lograr la confianza del consumidoren la oferta del producto.

SUJETOS NO CLÁSICOS, IDENTIDAD YFRAGMENTACIÓN ¿SERVIDUMBREVOLUNTARIA?

A mediados de los noventa surgió una teoríaque, derivada de la del fin del trabajo de la décadaanterior y de la postmodernidad, planteó en tér-minos sociológicos – supuestamente demostrableempíricamente – que la inestabilidad de lasocupaciones en la Nueva Economía se traducía entrayectorias laborales fragmentarias – ocupacionesdesvinculadas y fugaces –, como nueva caracterís-

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tica del mercado laboral y que la decadencia delEstado benefactor junto con sus sistemas de rela-ciones industriales, implicaría una pérdida deidentidad con el Trabajo (Dubar, 2001; Dubar 2002).En esta medida ya no serían concebible laconformación de sujetos laborales amplios, niorganizaciones ni proyectos de transformación dela sociedad (Geiser, 1997; Kirk y Wall, 2011).

Un problema de esta tesis es que en lo fun-damental hace derivar la identidad colectiva ypersonal de la posición en la ocupación (Parsons,1968), es decir, ante la heterogeneidad de lasocupaciones resulta una no identidad, y antetrayectorias ocupacionales zigzagueantes, nocoherentes, tampoco habría identidad a nivel in-dividual con algún tipo de trabajo en particular(Dreher et al., 2007; Dubar, 1991). Sin embargo,hacer depender la identidad de la ocupación remitea un pasado artesanal ya muy lejano. En las grandesempresas, desde la revolución industrial, la identidadno tenía que ver con cada ocupación en particular,mucho menos con la extensión del taylorismo-fordismo (Bizberg, 1989; Burke et al. 2009; Cerullo,1997). Cuando llega el toyotismo y la automatización,por el contrario, la propia empresa busca induciridentidad colectiva con ella y el trabajadorautomatizado, computarizado e informatizado esposible que haya reeditado en términos modernosun orgullo de trabajar con tecnologías de punta (Dela Garza, 2007; Dubet, 1989).

Es decir, la identidad colectiva de lostrabajadores no terminó con el obrero de oficio, sesiguió en casi todo el siglo XX con identificacionesno siempre con el producto o la actividad realiza-da sino con sus compañeros, sus organizacioneso sus partidos. Además, es probable que sobre laidentidad de los trabajadores no solo influya laactividad laboral desarrollada, sino otros espaciosde la vida no laboral como la familia, el ocio, lareligión, el espacio urbano o rural (Beriani y Pataxi,1996; Eagleton, 2006; Giddens, 1991). Por otro lado,la identidad debería de considerarse como una for-ma de la subjetividad (Gimenez, 2008, 1992, 1996;Hogg, Terry y White, 1995; Howard, 2000), en tan-to proceso de crear el sentido de identificación, pero

situado en ciertas estructuras y en determinadasinteracciones con otros actores (Linhart, 2008;Melucci, 2001). Vista como subjetividad podría serpensada como una configuración de códigoscognitivos, morales, emotivos, estéticos y formas derazonamiento cotidiano que permiten dar identidadpor y para (Schutz, 1996, 2003, 2003a). Entre elpuesto de trabajo y la identidad se encuentran otrasestructuras (al interior de la empresa,organizacionales, tecnológicas, de relacioneslaborales, de ocupaciones, de calificaciones,culturales; al exterior de cadenas entre clientes yproveedores, del mercado de trabajo, del mercadodel producto, cadenas productivas). El trabajadoren un puesto se encuentra en interacción con suscompañeros, supervisores y jefes. Finalmente, elproceso de creación de identidad pone en juegocódigos como los mencionados provenientes de lacultura (Taylor, 1989; Portal, 1991), pero los sujetosobreros construyen las configuraciones específi-cas de sentido para situaciones concretas(Sainssaulieu, 1977). Estas pueden cambiar enfunción de estructuras como las mencionadas perotambién de experiencias (Sewell, 1992). En otraspalabras, sobre la formación de identidad influyenprocesos más complejos que las simples caracte-rísticas del puesto de trabajo (Taylor, 1992; DeGaulejac, 1993).

Por otro lado, los procesos colectivos deidentificación no conducen a formas que debanpermanecer; ya quela identidad puede crearse, sercontradictoria y parcial (Recour, 1992; Pizzorno,1983; Mead, 1972) y a la vez desestructurarse;cuando esto sucede no significa que esta situaciónllegó para quedarse, como plantea Sennet. En elcaso de los trabajadores asalariados del capital,además de las estructuras, subjetividades,interacciones en el trabajo y la influencia de otrosespacios de la vida (Gayosso, 2011), no hay queolvidar que el eje es la acumulación del capital y,en esta medida, pueden entrar en contradiccióndicha acumulación con las aspiraciones, con loque consideran un trabajo legítimo los propiostrabajadores y desencadenar un proceso que afi-ance la identidad e incluso la constituya desde

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formas muy ambiguas en torno del propiomovimiento (Retamozo, 2006).

El trabajo en los servicios puede implicarrelaciones individualizadas con el cliente, lageneración de interacciones y de símbolos com-partidos, depender en buena medida del trabajadory en este sentido dificultar la construcción deidentidad colectiva. Esta sería otra forma de laconocida tesis de Bauman de fragmentación deidentidades, que en última instancia dependeríade las características del puesto de trabajo. Sinembargo, la “fábrica de sonrisas” iría desde la altaespecialización en interacción con clientes ycreación de símbolos cognitivos, morales, emotivoso estéticos compartidos, hasta el acercamiento a laestandarización de dichas interacciones y símbo-los sin mayor profundidad en las relaciones (porejemplo la oferta de un producto por teléfonopuede hacerlo una grabación o cuando lo hace untrabajador usar frases ya hechas y tener respuestasestandarizadas, aunque, como mencionamos alentablarse la interacción, el cliente puede fácilmentesalirse del guión que ante un trabajador poco há-bil la interacción puede salirse de control).

Entre los trabajadores no clásicos de altacalificación, esta puede significar capacidades téc-nicas para resolver un problema, pero tambiéncalificación en cómo lograr una interacción ysimbolización que lleven al cliente a aceptar elproducto o la explicación que se le ofrece. Entrelos de baja calificación – cajeros y acomodadoresde Wal Mart, empleados de restaurante deMcDonald’s, trabajadores de call centers, cajerosde bancos), aunque de ellos depende finalmentela venta o generación del servicio , este puede es-tar de tal forma estandarizado que la actividad sevuelva rutinaria, estándar, simple y de bajaremuneración ,y la construcción social de laidentidad, puede basarse en el reconocimientocompartido de su situación de precariedad(Lomnitz, 1998; Ramírez, 2005); es decir, no re-sultar solo del puesto de trabajo sino de una encompleja configuración como ya hemos explica-do. Tampoco resulta imposible la identificación delos expertos y técnicos en interacciones y creación

de símbolos (por ejemplo los artistas exclusivosque muchas veces se adhieren a causas queconsideran justas), aunque la alta especialidad simueve hacia el individualismo en las solucioneslaborales y de la vida, aunque tampoco haydeterminismo en este sentido: en determinadascoyunturas el individualismo puede sumergirsefrente a eventos impactantes socialmente como hasucedido durante las revoluciones.

En síntesis, la importancia actual de lostrabajos no clásicos tendría que llevarnos a revisarel concepto de clase social, de conflicto de clases,de sujetos trabajadores, de organizaciones y deproyectos (Dubet, 1999), en lugar de suponer enforma superficial que entre estos ya no son posibleslas solidaridades, acciones y organizacionescolectivas (De Jours, 1998; Linhart, 2009) y que elfuturo queda determinado por la sumisiónvoluntaria (aceptación del control empresarial deltrabajo por voluntad del proprio trabajador, sincoersión).

Recebido para publicação em 18 de janeiro de 2013Aceito para publicação em 27 de maio de 2013

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TRABAJO NO CLÁSICO Y FLEXIBILIDAD

Enrique de la Garza Toledo – Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Autônoma Metropolitana doMéxico, Departamento de Sociologia. Professor visitante da Universidade Autônoma de Barcelona, Universi-dade de Cornell e de Evry (França). Pesquisador da Posgraduação em Estudios Laborales de la UniversidadAutónoma Metropolitana en México. Publicações recentes: La revitalización del debate del proceso de

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NON-CLASSICAL LABOR AND FLEXIBILITY

Enrique de la Garza Toledo

In this article we will present the conceptof non-classical labor (De la Garza, 2010) in anattempt to explain not only the differences amongtypes of work, but also to address broaderdimensions, which are partially included in othertheories (Thompson, 1983). We will attempt toclarify the concept and its scope, as well as therelations with the services activities, which havegained constantly increasing importance in moderneconomies, even in less developed ones. We willrecall the classical concept of flexibility (Durand,2004) and the extent to which it would be pertinentto include non-classical labor. More specifically,we will include a form of flexibilization which hasprobably become dominant in capitalism since themost recent great economic crisis, outsourcing(Moncada e Monsalvo, 2000) and its connectionswith non-classical labor. Lastly, we will discussthe thesis of fragmented identities (Sennett e Cobb,1972) and voluntary servitude (Durand, 2006) inthe vein of the approach mentioned in the non-classical article, culminating in considerations onthe possibility of training subjects who work underthese conditions.

KEY WORDS: Work. Classical labor. Non-classicallabor.

TRAVAIL NON CLASSIQUE ET FLEXIBILITÉ

Enrique de la Garza Toledo

Nous présentons dans cet article le conceptde travail non-classique (De la Garza, 2010), pouressayer d’expliquer non seulement les différencesentre les types de travail mais aussi d’étudier leslarges dimensions inclues, en partie, dans d’autresthéories (Thompson, 1983). Nous essayonsd’expliquer le concept et ses portées ainsi que lesrelations avec les activités de service, qui sontdevenues de plus en plus importantes dans leséconomies modernes, sans oublier son poids danscelles moins développées. Nous rappelons leconcept classique de flexibilité (Durand, 2004) etl’extension qu’il serait bon d’inclure dans le travailnon-classique. Nous introduirons toutparticulièrement une forme de flexibilité qui vaprobablement devenir dominante dans lecapitalisme, suite à la dernière grande criseéconomique, les prestations de services (Moncadaet Monsalvo, 2000) et leurs liens avec le travailnon-classique. Au final, nous discuterons de lathèse des identités fragmentées (Sennett et Cobb,1972) et de la servitude volontaire (Durand, 2006)en fonction de l’approche mentionnée du travailnon-classique pour en arriver à des considérationssur la possibilité de formation des personnes quitravaillent dans ces conditions.

MOTS-CLÉS: Travail. Travail classique. Travail nonclassique.

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AMÉRICA LATINA COMO EXPRESIÓN DEL SISTEMA-MUNDOEN LA ORGANIZACIÓN DE LOS MODELOS DE DESARROLLO

Paulo Henrique Martins*

Nuestra idea es que la definición de América Latina como manifestación particular del sistemamundo es importante para aclarar el entendimiento de las innovaciones teóricas, sociales, culturales,tecnológicas, estéticas e institucionales verificadas en la región desde el final de la segunda guerramundial. Sin embargo, el carácter de esta definición depende directamente de un entendimientoanterior respecto a lo que significa el sistema mundo y el desarrollo. Porque si definimos el sistemamundo como una unidad homogénea no tiene sentido hablar de manifestaciones particulares deeste sistema; por otro lado, si limitamos el sistema mundo al sistema capitalista, la idea departicularidad de América Latina también queda complicada cuando pensamos la región comobase de procesos políticos y culturales liberatorios y propios. En fin, recordamos que este análisis seinspira en contribuciones inestimables de la Comisión Económica para América Latina y Caribe –CEPAL – que ha planteado de modo pionero innovaciones importantes sobre el tema del desarrollo,contribuyendo con la ruptura del ideario colonial.PALABRAS-CLAVES: América Latina. Sistema-Mundo. Desarrollo.

INTRODUCCIÓN

Desde que logramos incorporar la idea deAmérica Latina como manifestación particular delsistema mundo, podemos proponer un segundo ele-mento, a saber, que los cambios históricos, sociales,políticos, culturales, tecnológicos, estéticos einstitucionales verificados aquí siguen una lógica detiempo lineal producida por configuraciones opatrones de desarrollo propios.1 Estos procesostambién no son homogéneos y revelan diferentesmovimientos sistémicos y alter-sistémicos queexpresan las transformaciones de los patrones depoder sobre los territorios nacionales y entre losespacios transnacionales.2 Por consiguiente, la

relación entre sistema mundo y desarrollo, de modogeneral, o de sistema mundo latino-americano ypatrones de desarrollo de modo particular, no puedeser conjugada en lo singular sino en lo plural. Enesta dirección es más correcto proponer la existenciade diversos sistemas mundos y procesos dedesarrollos que manifiestan diferentes configuracionesde poder y de modalidades de transformación delas estructuras sociales.

* Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociología daUniversidade Federal de Pernambuco (Brasil).Rua Acadêmico Hélio Ramos s/n. Cidade Universitária.Cep: 50679-900 - Recife, PE - Brasil. [email protected]

1 Se trata de entender el desarrollo como fenómeno tempo-ral dinámico del sistema mundo que articula sus diversasmanifestaciones capitalistas y anticapitalistas. Los procesosde desarrollo son dominados por una lógica de temporalidadhistórica lineal que L. Tapia llama de una flecha del tiempolanzada hacia adelante y sustituyendo concepciones cíclicaso circulares del tiempo (Tapia, 2011, p. 20-21).

2 Recordando la afirmación de I. Wallerstein que “lo quese desarrolla no es un país sino un patrón de poder”(Wallerstein, 1996, p. 195-207), Quijano aclara este

entendimiento afirmando que el patrón de poder capita-lista no existe de modo homogéneo en el espacio mun-dial: […] este patrón de poder es mundial, no puedeexistir de otro modo, pero se desarrolla de modos dife-rentes y en niveles distintos en diferentes espacios-tiempos o contextos históricos” (Quijano, 2000, p. 75).Sin embargo, para profundizar el desarrollo desde la pers-pectiva de los patrones de poder nos parece importanteseñalar que el poder económico capitalista es solo partede configuraciones de poder más amplias que revelancuestiones filosóficas complejas respecto el trabajocreativo del ser humano en la organización de su mun-do. El poder capitalista no es auto-evidente y no funci-ona solo. Como lo nos explica M. Weber no hay “leyeseconómicas” en el sentido de conexiones “regulares” defenómenos en el sentido estricto de las ciencias de lanaturaleza pero “conexiones causales adecuadas”expresas en reglas y, luego, que pueden aparecer como“posibilidad objetiva” (pero no como imposiciónnecesaria de la realidad). Pues, aclara él, el número y lanaturaleza de las causas que determinan cualquieracontecimiento individual son siempre infinitos y estecaos solo puede ser ordenado cuando un hecho especí-fico tiene interés y significado para nosotros y seencuentra en relación con las ideas de valores culturalescomo abordamos la realidad (Weber, 1979, p. 94-95)

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Sin embargo, tales diferencias de patronessolo pueden ser percibidas desde que reflexionamossobre el entendimiento del sistema mundo (y delos patrones de desarrollo) como movimientossistémicos abiertos a expresiones y significacionesvariadas desde las luchas involucrando interesesmercantilistas y anti-mercantilistas.

Para el avance de nuestra reflexiónnecesitamos diferenciar tres nociones de sistemamundo que de modo amplio dominan losimaginarios de las ciencias sociales y que influyensobre la discusión sobre desarrollo, tipos dedesarrollo y superación del desarrollo. La primeranoción busca reducir el sistema mundo al sistemacapitalista; aquí los términos se anulan: globalizaciónsignifica capitalismo y vice-versa. La segunda, di-ferencia sistema mundo y capitalismo y proponeque el primer término es más amplio que el segun-do. Sugiere que al ampliarse la noción de sistemamundo más allá del sistema capitalista tenemosque incorporar elementos no económicos de loscambios institucionales, tenemos que reconocerque existen varios sistemas mundos o movimientossistémicos dentro del sistema mundo. Sin embar-go, esta tesis continúa proponiendo que eleurocentrismo es el centro de las diversas formasde organización de movimientos a favor y contrael capitalismo.

La tercera noción, partiendo del supuestode la amplitud histórica del sistema mundo y desu existencia más allá del sistema capitalista,cuestiona radicalmente el eurocentrismo – la ideade Europa y su extensión, los EUA, como centrodel sistema mundial. Esto tiene como implicacióndirecta el reconocimiento que hay varios centrosy/o centros potenciales de impulso del mundo queconocemos (los márgenes como centros) y quetambién hay varios movimientos sistémicos y alter-sistémicos que mueven los impulsos para adelante.Esta tercera noción es fundamental para elaborarla tesis de la América Latina como una expresiónparticular del sistema mundo donde se manifiestandiversos tipos de patrones de poder.

A partir del entendimiento de esta pluralidadde concepciones sobre el sistema mundo, pode-

mos avanzar con la idea de América Latina comomanifestación particular del sistema mundo y comoespacio de luchas entre fuerzas capitalistas yneocoloniales, por un lado, y fuerzas anti-capita-listas y decoloniales, por otro. Para este avance, esfundamental incluir la idea de desarrollo comopatrón de poder, en primer lugar, y la idea dedesarrollo como pluralidad de posibilidades decambios sociales e históricos, lo que depende delos acuerdos y luchas políticas.

LAS TRES INTERPRETACIONES DEL SISTE-MA MUNDO PRIMERA INTERPRETACIÓN: elsistema mundo es igual al sistema capitalista

En esta interpretación, que es la base de ladoctrina neoliberal y también del marxismo másortodoxo, sistema mundo y sistema capitalista seidentifican. El liberalismo y el marxismo en estainterpretación aparentan ser opuestos en la medidaque proponen lecturas distintas de las bases causalesde la solidaridad social. Pero, ellas confluyen en elcampo epistemológico cuando valoran laanterioridad fenoménica del interés económico. Elfundamentalismo económico define la marcha delprogreso de todos los países y las alternativas selimitan a dos opciones: desarrollo con crecimientoeconómico o desarrollo con recesión económica ycrisis. Aquí las transformaciones del capitalismodefinen las del sistema mundo tanto en las etapasde crisis como las de prosperidad y las solucionesson las de reforma – para los sistemas políticosliberales – o de revolución – para los sistemas polí-ticos marxistas, que se proponen “antisistémicos”.

Para el liberalismo la sociedad es fruto deun contrato interesado entre individuos libres cadauno buscando maximizar su posibilidades deplacer y de minimizar las perdidas como fue di-fundido por la filosofía utilitarista inglesa (Caillé,1989) y que funda el mercantilismo colonial comovalor natural. En esta primera interpretaciónrestrictiva el entendimiento de sistema-mundo eslimitado por la presencia de un patrón dedominación económica capitalista determinado por

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la economía de mercado, como vemos entre losliberales, y en particular por la preocupación conel consumo, como con los marginalitas.

Por su lado, para los marxistas, la sociedad esfruto de las luchas entre clases sociales por el controlde los medios de producción colectivos económicos.Desde la perspectiva marxista, como vemos enWallerstein (2003), el sistema capitalista se confundecon el sistema mundo; por consecuencia, la alterna-tiva al capitalismo es la expectativa que suscontradicciones generen su crisis y reacciones or-ganizadas a tal crisis, lo que es muy problemáticocuando hacemos la retrospectiva de la historiareciente del capitalismo. Pues cuando hacemos estebalance verificamos que los momentos dramáticosdel imperialismo eurocéntrico ocurrieron cuandoél tuvo que confrontarse con resistencias políticasy culturales apuntando para otras modalidadessistémicas y no por causa de crisis mecánica deregulación en el proceso de mercantilización.

Sin embargo, ambas corrientes, liberal ymarxista, están del mismo lado al considerar queel motivo central – de los acuerdos espontáneos ode las luchas sociales – son de naturalezaeconómica, como si el elemento económico puedaaparecer como una referencia meta-histórica conexistencia propia e independientemente de lassignificaciones culturales que imprimimos a larealidad. En esta dirección, muchos actores indicanque las dos tesis no rompen con el paradigmautilitarista moderno (Caillé, 1989) en la medida enque el análisis de las sociedades contemporáneasse limita al análisis de clases sociales definidas porlos conflictos económicos (los marxistas), o pormotivaciones económicas utilitaristas e individuales(los liberales), sin considerar las significacionesmorales, políticas y culturales que tambiéncontribuyen por la objetivación de la realidad.

En esta lectura la discusión sobre política ycultura queda subordinada a la determinacióneconómica principal y los análisis de la crisis actualno logran comprender la complejidad de cambiodel sistema mundo, pues quedan prisioneros deprevisiones sobre la crisis inminente del capitalis-mo. Los análisis devalúan las perspectivas de los

contextos históricos y culturales particulares den-tro del sistema mundo o entienden que la crisis essolo una desregulación provisoria del sistema ca-pitalista a ser corregido mecánicamente por elprogreso económico y financiero. Si aceptamos quela globalización capitalista involucra el sistema-mundo como sugieren los neoliberales y los mar-xistas más ortodoxos, entonces somos obligados aaceptar una jerarquía cognitiva en que lasdeterminaciones económicas subordinan las luchaspor otros modelos sociales y económicos y porjusticia social.

A nosotros, sin embargo, esta jerarquía nosparece ilusoria pues esconde el hecho de que hayvarios dispositivos políticos, culturales, moralesy estéticos que influyen sobre la reproducción delsistema mundo y del sistema capitalista en su in-terior. En esta dirección, si ampliamos el abordajeeconomicista para incluir a elementos políticos,culturales y simbólicos ampliando la teoría de lasclases y de la dominación con la inclusión deteorías del reconocimiento y teorías implicadas enla desconstrucción del patriarcalismo, entoncespodemos organizar un entendimiento máscomplejo del sistema mundo. Este entendimientodebe considerar que las manifestaciones regionalesdel sistema mundo operan sobre territoriospolíticamente movilizados por actores conectadoscon la esfera económica y mercantil pero igualmentecon las esferas raciales, étnicas, identitárias,patrimoniales, estatutarias, eco-sociales entre otrasque contribuyen para demostrar la complejidad delas luchas y de las acciones colectivas en losterritorios políticamente organizados.

Contra esta lectura determinista del sistemacapitalista, preferimos considerar que el sistemamundo es más amplio que el capitalista y que lasluchas contra él son dirigidas por movimientos“alter-sistémicos” que no quedan sometidos a unajerarquía comandada por las determinacioneseconómicas. Por eso, tales movimientos apuntanpara heterotopías (Foucault, 2010), como las de“alterglobalizacion” o de “alterdesarrollo”, porejemplo, que objetivan abrir el entendimiento hu-mano para otros imaginarios socio-históricos. Así,

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nos parece importante caminar por nuevossenderos epistemológicos que nos faciliten elrescate de la complejidad histórica, social y cultu-ral del sistema-mundo. Aquí, admitimos que elsistema capitalista tuvo gran importancia para suéxito, pero también aceptamos que este sistema-mundo es algo más amplio y complejo que lamodernización capitalista y que el desarrollo esun concepto que se desplaza entre diversos pac-tos de poder posibles.

El pensamiento latinoamericano incorporóhistóricamente las dos corrientes. La visión liberalestá en la base de las teorías de la modernizaciónque sugieren etapas de desarrollo en América Lati-na y que fueron divulgadas por las universidadesnorteamericanas (Rostow, 1993). La visión marxis-ta, por su lado, ha inspirado grandes intelectualeslatinoamericanos como José Carlos Mariátegui yFlorestan Fernandes, que buscaron adaptar las tesiseurocéntricas del marxismo a la realidad de Amé-rica Latina. El esfuerzo de integrar elementos noeconómicos y contextualizados como el de laracialidad, para explicar la realidad compleja regi-onal es prueba del esfuerzo de estos intelectuales.En esta dirección los marxistas son más profun-dos que los liberales que quedan prisioneros deuna teorización muy abstracta. Así, podemos con-cluir que unos y otros, al final, reducen el sistemamundo al sistema capitalista.

SEGUNDA INTERPRETACIÓN: el sistema mundoes más amplio que el sistema capitalista

La segunda noción propone que el sistemamundo es más amplio que el sistema capitalista yque, por consecuencia, las transformaciones delsistema mundo exigen marcos interpretativos máscomplejos que los ofrecidos por las teoríaseconómicas. Este entendimiento más amplio delsistema mundo se apoya en un conjunto de críti-cas anti-utilitaristas y anticapitalistas. Alproponerse que el sistema mundo es más amplioque el sistema capitalista, obligatoriamente somosinvitados a reflexionar sobre que otros elementos

no-capitalistas por naturaleza deben ser apuntadoscomo necesarios para explicar esta amplitud delsistema mundo. De inmediato, nos parece impor-tante subrayar que no siendo el mundo conducidosolo por intereses capitalistas y utilitaristas entoncesse explica la variedad de movimientos sistémicosestimulados por diversos motivos y por otros usosdel poder político.

Aquí el pensamiento crítico avanza en ladiscusión moral de la modernidad eurocéntrica conénfasis en la búsqueda de racionalidad comunica-tiva en la modernidad inacabada (Habermas, 2003),de la exigencia de ética en la civilización tecnológica(Jonas, 1997), de la emancipación de un self mo-derno expresivo que cuestiona el self instrumen-tal (Taylor, 1997), del reconocimiento moral yafectivo de los sujetos del cotidiano, de la crítica alfatalismo económico (Caillé, 2005) y de la revisiónde la idea de desarrollo como un proceso técnico(Latouche, 1986). Aquí, el sistema mundo aparececomo una estructura cultural y humana complejamás amplia que el capitalismo que todavía conti-nua a ser impulsado – en el buen y en el mal sen-tido – por el eurocentrismo.

Así, el sistema mundo y el desarrollo comoexpresión concreta del cambio histórico del siste-ma en la orientación del tiempo lineal, siemprepueden ser vistos desde dos lados: de ladominación de los intereses económicos sobre elconjunto de motivaciones humanas y las reaccionesmás diversas contra este reduccionismo. Pues loque caracteriza, de hecho, la complejidad del sis-tema-mundo, hoy, es la imposibilidad de reducirloa una única cosa: a una empresa económico-financiera, al único patrón de poder, a una culturade consumo uniformizada o a una única lengua.

La contribución francesa es evidente y ellase revela en tres dimensiones. La primera y másconocida es la representada por las tesis que acercanlas ciencias sociales a las teorías del lenguaje, or-ganizadas por nombres como Foucault (1999) yDerrida (1967). La segunda se revela por lascontribuciones de la filosofía política del grupo dela Revista Civilización y Barbarie, dirigida por C.Lefort (1986) y C. Castoriadis (1975) que han

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avanzado elementos importantes para elentendimiento de los fundamentos no económicosde las experiencias democráticas. La tercera es re-presentada por los activistas de la Revue du MAUSS

(Movimiento AntiUtilitarista en las CienciasSociales) (MAUSS, 2010) que exploran la críticamoral del capitalismo desde contribucionesinestimables de autores como M. Mauss y K.Polanyi (Caillé, 1989), para proponer otros modosde pensarse la economía (Revue du MAUSS, 2007).Este movimiento constituye una de las basescentrales de la discusión sobre economía solidaria(França Filho, Laville, Medeiros y Magnen, 2006).

La fuerza de la crítica francesa a laglobalización económica no es aleatoria pero debeser entendida como expresión de la tradición re-publicana e iluminista del campo intelectual eneste país que siempre reaccionó contra la propuestautilitarista anglosajona de mercantilización delmundo, propuesta que a ellos, los franceses,siempre recordó una amenaza directa alrepublicanismo liberal. Tal vez, aquí, tenemos unode los puntos de diferencia entre el eurocentrismode inspiración francesa que articula el universalismocognitivo y la política, y el de inspiraciónanglosajona que es más directamente comprometi-do con la mercantilización del mundo y menos conlos modelos de gobernabilidad política que sepreocupan de la articulación de Estado y Nación.

En América Latina, esta interpretación delsistema mundo es representada sobre todo por losteóricos de la dependencia que entienden que lasreacciones políticas posibles al capitalismo se hacennecesariamente desde el reconocimiento del impe-rialismo como un centro motor incuestionable. Apesar de los cambios históricos esta interpretacióndependientista se actualiza como verificamos enlos análisis recientes de autores importantes de lateoría de la dependencia como Theotonio dos San-tos, cuando explica las perspectivas de los siste-mas regionales como América Latina, en el siste-ma mundo en el contexto contemporáneo (Santos,2012). De hecho, cuando la internacionalizacióndel capitalismo es priorizada en la jerarquíacognitiva del sistema mundo, entonces los

movimientos sociales, culturales y étnicos, lasluchas democráticas y por justicia social, laciudadanía republicana, la creatividad humana ylas experiencias de solidaridad quedannecesariamente dependientes de la idea de unasolución económica en primer lugar aunque arti-culada con otros elementos no económicos.

Sin embargo, si la crítica teórica en el Nortefue importante para ampliar el entendimiento delsistema mundo para allá del sistema capitalista,tal crítica no es aún bastante para explicar que larelación centro versus periferia no se limita adeterminaciones geográficas o históricas que ubicana Europa como centro y a la no-Europa como peri-feria. La crítica radical a esta ecuación jerárquicaes, todavía, promovida por la crítica descolonialcomo vamos ver a seguir.

TERCERA INTERPRETACIÓN: el sistemamundo es más amplio que el sistema capita-lista y se mueve desde varios centros depoder que cuestionan el eurocentrismo

La difusión de interpretaciones quecuestionan con radicalidad las ideas de sistemamundo y de desarrollo están relacionadas con elavance del pensamiento postcolonial y, en los úl-timos años, del pensamiento decolonial. Ladecolonialidad es una variable crítica de las tesispostcoloniales que problematizan la ecuación cen-tro y periferia como una realidad dadahistóricamente. Si las tesis poscoloniales como lascepalinas problematizan la colonialidad sin rom-per con el dogma del progreso económico, lasdescoloniales buscan desconstruir la propia ideade colonialidad y de progreso económico comoun reto incuestionable. Las tesis decoloniales deDussel, 1993; Lander, 2003; Mignolo, 2005; Cas-tro Gomes e Grosfoguel, 2007; Escobar, 2008;Abellán, 2009; Farah y Wanderley, 2011; Quijano,2012; Martins, 2012 entre otros, avanzan en estadirección de problematizar el capitalismo desde lacrítica de un patrón de poder que se refieresimultáneamente – y sin subordinación jerárquica

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de los elementos a un factor prioritario – a laeconomía, a la política, a la cultura, a la historia,finalmente, a la diversidad de narrativas moder-nas que se combinan desde patrones interpretativosdiferenciados.

El avance de la crítica deconstruccionistaestá también contribuyendo para la complejidadde la crítica teórica al subrayar que la colonialidadse refiere simultáneamente al capitalismo y alpatriarcalismo. Al capitalismo, la colonialidad serefiere para organizar la dominación por laclasificación por clases sociales; al patriarcalismo,ella se refiere para organizar la dominación por laclasificación por elementos de raza, género, sexo ycontrol de la naturaleza (Lugones, 2010). Así, ladominación colonial se hace por la exploracióndel trabajo pero igualmente por la exploración deldeseo, de los sentimientos, de la reproducciónhumana, y, sobretodo, de la alienación del serhumano respecto a su complejidad como ser vivo.Por eso, E. Dussel (1993, p. 188) sugiere que lamodernidad eurocéntrica se define por suemancipación racional y cognitiva respecto a“nosotros” pero igualmente por su carácter mítico-sacrificial de los “otros”.

Este raciocinio nos parece adecuado paraplantear con más detalles tanto el entendimientoteórico de la diferencia entre sistema mundo y sis-tema capitalista como de la profundización teóricade los patrones de dominación actuales,subrayando los aspectos epistemológicos y lascondiciones culturales particulares de las realida-des locales, nacionales, continentales y globales.Aquí, las críticas proponen que el sistema mundose mueve bajo varios movimientos sistémicosdestacándose el movimiento capitalista – que noshabla de la reflexión anti-sistémica del marxismo–, el movimiento del patriarcado – a que se refiereel movimiento anti-sistémico feminista –, y elmovimiento colonial – que nos ha explicado porlas movilizaciones anti-sistémicas postcoloniales.

Pues se trata de demostrar que el sistemamundo revela la influencia de patrones de poderque existían antes del capitalismo moderno, comoel del patriarcalismo o de las culturas no europeas

o que fueron producidas en los últimos siglos allado y contra el capitalismo mercantilista. En estasegunda interpretación el desarrollo no se pronun-cia en singular y si en plural y en relación con lospatrones de poder establecidos históricamente. Así,nos aclara I. Farah y F. Wanderley que contra unavisión restrictiva del desarrollo que valora solo lasestrategias de dirección de los procesos económicoshay que incluir las perspectivas de género,generación, ambientales, entre otras, así comotemáticas como justicia, derechos humanos,participación y deliberación, ciudadanía y controlsocial (Farah y Wanderley, 2011, p. 11).

Esta no es solo una sugerencia metodológica.Es sobre todo una ruptura metodológica con im-pactos en la política. Se trata de entender por lasvariadas y complicadas actividades del modo deproducción, reproducción y consumerismo“glocales” lo que está directamente conectado a lasestrategias de sobrevivencia de las élites económico-financieras centrales y coloniales, por un lado, y alas reacciones sistémicas, sociales, culturales e his-tóricas de las más variadas que revelan que la ca-racterística central del sistema-mundo nos es sutendencia para la uniformización planetaria perosu ambivalencia constitutiva (Martins, 1999) entreunicidad y diversidad, por otro.

Estos comentarios son importantes para elavance de nuestra tesis en esto texto que, recorda-mos, se funda sobre dos puntos: primero, eldesarrollo es un concepto que se apoya sobre unavariedad de motivos, incluso el económico, perono solo; en esta dirección el desarrollo se apoyasobre la producción y la circulación del capitalis-mo pero igualmente desde la tradición patriarcalitaque es anterior al capitalismo europeo y, en el ladocontrario, desde las reacciones anti-sistémicas con-tra el capitalismo, contra el patriarcalismo y contrala colonialidad, fundadas en las tradiciones histó-ricas no europeas. En segundo lugar, consideran-do la complejidad del fenómeno, hemos de pen-sar en la posibilidad de varios tipos de desarrolloque espejan diferentes modalidades de patronesde poder y diversas modalidades de inserción delas sociedades nacionales en el contexto dinámico

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de la matriz centro-periferia mundial.La presencia del inglés en el sistema-mun-

do es curiosa. Aparentemente, esta presenciacontradice lo que decimos aquí en la medida enque esta lengua es hoy un sistema universal deorganización del diálogo cultural mundial y el ejelingüístico de la dominación capitalista. Pero en lapráctica lo que observamos es que el inglés tradici-onal, que tiene sus orígenes en el mundoanglosajón, está conociendo mutaciones muy im-portantes en su estructura en la medida en queestá siendo apropiado y adaptado por diversasculturas. Esto nos hace recordar la historia del latínen los siglos pasados que se desplegó en variadaslenguas como el portugués, el español, el francés,el italiano entre otros. Cuando analizamos laadaptación del inglés en otras culturas como laibérica, la indiana o la china en esto momento en-tendemos que el avance del inglés se hacesimultáneamente a las mutaciones que sufre suestructura fonética abriéndose a varios dialectos.3

Para sintetizar la discusión de esta secciónpodemos decir que el sistema-mundo es unarealidad humana variada y constituida por elemen-tos muchas veces irreductibles unos a otros (como

estamos presenciando por los conflictos religiososen la actualidad), y que el desarrollo es un conceptoelástico que revela las tensiones constitutivas delsistema mundo en la dinámica del tiempo lineal,que es el del progreso tecnológico, por un lado, ydel tiempo circular, que es el de la reproducciónde los sistemas vivos, incluso de las culturas y delas familias de los humanos, por otro.

Así, podemos avanzar con otra cuestión:entender la diversidad-particularidad de AméricaLatina dentro del sistema-mundo a partir delreconocimiento que la relación centro-periferia noes solo un sistema mecánico producido por el flujoeconómico internacional sino un proceso políticode dominación colonial que revela las tensionessistémicas más amplias y que solo pueden ser en-frentadas políticamente. Esto es el aprendizaje quenos legó la Comisión de Estudios de América La-tina y Caribe – CEPAL – y que marca el desarrolloparticular del pensamiento crítico postcolonial ydecolonial después de la segunda gran guerramundial. Es lo que vamos a discutir a seguir.

La liberación de América Latina como siste-ma-mundo particular

Al analizar el rol de la CEPAL en la formacióndel pensamiento latinoamericano, constatamos que R.Prebisch (1949) planteó una reflexión sobre el siste-ma-mundo que tiene mucho más valor sociológicoque la mirada de los economistas en su época. Quere-mos decir que el momento en que Prebisch y colegascomo C. Furtado (1961, 1964) entienden que el deteri-oro del intercambio económico internacional entrepaíses productores de manufacturas y paísesproveedores de materias primas agrícolas y mineralesestaba profundizándose y que no había solución paralos países “subdesarrollados” dentro de la lógicaeconómica de las “ventajas comparativas”, ellos logranproducir desde América Latina, un entendimientoeconómico político más amplio del sistema mundoque tuvo importantes impactos prácticos.

En el campo del pensamiento podemosdecir que la CEPAL introduce un hecho nuevo

3 Tuve esta comprensión al observar las diferentes modali-dades de hablar inglés cuando sucedió el fórum organiza-do por la Internacional Sociological Asociation – ISA – enBuenos Aires, en agosto de 2012. Conversando con unacolega ilustre de India, la socióloga Sujata Patel, ellareclamaba al no entender casi nada de la traducción delcastellano para el inglés que había sido hecha por unatraductora argentina. Por otro lado, varios colegas yestudiantes de lengua española y portuguesa reclamabanpor las dificultades para entender el inglés de los indianosy de los chinos. Claro, esto es un pequeño ejemplo quenecesita ser profundizado pero que sugiere que la lenguainglesa está conociendo mutaciones fonéticas ysemánticas importantes al ser apropiada por individuosde otras estructuras lingüísticas. En verdad, lo mismo yapasó antes con el latín a lo largo del proceso de colonizaciónpues el portugués que se habla hoy en Brasil o Angola noes el mismo portugués originario de Portugal. Tambiénpodemos recordar, en esta dirección, que, hoy, el inglésque se habla en los Estados Unidos no es el mismo que sehabla en Inglaterra. La particularidad ahora del inglés esque él pasa a ser apropiado como dispositivo de traducciónsimbólica y cultural por individuos que mantienen susestructuras lingüísticas originales. Este sencillo ejemplonos revela a complejidad histórico-cultural del sistema-mundo en la actualidad. Y podemos tomar muchos otrosejemplos en las danzas, las fiestas, los rituales, laseconomías entre otros para demonstrar que lasmediaciones lingüísticas son extremamente complejas yque la transmodernidad de la que nos habla E. Dussel(2012) es fabricada por experiencias y practicas variadasque se comunican pero no se disuelven en un patrónhistórico y cultural uniformizado.

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para pensar el sistema mundo por testimoniar cla-ramente los desplazamientos de centros deproducciones de ideas sobre el desarrollo de cen-tro para centro – desplazamiento del imperialismode Europa para Estados Unidos – y de centro paraperiferia – nacimiento de un pensamiento críticoen los márgenes, que contrariaba las tesis de lasteorías de la modernización defendidas por auto-res como Rostow (1993).

Las teorías de la modernización se basaban yen la idea que la posibilidad de éxito para los países“subdesarrollados” dependía de seguir los pasos delcrecimiento económico de los países “desarrollados”.Las tesis desarrollista y anticomunista de Rostow(1993) reveladas en su libro Etapas del crecimiento

económico son las más conocidas. Proponían quecada país debería pasar por cinco etapas: sociedadtradicional, transición (condiciones previas parael “despegue económico”), el despegue económico,camino de la madurez y consumo a gran escala.En las universidades norte-americanas sediscutirán mucho los usos de las teorías de lamodernización en América Latina en la post-guer-ra. Según esta ideología del desarrollo la posibilidadde superación de la condición del “subdesarrollo”dependía de la capacidad de los dirigentes yempresarios de los países subdesarrollados decopiar los modelos exitosos de los países“desarrollados”, apareciendo los Estados Unidoscomo el modelo ejemplar.

En paralelo y contra esta lectura evolucionistade la modernización, la CEPAL estimuló reaccionesantiimperialistas y también anticapitalistas que vana manifestarse en las reformas de los estados de laregión, en las luchas por nuevas políticas públicas,y en la liberación de las tesis poscoloniales. Talesreacciones están presentes en la teoría estructuralistacepaliana, en las teorías de la dependencia, en lasteorías de la colonialidad, en las teorías de laliberación y en las teorías de la decolonialidad.

En esta dirección, podemos sugerir queAmérica Latina desde los años cincuenta se muevedesde dos campos de ideas: por un lado las teoríasde la modernización estimuladas por las universi-dades norte-americanas para combatir el comunis-

mo y por el avance del imperialismo norte-ameri-cano que reconfigura el eurocentrismo; por otro,las teorías antiimperialistas (que niegan la distan-cia estructural entre países desarrollados ysubdesarrollados) y que entienden que AméricaLatina pasa a ser desde entonces también un nuevocentro de organización del sistema mundo.

Teorías imperialistas del desarrollo

Este es un punto importante para el avancede nuestra reflexión y que debe ser explicado parano haber exagero sobre el alcance de la rupturacrítica producida por la CEPAL. O sea, la críticacepalina solo rompió con un aspecto de lacolonialidad, lo representado por la tesis equivo-cada del encubrimiento de la matriz centro-perife-ria del sistema-mundo por la ideología del equilibrioespontáneo del mercado. Hay sin embargo otroaspecto de la colonialidad que no se rompió con lacrítica cepalina: la de la ideología del progresoeconómico por etapas que fue sugerida por lasteorías de la modernización. Esto significa que losteóricos cepalinos entendieron que la teoría liberaldel libre mercado económico era falsa pero nolograron romper los dogmas evolucionistas de lateoría de la modernización.

Seguramente, necesitamos considerar loslímites del contexto cepalino para entender lasposibilidades de avance, pues los movimientossociales e intelectuales solo se liberan dentro deciertas condiciones históricas dadas. No es posibleconcebir la creatividad intelectual fuera del espacioy del tiempo (Castoriadis, 1975, Santos, 1979). Enesta dirección podemos entender que la descubiertacepalina tuvo sus límites objetivos dados por lastensiones entre la postcolonialidad y el imperia-lismo. La revolución cubana, por un lado, lasdictaduras militares, por otro, revelan la intensidadde las tensiones políticas en América Latina eneste contexto de conciencia de la importancia deuna praxis de los márgenes. Estos hechos pruebanla existencia de límites al pensamiento poscolonialcrítico que fueron impuestos tanto externamente,

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por el imperialismo norteamericano como interna-mente, por las fuerzas oligárquicas de base rural.

Hay que subrayar en esta dirección, porconsecuencia, que la incapacidad de los cepalinosde romper con la ideología del crecimientoeconómico ilimitado no fue solo una dificultadteórica de los académicos de criticar la teoría de lamodernización por etapas. Los movimientosintelectuales tenían que enfrentar dos tipos depresiones políticas importantes: de los interesesnorteamericanos y de las oligarquías conservado-ras. Así, las resistencias de estas oligarquías con-tra los cambios de los regímenes de propiedad yde uso colectivo de las tierras inexploradaseconómicamente revelan el cuadro de las relacio-nes de fuerzas presentes.

Las tentativas de implementación de laspolíticas de reforma agraria apuntan para lasdificultades de implementar reformas estructuralesen el sistema de propiedad de base oligárquica yen las políticas públicas controladas por elautoritarismo burocrático. Esta tesis queda másclara cuando consideramos que interesaba a loscepalinos interferir sobre las reformas del aparatoestatal y sobre las políticas públicas y económicas.O sea, si las políticas cepalinas fueron, por unlado, audaces para la época confrontando inclusolos intereses oligárquicos con los planos de refor-ma agraria, por otro, ellas fueron conservadoraspor limitar tales reformas al proyecto deorganización de mercados internos nacionales deconsumo proyectados dentro de la matriz delcrecimiento económico lineal y evolutivo.

De esta forma, las teorías de la modernización,pensadas desde la importancia de los EUA de li-mitar la influencia soviética sirvieron claramentepara actualizar los pactos conservadoresinvolucrando a oligarquías tradicionales y losintereses capitalistas internacionales. Y estaecuación de las tesis de la modernización por eta-pas continua siendo de gran importancia en laactualidad. Ella fue la referencia por la penetraciónde las ideas neoliberales desde los años 80(Martins, 2012). Por consecuencia, no es exageroafirmar que la tesis neoliberal de disolución de la

ecuación centro y periferia tuvo un efecto desas-troso sobre las creencias post-coloniales quelegitimaban el modelo del Estado desarrollimentistacentralizado.

En varios países de América Latina, en loscontextos de movimientos de redemocratización enla década de ochenta, como fue el caso de Brasil,los economistas de “izquierda”, legítimos herederosde la tradición cepalina, no tuvieron éxito en lastentativas de reforma del aparato estatal para asegurarsimultáneamente redistribución de ingresos ydemocratización social. No es exagero pues afirmarque el neoliberalismo contribuyó para desorganizarprofundamente una parte de la izquierda intelectu-al, sobre todo académica, que interpretaba lacoyuntura de las sociedades nacionales periféricasdesde las relaciones conflictivas entre el Estado, elPoder Central desarrollimentista y los diversosintereses presentes en el escenario político ypartidario (Martins, 1992).

Así, el pensamiento crítico latinoamericanoque había sido estimulado entre las décadas de 50y 70 por la crítica poscolonial, estructuralistacepalina y postdependientista, conoció ciertarecolonialidad desde los años 90 del siglo XXprovocada por decisiones políticas más interesadasen los indicadores de productividad académica queen la construcción de una ciencia adecuada paraapoyar los procesos de liberación social. Estarecolonialidad pasó en Brasil, pero también, bajodiversos senderos, en México, Argentina, Chile yvarios otros países de la región.

Por consecuencia, el pensamiento académicoy universitario latinoamericano, hoy, está muy mar-cado por procesos de recolonialidad del saber quese materializaron bajo la profesionalización de losestudios universitarios. Este hecho contribuyó paraestrechar las cooperaciones entre universidadeslatinoamericanas, europeas y norteamericanas,fragilizando la cooperación universitaria entre lassociedades latinoamericanas. En muchos países seolvidó de algún modo la memoria de América La-tina como una comunidad de destino, siendo Bra-sil un caso emblemático de esta alienaciónacadémica (Martins, 2012).

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La traducción de la ideología de laglobalización en el glosario poscolonial fue lo dela disolución de la tensión centro y periferia den-tro del sistema mundo. Muchos postcolonialistasde izquierda se convirtieron al fascínio delpensamiento único. Pues lo que ellos másambicionaban - la realización del desarrollo encondiciones de periferia – les pareció arreglado desúbito por el aparente desaparecimiento de latensión centro y periferia, lo que igualmente paramuchos significaba que el Estado centralizado einterventor no era más necesario. Hemos dereconocer, entonces, que parte del pensamientoacadémico heredero de la crítica poscolonial quedópasivo y fue absorbido por los nuevos dispositivosde colonialidad producidos la ideología de laglobalización económico uniforme que fue articula-da dentro del campo académico neoliberal,impactando sobre los destinos de parte de las cienciassociales regionales. El proceso de recolonización delsaber por políticas de profesionalización universitariaque valoran la subordinación del conocimiento aleurocentrismo se verificó bajo procesos derecolonialidad del poder destinados a asegurar loscambios en el patrón de poder dominante parapermitir el avance del capitalismo económico yfinanciero en el interior de los Estadosdesarrollimentistas. En Brasil, por ejemplo, hayvarios departamentos de economía que noincluyen, en sus contenidos estratégicos para laenseñanza, asignaturas como sociología yantropología; y muchos estudiantes reclaman porla ausencia de estudios sobre la CEPAL y sobre elrol de Celso Furtado para las teorías del desarrollo.

Paralelo a estos procesos debemos registrarel avance de la crítica descolonial, o decolonial,que ha progresado de modo incierto y casi siemprefuera de la academia. Tales críticas se apoyan prin-cipalmente sobre el avance de la sociedad civilcompleja que cuestiona las estructuras decolonialidad desde abajo, desde el mundo de lavida, desde los conflictos urbanos y rurales, des-de los nuevos movimientos sociales conectados alas luchas, de las mujeres, de los sin tierras, de laspersonas sin hogar, de los sin ciudadanía, de los

ambientalistas entre otros. En Brasil, esta nuevamirada es planteada por autores como M.G. Gohn(2000), B. Bringel (2010) y I. Scherer-Warren y L.H.Hahn Luchmann (2011), sin embargo hay unaproducción importante de estudios y redes enLatinoamérica que están a mapear las reaccionesaltersistémicas (Mato, 2004; Quiroz, Jonas, Pereirae Nagata, 2006; Escobar, 2008 ).

La invención de la CEPAL fue en suma unaexperiencia de descolonialidad. Pero, tenemos aquíuna revisión parcial que no rompió con la idea decentro versus periferia como una ecuación de validadontológica, y, por consecuencia, con la idea decrecimiento económico ilimitado. Por otro lado, laidea de decolonialidad se refiere a un cuestionamientode la validad ontológica de la ecuación centro yperiferia, liberando los márgenes para movilizarsecomo centros autónomos y creativos deproducción de conocimiento sobre el desarrollo eigualmente sobre la vida y los derechos humanos(Martins, 2012).

Este es pues el contexto en que vamos apresenciar el surgimiento al lado de las teoríaspostcoloniales, del movimiento teórico decolonialque objetiva deconstruir radicalmente lacolonialidad desde otros marcos interpretativos quecuestionan la idea misma de centro y periferia;cuestionamientos que proponen liberar la perife-ria de una posición dependientita en el sistema-mundo para que aparezca como nuevos lugares deproducción de saberes y experiencias del mundo.

Teorías antiimperialistas del desarrollo

El cuestionamiento político de la ecuacióncentro versus periferia que tiene como marco laCEPAL tuvo impactos sobre el surgimiento de unpensamiento crítico en los márgenes del sistemamundial que se abrió en variados senderos: elestructuralismo cepalino, las teorías de ladependencia y de la liberación entre otros. Perotambién sobre innovaciones institucionales y po-líticas como las reformas de los mecanismos delEstado modernizador y sobre las reacciones alter-

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sistémicas de la sociedad movilizada como lasugerencia de diversos estilos de desarrollo (Faletto,2009). El desplazamiento de la mirada crítica so-bre los centros de producción del sistema mundoa través del estructuralismo cepalino se materializódesde entonces por iniciativas políticas intencio-nadas para organizar el desarrollo nacional: esti-mular la industrialización nacional y la expansióndel mercado interno. Las reformas del sector esta-tal se hicieron primeramente en los mecanismoscambiales y avanzaron en iniciativas más profun-das de reformas institucionales, fiscales y financieras(Faletto, 2009) que fueron bien detalladas en el casobrasileño por Luciano Martins (1968).

Sin embargo, las tensiones generadas en estemomento histórico de postguerra no se limitaronal debate académico como el de la CEPAL,desplazándose para la vida política y para las calles,apareciendo en varios momentos sentimientoscolectivos antiimperialistas. La campaña “el petró-leo es nuestro” en Brasil a inicios de la década decincuenta generó reacciones nacionalistas impor-tantes que legitimaron la creación de laPETROBRAS (Petróleo Brasileiro) en 1953. Variosejemplos pueden ser recordados en esta dirección.No obstante, es más importante subrayar el hechoque la crítica inicialmente de razones económicasde las relaciones centro-periferia se pasaron parael plano de la política generando sentimientosanticoloniales significativos. Hubo entonces unaruptura epistemológica importante en este momen-to y que es fundamental para entender el desarrollodel pensamiento crítico postcolonial y contextualen Latinoamérica y lo que le diferencia de otroscontinentes. Esta observación es interesante paraentender que lo que llamamos genéricamente desistema mundo es un fenómeno organizado desdevarios movimientos sistémicos, desde varias lógi-cas de organización de un mundo humano queestá siempre moviéndose en direccioneshegemónicas y contra hegemónicas.

Esta ruptura de entendimiento respecto a lacolonialidad tiene, luego, valores epistémicos ypolíticos inestimables, contribuyendo paradesplazar para el sistema político y para las

movilizaciones sociales lo que los colonizadoresplanetarios querían limitar a un simple problemaeconómico a ser arreglado a largo plazo por el “librejuego de mercado”.

La ruptura epistémica y epistemológica conefectos en la política y en la organización del Esta-do, en particular en la organización del EstadoDesarrollimentista, se reveló tanto por elentendimiento de que las ciencias sociales son unconjunto de saberes articulados por un imaginariohistórico compartido y que la disciplina económicaexige su permanente evaluación política y socialcomo por el hecho de que el sistema mundo esconstituido por tensiones de centralización ydescentralización o de centro-periferia. O sea, ladescubierta cepalina generó además de rupturasepistemológicas con impactos sobre el modelo deEstado y las políticas de modernización regionales,una importante ruptura epistémica respecto a ladesconstrucción del imaginario de la colonialidady la emergencia del otro, postcolonial queproblematizó la dependencia económica y política.

O sea, el discurso capitalista colonial – elde las teorías de la modernización que reducía lasrelaciones entre naciones “desarrolladas” ysubdesarrolladas” a un problema de desigualda-des económicas a ser eliminadas en un futuroincierto por las leyes espontáneas del mercado -,fue contestado por otros discursos que entendíanlas relaciones internacionales como un problemapolítico y epistemológico que revelaban lastensiones entre los movimientos sistémicos delcentro y de las periferias. Las ideas de dependenciay desarrollo pasan a ser cuestionadas con másprofundidad desde los años 60 y el pensamientocrítico pasó a resignificar la modernidad comocolonialidad (Schlosberg, 2004).

En esta dirección es importante recordar queno es mera coincidencia que la creación de laCEPAL fue seguida de otras iniciativasinstitucionales importantes como la creación de laFacultad Latinoamericana de Ciencias Sociales –FLACSO –, de la Asociación Latinoamericana deSociología – ALAS – que es la más importanteasociación continental del planeta y de centros de

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investigación sobre América Latina, aquí destacan-do la importancia del sociólogo mexicano PabloGonzález Casanova que fue el gran incentivadordel Instituto de América Latina de la UniversidadNacional Autónoma de México – UNAM – que yacompletó 60 años de existencia. La descubiertacepalina está pues en el origen de importantesmovimientos teóricos y sociales que se desarrollanen la región desde los años cincuenta. Y aquí, anosotros nos gusta diferenciar, siguiendoreflexiones de autores de la escuela peruana desociología inspirada en la obra de A. Quijano(Mejia, 2012), entre dos planos de análisis: el delmovimiento teórico pos-colonial y el delpensamiento descolonial.

La descubierta cepalina, como vimos,significó una ruptura importante con el imaginariocolonial – liberando las semillas de la heterotopíade una comunidad de destino solidaria (Martins,2012) – y con el imperialismo –, desplazando ladiscusión de los cambios económicosinternacionales del plano de la economía para lapolítica. El entendimiento del deterioro de las re-laciones económicas significó, así, importanteinauguración de nuevo paradigma interpretativocon implicaciones prácticas sobre la organizaciónde un pensamiento latinoamericano particular den-tro del sistema mundo, que no tiene similitud enotros continentes.

CONCLUSIÓN

No hay como negar los avances delpensamiento crítico latinoamericano desde el mo-mento en que la idea de deterioro de las relacionescentro y periferia fueron cuestionadas políticamentepor los cepalinos al final de la segunda guerramundial. Todas las teorías críticas posteriores sonde algún modo herencias de esta ruptura epistémicaen el interior del sistema mundo y del surgimientode fuerzas alter-sistémicas cuestionando el capita-lismo desde los márgenes de los países centrales.Por otro lado, no hay como negar igualmente laimportancia de las teorías de la modernización

fabricadas en las universidades norte-americanaspara el impulso de proyectos modernizadores quelegitimaron la expansión de prácticas capitalistasen la región y la formación de una élite de econo-mistas que van a articular la neocolonización porel neoliberalismo al final del siglo XX.

Considerando el contexto del pensamientocrítico latinoamericano desde la coyuntura actual,debemos reconocer que hubo varios avancesfavorables a una crítica decolonial y a una praxisde resistencia amplia. Sin embargo, estos avancesteóricos no fueron aún articulados en un sistemadisciplinar o interdisciplinario ampliamente com-partido por intelectuales, activistas y movimientossociales y culturales, o sea, como fundamentoepistemológico de un pensamiento del sur o delos márgenes, constituyendo una ruptura de hechocon el pensamiento eurocéntrico.

La sistematización de esta crítica de losmárgenes es necesaria todavía para profundizar elentendimiento del sistema latinoamericano comoun conjunto de fuerzas sistémicas y alter-sistémicasque se mueven entre el tiempo del desarrollo – eltiempo lineal – y otras modalidades de tiempo através la creación de patrones de poder variadossobre el cambio social, que llamamos de padronesde desarrollo y que son importantes para elentendimiento práctico de las luchas actuales en-tre fuerzas decoloniales y neocoloniales respectoal futuro de la humanidad y de América Latina.

A nosotros nos parece así, que los impasesde las teorías de la dependencia pueden ser supe-rados desde que entendemos el desarrollo no solocomo un proceso económico definido por clasessociales sino como procesos simultáneoseconómicos y no económicos que generan variasecuaciones políticas sobre los territoriospolíticamente movilizados. En América Latina, losdiversos patrones de poder se organizan bajo ladialéctica centro y periferia del sistema mundo ydel capitalismo global y bajo los dislocamientosde las tensiones de la producción de conocimientoentre el Norte Global y el Sur Global. En estadirección, pensamos sea posible organizar unatipología provisoria de patrones de desarrollo, ins-

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pirados en la tesis de M. Weber (1979)4 respecto ala importancia de la clasificación cognitivaprovisoria para organizar el caos de la realidad.

En principio, nos parece pues que enLatinoamérica es posible observar cuatros patronesde desarrollo que necesitan ser más profundizadosen otro momento. Aquí, tenemos: a) Patrón dedesarrollo por retos económico-financieros consubordinación de lo social al consumo; b) patrón dedesarrollo por retos económico-financieros conindexación de lo social a los derechos republicanos;c) Patrón de desarrollo por derechos colectivossolidarios con apoyo en políticas económicas plurales;y d) Patrón de desarrollo por derechos igualitarioscon apoyo en políticas económicas colectivistas.

Tales patrones expresan las ecuaciones depoder que se forman en los territorios nacionales,regionales, locales y transnacionales a partir de lasdiversas fuerzas presentes que pueden sereconómicas – las clases – pero también los gruposestamentales, étnicos, de género, culturales entreotros. En la lucha por la apropiación de losterritorios políticamente y socialmente movilizados,tales fuerzas organizan los sentidos de sus accionesdesde categorías que pueden ser capitalistas – lasclases económicas – pero igualmente patriarcalitas,religiosas, coloniales y étnicas. Las diversasmatrices que surgen de las combinaciones deintereses movilizados por categorías cognitivas di-ferenciadas son la base para la constitución depatrones de desarrollo que se distribuyengeográficamente por grupos de territorios – países– y dentro de los territorios nacionales.

En esta dirección, podemos observar que eltipo uno sugerido, el de Patrón de desarrollo por

retos económico-financieros con subalternización

de lo social al consumo, impacta horizontalmentesobre territorios adonde el capitalismo subordinólo social como Brasil y México, como dentro decada uno de esos países. Este patrón se funda en

la hegemonía de los economistas neoliberales enla definición de los retos del desarrollo en térmi-nos claramente económicos y consumistas. Aquí,lo social no es percibido como un sistema socialque tiene su propio ritmo sino como un productodel crecimiento económico. Desarrollo es claramen-te crecimiento económico y la función del Estadoes apoyar la reproducción del patrón de podereconómico y financiero internacionalista, siendola ciudadanía limitada a la inclusión de losindividuos en el mercado de consumo de bienes yservicios. En el caso brasileño, vemos que el mo-delo de inserción de los individuos en la sociedadorganizada por el consumo de bienes durables yno durables contribuyó para un consumo noreflexionado que impacta negativamente sobre lascondiciones de vida en las grandes ciudades. Porotro lado, en el caso mexicano, que sigue en líneasgenerales el mismo patrón de desarrollo, vemosque la subordinación de lo social al capitalismopor el consumo estimuló largamente la expansióndel capitalismo del narcotráfico al lado y enarticulación con el capitalismo liberal tradicional.

O sea, cada patrón de poder tiene impactosdiferenciados según las modalidades de presenciahistórica y cultural de los territorios políticamentemovilizados. En esta dirección, podemos afirmarque los demás patrones sugeridos también obedecena estas determinaciones generales. Así el Patrón de

desarrollo por retos económico-financieros con

indexación de lo social a los derechos republicanos

se funda igualmente en la hegemonía de los econo-mistas como en el caso anterior. Sin embargo laambición de clasificar lo social como producto delcrecimiento económico encuentra resistencia en unamemoria de derechos de ciudadanía republicana(al trabajo, a la libre expresión, a los servicios públi-cos básicos como educación y salud, etc.) que aúnfunciona como dispositivo de resistencia al avanceneoliberal. Los ejemplos más típicos de este patrónson Chile y Costa Rica.

Por su lado, el Patrón de desarrollo por

derechos colectivos solidarios con apoyo en políti-

cas económicas plurales se basa en articulacionesamplias de agentes sociales e institucionales, no

4 Pues, aclara él, el número y la naturaleza de las causasque determinan cualquier acontecimiento individual sonsiempre infinitos y este caos solo puede ser ordenadocuando un hecho específico tiene interés y significadopara nosotros y se encuentra en relación con las ideas devalores culturales como abordamos la realidad (Weber,1979, p. 94-95).

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solo económicos, y que expresan ciertos tipos derupturas con los patrones de poder típicos demodernización conservadora (alianza de lasoligarquías con el capitalismo internacional). Bajopresión de los movimientos sociales y de fuerzaspolíticamente organizadas los gobiernos sonobligados a hacer concesiones lo que impacta so-bre la estructura del Estado y de las políticasredistributivistas. La ruptura parcial del podercolonial también estimula la emergencia deheterotopías importantes como la del “bien vivir”que Farah y Gil definen como un potencial ethos“[…] una noción con pretensión alternativa a lavalorización y acumulación, al individualismo yetnocentrismo capitalista, cuyas referencias estánacotadas, social, cultural y territorialmente” (Farahy Gil, 2012, p. 100). Aquí podemos recordar aBolívia, Ecuador y Venezuela.

Finalmente, el Patrón de desarrollo por

derechos igualitarios con apoyo en políticas

económicas colectivistas se basa en articulacionesamplias de agentes sociales e institucionalesmovilizados para asegurar la predominancia de losderechos igualitarios sobre los intereses económicos.Hay ruptura con los intereses oligárquicostradicionales y con la burguesía colonial y laactividad económica es regulada por una burocra-cia implicada con los usos colectivos de los recur-sos disponibles. Cuba nos parece el caso típico deeste padrón de poder.

Finalmente, todos son ecuaciones de poderque presentan ciertas características compartidaspor los pactos de dominación pero que sedesdoblan de modos históricos diferenciados segúnlas particularidades de las luchas, resistencias,memorias y heterotopías de las poblaciones,movimientos y movilizaciones territoriales. Elreconocimiento de esta pluralidad de patrones depoder es una exigencia básica para pensar laliberación de América Latina en el contexto de lacrisis actuale.

Recebido para publicação em 04 de dezembro 2012Aceito em 18 de agosto de 2013

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Paulo Henrique Martins – Doutor em Sociologia. Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal dePernambuco (UFPE). Professor e Pesquisador dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Saúde Cole-tiva da UFPE. Presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) (2011-2013). Coordenadordo Núcleo de Cidadania e Processos de Mudança – NUCEM – (UFPE). Bolsista de Produtividade 1B doConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tem produção acadêmica na áreade Sociologia, particularmente nas áreas de Teoria Sociológica e Estudos Pós-Coloniais, Estudos sobre aDádiva; Sociologia da Saúde e Sociologia do Poder. Publicações recentes: Durkheim, Mauss e a atualidade da

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LATIN AMERICA AS AN EXPRESSION OFWORLD-SYSTEM IN THE ORGANIZATION

OF DEVELOPMENT MODELS

Paulo Henrique Martins

Our idea is that the definition of LatinAmerica as a particular manifestation of world-system is important for clarifying the understandingof innovations that have taken place in the regionsince the end of World War II, whether they betheoretical, social, cultural, technological esthetic,or institutional. Nevertheless, the character of thisdefinition depends directly on a priorunderstanding of the meaning of world-system andof development. If we define world-system as ahomogeneous unit, it makes no sense to talk aboutparticular manifestations within this system. Onthe other hand, if we limit world-system to thecapitalist system, the idea of Latin America’sparticularity becomes complicated when we thinkof the region as a base for political and culturalprocesses, both borrowed and original. After all,we must remember that the inspiration for thisanalysis is the inestimable contributions made byCEPAL (Economic Commission for Latin Americaand the Caribbean), which pioneered importantinnovations to the theme of development, thuscontributing to a break with the colonial mindset.

KEY WORDS: Latin America. World-system.Development.

L’AMÉRIQUE LATINE COMME EXPRESSIONDU SYSTÈME-MONDE DANS

L’ORGANISATION DES MODÈLES DEDÉVELOPPEMENT

Paulo Henrique Martins

Nous partons de l’idée que la définition del’Amérique Latine comme manifestation particulièredu système-monde est importante pour clarifier lacompréhension des innovations théoriques,sociales, culturelles, technologiques, esthétiques etinstitutionnelles confirmées dans la région depuisla fin de la deuxième guerre mondiale. Cependantle caractère de cette définition dépend directementd’une compréhension préalable mise en rapportavec ce que l’on entend par système-monde etdéveloppement. Car si l’on définit le système-mon-de comme une unité homogène, cela n’a aucunsens de parler de manifestations particulières dece système, d’autre part, si nous limitons lesystème-monde au système capitaliste, l’idée departicularité de l’Amérique Latine se complique,elle aussi, si nous pensons à la région comme àune base de processus politiques et culturelslibératoires et propres. Enfin, rappelons que cetteanalyse s’inspire des contributions inestimablesde la CEPAL (Commission Économique pourl’Amérique Latine et les Caraïbes) qui, en tant quepionnière, a introduit d’importantes innovationsconcernant le développement et a apporté unecontribution à l’effondrement des idées coloniales.

MOTS-CLÉS: Amérique Latine. Système-Monde.Développement.

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Yumi Kawamura Gonçalves, Arilson Favareto,Ricardo Abramovay

ESTRUTURAS SOCIAIS NO SEMIÁRIDO E O MERCADO DEBIODIESEL

Yumi Kawamura Gonçalves*

Arilson Favareto**

Ricardo Abramovay***

O trabalho traz uma análise dos processos favorecidos pelos incentivos e investimentos deriva-dos do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) no Semiárido nordestino. Emfunção da importância da produção de mamona na região e da aposta do PNPB nesta oleaginosacomo meio de inserção da agricultura familiar no mercado de biodiesel, o principal objetivo doestudo consistiu em compreender a estrutura e a dinâmica do mercado da mamona, as mudan-ças que até agora resultaram dos incentivos do PNPB, e os possíveis entraves aos processoscondizentes com os objetivos sociais do programa. A análise demonstrou que as ações em cursonão têm sido suficientes para alterar as estruturas sociais associadas à pobreza e à dependênciados agricultores pobres e que a dinâmica empresarial sinaliza importantes incertezas sobre acontinuidade dos processos em curso.PALAVRAS-CHAVE: Biodiesel. Semiárido. Agricultura familiar. Mamona. Sociologia econômica

INTRODUÇÃO

Este texto tem por base um estudo realiza-do no Semiárido Nordestino,1 no qual foraminvestigadas as condições e os bloqueios à inser-ção dos agricultores familiares no recente mercadode biodiesel, ao mesmo tempo em que procuraexplicitar as contribuições que a sociologia econô-mica propicia para o entendimento das questõesatuais sobre o Programa Brasileiro de Produção eUso do Biodiesel (PNPB), evidenciando que o mer-cado de biodiesel brasileiro não pode ser compre-

endido com um olhar exclusivamente econômico,assim como a viabilidade dos agrocombustíveis nãopode ser prevista a partir de um viés exclusiva-mente agronômico.

O mercado do biodiesel no Brasil, que nasceinduzido por um programa governamental, mos-tra-se hoje, depois de oito anos desde o seu lança-mento, como uma realidade controversa e heterogê-nea. É indiscutível a pujança que o programa gerouem termos de investimentos privados no setor in-dustrial em praticamente todo o país. Entretanto,um conjunto de críticas e questionamentos marca odebate público sobre o PNPB.

Uma delas diz respeito ao contraste entre aexpectativa de diversidade de matérias-primas quepodem ser empregadas na produção deste com-bustível e a predominância absoluta da soja, im-portante em cadeias alimentares, e cuja dinâmicade produção e preço é dada pelo mercado interna-

* Doutora em Energia. Pesquisadora na área de SociologiaEconômica na Universidade Federal do ABC, Centro deCiências Naturais e Humanas.Rua da Catequese 242. Jardim. Cep: 09090400 - SantoAndré, SP - Brasil [email protected]

** Doutor em Ciência Ambiental pela Universidade deSão Paulo. Professor do Centro de Engenharia, Modela-gem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Fede-ral do ABC (UFABC). [email protected]

*** Doutor em Ciência Econômica. Professor titular doDepartamento de Economia da FEA e do Instituto deRelações Internacionais da Universidade de São Paulo –USP. [email protected]

1 Os autores registram especial agradecimento à GTZ (Co-operação Técnica Alemã no Brasil) que financiou esteestudo, aos técnicos daquela organização e da Secretariada Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvi-mento Agrário pelas críticas e sugestões recebidas, e aos

vários agricultores e membros de organizações sindicais,governamentais e não governamentais que atuam noSemiárido Nordestino pela disponibilidade em fornecerinformações e dados sobre o tema aqui analisado. Comode praxe, os autores permanecem, contudo, os únicosresponsáveis pelo conteúdo aqui expresso.

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cional.2 A imagem de sustentabilidade vendidapelo biodiesel também destoa dos problemasambientais e trabalhistas presentes nas cadeiasprodutivas em que está baseado, estruturadas an-tes de seu advento, mas que lhe “contaminam”(como é o caso da produção de soja e sebo bovino,as duas principais matérias-primas).

Outra crítica corrente sobre o PNPB – umadas mais contundentes –, é que ele tem sido falho nainclusão de agricultores familiares mais pobres. Aose apoiar na soja para garantir os níveis de produçãoestipulados pela mistura obrigatória (em percentuaiscrescentes desde 20083), as aquisições de matéria-prima têm sido efetuadas junto aos setores mais di-nâmicos e capitalizados da agricultura familiar, parti-cularmente no Centro-Oeste e Sul do país. Este textose volta para esta questão, examinando os processosde construção do mercado de biodiesel no nordestedo país, onde estavam depositadas grandes expecta-tivas em termos dos ganhos sociais do programa.

Duas visões polarizam o debate neste pon-to. A primeira delas vê com reticência e ceticismoas perspectivas deste mercado, uma vez que amamona, eleita a estrela da inclusão social doPNPB, conta (e contava, à época de criação do pro-grama) com mercados consolidados, que envolvemcadeias de altíssima tecnologia e produtos de altovalor comercial, o que comprometeria a viabilida-de de seu emprego no mercado de biodiesel (No-gueira, 2008). Entretanto, o paralelo feito por críti-cos da estratégia do programa, de que produzirmamona para biodiesel seria equivalente a produ-zir jacarandá para ser queimado como lenha, ape-sar de forte apelo retórico, desconsidera que a pro-dução e o mercado da mamona são muito maismaleáveis do que o mercado de uma madeira no-bre como o jacarandá. Ademais, sendo verdadeiraa afirmação de que a mamona tem finalidades maisnobres do que o biodiesel, caberia perguntar porque, então, a produção de mamona no Nordestepermaneceu, por décadas, tão rudimentar e tãofortemente associada à pobreza.

A outra visão, em contraste, tem como princi-pal argumento que a criação da demanda de mamonapara biodiesel geraria uma concorrência antesinexistente, elevando os patamares de preço e favo-recendo ganhos na renda aos agricultores que já for-neciam mamona para a indústria ricinoquímica. Alémdisso, os produtores se beneficiariam de maiorsegurança na comercialização – propiciando a am-pliação da base de agricultores neste cultivo – e deserviços e incentivos, previstos nas normas doPNPB, que até então não estavam presentes nossistemas produtivos tradicionais. Como decorrên-cia, haveria o aprimoramento dos sistemas produ-tivos da agricultura familiar, que sustentaria a es-tratégia de produção de biodiesel no Nordeste eestimularia a dinamização das economias locais(Carmélio & Campos, 2009).

A rigor, estas duas visões não são excludentes.A elevação dos patamares de preços pode estar ge-rando um aumento nas rendas dos agricultores emelhorando as expectativas de investimento na suaprodução. Mas pode haver um teto para as aquisi-ções de mamona pela indústria de biodiesel, delimi-tado pela dinâmica dos usos concorrentes na indús-tria ricinoquímica que, por operar com produtos demaior valor agregado, teria maior margem de mano-bra para compor a estrutura de preços, repassandocustos ao produto final, ou valendo-se da possibili-dade de, simplesmente, importar óleo, caso os cus-tos para tanto se mostrem compensadores.

Ocorre que venda do óleo de mamona paraindústria ricinoquímica ou no mercado de biodieselenvolve muito mais do que a comparação entre ospreços oferecidos neste ou naquele. Uma série departicularidades não mercantis marca a lógica deexploração que perpassa a cadeia da mamona. Aoexaminar estas questões, este texto propõe-se adiscutir perspectivas analíticas através das quais obiodiesel brasileiro é tratado.

Neste sentido, o principal objetivo desteestudo consistiu em compreender a estrutura e adinâmica do mercado da mamona, as mudançasque até agora resultaram dos incentivos do PNPB,e os possíveis entraves aos processos condizentescom os objetivos do programa, especialmente no

2 Discutido, entre outros, em Kawamura (2012) eKawamura, Diniz e Favareto (no prelo).

3 Começando com 2% em janeiro de 2008; e chegando a5% em 2010.

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que diz respeito ao envolvimento de agricultoresfamiliares pobres. A hipótese orientadora desteestudo é que o biodiesel pode ser um elementodecisivo para alterar a organização daquilo que FrankEllis (1988) chamou de mercados incompletos eimperfeitos, característicos dos produtos típicosdos segmentos mais empobrecidos da agriculturafamiliar. No caso do Semiárido, isso significa a for-mação de novos circuitos de comercialização, queestimulem a concorrência e que abram aos agricul-tores o acesso a um conjunto de serviços que lhespermita escapar da dependência em que se encon-tram em relação a comerciantes tradicionais. En-tretanto, esse intento depende das estruturas soci-ais dos mercados que a produção de biodiesel in-tegra e a partir dos quais se viabiliza, sendo que asações promovidas pelos principais agentes doPNPB no Semiárido não têm se mostrado sufici-entes para transformar tais estruturas, ainda quesejam capazes de alterar o patamar de renda dosprodutores de mamona por efeito das novas dinâ-micas de concorrência que elas inauguram.4

Nessa perspectiva, este trabalho funda-se emuma abordagem teórica pouco usual quando se tratade analisar os mercados. À luz da sociologia eco-nômica, os mercados são muito mais do que o re-sultado do confronto entre oferta e demanda,protagonizado por agentes livres, e do qual os pre-ços são a expressão última: mercados devem serentendidos como estruturas sociais nas quais osagentes, portadores de interesses, adotam estraté-gias para garantir melhores posições na estrutura eestabilizar suas relações com os demais agentes.

As ideias formuladas por Neil Fligstein (2001) for-necem um quadro de análise interessante paradestrinchar os mecanismos desta estabilização derelações a um só tempo econômicas e sociais. Asistematização feita por Abramovay (2008) é bas-tante útil para os propósitos deste artigo (Box 1).

Dando continuidade à apresentação do temaproposto, a seção seguinte traz as principais carac-terísticas do mercado internacional e nacional damamona, descreve e analisa este mercado noSemiárido Nordestino, apresentando os principaisagentes, características da produção e dacomercialização, bem como analisa as mudançasrecentes neste mercado, a partir dos incentivos doPNPB. As conclusões são apresentadas na terceiraparte do texto.

O MERCADO DA MAMONA

Produtos de alto valor agregado, mercadoexterno e interno

Os óleos de mamona dão origem a deriva-dos que são empregados em diversas indústrias,de química fina, compondo produtos como têx-teis sintéticos de última geração, vidros especiais,cosméticos avançados, medicamentos, perfumaria,lentes de contato, plásticos de alta resistência, lu-brificantes, resinas plásticas, próteses ósseas,poliuretanos com diversas aplicações. No planointernacional, empresas e grandes grupos empre-sariais atuam na extração, processamento ecomercialização dos derivados, com mercados emdiversos continentes. É consensual que as pers-pectivas desse mercado guardam forte potencialde expansão e uma tendência à continuidade dadiversificação dos usos, com a constante criaçãode novos produtos. Na outra ponta, a produçãode matérias-primas no nordeste brasileiro apresentaum forte contraste com este vigor. A oferta de ma-téria-prima é pulverizada, organizada em bases tra-dicionais e marcada por uma severa precariedade.

Desde 1978, o Brasil figura entre os trêsmaiores produtores de mamona e de óleo de

4 Para testar esta hipótese, foi visitado um pequeno grupode municípios no Semiárido, selecionados com base emconsultas a informantes-chave. Foram visitados municí-pios em que tivesse ocorrido uma expansão importantena produção de mamona, impulsionada pelo mercado debiodiesel e, de outro lado, municípios em que a produçãojá estava estruturada (Monsenhor Tabosa, Pedra Branca eBoa Viagem no Ceará, e Morro do Chapéu, Nova Reden-ção, Cafarnaum, Irecê e Lapão na Bahia). No total, foramentrevistadas setenta e cinco pessoas, das quais trinta eseis agricultores. As entrevistas cobriram, também, co-merciantes, agentes financeiros, membros do poder pú-blico local, técnicos agrícolas e dos serviços de assistênciatécnica e extensão rural, lideranças comunitárias e diri-gentes de organizações de agricultores como sindicatos,associações e cooperativas. Finalmente, foram entrevis-tados informantes-chave e diretores de empresas debiodiesel e da indústria ricinoquímica. A pesquisa de campoocorreu em 2009 e foi complementada em 2010.

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mamona, juntamente com Índia e China, paísesque concentram, atualmente, nada menos do que93% da produção mundial. Entre 1978 e 1982, oBrasil ocupou a primeira posição em produção demamona. Já em 2005, o país contribuía com ape-nas 13% da produção mundial. Trajetórias seme-lhantes entre os países líderes podem ser observa-das no que diz respeito à produção de óleo demamona (Santos e Kouri, 2006a).

Dentre as empresas que produzem o óleo apartir da mamona, há indústrias que processam amamona somente para comercialização do óleo, háindústrias que processam mamona para produçãoe comercialização de derivados do óleo, e, ainda,aquelas que processam a mamona, produzem osderivados e já os empregam na produção de ou-tros produtos. Segundo Savy Filho (2005, apudSantos e Kouri, 2006b), havia no Brasil, no meioda década..??????, uma capacidade instalada paraprocessamento de 440 mil toneladas/ano demamona em baga, o que geraria, aproximadamen-

te, 198 mil toneladas de óleo. Considerando a médiadas safras desta década em 110 mil toneladas, se-gundo os dados da Companhia Nacional de Abas-tecimento – Conab (2009), o déficit seria de, apro-ximadamente, 330 mil toneladas.

Parte importante da indústria ricinoquímicaestá em São Paulo, mas na produção nacional damatéria-prima – a mamona em baga –, a principalreferência é a região nordeste do país, que concen-tra mais de 90% da produção brasileira. O Estadoda Bahia, sozinho, é responsável por 83% da produ-ção nacional, em média, desde o ano 2000, e é ondeestá localizada a principal indústria processadora demamona instalada no país. (Conab, 2009).

Algumas das características mais marcantesdesta produção são: (a) a forte oscilação no total deárea plantada de uma safra a outra, com uma forteretração a partir de meados da década de oitenta, euma tímida recuperação na década de 2000; (b) aheterogeneidade em termos de produtividade nosdiferentes municípios e regiões – no Centro-Sul a

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produtividade média é de 1.380 kg/hectare, en-quanto no Norte-Nordeste a média é de 670 kg/hectare (Conab, 2009), ficando em torno de 100kg/hectare em alguns municípios do Ceará.

Com base nesses dados, uma pergunta quenão pode deixar de ser feita é: por que a demandanão atendida, o dinamismo do mercado internaci-onal e os usos nobres do óleo da mamona não seconvertem em igual dinamização da produção dematéria-prima?

Quando se trata da precariedade e da insta-bilidade da produção nordestina de mamona, umdos principais argumentos é a instabilidade depreços do produto. As cotações internacionais nabolsa de Rotterdam mostraram oscilações da or-dem de até 50% entre a segunda metade da décadade 80 e o final da década de 90. Desde 2001, háuma tendência de alta, acentuada nos últimos anos:em 2008, o preço mais que dobrou em relação aopreço de 2001. As cotações de Irecê, principal polodo mercado de mamona na Bahia e no Brasil, pra-ça onde é definido o valor no mercado interno,oscilaram ainda mais, com os preços variando ematé 200% nesta década.

Os fatores mais comumente apontados comoprincipais influências no preço no mercado inter-no são o clima e seus impactos na variação da sa-fra; o câmbio, que pode estimular ou frear a opçãopela importação do óleo por parte das indústrias;e a variação dos preços internacionais – tudo issoconcorre para a definição do preço que a indústria

demandante se dispõe a pagar pela mamona emcada período. O outro fator que concorre para adefinição desse preço é a estrutura de organizaçãoda oferta, como se verá adiante.

O MERCADO DA MAMONA NA BAHIA E NOCEARÁ

O mercado da mamona é estruturado emuma oferta bastante pulverizada, com a produçãoapoiada, predominantemente, em agricultores po-bres, com sistemas de produção bastante tradicio-nais. Esta pulverização e os baixos índices de pro-dutividade favorecem a formação de uma cadeiana qual as estruturas intermediárias, que permi-tem concentrar a produção dispersa e acessar aigualmente concentrada indústria processadora,tornam-se fundamentais. Ademais, por suas ca-racterísticas físicas, a baga da mamona pode serestocada, e os atores em condições de fazê-lo – emgeral os maiores produtores e os comerciantes –utilizam este recurso para auferir maiores lucros.Assim, a oferta de mamona no mercado não de-

pende apenas da colhei-ta. Esta estrutura vem sen-do ligeiramente alteradacom a entrada das empre-sas de biodiesel e os in-centivos previstos noPNPB – e, no caso do Ce-ará, também nos progra-mas estaduais – vêm alte-rando as bases de funcio-namento deste mercado.

No Semiárido daBahia e do Ceará, o culti-vo de mamona ocorre há

pelo menos três gerações. Mesmo com a retraçãoocorrida nos últimos vinte anos, o cultivo foi man-tido, ainda que de forma secundária em relação aoutras atividades. Em ambos os estados, houveuma recuperação na presente década, ligeiramentemais acentuada no Ceará, principalmente a partirde 2003.

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A produção de mamona é feita, predomi-nantemente, por pequenos produtores, com mão-de-obra quase exclusivamente familiar, em áreasque variam de dois a quinze hectares e sem orien-tação técnica.5 As técnicas empregadas pela esma-gadora maioria dos pequenos agricultores são, ba-sicamente, as mesmas aprendidas com as geraçõesanteriores. É também tradicional o consórcio damamona com outros produtos, como estratégia deintensificação do uso das terras na época do ve-rão, quando ocorrem as chuvas.6 Depois da co-lheita dos cultivos mais rápidos, a mamona per-manece no solo, em produção contínua, durantedois anos, com colheitas de maior volume entresetembro e novembro. Assim, por ser uma plantamais resistente ao stress hídrico dos meses de es-tiagem, a mamona representa, para grande maioriados pequenos produtores, a única fonte de rendaoriunda da agricultura ao longo do ano.

Nos municípios visitados no Ceará, grandeparte das áreas em que se cultiva mamona é arren-dada de grandes proprietários pecuaristas. Dada atoxicidade da mamona, se consumida pelo gado,estes cultivos são conflitantes, o que restringe aexpansão do cultivo da mamona, visto que a pe-cuária bovina tem prioridade – e, em áreas arren-dadas aos agricultores, os pés de mamona perma-necem no solo apenas no primeiro ano – enquan-to se forma o capim para o gado – perdendo-se,assim, os ganhos que ocorreriam no segundo ano.

Assim, quatro são os bloqueios principaisa uma expansão dos cultivos de mamona e a umamaior produtividade nos segmentos mais pobresda agricultura familiar na região: disponibilidadede trabalho para as lavouras (particularmente naBahia); disponibilidade de terra (particularmenteno Ceará); técnicas de cultivo inadequadas e au-sência ou ineficiência de assistência técnica paracontornar estas inadequações, além de um merca-do volátil, instável e que pratica preços baixos nacompra da mamona.

Dentre estes, um dos mais difíceis de solu-cionar é a escassez de mão-de-obra. A grande mai-oria dos agricultores afirma contar, apenas, com otrabalho da esposa ou do marido, e não mais como trabalho dos filhos, que preferem buscar oportu-nidades nas cidades da região ou em centros maisdistantes.7 A ajuda recíproca entre vizinhos é umaprática comum, mas limitada, pois as principaisatividades na lavoura, como a colheita, por exem-plo, coincidem no tempo. A contratação temporá-ria é ainda mais rara, tanto pela reduzida oferta,quanto pela falta de recursos financeiros para con-tratar. Tudo isso faz da escassez de força de traba-lho um dos principais limites à expansão da cul-tura da mamona.

Enquanto na Bahia raras são as menções àfalta de área para plantio, no Ceará, esta foi umaconstante. A mamona está, em geral, em posiçãosecundária na priorização das atividades produti-vas locais (mesmo nos estabelecimentos familia-res), e em conflito com a principal atividade, que éa bovinocultura. Grande parte dos agricultorescultiva áreas arrendadas,8 e vê-se, regularmente,na dependência de que o proprietário concordecom o cultivo de mamona. Esta preferência pelogado reflete-se, também, na distribuição geográfica:as áreas de “sertão”, como são chamadas as áreasplanas, são mais ocupadas pela pecuária, enquantoas áreas de “serra” são as mais utilizadas para culti-vo de mamona consorciada com feijão e milho.Mesmo aí, os cultivos vêm sofrendo a pressão daexpansão dos pastos. Por todos estes motivos, noCeará, a expectativa em relação ao aumento de áreasplantadas de mamona é muito mais contida.

A perda de nutrientes e a compactação dossolos (principalmente em função do uso de má-quinas na Bahia, e em função do pisoteio pelo gado

7 Segundo alguns relatos, os mais jovens conseguem ga-nhar até doze mil reais numa temporada no corte dacana em São Paulo, enquanto a renda da família com amamona varia, comumente, entre duzentos e três milreais anuais.

8 Em Monsenhor Tabosa, a estimativa feita pelas lideran-ças e técnicos é de que 60% dos agricultores familiarespossuem uma propriedade, enquanto os outros 40%são moradores em grandes propriedades, e trabalhamem áreas arrendadas. Mesmo os agricultores proprietári-os frequentemente arrendam outras áreas para comple-tar a renda familiar.

5 Na região de Morro do Chapéu e Irecê, há uma minoria demédios produtores, com áreas de mais de 150 hectares,que alcançam produtividades superiores à média da região.

6 Predominam os consórcios com feijão e milho, sendofrequente, no Ceará, o capim para formação de pastopara pecuária bovina.

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no Ceará), além da baixa disponibilidade hídrica,somam-se aos problemas agronômicos descritos emestudos anteriores (Machado et al, 2006; Santos eQueiroga, 2008; Negret, 2008; Conab, 2006), comoo pouco uso de técnicas agrícolas básicas comoanálise de solo e adubação, pouca disponibilida-de de sementes de qualidade e baixa produtivida-de e custo de produção alto.

Um dos fatores que explica a precariedadetécnica desta produção é a ausência de assistênciaespecializada. Na avaliação dos técnicos contatadosno estado da Bahia, a orientação técnica adequadapoderia elevar a produtividade, sem aumentar oscustos, e não demandar mais recursos do que dis-põe hoje um produtor familiar médio.

Outro fator importante é a descapitalização. Amaioria dos agricultores não procura crédito bancá-rio para custeio das lavouras – é um recurso tradici-onalmente distante da realidade dos agricultoresmenos favorecidos e, além disso, o histórico deinadimplência e as regras do financiamentoinviabilizam contratos para a cultura. Apesar disso,não houve redução de lavouras por falta de financia-mento: o custeio é feito com recursos próprios ou,mais comumente, com o adiantamento realizado pe-los compradores locais –aqui reside um dos fortescomponentes da estruturade dependência em que es-tão enredados os agriculto-res familiares e que lhes im-pede de obter maiores gan-hos no mercado.

As estruturas tradicio-nais do mercado damamona

A Figura 1 traz umarepresentação da estrutu-ra tradicional do mercado de mamona. Nela se vê,na base da cadeia produtiva, um grande númerode agricultores, pequenos e médios, cujos siste-mas de produção foram descritos acima. Esses

agricultores têm, em geral, uma compreensão mui-to parcial e restrita do mercado como um todo: co-nhecem o sistema de comercialização regional, masmuitos não sabem qual o destino do produto forada região, e a larga maioria desconhece as aplica-ções do óleo. Os elos do comércio são feitos peloscompradores (ou atravessadores) locais e regionais,que se organizam em diferentes níveis. Em geral,existem, nas comunidades rurais, um ou dois co-merciantes locais, também chamados “bodegueiros”:são proprietários de pequenos estabelecimentos co-merciais aos quais os agricultores recorrem paracomprar a crédito produtos necessários ao consu-mo cotidiano, ou mesmo pequenos empréstimosem dinheiro a serem pagos posteriormente, com aprodução da mamona. Como a mamona é a únicalavoura que produz ao longo de todo o ano, é ela,em geral, a moeda de troca que permite ao produ-tor “fazer a feira”.9 A estes atravessadores locais,os produtores vendem pequenas quantidades, com-prometendo, aos poucos, sua produção antes dacolheita, prática conhecida como “venda na folha”ou “venda na palha”.

Esta relação se dá pelo contato direto com oprodutor, ou é intermediada ou monitorada por

9 Em geral, as outras produções, como o feijão e o milho,quando têm destino comercial, passam, também, porestas vias – com a diferença de que sua colheita é con-centrada em dois ou três meses. Em alguns casos, o fatode que a colheita seja concentrada permite ao agricultorreunir um volume maior e comercializá-la através deoutros canais, na tentativa de receber melhores preços.

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informantes, que levam e trazem informações so-bre os preços oferecidos e sobre o andamento dalavoura, informações que passam, também, pelasassociações comunitárias. O bodegueiro, além dosadiantamentos, fornece, também, crédito para cus-teio da lavoura e realiza favores pessoais às famíli-as de agricultores, mantendo, assim, cativos osseus fornecedores. Trata-se, em suma, de relaçõesde dominação profundamente pessoalizadas, sobo revestimento de relações de solidariedade e fide-lidade, alicerçadas no constante endividamentodos agricultores e na ausência de canais alternati-vos para acessar o mercado ou para encontrar ou-tras oportunidades de renda.

No nível seguinte da cadeia de comercializa-ção, encontra-se o atravessador ou comerciante comuma base na sede municipal, para os quais osatravessadores locais repassam as mercadorias. Emgeral, dois ou três atravessadores na cidade divi-dem a clientela, sem grande mobilidade: há umaforte fidelização dos mercados. Os atravessadoresde cada município, por sua vez, vendem a mamonapara os grandes comerciantes ou atravessadores deIrecê. Atuando em escala regional, existem estes gran-des atravessadores, que compram de atravessadoresmédios e pequenos. Neste nível, a comercialização écentralizada em Irecê, e concentrada em três grandescompradores, que fornecem para indústrias na Bahia(Bom Brasil) e em São Paulo.

O elo seguinte da cadeia são as indústrias

processadoras, que compram a mamona em baga eextraem o óleo, sendo que uma delas, a Bom Brasil,subsidiária brasileira do grupo internacional Nidera,produz uma série de derivados a partir do óleo. Osegmento de extração do óleo vem diminuindo nosanos recentes e, segundo informações de empresá-rios do setor, apenas seis ou sete empresas domi-nam a quase totalidade do mercado de óleo. Noúltimo elo do mercado, estão as indústrias que usamo óleo em sua produção. São indústrias do setorquímico, farmacêutico e de cosméticos, e, mais re-centemente, de biocombustíveis. Como fica evidenteneste desenho, há dois funis na formação dos pre-ços: a indústria de transformação, com destaquepara a Bom Brasil, e os atravessadores, que contro-lam a comercialização da mamona, particularmen-te aqueles localizados na praça de Irecê.

Na estrutura do mercado, tal como descritaacima, vale enfatizar alguns pontos. Em primeirolugar, a presença de muitos níveis de atravessadoresentre o produtor da mamona em baga e as indús-trias processadoras, que fazem com que os preçospagos ao produtor sejam diminuídos para permi-tir lucros dos vários comerciantes envolvidos. Emsegundo lugar, o fato de não haver concorrênciaefetiva, nem entre os poucos bodegueiros, nem entreos donos dos depósitos nas pequenas cidades,nem entre os atravessadores regionais. Em terceirolugar, destaca-se o fato de que os adiantamentosem dinheiro ou em espécie são o principal meio

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de fidelização destas relações. Em quarto lugar, porfim, há o fato de que a formação de preços dá-se,fundamentalmente, na relação entre os poucosatravessadores regionais e as indústrias. Tudo issocom base em uma produção pulverizada e em ba-ses bastante precárias, com fortes restrições à ex-pansão da área ou à melhoria de produtividade.Estes elementos respondem à pergunta sobre ocontraste entre o dinamismo das indústrias finaisdos derivados, e a situação de fragilidade dos pro-dutores de mamona.

A entrada de novos atores: o mercado damamona depois do PNPB

A entrada de novos atores econômicos liga-dos ao mercado de biodiesel começou em 2003,quando a Brasil Ecodiesel iniciou os contatos comos produtores. Naquele ano, era instituído o PNPBe seus principais mecanismos de funcionamento:o percentual progressivo e garantido de misturado biodiesel ao diesel de petróleo; o Selo Combus-tível Social (SCS) e seus incentivos como princi-pal mecanismo de favorecimento à compra de ma-téria-prima de agricultores familiares; e os leilõesde compra como forma de organizar o suprimentode biodiesel.

A integração de agricultores nesta cadeia,conforme o previsto nas normas, prosseguiria coma venda da matéria-primapelos agricultores (a preçospreviamente acordados),vinculada ao fornecimen-to, pelas empresas, de ser-viços de assistência técni-ca. O desenrolar do proces-so, entretanto, não se deucomo o esperado. De for-ma geral, as aquisições demamona para biodiesel fi-caram muito abaixo do es-perado, como é conhecido.

Os novos atoreseconômicos atuando no

mercado desde a instituição do PNPB são as em-presas de biodiesel – com destaque, num primei-ro momento, para a Brasil Ecodiesel (BED) e, maisrecentemente, para a Petrobras Biocombustíveis(PBio) – e seus técnicos diretamente contratados, eas cooperativas, que fazem a intermediação dasrelações entre os agricultores e as empresas debiodiesel, realizando aquisições e prestando assis-tência técnica.

O desenho a seguir procura esquematizaras mudanças que estes agentes produziram nasestruturas de funcionamento do mercado damamona. Parte dos agricultores, que antescomercializavam seu produto através dos mecanis-mos tradicionais, passou a fornecer para as coope-rativas ou para as empresas diretamente. A assis-tência técnica, que é a contrapartida prevista noscontratos de biodiesel, passou a ser realizada porcooperativas conveniadas com as empresas ou portécnicos diretamente contratados pelas empresas.

A aquisição de mamona feita pelas empre-sas de biodiesel originou uma concorrência inédi-ta, fazendo o preço subir a partir de 2006. Em 2007,a BED fez o cadastramento de agricultores, mas deforma apressada e sem critérios bem estabelecidos,o que se revelou pouco efetivo em termos defidelização e de produção.

Àquele momento, não havia sementes sufi-cientes no mercado, e o serviço de assistência téc-nica foi pouco eficiente, pois empregou técnicos

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sem qualificação, também contratados às pressas.Naquele ano, a empresa não conseguiu comprarmamona, porque a concorrência local, em reação,ofereceu preço melhor e foi mais ágil no momentodas transações. Como resultado, nenhum dos agri-cultores cadastrados manteve completamente ocontrato com a BED.

No início de 2009, na Bahia, a PBio se faziamais presente do que a Brasil Ecodiesel. Nas áreasvisitadas no Ceará, ao contrário, a presença destaainda se mostrava mais consolidada e estável, mascom grande expectativa com a recente entrada daPetrobras. Em 2010, a atuação destas empresas sevalia, por um lado, de um aprendizado acumula-do nos três anos anteriores e, por outro, deparava-se com resistências e com o descrédito herdadodos equívocos ocorridos no período anterior, quan-do a BED era sinônimo de biodiesel na região.

Nas áreas visitadas, foi possível compreen-der como, concretamente, operava a concorrênciaentre os compradores do mercado tradicional e osagentes do mercado de biodiesel: além dos contra-tos e da assistência técnica – que seriam os princi-pais instrumentos para fidelizar o agricultor – nomomento da venda, a cooperativa paga o preço demercado sem descontar as impurezas ou a sacariautilizada, descontos estes praticados nos canaistradicionais e, muitas vezes, traz a máquina paradebulha do grão até a propriedade, poupando tra-balho ao agricultor.

Ainda assim, muitos agricultores, mesmocadastrados pelas empresas de biodiesel, manti-veram as vendas para o atravessador, quando esteofereceu preço mais alto. Um dos trunfos destescomerciantes é a reciprocidade que se cria com astransações recorrentes ano após ano, com a práticados pequenos favores e com os adiantamentos emdinheiro aos agricultores. Mas pesa, também, aagilidade na transação, pois dispõem das informa-ções sobre a produção – valendo-se de uma estru-tura ramificada e enraizada no território – e o fatode pagarem em dinheiro vivo no momento do re-colhimento, ao passo que os pagamentos feitospelas empresas de biodiesel tinham um prazo parase efetivar. É importante ressaltar, ainda, que sem-

pre houve alguma ambiguidade nas relações entreo mercado tradicional (organizado pelosatravessadores) e o mercado de biodiesel, compor-tando uma dose de concorrência e outra decomplementaridade. Desde os primeiros anos, ocor-reram compras das empresas de biodiesel junto aoscomerciantes locais, em função das dificuldades deadquirir quantidades suficientes diretamente dosprodutores. Nos anos mais recentes, diante do fo-mento às cooperativas da agricultura familiar porparte da PBio, os comerciantes locais, para mante-rem sua fatia de comercialização para o mercado debiodiesel, também formalizaram cooperativas.10

Desta forma, as duas estruturas operamconcomitantemente no mercado da mamona. Omercado tradicional se mostra ainda vigoroso osuficiente para manter em funcionamento as ve-lhas estruturas, que envolvem, principalmente, osagricultores mais precarizados que, nessa condi-ção, não conseguem abrir mão dos adiantamentose favores. O segmento organizado pelas empresasde biodiesel, com a Petrobras hoje à frente, conse-gue, por sua vez, envolver, sobretudo, os agricul-tores já organizados em sindicatos e cooperativas.

Dados obtidos em campo, no primeiro se-mestre de 2010, mostram que a entrada da PBio nomercado vem corroborando as expectativas iniciaisde ampliar as bases dos contratos de biodiesel nomercado da mamona. As cooperativas vêm se capi-talizando progressivamente e começam a esboçaralternativas para fazer frente aos mecanismos defidelização utilizados pelos comerciantes tradicio-nais: maior agilidade na compra e adiantamento emdinheiro para necessidades imediatas, sob a formade compras antecipadas. Gradativamente, o lastrooferecido pela PBio também confere maiorconfiabilidade em relação às cooperativas a ela vin-culadas. O número de agricultores mobilizados poressas cooperativas também aumenta significativa-mente, embora em números absolutos ainda se tratede um universo relativamente pequeno. Finalmen-te, o número e a qualidade da assistência técnica

10 Vide, por exemplo, o site http://www.copemai.com.br/,da cooperativa fundada pelo conhecido Vicente daMamona.

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também passam por um incremento, importanteem termos evolutivos, embora tímido em termosabsolutos.

Por outro lado, vale ressaltar uma informaçãorecente de que o principal atravessador de Irecê criouuma cooperativa para continuar comercializando comas empresas de biodiesel, o que revela a versatilida-de das estratégias dos atores tradicionais para man-terem sua força no mercado.

Mesmo não tendo atingido as metas em re-lação à integração de agricultores familiares noNordeste, nem tendo atingido as expectativas rela-tivas à composição do rol de matérias- primas uti-lizadas no biodiesel, pode-se dizer que o PNPBdesencadeou algumas mudanças importantes nomercado. Para os agricultores, destacam-se algunselementos inéditos: (a) a criação de uma nova op-ção de comercialização, diversificando minimamen-te aquilo que, antes, se restringia aos comercianteslocais; (b) o agricultor passou a receber assistênciatécnica, ainda que muito precária e incerta; (c) e oscontratos monitorados pelas organizações dos agri-cultores foram introduzidos, o que pode permitirmaior estabilidade e proteção contra variações depreços. Junto a isso, a entrada das empresas debiodiesel foi acompanhada de uma razoável recu-peração nos preços pagos aos produtores, um fe-nômeno que não pode ser atribuído, com seguran-ça, somente à maior concorrência, mas que foi,certamente, influenciado por isso.

Não se trata, a rigor, de um novo mercado,posto que existe uma convivência entre duas es-truturas paralelas – em 2010, a estrutura tradicio-nal era ainda muito maior do que a estrutura mon-tada para a produção do biodiesel. Mas é inegávelque novas bases foram lançadas. Bases cujalongevidade e alcance esbarram em alguns cons-trangimentos: (a) a precariedade dos agricultores esua dependência dos canais tradicionais decomercialização, restringindo uma mudança ain-da maior nas regras de troca; (b) a baixa produtivi-dade e o alto custo da matéria-prima para as in-dústrias de biodiesel; (c) e a fragilidade das estru-turas de governança criadas para melhorar essascondições de competitividade e viabilizar o merca-

do, com grandes dificuldades no campo da assis-tência técnica e da capitalização dos agricultores.Vê-se que as limitações quantitativas dos resulta-dos do PNPB no Nordeste, em termos dos contra-tos de biodiesel e de produção de mamona, estãodiretamente relacionadas às estruturas que carac-terizam este mercado, e que os elementos que con-formam esta estrutura estão concatenados entre si.

CONCLUSÕES

O objetivo principal da análise era saber se,com a experiência recente do PNPB, estavam sen-do modificadas as bases de funcionamento do tra-dicional mercado da mamona. O estudo realizadono Semiárido permitiu lançar um olharaprofundado sobre os avanços e as permanênciase, sobretudo, entender os fatores que barram asmudanças mais amplas.

Pode-se dizer que as mudanças institucionaispromovidas pelo PNPB na produção de oleagino-sas no Semiárido geraram ganhos aos agricultoresque participam do mercado de biodiesel, particu-larmente em função da concorrência (inédita) pelamamona, que fez elevar os patamares de preço destamatéria-prima.

Empregando as categorias a partir das quaisse procurou descrever este mercado, é possívelafirmar que as regras de troca presentes no merca-do foram alteradas de duas maneiras: a concorrên-cia exercida pelas empresas de biodiesel pressio-nou os preços, produzindo uma mudança que foisentida de forma generalizada por produtores ecomerciantes tradicionais. Os produtores auferiramganhos maiores; já sobre os comerciantes tradicio-nais, não é possível saber se tiveram sua margemde lucro deprimida ou se isto foi, simplesmente,repassado para a indústria de transformação. Detoda forma, as condições sob as quais a indústriaricinoquímica continua viabilizando suas aquisi-ções – passando pelas formas de manter as redesde fidelização e captação – foram alteradas na me-dida em que foi necessário incorporar a pressãoda concorrência como novo fator na formulação

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de suas estratégias de aquisição e preços.O outro aspecto novo, relativo às regras de

troca no mercado da mamona, diz respeito às for-mas pelas quais se define quem comercializa comquem. Os mecanismos de fidelização do fornece-dor no mercado convencional repousam, basica-mente, no constante endividamento econômico emoral dos agricultores em relação aos comercian-tes. O mercado de biodiesel introduz um novomecanismo de fidelização, que consiste no contra-to, com previsão dos serviços e insumos que pre-cedem a colheita e com regras para definição dopreço a ser pago na entrega do produto. Nesse caso,trata-se, também, de uma mudança parcial, quenão atinge todos os produtores, mas que colocano horizonte dos atores uma nova possibilidadeou uma nova referência em termos de organizaçãoprodutiva e comercial. Assim, é possível afirmarque as regras de troca deixaram de ser ditadas, ex-clusivamente, pelo grupo de atravessadores locaise regionais, e passaram a incorporar novas deman-das e estratégias alavancadas a partir do PNPB.

Em relação às formas de governança pre-sentes no mercado da mamona no Semiárido, háuma ambivalência nos seguintes termos: inaugu-ra-se uma forma de governança radicalmente novano contexto analisado, se comparada às práticastradicionais. O mercado da mamona, que se orga-nizava com base em um único canal decomercialização do produto – afunilado, na oferta,pela concentração nos poucos grandes cerealistasregionais, e, na demanda, pelas poucas empresasdo segmento da indústria ricinoquímica – passa aexperimentar, com a formação do mercado debiodiesel, impulsionado pelo PNPB, uma mudan-ça significativa, ainda que quantitativamente res-trita. Além da diversificação das opções de vendada matéria-prima, a entrada em cena de empresascomo a BED e a PBio trouxe novas bases contratuaispara o mercado, com a possibilidade – inédita –de acessar serviços como a assistência técnica, coma garantia de preço e com o monitoramento doscontratos por organizações de representação. Porisso, a mudança não se restringe a uma simplestransferência da mesma relação de dependência

para com outros agentes econômicos.Por outro lado, as formas tradicionais de

governança permanecem dominantes, o que é cla-ramente indicado pelo fato de a indústriaricinoquímica permanecer a principal comprado-ra de mamona. Mesmo que se vislumbre o poten-cial de multiplicação dos contratos para biodiesel,as formas de governança inauguradas no novomercado não são, ainda, suficientes para transporamarras tradicionais que envolvem: a necessidadede antecipação da venda no mercado local (“ven-da na folha”), como forma de obter adiantamentosem dinheiro; os fortes laços sociais nos quais es-tão imersas estas transações; e a agilidade das for-mas tradicionais de financiamento, que reforçam afidelização e as relações de dependência.

Além da relação de compra e venda, e paraalém da esfera local, os esforços, no sentido deprover a agricultura familiar com serviços de as-sistência técnica, podem ser vistos como ensaiosde novas formas de governança, que envolveminstituições públicas de apoio. Os resultados, en-tretanto, são ainda muito tímidos. O caráter parci-al da mudança experimentada nas formas degovernança não diz respeito, portanto, somente aonúmero de agricultores afetados, mas, também, aofato de que, até aqui, atingem, apenas, uma partedas estruturas sociais do mercado.

No que tange aos direitos de propriedade,há uma mudança qualitativamente significativa: apartir do PNPB, a condição de agricultor familiarpassa a ser definidora de direitos de propriedade,já que se determinam condições de compra quepossibilitam que este segmento capture ganhos queantes eram apropriados pelos atravessadores lo-cais. Por outro lado, em função do alcance restritodestes novos mecanismos de compra a uma pe-quena parcela da agricultura familiar, esta mudan-ça é mais um potencial cuja efetividade dependeráda consecução do conjunto de ações em curso.Isso significa que o contraste entre o caráterdesconcentrado da produção e a apropriação alta-mente concentrada de lucros nas regiões produto-ras permanece como estrutura geral.

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ra, que marginaliza grande parte dos agricultores,e o conflito entre o uso da terra para pecuária oupara cultivo da mamona configuram, também, blo-queios não só à expansão da cultura, mas à possi-bilidade de auferir ganhos com o produto.

Finalmente, em relação às concepções de con-

trole – que, conforme a abordagem político-culturaldos mercados, diz respeito à maneira como os ato-res usam os recursos de que dispõem e como orga-nizam, internamente, a produção e as relações detrabalho – não foram identificadas alterações impor-tantes porque, de modo geral, as estratégias de con-dução das unidades produtivas permanecemestruturadas segundo os mesmos moldes de antesdo PNPB. Em função do caráter recente e pontualdos serviços técnicos de apoio à produção, poucamudança houve até aqui em relação ao emprego detecnologias e à forma como são manejados os recur-sos naturais envolvidos na produção. Da mesmaforma, os ganhos propiciados pelas mudanças re-centes também não afetaram, ainda, as expectativasde alocação de trabalho nas famílias de agricultores.

Há um potencial de expansão do númerode agricultores com contratos de biodiesel, assimcomo há um grande potencial de aumento de pro-dutividade. Os investimentos que vêm sendo fei-tos pela PBio são um indicativo de que é razoávelesperar um incremento futuro do número de agri-cultores contratados. Contudo, as estratégias decondução da maioria das unidades produtivas ain-da permanecem estruturadas segundo os moldesanteriores ao PNPB; a produção da mamona vemaumentando, mas, ainda, a patamares bastantebaixos,11 pois os entraves estruturais à produçãonão foram alterados; e a maior parte dos produto-res permanece enredada nos mecanismos defidelização tradicionais.

Tais permanências podem ser compreendi-das, em primeiro lugar, como resultantes dos cons-trangimentos que vão além do que as empresas debiodiesel podem governar, pois têm caráter maisestrutural. Este é o caso, destacadamente, da baixa

disponibilidade de técnicos com boa formação paraserem contratados para atuar junto aos agriculto-res. É o caso da escassez de terras no caso do Cea-rá. E é o caso da dificuldade em alocar mão deobra adicional em novas áreas de produção demamona, tanto no Ceará como na Bahia. Portanto,é possível afirmar que ações implementadas até omomento não têm sido suficientes para alterar asestruturas produtivas no sentido de conferircompetitividade e autonomia aos produtores demamona, de forma que esta produção ganhe umdinamismo condizente com os mercados finais aosquais se destina. É improvável que fossem, consi-derando que elas ocorrem relativamente isoladasde outras iniciativas voltadas para este públicoespecífico e se voltam, exclusivamente, à culturada mamona12 – o queê remete a uma necessidade derevisão da estratégia mais geral do PNPB que, por-tanto, está além da governabilidade das empresas.

Ao mesmo tempo, é preciso refletir sobreoutras duas questões que dizem respeito ao cará-ter da possível expansão dos contratos das empre-sas de biodiesel junto aos agricultores familiares.

A questão quantitativa da disponibilidadede mamona no mercado de biodiesel – que ainda éuma incógnita e depende da superação dos cons-trangimentos discutidos acima – já foi central paraa viabilidade do PNPB no Nordeste ou, pelo me-nos, para sustentação do seu conteúdo social. Comas alterações na Instrução Normativa, que regula oSCS, a baixa disponibilidade de matéria-primadeixou de ser um entrave para manutenção do selo,porque passaram a ser contabilizados os diversosgastos com apoio à produção.13 Ao mesmo tempo,o problema da incompatibilidade entre os preçoselevados da mamona e os custos da indústria debiodiesel parece ter sido solucionado peladesvinculação entre aquilo que as empresas gas-

11 Conforme dados da CONAB – Série Histórica. Disponívelem http://www.conab.gov.br/conteudos.php?a=1252&t=,consultada em novembro de 2012.

12 A atenção exclusiva à mamona era justificada, nos pri-meiros anos, em função de ser esta a matéria-prima queseria convertida em biodiesel. Hoje, havendo adesvinculação entre os gastos que empresas efetuampara manutenção do SCS e a conversão da matéria-pri-ma em biodiesel, torna-se mais difícil justificar esta aten-ção exclusiva a um único cultivo.

13 Ver Instrução Normativa 01 do Ministério do Desenvol-vimento Agrário, publicada no D.O.U. em 25 de feverei-ro de 2009 (páginas 71-73).

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tam na “rubrica” SCS e o uso da matéria-primaoriginada na agricultura familiar na produção debiodiesel. A aceitação da prática de adquirirmamona e destiná-la a outros fins (com seu óleosendo extraído em estruturas terceirizadas de es-magamento e destinado ao mercado de óleos), porum lado, permite que parte dos recursos do mer-cado de biodiesel seja direcionada para a agricul-tura familiar do Semiárido – como se queria inici-almente – mas gera uma nova incerteza. Por outrolado, altera o caráter dos investimentos e gastosrealizados pelas empresas de biodiesel junto aosprodutores de mamona: sem a necessidade de ob-ter resultados em termos de produtividade e orga-nização produtiva, eles se tornam quase compen-satórios e, portanto, distantes da estratégia inicial,que era promover uma inserção produtiva da agri-cultura familiar no mercado de biodiesel. O risco éque possíveis reorientações das estratégias dasempresas para cumprimento das exigências do SCSredundem em um retrocesso das mudanças obser-vadas no mercado da mamona.

Outro ponto sensível é a concentração da de-manda por mamona para biodiesel no Nordeste (an-tes com a BED, agora com a PBio), o que inibe aformação de processos competitivos, que caracteri-zam mercados em expansão. Mais particularmente,é relevante o fato de, nos últimos anos, a PBio ser,praticamente, a única empresa implementando asações voltadas para a inclusão dos agricultores po-bres e o fato de sua presença decorrer de uma deci-são política do Governo Federal, com tudo o queisso implica em termos de riscos inerentes às mu-danças nas coalizões políticas em posse do Estado.

A participação da agricultura familiar pobreno dinâmico mercado de energia vislumbrada peloPNPB, portanto, carece de uma profundareformulação de seus princípios e suas estratégias.

Recebido para publicação em 04 de janeiro de 2013Aceito em 26 de março de 2013

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Yumi Kawamura Gonçalves – Doutora em Energia. Pesquisadora na área de Sociologia Econômica na Uni-versidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas, em temas relativos ao planejamento edesenvolvimento territorial, conflitos ambientais, políticas públicas e incentivos para o desenvolvimentorural sustentável. Realiza pesquisa e consultoria para órgãos de governo nos temas mencionados. Publicaçõesrecentes: Mobilizing for democracy. 1. ed. London: Zed books, 2010; Redes e estruturas sociais no semi-árido

nordestino: desafios do Programa Nacional de Produção e uso de Biodiesel. In: XXXIII Encontro Anual daAssociação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2009, Caxambu. XXXIII Encontro Anual daANPOCS, 2009.

Arilson Favareto – Doutor em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo. Professor do Centro deEngenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC), ondecoordena o Bacharelado em Ciências e Humanidades, e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise ePlanejamento, onde coordena o Núcleo Territórios e Conflitos Socioambientais. Tem realizado pesquisas naárea de sociologia econômica e do desenvolvimento. É autor do livro Paradigmas do desenvolvimento ruralem questão e de vários artigos sobre agricultura, políticas públicas e desenvolvimento territorial.

Ricardo Abramovay – Doutor em Ciência Econômica. Professor titular do Departamento de Economia daFEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq e coordenador do Projeto TemáticoFAPESP sobre Impactos Socioeconômicos das Mudanças Climáticas no Brasil. Publicações recentes: Muitoalém da economia verde. Ed. Planeta Sustentável, São Paulo, 2012; Desigualdades e limites deveriam estarno centro da Rio + 20. Estudos Avançados, v. 26, p. 21-33, 2012; Urban evolution in Sao Paulo: employmentgrowth and industrial location. Regional Science Policy and Practice, v. 4, p. 447-477, 2012.

SOCIAL STRUCTURES IN THE SEMI-ARIDREGION AND THE BIODIESEL MARKET

Yumi Kawamura GonçalvesArilson Favareto

Ricardo Abramovay

This article provides an analysis of the pro-cesses favored by the incentives and investmentsderived from the National Program for theProduction and Use of Biodiesel (PNPB) in thesemi-arid region of northeastern Brazil. Due to theimportance of castor bean crops in the region andto PNPB’s wager on castor bean oil as anopportunity for family farmers to take part in thebiodiesel market, the main goal of this study is tounderstand the structure and dynamics of the cas-tor bean market, the changes that PNPB’s incenti-ves have brought about, and the possible obstaclesto the processes consistent with the program’ssocial goals. The analysis has shown that currentactions have not been enough to alter the socialstructures linked to poverty and to poor farmers’dependence, and also that business dynamics meansignificant uncertainties regarding the continuityof current processes.

KEY WORDS: Biodiesel. Semi-arid. Family farming.Castor beans. Economic sociology.

STRUCTURES SOCIALES DANS LA RÉGIONSEMI ARIDE ET LE MARCHÉ DU BIODIESEL

Yumi Kawamura GonçalvesArilson Favareto

Ricardo Abramovay

Le travail que nous présentons ici consiste enl’analyse des processus favorisés par lesencouragements et les investissements dérivés duProgramme National de Production et d’Utilisationde Biodiesel (PNPB) dans la région semi-aride duNord-est du pays. En raison de l’importance de laproduction de ricin dans la région et du pari duPNPB que cet oléagineux peut permettre l’inclusionde l’agriculture familiale dans le marché du biodiesel,l’objectif principal de cette étude est de comprendrela structure et la dynamique du marché du ricin, leschangements apportés jusqu’à présent en fonctiondes encouragements du PNPB et les obstacles possiblesaux processus liés aux objectifs sociaux duprogramme. L’analyse a démontré que les actions encours n’ont pas suffi à modifier les structures socialesassociées à la pauvreté et à la dépendance desagriculteurs pauvres et que la dynamique desentreprises fait preuve d’importantes incertitudesquant à la continuité des processus en cours.

MOTS-CLÉS: Biodiesel. Région semi-aride. Agriculturefamiliale. Ricin. Sociologie économique.

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RECONQUISTA DA IDENTIDADE DE TRABALHADOR POR EX-DETENTOS CATADORES DE LIXO1

João Bosco Feitosa dos Santos*

Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel**

Tereza Glaucia Rocha Matos***

O objetivo deste trabalho é refletir e compreender como catadores de lixo ex-detentos deFortaleza reconstituem a identidade de trabalhador com base no trabalho precarizado e estig-matizado socialmente. Foram realizados pesquisa bibliográfico-documental e estudo de inspi-ração etnográfica, tendo como ferramentas a observação direta e entrevistas semiestruturadas.Os resultados apontam para condições precárias de trabalho e conflitos com o “deposeiro”(dono do depósito) que explora os catadores em todos os âmbitos. Vistos pela população comovagabundos, perigosos e sujos, a sua condição de trabalho e de vida é permeada por exploração,conflito e preconceito. As narrativas desses reciclados pela justiça indicam forte identificaçãocom o refugo que coletam. Na busca da reinserção social e reconstrução de identidades, algunsadmitiram práticas ilícitas ou recaídas, demonstrando a fragilidade do sistema, tentandoreciclá-los e incluí-los precariamente.PALAVRAS-CHAVE: Trabalho. Identidade. Precarização. Catadores de lixo. Ex-detentos.

INTRODUÇÃO

As transformações do trabalho ocorridas nasúltimas décadas interferem intensamente na quan-tidade e qualidade do emprego formal que, consi-derado um “suporte privilegiado de inscrição naestrutura social” (Santos, 2000, p. 49), garante a“filiação” (Castel, 1998), um “lugar social” no senti-do a que Gaulejac (1991) se refere como meta princi-pal do homem contemporâneo. A condição de traba-lhador formal não só possibilita inserção social como,também, reforça a identidade individual e social pormeio do exercício de determinadas atividades e do

convívio com relações sociais que constituem o “modode ser” dos indivíduos (Sainsaulieu, 1977), qualifi-cando, assim, os pares como iguais, sem desconsi-derar as características específicas de cada um. Por-tanto, a atividade laboral pode conferir valor social,reproduzindo o imaginário coletivo de valorizaçãomoral de ser trabalhador.

Na impossibilidade de um emprego formal,há indivíduos que buscam formas alternativas desobrevivência pelo trabalho informal, que nem sem-pre permitem viver com dignidade. Um exemplodesse tipo de “trabalho atípico” (Vasapollo, 2005)e informal é a catação daquilo que a sociedade pro-duz em larga escala e rejeita: o lixo, refugo do con-sumo na era da descartabilidade. Na verdade, acatação de recicláveis nas ruas das grandes cida-des é uma ocupação informal que desafia a digni-dade humana. Reféns do desemprego e, por ve-zes, do discurso ambientalista, esses refugos hu-manos recorrem à catação como forma de sobrevi-vência e inclusão.

O surgimento de indústrias de reciclagem,amparadas na descoberta do lixo como potencialgerador de lucros e favorecidas pelo crescente dis-

* Doutor em Sociologia. Professor adjunto da Universi-dade Estadual do Ceará – UECE no curso de CiênciasSociais e no Mestrado de Políticas Públicas e Sociedade.Rua Jabaquara, 344 Castelão. Cep: 60.861-200. Fortaleza– Ceará – Brasil. [email protected]

** Doutora em Psicologia Experimental. Professora titu-lar da Universidade de Fortaleza e adjunta da Universida-de Estadual do Ceará. [email protected]

*** Doutora em Psicologia. Professora na graduação e noprograma de pós-graduação em Psicologia da Universi-dade de Fortaleza. [email protected]

1 Este texto é parte de pesquisa “Saúde, Trabalho e Iden-tidade nos Coletores de Lixo da Cidade de Fortaleza” editalCNPq/FUNCAP, Proc. nº 09100044-0 - Edital nº 002/2009– Programa de Pesquisa para o SUS: gestão compartilha-da em saúde PPSUS.

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curso ambientalista, tornou possível o crescimentodessa categoria de trabalhador informal, há poucosanos bastante inexpressiva e, hoje, constituída portrabalhadores rejeitados pela lógica do capital: ocatador de lixo nas ruas dos centros urbanos.

Neste texto, procura-se privilegiar um fenô-meno identificado em um dos depósitos de lixoestudados no desenvolvimento de duas pesqui-sas sobre os catadores de lixo das ruas da cidadede Fortaleza: a grande incidência de ex-presidiári-os entre os catadores. O depósito estudado situa-se no bairro Tancredo Neves, um dos mais pobresde Fortaleza, e o dono do referido depósito é co-nhecido por abrigar, entre seus catadores, umagrande quantidade de ex-detentos. Este grupo detrabalhadores, em busca de sua reinserção no mer-cado de trabalho, instigou a elaboração desta refle-xão sobre trabalho e identidade. Assim, buscou-se averiguar: (1) se esses trabalhadores, proveni-entes do sistema prisional, percebem a atividadede catar lixo como uma forma de inclusão no mundodo trabalho; (2) como eles se percebem nesse pro-cesso de reinserção; e (3) qual a influência de suacondição de ex-detento na reconstrução da suaidentidade de trabalhador. No que se refere às con-dições de trabalho, procurou-se observar a orga-nização e as condições a que estão submetidos ostrabalhadores desse grupo específico. Com isso, bus-cou-se refletir sobre a repercussão do trabalho comdejetos sociais e sobre a reinserção de ex-presidiári-os, estigmatizados tanto pela sociedade como por elesmesmos, como refugos humanos da sociedade.

PERCURSO METODOLÓGICO

Esta análise tem como subsídio metodológicoprocedimentos qualitativos de pesquisa em que fo-ram privilegiadas técnicas de observação e entrevis-ta durante um período de dois anos. Primeiramen-te, foram realizadas observações e entrevistas com odono do depósito, aqui chamado de “deposeiro”.Em seguida, com inspiração nos estudosetnográficos, foram observados e acompanhados trêscatadores que realizavam roteiros diferenciados de

coleta em suas atividades pelas ruas da cidade, bemcomo na dinâmica de chegada e negociação da ven-da do material para o depósito. Dois deles foramacompanhados durante o dia em duas oportunida-des diferentes, e outro durante a noite.

As observações no depósito procuraram veri-ficar a organização do trabalho, da pesagem e vendados materiais coletados, do recebimento pelo materi-al, bem como as relações interpessoais estabelecidasentre os catadores e entre eles e o deposeiro. Ressal-te-se, ainda, que foram realizados contatos informaiscom catadores por ocasião das sessões de observa-ção. As observações e comentários foram anotados esistematizados no diário de campo.

No depósito, foram realizadas, também, en-trevistas semiestruturadas com outros catadores,num total de cinco entrevistas. Essas entrevistasforam gravadas (com o consentimento doscatadores) e, posteriormente, transcritas para a re-alização das análises.

Para subsidiar quantitativamente a situaçãodo catador em Fortaleza, recorreu-se ao Diagnósti-co da Situação Socioeconômica e Cultural dosCatadores de Materiais Recicláveis de Fortaleza,realizado pela Prefeitura Municipal (2006), queapresenta um perfil dos trabalhadores. É impor-tante salientar que o relatório da Prefeitura reflete arealidade dos catadores em geral, por isso seusresultados foram utilizados para demonstrar a rea-lidade ampliada do trabalho desses indivíduos.

Na análise das observações e entrevistas, fo-ram realizadas leituras flutuantes e aprofundadas dasfalas e diários de campo. Os conteúdos foram sub-metidos à separação temática para reunir as categori-as de análise, organizadas à luz de Bardin (1977), eanalisadas com suporte em um diálogo aproximadocom a literatura revisada para a pesquisa.

A RECICLAGEM COMO ALTERNATIVA AODESPERDÍCIO

A produção de lixo está intimamente asso-ciada ao forte estímulo ao consumo e à brevidadedos ciclos cada vez mais efêmeros de produção,

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consumo e desperdício. Layrargues (2002) chamaa atenção para a obsolescência planejada comoincentivadora do consumo e da produção de resí-duos, na medida em que os produtos são concebi-dos com vida útil que possibilite constante reno-vação, decorrendo em maior produção e novo con-sumo e, consequentemente, mais lixo.

A percepção de que o conjunto de ativida-des humanas é o principal fator de degradação domeio ambiente suscita as mais diversas mobiliza-ções, bem como posicionamentos diferentes emrelação ao complexo problema. Para as empresas,a proteção ao meio ambiente não pode desviar ofoco da produção e do auferimento de lucros. Aposição dos grupos empresariais e dos economis-tas, que lhes dão suporte, é de que é possível che-gar a um ponto ideal de desenvolvimento susten-tável. Assim, muito embora o meio ambiente sejacolocado em pauta, defendem seu ponto de vista,preconizando taxas de crescimento financeiro comoindicadores únicos de seus argumentos. Se, háalguns anos, muitas empresas eram recalcitrantesna adesão ao desenvolvimento sustentável, hoje,cada vez mais, percebem os benefícios financeirosda adesão a métodos produtivos ambientalmentecorretos. Tais benefícios associam a reciclagem àagregação de valor à imagem da empresa, um bemintangível, mas com repercussões financeiras re-ais (Meireles & Santos, 2008, p. 160-162).

Mesmo com o discurso da reciclagem comoalternativa de lucro para empresários, segundodados do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tística - IBGE (2000), o Brasil produzia, diariamen-te, 228 mil toneladas de resíduos, porém, dessaquantidade, apenas 148 mil toneladas eramcoletadas. Desse enorme volume, somente 2,8%do lixo brasileiro chega a ser reciclado, indo 59%para os lixões.

Com efeito, as tecnologias de reciclagemavançaram sobremaneira, contribuindo para ummercado que movimenta grande volume de capi-tal. Trata-se de um processo produtivo que contacom o apoio dos fornecedores da matéria-prima,dos consumidores e produtores de resíduos. Rei-tere-se o fato de que, nesse processo, o interesse

econômico tem prioridade em detrimento do inte-resse ambiental. É aí que, muitas vezes, conformedefende Layrargues (2002), a reciclagem escamo-teia seu cinismo. Esse autor denuncia que apropalada política dos 3 Rs (reduzir, reaproveitare reciclar) só é hegemonicamente valorizada em seuterceiro aspecto, a reciclagem, relegando-se os doisprimeiros, a redução e a reutilização, a um planoinferior. Assim, a valorização da reciclagem pelosistema de produção de objetos e obsolescênciaplanejada é uma forma de absorver os elementoscompatíveis do movimento de proteção ambiental,sem abandonar – ao contrário, incrementando – alógica de produção e consumo exacerbados.

Apesar da existência de um mercado dereciclagem em pleno desenvolvimento no Brasil,movimentando altas cifras, grande parte do volu-me de material processado nas indústrias é colhi-do (casqueirado ou catado) por sujeitos que veem,nos primeiros elos da cadeia produtiva de trans-formação de resíduos, a alternativa, ainda que de-veras precária, à falta de trabalho. Segundo dadosdo Banco Mundial, estima-se que 1% da popula-ção urbana mundial sobreviva da coleta, separa-ção e venda de materiais recicláveis, seja catandonas ruas, seja fazendo triagem, ou, ainda, do tra-balho direto em lixões (Bonner, 2008). O Movi-mento Nacional de Catadores de MateriaisRecicláveis (MNCR, 2009) estima que haja cercade dois milhões de catadores no País, mas, dessetotal, apenas 200 mil fazem parte do Movimento.

PERFIL DO CATADOR DA CIDADE DE FORTA-LEZA

Segundo pesquisa da Prefeitura de Fortale-za (2006), presume-se a presença de mais de oitomil catadores de resíduos sólidos recicláveis reali-zando seus trabalhos em uma cidade que produzpor volta de três mil toneladas de lixo por dia.Esses trabalhadores organizam-se, essencialmen-te, sob duas formas: vendendo seu material paradeposeiros, donos de depósitos de sucata e mate-riais recicláveis, ou sob o modelo de associações

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ou cooperativas, em que os próprios catadores seorganizam autonomamente. Entre as formasassociativas, há movimentos de congregação degrupos de cooperados, formando redes de associ-ações (inclusive no plano continental e global), quediscutem questões acerca do trabalho desses ho-mens e mulheres, ampliando o poder de luta des-ses personagens e atuando fortemente no aumen-to da sua autoestima.

Os resultados do diagnóstico das condiçõessocioeconômicas dos catadores da Capital cearensepermitem traçar um perfil desses trabalhadores. Apesquisa, realizada por meio de questionários apli-cados a catadores nas ruas de Fortaleza, envolveu906 pessoas. Desses, 24,2% eram mulheres e75,6%, homens. A faixa etária dos entrevistadosfoi de 8 a mais de 60 anos, apresentando dois pi-cos: 27,9 % dos catadores estavam na faixa dos 18a 25 anos e 23,6%, de 31 e 40 anos. Chama a aten-ção o baixo nível de escolaridade entre os catadores:95% deles concluíram, no máximo, o ensino fun-damental, 22,6% são analfabetos e 90,9% não es-tão estudando, o que é alarmante, notadamente porse tratar de uma população jovem. Quanto à ne-cessidade de trabalhar, 68% alegaram como moti-vo o fato de terem parado de estudar. No que dizrespeito à renda familiar, 71,4% dos catadores res-ponderam que a principal renda da casa é de suaresponsabilidade. O nível de empobrecimento des-sa população de trabalhadores é ressaltado peloexpressivo percentual de 11,3% de catadores queobtêm alimento no lixo, reforçando a conclusãode que a catação surge como alternativa extrema àfalta de meios de sobrevivência.

O alto índice de catadores que dizem ter seiniciado nas atividades da catação por falta deemprego (82,8%) confirma a hipótese de que essesindivíduos, na maioria das vezes, se inserem nes-sa atividade como alternativa ao desemprego. Des-sa forma, são emblemáticas as falas dos catadoresentrevistados, demonstrando ser a atividade decatação a única opção pela falta de possibilidadede escolha de um emprego formal. Para eles, o lixoé apontado como última opção, o que difere daideia dos empresários, que priorizam o lucro, en-

quanto os trabalhadores enxergam a sobrevivênciae a inserção no mundo do trabalho, mesmo queprecariamente: “Vim pra catação porque não tinhaoutra coisa. Emprego hoje em dia não tem mais.Aí a catação foi a saída que eu encontrei pra conti-nuar vivendo, né?”, afirmou um catador do depó-sito, com 23 anos de idade.

No contexto geral dos catadores de Fortale-za, tem-se que o carrinho com o qual trabalham,geralmente, pertence ao deposeiro ou sucateiro(58,6%). Apenas 16% trabalham com carrinho pró-prio e 2,5% trabalham com carrinhos de coopera-tiva. Em relação ao comprador do material recolhi-do, 91% vendem-no para deposeiros ou sucateirose apenas 7,9% vendem-no para cooperativas ouassociações. Esses índices permitem inferir a grandedependência dos catadores para com os sucateirosou deposeiros, que lhes emprestam carrinhos eaplicam preços inferiores na compra do materialaos aplicados nas cooperativas.

A intermediação de atravessadores, comoos deposeiros, advém da necessidade de acúmulode material em uma quantidade suficiente paravender diretamente à indústria ou a atravessadoresmaiores. Assim, a relação com os deposeiros faz-se imperativa, porquanto o catador, sozinho, nãotem como juntar grande quantidade de material,além de deter pouco conhecimento dos aspectoslogísticos da cadeia de reciclagem (Medeiros &Macêdo, 2007, p. 80). Os deposeiros, portanto,estabelecem os preços e, muitas vezes, submetemo catador à sua dependência em troca do uso docarrinho, considerado, entre os catadores, um ob-jeto conferidor de status e de difícil obtenção, dadoo alto custo para o seu padrão de vida. Restaestabelecida, desta forma, uma relação autoritária,que limita a possibilidade de venda do catador paraoutros depósitos, submetendo-se aos preços e con-dições impostos pelo deposeiro. Daí é que váriosautores que diagnosticam o referido problema(Medeiros & Macêdo, 2007; Wilson et al, 2006;Medina, 2005) propõem o associativismo comoalternativa à dependência ante o deposeiro.

Indagados sobre quais são as perspectivaspessoais, 6,7% creem que continuarão catando

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materiais recicláveis; 51,9% responderam que vis-lumbram deixar a catação e exercer outra atividadelaboral. Esses dados indicam o grau de insatisfa-ção dessas pessoas com o seu trabalho degradan-te. Os números permitem delinear um perfil dacategoria, marcada pela pobreza, pela baixa escola-ridade, pela falta de opções de trabalho. São indi-víduos que desenvolvem uma atividade extenu-ante, em razão das longas distâncias e do elevadopeso transportado por tração própria e sobre osquais recai forte estigma social.

CONDIÇÕES DE TRABALHO PRECARIZADASE PRECARIZANTES

A observação direta do local de trabalho doscatadores, incluindo as rotas pela cidade, e as en-trevistas semiestruturadas permitiram refletir maisdetidamente sobre as condições de trabalho a queesses indivíduos estão submetidos, além de veri-ficar que a precarização associada à catação é pre-cedida de condições de vida já precárias. Assim, aabordagem acerca das histórias de trabalho doscatadores aponta remissões ao ingresso precoce nomundo do trabalho informal, ainda durante a in-fância ou a adolescência, que, muitas vezes, impe-diu o acesso regular aos estudos. Já no início davida, o trabalho surge como necessidade de ma-nutenção básica.

O depósito selecionado para subsidiar nos-sa reflexão situa-se num bairro de periferia de For-taleza, em terreno de 28m por 33m com um murode 3m. No interior, existe uma espécie de cômodode tijolo aparente e coberto, que o deposeiro con-sidera seu escritório. Não há banheiro, e oscatadores contam, apenas, com uma torneira noterreno, onde lavam os materiais e enchem as gar-rafas pet para beberem no percurso de coleta. Foiobservada a presença de duas mulheres, que fi-cam no depósito, auxiliando o deposeiro, mas nãose consideram catadoras. O número de catadoresvaria conforme o dia, já que não há uma constân-cia na frequência. Segundo o deposeiro, há cercade 25 catadores diariamente entregando material

reciclável e, embora não se tenha um número exa-to, pelo menos 15 são ex-detentos, que chegam lápor indicações de amigos de prisão. Percebe-se queas condições de trabalho são extremamente insa-lubres e perigosas. Diferente de outros depósitos,a higiene inexiste, não há sequer um banco paraos catadores sentarem-se, e, após rotas de, em média20 km por dia, eles têm de separar o material, pe-sar e vender ao deposeiro ao preço estimado poreste que, em razão do empréstimo do carrinho decoleta, geralmente mantém uma posição autoritá-ria suficiente para não causar reclamações.

Observa-se que esses trabalhadores já con-viveram com situações de precariedade no traba-lho anteriores à experiência na catação, refletindoimplicações diretas na inserção desses sujeitos nouniverso da catação. De acordo com Alves (2007),a precariedade já é uma condição socioestruturalcaracterística do trabalho daqueles que vendem aforça de trabalho e que estão alheios ao controledos meios de produção. Dessa forma, a precarizaçãoé um fenômeno que aprofunda ou repõe a condi-ção de precariedade do trabalhador, diluindo al-guns benefícios trabalhistas conquistados pelostrabalhadores ao longo do século XX. Em suma, oautor compreende precarização como processo eprecariedade como um estado, no contextosociometabólico do capital.

Na categoria profissional estudada, decatadores ex-presidiários, é possível notar a exis-tência de um estado de precariedade anterior ao tra-balho da catação, caracterizado pela combinação defatores – que ganha dinâmica própria em cada caso– tais como pobreza, baixa escolarização, trabalhoprecoce, experiência em trabalhos informais, parti-cipação em delitos e contravenções, prisões ou re-clusões passageiras e retorno ao trabalho. Essas ex-periências não conferem estabilidade nem propor-cionam melhor ocupação posteriormente.

Os “pequenos delitos”

Segundo alguns catadores, há um tráfico dedrogas no local, e o próprio deposeiro costuma

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pagar com crack alguns materiais coletados. Ne-nhum catador, porém, assumiu receber pagamen-to com a droga ou mesmo afirmou o vício. Essediscurso sempre se voltava para a acusação deoutrem. Mas o próprio deposeiro afirmou quemuitos catadores, após receberem pelo materialcoletado, se dirigem a um “ponto” de drogas pró-ximo ao depósito.

O fato é que as condições de insalubridadee periculosidade extremas, bem como a relaçãoconflituosa com o patrão/deposeiro, testemunhamum estado de precarização exacerbado nesse am-biente, que contribui, negativamente, para umareinserção social e profissional dos trabalhadores.Nesse depósito, reproduzem-se a conflitualidadee a violência na organização do trabalho, de modoque as práticas gerenciais de desmando eautoritarismo nada contribuem para a constitui-ção de uma identidade positiva de trabalhador. Daí,possivelmente, a constatação de que é recorrente a“recaída” - termo utilizado para demonstrar peque-nos golpes que os catadores costumam praticar emtranseuntes ou residências, quando têm chance defazê-lo. Essas ações provam que essa atividade emcenário degradante nada pode contribuir para aformação de um “novo” trabalhador.

A reinserção social pelo trabalho

Por todas as sujeições aos desmandos dodeposeiro, a catação de materiais recicláveis é pos-ta por alguns entrevistados como última opção,após todas as buscas por trabalho, no contexto da“nova morfologia do trabalho” (Antunes, 2005).Neste contexto, se a vida, desde o início, não favo-rece um estudo de qualidade, se a necessidade desobrevivência é um impedimento para dedicaçãoexclusiva aos estudos, se a precariedade das con-dições de vida insiste em diminuir a qualificação,o ânimo e, sobretudo, o acesso à formação e a em-pregos de qualidade, só resta se concordar com ocatador entrevistado, quando desabafou: “Eu so-nhava em ser alguém na vida, né. Em ser um bom-beiro, um doutor... mas não tive chance, fazer o

quê né!?” (Catador, 38 anos). Mesmo consideran-do o sonho parte da existência, sua realização en-volve fatores que nem sempre dependem da tei-mosia das pessoas em realizá-los.

De fato, a catação surge na exiguidade dealternativas. Assim, o que se pode observar é aretroalimentação de um ciclo que se inicia em umestado de precariedade corrente e que, com o tra-balho de catação, é acentuado por estar associadoa uma atividade que, por sua vez, aumenta aindamais a precariedade. É obvio que não se pode ge-neralizar a situação a todos os catadores, trata-sede uma tipificação ideal. Destarte, pode-se tipificara catação como atividade mediadora entre dois es-tados de precariedade a ela associados e que temcaracterísticas que transpõem o aspecto material.

As falas dos catadores entrevistados corro-boram os dados do diagnóstico da Prefeitura deFortaleza (2006) acerca da necessidade de sobrevi-vência como motivação imediata para o início naatividade de catação, dentro de um contexto devida marcado por uma trajetória instável. A preca-riedade da vida os levou a cometer delitos e, porconseguinte, a serem expurgados do meio social.Na cadeia, são tratados como dejetos humanos emprocesso de ‘reciclagem’; ao saírem, não lhes sãoofertadas políticas eficientes que possibilitem ainclusão tanto no mercado quanto na vida social.

Nesta pesquisa e na realizada pela Prefeitu-ra, foram citados fatores motivacionais imediatos deingresso na atividade de catação como a inexistênciade patrão, a flexibilidade da jornada de trabalho e aliberdade decorrente dessas características. Todavia,estes se afiguram como fatores secundários, nãonarrados pelos catadores como um ato motor inici-al, senão como uma vantagem posteriormente des-coberta. Há, portanto, que ser salientado que, nacondição de ex-presidiários, a busca pela catação éuma alternativa importante, também, pela possibi-lidade de ganho de dinheiro sem a burocracia de-corrente de um emprego formal, nos quais, muitasvezes, eles são barrados antes de assinarem a cartei-ra de trabalho por terem sido ex-detentos.

Apesar das vantagens citadas pelos catadores,eles narram, também, como desvantagem, a

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propalada liberdade conferida pelo fato de nãohaver figura assemelhada a um patrão: “Mas é as-sim, se trabalhar ganha, se não trabalhar tambémnão ganha, né. Isso é uma desvantagem porque ocara trabalhar tendo aquele ganho certo é melhor”(Catador, 32 anos). A flexibilidade resultante docaráter autônomo do trabalho é também objeto dereflexão de Sousa & Mendes (2006, p. 33), paraquem “[...] essa flexibilidade tem um efeito perver-so – a autoimposição de longas e extenuantes car-gas de trabalho, num esforço dos trabalhadores paraaumentarem a renda auferida”.

É de se notar que as principais dificulda-des apontadas estão relacionadas ao tratamentodado pela sociedade ao trabalhador da catação, àincerteza no ganho e à dificuldade, cada vez mai-or, de obtenção do material, segundo os catadores.Somam-se, ainda, a crescente percepção do poten-cial lucrativo do lixo, que aumenta com a concor-rência, além do cansaço e pelos longos percursosfeitos na atividade: “A desvantagem da catação éporque tem dia que não tem né. Às vezes o cabraanda, anda e não acha nada, aí vem embora semnada” (Catador, 53 anos).

A expressão do desejo de exercer outra ati-vidade e incluir nas perspectivas o exercício deatividade diversa da catação – desejo também en-dereçado aos filhos – soma-se ao caráter de esco-lha da catação, reforçando a configuração da pre-cariedade a ela associada, na medida em que reite-ra a ideia de que a satisfação com o trabalhoremanesce desde que não haja outra forma de ga-rantir o sustento: “Eu gostaria de fazer outra coisa,né. […] A chance que Deus me desse, um empre-go mais digno, que todos nós sonha” (Catador, 35anos). “Eu espero que meus filhos não caiam nes-sa sorte de na minha idade, ter um trabalho desse.Eu espero que eles tenham um bom futuro na vida,um bom emprego. Porque isso aqui, num dá pragente ir pra frente não, dá só pra quebrar o galho,pra frente dá não” (Catadora, 44 anos).

Dentre os fatores que dificultam a realizaçãodos desejos de exercer outra atividade, é possívelnotar que são da mesma natureza daqueles que oslevaram a entrar no universo da catação, o que

denota uma perenidade da precariedade pretéritaao trabalho e seu exacerbamento no ofício decatador. Vê-se, portanto, que o trabalho da cataçãonão sanou os mesmos problemas que dificultarama entrada no mercado de trabalho, e que o cicloexplicitado termina, de fato, por se retroalimentarem um ciclo de precariedade: precariedade da vidapretérita – precarização do trabalho – precariedadeda vida atual.

Ações de preconceito e solidariedade

A tentativa de reinserção social pelo traba-lho de catar lixo confere ao trabalhador um estig-ma (Goffman, 1982) vinculado ao produto de suasobrevivência, o que tem sido unânime entre asqueixas dos entrevistados. Produto do descarte,destinado à inutilidade, associado à sujeira, aosexpurgos da sociedade de consumo, torna-se sig-no que se integra ao catador como se ele possuíssecaracterísticas semelhantes. Indubitavelmente,outros elementos simbólicos, como a tração hu-mana para puxar os pesados carrinhos por léguasa fio – que faz lembrar tração animal – as roupasvelhas, as mãos sujas, a pele marcada pela pobre-za de quem precisou recorrer ao lixo para sobrevi-ver, ajudam a compor um quadro sobre o trabalhode catação que repercute diretamente na identida-de de trabalhadores e de seres humanos. Assim, aprecariedade da situação em que o catador desen-volve o trabalho de catação interfere, inclusive, naimagem que ele faz de si: “Tem gente que passapela gente “bora, burro, puxa a carroça!” Desse jei-to, né, dentro dum carrozão importado” (Catador,32 anos). Essa situação reforça a construção de umaidentidade negativa de trabalhador, pois nem ooutro nem o próprio indivíduo conseguem verpositividade na tarefa de catar lixo.

As principais representações do preconcei-to sofrido pelos catadores associam o trabalho decatação à criminalidade e à sujeira nas ruas da ci-dade, além da aparência de miséria que suasvestimentas denotam. São os catadores considera-dos responsáveis por rasgarem os sacos dispostos

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para o serviço de coleta de lixo. Há casos em que aação de rasgar sacos é proposital, após sofreremalgum tipo de repreensão pejorativa. Não obstanteas queixas, na maioria das vezes, falta ao catador aconsciência de que deveriam utilizar uma sistemá-tica de abrir e fechar os sacos para evitar o aumen-to da sujeira, doenças, proliferação de insetos etc.

Apesar do preconceito, os catadores tam-bém contam com a solidariedade durante suas jor-nadas de trabalho. Assim, há quem receba comi-da, objetos de uso pessoal ou doméstico. Os ges-tos de solidariedade, aos quais os catadores, mui-tas vezes, atribuem ser fruto da sorte ou da bençãodivina, são narrados em paralelo aos casos de pre-conceito, como que atribuindo a eles uma formade compensação. “Tem gente muito boa, cara! Épor isso que eu disse que no meio dos ruins agente tira os bons... Compensa” (Catador, 35 anos).

Malgrado todo o estigma sentido no cotidi-ano de trabalho pelos catadores, muitos estudio-sos da temática apontam para sua importância comoagentes ambientais e responsáveis pela coleta deboa parte do lixo urbano (Medina, 2005; Abreu,2001). Os próprios catadores, sobretudo aquelesque têm a oportunidade de participar de debatesacerca do seu trabalho, notadamente os vincula-dos a associações, salientam a relevância da cataçãopara além da satisfação de suas necessidades pes-soais, ressaltando a importância ambiental da ati-vidade e a contribuição para a gestão de resíduossólidos urbanos. Nesses casos, na tentativa de pre-servarem uma identidade, eles próprios se dife-renciam: “Nós não somos ‘lixeiros’, somoscatadores”, afirmou um catador de uma associa-ção. Os catadores do depósito do bairro TancredoNeves, porém, não se veem como agentesambientais e sequer cogitam essa qualificação. Paraeles, a importância dessa atividade se restringe,apenas, a permitir sobreviverem com o que ganhamdiariamente e recomeçarem suas vidas.

O viés atribuído à relevância socioambientalnão condiz com a precariedade do ofício e com aforma como seu trabalho é socialmente percebido.Daí que muitos autores (Magera, 2004; Layrargues,2002; Medeiros & Macêdo, 2007) assumem uma

posição mais crítica, questionando essa forma deinclusão que confere um status de importância aotrabalhador do lixo. Assim, Medeiros & Macêdo(2007) convidam a refletir sobre a qualidade dainclusão que está sendo proporcionada a essessujeitos que entraram no mercado de trabalho porvias oblíquas, ou seja, por meio de uma atividadelaboral que não lhes assegura direitos sociais bási-cos. Por isso, as autoras acentuam que “[...] ocatador de materiais recicláveis é incluído ao terum trabalho, mas excluído pelo tipo de trabalhoque realiza” (Medeiros & Macêdo, 2007, p. 82).

Berger e Lukmann (2002) propõem que aidentidade pode se referir à inserção do sujeito nomundo e à sua relação com o outro, sem perder devista, porém, o caráter dinâmico e múltiplo que aidentidade apresenta, na medida em que não só omundo do trabalho, mas, também, os indivíduosse transformam mediante as condições materiais ehistóricas dadas (Ciampa, 1998; Santos, 2000). ParaSantos (2000), somos um amálgama de sujeitosque se combinam em várias subjetividades, combase em múltiplas circunstâncias pessoais e cole-tivas. Portanto, ser catador pode ser, apenas, umadas únicas opções de (re)inserção desses sujeitosno mundo, na perspectiva de retomar a relaçãocom o outro com suporte em um trabalhoprecarizante e, sobretudo, estigmatizante.

TRABALHO E IDENTIDADE

A despeito da crítica sobre a centralidadedo trabalho, realçada por Lafargue (1999), Schaff(1995) e Kurtz (1992), entre outros pensadores,acredita-se no caráter fundante do trabalho na vidade cada um, como exposto em Marx (1980) e seusseguidores. Nessa perspectiva, o trabalho conti-nua sendo uma categoria importante na constru-ção da identidade social dos indivíduos, na medi-da em que, atuando sobre as coisas, atua tambémsobre si. De fato, o pensador alemão inaugurou adiscussão científica do trabalho para além de suaconcretude imediata, inscrevendo-o como um meiode construção de um componente sui generis en-

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tre os seres sociais: a dignidade. O trabalho nãoalimenta só o corpo, de maneira material e indivi-dual, mas é uma forma de buscar a inserção dosujeito como ser social.

Nessa perspectiva, Weber (2005, p. 133) res-salta que “[...] a visão do trabalho como vocaçãotornou-se característica do trabalhador moderno”.O trabalho, portanto, inscreve o sujeito no mundoe o grava em um lugar social. Pode-se ir além, ale-gando que o trabalho significa para o trabalhadoruma forma de afirmar sua identidade por meio deatribuições individuais referentes à realização datarefa. Essa característica, ressaltada por Forrester(1997), atribui ao trabalho um caráter estruturanteno capitalismo contemporâneo. Além disso, nãoseria exagero estabelecer a noção de habitus docatador no sentido a que se refere Bourdieu (2006).

Esses argumentos se aplicam a diferentescategorias profissionais, mas cabem perfeitamentena categoria em estudo aqui, os catadores de mate-riais recicláveis, quando se constata a importânciado trabalho que ultrapassa um meio de sobrevi-vência, considerando-o, também, como atividadesubscritora de sua cidadania. Nesse sentido, to-mando a acepção de cidadania pensada por Arendt(1995, p. 22), tem-se que, na sociedade contempo-rânea, o trabalho assegura a inserção do sujeitoque trabalha num estado de albergue jurídico –ainda que somente potencial – haja vista que suareferida centralidade no mundo social lhe conferecaráter de pedra angular no construto social quegarante o “direito a ter direitos”. Para a autora, aimportância do Homo Faber no mundo contempo-râneo leva à valorização do papel de trabalhadorna constituição do “ser”.

Tem, pois, o trabalho um caráter fundamen-tal para o acesso à cidadania, que se contrapõe aoefeito marginalizante do ócio e da desocupação –muitas vezes forçados. Na fala dos catadores, épossível constatar a frequência dessa alusão: “Euprefiro tá aqui, catando lixo, do que tá vagabun-dando ou roubando. Porque isso aqui é um traba-lho!” (Catador, 38 anos). Reforçando a observaçãodo catador, cumpre salientar que o ócio já é, de hámuito, reprimido, inclusive com prescrições de

severas cominações para os infratores dessa con-duta, e, ainda hoje, a vadiagem é considerada umilícito no Brasil.

A despeito de todo o realce em torno dotrabalho como um valor social, ele é bastante desa-fiado pelas dúvidas expressas pela “modernidadelíquida” (Bauman, 2001), notadamente as que põemem xeque a segurança das ocupações laborais e acerteza da solidez de uma carreira profissional.Bauman (2001) reflete sobre o atual momento dasociedade, marcado por demissões em massa, re-dução de postos de trabalho e, por consequência,produção de refugo humano. Para o autor, esserefugo não é fruto do desemprego na forma comose compreendia, tendo em vista que, anteriormen-te, o desempregado cumpria a função de comporos exércitos industriais de reserva e, agora, a deso-cupação forçada tende a não oferecer perspectivas.De tal maneira, ressalta, “[...] os desempregadosda sociedade de produtores (incluindo aquelestemporariamente ́ afastados da linha de produção´)eram desgraçados e miseráveis, mas seu lugar nasociedade era seguro e inquestionável”. (Bauman,2001, p. 22).

A sociedade contemporânea assiste a trans-formações na natureza do trabalho que refletem amodernidade líquida que se instalou na socieda-de atual. Na verdade, as certezas nas quais a soci-edade se apoiava já não podem ser asseguradasnessa nova era. Se uma boa formação garantia umaboa ocupação, o atual momento aponta para umquestionamento estrutural do modelo deempregabilidade engendrado ao longo do séculoXX. De fato, independentemente do grau de de-senvolvimento dos países, percebe-se que a crisedo trabalho no mundo capitalista se alastra feroz-mente, derrubando os postos de trabalho e estabe-lecendo novas relações entre capital e trabalho,reforçando a vigência de uma sociedade do de-semprego estrutural (Antunes, 2005).

No Brasil dos últimos anos, o emprego for-mal cresceu de modo surpreendente, e o País apontapara bons índices de crescimento, registrando 44milhões de empregos formais em 2010, o maiornível da história. Só nesse ano, foram gerados 2,860

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milhões de vagas com carteira assinada, apresen-tando um crescimento de 7% em relação a 2009;no entanto, parece que a informalidade cresceu nomesmo passo. As crises mundiais interferem deforma contundente no mercado de trabalho, e odesemprego, a rotatividade e precarização consti-tuem o fantasma para muitos trabalhadores que,desde os anos 1970, conhecem e provam a ruptu-ra do paradigma produtivo fordista que deu lugarao que Harvey (2006) chamou de acumulação fle-xível. No âmbito dessa reorganização produtiva, háa implantação de um sistema político e ideológicode retirada do Estado da execução e guarda de suasfunções sociais, um claro retorno, agora com maiorênfase do que outrora, a uma era de prevalência dolivre mercado em detrimento dos sujeitos. Talreestruturação tem provocado a intensificação dainformalidade e o aprofundamento da precarizaçãodas relações de trabalho (Alves, 2007).

Todo esse contexto parece justificar osurgimento de novas (ou nem tanto) formas de tra-balho precário como modo de sobrevivência paradesfiliados do mercado formal de trabalho. Assimé que muitos indivíduos se veem sem escolha en-tre não ter trabalho (o que significa não ter ummeio de subsistência) e exercer um trabalho precá-rio. Nesses casos, em que os catadores de lixo sãoexemplos, a necessidade de sobreviver fala maisalto do que o leque de benefícios que um trabalhoformal poderia oferecer, principalmente entre osex-detentos, para os quais a opção de uma ocupa-ção formal é praticamente nula.

A atividade do catador vai além dasespecificidades da economia informal, por lidarcom o produto expurgado pela sociedade e, porisso, identificado pelos sujeitos da pesquisa comosemelhantes a sua recente condição de ex-detentos.Ainda assim, o desenvolvimento dessa atividade,que lida com o refugo da sociedade, pode contri-buir para a ressocialização, sobretudo porque háidentificação com o produto que trabalham. De fato,Jaques (1996), ao referir que as estruturas socioló-gicas influenciam as representações que os indiví-duos fazem de si, como representação do eu, res-salta a associação do prestígio ou desprestigio so-

cial à qualificação e/ou desqualificação do eu a partirdas especificidades próprias de alguns espaços detrabalho e/ou categorias profissionais.

Ao mesmo tempo que essa característica érealçada, presencia-se uma extrema precarizaçãodessa atividade. A precarização observada no tra-balho de catação e no ambiente de trabalho permi-te defrontar-se com uma atividade laboral que vio-lenta a reconstituição do eu trabalhador pela sub-sistência com base no que já foi refugado pela so-ciedade. Nessa perspectiva, a reconstrução de umaidentidade no trabalho, na concepção deSainsaulieu (1977), está intrinsecamente relacio-nada à ligação do indivíduo com os outros e aoreconhecimento que ele tem nessa relação. Ora,mediante condições desumanamente precárias detrabalho, em que a relação com o deposeiro épermeada pelo autoritarismo e exploração, e as re-lações com os colegas de trabalho e população emgeral são de indiferença e preconceito, a inclusãodesses trabalhadores no mundo do trabalho tendea se refletir na sua identidade de trabalhador, comtraços de sujeição, precariedade e preconceito, nolugar de reconhecimento e estímulo para melhoriade vida pelo trabalho; é submeter-se à precarização,estando já no limite máximo de precariedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As informações obtidas por meio das ob-servações e entrevistas com os catadores levam aconcluir que as motivações imediatas para o iníciodeste trabalho se referem à necessidade de manu-tenção material da vida, mas percebe-se que a es-colha da atividade de coleta de resíduos sólidos sedá, principalmente, pela dificuldade de inclusãono mercado formal. Os ex-presidiários informamuns aos outros da possibilidade de ganho com essaatividade que não apresenta dificuldade de inser-ção. Em razão, porém, dessa inflexão, será possí-vel criar estratégias (materiais e simbólicas) capa-zes de fazer frente à precarização da catação e seusefeitos na vida desses catadores? Os resultadosobtidos apontam para a construção subjetiva de

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uma identidade de trabalhador tal como a ideiade, pelo menos, poder subsistir, sem ter que rou-bar, por meio do trabalho. Mesmo se constituindoem uma estratégia defensiva de mediação ante aprecariedade da vida, é um indício de construçãode uma identidade. Para isso, no entanto, os traba-lhadores se submetem a condições e organizaçãode trabalho bastante precárias, como se fosse úni-ca alternativa de (re)inserção social.

Por outro lado, Meireles (2009) observa que,embora trabalhem em condições precárias, oscatadores associados gozam de melhores condiçõesde trabalho. Essas melhores condições podem serpercebidas na infraestrutura de cunho material,evidenciadas pelo melhor asseio no depósito per-tencente às associações, pela existência de instala-ções sanitárias (inexistentes no depósito visitado),eletrodomésticos em bom estado que permitempreparar refeições, locais para descanso, sala dereuniões, bem como existência de parcerias quegarantem o aporte de grande volume de materialsem que seja necessária a saída do catador. Há,também, uma série de diferenças que propiciamuma melhoria nas condições de trabalho na Asso-ciação, como participação em instâncias de dis-cussão sobre os problemas ligados à atividade –além de amplas temáticas relacionadas à pauta deatuação de vários movimentos sociais – formaçãode lideranças, conscientização política, maior au-tonomia no que tange ao processo produtivo dotrabalho, laços grupais mais sólidos, de forma queos catadores representam a atividade não como umprocesso somente individual, mas inserida no con-texto social de que fazem parte, propiciando maiorconscientização a respeito do trabalho que reali-zam, que ganha contornos de motivações para alémdaquelas imediatas que levaram os trabalhadorespara esse tipo de atividade. A isto o autor chamade “desprecarização simbólica”, incluindo aí amudança de catador para “agente ambiental”.

Assim, uma política que, possivelmente,proporcionaria melhorar as condições de trabalhoe de vida dos catadores seria a instituição e o acom-panhamento de associações e cooperativas dessestrabalhadores.

Dentro dessa mesma perspectiva, compre-ende-se que a coleta de lixo deveria ser regulariza-da pelos governos locais, evitando a exploraçãoindevida dos donos de depósitos avulsos, queoperam de modo a desconsiderar a história de cadatrabalhador, assumindo uma posição bastante au-toritária, e que se aproveitam da vulnerabilidadeda condição de ex-presidiário para contratação defurtos a transeuntes, incentivo ao tráfico de drogase arbitramento dos valores pagos pelo material co-letado, anulando qualquer possibilidade de barga-nha e de autonomia dos trabalhadores, e, muitasvezes, pagando com a própria droga. Se um traba-lhador que não teve a experiência de carceragem serevolta frequentemente com os desmandos que ocor-rem nas instituições, o que dizer de ex- presidiáriosque estão tentando se reinserir mediante uma situa-ção de extrema precarização? Ouvindo a todo instan-te o argumento de que, depois de terem sido presos,não conseguirão emprego decente, respondem a essaretórica com “recaídas” que se traduzem em peque-nos furtos para aumento dos seus ganhos.

Assim, uma política séria de reinserção deex-presidiários, especificamente no trabalho decatação de lixo, deve incluir: a organização doscatadores em grupos de produção; a fiscalizaçãodos depósitos avulsos, exigindo-se condições ne-cessárias ao desempenho do trabalho; os proces-sos de qualificação desses catadores no que se re-fere à forma de coletar, evitando sujar as ruas, aomesmo tempo em que são imprescindíveis as cam-panhas de coleta seletiva de lixo para a populaçãode modo geral, permitindo o reconhecimento domaterial exposto para coleta pelo catador, sem anecessidade de rasgarem os sacos para selecionaro que interessa coletar.

São estas, portanto, iniciativas que servempara se contrapor à precarização, caracterizadas poratuar não apenas no cenário concreto daprecarização, destacando-se os fatores dereconstituição da identidade desses sujeitosprecarizados como trabalhadores com base noautorreconhecimento da importância do trabalhodesempenhado, da inserção em grupos organiza-dos de formação social e política, que repercutem

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materialmente na vida dos agentes. Isso poderiafavorecer a autoestima e reforçar o processo dedesprecarização simbólica.

O trabalho é mais do que uma forma de sa-tisfação das necessidades materiais, sendo, ainda,responsável pela inscrição do sujeito em um lugarsocial. Conferir, porém, ao sujeito um lugar socialestigmatizado é marcá-lo do estigma atribuído aoseu trabalho. É a ligação do trabalho a valores comoa defesa do meio ambiente, ora em voga, que per-mite mitigar o estigma (Goffman, 1982). Mais doque a autonomia limitada à barganha de preço, aorganização dos catadores, além da interlocuçãode experiências por meio de movimentos em nívellocal, nacional e global, permite aos catadores umaautonomia da representação que a sociedade cons-trói sobre o seu trabalho.

Conferir um sentido ao trabalho, além docontido nas motivações primeiras e contingenciais,enseja uma relevante ressignificação dele, que atuaminimizando os efeitos desgastantes desse mes-mo trabalho. Assim, a atividade passa a serincrementada com um novo sentido, que culminaem um maior reconhecimento social. Dejours(1999) assevera que o reconhecimento do indiví-duo e de seu trabalho em âmbito social é relevantepara a transformação do sofrimento do trabalhoem prazer pelo desempenho do ofício, embora oprocesso nunca se finalize.

Recebido para publicação em 19 de abril de 2012Aceito em 05 de outubro de 2012

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João Bosco Feitosa dos Santos – Doutor em Sociologia. Professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará– UECE – no curso de Ciências Sociais e no Mestrado de Políticas Públicas e Sociedade. Coordena a EstaçãoObservatório de Recursos Humanos em Saúde CETREDE/UFC/UECE onde desenvolve projetos na área demercado de trabalho em saúde. Atua principalmente nos seguintes temas: Mundo do Trabalho, RelaçãoTrabalho e Saúde, Globalização e Reestruturação Produtiva, Economia Solidaria, Precarização do Trabalho,Pobreza e Consumo. Publicações recentes: Por uma produção sociológica: entre a Narrativa Histórica e oSaber Racional. Revista de Ciências Sociais (UFC), v. 2, p. 52, 2012; Trajetória de políticas habitacionais em

cenários de desigualdade. O Público e o Privado (UECE), v. 17, p. 25-38, 2011.Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel – Doutora em Psicologia Experimental. Professora titular daUniversidade de Fortaleza e adjunta da Universidade Estadual do Ceará. Experiência principalmente nostemas: ergonomia, condições de trabalho e saúde do trabalhador. Principais publicações: Afastamentos por

transtornos mentais entre professores da rede pública do estado do Ceará. O Público e o Privado (UECE), v.19, p. 167-178, 2012; Multiplicidade de vínculos de médicos no Estado do Ceará. Revista de Saúde Pública,São Paulo: USP, v. 44, p. 950-956, 2010; Ports modernization and its influence on trade unions. Work (Reading,MA), v. 41, p. 5775-5777, 2012.Tereza Glaucia Rocha Matos – Doutora em Psicologia. Professora na graduação e no programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Atua na área de Psicologia Social e do Trabalho.Participa do Laboratório de Estudos sobre o Trabalho - LET. Os estudos estão direcionados para a produção dasubjetividade, trabalho, escolha profissional, identidade, carreira e saúde. Publicações recentes: Catadores

de material reciclável e identidade social: uma visao a partir da pertença grupal. Interação em Psicologia(Online), v. 16, p. 239-247, 2012; Precariedade do trabalho e da vida de catadores de reciclaveis emFortaleza-Ce. Arquivos Brasileiros de Psicologia (UFRJ. 2003), v. 63, p. 85-99, 2011.

EX-COM TRASH PICKERS CREATE A NEWWORKER IDENTITY

João Bosco Feitosa dos SantosRegina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel

Tereza Glaucia Rocha Matos

The goal of this paper is to reflect on andunderstand how ex-con trash pickers in the cityof Fortaleza established a new worker identitythrough socially stigmatized unstable employment.Both bibliographical-documentary research and anethnographical inspiration study were carried out,using direct observation and semi-structuredinterviews as tools. The results indicate unstableworking conditions and conflicts with the“deposeiros” (recycling center owners), who exploitthe trash pickers in every way possible. Peopleregard these workers as dangerous, dirty bums,and their working and living conditions are riddledwith exploitation, conflict and prejudice. Thenarratives of these recycled people for justice reveala strong identity with the refuse that they collect.In their quest for reentry to society andreconstruction of identity, some of them admittedto illicit practices or recidivism, therebydemonstrating the fragility of the system, whichattempts to recycle them and include them in aprecarious manner.

KEY WORDS: Work. Identity. Instability. TrashPickers. Ex-Cons.

RECONQUÊTE D’UNE IDENTITÉ DETRAVAILLEUR PAR D’ANCIENS DETENUS

QUI FAISAIENT LES POUBLELLES

João Bosco Feitosa dos SantosRegina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel

Tereza Glaucia Rocha Matos L’objectif de ce travail est de mener une

réflexion qui permette de comprendre commentles personnes qui font les poubelles, ex-prisonniersde Fortaleza, retrouvent une identité de travailleursen se basant sur une activité précarisée etstigmatisante socialement. Une recherchebibliographique et documentaire ainsi qu’une étuded’inspiration ethnographique par l’observationdirecte et par des interviews semi-structurées a étéréalisée. Les résultats indiquent des conditionsprécaires de travail et des conflits avec lespropriétaires de dépôts qui exploitent les personnesqui font les poubelles à tous les niveaux. Perçu parla population comme des marginaux, dangereux etsales, leurs conditions de travail et de vie sontmarquées par l’exploitation, les conflits et lespréjugés. Les narrations de ces recyclés par la justicemontrent une forte identification avec les déchetsqu’ils ramassent. A la recherche d’une réinsertionsociale et de la reconstruction d’une identité, certainsadmettent pratiquer des actes illicites ou faire desrechutes, signes d’une fragilité du système qui essaiede les recycler et de les insérer de manière précaire.

MOTS-CLÉS: Travail. Identité. Précarité. Personnesqui font les poubelles. Ex-détenus.

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REVISITANDO A LITERATURA SOBRE O EMPRESARIADOINDUSTRIAL BRASILEIRO: dilemas e controvérsias

Agnaldo Sousa Barbosa*

Pensar o empresariado industrial brasileironão é tarefa fácil. O primeiro desafio a ser enfrenta-do é o reduzido volume de estudos sobre o assun-to. É evidente a preferência das Ciências Sociaisdo país pelo conhecimento da experiência de clas-se dos “oprimidos” – a classe operária – em com-paração com a compreensão da história dos “do-minantes”. Por outro lado, durante muito tempo,insistiu-se muito mais na discussão sobre o queessa classe social não era, em uma perspectiva ori-entada pela experiência das nações de capitalismoavançado, do que se procurou refletir acerca do realsignificado de seu comportamento em face de suaspossibilidades concretas de atuação – ou seja, le-vando em consideração sua condição periférica.

Deste modo, dos anos 1940 até fins dos anos1970, prevaleceu uma visão essencialmente nega-tiva do empresariado industrial, resultado de aná-

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lises que tiveram, na história de suas congênereseuropeia e norte-americana, o paradigma de confi-guração da classe. Por um longo período, foihegemônica, na literatura acadêmica, a ideia de que,entre nós, as principais características dessa classeteriam sido o pouco vigor empreendedor, a menta-lidade pré-capitalista (com destaque para o seu ar-raigado patrimonialismo), a deficiência organizativa,a imaturidade ideológica e a fragilidade/passivida-de política – elementos esses facilmente associadosà origem social “aristocrata” de industriais advindosda classe dos latifundiários. Tais fatores são recor-rentemente apontados como responsáveis pelo fatode o empresariado industrial não ter alcançado ostatus de força hegemônica na sociedade brasileira econquistado, consequentemente, o poder político.

Neste trabalho realizamos um breve balançodas principais correntes interpretativas que busca-ram compreender e explicar a formação social, o pen-samento e a atuação econômico-política doempresariado industrial brasileiro. A intenção, aqui,foi elaborar um painel do que entendemos ser as prin-cipais abordagens que tiveram lugar nas Ciências So-ciais do país da década de 1940 até os nossos dias.

* Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Depto.de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da Fa-culdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –Universidade Estadual Paulista (Campus de Franca). Pro-fessor colaborador do Programa de Pós-Graduação emServiço Social e coordena o LabDES – Laboratório deEstudos Sociais do Desenvolvimento e Sustentabilidade.Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14.409-160,Franca, SP, Brasil. [email protected]

Ao longo das últimas cinco décadas, diferentes tradições interpretativas se ocuparam da tarefade buscar explicar a gênese do empresariado industrial brasileiro e analisar seu padrão deconduta do ponto de vista do empreendimento econômico e, por outro lado, diante das princi-pais questões políticas do país. Não obstante ser esse um tema pulsante, tendo em vista acentralidade do papel a ser desempenhado por esse ator social na urdidura dos fios e tramas doprocesso de modernização capitalista do país no século XX, seu estudo não é objeto de umaprodução profícua, ao contrário do que acontece, por exemplo, com as investigações sobre aclasse operária. Este trabalho realiza um breve balanço do que julgamos constituir as maisexpressivas dentre as variáveis possíveis na interpretação da experiência de classe doempresariado industrial, reivindicando a complexidade inerente ao tema em contraponto àgeneralização simplificadora recorrente na maioria dos trabalhos sobre o assunto.PALAVRAS-CHAVE: Empresariado industrial. Classe Social. Comportamento Empresarial. Industri-alização Brasileira.

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AS HIPÓTESES SOBRE A ORIGEM DOEMPRESARIADO INDUSTRIAL BRASILEIRO

É, certamente, inevitável a relação entre osprimórdios da industrialização no Brasil e a acu-mulação de capitais advinda da economia cafeeira.Em virtude da importância desta discussão, estecapítulo tem na relação entre a cafeicultura e in-dústria a sua problemática inicial.

Desde a década de 1940, tornou-se pratica-mente consensual na bibliografia sobre o tema daindustrialização o estabelecimento de vínculosinescapáveis entre café e indústria, não raro con-cebendo, por extensão, a burguesia cafeeira comoa matriz da burguesia industrial brasileira. Em obrasdos anos 40 e 50, autores de estudos que se torna-ram clássicos, como Caio Prado Jr. e Celso Furta-do, já tratavam a questão dando significativa ênfa-se à relação entre cafeicultura e indústria.1 Porém,foi em um texto de Fernando Henrique Cardoso,escrito em 1960, que tal abordagem ganhou con-torno mais abrangente e adquiriu o status de inter-pretação hegemônica no âmbito da literatura aca-dêmica. Em “Condições sociais da industrializa-ção: o caso de São Paulo”, Cardoso (1969, p. 188)2

propôs, de forma pioneira, uma explicação da in-dustrialização brasileira que ultrapassava o terre-no das considerações meramente econômicas acer-ca desse processo. Conforme argumenta, qualquerque fosse a realidade investigada, um estudo so-bre o tema deveria supor, também, como requisitobásico, “a existência de certo grau de desenvolvi-mento capitalista” e, mais especificamente, supor“a pré-existência de uma economia mercantil”, oque, logicamente, implicaria conceber a existência“de um grau relativamente desenvolvido da divi-são social do trabalho” na sociedade em questão.

Seguindo essa linha de raciocínio, Cardosoobserva que a transformação do regime social deprodução, que possibilitou o advento da ativida-

de industrial no país, ocorreu no bojo da expan-são cafeeira rumo ao oeste paulista, resultando naintensificação da organização capitalista da vidaeconômica. No interior desse processo, trêsconstatações merecem destaque: 1) a substituiçãodo trabalho escravo pela mão-de-obra livre contri-buiu para o surgimento de uma estrutura mercan-til generalizada; 2) a racionalização da empresa eco-nômica cafeeira forçou a conversão dos antigossenhores em empresários de mentalidade capita-lista; e 3) o financiamento e circulação da produ-ção cafeeira exigiram empreendimentos deinfraestrutura (bancos, ferrovias, portos, estradas,etc.) que foram essenciais para o posterior estabe-lecimento da indústria.

Em outros estudos de referência dos anos1960, 1970 e início dos 1980, autores como OctávioIanni (1963), Warren Dean (1971), Maria da Con-ceição Tavares (1972), Wilson Cano (1998),3 Sér-gio Silva (1976), José de Souza Martins (1986)4 eJoão Manuel Cardoso de Mello (1984),5 entre osmais importantes, assumiram e aprofundaram, ain-da que com algumas variações, a perspectiva docapital cafeeiro como núcleo dinamizador da in-dústria no país. Na análise de Wilson Cano, porexemplo, o café tem um significado amplo, assu-mindo o papel de elemento que orienta a econo-mia interna e externamente e cria as condições paraa intensificação do processo de desenvolvimentocapitalista. Segundo afirma esse autor:

O café, como atividade nuclear do complexo ca-feeiro, possibilitou efetivamente o processo deacumulação de capital durante todo o períodoanterior à crise de 1930. Isto se deveu, não só aoalto nível de renda por ele gerado, mas, princi-palmente, por ser o elemento diretor e indutor dadinâmica de acumulação do complexo, determi-nando inclusive grande parte da capacidade paraimportar da economia brasileira no período.Ao gerar capacidade para importar, o café resol-via seu problema fundamental que era o da sub-sistência de sua mão-de-obra, atendia às exigên-cias do consumo de seus capitalistas, às necessi-dades de insumos e de bens de capital para a1 As referências, nestes casos, são Prado Jr. (1993), cuja

primeira edição é datada de 1943, e Furtado (2000), edi-tado pela primeira vez em 1959.

2 Tal texto foi publicado originalmente na RevistaBrasiliense, n. 28, São Paulo, março-abril/1960. Utiliza-mos aqui a referência de sua publicação no livro Mudan-ças Sociais na América Latina, de 1969.

3 A primeira edição é datada de 1977. Foi originalmenteapresentado em 1975 como tese de doutoramento.

4 A primeira edição é datada de 1979.5 Originalmente apresentado como tese de doutoramento

em 1975.

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expansão da economia, bem como indicava emque o Estado podia ampliar seu endividamentoexterno (Cano, 1998, p. 136).

Partindo dos mesmos pressupostos, JoãoManuel Cardoso de Mello argumenta, ainda, quefoi o “vazamento” de excedentes de capital da ca-feicultura para outros negócios que permitiu amaior parte das inversões na atividade industriala partir das duas décadas finais do século XIX.Conforme ressalta o autor, os lucros gerados pelocomplexo cafeeiro não encontravam espaço nessemesmo núcleo produtivo para a sua plenareaplicação;6 desta forma,

[...] havia um “vazamento” do capital monetáriodo complexo exportador cafeeiro porque a acu-mulação financeira sobrepassava as possibilida-des de acumulação produtiva. Bastava, portanto,que os projetos industriais assegurassem umarentabilidade positiva, garantindo a reproduçãoglobal dos lucros, para que se transformassemem decisões de investir (Mello, 1984, p. 144).

Em face deste quadro interpretativo, aconstatação de que o empresariado industrial tevesua origem, sobretudo no grande capital cafeeiro,foi uma consequência natural7. A concepção, se-gundo a qual a diversificação dos investimentos ea complexidade alcançada na gestão dos negóciostransformaram muitos “homens do café” em in-dustriais proeminentes encontrou eco em exem-plos como os de Antonio da Silva Prado e Elias

Pacheco Jordão (Vidraria Santa Marina), Antoniode Lacerda Franco (Tecelagem Japy), Antonio Ál-vares Penteado (Cia. Paulista de Aniagens), Augustode Souza Queiroz (Cia. Mecânica e Importadora),Gabriel Silva Dias (Companhia McHardy), além demuitos outros. Warren Dean (1971, p. 54) chegoumesmo a afirmar que “[...] A quase totalidade dosempresários brasileiros veio da elite rural”. E acres-centa: “Por volta de 1930 não havia um único fa-bricante nascido no Brasil, originário da classe in-ferior ou da classe média, e muito poucos surgi-ram depois”. Tal visão é corroborada, por exem-plo, por Florestan Fernandes (1987, p. 113), quesalienta que, nesse processo, é o fazendeiro de caféquem “[...] experimenta transformações de perso-nalidade, de mentalidade e de comportamento prá-tico tão radicais”, convertendo-se em “homem denegócios”.8

A ideia do surgimento de um empresariadoindustrial associado ao grande capital – sobretudoo cafeeiro – ganhou ainda mais força com ahegemonia, a partir de meados da década de 1970,de certa tradição interpretativa que defende que ocapitalismo industrial não tenha conhecido, nopaís, as fases do artesanato e da manufatura, in-gressando já na etapa da grande indústria. Na aná-lise dos que advogam tal interpretação, a caracte-rística tardia do capitalismo brasileiro impôs a gran-de indústria como padrão necessário às exigênciasdo momento histórico em que emergiu a indústrianacional; ao surgir já na fase monopolista do capi-talismo mundial, a indústria brasileira teve comoimperativo a sua organização em grandes empre-endimentos, sob pena de sucumbir, facilmente, àconcorrência dos produtos importados aos gigan-tescos trusts internacionais. Ainda de acordo comesta interpretação, embora a pequena indústria

6 Segundo Mello (1984, p. 143), três razões em especialcontribuíram para o direcionamento dos excedentes docapital cafeeiro para a atividade industrial: “1) o ritmo deincorporação de terras está adstrito a determinadas exi-gências naturais, como tempo de desmatamento, épocade plantio, etc.; 2) a acumulação produtiva, uma vez plan-tado o café, é em grande medida ‘natural’; e 3) as despesascom a remuneração da força de trabalho reduzem-se, en-tre o plantio e primeira colheita, praticamente ao paga-mento da carpa; não o encontravam, do mesmo modo,nas casas importadoras, porque a capacidade de importarcresceu, seguramente, menos que as margens de lucro,transformando a produção industrial interna na únicaaplicação rentável para os lucros comerciais excedentes”.

7 Entenda-se como grande capital cafeeiro a fração da bur-guesia cafeeira signatária de inversões financeiras queultrapassavam os limites da lavoura, multiplicando-seem investimentos no comércio (armazéns, casas de ex-portação e importação), ferrovias, exploração de serviçospúblicos (água, luz, transporte), bancos e indústrias.Para uma definição do “grande capital cafeeiro”, ver Silva(1976). Para uma análise detalhada da dinâmica do gran-de capital cafeeiro e sua hegemonia econômica e políticaem face dos interesses da lavoura ver Perissinotto (1991,v. 1, especialmente o Capítulo 1).

8 Certa tradição marxista levou essa interpretação às últi-mas consequências, associando o empresariado indus-trial nascente a uma elite de caráter aristocrático. Con-forme destaca Nelson Werneck Sodré (1967), ao contrá-rio de sua congênere europeia, “tributária da classe do-minante”, a burguesia brasileira teria raízes na própriaclasse dominante, em uma elite senhorial de estirpe aris-tocrática. Para Sodré, nossa diferença básica em relação àEuropa, no que diz respeito ao processo de gestação daburguesia, estaria no fato de que no Brasil não se verifi-cou um “movimento ascensional” das camadas maisbaixas da população a fim de compor esta que seria aclasse dominante universal.

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artesanal tenha sido uma realidade presente até asúltimas décadas do século XIX, ela acabou pordesaparecer, na medida em que a competição emcondições altamente desvantajosas com os novosconglomerados industriais realizou uma espéciede seleção natural entre as unidades fabris.

Em O Capitalismo Tardio, de João ManuelCardoso de Mello (1984, p. 143, grifo nosso), talconcepção subjaz na afirmação do autor de que“[...] a burguesia cafeeira não teria podido deixarde ser a matriz social da burguesia industrial, por-que [era a] única classe dotada de capacidade deacumulação suficiente para promover o surgimento

da grande indústria”. Outro exemplo emblemáticopode ser observado no clássico estudo de WilsonCano (1998, p. 224-225, grifo nosso) sobre a asraízes da concentração industrial em São Paulo:

Nosso processo histórico de formação industrialreveste-se de mais uma peculiaridade importan-te: aqui não se deu a clássica e gradativa trans-formação de uma produção manufatureira ouartesanal para uma produção mecanizada.Muito embora nossa história registre a ocorrên-cia de certas atividades artesanais, como algu-mas produções têxteis ‘caseiras’ realizadas emalgumas fazendas, carpintarias, alfaiatarias, joa-lherias, etc. Muitas destas atividades, efetivamen-te, eram mais prestadoras de serviços (artífices eartistas) do que produtoras de bens industriaispara o mercado. Daí, portanto, sua precária pos-sibilidade de realizar uma acumulação de capi-tal que possibilitasse sua transformação técnicae seu desenvolvimento”.

O caráter de prevalência do grande capital edas grandes empresas na estrutura industrial bra-sileira, desde os seus primórdios, nas últimas dé-cadas do século XIX, também é salientado porRenato Monseff Perissinotto (1991, v. 2, p. 218)em importante estudo dos anos 1990:

As indústrias que surgiram no período já empre-gavam um grande número de trabalhadores e umcapital de grande valor. Caracterizavam-se tam-bém pela profunda mecanização e pela consoli-dação da separação entre trabalhador e meios deprodução – pressuposto fundamental do sistemacapitalista. A industrialização brasileira não foi,portanto, precedida por nenhuma fasemanufatureira. O seu início, já com plena meca-nização do processo de trabalho, foi também umaexigência do próprio momento em que ela surgiu.

Estas interpretações derivam da tese consa-grada por Sérgio Silva (1976), a qual, partindo doexame crítico dos censos industriais de 1907 e1920, procurou demonstrar, por meio de evidên-cias estatísticas, a carência de legitimidade dasanálises que enfatizavam a predominância das pe-quenas empresas industriais voltadas para os pou-co significativos mercados locais e regionais noperíodo da hegemonia cafeeira. Conforme SérgioSilva se esforçou em comprovar, no Brasil, a ativi-dade fabril já nasceu tendo na grande indústria oseu principal sustentáculo econômico. Analisan-do o levantamento realizado pelo Centro Industri-al do Brasil em 1907, Silva fundamenta seu argu-mento baseado na constatação de que, à época, pelomenos 39 mil operários trabalhavam nas grandesempresas do país, as quais possuíam um capitalque se aproximava de 230 mil contos de réis; dototal de trabalhadores fabris, mais de 24 mil con-centravam-se em empresas com cem ou mais ope-rários e um capital igual ou superior a mil contos.Em São Paulo, mais de 11 mil operários trabalha-vam em empresas que empregavam, em média,quatrocentos operários e mais de três mil contosde capital. Na cidade do Rio de Janeiro, mais de13 mil operários trabalhavam em empresas queempregavam, em média, quinhentos e cinquentaoperários e cerca de quatro mil contos de capital.Quanto ao Censo Industrial de 1920, Silva (1976,p. 86-87, grifo nosso) diz o seguinte:

No que se refere à importância relativa das em-presas com 100 ou mais operários, verificamosque, no antigo Distrito Federal, elas empregam73% do capital e 63% do número total de operá-rios. Em São Paulo, nelas encontramos 65% dosoperários. [...] devemos concluir que a importân-cia relativa das empresas industriais com 100ou mais operários acentua-se entre 1907 e 1920.Fato esse que se destaca quando verificamos quemais de 20 mil operários, no antigo Distrito Fe-deral, e mais de 30 mil, no Estado de São Paulo,trabalham em estabelecimentos industriais queempregam 500 ou mais operários. Afirma-se as-sim a nossa tese de que são essas empresas – enão as pequenas empresas dispersas pelo país –que melhor caracterizam a estrutura industrialbrasileira durante o período estudado [...].

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Outras análises apresentam perspectiva dis-tinta da desenvolvida por essa corrente hegemônica,todavia, raramente são lembradas nos trabalhossobre o tema. Segundo José de Souza Martins(1986), por exemplo, o aparecimento da indústriano Brasil se deu à margem das atividades engen-dradas pelo complexo agro-exportador e, por con-seguinte, esteve vinculado a uma estrutura de re-lações e produtos que não pode ser reduzida ao“binômio café-indústria”. Conforme argumenta esseautor, muito antes da abolição da escravatura e dagrande imigração, a indústria artesanal já se en-contrava implantada por toda a província de SãoPaulo e também em outras províncias. Neste senti-do, os grandes grupos econômicos que começa-ram a surgir no último quartel do século XIX seocuparam em “[...] substituir a produção artesanale doméstica ou a produção em pequena escala dis-seminadas por um grande número de pequenosestabelecimentos tanto na capital quanto no interi-or” (Martins, 1986, p. 106), e não em substituirimportações. Para Edgard Carone (2001), nãoobstante os limites existentes à formação de ummercado interno no país, desde a primeira metadedo século XIX (a qual chama de “primeira fase doprocesso industrial brasileiro”), mas, especialmenteapós esse momento, pode-se constatar uma pro-dução artesanal que se intensificou gradativamentee supriu com folga as modestas exigências da grandemaioria do público consumidor.

Já Luiz Carlos Bresser-Pereira (2002, p. 146),baseado em significativa pesquisa empírica reali-zada no início dos anos 1960, é enfático ao assina-lar “[...] que os empresários industriais do Estadode São Paulo, onde se concentrou a industrializa-ção brasileira, não tiveram origem nas famílias li-gadas ao café. Originaram-se em famílias imigran-tes principalmente de classe média”.9 Principalnome da vertente que liga a classe média às ori-gens da burguesia industrial brasileira, Bresser-Pereira antecipou em quase uma década a ideia deWarren Dean, segundo a qual o imigrante teve pa-

pel fundamental na formação da burguesia indus-trial brasileira.

Entretanto, Warren Dean introduziu um di-ferencial importante na interpretação preconizadapor Bresser-Pereira, tornando-a aderente à inter-pretação que vinculava o surgimento doempresariado industrial no país ao grande capital.De acordo com a análise de Dean (1971, p. 59), osimigrantes que se envolveram na atividade comer-cial e industrial eram de origem burguesa, muitosdos quais chegaram ao Brasil com alguma formade capital: “[...] economias de algum negócio reali-zado na Europa, um estoque de mercadorias, ou aintenção de instalar uma filial de sua firma”. Nointuito de destacar esses indivíduos da massa deimigrantes que vieram para Brasil trabalhar nas la-vouras de café, Dean os chama de “burgueses imi-grantes”, cuja experiência e treinamento os predis-punha a se dedicar à indústria ou ao comércio.10

A noção de uma “burguesia imigrante” comoelemento de relevo na constituição do empresariadobrasileiro é reforçada por Sérgio Silva, que chamaa atenção para o caráter errôneo das teses que de-fenderam a ideia de que imigrantes pobres teriamse transformado em industriais, identificando ne-les uma espécie de self-made-man. Para Silva (1976),os imigrantes que se estabeleceram como empresá-rios fabris não se confundiam com a massa deimigrantes, constituída, em sua maioria, por traba-lhadores braçais. No mesmo sentido, José de Sou-za Martins vê na figura do industrial de origemimigrante, que ascendeu socialmente, uma espé-cie de mito – o burguês mítico – que servia à repro-dução do capital e legitimava suas formas de ex-ploração. Conforme observa,

[...] a industrialização brasileira encontrouno mito do burguês enriquecido pelo trabalho epela vida penosa um ingrediente vital. [...] Foi apartir daí que a dominação burguesa se apresen-

9 Nesse artigo, publicado em 2002, Bresser-Pereira retoma,sinteticamente, reflexões desenvolvidas em sua tese dedoutoramento publicada com o título de Empresários eAdministradores no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1972).

10 De acordo com Dean, “[...] em geral os burgueses imi-grantes chegavam a São Paulo com recursos que os colo-cavam muito à frente dos demais e praticamente estabe-leceram uma estrutura de classe pré-fabricada”. Essamesma ideia é retomada por Zélia Cardoso de Mello(1985) em seu estudo sobre a formação da riqueza emSão Paulo no contexto da economia cafeeira da segundametade do século XIX.

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tou como legítima para o operário. O enriquecimen-to do burguês foi entendido como resultado do seupróprio trabalho, das suas privações e sofrimentos,e não como produto da exploração do trabalhador.A dominação e a exploração burguesas passaram aser concebidas como legítimas porque a riqueza nãoseria fruto do trabalho proletário, mas sim do traba-lho burguês. (Martins, 1986, p. 149).11

É inegável a pertinência das análises quevinculam a industrialização brasileira à dinamizaçãodos excedentes econômicos da cafeicultura. Toda-via, pensamos que tal relação econômica não devaser assumida, de antemão, como a única explica-ção para os diferentes processos de desenvolvi-mento industrial que tiveram lugar no país e,tampouco, para a questão do surgimento da bur-guesia industrial brasileira. Há mais de três déca-das, em um texto intitulado “O café e a gênese daindustrialização em São Paulo”, José de SouzaMartins (1986, p. 98) escreveu que “[...] Apesar detodos os esforços, a história e a análise histórico-concreta da industrialização brasileira ainda estãopor ser feitas. De fato, temos hoje, infelizmente,mais interpretação e generalização do que a pes-quisa empírica realizada permitiria”.12 Por mais quetenham avançado as discussões acerca do tema daindustrialização e das origens do empresariadoindustrial no Brasil, passadas três décadas, o con-teúdo crítico de tal ponderação não perdeu, total-mente, a razão de ser.

No caso da dinâmica de industrialização deSão Paulo, por exemplo, a ideia de um processode surgimento e expansão da estrutura fabril, ba-seado no binômio café/indústria, continua sendo,como na essência da crítica de Martins, o referencialpredominante para a maioria dos estudos realiza-dos. O problema não se situa, certamente, na vali-dade explicativa da interpretação, mas na sua apli-

cação de forma quase exclusiva na análise dos maisdiversos processos de industrialização que tive-ram lugar no território paulista ao longo do séculoXX. Neste aspecto, o risco de que a evidênciaempírica venha a sucumbir à força de uma teoriajá consagrada é uma possibilidade que, muitasvezes, se comprova na prática, numa patente sub-versão da máxima apregoada por Giovanni Sartori(1982), segundo a qual “a lógica não pode substi-tuir a evidência”. As generalizações já consagra-das, certamente, exercem grande influência sobreos que se debruçam sobre o assunto e acabam porinibir explicações que se arrisquem a ir além da-quelas circunscritas no âmbito das teoriashegemônicas. Por outro lado, o esforço de pesqui-sa, exigido por uma investigação empírica rigoro-sa, pode desestimular a aventura pelo territóriodas vivências histórico-concretas dos atores soci-ais, gerando a acomodação em face dos referenciaisrecorrentes. Estas nos parecem ser as justificativasmais prováveis para a sensação de ausência de re-alidades distintas daquela de um empresariadoindustrial originário do grande capital cafeeiro oude uma “burguesia imigrante”.

AS INTERPRETAÇÕES SOBRE O COMPORTA-MENTO ECONÔMICO-POLÍTICO DOEMPRESARIADO INDUSTRIAL BRASILEIRO

Estudos como os de Oliveira Vianna(1987),13 Fernando Henrique Cardoso (1963),Luciano Martins (1968), Florestan Fernandes(1987)14 e Nelson Werneck Sodré (1967) comparti-lharam, embora com variações, a visão de que oempresariado industrial brasileiro padecia de ma-les como a deficiência organizativa, a imaturidadeideológica e a fragilidade/passividade política. Comexceção dos escritos de Octávio Ianni (1989),15 aoposição sistemática, em maior ou menor grau, atais concepções veio surgir, apenas, no crepúscu-

11 Na formulação de sua tese, Martins tem em mente, emespecial, o caso de Francisco Matarazzo, “o burguêsmítico por excelência”, não obstante entender que ou-tros burgueses imigrantes também tivessem contribuí-do para a elaboração desse mito.

12 Tal texto foi publicado originalmente em: Contexto, n.3, São Paulo, Hucitec, julho de 1977. Posteriormente, foirepublicado como um dos capítulos do clássico O Cati-veiro da Terra (não obstante utilizarmo-nos da ediçãopublicada em 1986, a primeira edição é datada de 1979).

13 Não obstante ter sido editada apenas nos anos 80, talobra foi escrita na década de 1940.

14 A primeira edição da obra é datada de 1975.15 A primeira edição da obra é datada de 1965.

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lo dos anos 70 e início dos anos 80, em trabalhoscomo os de Eli Diniz (1978), Renato Raul Boschi(1979), Fernando Prestes Motta (1979) e MariaAntonieta Leopoldi (2000).16 A despeito de suas di-ferentes ênfases, tais autores se empenharam em tra-zer à luz elementos que comprovassem a existênciade uma ideologia burguesa coerente com os interes-ses da classe dos industriais, a agressividade e orga-nização na luta por seus anseios e, ademais, o im-portante papel exercido pelo empresariado na tarefade dinamizar a industrialização do país, contestan-do a exclusividade do Estado como promotor únicodas profundas mudanças em curso a partir de 1930.Em pesquisa um pouco mais recente, Márcia MariaBoschi (2000) propôs alguns avanços em relação aotema, procurando explicar questões que permaneci-am cambiantes nos trabalhos anteriores.

Começamos pela discussão acerca de uma pro-vável mentalidade arcaica, assim como do que pode-ríamos chamar de uma “anemia schumpeteriana”,por parte do empresariado brasileiro. Essas questõesforam abordadas, em especial, por Oliveira Vianna eFernando Henrique Cardoso. Escrevendo na décadade 1940, Vianna percebeu diversos traços pré-capi-talistas que distinguiam o empresariado industrialdo país. Conforme observa, em uma época em que o“supercapitalismo” norte-americano e europeu senotabilizava por uma radical busca do lucro, entre osindustriais brasileiros ainda persistiam tradições eco-nômicas e sociais que obstaculizavam a otimizaçãodos investimentos, a reprodução do capital em gran-de escala. Para Vianna (1987, v. 2, p. 49), o pequenonúmero de sociedades anônimas em nossa estruturaindustrial e o predomínio das empresas de organiza-ção familiar, nas quais a figura do patriarca prevale-cia sobre a do empresário, era o exemplo típico da“refratariedade das nossas burguesias do dinheiroaos métodos e técnicas do grande capitalismo indus-trial”.17 Segundo afirma, aqui os empreendimen-

tos não tinham o significado capitalista de um meiopara a busca da riqueza ad infinitum, mas “[...] oobjetivo modesto de apenas assegurar aos seusproprietários e dirigentes, possivelmente a rique-za, mas principalmente os meios de subsistência etambém uma classificação social superior – a dostatus de ‘industrial’” (Vianna, 1987, p. 194); parao autor, isto seria a demonstração notória de uma“mentalidade de pré-capitalismo”. De acordo comVianna (1987, p. 195-196), mesmo entre os em-presários paulistas, não obstante terem já alcança-do um elevado nível técnico em meados do séculoXX, quanto aos seus padrões de valores éticos erapossível se constatar que

[...] ainda estão num proto-capitalismo psicoló-gico, guardando muito da velha mentalidade dospaulistas das classes ricas do século passado, comsua economia de status, o seu apreço ainda mui-to vivo dos valores espirituais e culturais, as suaspreocupações genealógicas, a sua distinção demaneiras e sentimentos.

Ainda no que diz respeito à questão da“mentalidade” capitalista do empresariado indus-trial brasileiro, Fernando Henrique Cardoso (1963)parece aprofundar as observações críticas feitas porOliveira Vianna. Neste sentido, a fim de sistemati-zar sua abordagem, Cardoso dividiu os empresári-os em duas categorias: a) “capitães de indústria” eb) “homens de empresa”. Grosso modo, os primei-ros seriam aqueles cuja forma de dirigir suas em-presas obedeceria a critérios estritamente pessoais esuas práticas administrativas estariam longe de ex-pressar a racionalidade exigida pelo empreendimen-to capitalista, e os segundos representariam os mo-dernos executivos profissionais, cuja atividade eracaracterizada pela impessoalidade e pelaracionalidade administrativa em busca do lucro – aexemplo dos managers, top executivies ou heads of

organization do capitalismo norte-americano. Se-gundo Cardoso (1963), predominava no Brasil acategoria dos “capitães de indústria”, senhores ab-solutos dos rumos tomados por seus negócios,pouco afeitos a inversões substanciais, visando àmelhoria da base técnica de suas empresas e bas-tante propensos a se guiarem no mercado “pela

16 Tal obra foi originalmente concebida como tese de dou-torado defendida pela autora em 1984, na Universidadede Oxford – Inglaterra.

17 Para Vianna (1987), era bastante representativo dessepredomínio das empresas familiares na estrutura indus-trial brasileira o fato de que a maior organização do país– as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo – perten-cia à família da personalidade cujo nome traz.

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experiência” antes que pelo planejamento racio-nal. Para esse autor, a prevalência desse tipo deadministração rigorosamente pessoal – ou, no li-mite, familiar – das empresas acabou por gerar vi-cissitudes e impor restrições ao ritmo do processode industrialização em curso desde o início dosanos 30. Conforme observa,

[...] os efeitos negativos desta situação fazem-sesentir tanto sobre o ritmo da expansão industrialquanto sobre a capacidade de concorrência dasindústrias controladas desta maneira. Existe lar-ga margem de ‘capacidade empresarial’desperdiçada pelos industriais paulistas, que to-lhem seus projetos de expansão pela crença nanecessidade do controle direto dos negócios (Car-doso, 1963, p. 119-120).

O patrimonialismo e o “espírito aventurei-ro” seriam, ao invés das virtudes burguesas típi-cas, os principais traços da personalidade econô-mica desse tipo de empresário. De acordo comCardoso, entre esses típicos “capitães de indús-tria” brasileiros, os empreendimentos seriam esti-mulados mais pela obtenção de financiamentosgovernamentais de longo prazo que pela iniciativaparticular de “desbravar” novos caminhos, assimcomo o comportamento anti-empresarial da osten-tação exagerada e do desvio dos lucros para com-pra de imóveis e/ou remessas de dinheiro ao exte-rior, constituíam procedimentos comuns.

Mesmo separados por tradições intelectu-ais distintas, as opiniões de Oliveira Vianna eFernando Henrique Cardoso convergem quanto àconstatação de sérias deficiências do empresariadoindustrial no que diz respeito à sua organizaçãopolítica e enquanto classe. Vianna (1987), porexemplo, observa que, embora nos anos 40 já sevivenciasse no Brasil o que ele chama de“supercapitalismo”, o empresariado industrial ain-da não havia se constituído, aqui, em classe domi-

nante, como nos Estados Unidos e na Inglaterra,onde ela se mostrava unida e solidária em sua cons-ciência de grupo e na dominação do Estado. Naótica desse autor,

[...] entre nós, ao contrário, estas burguesias capi-talistas da indústria e do comércio nunca tive-

ram influência política [...]. É o que bem indica asua fácil submissão à política anti-capitalista daRevolução de 30; política planejada por uma eli-te de praticantes de profissões liberais – por umaelite de “doutores” (Vianna, 1987, p. 197).

De igual modo, Cardoso (1963) enfatiza afalta de espírito de classe entre os industriais, ra-zão ainda de sua débil ascendência nos assuntosdo Estado. Para ele, o excessivo apego desseempresariado aos interesses pessoais, em detrimen-to do pensamento no coletivo, da atenção aos cla-mores gerais do país, acabou por delinear umaideologia burguesa inequivocamente pragmática,cega para uma visão mais ampla dos interesses docapitalismo brasileiro e, com isso, incapaz de setornar hegemônica e guiar os destinos da Nação.De acordo com Cardoso (1963, p. 209),

[...] isto quer dizer que qualquer teoria objetivado papel da burguesia no processo de desenvol-vimento e do próprio desenvolvimento acabaapontando um beco sem saída e que, portanto, aação econômica dos industriais termina tendode ser orientada antes pela opinião do dia-a-dia,ao sabor do fluxo e refluxo dos investimentosestrangeiros e da política governamental, do quepor um projeto consciente que permita fazer co-incidir, a longo prazo, os interesses dos industri-ais com o rumo do processo histórico.

As avaliações de Luciano Martins eFlorestan Fernandes quanto ao papel desempenha-do pelo empresariado industrial brasileiro se asse-melham, em essência, à perspectiva esboçada porVianna e Cardoso. Na opinião de Martins (1968),no Brasil, essa classe seria política e ideologica-mente desarticulada, subordinada que estava aosdesígnios de um Estado controlado por elites agrá-rias, em face das quais não manifestava sinais apa-rentes de contradição. Para este autor, “[...] a per-cepção de conflito com o setor agrário, portanto,pouco ou nada influi no comportamento dos mé-dios e grandes industriais quando da escolha dasalianças políticas” (Martins, 1968, p. 137); dissoresultou a submissão das suas possíveis divergên-cias econômicas aos interesses de classe que lhessão comuns, o que, não raro, significou entravesao desenvolvimento do país. Por esta razão, Martins

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compreende que, não apenas o empresariado indus-trial não conseguiu assumir uma posição hegemônicana sociedade brasileira, como também não tinha aintenção de obter tal façanha. Essas indicações defraqueza e dependência foram, na ótica de Martins, oprincipal motivo pelo qual o empresariado não seconstituiu como protagonista de um possível proje-to de industrialização autônoma para o Brasil; con-forme observa, coube ao Estado, por meio de suaburocracia, cumprir o papel de agente central do pro-cesso de modernização, ora pairando acima dos inte-resses exclusivos das classes, ora agindo sob o pesodo constrangimento externo, na definição de suapolítica de desenvolvimento.

Em sua análise de um virtual processo derevolução burguesa no Brasil, Florestan Fernandesapontou a tendência à composição entre oempresariado industrial e as oligarquiasterratenentes – a fusão entre o “velho” e o “novo”– como o fator responsável pelo malogro de umprocesso de mudança com características verda-deiramente revolucionárias no país; obviamente,Fernandes pensava na possibilidade de promoçãode uma “revolução democrática” pela burguesiabrasileira. Comentando a aliança entre as elitesagrárias (arcaico) e o setor industrial (moderno),Florestan Fernandes (1987, p. 205) observa que“[...] o conflito emergia, mas através de discórdiascircunscritas, [...] ditados pela necessidade de ex-pandir os negócios. Era um conflito que permitiafácil acomodação e que não podia, por si mesmo,modificar a história”. Assim, para Fernandes (1987,p. 204-205), a própria estratégia empresarial limi-tou o impacto das transformações decorrentes doestabelecimento do capitalismo industrial comoestrutura econômica prevalecente no país:

[...] não era apenas a hegemonia oligárquica quediluía o impacto inovador da dominação bur-guesa. A própria burguesia como um todo (in-cluindo-se nela as oligarquias), se ajustara à situ-ação segundo uma linha de múltiplos interessese de adaptações ambíguas, preferindo a mudan-ça gradual e a composição a uma modernizaçãoimpetuosa, intransigente e avassaladora.

Conforme ressalta esse autor, no Brasil, o

empresariado não conseguia enxergar além do murode suas próprias fábricas, fronteira a qual estariacircunscrito o seu moderado espírito modernizador,por isso nunca se mostrava propenso a “empolgaros destinos da Nação como um todo”. Na visão deFernandes (1987), a ruptura do empresariado coma dominação conservadora, levada a efeito pela oli-garquia agrária, seria um imperativo incontornávelpara o desenvolvimento pleno do capitalismo nopaís, empreitada para a qual deveria se unir politi-camente com a classe trabalhadora. Não tendo cum-prido essa, que seria uma de suas tarefas históri-cas, o empresariado industrial demonstrou não terconsciência do seu papel como classe que almeja-va alcançar a hegemonia na sociedade brasileira e,consequentemente, deixou evidente que as trans-formações que preconizava se limitavam, meramen-te, à dimensão econômica.

Em sua História da Burguesia Brasileira, Nel-son Werneck Sodré (1967) tende, igualmente, a classi-ficar o empresariado industrial brasileiro como umaclasse débil, vacilante, que fugiu ao compromisso his-tórico de realizar, no país, a revolução democrática eanti-imperialista. A interpretação de Sodré segue a li-nha preconizada pelo Partido Comunista Brasileiro(PCB), fiel aos ditames da III Internacional, caracteriza-da por atribuir ao empresariado industrial tarefas pró-prias de uma “burguesia nacional”, que, além do ím-peto industrializante, deveria demonstrar um compor-tamento economicamente moderno e socialmente pro-gressista. Neste sentido, para Sodré, no Brasil, a bur-guesia desperdiçou todo o seu potencial revolucioná-rio ao deixar de se aliar à classe operária, a fim depromover a libertação nacional, e, aliando-se ao lati-fúndio, quando deveria antagonizá-lo. O resultadodesse padrão de conduta teria sido a “derrota” da bur-guesia para as forças conservadoras em 1964. Tendoem vista tais demonstrações de fraqueza e inconsis-tência ideológica, Sodré (1990, p. 30-31) traça um per-fil da burguesia brasileira extremamente negativo: “[...]uma burguesia tímida, que prefere transigir a lutar,débil e por isso tímida, que não ousa apoiar-se nasforças populares senão episodicamente, que sente apressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, poisreceia a pressão proletária”.

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Dentre as interpretações elaboradas entre osanos 40 e fins dos anos 70, a de Octávio Ianni(1989) é a única que se destaca, por entender quea participação do empresariado industrial nos as-suntos da política nacional foi, inegavelmente, ati-va após 1930. Curiosamente, o trabalho de Ianni épouco mencionado entre os estudiosos do tema.Segundo Ianni (1989, p. 91), “[...] depois de umafase em que os seus representantes estiveram qua-se totalmente fora do poder, após 1930 ela ganhoupaulatinamente ascendência sobre os governantese fez-se ouvir nas decisões da política econômica”.Para este autor, o Estado se manteve como o “maisimportante centro de decisão” na política de de-senvolvimento nacional, contudo, longe de de-monstrar passividade em sua relação com as esfe-ras de poder e por não almejar a conquista dahegemonia no interior da sociedade brasileira, oempresariado fabril se empenhou na tarefa de im-por a sua dominação de classe ao conjunto social.Conforme observa Ianni (1989, p. 92),

[...] essa burguesia não está ausente na formula-ção das diretrizes governamentais, para incenti-vo direto e indireto da economia. Ainda quemuitas vezes aparentando timidez ou falta dediscernimento, a burguesia industrial assume demodo crescente as suas possibilidades de atua-ção sobre a política econômica estatal.

Desta forma, o empresariado industrial “de-fine de modo claro suas relações com o Estado”,às vezes infiltrando-se no aparelho estatal, outras,fazendo-o operar em seu benefício, procurandoconverter as relações de produção em relações dedominação de classe. Ianni (1989) observa, tam-bém, que a marcante presença do Estado na eco-nomia brasileira seria, ademais, algo desejado peloempresariado industrial, que via o planejamento ea disciplinarização econômica exercidos pelos ór-gãos oficiais como fatores em si positivos para aprodução;18 tal argumento afasta a hipótese, defen-dida por alguns autores, de que a ingerência esta-

tal teria se dado pela imposição da orientação bu-rocrática em face da fragilidade burguesa. Para Ianni(1989, p. 94), a expansão do capitalismo industrialno país não foi um processo forjado monoliticamentepelo Estado; pelo contrário, teria sido

[...] o resultado de um largo e crescente convívioentre a burguesia industrial e o poder público.Depois da Revolução de 1930, paulatinamente,os membros dessa burguesia nascente procura-ram interferir nas decisões do governo, no senti-do de estimular-se a industrialização e planifi-car-se o desenvolvimento econômico nacional.Quando as transformações da estrutura econô-mica abriram possibilidades de ampliação e di-versificação da produção industrial, a burguesiaindustrial nascente, os técnicos e o governo per-ceberam que o aparelho estatal precisava serconvertido em conformidade com a nova situa-ção, favorecendo-a. As possibilidades de desen-volvimento das forças produtivas somente pode-riam ser aproveitadas em maior escala atravésda reorientação da política econômica do Esta-do. E foi o que preconizou a própria liderançaempresarial, juntamente com os governantes.

A tendência em ver na atuação do empresariado,dentro e fora da esfera política, um fator crucialpara a consolidação do capitalismo industrial nopaís foi reforçada em estudos do final dos anos 70.Em Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil, porexemplo, Eli Diniz (1978, p. 95) salienta que

[...] se a burguesia não deteve a hegemonia doprocesso de instauração da ordem econômica esocial, foi um ator estratégico do esquema de ali-anças que permitiria a consolidação e o amadu-recimento. Sua participação seria particularmen-te significativa no que diz respeito ao processode definição de um projeto econômico voltadopara a industrialização do país e deconscientização crescente do esgotamento domodelo primário-exportador.

Todavia, não obstante essa autora assumiruma perspectiva crítica em relação às análises quecaracterizam o empresariado brasileiro como umgrupo fundamentalmente passivo, dotado de re-duzida capacidade de articulação e organização,suas ressalvas quanto à insuficiência política e fal-ta de autonomia da classe industrial não podemser desprezadas. Se, por um lado, Diniz apontauma significativa influência do empresariado nas

18 De acordo com Ianni (1989, p. 94-95), um dos primeirosapelos coletivos do empresariado, com o fim de preconi-zar a ampliação da participação direta e indireta do Estadona economia, aconteceu em 1943, quando se realizou o ICongresso Brasileiro de Economia, que reuniu liderançasda indústria, do comércio e técnicos do governo.

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decisões do governo, sobretudo em instânciaseconômicas importantes como o Conselho Federalde Comércio Exterior (CFCE) e o Conselho Técnicode Economia e Finanças (CTEF), o que demonstrao poder de organização da classe em torno de seusinteresses específicos, por outro, a autora deixa cla-ro que, em termos ideológicos, o empresariado in-dustrial mostrava-se ainda em processo de amadu-recimento, incapaz que era de ir além de uma visãomeramente unilateral e particularista dos problemasnacionais. Nesse sentido, Diniz (1978, p. 242) afir-ma que a imaturidade política do empresariado in-dustrial não se explicitaria nos pleitos protecionis-tas, ou mesmo por reserva de mercado ou controledo comércio exterior, “[...] mas pela resistência amedidas combinadas para evitar o custo social devantagens desproporcionalmente distribuídas”.

No que diz respeito aos vínculos existentesentre a fração industrial e os setores agrários do-minantes, Eli Diniz (1978, p. 121) pondera que talaliança se efetivaria não em virtude da ausência deconsciência de classe por parte do empresariado,mas por motivos estratégicos, que serviriam ao fimde garantir o atendimento às demandas imediatasdo setor fabril. De acordo com a autora, a naturezapragmática dessa solidariedade de classe era evi-dente; conforme observa, “[...] a cada sinal de au-tonomia no processo de percepção de seus inte-resses, seguia-se uma justificativa para manter aimagem da identidade do empresariado industrialcom os demais grupos econômicos dominantes”.Porém, o exagero quanto à autonomia doempresariado industrial seria uma interpretação tãoequivocada quanto àquelas que enfatizam sua de-pendência em face dos setores agrários; conformefaz questão de lembrar, “[...] os industriais de SãoPaulo jamais romperiam suas ligações com o Parti-do Republicano Paulista (PRP), sabidamente, o par-tido dos interesses cafeeiros” (Diniz, 1978, p. 243).

A abordagem de Renato Raul Boschi apro-xima-se bastante da levada a efeito por Eli Diniz.Propondo uma “abordagem integrada” para a análi-se do problema em questão, Boschi (1979) buscasuperar o reducionismo característico dos estudosacerca do empresariado brasileiro, consensualmente

situado pela ciência política nacional “como umgrupo fraco e passivo”. Conforme argumenta, essavisão negativa em relação à atuação empresarialderiva de investigações acerca do desenvolvimen-to capitalista no Brasil, orientadas por “tipos ide-ais” baseados nas experiências das potências oci-dentais. Segundo Boschi (1979, p. 18-19), tal pers-pectiva “integrada” apresentaria a vantagem debuscar explicar de que forma “[...] a atuação dosgrupos privados pode favorecer ou de fato produ-zir diferentes tipos de interação com segmentos doaparato do Estado”, indo, assim, além das inter-pretações parciais do fenômeno do poder. Nessesentido, Boschi (1979, p. 53-54) compreende que

apesar da dependência dos grupos industriaisnacionais em relação ao Estado, os empresáriospuderam estabelecer um estilo de interação en-tre os setores privado/público abrindo um espa-ço à participação direta em questões-chave rela-cionadas aos seus interesses enquanto classe.

Para o autor, com efeito, tal atuação junto aopoder se daria muito mais pela via da estruturacorporativa que pelos meios políticos convencio-nais, isto é, via partido ou Parlamento.

De toda forma, Boschi demonstra-se con-vencido de que o empresariado industrial brasilei-ro seria organizado e politicamente ativo, além decoerente, do ponto de vista ideológico, a despeitode não assumir uma postura liberal favorável àparticipação dos trabalhadores no processo políti-co. O equívoco estaria, para Boschi (1979, p. 175),em pensar a essência ideológica da elite industrialcomo liberal, quando, na verdade, “[...] os valorespolíticos do empresariado revelam traços franca-mente autoritários”; ou seja, a burguesia estariamuito mais propensa à defesa da supressão doconflito de classes, tendo em vista a manutençãoda ordem, que à sua institucionalização. Assimcomo Eli Diniz, Boschi salienta que a principaldeficiência do empresariado industrial seria a in-capacidade de incorporar ao seu discurso e à sualuta política anseios diversos daqueles estritamen-te vinculados aos seus interesses econômicos, ra-zão pela qual não teria conseguido se estabelecercomo força hegemônica. De acordo com Boschi

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(1979, p. 230), em fins da década de 1970, uma dascondições básicas para a hegemonia do empresariadoindustrial no Brasil estava ainda por ser alcançada:“[...] a possibilidade de ampliar o âmbito do consen-so em torno de uma definição substantiva de umprograma democrático que transcenda a satisfaçãoimediata das demandas empresariais”.

Das análises elaboradas nos anos 70, a deFernando Prestes Motta é a que parece ir mais lon-ge quanto ao entendimento do avanço dahegemonia burguesa no Brasil. De acordo com Motta(1979, p. 10), até o final da década de 1970 oempresariado industrial não havia, ainda, logradoconverter-se de classe dominante em classe diri-gente de pleno direito, todavia, era uma força soci-al em plena ascensão. Conforme observa, faltava-lhe hegemonia política, “[...] mas sua hegemoniaideológica é clara. Ela domina os principais apare-lhos ideológicos da sociedade: escola, imprensa, orádio e a televisão, os partidos políticos, as associ-ações profissionais e culturais, os tribunais”. Se-gundo Motta, o impensável, no Brasil, seria a rea-lização de uma revolução burguesa “à francesa” ou“à americana”, entretanto, tal constatação não im-plica admitir que o empresariado industrial nãoteria capacidade de mobilização e articulação. Domesmo modo, esse autor caracteriza comoquestionável o argumento segundo o qual oempresariado brasileiro não teria, em seu horizon-te político, a conquista da hegemonia. Neste senti-do, observa:

[...] imaginar que uma classe ascendente não te-nha um projeto hegemônico é ignorar a próprianatureza da luta de classes. O projeto pode nãoser claro e geralmente não o é, pode ser aleatórioe geralmente o é, mas isto não implica a suainexistência, a menos que o pensemos em ter-mos de planejamento estratégico formal (Motta,1979, p. 106).

Coerente com tal raciocínio, Motta (1979,p. 131) argumenta que “[...] na verdade, a burgue-sia chamou o Estado em seu socorro, em benefíciode seu projeto”. Ademais, este autor mostra-seextremamente crítico em relação às interpretaçõesque tendem a subestimar a capacidade de organi-

zação social e política do empresariado fabril, as-sim como a exagerar a complementaridade e har-monia de interesses entre o setor industrial e aselites rurais; Motta (1979, p. 104) assinala que “[...]o perigo que se pode incorrer neste tipo de análiseé a perda de vista do processo real de diferencia-ção de interesse, através do qual a burguesia pro-gressivamente definiria a sua própria identidade”.

Para Fernando Prestes Motta (1979, p. 53), oempresariado industrial brasileiro também não podeser considerado politicamente imaturo por ter aceitadoa associação com o capital estrangeiro, pois, segundoargumenta, tratava-se de uma questão de escassez depossibilidades. Nesse aspecto, esclarece:

A aceitação do capital estrangeiro pode ter sido asaída conjuntural para a burguesia nacional. Namedida em que um projeto hegemônico é mar-cado pela articulação, desarticulação erearticulação de interesses, a associação pode servista como parte desse projeto, o que não implicadizer que ela tenha sido a melhor tomada de po-sição por parte da burguesia ascendente.

Na visão de Motta, a construção de uma frentepopular desenvolvimentista de modo algum se co-locava como opção exclusiva para a ação burguesano país. Pelo contrário, a aliança entre empresariadoindustrial e capital internacional, tendo em vista aconquista do poder de Estado, configurou-se comoum caminho perfeitamente possível e que encon-trou acolhida em parte significativa do empresariado.E tal associação não se traduziu, necessariamente,em enfraquecimento da classe; de acordo com Motta(1979, p. 108), no contexto dos anos 70, a burgue-sia industrial-financeira continuava “[...] desempe-nhando um papel indiscutível no sistema produti-vo, que se reflete num papel político, que não podeser meramente desprezado”.19

O trabalho de Maria Antonieta Leopoldi éoutro a contestar, enfaticamente, o argumento se-gundo o qual o empresariado industrial foi meroexpectador das mudanças em curso a partir de

19 Conforme observa Fernando Prestes Motta, ainda que,nesse período, a atuação dos grupos estrangeiros fossepredominante em setores cruciais do mercado interno,o capital nacional continuava dominando boa parte dosistema produtivo.

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1930. Realizando o que entende ser uma análise quecombina a tese da fragilidade da burguesia com a dacompetição interclasse no contexto do capitalismoindustrial, Leopoldi (2000, p. 31) defende a ideia deque, “[...] para os industriais, o corporativismo sig-nificou antes o acesso à mesa de negociação doque propriamente a submissão ao controle do Es-tado”. A autora observa que, longe de serem instru-mentos arbitrariamente manipulados pelos desíg-nios da vontade estatal, as entidades da indústria edo comércio demonstraram força suficiente parainviabilizar o “sonho corporativo” do Estado Novo;neste aspecto, ressalta que não apenas a Federaçãodas Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) co-mandou a luta contra a “corporativização” dos in-dustriais nos moldes desejados pelo governo, so-brevivendo às imposições autoritárias do regime,como conseguiu, no início dos anos 40, garantir ostatus de “órgão técnico consultivo”, antes conce-dido somente às entidades oficiais. Seguindo umalinha francamente inclinada a conceber oempresariado fabril como um grupo autônomo nocontexto do processo de construção do capitalismoindustrial no país, Leopoldi (2000, p. 86) enfatiza:

Os industriais do eixo Rio-São Paulo conviveramcom regimes de tipo oligárquico, liberal e ditato-rial. Desde 1930, contudo, conseguiram fazer comque o Estado, a despeito de sua presença cres-cente na economia, respeitasse a sua liberdadede organização em entidades privadas, paralelasao sindicalismo oficial.

Em seu aprofundado estudo acerca da atua-ção das mais importantes associações de classe dopaís, Leopoldi assinala, ainda, que os industriaise suas organizações de classe se envolveram ativa-mente no desenrolar da trama política nacional,não obstante sua tácita omissão nos momentoshistóricos em que houve mudança de regime.20

Leopoldi apresenta numerosas evidências desseenvolvimento dos empresários no mundo da polí-tica, com destaque para a presença de industriais

de relevo em importantes cargos do governo. Nogoverno Dutra, por exemplo, o Ministério do Tra-balho, Indústria e Comércio foi ocupado porMorvan Dias Figueiredo, líder de peso na FIESP;para Leopoldi, não foi por acaso que, nesse perío-do, as entidades dos trabalhadores sofreram umnúmero recorde de intervenções por parte do go-verno. Entre 1949 e 1953, o Ministério da Fazendafoi ocupado por dois industriais, o carioca Gui-lherme da Silveira – ligado à Federação das Indús-trias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) – e opaulista Horácio Lafer – ligado à FIESP –, o queajuda a explicar a proteção da indústria pela polí-tica cambial do governo no período. Entre 1951 e1953, o industrial Ricardo Jafet ocupou a presi-dência do Banco do Brasil, dando ensejo à expan-são do crédito ao setor secundário. Ainda no Se-gundo Governo Vargas, a Confederação Nacionalda Indústria (CNI) forneceu corpo técnico e cedeusuas instalações e serviços de secretaria para aComissão de Revisão Tarifária, responsável porformular uma estrutura tarifária que fosse sufici-entemente flexível para conviver com a inflaçãointerna e as incertezas da economia internacional.

Do ponto de vista ideológico, MariaAntonieta Leopoldi chama a atenção para o fato deque o protecionismo econômico – todavia, sem aconotação pejorativa que carrega nos dias atuais –foi o élan a animar as principais lutas doempresariado brasileiro, lutas estas que resultaramem políticas governamentais inequivocamente po-sitivas para a consolidação do processo de desen-volvimento industrial. Leopoldi (2000, p. 87) ob-serva, ademais, que, paralelamente à construçãode uma proposta de política industrial amadurecidaem décadas de luta pelo protecionismo, oempresariado foi definindo, também, um projetohegemônico. Conforme salienta,

[...] em nenhum momento recorrendo a um dis-curso que sugerisse intenções hegemônicas, a li-derança da FIESP e CNI foi pondo em práticauma série de medidas, estabelecendo aliançasestratégicas com o governo e com os militares,criando formas de controlar o movimento operá-rio, ações que indicavam claramente sua buscade uma hegemonia política.

20 Segundo Leopoldi (2000, p. 27-28), tal omissão se deuporque a estratégia da burguesia industrial “[...] foi exata-mente a de não se contrapor aos novos governantes, parapoder entrar na coalizão e dali ir se fortalecendo aos pou-cos. A essa estratégia pode-se dar o nome de pragmatismo”.

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Aprofundando a tendência que procura real-çar a autonomia do empresariado industrial e seuprotagonismo no processo de desenvolvimento ca-pitalista no Brasil, recentemente, Márcia Maria Boschiempreendeu interessante releitura das abordagens atéentão realizadas. Ao lançar mão da ideia de que oempresariado brasileiro constituía, de fato, uma bur-

guesia interna e não uma burguesia nacional, M. M.Boschi (2000) buscou superar aquele que, para ela,consistia no principal equívoco na interpretação domodo de agir e pensar dessa classe: a visão de imatu-ridade e/ou inconsistência ideológica do empresariadoindustrial por não se fazer defensor, também, dosinteresses de outras classes e por não aderir ao pro-jeto de desenvolvimento dos nacionalistas. Inspira-da no pensamento de Nicos Poulantzas,21 M. M.Boschi argumenta que, grosso modo, uma burguesiapode ser definida como nacional quando há contra-dição de interesses econômicos entre os setores quea compõem e o capital estrangeiro em um grau que atorne susceptível de envolver-se em uma luta anti-imperialista e de liberação nacional. Nesta situação, aburguesia pode vir a adotar posições de classe que aincluam no “povo”, assim como compor alianças comas massas populares. No caso brasileiro, a burguesiaera interna – e não nacional – por ter significativapermeabilidade ao capital estrangeiro, do qual de-pendia até mesmo com o fim de possibilitar seu pro-gresso tecnológico, e, também, por coexistir com seg-mentos do empresariado vinculados à importaçãode manufaturados, setor, aliás, do qual advierammuitos dos membros da burguesia industrial; a des-peito disso, segundo M. M. Boschi, essa burguesianão deixava de ter um fundamento econômico e umabase de acumulação próprios no interior de sua for-mação social.

Para a autora, realizadas tais distinções, ficamais fácil entender a dinâmica de atuação de talclasse. Assim, “[...] não era a burguesia brasileiraque se recusava a assumir ‘seu papel histórico’ napromoção do desenvolvimento do país, mas era ateoria que não dava conta do comportamento polí-

tico e econômico do empresariado industrial”(Boschi, M. 2000, p. 37). Conforme salienta,

uma burguesia interna não se inclina ao con-fronto com a burguesia agrária, nem à formaçãode alianças com a classe trabalhadora. Ela prefe-re, antes, formar alianças com outros setores daclasse dominante. A burguesia interna tambémcoloca várias restrições ao seu apoio político aoprojeto de industrialização reivindicado pelosnacionalistas, pois diferentemente desses, não sepreocupa em promover um desenvolvimentoeconômico que leve à liberação nacional. (Boschi,M. 2000, p. 42).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, podemos concluir que,especialmente no último quartel do século XX,houve uma considerável evolução na forma de sepensar a atuação do empresariado industrial bra-sileiro, tendendo a compreendê-lo como um atorsocial ativo no processo de modernização capita-lista pós-1930. Não obstante, pensamos que nãohá um caminho ideal a ser seguido na análise des-sa classe. A nosso ver, a reivindicação da comple-xidade que engendra a formação e o comportamentodo empresariado no Brasil é um imperativoincontornável, que leva à construção de mediaçõesque melhor reflitam a realidade a ser estudada (ge-ral, setorial, local ou regional, etc.), podendo-seabranger o terreno de múltiplas interpretações.

Neste sentido, é importante se valorizar a atu-ação dos empresários fabris como força ativa a im-pulsionar o processo de desenvolvimento industri-al, entretanto, sem superestimar sua autonomia di-ante da figura de um Estado que se constituiu peça-chave na construção do capitalismo no país. É fun-damental, enfim, ter em mente que as diversas fra-ções burguesas apresentam historicidade singular,ao contrário da generalização simplificadora queorienta muitas abordagens do tema; neste caso, co-loca-se em xeque a ideia de uma burguesiamonolítica, que, na verdade, nunca existiu.

Recebido para publicação em 23 de janeiro de 2012Aceito em 05 de fevereiro de 2013

21 A referência utilizada pela autora é Poulantzas, N. AsClasses Sociais no Capitalismo de Hoje. Rio de Janeiro:Zahar, 1978.

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Agnaldo Sousa Barbosa – Doutor em Sociologia. Professor e pesquisador do Departamento de Educação,Ciências Sociais e Políticas Públicas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –Universidade Estadual Paulista (Campus de Franca). É professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e coordena o LabDES – Laboratório de Estudos Sociais do Desenvolvimentoe Sustentabilidade, onde, atualmente, supervisiona 4 projetos de pós-doutorado financiados pela FAPESP– Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Autor de Empresariado Fabril e DesenvolvimentoEconômico, publicado em 2006 pela Editora Hucitec. Sua publicação mais recente, em co-autoria, é“Mudança de fronteiras étnicas e participação política e descendentes de imigrantes em São Paulo”.Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, p. 135-151, 2012.

REVISITING THE LITERATURE ONBRAZILIAN INDUSTRIALISTS: dilemmas and

controversies

Agnaldo Sousa Barbosa

Over the past five decades several differentinterpretative traditions have taken on the task oftrying to explain the origin of industrialists in Braziland to analyze their behavior pattern from abusiness perspective, as well as in response to thecountry’s biggest political issues. Although this isa stimulating subject, considering the importantrole to be played by these social actors in weavingthe fabric of capitalist modernization in 20th centuryBrazil, not much of substance has been writtenabout it, in contrast with, for instance, researchabout the working class. This paper makes a briefassessment of what we believe to be one of themost significant among the possible variables forinterpreting the experience of the industrialist class,which demands the complexity inherent to thetopic as a counterpoint to the simplifiedgeneralization which is recurrent in most writingsabout this subject.

KEY WORDS: Industrialists. Social class. Businessbehavior. Brazilian industrialization.

RELECTURE DES ÉCRITS CONCERNANTLES ENTREPRENEURS INDUSTRIELSBRÉSILIENS: dilemmes et controverses

Agnaldo Sousa Barbosa

Au cours des cinquante dernières années,différentes traditions interprétatives ont cherché àexpliquer la genèse de l’entreprenariat brésilien età analyser sa manière d’être du point de vue del’entreprise économique, mais aussi face auxquestions essentielles de la politique nationale.Même s’il s’agit d’un thème excitant étant donnél’importance du rôle que doit assumer cet acteursocial dans l’élaboration du processus demodernisation capitaliste du pays au XXe siècle,son étude n’est pas objet d’une productionabondante contrairement à ce qui se passe, parexemple, pour les investigations concernant la clas-se ouvrière. Cette analyse fait un bilan succinct dece que nous jugeons être la plus expressive desvariables possibles de l’interprétation del’expérience de la classe des entrepreneursindustriels qui revendique la complexité inhérenteau thème, en opposition à la généralisationsimplificatrice habituelle dans la plupart destravaux effectués sur ce thème.

MOTS-CLÉS: entreprenariat industriel; classe sociale;comportement entrepreneurial; industrialisationbrésilienne.

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BOITO JR, Armando; GALVÃO, Andréa (Orgs). Política

e classes sociais no Brasil nos anos 2000. São Paulo: Ed.Alameda, 2012. 429p.

Tatiana Berringer

Qual a relação dos movimentos sociais esindicais com o governo Lula? Como a políticaestatal contribuiu para o retorno do crescimentoeconômico? Qual é o conflito de classes existentehoje no Brasil?

De maneira original e muito rigorosa, olivro Política e classes sociais no Brasil dos anos

2000 procura responder parte destas questões. Aoreunir nove artigos de membros do grupoNeoliberalismo e relações de classe no Brasil,sediado no Centro de Estudos Marxistas (Cemarx-Unicamp), o livro busca sistematizar, em dois blo-cos, estudos sobre as classes dominantes, as clas-ses médias e as classes populares. Os autores tra-tam o conflito de classes como uma luta pela dis-tribuição da riqueza e não como uma disputa entrecapitalistas e socialistas, pois entendem que essetipo de disputa não está colocada na atual conjun-tura política e econômica.

Neste sentido, reconstituíram alguns ele-mentos importantes do comportamento das clas-ses médias e de frações das classes dominantesdurante a década de 1990. Esta reconstituição nospermite perceber os elementos contraditórios quejá se manifestavam nos governos anteriores e queforam rearticulados sob uma nova roupagem nosgovernos Lula (2003-2010). Mastuscelli defendeque, apesar da raiz do processo do impeachmant

do presidente Fernando Collor ter sido resultadoda política econômica, foram os estudantes de clas-se média que ocuparam a função de agentes subs-titutos das classes burguesas e proletárias. Issoporque a burguesia brasileira estava acossada pela

ofensiva imperialista e pelo forte movimento gre-vista de 1970 e 1980. Os autores afirmam que,durante o governo Collor, havia resistências seleti-vas às políticas neoliberais – manifestaçõescorporativas – como as críticas da burguesia in-dustrial ao aumento das importações e as críticasdos investidores aos confiscos dos ativos finan-ceiros. Entretanto, as insatisfações destas fraçõesdas classes dominantes se deram, apenas, de ma-neira pontual (seletiva) e não se reverteram em umaoposição ao governo, pois, no geral, concordavamcom as demais políticas neoliberais, em especial, aflexibilização das leis trabalhistas e o enxugamentoda máquina estatal.

Para Boito Jr e Sávio Cavalcante, no gover-no Lula, o Estado convocou a burguesia brasileiraa ter uma postura mais ativa. A nova burguesiabrasileira (a burguesia interna) é uma fração quereúne diversos setores como grupos industriais,agronegócio, construção civil, minerações e outros.Através do apoio e do financiamento do BNDES,o governo fortaleceu esta fração no interior do blo-co no poder em contraposição ao capital financei-ro. Esta fração é a força dirigente da frenteneodesenvolvimentista que abarca, também, omovimento popular e sindical. Ou seja, com a as-censão do Lula ao cargo de presidente do Brasil,em 2003, muita coisa mudou. Não tanto quantoesperava parte do eleitorado e, em especial, algunsintegrantes do próprio PT e muitos intelectuais.

Durante o primeiro mandato, as análisesacadêmicas (Leda Paulani, Chico de Oliveira, eoutros) foram predominantemente negativas, acu-sava-se o governo de continuidade em relação aoantecessor, em função da manutenção do tripé eco-nômico (superávit primário, juros altos e câmbiovalorizado) e criticava-se a reforma da previdênciados servidores públicos e o assistencialismo daspolíticas sociais, em especial o Programa Fome Zeroe o Bolsa Família.

A partir de 2005, após a chamada “crise domensalão” e, especificamente, no segundo man-dato do presidente Lula, as políticas neodesenvol-vimentistas se tornaram mais intensas e, nessesentido, o livro enfatiza a clara mudança entre os

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governos FHC e Lula, no que toca à política eco-nômica e social. Cavalcante defende que o setor detelecomunicações é um bom exemplo doneodesenvolvimentismo no governo Lula. A fu-são da Oi com a BrT, com o auxílio do BNDES, e oretorno da Telebrás no Plano Nacional de BandaLarga (PNBL) compõem parte da política de for-mação da “campeãs nacionais” e o retorno da par-ticipação de empresas estatais nos serviços públi-cos. As “campeãs nacionais” foram as empresasque receberam aportes do BNDES e dos fundos depensão (Previ, Pretos, etc) para aquisição de novasempresas ou fusão com as concorrentes do ramo,com o objetivo de se tornarem líderes globais noseu segmento; por isso, a maioria destas empresaspassou a atuar em outros territórios e passou amonopolizar o mercado interno no seu segmento.

Boito Jr adverte que o neodesenvol-vimentismo é o desenvolvimento possível nosmarcos no neoliberalismo. Segundo ele, o prefixo“neo” indica três grandes diferenças com odesenvolvimentismo do período de 1930-1980: 1)índices mais modestos de crescimento; 2) a aceita-ção da especialização regressiva, já que a produ-ção se concentra em segmentos de baixa densida-de tecnológica; 3) produção voltada para exporta-ção. Para o professor, a eleição de Paulo Skaf, em2004, para a presidência da Fiesp, com o apoio deLula, foi uma inflexão na relação da entidade como governo. Skaf relançou a Revista da Indústria epassou a criticar, com mais ênfase, a política dejuros, o spread bancário, etc. Por isso, viu combons olhos a troca de Palocci por Meireles no Ban-co Central, em 2005.

No que se refere às classes populares, o cres-cimento econômico trouxe consigo o aumento donúmero de empregos e do salário mínimo; comisso, houve uma aproximação das duas principaiscentrais sindicais – Força Sindical e CUT –, a reto-mada das greves e uma dificuldade de mobilizaçãodos movimentos sociais, cujas bases eram, predo-minantemente, de desempregados. Por outro lado,a reforma sindical e a reforma da previdência con-tribuíram para a fusão de algumas antigas centraise o surgimento de novas organizações como a

Conlutas e a Intersindical, estas duas organizaçõesfazem oposição declarada ao governo, estando, res-pectivamente, ligadas ao PSTU e PSOL.

As políticas sociais, em especial o Progra-ma Nacional de Habitação “Minha casa, minhavida”, exerceram, também, um importante papel:atenderam parte das reivindicações dos movimen-tos de moradia e dos movimentos dos desempre-gados. Na realidade, Oliveira e Hirata demonstramque as famílias que mais se beneficiaram não esta-vam entre os 90% de renda de 0 a 3 salários míni-mos, o que demonstra que, apesar de ser uma po-lítica que atendia aos reclamos dos movimentosde luta por moradia, não privilegiou, exatamente,a parcela mais necessitada.

As classes médias, sobretudo o setor comalta escolaridade, foram muito afetadas pelas polí-ticas neoliberais, e, ao que parece, foram as quemenos tiraram proveito do neodesenvolvi-mentismo. Não tiveram muitos ganhos salariais,não houve redução dos pagamentos dos serviçoscomo educação, seguro de saúde, etc. E, sobretu-do, os servidores públicos perderam direitos coma reforma da previdência. A principal manifesta-ção destes setores nos anos 2000 foi o Fórum So-cial Mundial (FSM). Segundo Ana Elisa Corrêa eSantiane Arias, a sua base é, predominantemente,de classe média escolarizada e o conselho interna-cional é composto, predominantemente, por orga-nizações não-governamentais, esses seriam os prin-cipais motivos para o caráter pouco propositivo eapartidário do FSM.

Pelo que se pode constatar da leitura do li-vro, há um limite e um desafio muito grande paraa perpetuação do neodesenvolvimentismo no Bra-sil. O governo teria que aprofundar e modificaralgumas políticas sociais, como o ProgramaHabitacional, a fim de atender à camada mais ne-cessitada e, precisaria, ao mesmo tempo, concedermaiores ganhos às classes médias, sem que, paraisso, os ganhos da burguesia interna sejam dimi-nuídos. Não há como atender às demandas daburguesia interna como, por exemplo, a reduçãodos custos com a folha de pagamento, o aumentodas terceirizações e, ao mesmo tempo, ter o apoio

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das classes médias e dos movimentos sindicais epopulares. Este é o limite da própria frenteneodesenvolvimentista, os diferentes setores con-cordam com a proteção ao mercado interno, o au-mento do crédito, a redução dos juros, mas dis-cordam em relação aos direitos trabalhistas, ou

melhor, disputam a distribuição dos recursos pro-duzidos pelo crescimento econômico. Afinal decontas, não há como conciliar eternamente inte-resses contraditórios.

Recebido para publicação em 07 de julho de 2013Aceito em 30 de julho de 2013

Tatiana Berringer - Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Integrante dogrupo “Neoliberalismo e Relações de Classe no Brasil”, vinculado ao Centro de Estudos Marxistas (Cemarx)e do Grupo de Estudos e Pesquisas para Alternativas em Relações Internacionais (GARI) vinculado a Unesp-Franca. Pesquisa: Política Externa Brasileira; Teoria das Relações Internacionais; Teoria do Estado; Classessociais. [email protected]

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RETRATO DE UMA FIGURA EXEMPLAR: para lembrar opassamento do professor Edmundo Fernandes Dias

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No dia 3 de maio de 2013, faleceu, na cida-de de Campinas, São Paulo, o Prof. Dr. EdmundoFernandes Dias, professor aposentado do curso deCiências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciênci-as Humanas da Unicamp, onde ministrou aulastanto na graduação quanto na pós-graduação. Vin-culado ao Departamento de Sociologia, o Profes-sor Edmundo lecionava Teoria Sociológica e eraum profundo conhecedor do pensamento do mar-xista italiano Antonio Gramsci.

Se fosse o caso de se traçar um perfil doProfessor Edmundo, pode-se afirmar que esse sedesdobrava em várias facetas: o intelectual, o pro-fessor, o militante sindical, o militante político. Emtodas essas facetas, um traço comum: o senso decompanheirismo inquebrantável, acompanhado deuma profunda aversão às soluções “geniais”, quemal escondem o afã do holofote. A discrição nessamatéria era inversamente proporcional à busca derigor teórico e à opção visceral pelas soluções cole-

tivas. Nisso ele era profundamente marcado pelaexperiência da esquerda radical (no que essa seopunha à postura do PCB nos anos 1970), tendosido o produto de uma geração. Edmundo era umhomem de esquerda, com uma cultura de esquer-da e socialista.

De sua faceta de intelectual, pode falar mui-to bem o cultivo de uma biblioteca notável, parti-cularmente rica no tocante aos títulos dedicadosàs Ciências Sociais e ao marxismo, sendo, por isso,um saboroso convite às pessoas sensíveis a essesdois temas. De sua faceta de professor dedicado epreocupado com os seus alunos, pode falar a lem-brança carinhosa de todos aqueles que assistiramàs suas aulas ou foram seus orientandos. De suafaceta como militante sindical, basta recordar a atu-ação marcante e quase contínua, ocupando diver-sos cargos nas diretorias da Adunicamp (do qualfoi um dos fundadores) e da Andes. E, mesmoquando de cargos não se tratava, estava sempre lá,ajudando, discutindo e polemizando de maneiraconsequente nas instituições representativas dosprofessores universitários, durante longos anos,sem nenhuma cerimônia ou desconforto por exer-cer esse papel. Como militante político, é suficien-

* Doutor em Sociologia. Professor do Departamento deSociologia da USP. Foi aluno do Professor EdmundoFernandes Dias no IFCH da Unicamp, e estudante depós-graduação na mesma instituição, entre 1985 e 1989.Av. Luciano Gualberto, 315 - sala 212. Cidade Universi-tária. Cep: 05508-900 – São Paulo, SP – [email protected]

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te mencionar o ativo engajamento na construçãodo Partido dos Trabalhadores e da Central Únicados Trabalhadores, no início dos anos 1980, dosquais mais tarde se afastou, por razões – exata-mente – políticas.

Seu papel de intelectual público e sua atua-ção pedagógica junto aos movimentos sociais e aouniverso sindical foram muito justamente evoca-dos nas notas que vieram à tona, na imprensa mi-litante, após o seu desaparecimento. Gostaria, con-tudo, de explorar um outro aspecto de sua perso-nalidade, mais ligado aos assuntos que mobilizamesta revista e a instituição que a anima, isto é, ainstituição universitária.

Trata-se da profunda fenda que se alargou –e vem se alargando cada vez mais – entre, por umlado, uma personalidade que via a universidade ea sociabilidade companheira que anima a críticada divisão do trabalho intelectual como um ele-mento integral da prática acadêmica e, por outrolado, a universidade realmente existente e o modode convívio entre seus pares. Edmundo acompa-nhou como que a transição entre esses dois mo-dos de viver a universidade: a universidade emque ele se formou como estudante de ciências so-ciais, e a universidade em que ele estava traba-lhando como professor de ciências sociais. Du-rante o período de sua prática profissional (quevai dos anos 1970 até meados dos anos 2000), auniversidade mudou muito, tornando quaseirreconhecível aquele élan que ela carregava em seutempo, o de pensar o Brasil e mudar o mundo, eonde a integralidade entre ensino, pesquisa e ex-tensão não era ainda um jargão burocrático, masum projeto político. Essa integralidade foi-se que-brando, pouco a pouco, até opor, de um lado, a“excelência” produtivista feroz e eticamente neu-tra e, por outro lado, a “visão política”, desvalori-zada na mesma medida de sua “confusão” (segun-do os porta-vozes dessa visão) entre fins e meios.

Edmundo era de uma geração que tinha le-vado a sério a crítica da divisão do trabalho comoum legado para ser aplicado à vida, e não apenascomo um tópico para ensinar na sala de aula. Issoficava evidente em sua prática, e era o que o torna-

va, de certo modo, incômodo para as personalida-des intelectuais avessas a essa mistura de cenários- para usar um termo goffmaniano. Não havia, porexemplo, para ele um momento black-tie, porqueele acreditava piamente que não era o hábito quefaz o monge, mas sim, o contrário (com a ressalvade que, ao invés de “monge”, por favor leia-se “ho-mem”, no sentido genérico do “gênero humano”).Na radicalidade do exemplo de Edmundo, nãohavia essa de cenários diferentes, pois a perma-nência de valores morais deveria se impor quais-quer que fossem as circunstâncias. Era uma pos-tura, no fundo, republicana-radical que, para serconsequente, desorganizava os papéis, ainda bas-tante estamentais, que fornecem o imaginário declasse média de nossa universidade, em termosde práticas e hábitos inveterados, de gosto e depreconceito. Havia uma clara opção preferencialpela plebe, não como plataforma abstrata, mas comoprática de trabalho intelectual. O Prof. Edmundoaplicava o exemplo do movimento operário em suaprópria vida, de maneira análoga ao modo comoos homens verdadeiramente vocacionados fazemcom a sua fé. Edmundo era, pois, um ser profun-damente imbuído de vocação política. E ele via aUniversidade como devendo funcionar desse jei-to, como uma instituição verdadeiramente públi-ca, daí o seu paulatino afastamento do ambiente edas instâncias de consagração do chamado “cam-po intelectual”, e sua resoluta opção pelo trabalhode difusão educativa outsider.

Dessa forma, espontânea mesmo, e comoque natural, o Prof. Edmundo acabou cantando abola do que iria acontecer nos anos 2000, em ter-mos da consolidação de um padrão de universi-dade elitizada, presa da expansão dos critériosneoliberais de gestão, avaliação e orientaçãovalorativa. Hoje se vê com nitidez aonde foiconduzida a universidade: ao modelo gestionário-empresarial, que consagra a respeitabilidade comoantagônica aos movimentos sociais e às suas de-mandas “políticas”.

A cisão entre política e saber foi o produtoda ciosa tendência de “proteger” a universidadeda influência dita “partidária”, temática essa que

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calhava perfeitamente, como contraponto, no tipode elaboração que o pesquisador Edmundo reco-lhia dos ensinamentos da democracia operáriaconselhista do bienio rosso de Turim, objeto deseus estudos doutorais: os de que a democracia (o“para todos”) vem, primeiramente, da evocação daparte sobre o todo - o que pode parecer paradoxal,mas expressa bem a percepção marxista de que aclasse que tende ao universal (proletariado) estáem seu direito de evocar a sua particularidade queacaba, por fim, negando toda a particularidade (so-ciedade dividida em classes). Assim, pode-se per-ceber como uma pesquisa, aparentemente apenasteórica, ou específica de uma época histórica de-terminada (lutas sociais na Itália, final da primeiradécada do século vinte), pode iluminar contextosbem diversos, guardando, contudo, em certo pla-no, uma problemática similar.

OS INTELECTUAIS E A POLÍTICA E OSINTELECTUAIS NA POLÍTICA

Dois casos bem conhecidos pela crônica davida política brasileira são elucidativos do papelnada desprezível do intelectual de esquerda nacondução da direção moral da sociedade – que é aexpressão gramsciana, famosa, para referir-se à lutasimbólica, conhecida como “guerra de posições”.

Na primeira eleição de FHC, em 1994, umintelectual respeitável da universidade – em espe-cial da área de ciências sociais – chegava ao topoda cena política nacional. Muitas pessoas comuns,letradas e progressistas, guardavam, ainda, a ima-gem do brilhante professor universitário e teóricoda dependência, escritor de livros influentes entreestudantes e interessados pela “realidade brasilei-ra”. Movidas por uma certa dívida para com os desua geração, deram um crédito de confiança aopersonagem, embora já estivesse clara, àquela al-tura, para os mais entranhados no debate público,a profundidade da virada em direção a um libera-lismo consequente e pertinaz. É interessante terem conta esse efeito de inércia que faz perduraruma ilusão no seio de uma opinião pública infor-

mada, típica das metrópoles e dos centros de difu-são da cultura. Ao mesmo tempo, é interessanteobservar, também, o uso estratégico (para os finspráticos da vitória eleitoral), bem pensado e sope-sado pelos profissionais de marketing, da preser-vação de tal patrimônio como um ativo poderoso aser oportunamente empregado. Até que a ficha caia,são milhares de professores, artistas, espectadoresde teatro, de cinema e de artes, jornalistas, publici-tários (os famosos “analistas simbólicos”, noção decirculação fácil desde o início dos anos 1990), entreoutros, espalhados profissionalmente por entre oambiente da circulação das ideias, que votam.

Cálculo idêntico pode ser percebido déca-das depois, quando, nas eleições de 2012 para asprefeituras das capitais, o ex-presidente Lula un-giu dois intelectuais de seu partido para prefeitu-ras de cidades importantes: São Paulo e Campi-nas. Também ali eram figuras respeitáveis e comcapacidade de liderança intelectual sobre um pú-blico leitor e crítico. A percepção de um recursosimbólico eficaz na batalha pela opinião pública (eque quase deu certo em ambos os casos) é típicade quem conhece bem o terreno em que está pi-sando, e é sensível ao clamor difuso das ruas. Sair,como os dois saíram, de um base incólume àpretensa “sujeira” do mundo da política partidá-ria strictu sensu, onde estão abrigados tanto o as-sessor parlamentar quanto o militante enraiveci-do, tanto o político profissional quanto o ativistaarrivista - eis a mágica tirada de uma boa cabeçaestratégica, que vê no neófito o passaporte para“zerar” tudo o que o passado (recente) condena –especialmente quando o ambiente do qual épinçado, sendo valorizado e cultuado, é inversa-mente proporcional àquele que apascenta o políti-co tradicional, feito de jogo sujo, mentira ecorrupção. Os intelectuais são, sim, importantesno cenário político. Gramsci foi um dos que cedoalertou sobre essa importância simbólica na lutacultural e argumentativa.

O Prof. Edmundo, por seu turno, leitor apai-xonado e intérprete visceral daquele autor, perce-bia muito bem o alcance profundo das reflexõesdo revolucionário sardo quanto a este ponto: o de

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que, longe de deter-se nesse papel de influência ede preservação de sua própria autonomia enquan-to intelectual, este último pode agir de forma maisefetiva e certeira, indo como que “direto ao pon-to”, isto é, tomando um lado. Intelectual “orgâni-co”. A sociologia dos intelectuais, hoje praticadanos centros dominantes de pesquisa, limita-se adiagnosticar a autonomia do campo, raramenteconsiderando a hipótese da consciência dessa im-possibilidade teórica e da investida resoluta, porparte do intelectual, em um dos lados da luta, emdetrimento do outro. O que era mais ou menosplausível no contexto das ideias, nos anos 1980,foi deixando de sê-lo, paulatinamente, na medidaem que a Universidade foi se profissionalizandoe, ao mesmo tempo, expulsando certos temas desua pauta, tais como o engajamento e a crítica tan-to da “excelência” quanto da “competência”; críti-ca essa que tinha como pano de fundo o ideal de-mocrático-radical de que “todos os homens sãointelectuais”, uma divisa gramsciana hoje esque-cida. Isso explica, por parte do Prof. Edmundo,um certo pudor – muitas vezes percebido, quasenunca explicitado – com a afirmação da insígniauniversitária como marca de distinção (que ele deresto merecia indiscutivelmente), simultaneamen-te a um certo anonimato deliberado, profundamentecoerente com sua maneira de encarar o mundo.

Tanto o engajamento quanto a crítica acaba-ram migrando do centro do debate acadêmico parafora dele, indo aninhar-se nos movimentos soci-ais, deixando o cenário “interno” (isto é, da pró-pria Universidade com seus departamentos, facul-dades e congregações) entregue ao discurso da efi-ciência, da produtividade et pour cause, dacompetitividade. Parece que o Prof. Edmundo per-cebeu o movimento de fechamento de horizontese, o que antes era uma tensão dentro da Universi-dade entre o papel do intelectual na luta no front

interno (institucional) e na luta no front externo(público) acabou se resolvendo, na biografia donosso personagem, em um deslocamento cada vezmais pronunciado em direção ao front externo (oque incluía, como já se fez referência, a participa-ção nas entidades sindicais do professorado, prin-

cipalmente a Andes e a Adunicamp).Sua tese de doutorado, defendida na Pós-

Graduação em História Social da USP, em 1984 e,depois, editada em publicação da Unicampdedicada às teses de seus docentes, no ano de1987, em dois volumes, com o título de “Demo-cracia Operária”, é um estudo minucioso sobre aformação do pensamento de Antonio Gramsci. Láestão tematizadas questões fulcrais e da maior re-levância, tais como o círculo intelectual em umasociedade atrasada do ponto de vista europeu,seus deslocamentos e instabilidades; a relaçãodesse círculo com os meios de difusão das ideias,como as revistas; o transformismo como padrãopolítico e ideal na sociedade italiana (podendoser generalizado como um padrão recorrente todaa vez que os de baixo irrompem na cena política);a decapitação das lideranças que se destacavamnos movimentos sociais como uma estratégia po-lítica das elites (assunto a que ele sempre voltavacomo algo rotineiro na realidade muito concretadas lutas sociais do presente e, também, um ín-dice da fraqueza dos intelectuais em contextossubdesenvolvidos); a descrição encarnada - por-que histórica – da luta pela hegemonia e o papelda moderna classe dos trabalhadores nela – a lis-ta de tópicos poderia se estender. De fato, muitodo que Edmundo lia, a propósito da Itália do iní-cio do novecento, com Gramsci, na verdade mira-va o Brasil do período da redemocratização e dosurgimento do PT e da CUT, então as grandes es-peranças (mencionadas, inclusive, na Introduçãode seu doutoramento!).

Pode-se ver, assim, a meu juízo, certo tipode escolha do Professor – escolha ao mesmo tem-po profissional e política – que orientou a sua vidanos anos de Unicamp. Escolha profissional por-que, sabendo das limitações da manutenção de umpapel respeitável (e jamais porque não estivesse àaltura dele, muito ao contrário - como todos osseus alunos, colegas e aqueles que com ele convi-veram sabem muito bem), optou por ir fundo naexperiência da transformação por meio de uma ati-vidade pedagógica direcionada aos que mais sen-síveis estão à necessidade de mudanças: aqueles

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que demandam por elas. Escolha política porque,diferente da política institucional e profissional,esta era uma opção de vida, de quem não conse-gue, intimamente falando, separar a percepção dasurgências da intervenção sobre elas. O relatorememorativo dos próximos, amigos e companhei-ros de lutas nos fronts onde o Professor atuava –front associativo e dos movimentos sociais, sobre-tudo, – são unânimes em marcar o entusiasmo comque costumava falar dos assuntos que os atava,sendo que o entusiasmo, longe de se manifestarapenas em vivacidade de espírito, podia deslizar,também, para uma mordacidade ferina ou um des-prezo bem calculado. Indiferença e dissimulação,que ninguém esperasse isso dele. Também evitavao entusiasmo que descambasse em um script porsinal bastante frequente e fácil: o do militante cha-to. Aliás, não havia nada de pedante ou afetado nafigura do Professor, muito menos de cálculo racio-nal, no sentido egoísta do termo. Havia, isso sim,uma enorme coerência entre o pensar e o agir, oque era perceptível para todos aqueles que o rode-avam, e que chegava mesmo a ser, para esses,desconcertante, na medida em que, partilhando,como partilhávamos (porém não com a mesma in-tensidade), de suas convicções, víamo-nos comoque incapazes de levar tão a fundo o seu compro-misso e, por isso, injetando uma auto-sensação de

permanente déficit, um certo sentimento de pe-quenez, como que a dizer que concordávamos comele, mas que éramos incapazes de manter o mes-mo grau de exigência; um sentimento de que de-veríamos estar ali, onde ele estava, fazendo o queele fazia, e que qualquer decisão diferente seriacomo que abandonar o barco. Mas isso implicava,por suposto, uma certa dureza (vê-se depois, masapenas muito depois, que essa dureza é a condi-ção daquela coerência).

É nesse sentido que o Prof. Edmundo eraum exemplo. Não um exemplo pelo convencimentoprofessoral, mas pela prática, como que a dizer,por atos e compromissos, a todos aqueles que lu-tavam a sua luta, o que, afinal, tinham de fazer e,sobretudo, onde tinham de estar. A prova da vida,por meio de atos exemplares, embora simples, semnenhuma pompa ou anúncio solene. A ação polí-tica estava completamente incorporada na práticade sua vida. Especialmente – e esse é o lado triste,que explica a situação do Professor, sua relativamarginalidade diante dos colegas de profissão, àmedida que o tempo ia passando – na Universida-de e, dentro dessa última, nos cursos de CiênciasSociais. Relembrar o Prof. Edmundo e seu legadocomo professor e como intelectual de esquerda sig-nificaria tentar erigir um tipo de relação diferenteda que é hoje praticada entre o saber e o agir.

Leonardo Mello e Silva – Doutor em Sociologia. Professor da Universidade de São Paulo. Tem experiência naárea de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas:sindicalismo, reestruturação produtiva e qualificação do trabalho. Publicações recentes: Qualidade de vida,

opinião pública e ação de bairro. A trajetória do movimento antiverticalização em São Paulo. Revista Críticade Ciências Sociais, v. 92, p. 99-123, 2011; Prática de pesquisa e “sociologia pública”: uma discussão emtorno de cruzamentos possíveis e outros nem tanto. Sociologias (UFRGS), v. 11, p. 76-99, 2009.