REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

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janeiro / junho - 2015 volume 31 REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA Pós-Graduação - Escola de Música ISSN Per Musi impressa: 1517-7599 ISSN Per Musi online: 2317-6377

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Realização Patrocínio

janeiro / junho - 2015

volume 31

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 31

REVISTA ACADÊMICA DE M

ÚSICA

janeiro / junho - 2015

Pós-Graduação - Escola de Música

ISSN Per Musi impressa: 1517-7599ISSN Per Musi online: 2317-6377

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ÚSICA

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Pós-Graduação - Escola de Música

ISSN Per Musi impressa: 1517-7599ISSN Per Musi online: 2317-6377

BORÉM, F. Editorial de Per Musi 31. Per Musi. Belo Horizonte, n.31, 2015, p.1-8.

1

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.31, 353p., jan. - jun., 2015.

DOI: 10.1590/permusi2015a3100

Editorial de Per Musi 31 Nesse número 31, a revista Per Musi, qualificada com o QUALIS A1 na CAPES e indexada na base SciELO, traz 15 artigos e 2 resenhas. Começa aqui uma nova fase da revista, cuja editoração em XML permitirá uma inserção internacional, disponibilização e recuperação de informações muito maiores e, quiçá num futuro próximo, a utilização de links conectando os artigos a arquivos de áudio e vídeo. Além disso, como passa a ser exclusivamente online, Per Musi permite que os autores utilizem ilustrações coloridas. Em sua análise da obra Expressão Anímica para piano solo, de 1979, Iracele Vera Livero de Souza expõe procedimentos de indeterminação desenvolvidos pela compositora Eunice Katunda. O exame de aberturas diante do tempo, duração, altura ou efeitos instrumentais, bem como das formas de escritura coextensivas – exata, indicativa ou, ainda, através de gráficos –, contribui não só ao conhecimento mais amplo da música brasileira do século XX, mas também à fundamentação da performance instrumental. Fernando Chaib, João Catalão e Homero Chaib Filho apresentam, em dois artigos consecutivos, um estudo sobre a influência do gesto do percussionista nas sensações de continuidade, suspensão e conclusão de um dado trecho musical. No primeiro deles, os autores fornecem dados adquiridos e analisados a partir dos pesos percentuais, ao passo que o segundo artigo se apoia na técnica estatística AFC – Análise Fatorial de Correspondências. Dentro da complexa relação estabelecida em grande parte do repertório entre a materialidade do percussionista e o texto musical, busca-se entender até que ponto o corpo pode ser um agente auxiliador no processo de transmissão de sensações específicas sobre a música em uma performance. Ênio Lopes Mello, Luiz Ricardo Basso Ballestero e Marta Assumpção de Andrada e Silva investem numa abordagem largamente interdisciplinar, num cruzamento semiológico entre fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, psicologia, filosofia, tendo sempre como bússola as relações entre signos posturais/vocais e a autoimagem na prática do canto lírico. A expressão e a imagem corporal seriam ali figuradas por meio da conscientização da postura e do movimento. Na verdade, expressão e imagem corporal se retroalimentariam numa cadeia performática. A colaboração igualmente interdisciplinar entre Marcelo Parizzi Marques Fonseca, Francisco Cardoso e Antônio Guimarães traz ao público um estudo da relação entre postura corporal e performance musical, tendo a flauta como foco específico. Aspectos centrais da biomecânica da postura como o centro de gravidade corporal, a musculatura da estática e a postura normal em pé e sentada aparecem como parâmetros de alterações que devem ser conscientizadas pelo instrumentista, tendo em vista a qualidade da execução e a longevidade de sua carreira. Rodrigo Bueno Ferreira, Henry Maas, Luiz Cesar Savi, Thiago Corrêa de Freitas e Aloísio Leoni Schmid problematizam a escolha de materiais para a confecção de flautas transversais renascentistas. A partir de uma descrição da história desses instrumentos, sua utilização, suas formas de execução e, principalmente, de sua construção, relativizam a seleção de materiais tradicionais na determinação da qualidade do instrumento, ao mesmo tempo em que demonstram madeiras brasileiras, como a imbuia e a sucupira, como matéria prima empiricamente testada.

BORÉM, F. Editorial de Per Musi 31. Per Musi. Belo Horizonte, n.31, 2015, p.1-8.

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PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.31, 353p., jan. - jun., 2015.

Andréa Cristina Cirino se debruça sobre o tema da aprendizagem musical na maturidade, tendo como interlocutores alunos do curso de extensão universitária Apreciação e Musicalização na Maturidade – UFMG, com idade a partir de 50 anos. A autora põe em evidência a necessidade de adequação dos métodos de aprendizagem musical específicos ao público alvo, conjugando teoria básica e atividades práticas segundo as possibilidades e a experiência prévia do aprendiz. Diante da dificuldade em se estabelecer critérios objetivos para a avaliação do desempenho de um instrumentista, os portugueses Maria Clara Costa e Jaime Filipe Barbosa contrastam a avaliação livre de um grupo de professores de trompete e uma segunda avaliação, inspirada na Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical de Swanwick. A comparação entre as duas abordagens aponta para uma limitação da primeira, onde prevalecem apenas duas dimensões da crítica musical – materiais e expressão – nível mais básico dentro da Teoria Espiral. Ângela Maria Ferrari e Felipe Avellar de Aquino observam como o compositor alemão Max Reger emprega modelos de J.S. Bach na construção de sua Suíte Nº 1, Op. 131c para violoncelo solo. De fato, além de combinar elementos da harmonia do final do século XIX com técnicas contrapontísticas bachianas, o romantismo tardio de Reger se inspira mesmo na escolha de tonalidades ou em transformações e expansões de motivos caros ao universo bachiano. Paralelamente à análise estilística inerente, a abordagem dos autores fornece preciosos subsídios interpretativos. Nahim Marun trata de alguns dilemas interpretativos decorrentes da diversidade editorial na música para piano de Frédéric Chopin (1810-1849). A ampla divulgação das suas primeiras edições na internet, juntamente com as possibilidades de performance trazidas pelas pesquisas históricas, expandiram as referências estabelecidas para sua música e trouxeram mais flexibilidade interpretativa a alguns parâmetros musicais, como direções fraseológicas, escolhas das articulações, timbre instrumental, dedilhados, pedais, rubati e ornamentações. Em sua análise do Prelúdio nº 3 para violão solo de Heitor Villa-Lobos, Daniel Ribeiro Medeiros fornece chaves de interpretação fundamentadas na performance historicamente informada e na intuição informada. Ambas intuição e percepção musical são, nesse estudo de caso, reforçadas por aspectos estéticos e estilísticos. Fabio Scarduelli e Carlos Fernando Fiorini esboçam um panorama dos percursos de técnica e repertório empregados nos cursos de violão “clássico” das universidades públicas (estaduais e federais) brasileiras. Para tal, os autores submeteram um questionário respondido por docentes de 94% dessas instituições. O material elaborado se oferece como ferramenta para reflexão em torno da pedagogia de formação e do perfil dos bacharéis em violão. A partir da observação de movimentos culturais junto a populações baianas e, principalmente, soteropolitanas social e economicamente excluídas, Armando Alexandre Castro e Maria Teresa Franco Ribeiro apontam para o potencial de transformação propriamente política da música. Seguindo pistas teóricas deixadas pela geografia crítica ou a ecologia dos saberes, os autores lançam mão não somente de dados estatísticos oficiais sobre Salvador, mas incluem ainda dados de pesquisa de campo pessoal. O trabalho traz à tona um conjunto considerável de instituições para as quais a música é um vetor estético-pedagógico relevante na transformação social dos cidadãos, no contexto de uma cidade que, distante dos discursos turísticos, apresenta consideráveis índices de pobreza, concentração de renda e desigualdade socioeconômica.

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Jane Maria de Medeiros e Lucília Regina de Souza Machado abordam os fatores existentes e aqueles que ainda deveriam ser moldados para que a rica produção musical belo-horizontina permitisse a elaboração de sua proposta de um Sistema Produtivo e Inovativo Local (SPIL). Tal sistema seria sustentado por um processo social, econômico e político capaz de catalisar essas energias e potencialidades musicais, transformando-as em força motriz de uma estratégia de desenvolvimento local. Nesse processo, as autoras defendem que a cultura seja reconhecida como investimento, e não despesa, com foco no investimento nos valores, na criatividade, na imagem da cidade (no estado, no país e no exterior) e na geração de emprego, renda e inclusão socioeconômica. Seguindo uma retrospectiva histórica e de contextualização da pesquisa empírica sobre o planejamento da performance instrumental, Luís Cláudio Barros estabelece o panorama das principais vertentes temáticas examinadas pela pesquisa científica. Ciente de que o objeto de estudo possui muitas ramificações, abordagens e especificidades, propõe que grande parte dos temas de pesquisa possa ser enquadrada dentro de algumas categorias temáticas de maior abrangência. Iara Luzia Rodriguez trata da prática músico-teatral na Espanha do início do século XVIII, com foco no estudo da zarzuela Acis y Galatea. A autora demonstra, assim, como o teatro foi utilizado pela dinastia Bourbon para fazer sua propaganda política, incorporando elementos da tradição espanhola, bem como da ópera italiana. Rosângela Pereira de Tugny busca se aproximar do discurso de especialistas ameríndios sobre a origem não autoral de suas músicas, onde a escuta ocupa a função de produção. Busca também compreender as limitações dos artistas ocidentais quando tentam colaborar com as formas de trabalho acústico operantes entre estes coletivos. À luz de reflexões de Bruno Latour e Jacques Rancière em torno de temas relacionados às políticas da estética, às noções de “produção” e às fissuras construídas pelas sociedades modernas entre noções de natureza e cultura, a autora toma o percurso do compositor francês Pierre Boulez como forma de problematizar um encontro da produção artística musical dos círculos de compositores de salas de concerto com as cosmosonologias ameríndias. Na Seção de Resenhas – Pega na Chaleira, Débora Andrade apresenta o livro Ampliando o repertório do coro infanto-juvenil: um estudo de repertório inserido em uma nova estética, de Leila Rosa Gonçalves Vertamatti. Já Verônica Oliveira da Silva e Léslie Piccolotto Ferreira trazem uma leitura do livro Alemão para Cantores, de Barbara Schilling Tengarrinha, que trata da dicção e articulação da voz na música. Finalmente, Informamos que Per Musi está disponível gratuitamente nos sites www.scielo.com.br e www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista até o número 30 ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Fausto Borém Eduardo Rosse Fundador e Editor Científico de Per Musi Editor Científico Assistente de Per Musi

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PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.31, 353p., jan. - jun., 2015.

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599 para a versão impressa e ISSN 2317-6377 para a versão online) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As ideias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas bases SciELO, RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Fundador e Editor Científico Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Corpo Editorial Internacional Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra) Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA) Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal) Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Montreal, Canadá) João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal) Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra) Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Melanie Plesch (University of Melbourne, Austrália) Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra) Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina) Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA) Corpo Editorial no Brasil Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas) André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte) André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) Ângelo Dias (UFG, Goiânia) Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte) Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília) Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas) Diana Santiago (UFBA, Salvador) Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas) Fabiano Araújo (UFES, Vitória) Fernando Iazetta (USP, São Paulo) Flávio Apro (UNESP, São Paulo) Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte) José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas) José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa) Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba) Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte) Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande) Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Norton Dudeque (UFPR, Curitiba) Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador) Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas) Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba) Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro) Sônia Ray (UFG, Goiânia) Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro) Vladimir Silva (UFPI, Teresina) O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos Revisão Geral Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Eduardo Rosse (UFMG, Belo Horizonte) Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte) Assistente Editorial Sandra Pugliese Universidade Federal de Minas Gerais Reitor Jaime Arturo Ramírez Vice-Reitora Sandra Regina Goulart Almeida Pró-Reitor de Pós-Graduação Rodrigo Antônio de Paiva Duarte Pró-Reitor de Pesquisa Adelina Martha dos Reis

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Escola de Música da UFMG Prof. Mônica Pedrosa de Pádua, Diretora Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG Coord. Prof. Sérgio Freire Sec. Geralda Martins Moreira e Alan Antunes Gomes Planejamento e Produção Fausto Borém (PROVISÓRIO) Projeto Gráfico: Cedecom/UFMG Diagramação: Fausto Borém (PROVISÓRIO) Acesso gratuito na internet www.musica.ufmg.br/permusi Endereço para correspondência UFMG - Escola de Música - Revista Per Musi Av. Antônio Carlos 6627 - Campus Pampulha Belo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090 Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747 Fax: (31) 3409-4720 e-mail: [email protected] [email protected] PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n.31, janeiro / junho, 2015 - Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2015 n.: il.; 29,7x21,5 cm. Semestral ISSN: 1517-7599 (impresso) e 2317-6377 (online) 1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

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SUMÁRIO Editorial de Per Musi 31 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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ARTIGOS CIENTÍFICOS

1 - Indeterminação na Expressão Anímica de Eunice Katunda:

uma visão interpretativa Indetermination in Expressão Anímica by Eunice Katunda: an interpretative overview . . . . . . . . . . . . . . .

Iracele Vera Livero de Souza

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2 - Gesto na performance da percussão, Parte 1: análise percentual de dados experimentais

Gestures on percussion performance, Part 1: percentage analysis of experimental data . . . . . . . . . . . . Fernando Chaib João Catalão Homero Chaib Filho

31

3 - Gesto na performance da percussão, Parte 2: análise fatorial de correspondências de dados experimentais

Gesture on percussion performance, Part 2: correspondence factorial analysis of experimental data. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Fernando Chaib João Catalão Homero Chaib Filho

60

4 - Postura corporal, voz e autoimagem em cantores líricos Body posture, voice and self-image on lyrical singers . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ênio Lopes Mello Luiz Ricardo Basso Ballestero Marta Assumpção de Andrada e Silva

74

5 - Fundamentos biomecânicos da postura e suas implicações na performance da flauta

The fundamentals of posture’s biomechanics and their implications on the performance of the flute . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Marcelo Parizzi Marques Fonseca

Francisco Cardoso Antônio Guimarães

86

6 - Flautas Transversais Renascentistas: história, construção e experimento com madeiras brasileiras

Renaissance transverse flute: history, construction and experiment with Brazilian woods . . . . . . . . . . . . Rodrigo Bueno Ferreira Henry Maas Luiz Cesar Savi Thiago Corrêa de Freitas Aloísio Leoni Schmid

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7 - Aprendizagem musical na maturidade: diálogo entre teoria e prática

Musical learning in maturity: dialogue between theory and practice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Andréa Cristina Cirino

123

8 - Avaliação da performance instrumental pelos professores de trompete: questões e desafios

The assessment of trumpet's performance by teachers: issues and challenges . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Maria Clara Costa Jaime Filipe Barbosa

134

9 - Suíte Nº 1 para violoncelo solo de Max Reger e a escrita de J.S. Bach: relações de dependência e identidade de linguagem

Max Reger’s Suite Nº 1 for violoncello solo and the writings of J.S. Bach: dependence relations and language identity . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ângela Maria Ferrari Felipe Avellar de Aquino

149

10 - As pesquisas históricas na interpretação de Chopin The historical researches on Chopin’s performance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Nahim Marun

167

11 - Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos: considerações sobre um processo interpretativo

Prelúdio nº 3 by Heitor Villa-Lobos: considerations on the interpretative process . . . . . . . . . . . . . . . . . . Daniel Ribeiro Medeiros

189

12 - O violão na universidade brasileira: um diálogo com docentes através de um questionário

Current situation of teaching classical guitar in the context Brazilian universities . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fabio Scarduelli Carlos Fernando Fiorini

215

13 - Música e desenvolvimento em Salvador (Bahia), à luz da geografia crítica e ecologia dos saberes

Music and development in Salvador (Brazil), by the light of critical geography and ecology of knowledge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Armando Alexandre Castro Maria Teresa Franco Ribeiro

235

14 - O potencial musical de Belo Horizonte como motor de

uma estratégia de desenvolvimento local Belo Horizonte’s musical potential as the driving force for local development . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Jane Maria De Medeiros Lucília Regina de Souza Machado

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15 - Retrospectiva histórica e temáticas investigadas nas pesquisas empíricas sobre o processo de preparação da performance musical

A historical retrospective and research subjects of the empirical research in performance planning . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Luís Cláudio Barros

284

16 - Acis y Galatea: reflexos da Guerra de Sucessão Espanhola na zarzuela de Cañizares-Literes, de 1708

Acis y Galatea: reflections of the War of Spanish Succession in the Cañizares-Literes’s zarzuela, 1708 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Iara Luzia Rodriguez

300

17 - Agência dos objetos sonoros Sonorous Objects Agency . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Rosângela Pereira de Tugny

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SEÇÃO DE RESENHAS – “Pega na Chaleira”

18 - Resenha do livro Ampliando o repertório do coro

infanto-juvenil: um estudo de repertório inserido em uma nova estética

Review of the book Ampliando o repertório do coro infanto-juvenil: Um estudo de repertório inserido em uma nova estética [Expanding the repertoire of the youth choir: a study of the repertorie within in a new aesthetics]. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Débora Andrade

323

19 - Resenha sobre o livro Alemão para Cantores Review of the book Alemão para cantores [German for singers] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Verônica Oliveira da Silva Léslie Piccolotto Ferreira

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SOUZA, I. V. L. Indeterminação na Expressão Anímica de Eunice Katunda.... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p. 9-30.

9 PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.31, 353p., jan. - jun., 2015. Recebido em: 10/11/2013 - Aprovado em: 04/06/2014

DOI: 10.1590/permusi2015a3101

Indeterminação na Expressão Anímica de Eunice Katunda: uma visão interpretativa Iracele Vera Livero de Souza (UNICAMP/ CIDDIC, Campinas, SP) [email protected] Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo verificar os elementos de indeterminação empregados por Eunice Katunda na sua peça para piano Expressão Anímica, composta em 1979, assim como estudar os procedimentos composicionais adotados pela compositora e contribuir com os estudos sobre a música brasileira do século XX. A partir de parâmetros musicais – tempo, duração, altura e efeitos - é observado o emprego da indeterminação, assim como levantados os tipos de notação empregados - notação exata, aproximada, indicativa e gráficos musicais. A metodologia parte do estudo e análise da peça ao piano e do estudo da bibliografia específica sobre análise e notação. Serão feitas propostas para uma possível performance. Palavras-chave: Eunice Katunda; indeterminação na música; análise musical e performance; repertório brasileiro para piano solo.

Indetermination in Expressão Anímica by Eunice Katunda: an interpretative overview

Abstract: The main objective of this paper is to verify indetermination elements used by Brazilian composer Eunice Katunda in her piano piece Expressão Anímica (1979), as well as the compositional procedures adopted by the composer. Departing from the musical parameters – time, duration, pitch and effect - the use of indetermination is analized, as well as all types of notation used in the piece – such as exact, aproximative, indicative notation and music grafics. The methodology consisted of reviewing related literature and music notation studies. Finally, a possible performance is proposed. Keywords: Eunice Katunda; indetermination in music; musical analysis and performance; Brazilian repertory for solo piano.

1. Introdução

Após a segunda Grande Guerra, com o florescimento de uma vanguarda musical, o pensamento iniciado por Schoenberg no dodecafonismo e seguido por Webern e Berg, entre outros, foi além do domínio da altura do som. As composições desses mestres foram estudadas e executadas. O método que as fundamentava (serialismo ao nível das alturas) foi se expandindo para os demais parâmetros musicais como ritmo, articulação, dinâmica e timbre, resultando no serialismo integral ou serialismo total. Da mesma forma os estudos da música de Debussy e Varèse, entre outros, proporcionaram a abertura de um universo de sons - novos timbres, registros e dinâmicas.1 Olivier Messiaen ocupou um lugar de destaque, tendo importante atuação como compositor e professor, atraindo jovens que mais tarde viriam a se destacar no cenário musical, como Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. Essa linha de composição se desenvolveu em vários segmentos: Milton Babitt, em suas Três Composições (1947) serializou a dinâmica associando uma particular para cada forma da série; Pierre Boulez, em sua Structures Ia (1952) - para dois pianos - ao desenvolver seu serialismo, utilizou para cada nota uma específica duração, dinâmica e articulação e em Kreuszpiel (1951), já utilizara essa técnica. Os compositores assimilaram plenamente o resultado do serialismo integral, utilizando-o de formas variadas e bem definidas - um modelo de música que se manteria por um período considerável de tempo. Embora o serialismo integral tenha ampliado as possibilidades composicionais, chega-se a um momento de completa estagnação - o resultado musical

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10 PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.31, 353p., jan. - jun., 2015. Recebido em: 10/11/2013 - Aprovado em: 04/06/2014

permanecia limitado, o que impossibilitava o surgimento de novas ideias. Ao mesmo tempo, as configurações rítmicas em frases cuja estrutura fora elaborada matematicamente, dificultavam e limitavam a execução para os intérpretes. Dentro de uma década, na Europa, o sistema tinha entrado em declínio 2, porém, sua importância no conteúdo histórico musical não pode ser negada. Ainda que se tenha tornado a maior influência sobre os jovens compositores, o serialismo integral não foi a única linguagem deste período. Alguns compositores afastaram a questão do ‘controle total’ em favor de uma música livre, semelhante em alguns aspectos, porém mais variada, espontânea e com profundidade emotiva. De acordo com BRINDLE (2003, p.52-53),

[...] os compositores assimilaram o resultado do serialismo integral [...]. Os princípios rígidos deram caminho à livre invenção e a complexidade se rende a simplificação. Esta música, que pode ser chamada de livre dodecafonismo demonstrou ser durável e continuou a ser o centro da produção de vanguarda durante quinze anos.

Do ponto de vista histórico, o livre dodecafonismo é uma continuação lógica do livre atonalismo praticado nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial.3 No entanto se apresenta agora em um estágio de completa maturidade musical. No livre dodecafonismo, a série é abandonada e a ordem das notas é empregada livremente. Os doze sons cromáticos são usados constantemente dentro da oitava sem nenhuma regra rígida, podendo ser repetidos quantas vezes se quiser, em conformidade com suas necessidades expressivas.4 Assim como no serialismo integral, a configuração rítmica possui as mesmas formas irregulares e proporções assimétricas, sendo, portanto, muitas vezes impossível executá-las com precisão.5 Conforme BRINDLE (2000, p.55),

[...] alguns compositores, reconhecendo estes obstáculos, criaram soluções mais simples. Este processo de simplificação conduziu à adoção de notações gráficas, que colocadas livremente, sugeriam ao intérprete o que ele poderia executar, deixando-o criar seu próprio material, embora colocassem abaixo possíveis restrições.

O desenvolvimento da composição que emprega o livre dodecafonismo foi uma espécie de fuga aos obstáculos criados pelo serialismo integral. Liberdades ao intérprete e aberturas deixadas pelo compositor sempre existiram, em menor ou maior grau na História da Música Ocidental; porém o século XX assistiu ao aparecimento de duas tendências opostas na composição: uma que parte do controle dos elementos musicais e na qual tudo é previsto e comunicado com o máximo de informações na partitura; e outra que deixa alguns parâmetros não determinados, o que permite ao intérprete diferentes escolhas.

Com esse menor controle por parte do compositor e maior responsabilidade criativa por parte do intérprete, a música adquire uma nova amplitude. Alguns elementos musicais deixam de ser determinados, e caberá ao intérprete fazer essa escolha. É o acaso fazendo parte da composição musical, deixando menos marcados os limites entre compositor e intérprete. Estes recursos foram chamados de indeterminação, música aleatória, acaso ou simplesmente improvisação (total ou controlada). Vale lembrar que estes termos foram usados livremente. Se para um determinado compositor indeterminação pode significar operações ao acaso, para outro pode ser o que é bem definido e com um pouco de liberdade apenas em alguns parâmetros musicais. Um elemento de uma peça musical é considerado indeterminado quando escolhido pelo acaso ou se a sua realização não está especificada pelas instruções através da notação musical. Em relação a este assunto KOSTKA (2006, p.285), avalia que estes dois

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processos - mudança na composição e escolha na performance - “formam as duas linhas relacionadas à música experimental, um termo que é apropriado para qualquer música na qual o produto final é mantido deliberadamente além do controle do compositor.”

2. Indeterminação: uma nova tendência do século XX O grau de indeterminação de uma obra musical pode variar muito. O acaso pode ser aplicado em alguns trechos ou na peça inteira; pode ser parcial, quando aplicada em apenas alguns elementos (como altura ou duração), ou total quando aplicado a todos os elementos da composição. Embora a indeterminação na música tenha sido um fenômeno difundido na Europa por volta dos anos 50, observa-se que nos Estados Unidos um grupo de compositores já havia utilizado elementos indeterminados em suas obras, nas primeiras décadas do século XX. Charles Ives, na peça Sonata n. 1, (1902-1910) coloca indicações de repetir ‘duas ou três vezes’ um mesmo compasso ou a possibilidade de manter um acorde por cinco compassos. Henry Cowell, na peça Mosaico (1934-1935), deixa os intérpretes decidirem sobre a ordem em que os fragmentos da partitura serão organizados. Uma das peças de Cowell mais ousada da época foi The Banshee (1925), na qual o executante produz alturas fixas e deslizantes através da manipulação do encordoamento no interior do piano. A escrita para piano foi um campo particularmente fértil para aqueles interessados em experimentar novos sons. No entanto, a maior referência no uso do acaso partiu do compositor americano John Cage nos anos 40, com o seu Piano Preparado. Cage utiliza recursos de outros materiais6, dispostos entre as cordas do piano para produzir novas sonoridades.7 De fato, para compositores como Stockhausen, Boulez e Berio, ancorados na extrema precisão do serialismo integral, essa abertura foi particularmente difícil. Sobre esse assunto, BRINDLE (2003, p.68) relata que “[...] a tradição musical europeia foi construída sobre o princípio de que a música só pode incluir sons precisos, tocados em momentos exatamente definidos e aqueles sons indefinidos, tocados ao acaso, só poderiam produzir uma no music.” Boulez, apesar da admiração por Cage (que era recíproca, até que a divergência estética os separasse), seguiu destino diferente. Na Correspondência Boulez-Cage (1949-1954), os dois importantes compositores esclarecem os caminhos seguidos por eles: Boulez defende o serialismo integral e o uso do acaso controlado, enquanto Cage parte para a indeterminação total. Estas duas vertentes – serialismo e indeterminação - apesar de figurarem como correntes opostas contribuíram para a construção de um novo discurso musical e romperam com a linearidade do pensamento. Conforme esclarece CAMPOS (1998, p.153), “pode-se reconhecer convergências e mútuas influências entre elas.” Quanto à indeterminação como técnica do século XX, SIMMS (1986, p.369) explica que “a aplicação da indeterminação foi chamada ‘aleatória’ por escritores europeus, como Boulez e Lutoslawski, para distingui-la das aplicações mais extensas do acaso entre os compositores americanos.” Ainda que ocorram divergências na concepção e na consideração dos termos, o uso do acaso, como técnica de composição é conhecido por teóricos pelo nome genérico de indeterminação.8

3. A indeterminação na música brasileira

O cenário da criação musical no Brasil, durante as décadas de 1940 e 1950 consiste da influência de duas tendências: por um lado compositores nacionalistas que pesquisavam e assimilavam material musical de origem folclórica e popular, empregando-o conforme estruturas formais consagradas; e por outro, compositores que procuravam novos caminhos de expressão e de liberação de todas as normas. A contribuição à modernização da composição musical brasileira inicia-se com um grupo de novos compositores que, com ou sem uma primeira formação acadêmica, se entregaram às

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descobertas de novas perspectivas de organização do espaço musical. KATER (2000, p.15) menciona que o Grupo Música Viva9, “torna-se responsável por um intenso movimento de revitalização artística, pedagógica e cultural.” Este movimento de vanguarda musical terá como proposta o advento de uma nova era, sem que haja lugar para preconceitos e receitas acadêmicas. O Grupo de Koellreutter tinha como objetivo acompanhar e situar a música brasileira em conformidade com as novas experiências musicais européias. O serialismo integral teve influência sobre estes compositores que haviam se dedicado ao dodecafonismo.10 Consequentemente, os caminhos do pós-serialismo foram os mais seguidos pelos compositores brasileiros, provavelmente porque compreendiam a síntese buscada: princípios estruturais definidos, porém não excessivamente rígidos (abertura à indeterminação) e, portanto em acordo com o ideal de expressão buscado por eles. NEVES (1977, p.154) relata que “a influência de Cage sobre esses compositores brasileiros foi das mais importantes, levando-os a questionamentos que colocavam em jogo não só as diferentes maneiras de criar, mas o próprio ato criador.” Ocorrem desse modo as primeiras experiências aleatórias por compositores brasileiros. Criada por um grupo de poetas que lançavam as bases da poesia concreta surge em São Paulo a revista Invenção que, no seu terceiro número apresenta o manifesto Música Nova: compromisso total com o mundo contemporâneo. Reflete a preocupação de músicos e compositores, entre os quais Damiano Cozzella, Rogério Duprat, Gilberto Mendes e Willy Correia de Oliveira.11 O compositor Gilberto Mendes (citado por SANTOS, 1995, p.187) esclarece:

Nós, como Grupo Música Nova, somos pioneiros de toda a espécie de vanguarda imaginada no Brasil. Música aleatória, teatro musical, microtonalismo em música, toda a estética do estrutural, do serialismo integral, nós somos os pioneiros de todas estas manifestações. Isto é o que nos difere do Manifesto Música Viva que era eminentemente schoenberguiano, enquanto o Música Nova vigorou no sentido Boulez/Stockausen para frente, ou seja, outra linha.

Como uma técnica de composição surgida a partir da segunda metade do século XX, pode-se observar que ainda há a necessidade de melhores estudos e informações sistematizadas na música brasileira. Assim, este estudo foca a compositora Eunice Katunda, membro do Grupo Música Viva e sua contribuição para a indeterminação na música brasileira. Eunice Katunda (1915-1990) assumiu uma postura político-ideológica de forma visceral e, dessa mesma maneira, buscou uma criação legítima apoiada em manifestações do folclore nacional. Anos mais tarde, realiza um percurso semelhante ao do seu companheiro Santoro e retoma a música mais amplamente, como um laboratório expressivo. Compõe em 1979 Expressão Anímica, uma peça que utiliza elementos indeterminados em sua composição. Dedica essa obra a H.J. Koellreutter, o mentor do Música Viva e seu ex-mestre. A peça Expressão Anímica foi estreada em Santos, no XV Festival Música Nova (27 de setembro de 1979) e foi dedicada aos signatários do Manifesto Música Viva de 1946. O Jornal O Estado de São Paulo, numa cobertura jornalística não assinada, faz referência a esse dia:

[...] O sexto dia do XV Festival Música Nova de Santos - na última quinta-feira - foi inteiramente dedicado aos signatários do Manifesto Música Viva, que surgiu em 1946, marcando uma nova tendência na arte musical, no Brasil. A pianista e compositora Eunice Katunda, participante do movimento, interpretou antigas e recentes obras de seus companheiros, além de Expressão Anímica composta por ela este ano.” (O Estado

de São Paulo,1979, p.18)12

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Esse estudo pretende analisar e esclarecer os procedimentos composicionais empregados pela compositora na peça Expressão Anímica, observando o emprego da indeterminação bem como levantando os demais tipos de material utilizados na peça. Parte das seguintes questões: quais os elementos de indeterminação empregados pela compositora na Expressão Anímica? Qual a participação do intérprete na criação da obra? Ao procurar solucionar estas questões, o presente estudo tem por finalidade dar enfoque à aplicação dessa técnica na obra pianística de Eunice Katunda, através da peça Expressão Anímica, tornando possível verificar o grau de inserção e de participação do intérprete. Paralelamente, pretende-se fazer o registro da grafia musical empregada pela compositora bem como suas respectivas interpretações.

4. Análise: Expressão Anímica

Na Expressão Anímica, Eunice Katunda emprega tipos de notação da linguagem tradicional, assim como símbolos que denotam os novos procedimentos composicionais e revelam a preocupação da autora na ampliação dos conceitos básicos da linguagem musical. O presente estudo pretende fazer uma abordagem da escrita musical empregada na peça como uma representação dos sons, observando a forma de registro dessa informação musical e, ao lado do estudo das técnicas da composição, trazer subsídios para uma possível interpretação. Com base nesta proposta as investigações se apoiaram em Erhard Karkoschka (1972, p.19), que classifica a notação segundo quatro tipos principais: (a) notação exata, (b) notação aproximada, (c) notação indicativa e (d) gráficos musicais. O autor não explica o que significa cada termo, apenas afirma que “[...] a notação está dividida em quatro níveis; enquanto a precisão da notação diminui entre um nível e outro, a importância do efeito gráfico aumenta”. Para esta análise propõem-se os seguintes termos com as respectivas definições:13 (a)notação exata - tipo de notação que visa um maior grau de precisão; (b)notação aproximada - significa que existem possibilidades de escolha dentro de limites fixos; (c)notação indicativa - não limita rigorosamente, mas deixa livre do rígido padrão de compasso e permite ao intérprete sentir, mais do que contar, as proporções qualitativas das durações; (d)gráficos musicais- escrita imaginativa em forma de desenhos/arabescos ou outros tipos de ilustrações sugestivas.

KARKOSCHKA (1972, p.19) explica que, muitas vezes, os limites entre estes quatro tipos de notação não são muito claros e que o mesmo símbolo pode ser classificado de diferentes maneiras, dependendo do contexto no qual se encontra e da finalidade para a qual se destina. Do ponto de vista do intérprete, a notação pode ser considerada como um dos aspectos mais relevantes da peça. É através da grafia empregada que a compositora irá determinar o grau de liberdade dado ao intérprete no momento da execução. Por intermédio da decodificação correta destes símbolos (muitas vezes sem a devida clareza) e das instruções o intérprete poderá realizar uma interpretação coerente. 4.1. Justaposição de Módulos A peça apresenta vinte Módulos constituídos de materiais diversos que empregam uma tipologia quanto à altura, ritmo, duração, timbre e intensidade. Alguns Módulos são determinados, outros, porém, apresentam uma estrutura livre para o intérprete. A partir do

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material de Expressão Anímica tem-se como característica relevante a exploração do timbre. Para melhor compreensão quanto aos elementos determinados e indeterminados, esta análise foi subdividida em duas categorias: trechos musicais executados no teclado do piano e trechos musicais executados no encordoamento do piano. Levando-se em consideração que (A) indica os trechos executados no teclado e (B) os realizados no encordoamento do piano, cada Módulo se apresenta conforme demonstra o Ex.1:

Mod. 1 A

Mod. 2 B/A

Mod. 3 A

Mod. 4 B

Mod. 5 B/A

Mod. 6 A

Mod. 7 A

Mod. 8 A

Mod. 9 B

Mod. 10 A

Mod. 11 B/A

od. 12 A

Mod. 13 B/A

Mod. 14 A

Mod. 15 A

Mod. 16 A/B

Mod. 17 A

Mod. 18 A

Mod. 19 B

Mod. 20 B

Ex.1-Módulos A (executados no teclado) e B (executados nos encordoamentos do piano) em Expressão Anímica de Eunice Katunda.

4.2. Símbolos e indicações Os exemplos a seguir relacionam os símbolos e as indicações que ocorrem em Expressão Anímica e suas respectivas maneiras de executar ao piano, conforme os seguintes parâmetros: (a) Tempo - com base no andamento em que se interpretará cada Módulo. (b) Duração - conforme ANTUNES (1989, p.75) “[...] no processo do fenômeno musical verifica-se a existência de dois tipos de duração: a duração física e a duração psicológica. A primeira pode ser medida com um cronômetro; a segunda não. A primeira é absoluta, enquanto a segunda é relativa e subjetiva.” (c) Altura – conforme ANTUNES (1989, p.23) é o “que permite situar o som em um espaço escalonado imaginário, de modo a relacionarmos quanto um é mais agudo ou mais grave que outro.” (d)Tempo, duração e altura - enfatizam os três parâmetros simultaneamente. (e) Efeitos - característica tímbrica em diferentes níveis de intensidade. 4.2.1. Tempo As expressões 10 x 56 ca.; 10 x 46 ca.; 3 x 40 e 5 x 56, indicam que deve-se sustentar a nota cerca de 10, 3 ou 5 batidas do metrônomo sugerido. Outras expressões de tempo como rápido, muito lento, menos lento também são encontradas na peça. 4.2.2. Duração Os Exs. 2a, 2b e 2c mostram os símbolos empregados quanto à duração. O pedal do instrumento explora a ressonância dos sons e é um recurso necessário para esta execução.

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Ex.2a- Símbolo de duração (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.2b- Símbolo de duração (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.2c- Símbolo de duração (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

4.2.3. Altura Alguns dos símbolos empregados para a altura necessitam do uso de uma dedeira. Note-se que a compositora emprega diferentes símbolos para uma mesma execução. Os Exs. 3a, 3b e 3c mostram estes símbolos:

Ex.3a-Símbolo de altura: uso de dedeira no encordoamento do piano.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.3b-Símbolo de altura: uso de dedeira no encordoamento do piano.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.3c-Símbolo de altura: uso de dedeira no encordoamento do piano.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

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Ainda ocorrem símbolos que determinam apenas a região do instrumento os quais deverão ser tocados e as expressões registro médio e registro grave, como mostram os Exs. 4a e 4b:

Ex.4a-Símbolo para região: glissando com dedeira no encordoamento do piano.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.4b-Símbolos para registro do piano. (Expressão Anímica de Eunice Katunda). Para ser executado com uma baqueta ou com um prato no encordoamento do piano, empregam-se os símbolos demonstrados no Exs. 5a e 5b. Note-se que a execução com o prato determina apenas a região do instrumento enquanto que com as baquetas, a altura está determinada.

Ex.5a-Símbolos: executado com um prato e com uma baqueta de feltro.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.5b-Símbolos: executado com um prato e com uma baqueta de feltro. (Expressão Anímica de Eunice

Katunda).

Ocorre ainda cluster com alturas delimitadas entre as teclas pretas e brancas do piano.

Determinado pela compositora, os clusters deverão ser tocados com a palma das mãos e com os antebraços. Observe-se os Exs. 6a e 6b:

Ex.6a-Clusters: alturas determinadas, executados com a palma da mão.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

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Ex.6b-Clusters: alturas determinadas, executados com o antebraço.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda). 4.2.4. Efeitos O símbolo demonstrado no Ex.7 apresenta uma total liberdade na interpretação. No âmbito das regiões estipuladas, com notas ascendentes e descendentes, o intérprete deverá criar efeitos de ondas (in waves).

Ex.7-Efeitos de ondas: liberdade de interpretação. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ao se permitir a repetição ad libitum no trecho proposto, este símbolo dá certa liberdade ao intérprete, como mostra o Ex.8:

Ex.8-ad libitum, certa liberdade ao intérprete. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

4.3. Elementos musicais determinados e indeterminados Por elementos de escrita determinada compreendem-se aqueles cuja notação musical segue parâmetros fixos de altura, ritmo, dinâmica e timbre; e por elementos indeterminados, entendem-se aqueles que apresentam partes em aberto e que o intérprete deve decidir, o que lhe permite uma variedade de escolhas. Módulo 1(A). Apresenta a Ideia 1 escrita sobre as teclas pretas do piano e de direção descendente, explorando a ressonância do conjunto dos sons através da sustentação do pedal direito do instrumento (mesmo que não indicado pela compositora). A peça determina que a duração é 10 x 56 ca.. Esta citação faz referência ao período de sustentação, a partir da execução de todos os sons, para efeito de ressonâncias, pois não está indicado em qual andamento deve-se executar cada nota. A duração do som está expressa através de uma linha sinuosa, contínua de comprimento e que sugere o declínio das ondas sonoras. Mesmo com a indicação, é empregado o tipo de notação aproximada. Ao observar os andamentos propostos em trechos similares a este, sugere-se ao intérprete um andamento de MM.144 para cada colcheia. O tempo, por conseguinte, está

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indeterminado e cabe ao intérprete tomar essa decisão. Para a altura, dinâmica e articulação, foi empregado o tipo de notação exata. A intensidade é definida em ff assim como a articulação se propõe um non legato. Cada uma das pequenas ligaduras sobre cada som deve vir acompanhada de sua ressonância (prolongamento amortecido naturalmente). O intérprete deve dar ênfase a esse Módulo, visto que apresenta a Ideia principal que irá ser apresentada inúmeras vezes no decorrer da peça. Observe-se o Ex.9:

Ex.9 - Módulo 1 de Ideia 1: tempo e duração indeterminadas, dinâmica determinada (Expressão

Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 2(B/A). É executado no encordoamento do piano com o uso de uma dedeira e, no final do Módulo, no teclado com a reapresentação da Ideia 1 em mf. Apresenta notação exata quanto à altura, intensidade e articulação nas duas maneiras de explorar o instrumento (teclado e encordoamento). As notas dedilhadas no encordoamento antecipam a linha melódica que será apresentada no Módulo 3, porém com a duração indeterminada. O tipo empregado para a duração é notação indicativa, expressa através de uma linha contínua de comprimento proporcional. A compositora não especifica o tempo deste Módulo e cabe ao intérprete tomar decisões, realizando o ritmo e as durações através da avaliação dos comprimentos dos sons por meio de uma correlação espaço-tempo. Outra sugestão para o intérprete é a realização da segunda parte deste Módulo como se fosse um eco. Observe-se o Ex.10:

Ex.10-Módulo 2: tempo e duração indeterminadas, dinâmica determinada e duração proporcional ao comprimento das linhas (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 3(A). Inteiramente executado no teclado. Todos os elementos são determinados. Uma única indicação de duração indeterminada ocorre no final do Módulo, com o emprego da fermata sobre a nota Dó. O tempo apresenta uma notação exata, assim também como para altura, duração, ritmo e articulação. Inicia-se com uma linha melódica na região aguda do instrumento com a seguinte citação - Kausika.14 Esta linha se repete com inclusão de novos sons, seguida de uma reapresentação da Ideia 1 (Módulo 1) com variação em menor extensão e arpejos. A dinâmica não está indicada, mas propõe-se que o intérprete realize os dois trechos com intensidades diferenciadas: a primeira vez forte e a segunda mezzo piano, lembrando-se de concluir o trecho sobre um sfz. Observe-se o Ex.11:

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Ex.11-Módulo 3 com variação da Idéia 1: altura, tempo e duração determinadas. (Expressão

Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 4(B). Inteiramente tocada no encordoamento do piano com uso de uma baqueta de feltro. A altura é relativa, com indicação apenas de registro grave e registro médio. O intérprete, ao bater com a baqueta na região sugerida, produzirá um efeito percussivo abrangendo um número de harmônicos. Para a altura, emprega a notação aproximada, pois dentro dos limites propostos existem possibilidades de escolha. O ritmo está determinado na maioria dos grupos de sons, apesar de não haver marcação de compasso. Deve-se tocar com base na proporção dos valores, exceto para duas notas longas, onde se observa uma linha contínua e a expressão deixar vibrando. O tempo está determinado apenas sobre alguns sons (2 x 40) e da palavra apressando no final do Módulo. Quanto à dinâmica e a articulação, o tipo de notação é exata. O intérprete deve decidir com antecedência quais alturas apresentam um melhor resultado dentro do contexto musical, principalmente aquelas tocadas no registro médio. O pedal não está indicado e deve ser colocado apenas para as batidas prolongadas. Observe-se no Ex.12 o tipo de notação utilizada pela compositora:

Ex.12-Módulo 4: altura indeterminada, ritmo e dinâmica determinados. (Expressão Anímica de

Eunice Katunda).

Módulo 5(A/B). Explora recursos dos dois timbres: no teclado e no encordoamento do piano com o uso da dedeira. A altura tem a notação exata nos dois recursos tímbricos, assim como a dinâmica. O tempo está determinado, porém a compositora indica uma linha de sustentação dos sons, o que torna a duração um elemento indeterminado, cabendo ao intérprete essa decisão. A duração se torna indefinida também no emprego das apojaturas: as duas primeiras devem ser tocadas de maneira mais curta possível no encordoamento e as duas últimas apojaturas mais longas, cabendo ao intérprete decidir. Outro fator importante de observação é que não se deve interromper o som nas passagens do Módulo 4, 5 e 6. A expressão segue confirma esta continuidade, como se pode observar no Ex.13:

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Ex.13-Módulo 5 no encordoamento com uso de dedeira: altura determinada e duração indeterminada.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 6(A). Este Módulo tocado inteiramente no teclado apresenta um motivo -Tema do Sonho - na região aguda do instrumento. Este motivo vem intercalado com a Ideia 1, com arpejos e dinâmica diferenciada. O tempo está determinado com tipo de notação exata, enquanto que a duração se alterna entre determinada e indeterminada. Existe um paradoxo na notação: a compositora indica o tempo (3 x 40), porém emprega uma linha de sustentação dos sons, deixando o intérprete livre para decidir. A dinâmica e as articulações apresentam um tipo de notação exata. Verifica-se também a preocupação com o recurso tímbrico, no emprego da expressão cristalino e nos contrastes das Ideias em regiões opostas do piano. A Ideia 1 parece calar a Ideia 2, pois surge antes que a mesma se conclua. Observe-se os Exs.14a e 14b:

Ex.14a-Módulo 6 com Tema do Sonho: altura determinada e

duração indeterminada. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.14b-Módulo 6 com Ideia 1 justaposta a Ideia 2: altura determinada e duração indeterminada

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 7(A). A compositora não deixa claro onde será executado esse Módulo. Sugere-se que seja tocado no teclado (in waves), criando efeitos de ondas, intensificado pelos crescendos e decrescendos. Explora a ressonância dos sons, amparado pela sustentação do pedal direito do instrumento. A notação sugere apenas a trajetória que deve ser seguida pelo intérprete para que se crie o efeito de ondas. É aconselhável que o intérprete determine no estudo quais notas serão o pivô neste percurso, o que permitirá um maior equilíbrio sonoro que se remeta a ondas. O Módulo não apresenta nenhuma determinação rítmica e a liberdade do intérprete se faz confirmar com a palavra ad libitum.

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A interpretação envolve a improvisação sobre um tipo de notação indicativa, pois apenas delineia o trajeto marcado pelos sinais, definido apenas como região. Sugere-se que o intérprete escolha o punho fechado para execução e o polegar aberto como guia das notas pivô. Observe-se o Ex.15:

Ex.15-Módulo 7 com efeitos de ondas improvisadas pelo intérprete: elementos indeterminados

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 8(A). Tocado inteiramente no teclado. A Ideia 1 é novamente apresentada com variação rítmica. O tempo, duração, altura, articulação e dinâmica são determinados e apresentam notação exata. Apenas com a reapresentação da Ideia 1 surgem elementos indeterminados, como duração, com tipo de notação aproximada. A nomenclatura afrettando (acelerando gradativamente), é um elemento indeterminado de andamento, ficando a cargo do intérprete essa escolha. A mesma Ideia 2 do Módulo 6 se repete com uma pequena variação no ritmo e timbre sobre um ostinato na linha inferior. Na indicação de tempo, verifica-se que a compositora empregou uma mesma pulsação para o Módulo (= 56). Ao apresentar os mesmos elementos da Ideia 1, com outra figuração, o intérprete deverá fazer a execução relativa deste trecho. Pode-se cogitar que esse Módulo é a continuação do Módulo 6, interrompido apenas pelos efeitos tímbricos do Módulo 7, pois apresentam os mesmos elementos. O intérprete deve explorar a ressonância do último bloco sonoro, permitindo que se dê seguimento ao Módulo seguinte. Observe-se o Ex.16:

Ex.16-Módulo 8 com variação da Ideia 2 sobre ostinato: elementos determinados (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 9(A/B). É tocado primeiramente no encordoamento do piano, com dedeira. A altura é um elemento determinado com tipo de notação exata, porém o tempo e a duração são indeterminados. O tipo empregado para a duração é notação indicativa, expressa através de uma linha contínua de comprimento proporcional. Não está especificado o

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tempo deste Módulo, portanto cabe ao intérprete tomar decisões, realizando o ritmo e as durações através da avaliação dos comprimentos dos sons por meio de uma correlação espaço-tempo. Na 2ª parte do Módulo, notas tocadas no teclado são sobrepostas aos sons no encordoamento, explorando a diversidade tímbrica. Neste trecho as alturas continuam determinadas e diferenciadas pelo tempo que agora se apresenta determinado: (4 x 56), (3 x 56), (2 x 56). As figuras, breve e longa colocadas na pauta apenas sugerem ao intérprete que deve haver uma sustentação desses sons, mas não faz referência ao valor real. O intérprete dará relevância à linha contínua e decidirá pela sua experiência e bom gosto. Sugere-se também que o intérprete meça a intensidade com que tocará os sons nas teclas, para que não se perca o brilho dos sons produzidos no encordoamento. Fica implícito o uso do pedal direito do instrumento. Observe-se o Ex.17:

Ex.17-Módulo 9 com dedeira no encordoamento do piano: altura determinada,

duração e tempo indeterminados. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 10(A). Tocado no teclado do piano. Todos os elementos são determinados com tipo de notação exata. Apenas a fermata, cesura (suspensão da emissão sonora) e o final do Módulo apresentam duração indeterminada. O intérprete deverá prolongar os sons registrados com uma linha de prolongamento até o compasso seguinte (utilizando o pedal do instrumento), permitindo a ressonância destes sobre os novos elementos que surgem. Atenção especial ao emprego do pedal nas duas últimas notas do Módulo: levantar o pedal na nota Mi e abaixá-lo somente após tocar o Dó como mostra o Ex.18:

Ex.18-Módulo 10: notação exata e duração indeterminada proporcional ao comprimento

das linhas. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 11(A/B). Inicialmente executado no encordoamento do piano com um prato de percussão e a seguir fazendo uma sobreposição com o teclado. A altura é um elemento indeterminado, já que apenas a região fica sugerida (registro médio), empregando um tipo de notação aproximada. Enquanto se ouve a ressonância dos sons percutidos pelo prato sobre o encordoamento, toca-se no teclado uma melodia cuja notação é exata. Haverá a reverberação de várias alturas, soando como um cluster nas cordas. O tempo e a duração estão determinados, o intérprete deve observar que a peça contém subdivisão de compasso, porém não há coerência com a duração proposta. Com a notação exata do ritmo (na linha inferior deste Módulo), o intérprete deverá aguardar o tempo antes de entrar com a baqueta no compasso seguinte. A compositora não registra uma nova utilização da baqueta, mas isto se confirma pela similaridade da notação empregada. O parâmetro rítmico se sobressai, principalmente pelo caráter do timbre, realizando um

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diálogo entre o ritmo do encordoamento e o do teclado. Fica a critério do intérprete a escolha do tempo certo da entrada das últimas notas do Módulo, já que se encontra registrado até desaparecer. Propõe-se também que se execute este trecho após o amortecimento dos sons vibrados pela baqueta. No final do Módulo reaparece a Ideia 1 seguida de duas notas no extremo grave do instrumento, em sfz. Neste caso, a duração é indeterminada. Estão demonstrados nos Exs.19a e 19b:

Ex.19a-Módulo 11 com prato no encordoamento: tempo e duração indeterminados.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.19b-Módulo 11 com baqueta no encordoamento: tempo e duração indeterminados. (Expressão

Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 12(A). Inteiramente executado no teclado do piano. De caráter rítmico, apresenta notação exata para todos os elementos musicais. O tempo é determinado - bem medido. Na linha do baixo aparece um ostinato em grupo de quatro notas repetidas nove vezes na região mais grave do instrumento. Sobre este ostinato ocorre uma linha melódica que traz recordação da mesma Ideia do Módulo 8, porém com variação quanto ao ritmo. Todos os parâmetros dos sons estão determinados. A maior dificuldade para o intérprete é manter regular a subdivisão rítmica sobre o ostinato até o final. Observe-se o Ex.20:

Ex.20-Módulo 12 com ostinato e elementos estruturais

determinados. (Expressão Anímica de Eunice Katunda). Módulo 13(A/B). Tocado no teclado e no encordoamento do piano. No teclado aparecem clusters cromáticos com as duas mãos espalmadas sobre as teclas. No encordoamento, cordas beliscadas com dedeiras. A altura e a dinâmica possuem notação exata nas duas modalidades. O tempo e a duração são indeterminados e o tipo empregado para a duração é notação indicativa, expressa através de uma linha contínua de comprimento proporcional. O tempo também não está determinado e cabe ao intérprete tomar decisões, realizando o ritmo e as durações através da avaliação dos comprimentos dos

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sons por meio de uma correlação espaço-tempo. Quanto à dinâmica, a compositora sugere que o intérprete equilibre entre os sons produzidos nas cordas beliscadas e os clusters. Quanto aos clusters, o intérprete deve utilizá-lo dando tratamento percussivo ao piano, observando que os limites superiores e inferiores das alturas estão determinados com exatidão. A compositora sugere: (x) polegar, na horizontal, abrange as teclas brancas - escolher uma melhor forma de posicionamento das mãos, conforme sua estrutura para que todos os sons sejam atacados simultaneamente. Observe-se o Ex.21:

Ex.21-Módulo 13. Clusters cromáticos com âmbito determinado. (Expressão

Anímica de Eunice Katunda). Módulo 14(A). Inteiramente tocado no teclado. Este Módulo está construído sobre a Ideia 1, variada em andamento, ritmo, intensidade, região e tempo. Para que se explore a ressonância desses grupos de sons, reforçados pelo emprego do pedal direito do instrumento, a duração tem notação aproximada, enfatizada pela expressão - deixa soar - e uma linha sinuosa que sugere o declínio das ondas sonoras. A fermata sobre a barra de compasso no final do Módulo também é um elemento que colabora com a indeterminação da duração. Como a compositora não coloca símbolo de compasso, apesar de dividir em barras, utiliza a palavra rápido sobre um grupo de quiálteras (sete e cinco notas). Sugere-se que este trecho seja interpretado atribuindo valores proporcionais ao sugerido anteriormente (= 144) até o final do Módulo. Os demais elementos são determinados e possuem notação exata. É bastante significativa a exploração tímbrica: contrastes entre forte e pianíssimo, regiões extremas do piano, acentos e o recurso do pedal direito do instrumento para efeitos de ressonância. Observe-se os Exs. 22a e 22b:

Ex.22a-Módulo 14 com Ideia 1 e suas variações em tempo, ritmo e dinâmica.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Ex.22b-Módulo 14 com Ideia 1 em quiálteras.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

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Módulo 15(A). Apresenta-se em um trecho breve tocado no teclado. Inicia-se com a Ideia 1 na região aguda com variação rítmica e sobreposto a notas na região grave, cuja articulação emprega staccatos e sfz. Todos os elementos musicais são determinados e o tipo é notação exata, exceto para a fermata na barra final e a cesura que antecede as três notas finais, executadas de ff a pp, na região grave. Como recurso de diversidade, o intérprete deverá ser preciso e seguir a notação rítmica estipulada pela compositora, mantendo o valor exato de cada som, demonstrado no Ex.23:

Ex.23-Módulo 15 com Ideia 1 e variação rítmica sobreposta a notas

na região grave. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 16(B/A). Inicia-se no encordoamento do piano com uso da dedeira seguido da entrada no teclado. A altura é um elemento determinado e tem notação exata nas duas modalidades. A duração e o tempo são indeterminados e o tipo empregado para a duração é notação indicativa, expressa através de uma linha contínua de comprimento proporcional. A compositora não especifica o tempo deste Módulo e cabe ao intérprete decidir, realizando o ritmo e as durações através da avaliação dos comprimentos dos sons por meio de uma correlação espaço-tempo. Para cada nota beliscada nas cordas uma é executada simultaneamente no teclado, exceto sobre a quinta nota do teclado, com somente três cordas dedilhadas. O pedal do instrumento deverá ser mantido todo o tempo. Observe-se o Ex.24:

Ex.24-Módulo 16: altura determinada, tempo e duração indeterminados. (Expressão Anímica

de Eunice Katunda).

Módulo 17(A). Inteiramente tocada no teclado. Inicia-se com a Ideia 1 em menor extensão, com variação rítmica e acréscimo de elementos. Essa Ideia 1 vem justaposta com a Ideia 2, também com variação rítmica e mudança de região. Todos os elementos são determinados e possuem notação exata. Apenas na apresentação da Ideia 1 a duração é indeterminada com tipo de notação aproximada, explorando a ressonância dos sons. A característica principal desse Módulo é o contraste entre as duas Ideias com exploração do timbre: Ideia 1- região grave e Ideia 2 - região aguda, com dinâmica mf a pp. Ocorre que o tempo está sugerido (= 56) proporcionando a subdivisão exata dos valores, porém a linha contínua e sinuosa no final de cada compasso propõe (3x56) com a expressão deixar vibrar. Cabe ao intérprete decidir se essa duração é suficiente para que ocorra o declínio dos sons. Depois da terceira reapresentação dessa Ideia 1, observa-se que a compositora não determina a duração, apenas coloca uma linha ou

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deixa sem nenhuma notação. Apesar disso, há a necessidade de que se prolongue o som, mesmo que este efeito dure menos que o anterior. Notam-se também acentos colocados sobre as notas, como mostrado no Ex.25:

Ex.25-Módulo 17 com Ideia 1: duração indeterminada. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 18(A). Tocado no teclado, percorre toda sua extensão em movimentos rápidos e precisos. Todos os elementos são determinados e a notação é exata. Exceção para a duração nos finais das notas longas e após o cluster que apresentam notação aproximada. O cluster cromático apresenta uma extensão maior e está indicado para ser tocado com os antebraços, deixando vibrar (ca. de 10 vezes 56 batidas por minuto), similar à duração empregada no Módulo 1. Todo o Módulo deve ser tocado em f, crescendo molto e com repetição ad libitum. A repetição contínua da série de alturas dadas sugere um crescendo molto, o que também pode sugerir um aumento do andamento. O término da repetição pode ser salientado dando ênfase às três últimas notas até a primeira do grupo seguinte. Fica a critério do intérprete em quantas vezes repetirá o trecho. É o Módulo mais intenso da peça, demonstrado no Ex.26:

Ex.26-Módulo 18: repetição ad libitum. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 19(B). Este Módulo realiza um contraste com o Módulo anterior em andamento (muito lento) e em timbre (cordas beliscadas). A princípio executado nas cordas com a dedeira e mais tarde utilizando a dedeira e a unha para tocar em cordas duplas. A altura e a intensidade são elementos determinados e possuem notação exata. A duração é indeterminada e o tipo empregado é a notação indicativa, expressa através de uma linha contínua de comprimento proporcional. O tempo está determinado em muito lento e menos lento. Observe esta demonstração no Ex.27:

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Ex.27- Módulo 19. cordas duplas beliscadas com altura determinada e duração

indeterminada. (Expressão Anímica de Eunice Katunda).

Módulo 20(B). Inteiramente tocado no encordoamento, com dedeira ou com a borda do prato, indicado pela compositora. O tempo determinado de (76 cada) e (46 ca) sugere que cada indicação do glissando sobre o encordoamento dure o tempo mencionado e que se sustente o pedal do instrumento após a execução de três glissandi na região grave e quatro na região média, explorando a ressonância desses sons. Para este efeito a duração é indeterminada, com notação aproximada, proposta pela linha sinuosa de declínio do som. Não apresenta altura determinada, apenas glissandi ascendentes por regiões: grave, médio e agudo. A dinâmica e o ritmo são determinados e possuem notação exata. O Módulo 20 realiza um desenho ascendente, partindo da região grave, percorrendo toda extensão até a região aguda (rall. e subindo). Observem-se os diferentes tipos de setas para os glissandi, servindo de orientação para o intérprete. Quando a altura é colocada entre parênteses indica que se deve partir desta em diante para realizar o glissando; quando não consta essa indicação se deve partir de qualquer uma, apenas tendo em vista a região. Observe-se o Ex.28:

Ex.28-Módulo 20: glissandi no encordoamento do piano, região e duração determinadas.

(Expressão Anímica de Eunice Katunda).

5. Considerações Finais

No estudo da peça foi possível fazer um reconhecimento dos diversos elementos de indeterminação e de efeitos, exigindo do intérprete alguma escolha, conforme seus critérios particulares. A peça delega certa liberdade ao intérprete ao utilizar tipos de notação diferenciada da tradicional e ao solicitar efeitos de ressonância dos sons. Na estruturação da peça a compositora dá ao intérprete indicações nas quais a indeterminação possibilita uma margem de participação criativa, porém exerce certo controle sob suas ações. Alguns Módulos colocam o intérprete como responsável pela realização da obra; no entanto, haverá sempre um guia que o direcionará, a altura e/ou a duração. As instruções da compositora quanto aos procedimentos, símbolos de notação e acessórios são colocadas diretamente na partitura. No âmbito geral predomina o emprego da notação exata (Módulos 3, 6, 8, 10, 12, 14, 15 e 17), mas também emprega a notação indicativa e notação aproximada. As indicações de altura quase sempre são exatas, enquanto a duração é aproximada ou indicativa. Apesar desta proposta subjacente à coparticipação criativa, a peça apresenta uma Ideia que lhe dá unidade (Módulo 1). Deve-se aqui relevar alguns pontos: se a duração está determinada com marcação de

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metrônomo, fica contraditória a linha contínua colocada à frente. Para esse efeito está implícito o uso do pedal do instrumento, mas este nem sempre é indicado pela compositora. Cabe ao intérprete tomar essa decisão, priorizando o efeito das ressonâncias. Outra atitude contraditória é a utilização da barra de compasso, desnecessária, já que não existe divisão métrica. Assim também ocorre com a armadura de clave. O preparo desta peça exige do intérprete, além da compreensão dos símbolos e notações (aqui apresentados, já que não há uma bula), também a busca de um acessório adequado para a execução. Diga-se da escolha das baquetas, do prato e da dedeira para a execução no encordoamento. Passada por essa experiência, a autora deste trabalho afirma que a ponta da baqueta deve ser pequena o suficiente para que, ao percutir o encordoamento do piano, atinja apenas uma corda - a altura sugerida pela compositora – pois de tamanho maior, percutiria duas ou mais cordas. Ainda, para a escolha do prato, deve-se levar em consideração o seu tamanho. A região colocada para que se percuta o prato nos encordoamentos esbarra em um problema de construção do piano – as barras de aço que sustentam a tábua harmônica. Portanto, o prato deve ser suficientemente pequeno para que se encaixe dentro dessas divisões entre as barras. A dedeira, peça comum de plástico, tem de ter a ponta extremamente dura para que ao percutir a corda permita-a vibrar, sem emitir o som causado pela retração da ponta da dedeira. Talvez possa se sugerir aqui a troca da dedeira por um plectro do tipo que se executa ao bandolim, o que dará maior liberdade de execução. Esta seleção dos acessórios, assim como a dos modos de ataque e de variações timbrísticas, deve ser uma escolha antecipada do intérprete, que confere ao próprio ato da preparação e execução, um campo de possibilidades, um campo de diferentes resultados sonoros, um caráter de desafio e pesquisa. Esse aspecto da composição musical estimula e influencia o intérprete, pois cada leitura oferece possibilidades de uma execução única, vistos o não determinismo da notação e/ou das propostas de interpretação engendradas pela compositora. Referências ANTUNES, Jorge. Notação na música contemporânea. Brasília: Sistrum,1989. BRINDLE, Reginald Smith. The New Music: The Avant-Garde since 1945. New York: Oxford Press, 2003. CAMPOS, Augusto de. Música de Invenção. São Paulo: Perspectiva,1998. Correspondence Boulez-Cage. Paris: Christian Bourgeois,1991 EUNICE KATUNDA toca música contemporânea. Jornal A Tribuna, Santos, 27 de setembro de 1979. KARKOSCHKA, Erhard. Notation in new Music. London: Universal Edition, 1972. KATER,Carlos. Música Viva e J.H. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa/Atravéz, 2001. ____________. Eunice Katunda: musicista brasileira. São Paulo: Anablume, 2001. KOELLREUTTER, Hans Joachim. Terminologia de uma nova estética da música. Porto Alegre: Movimento, 1990. KOSTKA, Stefan. Material and Techniques of Twentieth-Century Music.3rd ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2006. NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1977. O Estado de São Paulo. Para lembrar os autores do Manifesto Música Viva. São Paulo, 29 de setembro de 1978, p.18. SOUZA, Iracele Vera Livero. Santoro: Uma História em Miniaturas: um estudo analítico-interpretativo dos Prelúdios para Piano de Claudio Santoro. 2003. 2v. 761 p. Dissertação (Mestrado), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2003. ______. Louvação a Eunice: um estudo de análise da obra para piano de Eunice Katunda. Tese de

Doutorado, Campinas, Instituto de Artes - UNICAMP, 2009.

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SANTOS, Antonio Eduardo: Os Des-Caminhos do Festival Música Nova: (FMN-um veículo de comunicação dos caminhos da música contemporânea), 2003. Tese (Doutorado) Departamento de Comunicação e Semiótica, PUC-SP, São Paulo, 2003. SIMMS, Bryan. Music of the Twentieth Century: Style and structure. NY: Schirmer, 1986. ZAMPRONHA, Edson. Notação, Representação e Composição: um novo paradigma da escritura musical. São Paulo: Anablume/Fapesp, 2000.

Notas 1 A expansão da composição serial entre os compositores europeus do pós-guerra se fez mais notável devido ao fato das obras de Schoenberg, Berg e Webern ficarem indisponíveis até o primeiro Ferienkurse für Neue Musik, em Darmstadt, em 1946. (SIMMS: 1986, p.344.) 2 Embora, nos EUA, sob a influência de Milton Babitt, o serialismo integral continuava a crescer. 3 Explorado primeiramente por Schoenberg e Webern, em torno de 1910. 4 No dodecafonismo estrito as notas da série não podem ser repetidas até todas as outras onze notas terem sido apresentadas. Na Serenata I (1957) de Berio, as notas repetidas começam a ocorrer no quarto compasso sem que todas as notas cromáticas tenham sido empregadas. Há grupos de notas tonais e repetições em oitava. Boulez, na Improvisations sur Mallarmé (1957), para soprano e conjunto de percussão, repete grupos de notas de forma insistente no decorrer da peça. 5 Em Quantitäten de Bo Nillson, as frases são formadas por quatro notas em três tempos, quatro em cinco tempos e três batidas no tempo de quatro. Como não há indicação de metro ou tempo, cabe ao intérprete encontrar seu ponto de partida. Em Exercices pour Piano, Pousseur evitou os rigores da notação precisa com a introdução de valores um pouco imprecisos como apojaturas com quatro durações diferentes, e silêncios ordenados com diferentes durações. 6 Como parafusos, com e sem porcas, borrachas, entre outros. 7 Em Bacchanale (c.1938-1940), o piano foi transformado em um conjunto de percussão que poderia produzir tanto notas de altura fixa quanto ruidos tímbricos. Seguem-se Sonatas e Interlúdios (1946-48) para Piano Preparado, sua obra mais substancial neste contexto, na qual o compositor procura transmitir um panorama de emoções. 8 A indeterminação da altura era de mais difícil aceitação pelos europeus do que a do tempo, porém Stockhausen utilizaria a indeterminação de alturas no início dos anos 60 no seu Mixtur (1964) para cinco grupos orquestrais. 9 Grupo Música Viva, atuante entre 1940-1950, liderado por J. H. Koellreutter, era formado pelos compositores Claudio Santoro, Guerra Peixe, Edino Krieger e mais tarde, Eunice Katunda. 10 “Deste modo, Claudio Santoro tenderá temporiaramente para o serialismo, abandonando-o mais tarde em prol de maior liberdade de expressão; Edino Krieger buscará igualmente no serialismo soluções para sua problemática específica, no momento em que se afasta do nacionalismo. Outros compositores usaram apenas princípios seriais de estruturação, mas se reservando total independência com relação a esta técnica composicional.” (NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1977, p.154). 11 Os demais signatários do manifesto são: Régis Duprat, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia e Alexandre Pascoal. Invenção. ano 2 n. 3, junho. São Paulo: Invenção, 1963, p.6. 12 Eunice interpreta de Koellreutter: Música 1941 e Tanka V (1977), de Guerra-Peixe, Música n. 1 (1945), de Santoro, Paulistana n. 6 (1954) e de sua autoria, Sonatina 1946 e Expressão Anímica (1979). 13 Esta nomenclatura também foi utilizada por Koellreutter (1990, p. 98) que se refere à grafia da notação contemporânea como: notação precisa, notação aproximada, notação roteiro e notação gráfica. 14 Kausika faz referência a um determinado tipo de raga Hindu que mais frequentemente representa o contexto de uma linha melódica. In GURUGE, Ananda. The Society of the Ramayana. New Delhi: Shakti Malik, 1991, p.182.

Iracele Vera Livero de Souza é Doutora e Mestre em Música pela UNICAMP/SP. Suas pesquisas, ambas financiadas pela CAPES, apresentam uma análise interpretativa de obras para piano dos compositores do Grupo Música Viva, Claudio Santoro e Eunice Katunda, enfatizando a importância destes na produção musical brasileira do século XX. A ênfase do seu trabalho está voltada às áreas de estudo em análise musical e interpretação, atuando principalmente nos temas: Análise Musical, Piano, Música

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Brasileira, Século XX-XXI. Possui uma significativa produção científica em análise musical e práticas interpretativas, que incluem artigos e comunicações em congressos nacionais e internacionais. Foi professora de matérias teóricas, com enfoque principal na Análise Musical, na USC - Universidade Sagrado Coração de Jesus, Bauru-SP e piano na EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo). É pesquisadora colaboradora no CIDDIC/UNICAMP–SP e professora no Instituto de Artes na mesma Universidade.

CHAIB, F. et al. Gesto na performance da percussão, Parte 1...percentual... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.31-59.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3102

Gesto na performance da percussão, Parte 1: análise percentual de dados experimentais1 Fernando Chaib (NΞP³/IFG2 - Inst. Fed. Ed., Ciência e Tecnologia, Goiânia, GO) [email protected]

Homero Chaib Filho (NΞP³/IFG3 - Inst. Fed. Ed., Ciência e Tecnologia, Goiânia, GO) [email protected]

João Catalão (SIxtrum/Université de Montreal, Montreal, Canadá) [email protected] Resumo: Este artigo, Parte 1 do mesmo estudo, mostra como foi realizado um tratamento descritivo, através de uma análise percentual, dos dados experimentais obtidos ao observar a influência do gesto corporal sobre as sensações de continuidade, suspensão e conclusão de um trecho musical em percussão. Dentro da complexa relação estabelecida entre o percussionista e o texto musical apresentado em grande parte das produções para percussão, procuramos compreender até que ponto o corpo poderá ser um agente auxiliador no processo de transmissão de sensações específicas sobre a música executada em uma performance percussiva. A complexidade deste processo experimental nos obrigou a dividir os resultados obtidos em dois artigos. Este trabalho trata-se da 1ª parte de publicação dos dados adquiridos e analisados a partir dos pesos percentuais. Palavras-chave: influência do gesto na Performance; percussão; performance; estatística descritiva.

Gestures on percussion performance, Part 1: percentage analysis of experimental data Abstract: This paper, Part 1 of the same study, discusses the influence of corporal gesture on the sensations of continuity, suspension and conclusion of a percussion musical excerpt from a descriptive statistical analysis data obtained on a specific experiment. From the complex relationship between the percussionist and musical text displayed largely on percussion productions, we seek to understand how far the motion body could be a supportive agent in the process of transmission of specific feelings about the music performed in a percussive performance. The complexity of this experimental process forced us to divide the results into two articles. This work comes from the 1st part of publishing data acquired since the experiment exposed here also suffered a factorial analysis of correspondences, can be found in the subsequent Article from this one ".

Keywords: gesture influence in performance; percussion; descriptive statistic.

1. Introdução - Considerando as relações do movimento corporal, exercício

intelectual e expressividade expostas no artigo “Três Perspectivas Gestuais para uma Performance Percussiva: Técnica, Interpretativa e Expressiva” (CHAIB, 2012), nos indagamos em como os gestos, direcionados a uma ação performativa percussiva, poderiam atuar sobre as sensações de determinados conteúdos musicais transmitidos ao espectador. Observadas e discutidas as potencialidades

CHAIB, F. et al. Gesto na performance da percussão, Parte 1...percentual... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.31-59.

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do gesto vinculadas à performance em percussão (CHAIB, 2012), nos concentramos essencialmente neste artigo em determinar de que maneira esse elemento performativo poderá exercer influência sobre a percepção de um trecho musical no repertório dedicado à música para percussão, mais precisamente sobre as sensações continuidade, suspensão e conclusão de um individuo ao assistir a performance de um percussionista. Nesta primeira parte de publicação dos dados adquiridos e analisados através do experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical”4 , procuramos identificar certos níveis de influência dos gestos (e suas atitudes 5 ) sobre a transmissão do conteúdo musical, realizados pelo percussionista durante uma performance. Para a compreensão dos resultados, utilizamos primeiramente uma análise estatística em termos percentuais que, a grosso modo, expressa o peso de cada resultado às questões propostas no experimento realizado. A segunda parte de publicação dos resultados estará disponível no artigo subsequente a este.

2. Problemática – Nossa problemática baseou-se fundamentalmente na

transmissão de diferentes ou similares conteúdos musicais a partir da execução de distintos instrumentos de percussão (tendo em conta as características tímbricas e sonoras de cada um), em conformidade com o texto musical apresentado na partitura. Ou seja, de que modo o percussionista poderia determinar, em uma caixa por exemplo, a diferença de valores de tempo existentes entre duas figuras rítmicas distintas, uma vez que por questões físicas e características do instrumento o resultado sonoro será essencialmente o mesmo. Ilustramos esse questionamento no exemplo a seguir (Ex.1):

Ex.1 - Suite for Drums (SMITH, 1940). Percussionista 2, c.71.

Considerando os atributos sonoros e tímbricos de uma caixa percebermos ser praticamente impossível conseguirmos transmitir sonoramente as diferentes ideias ilustradas no 1º e 3º tempo do Ex.1 (mínima; semínima e pausa de semínima). Percebemos que a ideia a ser passada de prolongamento da nota (mínima) ou de ausência de intervenção sonora do intérprete 6 (pausa de semínima) torna-se um desafio. Um dos caminhos que o percussionista poderá seguir para encontrar soluções sobre essa questão passará por atuar sobre o instrumento utilizando-se de meios menos ortodoxos relativamente à estética de composição utilizada (abafar o som da caixa na pausa de semínima utilizando as mãos sobre a pele ou qualquer outro meio de abafamento). No entanto, ao analisarmos o estilo da obra somos levados a considerar em Ex.1 um tipo de execução tradicional, utilizando apenas a baqueta sobre a pele. Desta forma a transmissão dessa diferenciação rítmica, se possível, deverá ser desenvolvida a partir de outras formas. Em geral, o percussionista apenas utiliza métodos distintos ao uso das baquetas (considerando a via tradicional de extração sonora do instrumento em questão)

CHAIB, F. et al. Gesto na performance da percussão, Parte 1...percentual... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.31-59.

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quando estes são requeridos pelo compositor e/ou estipulados na partitura. Portanto, se não há indicação de intervenção do percussionista sobre o som da caixa através de outros meios, diremos que a mínima e a semínima soarão de forma semelhante (se não mesmo idêntica), pois que a caixa não possui mecanismos para o controle do tempo de decaimento de uma nota (como por exemplo o pedal de um vibrafone, sinos tubulares ou outras técnicas de abafamento). Poderá ser compreensível e bem clara a ideia do compositor, mas transmiti-la através da caixa torna o caminho interpretativo do percussionista um processo complexo e intrigante. Essa é uma contrariedade à qual, relativamente ao repertório existente para percussão, o intérprete vê-se submergido quase que a tempo inteiro. Outro exemplo que cabe perfeitamente nesse objeto de pesquisa será a relação em uma obra que se faz entre textos musicais semelhantes executados em diferentes instrumentos de percussão. Um instrumento de lâminas e um de pele possuem características bastante distintas quer seja no aspecto sonoro, material e/ou estrutural, pelo quê torna-se um desafio para o percussionista transmitir ideias musicais análogas a partir dos dois instrumentos. Observando obras escritas em fins do séc. XX encontramos em Phènix (1982), de Bernard-Mâche, um exemplo que bem se adequa a essa discussão (Exs.2 e 3):

Ex.2 - Phènix (BERNARD-MÂCHE, 1982): Início da obra. Trecho do vibrafone.

Ex.3 - Phènix (BERNARD-MÂCHE, 1982: 02). Início do 1º sistema. Trecho das peles.

Em Ex.2 e Ex.3 o sentido do texto musical análogo segue um caminho quase utópico. Será forçoso o desenvolvimento de outros atributos performativos que permitam ao intérprete aproximar a mesma ideia musical presente na partitura para estes instrumentos. O movimento corporal, através dos gestos passíveis de serem realizados pelo percussionista durante uma performance, poderá ser esse catalisador de ideias entre som e conteúdo musical que buscamos. A questão metafórica do gesto aplicada à música escrita para percussão poderá encaixar-se nesse exemplo, auxiliando o intérprete na transmissão do conteúdo musical. A simbologia dos valores de tempo transmitida pelo corpo poderá compor a metáfora desse momento musical e performativo, gerando outros atributos interpretativos e expressivos em palco em conjunção com o fenômeno sonoro.

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Diversos exemplos poderão ser utilizados para percebermos como textos musicais apresentados em obras escritas para percussão colocam, em geral, o percussionista em uma encruzilhada interpretativa complexa. Essa busca por uma performance com o intuito de ilustrar toda a expressividade em conformidade com o conteúdo musical da composição executada torna-se, por muitas vezes, bastante difícil, uma vez que a relação interpretativa da obra estabelecida entre o performer e o espectador é sujeita a diversos níveis de subjetividade. Perceber a existência da influência do movimento corporal, através dos gestos, sobre a transmissão do conteúdo musical, para o espectador, poderá servir de auxílio no desenvolvimento de uma géstica performativa para o percussionista em palco. Isso significa essencialmente gerar mecanismos e ferramentas de cunho gestual para que o intérprete pluralize as suas possibilidades em ilustrar e transmitir as ideias musicais contidas na partitura, tendo em conta as particularidades sonoras, tímbricas e possibilidades de expressão presentes nos instrumentos de percussão.

3. Pesquisas no campo - Através do estilo de experimentação cross-modal

interaction 7 , experiências com apresentação conjunta de diferentes estímulos realizada por MCGURK e MCDONALD (1976) comprovaram a influência da visão sobre a percepção auditiva, classificando o fenómeno como “Efeito McGurk”. Esse tipo de experimentação consiste em cruzar diferentes tipos de sensações (auditivas, visuais, tácteis, etc.) com o intuito de perceber-se os níveis de influência de um estímulo sobre o outro. No caso de McGurk e McDonald os estímulos visual e auditivo apresentados correspondiam a uma pessoa pronunciando as sílabas “ga” e “ba”. A experiência consistiu em apresentar os dois estímulos com as informações cruzadas no formato audiovisual. Foi constatado pelos investigadores que, para além das respostas não condizerem com a imagem e o seu som respectivo, os participantes apresentaram a sensação de uma terceira sílaba inexistente (“da”), atestando assim a influência do aspecto visual sobre as informações sonoras passadas 8 . SALDAÑA e ROSENBAUM (1993) redimensionaram o “Efeito McGurk” (também utilizando o tipo de experimentação cross-modal interaction) para eventos sonoros não vocais, ao realizarem experimento com violoncelo e constatarem a influência do estímulo visual sobre o timbre do instrumento ao ser executado com arco ou com os dedos (pizzicato). LERDHAL e JACKENDO (1983) relacionaram as aplicações das leis da Gestalt ao processo de segmentação das frases musicais dentro da música tonal apresentando-nos as regras de proximidade (proximity rules). Duas regras são relacionadas pelos autores: ‘pausa ou nota longa’ (slur or rest) e ponto de ataque (atack-point) ou momento exato da extração sonora do instrumento. Ao redimensionarmos o caráter de observação do conteúdo musical para o repertório percussivo conseguimos encontrar certas concordâncias. Uma delas refere-se ao Ex.1 onde a primeira regra de proximidade enquadra-se de forma clara. Já os Ex.2 e Ex.3 referenciam as regras de mudança (change rules) onde enquadram-se as relações de registo (altura), dinâmica (volume), articulação, timbre e comprimento.

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Pertencendo a um mesmo campo de investigação, os trabalhos acerca do gesto em percussão carregam diferentes abordagens relativas ao objeto de pesquisa. Antecipando-se à gama de estudos existentes, BAILEY (1963) já procurava discutir (ou pelo menos demonstrar) certas problemáticas evidentes na performance para percussão ao destacar que o percussionista, quando desejado, deveria desenvolver técnicas capazes de transmitirem sensações de legato, mesmo sendo impossível conseguir esse efeito no próprio sentido da palavra. As discussões que buscam encontrar soluções para os identificáveis desafios impostos pelos instrumentos de percussão sob a interpretação e expressão musical do intérprete são, de fato, bastante correntes no universo percussivo. Para além dos recursos expressivos como legato, stacato, tenuto, etc., a partir do momento em que as produções para percussão foram se desenvolvendo, as discrepâncias de timbre e técnica tornaram-se fatores que criaram maiores níveis de complexidade para a busca do percussionista por uma execução musical condizente com o texto (e/ou discurso) musical apresentado na partitura. Relativamente às pesquisas existentes sobre as influências da aplicação do gesto em uma performance destinada aos instrumentos de percussão, percebemos que diversos trabalhos foram realizados durante a primeira década deste século, ainda que sob perspectivas distintas da utilização e possibilidades gestuais na performance percussiva. Dentre os trabalhos existentes destacamos SCHUTZ e LIPSCOMB (2004). Os autores realizaram um experimento onde a intenção era verificar a percepção da articulação do toque sobre a marimba. Para tanto utilizaram o estilo de experimentação cross-modal interaction, realizando diferentes intenções gestuais. Diferentemente de McGurk e McDonald, a correlação da expressão facial com sílabas foi substituída pela relação do movimento corporal com certos meios expressivos a serem obtidos da marimba. Schutz e Lipscomb procuraram demonstrar as relações de toques em meios expressivos específicos. Foram escolhidas quatro níveis de expressão: staccato, abafado, normal e legato. Os estímulos, gravados em áudio e áudio/vídeo, foram apresentados a 70 participantes divididos em 3 grupos com distintas habilidades musicais. Uma escala com valores de 0 (máximo staccato) a 100 (máximo legato) foi apresentada. Com o auxílio de um cursor, os indivíduos apontaram no computador a sua sensação relacionada aos estímulos expostos. Durante as análises de resultados verificou-se que as informações transmitidas pelo gesto do percussionista faziam os participantes alterarem as percepções do som, sendo que o mesmo não correspondia à realidade das respostas. DAHL (2005) realizou um experimento onde a marimba também foi utilizada como instrumento. Foi solicitado a um percussionista profissional executar uma pequena obra tendo em conta os sentimentos tristeza, raiva, alegria e medo. Os vídeos foram apresentados a 20 indivíduos de quatro maneiras distintas: exibindo o corpo inteiro do percussionista, exibindo apenas as mãos, exibindo apenas o tronco (sem mãos e cabeça) e exibindo apenas a cabeça. Os participantes deveriam responder àquelas sensações numa escala de 0 (nada) a 6 (muito).

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Considerando os resultados obtidos, a autora chegou à conclusão de que a influência visual foi “surpreendentemente pequena” em relação às respostas dadas e os vídeos demonstrados com os diferentes sentimentos. Contudo, não nos interessa aqui atribuir valores de juízo sentimentais aos estados emocionais em que poderão se encontrar os participantes do experimento que exporemos mais adiante. As formas como os indivíduos se comportam ou expressam seus momentos mais ou menos afetivos pode variar de tal forma (por questões culturais, educativos, etc.) que colocaria em risco o nosso objetivo que é o de identificar a influência no espectador do gesto na transmissão de um trecho musical percussivo. O nosso interesse gira em torno da música e da sua relação com o espectador, no aspecto interpretativo, obtido através da performance do percussionista em consequência dos movimentos corporais aplicados. Não nos cabe (e nem é nossa intenção) induzir o indivíduo a estados emocionais aos quais o intérprete possa estar conectado com a obra. WANDERLEY et. al. (2005) efetuaram um estudo sobre as informações visuais e auditivas através de uma performance musical (nesse caso utilizando a performance sobre o clarinete), concentrando as informações visuais sobre a percepção da estrutura da obra. O registo dos estímulos ocorreu em áudio, vídeo e áudio/vídeo, sendo as respostas dos participantes gravadas em tempo real, durante o tempo de duração da exibição dos estímulos. Para a análise de dados utilizaram a técnica estatística functional data analysis9. Esta técnica trata os dados obtidos em funções matemáticas contínuas o que, segundo os autores, permite questionar os níveis de impacto sobre o julgamento das tensões atribuídas à performance estando ela ora relacionada a uma componente visual e ora não relacionada; o que também se distancia do objetivo do nosso trabalho. Ao contrário de outras técnicas estatísticas utilizadas em experimentos em música (onde os dados são tratados apenas por uma dimensão individualizando as respostas dos participantes), o functional data analysis permite obter uma imagem dos resultados em três dimensões, estabilizando problemas como a sincronização e correlação entre as respostas dos diferentes participantes. No que diz respeito às técnicas utilizadas por percussionistas (em específico sobre os tímpanos), BOUENARD, WANDERLEY e GIBET (2009) mapearam, utilizando dois timpanistas, as diferentes relações existentes entre duas técnicas distintas (alemã e francesa) aplicadas sobre o tímpano e o som obtido no instrumento. Foram capazes de observar que os diferentes gestos utilizados sobre as duas técnicas modificavam o resultado sonoro final. Dentre outras concepções discutidas no decorrer do nosso trabalho procuramos utilizar como referência o conceito de sound-accompanying gestures, onde o mesmo é estabelecido por GODØY (2010, p.110) como: “all kinds of body movements that may be made to music […] not necessary to produce the sound”. Nos direcionando para o repertório percussivo, numa visão global, as diferentes ideias de movimento poderão estar, eventualmente, sincronizadas com os eventos sonoros ocorridos na performance e serão capazes de auxiliar o intérprete a transmitir para o público os conteúdos do discurso musical proposto

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pela obra. Será dizer que os gestos realizados pelo percussionista durante uma performance poderão influenciar a percepção do texto musical sobre o receptor dessa informação. A ideia é sugerir a criação de mecanismos técnicos, interpretativos e expressivos que amenizem as limitações encontradas por percussionistas perante os diferentes instrumentos de percussão para a busca de uma expressividade musical congruente e, possivelmente, mais fiel às ideias musicais propostas pelo compositor em uma determinada obra. Alargar a ideia de Godøy será de fundamental importância para não nos limitarmos apenas a exercer os movimentos corporais vinculados ao som realizado, sistematizando uma ação que, no nosso entender, é subjetiva e passível de inúmeras interpretações. Uma vez que os instrumentos de percussão possuem capacidades de extração sonora e ressonância muito distintas, diremos que o principal intuito será o de relacionar os movimentos corporais à ideia musical exposta na partitura e perceber de que maneira isso causará influência no indivíduo que observa a performance. Para comprovarmos a influência da percepção sobre um trecho musical através do gesto corporal aplicado no repertório percussivo, coletamos dados das sensações de indivíduos perante a execução de três excertos musicais de uma obra em específico. Para isso alternamos, nos estímulos exibidos, gestos sobre diferentes perspectivas, permitindo determinar o grau de influência dos mesmos sobre a informação musical passada. Para GODØY (2011, p.71), os gestos: “could be regarded as integral to music perception, leading to the idea that any sound will be included in some mental image of a gestural trajectory”.

4. Elaboração do Experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical” - Através da realização do experimento “Sensação de

continuidade de um trecho musical” coletamos as primeiras reações de um indivíduo relativamente a uma performance em percussão. Reproduzimos três excertos musicais a um grupo de indivíduos – transmitidos a partir de estímulos visual (V); auditivo (A); audiovisual (AV) e sob duas perspectivas gestuais distintas – procurando observar os graus de influência dos gestos proferidos pelo percussionista, averiguando até que ponto os mesmos podem afetar as sensações de seguimento de um conteúdo musical sobre uma performance em percussão. Ao determinarmos a influência do gesto na percepção de certos conteúdos musicais na música para percussão, poderemos desenvolver conceitos e diretrizes acerca da incorporação e utilização dos gestos em uma performance percussiva. A obra escolhida para o experimento foi Exil: Shangai 45 (1991), do compositor canadense Michel Longtin (1946 -). Com duração de 23 minutos, a composição é escrita para percussão múltipla solo onde a voz também é utilizada através da recitação de textos em chinês. A razão por eleger este tipo de repertório justifica-se pela obra ser uma montagem de percussão múltipla (incluindo apenas instrumentos de altura indeterminada), distanciando-se de sonoridades familiares ao ouvinte como harmonias tradicionais, recursos melódicos (de altura definida), de contraponto e sistemas tonais e/ou modais. A ideia será evitar que o indivíduo procure relações desse calibre para apontar as suas percepções de frase, trecho

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ou texto musical. As sonoridades não convencionais poderão mesmo ampliar a percepção de variados pontos culminantes nas frases musicais executadas. Outro motivo para a escolha dessa obra é o fato de a mesma ser pouco veiculada e, como consequência, desconhecida pelo público alvo do experimento. O trecho corresponde à seção E da obra, entre os compassos 96-135, assim divididos: c.96-110 (Ex.4); c.110-123 (Ex.5) e c.123-135 (Ex.6):

Ex.4 - Exil: Shangai 45 (LONGTIN,1991). c.96-110.

Ex.5 - Exil: Shangai 45 (LONGTIN, 1991). c.110-123.

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Ex.6 - Exil: Shangai 45 (LONGTIN, 1991). c.123-135.

Os três excertos foram gravados sob duas perspectivas gestuais distintas:

Gesto expressivo (GE) - procura demonstrar uma performance de um músico em concerto, sem inibição dos movimentos corporais após as intervenções sonoras (sejam elas longas ou curtas).

Gesto técnico (GT) – trata-se do gesto isento de intencionalidade expressiva, procurando exercer os movimentos mínimos necessários para a extração sonora dos instrumentos.

Os gestos GE e GT, por sua vez, foram gravados sob três tipos de estímulos sensoriais: visual (V), auditivo (A) e audiovisual (AV). Ao proporcionarmos três excertos distintos para cada estímulo gravado conseguimos garantir a equidade das informações e textos musicais transmitidos a todos os indivíduos participantes do experimento. Essa divisão feita aos excertos permitiu-nos proporcionar aos participantes do experimento as condições necessárias para a atribuição de suas respostas sem viés. Por se tratarem de três estímulos distintos (A, V e AV) observados, a utilização de apenas um ou dois excertos forçaria a apreciação de um mesmo excerto com estímulos diferentes, o que poderia alterar e/ou induzir a percepção do indivíduo sobre o trecho musical. Como forma de definirmos a avaliação das respostas dos participantes sobre o experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical”, definimos três graus de sensações possíveis a serem captadas pelo espectador durante a transmissão do experimento, são elas:

Continuidade – percepção de fluência, sem interrupção ou hesitação do trecho musical executado.

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Suspensão – percepção de hesitação, interrupção (não conclusiva), percepção inconclusa e não contínua do trecho musical executado.

Conclusão – percepção de termo do trecho musical executado.

4.a) Transmissão dos Estímulos – Funcionamento do PATCH e Experimento Teste - Para a realização do experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical” utilizamos o software Max/MSP 6.0, desenvolvido para pesquisas sobre linguagem visual em música e multimédia. Através de uma interface (PATCH) gerada por este software os participantes foram convidados a exprimir a sua sensação de continuidade de um trecho musical. Há de se destacar que os indivíduos utilizaram computadores e auriculares de mesma marca e modelo, garantindo a mesma qualidade de exibição dos estímulos entre todos os participantes. A partir dos três excertos da obra Exil: Shangai 45 (LONGTIN, 1991), foram geradas gravações contendo estímulos A, V e AV. Os mesmos foram apresentados aos participantes do experimento através do PATCH. Foi determinado que os participantes escolhidos deveriam possuir considerável conhecimento musical, uma vez que esse tipo de público foca a sua atenção de maneira diferente do público leigo no que diz respeito às informações sonoras passadas durante uma performance. Acreditamos que o receptor com saber musical tem maior probabilidade em não distrair sua atenção do conteúdo musical em função dos gestos realizados pelo performer. Ou seja, caso sejam influenciadas pelos gestos, as suas respostas sobre os estímulos terão credibilidade suficiente paras as conclusões tomadas nas análises realizadas. Também nos preocupamos em obter respostas de participantes que compreendessem as ideias e/ou conceitos de continuidade, suspensão e conclusão em música de forma equivalente ou, pelo menos, congruente. Assim, procuramos limitar o universo de indivíduos para um experimento que já se apresenta bastante subjetivo. Para não deixarmos margem para dúvida selecionamos músicos com grau superior completo, pois consideramos este nível de formação musical suficiente para realizarem completamente o experimento com sucesso. Foi também determinado que esses indivíduos não poderiam ter relação direta no aspecto performativo e/ou composicional com a percussão, a fim de não obtermos respostas induzidas ou premeditadas por sujeitos que circundam este campo de pesquisa. Desta forma, percussionistas e compositores foram excluídos como parte do público alvo desse experimento. Para a obtenção das respostas dos participantes acerca das sensações expressas durante a apresentação dos estímulos, utilizamos uma régua temporal (com medida em segundos) na interface apresentada, articulada às teclas dos computadores utilizados. Associamos as cores verde, amarelo e vermelho às teclas 3, 6 e 9 respectivamente. Ativado o experimento, ao premir as teclas, as cores referentes apareciam na régua. Esta possui a indicação do tempo do vídeo em segundos no momento da ativação das cores. Destacamos a possibilidade de poder-se acompanhar o tempo do estímulo apresentado através de um cronômetro em ms, ativado ao mesmo tempo em que a interface é acionada.

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Desta forma, ao realizarmos uma análise da partitura, conseguimos determinar em que trecho da obra as respostas foram ativadas, gerando assim a base de dados para as averiguações que serão feitas. As cores caracterizaram uma escala subjetiva com três valores gradativos onde a ideia de continuidade convertia-se progressivamente à ideia de conclusão. O verde representou a sensação de continuidade, a cor amarela significou suspensão. A sensação de conclusão de frase foi representada pela cor vermelha.

4.b) Familiarização com o PATCH - Ao pretendermos receber as primeiras sensações dos participantes relativamente aos estímulos exibidos, não poderíamos correr o risco de criarmos uma situação de tensão e/ou pressão emocional. Isso poderia causar uma indução ao erro uma vez que os mesmos estiveram sendo interrogados sobre algo subjetivo, utilizando uma ferramenta relativamente desconhecida. Assim, foi decidido exibir um vídeo explicativo e um estímulo teste (não vinculados aos estímulos para a captação das respostas, preservando a espontaneidade das mesmas) permitindo uma pré-utilização do programa pelos participantes exatamente como decorrerá no experimento. As gravações contidas trataram-se de dois trechos distintos da obra Phènix (BERNARD-MÂCHE, 1982), Ex.7. Também distinguimos o estímulos entre o vídeo explicativo do estímulo teste, preservando assim a captura de informações relativas às primeiras sensações do participante perante a exibição do estímulos. A utilização do vídeo explicativo também se justificou pelo fato de todos os participantes, sem exclusão, receberem o mesmo tipo de ferramentas para a compreensão e realização do experimento. Assim, ao receberam tratamento uniforme, pudemos afirmar que não houve margem para favorecimentos ou prejuízos nas respostas assinaladas.

4.c) Coleta de Dados e visualização das respostas - A coleta de dados foi feita perante a exibição dos três tipos de estímulos (A, V e AV). Combinados com os três excertos da obra Exil: Shangai 45 (LONGTIN, 1991), obtivemos dezoito possibilidades distintas de exibições dos estímulos, como podemos observar na Tabela de Diferenciação de Estímulos (Ex.8):

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Ex.7 - Imagem do PATCH com o estímulo teste.

Atitude dos Gestos Áudio (A) Vídeo (V) Audiovisual (AV)

Gesto Expressivo - GE (e) A1e, A2e, A3e V1e, V2e, V3e AV1e, AV2e, AV3e

Gesto Técnico - GT (t) A1t, A2t, A3t V1t, V2t, V3t AV1t, AV2t, AV3t

Ex.8 - Tabela de Diferenciação de Estímulos, onde: At (áudio técnico), Ae (áudio expressivo), Vt (vídeo técnico), Ve (Vídeo expressivo), AVt (audiovisual técnico), AVe (audiovisual expressivo).

A interface foi apresentada a um conjunto de seis indivíduos (In.) divididos em três grupos (Gr.) contendo dois participantes em cada grupo. Desta forma, obtemos ao todo 36 respostas para serem analisadas (Ex.9):

In.1 e In.2 Gr. I

In.1 e In.2 Gr. II

In.1 e In.2 Gr. III

A1t A2t A3t A3e A1e A2e V2t V3t V1t V1e V2e V3e AV3t AV1t AV2t AV2e AV3e AV1e

Ex.9 - Divisão dos Estímulos por grupos, onde: In. (Indivíduo), Gr. (grupo).

Por estarmos cientes de que a régua temporal presente no PATCH serviria, em primeiro plano, como um apoio ao participante para seguir visualmente as suas respostas no experimento, desenvolvemos na interface outra função que nos permitisse obter os dados coletados no formato plain text (.txt), sob duas medidas de tempo possíveis. A primeira medida de tempo diz respeito à medição feita pelo

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próprio programa no formato Quick Time, podendo ser descartada10 nas análises. A segunda medida (a que nos interessa) foi a presentada em milésimos de segundo (mstime). Foram fornecidos no texto dois timings, que correspondem um ao tempo de ativação e outro ao aparecimento da cor na régua. Estas medidas apresentaram de forma milimétrica a ativação das cores no momento em que os estímulos foram apresentados, resguardando o tempo exato de ativação das respostas. No momento em que o experimento era salvo pelo participante, as respostas eram apresentadas em uma pasta de arquivo no computador, no formato .txt, sem haver qualquer prejuízo de imagem ou som no decorrer da experiência. O formato .txt não reconhece os números das teclas do computador de acordo com as cores ativadas, mas as relaciona em ordem alfabética: a = verde, b = amarela, d = vermelha (Ex.10 e Ex.11)11:

Ex.10 - Régua em segundos, In.1 - Gr.I - A3e.

a 78 mstime 3275 a 163 mstime 6833 b 272 mstime 11394 a 347 mstime 14530 b 549 mstime 22957 b 746 mstime 31170 d 853 mstime 35659

Ex.11 - Resposta em formato plain text (.txt) em Quick Time e mstime. In.1 - Gr.I - A3e.

Todos os estímulos foram exibidos duas vezes do início ao fim. A primeira exibição, sem interrupção, serviu para a recolha dos dados. A diferença de velocidade de resposta do participante entre o momento da sua sensação e a ativação da tecla do computador poderia existir e gerar um pequeno atraso no recebimento das informações pela interface. Mesmo em se tratando de um atraso mínimo que não acusou relevância para os resultados, percebemos que o tempo de resposta poderia variar ao menos 0,5 segundos para mais ou para menos. Este foi um dos motivos pelo qual definiu-se que a segunda exibição serviria para uma eventual revisão ou correção de erros sobre as respostas. Considerando as condições que poderiam afetar o imediatismo das respostas (como por exemplo a relação de velocidade entre a observação da interface e o premir da tecla do computador), admitimos uma tolerância de tempo entre de 0,1s e 0,5s, para mais ou para menos, relativamente à cor acionada. Cada caso foi observado e estudado para não haver o risco de excluir respostas sobre tempos e regiões relevantes. Assim, arredondamos as respostas em centésimos de segundo para melhor serem enquadradas na matriz de dados e para obtermos uma visualização das médias com maior clareza. O arredondamento foi possível já que as medidas de tempo em centésimos e milésimos de segundo não alteraram a observação das regiões onde as cores foram acionadas. Por exemplo, a diferença entre

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3,872s e 4s não alterou a nossa percepção da região do trecho musical executado relativamente às respostas ocorridas.

4.d) Análise dos dados - A análise do experimento está dividida em duas partes. A primeira tratou-se de uma Análise Percentual dos Dados (APD), permitindo criar relações entre as respostas especificas sobre os trechos utilizados no experimento. A segunda parte da análise utilizou a técnica estatística de Análise Fatorial de Correspondências (AFC). Neste artigo, nos ateremos aos resultados obtidos através da APD. Para construirmos a tabela de contingência (matriz) utilizada na APD, decidimos seccionar os excertos exibidos por zonas. Procuramos os momentos nos excertos que ilustram situações que acreditamos “desestabilizar” um sentido de continuidade (por exemplo, situações de “ruptura”, “quebra”, “tensão”, etc.) 12 . A essas circunstâncias denominamos Fatores Contextuais (F). Baseamos os Fatores Contextuais (F) no princípio de regras oriundas da teoria da Gestalt. Apesar de esta teoria da psicologia moderna estar atrelada originalmente aos fenômenos visuais (uma vez que refere-se a um processo de dar forma, de configurar o que é colocado diante dos olhos), foi possível estabelecer um paralelo com a teoria musical. A abordagem que a Escola “Dualista” de Graz faz a respeito da identificação dos processos de percepção sensorial auxiliou-nos a perceber a relação que buscamos. Os dualistas defendem a distinção de dois momentos da “elaboração” da forma daquilo que observamos: a sensorial - proveniente apenas do objeto observado; a mental (perceptiva) – resultante do trabalho intelectual ao qual se dá um sentido à forma. O primeiro diz respeito à sensação que será função apenas de uma variável (condições externas), remetendo à percepção pura dos elementos que compõe uma configuração qualquer (por exemplo o formato puro de uma imagem ou, numa perspectiva sonora, as notas musicais). O segundo aborda a percepção como função de duas variáveis (condições externas e internas). Ou seja, o agrupamento desses elementos, ao estimular os processos de percepção (exercício intelectual), adquirem um sentido (por exemplo a forma visual de um objeto ou os sons captados pelo ouvido transformados em melodia ou harmonia). Nos estudos de YOST (2000) observamos um domínio sobre essas teorias, o que lhe permitiu classificar os índices físicos que o sistema auditivo tem em conta para uma análise dos eventos sonoros captados auditivamente. Aliando as regras de proximidade e de mudança de LERDHAL e JACKENDO (1983), pensamos que será determinante, para o nosso trabalho, canalizarmos as atenções para os seguintes pontos descritos por YOST (2000): separação/perfil espectral e amplitude de frequência (timbre); modulações de amplitude (dinâmica, volume); separação temporal (ritmo, tempo); sincronização dos ataques e silêncios (momento do toque e momento após o toque). Percebemos a existência de uma proximidade entre os conceitos analisados pelos diferentes autores e que, não por acaso, os Fatores Contextuais estão atrelados aos parâmetros do som. Essas características sonoras e musicais encontradas nos excertos analisados foram fundamentais para a determinação dos mesmos. A seguir, demonstramos os Fatores Contextuais utilizados no processo de análise das respostas dos indivíduos participantes do experimento (Ex.12):

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Por se tratarem dos eventos sonoros com características alheias aos fatores F1 a F7, o fator F8 caracterizou-se exatamente por agregar momentos que não contém situações de “ruptura”, “quebra”, “tensão”, “suspensão”, etc. Em Ex.13, por exemplo, F8 surgiu pela primeira vez de forma oculta no Excerto 1t entre 4,2s e 5,1s. Baseando-nos nesses oito Fatores Contextuais e, ao realizarmos uma análise interpretativa da partitura, dividimos os excertos em pequenas zonas. Ao seccionarmos os excertos, tornou-se mais clarividente e fácil de analisar as situações análogas ou antagônicas das respostas obtidas no experimento (Ex.13, Ex.14 e Ex.15).

FATOR CONTEXTUAL

SIGNIFICADO

F1 Ausência de intervenção sonora do intérprete F2 Mudança brusca de timbre F3 Mudança brusca de dinâmica F4 Mudança brusca de timbre + mudança brusca de dinâmica

F5 Mudança brusca de dinâmica + duração de execução da nota tocada (rulo)

F6 Mudança brusca de timbre + mudança brusca de dinâmica + duração de execução da nota tocada

F7 Mudança brusca de timbre + Ausência de intervenção sonora do intérprete

F8 Demais situações geradas, alheias aos demais fatores, que vem significar momentos de continuidade do trecho

Ex.12 - Fatores Contextuais e seus significados.

EXCERTO 1t 1º som à 4,2 s

EXCERTO 1e 1º som a 0,3 s

SEÇÕES COMPASSO De (em s) à (em s) De (em s) à (em s) FATOR (F)

I 96 5,2 7,5 1,2 2,8 1

II 97 8,6 11 3,8 5,7 1

III 98 12,6 13,5 7,3 7,8 4

IV 99 15,5 16,5 9,7 10,5 5

V 100 17,5 20,7 11,4 13 6

VI 102 21,8 23,6 15,2 17 6

VII 104 25 25,4 18,4 18,7 4

VIII 105 26,4 26,6 19,6 19,8 4

IX 106 28,5 28,7 21,7 22 3

X 107 30,5 31 23,5 24 1

XI 109 33 36 26,5 29 6

XII 110 37,1 37,9 29,3 30 2

XIII 110 39 42 30,8 35,3 1

Ex.13 - Seções por Fator Contextual (F) do Ex.4.

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EXCERTO 2T 1º som à 0,8 s

EXCERTO 2E

1º som à 1,2 s

SEÇÕES COMPASSO De (em s) à (em s) De (em s) à (em s) FATOR (F)

I 110 1,7 2,3 2,2 2,8 1

II 110 3,4 4,5 3,8 5,7 1

III 111 4,7 6,7 5,8 7,4 5

IV 111 6,7 9,3 7,5 8,0 1

V 112 10.2 10,5 9,2 9,4 5

VI 113 10,6 12,0 9,5 10,4 8

VII 114 13,9 14,4 12,7 13,0 5

VIII 115 14,6 16,5 13,2 15,1 5

IX 116 16,6 20,2 15,5 18,6 5

X 119 20,3 21,4 18,8 20,3 5

XI 120 21,5 26,2 20,4 25,1 5

XII 123 26,3 28,7 25,2 27,8 5

XIII 123 28,8 32,5 27,9 31,4 1

Ex.14 - Seções por Fator Contextual (F) do Ex.5.

Ex.15 - Seções por Fator Contextual (F) do Ex.6.

5. Análise Percentual dos Dados (APD) - O intuito desta análise foi o de

observarmos as relações nas tabelas que se seguirão, em termos percentuais, entre as linhas (onde estão os estímulos), entre colunas (onde estão as sensações) e entre linhas e colunas. Ressalta-se que esse tipo de análise limitou-

EXCERTO 3T 1º som à 0,7 s

EXCERTO 3E

1º som à 0,8 s

SEÇÕES COMPASSO De (em s) à (em s) De (em s) à (em s) FATOR (F)

I 123 3,3 4,0 3,4 4,6 1

II 124 4,2 4,6 4,8 5,0 4

III 124 4,7 5,7 5,1 6,2 2

IV 124 5,8 8,0 6,3 8,5 3

V 125 8,2 8,4 8,6 8,7 4

VI 126 8,5 10,0 8,8 10,2 4

VII 126 9,9 10,2 10,3 10,6 1

VIII 127 10,3 12,8 10,7 13,1 4

IX 127 12,9 13,6 13,2 14,1 1

X 128 13,7 15,7 14,2 16,1 4

XI 129 15,8 17,3 16,2 17,3 3

XII 131 21,7 22,2 22,2 22,6 4

XIII 131 22,3 23,6 22,7 23,8 4

XIV 132 23,8 24,2 24,0 24,5 7

XV 132 24,3 26,2 24,6 26,2 3

XVI 133 26,3 26,7 26,3 26,9 7

XVII 133 26,8 29,2 27,0 29,6 3

XVIII 135 29,4 30,4 29,8 31,6 7

XIX 135 30,5 36,6 31,7 38,2 3

XX 135 36,7 39,2 38,3 41,8 1

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se aos resultados deste experimento em particular, sendo esta uma forma de ilustrá-los. Na matriz utilizada para a APD (Ex.16) podemos visualizar em cada linha os estímulos A, V e AV, para execução técnica (t) – ou gesto técnico GT- ou execução expressiva (e) – gesto expressivo GE que geraram 36 respostas. Nas colunas podemos ver os Fatores Contextuais F1 a F8, e as respectivas sensações de continuidade (a) , suspensão (b) e de conclusão (d). Cada elemento da tabela é o número de respostas dadas para cada sensação, segundo cada estímulo. Considerando os Fatores Contextuais, as zonas de ocorrência nos excertos e as respostas dos participantes no experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical”, elaboramos uma Matriz (tabela de contingência) para a APD (Ex.16). Baseados nos dados dessa tabela (matriz com os resultados obtidos das respostas dadas para cada estímulo), elaboramos um conjunto de tabelas (Ex.17, Ex.18, Ex.19, Ex.20, Ex.21, Ex.22, Ex.23 e Ex.24) onde foram computadas as diversas percentagens que nos ajudaram a compreender tais resultados. A tabela Ex.17 indica-nos nas linhas a representação dos estímulos, e nas colunas os fatores (F) subdivididos pelas sensações de continuidade (verde), suspensão (amarela) e conclusão (vermelha). O total global vem significar a soma de todas as respostas, independentemente do estímulo (soma-se, por tanto, as respostas atribuídas em A, V e AV). Já em Ex.18 visualizamos nas linhas os estímulos e nas colunas os fatores (F) subdivididos pelas sensações de continuidade (verde), suspensão (amarela) e conclusão (vermelha). Nessa tabela ilustramos os valores percentuais sobre o total de cada estímulo, por sensação e em cada fator. Para percebermos Ex.19 deveremos observar nas linhas a representação do total dos estímulos Ae + Ve + AVe para o gesto expressivo (GE) e At + Vt + AVt para o gesto técnico (GT). Nas colunas estão representados os fatores (F) subdivididos pelas sensações de continuidade (verde), suspensão (amarela) e conclusão (vermelha). Essa tabela demonstra os valores percentuais por fator (F) e sensação, na soma de todos os estímulos em GE e GT. Ex.20 ilustra nas linhas cada estímulo (A, V e AV) agregado a cada gesto (GE e GT). Nas colunas observamos os fatores (F). Apresenta-se, nessa tabela, os valores percentuais por fator (F), sobre o total de cada estímulo em GE e GT. Será dizer que, do total atribuído no experimento a Ve, por exemplo, 34% das marcações desse estímulo correspondem a F8. A construção de Ex.21 mostra-nos, nas linhas, cada estímulo (A, V e AV) agregado a cada gesto (GE e GT) sendo que, nas colunas, observamos os fatores (F) subdivididos pelas sensações de continuidade (verde), suspensão (amarela) e conclusão (vermelha). Essa tabela nos indica os valores percentuais totais em cada fator (F), por sensação, para cada estímulo em GE e GT. As tabelas Ex.22, Ex.23 e Ex.24 ilustram, nas linhas, as somas de estímulos (A/V, A/AV ou V/AV) aliados ao GE e GT e, nas colunas, os fatores (F1, F3, F4, F6 e

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F8) subdivididos pelas sensações de continuidade (verde), suspensão (amarela) e conclusão (vermelha). Essas tabelas indicam os valores percentuais na soma dos estímulos em GE e GT, sobre o total da sensação.

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5.a) Interpretação dos índices percentuais - Uma primeira averiguação feita a partir dos dados contidos na tabela de contingência gerada pelas respostas dadas para cada estímulo e em cada fator (F) indica que, deles, os fatores F2, F5 e F7 foram os que obtiveram menor ocorrência de respostas aos estímulos, sendo ao todo 5 marcações para F5 (menos de 1% do total) e 18 para F2 e F7 (cerca de 3,1% do total). Em comparação com F8 (180 marcações, cerca de 31% do total) ou F4 (144 marcações, 24,6% do total), F2, F5 e F7 podem ser considerados sem muita influência para as sensações referentes aos estímulos reproduzidos e/ou gestos executados. Uma vez que esta pesquisa procurou compreender se há influência do gesto sobre a performance percussiva, focamos as nossas atenções sobre as situações onde foi possível estabelecermos uma relação de efeito dos estímulos exibidos, acerca dos dados adquiridos. Os Fatores Contextuais nas zonas dos excertos que apresentaram pertinência para as análises foram F1, F3, F4, F6 e F8. Observemos a seguir uma avaliação com uma abordagem descritiva

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das respostas dadas para cada estímulo e em cada fator (F), em termos percentuais.

Comparação por sensação e fator (F) aliando todos os estímulos, em:

i. F1: Observando a matriz da APD percebemos que a sensação de continuidade prevalece em F3, F4, F6 e F8, perdendo peso para suspensão e conclusão apenas em F1. Em verdade, a sensação de conclusão obteve maior peso apenas em F1 (44,7% das marcações, contra 37,2% de suspensão e 18,1% de continuidade), perdendo para as outras duas sensações nos restantes dos fatores analisados. Há de se destacar que F1 representou ausência de intervenção sonora do intérprete, ou seja momentos onde o percussionista não esteve atuando, de forma direta ou indireta, sobre o instrumento.

ii. F3 e F4: A sensação de continuidade obteve ligeira vantagem sobre

suspensão. Poderíamos mesmo dizer que em F4 ocorreu um “empate” com 43,8% das marcações para continuidade e 43,1% para suspensão. Em F3 a diferença aumenta um pouco, mas também podemos dizer que as respostas sobre essas duas sensações foram bastante equiparadas, ficando continuidade com 41,5% das marcações contra 36,9% de suspensão.

iii. F6: Nesse fator a sensação de suspensão teve ampla vantagem em relação

às outras sensações, figurando com 65% das respostas contra 26,7% de continuidade e 8,6% de conclusão. Esse fator representou, dentre outras características, a duração de execução da nota tocada (nesse caso o seu prolongamento através do rulo). Percebemos que esse atributo técnico em conjunção com as outras características atribuídas a esse fator pode ser um agente atenuante no despertar dessa sensação prevalente.

iv. F8: Certificando a nossa análise quanto ao significado de F8 nos trechos

exibidos e, ao visualizarmos os resultados em termos percentuais (61,1% para continuidade, 31,1% para suspensão, 7,8% para conclusão), percebemos que esse Fator Contextual condiz com as nossas impressões e as percepções dos participantes do experimento. As 110 marcações para continuidade mostram uma discrepância em relação aos outros fatores e demais sensações. Há de se destacar a exata igualdade de ocorrências de respostas, aliando todos os estímulos, para GE e GT para as sensações de continuidade e suspensão (55 marcações, ou seja 50% para cada gesto). Tendo a sensação de conclusão significado ínfimo com 14 marcações (sendo as ocorrências sobre GE e GT em 57,5% e 42,5%, respectivamente), podemos admitir que pela igualdade das respostas em GE e GT, para os trechos em que não existem momentos bruscos de “ruptura”, “quebra”, “tensão”, etc., o tipo de gesto utilizado pelo percussionista não vem influenciar as sensações dos trechos executados, existindo pouca relevância para a sensação de conclusão.

Comparação por sensação de A em relação a V e AV em:

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i. F1: A sensação de continuidade perde peso sobre o estímulo A em relação

aos estímulos V e AV. Observamos 23,5% das ocorrências para o primeiro, enquanto anotamos 41,2% para o segundo e 35,3% para o terceiro. Por outro lado, analisando a sensação de conclusão, o estímulo A aparece com 33,3% das marcações contra 28,6% de V e 38,1% de AV. Para a sensação de suspensão o estímulo auditivo aparece com 37,1% das respostas contra 40% de V e 22,9% de AV. É possível constatarmos já, através desses resultados, certa relevância dos estímulos V e AV para a sensação de seguimento dos excertos exibidos quando o intérprete não intervém sonoramente no instrumento (ou seja, quando o corpo do percussionista está em movimento sem produzir sons), uma vez que A aparece com menos peso em continuidade. Mesmo quando comparamos apenas as respostas assinaladas dentro de cada estímulo percebemos que, em A, a sensação de continuidade obteve apenas 12,9% das marcações contra 20% quando observamos AV de forma isolada e 21,1% quando observamos V.

ii. F3: O estímulo A apresenta 33,3% das marcações em continuidade contra

44,4% para AV e 22,2% para V. Para as outras sensações A aparece com menores índices em relação aos outros dois estímulos. Em suspensão, o estímulo V predomina com 54,2% das respostas seguido de e, em conclusão, AV aparece em primeiro plano com 42,9% contra 35,7% de V e 21,5% de A. De forma isolada, o estímulo A é mais influente que V em continuidade, mas sendo menos ocorrente que AV nessa sensação. Por esse Fator Contextual observamos como o estímulo V interfere bruscamente na sensação de suspensão quando o que está em evidência são as discrepâncias de intensidade sonora. A postura do corpo do intérprete poderá ser um agente causador desses resultados. Em F3, A sempre perde peso em relação a pelo menos um dos estímulos que tem incorporado o aspecto visual (V ou AV), o que não ocorre necessariamente com V.

iii. F4: O estímulo A causou menor influência para a sensação de continuidade

(27% contra 34,9% de V e 38,1% de AV). Porém, na sensação suspensão, A exerce maior influência (38,7% contra 37,1% de AV e 24,2% de V). Para a sensação de conclusão o estímulo A segue obtendo maior índice de respostas (42,1%), o mesmo que para AV, contra 15,8% de V. Deste Fator Contextual podemos atestar o fato de que a falta de visibilidade da performance vem induzir no espectador a uma maior tendência à interpretação de momentos musicais sem prosseguimento, mas com características de “ruptura”, “quebra”, etc.

iv. F6: Para a sensação de continuidade o estímulo A segue contando com

menor influência em termos percentuais obtendo 25% das respostas contra 43,7% de V e 31,2% de AV. Nesse fator, curiosamente, A iguala-se a V em conclusão (20% para cada contra 60% de AV) e ao estímulo AV em suspensão (30,8% contra 38,5 de V). Da mesma forma que em F3 o estímulo V foi mais acionado na sensação de suspensão, mas aparece também predominante em continuidade. Dentre os Fatores Contextuais analisados as

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respostas para a sensação de conclusão em F6 apontaram a maior disparidade em termos percentuais entre AV e os outros estímulos.

Relação por sensação de A + V (A/V) ou A + AV (A/AV) para:

i. F1, F4 e F6 em continuidade: A APD nos indica que nesses três Fatores Contextuais o estímulo A, somado a qualquer um dos outros dois estímulos, segue sendo menos influente para essa sensação. Desta forma podemos interpretar que nesses fatores, em relação ao estímulo A, os estímulos V e AV (conjuntamente ou em separado) possuem maior influência na ativação de continuidade. Basta percebermos que se, em F1, AV for o ponto em comum para A e para V (A/AV e V/AV), o estímulo auditivo exercerá menor influência que o visual para essa sensação. O mesmo ocorre em F4 e F6.

ii. F3 em continuidade: Contrariando os fatores F1, F4 e F6, a soma dos

estímulos A e AV, exerce maior influência nessa sensação do que V + AV (V/AV). No entanto A/V perde peso nessa sensação para V/AV.

iii. F1 e F4 em suspensão: O estímulo A somado ao V vem exercer maior

influência do que qualquer outra combinação de estímulos para F1. Em F4, A surge como estímulo chave, uma vez que a soma do mesmo com V ou AV gera uma combinação de estímulos predominante sobre a sensação de suspensão.

iv. F3 e F6 em suspensão: A só aparecerá em maior evidência somado ao

estímulo visual, uma vez que o estímulo predominante nessa sensação, em F3 e F6, é V. De outra forma, a soma de A com AV perde peso.

v. F1, F3, F4 e F6 em conclusão: Em termos percentuais a soma A/AV supera

A/V em todos esses fatores. Nos fatores F1 e F3 A/V também não supera a influência V/AV. Já em F4 os pontos percentuais para essas duas últimas somas de estímulos, nessa sensação, são exatamente iguais. A igualdade percentual aparecerá para A/AV e V/AV em F6.

Comparação por sensação de GT e GE sobre os estímulos V+ AV (V/AV) em:

i. F1: Do total de respostas atribuídas na sensação de continuidade, foram dadas 76,5% das marcações, sendo que 47,1% a GE e 29,4% a GT. Para a sensação de suspensão as respostas foram as mesmas, 31,4%, para GE e GT. No que diz respeito às sensações de conclusão, o estímulo GT foi mais acionado possuindo 38,1% contra 28,6% de GE. Aqui, observamos como o gesto corporal teve efeito nas respostas, com maior tendência para a sensação de continuidade para GE, quando o corpo exerce maior deslocamento e movimento no espaço. Para a sensação de conclusão as respostas tenderam mais para GT (38,1% contra 28,6% de GE).

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ii. F3: Das respostas atribuídas à sensação de continuidade (66,6%), GT obteve 40,7% das marcações contra 25,9% de GE. Na sensação de suspensão (79,2% das respostas) GE prevalece, com uma pequena margem de diferença, surgindo com 41,7% em relação a GT que aparece com 37,5%. A grande prevalência de GE ocorre na sensação de conclusão onde o mesmo indica 71,4% das marcações, ao passo que GT detém 7,1%. Contrariando as análises sobre os outros Fatores Contextuais em relação a V/AV o GT foi mais influente na sensação de continuidade, e o GE surge como mais preponderante nas outras sensações com amplo predomínio em conclusão.

iii. F4: Para V/AV, foram acionadas na sensação de suspensão 61,3% das

marcações enquanto que conclusão recebeu 57,9% e continuidade 73,1%. O GE influenciou 42,9% das marcações em continuidade, contra 30,2% de GT. Para suspensão GT obteve 38,7% das respostas contra 22,6% de GE. Em conclusão GT recebeu 31,6% das marcações contra 26,3% de GE. Observando as relações entre gesto e estímulos ocorridos em F1 e F4, somos levados a concluir que, a princípio, GE vem obtendo através dos estímulos V e AV um maior grau de influência sobre a sensação de continuidade, ao passo que na sensação de suspensão e conclusão o GT “equilibra” esse domínio.

iv. F6: O estímulo V/AV surge no total com 75% das marcações em continuidade. O gesto GE predomina nessa sensação figurando com 43,7% das respostas contra 31,2% de GT. Destacamos a exata igualdade de pontos percentuais para a sensação de conclusão, 40% para cada. Ademais, a sensação de suspensão também obteve percentagens bastante próximas sendo 35,9% para GT contra 33,3% de GE. O GE volta a ser mais influente na sensação de continuidade nesse fator, ao passo que para as outras sensações ocorre, entre os tipos de gesto, um equilíbrio pouco observado em relação aos outros Fatores Contextuais.

6. Impressões finais - Neste artigo pudemos constatar que o aspecto visual

(na forma de estímulo V ou AV) predominou nas sensações de continuidade. Já o estímulo A apareceu com menores índices, para AV ou para V, nessa sensação a partir dos Fatores Contextuais analisados. O aspecto auditivo pareceu influenciar mais as sensações de suspensão e conclusão, chegando mesmo a predominar em algumas situações. Sobre as comparações realizadas entre o gesto expressivo (GE) e gesto técnico (GT) nos estímulos V/AV, observamos uma predominância do primeiro em relação ao segundo para as sensações de continuidade em F1, F3, F4, F6 e F8, perdendo peso apenas em F3. Por sua vez o GT determinou os pontos com maior probabilidade para sensações de conclusão em F1 e F4, obtendo a mesma percentagem que GE em F6. É curioso como esses dois gestos inverteram os sentidos de influência apenas em F3, o que nos leva a crer que o material musical apresentado também poderá ser um agente causador dessa mudança de sentido dos estímulos e gestos em relação às sensações ocorridas. Lembramos que F3 significou, nos excertos, mudança brusca de dinâmica. Em verdade esse fator, na

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APD, pareceu desestabilizar um pouco o rumo dos resultados que foram se apresentando, de forma coerente, fator por fator e sensação por sensação. Vale a pena destacar a proximidade das respostas entre GE e GT (para V/AV) na sensação de suspensão. Em F1 a percentagem foi exatamente a mesma (31,4%). Em F3 e F6 a diferença foi mínima, não sendo relevante uma vez que GE prevalece em F3 e GT em F6, equilibrando as impressões de influência sobre essa sensação. Apenas em F4, na sensação de suspensão o GT prevaleceu sobre o GE. Mesmo o estímulo A apresentando, na sua maioria, menores níveis de influência para as sensações de continuidade nos fatores analisados, admitimos não termos considerado aqui uma correlação entre GE e GT desse estímulo em específico. No entanto, esses dados poderão ser utilizados para uma próxima discussão que tenha como um dos principais objetivos a identificação dos índices de influência sobre sensações de continuidade, suspensão e conclusão, independentemente das predominâncias dos estímulos. Isso acarretará também reconhecer as causas (musicais e/ou extra musicais) que possam vir a determinar esses níveis e/ou presenças dos estímulos nas sensações, em relação aos diferentes gestos executados. Apesar de não ter sido uma situação constante, não foram poucos os momentos onde a relação de um tipo de atitude do gesto (GE ou GT) reproduzido com a sensação acionada no experimento, condisseram com as ocorrências na APD. Apesar de os excertos apresentados serem de curta duração (média de 40 s.), chamou-nos a atenção o fato de o seccionamento feito por distintos elementos expressivos (aos quais denominamos Fatores Contextuais) gerarem também diferentes níveis de sensações sobre os estímulos reproduzidos. Afirmamos isso com base em que, no momento de mudança de Fator Contextual, as respostas variaram na relação GE/GT e nas relações dos estímulos A, V e AV. Quando foram reproduzidos estímulos com a mesma atitude gestual, em distintos pontos do excerto (com fatores contextuais diferentes), houveram diversos momentos em que as respostas não seguiram o mesmo caminho. Ora, se em determinados momentos do experimento o gesto e o estímulo foram os mesmos para momentos expressivos diferentes e, além disso, as respostas não acompanharam a mesma influência, admitimos existir no Fator Contextual um certo grau de efeito sobre as sensações que o indivíduo captou nas performances apresentadas. A APD evidenciou a influência dos movimentos corporais sobre as sensações de continuidade, suspensão e conclusão de um indivíduo numa performance específica em percussão. Outrossim, aconselhamos que o percussionista não se baseie apenas na relação audiovisual em sua performance. O mesmo também deverá ter atenção à interpretação dos meios expressivos e de conteúdo musical que a obra lhe oferece para serem explorados. Ou seja, preocupar-se com a música em si. O corpo deverá funcionar como um agente auxiliador no processo de transmissão de sensações decorrentes da performance musical apresentada.

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Fernando Chaib é Doutor e Mestre em Música/Performance pelo Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro (Portugal) e graduou-se em percussão pela UNESP. Possui prêmios como solista e camerísta em países como Itália, Portugal e Brasil. Vem atuando nos continentes asiático, europeu e americano. Tem artigos nos principais periódicos especializados em música no Brasil e em congressos no exterior. Atualmente é professor no Instituto Federal de Goiás, onde coordena o Núcleo de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão - NΞP³/IFG (que integra o Centro de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão - CΞP³). João Catalão é Doutor em Música/Performance pela Universidade de Montreal (Canadá), tendo se especializado no Conservatório de Estrasburgo e graduado na UFSM. É membro dos grupos de percussão KT-Z (Brasil) e Sixtrum (Canadá). Atua em países do continente europeu e americano. Homero Chaib Filho é Doutor em Matemática Aplicada pela Escuela Técnica Superior de Ingenieros Agrónomos de la Universidad de Madrid (Espanha), além de pesquisador aposentado pela EMBRAPA. Realizou comunicações em congressos nos continentes europeu, asiático e americano. Possui publicações nacionais e internacionais. 1 Este artigo é parte do Capítulo 3 da Tese de Doutorado de Fernando Chaib intitulada O Gesto na Performance em Percussão: Uma Abordagem Sensorial e Performativa, defendida no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. Aveiro. 2 Núcleo de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. 3 Núcleo de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. 4 A discussão sobre esse experimento dá-se no tópico 4. Elaboração do Experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical. 5 Atitude aqui será o modo e o contexto em que o gesto é utilizado na performance. 6 Chamaremos de ausência de intervenção sonora os momentos onde não há atuação direta do intérprete percussionista sobre os eventos sonoros (ou de “silêncio”) ocorrentes em uma performance musical (pausas, ocasiões específicas de suspensões, ataques de notas com figuras rítmicas longas, etc.). 7 Para uma leitura mais aprofundada sobre esse tipo de experimentação sugerimos: SAGIV, N. e WARD, J. 2006. “Cross modal Interaction: lessons from synaesthesia”. Progress in Brain research. Vol.155. Amsterdam: Elsevier B.V. 8 Apresentamos o vídeo desse experimento, com os estímulos, em comunicação oral no Performa’11 – Encontros em Investigação em Performance 2011 (DeCA – UA), indagando aos presentes sobre quantas sílabas os mesmos conseguiam perceber. Apesar de não ter sido levantada a questão de quais fonemas eram escutados, a grande maioria das respostas apontaram para a sensação de três fonemas diferentes. 9 Uma leitura mais aprofundada sobre esta matéria poderá ser encontrada em: RAMSAY, J. E SILVERMAN, 1997. B. W Functional Data Analysis. Berlim: Springer. 10 Esta medida tem a ver com o próprio programa Max MSP. O programa obtém os dados de tempo no formato Quick Time e automaticamente os converte para mstime.

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11 Neste artigo as sensações serão representadas nas tabelas pelas letras, uma vez que a configuração deste documento dá-se em preto e branco, impossibilitando o reconhecimento das cores. Originalmente as respostas na régua surgem coloridas (verde, amarelo e vermelho). 12 Com exceção ao Fator Contextual 8 (F8), todos os Fatores Contextuais buscam um sentido antagônico ao de continuidade, e fazem conexão com pelo menos um dos quatro parâmetros do som: Timbre, Altura, Tempo e Volume (ver Ex.12).

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DOI: 10.1590/permusi2015a3103

Gesto na performance da percussão, Parte 2: análise fatorial de correspondências de dados experimentais1 Fernando Chaib (NΞP³/IFG2 - Inst. Fed. Ed., Ciência e Tecnologia, Goiânia, GO) [email protected]

Homero Chaib Filho (NΞP³/IFG3 - Inst. Fed. Ed., Ciência e Tecnologia, Goiânia, GO) [email protected]

João Catalão (SIxtrum/Université de Montreal, Montreal, Canadá) [email protected] Resumo – Este artigo, Parte 2 do mesmo estudo, apresenta os resultados do experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical” (CHAIB et. al. 2013) analisados através da técnica estatística Análise Fatorial de Correspondências (AFC). O objetivo principal dessa análise é o de observar, através de índices, a influência do gesto na transmissão de sensações de continuidade, suspensão e conclusão sobre a performance em percussão. Uma vez alcançado o objetivo será possível generalizar os resultados em performances realizadas sobre os mesmos moldes das apresentadas no experimento. Palavras-chave: influência do gesto na Performance; percussão; AFC; sensações na performance.

Gesture on percussion performance, Part 2: correspondence factorial analysis of experimental data Abstract - This paper, Part 2 of the same study, presents the results of the experiment "Sensation of

continuity of a musical excerpt" (CHAIB et. al. 2013) analyzed using the statistical technique Factor Analysis of Correspondences (FAC). The main objective of this analysis is to look through indexes, the influence of gesture in conveying sensations of continuity, suspension and conclusion on the performance on percussion. Once achieved the goal will be possible to generalize the results in performances conducted on the same lines presented in the experiment. Keywords: gesture influence in performance; percussion; FAC; sensations in performing.

1. Introdução - Depois de constatada por nós a influência dos gestos corporais sobre as sensações de continuidade, suspensão e conclusão de um individuo, em uma performance percussiva em específico (CHAIB et. al. 2013), procuramos evidenciar a influência dos gestos sobre essas mesmas sensações correlacionando os estímulos4 com os gestos5 e Fatores Contextuais6 desenvolvidos para o experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical” (CHAIB et. al. 2013). Para isso, utilizamos os dados colhidos nesse experimento para a realização da Análise Fatorial de Correspondências (AFC). Neste artigo será possível perceber que ao realizar-se uma performance em percussão nos moldes apresentados no experimento em questão, os níveis de influência dos gestos sobre essas performances em percussão poderão manter-se relacionados. Isso poderá trazer, ao intérprete percussionista, uma série de reflexões capazes de revolucionar a sua relação com o corpo e performance, sempre obviamente em função da música executada.

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2. Sobre o Experimento “Sensação de continuidade de um trecho musical”7 – O experimento significou a apresentação de três trechos subsequentes da obra Exil: Shangai 45, de Michel Longtin, gravados sobre os estímulos áudio (A), visual (V) e audiovisual (AV) para três grupos de dois indivíduos cada. Dois tipos de gestos foram utilizados para a gravação dos estímulos: Gesto Técnico (GT) e Gesto Expressivo (GE). Através da geração de um PATCH desenvolvido com o software MAX MSP 6.0, os participantes exprimiram suas sensações de continuidade, suspensão e conclusão, utilizando teclas coloridas no computador. Cada grupo de indivíduos apreciou um estímulo combinado com um tipo de gesto e trecho diferentes (Ex.1)8.

In.1 e In.2 Gr. I

In.1 e In.2 Gr. II

In.1 e In.2 Gr. III

A1t A2t A3t

A3e A1e A2e

V2t V3t V1t

V1e V2e V3e

AV3t AV1t AV2t

AV2e AV3e AV1e

Ex.1 - Divisão dos Estímulos por grupos, onde: In. (Indivíduo), Gr. (grupo).

Para o reconhecimento das respostas no programa e formulação das tabelas a serem utilizadas na AFC, determinamos a letra a como sensação de continuidade; a letra b sensação de suspensão e d, consequentemente, conclusão. Combinados estímulos, gestos e trechos, obtivemos 18 tipos de apresentações distintas gerando, ao todo, 36 respostas. Dessas 36 respostas gerou-se uma tabela de contingência (Ex.2) utilizada para a AFC.

3. Sobre a AFC - Embora estejamos lidando com questões subjetivas latentes que

vem de encontro com estados emocionais e comportamentais do espectador – uma vez que, segundo SANTIAGO e MEYEREWICZ (2009, p.85), o gesto “também é portador da identidade cultural do instrumentista, envolvendo seus valores, costumes e comportamentos vivenciados socialmente” – o tipo de resposta apresentada pelo experimento realizado conduz a uma tabela de dados que nos levou a optar por trabalhar com uma técnica de análise fatorial:

Dado que el problema de la medida en las ciencias sociales y del comportamiento adquiere especial dificultad, estos métodos, que relajan los requisitos exigibles a los datos, abren un amplio espectro de posibilidades para el estudio de estos fenómenos. La simplicidad de la interpretación de los resultados, junto con la disponibilidad de paquetes estadísticos de fácil manejo, hacen de esta técnica un instrumento imprescindible para cualquier investigador (BATISTA e SUREDA, 1987, p.183).

Quando empregamos este tipo de análise estamos interessados no comportamento de uma variável ou grupos de variáveis em covariação com outras. As técnicas de análise multivariada são úteis para descobrimos regularidades no comportamento de duas ou mais variáveis e para testar modelos alternativos de associação entre tais variáveis, incluindo a determinação de quando e como dois ou mais grupos diferem em seu perfil multivariado. Isso nos permitirá admitir que a relação estatística obtida no experimento

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poderá refletir-se sobre outros eventos envolvendo a performance para percussão, que não apenas os aqui reproduzidos. A Análise Fatorial é uma das técnicas mais usuais do que se convencionou chamar Análise Multivariada. Tais técnicas visam ordenar e reduzir o número de variáveis correlacionadas entre si, através da geração de fatores 9 , que associados aos autovalores denominam-se componentes principais, permitindo a explicação da variabilidade do conjunto de dados iniciais (BARROSO, 2003). A análise fatorial é essencialmente um método para determinar os fatores principais existentes em um conjunto de dados, definindo quais indivíduos ou variáveis pertencem as quais fatores, e com qual intensidade de pertinência tais indivíduos ou variáveis ocorrem em um fator. Existem duas vertentes essenciais para essas técnicas: uma que se baseia na estatística inferencial (abordagem anglo-saxônica); outra que se baseia na estatística descritiva (abordagem francesa). Para diferenciar, os que se utilizam da abordagem francesa costumam chamar essas técnicas de multidimensionais. A AFC, uma das técnicas de análise multidimensional 10 , é, por assim dizer, uma evolução da Análise de Componentes Principais (ACP) dirigida para a análise tabelas de dados que representam contagem (nessa categoria não se enquadram dados contínuos como valores correspondentes a medidas de peso, altura, tempo, etc.) e que são dados discretos (número de vezes que se aperta uma determinada tecla, por exemplo). Na AFC, costuma-se representar a tabela de dados como uma matriz nxm onde n é o número de variáveis e m o número de indivíduos. O conteúdo da matriz (ou tabela) é o número de ocorrências de um indivíduo em uma variável e a ela dá-se o nome de tabela de contingência. Desta forma a AFC gera fatores que agregam as variáveis ou indivíduos com seus respectivos graus de pertinência. Tais fatores têm uma hierarquia: o, assim designado, primeiro fator é o que retém a maior quantidade de informações (ou o de maior peso das informações) contida na tabela de contingência; o segundo fator retém a segunda maior quantidade de informação; o terceiro, a terceira maior quantidade, e assim por diante. Esses fatores são, na verdade, eixos que definem espaços bidimensionais, tridimensionais, quadridimensionais e n-dimensionais. O plano é um espaço bidimensional e cada par de fatores gerados forma um plano. Aquele composto pelos dois primeiros fatores é o que agrega a maior parte das informações contidas na tabela de dados e chama-se primeiro plano fatorial e é sobre o qual, em geral, que se atém a atenção de análise. Enquanto resultado, poderemos, através dos fatores, observar como as variáveis ou os indivíduos se relacionam; e no plano como variáveis e indivíduos se relacionam em relação aos próprios fatores. Os dados obtidos do experimento receberam devido tratamento para permitir a montagem de uma tabela de contingência (Ex.2) com vistas à realização da Análise Fatorial de Correspondências (AFC), onde:

as linhas correspondem, através das execuções técnica (t) ou expressiva (e), aos estímulos fornecidos no experimento realizado: auditivo (At e Ae), visual (Vt e Ve) ou audiovisual (AVt e AVe).

as colunas correspondem às sensações de continuidade (a), suspensão (b) e conclusão (d) em cada Fator Contextual (F).

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Desta forma, cada célula da tabela corresponde ao número de respostas dadas à uma sensação dentro de um fator contextual devido a um estímulo. A execução da AFC foi feita sobre os dados dessa tabela utilizando-se o software Statistical Analysis System (SAS) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), e os resultados estão discutidos a seguir. Para facilitar a execução do SAS ao invés de cores, definiram-se as seguintes letras para os tipos de sensação dentro de cada fator contextual: a = continuidade, b = suspensão e d = conclusão. Sendo assim, as colunas da tabela, para execução do software, serão nominadas como: F1a, F1b, F1d, F2a, F2b, e assim por diante até F8d. Desta forma, como exemplo, F1a representa a sensação de continuidade para o Fator Contextual F1 devido a algum estímulo. Semelhantemente, F4d representará a sensação de conclusão no Fator Contextual F4. A partir dos pontos definidos pela tabela de contingência (Ex.2) e através de combinações lineares dessa tabela, a AFC concebe fatores que geram um espaço vetorial, no qual os pontos da tabela são projetados11. Cada fator gerado retém uma quantidade de informação (associada ao peso relativo que os pontos possuem uns em relação aos outros na tabela de contingência) de maneira a que a soma da quantidade de informação de todos os fatores é igual a quantidade de informação total contida na tabela inicial. Os fatores (também chamados eixos fatoriais) com maior quantidade de informação, são chamados “fatores principais”, e são ordenados, decrescentemente, pela ordem de importância (ou peso, igual a quantidade de informação retida pelo eixo fatorial). Os dois primeiros eixos fatoriais (os de maior peso), geram o primeiro plano fatorial que é o que retém maior quantidade de informação com respeito aos dados iniciais. Busca-se, então, um plano fatorial que retenha uma quantidade expressiva da informação total e considera-se que a partir de 70% da informação total, existe uma quantidade boa para a realização da análise e estabelecimento das relações que extraem as informações dos dados da tabela de contingência. Ao executarmos a AFC sobre a tabela equivalente ao Ex.2, observamos que o primeiro plano fatorial (como dito acima, definido pelos dois primeiros eixos fatoriais) reteve aproximadamente 74% da informação total, sendo que o primeiro eixo reteve 42,73% e o segundo 30,74% da informação total (Ex.3). Consideramos, assim, que o primeiro plano fatorial reteve informações suficientes para a caracterização dos eixos fatoriais e o estabelecimento de relações inter e entre as linhas (os estímulos) e as colunas (as sensações para cada fator contextual). Para criarmos condições de estabelecer tais relações faremos uma tipificação dos dois primeiros eixos em relação aos estímulos (linhas), podendo também ser tipificado em relação às sensações (colunas). Ressaltamos que o uso do termo “importância para a formação de um eixo” se refere à caracterização com fins para a tipificação. Essa tipificação é que permitirá a generalização dos resultados do experimento realizado.

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Ex.3 - Primeiro plano fatorial.

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4 - Tipificação dos eixos fatoriais pelas linhas12 (estímulos) Estudaremos a contribuição relativa (peso associado à quantidade de informação para a geração de um fator) de cada estímulo para a formação dos dois primeiros eixos fatoriais. Será importante conhecer, também, a maneira como esses estímulos se correlacionam. Para isso devemos observar o sinal (+ ou -) de suas coordenadas no plano (Ex.4):

Contribuição Parcial Contribuição Parcial

Sinal das Coordenadas

Estímulo Eixo 1 Estímulo Eixo 2

Estímulo Eixo 1 Eixo 2

Ae 33,59 Ve 37,12

At - -

AVt 31,18 AVe 32,81

Vt - +

Vt 16,28 At 16,30

AVt + -

Ve 9,52 Vt 10,59

Ae + +

AVe 8,81 Ae 3,05

Ve - -

At 0,62 AVt 0,12

AVe - +

Ex..4 - Contribuição parcial das linhas (estímulos) para a formação do 1º e 2º fatores (eixos); sinais das coordenadas nos eixos fatoriais.

Vê-se que os estímulos que mais contribuíram para a formação do primeiro eixo (denominado Eixo 1 no Ex.4) foram Ae, AVt e Vt, nesta ordem de importância. Suas coordenadas possuem nesse eixo sinal positivo para os dois primeiros estímulos e negativo para o terceiro. Assim, constatamos que, no que diz respeito ao primeiro fator, existe correlação positiva entre os estímulos Ae e AVt e esses dois estímulos têm correlação negativa com o estímulo Vt. Lembramos que uma correlação positiva entre duas variáveis implica na mesma forma de variação entre elas: se uma aumenta a outra aumenta também; se uma diminui a outra também diminuirá. Já a correlação negativa implica em variações contrárias: se uma aumenta a outra diminuirá e vice-versa.

No nosso caso, diremos que o estímulo Ae provoca reação semelhante ao estímulo AVt e que o estímulo Vt provoca reação inversa aos dois anteriores. Isso quer dizer que, a magnitude das respostas dadas ao estímulo AVt é diretamente proporcional à magnitude das respostas dadas devido ao estímulo Ae. Por outro lado, as respostas dadas ao estímulo Vt têm magnitude inversamente proporcional às dadas aos estímulos Ae e AVt. Isso significa que, quando o indivíduo ouve e vê a execução técnica faz uma associação resultante à audição da execução expressiva (Ae). Porém, quando apenas vê, ele dá maior importância à execução técnica (Vt) sem relacionar a uma audição resultante de execução expressiva. Veremos quais tipos de sensações relacionam-se predominantemente a estes estímulos ao associarmos as colunas aos eixos. O segundo eixo fatorial (Eixo 2 em Ex.4) está caracterizado pelos estímulos Ve (que possui coordenada negativa), AVe (com coordenada positiva) At (com coordenada negativa), nesta ordem de importância para a geração desse eixo. Nota-se que, para esse eixo fatorial, existe correlação positiva entre os estímulos Ve e At e negativa entre esses e o estímulo AVe. As relações entre esses estímulos se dão como para o

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primeiro eixo fatorial. Tal fato nos indica que Ve e At provocam sensações semelhantes e distintas de AVe. Tais caracterizações nos permitem tipificar o primeiro eixo fatorial como “do estímulo Ae e AVt”. Os pontos correspondentes às colunas13 que tiverem coordenadas positivas no primeiro eixo corresponderão a sensações causadas preponderantemente por esses estímulos. O segundo eixo pode ser tipificado como “eixo associado ao GE (gesto expressivo)”, sendo que os pontos correspondentes às sensações com sinal positivo em suas coordenadas do segundo eixo, serão causados preponderantemente pelo estímulo AVe; as sensações com sinal negativo no segundo eixo, terão sido causadas preponderantemente pelo estímulo Ve. Ou seja, o GE associa-se às sensações causadas pelos estímulos Ae e Ve, enquanto o estímulo Ve, corresponderá às sensações associadas à parte negativa do segundo eixo.

5. Tipificação dos eixos fatoriais pelas colunas (sensações) - No que diz

respeito à caracterização das colunas (as sensações expressas devidos aos estímulos) constatamos que, pelo Ex.5, as sensações de maior peso na formação do primeiro eixo fatorial foram de suspensão em F7, F8, F4, F3 e de conclusão em F4, com esta ordem de importância para a formação do primeiro fator.

Contribuição Parcial

Contribuição Parcial

Coordenadas

Sensação

por fator (F) Eixo 1

Sensação

por fator (F) Eixo 2

Sensação

por fator (F) Eixo 1 Eixo 2

F7b 16,39

F8d 14,52

F1a - -

F8b 14,61

F2d 13,57

F1b - -

F4b 14,52

F8a 11,74

F1d + +

F3b 12,60

F5b 11,66

F2a - +

F4d 10,15

F6a 8,50

F2b - +

F1d 5,72

F6d 8,50

F2d - -

F3a 3,95

F2b 5,78

F3a + +

F5b 3,89

F1d 4,07

F3b - -

F3d 3,11

F7d 3,39

F3d - -

F5a 3,07

F4d 2,62

F4a + +

F7a 3,07

F6b 2,58

F4b + -

F1a 2,98

F3a 2,42

F4d + -

F2d 1,76

F1b 1,95

F5a + -

F6a 1,67

F2a 1,85

F5b - +

F2b 0,87

F4a 1,67

F6a - -

F1b 0,66

F8b 1,64

F6b - +

F2a 0,35

F5a 1,01

F6d + +

F6b 0,18

F7a 1,01

F7a + -

F7d 0,16

F3b 0,78

F7b + +

F8d 0,12

F3d 0,66

F7d - -

F6d 0,08

F1a 0,04

F8a - -

F8a 0,08

F4b 0,01

F8b - +

F4a 0,02

F7b 0,01

F8d - +

Ex.5 - Contribuição parcial das colunas (sensações) para a formação do 1º e 2º Eixos Fatoriais; sinais das coordenadas nos eixos fatoriais.

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Desde que o sinal de F7b, F4b e F4d é positivo constatamos correlação positiva com Ae e AVt que, assim, são os principais estímulos a causar essas sensações. Para o aparecimento dessas sensações o estímulo Vt teve muito pouca influência. Por outro lado, o sinal negativo das coordenadas das sensações F8b e F3b nesse primeiro eixo, indica que praticamente não existirá influência dos estímulos Ae e AVt para o seu aparecimento e que poderão sofrer leves influências do estímulo Vt. O segundo eixo fatorial tem como principais responsáveis pela sua formação as sensações F8d, F2d, F8a, F5b, F6a e F6d, nessa ordem de importância. Desde que as sensações F8d, F5b e F6d têm suas coordenadas nesse segundo eixo positivas, estarão provocadas pelo estímulo AVe. Já, as sensações F6a, F2d e F8a que têm suas coordenadas, no segundo eixo, negativas foram provocadas pelo estímulo Ve.

6. Interpretação do gráfico - Tendo sido feitas as tipificações dos dois primeiros

eixos fatoriais, segundo estímulos e caracterizadas as sensações que têm maior importância para o surgimento dos dois primeiros eixos fatoriais, ficamos habilitados para a interpretação do gráfico do primeiro plano fatorial, definido por esses dois eixos. Antes, devemos observar que os pontos no gráfico são projeções no primeiro plano fatorial dos pontos originais definidos pela tabela de contingência. A AFC proporciona uma medida, chamada qualidade de representação do ponto no plano, definida pelo cosseno quadrado, que nos informa quão próximo ao plano está o ponto projetado. Essa medida varia de zero a um e nos informa que um ponto com qualidade de representação igual a 1, estará exatamente sobre o plano; quanto mais a qualidade de representação se aproxima de 0, mais distante do plano estará o ponto. Tal informação é importante para que não haja confusão ao se estabelecer as relações entre pontos e eixos, na observação do gráfico desse plano. Quanto mais próxima de 1 for a qualidade de representação, mais firme será a relação entre o ponto e os eixos. A Tabela Ex.6 traz, em ordem decrescente, os valores para a qualidade de representação de linhas e colunas. Vemos que, à exceção de Vt e At, os demais estímulos estão muito bem representados, mostrando boa correlação entre os mesmos e o plano. Isso significa que os pontos das sensações que tiverem boa qualidade de representação terão a influência desses estímulos, como já indicado. Assim, considerando a qualidade de representação das sensações no plano, ao observarmos o gráfico, poderemos dizer qual estímulo provoca tal sensação e como esta sensação se correlaciona com as demais. Como exemplo, tomemos a sensação F1d que tem qualidade de representação igual a 0,9. Pela observação do gráfico da AFC (Ex.7), notamos que essa sensação se situa mais próxima do Eixo 2, pela parte positiva. Então, considerando a tipificação feita e a posição de F2a no gráfico (onde se situa em cima do Eixo 2 pela parte positiva), poderemos dizer que a sensação de continuidade em F2 foi devido ao estímulo AVe.

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Estímulo Qualidade

Sensação por

fator contextual (F)

Qualidade

Ae 0,84

F8a 0,97

AVt 0,84

F2d 0,93

Ve 0,83

F6d 0,92

AVe 0,71

F5b 0,92

Vt 0,57

F7b 0,91

At 0,54

F1d 0,90

F4b 0,87

F4d 0,85

F3b 0,85

F1a 0,82

F3a 0,80

F8b 0,79

F6a 0,78

F8d 0,66

F5a 0,63

F7a 0,63

F2a 0,59

F7d 0,54

F6b 0,51

F2b 0,51

F1b 0,40

F3d 0,21

F4a 0,20

Ex.6 - Qualidade de representação para os estímulos e para as sensações no primeiro plano fatorial.

Outro exemplo poderá ser a leitura feita sobre F8a que tem a melhor qualidade de representação (0,97), mas aparece pela parte negativa do Eixo 1. Ao considerarmos a mesma tipificação e posição de F6a no gráfico, percebemos como esse fator surge próximo ao estímulo Ve, atestando a influência desse estímulo sobre a sensação de continuidade em F6:

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Ex.7 - Gráfico da AFC, onde: Dimension 1 = Eixo 1. Dimension 2 = Eixo 3.

Podemos dizer que as influências sofridas pelas sensações nos Fatores Contesxtuais (F) variaram de estímulo para estímulo, sendo que Ae e AVt tiveram mais peso nas sensações próximas ao Eixo 1 e Ve e AVe nas sensações próximas ao Eixo 2. Independentemente de ser GT ou GE, o estímulo audiovisual (AV) foi o que surgiu com maior peso nos dois eixos, em relação a A e V, tendo maiores influências nas percepções das sensações de continuidade, suspensão e conclusão. Tratando-se propriamente de música, era de se esperar que o estímulo A se evidenciasse, porém é realmente relevante o resultado referente ao estímulo V. Percebemos que, por esse prisma, o aspecto visual não pode ser ignorado na performance destinada à música para percussão.

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É natural que, sobre esse ponto de vista e através dos elementos aqui apresentados, constatemos que todos os tipos de estímulos (A, V e AV) e de atitudes do gesto (GE e GT) presentes no experimento causaram, sob distintos níveis, influência nas sensações de continuidade, suspensão e conclusão a cerca dos trechos executados. Nos resultados da AFC a expressividade da execução, representada por GE, figurou com maior peso de influência representado pelos estímulos A, V e AV. Já o GT surge como agente influenciador através do estímulo AV (os estímulos V e A tiveram pouco peso e menores níveis de influência aliados ao GT). Seguindo essa perspectiva e através daquilo que buscamos ilustrar relativamente às questões do GE e GT, percebemos uma variação das influências em relação às três sensações do experimento, destoando levemente daquilo que ocorreu na APD (CHAIB et. al. 2013). Como exemplo podemos citar F1 que tem, na AFC, a sensação de conclusão com maior influência a partir do estímulo AVe. Os estímulos AVe e Ve condisseram com o sentido de continuidade nos fatores F2 e F6. O GE também surge como agente influenciador em F3, para a sensação de continuidade (sendo neste caso o estímulo V). Para F4 por exemplo, a sensação de suspensão obteve maior influência em AVt. A sensação de continuidade em F4 também teve maior peso através desse mesmo estímulo. Desta feita afirmamos que, sendo GT ou GE, a visualização dos movimentos corporais (estando em convergência ou não com o estímulo auditivo) exerceram influência sobre as sensações de continuidade, suspensão e conclusão dos participantes do experimento sobre uma performance percussiva.

7. Impressões e conclusões sobre as análises realizadas - Do que pudemos analisar, será difícil afirmar concretamente ou de uma maneira mais cartesiana que o GE em conjunção com os estímulos influenciará sempre a um nível preciso de sensação e o GT, da mesma forma, em outro nível. Essas duas possibilidades de movimentos corporais parecem causar influência sobre as sensações de continuidade, suspensão e conclusão, não apenas quando estão aliadas aos estímulos apresentados, mas também aos contextos sonoros e musicais em questão (timbre, meios expressivos, duração, etc.). Daí a impossibilidade de “taxar” ou de “rotular” os diferentes meios de movimentos a qualquer que seja a sensação atribuída na performance em percussão. De certa forma justifica-se, através do “Gesto Percussivo Interpretativo” (CHAIB, 2013, p.165), o trabalho intelectual do músico percussionista em palco. Se, hipoteticamente, gestos e atitudes específicos (no caso aqui GE e GT) influenciassem sempre os mesmos juízos de valores, a busca por uma expressividade própria do músico passaria a ser obsoleta e desnecessária. O seu desempenho enquanto performer limitar-se-ia às questões técnicas do instrumento, uma vez que seus movimentos já seriam a própria linha de transmissão de toda mensagem a ser passada, interpretativamente e expressivamente, para a audiência. Se o GE e GT possuíssem uma acepção especifica e invariável sobre as sensações aqui estudadas, bastaria ao intérprete seguir um método de movimentos pré-estabelecidos para garantir, em parte, o sucesso da transmissão das mesmas.

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A AFC assegura-nos que essas relações das respostas poderão se manter, caso outros estudos sejam realizados sobre os mesmos parâmetros de performance. Isso nos possibilita atestar a inegável influência que o aspecto visual causa nas sesnações do espectador sobre a performance percussiva, estando em convergência com o estímulo auditivo (em forma de estímulo AV) ou de forma isolada (como apenas estímulo V). Constatada a influência que os gestos podem causar sobre as sensações de continuidade, suspensão e conclusão a partir da execução de um trecho musical realizada por um percussionista consideraremos, o movimento corporal, uma das principais fontes de expressividade para a elaboração da sua performance. Acreditamos que o desenvolvimento e a percepção dos gestos potencialmente exequíveis durante a execução instrumental percussiva permitirá o alargamento das possibilidades de transmissão do conteúdo musical da obra reproduzida pelo intérprete. Isso poderá gerar diferentes níveis de expressão levando o performer a ampliar as suas faculdades interpretativas, possibilitando ao espectador experimentar novos sentidos de interpretação e expressão, ilustrados em palco pelo percussionista. Através de toda essa reflexão diremos que o intérprete percussionista poderá usufruir dos conceitos de “movimento corporal” através de diferentes atitudes gestuais (dentre elas o GE e GT); “memória corporal”; “tipologias de gesto” em percussão (Gesto Percussivo, Gesto Percussivo Interpretativo e Gesto Percussivo Expressivo). Tais conceitos são desenvolvidos e especificados no artigo “Três Perspectivas Gestuais para uma Performance Percussiva: Técnica, Interpretativa e Expressiva” (CHAIB, 2013). No nosso entender trata-se, antes de mais nada, de legitimar uma preocupação do uso do corpo no fazer musical inserida nessa performance, sem qualquer intenção coreográfica ou de construção de uma espécie de mise en cène sobre o ato performativo. Buscar compreender as características musicais da obra e, a seguir, transpô-las para os movimentos corporais (segundo as suas próprias ideias) parece ser um bom começo para a elaboração dessa relação gestual entre a música e o corpo. Enfatizamos que a elaboração gestual corporal do percussionista deverá ser sempre em função da obra, e não o contrário. A música, o seu resultado sonoro enquanto obra musical deverá sempre ser o mais importante. Para nós, o corpo deverá ser um auxiliário na transmissão das ideias musicais. Caso contrário corre-se o risco de a performance tornar-se excessivamente cênica inapropriada para o tipo de performance musical que aqui estudamos. O resultado musical final poderá mesmo ser prejudicado caso o trabalho sobre a música em si seja posto em segundo plano, ou seja, passe a estar em função dos movimentos corporais. Partimos do princípio de que a preocupação com o corpo deva existir a partir do momento em que a obra a ser interpretada já esteja dominada. Ou seja, onde a inserção do trabalho corporal numa perspectiva gestual apenas ampliará ou auxiliará nas capacidades comunicativas da performance e/ou da obra. Isso, efetivamente, traz à tona questões éticas, entre elas a honestidade do performer para com o público no ato de executar uma obra musical. Para nós, a valorização do trabalho realizado com o corpo, conjuntamente com a composição dos seus movimentos, significa gerar uma concepção performativa percussiva preocupada em congregar os diversos elementos

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atuantes em palco, frutos da reprodução de uma performance musical. O gesto será, sem dúvida, um deles. Referências BATISTA, J.M., e J. SUREDA (1987). Análisis de correspondencias y técnicas de clasificación: Su

interés para la investigación en las ciencias sociales y del comportamiento. Infancia y Aprendizaje n.39/40: 171-186.

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Fernando Chaib é Doutor e Mestre em Música/Performance pelo Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro (Portugal) e graduou-se em percussão pela UNESP. Possui prêmios como solista e camerísta em países como Itália, Portugal e Brasil. Vem atuando nos continentes asiático, europeu e americano. Tem artigos nos principais periódicos especializados em música no Brasil e em congressos no exterior. Atualmente é professor no Instituto Federal de Goiás, onde coordena o Núcleo de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão - NΞP³/IFG (que integra o Centro de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão - CΞP³). Homero Chaib Filho é Doutor em Matemática Aplicada pela Escuela Técnica Superior de Ingenieros Agrónomos de la Universidad de Madrid (Espanha), além de pesquisador

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aposentado pela EMBRAPA. Realizou comunicações em congressos nos continentes europeu, asiático e americano. Possui publicações nacionais e internacionais.

João Catalão é Doutor em Música/Performance pela Universidade de Montreal (Canadá), tendo se especializado no Conservatório de Estrasburgo (França) e graduado na UFSM. É membro dos grupos de percussão KT-Z (Brasil) e Sixtrum (Canadá). Toca em países no continente europeu e americano.

1 Este artigo é parte do Capítulo 3 da Tese de Doutorado de Fernando Chaib intitulada O Gesto na Performance em Percussão: Uma Abordagem Sensorial e Performativa, defendida no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. Aveiro. 2 Núcleo de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. 3 Núcleo de Excelência para o Ensino, Pesquisa e Performance em Percussão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. 4 Visual (V), Áudio (A) e Audiovisual (AV). 5 Gesto Técnico (GT) e Gesto Expressivo (GE). 6 Como descrito no artigo “A Influência do Gesto na Performance em Percussão: Análise Descritiva de Dados Experimentais” (CHAIB et. al. 2013), os Fatores Contextuais significaram “situações que acreditamos ‘desestabilizar’ um sentido de continuidade (por exemplo, situações de ‘ruptura’, ‘quebra’, ‘tensão’, etc.)”. Por exemplo: mudanças bruscas de dinâmica; pausas; fermatas; mudanças bruscas de timbres; etc. 7 A metodologia utilizada para a realização desse experimento poderá ser consultada na íntegra no artigo “A Influência do Gesto na Performance em Percussão: Análise Descritiva de Dados Experimentais” (CHAIB et. al. 2013). 8 Tabela extraída do artigo “A Influência do Gesto na Performance em Percussão: Análise Descritiva de Dados Experimentais” (CHAIB et. Al. 2013). 9 Não confundir com “Fatores Contextuais”. 10 Cujo tratamento teórico foi devido a Benzécri (LEBART et al. 2000, p.67). 11 Ver gráfico da AFC (Ex.7). 12 Deste ponto em diante trataremos as linhas por estímulos. 13 Deste ponto em diante trataremos as colunas como sensações.

MELLO, Ê. L. et al. Postura corporal, voz e autoimagem... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.74-85.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3104

Postura corporal, voz e autoimagem em cantores líricos

Ênio Lopes Mello (PUC, São Paulo, SP) [email protected]

Luiz Ricardo Basso Ballestero (USP, São Paulo, SP) [email protected]

Marta Assumpção de Andrada e Silva (PUC, São Paulo, SP) [email protected]

Resumo: A consciência corporal é um pré-requisito imprescindível na manutenção da postura e na elaboração da gestualidade vocal e corporal para os cantores líricos. O objetivo desse estudo foi discutir sobre as relações entre signos posturais e vocais com a autoimagem em cantores líricos. Para tanto, foi realizada uma discussão semiológica baseada na Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Filosofia, Psicologia e Artes, principalmente canto. Essa discussão foi estruturada em três tópicos: A) Singularidade e percepção corporal; B) Imagem e expressão; C) Postura, voz e autoimagem. Considerações finais: a expressão e a imagem corporal são figuradas por meio da conscientização da postura e do movimento corporal, portanto todo movimento é expressivo. Toda expressão tem efeito na imagem corporal, logo, toda nova percepção da expressão produzirá alteração na autoimagem. Dessa forma, o cantor lírico altera a percepção de si mesmo, a cada nova interpretação e institui novos signos para os gestos e para as posturas corporais. Palavras chaves: postura; imagem corporal; voz.

Body posture, voice and self-image on lyrical singers Abstract: Body awareness is an essential precondition to maintain posture and the development of vocal and bodily gestures for lyric singers. The aim of this study was to discuss the relationship between postural and vocal signs with self-image in lyric singers. Therefore, a discussion was performed based on semiotic Physiotherapy, Speech Therapy, Medicine, Philosophy, Psychology and Art, especially singing. This discussion was structured around three topics: A) Uniqueness and body awareness; B) Image and expression; C) Posture, voice and self-image. Final considerations: the expression and body image are characterized through awareness of posture and body movement so every movement is expressive. Every expression as an effect on body image, therefore every new perception of the expression will produce changes in the self-image. Thus, the lyric singer changes the self-perception on each new interpretation and establishes new signs for the gestures and body postures. Keywords: posture; body image; voice.

1 - Introdução Cantores líricos necessitam de liberdade e controle da postura corporal, durante uma interpretação operística, uma vez que isso favorece a estabilidade vocal. Portanto, para esses profissionais a consciência corporal é um pré-requisito imprescindível na elaboração dos gestos (MELLO et al., 2013; LAGIER et al., 2010; STAEL et al, 2009; MELLO et al., 2009; ARBOLEDA, FREDERICK, 2008). Entretanto, as práticas inerentes ao canto lírico são extremamente exigentes quanto aos quesitos técnicos vocais e cênicos. Os cantores devem conceber

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um estilo de canto em conformidade com as partituras e em condições pré-determinadas, que raramente podem sofrer alterações. Como por exemplo: adequar aspectos linguísticos às normas de pronúncia do idioma; adaptar o timbre vocal para determinada peça/compositor/estilo/personagem/gênero; respeitar as indicações de andamento, intensidade e a tonalidade conforme a partitura (KAYAMA et al., 2007; SOUSA et al., 2010, MELLO et al., 2013). Quando estão em cena, os cantores líricos devem incorporar as características estilísticas, emocionais e físicas do personagem, segundo critérios estabelecidos pelo diretor cênico e ou regente, sem que isso cause prejuízo aos ajustes vocais. Essas são características do corpo cênico do cantor durante uma interpretação, que para alguns críticos, por vezes, pode atrapalhar o corpo que canta (VELARDI, 2011). Em contrapartida a essas exigências, quando estão nos palcos os cantores são aclamados por interpretações ímpares. E igualmente são apreciados pela habilidade em conceber os elementos musicais em caráter de improvisação; pela capacidade de criar um gestual cênico próprio; pela homogeneidade na concepção interpretativa que norteia a execução da obra. Além disso, para TRAGTENBERG (2007, p.43), o intérprete-cantor impõe uma maneira pessoal na peça que interpreta, de tal modo que, há uma restituição do próprio cantor a si mesmo. Para a autora, o processo de criação operístico reflete a capacidade e o caráter de cada cantor, no qual são expostas características pessoais do intérprete, que podem dar vida aos atributos do personagem e atualizar valores sociais. Ao focar esse contexto, é posto em reflexão se essas condições preestabelecidas interferem na percepção de cada cantor sobre si mesmo. Há no processo de concepção estilística condições obrigatórias quanto à incorporação e as alterações das características posturais em favor do personagem. Por essa razão, pressupõe-se que as exigências dos processos de criação e interpretação de uma peça têm implicações diretas na constituição e no reconhecimento da autoimagem em cantores líricos. Subjaz nessas reflexões uma preocupação que está focada no processo de preparação de cantores líricos frente às concepções operísticas. Se um cantor não tiver um trabalho voltado para o refinamento da percepção de si mesmo, provavelmente o reconhecimento do próprio corpo estará comprometido e, consequentemente, sua capacidade de incorporar as características emocionais e físicas de um personagem estará reduzida. Da mesma forma, esse processo pode provocar dissociação entre a imagem e o esquema corporal do cantor. A ópera, segundo PAHLEN (1991), conduz a uma reflexão sobre o espírito e a imagem de uma época, que reflete os acontecimentos dentro de uma sociedade e configura um potencial de atualidade, maior do que qualquer outra manifestação artística. A partir desses pressupostos, o objetivo do artigo é discutir sobre as relações dos signos posturais e vocais com a autoimagem em cantores líricos.

MELLO, Ê. L. et al. Postura corporal, voz e autoimagem... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.74-85.

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2- Método Para contemplar esse objetivo foram abordadas proposições semiológicas da Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Filosofia, Psicologia e Artes, principalmente canto operístico.

A Semiologia é a ciência geral dos signos, que estuda os fenômenos da significação (PEIRCE, 1993). Nessa concepção, signo é aquilo que representa algo para alguém, que está relacionado com uma segunda coisa, seu objeto, que diz respeito a uma qualidade, de tal modo que significa uma terceira coisa. Com base nesse pressuposto, elaborou-se uma discussão sobre a semiose ou seja, o processo de significação da autoimagem do cantor lírico em relação a própria voz, a postura corporal e a expressão durante uma interpretação, partir de três tópicos: A) Singularidade e percepção corporal; B) Imagem e expressão; C) Postura, voz e autoimagem.

A) Singularidade e percepção corporal Parte-se do pressuposto que corpo é linguagem. Esse conceito está implicado nas palavras do corpo, que são expressas e traduzidas por movimentos, cujas possibilidades de compreensão pautam-se na noção de organização de grupos musculares, que formam conjuntos psiconeuromusculares e cadeias miofasciais que mobilizam cadeias articulares e constroem o gesto, dentro de um contexto social. Segundo a autora “O corpo oferece meios de comunicação e caminhos terapêuticos excepcionais, em especial quando a palavra está ausente; é inadequada; desadaptada ou viciada. Importante é estar em condições de ver, compreender e responder às mensagens gestuais e posturais. Elas são palavras que, se ouvidas e compreendidas, contribuem para aliviar o desconforto humano”. (DENYS-STRUYF, 1995, p.13).

O silogismo desse pressuposto tem como base os princípios da psicomotricidade que visa, entre outros aspectos, o reconhecimento, a identificação e a diferenciação da localização dos movimentos corporais, como um todo. Essa compreensão de base psicocorporal foi adotada por vários autores, cada qual na sua área de atuação, como LAPIERRE (1978) na Cinesiologia; LABAN (1978) na Dança; STANISLAVISK (2000) no Teatro; WALLON (1985), PICQ, VAYER (1988) e LE BOULCH (1988) na Educação e na Psicologia; MÉZIÈRES (1947) e PIRET, BÉZIERS (1992) na Fisioterapia, entre outros. Entretanto, essa concepção contrapôs-se a uma prática vigente nas atividades físicas até meados do século XX, oriunda da influência Europeia, principalmente francesa e alemã, na qual o corpo era compreendido pelos aspectos mecânicos (VEIRA, SOUZA, 2009). O foco dessa influência estava voltado para o trabalho e para o rendimento físico, em uma perspectiva moral e cívica, que visava à padronização do

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comportamento. Priorizava-se a imitação de um modelo mecânico de movimentos, por meio do condicionamento físico, para a automação e controle das ações dos indivíduos, marcados pela execução de exercícios repetitivos e disciplinares. Nesse período, a despeito das condições emocionais, intelectuais, da saúde ou do desejo, os indivíduos eram apenas dotados de corpo, cuja representação era exclusivamente biológica (LANGLADE, LANGLADE, 1970; SOARES, 1994). O exposto acima remete às contundentes considerações apresentadas por DAMÁSIO (1996) sobre a dicotomia entre corpo e mente formulada pelo filósofo francês Descartes, que o autor considerou como “O erro de Descartes”. DESCARTES (1973) expôs um raciocínio que distingue a substância corporal da substância mental ao conceber que o ato de pensar é uma atividade separada do corpo. Nessa concepção a substância corporal é infinitamente divisível, com volume, dimensão e funcionamento mecânico, enquanto que a substância mental é indivisível, sem volume, sem dimensão e intangível. Segundo DAMÁSIO (1996) há, nessa compreensão, a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento, advindo da dor física ou agitação emocional, podem existir independentemente do corpo. A separação cartesiana pode estar subjacente ao modo de pensar da maioria dos neurocientistas, que insistem em explicar a mente, exclusivamente, pelo viés dos fenômenos cerebrais. Com isso, negligenciam o organismo como um todo, e em relação ao meio ambiente físico social, em que está inserido. Consequentemente, excluem o fato de parte do próprio meio ambiente ser também um produto das ações anteriores do organismo. Ao reiterar que o corpo, além da relação com a mente, deve ser compreendido dentro de um ambiente, levar-se-á em consideração o contexto social. Isso implica em respeitar os sujeitos segundo a individualidade e as relações. Para KECK E RABINOW (2008), quando um corpo é atravessado por normas e regularidades, trata-se da representação de um corpo genético, ou seja, submetido ao controle e à formação do “Eu”. O sujeito é um mero portador de tendências estatísticas e estilísticas, que deve submeter-se a um comportamento adequado, segundo padrões impostos pela sociedade e/ou as demandas de trabalho. De forma análoga, se as concepções estilísticas, eminentes da interpretação de uma ópera forem impostas a ponto de restringirem a espontaneidade e/ou as expressões singulares dos cantores, provavelmente estaremos diante de artistas com capacidade reduzida ou destituídos de possibilidades interpretativas subjetivas e, portanto, ausentes de si mesmos. Com base nas considerações da segunda tópica de FREUD (1950), o corpo é concebido como “eu próprio”, que permite uma compreensão do autoconhecimento como a consciência-de-si, que é determinado pela consciência das sensações e dos sentimentos. Segundo essa tópica, se o acesso à percepção estiver limitado ou se a mente estiver sobrecarregada de

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preocupações, não há possibilidade de ocorrer atualizações de sensações e, por conseguinte, pode ocorrer um confronto entre a percepção e a realidade externa, de tal modo que, as sensações tornam-se um elemento indeterminado para o sujeito. Sob o prisma da fenomenologia de MERLAU-PONTY (2006), a percepção torna-se possível a partir da experiência, da conscientização e da internalização (interiorização) dos movimentos e sensações. Portanto, as informações obtidas, principalmente, pelo tato, visão, audição, propriocepção interferem diretamente no tônus muscular, na postura, e na organização espacial. Assim sendo, a associação do movimento com a percepção configura um acesso concreto ao psíquico. Paralelamente, a intencionalidade e os juízos de valores podem configurar um caráter singular e simbólico na identidade de cada sujeito. Na concepção fenomenológica de HUSSERL (1859-1938) toda consciência é consciência de alguma coisa (ZILLES, 2007), não é uma substância, mas uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, especulação, volição, paixão, etc.), com os quais visa a algo, que se traduz em movimento. Com base no que foi discutido, é possível compreender que a percepção corporal, em cantores, está intimamente ligada à capacidade de vivenciar as sensações durante uma interpretação e, é dimensionada às características singulares. Esse entendimento pode ser aprofundado por meio do estudo dos conceitos de imagem corporal.

B) Imagem e esquema corporal na constituição da expressão A imagem corporal é a figuração do próprio corpo, formada na mente de cada indivíduo, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para cada um. Essa figuração resulta das sensações da superfície do corpo que ocorrem por meio das impressões visuais, táteis, térmicas, dor, entre outras (SCHILDER, 1999, p.7). Existem três tipos de sensações: externas; internas e imediatas. As externas são percebidas por meio dos movimentos (cinestesia); as internas são percebidas pela dor ou desconforto e as imediatas são sensações da experiência de uma parte do corpo em determinado momento. Essas sensações são consideradas como um estranhamento do corpo, porque permanecem fora da consciência central, até que haja uma apropriação, por meio da conscientização (SCHILDER, 1999, p.7). Para o autor, esses três tipos de sensações formam o esquema corporal, que corresponde à imagem tridimensional que todo sujeito tem do próprio corpo. Portanto, não se deve analisá-las separadamente, porque são decorrentes da movimentação corporal e constituem a expressão dos sujeitos. A autoimagem se concretiza por meio do movimento, seja interno ou externo, aparente ou não. Essa visão permite compreender que toda a expressão advém dos movimentos necessários para se comunicar algo. Logo, a

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expressão vocal e a autoimagem estão intimamente implicadas por terem o mesmo princípio de formação, que é o movimento. Em complementaridade a esse raciocínio, levar-se-á em consideração uma premissa da imagem corporal, que diz respeito à possibilidade de reconfiguração continuamente da autoimagem. Isso pode ser conquistado, por meio da observação, da aprendizagem e dos valores socioculturais internalizados nas vicissitudes e percepções táteis, cenestésicas, visuais e auditivas (BARROS, 2005). Nessa perspectiva, o movimento corporal representa um elemento integrador e ao mesmo tempo a expressão da singularidade de cada sujeito, uma vez que, os padrões motores dos indivíduos remetem ao processo de aprendizagem obtido na infância, que são testados e aprimorados por toda a vida. Desse modo, a imagem corporal permite ao sujeito uma movimentação organizada e coerente com a intenção e com as necessidades, além de imprimir características individuais e circunstanciais às realizações em todos os gestos. Mutuamente, a expressão e a imagem corporal são renovadas constantemente, por meio das novas possibilidades de movimentos (TURTELLI, TAVARES, 2008; SANTIAGO, MEYEREWICZ, 2009). A partir dessas conjecturas compreende-se que todo movimento corporal é expressão, porém nem sempre é decodificada ou estabelece sentido para o interlocutor. Embora possa produzir sentido para si mesmo. Há nessa proposição uma convicção de que toda expressão tem efeito na imagem corporal. Portanto, toda nova percepção das expressões produzirá alteração na autoimagem. Por outro lado, o comprometimento ou problemas na execução de movimentos corporais podem gerar transtornos de ordem motora, cognitiva e perceptual. Quando uma pessoa é capaz de elaborar o plano geral de um movimento, mas é incapaz de transformá-lo em ação, trata-se de uma apraxia. Porém, quando há uma desordem na elaboração deste plano geral, trata-se de uma apraxia de ideias, na qual a ordem das ações parciais fica prejudicada. Se a dificuldade estiver relacionada à qualidade da execução, o desempenho das ações parciais fica alterado, isso é considerado como uma apraxia motora (PENNA, 1990). Todos esses comprometimentos acometem alterações na autoimagem, de modo que, a atualização do esquema corporal pode incorrer por meio do descontrole de movimentos. Consequentemente, nessas condições não há identidade nos gestos e nem possibilidades aprimorá-los. Ao transpor esse raciocínio para o contexto dos cantores líricos, é possível compreender que a expressões vocais e corporais estão comprometidas, ou seja, limitadas e/ou prejudicadas se houver desconexão entre os movimentos e a percepção em uma interpretação operística.

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Por outro lado, se o cantor não for limitado ou refreado em suas capacidades interpretativas, e a representação das personagens estiver em consonância com as possibilidades de concepção própria, ocorrerá uma renovação da autoimagem, a tal ponto, que a incorporação da personagem transformará o intérprete. Para TRAGTENBERG (2007, p.43), o cantor é capaz de enxergar a partitura ou acatar os critérios estilísticos a partir das experimentações vividas. Nesse raciocínio, o acréscimo de sensações cognitivas e emocionais das vicissitudes configura um caminho de acesso para uma concepção singular de uma obra, que a autora nomeou como partitura interna. Nesse sentido, ao internalizar os conteúdos de uma partitura ou de um roteiro cênico, por meio de um processo proprioceptivo experimentado, o intérprete cria imagens mentalmente, que encontram identidades ou analogias com a própria imagem (PÁDUA, BORGHOFF, 2007). Diante do que foi discutido, compreende-se que, no caso de cantores líricos, a consciência de si mesmo se liberta por meio da percepção da imagem e da expressão corporal. Nessa condição, a significação estabelece contato com a representação simbólica dos sentimentos do intérprete, em consonância com o ambiente cênico. A tal ponto, que desencadeia um processo de semiose, ou seja de significação e/ou ressignificação das representações entre os gestos vocais, corporais e a autoimagem.

C) Postura, voz e autoimagem Conforme abordagem anterior, se o corpo estiver preso a padrões fixos de repetições de gestos, a autoimagem pode estar comprometida a um grau reduzido de possibilidades expressivas (SCHILDER, 1999, p.68). Nessas condições, a semiose pode configurar aspectos negativos, visto que o primeiro estágio da nova percepção é um estranhamento. Portanto, em um corpo destituído de propriocepção o estranhamento torna-se a única condição de relação com o mundo e consigo mesmo. Nessa perspectiva, os ajustes posturais que os cantores executam durante uma interpretação operística, quando são impostos ou repetidos podem provocar alterações na autopercepção e no controle dos gestos, além dos aspectos emocionais. Dessa forma, as características posturais assumem padrões desenvolvidos ou adquiridos para garantir “defesas ou controle” dos gestos. Para FELDENKRAIS (1977, p.28), a imagem corporal é dinâmica, porque se modifica de ação para ação, porém, para além das questões orgânicas ela é também produto da emoção da relação interpessoal, com o meio ambiente e com os objetos de desejo. Portanto, a imagem corporal traduz as sensações internas, os anseios, as memórias, a personalidade, a vicissitude, as emoções e as relações externas.

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Segundo LAPIERRE (1984) a construção da imagem corporal ocorre espelhada no que o Outro apresenta e no desejo por ele reproduzido. O autor discorreu sobre o processo de apropriação da fala em crianças, para exemplificar o processo de formação da imagem corporal e da identidade.

“A criança não espera nada do mundo exterior de plenitude e fusionalidade (simbiose entre feto e mãe). A perda da plenitude fusional não assegura a separação do Eu e do não-Eu, a qual exige uma dissociação perceptiva entre as sensações provocadas pelo exterior e as sensações internas, que se revertem em experiência. Os objetos transicionais e os desejos do homem ocorrem para minimizar, ou seja, compensar a “falta de si” ou “de um ser”. O desejo de possuir o corpo do outro se transforma em desejo possessivo pelos objetos”. (LAPIERRE, 1984,p.18).

A “falta no corpo” está oculta no inconsciente, consequentemente pode emergir no consciente sob a forma simbólica de uma falta do ter. Porém, o ter não preenche essa falta, e o desejo de posse pelos objetos torna-se incontrolável e cumulativo. Diante disso, a construção da autoimagem se vincula à maneira pela qual o sujeito tenta consumir, enquanto objeto de desejo, o corpo de outro indivíduo, para suprir o seu espaço fusional interior (MATARUNA, 2004, p.1). Nessa perspectiva, a imagem corporal ultrapassa os limites do corpo. Quanto mais próxima e estreita a ligação do corpo com o objeto, ou com o Outro, mais possibilidades dessa relação se configurar na imagem corporal. Assim posto, compreende-se que o objeto ou o Outro que estiver ligado ao corpo, em um determinado momento, reciprocamente retesa algo da qualidade na imagem corporal. Disso decorre, que qualquer coisa que se origina ou emana do corpo faz parte da imagem corporal, ainda que esteja separado dele, como por exemplo: a voz. Segundo VIOLA (2008, p.15), a voz é um gesto resultante da interação dos elementos prosódicos, com os segmentos fonéticos e com os sons não verbais produzidos na comunicação (ruídos respiratórios, sons bucais e linguais), que se estrutura conforme as condições emocionais, perceptivas e desejos. Nessa perspectiva a voz sofre transformações e torna-se espelho da personalidade e dá indícios do estado emocional, da saúde, do desejo e do estágio motor de cada cantor. Isso ocorre, porque a percepção dos cantores de si mesmos é alterada em decorrência dos recursos interpretativos para a caracterização de um personagem e, possivelmente essas alterações são incorporadas pela emoção vivenciada. Dado que, o cantor é acometido de alterações na imagem corporal, a cada novo estudo e interpretação. A experiência corporal, enquanto realidade única para cada ser humano, tanto no seu mover, quanto na própria organização física, tônica e postural retrata a estrutura emocional de cada um. Dessa forma, as imagens que as pessoas fazem do próprio corpo são a síntese viva das experiências emocionais, oriundas das sensações erógenas eletivas, antigas ou atuais, ao mesmo tempo das memórias inconscientes das vicissitudes relacionais (FERREIRA, 2008, p.447).

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Para ANDRADA E SILVA (2005, p.95) pensar na própria voz é entrar em contato com a percepção do próprio corpo. Para a autora, quando a voz dá prazer a quem canta, significa que há consonância entre a imagem corporal e a personalidade, de tal modo, que a interpretação pode cativar quem ouve. Essa consonância significa que, a imagem que o espectador tem do cantor está em acordo com a semiose do executante. A voz e a postura do cantor são produtos singulares de um corpo e, ao mesmo tempo, a personificação do

sujeito. A partir dessas reflexões, pode-se considerar que o cantor de ópera

altera a autoimagem a cada novo estudo e interpretação. Isso, porque a percepção de si mesmo é alterada em decorrência dos recursos interpretativos, que caracterizam o personagem e que, possivelmente, são incorporados. Ao se conceber a voz como um gesto vocal, subentende-se que ela produz efeitos na autoimagem do cantor, da mesma forma que outros movimentos corporais. Por conseguinte, toda alteração de imagem corporal pode produzir efeito na qualidade vocal e vice-e-versa.

3 - Considerações finais Ao refletir sobre a constituição da autoimagem do cantor lírico frente às exigências performáticas operísticas, pode-se considerar que as imposições de condutas são limitadoras e padronizadoras do comportamento. Isso pode ter consequência no controle e na elaboração dos gestos, porque restringem de certa forma, a liberdade, a subjetividade e a singularidade da interpretação. A expressão e a imagem corporal são figuradas por meio da conscientização da postura e do movimento corporal, portanto todo movimento é expressivo. Porém, nem sempre é decodificado ou estabelece sentido para o interlocutor. Embora possa produzir sentido para o interprete. Toda expressão tem efeito na imagem corporal, logo, toda nova percepção da

expressão produzirá alteração na autoimagem. Dessa forma, o cantor lírico altera a percepção de si mesmo, a cada nova interpretação e institui novos signos para os gestos e para as posturas corporais. Por conseguinte, o prazer, a intenção e a autenticidade do intérprete pode cativar quem ouve. Isso significa que há sintonia da semiose entre o cantor e o ouvinte. Referências ARBOLEDA, Barbara M. W.; FREDERICK, Arlette L. Considerations for maintenance of postural alignment for voice production. J Voice, 2008, n.22, v.1, p.90-100. ANDRADA E SILVA, Marta A. Expressividade no canto. In: Kyrilos Leny. Expressividade: da teoria à pratica. Rio de Janeiro: Revinter, 2005, p.91-104. BARROS, Daniela D. Imagem corporal: a descoberta de si mesmo. Rev. Hist. Ciênc. Saúde, 2005, n.12, v.2, p.547-54.

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Enio Lopes Mello é cantor lírico e terapeuta corporal especializado no método de Cadeias musculares e articulares GDS-ICTGDS-Bruxelas; Mestre e Doutor em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é

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membro colaborador do Laboratório de Voz da PUC-SP (LABORVOX/PUC-SP) e atua em clínica particular. Recebe o apoio financeiro do CNPq (Bolsa de Doutorado). Luiz Ricardo Basso Ballestero é bacharel em música, Mestre em música/piano e Doutor em artes musicais, detém o título de Piano Accompanying and Chamber Music pela University of Michigan - Ann Arbor. Atua como Professor doutor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) na Universidade de São Paulo (USP). Marta Assumpção de Andrada e Silva é fonoaudióloga clínica; mestre em Distúrbios da Comunicação e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atua como Professora Assistente Doutora na Pós-graduação em Fonoaudiologia na PUC-SP; Professora Adjunta no Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Coordenadora do Ambulatório de Artes Vocais da Santa Casa e Integrante do LABORVOX/PUC-SP.

FONSECA, M. P. M. et al. Fundamentos biomecânicos da postura...flauta. Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p. 86-107.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3105

Fundamentos biomecânicos da postura e suas implicações na performance da flauta Marcelo Parizzi Marques Fonseca (UFSJ, São João Del Rey, MG) [email protected]

Francisco Cardoso (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Antônio Guimarães (UFSJ, São João Del Rey, MG) [email protected]

Resumo: O estudo sistemático de um instrumento musical não é uma tarefa simples e implica numa demanda física e emocional difícil de imaginar por quem não se dedica a essa atividade. Pesquisadores reconhecem que tal demanda afeta significativamente a carreira do músico instrumentista e pesquisas importantes têm sido conduzidas sobre este assunto. Diante deste contexto, este artigo apresenta um estudo dos fundamentos da biomecânica da postura e suas implicações na performance da flauta. A partir da conceituação da postura normal, considerando o centro de gravidade corporal, a musculatura da estática e a postura normal em pé e sentada, foram elencados os aspectos fundamentais da biomecânica da postura na performance da flauta e as alterações posturais inerentes à sua performance. A conclusão do artigo é que se essas alterações posturais, próprias da performance, não forem conscientizadas pelo flautista, a qualidade da execução e a longevidade de sua carreira poderão ficar seriamente comprometidas.

Palavras-chave: Música e biomecânica; postura; flauta; performance; saúde do músico.

The fundamentals of posture’s biomechanics and their implications on the performance of the flute

Abstract: The systematic practice of a musical instrument is not a simple issue and involves physical and emotional demands which are difficult to understand by those who are not engaged with this activity. Researchers recognize that such demand may significantly affect the musician’s career. Important studies have been conducted on this subject. Given this context, this paper presents a study of the fundamentals of the posture’s biomechanics and their implications on the performance of the flute. From the concept of normal posture (gravity of body center, the static muscle, and the normal posture - standing and seated), the fundamental aspects of the posture’s biomechanics during flute’s performance, and the inherent postural changes in this performance were considered. Results show that if the flutists unaware of the inherent postural changes during the flute's performance, may have the quality of his performance and the longevity of his career seriously compromised.

Keywords: biomechanics and music; posture; flute; performance; health of the musician.

1 - Introdução

Tocar um instrumento musical é tido, pelo senso comum, como algo eminentemente lúdico, destituído de qualquer risco, mas essa não é a realidade observada entre os músicos profissionais. O estudo sistemático de qualquer instrumento musical não é uma tarefa simples e implica numa

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demanda física e emocional difícil de imaginar por quem não se dedica a essa atividade. Muitos pesquisadores reconhecem que tal demanda afeta significativamente a carreira do músico instrumentista e pesquisas importantes têm sido conduzidas sobre este assunto (TEIXEIRA, 2011; MERRIMAN et al, 1986; CRASKE; CRAIG, 1984; FRY, 1986a, 1986b; VALENTINE et al, 1995; STEPTOE, 1989; STEPTOE; FIDLER, 2001; DAWSON, 2001: WARRINGTON et al, 2002; SAKAI, 1992, 2002; SANTIAGO, 2001, 2004, 2005, 2006, 2008; COSTA, 2005; CAMPOS, 2006; ALVES, 2007; FONSECA J.G., 2007).

A performance musical é provavelmente a mais complexa de todos as habilidades motoras porque combina criatividade artística, expressão emocional e interpretação musical com um elevado nível de controle sensório-motor, destreza, precisão, competência muscular, velocidade e estresse de performance (WILSON, 1989).

Essa citação traduz de modo eloquente a complexidade do ato de tocar um instrumento musical com destreza, o que, repetimos, é muito difícil de ser percebido por alguém que não toca um instrumento musical. ERICSSON et al (1993) e SHENK (2010) estimaram, observando estudantes de violino do Conservatório de Berlim, que um estudante não atingirá um grau satisfatório de performance antes de sete mil horas de prática consciente do instrumento. Isso significa que uma pessoa, pedagogicamente bem orientada, necessita estudar com dedicação integral (6 horas/dia em média – 5 dias por semana) pelo menos seis a sete anos para atingir um nível técnico que lhe permita almejar uma carreira de solista. Se for considerada a performance de artistas de altíssimo nível, pode-se aumentar ainda mais essa demanda de horas de estudo. O estudo de um instrumento musical demanda dois tipos complementares de trabalho: o biomecânico e o musical. Na performance da flauta, o trabalho biomecânico significa o treinamento das seguintes técnicas: sustentação da flauta; embocadura (posicionamento dos lábios de um modo específico para direcionar a coluna de ar contra o bocal); respiração; do posicionamento da cabeça, pescoço, ombros, tronco, braços, mãos, quadril, pernas e pés e compreensão do equilíbrio postural geral durante a performance. O trabalho biomecânico permite ao flautista o desenvolvimento de técnicas de performance que vão possibilitar o desenvolvimento daquilo que se chama de trabalho musical (TEIXEIRA, 2011; HUNT, 2007; FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; DEBOST 2002; HARRISON, 1983). O trabalho musical significa o treinamento das técnicas que permitem a produção do som em todas suas nuances musicais necessárias à performance, o que inclui o controle da afinação, capacidade de produzir sons graves, médios e agudos (registros sonoros), homogeneidade sonora, vibrato, mudanças de timbre e a habilidade de executar escalas, arpejos e diferentes articulações (DEBOST, 2002; GRAF, 1991; RANEVSKY, 1999; TAFFANEL e GAUBERT, 1958; MOYSE, 1934).

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É importante, nesse momento, salientar duas questões: (1) a distinção entre esses dois tipos de trabalho (musical e biomecânico) é essencialmente um recurso pedagógico que facilita sua compreensão; na prática da performance, eles são indissociáveis e, apesar disso, (2) a maior parte dos métodos e tratados de técnica de performance enfatiza a dimensão musical da técnica, em detrimento das dimensão biomecânica (ALMEIDA et al, 2009; GRAF, 1991; TAFFANEL e GAUBERT, 1958; MOYSE, 1932, 1934). Pela extensão e complexidade do assunto, este artigo tratará exclusivamente do trabalho biomecânico, com ênfase nas questões relacionadas à postura corporal do flautista, ou seja, o posicionamento da cabeça, pescoço, ombros, tronco, braços, mãos, quadril, pernas e pés e a compreensão do equilíbrio postural geral durante a performance. Não será abordada neste artigo a respiração na performance da flauta.

2 - Biomecânica da Postura 2.1 Conceituação de postura

A preocupação sistemática com a postura corporal data do inicio do século XIX, quando médicos e outros profissionais começaram a se preocupar com o assunto e a se indagar sobre como o homem consegue se manter em pé (BRICOT, 2001). A primeira escola de Posturologia foi fundada em Berlim em 1890 e, apesar de ser motivo de estudo há tanto tempo, a postura continua sendo um dos termos mais complexos de se definir, mesmo quando se restringe à sua dimensão musculoesquelética. Nesse trabalho será utilizada a definição de postura corporal em seu sentido biomecânico, como a resultante do conjunto de forças musculares que atuam continuamente para compensar o efeito da gravidade (e de outras forças desequilibradoras) sobre o corpo e que permitem o alinhamento dos vários segmentos corporais de modo anti-gravitacional, possibilitando a manutenção da posição ereta, assentada ou de qualquer posição que demande a sustentação anti-gravitacional de um segmento corporal. Além de seu papel de sustentação, essas forças musculares contribuem decisivamente na manutenção de nossa consciência têmporo-espacial (TEIXEIRA, 2011; BRICOT, 2001; KENDALL et al, 1995). A postura corporal é considerada adequada quando essas forças que sustentam o corpo atuam sem geração de sobrecargas, com a máxima eficiência e o mínimo de esforço, mantendo um alinhamento funcionalmente eficaz dos vários segmentos corporais. A postura adequada facilita os movimentos corporais (SANTIAGO, 2001, 2004, 2008; BRICOT, 2001; DOMMERHOLT, 2000). A postura é considerada inadequada, quando a manutenção do corpo em situação anti-gravitacional implica na utilização excessiva ou desnecessária de

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forças musculares e em alinhamentos disfuncionais. As posturas inadequadas dificultam os movimentos (TEIXEIRA, 2011; FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; FONSECA J.G., 2008; DEBOST, 2002; BRICOT, 2001; ANDRADE e FONSECA, 2000; ZAZA, 1998). A observação da qualidade do alinhamento dos segmentos corporais é o principal recurso objetivo para avaliação da adequação da postura.

2.2 Aspectos fundamentais da biomecânica da postura corporal na performance da flauta

2.2.1 A “estática” – base para o conceito de postura normal

A postura estática é a postura do corpo em pé parado. A manutenção do equilíbrio na posição ereta depende da atuação da chamada “musculatura da estática” (Ex.1).

Ex.1 – Figura da “musculatura da estática”; em preto os conjuntos musculares posteriores e anteriores responsáveis pela manutenção da postura ereta (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; SOUCHARD, 1989).

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Esse conjunto de músculos (com seus ligamentos e fáscias – as membranas que revestem os músculos), juntamente com os ossos e as articulações da coluna vertebral, são os principais responsáveis pela manutenção da postura ereta e são fundamentais para a qualidade (melhor ou pior) dos movimentos corporais. (AMADIO, 2003; BARCELLOS, 2002; BRICOT, 2001; ANDRADE e FONSECA, 2000; ZAZA, 1998; HORAK et al, 1996). O conhecimento das bases biomecânicas da postura estática é fundamental para a compreensão do equilíbrio corporal na performance da flauta. A metáfora do corpo dividido em blocos ou conjuntos segmentares é muito útil para um entendimento mais claro da postura estática (MENEGATTI, 2011; DUARTE et al, 2002). Os membros inferiores se constituem na base sólida em contato com o chão. Sua posição condiciona qualidade da base de sustentação. As variações dessa base e, principalmente, sua estabilidade são elementos capitais da estática. Os pés são estruturas determinantes; sem bons apoios dos pés no chão, não há estabilidade estática. Na performance da flauta o bom apoio dos pés é fundamental para o equilíbrio corporal. Entretanto, MATHIEU (2004) afirma que os flautistas devem manter a ideia de “conjunto de gestos corporais” durante a performance. Uma postura fixa, na qual o flautista se mantenha imóvel, mesmo com um bom apoio dos pés pode ser prejudicial. Os flautistas devem ora distribuir o peso do corpo igualmente entre os dois pés, ora oscilar o peso do corpo entre um pé e outro (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BIENFAIT, 2000; BARKER, 1991). O equilíbrio dos joelhos está intimamente ligado ao dos pés numa relação ascendente e ao quadril numa relação descendente. Esses dois primeiros conjuntos segmentares - pés e joelhos - são importantes determinantes do equilíbrio estático (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BIENFAIT, 2000; BARKER, 1991). Cada conjunto segmentar equilibra-se sobre o subjacente numa relação ascendente. O pé equilibra-se e adapta-se sobre o chão; a perna, sobre o pé; a coxa, sobre a perna; a bacia (cintura pélvica) sobre os membros inferiores; a coluna lombar sobre a bacia; a coluna torácica sobre a lombar; e a cervical sobre a torácica (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BIENFAIT, 2000; BARKER, 1991). A cabeça tem dois imperativos biomecânicos indispensáveis: a verticalidade dela mesma e a horizontalidade do olhar. O pescoço (coluna cervical), os ombros e os membros superiores devem adaptar-se a esses imperativos num equilíbrio descendente. A postura estática é assegurada por dois grandes sistemas: um ascendente - o equilíbrio estático garantido pelos membros inferiores e pelo tronco, e um descendente - garantido pelo pescoço, cabeça e tronco. O tronco, como

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segmento comum aos dois sistemas, é separado dos outros componentes de cada sistema (pescoço-cabeça e membros inferiores) por dois segmentos intermediários: as cinturas. A cintura pélvica (bacia) adapta o tronco aos membros inferiores, e a cintura escapular (dos ombros) adapta o tronco à região do pescoço e cabeça. O tronco é assim a região de todas as compensações estáticas.

2.2.2 O centro de gravidade corporal

Como já mencionado no item anterior quando definimos postura, o corpo é continuamente atraído pela gravidade. Para que ele possa se sustentar em qualquer postura, é necessária uma força anti-gravitacional, feita pelos músculos. A resultante entre estas duas forças opostas chama-se centro de gravidade corporal. A posição do centro de gravidade do corpo humano depende da posição do corpo. Em posição ereta, o centro de gravidade pode ser representado por um eixo central, que divide o corpo em 2 partes, quando visto de frente; já quando o corpo é visto de perfil, o centro de gravidade pode ser representado por uma linha vertical que passa pelo osso mastóide, imediatamente atrás da orelha e pelo tornozelo. Posturas inadequadas deslocam o centro de gravidade e representam sobrecarga muscular. A performance da flauta implica em pequenos deslocamentos do eixo de gravidade. A consciência do eixo de gravidade é fundamental para que os flautistas possam minimizar estes deslocamentos e evitar uma sobrecarga muscular excessiva (TEIXEIRA, 2011; FONSECA, MPM, 2005, 2007, 2008, 2010; BIENFAIT, 2000; GARDINER 1986).

2.2.3 A postura normal em pé

A postura ereta normal depende de relações harmoniosas e funcionalmente eficazes entre os vários segmentos corporais. A avaliação objetiva da postura implica na observação do corpo em três planos: frontal (Ex.3), lateral ou de perfil (Ex.2) e superior ou visto de cima (Ex.4).

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Ex.2 – Figura da postura normal em perfil (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BRICOT; 2001). São as seguintes as características da postura normal quando o corpo é visto de perfil (Ex.2)

planos escapular e das nádegas alinhados;

o vertex (região mais alta do crânio), a apófise odontóide da segunda vértebra do pescoço e o corpo vertebral da terceira vértebra lombar estão alinhados;

centro do quadrilátero de sustentação equidistante dos pés;

presença de discreta lordose lombar (curvatura da parte mais baixa da coluna);

a linha vertical que passa pelo tragus (pequena saliência na entrada da orelha) deve cruzar os maléolos (saliências óssea dos tornozelos) ou muito próximo deles;

a distância entre a protuberância occipital (saliência mais posterior do crânio) e o plano posterior do corpo deve ser de dois a três centímetros.

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Ex.3 – Figura da postura normal de frente (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BRICOT, 2001).

A figura do Ex.3 mostra as linhas imaginárias traçadas entre as pupilas, os tragus, os dois mamilos, a cintura escapular (dos ombros) e a cintura pélvica (bacia); na postura normal no corpo visto de frente, essas linhas devem ser paralelas ao chão. Além disso, os pés devem apoiar no solo de forma simétrica. Numa visão de cima (Ex.4) as nádegas devem estar no mesmo plano e as pontas dos dedos com as mãos estendidas devem tocar o mesmo plano, sem que haja rotação dos ombros e da bacia.

Ex.4 – Figura da postura normal vista de cima (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BRICOT, 2001)

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2.2.4 A Postura Sentada

A posição sentada faz parte do cotidiano das pessoas em geral e é essencial na prática e performance da flauta. Apesar de o homem moderno chegar a passar muitas horas nesta posição, o modelo biomecânico da coluna humana não foi feito para permanecer por longos períodos na posição sentada. Quando associada a uma má postura, e mobiliário inadequado, a posição sentada prolongada pode sobrecarregar a coluna vertebral e predispor a uma série de problemas físico-posturais que chega a acometer cerca de 80% das pessoas (RUMAQUELLA et al), 2008, LIDA 2005, BRACCIALLI & VILARTA 2000, MORO 2000). A coluna vertebral é o eixo do corpo e concilia dois aspectos mecânicos contraditórios: a rigidez e a flexibilidade. A flexibilidade do eixo vertebral se deve à sua configuração por múltiplas peças superpostas, unidas entre si por elementos ligamentares e musculares. Deste modo, esta estrutura pode deformar-se apesar de permanecer rígida sob a influência dos tensores musculares. A coluna vertebral consiste de 24 vértebras individualizadas mais os ossos sacro e cóccix que são o resultado da fusão originária de vértebras. Quando observada lateralmente, a coluna apresenta quatro curvaturas: a curvatura sacral (que é fixa e de concavidade anterior), a lordose lombar (de concavidade posterior), a cifose dorsal (de convexidade posterior) e a lordose cervical de concavidade posterior (RUMAQUELLA et al, 2008; PEQUINI, 2005; MORO 2000). Durante a postura sentada quase todo o peso do corpo passa a ser suportado pela musculatura do dorso e do ventre. Nesta posição a lordose lombar é reduzida, fazendo com que o espaço existente na porção anterior das vértebras diminua e o espaço da porção posterior aumente e, desta forma o núcleo pulposo que estava no centro do disco, seja empurrado para trás causando um aumento de pressão dentro deste núcleo intervertebral e o estiramento das estruturas posteriores da coluna, ligamentos, articulações, músculos e nervos. Outro aspecto importante que deve ser ressaltado é a mensuração da pressão intradiscal nas posições em pé, sentada e deitada. Pode-se constatar que na posição sentada a pressão varia entre 140% a 190% sendo mais prejudicial que a posição em pé (pressão = 100%) e a posição deitada (pressão = 24%) (RUMAQUELLA Et all, 2008; COURY, 1995; GRANDJEAN, 1998).

MORO (2000) classifica, a partir da posição do centro da gravidade do corpo, a

posição sentada em três categorias (Ex.5):

Posição anteriorizada – nesta, o centro da gravidade está logo à frente das tuberosidades isquiáticas e mais de 25% do peso é transmitido ao solo pelos pés. A postura é assumida com a inclinação à frente do

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tronco, de forma a apresentar uma cifose dorsal mais pronunciada e sem ou com pouca rotação da pelve.

Posição média – o centro da gravidade esta diretamente acima das tuberosidades isquiáticas e apenas 25% do peso corporal é transmitido ao solo através dos pés. Desta forma, com o corpo relaxado, a coluna lombar se mantém alinhada ou com uma leve cifose.

Posição posteriorizada – o centro da gravidade se localiza atrás das tuberosidades isquiáticas e menos de 25% do peso do corpo é transmitido ao solo pelos pés. O tronco inclina-se para trás concomitante à rotação da pelve e desta forma, aumentando a cifose dorsal.

Segundo esse autor (MORO 2000) a posição média é a mais eficiente sob o ponto de vista biomecânico e, por isso, a mais adequada.

Ex.5 – Figura da posição anteriorizada, posição média e posição posteriorizada, respectivamente (RUMAQUELLA, 2008; LIDA, 2005; PEQUINI, 2005; MORO, 2000). Para NEUMANN (2006) a associação do ficar assentado por longos períodos à falta de consciência corporal e a um mobiliário inadequado, trará muito provavelmente alterações nas curvaturas da coluna, protusão da cabeça, diminuição da expansão diafragmática e aumento da tensão muscular o que acarretará problemas posturais potencialmente graves.

3 - A Postura na performance da flauta

3.1 Considerações históricas

Embora seja muito antiga, não é freqüente, na literatura especializada, a preocupação com a postura na performance da flauta (THOMPSON, 2008; FONSECA, 2005, 2007, 2008, 2010). Johann Joachim Quantz (1697-1773), grande compositor e flautista alemão do século XVII, foi um dos primeiros autores que manifestou preocupação sistemática com questões técnicas relacionadas à postura na execução da flauta. Esse autor/compositor tratou detalhadamente, em seu tratado Essay of a Method for Playing The Transverse

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Flute (1752), de assuntos fundamentais como a sustentação do instrumento, a posição das mãos, a embocadura e a respiração. A ênfase que ele dá a essas questões mostra sua preocupação com a postura do flautista. No capítulo que trata da sustentação da flauta, ele afirma que:

A cabeça deve se sustentar sempre ereta, e de maneira natural, assim a respiração não será prejudicada. Você deve sustentar seus braços um pouco afastados de seu corpo, o esquerdo um pouco mais que o direito, e não pressioná-los contra o corpo, afim de que sua cabeça não fique em uma posição oblíqua em relação ao seu corpo; isso poderia, além de causar uma má postura, impedir sua respiração, uma vez que sua garganta se contrairia e a respiração não aconteceria tão facilmente como deveria ser. Você deve sempre sustentar a flauta com firmeza contra sua boca, a alternância desta pressão pode afetar a afinação (QUANTZ, 1752, p.37).

Métodos consagrados como Méthode complète de Flûte, de Taffanel e Gaubert (1958, p.4) e Check-up - 20 Basic Studies for Flautists de Peter Lukas Graf (1991, p.4) são unânimes em afirmar que a postura correta é essencial para a técnica do instrumento. Nenhum desses autores, no entanto, é claro quanto à técnica para se atingir esses objetivos. Eles tendem a tratar essas questões de forma superficial, dificultando sua compreensão. Apenas mais recentemente a preocupação com uma postura adequada vem sendo relevada por vários autores embora ainda não possamos dizer ainda que se trata de uma preocupação sistemática. Reproduzimos aqui algumas afirmações nesse sentido de autores: KIMACHI (2002) detalha a técnica necessária para uma postura adequada:

Quando de pé, devemos pensar em uma postura relaxada, ereta, com cabeça e tronco erguidos, joelhos levemente dobrados, peso nas coxas, sensação de uma linha imaginária que vai do calcanhar, passando pelas costas e indo até a cabeça, alongando o corpo inteiro. Para deixar a cabeça na posição certa, não muito abaixada e nem muito erguida, podemos fazer um teste, cantando e sustentando a vogal Ô e abaixando e erguendo a cabeça sucessivamente. Devemos procurar o som mais ressonante e aberto, indicando que estamos abrindo a garganta e com a postura correta. A sensação é de alongamento da coluna cervical (região do pescoço). Os braços formam triângulos com o corpo. Se fôssemos vistos de cima, veríamos dois triângulos cujos lados seriam formados pelos braços, antebraços e corpo. Devemos sempre pensar em relaxar os ombros. O quanto levantamos ou abaixamos os cotovelos e o quanto dobramos os pulsos devem estar relacionados com o relaxamento dos ombros e o alinhamento da flauta com relação ao corpo. Vendo um flautista de frente, a linha do instrumento deve ser paralela com a linha dos lábios. Vista de cima, a linha da flauta deve estar perpendicular à ponta do nariz do músico.

Os pés podem ficar paralelos um ao outro ou fazendo um "L", o direito sendo a base e o esquerdo à frente, levemente separados. Giramos a cabeça para esquerda em direção à estante, ao maestro e ao público.

Nosso corpo nunca ficará de frente para a estante e sim para a direita. O mesmo vale quando estamos sentados. Os pés devem tocar o chão, e a

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cadeira voltada para a direita para girarmos a cabeça para a esquerda. A flauta é transversal, não a tocamos como um clarinete, por exemplo. Se não prestarmos atenção a estes detalhes, podem-se desenvolver graves problemas de coluna. Devemos pensar em movimentos horizontais, seguindo as linhas das frases, para não criarmos vícios de tocar acentuando notas sem necessidade, a menos que estejam indicados acentos na partitura. Os movimentos devem estar sempre relacionados à música, como se fôssemos atores interpretando um texto.

D’ÁVILA (2003), trata da postura do flautista enfatizando a auto-observação durante a performance.

Creio que a primeira coisa para ser refletida em relação à postura do corpo do flautista quando este está executando seu instrumento é: embora a postura assumida pelo flautista – quando este está executando seu instrumento – não seja a postura mais natural para o ser humano executar um instrumento, ela PODE e DEVE tornar-se a mais natural possível. A partir desta reflexão, o primeiro passo para se obter uma boa postura - além de receber boas orientações do professor - é estar sempre muito atento na utilização do próprio corpo, sobretudo quando este está atuando na execução. Este processo de auto-observação deve ser auxiliado, sempre que possível, pela utilização de um espelho (de proporções mínimas que possam refletir a imagem de todo o corpo do flautista) ou pela utilização de uma câmara de vídeo, ferramenta nem sempre acessível a todos, mas que pode trazer ótimos benefícios, ainda que utilizada esporadicamente.

3.2 A sustentação da flauta MATHIEU (2004) afirma que a primeira grande dificuldade colocada pela flauta é segurá-la. Manter um objeto no eixo do corpo é mais fácil do que mantê-lo de lado. A sustentação da flauta desvia as forças de sustentação para a direita. Este desvio propicia uma maior carga de trabalho da musculatura e, na opinião dessa autora, os flautistas que não se preocupam com o conjunto de seus gestos, podem chegar a uma postura marcada por muitas tensões que se instalam para compensar os desvios dos eixos corporais. Estas tensões se insinuam sutil e sucessivamente, e acabam por se fixar no esquema de gestos dos músicos. O “esquema motor” assim instalado torna-se uma espécie de programa cerebral disparado a partir do momento em que o músico pega seu instrumento. A sustentação da flauta é feita por três pontos de apoio que deverão atuar como forças contrárias para permitir uma boa estabilidade do instrumento durante a performance. O primeiro ponto de apoio é a falange proximal do dedo indicador da mão esquerda que se posicionará entre as duas primeiras chaves da flauta (Dó e Dó sustenido). Este apoio pressiona a flauta contra o queixo na altura do lábio inferior do flautista (PEARSON, 2002; DEBOST, 2002; FUKS, 2000; WURZ, 1998; HARRISON, 1983). O segundo ponto de apoio é o dedo polegar da mão direita que irá pressionar a flauta em uma direção contrária do primeiro ponto de apoio. Estas duas forças

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antagônicas devem se equilibrar quando o bocal se posiciona entre protuberância mentual (a ponta do queixo) e o lábio inferior do flautista. A flauta é um instrumento completamente sustentado pelo flautista durante o estudo e a performance, e, de maneira semelhante ao violino, é um instrumento que exige para ser sustentado um certo grau de assimetria postural do tronco. Além da assimetria postural, a sustentação da flauta exige forças isométricas da musculatura por períodos prolongados de tempo o que, inevitavelmente representa sobrecarga postural, principalmente para a região da cintura escapular, pescoço e membros superiores e pode contribuir para a tendência de desalinhamento postural crônico (TEIXEIRA, 2011; FONSECA 2005, 2007, 2008, 2010; THOMPSON, 2008; VISENTIN e SHAN, 2003; QUEIROZ e FONSECA, 2000).

3.3 Alterações posturais decorrentes da performance da flauta

Um indivíduo normal com boa postura, quando visto de perfil, tem os planos das escápulas e o dos glúteos alinhados (Ex.6).

Ex.6 – Figura da postura normal em perfil (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BRICOT, 2001)

Ao segurar a flauta, ocorre com muita frequência o deslocamento do pescoço para frente e o desalinhamento do plano escapular (Ex.7).

Ex.7 – Figura do plano escapular posteriorizado e a projeção do pescoço (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BRICOT, 2001).

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Visto de frente, o flautista tende a desalinhar todas as linhas horizontais: linhas das pupilas, entre os dois tragus, entre os dois mamilos, além das cinturas escapular e pélvica. Como já visto anteriormente, o Ex.3 ilustra a postura normal vista de frente. O Ex.8 e o Ex.9 ilustram os desalinhamentos mais comuns durante a performance da flauta.

Ex.8 – Figura das básculas paralelas de ombros e quadril (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BRICOT, 2001).

Ex.9 – Figura das básculas cruzadas de ombros e quadril (FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; BRICOT, 2001).

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Visto por cima, um flautista tende a desalinhar os ombros colocando o ombro esquerdo na frente do direito.

Estes desalinhamentos, que perturbam a estática, são inerentes ao ato de tocar flauta e merecem toda a atenção no sentido de serem minimizados durante a performance e compensados com cuidados posturais no cotidiano em geral. Flautistas que não desenvolvem a consciência desses desalinhamentos e não cuidam de suas compensações, tendem a apresentar dores, enrijecimentos, contraturas, com limitação dos movimentos articulares, queda no rendimento e na resistência musculares, que acabam por prejudicar seriamente a qualidade da performance e da progressão do aprendizado (TEIXEIRA, 2011; FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; MATHIEU, 2004). Numa tentativa inconsciente de compensar o problema da assimetria e do peso do instrumento, os flautistas tendem, muitas vezes, a recuar posteriormente o ombro direito e avançar o esquerdo em um movimento de rotação dos quadris, para, com isso, ajustar melhor o bocal e atingir as chaves na outra extremidade (Ex.10). O cansaço faz com que o flautista aproxime o instrumento de seu ombro direito para aliviar o desgaste de sustentá-la com o braço. Alguns flautistas chegam mesmo a inclinar o tronco para o lado (direito) para apoiar o cotovelo no tronco, numa situação de virtual colapso postural. “A postura fica totalmente caída para escapar do peso da flauta” (TEIXEIRA, 2011; FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; MATHIEU, 2004).

Ex.10 – Figura de colapso postural frequente em flautistas: apoio do cotovelo direito no tronco para aliviar o peso do instrumento e rotação do pescoço (ACKERMANN et al, 2011; FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; MATHIEU, 2004)

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Esta postura dificulta a ação dos músculos respiratórios e obriga o flautista a virar a cabeça para o lado esquerdo para ler a partitura. Além disso, esta posição faz com que a cabeça fique bastante inclinada acabando com a horizontalidade do olhar, promovendo desconfortos físicos. Para alguns flautistas que assumem essa postura com grande frequência, NORRIS (1997) propõe o uso de um bocal angulado desenvolvido pela Emerson Musical Instruments (Ex.11). Este bocal permite que o flautista toque de maneira mais confortável e ameniza a problemática postural da performance. Contudo, há uma perda da estabilidade do instrumento e, por isso, ele aconselha o uso de um acessório para apoiar o polegar da mão direita e o indicador da mão esquerda.

Ex.11 – Figura do bocal angulado desenvolvido pela Emerson Musical Instruments.

Considerando a prática musical orquestral como uma das principais facetas profissionais dos flautistas, torna-se importante uma abordagem sobre a performance da flauta na posição sentada. A rotina dos instrumentistas de orquestra inclui apresentações frequentes de repertórios variados, viagens e longas horas de preparação e ensaios. Normalmente nesta rotina, os músicos ficam na posição sentada a qual exige, de uma maneira geral, uma maior demanda da coluna cervical e das demais estruturas ósseas e musculares.

É necessária muita atenção, pois este somatório (maior demanda da coluna cervical e das demais estruturas ósseas e musculares associada aos desvios posturais inerentes à performance da flauta) pode resultar em uma série de problemas físico-posturais e também técnico-musicais. MCGILL (2002) recomenda a mudança de postura e momentos de pausa para possibilitar maior movimentação corporal. Vale ressaltar a influencia que o encosto das cadeiras tem sobre a postura sentada. RUMAQUELLA (2008) afirma que “ao se sentar com apoio ocorre uma diminuição da pressão intradiscal e da ação muscular, pois parte do peso ósseo é transferido para o encosto da cadeira”. É

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importante que seja pesquisado o tipo de mobiliário ergonômico adequado para cada tipo de profissão (ACKERMANN, 2011; TEIXEIRA, 2011; BRODSKY, 2006; FONSECA M.P.M., 2005, 2007, 2008, 2010; FONSECA J.G., 2008; WILLIAMON, 2006, 2004; MATHIEU, 2004; BRODSKY, 2006; WYNN, 2004; DAWSON, 2001; ANDRADE e FONSECA, 2000; NORRIS, 1997).

4 - Conclusões

A partir dos conceitos apresentados, é possível concluir que grande parte das definições de postura enfatiza a relação da boa postura com a ideia de movimento ou conjunto de gestos. Uma postura inadequada pode produzir deslocamentos no eixo de gravidade do corpo resultando em sobrecarga dos músculos e articulações (BRODSKY, 2006; MATHIEU, 2004; BRICOT, 2001; KENDAL, 1995). Quando a musculatura da estática permanece longo tempo em desequilíbrio, uma série de forças anormais começa a atuar sobre todo o corpo. Essas forças causam compressões, torções e estiramentos de músculos, articulações, ligamentos e fáscias gerando vários desconfortos (dores, câimbras, enrijecimentos, contraturas e fadiga) com repercussão imediata sobre a eficiência dos movimentos nas regiões afetadas. Em longo prazo, essas alterações podem produzir problemas articulares e alterações bioquímicas e circulatórias. Por outro lado, a ação de tocar um instrumento musical é uma atividade física e, portanto, também requer uma prontidão motora e muscular. Tocar um instrumento de sopro requer atenção em diversos aspectos, pois envolve o domínio técnico de questões extremamente complexas como a sustentação do instrumento, a respiração, a produção do som, o vibrato, dentre outras coisas. É de nosso corpo que partem todos os comandos para que um som seja articulado, para que uma obra musical possa ser executada. Se esse corpo apresenta problemas posturais de qualquer ordem, certamente o ato de tocar se tornará muito mais difícil e, às vezes, até penoso. Os comprometimentos físicos advindos de uma postura inadequada podem trazer consequências prejudiciais à performance da flauta como o aparecimento de dores, enrijecimentos, contraturas, limitação dos movimentos articulares, diminuição da resistência muscular. Tudo isso acaba por prejudicar seriamente a qualidade desta performance e a progressividade no aprendizado do instrumento. Vale salientar que os estudos sobre saúde do músico são recentes, notadamente aqueles que propõem ações preventivas em relação aos desconfortos físico-posturais inerentes à performance. Dois tipos de ações preventivas têm sido propostas: (1) as que preconizam a utilização de acessórios e adaptações na flauta e (2) as que propõem que a prevenção seja

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decorrência de uma melhor consciência técnica e postural. Em nossa opinião os dois tipos de propostas são complementares, mas o desenvolvimento de uma consciência crítica técnico-postural é prioritário e condição sine qua non para a prevenção eficaz dos desconfortos físico-posturais dos músicos. As atitudes e práticas preventivas fazem parte do cotidiano dos esportistas já há algum tempo. Os músicos devem buscar um caminho semelhante, mas, infelizmente, eles só se preocupam com seu corpo quando sentem dor. Seria ideal que, antes do aparecimento de qualquer desconforto, o instrumentista investisse em atividades que desenvolvam a consciência corporal, a fim de evitar futuros transtornos decorrentes da performance do instrumento. A prática de esportes, de alongamentos, de técnicas posturais (Técnica de Alexander, por exemplo) associados a uma alimentação regrada e um sono regular deveriam fazer parte de seu cotidiano. Esses cuidados podem favorecer a qualidade da performance e a longevidade da carreira do flautista. Referências ACKERMANN, B. J. et al. Incidence of injury and attitudes to injury management in skilled flute players. Work. 2011; 40(3):255-9.

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Marcelo Parizzi, flautista nascido em Belo Horizonte, é professor de flauta transversal e flauta doce da Universidade Federal de São João del Rei. É doutorando no programa de Pós Graduação em Ciências Aplicadas à Saúde do Adulto pela Escola de Medicina da UFMG, mestre em performance pela Escola de Música da UFMG e desenvolve pesquisa voltada à saúde do músico, priorizando os problemas técnico-posturais dos instrumentistas de sopro. Em 2004, foi o único representante da América Latina a ter participação ativa na Master Class Internacional, na Suíça, ministrada pelo flautista James Galway, fazendo parte de um grupo de 20 flautistas escolhidos no mundo inteiro. Em 2006, apresentou-se com o pianista Phillip Moll e com a soprano Yuko Takemichi. Apresenta-se regularmente com o pianista João Gabriel Marques (MG).

Francisco Eduardo Costa Cardoso possui graduação em Medicina pela Escola de Ciências Médicas de Alagoas (1986), mestrado (1991) e doutorado (1994) em Biologia Celular pela Universidade Federal de Minas Gerais. Fez Residência Médica em Neurologia no Hospital das Clínicas da UFMG (1988-1991) e Clinical Post-Doctoral Fellowship (1991-1993) no Parkinson´s Disease Center and Movement Disorders Clinic, Baylor College of Medicine, Houston, TX, EUA, sob a supervisão de Joseph Jankovic MD (1991-1993). Atualmente é Professor Titular (Departamento de Clínica Médica - Neurologia) da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Neurologia, atuando principalmente nos seguintes temas: doença de Parkinson, coréia de Sydenham e outras manifestações neurológicas de febre reumática, anticorpos anti-núcleos da base, coréias em geral e outros distúrbios do movimento.

Antônio Carlos Guimarães possui graduação em Musica pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990), mestrado em Master of Music - University of New México (1995) e doutorado em Doctor of Musical Arts - University of Iowa (2003). Atualmente é professor adjunto do Departamento de Música da Universidade Federal de São João Del-Rei.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3106

Flautas Transversais Renascentistas: história, construção e experimento com madeiras brasileiras Rodrigo Bueno Ferreira (UFPR, Curitiba, PR) [email protected]

Henry Maas (UFPR, Curitiba, PR) [email protected]

Luiz Cesar Savi (UFPR, Curitiba, PR) [email protected]

Thiago Corrêa de Freitas (UFPR, Curitiba, PR) [email protected]

Aloísio Leoni Schmid (UFPR, Curitiba, PR) [email protected] Resumo: Originária da flauta transversal alemã do séc. XII, a flauta transversal renascentista, também chamada de traverso, atingiu o ápice de sua popularidade entre os séculos XVI e XVII. Como tantos outros instrumentos musicais acústicos, as técnicas para sua construção e para seleção dos materiais utilizados, em especial das madeiras, são ditadas muito mais pela tradição e por generalizações intuitivas do que por indicações resultantes de pesquisa científica empírica. Este trabalho descreve uma breve história das flautas renascentistas, sua utilização, suas formas de execução e, principalmente, sua construção, a fim de avaliar até que ponto a seleção de materiais é importante para determinar as características qualitativas do instrumento, sendo que para este último ponto, foram utilizadas madeiras nacionais não tradicionais (como imbuia e sucupira), para a confecção, gerando bons exemplares. Palavras Chave: flauta transversal renascentista; música da renascença; construção de instrumentos musicais; madeiras brasileiras na luteria.

Renaissance transverse flute: history, construction and experiment with Brazilian woods Abstract: Originated from the German Querflöte from the 12th century, the Renaissance transverse flute reached its highest popularity between the 16th and 17th centuries. Like several other acoustical musical instruments, the Renaissance transverse flute has its material selection, as well as its construction technique dictated by tradition and intuitive generalization rather than by scientific empirical research. This paper presents a brief history of Renaissance flutes and their making. We also have evaluated, in a qualitative way, the relevance of material selection for the instrument features. So far, it was possible to show the feasibility of a non-traditional wood choice, as Brazilian woods (such as imbuia and sucupira) were chosen to build and yielded good exemplars of this instrument. Keywords: Renaissance transverse flute; Renaissance music; Musical instruments making; Brazilian woods in instrument making.

1 - Introdução Entre os construtores de instrumentos musicais, há consenso de que a seleção dos materiais é fundamental para se obter um instrumento de qualidade. Por seus atributos sonoros e estéticos, a nobreza de algumas madeiras, tais como o jacarandá, o ébano e o pau-brasil, goza de amplo apreço entre os

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especialistas. Observamos, porém, que algumas hipóteses qualitativas atribuídas a alguns instrumentos são generalizações de resultados obtidos a partir de outros. Por exemplo, os instrumentos da família do violino, os violões e os demais instrumentos com caixa de ressonância recebem considerável influência da escolha da madeira para seu desempenho sonoro. A partir da eficiência acústica da madeira para a produção de um instrumento com caixa de ressonância, é comum sua generalização para qualquer outro tipo de instrumento, como os elétricos e os de sopro. Tomando o exemplo da guitarra elétrica, alguns estudos, como o de PEREIRA, LAIBIDA JUNIOR e FREITAS (2010) e os de FLEISCHER e ZWICKER (1998 e 1999), demonstraram que a influência da madeira selecionada para a confecção do corpo do instrumento parece ser quase nula na qualidade sonora do instrumento. BENFATTI e colaboradores (2012, p.5) sugerem que, ao invés de necessariamente acústicas, a explicação sobre a apreciação de determinadas madeiras pode ser de outra ordem, como tradição, estética, cultura, durabilidade e disponibilidade. Desta forma, algumas afirmações sobre a construção de instrumentos musicais acabam situadas em um âmbito dedutivo. O conhecimento intuitivo é elementar para qualquer um que se dedique à construção de instrumentos, considerando que é uma arte. Porém, ao mesmo tempo em que a intuição facilita a criatividade artística, pode também conduzir a generalizações precipitadas. Por este motivo, nos propusemos a investigar se as flautas são afetadas pela escolha do material do mesmo modo que os instrumentos com caixa de ressonância. Neste trabalho introdutório, nos esforçamos para a descrição de um estudo empírico, que possa servir de referência àqueles que se interessam pela construção de flautas. Em nosso procedimento, utilizamos o mesmo projeto, os mesmos equipamentos e técnicas para a construção de cinco instrumentos, com diferentes madeiras. Tais flautas foram posteriormente analisadas e comparadas, com o propósito de definir diferenças qualitativas nos processos de produção e também na qualidade final dos instrumentos. O artigo está organizado de maneira que, primeiramente é explanada a utilização musical da flauta renascentista, suas características e outras pesquisas sobre instrumentos de época; em seguida, são descritos os procedimentos de construção; logo após, apresentada a análise comparativa entre os exemplares de diferentes madeiras; e, finalmente, nossas considerações.

2 - Panorama Histórico A flauta transversal renascentista teve o seu ápice no período que vai da segunda metade do século XVI até a primeira metade do XVII, praticamente sem sofrer alterações nesse tempo. Segundo o construtor contemporâneo PUGLISI1 (1995, p.7), isso reflete o compromisso ideal entre as necessidades musicais daquela época e as limitações do corpo, como o tamanho dos dedos e o alcance das notas. Somente 43 instrumentos originais daquele período

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sobreviveram até os dias atuais. Destes, 26 se encontram na Itália, reunidos em grupos, rever todo o artigo de PUGLISI (1979), fato condizente com a prática deste instrumento na Renascença, período em qual não se criava instrumento para ser utilizado por solistas, mas sim conjuntos de instrumentos que formavam um consorte (BYRNE, 1965, p.126). A história do traverso remonta a região da atual Alemanha, no séc. XII, onde após ter sido admitido como instrumento musical nos círculos aristocráticos, passa também a ser tocado em conjunto com a rabeca dos Minnesinger2. Segundo BROWN (1980), rever todo o conteúdo do artigo para uma melhor contextualização, e SMITH (1992, p.13) sua popularização o faz chegar até a França no séc. XIV e ao norte da Itália no séc. XV, e já em meados do séc. XVI, o traverso evoluiu para um pífano de uso militar na Alemanha e na Itália, sendo que na França consolidou-se com instrumento de música de câmara (CAZEAUX, 1975, p.54-57). Por ser um instrumento constituído de peça única, não é possível afinar a flauta com outro instrumento de referência, e a solução encontrada na época para contornar o problema foi construir várias delas em diferentes tamanhos e afinações. Este fato deve ter colaborado para a existência de um grande número de flautas, de diferentes tamanhos, listados em inventários, como o feito em 1589 em Stuttgart, em que estão registrados 220 exemplares do instrumento (Castellani, citado por ALLAIN-DUPRE, 2000, p.52). Além disso, o traverso era considerado um belo instrumento musical e também um objeto de colecionador. Isto pode ser verificado através do caso da Accademia Filarmonica de Verona, que em 1569 contava com dois conjuntos de cinco flautas cada e ainda alguns instrumentos avulsos; já no ano de 1628, um inventário aponta a existência de 51 flautas. A Accademia3 perdura até os dias atuais e mantém o maior conjunto de flautas renascentistas (PUGLISI, 1995, p.37), rever também todo o artigo do mesmo autor que trata exclusivamente destas flautas (PUGLISI, 1979). Atualmente existem três principais tratados que remontam ao período áureo das flautas transversais renascentistas, sendo considerados as fontes primárias de informações, não apenas sobre o traverso, mas de vários instrumentos, como demonstra a sua utilização no trabalho de CEULEMANS (2011, cap.3) sobre as origens do violino. São eles em ordem cronológica Musica getutscht, de Sebastian VIRDUNG (1511), Musica instrumentalis deudsch, de Martin AGRICOLA (1529 e 1545) e Harmonie Universelle, de Marin MERSENNE (1636). Existem também algumas informações sobre o instrumento no manual de música e dança da Renascença Orchesographie, de Thoinot ARBEAU (1589), no tratado De musica, de Jerôme CARDAN (1546), em Il dolcimelo, de Aurelio VIRGILIANO (1590), na Pratica di Musica, de Lodovico ZACCONI (1592), também em Selva de varii passaggi, de Francesco ROGNONI (1620), no Traité des instruments de musique, de Pierre TRICHET (1640) e em Der Fluyten-Lust-hof, de Jacob van EYCK (1649). A obra de referência musical mais antiga destinada às flautas a que se tem acesso atualmente consiste nas Vingt et sept chansons musicales à quatre, de Pierre ATTAINGNANT (1533). Nesta coleção, cada canção (chanson) é designada

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para ser tocada com flauta transversal da renascença, com flauta doce ou por ambos. Como as vozes intermediárias partilham da mesma extensão musical, se presume que o conjunto de flautas era constituído por uma flauta mais aguda, duas de tessitura intermediária e uma flauta baixo (SACHS 1940, p.314). Naquele período da história, não havia uma convenção internacional para a padronização da frequência utilizada na afinação, variando de cidade para cidade e até mesmo de igreja para igreja de uma mesma cidade. HELMHOLTZ (1954, p.493-513) construiu uma história das referências de afinação na Europa desde o séc. XIV até meados de 1880. Seu trabalho demonstrou diferenças substanciais nas frequências de afinação. Michael Praetorius (Praetorius, citado por SMITH,1992, p.16), relatou que várias regiões de influência católica possuíam duas referências para a afinação: o tom de câmara (kammerton), utilizada para a música profana; e o tom de coro (chorton), utilizado para música sacra, sendo esta mais grave que a anterior e a que geralmente se utilizava para a afinação dos traversos.

Os trabalhos de PUGLISI (1979, 1988 e 1995) e ALLAIN-DUPRE (2000, 2004 e 2006), apresentaram medidas e desenhos de instrumentos do século XVI em bom estado de conservação. Várias características comuns foram observadas: na maioria das flautas a embocadura é elipsoidal e não circular, sendo que a elipse possui o raio maior na direção do comprimento do instrumento; o furo transversal é praticamente cilíndrico, apenas com algumas imperfeições, que a princípio devem-se mais ao sistema de furação utilizado na época (BAINES, 1957, p.277) do que a um projeto consciente4; os furos laterais das flautas estão agrupados, por proximidade, em dois grupos de três furos cada; em certas flautas, a distância entre a embocadura e o final fechado do tubo é igual à distância entre o primeiro furo e o final aberto do tubo; a razão entre o comprimento vibrante (distância do final mais afastado da embocadura até o centro da embocadura) pelo diâmetro do furo transversal varia entre 30 até 33, sendo apenas um pouco menor que estes valores para as flautas baixo; devido às finas paredes e ao tipo de madeira utilizada, as flautas renascentistas são muito leves, tendo entre 90 e 170 gramas. Segundo BRAGARD (1968, p.101) a flauta tenor feita por Claude Rafi (1515 -1553), para uma breve biografia rever todo o artigo de TRICOU (1903), exposta no Museu de Instrumentos Musicais de Bruxelas, é feita com madeira de buxinho (Buxus sempervirens). Não encontramos muitos indícios de outras madeiras utilizadas no conjunto destas flautas além do buxinho. A literatura, contudo, aponta algumas tendências: SCHWANKL (1955, p.94 e 106) menciona serem a bétula e a pereira adequadas à fabricação de instrumentos de sopro, e o pinus na fabricação de órgãos de tubo; ROBINSON (1980, p.10) menciona o buxinho como a madeira mais dura e com mais fina grã disponível na Europa, portanto utilizada na confecção de flautas. Esta madeira, porém, apresenta pronunciada tendência a empenar, motivo pelo qual se encontram muitas flautas antigas arcadas. O buxinho é difícil de ser obtido em peças maiores e sua cor é indefinida, sendo comumente colorido através de produtos químicos, como o ácido nítrico, para se chegar à rica cor amarelo-alaranjada. Como alternativa, ROBINSON (1980, p.11) alude à madeira de árvores frutíferas, recomendando o hard maple (Acer saccharum) e frutíferas da América do Norte: macieira,

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cerejeira e pereira. Menciona que durante o século XIX, madeiras tropicais gradualmente substituíram as madeiras do hemisfério Norte. Segundo RICHTER (1988, p.19-20), ao lado da pereira (Pirus communis), o maple (Acer pseudoplatanus) é a madeira mais utilizada na fabricação de flautas doces. Ambas são classificadas como madeiras leves neste âmbito. Seu timbre é, correspondentemente, tido como macio e centrado no tom fundamental. O buxinho foi utilizado sucessivamente no passado, mas, devido à baixa produção, é utilizado somente em réplicas de flautas históricas. Já o jacarandá da Bahia (Dalbergia nigra) é conhecido e apreciado na Europa há mais de 200 anos – mas provavelmente, não remonta à Renascença. O ébano, por sua vez, teve grande tradição na confecção de instrumentos de sopro de alto valor (no entanto, cabe possível observação quanto à adequação, em especial, a instrumentos chaveados, em que a fixação de pequenos parafusos tem no ébano uma madeira privilegiada).

RICHTER (1950, p.23 e 31) afirma que o pau rosa (Dalbergia decipularis) e a oliveira (Oleaeuropea, usada em instrumentos de alto valor, com fácil produção de som e tom quente e cheio) são madeiras conhecidas há séculos e adequadas à fabricação de flautas mais agudas. Ao comentar as características especiais para madeiras não ressonantes, o caso das flautas, o autor menciona o acabamento superficial obtido e, nesta característica, destaca o grenadillo ou pau preto (Dalbergia melanoxylon), com uma lisura “cega”, a madeira mais pesada, mais dura e mais seca (granulosa), que produz timbre claro e brilhante, elegante e rico em harmônicos, portanto adequado ao solo. Por fim, menciona a ameixeira (Prunus domestica). Algumas propriedades das madeiras tradicionais são apresentadas no Ex.1.

Nome comum

Nome científico

Propriedades

Pereira Pirus communis

Densidade entre 0,65 e 0,76 g/cm³; variações dimensionais médias a fortes; bastante dura, dificilmente rachada, facilmente curvada, especialmente apropriada para o torneamento, entalhe, decapagem e polimento; resistente a fungos e intempéries; forte tendência a rachar na secagem.

Maple Acer pseudoplatanus

Densidade entre 0,5 e 0,75 g/cm³; variações dimensionais médias; dura, elástica e tenaz, com alta resistência à abrasão; boa trabalhabilidade em especial perfilagem, torneamento, entalhe, decapagem e polimento. Dificilmente rachada, facilmente curvada, permeável, suscetível a ataque de fungos, sem resistência às intempéries. Racha facilmente na secagem.

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Buxinho

Buxus sempervirens

Densidade entre 0,85 e 1,02 g/cm³, fortes variações dimensionais, tende a rachar na secagem e se deformar bastante, muito dura e densa, superfícies aplainadas muito endurecidas e lisas, muito trabalháveis em especial em torneamento, furação, perfilação, decapagem e polimento. Muito sensível à umidade e ataque de fungos, não resistente às intempéries.

Ex.1 - Tabela das propriedades das madeiras tradicionalmente utilizadas na fabricação de flautas.

3 - Da história à construção: procedimentos práticos Os procedimentos de construção que adotamos podem ser sumarizados em: 1) Escolha das madeiras; 2) Preparação; 3) Torneamento externo; 4) Furação longitudinal; 5) Torneamento segunda etapa; acabamento externo5; 6) Pré-acabamento (lixamento no torno); limpeza das rebarbas e arestas; 7) Furação da embocadura e dos furos laterais; 8) Afinação; 9) Acabamento (lixamento e revestimento com óleo e cera). Para a construção das flautas, foi utilizado um manuscrito da planta de PUGLISI6, com as dimensões, posições e diâmetros dos furos laterais, instrumento baseado no de VAN EYCK (1649), porém com afinação atual (Lá=440Hz). Foram escolhidas cinco diferentes madeiras com diferentes características (Ex.2 de A até E), sendo elas a araucária, o cedro, a imbuia, a sucupira e o roxinho. Constam também os nomes científicos das respectivas madeiras, obtidos de LORENZI (2008 e 2009). Os principais equipamentos utilizados consistem em um torno mecânico IMOR PRN-320 – que, para as dimensões do projeto escolhido, deve ter distância entre pontas superior a 500 mm, e diâmetro do furo do eixo do cabeçote fixo superior a 27 mm – com luneta fixa e uma furadeira de bancada. Também foi utilizada uma broca longa de diâmetro 15 mm e comprimento 450 mm, além das brocas comuns, com os diâmetros de 5,4 mm, 5,5 mm, 5,8 mm, 6,0 mm e 7,5 mm.

Designação Nome comum Nome científico Massa (g)

A Araucária Araucariaangustifolia 70,4 B Cedro Cedrelafissilis 65,2 C Imbuia Ocotea porosa 91,2 D Sucupira Pterogynenitens 112,7 E Roxinho Peltogyne confertiflora 121,5

Ex.2 - Tabela da designação dos instrumentos construídos, de A a E, o nome vulgar da madeira utilizada na sua construção, o nome científico desta madeira e a massa do instrumento, a qual foi medida a temperatura de 24°C e 53% de umidade relativa do ar.

Escolhidas as madeiras7, o primeiro passo para a construção foi o corte de um paralelepípedo, com dimensões aproximadas de 520 mm por 40 mm por 40 mm para cada madeira. Para simplificar o torneamento, foi funcional retirar com uma plaina o excesso de madeira em cada aresta no sentido do comprimento, de maneira a dar à peça uma seção octogonal (não

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necessariamente regular). Cada uma dessas peças de madeira foi fixada adequadamente no torno para serem transformadas em cilindros com dimensões aproximadas de 500 mm de comprimento por 27 mm de diâmetro, (Ex.3 foto (1)). Uma vez produzidos os cilindros, seguiu-se a realização do furo transversal, feito a partir da fixação de uma broca longa (comprimento útil superior à metade do comprimento da flauta) no mandril do cabeçote móvel do torno. O cilindro de madeira foi fixado na placa do torno e sua outra extremidade alinhada com a ponta cortante da broca, através de uma luneta fixa (ver a montagem no Ex.3 fotos (2) e (3)). Nesta montagem a broca permanece estacionária e o cilindro passa a rotacionar apoiado na luneta fixa. Desta forma, procedeu-se à perfuração até ser atingido o meio geométrico do cilindro, realizando-se, então, uma inversão do cilindro de madeira, para passar a perfurar a partir da outra extremidade, até o encontro com o furo anteriormente iniciado.

Ex.3 - Ilustração de alguns procedimentos do processo de construção da flauta renascentista: (1) torneamento do cilindro; (2) alinhamento da broca com o cilindro de madeira, utilização da luneta fixa; (3) furação transversal do cilindro; (4) furação lateral do cilindro.

Uma vez feito o furo transversal, o cilindro foi novamente colocado no torno para ter o seu diâmetro reduzido de 27 mm para 23 mm, deixando 1 mm de margem, para que fosse feito o acabamento nos diâmetros externos do tubo (Ex.4). Nesta etapa é recomendável o torneamento entre pontas (com uso de placa de arrasto), para garantir a concentricidade entre o furo longitudinal e a superfície externa da flauta (uniformidade da parede do instrumento). Em seguida, o cilindro foi lixado, com lixa de gramatura 80, seguida de gramatura 120, tanto externamente como internamente. Após serem feitas as marcações das posições da embocadura e dos seis furos laterais, respeitando os valores do projeto, os furos laterais foram feitos com as brocas nos devidos diâmetros,

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utilizando a furadeira de bancada (ver Ex.3 foto (4)). Também é recomendável o uso de um apoio em forma de prisma negativo, para que o cilindro não escorregue, mas possa ser movido no sentido do comprimento e também possa ser rotacionado.

Ex.4 - Representação técnica do instrumento, medidas em milímetros. A seção (A) mostra a flauta de frente e de lado, os números à esquerda são do diâmetro do tubo ao longo do comprimento. As seções (B) e (C) apresentam detalhes da região da embocadura.

Devido aos processos anteriores, os cilindros apresentam rebarbas externas e internas, tendo sido removidas com lixas de gramatura 120, 180, 220 e 240. Por fim, utilizou-se lã de aço para obter um acabamento mais refinado. Os furos laterais também foram trabalhados, com lixa de gramatura 280, para que não sofressem um aumento indesejado no seu diâmetro. Em seguida, foram

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realizados alguns pré-ajustes no ângulo em que o furo lateral encontra o furo transversal, passando este a ser menor que 90°. Também foi realizado um pré-ajuste mais complexo na embocadura, seguindo as indicações existentes nos projetos de PUGLISI (1995). A fim de ser obtida a impermeabilização parcial da parte interna do tubo, utilizou-se óleo de linhaça. Foi confeccionada a rolha – peça cilíndrica em cortiça de cerca de 30 mm de comprimento com o mesmo diâmetro do tubo, para fechar a extremidade mais próxima à embocadura – e ajustada no interior do tubo, para reprimir a passagem de ar. O posicionamento da rolha tem forte influência na qualidade sonora do instrumento, ficando geralmente afastada da embocadura a uma distância igual ao diâmetro do tubo. Após a colocação da rolha, realizou-se o ajuste da embocadura, de forma que o instrumento produzisse som claro, com relativa facilidade de execução (é recomendável reposicionar a rolha após este ajuste, visando melhorar ainda mais a qualidade sonora). Passou-se, então, ao processo de afinação das notas correspondentes aos furos laterais. Para tanto, foram feitos pequenos desgastes para alterar o ângulo de encontro entre o furo lateral e o furo transversal. A cada pequeno ajuste, a frequência da nota foi conferida com um afinador digital cromático (Korg modelo Tm 40), procedendo-se do grave para o agudo, conforme a tabela de digitação no Ex.5. Existem outras possibilidades de digitações (ALLAIN-DUPRE, 2000, p.34 e 38).

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Ex.5 - Tabela de digitação das notas. Círculos preenchidos são furos fechados e círculos não preenchidos são furos abertos. Círculos parcialmente preenchidos são furos parcialmente fechados. A parte superior corresponde ao furo mais próximo da embocadura. Uma vez completo o processo de afinação, foi novamente aplicado óleo de linhaça na parte interna. Já para o acabamento externo, aplicou-se cera de abelhas, passada a frio. É válido notar que o bloco de cera deve ser friccionado contra a flauta até besuntá-la. Em seguida, com o uso do soprador térmico, a cera foi derretida até formar uma camada homogênea sobre a superfície

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externa da flauta. Para dar brilho e retirar o excesso de cera foi realizado o processo de polimento.

4 - Análise comparativa entre os instrumentos Antes de fazer a análise, convém observar algumas características das madeiras utilizadas para a construção dos instrumentos. Para tanto, utilizamos as informações levantadas por LORENZI (2008 e 2009), as quais devem justificar os resultados aqui obtidos: A araucária (A) ocorre desde Minas Gerais e Rio de Janeiro, em altitudes acima de 900m, até a região Sul, acima de 500m. A sua madeira possui densidade 0,55g/cm3, sendo considerada uma madeira leve, macia e pouco durável (LORENZI, 2008, p.17). WEHRe TOMAZELLO FILHO (2000, p.163) comentam que a densidade média da madeira de araucária, procedente de árvores mais velhas, pode variar entre 0,6 e 0,7 g/cm³. O cedro (B) ocorre desde o Rio Grande do Sul até Minas Gerais. A madeira possui densidade 0,55g/cm3, o que a faz ser considerada de leve a moderadamente pesada, macia, sendo bastante durável em ambiente seco, porém quando enterrada ou submersa apodrece rapidamente (LORENZI, 2008, p.266). A imbuia (C) ocorre no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Sua madeira é moderadamente pesada, densidade 0,65g/cm3, dura, de cor muito variada, superfície irregularmente lustrosa e lisa, medianamente resistente e de grande durabilidade mesmo quando exposta ao tempo (LORENZI, 2008, p.221). A sucupira (D) ocorre no nordeste do Brasil até o oeste de Santa Catarina. Sua madeira é moderadamente pesada, densidade 0,77 g/cm3, dura, textura média, grã direta e irregular, difícil de rachar, moderadamente resistente ao apodrecimento (LORENZI, 2008, p.142). O roxinho (E) ocorre nos estados do Maranhão, Piauí, Bahia, Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Sua madeira é considerada pesada, densidade 0,95 g/cm3, dura, de textura fina, grã irregular, de alta resistência mecânica e muito durável (LORENZI, 2009, p.112). Dadas as diferenças de densidade entre as madeiras, as massas dos instrumentos prontos variaram entre 65g até 121g, ver Ex.2. O resultado estético pode ser visto no Ex.6, um conjunto multicor de flautas renascentistas que revelam a diversidade das madeiras nacionais. Do ponto de vista da comodidade de tocar o instrumento, é preferível a utilização de madeiras mais leves, porém é importante observar que as madeiras A e B, apesar de leves, apresentam baixa durabilidade. Quando o instrumento é tocado, ocorre condensação de água em seu interior e, apesar da impermeabilização parcial promovida pelo óleo de linhaça, parte dessa umidade é absorvida pela madeira. Isso resulta na exposição alternada à umidade e à ausência de

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umidade, o que afeta a durabilidade da madeira, diminuindo a vida útil do instrumento. É válido notar que a flauta A possui maior massa que a flauta B, o que provavelmente se deve a uma maior densidade daquela madeira de araucária, como sugerido por WEHR e TOMAZELLO FILHO(2000, p.163).

Ex.6 - Instrumentos construídos para a realização deste estudo. As madeiras utilizadas são: A-araucária, B-cedro, C-sucupira, D-imbuia, E-roxinho. A madeira E, apesar de ser muito resistente e durável, apresenta uma densidade alta. Por isto, é preferível que ela seja utilizada na confecção de flautas menores, tendo em conta que instrumentos maiores, como uma flauta tenor ou baixo, seriam demasiadamente pesados. Já as madeiras C e D apresentam densidades intermediárias e boa durabilidade, se caracterizando como boas escolhas, uma vez que é possível confeccionar instrumentos não muito pesados e com condições de suportar as variações de umidade. Em se tratando da resposta das madeiras às técnicas de corte, torneamento, furação e acabamento, elas apresentaram comportamentos diversos. Por serem macias as madeiras A e B trincam, lascam e amassam facilmente durante o processo de torneamento, fazendo com que o processo de acabamento seja mais trabalhoso – por exemplo, a necessidade da utilização de lixas com gramaturas menores para corrigir imperfeições mais grosseiras. Por isto, tornam-se relativamente difíceis desgastes precisos, como os necessários nos furos laterais ou na embocadura ante o processo de afinação. Em contrapartida, o processo de furação transversal é rápido e fácil de ser feito. As madeiras duras, em compensação, C, D e E, são fáceis de tornear e resultam em bom acabamento. A realização do furo transversal torna-se um processo mais demorado, porém, há maior facilidade para serem produzidos os desgastes precisos nos furos laterais e na embocadura, permitindo a confecção de instrumentos mais bem ajustados.

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5 - Considerações Finais Neste trabalho explanatório, concluíram-se os seguintes procedimentos: a apresentação histórica da flauta transversal renascentista, suas particularidades e características; a descrição do processo de construção deste instrumento, relatando a confecção de cinco exemplares, cada um de uma madeira nacional diferente; e, por fim, a análise qualitativa dos instrumentos produzidos, considerando a influência das diferentes madeiras no processo de construção. Foi possível demonstrar que existem madeiras brasileiras aptas para a produção das flautas renascentistas, particularmente aquelas consideradas duras e de densidade intermediária, como a imbuia e a sucupira. Verificou-se também que as mesmas técnicas de usinagem aplicadas a diferentes madeiras levam a diferentes resultados de acabamento. Sugerimos que a usinagem é a principal responsável pelas diferenças nas sonoridades destes instrumentos de sopro construídos com diferentes tipos de madeiras. Tal resultado é corroborado por LEIPP (2010, p.232-233), cujo argumento é o de que, na maioria dos casos, os tubos dos instrumentos são suficientemente espessos, a ponto de se comportarem como rígidos perante as forças que sentem devido a variações internas da pressão do ar no interior do tubo. Pela viabilidade demonstrada no uso de madeiras nacionais não tradicionais, em trabalhos futuros, pode ser oportuno estender os testes a outras madeiras com propriedades potenciais para a confecção destas flautas. Com a finalidade de expandir e dar continuidade a esta pesquisa, poderá ser realizado um maior número de comparações através de testes acústicos. Agradecimentos Os autores agradecem ao Professor Dalberto Dias da Costa, por permitir a utilização da oficina mecânica e equipamentos do DEMEC-UFPR. Ao Professor Nixon Vieira Malveira, pela colaboração durante o processo de fabricação das flautas. Aos técnicos em mecânica José Antônio Miquilino Barbosa e Weslley Menezes Guimarães, pelo apoio prestado. Ao Dr. Yury Vaschenko por ceder a flauta confeccionada em imbuia para a realização dos testes. Referências: AGRICOLA, Martin. Musica instrumentalis deudsch. RHAU, Georg (ed). Wittemberg: 1529 e 1545. ARBEAU, Thoinot. Orchesographie. DES PREYZ, Lehan (ed). Lengres: 1589. ALLAIN-DUPRE, Philippe. Proportions of Renaissance Tenor Flutes and the Relationship of Verona Flutes to Foot-Length Standards. The Galpin Society Journal, v.59, p.21-28, 2006. ______.Renaissance and Early Baroque Flutes: An Update on Surviving Instruments, Pitches and Consort Groupings. The Galpin Society Journal, v.57, p.53-61, 2004. ______.Les flutes de Rafi. Courlay: J. M. Fuzeau, 2000. ATTAINGNANT, Pierre. Chansons Musicales. Paris: 1533. BAINES, Anthony. Woodwind instruments and their history. New York: W. W. Norton, 1957. BENFATTI, Maurício;GODOI, Elena; MAZUROSKI, Arsteu; FERREIRA, Rodrigo Bueno. Cognición y cultura musical: El rol del contexto em El desarrollo Del comportamiento musical. A Contratiempo, v.18, n. 3, p.1-11, 2012. BRAGARD, Roger; DE HEN, Ferdinand. Musical Instruments in Art and History. New York: The Viking Press, 1968.

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Notas 1http://www.renaissanceflute.com/ (Acessado em 23 de agosto de 2011 e 4 de abril de 2012).

2Minnesinger, no período da Alta Idade Média, era um artista poeta/músico na região da atual Alemanha.

3http://www.accademiafilarmonica.org (Acessado em 23 de agosto de 2011 e 4 de abril de 2012).

4 Uma ideia contrária é defendida por ROBINSON (1980, p.17).

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5 Recomenda-se torneamento entre pontas, para garantir a concentricidade entre o furo longitudinal e a superfície externa da flauta (uniformidade da parede do instrumento).

6 Ver o canal do autor http://www.youtube.com/user/filadelfiopuglisi (Acessado em 15 de julho de 2011 e 4 de abril de 2012).

7 Preferencialmente, sem conter nós ou imperfeições, para que o torno não inutilize a peça de madeira.

Rodrigo Bueno Ferreira é graduado em Luteria (2011) e em Letras (2009); mestre em Linguística (2013); e doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Paraná. Integra os grupo de pesquisa Linguagem e Cultura UFPR/CNPq e Luteria UFPR/CNPq. Possui trabalhos relacionados à luteria, à comunicação ficcional e à Pragmática.

Henry Maas é graduado em Tecnologia em Luteria pela Universidade Federal do Paraná (2012), com habilitação em instrumentos elétricos. Possui interesse na área de design de instrumentos musicais, teorias das cores e softwares auxiliares em Luteria.

Luiz Cesar Savi é graduado em Tecnologia em Luteria (2011) e em Estatística (2000), pela Universidade Federal do Paraná e em Economia (1986), pela Universidade Federal de Santa Catarina; especialista em Finanças pelo Centro de Desenvolvimento Empresarial da Faculdade de Administração e Economia (1993). Atuou como professor no departamento de Economia da Fundação de Ensino do Valedo Itajaí, como analista de sistemas de manutenção nas Centrais Elétricas do Suldo Brasil S. A. e como superintendente de Administração Financeira na Itaipu Binacional.

Thiago Corrêa de Freitas é bacharel em Física (2007); mestre em Física (2009); e doutor em Física (2012) pela Universidade Federal do Paraná. Violinista amador, participou de cursos como as Oficinas de Música de Curitiba e integrou a Orquestra Filarmônica da UFPR. Atua como vice-coordenador e professor de Acústica no curso Superior de Tecnologia em Luteria da UFPR, sendo pesquisador do grupo de pesquisa Luteria UFPR/CNPq, na linha Acústica e Funcionamento de Instrumentos Musicais.

Aloísio Leoni Schmid é engenheiro mecânico (1990), com mestrado (1993) e doutorado (1996) em Engenharia, atuando na UFPR desde 1997. Leciona metodologia científica e disciplinas relacionadas a calor, iluminação, ar e acústica em edificações no curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, mestrado em Engenharia da Construção Civil. Atuou também na coordenação do curso de Luteria, sendo atualmente chefe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPR. Na UFPR, pesquisa a simulação de edificações e tem desenvolvido aplicativos próprios, que incluem análise e auralização em acústica de salas. Tem longa prática extensionista, atuando em projetos e eventos relacionados à disseminação da música de câmera.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3107

Aprendizagem musical na maturidade: diálogo entre teoria e prática

Andréa Cristina Cirino (UFMG, Belo Horizonte, MG)

[email protected]

Resumo: Esse trabalho apresenta uma síntese parcial da pesquisa de mestrado concluída em 2010, e tem como propósito discutir o significado de aprendizagem musical e sua relação com a teoria e a prática, levando em conta a intenção e a habilidade musical de adultos maduros. Sob esse enfoque qualitativo com técnicas de etnografia escolar, o artigo traz os relatos de oito alunos com idade a partir de 50 anos, que participaram de entrevistas semiestruturadas no decorrer do curso de extensão Apreciação e Musicalização na Maturidade – UFMG. Os resultados procedem da análise interpretativa do conteúdo, com base nos argumentos de SWANWICK (2003; 1996) e GREEN (2005). As considerações finais refletem sobre a importância de se adequar métodos de aprendizagem musical para esta faixa etária, conjugando teoria básica e atividades práticas conforme as possibilidades e a experiência do aprendiz.

Palavras-chave: aprendizagem musical para adultos; iniciantes em música na maturidade; significado musical e experiência de aprendizagem; teoria e prática musical. Musical learning in maturity: dialogue between theory and practice Abstract: This work presents a partial synthesis of the master’s research concluded in 2010, and aims at discussing the meaning of musical learning and its relation to theory and practice, taking into account the intention and musical ability of mature adults. Under this qualitative approach with techniques of educational ethnography, the paper brings the reports of eight students over 50 years old who participated of semi-structured interviews during the community course Appraising and Musicalization in Maturity – UFMG. The results derive from the interpretative analysis of content, based on the ideas of SWANWICK (2003; 1996) and GREEN (2005). The final considerations consider the importance of adapting methods of musical learning for this age range, combining basic theory and practical activities in accordance to the possibilities and experience of the learner.

Keywords: musical learning for adults; older beginners in music; musical meaning and learning experience; music theory and practice.

1 – Introdução

Atualmente diversos estabelecimentos de ensino proporcionam meios de inclusão às pessoas na maturidade1, que pretendem estudar música. Embora existam poucos relatos referentes ao aprendizado de adultos maduros em curso formal de música, há instituições que oferecem oficina de música em sua grade curricular. Além do curso de extensão Apreciação e Musicalização na Maturidade, da UFMG, temos como exemplo a Universidade Aberta à Terceira Idade (UnATI) em diversas cidades brasileiras, o Centro Cultural Pró-Música de Juiz de Fora, e o Programa da Maturidade na Faculdade Estácio de Sá – BH. Acredita-se que, independentemente da idade, cada indivíduo tem seu potencial a ser explorado, sendo a atividade musical compensatória para experiências que permitem não só uma ampliação de conteúdos em diversas áreas do conhecimento, mas a integração entre pensamento e emoção (LUZ, 2008; SWANWICK, 2003).

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DEBERT (2004, p.132) ainda enfatiza: “Cada momento vivido é uma nova experiência e em qualquer idade há muito o que aprender”. Desse modo, ainda que um aluno maduro apresente dificuldades em apreender conhecimentos considerados simples pelo professor, isso não determina que ele não possa ser educado musicalmente. Nessa perspectiva, podemos supor que todo indivíduo tem a capacidade de ser musical e de vivenciar a música, prevalecendo a ideia de que tais habilidades podem ser adquiridas em qualquer período da vida (PENNA, 1990;2 SLOBODA, 2008). Segundo LUZ (2008, p.40-41), “a ideia de que se alfabetizar na linguagem sonora é possível em qualquer idade, transforma-se numa realidade”. Desse modo, é importante observar que a aula de música para pessoas maduras é capaz de propiciar um ambiente cultural que compartilha conhecimentos. Dentro desse panorama, a musicalização pode ser concebida como etapa inicial da aprendizagem musical, pois envolve condições básicas para se trabalhar a audição, as definições dos elementos musicais, assim como a expressividade do aprendiz. Conforme GAINZA (1988, p.24), os adultos também são capazes de manifestar reações específicas através da captação sonora e dos processos expressivos consequentes da musicalização. Porém, qual o sentido de aprendizagem musical para os alunos maduros? O que eles querem aprender? Quais são as propostas educacionais para essa faixa etária? Com base nas conjecturas e concepções relatadas pelos participantes do curso Apreciação e Musicalização na Maturidade, a contextualização sobre o assunto tem por finalidade discutir o significado da aprendizagem musical e sua relação com o aspecto teórico-musical e as atividades práticas durante o ensino. Considerando a aplicação interdisciplinar no estudo de música, também são expostos argumentos de diversas áreas, como pedagogia, psicologia, sociologia e educação musical. De acordo com SEKEFF (2002, p.160), a interface musical, articulada pela comunicação, permite harmonizar ciência e arte, promovendo o diálogo sociocultural. 2 – Procedimentos metodológicos

Para obter descrições que focalizassem a problemática levantada acerca da aprendizagem musical na maturidade, foi utilizada a abordagem qualitativa de caráter etnográfico escolar. Segundo ANDRÉ (2007, p.28-29), enquanto a etnografia destaca o trabalho de campo, o contato com “práticas, hábitos, crenças, valores, linguagens, significados” de uma comunidade e a categorização na análise de dados que podem incluir situações, pessoas, locais, testemunhos, diálogos e outros mais, no processo educativo a pesquisa adapta-se ao tipo etnográfico. A amostra que representasse parte da população alvo envolveu quatro homens e quatro mulheres, entre 50 e 64 anos, matriculados no curso de extensão que ocorreu em 2009, lembrando que nenhum participante frequentou anteriormente

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escolas especializadas3 de música. As atividades propostas, organizadas a partir de uma aula por semana durante dois módulos semestrais, objetivavam a aquisição de percepções e habilidades básicas no campo da música, a partir do treino auditivo, exercício de solfejo, leitura rítmica e escrita musical. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que inclui as informações específicas sobre o estudo foi assinado pela professora do curso, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) juntamente com o projeto de pesquisa. Dentre as técnicas de coleta de dados utilizadas no decorrer do trabalho — questionário (como parte do estudo piloto), observação direta, análise de documentos —, as entrevistas semiestruturadas incluíram questões abertas predefinidas e perguntas improvisadas que foram adaptadas às informações dos entrevistados. Segundo SZYMANSKI, ALMEIDA e PRANDINI (2008, p.12), a entrevista representa um instrumento fundamental para a aquisição de dados qualitativos. As entrevistas foram realizadas individualmente durante os encontros estabelecidos pelos participantes, com os testemunhos registrados em gravador digital e transcritos entre julho e setembro de 2009. Como sugestão, cada entrevistado escolheu o próprio pseudônimo, preservando, assim, o anonimato quanto aos depoimentos. O material descritivo dos participantes se insere numa categoria ampla, sendo exposto aqui de forma resumida. Com o intuito de verificar a validade dos elementos coletados em diversas situações, justifica-se o uso da triangulação metodológica aliada ao referencial teórico e demais fontes literárias que abrangem considerações relacionadas ao processo de aprendizagem musical, necessárias para a respectiva análise. 3 – Da teoria à experiência extramusical

Quando os participantes falam sobre O que significa aprender música? a ideia inclina-se a permanecer focada numa perspectiva teórica, associada à compreensão do fenômeno musical e atrelada à intenção de estudar música. Por exemplo, para Sapoti, formada em psicopedagogia, “é impossível uma aula de música sem teoria”. Ela canta em coral e, apesar de não descartar as atividades práticas, diz que o conteúdo deve abranger “ritmo, harmonia, melodia, posição das notas, o nome das claves...” — aspectos que ela avalia como teóricos. Sob seu ponto de vista, “às vezes tem muita gente que tem a prática e não tem a teoria”. Saulo, professor adjunto de História e estudante de gaita de boca, relata em seu depoimento o que pensa sobre aprender música:

Para mim, aprender seria exatamente entender o que tá escrito, por exemplo, numa partitura [...] Então, para mim, aprender, fazer esse curso, é [...] compreender as oitavas, uma série das escalas, os intervalos... Enfim, compreender o que tá sendo feito. (Saulo).

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Lane toca flauta transversal e tira as músicas de ouvido. Seu interesse é saber sobre escalas, e não mais “fingir que está lendo”. Ela admite que em um curso de música será possível entender “o que é o racional da coisa”. De modo semelhante, Fripp, professor de física, comenta que sempre teve facilidade em conseguir ouvir e reproduzir uma música. Porém, ele tem vontade de aprender a ler partitura e tocar teclado para poder executar um repertório de MPB. No caso de Baessa, ela começou o aprendizado de piano quando jovem, e após 45 anos resolveu estudar teclado, aprendendo agora “coisas da teoria” que não viu no passado. Dora, integrante da Educação de Jovens e Adultos (EJA), diz que iniciou o curso sem qualquer conhecimento musical, pois não teve sequer oportunidade de ser alfabetizada quando jovem. Mesmo assim, ela pretende “estudar até aprender” a cantar e tocar algum instrumento. Para o jornalista Marcos, a aprendizagem musical se inicia com a musicalização, associada à condição de aprender a utilizar a “voz ou instrumentos”. Ele revela que “gostaria de aprender a tocar violão, de cantar, de poder escrever um pouco sobre música erudita”. Na opinião de Ton, aprendizado musical “é para um leigo” que precisa “conhecer o básico” por meio da teoria. Ele toca de ouvido o violão desde os 15 anos, e acredita que “só faz música quem conhece de música”. Pela concepção dos participantes, o significado de aprender música é algo que, inicialmente, se distancia da prática, levando a crer que o conhecimento musical exige um conteúdo com enfoque mais teórico. De acordo com GREEN (2005, p.3-4), a capacidade de o ouvinte perceber as qualidades do som, assim como fazer conexões que se referem a um estilo musical, envolve os “significados inerentes musicais”. Em resumo, isso quer dizer que os signos — um acorde, uma nota, uma frase — e os significados percebidos na organização do som estão contidos no material da própria música. Desse modo, a cada etapa o aprendiz toma consciência do seu universo sonoro, ficando motivado a perceber novas estruturas ao ouvir músicas. A partir dos depoimentos, podemos também salientar que a vontade primordial da maioria desses adultos que tiveram ou passam por uma experiência musical extraescolar é aprender a grafia e a leitura musical. Em nossa cultura, essa forma de entender o sistema de escrita organizado por símbolos ou códigos sonoros que representam a música sugere que a leitura de uma partitura equivale ao domínio teórico-musical. Assim, enquanto na prática de tocar um instrumento de ouvido os indivíduos aprendem, improvisam e criam suas músicas observando outras performances, persiste ainda a crença, exposta por SOUZA (1998, p.206): “se eu não sei ler música, logo não sei música.”

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Segundo ainda SOUZA (1998, p.211), mesmo que haja diferentes tipos de grafia musical, a leitura de notas torna-se possível à medida que o ouvinte desenvolve a capacidade de extrair os sons de sinais escritos. A esse respeito, SWANWICK (1996, p.27) destaca que a notação ocidental ocuparia apenas uma posição de apoio na aprendizagem musical, visto que a música pode ser escrita por outros meios ou até mesmo nem ser grafada. Considerando a faixa etária dos participantes, é provável que eles tenham uma perspectiva mais tradicional quanto à aquisição de saberes, buscando assim uma escola que ofereça o aprendizado de música. Dessa maneira, o curso escolhido por eles corresponderia aos propósitos esperados na aprendizagem musical, onde é possível aprender de forma metódica a nomear, ler e escrever notas, intervalos, ritmos, acordes, figuras musicais etc. No entanto, é importante ressaltar que toda música tem origem em um contexto social, ligando o espaço entre diferentes indivíduos e culturas diversas (SWANWICK, 2003, p.38). Vale observar que nos relatos dos entrevistados há uma fração da experiência de vida de cada pessoa em relação à música: uns gostam de cantar, outros tocam de ouvido, outros preferem ouvir música... Apesar de os alunos não terem passado pela aprendizagem musical especializada em tempos anteriores, a maioria deles teve contato com a música a partir da infância ou da adolescência, através de práticas culturais vivenciadas no dia a dia. Desse modo, o contexto no qual a música é originalmente produzida e sua recepção em diferentes culturas contribuem para as delineações da música. Trata-se, portanto, de significados delineados que devem ser associados aos aspectos extramusicais referentes à identidade, conceitos, expressões, valores e diversos fatores simbólicos atribuídos à música. Nesse aspecto, a música passa a representar constituintes não musicais relacionadas com o meio social e que são esboçadas metaforicamente (GREEN, 2005, p.5). Segundo PENNA (1990, p.36), ainda que haja necessidade de se focalizar os elementos fundamentais da música, como altura, dinâmica, andamento, timbre etc., é essencial que o ouvinte antes mesmo perceba o “fato musical em si”, a partir da observação e da experimentação. Desse modo, quando exploramos “ambientes e práticas” que estimulam “participação, comportamento, criatividade, ação”, emerge a possibilidade de se conceber a música como agente mediador, auxiliando o indivíduo na construção de um “diálogo com a realidade” (SEKEFF, 2002, p.120). Nessa perspectiva, podemos afirmar que o processo de ir à escola aprender música é algo capaz de gerar novas experiências e modificações; no entanto, dar sentido à aprendizagem musical dependerá dos hábitos e particularidades dos alunos.

4 – Música em ação

É óbvio que cada participante decidiu saber um pouco de música, iniciando as aulas na esperança de adquirir alguma habilidade nesta área, como ler partitura e/ou tocar algum instrumento musical. Entretanto, a tarefa de aprender música também se

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mostrou ligada à vivência musical do aprendiz fora da escola, em seu ambiente familiar e cotidiano. De certa maneira, esse detalhe gerou contradição. Se, por um lado, os alunos afirmam que sentem falta da teoria na sua formação musical, em outro momento demonstram a preferência pela atividade prática. Marcos, por exemplo, reconhece a importância dos exercícios teóricos para decifrar uma partitura, mas enfatiza a experimentação. Para ele, a prática musical tem a ver com o fazer música: “Fazer música é cantar, tocar um instrumento, compor, acompanhar, participar de um coral, participar de uma orquestra... [...] Isso depende de algum conhecimento, não da teorização”. Em relação à apreciação, Lane comenta que deveria haver mais prática de audição durante as aulas, porque as pessoas, geralmente, “não têm o hábito de ouvir”. Porém, ela sugeriria um repertório diversificado, sem ficar “só no Clássico, no Barroco...” Marcos, que se considera um “ouvinte assíduo” também espera aprender melhor a apreciar a música e aprimorar sua percepção auditiva. Segundo GAINZA (1988, p.117), a “educação do ouvido” contribui para o desenvolvimento da mente musical, de acordo com o que o ouvido pode absorver da música. Isso indica que quanto maior a capacidade perceptiva e a familiaridade que o indivíduo tiver com o estilo de música, provavelmente mais positiva será sua resposta à experiência musical (GREEN, 2005, p.9). Para Baessa, que gosta muito de dançar, o vínculo corpo/música é “bom e vital para quem já ultrapassou a faixa dos 60”. Ela observa que “o trabalho corporal unido à música seria ideal”. De acordo com GAINZA (1988, p.102), ao se compreender “movimento como sinônimo de vida”, e não apenas de caráter musical e sonoro, abrem-se perspectivas para se promover variadas respostas comportamentais. Conforme PENNA (1990, p.37), a relação entre sujeito e ação por meio da música assume o caráter de aproximar o indivíduo da música e levá-lo a “expressar-se criativamente através de elementos sonoros”, independentemente do domínio teórico e da faixa etária. Sob esta ótica, quando associamos o fazer música a uma prática de aprendizagem que revela as mais variadas expressões, vem à tona o que pode ser realizado em sala de aula, e principalmente, como os alunos na maturidade participam e se comunicam entre si, seja a partir da voz, do gesto, da dança e performance. Outro recurso considerado importante para o aprendizado musical e sugerido pelos participantes refere-se às atividades lúdicas, que envolvem interação e criatividade. Na opinião de Marcos, “uma prática criativa, lúdica, com mais intensidade, pode ajudar a render mais” e “combater a inibição”, pelo fato de ser “mais estimulante do que a parte teórica”.

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Sapoti admite que o entretenimento musical adapta-se a qualquer faixa etária. Para ela, quando o conteúdo é adaptado de uma forma lúdica, “a gente consegue entender muito melhor e consegue também aprender [...]” Do ponto de vista literário, ILARI (2003, p.15) afirma que os jogos musicais “podem constituir uma fonte rica de aprendizado”, incentivando o divertimento e a participação ativa do educando. Todavia, quando um professor associa o jogo aos processos criativos e pedagógicos em uma aula de música para adultos, pode haver alguém que fale: “Ah! isso aí é coisa de criança!” Talvez os adultos sintam receio de se exporem a uma atividade lúdica por causa de uma suposta infantilização, apesar dos múltiplos exemplos que nos permitem analisar que não há limite de idade para tirar proveito de jogos e brincadeiras. Esse fato revela a necessidade de se adequar a estratégia pedagógica à situação do aluno na fase da maturidade. Portanto, torna-se conveniente conciliar o treinamento auditivo a partir da apreciação musical, a expressividade do indivíduo e os elementos básicos da música, numa integração dinâmica de recepção e de atitude musical. Afinal,

o indivíduo receptivo à música começa a sentir e a compreender, motivado por uma mobilização interior que favorece uma musicalidade ativa, que lhe permite informar suas experiências, extravasar suas emoções e refletir sobre seus interesses e gostos musicais (CIRINO, 2011, p.299).

Neste caso, a musicalização, a partir de uma orientação adequada no processo educacional, pode abrir espaço para novas experiências que proporcionam o conhecimento resultante da articulação entre prática e teoria.

5 – Aprender fazendo música

Provavelmente o hábito de ouvir ou apreciar música no cenário cotidiano não seja o suficiente na perspectiva do adulto que pretende aprender música. Ton, por exemplo, comenta: “Não quero só cantar, não quero só tocar, eu quero é aprender fazer música”. Contudo, é preciso associar a percepção dos parâmetros musicais e a descoberta de conceitos com as experiências de aprendizagem informal ou cotidiana de música. Para Gainza (1988, p.34), esse elo corresponde à articulação de sentidos, em que a música é para as pessoas não somente o objeto sonoro, mas também aquilo que simboliza ou representa algo. Isso indica que a partir da ação musicalizadora vivenciada pelo aluno, descortina-se uma diversidade de sons capazes de ativar suas habilidades cognitivas. Tal processo permite ao aluno reagir ao captar os sons, escutá-los de modo consciente para entender o que está sendo tocado, e ampliar habilidades musicais como percepção auditiva, distinção dos estilos de música, uso da leitura e da grafia dos sons e do silêncio. Segundo SLOBODA (2008, p.257;284), a “habilidade musical é adquirida através da interação com um meio musical”, estando sujeita à herança genética e ao contexto sociocultural do indivíduo; e estende-se pela fase adulta por meio da prática musical.

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Nesse aspecto, vale frisar a importância da cognição quando se trata da organização dos materiais sonoros, visto que possibilita o raciocínio do indivíduo ao analisar a experiência musical. Considerando, pois, o vínculo entre instrução teórica e experiência no âmbito da aprendizagem musical, SWANWICK explica:

Aprendizagem é o resíduo da experiência. [...] A compreensão musical reside numa dimensão diferente das atividades musicais por meio das quais esse entendimento pode ser revelado e desenvolvido — compondo ou improvisando, tocando a música de outras pessoas ou respondendo quando ouvimos música. (SWANWICK, 2003, p.94-95).

Portanto, a concepção sobre aprendizagem musical faz parte da realidade de cada aluno, da subjetividade e de suas perspectivas em relação ao aprendizado musical, levando em conta que os participantes trazem saberes de experiência, provenientes de vivências musicais diversificadas e de reflexões que podem ser desenvolvidas em diferentes processos de educação musical. De todo modo, quanto mais oportunidade de participação se der ao aprendiz adulto, e quanto mais motivador for o ambiente de aula, mais rica poderá ser a construção do conhecimento musical, apto para compartilhar situações que implicam criação, apreciação e expressão; ou seja, fazer música.

6 – Desafios para o aprendizado musical

Naturalmente, durante o envelhecimento humano o organismo passa por um processo de mudança que se reflete nas estruturas físicas, nas manifestações cognitivas, assim como na “percepção subjetiva dessas transformações” (PARENTE, 2006, p.23). Sendo assim, os indícios de alguma alteração nos processos intelectuais no decorrer da maturidade podem limitar a capacidade de o indivíduo adquirir novas habilidades, ocasionando lentidão e dificuldade para a resolução de problemas. Lane, por exemplo, que nasceu em 1958, já pensou em desistir do estudo de música, ao perceber que sua memória não é mais como a de um adolescente. Baessa, com 64 anos, também comenta: “Minha memória não é mais aquela!” Ton, apesar de repetir o curso, explica: “[...] a idade também dificulta, pois o cérebro já não capta tanto quanto no tempo em que eu era mais novo. [...] Já tive até para desanimar, mas eu resolvi ir em frente”. Com o avanço normal da idade as perdas cognitivas implicam o declínio das capacidades intelectuais do sujeito, atingindo o processamento da informação e da memória. Tal mudança diz respeito ao envelhecimento primário, categorizado como normal, porém não significa doença ou deficiência funcional do indivíduo (NERI e CACHIONE, 2004, p.119; grifo do autor). Nesse caso, há um declínio da criatividade, afirma o Dr. DHARMA KHALSA (2005, p.132), pois esta se encontra estreitamente ligada à memória.

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Segundo SHAIE, citado por NERI e CACHIONE (2004, p.119), as perdas da “inteligência fluida”, responsável pelo “processamento da informação e da memória” podem ser compensadas pela “inteligência cristalizada”, oriunda de capacidades associadas a “fatores educacionais e socioculturais” em experiência de vida. Por isso, através da memória o indivíduo pode manter o senso de uma contínua trajetória de vida capaz de retratar até mesmo sua experiência musical (RUUD, 1998, p.44). Nesse sentido, as mudanças típicas do envelhecimento

[...] são realidades heterogêneas, isto é, variam conforme os tempos históricos, as culturas e subculturas, as classes sociais, as histórias de vida pessoais, as condições educacionais, os estilos de vida, os gêneros, as profissões e as etnias dentre outros elementos que conformam as trajetórias de vida dos indivíduos e grupos. (NERI; CACHIONE, 2004, p.120-121).

Desse modo, é necessário adequar as propostas metodológicas ao interesse e à capacidade do aprendiz adulto. De acordo com LUZ (2008, p.25), o trabalho que envolve a aprendizagem de música na maturidade deve ser considerado instrumento relevante no desenvolvimento das faculdades humanas, porque além de abranger aspectos afetivos e sociais, contribui para o “desenvolvimento da memória e do raciocínio lógico matemático”. Portanto, o envolvimento do aprendiz em determinada atividade de música se molda de acordo com as possibilidades e condições existentes, seja em relação à prática musical cotidiana que poderá ser desenvolvida em sala de aula ou à cognição, que abrange reflexão e análise.

7 – Finalizando

A princípio, o entendimento dos alunos maduros sobre a aprendizagem de música vincula-se à teoria, considerada por eles como elemento essencial para a aquisição de habilidades musicais, seja no parâmetro auditivo, instrumental e/ou notacional. Observa-se, porém, que a maioria dos alunos gosta mais da prática em sala de aula. Estaria esta prática isolada da teoria musical? Se, por um lado, a teoria geralmente compreende solfejo, leitura rítmica, notação musical, treinamento auditivo etc., por outro lado, exercícios como ação combinada de ritmos, audição de arpejos, manipulação de instrumentos musicais, entonação de escalas também são reconhecidos como prática pedagógico-musical. Cumpre lembrar que a ideia de prática no ensino de música pode ser vista por muitas pessoas como atividade separada do estudo teórico, ou equivalente apenas à experiência de cantar ou tocar um instrumento. No entanto, é importante refletir sobre a relação entre o discurso teórico e a prática, pois ambos fazem parte do processo de aprendizagem musical. Embora os adultos maduros tenham interesse em ler partitura, tocar determinado instrumento e/ou solfejar, a vivência musical cotidiana articulada aos processos de aprendizagem formal deve ser valorizada, sendo que o sentido da música varia de acordo com as diversidades e experiências individuais. Ou seja, enquanto a

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aprendizagem musical possibilita ao indivíduo construir novos conhecimentos, a música permanece integrada ao contexto sociocultural e à natureza das pessoas. Portanto, se a música não for familiar, provavelmente ela não será apreciada pelo ouvinte, que pode considerá-la “casual ou incoerente”, reitera GREEN (2005, p.11). Conforme os relatos dos participantes, eles gostam de conviver com a música e continuam em busca de novidade, bem como tiveram a chance de perceber que as atividades em sala ganhavam caráter inédito à medida que um elemento musical era descoberto. Como exemplo, Saulo descobriu que a composição musical possui estrutura; Marcos considerou interessante a similaridade entre música, aritmética e matemática; Dora aprendeu a distinguir as claves de Sol e Fá; Lane decifrou a divisão de um compasso simples... Nesse sentido, descobrir novas ideias pressupõe uma participação ativa do aprendiz, porque abarca o potencial daquele que sabe ou que deseja saber algo num processo que vai além da simples reprodução de conteúdos. Ademais, colocar a música em ação diz respeito à prática social, emoção e pensamento (DENORA, 2003, p.165). Enfim, se a competência musical permanece adormecida, ela pode emergir na ação daquele que tem a motivação e a iniciativa de fazer música. Isso nos faz pensar que o aprendizado musical implica teoria e prática. Desse modo, o professor de música deve estar preparado para lidar com a diversidade cultural e métodos flexíveis que incentivem (re)criar ideias. Ainda que surjam mudanças relacionadas aos aspectos fisiológicos e psíquicos dos adultos maduros, parece não existir período restrito para se musicalizar as pessoas. Assim, torna-se favorável combinar propostas motivadoras de inovação, bem-estar, percepção, interação, que buscam aproximar a pessoa da música. Como explana SWANWICK (2003, p.40), a música “possui um papel na reprodução cultural e afirmação social”, além do “potencial para promover o desenvolvimento individual, a renovação cultural, a evolução social, a mudança”. Dentro desse panorama, compete aos educadores musicais orientar metodologias e adequar o conteúdo programático das aulas para alunos na maturidade, realçando uma aprendizagem qualitativa capaz de gerar novas oportunidades educativas.

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prática reflexiva. 2. ed. Brasília: Editora Plano, 2008. Notas

1 Para a pesquisa, o recorte etário refere-se à população de adultos maduros caracterizada pela fase intermediária que ultrapassa a do adulto jovem e antecede a Terceira Idade. Considerando a heterogeneidade nos padrões de classificação de idades, a população de idosos geralmente é definida a partir dos 60 anos.

2 Parte do livro Reavaliações e buscas em musicalização, da autora MAURA PENNA, foi publicada de forma original no livro Música(s) e seu ensino (2008. p.27-47).

3 Escolas especializadas – escolas livres de música, conservatórios, cursos técnicos e superiores, nas modalidades licenciatura e bacharelado (FONTERRADA, 2007, p.28).

Andréa Cristina Cirino é Mestre em Música pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). Concluiu os cursos de Especialização em Educação Musical e Ensino Instrumental na Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais (2005). Possui Licenciatura em Música (1994) e Bacharelado em Clarinete (1990) pela UFMG. Lecionou as disciplinas de Prática Instrumental, Educação Musical e Organologia no Centro de Ensino Técnico da Polícia Militar/MG (1999-2008). Administra aulas de flauta-doce e atua profissionalmente como clarinetista em eventos. Com experiência na área de Artes, dedica-se aos seguintes temas: musicalização, performance e identidade musical.

COSTA, M. C.; BARBOSA, J. F. Avaliação da performance... trompete... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.134-148.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3108

Avaliação da performance instrumental pelos professores de trompete: questões e desafios

Maria Clara Costa (Esc. Superior de Educação de Fafe; Esc. Superior de Tecnologias de Saúde do Instituto Politécnico do Porto, Portugal) [email protected] Jaime Filipe Barbosa (Conservatório de Música de Coimbra; Academia de Música de Oliveira de Azeméis, Portugal) [email protected] Resumo: Um grupo de professores de Trompete foi convidado a avaliar a performance instrumental de dois alunos. Inicialmente, a avaliação da performance instrumental dos executantes foi realizada livremente (sem referenciais teóricos ou instrumentos específicos) e posteriormente baseada na Escala de Registo da Execução Musical, a qual foi construída com base na teoria de Espiral de Desenvolvimento Musical (SWANWICK, 1988). Pretendeu-se efetuar um contraste entre as avaliações efetuadas pelos professores de Trompete, baseadas na Escala de Registo da Execução Musical (COSTA e BARBOSA, 2010) e as avaliações livremente produzidas pelos mesmos (sem referenciais). Quando se coloca em confronto as duas formas de avaliação é possível constatar inconsistências nas avaliações dos professores a respeito da performance instrumental dos alunos. Adicionalmente, é possível concluir que os professores de Trompete recorrem maioritariamente apenas a duas das dimensões da crítica musical: Materiais e Expressão, considerados os estágios situados no nível mais básico da Teoria Espiral. Palavras-Chave: Avaliação; performance musical; Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical de Swanwick; dimensões da crítica musical descritas por SWANWICK e TILLMAN

The assessment of trumpet´s instrumental performance by teachers: issues and challenges Abstract: A group of Trumpet´s teachers was invited to assess the instrumental performance of two students. Initially, the evaluation of the performance of the two students was held freely (without theoretical frameworks or specific instruments) and then based on the Scale of Evaluation of Musical Execution, which was based on Swanwick’s theory. The main objective of this research is to contrast the assessments done by Trumpet´s teachers, based on Scale of Evaluation of the Musical Execution (COSTA e BARBOSA, 2010), with the free assessments (without references) carried out by the same group of teachers. By comparing the two forms of evaluation, we verify the inconsistency of the assessments and judgments in respect to the performance of the students. Additionally, our results show that Trumpet´s teachers´ evaluation of the students´ instrumental performance is mostly focused on two dimensions: materials and expression, which are stages at the most basic levels of the Spiral Theory. Keywords: Evaluation; musical performance; Swanwick´s Spiral Theory of the Musical Development; dimensions of musical evaluation used by SWANWICK e TILLMAN

1.Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical: contributos para a avaliação da performance musical Ao nível do Ensino Especializado da Música, a avaliação, assumindo um papel importantíssimo no processo educativo, afigura-se como uma tarefa de grande delicadeza devido à natureza específica da matéria em questão.

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Entre os professores ligados à música é aceite que avaliar determinada performance musical é uma tarefa difícil, uma vez que se trata de uma manifestação artística, suscetível de diferentes interpretações decorrentes de vivências musicais e pessoais distintas. Efetivamente, ainda persiste a ideia de que a avaliação em artes não pode ser objetiva por se tratar de uma área que envolve a criatividade. Uma das maiores dificuldades apontadas pela literatura na avaliação da música é a elaboração de critérios válidos e confiáveis para avaliar. Estabelecer uma lista do que deve (ou não) ser avaliado numa performance é uma tarefa quase impossível. Todavia, o professor deve “definir claramente o que vai ser mensurado; definir claramente as regras e os critérios para caraterizar o que vai ser avaliado, ser o mais consistente possível; usar uma aparelhagem que, na medida do possível, não prejudique as atividades normais da classe” (ASMUS, 1999, p.22). A ausência de critérios objetivos pode tornar a avaliação do fazer musical numa tarefa demasiado subjetiva ou até arbitrária com evidentes prejuízos para o processo de ensino-aprendizagem. Esta subjetividade, mais presente no reconhecimento das qualidades musicais do que na definição das mesmas, faz com que os julgamentos daqueles que avaliam a performance musical dos alunos sejam muitas vezes inconsistentes. Mas, como acrescenta SWANWICK, não se pode continuar a justificar disparidades de julgamento atribuindo-lhes um caráter de subjetividade impenetrável. “Esta inegável componente de subjetividade inerente à experiência artística não nos isenta da necessidade de explicitarmos as bases desses julgamentos” (1994, p.102-111).

Autores como ELLIOTT (1995), JOHNSON (1997), HARGREAVES (1996), SLOBODA (1994), SWANWICK (1994), SWANWICK e TILLMAN (1986), entre outros, têm desenvolvido trabalhos científicos de grande impacto na educação musical. Destacamos nesta investigação a Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical de SWANWICK e TILLMAN (1988) dado constituir-se como um referencial valioso para o processo de ensino-aprendizagem da música e uma mais valia para avaliação da performance instrumental. Na sua prática profissional, ao analisar os currículos dos cursos oficiais de música ingleses, SWANWICK deparou-se com algumas questões relacionadas com a estrutura dos cursos, com os programas e com os critérios de avaliação, que lhe pareciam pouco coerentes ou até sem fundamento. Na tentativa de encontrar soluções para as referidas questões, desenvolveu uma teoria capaz de explicar o desenvolvimento da compreensão musical. SWANWICK começou por propor, em 1979, o processo de aprendizagem baseado num modelo que em português foi traduzido por modelo “T.E.C.L.A.”. Trata-se de uma abordagem transversal do estudo da música que consiste em trabalhar os conteúdos da aprendizagem musical de forma integral e não fragmentada, isto é, a partir das diferentes disciplinas. Dessa forma, para garantir uma boa educação musical o professor devia, no entender de Swanwick, estar atento a todas as dimensões e não dar prioridade,

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nem desprezar qualquer dos elementos resumidos na sigla “T.E.C.L.A”: T– Técnica (manipulação do instrumento, notação simbólica, audição); E – Execução (tocar, cantar); C – Composição (criação, improvisação); L – Literatura (história da música); A – Apreciação (reconhecimento de estilos/forma/tonalidade/graus). Tendo como premissa que a aprendizagem musical deve obedecer a etapas sucessivas, correspondentes ao nível de amadurecimento psicológico do indivíduo, SWANWICK e TILLMAN (1986) fizeram a monitorização do progresso desse conhecimento, estudando um grupo de alunos pertencentes à faixa etária entre os 3 e os 14/15 anos, oriundos de diversos grupos étnicos e culturais. Durante quatro anos, SWANWICK e TILLMAN realizaram gravações de composições feitas pelas crianças, num total de 745 composições de uma amostra de 48 estudantes. Após extensa análise qualitativa efetuada às composições dos alunos, começaram a emergir padrões analíticos, revelando uma sequência de mudanças qualitativas correspondentes a uma progressiva consciência dos mesmos em relação às dimensões do conhecimento e experiência musical. O parâmetro de análise utilizado foi a composição que, em relação à execução e à apreciação musical, permite ao aluno, segundo SWANWICK, maior liberdade sobre julgamentos e decisões musicais, tais como os relacionados com andamento, maneira de produzir os sons (articulação, dinâmica) e formar frases musicais. Na Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical podemos reconhecer a influência direta do trabalho de PIAGET, sobretudo da sua Teoria de Desenvolvimento Cognitivo. O próprio SWANWICK refere no seu livro “Teaching Music Musically” (1999) que a ideia de estágios cumulativos é essencialmente piagetiana. SWANWICK entende o desenvolvimento como um processo contínuo e cumulativo que ocorre em estágios numa perspetiva de evolução de um menor para um maior equilíbrio. A Teoria Espiral apresentado por SWANWICK e TILLMAN em 1986, posteriormente expandida por SWANWICK (1988, 1994), representa a forma de compreender o desenvolvimento musical com base na noção de um desenvolvimento sequencial comum à maioria dos indivíduos. Para representar a sua teoria, SWANWICK e TILLMAN elaboraram um esquema em forma de espiral, através da qual pretendem mostrar os níveis de desenvolvimento musical, relacionados com a idade das crianças “compositoras” estudadas . Esta espiral desenvolve-se em quatro patamares (ou camadas) correspondentes às dimensões da crítica musical, cada uma delas dividida em dois modos (ou fases).

Para os autores, o processo de desenvolvimento musical ocorre de forma sequenciada e cumulativa através de quatro estágios ou modos (camadas ou patamares) representativos das dimensões do conhecimento musical denominados de Materiais, Expressão, Forma e Valor. A análise perpassa essas dimensões, indo da sensibilidade e do controle do material sonoro para o caráter

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expressivo e para as relações estruturais até ao reconhecimento do valor da experiência. O estágio Materiais encontra-se presente nas crianças até aos quatro anos, sensivelmente, e é caraterizado pela consciência e pelo controle sobre os materiais sonoros, demonstrado pela distinção de timbres, níveis de intensidades, alturas, durações e pelo controlo técnico sobre instrumentos e vozes. O estágio Expressão, que ocorre na faixa etária dos cinco aos nove anos, é caraterizado pela consciência e pelo controle do caráter expressivo, evidenciado pelo clima ou atmosfera, pelo gesto musical e pelo sentido de movimento sugerido pelo contorno da frase musical. No estágio Forma, típico de sujeitos que se situam entre os dez e os catorze anos, o indivíduo atinge a consciência e o controle da forma e estilo musicais, manifestados nas relações entre os gestos musicais, quando os mesmos são repetidos, transformados, contrastados ou relacionados com determinada época ou estilo. Por fim, o estágio Valor ocorre a partir dos catorze/quinze anos e é caraterizado pela apreciação da música, de forma pessoal ou cultural, demonstrada pela autonomia, pela avaliação crítica independente e por um compromisso sistemático com a música, fortemente sustentado por idiomas musicais específicos. Cada estágio é dividido em duas fases ou modos que correspondem à natureza dialética da experiência musical polarizada nos dois lados do Espiral: o esquerdo, que representa a dimensão pessoal, idiossincrática, experimentada pelo indivíduo; e o direito, que diz respeito às convenções do fazer musical socialmente aceite. Cada modo representa uma mudança tanto quantitativa como qualitativa relativamente ao anterior. Os autores do modelo apresentam oito modos sequenciados, hierárquica e cumulativamente: o Sensorial e o Manipulativo referentes ao estágio Materiais; o Pessoal e o Vernacular contemplados no estágio Expressão; o Especulativo e Idiomático integrados no estágio Forma; o Simbólico e o Sistemático referentes ao estágio Valor. Mais concretamente, as transformações operadas no indivíduo passam de uma fase inicial de experimentação sonora (sensorial) para um controle manipulativo. Com a aquisição das habilidades técnicas, a expressão musical torna-se possível, ao princípio de forma espontânea (pessoal) e posteriormente de forma mais convencional, com os hábitos globalmente adotados de frase e sequência (vernacular). Estas convenções são posteriormente assimiladas como forma musical, inicialmente como especulação (especulativo) e mais tarde em estilos e idiomas específicos (idiomático). Além desses, existe a possibilidade do valor simbólico para o indivíduo e o compromisso musical sistemático.

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Segundo SWANWICK (1988) a opção pelo uso da Teoria Espiral como metáfora deve-se ao facto de esta proporcionar uma melhor visualização do movimento/fluxo operado: cíclico, cumulativo e oscilatório. O processo cumulativo pressupõe que o indivíduo que se encontra num determinado estágio, necessariamente, deve ter os estágios anteriores perfeitamente desenvolvidos. A caraterística cíclica diz respeito à necessidade da sequência da Espiral ser ativada novamente a cada encontro com a música; esta caraterística é válida tanto para um aluno a iniciar como para um músico experiente, que percorre a Espiral muito rapidamente. A terceira característica, o movimento pendular/oscilatório do lado esquerdo para o lado direito da Espiral, aponta para a polaridade existente entre os dois lados, ou seja, para a motivação pessoal e para as convenções culturais musicais, respetivamente. No entender de SWANWICK e RUNFOLA (2002), a Teoria Espiral oferece várias implicações para o ensino da música. Destacamos aqui três dessas implicações. Em primeiro lugar, a teoria pode constituir-se como uma estratégia para o desenvolvimento do currículo em termos gerais. Desde o pré-escolar até ao ensino secundário, os currículos e as atividades escolares deveriam centrar-se nos estágios e modos de desenvolvimento musical correspondentes à idade dos alunos. Em segundo lugar, desta teoria é possível fazer derivações quanto ao papel do professor na promoção do desenvolvimento musical do aluno. Quando o professor propõe uma nova atividade ou introduz processos ou ideias musicais diferentes, é importante que tenha em mente que, a cada nova experiência musical, a sequência da Espiral deve ser reativada. O professor, ao avaliar em que ponto da Espiral o aluno se encontra, poderá conduzi-lo sempre no sentido de procurar, no próximo estádio ou modo, a sequência para o seu desenvolvimento. Em terceiro lugar, outra implicação pedagógica do Modelo Espiral de SWANWICK diz respeito à utilização dos critérios derivados do modelo para a avaliação do fazer musical, com versões adaptadas para cada uma das modalidades: composição, execução (performance) e apreciação. SWANWICK (1994) apresenta os critérios de avaliação da performance musical por categorias ordenadas que descrevem a essência da experiência musical, contemplando a articulação dos elementos do discurso musical mencionados (FRANÇA, 2000). Diversos estudos (SWANWICK, 1994; STAVRIDES, 1995; FRANÇA, 1998; ANDRADE, 2001; TOURINHO, 2001) encontraram evidências que suportam a validade dos critérios de avaliação de SWANWICK. Segue-se a descrição sumária dos Critérios para Avaliação da Performance Musical (SWANWICK, 1994) segundo a Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical de SWANWICK e TILLMAN (1986): Sensorial – performance é errática e inconsistente. O fluxo é instável e as variações do colorido sonoro e da intensidade não parecem ter significação expressiva nem estrutural. Manipulativo – é demonstrado algum grau de controlo através de um andamento estável e pela consistência na repetição de

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padrões (motivos). O domínio do instrumento é a prioridade principal e não há ainda evidência de contorno expressivo ou organização estrutural. Pessoal – a expressividade é evidenciada pela escolha consciente do andamento e níveis de intensidade, mas a impressão geral é de uma performance impulsiva e não planeada, faltando organização estrutural. Vernacular – a performance é fluente e convencionalmente expressiva. Padrões melódicos e rítmicos são repetidos de maneira semelhante e a interpretação é previsível. Especulativo – a performance é expressiva e segura e contém alguns toques de imaginação. A dinâmica e o fraseado são deliberadamente controlados ou modificados com o objetivo de salientar as relações estruturais da obra. Idiomático – Percebe-se uma nítida noção de estilo e uma caracterização expressiva baseada em tradições musicais claramente identificáveis. Controle técnico, expressivo e estrutural é demonstrado de forma consistente. Simbólico – a performance demonstra segurança técnica e é estilisticamente convincente. Há refinamento de detalhes expressivos e estruturais e um sentimento de compromisso pessoal do intérprete com a música. Sistemático – o domínio técnico está totalmente ao serviço da comunicação musical. Forma e expressão fundem-se gerando um resultado – um verdadeiro depoimento musical – coerente e personalizado. Novos insights musicais são explorados de forma sistemática e imaginativa. Segundo SWANWICK (1994) a Teoria Espiral pretende iluminar – e não substituir – a componente subjetiva inerente à avaliação da experiência musical. Em última instância, pode tornar mais explícitas as bases da avaliação sem entrar em conflito com julgamentos intuitivos. 2. Metodologia Utilizamos neste estudo o método de análise de produtos (SWANWICK, 1994), recorrendo à gravação da performance de alunos de Trompete1, em duas obras musicais distintas e à sua posterior avaliação por professores do ensino especializado da música (Trompete), a partir de duas metodologias de avaliação distintas: avaliação livre (sem instrumentos e critérios de avaliação específicos) e uma avaliação formal, utilizando uma Escala de avaliação construída para o efeito, a qual se baseou em critérios da crítica musical de SWANWICK (1994). 2.1. Questões do estudo Com este estudo pretendemos: i) Perceber em que medida a utilização dos Critérios para Avaliação da Performance Musical de SWANWICK podem contribuir para uniformizar a forma de avaliar dos professores de Trompete relativamente à performance instrumental dos alunos; ii) Averiguar em que medida as avaliações dos professores de Trompete exploram e contemplam as diferentes dimensões da crítica musical consideradas por SWANWICK e TILLMAN (1986)2; iii) Contrastar as avaliações efetuadas pelos professores de Trompete baseadas nas dimensões da crítica musical descritas por SWANWICK e TILLMAN (1986) na sua Teoria Espiral com as avaliações livres (sem referenciais) efetuadas pelos mesmos a respeito da performance musical dos alunos. 2.2. Amostra

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A amostra deste estudo é constituída por nove professores de sete escolas do Ensino Especializado da Música das zonas norte e centro do país. Apenas foram selecionados professores que lecionam a disciplina de Trompete por corresponder ao instrumento executado na performance dos alunos. Todos os sujeitos são do sexo masculino e têm idades compreendidas entre os vinte e três e os trinta e cinco anos. As habilitações académicas dos sujeitos situam-se entre o bacharelato e a licenciatura. Foram recolhidas 36 avaliações produzidas pelos 9 professores de trompete (cada professor avaliou os dois alunos que executaram duas peças musicais diferentes, a partir de duas metodologias de avaliação distintas usadas) a respeito da performance instrumental dos alunos. 2.3.Instrumentos Neste estudo foram utilizados dois instrumentos. -Relatório de Avaliação Qualitativa da Execução Musical (COSTA e BARBOSA, 2010). Neste relatório, os professores de Trompete podem livremente (na ausência de linhas ou referenciais orientadores) efetuar as suas apreciações acerca dos desempenhos dos alunos. -Escala de Registo da Execução Musical (COSTA e BARBOSA, 2010). Esta escala foi concebida a partir dos Critérios para Avaliação da Performance Musical de SWANWICK (1994).A escala utilizada é constituída por 26 parâmetros de avaliação. Os parâmetros 1 – Postura (Corporal/Embocadura), 2 – Controle da respiração e 3 – Emissão sonora, situam-se no modo Sensorial do estágio Materiais. Através destes parâmetros é possível avaliar a capacidade para explorar o contato com a Trompete. Os parâmetros 4 - Ataque, 5 - Articulação, 6 – Extensão/Tecitura, 7 - Afinação e 8 – Sonoridade, situam-se no modo Manipulativo do estágio Materiais. Estes parâmetros permitem avaliar a capacidade para manusear e controlar tecnicamente a Trompete. Os parâmetros 9 – Respeito pelo texto musical, 10 – Escolha do andamento, 11 – Estabilidade rítmica e 12 – Uso de diferentes intensidades, situam-se no modo Pessoal do estágio Expressão e permitem avaliar a capacidade para tocar com sentido expressivo e bom gosto musical. Os parâmetros 13 – Organização rítmica das frases, 14 – Organização melódica das frases, 15 – Fluência do discurso musical e 16 – Expressividade do discurso musical, situam-se no modo Vernacular do estágio Expressão e possibilitam avaliar o sentido expressivo do aluno de acordo com as convenções adotadas pela linguagem musical. Os parâmetros 17 – Segurança do discurso musical, 18 – Controle e variedade de dinâmicas e 19 – Compreensão da estrutura da obra, situam-se no modo Especulativo do estádio Forma e através destes é possível avaliar a capacidade para controlar os detalhes expressivos de forma a salientar a estrutura da obra. Os parâmetros 20 – Noção de estilo musical e 21 – Identificação com as opções estéticas da época, situam-se no modo Idiomático do estágio Forma e avaliam a capacidade para tocar de acordo com as opções técnicas, estéticas e estruturais que definem o estilo e a época da obra. Os parâmetros 22 – Refinamento dos detalhes expressivos e estruturais e 23 – Compromisso entre interpretação e estilo/forma musical, situam-se no modo Simbólico do estádio Valor. Através destes parâmetros procuramos avaliar o aperfeiçoamento do que foi exigido nos parâmetros anteriores conjugado com a capacidade do aluno para conferir um cunho pessoal à obra. Finalmente, os parâmetros 24 – Domínio técnico de excelência, 25 – Capacidade de comunicar e transmitir emoções e 26 –

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Capacidade para orientar a própria evolução, situam-se no modo Sistemático do estádio Valor e possibilitam-nos a avaliação da mestria técnica do aluno, a sua capacidade para comunicar e transmitir emoções e autonomia para encontrar o seu próprio rumo musical. Para cada um dos parâmetros a avaliar é utilizada uma escala de quatro pontos: insuficiente, suficiente, bom e excelente. Antes da aplicação da escala foi efetuada uma reflexão falada levada a cabo por dois especialistas na área com vista a eliminar itens com problemas de elaboração. 2.4. Procedimento Efetuamos, em primeiro lugar, o registo em vídeo da execução de duas obras musicais – Concerto de J. B. G. NERUDA (1º Andamento) e “Suite” de E. BAUDRIER3 – por dois alunos de Trompete (Aluno A e B). Estes vídeos destinam-se a ser visionados pelos nove professores de trompete que depois avaliarão as execuções musicais dos alunos. As duas obras foram executadas com acompanhamento ao piano, realizado pelo mesmo pianista, e as gravações foram realizadas numa situação equivalente a uma prova ou audição. Os instrumentos foram administrados aos inquiridos pela seguinte ordem: os Relatórios de Avaliação Qualitativa da Execução Musical foram preenchidos em primeiro lugar e após o visionamento/audição dos respetivos vídeos. As Escalas de Registo da Execução Musical foram preenchidas por último, com um intervalo de dois dias em relação à “avaliação livre”. Cada docente de trompete foi convidado a avaliar as duas performances de cada aluno a partir de duas metodologias de recolha de dados distintas, pelo que no final obtivemos 36 “produtos” que foram objeto de análise. 3. Discussão dos resultados Situaremos a apresentação e análise dos resultados tomando como eixos: a. A abrangência das dimensões da crítica musical usadas pelos professores para classificar a performance musical dos alunos; b. A consistência das avaliações dos professores de música a respeito da performance musical dos alunos

a. A abrangência das dimensões da crítica musical usadas pelos professores para classificar a performance musical dos alunos Com base na análise dos Relatórios de Avaliação Qualitativa da Execução Musical, podemos constatar que os inquiridos fizeram 54 referências ao estágio Materiais (75%); 39 referências ao estágio Expressão (54,17%). O estágio Forma foi mencionado por 22 vezes (30,56%) e apenas um dos sujeitos fez uma única referência ao estágio Valor (Ex.1).

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Ex.1 - Gráfico relativo ao número de referências feitas pelos 9 professores a cada estádio da Teoria Espiral na avaliação livre.

Como se pode analisar com base nos dados do Ex.1, os inquiridos exploraram de forma assimétrica as diferentes dimensões da crítica musical. Os sujeitos atribuíram grande peso à dimensão dos Materiais, um peso considerável à dimensão da Expressão, uma valorização relativamente mais reduzida à dimensão da Forma. Apenas um professor considera a dimensão do Valor. Perante estes resultados poder-se-á dizer que, à luz da teoria de SWANWICK, estas apreciações não refletem a preocupação dos professores em explorarem o desenvolvimento musical dos alunos na sua plenitude. Observando os dados do Ex.2 podemos verificar que, considerando a avaliação efetuada pela totalidade dos inquiridos relativamente à execução dos dois alunos nas duas obras com base na Escala de Registo da Performance Musical, o valor médio mais alto (média=2,7) situa-se no estágio Materiais enquanto o valor médio mais baixo encontra-se no estágio Valor (média=2,4). Observa-se uma ligeira diminuição dos valores médios à medida que se vai subindo de estágio ao longo da espiral de desenvolvimento musical.

Estágios Média Desvio-padrão Mínimo Máximo

Materiais 2,7 0,35 2,08 3,27

Expressão 2,6 0,29 2 2,88

Forma 2,5 0,39 1,75 3,1

Valor 2,4 0,31 1,9 2,75

Ex.2 - Tabela relativa aos dados de estatística descritiva referentes à avaliação efetuada pela totalidade dos professores considerando a execução dos dois alunos nas duas obras

Se compararmos as avaliações efetuadas pelos inquiridos através dos Relatórios de Avaliação Qualitativa da Execução Musical com as avaliações efetuadas através das Escalas de Registo da Performance Musical, e sabendo que ambas se reportam às mesmas performances, podemos afirmar que, de uma forma geral, não há coerência por parte dos inquiridos nas avaliações. Nas avaliações efetuadas na presença dos critérios de avaliação de SWANWICK, os sujeitos avaliaram os dois alunos tendo em conta os quatro estágios de desenvolvimento musical, enquanto na ausência desses mesmos critérios, as avaliações fizeram-se em referência a três estágios e de forma desigual.

0

10

20

30

40

50

60

EstádioMateriais

EstágioExpressão

EstágioForma

Estágio Valor

54

39

22

1

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As médias totais por estágio relativas às avaliações efetuadas pelos nove inquiridos através da Escala de Registo da Performance Musical, diminuem à medida que subimos na espiral e o estágio Valor foi o menos valorizado pelos sujeitos nas quatro execuções, mas também não deixa de ser verdade que os alunos foram avaliados positivamente em todos os estágios, incluindo o de Valor, daí podermos concluir ser contraditório a ideia desse estágio não ter sido considerado pelos sujeitos nos Relatórios de Avaliação Qualitativa da Execução Musical, assim como a menor importância atribuída ao estágio Forma.

b. A consistência das avaliações dos professores de música a respeito da performance musical dos alunos A partir das avaliações efetuadas pelos inquiridos com base na Escala de Registo da Execução Musical, podemos constatar uma significativa variabilidade nessas mesmas avaliações (Ex.3). Os professores não apresentam concordância quanto à apreciação que efetuaram acerca da execução do aluno A na obra de NERUDA, existindo maior acordo nos julgamentos efetuados relativamente ao primeiro estágio.

ESTÁGIOS

SUJEITOS (nove professores de trompete)

Prof. 14

Prof. 2

Prof. 3

Prof. 4

Prof. 5

Prof. 6

Prof. 7

Prof. 8

Prof. 9

Média Média Média Média Média Média Média Média Média

Materiais 2,74 2,4 3,3 2,7 2,84 3,37 2,2 2,84 2,7

Expressão 2,75 2,75 3,13 2,75 2,88 3 1,88 3 2,25

Forma 3,42 2,34 2,84 2,34 2,17 3 1,75 2,75 2,17

Valor 2,67 2 3,17 2,59 2,84 3 2 2,42 1,59

Ex.3 - Tabela relativa às médias referentes à avaliação da execução do aluno A da obra Concerto

J.B.G de NERUDA

Em relação à execução da Suite de BAUDRIER pelo aluno A, os inquiridos não apresentam avaliações concordantes. Note-se o desacordo quanto aos parâmetros de avaliação contemplados no estádio Valor, avaliados por um inquirido com Insuficiente e por outro como Bom (Ex.4).

ESTÁGIOS

SUJEITOS (nove professores de trompete)

Prof. 1

Prof. 2

Prof. 3

Prof. 4

Prof. 5

Prof. 6

Prof. 7

Prof. 8

Prof. 9

Média Média Média Média Média Média Média Média Média

Materiais 3,17 2,2 3,37 2,8 2,84 3,37 2,3 2,2 2,8

Expressão 2,63 2 2,88 2,13 2,88 3,38 2,25 2,13 3

Forma 3,25 2,17 3 2,67 2 3,34 1,42 2 3,34

Valor 2,84 1,59 3,17 2,59 2,84 3 2,09 2,17 2,67

Ex.4 -Tabela relativa às médias referentes à avaliação da execução do aluno A da obra Suite de

E. BAUDRIER.

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A mesma variabilidade de julgamentos dos inquiridos encontra-se presente na execução do Concerto de NERUDA. Nos estádios Materiais, Forma e Valor a execução do mesmo aluno é apreciada pelos professores inquiridos ora como abaixo do suficiente ora como de nível bom (Ex.5).

ESTÁDIOS

SUJEITOS (nove professores de trompete)

Prof. 1

Prof. 2

Prof. 3

Prof. 4

Prof. 5

Prof. 6

Prof. 7

Prof. 8

Prof. 9

Média Média Média Média Média Média Média Média Média

Materiais 2,6 2,9 2,94 2,17 2,84 1,74 2,24 3,1 3,37

Expressão 3 2,75 2,38 2,25 2,63 2,5 2,13 3,13 3,13

Forma 3 2,34 2 2,17 2,17 2,67 1,75 3 3

Valor 3,09 2,42 2 2 2,67 2 1,59 3,17 2,84

Ex.5 - Tabela relativa às médias referentes à execução da execução do aluno B da obra

Concerto J.B.G de NERUDA. Os dados do Ex.6 evidenciam discordância na avaliação dos docentes quanto à execução da Suite de BAUDRIER pelo aluno B.

ESTÁGIOS

SUJEITOS (nove professores de trompete)

Prof. 1

Prof. 2

Prof. 3

Prof. 4

Prof. 5

Prof. 6

Prof. 7

Prof. 8

Prof. 9

Média Média Média Média Média Média Média Média Média

Materiais 2,6 2,9 3,1 2,34 2,84 1,74 1,9 3,1 3,37

Expressão 3 2,63 2,25 2,38 2,63 2,13 2 3,13 3,13

Forma 2,84 2,34 2,17 2,84 2,17 1,34 1,84 3 3

Valor 2,67 2 2,17 2 2,67 1,88 1,59 3,17 2,67

Ex.6 -Tabela relativa às médias referentes à avaliação da execução do aluno B da obra Suite de

E. BAUDRIER. Estes resultados são consistentes com o estudo de FRANÇA (2000) segundo o qual os examinadores chegam a avaliações diferentes relativamente à mesma performance. Acreditamos que esta diferença de perspetiva se deve, por um lado, às diferentes conceções ou escolas dos inquiridos, que os levam a valorizar de forma diferente determinados aspetos, e, por outro lado, à forte componente de subjetividade presente nas realizações artísticas, que permite interpretações diferentes da mesma obra. Procuraremos agora discutir a análise da variabilidade das respostas dadas pelos sujeitos a partir do Relatório de Avaliação Qualitativa da Execução Musical. Sobre a execução do Concerto de NERUDA (1º andamento) pelo aluno A, um dos sujeitos comentou: “Classifico esta execução de muito bom nível: ao nível de estilo, expressividade, ornamentos, técnica…”, enquanto outro escreveu:

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“Tecnicamente, tem algumas falhas que prejudicam a sua prestação, nomeadamente a falta de controlo da coluna de ar...”. Relativamente à execução da Suite de BAUDRIER pelo aluno A, um dos professores referiu: “Ao nível da realização técnica o aluno esteve em bom plano. Também fez uma correta interpretação da articulação…”, enquanto outro salientou: “… o principal problema é o contraste dinâmico exigido e o aluno não o interpretou… no 2º andamento a articulação deveria ser diferente”. No que respeita à execução do Concerto de NERUDA pelo aluno B, um dos docentes salientou: “Classifico-a mesmo de brilhante: boa sonoridade, expressividade, boa flexibilidade, agudos bons, técnica bastante apurada, ornamentos bem feitos. Quanto à resistência, respiração, fraseado, ritmo e concentração posso classificá-la de excelente”, enquanto outro escreveu: “… alguns problemas de afinação. A interpretação está demasiado precipitada, provocando também algumas oscilações na pulsação”. Sobre a execução do aluno B da Suite de BAUDRIER um dos sujeitos referiu: “O aluno mostra ser um aluno muito equilibrado, com uma sonoridade bonita e controlada na sua extensão. Mostrou um bom desempenho musical”, enquanto outro docente escreveu: “… revela alguns problemas no registo agudo do instrumento, além de alguns problemas de afinação. Algumas passagens não estão devidamente controladas”. Estes julgamentos exemplificam que a mesma performance pode suscitar em diferentes avaliadores juízos antagónicos e ajudam a explicar as diferenças encontradas nos resultados das avaliações efetuadas através da Escala de Registo da Performance Musical. Se é possível que dois professores emitam juízos tão diferentes relativamente à mesma execução, talvez esses professores não estejam realmente a fazer uma apreciação crítica objetiva dessa execução mas a manifestarem inconscientemente a sua preferência por determinada forma de tocar. A ideia que a diferença entre a apreciação crítica de uma performance e a preferência por determinada forma de tocar deve ser definida previamente com clareza, porque a primeira é mais objetiva e a segunda mais subjetiva, é defendida por TOURINHO e OLIVEIRA (2003). A questão da variabilidade das apreciações pode ser igualmente discutida a partir do item critérios de avaliação da execução musical, aspeto avaliado no questionário5 de caracterização da perceção dos professores de trompete acerca da avaliação. Colocando em contraste as avaliações efetuadas por cada sujeito através do Relatório de Avaliação Qualitativa da Execução Musical com as respostas ao item acima referido, onde é pedido aos sujeitos os critérios de avaliação que utilizam, verificou-se que na maioria dos casos não há concordância entre estas situações. Ou seja, alguns inquiridos apresentaram uma lista de critérios de avaliação que dizem utilizar na sua atividade diária, mas que não corresponde às avaliações que efetuaram quer com base no Relatório quer na Escala. A constatação de que os critérios de avaliação apresentados pelos inquiridos não se encontrarem espelhados nas avaliações efetuadas permite chegar a duas conclusões: i) frequentemente, os professores não avaliam os alunos de acordo com as próprias conceções teóricas. Trata-se de uma separação

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evidente entre a teoria e a prática que já tinha sido constatado por SANTOS (2003), ii) os professores de música sentem dificuldades quando têm de justificar por palavras determinado juízo de carácter musical, o que vem ao encontro das opiniões de autores como SWANWICK (1994), FRANÇA (2000) e TOURINHO (2001). 4.Conclusão A avaliação das práticas musicais é um processo complexo. Como salienta SWANWICK (1999) a “avaliação engloba desde a constante – ou mesmo instantânea – verificação do resultado atingido, realizada pelo próprio músico ou outrem, até procedimentos formais de avaliação nos exames regulares de instrumento” (p.69-74). Os resultados evidenciaram uma elevada variabilidade nas avaliações produzidas pelos professores deste estudo. O grau de variabilidade é consideravelmente maior quando os professores de Trompete avaliam a performance musical dos executantes sem apoio de critérios pré-definidos. Contudo, também se verificaram inconsistências e disparidades na avaliação dos professores quando estes apreciam o desempenho dos alunos a partir dos critérios operacionalizados com base na Teoria Espiral de SWANWICK. Os resultados encontrados neste estudo colocam em evidência a velha questão, tão debatida no âmbito das ciências da educação: a lacuna epistemológica que separa o discurso musical do discurso concetual (JOHNSON, 1997 citado por FRANÇA, 2004). Nem sempre é fácil mobilizar referenciais e grelhas de análise teóricas que guiem e orientem a nossa praxis profissional. O fosso entre teoria e prática permanece ainda em aberto. Ou poderão os resultados do nosso estudo querer evidenciar que a atitude adotada pelos professores de trompete, caraterizada pela menor valorização de critérios de avaliação formais e objetivos, corresponde a uma tentativa de evitar comprometer a integridade e o carater holístico da experiência musical, a qual não deve ser fragmentada pela aplicação de critérios formais? Independentemente das razões que possam explicar a inconsistência dos dados encontrados, os resultados desta investigação revelam a necessidade de desenvolver critérios objetivos, claros e inequívocos de avaliação da experiência musical. A este respeito, tal como tem sido reconhecido na comunidade científica, os critérios propostos por SWANWICK (1994) parecem produzir uma razoável confiança nos professores aquando da avaliação do ensino e da aprendizagem da mesma (DEL BEN, 2003), constituindo assim uma excelente ferramenta a usar no processo avaliativo (FRANÇA e SWANWICK, 2002). Verificamos ainda que os professores quando solicitados a avaliar o nível de desenvolvimento musical dos alunos apenas consideram duas das dimensões da crítica musical, a dimensão dos Materiais e Expressão. Os estágios Forma e Valor, tidos como o pináculo da compreensão da música como forma de discurso simbólico, são substancialmente menos considerados pelos sujeitos da amostra na avaliação. À semelhança do estudo de FRANÇA encontramos, grosso modo, nos resultados deste estudo uma conceção de avaliação da experiência musical que enfatiza sobremaneira a “dimensão técnica em detrimento do resultado musical como um todo” (2004, p.35). Uma das

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explicações para estes resultados poderá ser encontrada, na opinião de FRANÇA (2004, p.35), na ideia de que os estágios mais elevados da Teoria Espiral “integram aspetos que escapam à linguagem objetiva-o indizível.” No entanto, ainda a este propósito, SWANWICK (1999) não deixa de lembrar que os professores “devem reconhecer a complexidade da experiência musical. Uma atividade tão rica não pode ser reduzida a uma ou duas dimensões. (…) A natureza de qualquer atividade artística parece obrigar à identificação de várias dimensões diferentes “ e à tentativa de classificar cada uma delas.”(COSTA, 2010, p.98) Estamos, pois, em crer que a avaliação da performance musical dos alunos é um assunto que merece atenção urgente por parte de todos aqueles que se dedicam ao ensino destas matérias, apesar de reconhecermos que, muitas vezes, o “nível de articulação simbólica e estética numa performance ultrapassa os limites da expressão da linguagem verbal” (FRANÇA, 2004, p.35). Contudo, como reconhece KEITH SWANWICK “é importante encontrar um vocabulário significativo comum, bem como critérios que façam sentido para toda a gente”, sendo necessário que os professores de música tomem consciência da importância “(…) de padrões explícitos, de uma linguagem partilhada da crítica musical” (1999, p.72). Referências ANDRADE, Margareth. A avaliação em execução musical. Estudo sobre critérios utilizados por

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Notas 1As dimensões da crítica musical descritas por SWANWICK e TILLMAN correspondem aos estágios de desenvolvimento musical. 2Os dois alunos, com 17 anos de idade, frequentam o 5.º Grau de Trompete e apresentam um rendimento escolar de elevado nível. De acordo com a totalidade dos docentes dos dois alunos, estes apresentam um desempenho musical homogéneo. 3As peças foram cuidadosamente escolhidas com base em pré-requisitos. 4 A sigla PROF quer dizer professor. 5 Nesta investigação foi utilizado ainda um Questionário sobre as Perceções dos Docentes relativamente à Avaliação na Música. Um das questões ou itens incluídos neste instrumento relaciona-se com os critérios de avaliação usados pelos docentes quando têm que apreciar a execução musical dos alunos.

Maria Clara Pereira Fernandes Costa é licenciada em Psicologia pela Universidade do Minho. Em 2000 apresentou a tese de Mestrado na mesma instituição na área de Psicologia Escolar. Atualmente prepara candidatura ao doutoramento em Psicologia na Universidade de Aveiro. Desde 1999 tem exercido funções como docente do ensino superior, tendo colaborado com a Universidade do Minho e a Universidade Católica Atualmente exerce a atividade docente na Escola Superior de Educação de Fafe e na Escola Superior de Tecnologias de Saúde do Instituto Politécnico do Porto. Tem orientado teses e projetos de investigação subordinados à análise do processo de ensino-aprendizagem numa vertente psicológica. Tem publicado na área da Psicologia da Educação.

Jaime Filipe Barbosa realizou os seus estudos musicais no Conservatório de Música do Porto, onde concluiu em 1993 o Curso Completo de Trompete (Exp. Pedagógica de 1971). Mais recentemente, em 2007, concluiu a licenciatura em Orientação Educativa na Escola Superior de Educação de Fafe. Enquanto Trompetista colabora com instituições como a Orquestra Nacional do Porto e a Orquestra Filarmonia das Beiras, entre outras, e apresenta-se regularmente integrado em formações de música de câmara. É, desde 1995, professor da disciplina de Trompete no Conservatório de Música de Coimbra e na Academia de Música de Oliveira de Azeméis.

FERRARI, Â. M.; AQUINO, F. A. Suíte Nº 1 para violoncelo... Reger... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.149-166.

149 PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.31, 353p., jan. - jun., 2015 Recebido em: 10/02/2014 - Aprovado em: 08/06/2014

DOI: 10.1590/permusi2015a3109

Suíte Nº 1 para violoncelo solo de Max Reger e a escrita de J.S. Bach: relações de dependência e identidade de linguagem Ângela Maria Ferrari (UFSM, Santa Maria - RS) [email protected]

Felipe Avellar de Aquino (UFPB, João Pessoa - PB) [email protected]

Resumo: O presente trabalho busca demonstrar como Max Reger emprega modelos de J.S. Bach na construção de sua Suíte Nº 1, Op. 131c. Dessa forma, em sua escrita, Reger combina elementos da harmonia do final do século XIX com técnicas contrapontísticas de J.S. Bach. A influência do mestre barroco é visualizada desde a escolha das tonalidades até a utilização de motivos que são, de fato, transformações e expansões de motivos “bachianos”. Portanto, este trabalho discute as técnicas de composição empregadas por Reger na Suíte Op. 131c nº 1, como também traça um paralelo entre essa obra, em particular, com movimentos das suítes para violoncelo solo de J.S. Bach. Respaldado pela linguagem baseada no cromatismo, Reger resgata, ao mesmo tempo, o gênero Suíte na literatura solo do violoncelo, e sob a égide da estética do romantismo tardio, cria uma obra com características e estilo próprios. A partir dessas premissas, o trabalho propõe subsidiar o intérprete em suas decisões interpretativas. Palavras Chave: Max Reger; J.S. Bach; suíte para violoncelo solo; práticas interpretativas.

Max Reger’s Suite Nº 1 for violoncello solo and the writings of J.S. Bach: dependence relations and language identity Abstract: This article aims at demonstrating how Max Reger employs musical patterns of J. S. Bach as models for the construction of his Suite Op. 131c nº 1 for cello solo. Thus, in his compositions Reger combines harmonic elements from the end of the 19th century with contrapuntal techniques of J. S. Bach. The influence of the German master can be traced from the choice of tonalities to the use of motives, which are, in fact, expansions and transformations of “bachian” motifs. Consequently, this article discusses the compositional techniques employed by Reger in the Suite Op. 131c nº 1 for cello solo. It also draws a parallel between this particular composition and movements from J. S. Bach’s cello suites. Endorsed by a compositional language based on chromaticism, Reger redeems the Suite as a genre for the cello solo literature and, at the same time, under the aegis of the late romantic aesthetic, he creates a work with unique style and characteristic. Based on these premises, this work aims to support the performer in her/his musical decisions. Keywords: Max Reger; J.S. Bach; suite for cello solo; performance practices.

1. Introdução A obra de Max Reger (1873-1916) representa, em muitos aspectos, a continuidade da tradição musical alemã, visto que o desenvolvimento de sua estética e linguagem musical foi notadamente influenciado por J.S. Bach e J. Brahms. Autor de vasta produção, toda elaborada no intervalo de apenas 26 anos, Reger conseguiu combinar elementos da harmonia do final do século XIX – os quais beiram a dissolução do sistema tonal – com técnicas contrapontísticas de J.S. Bach. Segundo GRIM (1988, p.5, tradução nossa):

150

O aspecto contrapontístico da música de Reger é característica particularmente reconhecível. Provavelmente, nenhum outro compositor alemão do romantismo tardio foi influenciado pela música de Bach como o foi Reger.1

Por outro lado, faz-se necessário assinalar que, apesar das composições de Reger serem inovadoras no aspecto tonal, estas não transpõem as fronteiras da tonalidade. Nesse sentido, BRINKMANN (2004, p.637, tradução nossa) afirma que “apesar de estar trilhando o seu próprio caminho cromático, parafraseando as suas próprias palavras ‘fielmente em direção à esquerda’ ele nunca quis ultrapassar a fronteira para dentro do novo território da atonalidade”.2 Sendo assim, constata-se em suas obras uma linguagem moderna e inovadora, ainda que dentro da estética do Romantismo tardio. Porém, a música de Reger é estruturada de maneira a preservar os ensinamentos dos mestres do passado, uma vez que “é ele quem constrói uma linguagem modernista, detendo e, ao mesmo tempo, relativizando os princípios musicais do passado” (FRISH, 2004, p.742, tradução nossa). 3 As Suítes para violoncelo solo Op. 131c se constituem em exemplos de como Max Reger emprega elementos da escrita bachiana nas suas composições e, ao mesmo tempo, consegue se distanciar do mestre para realizar algo genuinamente seu. É, portanto, intuito deste artigo discutir as técnicas composicionais empregadas por Reger na Suíte Op. 131c nº 1, como também traçar um paralelo entre essa obra, em particular, com movimentos das suítes para violoncelo solo de J.S. Bach. Desta forma, será demonstrado ao longo deste trabalho que Reger encontra na escrita contrapontística de Bach diversas referências composicionais. Na catalogação da obra de Max Reger, o conjunto de composições agrupadas como Op. 131 compreende obras para violino solo (Seis Prelúdios e Fugas para Violino Solo, Op. 131a), duo de violinos (Três Duos-Cânones e Fugas em “Estilo Antigo” para Duo de Violinos, Op. 131b), violoncelo solo (Três Suítes, Op. 131c para Violoncelo Solo) e, por fim, viola solo (Três Suítes Op. 131d para Viola Solo). De acordo com os registros catalográficos, as obras Op. 131a e 131b foram escritas em 1914. Por outro lado, as Suítes para violoncelo solo (Op. 131c) e viola solo (Op. 131d) foram concluídas no ano seguinte, ou seja, 1915. Ressalta-se, no entanto, que o Op.131c é composto por três suítes, sendo que as Suítes nº 1 e nº 3 apresentam três movimentos, enquanto a Suíte nº 2 possui quatro movimentos, conforme demonstrado no Ex.1.

Obra Tonalidade Movimentos Suíte I Sol Maior Präludium/Adagio/Fuge

Suíte II Ré Menor Präludium/Gavotte/Largo/Gigue

Suíte III Lá Menor Präludium /Scherzo/Andante con Variazioni

Ex.1: Tabela - Estrutura das Suítes Op. 131c de Max Reger

151

É interessante notar que essas composições foram dedicadas a três eminentes violoncelistas/professores, representantes da escola germânica do violoncelo de então: Julius Klengel (1859-1933), Hugo Becker (1863-1841) e Paul Grümmer (1879-1965). Sobre os dois primeiros, JOHNSTONE (acesso em 25 março 2011, tradução nossa) em seu artigo “The late-romantic German cello school – an introduction to Julius Klengel and his compositions”, sustenta que:

Além de serem reconhecidos como excelentes solistas e cameristas, eles viriam a se tornar os mais proeminentes professores de violoncelo durante os primeiros trinta anos do século XX, apesar de diferentes metodologias e opiniões sobre como ensinar. Pode-se dizer que eles se constituem em dois expoentes na arte germânica do violoncelo.4

Além do mais, esses violoncelistas tiveram contato direto com Max Reger. De fato, e como afirma GINSBURG (1983, p.76, tradução nossa), “Reger dedicou a Klengel uma das suas suítes para violoncelo solo, Op. 131, Nº 1, e a sonata para violoncelo e piano Op. 116. Reger também tocou frequentemente com o violoncelista”.5 Por sua vez, Paul Grümmer foi aluno de Klengel e também muito respeitado em seu tempo. Dessa maneira, tem-se a Suíte nº 1 dedicada a Julius Klengel, a nº 2 a Hugo Becker e, finalmente, a nº 3 dedicada a Paul Grümmer. Salienta-se que Klengel revisou e publicou, na qualidade de editor, uma versão das Seis Suítes de Bach para violoncelo solo. É também atribuído a Klengel o mérito de ter realizado a tarefa de tornar as suítes de Bach conhecidas e estudadas por seus alunos. Muitos desses discípulos, por sua vez, tornaram-se expoentes do violoncelo ao longo do século XX. A título de exemplo, citam-se Emanuel Feuermann, Guilhermina Suggia, Gregor Piatigorsky, William Pleeth e, como afirmado anteriormente, Paul Grümmer. É possível, portanto, que essa estreita ligação entre Klengel e as Seis Suítes de Bach tenha influenciado Max Reger a dedicar a primeira suíte a esse violoncelista.6 Conforme visto no Ex.1, as Suítes de Reger estão nas tonalidades de Sol Maior, Ré Menor e Lá Menor, respectivamente. A partir da reflexão acerca da escolha das tonalidades, é possível traçar uma relação com as Suítes para violoncelo solo de J.S. Bach, uma vez que as Suítes Op. 131c nº 1 e nº 2 são escritas exatamente nas mesmas tonalidades das duas primeiras suítes de Bach. Por outro lado, a terceira Suíte de Bach foi escrita na tonalidade de Dó Maior, ao passo em que a correspondente de Reger (Op. 131c nº 3) está estruturada na tonalidade de Lá Menor, ou seja, na tonalidade relativa menor de Dó Maior. Portanto, verifica-se certo paralelismo entre a escolha tonal dessas obras e as Suítes de Bach. Ademais, ressalta-se também a vertente “neoclássica” presente na escrita de Reger, como comenta GINSBURG, (1983, p.304, tradução nossa) em relação à importância desse conjunto de obras dentro do repertório violoncelístico. Segundo o autor, “hoje, as três suítes Op. 131 (1915) de Reger, que graficamente revelam as tendências neoclássicas do compositor, são mais frequentemente tocadas do que suas sonatas”.

152

Mais uma vez remetendo-se ao Ex.1 e como já anteriormente afirmado, o conjunto de obras Op. 131c está estruturado a partir de um modelo com três movimentos – Suítes nº 1 e 3 – ou de 4 movimentos, como é o caso da Suíte nº 2. Dentre essas, a Suíte nº 1 tem seus movimentos intitulados Präludium, Adagio e Fuge. Observa-se, todavia, que Reger reelabora o conceito de suíte, em detrimento de uma suposta coletânea de danças – conforme o conceito preestabelecido de suíte barroca. Dessa forma, nessa suíte em particular, o que se segue após o prelúdio são movimentos transmutados, discriminados como Adagio e Fuge. No entanto, pode-se seguramente afirmar que, no movimento de abertura, Reger faz referências, em vários aspectos, ao Prelúdio da Suíte BWV 1007 de J.S. Bach, como será demonstrado a seguir.

2. Primeiro Movimento: Präludium Assim como nas Seis Suítes para violoncelo solo de Bach, o prelúdio tem a função de movimento de abertura que antecede uma coletânea de danças ou mesmo uma sequência de movimentos. Comparando-se o desenho rítmico do tema do Präludium de Reger, construído a partir de semicolcheias contínuas, como também alguns dos seus contornos melódicos, verifica-se que esses são claramente inspirados no Prelúdio da Suíte nº 1 BWV 1007. De certa forma, ao empregar gestos do Prelúdio de Bach, aliados a elementos próprios, notadamente resultantes de sua linguagem harmônica, Reger expande os gestos e motivos bachianos, o que resulta em frases mais extensas. Esse aspecto pode ser visualizado no exemplo abaixo.

Ex.2a - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Präludium (c.1-4)

Max Reger

Ex.2b - Suíte para violoncelo solo BWV 1007 – Prelúdio (c.1-4) J.S. Bach

Por definição, o prelúdio é considerado um movimento originalmente de caráter improvisatório, escrito em um estilo livre. Segundo LEDBETTER e FERGUSON (acesso em 25 março de 2011, tradução nossa):

O motivo de se escrever improvisação era geralmente o de prover modelos para estudantes. Essa prática, normalmente visando um aspecto particular da técnica instrumental, se dava de maneira instrutiva e permaneceu parte importante do prelúdio. Uma vez que a improvisação pode abranger um leque de maneiras, estilos e técnicas, o termo foi, posteriormente, aplicado a uma variedade de protótipos formais e a peças de gênero indeterminado.7

Até certo ponto, pode-se idealizar que Reger concebe o Präludium como se fora uma improvisação a partir de gestos das Suítes de Bach – na verdade, uma transformação do motivo – sob uma nova roupagem harmônica.

153

Por outro lado, Max Reger estabelece uma forma bastante clara para o movimento em questão, já que está estruturado na forma ABA’, distanciando-se, assim, do modelo de Bach. Observa-se, então, uma primeira seção A compreendida entre os c.1-28, seção B que se inicia a partir do último tempo do c. 28 até o c. 51 e, por fim, a partir do c. 52, verifica-se o retorno da seção A – aqui chamada de A’. No entanto, a partir do c. 63, tem-se uma combinação de cordas duplas, material que aparece na seção B, e também da textura em semicolcheias predominantes na seção A. A seção A cadencia em Mi Menor (vi), ou seja, na tonalidade relativa menor de Sol Maior. Por outro lado, a seção B é intensamente cromática. Nota-se que a partir do c.44, Reger, ao empregar cromatismos e arpejos diminutos, encaminha este movimento para a tonalidade de Sol Maior, ou seja, o retorno de A’. Claramente, no c. 52 verifica-se o retorno do desenho inicial do Präludium que se estende até o c. 62. Como mostra o Ex.3, a partir do terceiro tempo do c.28 até o c.39, portanto dentro da seção B, verifica-se uma sequência em cordas duplas que se inicia em Dó Maior. Pode-se traçar um paralelo a essa seção (28 -39) no c.63 o qual, após uma clara modulação para Ré Maior, apresenta uma interpolação, com essa mesma textura, através de uma nova sequência em cordas duplas (c.63-70).

Seção A B A’

Compassos 1 - 28 28 (último tempo) - 51 52-82

Emprego de Cordas Duplas 28 (último tempo) - 39 63-70

Ex.3: Tabela - Estrutura do Präludium e o emprego de múltiplas vozes

Outra característica empregada por Bach no Prelúdio da Suíte nº 1 BWV 1007, e explorada de maneira semelhante por Reger, consiste na estratégia de escrever a linha melódica alternando-se a uma nota pedal em corda solta, com a finalidade de se construir e intensificar um ponto de tensão (Ré no c.12 e Sol no c.13 – portanto, uma relação de 5ª descendente), como pode ser visto no Ex.4a. Comparando-se os dois Prelúdios, verifica-se que Bach emprega esse artifício por oito compassos (c.31 a 38) ao conduzir o Prelúdio para seu final. Dessa forma, a linha melódica é desenhada sobre o pedal da corda solta – Lá (c.31-36), seguido pelo pedal de dominante – Ré (c.37-38). Bach também explora a mesma relação de 5ª descendente nas notas pedais, o que harmonicamente se constitui em um pedal de dominante (Ex.4b). Nota-se, no entanto, que se trata de uma combinação de bariolage e brisure, duas técnicas de arco amplamente empregadas na música do século XVIII e que são aqui resgatadas por Reger. Reger utiliza esse gesto para se distanciar da tonalidade de Ré Maior, apresentada nos c.10 e 11, enquanto Bach o utiliza como meio para atingir o final do Prelúdio e o acorde de tônica – Sol Maior.

154

Ex.4a - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Präludium (c.12-17) Max Reger

Ex.4b - Suíte para violoncelo solo BWV 1007 – Prelúdio (c.31-38) J.S. Bach

Ademais, como profundo conhecedor da obra do mestre alemão, Reger possivelmente baseou-se não somente em características da Suíte nº 1, mas também incorporou elementos e gestos musicais de outras das Seis Suítes de Bach para compor sua obra para violoncelo solo. Sendo assim, considera-se que há nítida influência do gesto de abertura do Prelúdio da Suíte nº 3 de Bach (BWV 1009) sobre as inflexões presentes nos c.10-11 e c.61-62 no Präludium de Reger. A fim de estabelecer claramente a tonalidade, Bach inicia a Suíte para violoncelo solo BWV 1009 com um gesto marcante, formado por uma escala descendente, seguido por um arpejo na tônica (Ex.5a). Reger, por outro lado, emprega uma variante desse mesmo gesto (Ex.5b), em dois momentos distintos do Präludium. Nos c.10-11 estabelece a tonalidade da dominante, em momento que precede o distanciamento da tonalidade, através do uso de uma série de sequências. Reger emprega esse gesto uma última vez, na tonalidade da tônica, (c.82-83) a fim de concluir o movimento em Sol Maior (Ex.5c).

Ex.5a - Suíte para violoncelo solo BWV 1009 – Prelúdio (c.1-2)

J.S. Bach

155

Ex.5b - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Präludium (c.10-11)

Max Reger

Ex.5c - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Präludium (c.82-83)

Max Reger

Nota-se que, ao contrário do Prelúdio BWV 1007 de Bach, em que a tonalidade de Ré Maior aparece de forma contundente na seção intermediária (c.22), como ponto de chegada, Reger afirma a tonalidade da dominante nos c.10 e 11, uma vez que, nessa linguagem, o movimento harmônico é bem mais ágil.

Bach Reger

Compassos 22 10-11

61-62

Ex.6: Tabela - Estabelecimento da tonalidade (Ré Maior)

Por fim, nos cinco últimos compassos, Reger emparelha e confronta esses dois gestos enfáticos e marcantes de Bach, que, como afirmado, são provavelmente extraídos dos Prelúdios das Suítes BWV 1007 e 1009, respectivamente. Têm-se então, inflexões formadas pelo arpejo de Sol Maior, oriundo da Suíte nº 1, em justaposição ao gesto escalar descendente que culmina no arpejo característico do início, como também do final da Suíte nº 3. Esse confronto marca os cinco compassos conclusivos do Präludium.

Ex.7 - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Präludium (c.79-83)

Max Reger

3. Segundo Movimento: Adagio O segundo movimento da Suíte Op. 131c nº 1 é um Adagio em compasso ternário simples e, em parte, escrito em múltiplas vozes. Essa textura, embora encontrada nos outros movimentos, remete particularmente às Sarabandas das Suítes de Bach. Nestas, notamos o uso constante de múltiplas vozes com ênfase e apoio métrico no segundo tempo do compasso. Essa escrita, de certa forma, torna o movimento complexo em seu aspecto técnico e musical (Ex.8).

156

De acordo com LITTLE e JENNE, (1998, p.106, tradução nossa), “Todas as seis suítes de Bach contêm sarabandas, e cada uma constitui-se em contribuição única para a literatura do instrumento.8 Por sua vez, GITTER, (2009, p.4, tradução nossa) afirma que:

Durante o período do barroco tardio (início de 1700), a polifonia no violoncelo era limitada principalmente às peças mais lentas, onde havia mais tempo para resolver os desafios técnicos envolvidos na sustentação de múltiplas vozes, como é o caso da Sarabanda da Suíte No. 4 em Mi-bemol maior, BWV. 1010 para violoncelo solo de J. S. Bach.9

Ex.8a - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Adagio (c.1-4)

Max Reger

Ex.8b - Suíte para violoncelo solo BWV 1010 – Sarabanda (c.1-4)

J.S. Bach

Ex.8c - Suíte para violoncelo solo BWV 1012 – Sarabanda (c.1-4)

J.S. Bach

Igualmente, consideramos que o segundo movimento da Suíte de Reger faz alusão à Sarabanda da Terceira Suíte de Bach, também escrita em Dó Maior. No Adagio, nota-se que tanto o acorde inicial quanto o gesto final correspondem aos respectivos momentos da Sarabanda de Bach. Reger realiza esses gestos, tanto no início quanto no final do movimento, a fim de afirmar a tonalidade de Dó Maior como centro gravitacional, apesar de utilizar-se de extenso cromatismo que eventualmente conduz a tonalidades distantes. No primeiro compasso, Reger apresenta um motivo que pode ser reduzido ao gesto Dó-Si-Dó, visto como uma variante do motivo empregado por Bach no primeiro compasso da Sarabanda BWV1009, que é constituído por Dó-Dó-Si (Ex.9a, 9b).

Ex.9a - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Adagio (c.1)

Max Reger

157

Ex.9b - Suíte para violoncelo solo BWV 1009 – Sarabanda (c.1)

J.S. Bach

Por sua vez, considera-se o primeiro tempo do último compasso do Adagio uma ornamentação cromática em torno da nota Sol (V) que conclui em Dó Maior. Na Sarabanda da Suíte BWV 1009, da mesma forma, verifica-se esse movimento do Sol (V) concluindo no acorde de Dó Maior (Ex.10).

Ex.10a - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Adagio (c.58-62)

Max Reger

Ex.10b - Suíte para violoncelo solo BWV 1009 – Sarabanda (c.23-24) J.S. Bach

No entanto, apesar das referências a J.S. Bach, Reger se mantém fiel à sua concepção de escrita e linguagem, também no Adagio. Nesse aspecto, ressalta-se o uso intenso de cromatismo como recurso usual de seu estilo composicional. Segundo NAGLEY e ANDERSON (acesso em 25 março 2011, tradução nossa):

Seu entusiasmo por cromatismo era tal que Schoenberg suspeitou que ele

logo fosse se unir às legiões de atonalistas, mas para Reger cromatismo era um meio de expandir as possibilidades da tonalidade, não prenúncio de seu eminente colapso.10

A título de ilustração, como mostra o Ex.11, entre os c.53-55 há claramente o emprego, nas notas mais graves, de uma linha cromática que se move da nota Si bemol até a nota Fá natural.

158

Ex.11 - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Adagio (c.50-58)

Max Reger

Em Reger, não encontramos o indicativo de dança, sarabanda, por extenso, uma vez que ele nomina esse movimento de “Adagio” – aspecto que indica apenas caráter e andamento. Ainda assim, é possível visualizar traços oriundos da referida dança, como também algumas características marcantes da mesma. As Sarabandas das Suítes para violoncelo solo de Bach são consideradas como o movimento lento dessas composições e dessa maneira interpretadas. De fato, a sarabanda, uma dança originariamente de andamento rápido, ao longo do tempo torna-se dança lenta com “caráter completamente distinto, mais calmo, sério e nobre” (CAMPOS, 2010, p.32). Nesse sentido, LITTLE e JENNE (1998, p.106, tradução nossa) afirmam que “o compasso 3/2 novamente nos sugere uma performance lenta e majestosa”.11 Ao observamos a escrita de Reger, notamos uma estilização dos acentos típicos da sarabanda, no segundo tempo do compasso, como também a presença de acordes que, na sua grande maioria, se desenvolvem em pequenos blocos. Esse gesto, muito significativo, está compreendido entre os c.32 a 38, mais especificamente nos c.32, 33 e 36. Esses compassos, escritos com a indicação de dinâmica ff (fortíssimo), são marcados pelo deslocamento, por meio da síncope, do acento característico das sarabandas barrocas (Ex.12).

Ex.12 - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Adagio (c.32-39)

Max Reger

Além do mais, similar à Sarabanda da Suíte nº 6 de Bach, nota-se que Reger emprega, em muitos momentos, colcheias ligadas em pares. O uso dessa figuração constitui-se na maneira empregada por Reger de estruturar as longas frases do romantismo tardio sem se distanciar do padrão métrico da sarabanda, com apoio no segundo tempo do compasso ternário que, nesse caso, é induzido pelo uso das chaves de crescendo e decrescendo.

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Bach, por sua vez, emprega a semínima em um compasso ternário, cuja unidade de tempo é a mínima (3/2). Ao comentar a Sarabanda da Suíte nº 6 de Bach, TODD (2007, p.40, tradução nossa) sustenta que “enquanto a sua primeira metade apresenta o mais óbvio uso de ritmo convencional da sarabanda, a segunda metade apresenta um claro distanciamento do padrão rítmico convencional”.12 Pode-se afirmar que ambos exercem de maneira magistral a liberdade de criação, uma vez que modificam a maneira com que a sarabanda usualmente é escrita, mas, ao mesmo tempo, usam técnicas composicionais que remetem à mesma (Ex.13a, 13b).

Ex.13a - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Adagio (c.16-19)

Max Reger

Ex.13b - Suíte para violoncelo solo BWV 1012 – Sarabanda (c.17-20)

J.S. Bach

Porém, ao contrário das Sarabandas nas suítes de Bach, escritas em forma binária, verifica-se que o Adagio de Reger está estruturado na forma ABA modificada. Nota-se que os oito compassos iniciais se repetem a partir do c.41, após uma seção interna, de caráter contrastante, delineando assim uma forma ABA’. FRISH (2004, p.740, itálico e tradução nossa), ao comentar o adágio da Suíte para Órgão em Mi menor, Op. 16, de Reger, afirma que “o mais intrigante movimento histórico na suíte é o adágio, em forma ABA’ – característica de um movimento lento clássico-romântico”.13 De maneira semelhante, na Suíte para violoncelo solo Nº 1, Reger adota a forma ABA’ tanto para o Präludium quanto para o Adagio (Ex.14).

Seções A B A’

Compassos 1-14 14-40 41-83

Ex.14: Tabela - Estrutura do Adagio

Interessante ressaltar que Reger inicia o movimento a partir de uma frase irregular de sete compassos, ao contrário da prática barroca. Nesse sentido, ao comentar as sarabandas italianas e alemãs, HUDSON (acesso em 04 março 2011, tradução nossa) afirma que “elas são caracterizadas por um afeto intenso e sério, apesar de algumas serem gentis e graciosas, e escritas em

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métrica ternária lenta, com um forte senso de equilíbrio baseado em frases de quatro compassos”.14 Dessa forma, Reger adapta o caráter da sarabanda à sua própria estética musical (Ex.15).

Ex.15 - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Adagio (c.1-7)

4. Terceiro Movimento: Fuge (Allegro) A Suíte nº 1 conclui com uma elaborada fuga, cuja indicação de andamento é Allegro. Destaca-se que a própria obra de Max Reger atesta o fascínio que o mesmo sentia pela escrita contrapontística da fuga. Como afirma GRIM (1988, p.5, tradução nossa), “Fugas, cânones, e formas não imitativas de contraponto são abundantes na obra de Reger, no entanto, o compositor não era um imitador submisso das práticas contrapontísticas de Bach”.15 A título de exemplo, cita-se a Fantasia e Fuga sobre BACH, Op. 46 para órgão, ou as Variações e Fuga sobre um tema de Mozart, Op. 132 para orquestra sinfônica. Retornando ao modelo das Seis Suítes de Bach, ressalta-se que, a Suíte BWV 1011 tem como primeiro movimento um Prelúdio na forma de abertura francesa, composta por uma introdução lenta em compasso 4/4, seguido de uma fuga em 3/8. Segundo GITTER (2009, p.5, tradução nossa) “a primeira fuga para violoncelo solo que se conhece está contida dentro do Prelúdio da Suíte No. 5 em Dó menor, BWV.1011, de J.S. Bach”.16 Na realidade, no caso da Suíte Nº 5 de Bach, considera-se o trecho a partir do c.27 até o final desse prelúdio uma “suposta ou pseudo fuga”, pois o mesmo tem o esquema tonal e estrutura formal similar ao de uma fuga. No entanto, por ser escrita para um instrumento melódico, a sustentação simultânea de diversas vozes torna-se quase impossível. Neste sentido, GITTER (2009, p.7, tradução nossa) comenta:

Existem muitas razões para a rara aparição de fugas na literatura do violoncelo solo. A primeira e mais óbvia razão é que o violoncelo é principalmente um instrumento monofônico, apesar de que múltiplas linhas musicais podem ser sustentadas por pequenos períodos de tempo por meio do uso de cordas duplas e transferência de registro.17

Por outro lado, CAMPOS (2010, p.117) afirma que “a segunda seção da abertura francesa trata-se de uma fuga real, pois a resposta do sujeito preserva a exata relação intervalar apresentada pelo sujeito. Desta forma, a fuga está construída a quatro vozes”. Porém, como atesta GITTER (2009, p.1, tradução nossa), “ao endereçar a fuga como um gênero para violoncelo solo, Johann Sebastian Bach (1685-1750) e

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Max Reger (1873-1916) usaram princípios formais similares, resultando em diferentes peças musicais”.18 Podem-se visualizar esses princípios formais na comparação entre os sujeitos de cada fuga (Ex. 16a, 16b).

Ex.16a - Suíte para violoncelo solo BWV 1011 – Prelúdio (c.27-36)

J.S. Bach

Ex.16b - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Fuge (c.1-4)

Max Reger

O esquema tonal de Bach é o tradicional i-V-i-V, sendo que a tonalidade inicial da fuga é Dó Menor. Curiosamente, a Fuge de Reger está escrita em compasso 3/4 e na tonalidade de Sol Maior, tendo também por esquema tonal I-V. Entretanto, logo após as entradas em Sol Maior (c.1) e em Ré Maior (c.5), Reger inicia as transposições com entradas em Mi Maior (c.13) e em Si Maior (c.17). Observa-se que Bach constrói a fuga que está inserida no Prelúdio da Suíte BWV 1011 sobre a tonalidade menor e Reger compõe o movimento Fuge sobre a tonalidade maior. Todavia, ambas têm como resposta ao sujeito a chamada “resposta real”, ou seja, não há nenhum ajuste melódico nas respostas das respectivas fugas. Além do mais, como diz GITTER (2009, p.31, itálico e tradução nossa), “Reger usa muitas das técnicas que eram encontradas no desenvolvimento fugal de Bach.19 Entretanto, ao contrário de Bach, Reger realmente escreve o contra-sujeito simultaneamente ao sujeito, o que resulta numa fuga para um instrumento melódico com o uso constante de cordas duplas. Nota-se, portanto, grande diferença de textura ao se comparar as duas fugas (Ex.17a, 17b).

Ex.17a - Suíte para violoncelo solo BWV 1011 – Prelúdio (c.27-42) J.S. Bach

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Ex.17b - Suíte para violoncelo solo 131c Nº 1 – Fuge (c.1-8)

Max Reger

No que diz respeito à escolha do tempo dos movimentos, a fuga da Suíte para violoncelo solo BWV 1011 de Bach é tocada em andamento Allegro (Tres-vîte, de acordo com o manuscrito para alaúde). CAMPOS (2010, p.117) comenta que “como segunda seção da abertura francesa, a fuga é naturalmente mais rápida que a primeira seção – esta solene e bastante introspectiva”. Por sua vez, Reger coloca como indicação de andamento o termo Allegro. Da mesma maneira, a dificuldade técnica devido ao uso de múltiplas vozes é patente nas duas fugas. A obra de Reger faz certamente uso de mais recursos técnicos que a de Bach. Ele explora praticamente toda a tessitura do violoncelo, com amplo emprego de múltiplas vozes. Interessante notar que é possível traçar um paralelo entre a Fuga da Sonata nº 1 para Violino Solo em Sol Maior de Bach com a Fuge de Reger, no que diz respeito à construção do sujeito, com notas repetidas e articulações similares. Considera-se também que existe certa similaridade entre o desenho melódico do compasso nº 4 em Reger (Si-Lá-Si-Sol) com o final do compasso nº 1 e início do compasso nº 2 da Sonata para Violino de Bach (Ré-Dó-Si-Dó).

Ex.18 - Sonata Nº 1 para Violino Solo – Fuga (c.1-4)

J.S. Bach

No entanto, apesar das similaridades entre a Fuge de Reger e movimentos de Bach – tanto das Suítes para Violoncelo Solo ou a Fuga da Sonata nº 1 para Violino Solo – não é possível afirmar categoricamente que o compositor segue Bach como modelo estrito. Mesmo que se trace uma comparação apenas entre a Fuge de Reger com a Fuga do Prelúdio da Suíte nº 5 BWV 1011, ressaltando-se que o compositor é comprovadamente atraído pela escrita de Bach, Reger igualmente se impõe através de sua própria linguagem. Como nos diz BOTSTEIN (2004, p.621, tradução nossa) “Reger voltava-se em direção a Bach”. Além disso, este conclui que “A gravidade, densidade e religiosidade de Bach atraíam Reger”.20 Ainda assim, a Fuge, com todos os recursos técnicos usados por Reger, traduz-se em obra única e representativa da produção do compositor.

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5. Conclusão A análise da Suíte Op. 131c nº 1 de Reger, notadamente em comparação com as Suítes de J. S. Bach, conduz o leitor à conclusão de que Reger é um grande admirador do mestre do Barroco, no entanto, engajado na estética do romantismo alemão da virada dos séculos XIX e XX. Esse fato, certamente, coloca Reger como um dos precursores da corrente neoclássica do séc. XX. O intérprete, portanto, deve levar em consideração, efetivamente, os gestos barrocos inseridos na obra do compositor. Esses, no entanto, devem ser interpretados dentro da estética na qual foram compostos, ou seja, com o senso do romantismo tardio remanescente em vários compositores do início do século XX. Em seu comentário sobre as suítes de Reger para violoncelo solo, DIXON (2008, itálico e tradução nossa) afirma que:

Enquanto cada uma dessas obras são claramente distintas das de Bach, a clareza da linha e a textura em cada uma aspiram ao ideal do alto barroco alemão. Nenhuma dessas obras chega perto de desafiar a preeminência de Bach nesses gêneros, mas elas oferecem o frescor de um olhar moderno para com a linguagem e as formas do início do século dezoito, e sem a postura autoconsciente estilística de Stravinsky ou de seus seguidores Parisienses.21

Claramente Reger se inspira em Bach, porém escreve uma obra revestida de linguagem individual, própria, e que revela sua posição diante da estética da época. Ao mesmo tempo, revisitar o gênero Suíte representa a ousadia de se escrever para este meio – o violoncelo solo – após uma lacuna de quase 200 anos que separam as Seis Suítes de J.S.Bach (c. 1717-1723) das Três Suítes de Max Reger (1914-1915). Referências CAMPOS, Luz. Yanaina Alvarez. Complexidade e simplicidade: paradoxo na estrutura composicional do Prelúdio da Suíte Nº. 5 para Violoncelo solo de J. S. Bach. Dissertação (Mestrado em Música). Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. 2010. BOTSTEIN, Leon. Notes from the editor: History and Max Reger. In: The Musical Quartely, v. 87, n. 4, p.617-627, winter 2004. BRINKMANN, Reinhold. A last giant in music: thoughts on Max Reger in the twentieth century. Tradutor: Antonius Bittmann. In: The Musical Quartely, v. 87, n. 4, p.631-659, winter 2004. DIXON, Gavin. The chamber music of Max Reger. 2008. Disponível em:

http://www.gavindixon.info/index.htm. Acesso em 17/12/2012. FRISH, Walter. Reger’s historicist modernism. In: The Musical Quartely, v. 87, n. 4, p.731-748, winter 2004. GINSBURG, Lev. The history of the violoncello. Hebert R. Axelrod (ed.). Tradutora: Tanya Tchistyakova. New Jersey: Paganiniana Publications, 1983.

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GITTER, Benjamin David. Fugal writing for atypical instrumentation: how Johann Sebastian Bach and Max Reger approached the compositional challenge of composing a fugue for unaccompanied cello. Tese (Doctor of Musical Arts), University of Missouri-Kansas City, 2009. GRIM, William E. Max Reger: A bio-bibliography. New York: Greenwood Press, 1988. HUDSON, Richard. “Sarabande”. In: SADIE, Stanley. The New Grove Dictionary of music and musicians. New York: Oxford University Press. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/. Acesso em: 04 março 2011. JOHNSTONE, David. The late-romantic German cello school – an introduction to Julius Klengel and his compositions. In: Articles, Vlc.16, [sd]. Disponível em: <http://www.johnstone-music.com>. Acesso em: 25 março 2011. LEDBETTER, David, FERGUSON, Howard. “Prelude”. In: SADIE, Stanley. The New Grove Dictionary of music and musicians. New York: Oxford University Press. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/. Acesso em: 25 março 2011. LITTLE, Meredith., JENNE, Natalie. Dance and the music of J. S. Bach. Bloomington: Indiana University Press, 1998. NAGLEY, Judith., ANDERSON, Martin. “Reger (Johann Baptist Joseph) Max (Maximilain)”. In: SADIE, Stanley. The New Grove Dictionary of music and musicians New York: Oxford University Press. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/. Acesso em: 25 março 2011. TODD, Richard. The sarabandes from J. S. Bach’s Six Suites for Solo Cello: an analysis and interpretive guide for the modern guitarist. Tese (Doctor of Musical Arts) University of North Texas, May, 2007.

Notas

1 The contrapuntal aspect of much of Reger’s music is a particularly distinguishing feature. Probably no other composer of the late romantic era was influenced as Reger by the music of J. S. Bach. 2 Though he was riding on his chromatic path, to paraphrase his own words, “steadfastly to the left”, he never wanted to cross the border into the new territory of atonality. 3 It is he who forges a modernist language by at once retaining so much of, and yet at the same time relativizing, the musical principles of atonality. 4 Apart from being recognized as fine solo and chamber performers, they were to become the most prominent cello teachers during thirty years of the twentieth century, albeit with very different teaching methods and opinions. One could say that they formed two summits of the German art of the cello. 5 Reger dedicated to Klengel one of his solo suites for violoncello Op. 131, Nº1, and a sonata for cello and piano Op. 116. Reger also frequently performed with the cellist. 6 Embora com data não identificada, é sabido que Klengel também escreveu, já no século XX, uma Suíte para violoncelo solo, em Ré menor, Op. 56. Esta obra, no entanto, não se estabeleceu no repertório do instrumento. 7 The purpose of notating improvisation was generally to provide models for students so an instructive intention, often concerned with a particular aspect of instrumental technique, remained an important part of the prelude. Because improvisation may embrace a wide range of

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manners, styles and techniques, the term was later applied to a variety of formal prototypes and to pieces of otherwise indeterminate genre. 8 All six of Bach’s solo cello suites contain sarabandes, and each is a unique contribution to the literature for that instrument. 9 During the late Baroque era (early 1700s), polyphony on the cello was limited primarily to slower pieces where there was time to overcome the technical challenges involved in sustaining multiples lines of music, such as in the Sarabande from the Suite No.4 in E-flat-major, BWV. 1010 for solo cello by J. S. Bach. 10 His fondness for chromaticism was such that Schoenberg suspected he would soon join the ranks of the atonalists, but for Reger chromaticism was a means for expanding the resources of tonality, not a harbinger of its imminent collapse. 11 The 3/2 meter again suggests a slow, majestic performance. 12 While its first half presents the most obvious use of a conventional sarabande rhythm, the second half presents the clearest departure from the conventional rhythmic pattern. 13 The most intriguingly historicist movement in the suite is the adagio whose form is ABA’-characteristic of a classical-romantic slow movement. 14 They are characterized by an intense, serious affect, though a few are tender and gracious, and are set in slow triple metre (sic) with a strong sense of balance based on four-bar-phrases. 15 Fugues, canons, and non-imitative forms of counterpoint abound in Reger’s ouvre, yet the composer was not a slavish imitator o Bachian contrapuntal practices. 16 The earliest known fugue for solo cello is contained within the Prelude of the Suite No. 5 in C minor, BWV.1011, by J.S.Bach. 17 There are several reasons for the rare appearance of fugues within the solo cello literature. The first and most obvious reason is that the cello is mostly a monophonic instrument, although multiple lines of music can be sustained for short times through the use of double stops and registral transfer. 18 Johann Sebastian Bach (1685-1750) and Max Reger (1873-1916), used similar formal principles resulting in very different pieces of music when approaching the fugue as a genre for solo cello. 19 Reger uses many of the same techniques that were found in Bach’s fugal development. 20 Reger was drawn further back to Bach. The gravity, density and religiosity of Bach appealed to Reger. 21 While each of these works is clearly distinct from Bach, the clarity of line and texture in each aspires throughout to the ideal of the German high Baroque. None of the works comes close to challenging Bach’s pre-eminence in these genres, of course, but they provide a refreshing modern engagement with the language and forms of the early eighteen century, and without the self-conscious stylistic posturing of Stravinsky or his Parisian followers.

Ângela Maria Ferrari, Professora Associada do Departamento de Música da Universidade Federal de Santa Maria é responsável pela implementação do Bacharelado em Violoncelo na instituição. Com bolsa da Fundação CAPES cursou o Doutorado em Artes Musicais – na University of Miami, ganhando o Prêmio “Excellence in Academy” ao final do doutorado. É frequentemente convidada para participar de cursos e orquestras como professora e instrumentista. Nos anos de 2010 e 2011 foi professora convidada do Festival

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de Música de Londrina, PR. Em 2003 foi agraciada com a “Bolsa Virtuose” dada pelo Ministério da Cultura frequentando assim a Classe de Violoncelo do renomado solista e professor búlgaro Anatoly Krastev na Academia Nacional de Sofia – Bulgária Felipe Avellar de Aquino é Professor Associado do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, onde leciona Violoncelo e Música de Câmera. Foi fundador e primeiro Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB. Realizou curso de Mestrado em Música (Violoncelo) na Louisiana State University e Doutorado na Eastman School of Music (Nova York), como também é membro da The Honor Society of Phi Kappa Phi e da Society of Pi Kappa Lambda. Atua como camerista e solista, tendo se apresentado no Brasil, Argentina, Itália, Estados Unidos e Canadá. Além das atividades de performance, tem desenvolvido pesquisas sobre a técnica e literatura violoncelística, com artigos publicados nas Revistas Opus, Per Musi e The Strad (Inglaterra).

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DOI: 10.1590/permusi2015a3110

As pesquisas históricas na interpretação de Chopin Nahim Marun (Instituto de Artes UNESP, São Paulo, SP) [email protected] Resumo: As pesquisas sobre performance historicamente informada se concentraram inicialmente em obras do século XVII e XVIII, trazendo novas ideias aos processos analíticos tradicionais e impulsionando novas abordagens interpretativas desses estilos. Entretanto, ao invés de apontar resultados unívocos e precisos, tais estudos multiplicaram as possibilidades de releituras musicais e originaram as mais diversas vertentes interpretativas. As investigações aportaram, pouco à pouco, aos estilos musicais que se sucederam ao barroco e ao clássico, chegando ao século XIX. Neste artigo, trataremos de alguns dilemas interpretativos decorrentes da diversidade editorial na música para piano de Frédéric Chopin (1810-1849). A ampla divulgação das suas primeiras edições na internet, juntamente com as possibilidades de performance trazidas pelas pesquisas históricas, expandiram as referências estabelecidas para sua música e trouxeram mais flexibilidade interpretativa a alguns parâmetros musicais, como direções fraseológicas, escolhas das articulações, timbre instrumental, dedilhados, pedais, rubati e ornamentações. Palavras-chave: processos editoriais em Frédéric Chopin; performance historicamente informada do período romântico; interpretação pianística contemporânea. The historical researches on Chopin’s performance Abstract: The researches on historically informed performance were, at first, focused on seventeenth- and eighteenth- century works; hence they brought new thoughts on traditional analytical procedures, and also stimulated new performances of these styles. However, instead of pointing unambiguous and precise results, such studies have multiplied the possibilities of musical interpretation. The researches on these subjects have reached, little by little, to the domains of other musical styles. In this article, we shall deal with some performance issues brought by the number of music editions on Frédéric Chopin (1810-1849). The unrestricted access to the first editions at internet, altogether with the possibilities brought by historical approaches have expanded the established guidelines for his music and have brought more flexibility to some topics of their performance practice, such as phrase structuring, touches, tone, fingering, pedaling, rubati and ornamentations. Keywords: editorial procedures in Frédéric Chopin; romanticism’s historical informed performance; contemporary piano performance.

1 – Os instrumentos de época O jornal norte-americano International Herald Tribune, vinculado ao New York Times, informou na edição de 11 de julho de 2010 que as cidades de Paris, Varsóvia e Pequim foram as cidades que mais festejaram o bicentenário de nascimento de Frédéric Chopin. A Cité de la Musique e a Salle Pleyel, duas prestigiosas salas de concertos de Paris, comemoraram a efeméride incluindo nas suas programações o ciclo integral da obra de Chopin para piano solo, entre os dias 21 de março e 06 de junho de 2010. O principal diferencial dessa maratona musical foi o emprego, em todas as apresentações, de pianos autênticos do século XIX fabricados pela Maison Pleyel, a marca preferida do compositor polonês. Vários intérpretes representativos da atualidade participaram: Abdel Rahman el Bacha, Dang Thai Son, Pierre Goy, Edna Stern, Vanessa Wagner, Nelson Goerner, Kevin Kenner, entre outros.

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Na ocasião, foram divulgados vários registros que adotaram linhas de pesquisa relacionadas à performance historicamente informada, à exemplo do pianista Alain Planes: Chopin Chez Pleyel, pelo selo Harmonia Mundi, 2009. Segundo informações do libreto do CD, além de empregar um instrumento Pleyel de 1836, o intérprete reproduziu exatamente a ordem e as obras de um recital realizado pelo próprio compositor e estudou em detalhes, vários tratados sobre a técnica chopiniana, objetivando revelar uma abordagem diferenciada do uso dos rubati e dos ornamentos. Em 1999, o selo Sony lançou os dois concertos para piano e orquestra do compositor, com o pianista Emanuel Ax e Sir Charles Mackerras frente à Orchestra of the Age of Enlightenment. O solista utilizou-se de um instrumento fabricado pela Maison Erard, a principal concorrente da Maison Pleyel, no século XIX. Outro exemplo dessa tendência surgiu na “Oitava Competição Internacional para Jovens Pianistas Chopin Golden Ring”, que apresentou em seu edital uma nova categoria para a performance historicamente informada. As provas deste grupo foram executadas em um piano histórico And Wittenz e se realizaram em outubro dos anos de 2012 e 2013, na Eslovênia. A reconhecida opção de Chopin pelos instrumentos Pleyel, “apontava para algo muito evidente: a resistência ao mecanismo de escape duplo.” (CHIANTORE, 2001, p.308). Tanto Ignaz Pleyel (1750-1819) quanto seu filho, Joseph Etienne Camille Pleyel (1788-1855), fabricavam seus pianos com mecanismo de escape simples, que possibilitavam a obtenção de uma sonoridade ressonante, doce e transparente. Os Pleyel incorporaram as mudanças mecânicas aos seus pianos em um ritmo bem mais lento que as demais marcas europeias. Ainda sobre a predileção quanto aos mecanismos e sonoridades destes pianos, é interessante lembrar a declaração que Chopin fez a Liszt (HINSON, 1985, p.180): “quando eu estou indisposto, eu toco em um piano Erard, pois nele o timbre é pré-fabricado; mas quando estou suficientemente disposto e forte para procurar meu próprio timbre, eu preciso de um Pleyel”. Chopin tocou pouco para o grande público e as poucas dezenas de apresentações do compositor se limitaram a soirées privadas, em salões de dimensões reduzidas, onde não era absolutamente necessário um instrumento com grande amplitude sonora. De acordo com o aluno e assistente de Chopin, Karol Mikuli, “Chopin tocava com toque delicado, evitando acentos fortes e estridentes [...] mas seu toque era naturalmente profundo e ressonante.” (EIGELDINGER, 1986, p.56). O intuito das gravações que se utilizam dos instrumentos históricos como Pleyel e Erard não é o de substituir ou suplantar as gravações disponíveis no mercado fonográfico, mas sim, o de estimular a imaginação do intérprete para novas possibilidades criativas, como timbres pianísticos e sonoridades. Assim sendo, os conceitos estéticos e interpretativos do romantismo se reescrevem, aportando novas leituras.

Não devemos confundir a essência destilada de uma ideia que é infinita, com sua aplicação que é finita. A essência da ideia não está sujeita à mudança ao longo do tempos, embora sua aplicação seja variável em função do tempo, da percepção e da compreensão. (BAREMBOIM, 2008, p.50)

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2- A criação musical, as improvisações e o processo editorial Algumas obras do século XVII e XVIII permitiam improvisações de seus intérpretes em alguns parâmetros da composição musical. NEUMANN (1986, p.247) informa que “W. A. Mozart (1756-1791) não tocava os adagios de seus concertos para piano simplesmente como estavam escritos, mas os embelezava com ternura e com muito gosto, e a cada vez diferentemente, seguindo a inspiração do seu gênio”. No início do século XIX, a maioria dos compositores já demandava dos intérpretes uma atenção maior à notação musical. No entanto, o próprio Beethoven, conhecido pela exigência e precisão de sua notação musical1, “não tratava suas edições como invioláveis” (NEWMAN, 1988, p.159). Muito provavelmente, esta flexibilidade foi derivada da sua prática como improvisador. “Os testemunhos sobre a atividade de Beethoven como pianista destacam frequentemente a sua habilidade como grande improvisador” (CHIANTORE, 2010, p.211). Em Chopin, o exercício da improvisação musical foi uma das prováveis causas das discrepâncias editoriais encontradas em seus textos musicais. Seu processo criativo estava sempre em progresso: desde os esboços iniciais às cópias e primeiras edições; todas incluíam alterações originais do compositor. Seus editores têm à disposição inúmeros manuscritos e partituras nos acervos pertencentes aos seus alunos e associados, entre eles: Jane Wilhermina Stirling (1804-1859), Camille Dubois O’Meara (1830-1907), a irmã do compositor Ludwika Jedrzejewicz (1807-1855), o violoncelista Auguste Franchomme (1808-1884), Zofia Zaleska-Rosengardt (1814-1868) e Napoléon Orda (1807-1883) (EIGELDINGER, 1986, p.198-266). CHIANTORE (2010, p.318) afirma que “seus próprios manuscritos diferem de tal modo uns dos outros que é impossível definir a superioridade de uma fonte sobre a outra.” Nos últimos anos, houve acesso ilimitado às primeiras edições on-line, o que além de permitir a análise e a compreensão da obra chopiniana, possibilita uma comparação antes restrita a um grupo de editores e musicólogos.2 Em todas as partes há inúmeras diferenças, como erros corrigidos, texto modificado (omissões, adições e mudanças de notas) e diferenças quanto aos dedilhados, indicações de tempo e caráter, fraseados, articulações e agógicas, instruções díspares para realização dos ornamentos, bem como da dinâmica e da pedalização. Além das discrepâncias entre os manuscritos e as primeiras edições, "muitas vezes, Chopin refazia as partituras para seus alunos mais talentosos, sugerindo variantes de dificuldade notável e também recompunha peças para aqueles alunos de musicalidade mais modesta” (CHIANTORE, 2010, p.317). Vejamos um exemplo prático de algumas dessas diferenças editoriais, na reexposição do segundo tema do primeiro movimento na Sonata op.58 de Chopin: as edições aqui apresentadas são: a Édition de Travail de Alfred Cortot (1877-1962)3 idealizada para a Édition Salabert, a Édition Paderewski e a primeira edição francesa J. Meissonnier, de 1845. Segundo Karol Mikuli (1821-1897)4, aluno e assistente de Chopin, “o próprio compositor removeu o sustenido do Si (quarta nota) da cópia da edição original francesa (J. Meissonnier, Paris) e como resultado esse compasso não corresponde ao c.53 da exposição” (Ex.1). A Édition Salabert publicou a nota Si sustenido entre parênteses, com a seguinte observação de CORTOT (1930, p.19): “Chopin, ele mesmo, adicionou um sustenido antes do Si na edição original francesa” (Ex.2). Ao comparar as duas edições mencionadas com a primeira edição original francesa de 1845, confirmamos a discrepância (Ex.3).

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Ex.1. Chopin. Sonate op.58, 1o mov. c.162-163, Ed. Paderewski, 1972.

Ex.2. Chopin. Sonate op.58, 1o mov. c.163, Ed. Salabert, 1930.

Ex.3. Chopin. Sonate op.58, 1o mov. c.163, Ed. J. Meissonnier, Paris, 1845.

No mesmo exemplo, encontramos outras diferenças: o crescendo não existe na edição Salabert e na edição original francesa; na J. Meissonnier não há indicação de pedal, na edição Paderewski há sinal de soltura do pedal e na edição Salabert podemos interpretar o pedal como legato5. Observemos abaixo, outro excerto no desenvolvimento da mesma sonata (Ex.4 e Ex.5);

Ex.4. Chopin. Sonate op.58, c.97-99, Édition Salabert (Cortot), 1930.

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Ex.5. Chopin. Sonate op.58, 1o mov. c.97-99, Édition Paderewski, 1972.

Podemos notar em apenas três compassos, as substanciais diferenças entre as duas edições. Há contradições em parâmetros diversos, como: notas discrepantes ou “corrigidas”, sinais de dinâmica em diferentes posições, ligaduras omitidas ou acrescentadas, repetições de notas, dedilhados, articulações e mudanças timbrísticas, causadas pela alternância das mãos.

O costume de publicar suas obras separadamente na França, Alemanha e Inglaterra fazia com que [Chopin] produzisse outros tantos manuscritos de uma mesma composição, sem considerar as demais cópias que, em mais de uma ocasião, preparava especificamente como presente ou com outras finalidades. Se fosse uma simples operação mecânica, as cópias seriam idênticas, mas a realidade é outra. As diferenças são várias e afetam importantes detalhes rítmicos, melódicos e harmônicos, como observou apropriadamente Kalberg: Para Chopin era impossível limitar-se a copiar; para ele “copiar “sempre implicava em continuar compondo. A composição era para Chopin um processo aberto. (CHIANTORE, 2010, p.318)

Vejamos à seguir, o mesmo excerto anterior, nas três primeiras edições: a francesa J. Meissonnier, a alemã Breitkopf & Härtel e a inglesa Wessel & Co. Notar as diferenças substanciais de informações musicais entre as cinco publicações (Ex.4, Ex.5, Ex.6, Ex.7 e Ex.8):

Ex.6. Chopin. Sonate op.58, 1o mov. c.96-102, J. Meissonnier, 1a edição francesa,1845.

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Ex.7. Chopin. Sonate op.58, 1o mov. c.94-101, Breitkopf & Härtel, Leipzig, 1a edição alemã, 1845.

Ex.8. Chopin. Sonate op.58, 1o mov. c.96-100, Wessel & Co. 1a edição inglesa, 1845.

Outro exemplo significativo ocorre no segundo movimento, Scherzo, desta mesma sonata. A alteração da nota Ré sustenido para Ré bequadro no c.117, adotado pela primeira edição alemã (Ex.9) e posteriormente pelas edições Paderewski e Salabert, trivializa uma harmonia bastante interessante e expressiva que aparece nas duas primeiras edições francesa e inglesa (Ex.10 e Ex.11).

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Ex.9. Chopin. Sonate op.58, 2o mov. c.116-122, Breitkopf & Härtel, Leipzig, 1a edição alemã, 1845.

Ex.10. Chopin. Sonate op.58, 2o mov. c.116-119, J. Meissonnier, 1a edição francesa,1845.

Ex.11. Chopin. Sonate op.58, 2o mov. c.113-118, Wessel & Co. 1a edição inglesa, 1845.

Podemos inferir nos exemplos citados acima, que o acesso irrestrito às primeiras edições on-line, a maior facilidade de consulta aos tratados da estética romântica, o acesso aos documentos históricos sobre Chopin, juntamente com as memórias e registros dos pianistas e pedagogos, ampliaram consideravelmente as possibilidades de interpretação para o repertório chopiniano. A seguir, veremos outras ambiguidades que ocorrem em diversos parâmetros da performance, tais como dedilhados, fraseados, rubati, pedais, ornamentações, agógicas, mudanças de caráter e tempo, que justificam ainda mais as novas propostas interpretativas. 3 – Aspectos interpretativos e alguns paradoxos 3.1 - Origens do fraseado chopiniano De acordo com SAMSON (1994, p.81), Chopin “se familiarizou com a ópera italiana do inicio do século XIX durante sua formação em Varsóvia e durante suas visitas posteriores à Berlim e Viena”. As numerosas récitas operísticas que aconteciam na Paris da década

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de 1830 consolidaram seu já bem estabelecido entusiasmo pelo assunto. Podemos inferir que a frase musical de Chopin, incluindo sua periodicidade e timbre, foi bastante influenciada pela prosódia e pela declamação poética. O compositor repetia, insistentemente: “É necessário cantar com os dedos!” (SAMSON, 1994, p.81). Chopin orientou sua assistente Vera de Kologrivoff Rubio (1816-1880) a tomar aulas de canto, afirmando que ela deveria se aprimorar no canto se quisesse tocar apropriadamente. Paralelamente, os dois volumes do “Cravo Bem Temperado” de J. S. Bach (1685-1750) eram livros de cabeceira de Chopin, o que justifica sua habilidade ao escrever contrapontos expressivos com diversas linhas melódicas. Segundo CORTOT (1949, rep.2010, p.48), no repertório dos alunos mais avançados de Chopin, figuravam em lugar de honra os referidos Prelúdios e Fugas, que o mestre conhecia perfeitamente e era capaz de tocar sua grande maioria de memória, afirmando que “tais obras não podem jamais serem esquecidas”. A influência bachiana surge e pode ser realçada em diversas obras de Chopin, como veremos, mais à frente, no Ex.13. “A música de Bach se exprime nas mais diversas linguagens estilísticas, mas sua abordagem deve ser renovada à cada interpretação” (BAREMBOIM 2008, p.51). A importância da linha melódica e do contraponto em Chopin é ressaltada na seguinte afirmação de ROSEN (1995, p.85-6): “para Chopin, a linha melódica é mais básica do que a harmonia. Em passagens onde a textura e a harmonia parecem radicais e ambíguas, o contraponto é o agente controlador.” A informação de Rosen pode ser melhor depreendida através das metodologias analíticas desenvolvidas pelo musicólogo Heinrich Schenker (1868-1935)6. Nas coletâneas Chopin’s Studies I e II, editadas pela Universidade de Cambridge, em 1988 e 1994, são apresentados artigos de schenkerianos importantes como Carl Schachter, John Rink, Anthony Newcomb, Jim Samson, entre outros, cujos trabalhos demonstram os diversos níveis hierárquicos presentes na estrutura harmônico-melódica de Chopin. John RINK (1988, p.204) no artigo The Barcarolle: Auskomponierung and Apotheosis analisa o opus 60, desdobrando-o em estrutura principal (background), dois níveis intermediários (middlegrounds) e primeiro plano (foreground). “No primeiro plano há texturas muito contrapontísticas, onde percebe-se o jogo das linhas melódicas estabelecidas nos níveis estruturais mais remotos.” Rink afirma que “Chopin revela sua grande arte composicional na elaboração do nível de primeiro plano (foreground), onde os ritmos, frases, dinâmicas, sonoridades e timbres sopram vida à fundação tonal da sua obra.” (RINK, 1988, p.212). 3.2 - A concepção de tempo e o cantabile chopiniano Segundo SAMSON (1994, p.82), a origem geral da cantilena chopiniana está mais ligada à tradição de Muzio Clementi (1752-1832), Jan Ladislav Dussek (1760-1812) e John Field (1782-1837) que à tradição do pianismo virtuosístico vienense de Wolfgang Amadeus Mozart e Johann Nepomuk Hummel (1778-1837). CHIANTORE (2001, p.326) menciona que, segundo as palavras dos próprios alunos de Chopin, a interpretação do mestre apresentava uma “declamação calma e não apaixonada”. O uso de tais conceitos subjetivos nas práticas interpretativas são inevitáveis, e abrem portas bem-vindas para a liberdade e flexibilidade artísticas. A sensação de tempo, de arrebatamento e de passionalidade transformam-se constantemente, no tempo e no espaço7.

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CONE (1968, p.78-80) observa que “uma das tendências principais dos compositores do século XIX é a ênfase nas forças de contrastes, em detrimento das forças de unificação; fato que não se aplica somente ao tempo, mas também ao material temático, progressões harmônicas, ritmo e caráter”. Segundo sua teoria, no classicismo, o compasso era a maior unidade métrica, enquanto que no romantismo, “e não no estilo precedente, nós poderíamos falar da tirania da frase de quatro compassos”. O musicólogo demonstra, na seção intermediária da Fantasia-Improviso op.66, as aparentes irregularidades da frase romântica como um detalhe de superfície da estrutura fraseológica ordenada em “hiper-compassos” regulares. As ideias analíticas de Cone podem ser aplicadas aos ensinamentos de Chopin, que recomendava que o pensamento interpretativo priorizasse sempre a grande frase. O compositor alertava que as intenções muito curtas atrapalhavam o fluxo musical, o desenvolvimento das ideias e fatigavam a atenção do ouvinte. “O bom intérprete deve cuidar para levantar e sustentar seu pulso, deixando-o cair somente na nota principal, empregando a maior flexibilidade possível durante a performance da frase. Obter essa flexibilidade é uma das tarefas mais difíceis que eu conheço!” (Gretsch-Grewingk, citado por EIGELDINGER, 1986, p.45). Segundo Chopin, “o pulso significa para o pianista o que a respiração representa para o cantor.” (EIGELDINGER, 1986, p.45).

3.3 - Rubato Em uma masterclass, a pianista Yara Bernette (1920-2002) procurou explicar a execução do rubato a um estudante, aludindo-se à imagem de uma balança de dois pratos, que para obter seu equilíbrio, necessita de um sistema de contrapesos. Assim sendo, um pequeno acellerando deveria ser compensado por um breve ritardando, e vice-versa. A imagem pode ser esclarecedora para uma explicação de efeito rápido e simples, mas na verdade, o rubato chopiniano está atrelado a elementos formais e de caráter, próprios de cada obra: o rubato aplicado à uma Mazurka será bastante diferente daquele usado para interpretar uma Balada ou para a concepção de uma obra extensa, em forma Sonata, por exemplo. Além dos aspectos formais e de caráter, a medida do rubato também relaciona-se com os elementos subjetivos da personalidade do intérprete, sua educação musical, humanística, seu momento artístico, assim como as influências exercidas pela filosofia e estética de sua época. EIGELDINGER (1986, p.49) aponta para uma solução desvelada da história. De acordo com observações de alunos de Chopin, o rubato deveria ser realizado “mantendo-se estritamente o tempo da mão esquerda, quando da execução do acompanhamento, enquanto que a linha melódica flutuaria, com liberdade de expressão na mão direita.”

Nos tão decantados tempo rubato, uma mão – que tenha o acompanhamento – sempre toca em tempo estrito, enquanto que a outra, cantando a melodia, às vezes com hesitação, com indecisão, com crescente animação, antecipando uma espécie de impaciência veemente ou declarações apaixonadas, segue seu curso mantendo a liberdade de expressão dos grilhões da regularidade estrita. (Mikuli, citado por ROSENBLUM, 1991, p.382)

A cantora, pianista, compositora e amiga de Chopin, Pauline Viardot-Garcia (1821-1910) afirmou que esse procedimento é extremamente difícil de executar e requer do pianista uma completa independência motora. “É cem vezes mais fácil simplesmente manter-se o tempo, com as duas mãos juntas”. Chopin afirmava que para o pianista, “a mão esquerda

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funcionaria como um regente de orquestra”. Jan Kleczyńsky (1837-1895) afirma que muitas das passagens da Berceuse op.57, do Nocturne op.32 no2 e do Impromptu em Láb op.29 deveriam ser interpretadas desta maneira. (EIGELDINGER, 1986, p.51). Testemunhos dos alunos de Chopin informam que o compositor não permitia grandes digressões do tempo: “devemos nos lembrar que Chopin era contra os ritardandi exagerados ou fora do lugar.” (HOLLAND, 1985, p.45). Inversamente, STRAUSS (1983, p.25) afirma que Chopin desejava que seus ornamentos fossem tocados com liberdade e que soassem como uma improvisação, à la cadenza e declarou que, em geral, “sua música não deve ser tocada com pedantismo, mas sim, com espontaneidade, elasticidade e flexibilidade.” A tentativa de mesurar-se o rubato chopiniano em uma frase musical poderá comprometer seu frescor e naturalidade, conferindo-lhe um caráter artificial. Tal atitude significaria coibir a flexibilidade emocional do pianista e ignorar sua conexão ao momento único da interpretação musical. Concluiremos as reflexões deste item com a observação de BAREMBOIM (2008, p.53) “toda interpretação musical está fundamentada sobre uma infinidade de possibilidades à nossa disposição. A partitura é substancia final, a obra terminada; mas sua interpretação tem uma expressão temporária, finita, que acontece no tempo, com começo e um fim”. 3.4 - Dedilhado Segundo ROSENBLUM (1991, p.213) dois tipos de dedilhados muito utilizados por Chopin e Schumann, foram herdados de Beethoven e Clementi: “o primeiro é a passagem de um dedo mais longo sobre outro menor (como 3 sobre 4 ou 4 sobre 5 também denominado überschlagen) ou um dedo menor sob um dedo mais longo (como 5 sob 4 ou 4 sob 3 também denominado unterschlagen).” O Ex.12 mostra esse tipo de dedilhado.

Ex.12. Chopin. Étude op.10 no2, c.7-8, Édition Paderewski, 1949.

O segundo tipo, continua ROSENBLUM (1991, p.214), consiste em se “deslizar um dedo para uma tecla vizinha para obtenção do legato, de tecla branca para branca, de tecla branca para preta ou ainda de tecla preta para branca (esse ultimo, mais simples e de uso predominante durante o inicio do século XVIII)”. Karol Mikuli citou esse dedilhado, muito utilizado por Chopin: “ele frequentemente usava o mesmo dedo para tocar graus conjuntos - e isso não somente quando escorregava da nota preta a branca - sem a mínima quebra da continuidade da linha melódica.” (EIGELDINGER, 1986, p.46). Segundo ROSEN (1995, p.365), “esse tipo de dedilhado sinaliza uma ênfase musical específica, que aponta para uma maior expressividade e um ligeiro rubato.” A observação

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refere-se ao tenuto, do verbo italiano tenere; cujo significado é segurar, manter. Assim sendo, o tenuto pode, tanto alterar a dinâmica quanto a duração de uma ou mais notas, enfatizando-as. Sabemos, no entanto, que a escolha de um dedilhado irá depender da vertente técnica de cada pianista, do posicionamento de suas mãos, dos pulsos e cotovelos em relação ao teclado e também por fatores anatômicos individuais, como o formato das mãos, sua amplitude, flexibilidade, do tamanho e formato dos dedos. Alguns dedilhados tendem à padronização, como aqueles das passagens do polegar, estabelecidos nas escalas diatônicas, arpejos ou notas duplas, como terças, sextas e oitavas. Segundo NEUHAUS (1971, p.146), observando-se grandes pianistas, “constata-se que seu toque, seu fraseado e seu jogo de pedais são tão diferentes como seu dedilhado, o que é um fato muito natural. A execução é sempre um ato de criação, portanto ela é individual e única.” As disparidades nas sugestões editoriais dos dedilhados em Chopin podem ser observadas nos Ex.4 e Ex.5 deste artigo, mostrados acima. Lembremos que Claude Debussy (1862-1918), no prefácio dos seus Douze Études pour Piano (1915), afirma não existir nenhum bom dedilhado pré-estabelecido. “Um pianista que conhece música e seu instrumento, chegará facilmente, ele mesmo, à mesma conclusão de Debussy. A escolha do dedilhado ideal é resultado de uma boa escola, de experiência e de instinto.” NEUHAUS (1971, p.156) 3.5 - Pedal O uso do pedal sincopado, ou legato - que se contrapõe ao pedal rítmico, muito em voga no classicismo - só foi claramente descrito entre 1860 e 1870. “Contudo, indicações sucessivas de pedal, sem sinais de solturas, são evidências do uso do pedal sincopado, e já ocorrem em algumas obras românticas da década de 1830, em algumas obras de Chopin e com maior frequência, em Liszt” (ROSENBLUM, 1991, p.106).

De acordo com as edições Henle e Schott dos Noturnos, há oito deles onde encontramos exemplos de pedal sem indicação de soltura em nenhuma das fontes. Muitas dessas indicações são sobre as ornamentações elaboradas (op.9 no2, c.32-33) ou conectam passagens de transição ou notas do próximo tema (op.15 no1 c.47-49), e algumas ocorrem onde qualquer respiração no uso do pedal causaria uma diminuição da intensidade musical (op.48 no2 c.98-101) (ROSENBLUM, 1991, p.431).

O pianista Charles ROSEN (1995, p.298) afirma que “as indicações de pedal de Chopin são sempre muito carregadas”. No entanto, o pianista Antoine François Marmontel (1816-1898), que conheceu o compositor pessoalmente, contrariou a informação:

Chopin usava os pedais maravilhosamente. Às vezes, o mestre os usava agrupados para obter uma sonoridade doce e velada e mais frequentemente ainda, ele os usava separadamente para interpretar passagens brilhantes, para sustentar harmonias, para aprofundar os baixos ou para timbrar e soar acordes. (EIGELDINGER, 1986, p.58)

Concordando com as informações de Marmontel, a edição Paderewski, assinala que “as marcas de pedal de Chopin são geralmente cuidadosas, precisas e em alguns lugares delicadas, o que muitas vezes produz um efeito pianístico totalmente novo”. HINSON (1985, p.179) também aponta que “Chopin era muito cuidadoso nos seus manuscritos ao indicar suas intenções para o uso do pedal. Infelizmente, muitos dos seus editores

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negligenciaram suas diretrizes.” Vejamos à seguir, um excerto que demonstra uma notável especificidade nas anotações de pedal para o Prélude op.28 no5 (Ex.13), criando uma espécie de hemíola de pedais.

Ex.13. Chopin. Prélude op.28 no5, c.1-12. G. Henle Verlag, 1968.

As observações de Charles Rosen sobre as indicações carregadas dos pedais de Chopin podem ser relevadas, ponderando-se sobre as características essenciais dos pianos da época de Chopin:

As indicações originais de pedal de Chopin criam mais mistura de harmônicos nos instrumentos modernos que nos instrumentos da sua época, e isso deve ser levado em consideração pelo intérprete hoje em dia. Mas, o fato isoladamente não justifica ignorar suas diretrizes. O pianista que não considerar as indicações de Chopin está deixando de lado um elemento importante da intenção composicional. (HINSON, 1985, p.195)

O som dos pianos do início do século XIX tinham uma aura e uma clareza que se perdeu no som mais redondo e menos definido dos pianos modernos. Essas diferenças em som precisam ser consideradas quando estamos pedalizando obras escritas durante o século XVIII e XIX. (BANOWETZ, 1985, p.3)

Por outro lado, a opção por um pedal mais econômico, contrariando as indicações de Chopin, poderia ser justificada por duas razões: uma excessiva ressonância dos pianos Pleyel de escape simples e sua consequente adaptação aos pianos e ouvidos modernos, ou ainda um eventual desejo do intérprete de conferir certo caráter bachiano a este Preludio. Devemos, no entanto, estar conscientes de uma particularidade importante da notação do pedal de Chopin, que aparece em alguns compassos finais de suas composições:

Chopin frequentemente omitia o sinal de soltura do pedal no final de suas obras. Podemos observar esse hábito nos Préludes op.28, números 1, 6, 7, 9, 11, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24. Chopin parece deixar a soltura do pedal à critério do bom senso do intérprete. (HINSON, 1985, p.193)

Vejamos uma constatação deste fato no Prélude op.28 no6 (Ex.14 e Ex.15):

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Ex.14. Chopin. Cópia do Manuscrito. Prélude op.28 no6, c.22-26. (1835-39). In: BANOWETZ, 1985, p.183.

Ex.15. Chopin. Prélude op.28 no6, c.22-26. G. Henle Verlag, 1968.

A edição Henle reproduz a notação do manuscrito. No entanto, a edição Paderewski acrescenta deliberadamente um sinal de soltura de pedal, ao final da obra. Almejando a fidelidade ao texto musical, um intérprete poderá sentir-se compelido à sustentar o pedal sem interrupção, nos quatro compassos finais do referido Prelúdio op.28 no6. (Ex.16):

Ex.16. Chopin. Prélude op.28 no6, c.22-26. Edition Paderewski, 1990.

Vejamos outro excerto em duas edições diferentes, com discrepâncias na notação de pedal e no fraseado musical. O fato poderá modificar a compreensão do ritmo fraseológico e alterar consideravelmente sua intenção interpretativa (Ex.17 e Ex.18):

Ex.17. Chopin. Prélude op.28 no11, c.23-27. G. Henle Verlag, 1968.

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Ex.18. Chopin. Prélude op.28 no11, c.23-27. Edition Paderewski, 1990.

NEUHAUS (1971, p.158) observa: “eu toco oitenta por cento de toda minha música com meio pedal ou um quarto de pedal e vinte por cento, ou mesmo menos, com pedal inteiro.” A sugestão pode ser utilizada na abordagem dos longos pedais do Quarto Scherzo op.54 (Ex.19):

Ex.19. Chopin. Scherzo op.54, c.609-628. Edition Paderewski, 1988.

Nos compassos 609 e 614-16, nota-se outro procedimento usual em Chopin: o pedal sustentado nas pausas para criar-se um efeito cumulativo de harmônicos. No mesmo exemplo, nos compassos 617-18, também percebemos a aplicação do pedal simultaneamente com o toque staccato.

Deve-se tocar notas em staccato pedalizadas com o mesmo toque de quando as tocamos sem pedal. Notas em staccato com pedal têm um timbre levemente diferente do que as mesmas notas tocadas em legato, com pedal. (HINSON, 1985, p.193-195)

É importante lembrar que Chopin implantou sua marca na estética do pianismo romântico-impressionista francês, onde o pedal não só tem importância capital na criação de uma

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ambiência plena de ressonâncias e harmônicos, mas também está intimamente ligado à estruturação formal e estética de cada obra. CORTOT (1949, rep.2010, p.99-109) enaltece a “magia desta linguagem harmônica aérea, flexível e penetrante” que Chopin deixou na personalidade musical francesa, influenciando notadamente a música de Gabriel Fauré (1845-1924), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937). Vejamos um exemplo que, segundo HINSON (1985, p.185) é um dos melhores exemplos do uso do pedal longo, de reverberação resoluta e grande intensidade expressiva (Ex.20):

Ex.20. Chopin. Prélude op.28 no16, c.1-4. G. Henle Verlag, 1968.

Segundo HINSON (1985, p.194) “o pedal pode ser usado inteiramente em escalas ascendentes, quando são sustentadas por material harmônico, como é o caso das escalas do Prélude op.28 no24”. Chopin ocasionalmente usou pedal em longas escalas descendentes, como no caso da Barcarolle op.60 (Ex.21). Notar que a anotação do pedal impressa na primeira edição francesa (Ex.22) é fiel ao manuscrito pesquisado, mas a edição Paderewski desloca o sinal de pedalização original e não considera a articulação do fraseado, após o Fá# final da escala descendente (Ex.23).

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Ex.21. Chopin. Manuscrito Barcarolle op.60, c.115-116, 1845-46. (BANOWETZ, 1985, p.192)

Ex.22. Chopin. Barcarolle op.60, c.115-116, Brandus & Co. Paris (1a edição francesa,1846).

Ex.23. Chopin. Barcarolle op.60, c.115-116. Édition Paderewski, 1977.

Vejamos a seguir, algumas considerações a respeito do uso do pedal esquerdo - una corda - em Chopin. Como regra geral, NEUHAUS (1971, p.166) recomenda o uso do “pedal una corda somente em grandes períodos e frases musicais completas; em especial em momentos onde haja mudanças específicas de timbre.” O pedagogo desaconselha o uso de una corda para obtenção da sonoridade p ou pp. No entanto, esse conceito genérico não se aplica incondicionalmente à música de Chopin. “Embora Chopin nunca

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tenha indicado o uso do pedal una corda, seria incorreto concluir que ele nunca deve ser utilizado em suas obras” (HINSON, 1985, p.181). BANOWETZ (1985, p.115-121) sugere algumas exceções para flexibilizar essa regra: em mudanças súbitas da harmonia, como nos compassos 32 e 33 do Ex.24; em notas únicas de finais de frase; em transcrições, para obtenção de uma maior intensidade e expressividade do discurso musical; ou para realçar as diferenças timbrísticas entre o acompanhamento e a melodia, alternando-se os dois pedais (Ex.25).

Ex.24. Chopin. Nocturne op.9 no1, c.30-35. Édition Paderewski, 1979.

Ex.25. Chopin. Étude op.25 no7, c.29-31. Édition Paderewski, 1987.

Segundo Maurice Hinson, somente no final do século XX, começaram a surgir novas edições que consideraram, com precisão, as indicações originais de pedal de Chopin:

As edições Henle e Vienna Urtext traçaram bons passos nesta direção, assim como a Norton Critical Scores nos Préludes op.28. Novas edições mais e mais confiáveis estão sendo publicadas pela Edition Peters, Leipzig, editadas por Paul Badura-Skoda e Thomas Higgins e gradativamente se disponibilizam no mercado editorial. (HINSON, 1985, p.179)

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3.6 - Ornamentação O pianista Paul Badura-Skoda sugere três princípios para se compreender a ornamentação:

Primeiro, um ornamento deve embelezar, o que significa que ele deve ser belo e agradável; segundo, deve haver uma relação harmoniosa entre o ornamento e o objeto embelezado, e assim ele deve ser leve, ou seja, sem peso. Um colar não deve ser maior que o corpo que ele adorna; terceiro, embora a aplicação de um ornamento deva ser regulado pela tradição e convenções composicionais, ela também requer uma certa liberdade. Se um tirano ordenar à todas as mulheres o uso da mesma joia, ela não será mais uma joia, mas um uniforme. (SKODA, 1993, p.253)

Segundo Pauline Viardot-Garcia, (EILGELDINGER, 1986, p.58) o trinado habitual de Chopin (Ex.26) deveria iniciar-se pela nota superior. A informação pode ser justificada pela reverência que o compositor dedicava à música de Johann Sebastian Bach, “cujos ornamentos começam geralmente pela nota superior” (TURECK, 1960, p.8). Por outro lado, devemos considerar a grande influência artística do pianista e compositor Jan Nepomuk Hummel em Chopin e em seus contemporâneos. Na terceira parte do seu método Escola Completa Teórico-Prática da Execução Pianística, desde as Primeiras Instruções até o Grau Mais Alto de Perfeição (1828), Hummel “traz uma descrição detalhada dos ornamentos, que vem encabeçada por uma moderníssima proposta: começar os trinados com a nota real” (CHIANTORE, 2001, p.242)8. Podemos coligir que estamos abordando um período histórico de transição na prática da performance dos ornamentos. O assunto estava, na época, sendo discutido e abordado de diversas maneiras, entre os compositores e intérpretes. Instaura-se desse modo, mais uma ambiguidade nas diretrizes para realização desses parâmetros interpretativos na obra de Chopin, fato que se multiplica em várias interpretações autorizadas. Sobre a realização dos trinados, escreve Viardot-Garcia:

Quando os trinados são precedidos por uma nota pequena - de mesma altura da nota principal – isso não quer dizer que tal nota deva ser repetida, mas que o trinado iniciar-se-á pela nota principal e não, como usualmente, pela nota superior.” (EIGELDINGER, 1986, p.58-9).

Ex.26. Chopin. Nocturne op.55 no2, c.1-2. Edition Paderewski, 1979.

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A norma apresentada por Viardot não é unanimidade nas gravações pesquisadas, demonstrando que a personalidade artística do intérprete flexibiliza as normas históricas e contribui para a diversidade da interpretação9. Ainda conforme instruções da edição Paderewski, todos os ornamentos, sejam eles apoggiaturas, mordentes, trinados, grupetos ou arpejos devem ser tocados “na cabeça” do tempo. Assim sendo, a duração do ornamento será subtraída da duração da nota principal, instrução que foi observada na maioria das gravações. Chopin era um verdadeiro mestre da ornamentação, tanto ao compor como ao tocar. Ele conhecia exatamente a função de cada ornamentação, seja ela rítmica, melódica ou harmônica:

Chopin explorava o uso dos ornamentos até o mais alto grau e o pianista que interpreta sua obra precisa ter conhecimento que Chopin escreveu seus ornamentos para fins específicos. O instrumentista precisa estar ciente da execução dos ornamentos, suas exceções e estar apto a realizá-los musicalmente. (MAC CABE, 1984, p.212)

Os fundamentos estéticos da ornamentação, cadências, fraseados e dramatização do bel-canto foram levados ao apogeu artístico por compositores como Gioachino Rossini (1792-1868) e Vincenzo Bellini (1801-1835), e se converteram em inspiração fundamental para a escola pianística chopiniana. As bases teóricas para o entendimento da estética vocal italiana, seus elementos e transformações entre 1650 e 1900, podem ser consultadas nos tratados Opinioni de’ Cantori Antichi e Moderni, o Sieno Osservazione sopra il Canto Figurato (1723) de Pier Francesco Tosi (1653-1732), Pensieri e Riflessioni Pratiche sopra il Canto Figurato (1777) de Giovanni-Battista Mancini (1714-1800) e o Traité Complet sur l’Art du Chant (1840), de Manuel Patricio Rodríguez Garcia (1805-1906) (PACHECO 2006, p.27-46). 4 - Conclusões As pesquisas históricas em práticas interpretativas do período romântico incluem vários conhecimentos provenientes de Chopin, de seus alunos e de seus contemporâneos. A pluralidade de informações contida nestes estudos flexibilizaram conceitos e provocaram mudanças profundas nos padrões interpretativos atuais. A performance musical daquele período estava fortemente vinculada às particularidades das manufaturas de seus instrumentos, cujas diferenças mecânicas e timbrísticas ainda eram bastante consideráveis durante o romantismo. Tal fato valida uma importante tendência da interpretação e análise atuais, que entende que algumas destas normas estéticas e musicais românticas são adaptáveis à individualidade dos seus intérpretes, levando-se em consideração seu momento, sua época e seu instrumento. Constatou-se também que uma única referência editorial não corresponde às pretensões musicais de Chopin. Os conflitos de informações contidos nas primeiras edições da obra do compositor representam um sério dilema para seus editores; mas por outro lado, se tornam um instigante desafio interpretativo para os intérpretes e musicólogos. As diferenças destas primeiras edições vão desde as muito evidentes, como discrepâncias entre notas e ritmos que transformam o sentido contrapontístico e harmônico; até as variações mais sutis, mas não menos importantes, como o posicionamento das ligaduras de fraseado, dos dedilhados, ornamentações, articulações, pedais, dinâmicas e rubati.

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Portanto, infere-se que as interpretações da obra de Chopin podem variar sensivelmente, tanto por suas adaptações individuais, instrumentais e estéticas, como por suas notáveis diferenças editoriais. Forma-se, portanto, uma rede de possibilidades que suscitam leituras diversas, capazes de evidenciar as influências estilísticas herdadas do passado ou de apresentar as inovações sonoras de um compositor à frente de seu tempo. Conclui-se que a objetividade e a subjetividade coexistem na escrita musical chopiniana e nas suas diversas interpretações, originando camadas conceituais interdependentes. O atual dinamismo das pesquisas históricas flexibiliza as informações e os conhecimentos adquiridos, cria alguns paradoxos, mas também transforma muitos paradigmas. A constante reinvenção interpretativa na música de Chopin originou-se nas próprias ideias e improvisações do compositor, transformou-se pelas opiniões e edições de seus alunos e vem se confirmando até os dias de hoje, pela diversidade da produção artística de várias gerações de pianistas. Notas 1 Conforme declaração do compositor à seu aluno Carl Czerny (1791-1857) em 1816 (NEWMAN, 1988, p.159). 2 As primeiras edições das obras de Chopin podem ser acessados no site Chopin First Editions On Line http://www.cfeo.org.uk/jsp/browsecollection.jsp, acesso em 2 de junho de 2014. 3 Alfred Cortot estudou no Conservatório de Paris com Émile Descombes (1929-1912), que segundo alguns estudiosos, foi um dos últimos alunos de Chopin. O pianista foi um grande especialista na obra do compositor polonês e adquiriu vários dos seus manuscritos em Londres em 1936, além de ter gravado muitas das suas obras para piano (SCHONBERG, p.406-7). 4 A informação faz parte das notas de programa da Édition Paderewski (1972, p.132). 5 Consultando-se registros fonográficos, observamos que as artistas Elizabeth Leonskaya (Teldec, 1989) e Martha Argerich (Deutsche Grammophon, 1974, 2010) optaram pelo Si bequadro em suas interpretações. 6 Heirich Schenker estudou com Karol Mikuli, assistente de Chopin, em Lemberg, hoje Lviv, Ucrânia (SAMSON, 1985, p.228, n.53). 7 Interessantes concepções de tempo e liberdade musical aparecem expressas na correspondência entre Edward Steuermann (1892-1964) e Michael Gielen (1927-). Steuermann foi pianista, compositor e professor e se destacou como intérprete notável do repertório produzido pela Segunda Escola de Viena, mas também foi importante intérprete de Chopin. Seu sobrinho, Michael Gielen, tornou-se maestro, é especialista na obra de Gustav Mahler (1860-1911) e foi grande divulgador da música de seu tempo. Em 06 de junho de 1942, Gielen, que na época contava com quinze anos e habitava à Buenos Aires, escreveu ao seu tio, indagando sobre detalhes interpretativos das seis pequenas peças pós-românticas que formam os Klavierstücke op.19 de Arnold Schoenberg (1874-1951). Em 24 de julho de 1942, Steuermann respondeu: “Em relação à interpretação, você me pergunta se deve tocar estritamente à tempo, ou com liberdade. É difícil responder, a mais de seis mil milhas de distância e sem realmente saber o que você entende por a tempo e por liberdade”. Inquirido sobre qual a medida metronômica da primeira peça, Steuermann respondeu: “Eu começaria a primeira peça com a colcheia mais ou menos igual a 100. (♪ =100, pelo menos hoje (sic), em Santa Mônica, Califórnia. Em Buenos Aires pode ser diferente e isto não é uma piada).” (Carta cedida pelo Prof. Dr. Amilcar Zani, responsável pelo projeto Vida e Arte na coleção Clara e Edward Steuermann, ECA-USP). 8 Os trinados executados por Arthur Rubinstein (1887-1982), quando não precedidos de apoggiatura, começam frequentemente pela nota real. Aqueles executados por Guiomar Novaes (1894-1979) e por Claudio Arrau (1903-1991) iniciam-se pela nota superior em todas as gravações pesquisadas. 9 Arthur Rubinstein (RCA Victor, 1949/1950) realiza o trinado do Ex.23, repetindo a nota real simultaneamente com o baixo. Claudio Arrau, (Philips, 1978) começa com a nota superior e toca o baixo com a primeira nota da apoggiatura, ou seja, com a nota Dó.

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Partituras de primeiras edições (Download realizado no site Chopin First Editions Online, em 2 de junho de 2014. http://www.cfeo.org.uk/apps/) CHOPIN, Frédéric. Barcarolle op.60. Paris: Édition J. Meissonnier,1846. ________. Sonate op.58. Paris: Édition J. Meissonnier,1845. ________. Sonate op.58. Leipzig: Édition Breitkopf & Härtel, 1845. ________. Sonate op.58. London: Édition Wessel & Co. 1845. CDs CHOPIN, Frédéric. Argerich plays Chopin. Martha Argerich. Germany: Deutsche Grammophon, 1974, remast.2010, 1 CD. _______. Concertos. Arthur Rubinstein. New York: RCA Victor, 1958, 1 CD. _______. Concertos. Guiomar Novaes. New York: Vox Legends, 1960, 2 CDs. _______. Chopin Chez Pleyel. Alain Planes. Paris: Harmonia Mundi, 2009, 1 CD. _______. Concertos. Emanuel Ax, Sir Charles Mackerras, Orchestra of the Age of Enlightenment. USA: Sony Classical, 1999, 2 CDs. _______. Études op.10 & op.25. Claudio Arrau. USA: EMI Records, 1957, 1 CD. _______. Nocturnes. Arthur Rubinstein. New York: RCA Victor, 1949/1950, 2 CDs. _______. Nocturnes. Claudio Arrau. New York: Philips, 1978, 2 CDs. _______. Sonaten & Fantasien. Elisabeth Leonskaja: Germany: Teldec, 1989, 1 CD. Nahim Marun recebeu diversos prêmios por sua carreira artística, entre eles, o Prêmio Melhor Solista do Ano da APCA - Associação Paulista dos Críticos de Arte. Suas gravações no Brasil e Itália receberam o Diapason d’Or, o Prêmio Bravo! de Cultura - Melhor CD de Música Erudita de 2006 e foram selecionadas entre as melhores do ano pela Iberian and Latin Music Society de Londres. Concluiu Mestrado em Performance pelo The Mannes College of Music - New School for Social Research de New York com bolsa CAPES, Doutorado em Música pela UNICAMP e Pós-Doutorado pela Université Paris-Sorbonne (Paris IV) com bolsa FAPESP. Seus principais mentores de piano foram Isabel Mourão no Brasil e Grant Johannesen nos Estados Unidos. Estudou matérias teóricas e composição com Koellreutter no Brasil. Professor efetivo de piano dos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP de São Paulo. Publicou os livros Revisão Crítica das Canções de Villa-Lobos, pela Editora Cultura Acadêmica e Técnica Avançada para Pianistas, pela Editora da UNESP.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3111

Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos: considerações sobre um processo interpretativo Daniel Ribeiro Medeiros (UFPel, Pelotas, RS) [email protected]

Resumo: Este trabalho apresenta uma interpretação da peça para violão solo Prelúdio nº 3, de Heitor Villa-Lobos. A análise fundamenta-se nos conceitos de performance historicamente informada (WALLS, 2002) e intuição informada (RINK, 2007). Portanto, apresenta-se aqui um estudo de caso onde a intuição e percepção musical do intérprete são reforçados por aspectos estéticos e estilísticos. Primeiramente, serão abordadas características harmônicas e de ornamentação (elementos estético-estilísticos); depois, adentra-se na análise da peça, baseada em parâmetros como plano formal, temporalidade e dinâmica (RINK, 2007), bem como de agrupamentos (JACKENDOFF; LERDAHL, 1983). Palavras-chave: Violão; Villa-Lobos; Prelúdio nº3; Análise para intérpretes.

Prelúdio nº 3 by Heitor Villa-Lobos: considerations on the interpretative process Abstract: This study presents an interpretation of the guitar solo piece Prelúdio nº 3 by Brazilian composer Heitor Villa-Lobos. The analytic process is based on concepts like historically informed performance (WALLS, 2002) and informed intuition (RINK, 2007), beyond other authors. The case study presented here has the intuition and musical understanding reinforced by aesthetic and stylistic aspects. Primarily, attention is paid to harmonic and ornamental characteristics (aesthetic and stylistic elements); secondly, an analysis of the piece based on parameters such as the formal plan, temporality and dynamic (RINK, 2007), and groupings (JACKENDOFF; LERDAHL, 1983) is presented. Key-words: Clasical Guitar; Villa-Lobos; Prelúdio nº3; Performance practice.

1. Introdução O Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos faz parte da série intitulada Cinco Prelúdios, composta no ano de 1940. Segundo PRADA (2008, p.66), tal série está entre as obras para violão solo mais conhecidas do autor brasileiro. Cada Prelúdio é caracterizado extra-musicalmente em seus subtítulos1:

Prelúdio nº 1 – Homenagem ao sertanejo brasileiro

Prelúdio nº 2 – Homenagem ao Capadócio2

Prelúdio nº 3 – Homenagem a Bach

Prelúdio nº 4 – Homenagem ao índio brasileiro

Prelúdio nº 5 – Homenagem à vida social O fato de sua obra para violão ser muito conhecida, seja em nível nacional ou mundial, e, além disso, estar consolidada na tradição de ensino do violão como

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repertório praticamente obrigatório na formação de todo violonista3 de concerto, é inevitável deparar-se com uma enorme quantidade de autores que a abordam. Estabelecendo uma comparação a partir da relação simbólica entre compositores, obras e respectivos instrumentos, Turíbio Santos4 comenta: “as Baladas de Chopin são o piano. Os Prelúdios de Villa-Lobos são o violão” (Santos, citado por PRADA, 2008, p.67). DUDEQUE (1994), por sua vez, comenta que os Prelúdios “exploram de forma inteligente as possibilidades tímbricas, expressivas e técnicas do violão” (DUDEQUE, 1994, p.90), enquanto Eero TARASTI observa que os Prelúdios “incorporam todos os traços standart do estilo violonístico villalobiano, [...] movimento paralelo de acordes; ambiguidade tonal; politonalidade [...] não sistemática” (Tarasti, citado por PRADA, 2008, p.99). Tratando da obra violonística villalobiana como um todo, Alan GOLDSPIEL observa que o compositor brasileiro combinou estilos e ritmos folclóricos brasileiros com a linguagem tonal do século XX, consolidando um estilo eclético e inovador (GOLDSPIEL, 2000, p.7). Ainda no que se refere às características gerais da linguagem composicional do autor brasileiro, JAFFEE (1966) destaca que o estilo de composição de Villa-Lobos:

foi formado ecleticamente, através da combinação e observação seletiva de variadas correntes de desenvolvimento musical de seu próprio tempo e daqueles que o precederam. Sua música para violão revela forte influência de pelo menos estas fontes: Bach, Impressionismo (especialmente Debussy), a arte da miniatura instrumental (especialmente Chopin), a música de salão fin de sècle, música folclórica brasileira, e ragtime americano. Estas características emergem proeminentemente através de uma cuidadosa consideração do idioma harmônico de Villa-Lobos (JAFFEE, 1966, p.18).

Com o exposto acima, nota-se que quaisquer processos de compreensão acerca da obra para violão de Villa-Lobos (Prelúdios, Estudos, etc) coloca-nos frente a um corpus composicional multifacetado do ponto de vista estilístico. Tal estilo deve ser considerado a partir de uma perspectiva eclética, uma vez que a obra de Heitor Villa-Lobos desenvolveu-se dentro de um contexto, ou melhor, a partir dos variados contextos nos quais esteve inserido e em contato. Nota-se, portanto, que o processo de compreensão se torna uma tarefa complexa. Não trataremos das inter-relações entre música e contextos culturais, históricos, sociais, dentre outros, uma vez que extrapolaria os limites propostos para discussão neste artigo. No entanto, sabe-se que se trata de uma parte essencial em qualquer empreitada analítica. Partiremos de elementos estilísticos que, a nosso ver, são aspectos importantes dentro da linguagem composicional da obra violonística villalobiana. É a partir deste entendimento que se propõe aqui uma abordagem que visa a construção de uma interpretação informada do Prelúdio nº 3, considerando aspectos característicos como forma de ampliação da perspectiva intuitiva do intérprete.

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2. Considerações sobre texto, contexto e compreensão

2.1. Da partitura ao som (From score to sound) Antes de começar com as considerações analíticas mais específicas, serão apresentadas algumas observações referentes aos estágios de aprendizagem de uma obra musical. É a partir da concepção apresentada por HILL (2002), de que a partitura não é a música em si, mas sim uma série de indicações de como interpretá-la, que este trabalho fundamenta-se inicialmente:

Muitos performers se referem à partitura como ‘a música’. Isso é errado, claro. As partituras registram informações musicais, algumas delas exatas, algumas delas aproximadas, junto com indicações de como essa informação pode ser interpretada. Mas a música em si é algo imaginado, primeiro pelo compositor, em seguida, em parceria com o performer, e por fim, comunicada em som (HILL, 2002, p.129).

O estágio inicial é de suma importância no processo de interpretação, uma vez que determinará o modo como tocaremos uma obra. Conforme HILL (2002, p.131), o primeiro passo está em considerar as maneiras pelas quais construímos nosso aprendizado a respeito de uma música, pois é a partir daí que começamos a “[...] estabelecer os padrões para toda obra subsequente [...]”. Se nossas decisões forem “[...] tomadas rapidamente e talvez sem pensar [...] podem vir a governar como tocaremos a peça pelo resto de nossas vidas”. Portanto, um posicionamento reflexivo por parte do intérprete em relação à forma como constrói seu conhecimento sobre uma obra é fundamental. Como ponto de partida, o intérprete pode se fazer as seguintes perguntas: “que suposições estamos construindo sobre o estilo de uma peça? O que significa a notação do compositor? Qual é, de fato, nosso papel como performers em relação ao compositor?” (HILL, 2002, p.131). Pode-se considerar que a primeira pergunta está até certo ponto respondida na introdução, pelo menos de forma bem genérica5. As outras questões serão trabalhadas no tópico 3. Características da linguagem (características harmônicas e de ornamentação)6. Dessa forma, a abordagem aqui tomada vai ao encontro da ideia de que a interpretação é, essencialmente, “a arte de ler as entrelinhas” (HILL, 2002, p.131). É no espaço correspondente às entrelinhas que a nosso ver se estabelece o próprio processo hermenêutico, ou seja, é no diálogo entre interlocutor (intérprete) e texto que se constrói a aprendizagem e a compreensão musical. 2.2 Peformance Historicamente Informada (Historically Informed Performance) WALLS (2002) apresenta uma discussão em torno do conceito de performance historicamente informada (historically informed performance). Em linhas gerais, uma vez que o intérprete decide compreender uma determinada obra, deve observar a partitura como um texto que, de uma forma ou outra, registra uma

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linguagem composicional carregada de pressupostos estéticos, culturais, etc. A perspectiva histórica apresenta-se, por exemplo, na medida em que o intérprete considera elementos do estilo composicional dentro da(s) perspectiva(s) de normas e convenções estéticas com as quais o compositor teve contato (seja através do contato da obra de outros compositores, analisando-as, ouvindo-as, etc; seja através de instruções formais, como por exemplo, ter tido aulas em conservatórios ou outras instituições de ensino musical; etc. Ou seja, através dos mais variados processos de imersão no meio cultural). Dessa forma, pode-se entender sua obra como uma espécie de reelaboração destas convenções, uma vez que o mesmo acaba por adaptá-las às suas necessidades artísticas e expressivas. Embora o autor apresente exemplos de como estabelecer uma leitura contextualizada a partir das características estilísticas relacionadas a determinados parâmetros na obra de um determinado compositor7, destaca que tal leitura não pode substituir o papel participativo do performer. Conforme WALLS (2002, p.23), as respostas certas sobre as características estilísticas referentes à notação, por exemplo, nem sempre são fáceis de serem obtidas, quando não são impossíveis. Além disso, tais respostas não devem ser consideradas como substitutas da imaginação do performer:

Na melhor das hipóteses, o terreno dentro do qual a imaginação funciona é aquele em que um conjunto de hipóteses recebidas é deslocado por uma gama alternativa de possibilidades estilísticas. Esse processo de deslocamento pode mesmo atuar como um estímulo à imaginação musical (WALLS, 2002, p.23).

O intérprete, portanto, possui um papel fundamental no processo de levar ao público uma mensagem musical que reflita um diálogo entre as concepções artísticas do compositor e as suas próprias:

O performer, cuja tarefa é a de tornar real a partitura para as audiências contemporâneas, está especialmente preocupado com este ato de mediação entre um passado histórico e um presente estético (WALLS, 2002, p.24).

Sendo assim, o intérprete, no processo de assimilação de determinada obra, pode trazer à tona as possíveis concepções do compositor enquanto um ser humano que estava imerso em uma determinada época, com seus padrões estéticos, culturais, históricos, dentre outros. Estabelece-se assim, a ideia da obra como um artefato que é trazido do passado para ser refletido no presente. Na medida em que o intérprete aprofunda tal processo, vai se constituindo um diálogo, onde valores de épocas distintas vão se fundindo. É nesta fusão reflexiva, portanto, que o intérprete acaba por imprimir suas concepções a respeito da obra, como uma espécie de re-composição. Para isso, o entendimento de elementos e a busca de informações sobre parâmetros característicos à época passada se torna uma ferramenta imprescindível na construção de uma concepção interpretativa fundamentada.

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3. Características da linguagem 3.1. Características harmônicas JAFFEE (I966) observa que à primeira vista as composições (Prelúdios, Estudos, etc) para violão de Villa-Lobos parecem apresentar estruturas harmônicas politonais. Tais análises ocorrem pelo fato de que em muitos trechos as definições de tonalidades ou centros tonais se tornam nebulosas, permitindo uma série de interpretações neste sentido. No entanto, através de uma observação mais detalhada, tais estruturas se tornam meras ocorrências focais, não se constituindo como elementos sistemáticos. Portanto, uma politonalidade estrita não é encontrada na obra para violão solo de Villa-Lobos. Há “claramente a supremacia de um centro tonal” (JAFFEE, 1966, p.20). Um exemplo deste aspecto pode ser observado já nos c.1-3 do Prelúdio nº 3 (Ex.1):

Ex.1 – Ocorrência focal de “falsa” politonalidade no Prelúdio nº 3 (c.1-3) de Villa-Lobos devido a utilização das características da afinação do instrumento como participantes do material musical

(Mi, Lá, Ré Sol e Si nas colcheias correspondem à afinação natural do violão - c.1).

Conforme JAFFEE (1966) a passagem em que as semicolcheias movem-se contra as colcheias confere um grau de incerteza harmônica que acaba “resolvendo” no acorde de Dó maior com sétima maior – ou um acorde de Mi menor com sexta no baixo? (c.2). Nos c.6-7, ocorre uma passagem similar (Ex.2) que, por sua vez, transpõe a mesma figuração motívica do Ex.1, “resolvendo” no acorde de Fá# maior (c.7):

Ex.2 – Outro exemplo de ocorrência focal de “falsa” politonalidade no Prelúdio nº 3 (c.6-7) de Villa-

Lobos. Mais uma vez o compositor utiliza a característica da afinação do instrumento como material musical.

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Tal caráter pode ser compreendido através da íntima relação entre os materiais musicais e o idioma do instrumento. A exploração que Villa-Lobos desenvolveu sobre este aspecto, acarretou em uma série de inovações musicais e técnicas para o violão. Segundo GOLDSPIEL (2000, p.7), “o uso do violão em Villa-Lobos torna-se uma parte integral da estrutura musical, e suas técnicas nunca são aplicadas de forma aleatória“. O uso extensivo de movimentação paralela entre acordes (plantings), arpejos (arpeggiation) e acordes onde as cordas soltas funcionam como notas pedais (open string pedal tones) são muito recorrentes e possuem importantes funções estruturais. Muitas vezes as cordas soltas funcionam como pedais que, juntamente com outros elementos, reiteram um único centro tonal (GOLDSPIEL, 2000, p.8). Nos c.1-4 do Estudo nº 11 (Ex.3), por exemplo, tem-se uma amostra dos acordes com notas pedais soltas (open string pedal notes):

Ex.3 – Exemplo de open string pedal tone (marcadas com as setas) com a nota Mi (corda solta) no

Estudo nº 11 de Heitor Villa-Lobos (c.1-4).

Para GOLDSPIEL (2000, p.8), Villa-Lobos claramente encontrou nestas formações um dispositivo composicional atrativo que permite um reforço nos legatos (as notas soltas geram essa sensação), conexões harmônicas distintas, dissonâncias, e variedade de cor. Ainda observa que o compositor brasileiro utilizou em muitas obras tríades, acordes de sétima diminuta ou de sétima da dominante movimentando-se de forma paralela (paralelism), ou seja, sem mudança na formação dos acordes através do braço do violão (fingerboard). Um exemplo deste recurso está no Estudo nº 12 (Ex.4):

Ex.4 – Trecho inicial do Estudo nº 12 (c.1-5) de Heitor Villa-Lobos onde a movimentação paralela (paralelism) de uma mesma formação de acorde (acorde menor em segunda inversão) atua sobre

o pedal em Lá.

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Neste tipo de contexto, os acordes não possuem funções tonais tradicionais. Para Villa-Lobos, estes acordes proporcionavam possibilidades colorísticas e de variação (GOLDSPIEL, 2000, p.8), remetendo à utilização de elementos harmônicos através de uma perspectiva impressionista. O Ex.5 corresponde ao trecho da Seção A do Prelúdio nº 3 (c.9-13), onde ocorrem movimentações paralelas de acordes com as mesmas estruturas:

Ex.5 – Trecho do Prelúdio nº 3 (c.9-13) de Villa-Lobos onde ocorre paralelismo (paralelism).

3.2. Ornamentação Turíbio Santos traça algumas considerações a respeito do Prelúdio nº 3 em Heitor Villa-Lobos e o violão (1975). Suas colocações podem ser tomadas como bases para uma interpretação da obra violonística de Villa-Lobos pelo fato de ter trabalhado juntamente com o compositor brasileiro. No contexto da obra para violão solo de Villa-Lobos, SANTOS (1975) observa alguns problemas interpretativos. Segundo ele

a exuberância da música para violão de Villa-Lobos pode enganar o executante, causando uma interpretação excessivamente indefinida, com rubatos prolongados, uma impetuosidade exagerada e um excesso do abuso temperamental do estilo (SANTOS, 1975, p.40).

Na Seção B há uma indicação ornamental que, na visão de SANTOS (1975), confunde muitos violonistas que não estão informados quanto à sua compreensão. Trata-se do portamento8 (Ex.6):

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Ex.6 – Amostra da indicação de portamentos no início da Seção B (c.23-24) do Prelúdio nº 3 de

Villa-Lobos. Recorrente em toda a seção.

Tal ornamento refere-se a um escorregar (slur) do dedo de forma descontínua entre as notas indicadas. Ou seja, o escorregar (slur) “dilui” o movimento sonoro ao longo do movimento do dedo, não devendo ser interpretados como um glissando propriamente dito (terminando de forma clara na nota de chegada). Além disso, o intérprete deve decidir como tocar este portamento a fim de não produzir uma sonoridade indesejada para o trecho (SANTOS, 1975, p.33). O autor, ainda menciona um dos problemas que estão entre os grandes desafios de todo violonista que defronta-se com qualquer peça do repertório villalobiano: os sons estranhos e considerados desagradáveis que ocorrem durante a execução de glissandos e/ou portamentos nas cordas graves do instrumento. Estes se configuram como um dos problemas mais frequentes com o qual os intérpretes se deparam. Dessa forma, “alguns violonistas solucionam o problema pela omissão deliberada de glissandos e portamentos” (SANTOS, 1975, p.41). É importante salientar que estes ornamentos se configuram como elementos de estilo, ou seja, são elementos estéticos manifestos na obra do compositor. Dessa maneira, não podem ser desconsiderados de forma arbitrária por parte do intérprete.

4. Prelúdio nº 3: uma análise 4.1. Plano formal A importância do plano formal está em proporcionar a compreensão do molde no qual a obra está organizada. Segundo RINK (2007),

tais modelos com a forma binária e ternária, rondó, etc, são familiares para a maioria dos músicos, e analisar uma obra nestes termos logo no começo pode ser produtivo, seguindo-se talvez um delinear mais detalhado, individual, revelando as principais sessões ou subseções da música, plano tonal e outros aspectos relevantes (RINK, 2007, p.35).

O Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos organiza-se através da forma binária A-B. A Seção A não fecha-se em si mesma, seja do ponto de vista de sua estrutura harmônica, seja através de outros elementos. É estabelecida uma conexão com a Seção B através de um discurso que não é interrompido (Ex.7):

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Ex.7– Transição entre as Seções A e B (c.20-24) do Prelúdio nº 3. Fluxo do discurso musical não é

interrompido.

Nota-se que no c.22 não há nenhuma referência de quebra do fluxo do discurso musical como barra dupla, cesura, etc. No entanto, as indicações de ralentando (rall), ritenuto (rit), aumento da dinâmica (abaixo do pentagrama) e os tenutos chamam atenção quando observadas de forma inter-relacionada. A quantidade de informações que oferecem reforça o segmento como uma transição da Seção A para a Seção B. O rall. sugere a diminuição agógica a partir do terceiro tempo do compasso; os tenutos indicam que as notas agudas devem ter suas durações estendidas, bem como dissolver a métrica9; a indicação de crescendo reforça a expectativa de que uma nova anacruse (upbeat)10 está por vir; e o rit. sobre a última Mi411, pode ser interpretado como uma indicação de que tal nota não corresponde mais ao contexto da Seção A, mas sim, como anacruse (upbeat) da Seção B. A decisão de tomar o último Mi do c.22 como anacruse (upbeat) justifica-se pelo modo como cada uma das frases da Seção B (melodias polifônicas ao estilo de Bach) estão agrupadas (Ex.8):

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Ex.8 – Agrupamentos (groupings) frasais na Seção B como elementos que justificam a decisão

sobre a anacruse (upbeat) no c.22.

Portanto, a partir dessa concepção, pode-se pensar o trecho da seguinte maneira (Ex.9):

Ex.9 – Definição do ponto onde termina a Seção A e começa a Seção B do Prelúdio nº 3 (c.20-24)

de Villa-Lobos.

O processo harmônico também reforça a concepção de que o segmento discutido acima se caracteriza como transição entre Seções. Nota-se que a Seção A, que vai do início da peça até o c.22, apresenta um caráter incerto, uma vez que as relações harmônicas tonais são obscurecidas pela utilização de muitos acordes de

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sétima da dominante, assim como “resoluções” inesperadas. Porém, a relação tonal de movimento está implícita e pode ser percebida pelo intérprete. A tônica Lá menor (i) é estabelecida somente no final da peça. A chegada até este acorde ocorre somente após a concepção de um “grande retardo”. Ao final da Seção A chega-se ao V7 (dominante da tonalidade de Lá menor), reforçando o caráter transitório dos c.20-22 através de uma divisão estrutural do ponto de vista harmônico (Ex.10):

Ex.10 – Trecho (c.20-22) onde se estabelece o V7 estrutural que reitera o ponto de transição entre

as Seções A e B do Prelúdio nº 3.

Trata-se de uma forma A-B que possui uma movimentação harmônica única dentro da combinação das partes (Continuous binary form), não rompendo com o fluxo do discurso musical no que se refere às considerações do parâmetro harmônico (GREEN, 1979, p.74-75): sem modulações à outras regiões, nem chegada ao i (tônica). Pode-se entender, portanto, que a Seção A apresenta uma espécie de movimento que visa atingir um ápice. No c.20 é alcançado o V7, estabelecendo um momento de instabilidade tonal, expectativa, tensão estrutural. Após este momento, o ápice tonal começa a ser dissipado na Seção B através de um movimento claramente direcionado à tônica (Lá menor). Portanto, o plano formal pode ser pensado da seguinte maneira (Ex.11):

Ex.11 – Visualização do plano formal geral do Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos.

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4.2. Gráfico de Tempo Segundo RINK (2007), embora este tipo de gráfico possa fornecer uma

ideia valiosa da flutuação do tempo na execução, intérpretes e ouvintes são incapazes de perceber estas nuances no sentido literal: os ‘fatos’ brutos da performance demonstrados por estes dados revelam uma verdade parcial e por vezes enganosa (RINK, 2007, p.36).

Apesar da consideração que o autor faz em relação à incapacidade de intérpretes e ouvintes na percepção de nuances temporais, pretende-se construir este tipo de gráfico no intuito de mapear o contorno da temporalidade da peça. Villa-Lobos faz uso razoável de indicações agógicas, conferindo um caráter temporal mais “livre”, “flutuante”. A Seção A indica o andamento Andante (Ex.12), e a Seção B estabelece um contraste através da indicação de Molto adagio (dolorido) (Ex.13):

Ex.12 – Indicação de tempo (andante) no início da Seção A (c.1-2) do Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos.

Ex.13 – Indicação de tempo (molto adagio) no início da Seção B (c.23) do Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos.

Referente ao fato de que a peça não apresenta indicação metronômica, será considerado que há mudança de um andamento médio (Andante) para um andamento lento (Molto adagio) (Ex.14):

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Ex.14 – Gráfico de flutuação do tempo no Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos. Eixo vertical indica a variabilidade temporal; o eixo horizontal indica os compassos.

É importante ressaltar, após a observação do gráfico acima, que tanto a visão panorâmica do contexto harmônico como o gráfico de flutuação do tempo, pode-se pensar em um caráter descendente, ou seja, um movimento que se dirige, nos dois parâmetros, para um repouso ao final da peça. Mais um ponto deve ser considerado: no gráfico, a indicação de rall. é colocada abaixo do rit.. Isso se deve ao fato de que uma possui carga temporal mais ampla que a outra respectivamente. 4.3. Gráfico de dinâmica Há uma grande economia de indicações de dinâmica na peça, o que pode abrir para o intérprete a possibilidade de maior criação de nuances de intensidade sonora. Os sinais ocorrem em pontos estruturais da peça, ou seja, o mf ocorre no início da Seção A (Ex.15), o f ocorre no início da Seção B (Ex.16), e o p ocorre ao final (Ex.17):

Ex.15 – Indicação de dinâmica (mf) no início da Seção A (c.1-2) do Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos.

Ex.16 – Indicação de dinâmica (f) no início da Seção B (c.23) do Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos.

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Ex.17 – Indicação de dinâmica (p) ao final (c.38) do Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos.

É interessante notar que as indicações de mf (início da peça), f (início da Seção B) e p (final da peça), se observadas de forma dialógica com o que já foi exposto em relação ao plano formal (aspectos gerais de indicações agógicas e estruturação harmônica), podem reforçar a concepção sonora já discutida: acréscimo de tensão-expectativa ao longo da Seção A até chegar ao segmento de transição com a Seção B (V); posteriormente, ocorre dissipação de energia até o final da peça (Ex.18):

Ex.18 – Gráfico da flutuação dinâmica no Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos. Eixo vertical indica a variabilidade de intensidade; o eixo horizontal indica os compassos.

O gráfico reforça a convergência dos planos harmônico e dinâmico. Além disso, no início da Seção B (c.23) a indicação de Molto adagio (dolorido) mostra ainda que neste ponto a dramaticidade de toda peça é acentuada. É importante ressaltar que a performance não deve refletir a dureza do gráfico de dinâmica apresentado no Ex.18, mas sim, contornos imagéticos mais flexibilizados, “arredondados” (Ex.19). Uma imagem mais aproximada poderia ser assim visualizada:

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Ex.19 – Gráfico da flutuação dinâmica no Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos a partir da perspectiva de um arco dinâmico.

Contudo, nota-se que os gráficos de dinâmica apresentados, bem como as considerações feitas sobre este parâmetro e sua inter-relação com o movimento harmônico, apresentam informações interessantes para o intérprete no que se refere ao fluxo de energia e sua visualização através do contorno da peça como um todo. Um aspecto importante que o intérprete pode considerar durante o processo de compreensão do Prelúdio nº 3, é que o arco dinâmico apresentado no último gráfico mostra um pequeno crescimento no panorama dinâmico que se estende do c.1-22 (Seção A). Após chegar ao ápice no c.23, começa um decrescimento que se estende do c.23-36 (Seção B), finalizando a peça num p. 4.4. Agrupamentos (groupings) Os gráficos abaixo apresentam uma característica peculiar na Seção A. Em decorrência da alternância de compassos e da ocorrência de sobreposições (phrase overlap; sub-phrase overlap)13, preferimos aqui adotar gráficos que tratem dos agrupamentos frasais a partir do conceito de grouping, apresentado por LERDAHL e JACKENDOFF (1983)14. Isso ocorre pela dificuldade de se trabalhar com a técnica de redução rítmica preconizada por RINK (2007), pelas razões mencionadas acima. A Seção A15 inicia com uma frase que se estende do c.1-5, chegando ao acorde de V7 (Ex.20):

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Ex.20 – Segmento frasal que inicia o Prelúdio nº 3 (c.1-5) de Villa-Lobos. Movimento ao V7.

Redução da superfície para visualização dos segmentos frasais (Ex.21):

Ex.21 – Redução da superfície dos c.1-5 e visualização dos agrupamentos (groupings) frasais do Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos.

As ligaduras de prolongamento são utilizadas para que se tenha uma observação mais clara dos compassos que estão relacionados dentro da estrutura frasal. Estas, por sua vez, são explicitadas pelos colchetes que identificam dois níveis estruturais, ou seja, os menores colchetes se referem a unidades interpretadas como semi-frases, as maiores, frases. É importante salientar que essas descrições pretendem apresentar a ideia de agrupamentos (groupings), ou seja, uma maneira de tornar a peça inteligível dentro das possibilidades de nossa percepção. A segunda frase (c.6-9) conecta o segmento motívico já apresentado nos c.1-4 com a sub-seção A’’ (c.9-13 – ver exemplo 24) elaborada com o já mencionado paralelismo de acordes (paralelism) (Ex.22):

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Ex.22 – Phrase overlap conectando a sub-seção A’ com a sub-seção A’’ (c.9) no Prelúdio nº 3 (c.4-

10) de Heitor Villa-Lobos. Vejamos o Ex.23:

Ex.23 – Segunda semi-frase da sub-seção A’ (c.6-7) e interseção com o início da sub-seção A’’ (c.9) do Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos.

A interpretação de phrase overlap leva em consideração o fato de que o fluxo do discurso musical é ininterrupto, embora a mudança de caráter através da articulação dos materiais que ocorre no c.9. Dessa maneira, o acorde de Dó# meio-diminuto sobre o pedal de Lá (5ª corda solta), circulado no Ex.23, faz parte tanto da segunda semi-frase da sub-seção A (Ex.24, c.8-9), quanto da primeira sub-frase contida no Ex.24. Abaixo, a sub-seção correspondente aos c.9-13 (Ex.24):

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Ex.24 – Superfície correspondente à sub-seção A’’ (c.9-13) do Prelúdio nº 3 (c.8-13) de Heitor Villa-

Lobos. Simplificação da superfície (Ex.25):

Ex.25 – Agrupamentos (groupings) da sub-seção A’’ (c.9-13) do Prelúdio nº 3.

É interessante notar que os acordes paralelos estão relacionados ao material rítmico utilizado no c.4 (Ex.26),

Ex.26 – Material motívico utilizado no c.4 do Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos. assim como conferem um caráter estático ao trecho, reforçado através da utilização dos acordes fora de uma perspectiva tonal tradicional. Esse caráter confere um contraste em relação a tudo o que ocorreu na peça até se chegar ao c.9. Os materiais mais utilizados anteriormente possuem um papel de geradores de ímpeto. Os movimentos ascendentes da linha melódica parecem dirigir-se aos poucos até o c.9, onde se estabelece um momento de estabilidade pelas características já mencionadas sobre o trecho. Nos c.13-16 (Ex.27) surge uma melodia de caráter lírico. Esta, por sua vez, necessita de uma articulação bastante atenciosa por parte do performer.

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Ex.27 – Visualização da superfície da sub-seção A’’’ (c.13-16) do Prelúdio nº 3 (c.11-16) de Heitor

Villa-Lobos.

Nota-se que ao final da melodia (c.15) pode-se interpretar como sendo uma phrase overlap, embora de caráter menos convincente. Aqui, há a retomada aproximada da tessitura alcançada no c.9 (Ex.24) através do salto ascendente de 5ª justa entre as notas Sol 3 e Ré 4 (Ex.28):

Ex.28 – Phrase overlap correspondente aos c.15-16 do Prelúdio nº 3 articulada por salto de 5ª ascendente.

Pode-se visualizar o segmento todo (c.13-16) da seguinte maneira (Ex.29):

Ex.29 – Agrupamentos (groupings) da primeira metade da sub-seção A’’’ (c.13-16) do Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos.

A figura (Ex.29) ressalta o caráter breve da melodia que é apresentada nos c.13-16. Neste momento da Seção A, o intérprete deve ter em mente de que se trata do

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único momento lírico, estabelecendo contraste com os demais segmentos da seção. Conforme mencionado acima, sobre a retomada da tessitura alcançada no c.9, assim como do ímpeto da Seção A, o trecho no Ex.30 (c.16-22) afirma o ponto culminante da peça: a chegada definitiva à harmonia de dominante (V7). Tal chegada reutiliza material rítmico apresentado no c.10, bem como o paralelismo de acordes, finalizando a seção A:

Ex.30 – Finalização da Seção A do Prelúdio nº 3 (c.14-22): segunda metade da sub-seção A’’’

(c.16-22). Nota-se que no c.18 reaparece um material apresentado anteriormente que possuía o caráter de gerador de ímpeto. Dentro deste contexto, o intérprete pode considerá-lo um prolongamento do acorde de Sol maior com sétima menor (G7), bem como material que é utilizado para retomar rapidamente a tessitura alcançada no c.9, possuindo um caráter anacrúsico (upbeat). Neste trecho (c.16-22) se reflete a convergência de aspectos da harmonia na composição para violão de Villa-Lobos: as funções estruturais das cordas soltas como notas pedais (ver as setas indicativas no ex.30) que geram o direcionamento a um centro tonal (GOLDSPIEL, 2000, p.8). Nota-se que, apesar da utilização de alguns acordes de sétima de dominante, o pedal caracterizado pela nota Mi (6ª corda solta) dirige toda a expectativa para a confirmação da harmonia de dominante (V7) no c.20. Outra corda solta funcionando como nota pedal é a nota Si 2 (2ª corda solta). Este pedal aparece no interior de todos os acordes do trecho, antecipando a chegada da nota que compõe a 5ª justa do acorde de dominante (V7), estabelecido no c.20 (Ver as setas indicativas no Ex.30).

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A estruturação frasal do trecho (Ex.31):

Ex.31 – Visualização dos agrupamentos (groupings) frasais da segunda metade da sub-seção A’’’ (c.16-22) do Prelúdio nº 3.

Abaixo (Ex.32), pode-se visualizar como está organizada a Seção A a partir da análise dos segmentos acima:

Ex.32 – Visão panorâmica da articulação da Seção A (c.1-22) e suas sub-seções A’ (c.1-9), A’’ (c.9-13) e A’’’ (c.14-22).

A Seção B é menos complexa em decorrência do caráter quase-invariável de seus agrupamentos frasais. A sensação harmônica é de um claro direcionamento que vai do V ao i (Ex.33):

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Ex.33 – Superfície da Seção B (c.23-35) do Prelúdio nº 3 de Heitor Villa-Lobos. Colchete mais

abaixo indica o fracionamento em duas sub-seções, ou seja, sub-seção B’ (c.23-29) e sub-seção B’’ (c.30-35).

É importante que o intérprete tenha sempre em mente a importância de cada frase como uma entidade a ser articulada em seu próprio contexto (colchetes menores, primeira linha), assim como deve considerar cada uma como parte integrante dentro da articulação da sub-seção e da seção como um todo. Ao observar detalhadamente o final da Sub-seção B’ (c.28) nota-se, mais uma vez, uma phrase overlap, assim como no caso do c.19 (Ex.28; Ex.29). Dessa maneira, é estabelecida a continuidade do fluxo no sentido de retomar a tessitura alcançada no c.23 (início da Seção B). Após, repete-se, praticamente sem alterações, a Sub-seção B’ (Ex.34):

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Ex.34 – Trechos referentes aos finais das sub-seções B’ (c.28) sub-seção B’’ (c.35) do Prelúdio nº 3 de Villa-Lobos.

Abaixo (Ex.35), os agrupamentos (groupings):

Ex.35 – Visualização dos agrupamentos (groupings) correspondentes à Seção B (c.23-35), sub-seções B’ (c.23-29) e B’’ (c.30-35), bem como segmentos frasais menores do Prelúdio nº 3.

5 - Conclusões Acreditamos que o intérprete, no momento em que começa a construção de sua interpretação, ingressa em um processo de aprendizagem. Além disso, considerando o conhecimento como sendo produzido através da compreensão relacional, parte-se da perspectiva de que o próprio processo de aprendizagem se torna amplo e complexo. Portanto, na medida em que o intérprete parte da ideia de que seu aprendizado não é adquirido somente através da intuição, mas

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também da relação desta com a visão contextual (perspectivas histórica, cultural, estética, etc), tem-se uma dimensão importante do conhecimento. Embora o processo analítico aqui tenha lidado apenas com aspectos estético-estilísticos relacionados à obra para violão solo de Heitor Villa-Lobos, acredita-se que se apresentam de forma importante dentro do processo reflexivo. Sendo o Prelúdio nº 3 uma peça que dialoga com linguagens estéticas até certo ponto distintas em cada Seção, os parâmetros trabalhados na parte de contextualização (características harmônicas e ornamentação) trazem uma perspectiva importante em termos de compreensão. As características harmônicas destacadas trouxeram informações importantes, principalmente para a concepção adotada na articulação da Seção A. As informações referentes aos portamentos indicados na partitura também apontam para um importante elemento da linguagem estética villalobiana, o qual deve ser no mínimo considerado no processo interpretativo-reflexivo. No plano formal, por exemplo, as considerações acerca das indicações de ralentando (rall), ritenuto (rit), dinâmica, tenutos - no segmento de transição entre as Seções A e B -, bem como as considerações sobre o plano harmônico da Seção A (largo direcionamento ao V), quando relacionadas entre si, chamam atenção no sentido da quantidade de informações que podem proporcionar inteligibilidade na concepção interpretativa, principalmente em se tratando da articulação da peça do ponto de vista panorâmico. Além disso, o diálogo entre as informações obtidas através do próprio plano formal e do gráfico de dinâmica também apresentam uma perspectiva panorâmica na concepção sonora da peça. Os agrupamentos apresentam um olhar mais aprofundado em termos de articulação de unidades de sentido, seja em planos mais localizados ou mais panorâmicos. Em decorrência disso, tem-se uma imagem de como cada Seção pode ser articulada, por exemplo, através da ideia de sub-seções. Dessa forma, tem-se uma visão mais focalizada em termos de estruturação e de como podem ser articuladas cada Seção. Por fim, a análise aqui apresentada pretende mostrar-se como somente uma possibilidade, dentre tantas outras, em termos de processos de interpretação. Referências

DUDEQUE, Norton Eloy. História do Violão. Curitiba: Ed. da Universidade Federal do Paraná, 1994.

GOLDSPIEL, Alan. A new look at musical structure and the guitar in the music of Villa-Lobos. Soundboard Magazine, n.2, p.7-13, 2000.

GREEN, Douglass. Form in tonal music: an introduction to analysis. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1979.

HILL, Peter. From score to sound. In: Musical Performance. A Guide to Understanding. Cambridge: CUP, p.129-143, 2002.

JACKENDOFF, Ray; LERDAHL, Fred. A generative theory of tonal music. London: MIT Press, 1983.

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JAFFEE, Michael. Harmony in the solo guitar music of Heitor Villa-Lobos. Guitar Review. New York, n.29, p.18-22, 1966.

PRADA, Teresinha. Violão: de Villa-Lobos a Leo Brouwer. São Paulo: Terceira Margem, 2008. RINK, John. Análise e (ou?) performance. Cognição & Artes Musicais/Cognition & Musical Arts. v.2,

n.1, p.25-43, 2007. SANTOS, Turíbio. Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, 1975. VILLA-LOBOS, Heitor. Guitar Etudes. Paris: Max Eschig, 1953. Violão solo. VILLA-LOBOS, Heitor. Cinq Préludes. Paris: Max Eschig, 1954. Violão solo. WALLS, Peter. Historical Performance and the modern performer. In: Musical Performance. A

Guide to Understanding. Cambridge: CUP, p.17-34, 2002.

Leitura recomendada DOĞANTAN, Mine. Upbeat. In: New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Oxford

Press, Inc. 2001. FALLOWS, David. Tenuto. In: New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Oxford

Press, Inc. 2001. ROTHSTEIN, William Nathan. Phrase rhythm in tonal music. New York: Schirmer, 1989. Notas 1 Não trataremos aqui de questões extra-musicais ligadas ao caráter programático das peças, uma vez que a potencialidade de investigação acerca das relações entre algumas estruturas musicais e suas ligações com os “discursos” contidos nos subtítulos, demandaria um estudo mais pormenorizado a partir desta perspectiva. 2 Charlatão; impostor; trapaceiro. 3 Seja em nível de formação de repertório do ponto de vista estético e/ou técnico-violonístico. 4 Segundo DUDEQUE (1994), “Turíbio é um dos maiores divulgadores da obra do grande compositor brasileiro e hoje dirige o Museu Villa-Lobos” (DUDEQUE, 1994, p.103). 5 As considerações gerais a respeito da obra para violão de Heitor Villa-Lobos estão colocadas de forma bastante genérica na Introdução deste trabalho. Dessa forma, reiteramos que para a construção de uma concepção mais adequada, deve-se fazer um levantamento maior do que foi apresentado. 6 Esta análise não explorará um aspecto muito considerado como primário na tradição do ensino do violão: a digitação. Segundo HILL (2002), a digitação deve estar de acordo com o fim que se objetiva dentro da construção de uma concepção musical (HILL, 2002, p.132), portanto, um processo subsequente. Sendo assim, consideramos a elaboração de uma concepção da obra como um processo primário, anterior à execução (resultado físico) (HILL., 2002, p.133). 7 Ver a lista de questões básicas apresentada por WALLS (2002, p.23). Tal lista oferece um exemplo de como o intérprete pode estabelecer parâmetros para uma compreensão contextualizada da partitura. 8 A nosso ver, um exemplo das entrelinhas que HILL (2002) observa. 9 Para maiores considerações, ver o verbete Tenuto (FALLOWS, 2001) no New Grove Dictionary of Music and Musicians (2001). 10 Para maiores considerações, ver o verbete Upbeat (DOĞANTAN, 2001) no New Grove Dictionary of Music and Musicians (2001). 11 Para a especificação da tessitura, levou-se em consideração a característica do violão como instrumento transpositor de uma oitava abaixo. Portanto, o Mi4, por exemplo, refere-se à grafia para violão. 13 A interpretação de sobreposição de frases ou semi-frases parte do conceito de phrase overlap e subphrase overlap, contido em Phrase rhythm in tonal music (1989), de William Nathan Rothstein (p.44-51).

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14 Do ponto de vista psicológico, agrupamento de uma superfície musical é uma analogia auditiva do particionamento do campo visual em objetos, partes de objetos e partes de partes de objetos. Mais que qualquer outro componente da gramática musical, o componente de agrupamento parece ser de óbvio interesse psicológico, em que a gramática que descreve a estrutura dos agrupamentos parece consistir amplamente de condições gerais para a percepção de padrões auditivos que têm aplicação muito mais ampla que para a música sozinha. Além disso, as regras para agrupamentos parecem ser do tipo idioma-independente – isto é, um ouvinte necessita conhecer relativamente pouco sobre um idioma musical a fim de atribuir estruturas de agrupamentos às peças naquele idioma” (JACKENDOFF; LERDAHL, 1983, p.36). 15 É importante salientar que a Seção A sugere um caráter evocativo, como se fosse uma grande preparação impressionista à Seção B, uma homenagem a Bach.

Daniel Ribeiro Medeiros é Bacharel em Música – Habilitação em Violão pela Universidade Federal de Pelotas (2004) e Mestre em Música (Interpretação/Processos Criativos: Teoria, Criação Musical e Estética) pela Universidade federal do Paraná (2010), sob orientação do Prof. Dr. Norton Dudeque. Em suas pesquisas, tem abordado temáticas relacionadas a Teoria, Análise e Historiografia Musical. São trabalhos que envolvem investigações no âmbito da chamada música "culta" e música popular, tais como rock, música latino-americana (Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina) e música de concerto. Orientado pela profa. Dra. Isabel Porto Nogueira, realiza doutorado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Uiniversidade Federal de Pelotas, cujo projeto envolve o estudo da música popular (rock) a partir de enfoque interdisciplinar ligado às conformações sociais e identidades (Antropologia Social, Memória e Identidade, Etnomusicologia, História Oral).

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DOI: 10.1590/permusi2015a3112

O violão na universidade brasileira: um diálogo com docentes através de um questionário

Fabio Scarduelli (UNICAMP/FAPESP, Campinas, SP) [email protected]

Carlos Fernando Fiorini (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Resumo: O presente artigo apresenta a análise de um questionário aplicado aos professores de violão de universidades públicas brasileiras (estaduais e federais), em que são abordados os caminhos de técnica e repertório utilizados nestas instituições. A partir de uma participação ampla (com 95,4% de participação das universidades que possuem curso de violão), foi possível elaborar um mapa do ensino do violão no Brasil, que poderá suscitar reflexões a respeito da pedagogia e do perfil dos profissionais formados nestes cursos. Palavras-chave: pedagogia do violão clássico; bacharelado em violão no Brasil; bacharelado em música no Brasil.

The classical guitar in Brazilian universities: a survey dialogue with teachers

Abstract: This article presents an analysis of a survey answered by classical guitar teachers of Brazilian public universities, as far as the technique and repertoire used at these institutions. Departing from a broad participation (95.4% of the universities offering a degree in classical guitar), it was possible to draw a map of classical guitar teaching in Brazil. The results may raise questions about the pedagogy and the profile of the guitar alumni. Keywords: classical guitar pedagogy; Bachelor’s degree in classical guitar in Brazil; Bachelor’s degree in Music in Brazil.

1. Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa de pós-doutorado (UNICAMP/FAPESP) cujo objetivo é a elaboração de um programa de curso que poderá ser oferecido ao Bacharelado em Violão da UNICAMP. Com o intuito de conhecermos uma variedade de cursos, a princípio brasileiros, nos propusemos um estudo dos programas de algumas reconhecidas instituições públicas de ensino. Entretanto, este caminho se mostrou um tanto árduo, já que tais programas, quando existem, podem estar, em grande parte, desatualizados, segundo depoimento dos próprios professores. Em geral, o que encontramos havia sido elaborado há bastante tempo e não representa necessariamente a realidade atual. Desta forma, verificamos que a maneira de conhecermos os cursos tais como de fato estão acontecendo seria conversarmos diretamente com os docentes. E, na busca por uma metodologia em que pudéssemos levantar informações em um maior alcance possível, concluímos que a forma mais eficiente seria a aplicação de um questionário.

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Para isso, seguindo propostas de BARROS e LEHFELD (1990), LAVILLE e DIONNE (1999) e PÁDUA (2000), procuramos uma otimização a fim de que levantássemos as informações mais relevantes em um número reduzido de questões (9 no total), procurando reduzir a possibilidade de diferentes interpretações, oferecer boa formatação visual, ordem e coerência de raciocínio, além da brevidade no tempo de preenchimento. Procuramos extrair informações relacionadas à existência e aplicação do programa de curso na instituição, formação do professor, seu direcionamento técnico e estilístico, a maneira como aborda técnica e repertório com os alunos e como distribui os conteúdos nos semestres / anos do curso.

Em nosso levantamento encontramos 22 instituições (excetuando-se aí a UNICAMP), das quais 21 tiveram participação, totalizando 95,4%. Entretanto, ocorreu que em algumas universidades mais de um professor aceitou participar, o que achamos de grande valia, já que a forma de trabalho pode diferir de um docente para outro em uma mesma instituição. Desta forma, dos 48 professores de violão de ensino público encontrados, tivemos participação de 26, representando assim 54,2% dos docentes do país.

2. Análise das questões

2.1. Questão 1:

Em sua instituição há um programa de curso para o bacharelado em violão?

a - ( ) Sim, existe e eu o sigo rigorosamente

b - ( ) Sim, existe mas eu faço adaptações

c - ( ) Sim, existe mas eu não o utilizo

d - ( ) Não há um programa de curso, trabalho de acordo com minha experiência e o perfil do aluno

e - ( ) Outro. Comente:

A QUESTÃO 1 se refere a um levantamento quanto a existência e utilização de programas de curso nas instituições brasileiras. Pode ser analisada do ponto de vista quantitativo e qualitativo. O aspecto quantitativo tem por finalidade verificar estatisticamente a presença e o uso de tais programas e, principalmente, a postura dos docentes perante eles. O aspecto qualitativo visa analisar o depoimento dos docentes que optaram pela resposta aberta (item e), que dá espaço à reflexão.

Em uma primeira análise, verificamos que 19 universidades possuem um programa de curso definido, enquanto apenas 2 tomam como base a

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experiência do professor:

Ex.1 – Instituições que possuem um programa de curso para o Bacharelado em Violão.

Em relação à postura dos docentes, levando em conta apenas as universidades que possuem um programa, temos a seguinte situação:

Ex.2 – Postura do docente em relação ao programa de curso.

A resposta mais recorrente (50%) é a de que existe um programa mas que são feitas adaptações. De outro lado, apenas 8% afirmaram não seguir o programa existente, e também 8% declararam seguir rigorosamente o programa. Assim, observamos um baixo índice equilibrado dos extremos - os que usam rigorosamente e os que não usam - e um predomínio daqueles que adaptam às

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circunstâncias.

Entretanto, 33% optaram pela resposta aberta, argumentando principalmente as adaptações feitas em relação ao programa pré-definido. Os pontos abaixo sintetizam tais argumentos:

Há um programa que visa uma adaptação ao perfil individual de cada aluno.

Etapas bem definidas, mas com repertório e técnica de acordo com o aluno.

Programa em experiência, em fase de elaboração.

Dá valor à escolha do aluno pelo repertório.

Há um programa mas não é uma lista fechada, tomando como base três linhas: renascença-barroco, clássico-romântico, contemporâneo-brasileiro. Há uma lista aberta de obras, podendo ser acrescentadas novas obras.

Há um programa, mas que tem se tornado inútil em função da variedade de perfis de alunos e, principalmente, diferentes maneiras de ensinar dos professores. Alguns fazem adaptações, outros não utilizam.

É abrangente. Existem obras e períodos determinados, mas o restante é de livre escolha.

Há a sugestão de que o aluno trabalhe peças de vários estilos, diferentes formas e conteúdos musicais, de menor e maior complexidade, e que no final apresente um recital. As aulas coletivas semanais de técnica possuem um programa definido, com técnica pura e ciclos de estudos progressivos. Há ainda música de câmera, repertório de violão, didática do violão, e as optativas camerata de violões e harmonia de violão.

Ao longo de um ano o aluno deverá executar uma peça - ou grupo de peças - de cada um dos períodos: renascença, barroco, clássico, romântico/espanhóis, contemporâneo, música brasileira. Assim o estudante deverá trabalhar 3 estilos por semestre. Há dois recitais obrigatórios durante o curso, um na metade e outro no final, e o aluno deve tocar um concerto para violão e orquestra com piano para uma banca.

Observando tais argumentos e o último gráfico exposto, verificamos que, em síntese, ocorre como tendência a flexibilização dos conteúdos, observando-se principalmente o perfil dos estudantes e, naturalmente, também do professor. Esta flexibilização pode estar presente em diversos aspectos do ensino, desde a técnica, em que o aluno estuda aquilo que de fato necessita (diferindo de antigas concepções em que prevaleciam cargas diárias de trabalho), até questões de estética, em que são respeitadas as escolhas de repertório pelos próprios alunos, ainda que seja privilegiada a abordagem da maior variedade possível de estilos.

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2.2. Questão 2:

Quem foi / foram seu (s) principal (ais) professor (es) de violão?

Segue abaixo a relação dos professores de violão mais citados pelos docentes, com a respectiva instituição e a cidade onde lecionam ou lecionavam1:

Professor Instituição – Local

Henrique Pinto FAAM-FMU, EMM, Faculdade Cantareira e Particular

(São Paulo-SP)

Edelton Gloeden USP (São Paulo-SP)

Abel Carlevaro Particular (Montevideo - Uruguai)

Turíbio Santos UFRJ (Rio de Janeiro-RJ)

Nícolas Barros UNIRIO (Rio de Janeiro-RJ)

Léo Soares UFRJ (Rio de Janeiro-RJ)

Fabio Zanon Particular - São Paulo (SP)

Robert Brightmore Guildhall School of Music and Drama (Londres -

Inglaterra)

Gisela Nogueira UNESP (São Paulo-SP)

Maria Haro UNIRIO (Rio de Janeiro-RJ)

José Luiz Rodrigo Real Conservatório Superior de Música de Madrid -

Espanha; Curso Universitário Internacional de Música

Española (Compostela - Espanha)

Eduardo Fernandez Conservatório Universitário de Música de Montevideo –

Uruguai

Daniel Wolf UFRGS (Porto Alegre-RS)

Ex.3 – Lista de professores de violão citados pelos docentes das universidades consultadas.

Os 13 professores citados acima somam 41 citações contra 37 dos demais (estes receberam apenas uma citação cada), representando assim 52,5%. Com base nisso, ainda é possível perceber uma ênfase da formação dos atuais docentes nas capitais, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo. Percebemos também um número grande de professores estrangeiros citados, demonstrando um deslocamento frequente que ocorreu a ainda ocorre no Brasil, na busca por uma formação musical fora do país.

2.3. Questão 3:

Você se considera adepto de uma escola de técnica específica? Comente.

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Dos 26 docentes que participaram, 16 revelaram não pertencer a nenhuma escola de técnica específica, 8 disseram seguir a escola de Abel Carlevaro, 1 relevou ser adepto da escola de Tárrega, e 1 da escola de Segóvia. Desta forma temos:

Ex.4 – Escolas de técnica de violão citadas nos questionários.

Verificamos então que a grande maioria respondeu não seguir nenhuma escola específica. Ainda assim, dentro desta resposta, 6 professores revelaram ter conhecimentos e aplicar, ainda que de forma não ortodoxa, os princípio de Abel Carlevaro. Desta forma, dentre as escolas citadas, destacamos os princípios de Carlevaro com 8 citações convictas e 6 mescladas a outras técnicas, totalizando 14 citações, para apenas 1 de Tárrega e 1 de Segóvia.

2.4. Questão 4:

Você trabalha técnica pura com os alunos? Como faz, quais materiais utiliza?

Dos 26 docentes, 22 revelaram trabalhar técnica pura com seus alunos, resultando na seguinte proporção:

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Ex.5 – Uso da técnica pura do violão nos cursos de graduação no Brasil.

Em relação aos materiais utilizados, segue abaixo uma lista de todos aqueles citados com o respectivo número de vezes em que aparecem:

Material Autor nº vezes citado Série didática para guitarra (Cuatro Cadernos) Abel Carlevaro 16

Escuela Razonada de la Guitarra Emilio Pujol 6 Studio per la Chitarra Op.1 Mauro Giuliani 5

Pumping Nylon Scott Tennant 4 Escola Moderna do Violão Isaías Sávio 2

Técnica de mão direita Henrique Pinto 2 Escuela de la Guitarra: exposición de la teoria

instrumental Abel Carlevaro 1

Exercícios de Independência e coordenação Manuel Lopez Ramos 1 Diatonic Major and Minor Scales Andres Segovia 1

Violão Prático Eduardo Castañera 1 Kitharologus Ricardo Iznaola 1

The Natural Classical Guitar: the pinciples of

effortless playing Lee Ryan 1

La técnica de David Russel en 165 consejos Antonio de Contreras 1 Técnica, mecanismo, aprendizaje: Una

investigación sobre el llegar a ser guitarrista Eduardo Fernández 1

Método para Guitarra Dionísio Aguado 1 Classic Guitar Technique (6 volumes) Aaron Shearer 1

Ex.6 – Materiais didáticos mais usados pelos docentes brasileiros.

Destacamos nesta relação a concepção de técnica de Abel Carlevaro, com 16 citações de sua Série didática para guitarra e uma citação de seu livro Escuela

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de la Guitarra, em que teoriza seus pensamentos em relação aos mecanismos de execução. É importante ainda ressaltar que Carlevaro aparece entre os professores mais citados na QUESTÃO 2. Assim, podemos afirmar que o ensino do violão no Brasil tem forte influência de seu pensamento, em parte ligado às proximidades territoriais, mas certamente e, sobretudo, pela grandeza de seu pensamento, a tirar pela quantidade de grandes concertistas que direta ou indiretamente ajudou a formar.

Podemos também destacar dentre os materiais mais utilizados, além daqueles mais tradicionais como PUJOL (1961), GIULIANI (1812), SÁVIO (1985, s.d.) e HENRIQUE PINTO (s.d.), a presença de Pumping Nylon, de TENNANT (1995). Trata-se de um trabalho que tem sido largamente adotado por seu potencial sintético em relação aos principais mecanismos de execução, abordando-os de forma prática e direta.

Ainda em relação àqueles docentes que fazem uso da técnica pura, é interessante comentarmos alguns posicionamentos que são recorrentes ou que possuem especificidades. Em primeiro lugar, a postura predominante que percebemos é a combinação de diferentes métodos, com destaque para aqueles apresentados na tabela acima. Isto de certa forma corrobora com nossa análise da questão 3 do questionário, em que a maioria declara não pertencer a uma escola específica, aproveitando aquilo que cada uma pode oferecer de mais importante para a boa execução do repertório.

Logo em seguida, outra das respostas mais citadas diz trabalhar de acordo com as necessidades / dificuldades dos alunos. Os mecanismos não são tratados de forma ortodoxa, mas são resolvidos de acordo com a maneira como caminha o repertório e os problemas que este apresenta ao estudante.

Outras declarações revelam trabalhar de forma ortodoxa dentro de uma escola de técnica específica, principalmente a de Abel Carlevaro, citada por três docentes. Já outros professores criam seus próprio exercícios, baseados nos princípios de escalas, ligados e arpejos.

Uma outra postura verificada foi a de pensar os principais mecanismos de execução em variações próximas de como ocorrem no repertório. Assim, durante o curso são trabalhadas variações de toques, ornamentos, escalas, arpejos e ligados, a fim de que o aluno esteja preparado para estas ocorrências na medida em que o repertório venha exigir. Esta não é uma postura muito recorrente e demanda um conhecimento grande de detalhes da literatura do instrumento por parte do docente.

Podemos destacar também em algumas instituições a presença do trabalho de técnica em aulas coletivas. Tal prática tem o intuito de discutir os mecanismos básicos de execução de maneira focada, evitando tirar o tempo da aula individual para tal fim, aproveitando-a para o repertório. Um docente revelou que, em suas aulas, a carga de estudo de técnica é maior no início do curso, diminuindo gradativamente com o tempo e o aprendizado do aluno. Outro declara que procura resolver os fundamentos até metade do curso, utilizando

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uma disciplina específica para continuidade caso haja necessidade. E por fim, um docente declara que trabalha técnica desde que o aluno compreenda o porque deste tipo de estudo.

Dentre os que responderam não trabalhar técnica pura, realizam o aperfeiçoamento da execução de seus alunos através do próprio repertório, seja com técnica aplicada, extraindo trechos e criando pequenos exercícios mais próximos da necessidade, ou trabalhando diretamente no próprio trecho.

2.5. Questões 5 e 6:

5 - Em seu trabalho como violonista/instrumentista há foco em algum repertório ou estilo específico? Qual (is)?

6 - Em seu trabalho com os alunos você procura enfatizar algum repertório ou estilo específico? Qual (is)?

As questões 5 e 6 são complementares, por isso são analisadas em conjunto. Possuem o intuito de verificar os direcionamentos estéticos nos cursos de graduação no país.

A resposta predominante em relação à postura didática dos docentes é, em 100% dos casos, o ecletismo. Todos afirmam recorrer à variedade estilística, passando por todos os períodos da história da música, a fim de que o aluno tenha uma formação sólida do ponto de vista da técnica, e ampla no que se refere à diversidade estética. E isto independe da ênfase estilística que dá ao seu trabalho artístico como violonista. Podemos observar docentes que têm como foco a música brasileira (popular, nacionalista e de vanguarda), a música renascentista, barroca, clássica, latino-americana, contemporânea, repertório seresteiro e música espanhola. Assim, apesar das especificidades artísticas entre os docentes, todos afirmaram que recorrem à variedade em seu trabalho didático.

Destacamos em um dos questionários a afirmação de que a diversidade estilística é fundamental em um curso de bacharelado, e que o momento de especialização deve suceder o término do curso, com exceção dos alunos que entram na universidade com bases muito consistentes, fato que pouco ocorre em nossa realidade. O docente conclui afirmando que o gosto musical do aluno deve ser levado em conta. Já outro professor considera um erro “que se crie cópias de seu modelo pessoal de repertório, técnica e interpretação, devendo sempre se respeitar aspectos da individualidade do aluno”.

Uma declaração recorrente em alguns questionários se refere ao uso intenso do repertório clássico, de autores como Fernando Sor, Mauro Giuliani, Matteo Carcassi, dentre outros, como base para uma fundamentação técnica e fluência

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da execução. Um dos docentes considera este repertório como um relevante ponto de partida para a fluência, já que se caracteriza por uma aproximação ao universo dos alunos de sua instituição. Procura inserir gradativamente texturas polifônicas para, depois disso, recorrer à variedade. Esta postura é corroborada por um outro professor, que afirma que o aluno precisa trabalhar no primeiro ano do curso obras do século XIX e no segundo uma obra de Bach.

Nesta mesma direção, outra declaração afirma que compositores das escolas clássicas representam a escola de base. São autosuficientes no ensino do instrumento e servem de alavanca para o aprendizado de elementos musicais diversos. Há ainda em outro questionário a afirmação de que o aluno que não consegue tocar o repertório clássico com desenvoltura terá maior dificuldade em abordar repertórios de outros períodos. Revela que quando precisa rever fundamentos técnicos recorre a este período, que considera a base da pirâmide.

Com relação à música popular brasileira, há duas declarações em posicionamentos opostos. Uma delas possibilita uma abertura ao seu estudo. Já outra, revela não estimular o interesse. Podemos refletir que, em geral, os programas das instituições estão mais voltados ao repertório tradicional de concerto, com aberturas à música latino-americana.

Em relação a estéticas mais recentes, encontramos uma declaração de um docente que revela trabalhar algumas obras que se utilizam de técnica expandida ou de escrita diferenciada. Já outro professor acha relevante que o aluno estude obras que mesclem novos procedimentos tecnológicos.

Uma outra postura que nos chamou a atenção se refere ao trabalho de repertório partindo de obras de referência dos principais autores que escreveram para violão. Porém, em certo momento, indica que os alunos procurem um repertório diferenciado. Nesta mesma direção, outro docente declara que, após passar pelos pilares do repertório com o aluno, atravessando os períodos históricos, procura orientá-los a descobrir seu próprio foco de interesse.

Acreditamos que, de forma direta ou indireta, os docentes exercem influências sobre os alunos, pela dificuldade de se manter uma neutralidade durante os anos de orientação. Há exemplos raros que, de certa forma, contrariam esta afirmação, como é o caso de Isaías Sávio. Seus alunos se destacaram em diferentes meios e estilos, como Marco Pereira e Paulo Bellinati, em uma estética mais voltada à música popular, e Henrique Pinto, direcionado ao violão tradicional de concerto.

2.6. Questão 7:

Cite os compositores que você costuma trabalhar mais com os alunos.

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Abaixo estão listados apenas os 19 compositores mais citados pelos docentes (que receberam no mínimo 5 citações) de um total de 83. Pretende-se obter de forma aproximada, para uma análise conjunta com as questões 5 e 6, os principais direcionamentos estilísticos dos cursos de graduação em violão no Brasil. Mesmo que os docentes tenham citado apenas alguns compositores mais trabalhados, a eleição destes pode ter um significado de representatividade dentro de sua hierarquia. Além disso, as tendências de repertório costumam mudar com o tempo, e a contribuição desta questão pretende mostrar um recorte atual.

Compositor número de citações

H.Villa-Lobos 22

F.Sor 21

J.S.Bach 18

Leo Brouwer 18

M.Giuliani 17

F. Tárrega 14

Manuel Ponce 11

F. Moreno Torroba 10

J.Rodrigo 9

J.Turina 8

L.Milan 8

Mário Castelnuovo Tedesco 7

L.Narvaez 7

J.Dowland 7

M.Carcassi 6

A.Mudarra 6

S.L.Weiss 6

Radamés Gnattali 5

A.Barrios 5 Ex.7 – Compositores mais citados pelos docentes no questionário.

Podemos verificar que dentre os mais citados não há uma tendência estética, mas uma escolha pelos ícones, o que corrobora com a análise da questão 6, que valoriza o ecletismo e o conhecimento amplo da variedade estilística de todas as escolas. No topo da lista encontramos compositores renascentistas, barrocos, clássicos, românticos, neoclássicos e modernos, prevalecendo a variedade. Também estão presentes de forma maciça os compositores ligados à escola Segoviana, como Ponce, Torroba, Rodrigo, Turina e Tedesco. Isso demonstra de um lado o fascínio e a influência deixada por Segovia, mas também o valor artístico deste repertório, que até hoje permanece.

Entretanto, alguns compositores brasileiros de vulto e grande produção ainda aparecem pouco ou sequer são citados. A ausência de Marlos Nobre, Almeida

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Prado, Edino Krieger, Arthur Kampela, Theodoro Nogueira e Carlos Alberto Pinto Fonseca são notáveis. Paulo Porto Alegre, Jaime Zenamon, Isaías Sávio, Camargo Guarnieri, e Guerra-Peixe talvez precisem ser melhor conhecidos, em face de suas produções, já que aparecem com apenas uma única citação1. Em síntese, a música brasileira não está em primeiro plano em nossas escolas.

Pouco citada é também a obra de Abel Carlevaro, que parece ter uma participação mais efetiva no cenário brasileiro com seu método e concepção de técnica, apesar de ter uma obra relevante como compositor. Autores importantes da segunda metade do século XX também aparecem mais abaixo na tabela, demonstrando que estéticas mais vanguardistas acabam ficando de fora ou em segundo plano nos programas.

Ainda na segunda metade do século XX, mesmo aqueles compositores ligados a correntes neoclássicas, cuja obra é de grande relevância para o violão, também foram pouco citados, como os ingleses Wiliam Walton, Lenox Berkley e Benjamim Briten, com duas citações cada um. Curiosamente, compositores da segunda metade do século XIX também não estão na preferência, como Napolean Coste, Giulio Regondi e Johann Kaspar Mertz. Talvez isso se deva, tanto no caso da música do século XX como na música romântica, ao fato de que em geral este repertório apresente alguma exigência técnica que ultrapasse os propósitos pedagógicos e as possibilidades técnicas da realidade do estudante brasileiro.

Dos barrocos, o único não alaudista citado foi Robert de Visée, com apenas 1 citação. Não houve referências a Francesco Corbeta ou Gaspar Sanz, também guitarristas como de Visée.

Para finalizar, é interessante destacar uma declaração de um docente que revela que seu curso é baseado em uma tríplice orientação, a partir de Sor, Bach e Villa-Lobos, justamente os autores mais citados e que representam os três primeiros em nossa tabela. Isso demonstra, de certa forma, uma unidade no pensamento das instituições brasileiras.

2.7. Questão 8:

Como você distribui os conteúdos de técnica e repertório durante os anos de curso de um bacharelando?

Esta é uma das questões centrais do questionário para nossa pesquisa, por se aproximar de forma mais clara ao programa de curso da instituição. Embora esta temática tenha sido abordada indiretamente nas outras questões, este espaço complementa, sintetiza e corrobora as declarações a respeito da pedagogia no ensino superior.

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Aqui os docentes se posicionaram em relação à sua forma de trabalho, a maneira como conduzem o curso, abordam os conteúdos e acompanham o crescimento de cada aluno. A diversidade nas respostas, que reflete a individualidade de cada professor, nos faz priorizar uma análise qualitativa, através do estudo de cada depoimento. Entretanto, algumas respostas não entram em detalhes de conteúdo, versando mais em favor de uma relativização, na adequação ao perfil do aluno. Assim, nos ateremos aos depoimentos que refletem sobre conteúdos ou que possuem uma linha clara de pensamento para o curso.

Um dos professores consultados fala do primeiro semestre como um momento de estruturação, referindo-se à postura e atitudes das mãos esquerda e direita do aluno. Comenta o uso de arpejos, escalas e ligados como exercício para tal estruturação. Nos demais semestres são trabalhados outros conteúdos, como ornamentos e trêmulo, além do constante aprimoramento dos outros elementos.

Outro depoimento relata a necessidade de nivelamento dos alunos ingressantes. Assim, no primeiro ano há uma revisão de técnica. No segundo é preparado um repertório simples tecnicamente e variado em estilo. No primeiro semestre do terceiro ano são trabalhados estudos de Matteo Carcassi, Leo Brouwer e os Cadernos 3 e 4 de Abel Carlevaro. A partir daí, o foco estará no preparo do recital de formatura.

Em outra instituição o curso compreende 10 períodos, sendo que em cada um deles é necessária a realização de 2 estudos. Os quatro primeiros períodos são concentrados em uma revisão de técnica, utilizando-se também estudos de Matteo Carcassi, Fernando Sor, Mauro Giuliani e Heitor Villa-Lobos. Os conteúdos estilísticos, de repertório, são distribuídos de forma equilibrada entre os semestres.

Outro docente revela que em sua instituição o curso se inicia com estudos melódicos e pequenas peças clássicas visando a leitura, ainda sem o trabalho de técnica pura. Em uma segunda fase a técnica se torna presente em 20 ou 30% do tempo de aula. Depois disso, a técnica fica por conta do aluno, já que a atenção ao repertório toma cada vez mais conta do tempo.

Outro professor inicia com procedimentos técnicos mais ligados ao repertório clássico, já que considera este estilo um ponto de partida relevante a uma construção sólida das bases. Trabalha eixos de movimentação por corda comum e noções de dedo-guia para a condução do braço em diferentes posições no instrumento. Além disso, enfatiza limpeza da sonoridade, como apagadores de baixos e escalas com observação de timbre. A partir daí o aluno passa mais à abordagem de repertório em diferentes estilos e épocas, praticando questões pontuais de técnica de acordo com a necessidade da obra. O aluno trabalha 8 peças por semestre, sendo 3 de caráter didático e 5 de repertório. No decorrer do curso há ainda a integralização de obras completas, como suítes e sonatas, trabalhando-se dos movimentos mais simples aos mais complexos na medida em que os semestres avançam.

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Em outra instituição a exigência é que o aluno trabalhe no primeiro ano obras do século XIX. No segundo ano uma obra completa de Bach, e no último um concerto para violão e orquestra. O restante é livre, abrangendo todos os estilos e períodos.

Outra declaração relata que o professor dificilmente trabalha com dois alunos de forma igual. Entretanto considera o gênero estudo determinante para a condução do curso, por serem peças curtas e concentradas em determinadas técnicas. Tem preferência pelos clássicos como Sor, Giuliani e Coste, por conta da clareza da linguagem musical, ajudando a estruturar melhor a compreensão fraseológica e analítica dos discentes. Relata ainda que os estudos de Brouwer possuem o mesmo potencial, podendo substituir os clássicos.

Outro docente fala que no primeiro ano aplica essencialmente os estudos de Carcassi e Leo Brouwer, além de aprimorar algumas poucas obras escolhidas pelos alunos. No segundo ano trabalha os Prelúdios de Villa-Lobos, seus Estudos 3 e 4, além de uma obra clássico-romântica. Entre o segundo e terceiro ano é trabalhada uma obra polifônica renascentista, e do terceiro ano para frente uma suíte de Bach, geralmente um ou dois movimentos por semestre, até ser completada a obra. Ainda no terceiro ano o aluno estuda uma obra do repertório Segoviano ou uma obra consagrada da segunda metade do século XX. Já no quarto ano se volta a finalizar obras incompletas para a montagem do recital final.

Outro professor comenta que costuma pensar uma graduação contínua de conteúdos nos três primeiros anos, transferindo paulatinamente a iniciativa da escolha do repertório para o estudante. No quarto ano tende a deixar esta escolha bastante livre.

Em outra instituição, o professor fala dos dois primeiros semestres como um momento para se trabalhar os fundamentos técnicos, através de exercícios de escalas, ligados, saltos e arpejos. A partir do terceiro semestre inicia uma sequência de estudos progressivos de Sor (Op.60), Giuliani (Op.1), Carcassi (Op.25), Leo Brouwer, entre outros. Procura diversificar os trabalhos a fim de não sobrecarregar certos aspectos da técnica. Com relação ao repertório, trabalha com base na variação estilística. Comenta que certos estilos precisam de preparação, como por exemplo, tocar Robert de Visée, Brescianello ou Scarlatti antes de Bach. Da mesma forma Brouwer é usado como introdução ao repertório contemporâneo. Fala ainda do seu trabalho com melodias isoladas, observando fraseado, articulação e dinâmica em diferentes digitações, tanto de mão esquerda como de direita. Para isso, usa trechos de outros instrumentos ou do próprio violão, isolando a melodia do contexto polifônico. O objetivo é a formação do violonista enquanto músico completo.

Em outro depoimento o professor comenta que distribui os conteúdos de técnica de maneira mais ou menos livre, abordando essencialmente arpejos para mão direita e escalas para a esquerda, embora a separação ocorra apenas no âmbito teórico. Fala de um trabalho amplo com diversas escalas em todos os tons,

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através de material próprio, desenvolvido pelo professor. Com relação aos arpejos utiliza o Op.1 de Mauro Giuliani e os cadernos de técnica de Carlevaro. Comenta que o mais importante é que, escolhido o método, este seja realizado na íntegra. Entretanto, para qualquer método escolhido, nenhum é capaz de abordar a totalidade de situações, entrando aí o papel da técnica aplicada. Conclui falando que, em sua concepção, “técnica é autoconhecimento, de maneira que o aluno descubra quais caminhos podem fazer uma ideia musical funcionar melhor, e quais devem ser evitados”.

Outro professor fala da importância do embasamento técnico nos primeiros semestres, até a metade do curso, com foco no repertório nos últimos semestres. Entretanto, tudo depende da condição em que o aluno ingressa, já que o teste específico não nivela.

Já outro docente trabalha técnica de base nos dois ou três primeiros semestres (ligados simples, arpejos, escalas, velocidade, extensores, distensões). Aplica combinações e técnicas mais complexas na medida em que o estudante evolui (trino em cordas duplas, trêmulo, rasgueados, ligados com dedos fixos).

Em outra instituição, um professor comenta que há aspectos comuns que devem ser abordados por todos, como a prática de escalas, ligados e arpejos, assim como algumas obras do repertório. Há ainda vários depoimentos que dizem primar pela periodização do repertório como guia para o desenvolvimento do curso.

Em certa instituição o professor tenta completar a base técnica até o final do violão IV. Se for necessário, o aluno pode continuar tais estudos matriculando-se na disciplina Fundamentos da Técnica. A partir deste ponto, não há mais obras obrigatórias e o aluno segue estudando a literatura, respeitando a variedade estilístico.

Alguns docentes comentam ainda a priorização da sonoridade no trabalho de técnica, ligado ao relaxamento, postura e lixamento das unhas. Já outros argumentam sua posição falando da impossibilidade de se pensar em uma distribuição mais ou menos fixa de conteúdos, devido a variedade de perfis e condições de ingresso dos estudantes, bem como por seus diversos interesses e perspectivas.

Para concluir, podemos observar de forma geral nos depoimentos a queixa de que os alunos ingressam no curso em certa defasagem com relação às expectativas dos professores e aos objetivos de um bacharelado. Desta forma, poucos conseguem uma profissionalização imediata como concertistas, e isso, muitas vezes acaba levando anos para que se consolide, até que atinjam uma certa maturidade. E isso se deve em parte aos estudos musicais que antecedem a universidade, já que ocorrem de forma tardia ou deficiente. Assim, de acordo com grande parte dos depoimentos, os alunos entram despreparados tecnicamente e com pouca bagagem musical para obterem êxito ao se formarem. Desta maneira, boa parte do tempo do curso é destinado à resolução de bases.

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Podemos então sintetizar os caminhos da condução dos cursos revelados nos depoimentos:

Fase de aprimoramento de bases

Estudo da técnica pura e aplicada

Estudos de Fernando Sor, Mauro Giuliani, Napolean Coste, Matteo Carcassi e Leo Brouwer

Em geral, aplicação de estéticas clássicas, pela clareza musical e síntese instrumental idiomática

Trabalho com peças curtas

Fase de construção de um repertório visando o recital final

Variação estilística como base da condução

Integralização gradativa de obras no decorrer dos semestres

Abordagem de obras polifônicas, harmônicas, passando por Sonatas, Fugas, Suítes e Concertos.

2.8. Questão 9:

Quanto a sua condução pedagógica:

a - ( ) O repertório aplicado aos alunos é pensado em função da técnica que está sendo trabalhada no momento;

b - ( ) A técnica é trabalhada em função de resolver um repertório ou estilo específico que está sendo aplicado;

c - ( ) Outra. Comente:

A questão tem o intuito de verificar, nas tendências pedagógicas atuais, o fio que conduz os cursos, se é a técnica ou o repertório. O resultado, em termos quantitativos, foi o seguinte:

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Ex.8 – Proporção de priorização de técnica e de repertório de acordo com o questionário.

Apenas 3 docentes marcaram a alternativa a, em que o repertório é pensado em função da técnica que está sendo trabalhada. Esta opção revela, de certa forma, a técnica como fio condutor do curso. Os diferentes estilos são trabalhados na medida em que se resolvem os mecanismos de execução.

Já 9 docentes optaram pela alternativa b. Neste caso, o repertório conduz o curso.

Entretanto, a maioria, 14 docentes marcaram a alternativa c, resposta aberta, que possibilita argumentação. Analisando os argumentos, podemos verificar uma tendência no sentido de que tanto a alternativa a como a b se aplicam. Um docente fala da complementariedade, que tanto se pode estudar técnica para um determinado repertório, como estudar repertório para uma determinada técnica. Em outra declaração o professor ressalta que o gênero estudo é aplicado visando uma resolução técnica, enquanto o repertório geral é escolhido em função de um aprimoramento estético. Outro docente, que marcou todas as alternativas, fala que “é difícil separar o assunto em a e b. A música é sempre o objetivo final, porém a alternativa a é necessária em função da necessidade de se construir, “quase do zero”, alunos que prestam vestibular no interior do país”.

Há ainda o caso de um curso que, dependendo do estágio, há foco em uma ou outra questão. A técnica é priorizada no 1º e 3º ano, enquanto que no 2º e no 4º o centro é o repertório. Esta alternativa parece interessante, pois possibilita tempo de reflexão e amadurecimento por parte dos alunos entre uma e outra atividade.

Em outro questionário, o docente revela que ambas as questões, técnica e repertório, não se relacionam necessariamente. O aluno deve trabalhar os exercícios de mecanismos focados em escalas, ligados e arpejos, independente

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do repertório. O intuito é, segundo o professor, que se desenvolva um bom material orgânico para o fazer musical. Entretanto, a mesma declaração revela que o repertório deve ser escolhido para que o aluno conheça os vários estilos, dando-nos um indício de que parece ser este o fio condutor do curso.

Por fim, outra declaração revela que cada aluno representa um universo distinto, e que dificilmente se trabalha com dois alunos da mesma maneira. Leva em conta o estágio técnico, provável emprego de repertório no futuro, preferências estéticas e a carreira (se são do bacharelado ou de outros cursos). Entretanto, segundo o professor, é geralmente necessária a incorporação de obras curtas (estudos), visando uma estruturação mais adequada do domínio instrumental. Desta forma, a alternativa a é aplicada com frequência.

Assim, para concluir, verificamos que dentro da resposta aberta, que constitui a escolha da maioria, não há necessariamente uma priorização explícita. O que podemos verificar é que todos concordam que os alunos precisam ter um bom desempenho técnico durante o curso para que possam resolver o repertório de maneira eficiente. Para isso, além da técnica pura, muitos recorrem ao gênero estudo para tal fim, ou seja, escolhendo repertório com fins de aprimoramento instrumental. Já 47% dos docentes deixam claro qual é o seu fio condutor, sendo 35% guiados pelo repertório e desenvolvimento musical do aluno, contra apenas 12% daqueles que se orientam pela resolução dos mecanismos de execução.

3. Considerações finais

Quando analisamos a situação do ensino do violão nos cursos superiores não estamos apenas tomando referencias para a elaboração de um novo programa. Mas o que consideramos de maior importância nesta análise é a verificação dos caminhos tomados pelo violão na atualidade, a direção dos cursos na profissionalização dos instrumentistas. Verificamos que o caminho tradicional de ensino predomina, através de seu repertório com ênfase na tradição solista, com poucas referências à possibilidade de uma carreira camerística, por exemplo. Ainda que os cursos apresentem em sua estrutura curricular a disciplina de música de câmera, não há uma manifestação explícita dos docentes de violão no sentido de terem algum tipo de interferência neste possível campo de aprendizado de seus estudantes. Constatou-se também pouco espaço à contemporaneidade, verificado na lista de compositores citados. Também não se observou nas respostas ao questionário formas de incentivo a diálogos com compositores ou estudantes de composição. Isto pode ser um fato preocupante no que se refere a uma estagnação de repertório. É interessante que novos instrumentistas se interessem por tocar novas obras, e que novos compositores se interessem e tenham respaldo ao escreverem para violão. A atividade violonística pode ser enriquecida quando há uma interação com a produção artística local, saindo dos círculos fechados dos violonistas e penetrando em

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uma discussão mais ampla. Não estamos criticando de forma negativa a tradição histórica do violão, que em nossa concepção deve ser mantida. Nosso discurso defende a importância de termos um violão vivo, como instrumento ativo na contemporaneidade. O intuito do questionário não foi necessariamente discutir essas questões, e por isso não tem condições de dar um respaldo mais consistente sobre esse tema. Mas acreditamos que a ausência de referências a este assunto, especialmente pelo fato do questionário ter possibilitado discussões pelas questões abertas, mostra um pequeno sintoma que pode ser olhado com mais cuidado em nossas instituições. Desta forma, o breve mapa que apresentamos tem o intuito de incentivar a reflexão crítica sobre algumas tendências do ensino do violão no país, tomando como guia o entendimento de que a arte se faz a partir de caminhos criativos e que, desta forma, pressupõe-se que a criatividade deva estar no centro da formação, seja na escolha do repertório ou na forma de realiza-lo.

Referências

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GIULIANI, Mauro. Studio per la Chitarra. Ed. Fac-simile. Vienna: Artaria,1812.

LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Trad. Heloísa Monteiro e Francisco Sattineri. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1999.

PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. Metodologia da Pesquisa: abordagem teórico- prática. 9a Ed. Campinas: Papirus, 2000.

PINTO, Henrique. Técnica de mão direita. São Paulo: Ricordi, s.d. PUJOL, Emílio. Metodo Razionale per Chitarra. Vol.1. Milão: Ricordi, 1961.

SÁVIO, Isaías. Escola Moderna do Violão: técnica do mecanismo. Vol. 1. São Paulo: Ricordi, 1985.

SÁVIO, Isaías. Escola Moderna do Violão: técnica do mecanismo. Vol. 2. São Paulo: Ricordi, s.d.

TENANT, Scott. Pumping Nylon. USA: Alfred Publishing, 1995.

Notas

1 A relação de professores citados foi extensa, e resolvemos publicar aqui apenas aqueles que aparecem com duas ou mais citações. A ordem que aparece na tabela é decrescente em relação ao número de citações.

2 A tabela completa não foi publicada aqui por uma questão de espaço.

Autores

SCARDUELLI, F.; FIORINI C. F. O violão na universidade brasileira… Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.215-234.

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Fabio Scarduelli - Violonista, professor e pesquisador; Doutor e pós-doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduou-se na Escola de Música e Belas Artes do Paraná e lecionou em instituições como a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a UNICAMP. Teve como professores de violão Mário da Silva, Luiz Cláudio Ferreira e Henrique Pinto. Apresentou-se em recitais em vários estados brasileiros, como solista e camerista. Seus alunos têm se destacado em concertos e concursos nacionais e internacionais. Participou como palestrante e concertista em eventos como o Simpósio Acadêmico de Violão da EMBAP, em Curitiba-PR, o IX Seminário Internacional de Violão Vital Medeiros, em Suzano – SP, o I Encontro de Educadores em Música de USP – Ribeirão Preto, dentre outros. Atualmente é professor adjunto da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (UNESPAR) e professor colaborador do Programa de pós-graduação em Música da UNICAMP.

Carlos Fernando Fiorini - Doutor em Música (Regência) e Mestre em Artes (Música) pela UNICAMP, Carlos Fiorini graduou-se em Regência e Composição pela mesma instituição. Desde 1998 é docente da área de Regência do Departamento de Música da UNICAMP, onde atualmente é Coordenador de Graduação. Trabalhou como Regente Assistente das Orquestras Sinfônicas da Universidade Estadual de Londrina, de Sorocaba e de Bragança Paulista. Em 2000 e 2001 atuou como Regente e Diretor Musical do Festival “Aldo Baldin” de Florianópolis, e de montagens de óperas pela Cia. Ópera São Paulo. De 2005 a 2008 foi Regente Assistente e Titular da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Criou em 1996 a Camerata Anima Antiqua, grupo dedicado à música renascentista, do qual ainda é seu Diretor Artístico. Em 2009 criou no Instituto de Artes da UNICAMP um Centro Interno de Pesquisa dedicado à regência coral e orquestral denominado “Regência – Arte e Técnica”, do qual fazem parte o Coro do Departamento de Música e a Camerata Anima Antiqua.

CASTRO, A. A.; RIBEIRO M. T. F. Música e desenvolvimento em Salvador... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.235-257.

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PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.31, 353p., jan. - jun., 2015 Recebido em: 16/04/2014 - Aprovado em: 14/06/2014

DOI: 10.1590/permusi2015a3113

Música e desenvolvimento em Salvador (Bahia), à luz da geografia crítica e ecologia dos saberes Armando Alexandre Castro (UFRB, Santo Amaro, BA) [email protected]

Maria Teresa Franco Ribeiro (UFBA, Salvador, BA) [email protected]

Resumo: Registro do mapeamento de um conjunto considerável de instituições que utilizam a música como elemento estético-pedagógico relevante na transformação social de cidadãos em Salvador (Bahia), uma cidade que, distante dos discursos turísticos, apresenta consideráveis índices de pobreza, concentração de renda e desigualdade socioeconômica. O referencial teórico está alicerçado na geografia crítica e no conceito de ecologia dos saberes. A metodologia escolhida contempla a coleta e análise de estatísticas socioeconômicas oficiais sobre Salvador, e uma a pesquisa de campo com aplicação de entrevistas semiestruturadas. Palavras-chave: música e desenvolvimento social; educação musical; geografia crítica; ecologia dos saberes em música.

Music and development in Salvador (Brazil), by the light of critical geography and ecology of knowledge

Abstract: Mapping of significant institutions using music as an important aesthetic and pedagogical element in the social transformation of citizens in Salvador (Brazil), a city that, far from tourist appeal, presents considerable poverty rates, concentration of income and socioeconomic inequality. The theoretical framework is grounded in critical geography and the concept of ecology of knowledge. The chosen methodology includes the collection and analysis of Salvador´s official socioeconomic statistics, and a field research with application of semi-structured interviews. Keywords: music and social development; music education; critical geography; ecology of knowledges.

1 - Introdução A partir de uma análise fundamentada, racional e pertinente, pode-se afirmar que os resultados do processo de globalização e os impasses que surgem no plano econômico, social, político e ambiental colocam em xeque os pressupostos e instrumentos de suporte à gestão social e à intervenção sobre a realidade. O desenvolvimento e o progresso prometidos pela ciência moderna mostraram-se excludentes e perversos, quando se consideram os desafios postos aos países não-desenvolvidos de competirem nos mercados globais e, simultaneamente, elevarem a qualidade de vida e de bem-estar de suas populações. A manutenção da lógica competitiva dos mercados globais tende a acirrar contradições, exclusão social e desastres ambientais. O momento atual aponta para a necessidade de renegociação das bases de uma outra sociedade (LEFF, 2006; DUPAS, 2004; SACHS, 2005; 2007).

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Esse processo, segundo DUPAS (2009), acentuou, nas últimas décadas, duas tensões fundamentais que convergem agora para o mesmo impasse estrutural. De um lado, a estagnação dos níveis de pobreza e agravamento da concentração de renda. De outro, o acirramento das questões ambientais provocadas pelo próprio modelo econômico “sucateador” de produtos e “esbanjador” de energia. No contexto da crise recente do capitalismo, de caráter geral e sistêmico, segundo PAULA (2010), o Brasil mostrou que sua economia é capaz de crescer, mas é estruturalmente incapaz de superar o subdesenvolvimento, na medida em que isso significa transformações estruturais, que passam por uma radical distribuição da renda e da riqueza, da sustentabilidade ambiental, da valorização da diversidade cultural e da eliminação de todas as formas de opressão, objetivos que colidem, consideravelmente, com o modelo capitalista. Isso significa que as discussões aqui desenvolvidas caminham na contramão da ordem capitalista hegemônica, portanto, subordinada a esta. Entretanto, compreendendo o processo histórico como dialético e não linear, acreditamos na importância da compreensão da dinâmica dos movimentos sociais e de organização da sociedade civil como espaços de formação de consciência política fundamental para um projeto emancipatório. Assim, o final do século XX e início deste são marcados pelo retorno ao debate sobre o desenvolvimento e questões espaciais e ambientais. Percebe-se que, ao longo da expansão e produção do capital, há, simultaneamente, a produção e reprodução de espaços capitalistas. Esse processo aprofunda as desigualdades regionais, sociais e econômicas. Das diversas abordagens contemporâneas que discutem as bases dessa crise e as possibilidades de superação, grosso modo, ressaltamos quatro contribuições, desde já advertindo para os limites das classificações ou tipologias que abordam temas tão complexos e transversais. Apenas para exemplificar algumas das diferentes orientações do debate, destacamos quatro abordagens: a primeira interpretação da crise do desenvolvimento emana daqueles que a associam ao modo capitalista de produção e à sua lógica de acumulação. Portanto, sua superação passa, necessariamente, pela própria superação desse modo de produzir, distribuir e se apropriar tanto dos resultados da produção quanto do próprio espaço social. Segundo HARVEY (2005), as dimensões geográficas relativas à acumulação do capital e à luta de classes desempenham um papel fundamental na perpetuação do poder burguês e na supressão dos direitos e aspirações do trabalhador, não apenas em lugares específicos, mas também globalmente.

Uma segunda abordagem, a crítica antropológica, revela o papel do etnocentrismo e do eurocentrismo na definição dos valores e normas do desenvolvimento, enquanto promessa ocidental, ressaltando a natureza histórica e pretensamente universalizante da modernidade. Para essa corrente, os princípios do progresso e da civilização impuseram lógicas e racionalidades como medidas universais para diferentes realidades socioculturais e contextos históricos, e apontam para a

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necessidade de diálogo com/e entre os povos indígenas, assim como sinalizam acerca do respeito às diferentes racionalidades (TUCKER, 1999; SAID, 2007).

A terceira visão, numa mesma linhagem da crítica pós-moderna, adverte para a impossibilidade do caráter universal do desenvolvimento, fruto de uma utopia iluminista que acabou favorecendo os interesses das classes dominantes. Existe, atualmente, um movimento ascendente na Europa, vinculado à escola pós-desenvolvimentista, segundo a qual, assim como o progresso, o desenvolvimento pode trazer consequências sobre a vida e a liberdade dos homens, camuflando os interesses de diversos grupos de poder que se beneficiam desse mesmo processo. Defendem o pós-desenvolvimento e a pesquisa sobre modos de épanouissement coletivos que não buscam apenas o bem-estar material, responsável pela desestruturação do ambiente e das relações sociais, mas respeitam as especificidades dos povos. Ressaltam, assim, a natureza essencialmente plural do desenvolvimento, aquela que se desenha de forma sensivelmente diferente no Norte e no Sul (LATOUCHE, 2004; ESCOBAR, 2007; RIST, 1996).

Finalmente, a quarta abordagem diz respeito à corrente crítica contra-hegemônica que assume os desafios da construção dos valores universais em novas bases. A falta de respostas às questões relacionadas com as desigualdades sociais e a continuidade do tratamento das questões do desenvolvimento, fundamentalmente, na perspectiva econômica, deverão ser a tônica das reivindicações dos movimentos alternativos expressos, principalmente, no âmbito do Fórum Social Mundial. Os trabalhos oriundos desse debate sinalizam a natureza polissêmica e multidimensional do desenvolvimento. Essa corrente recoloca o debate sobre qual globalização se quer construir e os caminhos possíveis (ESCOBAR, 2007; SOUSA SANTOS, 2001; SANTOS, 2001). Muitos pontos explorados por essas abordagens se entrecruzam, como a questão ambiental e a retomada do debate sobre as dimensões e especificidades dos territórios e seus sujeitos. Todas as abordagens têm uma compreensão e um viés sobre como os problemas desse padrão de desenvolvimento afetam a humanidade, assim como das possibilidades de construção de novos caminhos alternativos. Para SOUSA SANTOS (2007), é necessário muito mais que uma resistência política, mas uma resistência epistemológica, a construção de um pensamento alternativo às alternativas. Importa, para o autor, alterar o domínio do centro e propor alternativas de análise que permitam atuar em duas direções: uma, no sentido de combater a noção dominante de desenvolvimento, concebida a partir de perspectivas hegemônicas do centro; e outra direção, que busca compreender, a partir das bases, como os grupos sociais dialogam com as imposições que lhe são colocadas e as formas de resistências que têm mobilizado contra estes (MENESES, 2004). Apesar desse intenso debate, duas “verdades ou mitos” ainda parecem persistir: a primeira, a ideia do desenvolvimento como um caminho linear a ser perseguido, a partir de experiências dos países desenvolvidos ou do Norte; e a segunda, a crença de que a aplicação dos conhecimentos disponíveis podem ser transferidos e aplicados de maneira universal. Esses dois princípios partem do pressuposto de que

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tanto a ideia de desenvolvimento como a de ciência seriam neutras, e que o avanço desta traria, necessariamente, o progresso para todos. A “crença” na neutralidade da ciência e na “universalidade” dos indicadores de desenvolvimento continua a orientar a elaboração de políticas de desenvolvimento, tanto no Norte, como no Sul. Desconsidera-se a existência de valores sociais e interesses econômicos implícitos na produção do conhecimento científico e tecnológico, bem como as consequências de sua aplicação em contextos histórico-culturais específicos. Deixa-se de lado, entretanto, a contribuição dos estudos sociais da ciência na definição de estratégias de desenvolvimento (LATOUR, 2004). Permeia essa visão a concepção de que a produção científica do conhecimento leva sempre à eficiência, e nega a importância de outras formas de conhecimento e saberes construídos ao longo da história, por diferentes sociedades (RIBEIRO, 2009). Isso não significa desacreditar na ciência ou reduzir a importância do conhecimento científico, mas incentivar o seu uso, também, a partir das necessidades e problemas específicos de cada realidade sociocultural. Um país não pode negligenciar as áreas duras da ciência, como a matemática, engenharias, etc. (SALES, 2010). A compreensão das especificidades culturais e humanas, entretanto, estimularia o diálogo entre a ciência, as artes e as humanidades, dando maior amplitude à sua aplicação. A busca da “completude” do saber e do ser potencializaria uma maior harmonia e respeito entre as diversidades socioespaciais. Esse é o papel estratégico do Estado e das políticas públicas, e é dentro dessa mesma perspectiva que focamos, nesse trabalho, campos sociais em que percebemos a potencialização da criatividade e da cidadania, principalmente, à margem da ação governamental. Esse foco poderia ser estendido para várias outras áreas da ciência, das artes e das humanidades. A partir de reflexões críticas acerca desses “mitos universais”, alguns estudiosos avançam na construção de novos princípios e conceitos que discutem e desconstroem antigas verdades científicas, baseadas no modelo cartesiano-newtoniano, e buscam dar conta da intrínseca interconectividade das relações da sociedade com a natureza e da complexidade dos processos de desenvolvimento (CAMARGO, 2005; HISSA, 2002; NICOLESCU, 2001; MORIN, 1999; MORIN e MOIGNE, 2000; SOUSA SANTOS, 2001, 2003). Esses autores realizam um esforço de crítica epistemológica e perseveram na construção de novas bases do conhecimento, valorizando o diálogo entre as suas áreas, e buscando integrar o que foi fragmentado. Assim, tornam complexo o que foi simplificado pela ciência moderna. Como apontam MORIN e MOIGNE (2000), o sujeito do conhecimento deve ser reavaliado em favor de outras concepções mais interativas, menos antropocêntricas e mais dialógicas, valorizando a arte do pensar. Nessa perspectiva, o conhecimento do homem e suas múltiplas dimensões não pode ser separado do Universo, mas inserido nele. Em outras palavras: “Quem somos é inseparável de onde estamos, de onde viemos e para onde vamos” (MORIN; MOIGNE, 2000, p.36). A compreensão e atuação sobre o local e o território não se limitam ao espaço físico, limitado

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geograficamente, mas, a um espaço possuidor de uma história, de uma cultura e inúmeras oralidades. A compreensão dessa trajetória é fundamental para a construção de uma consciência humanística e ética de pertencer à espécie humana, à dimensão terrestre e à dimensão local, para um agir responsável sobre essa mesma realidade. O agir transformador implica pertencimento, sensibilização e compreensão do processo histórico. A noção de pertencimento implica um auto-reconhecimento de pessoas capazes de interagir com os outros, de ouvirem e de serem ouvidas, de respeitarem e serem respeitadas Nesse sentido, como ressalta SEGURA (2001), a ampliação das relações de pertencimento depende da predisposição individual e coletiva para mudar o olhar e as atitudes. Esse novo olhar possibilitará a construção dessa nova epistemologia, menos arrogante e mais comprometida com os destinos da Terra. É nessa perspectiva que SOUSA SANTOS (1987) afirma que, na medida em que se superam as dicotomias entre mente e matéria, observador e observado, subjetivo e objetivo, coletivo e individual, animal e pessoas, a distinção entre ciência natural e ciência social deixa de ter sentido. Neste trabalho, procuramos compreender o crescimento de movimentos culturais, principalmente associados à música, investigando sua natureza alternativa, de resistência à marginalidade que lhes são impostas, a partir da abertura de novas perspectivas de envolvimento e reconhecimento de populações marginalizadas como sujeitos políticos, de valorização e contato com suas raízes históricas e culturais. 2 - Desenvolvimentos e Territórios de Utopias A abordagem da geografia crítica percebe a crise como resultante do próprio modelo de expansão capitalista, estando, portanto, sua superação associada à reconfiguração desse modo de produzir, distribuir e se apropriar, tanto dos resultados da produção, quanto do próprio espaço social. Nos últimos anos, experiências de participação democrática, como o orçamento participativo e a criação de fóruns de participação popular têm buscado superar o grande desequilíbrio entre classes e grupos sociais, mas os resultados não são tão animadores no âmbito geral. Em termos globais, o que se percebe é um aumento da parcela direcionada ao capital e uma redução da parcela apropriada sobre a forma de salário (HARVEY, 2010). Esses resultados são fruto da própria contradição do modo capitalista de produzir, que gera, inevitavelmente, concentração da renda e crises de realização ou superprodução. Essas crises podem ser postergadas pelo ajuste espaço-temporal do excedente econômico, seja pelo deslocamento no tempo dos investimentos de capital em projetos de longo prazo, seja através da incorporação de novos espaços geográficos, incorporação de novos mercados (HARVEY, 2006). É evidente que com a expansão capitalista, o processo de globalização, as possibilidades de realização e eficiência desses ajustes vão ficando cada vez mais longínquos.

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Sem desconsiderar a natureza da crise e suas profundas raízes estruturais, HARVEY (2010) apresenta diversos fatores associados à dinâmica capitalista, apontando, ainda, a criatividade do sistema de encontrar novos caminhos, a partir de novas organizações sociais e tecnológicas. A centralidade da crise no excessivo poder do capital aponta, segundo este autor, para novas oportunidades e transformações desse modo de desenvolvimento rentista, fortemente competitivo e individualista. Não obstante, sinaliza acerca da relevância de se pensar a perspectiva do desenvolvimento humano neste processo, assim como das capacidades humanas de buscar o novo. Neste sentido, a gravidade das condições sociais e ambientais sinaliza a necessidade de se pensar alternativas. Valorizar aspectos da vida, da sociabilidade e criatividade, como a poesia, a música e as várias áreas das artes e humanidades. A busca pelo inusitado, pela realização e satisfação pessoal seriam os motores da dinâmica do desenvolvimento, e de outras possibilidades de existência menos utilitarista. Não se eliminariam os conflitos e os diversos problemas oriundos dos processos socioespaciais, mas a busca precisa priorizar o “florescimento” da capacidade humana. Como esse processo dialogará com a dinâmica social, política e econômica, somente o decurso da história para mostrar, mas a esperança é que essas atividades ampliem a compreensão do mundo e a ação política. Nesse sentido, acreditamos que o pensamento de HARVEY (2010) se aproxima das utopias sinalizadas por SANTOS (2000), quando aponta a importância de se pensar o espaço como reprodução da vida, e não apenas da mercadoria. Segundo SMITH (1996), para SANTOS, o espaço era um projeto político, o projeto humanista final: o veículo de libertação que precisa ser refeito não como meio de exploração, mas de reprodução da vida social, como possibilidade de outra globalização, respaldada nas mesmas bases técnicas, mas a serviço de outros objetivos, outros fundamentos sociais e políticos. O autor levanta uma questão importante nesse debate, em que o processo de mundialização do produto, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo e da informação é, sobretudo, uma tendência, pois (...) “em nenhum país, houve completa internacionalização. O que há em toda parte é uma vocação às mais diversas combinações de vetores e formas de globalização” (SANTOS, 2000, p.30). Os esforços de SOUSA SANTOS (2007) se dão na mesma direção, se dedicando à compreensão dos motivos pelos quais as promessas emancipatórias da modernidade não se realizaram. O autor esforça-se na construção de novas bases epistemológicas que combatam o pensamento hegemônico ou pensamento ocidental, desde suas formulações, centrando seu discurso naqueles marcos que denominou de Sociologia das Ausências e Ecologia dos Saberes (SOUSA SANTOS, 2007). Assim como SANTOS (2000), SOUSA SANTOS (2009) acredita que o “cosmopolitismo subalterno” contém uma promessa real, apesar de se apresentar ainda bastante embrionário, e, para captar esse movimento, propõe o conceito de “sociologia das emergências”, segundo o qual,

[...] consiste numa ampliação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas

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constelações de sentido tanto no que respeita à compreensão, como à transformação do mundo (SOUSA SANTOS, 2009, p.92).

Nessa linha, SANTOS afirma que “[...] Nunca pensamos o mundo a partir da América Latina. [...] Pensamos Europa, Estados Unidos e excluímos a África e a Ásia. [...] Essa é a realidade que cobra de nós (uma) outra epistemologia” (1999, p.37). Assim, ainda segundo SOUSA SANTOS (2009, p.78), “as linhas cartográficas abissais” que demarcaram o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo. Para o autor, o pensamento moderno é um pensamento abissal formado por distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas suportam e fundamentam as expressões visíveis. O pensamento abissal não comporta os dois lados da linha, ele não reconhece o outro lado da linha. O pensamento moderno, ocidental é fundamentado na tensão entre regulação e emancipação social. O pilar da regulação social é constituído pelo princípio do Estado, princípio da comunidade e do mercado, enquanto o pilar da emancipação consiste nas três lógicas da racionalidade: a racionalidade estética e expressiva das artes e literatura, a racionalidade instrumental cognitiva da ciência e tecnologia, e da racionalidade moral/política da ética e do direito (SOUSA SANTOS, 2009). Ainda há, segundo o autor, subjacente a essa distinção, outra, invisível, na qual a anterior se funda, que é a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. Mas, não raro, a dicotomia regulação/emancipação só se aplica às sociedades metropolitanas. Nos territórios coloniais se aplica outra dicotomia, a dicotomia apropriação/violência. O pensamento ocidental não apenas reforça essa diferença, como a radicaliza. A visibilidade da ciência moderna se assenta na invisibilidade de outras formas de conhecimentos presentes nos territórios coloniais. A negação produz uma ausência: a ausência de humanidade, ou a subumanidade moderna. A pressão da lógica apropriação/violência sobre a lógica regulação/emancipação gera, aponta este autor, três tipos de fascismo social: o apartheid social (segregação social dos excluídos), o fascismo contratural (privatização dos serviços públicos, saúde, segurança e eletricidade), e o fascismo territorial (apropriação dos territórios, cooptando e violentando as instituições, ou novos territórios coloniais privados. Essas três formas de fascismo ficam muito evidentes ao analisarmos alguns dados socioeconômicos da cidade de Salvador, espaço que discutimos a emergência de alguns movimentos potencializadores de mudança, a partir da arte, especialmente a música. Para captar esses movimentos, SOUSA SANTOS (2009; 2007) propõe uma nova epistemologia, mas não de forma excessivamente generalista e ampla, pois hoje, dada a complexidade e pluralidade do mundo, não seria mais possível uma teoria geral. É na perspectiva da construção dessa nova epistemologia que SOUSA SANTOS (2009; 2007) propõe os conceitos de Sociologia das Ausências e Ecologia dos Saberes. Esse pensamento novo, pós-abissal, uma vez que o pensamento ocidental

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moderno dividiu, reduziu e excluiu experiências e saberes não hegemônicos, expressaria as formas de expressão e vida das comunidades excluídas, invisíveis e silenciosas. Esse novo pensamento eliminaria o desperdício das experiências, e confrontaria a monocultura da ciência moderna com uma ecologia dos saberes. Trata-se de uma ecologia porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos, e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles, sem comprometer sua autonomia (SOUSA SANTOS, 2009). A ecologia dos saberes reconhece a pluralidade de formas de conhecimentos, além daquele produzido pelo mundo científico. A sociologia das ausências é um conhecimento insurgente, que procura mostrar que o que não existe é produzido como não existente, como alternativa descartável e invisível à realidade hegemônica do mundo. As ausências são produzidas pela monocultura dos saberes, do tempo linear e da naturalização das diferenças, e, ainda pela monocultura da escala dominante (universalismo e globalização). Nessa perspectiva, os países do norte estão na frente, conhecem as aplicações do pensamento científico e devem ser seguidos. Compreender as ausências, suas lógicas e tensões permitem a reinvenção do espaço e o acolhimento das diversidades, abrindo possibilidades de transformação das monoculturas dos saberes em ecologias dos saberes. Esses espaços que HARVEY (2010) aponta para o desenvolvimento humano, das potencialidades das expressões humanas, e que SANTOS (2001) aponta como espaços da utopia. Esses espaços contemplam o diálogo entre ciência e outras formas de saber. Não se constrói novos caminhos de desenvolvimento negando os conhecimentos científicos e tecnológicos, mas construindo ou transformado-os a partir do olhar crítico das necessidades humanas. 3 - O espaço como corpo que abriga as diversidades

Sob a influência do conjunto das ciências sociais, o território passa da situação de uma descrição de uma malha espacial (no sentido jurídico-administrativo) para o estatuto de conceito que busca dar conta da complexidade da realidade e das construções socioeconômicas inseridas em um espaço físico. O conceito de território remete tanto aos aspectos formais (distribuição no espaço de materiais naturais e construídos, divisões administrativas, políticas e jurídicas), bem como os aspectos ligados ao sentido dessas formas (as ideologias espaciais, representações e sistemas de valores), como menciona BENKO (2007). O poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. Nesse sentido, o território cultural precede o território político e precede o espaço econômico (HAESBAERT, 2006). O território é um lugar compartilhado no cotidiano, criador de raízes e laços de pertencimento e símbolos. É através do conhecimento desses símbolos que podemos restituir toda a riqueza de valores que dão sentido aos lugares e aos territórios de vida. São nesses territórios dinâmicos que encontramos

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e reconhecemos as sociologias das ausências, (re)criando e (re)construindo outros sentidos para a solidariedade e condição humana. O território é visto como um campo de forças, uma teia, uma rede de relações sociais que, apesar de sua complexidade interna, define ao mesmo tempo um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” e os “outros”. Territórios são relações sociais projetadas no espaço, uma rede de relações sociais e produtivas capazes de produzirem singularidades (SOUZA, 1995). A ecologia dos saberes não concebe os conhecimentos em abstrato, mas como práticas de conhecimentos que possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real. Essas práticas se territorializam, criam redes de identidades e pertencimentos. O território, para SANTOS (2005), seria formado por redes de lugares. Essa compreensão valeria, segundo HISSA (2009), para as emoções, os sentimentos, a cooperação e a própria sociabilidade. Assim, o movimento, fenômeno, ausências, saberes que trazemos para a discussão, como expressão silenciosa do desejo de compartilhar da dignidade da vida, do corpo do mundo, são algumas experiências de desenvolvimento de espaços de conhecimento e produção musical com populações marginalizadas do processo de desenvolvimento, na Bahia. Em um levantamento recente, constatou-se a existência de 20 instituições baianas que desenvolvem trabalhos de ensino, educação musical, pesquisa e criação artística – ver Tabela 3. Nossa inquietação é: como esses movimentos se constituíram? Quais as contribuições para o desenvolvimento humano dessas pessoas, para a formação de territorialidades, espaços de emergência da criatividade, de dignidade, da busca permanente do novo; do sentido novo da vida numa cidade tão desigual como Salvador. 4 - A Bahia contemporânea Da condição agro-mercantil à inserção no mundo pós-industrial, é a partir do setor terciário de sua economia que a Bahia é inserida no amplo e competitivo cenário nacional e internacional contemporâneo. Bahia que apresenta altos índices de concentração de sua produção na capital e nos municípios formadores de sua região metropolitana. Dentro da mesma lógica do desenvolvimento da economia brasileira, a Bahia representaria assim a radicalização da face mais perversa desse modelo. Os dados oficiais e as estatísticas corroboram essa afirmativa, além de apontar que a trajetória de desenvolvimento econômico adotado, até então, tem oportunizado à capital baiana, altos índices de concentração de renda, pobreza, exclusão e violência. Em 2009, com uma população estimada em 2.998.056 (IBGE, 2010), Salvador apresenta uma incidência de pobreza de 35,76%, índice de Gini 0,49 (IBGE, 2003). A partir dos dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), o bairro da Pituba, por exemplo, com aproximadamente 200 mil pessoas,

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responde por 30% de toda a riqueza da cidade, correspondendo a 7,5% do total de moradores do município. No miolo da cidade, ficam os bairros mais pobres economicamente, como Cajazeiras, onde moram cerca de 300 mil pessoas (11% da população), que fica com somente 2,8% da riqueza. É bem verdade que os números da SEI são de 2003, mas incluem uma projeção para 2013, onde a partir dos estudos e estatísticas, a concentração de renda tende a se agravar. Segundo o estudo, em 2013, a Pituba concentrará 35% da riqueza de Salvador, enquanto Cajazeiras ficará com somente 2,1%. No campo da segurança pública, os dados também são preocupantes. Em 2008, a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia registrou 1.733 homicídios dolosos, o que corresponde a uma média mensal para este mesmo ano de 144 homicídios/mês, ou 36 homicídios/semana.

REGISTROS AISP1

AISP2

AISP3

AISP4

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AISP6

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AISP10

AISP12

AISP13

AISP16

AISP17

AISP18

AISP19

AISP20 TOTAL

Homicídio doloso 9 41 67 94 88 73 133 3 141 65 245 224 127 177 106 140 1.733

Tentativa de homicídio 6 24 43 71 66 55 78 8 69 44 187 127 23 110 62 60 1.033

Estupro 6 6 5 17 43 6 16 9 22 6 26 35 4 31 19 32 283

Roubo seguido de morte 0 0 0 5 1 0 0 0 1 5 4 3 1 9 3 0 32

Roubo a ônibus urbano 50 162 139 98 224 15 122 59 229 126 136 233 64 212 109 224 2.202

Furto de veículo 89 184 85 258 161 15 139 203 87 156 88 39 20 81 30 137 1.772

Roubo de veículo 91 174 159 207 372 3 246 427 290 578 380 186 156 428 167 697 4.561

ATIVIDADE POLICIAL

Usuário de Drogas 81 262 36 158 119 72 40 27 110 122 208 73 2 47 57 94 1.508

Veículos recuperados 33 139 82 126 192 24 208 730 190 186 338 184 204 247 109 332 3.324

Pessoas autuadas em flagrante 67 812 110 675 199 46 146 336 111 143 171 176 31 95 169 30 3.317

Apreensão de arma de fogo 7 112 29 183 142 15 34 49 51 58 93 75 12 37 49 28 974

Ex.1 – Tabela de registros de ocorrências policiais em Salvador - 2008 (SSP/BA, 2010)

Na Tabela 1, pode-se perceber que a Área Integrada de Segurança Pública (AISP) relacionada ao bairro de Cajazeiras - AISP 19 -, em 2008, totalizou 106 homicídios dolosos contra 03 no bairro da Pituba - AISP 8. O recorde de homicídios dolosos ficou com a AISP 13, que envolve os bairros de Narandiba, Doron, Tancredo Neves e Engomadeira, com 245 homicídios dolosos. As estatísticas e dados oficiais, assim como os estudos de entidades e movimentos em prol dos direitos humanos, permitem afirmar que boa parte dos bairros centrais de Salvador, aqueles marcados por grandes contingentes populacionais, apresentam os maiores riscos à condição humana, realçando uma capital desigual e excludente para a maior parcela de sua população. Dentro da perspectiva de SOUSA SANTOS (2009; 2007), o planejamento urbano regional, ao estimular e privilegiar as áreas “luminosas”, os chamados espaços

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globais, também cria ausências a partir do local, do particular. Esses “espaços opacos”, como aponta o autor, não teriam dignidade como alternativa crível a uma realidade global, universal. A preponderância da lógica da apropriação e violência gera o fascismo social, uma espécie de apartheid. Esta divisão é visível, principalmente, nos grandes centros urbanos brasileiros, e, em Salvador, não seria diferente. Quanto às taxas de desemprego na capital baiana, as informações da Pesquisa de Emprego e Desemprego, realizada pela SEI em parceria com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômica (Dieese), Fundação Sistema Estadual de Análise e Dados (Seade) e Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (Sete), apresentam aumento de 17,7%, (janeiro/2010), para 18,8% (fevereiro/2010), fenômeno já aguardado por conta do lançamento de jovens no mercado de trabalho, mas, também, justificado pela centralidade da capital baiana que atrai trabalhadores de outras regiões e municípios. Esse movimento expressa, também, a precariedade das oportunidades nas cidades médias e pequenas e a falta de políticas públicas direcionadas para a educação, saúde e valorização das histórias e culturas locais. Os bairros soteropolitanos que abrigam as experiências musicais pesquisadas são: Candeal, Pelourinho, Cabula, Alagados, Fazenda Coutos, Vasco da Gama, Centro, Queimadinho, Liberdade, Tancredo Neves, Rio Vermelho, Campo Grande e Canela. Na região metropolitana de Salvador, a iniciativa captada é a Cidade do Saber, município de Camaçari, que também utiliza a música como elemento estético-pedagógico. Os bairros registrados neste estudo encontram-se dispersos pelo município de Salvador, caracterizando a dicotomia entre apropriação e violência, como nos informam as tabelas 1 e 2. É importante ressaltar que a partir dos anos 1970, os Estados perdem a sua força como um dos atores mais relevantes da ação coletiva, se comparada à época do desenvolvimentismo. O poder de intervenção estratégica e definição das regras do jogo da ação política que definem e modificam os cenários das ações coletivas são minados pela força e interesse dos grupos internacionais. Com a liberalização das fronteiras, surgem jogos suplementares, novos papéis e regras desconhecidas, bem como novas contradições e conflitos. Nesse momento, cresce a participação das ONGs (organizações não governamentais) que passam a atuar em territórios e áreas sociais menos privilegiadas. Essas instituições iniciam os trabalhos com essas comunidades, fundamentalmente, a partir da década de 1990, quando se radicaliza o processo de modernização capitalista sob a batuta do FMI, e acirram as desigualdades sociais e a violência. A defesa do Estado mínimo e a privatização dos serviços públicos fundamentais são expressões da radicalização do fascismo social, presente nos territórios de apropriação e violência. A considerável desigualdade de renda em Salvador também se reflete na educação, destacando positivamente, mais uma vez, via UDH1, bairros litorâneos. Segundo o

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relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD -, esta relação em Salvador pode ser compreendida:

Enquanto na UDH – ITAIGARA 97,67% das crianças com idade entre 7 e 14 anos estão freqüentando o ensino fundamental, essa proporção é de 82,70% na UDH - COUTOS-Fazenda Coutos, Felicidade e chega a 78,68% na UDH vizinha, COUTOS/ PERIPERI-Nova Constituinte, a com o menor índice. Há forte relação entre esses níveis de frequência e os índices de alfabetização. Enquanto a primeira tem o terceiro menor percentual de pessoas maiores de 15 anos analfabetas da região metropolitana (0,93%) — atrás somente da UDH - CAMINHOS DAS ÁRVORES-Iguatemi (0,47%) e AMARALINA-Ubaranas (0,70%), ambas em Salvador — a UDH - COUTOS-Fazenda Coutos, Felicidade tem 12,95%. (PNUD/CONDER, 2006)

É possível perceber que avanços no nível de escolaridade, realçam consideravelmente as diferenças entre as UDHs. Se os bairros da Pituba e Itaigara apresentam 82,91% dos adolescentes de 15 a 17 anos frequentando o ensino médio, o bairro de Fazenda Coutos registra 16,03%. No nível superior, a distorção é ainda mais gritante. Nos dois primeiros bairros, o percentual de jovens com idade entre 18 e 24 anos matriculados em universidades/faculdades é de 59,64% (PNUD/CONDER, 2006), enquanto Fazenda Coutos amarga apenas 0,37% desta faixa etária populacional. Esses dados caracterizariam a segunda forma de apartheid, o fascismo contratual evidenciado a partir da precariedade dos serviços públicos e sua privatização. Um exemplo emblemático das novas possibilidades sociais e econômicas, a partir da música, é o de Nayara Cruz Cerqueira, estudante do curso superior de licenciatura em música da Universidade Católica do Salvador. Atualmente com 26 anos, iniciou os estudos musicais em 2002, no LactoGirls – grupo de percussão feminina criado pela Lactomia (Associação Lactomia Ação Social - ver tabela III), localizado no bairro do Candeal Pequeno, em Salvador. Em 2003, passou a estudar e participar das atividades musicais desenvolvidas na Associação Pracatum de Ação Social,- ONG criada pelo músico e compositor Carlinhos Brown. Em entrevista concedida no dia 14 de junho de 2010, Nayara Cruz, aponta sua participação nestes projetos como experiências fundamentais que a direcionaram para o ensino superior. Por problemas financeiros, já teve de trancar o curso superior em duas oportunidades, e atualmente custeia as mensalidades com recursos advindos de aulas particulares de música, cachês de shows como percussionista, trabalho regular como assistente administrativa na Escola Eraldo Tinôco2, além de, nos finais de semana, desempenhar atividades como panfletagem e distribuição de material publicitário sobre empreendimentos imobiliários da capital. Com algumas viagens internacionais na carreira musical, Nayara Cruz Cerqueira, que sempre residiu em Cajazeiras, conheceu os projetos sociais que participou a partir de parentes que residiam no Candeal, e informa que, por diversas vezes, deixou de ensaiar e estudar por indisponibilidade financeira para deslocamentos, uma vez que não são bairros próximos. Cajazeiras é um bairro populoso e distante do centro de Salvador, e seus índices educacionais, vide tabela II, se representam diminuição nos números de analfabetos, também ofertam um quadro onde 66,42 %

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da população entre 18 e 24 anos têm menos de onze anos de estudo, e apenas 0,54% deste contingente têm acesso ao ensino superior.

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UDH Código

% 18 a 24 anos

analfabetas (1991)

% 18 a 24 anos

analfabetas (2000)

% 18 a 24

anos com

menos de

quatro anos

de estudo (1991)

% 18 a 24

anos com

menos de

quatro anos

de estudo (2000)

% 18 a 24

anos com

menos de oito anos

de estudo (1991)

% 18 a 24

anos com

menos de oito anos

de estudo (2000)

% 18 a 24

anos com

menos de

onze anos

de estudo (1991)

% 18 a 24

anos com

menos de

onze anos

de estudo (2000)

% 18 a 24

anos com doze anos

ou mais de

estudo (1991)

% 18 a 24

anos com doze anos

ou mais de

estudo (2000)

% 18 a 24 anos

no curso

superior (1991)

% 18 a 24 anos

no curso

superior (2000)

% 18 a 24 anos

com acesso

ao curso

superior (1991)

% 18 a 24 anos

com acesso

ao curso

superior (2000)

ÁGUAS CLARAS / CAJAZEIRAS (Cajazeiras V,VI e VII) 89 7,65 1,20 16,83 7,32 46,99 35,13 81,34 66,42 2,79 0,23 0,92 0,54 1,26 0,54

ÁGUAS CLARAS 88 5,93 3,12 18,13 11,85 59,98 45,96 88,36 83,40 0,33 2,11 0,33 1,41 0,33 1,41

CAJAZEIRAS/FAZ GRANDE (Cajazeiras VIII, Faz Gde II e III) 82 0,59 2,59 10,75 11,13 54,19 48,62 85,02 80,04 3,21 1,03 0,90 1,50 0,90 1,50

CAJAZEIRAS (Cajazeiras X e XI) 90 2,92 0,33 14,68 8,19 53,10 35,40 79,29 77,74 2,85 1,73 2,35 1,16 2,35 1,16

FAZENDA GRANDE (Fazenda Grande I e II) 94 2,81 2,76 14,00 8,49 48,75 27,97 80,58 69,29 0,42 1,43 0,42 2,29 0,42 2,29

FAZENDA GRANDE (Fazenda Grande III e IV) 93 2,22 1,87 9,34 6,86 41,60 30,50 78,17 71,02 2,05 0,86 2,87 1,34 2,87 1,34

XIV – CAJAZEIRAS 14 4,09 2,03 14,49 9,03 50,82 37,41 81,95 74,67 1,85 1,23 1,31 1,38 1,38 1,38

REGIÃO METROPOLITANA DE SALVADOR

6,43 3,08 18,56 12,27 53,07 41,31 76,92 70,08 5,30 6,66 5,05 7,82 5,36 8,09

Ex.2 – Tabela Nível de Educação no bairro de Cajazeiras (PNUD/CONDER, 2011).

Ex.3 - Quadro da Renda por UDH em Salvador (PNUD/CONDER, 2011).

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Ex.4 - Quadro da alfabetização por UDH em Salvador (PNUD/CONDER, 2011).

5 – O desenvolvimento e as sonoridades emergentes Se a concentração do acesso à educação, das atividades produtivas e da riqueza em Salvador, assim como seus próprios registros internos de desigualdade oportunizam externalidades negativas, também é possível perceber mudanças de comportamento, questionamentos acerca da relação homem/capital, da díade tempo-espaço, da oferta de outras possibilidades de (con)vivência humana a partir do sonho, do subjetivo, do conhecimento, e, principalmente, da música como elemento de (res)significação do sentido da vida. Uma transformação silenciosa, mas significativa, a partir da educação musical oportunizada por organizações não governamentais (ONGs), organizações sociais, instituições sem fins lucrativos, escolas públicas, além de programas e projetos relacionados a órgãos governamentais. Enquanto prática presente no cotidiano de milhares de pessoas e da própria cidade, pode-se compreender, a partir dos exemplos discriminados abaixo, o valor da dignidade humana como valor ético intercultural (SOUSA SANTOS, 1995) que também transcende os modelos organizacionais, reiterando a limitação do mercado (RAMOS, 1989). A multidimensionalidade registrada a partir da diversidade de organizações inscritas na Tabela III acaba por ressaltar a necessidade de se repensar novas dimensões para o modelo de desenvolvimento para a cidade do Salvador, a partir de valores mais integrativos, tolerantes, e compreensíveis à própria diversidade, “(...) onde o homem se empenha em tipos nitidamente diferentes, embora verdadeiramente integrativos, de atividades substantivas” (RAMOS, 1989, p.140). Ainda para este autor, o modelo multidimensional expande a noção de recursos e de produção, considerando atividades remuneradas e não remuneradas, produção econômica e produções de outra natureza. O pressuposto basilar do modelo proposto por este autor supõe que para alcançar a sua atualização pessoal, o indivíduo deve procurar se libertar da dependência do mercado – este último, enquanto detentor de emprego. Não se trata, assim, de abandonar o modelo de produção vigente, mas de pensar novas possibilidades produtivas, menos injustas, dentro dele.

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Instituição Natureza Fundação Oficial

Bairro Objetivos/Características

Associação Lactomia Ação Social

ONG

2003

Candeal Pequeno

Utilização de materiais reaproveitados do lixo, e a transformação destes em instrumentos de percussão, figurino e cenário. O objetivo do grupo é levar a sociedade à reflexão sobre cidadania e responsabilidade ambiental, através de composições que retratam temas e dificuldades da situação mundial.

Centro de Educação Profissional Pracatum/Escola Pracatum

ONG

1995

Candeal Pequeno

Educação musical e tecnologia como elementos de inclusão social. Cursos profissionalizantes em diversas áreas da arte musical, como mixagem, gravação digital, percussão, captação de áudio para cinema e TV, entre outras.

Eletrocooperativa

ONG

2003

Pelourinho

Ofertar humanização para o processo de inclusão digital, a partir da transformação do computador em instrumento musical. Atualmente conta com dois escritórios: Salvador e São Paulo. Em Salvador, a parte operacional dos cursos, oficinas e dmais atividades. Em São Paulo, concentra-se a captação de recursos e o relacionamento institucional com os parceiros.

Didá Escola de Música Feminina

ONG

1993

Pelourinho

Instituição cultural e sem fins lucrativos que tem o objetivo de elevar a qualidade de vida das pessoas através da música. Fundado por Neguinho do Samba, a educação musical oferta cursos para os instrumentos de cordas, sopro, teclado, percussão, canto, capoeira, dança afro, teatro, artes, inglês e informática. Possui três projetos: Didá Banda Feminina, Sódomo e o bloco de carnaval. Atende atualmente cerca de 200 jovens.

Grupo Cultural Olodum / Escola Olodum

ONG

1979

Pelourinho

Criado como bloco carnavalesco em 1979, a partir de 1983 dá início a outras atividades, e, dentre elas, a Escola Olodum. Destaque para seu projeto pedagógico de conteúdo multiétnico e multicultural, possuindo uma grade curricular pluricultural envolvendo diversas linguagens musicais, coral e dança afro e da inclusão cultural e digital. Em paralelo, também destacam-se questões como cidadania e diversidade étnica, por meio de Workshops de Formação de Lideranças Afro-descendentes e campanhas de mobilização social. Parceiros nacionais e internacionais em sua proposta pedagógica que alia tecnologia à qualificação profissional no campo musical.

Projeto Axé

ONG

1990

Comércio

Através da figura do educador de rua, estimula permanentemente os jovens a construírem um projeto de vida novo e renovador, onde estes passam a si reconhecer não apenas como Sujeitos de Direto, mas também, Sujeitos de Desejo. Em 20 anos de existência passaram pelo Axé mais de 13.700 crianças e adolescentes.

Escola de Educação Percussiva Integral (EEPI)

ONG

2007

Cabula

Educar, através da música, jovens em risco social e pessoal, para melhor qualificação na sociedade.

Grupo Cultural Bagunçaço

ONG

1991

Alagados

Objetiva atender e promover os direitos da criança, do adolescente e do jovem através de atividades artísticas, educacionais e socioculturais. Atividades como oficina de percussão, dança, arte com reciclados, literatura, bem como seminários, palestras e cursos profissionalizantes. Percussão e Reciclagem, mas também aulas de música percussiva, filarmônica e, mais recentemente, a TV Lata.

Instituto de Música da UCSal (IMUCSal)

Universidade (Extensão)

1989

Centro

Através da Oficina de Criatividade Infanto-Juvenil, desde 1989 desenvolve-se neste Instituto diversos cursos gratuitos em musicalização infantil e artes plásticas. O Projeto já atendeu mais de 1.500 crianças e adolescentes.

Escola Técnica Estadual Luiz Navarro de Brito

Rede Estadual de

2002

Queimadinho

Escola da Rede Estadual de Educação, onde a música é um elemento de socialização e inclusão sociocultural. A partir do interesse de sua atual gestora, disponibiliza amplo e equipado estúdio de ensaio, instrumentos musicais de cordas,

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Ensino sopro, além de fomentar a criação de grupos musicais locais. Procura estabelecer parcerias com as Universidades que enviam estagiários de música.

Fundação Pierre Verger

ONG

1988

Av. Vasco da

Gama

A partir do Espaço Cultural Pierre Verger, a Fundação oferece gratuitamente 15 oficinas para crianças e jovens, com temáticas que abordam a cultura afro-brasileira, música e a cidadania. No campo musical, destaque para Orquestra Experimental, Experimentação musical, Violão, Teclado e Percussão.

TV Pelourinho

ONG

2008

Pelourinho

Possibilitar através de oficinas a formação de jovens em funções técnicas capazes de facilitar a inserção no mercado de trabalho no campo do audiovisual. A música, como conteúdo transversal, integra temáticas das produções audiovisuais dos alunos. Atende 400 jovens/ano.

Bloco Afro Ilê Aiyê

ONG

1974

Liberdade

A Escola de Percussão, Canto e Dança Band'Erê, foi criada no final da década de oitenta para renovar os quadros artísticos da Band’Aiyê. A partir de 1995 torna-se uma escola de formação integral para a cidadania, a partir da identidade racial, do pensamento crítico e da auto-estima.

Ceifar

ONG

1994

Tancredo Neves

Surgiu da observação e avaliação dos problemas sociais dessa comunidade tendo como ponto de partida o planejamento familiar através de visitas e encontros de formação sobre sexualidade, a promoção de atividades lúdico-educativas, trazendo para a comunidade uma perspectiva de melhoria nas condições de vida. A educação musical é desenvolvida a partir do ensino da teoria musical aliada à formação de coral. Atende cerca de 490 crianças e jovens.

Oficina de Música Instrumental

ONG

2008

Canela

Oferece a crianças e jovens de escolas públicas de Salvador a possibilidade de conhecer a história do Trio Elétrico e de aprender a tocar guitarra baiana, violão, bateria, percussão ou baixo elétrico, que constituem a base instrumental para a formação de um músico de Trio Elétrico.

Neojibá

Organização

Social – SECULT/Ba

2007

Campo Grande

Programa de formação de núcleos de orquestras e corais infanto-juvenis no Estado da Bahia, visando a excelência e a integração social por meio da prática coletiva da música. Sua estratégia está focada na construção ética e pedagógica da infância e da juventude, mediante a instrução e a prática orquestral e coral, capacitação em ensino musical, novas tecnologias e na reparação de instrumentos musicais.

Cidade do Saber

Organização Social

2007

Cidade de Camaçari

(BA)

Propõe a prática musical de repertório popular e erudito, a leitura musical e o constante aperfeiçoamento técnico. Busca desenvolver habilidades específicas para a execução, sempre dentro de um contexto de compreensão das estruturas da linguagem e se colocando num permanente relacionamento com as particularidades próprias de cada instrumento. Dentre os cursos, Violão, Contrabaixo, Percussão, Teclado, Canto Coral e Bateria.

Hora da Criança

ONG

1943

Parque Lucaia

Fundada pelo professor, jornalista, advogado e teatrólogo Adroaldo Ribeiro Costa, oferta aulas de música, dança, teatro e artes visuais, além de iluminação cênica e cenografia. Atualmente atende cerca de 400 alunos/ano, desenvolvendo suas atividades em parceria com as redes estadual e municipal de educação.

Colégio Estadual Deputado Manoel Novaes Rede Estadual 1993 Canela Curso Técnico Profissionalizante em Execução Instrumental.

PIM - Projeto de Iniciação Musical

Instituto

1995

Fazenda Coutos

Um dos projetos vinculados à Associação dos Educadores da Escola Comunitária São Miguel. Atualmente encontra-se sob a coordenação do IOAO - Instituto Otaviano Almeida Oliveira. Desenvolve projetos artísticos-culturais a partir da música e da recriação dos folguedos populares. Em 2009, com o espetáculo Donos da Terra, recebeu o Prêmio Braskem nas categorias Melhor Espetáculo Infanto-juvenil e Melhor Diretor (João Gonzaga). Em 15 anos, os registros apontam para atendimento a 5.000 crianças e jovens.

Ex.5 - Tabela III - Música e Gestão Social

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Neste sentido, a educação musical oferecida pelas instituições aqui citadas3, não raro, vêm acompanhadas de orientação profissional, mas, principalmente, de conteúdo e discussões acerca da necessidade de reflexão acerca do modelo de desenvolvimento hegemônico, objetivando, ainda, um mundo mais humanizado a partir de pequenos e grandes gestos no cotidiano, tal como a desconcentração de renda, conhecimento, tecnologia, entre outros. É importante lembrar, como afirma SOUSA SANTOS (2002), que a globalização neoliberal é apenas uma das formas de globalização, dominante e hegemônica, mas não a única. Essa lógica é confrontada por outras formas alternativas, contra-hegemônicas, que podem sinalizar novos caminhos de desenvolvimento. Há uma crise do conhecimento, dos instrumentos políticos e da forma de fazer política. É nesse sentido que a crise abre espaços para a reformulação da própria forma de produzir conhecimento e sociabilidade. A partir do breve relato de algumas dessas experiências, pretendemos olhar e compreender a singularidade dos processos e a complexidade das dimensões envolvidas, em que a música é apenas a atividade organizadora, potencializadora de novas formas de realização e direcionamento do sentido da vida.

5.1 - Sonoridades emergentes: O Neojibá

Criado pelo pianista e maestro baiano Ricardo Castro, o Neojibá é configurado como um amplo programa governamental de formação de núcleos de orquestras e corais infanto-juvenis no Estado da Bahia, visando a excelência e a integração social por meio da formação de crianças e jovens sem distinção de classe social a partir da prática coletiva da música. No caso do Neojibá - Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia -, que prioriza turnês no interior do Estado, por exemplo, os primeiros alunos se tornaram multiplicadores, e estão iniciando a disseminação do conhecimento. O primeiro núcleo da Neojibá fora de Salvador será em Simões Filho, no Centro Educacional Santo Antônio (CESA), ligado às Obras Sociais Irmã Dulce. A implantação do Neojibá foi desenvolvida em intercâmbio com a FESNOJIV (Fundación Del Estado para El Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles de Venezuela), e seu "El Sistema", implantado há 35 anos e hoje mundialmente aclamado como uma das mais bem sucedidas experiencias de formação orquestral no mundo. Em dezembro de 2009, a gestão do NEOJIBÁ foi transferida para a primeira Organização Social de Cultura no âmbito do Estado, a AOJIN, que passa a receber os recursos governamentais à medida que executa as metas pactuadas no Plano de Trabalho do Contrato de Gestão. A estratégia adotada possibilita a contratação de profissionais com menor incidência da burocracia estatal, convite a profissionais estrangeiros, e a desvinculação das atividades do Neojibá do calendário político. 5.2 Sonoridades emergentes: A Eletrocooperativa

Outro exemplo a ser destacado é o da Eletrocooperativa, fundada em 2003, no Pelourinho. Aliando educação, música e tecnologia, já formou 930 jovens – não

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contando a turma atual -, a partir do Hip Hop e de um discurso criativo que contempla, inclusive, uma metodologia original, a Sevirologia, que significa “se virar para vir-a-ser”. A partir do sítio eletrônico da Eletrocooperativa, a definição de Sevirologia é justificada

Vem da expressão “se virar”: quando a gente se vira, fortalecemos nosso ser e nos encontramos com a nossa própria sabedoria. Isso traz uma nova forma de olhar para a vida, nos traz uma mudança de perspectiva, fortalece nossa auto-estima porque percebemos que somos capazes de fazer o melhor com aquilo que temos. O sevirólogo aprende sozinho e com os outros para construir seus caminhos sempre por meio da ação em busca da transformação. É um ser integral com quatro dimensões: a política, a ambiental, a cultural e a econômica.

A produção dos jovens da Eletrocooperativa é diretamente acompanhada pelo verbo disponibilizar. Neste caso, na rede mundial de computadores, através de portal próprio e utilizando as licenças creative commons. A evolução do processo de formação dos jovens, num segundo momento, identificou a necessidade de geração de renda, o que fez surgir em 2006, a Usina de Produção. A sede da Eletrocooperativa, localizada no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, agrega estúdio musical, ilhas de edição, salas da administração, computadores com programas de edição de áudio e vídeo. Nas paredes, quadros e pinturas em grafites de artistas locais, com desenhos e palavras que expressam o(s) sentido(s) de participar da Eletrocooperativa. Quem adentra a sede, se depara com um destes registros onde as palavras e expressões escolhidas são “alegria”, “generosidade”, “prazer em servir”, “ser digital”, “desapego”, “transparência”, “flexibilidade”, “honestidade”, “coletividade”, “coragem” e “espiritualidade”. Uma das primeiras alunas da Eletrocooperativa, hoje monitora e assistente administrativa, Jaqueline Reis, acredita que o sucesso da ONG, a partir da considerável demanda e visibilidade de suas ações, é justificado pela oportunidade de apresentar opções de sobrevivência e sustentabilidade para jovens de comunidades periféricas de Salvador, via música e tecnologia. Informa ainda que “[...]a Eletrocooperativa já formou centenas de jovens que estão atuando profissionalmente no mercado, e trabalhando com qualidade e engajamento social em suas comunidades de origem”.

5.3 - Sonoridades emergentes: O Bagunçaço O Grupo Cultural Bagunçaço foi fundado em 1992, no bairro de Alagados - subúrbio ferroviário de Salvador -, integra em seu currículo 23 turnês internacionais, onde apresenta os resultados dos seus projetos de educação que envolvem a música a partir da percussão e de pequenos grupos de filarmônicas. Um elemento característico de suas atividades é a criação e utilização de instrumentos musicais percussivos feitos com elementos recicláveis. Lixo que vira instrumento, que se transforma em música e inclusão social para centenas de jovens. O músico soteropolitano Joselito Crispim, um dos fundadores da ONG responsável pelo Bagunçaço, reitera inúmeras vezes que é a música quem lhe oportuniza ser uma pessoa “do bem”, feliz e diferenciada. Para os jovens integrantes do Bagunçaço, ainda segundo Joselito Crispim, a música representa poder participar do

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cotidiano de Salvador de forma mais digna, mais humana, com mais auto-estima, pois o reconhecimento tem sido pela arte, e não pelas convenções sociais e modelos desiguais e excludentes. Uma das iniciativas do Grupo Cultural Bagunçaço é a TV Lata, onde os alunos já estão aprendendo a produzir conteúdo audiovisual, pesquisar estéticas que contemplem, no vídeo, o conceitual e a mensagem do Bagunçaço.

6 - Considerações Finais

Esse artigo se insere no debate sobre o desenvolvimento, assim como das contribuições recentes que procuram ampliar e criticar a compreensão deste numa perspectiva linear e de progresso. A complexidade do tema nos motivou a refletir sobre um campo que vem abrindo possibilidades de inserção social e compreensão crítica do processo de exclusão socioespacial. Não temos, entretanto, a visão de que essas experiências sejam soluções para o sentido maior do desenvolvimento capitalista brasileiro, ou do subdesenvolvimento, pois, para isso, seriam necessárias reconfigurações estruturais. Mas, acreditamos que todos os campos de possibilidades, sejam elas científicas, artísticas e humanitárias precisam ser contempladas e acolhidas numa perspectiva de ampliação positiva da condição humana. As propostas e o referido debate são complexos, e corremos o risco de algumas simplificações e não aprofundamento das questões teóricas e suas consequências. Mas são propostas em construção, abertas, e só o debate e aprofundamento das pesquisas sobre as diversas formas de economias e sociabilidades é que darão pistas sobre as potencialidades de novos caminhos de desenvolvimento. É necessário conhecer como as ausências são produzidas e explicitar suas especificidades, assim como refletir acerca das alternativas de transformação e envolvimento na perspectiva da produção de valor social. Olhamos e buscamos compreender aqui, de forma breve, o campo da música. Impossível, neste trabalho, dar conta pormenorizada das ações desenvolvidas por cada instituição que tem a música como elemento estético-pedagógico relevante na transformação social dos cidadãos. Ainda assim, é relevante o registro de que estas iniciativas contemplam milhares de crianças e jovens baianos, soteropolitanos em sua maioria, que acreditam em outros caminhos para a condição humana, realizando-os. Seres humanos que sonham, agem e transformam as realidades impostas por modelos e propostas de modernidade ainda não concretizadas para a maioria da população de Salvador.

Crianças e jovens que sonham com música, com novas possibilidades de futuro. Futuro que contemple o subjetivo, o colaborativo, a racionalidade substantiva, a pluralidade que também envolve modelos econômicos. De forma realista e crítica, é possível afirmar que não há excludência, nem utopia neste sonho. O sonho é de estarem incluídos socialmente. Não pretendemos sinalizar alternativas para o atual modelo de desenvolvimento, apenas alertar para a relevância que as atividades das organizações mencionadas,

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frequentemente silenciosas, vão tomando espaço a partir das artes, em especial a música, e criando novos sentidos de sociabilidade, fundamental para se pensar em uma cidade menos violenta, mais justa, ainda que a arte não seja a saída para todos os problemas sociais, mas, como afirma aponta HAESBAERT (2006, p.39), o território cultural precede o território político, e precede o espaço econômico. Isso significa que esses territórios das experiências musicais podem ser sinais de novos territórios de desenvolvimento, de novos desenvolvimentos... É preciso atentar para a pluralidade das possibilidades, pois não há uma única lógica de desenvolvimento, nem de globalização. Ainda que hegemônicas, é possível pensar novos caminhos... A cidade de Salvador, para muito além das propagandas políticas e turísticas, nas últimas décadas registrou as tensões fundamentais diretamente relacionadas ao modelo de desenvolvimento capitalista. Como consequência, não menos direta, o aumento dos níveis de pobreza, o agravamento da concentração de renda, mas também o acirramento das questões ambientais numa capital que, em diversas unidades de análise, não registra planejamento, e vem sofrendo com a força do capital que avança ante a fragilidade de projetos políticos de poder que se revezam. Nesse contexto, as experiências cartografadas podem ser caracterizadas como sinais, pistas de territórios emergentes de outras lógicas, de um novo sentido de sociabilidade. Mas para que esses sinais se tornem visíveis, ainda há muito a ser conquistado, como espaços de expressões de dignidade, criatividade e afetividade. Isso significa que essas forças emergentes precisam se tornar mais visíveis numa nova cartografia, mais equilibrada, justa e incorporada, também, por uma ação estratégica do Estado. Referências BENKO, G. Territoire et Sciences Sociales. In: ITÇAINA, X., PALARD, J. Régimes territoriaux et développement économique. Rennes: Presses Universitaires de Rennes II, Collection Espaces et Territoire, 2007. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD; Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia - CONDER. Atlas do Desenvolvimento Humano da Região Metropolitana de Salvador. Salvador: PNUD; CONDER; Fund. João Pinheiro, 2006. DUPAS, G. O poder dos atores e a nova lógica econômica global. (mimeo.) Ensaio apresentado na Conferência Brasil e União Européia Ampliada. Rio de Janeiro: setembro de 2004. _________. O Impasse Ambiental e a lógica do capital. In: Meio ambiente e crescimento econômico; tensões estruturais. DUPAS, G. (Org). São Paulo: Unesp. 2009. ESCOBAR, Arturo. Economics and the space of modernity: tales of market, production and labour. In: Cultural Studies, v. 19, n. 2, mar. 2005, p.130-175. Disponível em <http://www.unc.edu/~aescobar/> Acesso em 04/07/2007. FRANÇA FILHO, Genauto C. Terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular: traçando fronteiras conceituais. In: Bahia Análise e Dados. Salvador: SEI/Governo da Bahia, 2002 v.12, n.1, Jun/2002. HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

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1 Unidade de Desenvolvimento Humano. 2 Localizada no bairro de Sete de Abril, em Salvador, Bahia. 3 Pesquisa de campo do autor, feita no período de janeiro a maio de 2012.

Armando Castro é professor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CECULT / UFRB). Licenciado em Música pela UCSAL (1998), Especialista em História Social e Educação pela Universidade Católica do Salvador (2004), Mestre em Cultura & Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz/Universidade Federal da Bahia (2005) e Doutor em Administração pela UFBA (2011). Músico, compositor e produtor musical, integra o Grupo de Pesquisa O Som do Lugar e o Mundo (FFCH/UFBA). Organizou o livro digital Coisa de Artista: a inquietação pela autonomia (Edufba, 2014). É autor do livro sobre a Irmandade da Boa Morte, intitulado Irmãs de fé: tradição e turismo no Recôncavo Baiano (E-papers, 2006). Maria Teresa Franco Ribeiro é Graduada em Economia pela UFMG (1977), Mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (1981) e Doutora em Economia da Industria e da Tecnologia pela UFRJ (1994). Professor Associado IV da UFBA. Atua na área de Economia, com ênfase em Economia do desenvolvimento e da Inovação, atuando principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento territorial, competitividade, inovação, tecnologia, difusão, desenvolvimento sócio-ambiental. Membro do Instituto Voçoroca em Nazareno-Minas Gerais, com projetos voltados à recuperação e preservação do solo e da água. Realizou um Pós-doutorado no IHEAL (Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2006-2007), com o projeto: Desenvolvimento e interdisciplinaridade: explorando a interface entre a economia e a geografia. É membro fundador do LABMUNDO - Laboratório de Políticas Internacionais da EA/UFBA.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3114

O potencial musical de Belo Horizonte como motor de uma estratégia de desenvolvimento local 1 Jane Maria De Medeiros (UNA, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Lucília Regina de Souza Machado (UNA, Belo Horizonte, MG) [email protected] Resumo: O cenário musical de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, apresenta uma produção caracterizada por grande riqueza, qualidade criativa, inovações e crescente dinamismo. Tais ingredientes seriam suficientes para se pensar na possibilidade da construção de um Sistema Produtivo e Inovativo Local (SPIL) da música dessa cidade? Tal indagação motivou a discussão sobre as condições existentes ou as que precisariam ser criadas para que este sistema pudesse ser organizado. Nesse sentido, foram analisados os fatores que poderiam facilitar ou impedir essa construção. Palavras-chave: sistemas produtivos e inovativos locais; inovação e música; economia da cultura; gestão social; desenvolvimento local.

Belo Horizonte’s musical potential as the driving force for local development Abstract: The music scene in the city of Belo Horizonte, capital of Minas Gerais, Brazil, has its production

characterized by great diversity, creative quality, innovation and growing dynamism. Would these ingredients be sufficient to consider the possibility of building a Local Production and Innovation System (SPIL by short) of music in this city? This question led to a discussion about the existing conditions or those that need to be created so that this system could be organized. Accordingly, we analyzed the factors that may facilitate or prevent such construction. Keywords: local production and innovation systems; innovation and music; culture economy; social

management; local development.

1 - Introdução Centro geográfico do Brasil, fazendo fronteira com outros seis Estados2, Minas Gerais é constantemente apontada como um estado de grande diversidade cultural. Segundo o escritor João Guimarães Rosa, “seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas são muitas. São, pelo menos, várias Minas...”. WERKEMA (2010, p.95) vai mais além, considerando que, no Estado,

... em qualquer direção, uma distância de 100 quilômetros representa mudança cultural, com alterações locais relativas ao patrimônio histórico e natural, como igualmente nos hábitos, nas festas populares e religiosas, na culinária e no artesanato. E ainda bastante singularidade, exemplaridade e, especialmente, autenticidade e originalidade nesses elementos. Eis a riqueza de Minas.

Planejada para ser a capital do estado, Belo Horizonte nasce da união de esforços de mineiros de todo o interior, gente de todas as partes do país e imigrantes estrangeiros, que buscam empregos, melhores oportunidades de vida e, sobretudo, a modernidade (CASTRO, 1997). Essa mistura teria sido o fator mais importante para que a capital se tornasse uma síntese das manifestações culturais do estado, refletindo toda a sua diversidade e criatividade. Segundo WERKEMA (2010), essa característica de atrair o interior sempre esteve presente na história da capital mineira refletindo-se de forma ainda mais marcante no segmento musical. Como polo econômico e cultural, a ela se dirigem os artistas que

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querem desenvolver uma carreira, tornando-a uma caixa de ressonância da produção mineira. Bruno MARTINS (2009), ao analisar a origem do movimento musical mineiro Clube da Esquina, nascido em Belo Horizonte, afirma que seus integrantes, além de trazerem para a capital influências musicais, também trouxeram um pouco da sua cidade natal, a partir de “suas referências históricas e culturais particulares”. O autor considera que isso “fez da capital mineira um solo aglutinador, em torno do qual as cidades de onde partiram tais viajantes se avizinhavam pelos caminhos da canção”. (MARTINS, 2009, p.46) Embora ainda pouco estudada3, a área cultural mineira, em especial a de Belo Horizonte, tem recebido frequentes e importantes registros na mídia nacional e internacional destacando essas características e apontando o sucesso de diversos atores de diferentes segmentos. Esse quadro seria característico de um universo cultural rico, diversificado, dinâmico e, principalmente, inovador, que deixaria marcas relevantes na identidade, não apenas da cidade, mas do Estado. Tais informações dão conta de experiências bem-sucedidas em praticamente todos os segmentos culturais – das Artes Plásticas à Dança, do Teatro ao Audiovisual –, passando destacadamente pela Música. Dentre as mais citadas, as experiências dos grupos de teatro Galpão e Giramundo; Grupo Corpo e 1° Ato, na dança; artistas plásticos como Yara Tupinambá e Amílcar de Castro; profissionais do audiovisual, como Helvécio Ratton (de longas-metragens), Cao Guimarães (de curtas-metragens e também artista plástico expositor no MOMA, em Nova Iorque) além do videomaker Éder Santos, entre muitos outros. Ao analisar a turnê mundial do Grupo de Dança Corpo em 2006, o jornal The Globe and Mail da capital do Canadá, Ottawa, confirma essa visão:

Durante 30 anos a companhia tem sido o principal embaixador cultural da dança contemporânea do Brasil por aqui e é um prazer dizer que eles voltaram com estilo ao melhor de sua forma. Os dois trabalhos apresentados, Lecuona (2004) e Onqotô (2005), não são apenas uma demonstração da fantástica qualidade dos seus dançarinos, que poderiam plausivelmente ser considerados dos melhores do planeta; eles são também a prova de que Rodrigo Pederneiras encontrou novas inspirações para o seu trabalho de coreógrafo4.

Na área da Música, as informações em circulação apontam para uma riqueza e uma diversidade da produção cultural belo-horizontina ainda mais palpáveis. Da MPB ao heavy metal, passando pela música instrumental, o pop-rock e até a música eletrônica. Essas manifestações teriam produzido importantes representantes da cidade no circuito nacional e internacional: o Clube da Esquina – movimento que revelou Milton Nascimento, Fernando Brant, Beto Guedes, Lô Borges, entre outros e é tido como um marco revolucionário da história da música mineira e brasileira (MARTINS, 2009) –; o ícone do heavy metal Sepultura considerado o grupo brasileiro de maior repercussão no mundo; a banda Skank, que além de vender milhões de discos no Brasil, chegou a liderar as paradas de sucesso na Espanha em 1996; o Pato Fu, banda de rock alternativo, reconhecida nacional e internacionalmente, entre muitos outros. Cantores e instrumentistas que desenvolvem carreira solo também estariam se destacando no cenário nacional e internacional. É o caso do multi-instrumentista, compositor, arranjador e regente Maurício Tizumba5 e do baterista Dedé Sampaio, que

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deixou uma família de sete irmãos – dos quais seis se tornaram bateristas – no bairro Caiçara para fazer sucesso nos Estados Unidos, tendo tocado, inclusive, com o ícone do jazz americano Miles Davis. Até na música erudita Belo Horizonte teria produzido destaques nacionais, como Sebastião Vianna (pianista, flautista, acordeonista, assistente de Villa Lobos) e seu filho, Marcus Viana. A efervescência desse gênero na cidade teria levado ao surgimento da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais em 2008, para atuar ao lado da tradicional Orquestra Sinfônica do Estado de Minas Gerais 6 e da Orquestra de Câmara Sesiminas 7 . Belo Horizonte também estaria sendo reconhecida como um dos principais centros produtores de ópera do país, a partir do trabalho desenvolvido na última década pela Fundação Clóvis Salgado8. Essa opinião é compartilhada pelo diretor e produtor Cleber Papa, que transita pelos principais centros de música clássica do país e do exterior:

São Paulo e Rio de Janeiro estão passando por reformas, Brasília não avançou. Porto Alegre não produz nada de consistente e o Festival Amazonas está em franca decadência. O Palácio das Artes está entre os poucos que fazem ópera com qualidade no Brasil e isto não pode ser visto com timidez. Existe potencial e reserva técnica para Minas se tornar uma referência internacional9.

Além da quantidade e da qualidade da produção musical belo-horizontina, o dinamismo na área, não apenas no que diz respeito ao surgimento de novos instrumentistas, cantores e grupos, mas também nos quesitos produção e gestão, seria característica de grande criatividade e inovação. Exemplos recentes: o BH Indie Music – festival de bandas alternativas, surgido em 2008 com o objetivo de criar vitrine mineira para a música alternativa e a Festa da Música (inspirada na Fête de la Musique, realizada na França há 29 anos), criada em 1997. Durante dez dias, este projeto, que é anual, apresenta shows de música instrumental (destaque para o jazz) em parques, praças, ruas e teatros da capital, abertos ao público. Na área da gestão, exemplos consistentes seriam a criação, em 2007, em Belo Horizonte, da primeira Cooperativa de Trabalho dos Profissionais de Música do Estado de Minas Gerais (Comum) e a organização, no final de 2008, do Fórum da Música de Minas Gerais. Além da Comum, este fórum reúne representantes da Associação Artística dos Músicos de Minas Gerais (AMMIG), da Associação dos Amigos do Museu Clube da Esquina (AAMUCE), da Sociedade Independente da Música (SIM) e do Fora do Eixo Minas, todos com sede e atuação direta na capital. Contando com a participação do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE)10 nas discussões para sua criação, o Fórum surgiu com a missão principal de gerir o Música Minas, em parceria com o Governo do Estado – programa, até então inédito, de disseminação e exportação da música mineira. No que diz respeito à inovação, são muitos os exemplos significativos. Um dos mais

recentes seria a atuação criativa do DJ (disc jockey) belo-horizontino, conhecido

mundialmente, Anderson Noise, que realizou projeto inédito no Brasil de executar solo

nos pick-ups e nos teclados, introduzindo a música eletrônica em um concerto de música

erudita. Ele se apresentou em 2009 com a Orquestra Bachiana Filarmônica de São Paulo,

regida pelo consagrado maestro João Carlos Martins. Outro exemplo: os instrumentos

inovadores e a linguagem musical variada que tornaram o grupo belo-horizontino Uakti11

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uma das referências mais fortes da música contemporânea mundial, além de um marco

na história da música mineira, a partir da década de 1980. O compositor Marcus Viana

também teria sido pioneiro ao escrever uma trilha sonora inteira para uma novela

televisiva (Pantanal, 1990) e ao eletrificar o violino em Minas Gerais.

Apesar da contundência das informações a respeito da qualidade criativa e inovativa e do dinamismo do setor musical da capital mineira, existiria uma possível lacuna caracterizada pela ausência de políticas voltadas ao atendimento das demandas deste setor e ao incentivo de seu desenvolvimento. Nem mesmo o fato de a música ter sido considerada pelo Ministério da Cultura (MinC) um dos polos mais dinâmicos da economia da cultura no Brasil no Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura (Prodec), aprovado em 2006 no âmbito do Plano Plurianual do Governo Federal, teria sido suficiente para estimular a criação de políticas públicas de aproveitamento do dinamismo musical de Belo Horizonte.

Consideramos os polos mais dinâmicos da Economia da Cultura no Brasil: Música (produtos e espetáculos); Audiovisual (em especial conteúdo de tv, animação, conteúdo de Internet e jogos eletrônicos); Festas e expressões populares (onde se destacam o Carnaval, o São João, a capoeira e o artesanato). (PORTA, 2008, p.5).

O cenário exposto acima – o potencial musical de Belo Horizonte e a crescente importância da economia da cultura –, pareceu constituir-se em forte indício de que, devidamente trabalhado, poderia se transformar em importante motor de uma estratégia de desenvolvimento local.

2- Metodologia e procedimentos de investigação A metodologia utilizada neste estudo foi elaborada a partir do ferramental de pesquisa proposto pela RedeSist 12 para analisar Arranjos e Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (ASPILs). Foram feitas modificações e adaptações consideradas necessárias a um projeto de estudo de atividades culturais, que se propõe a levar em consideração a complexa inter-relação entre forças econômicas e culturais, e entre inovação e tradição, dentro das características do espaço e da área estudados, respectivamente, o município de Belo Horizonte e a música. Ao procurar analisar em profundidade as percepções de sujeitos, visando obter respostas sobre condições atuais e que precisam ser criadas e elementos facilitadores e inibidores do desenvolvimento de um SPIL da música, a pesquisa assumiu caráter qualitativo. Baseou-se no entendimento de que a compreensão e interpretação dessas percepções subjetivas não são isoladas, mas inseridas num contexto que sofre e provoca influências no todo. Nessa perspectiva, a pesquisa teve caráter exploratório e aplicado. Exploratório, pois não fez generalizações sobre condições de criação de SPILs. Aplicado, porque procurou sistematizar um conjunto de referências que pudessem servir à elaboração de um projeto de criação do SPIL da Música de Belo Horizonte. Partiu-se do princípio de que estas características da investigação (qualitativa, exploratória, aplicada) pudessem contribuir para a inclusão, mobilização e articulação dos atores do segmento musical de Belo Horizonte. Foram utilizadas técnicas de pesquisa bibliográfica e documental e de documentação direta. Como em toda pesquisa qualitativa,

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aqui também o papel do pesquisador foi considerado com a devida atenção e cuidados, especialmente porque a autora atua na área em questão há alguns anos. Visando maximizar a confiabilidade da pesquisa, utilizou-se o critério de credibilidade, apropriado por meio de procedimentos apontados por ALVES-MAZOTTI (1998, p.175). Para checar se “os resultados e interpretações feitas pelo pesquisador são plausíveis para os sujeitos envolvidos”, adotou-se quatro procedimentos específicos. O primeiro deles visou garantir uma imersão maior da pesquisadora no campo, uma vez que a permanência prolongada já estava garantida. Desta forma, durante o período de estudo, a pesquisadora participou diretamente de várias atividades ligadas ao segmento musical da capital, desde seminários voltados para temas específicos, como a inserção do músico no mercado, até reuniões do Fórum da Música, passando por mobilizações públicas em defesa do Programa Música Minas. No segundo procedimento, que buscou o “questionamento por pares”, foi solicitado a colegas não envolvidos na pesquisa, mas que trabalham no mesmo paradigma e conhecem o tema pesquisado, que funcionassem como “advogados do diabo”, apontando “falhas, pontos obscuros e vieses nas interpretações”, bem como identificando evidências não exploradas e oferecendo “explicações ou interpretações alternativas” àquelas elaboradas pela pesquisadora. Como terceiro procedimento, realizou-se a triangulação de fontes, isto é, houve o cruzamento de informações coletadas em diferentes fontes. No último procedimento, ao final da pesquisa, solicitou-se a alguns dos participantes que fizessem a “checagem” dos resultados e conclusões obtidos para verificar se as interpretações da pesquisadora faziam sentido, a partir da avaliação quanto à sua precisão e relevância. Definido o universo a ser pesquisado, a partir do recorte da gestão do segmento da música na cidade de Belo Horizonte, dentro do conceito de economia da cultura e na perspectiva da criação de um SPIL visando o desenvolvimento local, a população investigada envolveu 18 pessoas diretamente ligadas à produção, circulação, divulgação, pesquisa, ensino ou estudo do segmento na cidade. A pesquisa de campo se deu por meio de entrevistas semiestruturadas. A análise e a interpretação dos dados foram feitas de forma interativa com a coleta, acompanhando o processo de investigação, buscando, a partir da identificação de temas e dados, construir interpretações, gerar novas questões e aperfeiçoar questões anteriores.

3 – Perspectivas e condições para a criação do SPIL da música Os estudos e análises realizados apontaram um quadro bastante favorável à proposta de criação de um Sistema Produtivo e Inovativo Local da Música na cidade de Belo Horizonte. Das seis características consideradas fundamentais pela REDESIST (2005) para a criação de um SPIL, a capital mineira apresentou condições satisfatórias em pelo menos quatro. No primeiro aspecto, da dimensão territorial onde ocorrem os processos produtivos, inovativos e cooperativos, o município – por sua característica de grande contingente populacional, concentrado em área relativamente reduzida e organizada em regionais – possibilita o compartilhamento de valores e visões econômicos, sociais e culturais, facilitando o dinamismo local e a diversidade. Também a sua localização central no mapa brasileiro e estrategicamente posicionada, próxima às capitas do Rio de Janeiro e São Paulo – eixo econômico e cultural do país – lhe confere importante vantagem competitiva em relação a outros locais.

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A segunda condição positiva – fartamente comprovada pelos dados obtidos – é assegurada pela marcante diversidade de atividades e atores econômicos, políticos e sociais, que, além de recheada de empresas e associações ligadas ao segmento musical, conta com a presença de órgãos públicos (local, estadual e federal) gestores de cultura, além de uma gama enorme de organizações públicas e privadas voltadas para a formação e capacitação de recursos humanos, pesquisa, promoção e financiamento no âmbito cultural. A cidade é reconhecida como polo educacional e de pesquisa científica. Tal diversidade de atividades se caracteriza por dar vazão a uma produção musical dinâmica, com fortes características de inovação, cuja quantidade e qualidade são amplamente reconhecidas. Ao mesmo tempo, verifica-se a presença de um processo robusto de aprendizado, que permite a aquisição e a construção de diferentes tipos de conhecimentos, competências e habilidades. Para a REDESIST (2005), aprendizado e inovação interativos – que constituem a terceira condição importante para este sistema – seriam os fatores que trariam maior peso à competitividade dinâmica e sustentada de um SPIL. A pesquisa constatou que esses fatores encontram-se presentes de forma incisiva na cadeia produtiva da música de Belo Horizonte. Não apenas os próprios atores do segmento musical da capital mineira reconhecem e se orgulham da qualidade da produção local, mas esta, quando difundida, é valorizada de forma ampla e sistemática, alcançando sucesso em diferentes praças do país e do exterior. A pesquisa constatou que esta qualidade da música tem como uma de suas bases principais o conhecimento implícito e incorporado por seus músicos – o chamado conhecimento tácito, quarta condição necessária ao SPIL –, cuja produção apresenta forte especificidade no que diz respeito ao conteúdo harmônico, passado adiante de geração em geração e caracterizado como importante elemento de vantagem competitiva da cadeia produtiva local. Este conhecimento tácito é um dos fatores responsáveis pela cidade ser considerada produtora de grandes marcas de inovação musical – como o movimento Clube da Esquina, já consolidado, e a música instrumental, de Toninho Horta13, Nivaldo Ornelas14 e Juarez Moreira15 –, resultado de um processo oriundo de múltiplas fontes e de complexas interações entre seus atores. 3.1. Inovação Confirmando as análises da REDESIST (2005), segundo as quais as especificidades e trajetórias de um determinado desenvolvimento local contribuiriam para configurar um sistema de inovação característico, essa capacidade de inovação belo-horizontina é determinada por diferentes fatores sociais, políticos e econômicos. Os mais importantes seriam: as influências culturais distintas (barroca, da cultura negra, de migrantes do interior do estado, de imigrantes italianos e espanhóis – principalmente), que o produto musical recebe; a diversidade de origem, de formação e das atividades dos músicos; a reconhecida experiência, flexibilidade e capacidade de integração dos atores envolvidos no processo; a existência de processos de aprendizagem tecnológica voltados à inovação; e a existência de diversos movimentos orientados para diferentes gêneros musicais, o que gera uma música diversificada, rica, dotada de grande versatilidade. Nessa perspectiva, deve-se levar em conta, também, a constatação feita de que Belo Horizonte possui público exigente e aberto a novas tendências, condição que impulsiona a busca pela qualidade artística e estimula as inovações. É também relevante o fato da

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capital mineira registrar a presença de uma ampla e bem informada juventude, capaz de fortalecer os atores sociais desse processo. Outro aspecto que destaca a capital mineira no cenário nacional – considerado importante fator econômico do SPIL – é a elevada participação de seus músicos no âmbito do emprego formal da cidade (23% acima da média nacional, segundo cálculos efetuados a partir dos dados da RAIS/MTE) 16 . Isto significa uma clara especialização de Belo Horizonte na atividade musical, muito além das registradas em grandes capitais brasileiras tradicionais produtoras de música, que, ao contrário, apresentam coeficiente de especialização inferior ao nacional: 29% menor no Rio de Janeiro, 27% menor em São Paulo e 9% menor em Salvador. Este índice mostra, em Belo Horizonte, a possibilidade de um peso dos atores musicais no arranjo do setor que não se observa nas outras capitais analisadas. Esta condição adquire ainda mais importância se levarmos em conta as grandes dificuldades para o exercício da profissão de músico na capital, ao contrário do que acontece no eixo Rio-São Paulo, beneficiado pela influência de grandes mídias (jornais, rádios, TVs); da presença de público com alto poder aquisitivo, aliado ao maior acesso à cultura; e da localização das majors neste eixo. 3.2. Restrições a serem superadas Essa especialização, a produção efervescente e as características de inovação, no entanto, não se refletem em um mercado aquecido para o produto musical local, nem em políticas públicas de geração de trabalho e renda para o músico, obrigado a conviver com um quadro permanente de incertezas e instabilidade. Todo esse potencial também não é aproveitado como fator para impulsionar o desenvolvimento local. É nesse contexto que foram encontradas as principais restrições que precisariam ser superadas por meio da criação das condições necessárias para se chegar ao desenvolvimento do SPIL proposto. Trata-se do necessário processo de articulações e interações, que permita alcançar a governança necessária à construção desse sistema. Como pontua a REDESIST (2005), o desafio colocado é o de encontrar diferentes modos de coordenação entre os atores e as atividades da cadeia produtiva da música de Belo Horizonte, que envolvem da produção ao consumo dos produtos musicais, assim como o processo de geração, uso e disseminação de conhecimentos e de inovações. Nessa perspectiva, a participação organizada e direcionada das entidades representativas dos músicos precisará assumir o papel relevante de ser o ponto de partida, o estímulo para deslanchar a discussão sobre este sistema, uma vez que a pesquisa mostrou que o poder público local encontra-se alheio e, em alguns casos, completamente desconectado da realidade vivida pela cultura na cidade. Esta avaliação é corroborada pela análise feita por CARSALADE (2005, p.4), segundo a qual o afastamento do Estado de suas funções tradicionais de produtor e provedor levaria “como resposta, à necessidade imperiosa da contribuição social e de formas de gestão parceiras e participativas”. Caberá, assim, aos músicos, por meio de suas entidades representativas, tomarem a frente desse processo. O passo seguinte será atrair a participação direta e efetiva da Prefeitura, por meio da Fundação Municipal de Cultura – essencial à coordenação desse processo –, e a do Governo do Estado, por meio da Secretaria Estadual de Cultura, de forma coordenada e

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integrada ao poder local. Por outro lado, também será preciso alcançar formas de coordenação que envolvam os segmentos da indústria e do comércio – com presença forte e dinâmica na capital –, além das instituições de ensino e pesquisa. Por sua subjetividade, a arte, em geral, e a música, em particular, exigem debates e articulações mais complexas, tornando esse processo – já difícil pelo seu caráter sistêmico e inovativo – ainda mais desafiador. A pesquisa constatou que, embora haja presença altamente significativa de atores econômicos, políticos e sociais no território estudado, estes ainda precisariam se preparar e se qualificar melhor para adquirirem as condições necessárias para integrar o SPIL. A seguir, são apresentadas as principais deficiências e dificuldades encontradas nesses segmentos e relacionados alguns instrumentos e meios para obtenção das condições necessárias à sua superação. 3.3. Principais deficiências dos segmentos econômicos, sociais e políticos e os instrumentos e meios para obtenção das condições necessárias à sua superação Quanto ao segmento musical, foi detectada a necessidade de se aprofundar e fortalecer a sua organização, além da sua capacidade de articulação com os demais atores do sistema. Faz-se necessário o fomento de clima cooperativo e associativo, visando maior conscientização e participação política dos músicos nas questões de interesse da categoria, o que contribuiria para que ela participasse mais efetivamente do sistema proposto. Um fator complicador de Belo Horizonte – reflexo de característica atribuída aos mineiros em geral – é o aspecto cultural que envolve a postura tímida dos músicos locais na divulgação e defesa de seu trabalho. A mudança para um comportamento mais ousado, proativo, é um dos requisitos para qualificá-los como os principais atores desse processo. Para isso, um passo essencial, apontado pelos dados recolhidos, é o que envolve a conscientização dos próprios músicos, a urgência de se enxergarem como uma categoria profissional, fortalecendo suas entidades representativas, tendo como foco o interesse coletivo. Embora haja sindicatos de músicos e ordem dos músicos no Brasil, o espírito gregário desta categoria profissional não encontra condições objetivas favoráveis para florescer e se fortalecer. Isso se dá, em parte, porque ao longo dos anos essas entidades se mostraram distantes dos interesses da categoria, o que levou ao seu esvaziamento e perda de qualquer traço de representatividade, provocando a pulverização dos músicos em diversas outras associações e sociedades. Entretanto, a maior parte dos fatores que dificultam o fortalecimento desse espírito gregário está associada a contingências objetivas da trajetória de estudo e trabalho dos músicos. A formação desse profissional – o aprendizado de um instrumento ou de canto – é um processo desenvolvido individualmente, levando-o a certo isolamento. Por outro lado, o exercício da profissão, de criação ou de interpretação, mesmo quando em grupo, também tem características fortemente solitárias, como confirma o músico e produtor cultural Tadeu Martins17, quando destaca que mesmo num show, que é coletivo, você tem o artista e os acompanhantes, onde esses têm um valor secundário em relação ao artista, que acaba se distinguindo dos demais. A comparação destas particularidades com a organização e o trabalho em grupo dos artistas do teatro, feita por vários dos entrevistados pela pesquisa, dá a dimensão dos caminhos que os músicos ainda precisam percorrer. Os atores de teatro estão habituados

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a trabalhar coletivamente. Mesmo um monólogo, por exemplo, envolve vários profissionais – da preparação do texto da peça, passando pela direção, até a construção de cenários e figurinos; tudo depende do conjunto. Ao contrário, da criação à interpretação, o músico está sempre sozinho. Isto se reflete diretamente no comportamento profissional, social e até político de ambos os segmentos. Enquanto o ator está acostumado a compartilhar a arrecadação da bilheteria (sempre uma incógnita), como forma de remuneração de seu trabalho, o músico só valoriza o cachê, cujo valor é assegurado antes da sua apresentação. Muito recentemente, e ainda de forma tímida, têm sido realizadas experiências de apresentações musicais remuneradas pela bilheteria. Uma ação mais coletiva neste sentido foi tentada em Belo Horizonte pela Associação Artística dos Músicos de Minas Gerais (AMMIG), no final da década de 1990. A exemplo da Campanha de Popularização do Teatro, criou-se uma campanha de popularização da música – um mês de shows com participação de dezenas de artistas de todos os gêneros, do sertanejo à música erudita, sem cachê, onde a remuneração dos artistas advinha da bilheteria. Segundo o músico e produtor Thelmo Lins 18 – participante do processo – embora a adesão inicial dos músicos tenha sido grande, “a iniciativa não foi à frente porque os músicos não gostaram de não ganhar cachê” e ter de se contentar, em muitos casos, com valores pequenos oriundos da divisão da bilheteria com a produção do espetáculo. Os artistas da música não demonstram o mesmo grau e espírito de cooperação no que diz respeito ao envolvimento no processo cultural como um todo. Essa situação pode ser comprovada pela dinâmica e histórica atuação do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões de Minas Gerais (Sated/MG) e do Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc), que, entre outras coisas, se reflete nos inúmeros espaços conquistados para o teatro na cidade e no grande número de projetos públicos para o setor. A reversão desse quadro, entretanto, mostrou-se viável, mas, para se tornar realidade, precisa partir da iniciativa das próprias entidades, por meio de campanhas educativas entre seus associados e também entre os músicos em geral, que resultem na ampliação da participação da categoria nas deliberações e na implementação das ações dessas organizações. Um caminho possível seria o trabalho dessas entidades junto aos estudantes das escolas de música da cidade – convidando-os a participarem de reuniões e fóruns da categoria, por exemplo –, a fim de informá-los e despertá-los para a questão, levando à construção de vínculos cada vez mais cedo com os interesses e problemas comuns. Para que isto seja possível, no entanto, constatou-se a necessidade de que essas entidades passem por uma reformulação no sentido de se estruturarem para serem capazes de prestar os serviços demandados por seus associados. E para que isto ocorra, será preciso planejamento estratégico, plano de ação, estatuto, enfim, um arcabouço estruturante, que lhes permita conhecer as demandas reais da categoria e atuar em direção aos interesses da maioria, e não apenas aos dos grupos no exercício da direção. Isto pressupõe organização autossustentável, com cobrança de contribuição (mensalidade ou anuidade), o que hoje não acontece na maioria das entidades. É preciso criar um círculo virtuoso, onde o filiado se imponha a responsabilidade pelo desembolso financeiro para ajudar a manter a entidade, e que, em troca, tenha o retorno em prestação

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de serviços que lhe interessem; ao mesmo tempo em que a entidade se beneficia da contribuição financeira para se manter, abre-se para a participação dos filiados em todos os níveis de decisão. A profissionalização dessas entidades mostrou-se fundamental. O outro lado dessa moeda é a necessidade de que os próprios músicos se interessem e vejam como prioritária a atuação junto aos órgãos de representação da categoria, para torná-los mais fortes e porta-vozes legítimos de seus anseios e necessidades. Embora os entrevistados tenham sido unânimes em afirmar a camaradagem existente entre os músicos da capital, não importando o gênero musical ou a origem de sua formação, os dados recolhidos pela pesquisa permitem afirmar que o sentimento de coletividade, de união em defesa dos direitos de todos, de organização e conscientização da categoria ainda está longe de poder ser generalizado, consistindo em fator que precisará ser trabalhado para se tornar favorável à construção do SPIL da música de Belo Horizonte. Como exemplifica a fala de um dos entrevistados: “o cenário da música em Minas tem muita estrela, mas elas não formam uma constelação”. A formação de uma consciência coletiva e associativa se impõe como necessidade inadiável, até mesmo para que os músicos passem a se ver como agentes sociais e políticos em condições de participar desse processo. Entidades mais representativas e filiados mais participativos formam uma coalizão fundamental para permitir que o Fórum da Música de Minas – constituído por essas entidades – ganhe a força necessária para se transformar em porta-voz do segmento musical como um todo, podendo representá-lo com legitimidade no processo de criação do SPIL. Essa é uma questão crucial, pois os músicos são os principais interessados na criação desse sistema e somente a sua mobilização, atuação organizada e direção poderão alavancar este processo. A constituição do Fórum por meio de entidades, e não de pessoas – como é usual –, além de inovadora, pode, na prática, contribuir para a organização do segmento musical, por depender de entidades representativas e dinâmicas para a sua sobrevivência. Ficou claro, ainda, que o Fórum também precisaria passar por uma reformulação capaz de dotá-lo da infraestrutura organizacional necessária para assumir o papel de representante do conjunto do segmento. Para ser eficaz, esta reformulação deverá incluir a criação de um estatuto e dos instrumentos necessários para definir e regular a participação de seus membros. Também se faz necessário ampliar o número de membros do Fórum, atraindo entidades ligadas a outros segmentos, tais como música de viola, músicos da noite – artistas que se apresentam em bares e restaurantes, música erudita, bandas de música, etc. Este problema pode ser explicado pela própria origem do Fórum. Como ele nasceu com a responsabilidade de gerir o programa Música Minas, de exportação e disseminação da música mineira, seus integrantes logo foram sendo absorvidos pelas tarefas decorrentes do desenvolvimento do programa – pelas quais são remunerados –, faltando tempo para ações de planejamento e construção do próprio Fórum. Na avaliação de alguns dos entrevistados, o que também pode ser constatado pela pesquisa, tanto envolvimento levou a que, na prática, o Fórum se confundisse com o próprio programa, o qual, se acabar, leva a entidade consigo. Detectou-se, assim, a necessidade urgente de se pensar no conjunto, de se planejar estrategicamente a organização do Fórum, visando a sua profissionalização, de modo a contribuir para que ele conquiste as condições necessárias

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para representar o segmento nesse processo de articulação com os demais atores envolvidos no sistema proposto. Do ponto de vista das empresas – outro segmento importante na construção do SPIL da música –, a pesquisa mostra a necessidade de se criar ações que visem sensibilizar o empresariado para a importância do investimento em cultura, não apenas para o estado, mas para o país e a sociedade em geral. Embora envolvendo ainda baixos valores, deve-se levar em conta os dados levantados que apontam a música como um dos dois segmentos mais procurados pelos empresários para investimento e aquele cujos projetos conseguem altos índices de captação de recursos em Belo Horizonte. Um instrumento relevante seriam as campanhas de esclarecimentos ao setor empresarial – especialmente as empresas de pequeno e médio porte – sobre as Leis de Incentivo, além do estudo de formas de participação no incentivo fiscal para empresas tributadas com base no “lucro presumido”. Essas propostas levam em conta os estudos de vários autores, entre eles HANSEN e BARRETO (2003, p.102), para quem, na Nova Economia – que inclui a Economia da Cultura –, “a vontade dos empresários é determinante para se definir as localizações das atividades econômicas”. Nesse processo, o grande potencial de geração de emprego, renda e impostos das atividades culturais, cuja estrutura de consumo intermediário as leva a um forte encadeamento com os demais setores da economia, torna-se argumento relevante. Os dados obtidos pela Fundação João Pinheiro (FJP, 2003a) mostram que as atividades culturais podem gerar um PIB maior do que a média gerada pelos demais setores da economia; que elas apresentam resultados superiores à média sobre a geração de emprego e a arrecadação (310 empregos gerados, em média, em festival/show/mostra, para cada R$ 1 milhão consumido pelas famílias, enquanto na indústria automobilística o resultado é de 40 empregos, e em comunicações, 56). A capacidade de geração de ICMS das atividades culturais também apresenta, segundo a FJP (2003a), desempenho superior ao de segmentos produtivos consolidados (4% do valor da produção dessas atividades, superior aos 2,6% de comunicações e a 0,8% de material de transporte) e constitui mais um argumento a ser utilizado. Quanto às demais instituições que precisariam participar da criação do SPIL, Belo Horizonte dispõe de um elenco sólido e preparado, capaz de agregar condições extremamente favoráveis ao processo. São exemplos, a Fundação João Pinheiro (FJP) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE MG), duas instituições tradicionais, com experiência de se envolver em pesquisas e projetos ligados ao mercado da música da capital mineira e que têm demonstrado interesse em contribuir para a construção de políticas de cultura. O chamado Sistema S19, do qual o SEBRAE participa juntamente com as organizações dos setores produtivos (indústria, comércio, agricultura, transportes e cooperativas) – todas com sede ou representação em Belo Horizonte –, pode constituir relevante parceiro nesse processo. A capital mineira também conta com importantes representações culturais estrangeiras, como o Instituto Cervantes (órgão oficial de difusão da cultura espanhola) e o Serviço de Cooperação e Ação Cultural da Embaixada da França – que poderiam constituir parceiros estratégicos do SPIL. Do ponto de vista das novas tecnologias – estreitamente ligadas ao desenvolvimento da música –, Belo Horizonte apresenta uma das melhores bases para um sistema de informação, do ponto de vista técnico, como lembra um dos entrevistados,

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o reitor da UFMG, professor Clélio Campolina Diniz20: “nós somos, hoje, um grande centro criador de programas de software, inclusive com a criação da FUMSOFT” 21. Entre as universidades, a UFMG, por sua história, infraestrutura e tradição no desenvolvimento de projetos culturais 22 , qualifica-se como um importante ator desse processo. Seu atual Pró-Reitor de Extensão, professor João Antônio de Paula23, afirma que, por seu compromisso “com a cultura, com o saber, com o desenvolvimento”, a UFMG se colocaria como uma instância adequada para contribuir para a criação das condições necessárias à criação do SPIL da música de Belo Horizonte no que diz respeito ao embate de ideias, a partir de seus diversos centros acadêmicos. Para o professor, este seria um bom momento para tratar essa questão, uma vez que a UFMG, a partir da redefinição conceitual de um de seus maiores projetos culturais, o Festival de Inverno, estaria passando por um processo de discussão interna sobre temas que, por exemplo, levam em consideração o fato de que “a cultura, a arte etc. são instrumentos de discussão das identidades locais” e o de que “elas também têm esse potencial de alavancar recursos, captação, atração do turismo e tal”. Ao defender uma postura da Universidade cada vez mais aberta e em sintonia com a sociedade, o reitor Clélio Campolina Diniz também vê “as atividades culturais como elementos centrais na formação humana, para o lazer, para uma sociedade mais democrática”, defendendo um papel cada vez mais ativo da UFMG nesta área. Ainda no âmbito das instituições superiores de ensino e pesquisa da capital, a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) também poderá representar papel relevante neste SPIL. Desde 1999, oferece um curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais, com área – única em Belo Horizonte – de concentração em Cidades: Cultura, Trabalho e Políticas Públicas, tendo como um de seus objetivos “qualificar, de forma mais densa, profissionais já integrados ao quadro da administração pública, de instituições privadas e de organizações não governamentais”. O programa conta com linhas de pesquisa relacionadas ao objeto desse estudo, tais como: Cultura, identidades e modos de vida; e Políticas públicas, participação e poder local24. Do ponto de vista das instituições governamentais, a pesquisa apontou clara fragilidade, tanto da Fundação Municipal de Cultura, quanto da Secretaria de Estado da Cultura – principais órgãos gestores da área na capital –, no que diz respeito aos recursos humanos, técnicos e de infraestrutura que lhes permitam exercer adequadamente o seu papel de executor de políticas públicas voltadas para a legitimação e a universalização dos direitos culturais. Os estudos mostraram que, para uma atuação efetiva, voltada para os interesses reais da maioria da população, tais órgãos precisam sofrer profundas transformações do ponto de vista da gestão, buscando melhorar o fluxo de informações internas, a comunicação com a sociedade, a qualidade e agilidade no atendimento, além da eficiência na atuação. Do ponto de vista político, será necessário um efetivo alinhamento desses órgãos com as demandas contemporâneas da área e da cidade. Para alcançar tal objetivo, um dos caminhos é a necessária interação entre os mesmos, visando o desenvolvimento de ações integradas e planejadas para criar políticas intersetoriais que busquem a difusão da produção musical da capital, tanto aquela voltada para a fruição quanto a produção com vistas à arte-educação. Nesse sentido, a ausência de informações consistentes,

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consolidadas e atualizadas sobre a cadeia produtiva da música da capital é um fator desfavorável. Como solução, a pesquisa apontou a necessidade de criação de sistemas de informação e indicadores culturais municipal e estadual. O Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC) – recém-criado pelo Ministério da Cultura – pode servir de modelo e importante ponto de partida desse processo. A larga experiência da Fundação João Pinheiro no desenvolvimento de pesquisas na área cultural, que pode levá-la a contribuir nesse processo, também é fator favorável.

Para que essas políticas de desenvolvimento do setor estejam conectadas com a realidade do segmento musical e em sintonia com uma política de desenvolvimento econômico e social local, será preciso uma ação planejadora e reguladora do Estado, neste caso, da Prefeitura. Para ser eficaz, essa ação deverá partir de duas perspectivas principais. A primeira diz respeito ao reconhecimento e ao fortalecimento do que existe na cidade, do que o segmento musical já está produzindo, do ponto de vista do interesse público. A segunda passa pela construção de elos entre o segmento musical e os demais setores da sociedade, por meio de uma rede de relações cuja dinâmica signifique uma transformação qualitativa na experiência desses atores, na perspectiva de uma transformação maior do processo social, dentro da lógica defendida por CASTELLS (2003, p.572) de que “o poder dos fluxos é mais importante do que os fluxos do poder”. Tais políticas deverão contemplar algumas diretrizes básicas, tais como a inter-relação entre todos os elos da cadeia produtiva da música; o aprendizado e a difusão – entendida como parte do processo inovativo – do conhecimento codificado e tácito; a diminuição da informalidade do setor; o estímulo ao exercício da profissão de músico na capital; a continuidade do trabalho artístico; a necessidade de formação de plateias; e a importância de se ampliar as fontes de financiamento (públicas e privadas), conciliando-se os recursos injetados na cultura por meio do incentivo fiscal com os investimentos com recursos do Tesouro. Aqui, é preciso considerar que – como defendem HANSEN e BARRETO (2003) – nesse novo modelo que envolve a Economia da Cultura, inovação e adaptação às mudanças tecnológicas são fundamentais e a capacidade criativa tem mais peso do que o porte do capital a ser investido. 3.3.1. Cultura como investimento Entre as ações consideradas prioritárias na elaboração de um plano para a organização do SPIL proposto, duas foram destacadas na presente pesquisa: a) o fomento de público; b) a criação ou fomento de condições de incentivos, apoios, promoções, parcerias e financiamentos que resultem na divulgação e no fomento da produção musical como um todo, para que o sucesso não se restrinja a projetos pontuais, dependentes de esforços particulares ou de privilégios de ocasião. Trata-se, aqui, de enfrentar uma dificuldade comum a toda a área, que sempre precisa defender que a cultura seja reconhecida como investimento, e não despesa. Investimento nos valores, na criatividade, na imagem da cidade (no estado, no país e no exterior) e na geração de emprego, renda e inclusão socioeconômica, como argumenta REIS (2002). Como destacou o músico Geraldo Vianna25, para quem a criação do SPIL deve levar em conta “o aspecto empresarial da arte”, porque “a música, a arte, ela nunca acaba, mas ela precisa de suporte para virar produto”. Isto significa criar ações voltadas para a economia da música em todos os seus aspectos – de planejamento, organização, financiamento, monitoramento e avaliação –, com o objetivo de se construir políticas estruturantes de

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Estado, que ultrapassem as políticas conjunturais de governo – sujeitas aos humores e desejos particulares dos governantes do momento. Constatou-se a urgência de que o debate sobre o desenvolvimento de Belo Horizonte incorpore a compreensão da necessidade de interação entre processos culturais, econômicos e sociais, na perspectiva da contribuição da cultura ao desenvolvimento local, além da geração de recursos econômicos. Como defende SILVA (2007, p.19), “a cultura perpassa todas as dimensões da vida em sociedade e se relaciona com processos de sociabilidade e sua reprodução”. Embora exista alguma sensibilidade por parte do Governo do Estado, como demonstra a recente criação da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e o apoio ao projeto Música Minas26, por exemplo, o não entendimento da dimensão econômica da cultura e do papel estimulador de desenvolvimento social que ela pode desempenhar transparece na falta de uma política estadual clara, com objetivos definidos, metas, programas e projetos estruturantes para a área. A dificuldade para se viabilizar o programa Música Minas é um exemplo dessa situação, que é a mesma enfrentada por outros programas estaduais importantes para a cultura, como o Filme em Minas – de estímulo ao audiovisual – e o Cena Minas, realizado desde 2007, com o objetivo de “incentivar e fortalecer as produções cênicas no Estado, nas áreas do teatro, da dança e do circo”. 27 Nenhum deles está institucionalizado, não dispondo, portanto, de dotação orçamentária própria. A implantação do Conselho Estadual de Cultura – demanda urgente da área cultural – poderá contribuir para avançar essa discussão. No âmbito municipal a situação mostra-se ainda mais precária. Do ponto de vista político, o fato que chama mais atenção é a perda de status da Secretaria de Cultura, transformada em fundação, o que retira da área o poder de participar, em pé de igualdade com as demais secretarias, da construção e discussão das políticas públicas da cidade. Por outro lado, a necessidade de uma fundação capaz de responder ao dinamismo da gestão cultural também está demonstrada. A falta de recursos, entretanto, tem sido apontada como impeditivo para que os dois órgãos coexistam. A situação, portanto, parece sinalizar para a necessidade de uma ampla discussão a partir das instâncias da própria Prefeitura, no sentido de buscar solução mais adequada para o problema. O que parece não ser concebível é que a terceira mais importante capital do país, detentora de grande e expressivo volume de produção cultural em absolutamente todas as áreas, possa se conformar em continuar a ter a cultura fazendo parte da administração indireta do município. Outro problema do ponto de vista institucional a ser enfrentado diz respeito à adequação da Prefeitura para participar do recém-criado Plano Nacional de Cultura (PNC), grande conquista recente da cultura brasileira. Segundo este Plano, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) – cujo projeto de lei encontra-se em fase final de tramitação no Congresso Nacional – “será o principal articulador federativo do PNC, estabelecendo mecanismos de gestão compartilhada entre os entes federados e a sociedade civil” 28. Para aderir ao PNC, o município deve assumir o compromisso de criar, até 31 de dezembro de 201129, o seu Sistema Municipal de Cultura, composto por, pelo menos, cinco instâncias obrigatórias.

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Belo Horizonte ainda precisa criar duas dessas instâncias: o Conselho Municipal de Política Cultural e o Plano Municipal de Cultura. Três já existem: o órgão gestor municipal de cultura, no caso, a FMC; o sistema municipal de financiamento à cultura (a Lei Municipal de Incentivo à Cultura); e a Conferência Municipal de Cultura, embora a sua segunda edição, realizada em outubro de 2009, não tenha tido nenhuma sequência por parte do encaminhamento e da operacionalização de suas resoluções pela Prefeitura, até março de 2011. A importância da cidade se preparar para integrar o Sistema Nacional de Cultura não se restringe apenas à garantia de verbas do governo federal. Trata-se de participar da maior e mais efetiva iniciativa governamental em defesa da cultura brasileira, que, pela primeira vez na história do país, vem trabalhando com base em amplo e profundo planejamento, criando sistemas de informações e indicadores e procurando institucionalizar planos e políticas para a área, com a participação da sociedade. Do ponto de vista das ações, constatou-se que as políticas desenvolvidas pela Fundação não refletem a dimensão atual da diversidade cultural da cidade. Por exemplo, não há registro de projeto municipal voltado para o fomento e a difusão da música, apesar de toda a efervescência do segmento. Ao contrário, a pesquisa mostrou que o segmento musical tem feito grande esforço, sem sucesso, para chamar a atenção do gestor público municipal e, em alguns casos, até mesmo para se desvencilhar dos obstáculos criados por ele. Exemplos mais contundentes são o Quarteirão do Soul – encontro nas tardes de sábado na região central da capital, criado em 2004 pelos apreciadores da soul music – e o Duelo de MCs (Mestres de Cerimônias), realizado desde 2008 debaixo do viaduto Santa Tereza, reunindo manifestações artísticas do Hip Hop. Como legítimos representantes de gêneros musicais abraçados por grandes parcelas da população da cidade e que dependem do espaço público para suas apresentações, espera-se que sejam reconhecidos pela Prefeitura e que a mesma crie, democraticamente, políticas claras de ocupação dos espaços públicos. Nessa perspectiva, a pesquisa mostrou a necessidade de uma discussão pública na cidade sobre o conceito de espaço cultural. Será que espaço cultural é só aquele espaço físico, o equipamento público, o teatro, a galeria etc.? Ou “existem esquinas?”, como lembrou a antropóloga Marcela Bertelli30: “olha como uma esquina foi tão importante pra essa cidade, reconhecida como um espaço de cultura” 31 . Os dados apontam a necessidade de se reconhecer essas realidades vivas, essas manifestações culturais espontâneas, nos ambientes onde elas surgem – sejam eles públicos ou privados, menos ou mais qualificados –, percebendo-os como espaços simbólicos da cultura. Os dados colhidos mostram a existência de um verdadeiro abismo entre o que acontece no segmento musical da cidade e as ações da Fundação Municipal de Cultura. A gestão da Fundação mostra-se em total desconexão quanto ao “desenvolvimento cultural” que propõe32 e às suas ações relacionadas, principalmente, aos movimentos culturais locais, ao entendimento de cultura como um direito social e aos usos coletivos dos espaços públicos. O quadro encontrado aponta para a necessidade urgente de que a FMC se abra para o que acontece na cidade, para o imprevisível, tomando como ponto de partida a realidade local – não apenas a estrutural, mas a necessidade criativa, inventiva – e o

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interesse público, por meio do estabelecimento de canais de participação e de diálogo com a sociedade, buscando corresponder ao que se espera de seu papel. Ainda no que diz respeito à Fundação Municipal de Cultura, outra ausência sentida é a de projetos de formação de plateias. A pesquisa apontou a existência, em Belo Horizonte, de público interessado e capaz de fruir a música. Entretanto, observou-se a necessidade de investimentos permanentes na formação de plateias, voltados tanto para a sensibilização de crianças e jovens, nas escolas, quanto para os adultos – condição essencial para a construção do SPIL proposto. Uma forma de enfrentar este problema seria o desenvolvimento de campanhas que visem sensibilizar o público para o ato de fruição da música e para a importância da produção musical mineira. Outra seria a implantação de projetos musicais didáticos de longa duração, que contribuam para maior informação e formação do público, no sentido de estimulá-lo a buscar qualidade e a ficar mais atento às inovações. Ainda nessa perspectiva, outra medida importante seria a criação de uma comissão no âmbito da FMC, formada por professores, pedagogos e músicos, com o objetivo de acompanhar a implantação da disciplina de educação musical no currículo das escolas municipais, para garantir que se alcance o espírito da lei de desenvolver nos alunos sensibilidade, criatividade e capacidades pessoais. Como uma estratégia para se alcançar tal objetivo, propõe-se o desenvolvimento do canto coral, por meio da criação de corais nas escolas públicas municipais. A referida comissão poderia se encarregar da elaboração de projeto de lei sobre o assunto. Dois argumentos básicos justificam essa proposta. Primeiro, a combinação facilidade e baixo custo na viabilização de um coral, o qual exige basicamente dois profissionais – o regente e o pianista – e um piano, não envolvendo a aquisição e manutenção de grande quantidade de instrumentos musicais. Em segundo lugar, porque o coral seria um caminho mais simples para se trabalhar as crianças, visando o desenvolvimento de um sentimento coletivo e de disciplina, além da sensibilidade. Para atender ao público das vilas e favelas33 – bastante significativo e cada vez mais presente na produção musical da capital –, a pesquisa apontou a necessidade de uma oferta permanente e variada de projetos culturais a essas comunidades, que permitam às pessoas a assimilação das novas linguagens e gêneros e a criação do hábito de consumo cultural. E que essa oferta leve em conta a crescente e dinâmica produção cultural dessas comunidades, que demanda políticas públicas de apoio e incentivo. Em relação à capacitação profissional dos principais atores envolvidos nesse sistema – músicos, produtores e técnicos –, Belo Horizonte mostra-se bastante preparada no que diz respeito à formação artística, com oferta de cursos variados e de alta qualidade, o que se configura como fator altamente favorável ao SPIL da música. Também na área da capacitação de produtores foram registradas iniciativas importantes, como alguns cursos de nível superior e treinamentos oferecidos pelo SEBRAE MG e pela ONG Favela é isso Aí, entre outras instituições. As falhas nessa área foram detectadas em relação à capacitação técnica. A baixa oferta de cursos de formação de técnicos e demais profissionais vinculados à infraestrutura (iluminadores, sonoplastas, cenógrafos, técnicos de mixagem e masterização etc.) tem gerado deficiência na oferta de mão de obra especializada,

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principalmente para a realização de shows e grandes espetáculos. Um caminho para enfrentar tal problema seria o mapeamento das demandas reais nessa área e a realização de parcerias com as empresas fornecedoras dos equipamentos de som e luz, por exemplo, ou com o Sistema S, no sentido de suprir essas demandas. Também a UFMG poderia se tornar outro grande parceiro, a partir do oferecimento de cursos de extensão nessa área. A construção dessas parcerias poderia fazer parte das estratégias de articulação do Fórum.

3.3.2. Cultura: alicerce da economia Quanto aos recursos financeiros, a ampliação das fontes de financiamento, públicas e privadas, e o aumento da dotação orçamentária para a área – cujo índice almejado é baseado na proposta de 1% do orçamento municipal prevista em projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional –, são iniciativas essenciais para acabar com a atual dependência do segmento dos recursos provenientes dos mecanismos de incentivo fiscal. Propõe-se, ainda, a criação de um mecanismo misto de financiamento, envolvendo a iniciativa privada e o setor público, que, a partir da participação financeira efetiva e não reembolsável do realizador, lhe assegure a possibilidade de comercialização do produto patrocinado. Tais medidas, associadas à reformulação das diretrizes das leis de incentivos fiscais, municipal e estadual – no que diz respeito à lógica da concorrência não artística e do atendimento pontual desses mecanismos –, contribuiriam para a valorização do trabalho artístico e o respeito ao profissional das artes, em geral, e da música, em particular.

Esta inversão de proporção entre as fontes de financiamento – garantindo o fluxo permanente de recursos e a democratização de acesso aos mesmos – é condição essencial para a construção de políticas estaduais e municipais para o segmento e, consequentemente, para a construção do SPIL proposto. Nesse sentido, a criação do Sistema Municipal de Informações e Indicadores Culturais proposto torna-se fundamental para permitir pensar lógicas de financiamento coerentes com a realidade local. Pensando-se em planejamentos de médio e longo prazos, as atuais características urbanas da capital – seus limites territoriais encontram-se conurbados com outros seis municípios34 – apontam a necessidade de que esse sistema assuma caráter intermunicipal, o que irá demandar interações e articulações com os municípios da região.

Faz-se necessária, ainda, uma observação quanto à utilização dos recursos do orçamento destinados à cultura. Além do montante disponível, é preciso, também, estar atento a como e onde ele é aplicado, ou, em alguns casos, até mesmo garantir que o que foi destinado para a área esteja sendo realmente aplicado nela. No tocante à Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte (FMC), dados da prestação de contas da execução orçamentária de 201035 mostram que o órgão utilizou apenas 61% da verba prevista para aquele ano, constituindo-se em um dos orçamentos menos executados entre todos os órgãos da Prefeitura. Há que se levar em conta, ainda, que a maior parte desses recursos foi gasta com pagamento de pessoal, encargos sociais e serviços administrativos do próprio órgão. As causas disto podem ser diversas, do despreparo do órgão para operar esse dinheiro, por exemplo, à falta de interesse da gestão municipal em investir em cultura. O que fica claro, entretanto, é que a área da cultura não está recebendo o tratamento que seus atores esperam e demandam do poder público.

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Sobre a ausência de políticas públicas voltadas para a área, tanto por parte da Prefeitura quanto do Governo Estadual, o professor João Antônio de Paula afirma que estaria faltando uma compreensão de que a economia da capital mineira, por não poder ser pensada do ponto de vista da produção industrial, até por falta de espaço, poderia ter na cultura um de seus principais alicerces, já que “as atividades culturais agregam muito valor, têm impacto ambiental nenhum, pelo contrário, são até preservacionistas, totalmente sustentáveis e têm um impacto, uma capacidade de atração do turismo muito forte”. A música poderia se transformar em “um elemento de atração turística”, como concorda Diniz, tendo em vista a deficiência da capital no que diz respeito a grandes atrativos nesse setor. Tal entendimento vem ao encontro da visão de vários autores, entre eles REIS (2008), de que a economia da cultura integra o segmento de serviços e lazer, cuja projeção de crescimento tem sido superior à de qualquer outro, estimando-se que esteja crescendo 10% ao ano. Tal potencial de crescimento é considerado bastante elástico, uma vez que o setor depende pouco de recursos esgotáveis, sendo o seu insumo básico a criação artística ou intelectual e a inovação. Outro conjunto de problemas encontrado está relacionado à necessidade de criação de mercados para consumo do produto musical da capital, não apenas local, mas além dos limites do estado e do próprio país. A esse respeito, a pesquisa mostrou que Belo Horizonte apresenta vários fatores desfavoráveis. Levando-se em conta o dado encontrado de que as apresentações ao vivo são a principal unidade produtiva do mercado da música da capital, a ausência de espaços apropriados e de condições adequadas para a prática dessa atividade constitui uma dificuldade significativa. Para enfrentá-la, uma medida que assume caráter de urgência é a que diz respeito à necessária articulação entre os três poderes (municipal, estadual e federal), visando potencializar o aproveitamento dos espaços culturais públicos existentes e a serem inaugurados em Belo Horizonte – a exemplo do Centro Cultural Banco do Brasil e do Espaço Cultural Funarte –, para que contemplem a produção musical local. Em relação aos bares e restaurantes, propõe-se, a partir do Fórum da Música, um trabalho de aproximação com os donos das principais casas ou daquelas que já apresentem alguma condição de realizar shows, com o objetivo de atraí-los para o debate sobre a criação do SPIL, sensibilizando-os para o retorno econômico e financeiro que poderão alcançar, além da contribuição que poderão dar ao desenvolvimento cultural e social da cidade. Essa aproximação também poderá facilitar o desenvolvimento de campanhas conjuntas que busquem trabalhar o público desses espaços para a arte da fruição da música, outro problema a ser enfrentado. Em contrapartida, sugere-se a criação de linhas de crédito especiais, além de isenções fiscais, que favoreçam os estabelecimentos privados que empregam músicos locais para apresentações ao vivo, auxiliando-os na aquisição de instrumentos e equipamentos musicais, de sonorização e iluminação, e de aparelhagem para se adequarem às exigências da Lei do Silêncio.

Diante da expressiva e relevante produção musical belo-horizontina, propõe-se que a Prefeitura crie um espaço público municipal voltado especificamente para os espetáculos musicais, já que todos os espaços disponíveis hoje na cidade são teatros adaptados para shows. Uma proposta seria preparar o Teatro Francisco Nunes – único de propriedade da PBH e que se encontra fechado há dois anos – para receber espetáculos de música,

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dotando-o de qualidade acústica e equipamentos apropriados. Por sua origem – foi criado como casa da ópera –, localização privilegiada (no Parque Municipal, centro da cidade), estrutura de porte médio (cerca de 600 lugares) e pelo próprio artista que lhe dá nome36, Chico Nunes, como é conhecido, poderia ser caracterizado como a Casa da Música de Belo Horizonte, constituindo um equipamento público cultural diferenciado. Esta Casa da Música – além de atender à demanda do segmento musical belo-horizontino – pode se transformar em referência para o turismo cultural da capital.

Ao lado disso, propõe-se, ainda, que a Prefeitura, por meio da FMC, também invista na criação da Orquestra Sinfônica Jovem de Belo Horizonte. Além de a pesquisa ter apontado a existência de público significativo para a música erudita na capital mineira, que comparece em peso aos espetáculos do gênero produzidos na cidade, este tipo de projeto se justifica pelo importante papel que desempenha na formação dos jovens, além de poder contribuir com o processo de formação de plateias. Compreende-se, entretanto, que, para que essas propostas tenham receptividade, é preciso que a Prefeitura adote postura mais sensível em relação ao papel da cultura, especialmente à importância da música para a economia e o desenvolvimento social de Belo Horizonte, reconhecendo e valorizando a efervescente produção do segmento.

É preciso, também, um trabalho articulado entre a Fundação Municipal de Cultura e a Secretaria Estadual de Cultura, visando criar ações coordenadas para divulgar os artistas e a produção musical locais, não apenas para a população da capital, mas a do interior e a do resto do país. Nessa direção, assume relevância a proposta de criação pelo governo estadual de escritórios culturais nas cidades polo do estado, que possam cumprir esse papel. Concomitantemente, é preciso que o poder público crie mecanismos próprios de divulgação, a partir de planejamento e projetos específicos que busquem alcançar o público por meio de instrumentos de comunicação tanto físicos quanto virtuais: impressos (jornais, folders, catálogos etc.), programas de rádio, vídeos, sites, blogs etc. Este material, ao lado de recursos humanos capacitados, bem informados e articulados, será fundamental para o funcionamento desses escritórios. Também é preciso investir em divulgação na mídia tradicional e nas rádios comunitárias, particularmente as do interior, aproveitando o seu potencial local. Do ponto de vista da divulgação, o Fórum da Música pode desempenhar papel estratégico essencial, criando, articulando e apoiando projetos que contribuam para a difusão da produção de Belo Horizonte. As universidades locais devem ser estimuladas a oferecerem cursos, workshops etc. que estimulem e contribuam para a formação de críticos musicais. Em relação ao governo estadual, faz-se necessária a construção de uma política de divulgação dessa produção nas mídias estatais (Rede Minas de Televisão e Rádio Inconfidência). Para alcançar tal objetivo, torna-se fundamental que os dirigentes dessas instituições, particularmente os diretores artísticos, sejam escolhidos a partir de critérios que levem em conta a formação e a qualificação para o desempenho no cargo. Propõe-se, ainda, verificar-se a possibilidade de se estabelecer uma parceria entre a Rádio Inconfidência e a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) para o intercâmbio de programação com a Rádio MEC, empresa estatal educativo-cultural, a exemplo do que já ocorre entre a TV Minas e a TV Brasil (também pertencente à EBC). Esta veicula programas da TV mineira e cede programas da sua grade para veiculação na programação da emissora local. A rica produção atual e o grande acervo da Rádio MEC37,

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voltados para a música de qualidade, popular e erudita, serão de grande contribuição para qualificar a programação da Rádio Inconfidência. 3.3.3. Economia da música Instrumentos importantes para a difusão e a comercialização da produção musical são os festivais – que além de lançarem novos artistas, possuem uma cadeia produtiva completa –, os concursos e os prêmios. Assim, propõe-se a criação – pela FMC, em parceria com o Fórum da Música – do Festival de Música de Belo Horizonte, na linha dos recentes festivais independentes, sem caráter competitivo, mas sim de mostra da produção local, com periodicidade bienal, e do Prêmio da Música de Belo Horizonte, também bienal, cujos anos de realização seriam intercalados. No âmbito estadual, a volta do circuito de festivais no interior seria oportunidade eficiente de intercâmbio da produção das diferentes regiões, de fomento de plateias e de geração de trabalho e renda para o segmento. Tais iniciativas poderão constituir grandes vitrines para a música da capital, colaborando para aumentar sua visibilidade nacional e internacional e constituindo, ainda, atrativos turísticos específicos. Trabalhados intersetorialmente e de forma integrada pelos governos municipal e estadual, estes atrativos poderão contribuir efetivamente para a geração de trabalho e renda na capital muito além da cadeia produtiva da música, alcançando setores como a rede de hotéis, a cadeia de bares e restaurantes, o comércio em geral, entre outros. Essas propostas são exemplos de ações que podem associar o desenvolvimento do segmento musical às políticas de fomento do turismo local e estadual, agregando à cadeia produtiva da música outro papel importante no processo de desenvolvimento social – o de indutora do turismo da capital. Dialeticamente, o desenvolvimento do turismo pode se transformar em condição importante para o SPIL da música de Belo Horizonte, aumentando o mercado consumidor de seus produtos e contribuindo para a difusão da sua produção fora dos limites da capital. A capital mineira – hoje com boa hotelaria e aeroporto internacional – tornou-se um portão de chegada e um centro distribuidor de turistas para os três principais circuitos turísticos do estado: das cidades históricas, das estâncias hidrominerais e do ecoturismo. A oferta planejada de atrações musicais pode contribuir para que a cidade – com pouquíssimas atrações turísticas – deixe de ser apenas uma rota de passagem para esses turistas. Faz-se importante ressaltar que Belo Horizonte possui uma população de 2.375.444 habitantes 38 , sendo a sexta cidade mais populosa do país. Além disso, a região metropolitana na qual se insere eleva esse contingente populacional para cerca de cinco milhões de habitantes39, o que amplia significativamente o raio de ação do seu mercado, inclusive o da música. Se, desses cinco milhões, considerarmos, numa leitura conservadora, que 50 ou 100 mil têm interesse em apreciar música, já se pode inferir a existência do que os economistas chamam de densidade de mercado, isto é, que há na própria região número suficiente de consumidores potenciais para sustentar o mercado da música de Belo Horizonte, numa economia de escala. Outro aspecto relevante a ser considerado é a direção da economia da capital para o setor terciário – comércio, prestação de serviços e setores de tecnologia de ponta40 –, principalmente, pela saturação do espaço físico e pelo adensamento do tecido urbano, o que tem levado ao fortalecimento do turismo de negócios41 e de eventos (congressos, convenções, feiras, exposições, eventos técnico-científicos etc.). Dessa forma, ganham

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destaque as atividades culturais, em geral, e a música, em particular – intimamente ligadas às estratégias atuais das empresas e instituições de divulgação de produtos e fidelização dos clientes por meio de eventos. Desse ponto de vista, a música tem grandes contribuições a oferecer, com o incremento na realização, por exemplo, de feiras de negócios e seminários sobre o próprio segmento, aproveitando toda a expertise e infraestrutura locais. A realização de eventos tem sido um dos carros-chefes do marketing do setor terciário. Além de se tornar cada vez mais comum a apresentação de músicos nas solenidades de abertura e encerramento de congressos e convenções, tem aumentado o número de empresas que utilizam os shows como peças importantes do seu planejamento de marketing, representando crescente nicho de mercado para os músicos. O fortalecimento do turismo de eventos, além de incrementar os níveis de ocupação da rede hoteleira e do consumo dos serviços de bares, restaurantes e transportes, como já acontece hoje, pode também contribuir para o fomento da produção musical de Belo Horizonte. Esta questão promete ganhar nova dimensão na capital mineira – uma das sedes da Copa do Mundo de 2014 – com o lançamento de empreendimentos para atender à demanda de hóspedes durante o Mundial. Segundo pesquisa do Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil (FOHB) 42, depois da Copa do Mundo, Belo Horizonte – cujo número de hotéis saltará de 103 para pelo menos 133, podendo chegar a 144 unidades – precisará atrair cerca de 20 mil turistas por semana, gerando uma média de 40 mil diárias, para não ter prejuízos com quartos ociosos. Isto significa que a cidade precisará incrementar o turismo de negócios e eventos, o que aumenta a perspectiva para a produção musical local e a relevância da criação do SPIL da música. Um aspecto importante, associado ao Mundial de futebol e a seus desdobramentos, é a possibilidade de divulgação da cultura mineira, em especial da música, que será criada com a vinda de milhares de turistas estrangeiros a Belo Horizonte. Trata-se de uma oportunidade ímpar, que deverá ser aproveitada pelo segmento musical, o qual, para tanto, deve se preparar com antecedência, estimulando e cobrando do poder público investimentos em projetos nessa direção. Uma proposta é a criação de programação bilíngue para TV, voltada para a divulgação da produção musical da capital, para ser veiculada nos circuitos internos de TV do Aeroporto de Confins e dos demais aeroportos internacionais do país. Ainda do ponto de vista do turismo, a criação de projetos de música associados aos eventos do circuito Estrada Real seria uma oportunidade de difundir a produção musical mineira e, ao mesmo tempo, contribuir para a consolidação desta importante iniciativa turística. Tais ações representam apenas uma das facetas que a economia da música de Belo Horizonte pode adquirir. Como já analisado, é preciso ter sempre em perspectiva que o impacto econômico da cultura em sua cadeia de fornecedores diretos e indiretos é maior do que o gerado pelas demais atividades de serviços (comércio, transportes, comunicações, etc.) – como apontam estudos da FJP (2003a) –, o que significa que os gastos em cultura geram proporcionalmente mais emprego e renda que os realizados nas outras atividades. Estes efeitos somente não são sentidos de forma significativa no conjunto da economia devido ao reduzido tamanho econômico da cultura. A solução natural, portanto, é o investimento cada vez maior na área.

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4 – Considerações finais A pesquisa mostrou que a construção de um sistema produtivo e inovativo local exige articulação institucional envolvendo a sociedade civil e o governo e, também, intencionalidade. A atual conjuntura cultural belo-horizontina indica que essa intenção deve partir da própria sociedade civil, isto é, dos músicos, por meio de suas entidades representativas. A partir daí, deve-se procurar a interação com os governos do estado e do município, assim como com os demais atores importantes para o sistema, como os empresários e as instituições de ensino e pesquisa. Para tanto, faz-se necessária a existência de um mecanismo que possibilite a aproximação das partes, garantindo-lhes reciprocidade no todo, de modo a dar sustentação a um processo social, econômico e político capaz de catalisar essas energias e potencialidades, em prol do segmento da música e do desenvolvimento local. Nessa perspectiva, propõe-se, como primeiro passo institucional para a criação deste SPIL, a constituição da Câmara Setorial da Música de Belo Horizonte, como uma instância mediadora permanente, um espaço que contribua para qualificar a discussão de estratégias e de políticas para o segmento mediante o estímulo à aproximação territorial dos diferentes agentes locais. Esta instância deve ser constituída por representantes dos músicos, da Prefeitura, do Governo do Estado, do Governo Federal, dos empresários e das instituições de ensino e pesquisa da capital. O projeto detalhando esta proposta, bem como a íntegra da dissertação que deu origem a este artigo está disponível em: http://www.mestradoemgsedl.com.br/wp-content/uploads/2010/06/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Jane.pdf. Referências ALVES-MAZOTTI, Alda J.; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O Método nas Ciências naturais e Sociais. São Paulo: Pioneira, 1998, p.147-189. ANDRÉS, Artur; BORÉM, Fausto. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental e de novos instrumentos musicais acústicos. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184. CARSALADE, Flavio de L. Culture as a methodological key. City & Time. Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada. UFPe, n. 2, v. 1. Olinda, PE: 2005. Disponível em: www.ct.ceci-br.org. Acesso em: 11 Jan. 2010. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. V. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2003. 698 p. CASTRO, Célio de. BH 100 anos - uma lição de história. Prefeitura de Belo Horizonte. 1997. Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=historia&tax=11794&lang=pt_BR&pg=5780&taxp=0&. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Centro de Estudos Históricos e Culturais. Prestando contas aos mineiros - avaliação da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Belo Horizonte: 2003a. 87p. Disponível em: http://www.fjp.gov.br/index.php/servicos/82-servicos-cepp/75-prestando-contas-aos-mineiros-avaliacao-da-lei-estadual-de-incentivo-a-cultura. Acesso em: 10 Out. 2010. HANSEN, Dean Lee; BARRETO JR, Édison R. Cenários de desenvolvimento local: estudos exploratórios, v. 1. Aracaju: SEPLAN, 2003, p.97-126. REDE DE PESQUISA EM SISTEMAS PRODUTIVOS E INOVATIVOS LOCAIS. Mobilizando Conhecimentos para Desenvolver Arranjos e Sistemas Produtivos e Inovativos Locais de Micro e Pequenas Empresas no Brasil. Glossário de Arranjos e Sistemas Produtivos e Inovativos Locais – GASPIL. LASTRES, Helena M. M.; CASSIOLATO José Eduardo (Coords.). 8° rev., dez. 2005. Disponível em: http://redesist.ie.ufrj.br/glossario.php. Acesso em: 09 Jul. 2010. MARTINS, Bruno V. Som imaginário – A reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina. Belo Horizonte: UFMG, 2009. 233 p. MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais. Música Minas. 2009. Disponível em: http://www.cultura.mg.gov.br/?task=interna&sec=1&cat=39&con=1511 Acesso em: 10 Jan. 2011. PORTA, Paula. 2008. Economia da cultura: um setor estratégico para o país. Prodec/MinC. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2008/04/01/economia-da-cultura-um-setor-estrategico-para-o-pais/.

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REIS, Ana Carla F. Marketing cultural e financiamento da cultura. São Paulo: Thomson Pioneira, 2002. 313 p. REIS, Ana Carla F. (Org.). Economia Criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. 268 p. Disponível em: http://www.garimpodesolucoes.com.br/downloads/ebook_br.pdf. Acesso em: 18 Out. 2010. SILVA, Frederico A. Barbosa da. Economia e Política Cultural: acesso, emprego e financiamento. Coleção Cadernos de Políticas Culturais. v. 3. Brasília, Ministério da Cultura, 2007. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/082/08201004.jsp?ttCD_CHAVE=2804. Acesso em: 14 Out. 2010. WERKEMA, Mauro G. História, arte e sonho na formação de Minas. Belo Horizonte: Duo Editorial, 2010. 504 p.

1 Extraído da dissertação apresentada ao Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA, aprovada em 18 de Abril de 2011. Área de concentração: Inovações Sociais, Educação e Desenvolvimento Local. Linha de pesquisa: Processos Sociais e Políticos: Articulações Institucionais e Desenvolvimento Local. Orientadora: Profa. Dra. Lucília Regina de Souza Machado ² Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás. ³. A Fundação João Pinheiro (FJP) realizou, em 1996, o 1º Guia Cultural de Belo Horizonte e, em 2003, publicou os estudos Prestando contas aos mineiros - avaliação da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e Incentivo fiscal à cultura: limites e potencialidades. Em 2010, o jornalista Mauro Werkema lançou o livro História, arte e sonho na formação de Minas. 4 Fonte The Globe and Mail de 23 Mar. 2006. Disponível em: http://www.theglobeandmail.com/search/?q=Grupo+Corpo+Brazil. Acesso em: 04 Abr. 2010. 5 Com 33 anos de carreira, “tem trabalhado para manter sua herança africana em seus trabalhos artísticos

tais como a música, dança, TV, teatro e cinema”. Tornou-se capitão da Guarda de Moçambique – grupo que celebra o Congado. Idealizador e coordenador do Grupo Tambor Mineiro, cujo objetivo é resgatar e valorizar a cultura de Minas. Fonte: site Tizumba. Disponível em: http://www.tizumba.com/home.php?pag=1. Acesso: 05 Mar. 2011. 6 Um dos três corpos artísticos mantidos pela Fundação Clóvis Salgado, a OSMG foi criada em 1976. Fonte: site da FCS. Disponível em: http://www.fcs.mg.gov.br/grupos-profissionais/82,,orquestra-sinfonica.aspx. Acesso em: 10 Mar. 2011 7 Criada em 1986, a orquestra, mantida pelo Serviço Social da Indústria trabalha com formação de público e se apresenta com vários solistas e convidados de expressão nacional. Fonte: site da FIEMG. Disponível em: http://www.fiemg.org.br/Default.aspx?tabid=4005. Acesso em: 10 Mar. 2011 8 Vinculada à Secretaria de Estado da Cultura, tem como principais finalidades “apoiar a criação cultural,

fomentar, produzir e difundir as artes e a cultura no Estado”, “administrar o Palácio das Artes, a Serraria Souza Pinto e demais espaços que lhe forem designados”. Fonte: http://www.fcs.mg.gov.br/home/default.aspx. Acesso em: 10 Mar. 2011 9 Fonte: Jornal Estado de Minas de 03/06/2009. Disponível em: http://www.em.com.br. Acesso em: 10 Mar. 2010. 10 Em 2008, o SEBRAE criou o projeto Música Independente na Região Metropolitana de Belo Horizonte,

que vem desenvolvendo alguns programas para capacitação do segmento, e foi responsável por demandar à FJP a realização do Diagnóstico da Cadeia Produtiva da Música em Belo Horizonte. Fonte: SEBRAE MG. Disponível em: http://www.sebraemg.com.br/Home/HomePortal.aspx. Acesso em: 10 Jun. 2010 11Criado em 1978, o grupo UAKTI emprega madeiras, bambus, pedras e água para produzir sons musicais.

Sua trajetória confunde-se com a trajetória musical de Marco Antônio Guimarães, nascido em Belo Horizonte, em 1948. Violoncelista, compositor, arranjador e responsável pela criação do UAKTI (ao lado de Paulo Sérgio dos Santos, Décio de Souza Ramos Filho e Artur Andrés), sua direção musical e construção dos seus instrumentos não-convencionais. Fonte: Per Musi. Disponível em: http://www.musica.ufmg.br/permusi/port/numeros/23/num23_cap_17.pdf. Acesso em: 15 Jul. 2010. 12 RedeSist é uma rede de pesquisa interdisciplinar do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criada em 1997, que conta com a participação de várias universidades e institutos de pesquisa no Brasil, além de manter parcerias com outras organizações internacionais. Fonte: site RedeSist. Disponível em: www.redesist.ie.ufrj.br. Acesso em: 05 Mar. 2010. 13Integrante do Clube da Esquina, considerado por alguns críticos como “o maior guitarrista brasileiro vivo”,

cujo CD Harmonia e Vozes foi indicado ao 11° Grammy Latino 2010 na categoria de melhor álbum de MPB.

Fonte: Site Nova Cultura. Disponível em: http://novacultura.de/wb/pages/musica/o-som-do-brasil/toninho-

horta.php

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14Saxofonista, natural de Belo Horizonte – onde foi um dos fundadores do Berimbau Club, voltado para o Jazz, na década de 1950, e que se apresentou ao lado de nomes internacionais como Sarah Vaughan. 15 Compositor e arranjador nascido no interior de Minas, mas cuja carreira foi desenvolvida a partir de Belo

Horizonte. Possui discos lançados nos Estados Unidos, Canadá, Japão e Europa. 16 Fonte: Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: http://portal.mte.gov.br/rais/resultados-definitivos.htm. Acesso: 12 Jun. 2010. 17 Tadeu Martins Soares é poeta, instrumentista, compositor e produtor cultural, é atual diretor do Instituto

Vale Mais – Instituto Sociocultural do Jequitinhonha. 18 Graduado em Comunicação Social (Jornalismo), é cantor, ator e produtor cultural. Atualmente administra

o Teatro Santo Agostinho e dirige a TW Comunicação e Arte, empresa de gestão e produção cultural. 19 Formado pelas seguintes organizações: Serviço Nacional da Indústria (SENAI), Serviço Social da Indústria (SESI), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), Serviço Social do Comércio (SESC), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), Serviço Nacional de Aprendizagem em Transportes (SENAT), Serviço Social do Transporte (SEST), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP). Fonte: SENAI. Disponível em: http://www.senai.br/br/ParaVoce/faq.aspx. Acesso em: 02. Fev. 2011 20 Mestre, doutor e pós-doutor em Ciência Econômica, é estudioso de economia regional urbana e

economia mineira, entre outros temas. 21 A Sociedade Mineira de Software (FUMSOFT), com sede em Belo Horizonte, “atua na criação, capacitação, qualificação e fomento de empreendedores e organizações produtoras de software de Minas Gerais para o sucesso no mercado global”. “São programas nas áreas de empreendedorismo, qualificação e certificação de produtoras de software, geração de negócios, pesquisa, desenvolvimento e inovação, trabalho cooperado, exportação, entre outras”. Integra a Rede Softex – Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro. Fonte: Site da FUMSOFT. Disponível em: http://e-portal.fumsoft.softex.br/fumsoft. Acesso em: 02. Fev. 2011 22 A UFMG possui uma Diretoria de Ação Cultural, um Centro Cultural, um Conservatório, além das escolas de Música e de Belas Artes, responsáveis pela realização anual de centenas de espetáculos e atividades de música, dança, teatro e artes plásticas, a maioria aberta ao público. Realiza, há 42 anos, o Festival de Inverno, considerado “um dos mais importantes e tradicionais eventos culturais do país”. Fonte: Site da UFMG. Disponível em: www.ufmg.br. Acesso em: 02 Mar. 2011. 23 Doutor em História Econômica, professor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (Cedeplar). 24 Fonte: Site da PUC-MG. Disponível em: http://www.pucminas.br/ensino/mestrado_doutorado/mestrado_doutorado.php?&pagina=947&programa=13. Acesso em: 02 Mar. 2011. 25 Violonista, compositor, arranjador, produtor musical, idealizador e coordenador do projeto Música de Minas. 26 O Projeto Música Minas surgiu em 2008, quando representantes do segmento decidiram criar um plano de exportação e disseminação da música mineira a partir do então recém-criado Fórum da Música de Minas Gerais, que se torna o gestor oficial do programa. O projeto – voltado para compositores, intérpretes e instrumentistas de diversos gêneros e tendências musicais –, é apresentado à Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais (SEC), que decide incentivá-lo, destinando-lhe orçamento de R$ 1,550 milhão em 2009, distribuídos em duas categorias: a de Circulação Nacional de Artistas Mineiros e a de Passagens para Deslocamentos Nacionais e Internacionais. (MINAS GERAIS, 2009). Nos anos seguintes este valor foi sendo reduzido, chegando a R$ 1,15 milhão em 2011. 27 Fonte: Site da SEC/MG. Disponível em: http://www.cultura.mg.gov.br/?task=interna&sec=9&cat=74.

Acesso em: 02 Mar. 2011 28 Parágrafo 1° do Artigo 3° da Lei nº 12.343 de 02 dez. de 2010. (ANEXO II). 29 Fonte: Acordo de Cooperação Federativa do Sistema Nacional de Cultura. Disponível em: http://blogs.cultura.gov.br/snc/files/2010/12/GUIA-DE-ORIENTA%C3%87%C3%95ES-AOS-MUNIC%C3%8DPIOS-SNC-PERGUNTAS-E-RESPOSTAS_19JAN2011.pdf. Acesso em: 02 Mar. 2011 30 Graduada em Ciências Sociais e Antropologia, especialista em Políticas Culturais e Gestão Cultural. Atualmente, é parecerista do Ministério da Cultura (MinC) na área de Música e Humanidades e consultora do SEBRAE. 31 Referência ao movimento musical Clube da Esquina.

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32 Fonte: Site da FMC. Disponível em:

http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=fundacaocultura&tax=7664&lang=pt_BR&pg=5520&taxp=0&. Aceso em: 03 Mar. 2011 33 Belo Horizonte possui 208 comunidades, entre vilas, favelas, conjuntos habitacionais populares e outros

assentamentos irregulares, totalizando 471 mil moradores ou 19,53% da população da capital. Fonte: Site

da Urbel/PBH. Disponível em:

http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=

urbel&tax=7491&lang=pt_br&pg=5580&taxp=0&

34 Ribeirão das Neves (Norte e Noroeste), Santa Luzia (Norte e Nordeste), Sabará (Lste), Nova Lima (Sul e

Sudeste), Ibirité (Sudoeste) e Contagem (Noroeste e Oeste). Fonte: Portal Brasil. Disponível em: http://www.portalbrasil.net/brasil_cidades_bh.htm. Acesso em: 15 Mar. 2011. 35 Fonte: PBH/Contas Públicas/Execução orçamentária/Demonstrativos e Relatórios. Disponível em:

http://migre.me/41Wuv. Acesso em: 23 Mar. 2011. 36 “O nome do teatro é uma homenagem ao grande clarinetista e maestro mineiro Francisco Nunes (1875-1934), que criou a Sociedade de Concertos Sinfônicos de Belo Horizonte e dirigiu o Conservatório Mineiro de Música”. Fonte: Site PBH. Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=25459&chPlc=25459&termos=história do teatro Francisco Nunes. 37 “A MEC AM, voltada para a Música Popular Brasileira, apresenta programas variados que contemplam,

ainda, música regional, bossa-nova, jazz e música instrumental. [...] A MEC FM transmite música de

concerto em 90% de sua programação, com janelas de jazz, choro e música instrumental. [...] Com uma

história que se confunde com a própria história do país nos últimos 70 anos, a Rádio MEC possui, hoje, um

dos mais importantes acervos do rádio brasileiro, com quase 50 mil fitas de gravações e programas

temáticos”. Fonte: Site Rádio MEC. Disponível em: http://www.radiomec.com.br/70anos/intro.htm. Acesso

em: 20 Mar. 2011.

38 Fonte: IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766. Acesso em: 17 Mar. 2011. 39 Fonte: IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766. Acesso em: 17 Mar. 2011. 40 Alguns exemplos: a implantação do Parque Tecnológico de Belo Horizonte (BHTec), o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento do Google para a América Latina e o Centro de Exposições Expominas. 41 Quando o indivíduo se desloca visando desenvolver empreendimentos com fins lucrativos, através de reuniões de negócios, a fim de fechar acordos, comprar produtos ou serviços ou acertar outras questões pontuais relacionadas à atividade de mercado. Envolve setores como transporte, hospedagem, alimentação e lazer. 42 Fonte: Site do FOHB. Projeção da taxa de ocupação nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo no Brasil. Disponível em: http://www.asacom.com.br/hvs/FOHB_2010. Acesso em: 10 Fev. 2011.

Jane Maria de Medeiros é jornalista e produtora cultural, especialista em Gestão Estratégica Cultural e Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Durante dez anos, exerceu o cargo de Coordenadora de Projetos Culturais do Conservatório UFMG. Atualmente, presta assessoria à diretoria da Escola de Música da UFMG na concepção e produção de projetos institucionais. Foi membro do Conselho Administrativo do Instituto Cultural Sérgio Magnani (2006/2011), tendo sido sua primeira presidente (2004/2005). Uma das fundadoras do Fórum dos Dirigentes das Casas de Espetáculos de Minas Gerais, integrou a sua diretoria nas gestões 2004/2007 e 2008/2011. Integra a Rede de Empreendedores Culturais (ReCult) e o Grupo de Trabalho da Cultura do Movimento Nossa BH, criado em 2008. Foi uma das idealizadoras do

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Fórum pela Cultura de Minas, criado em 2010. É membro, eleita, do Núcleo de Articulação Política do Fórum da Música de Minas Gerais para o biênio 2012/2013.

Lucília Regina de Souza Machado é Coordenadora do Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA (Belo Horizonte, MG), Professora Titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutora em Educação, Pós-Doutora em Sociologia do Trabalho, Mestre em Educação e Graduada em Ciências Sociais. Membro da Comissão Assessora de Expertos Ibero-americanos em Educação Técnico Profissional da Organização dos Estados Iberoamericanos (OEI). Membro da Comissão Executiva Nacional de Cursos Técnicos de Nível Médio (Conac) da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3115

Retrospectiva histórica e temáticas investigadas nas pesquisas empíricas sobre o processo de preparação da performance musical Luís Cláudio Barros (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Resumo: A partir de uma retrospectiva histórica e de contextualização da pesquisa empírica sobre o planejamento da execução instrumental, o presente trabalho estabelece o panorama das principais vertentes temáticas examinadas pela pesquisa científica. Ciente de que o objeto de estudo possui muitas ramificações, abordagens e especificidades, grande parte dos temas de pesquisa pode ser enquadrada dentro de algumas categorias temáticas de maior abrangência. Nesse contexto, o artigo define as categorias em que cada tema relacionado às etapas de preparação da performance musical pode ser inserido no campo da pesquisa empírica em Práticas Interpretativas. Palavras-Chave: Pesquisa em música; Temáticas em Práticas Interpretativas; preparação da execução instrumental.

A historical retrospective and research subjects of the empirical research in performance planning Abstract: This article gives an overview of the main subjects investigated by the scientific research from an historical retrospective of empirical research in Performance Planning. Knowing that the research object has many ramifications and specificities, it is possible to insert a great part of the subjects of research within a broad thematic category. In this context, this article defines the categories in which each theme related to performance planning can be inserted within Musical Performance. Keywords: Music research; Subjects in performance; Musical Performance Planning.

1 - Aproximação ao Problema

O presente artigo realiza uma retrospectiva histórica das pesquisas empíricas que examinaram o processo de preparação da performance musical, englobando temáticas que vão desde a leitura à primeira vista da obra musical até a sua performance final. Essas etapas de organização do estudo do instrumento e aprendizagem de um repertório musical são chamadas por GABRIELSSON (2003, p.223) de “Planejamento da Execução Instrumental”, sendo inseridas em uma das subdivisões de pesquisa em Práticas Interpretativas. Após apresentar a contextualização histórica desta linha de pesquisa, o artigo discorre sobre as vertentes temáticas dos trabalhos empíricos realizados entre 1980 e 2008 sobre o planejamento da execução instrumental. A opção por esse período justifica-se por ser a época em que se delimitam e se concentram, em número crescente de publicações, as pesquisas sobre a temática. Foi elaborado um plano organizacional que categorizou os inúmeros artigos coletados, estabelecendo-se critérios de seleção e de ordenamento dos trabalhos de

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acordo com o método de pesquisa empregado: pesquisas experimentais, pesquisas descritivas com delineamento experimental, estudos de caso, estudos com entrevistas, questionários, levantamentos/survey, dentre outros. Nesse contexto, delimitou-se o espectro investigativo das pesquisas empíricas sobre as estratégias, as técnicas e métodos empregados na prática do instrumento, a organização do estudo e as etapas do processo de aprendizagem. Em relação ao objeto observado, qual seja, o músico e sua prática instrumental, as pesquisas empíricas estão centradas em dois eixos sobre o desempenho instrumental: (1) o músico profissional com nível de expertise, atuando como modelo da ação músico-instrumental e servindo de parâmetro para o ensino do instrumento (CHAFFIN et al., 2002, 2005; MIKLASZEWSKI, 1989; ERICSSON e RAMPE (1996) e (2) os estudantes de música e músicos amadores, em seus variados estágios de aprendizagem e níveis de habilidade musical, os quais são objetos de estudo para exame dos aspectos específicos da execução musical, como o tipo de prática empregada, as diferenças individuais durante o estudo, a estrutura da prática, o efeito das estratégias de estudo, os aspectos motores ou expressivos da execução e a memorização (BARRY, 1992; BURNSED e HUMPHRIES, 1998; COFFMAN, 1990; COSTA, 1999; DAVIDSON e MCPHERSON, 2000; ERICSSON et al. 1993; GRUSON, 1988; HALLAM, 2001; HALSBAND et al. 1994; MISHRA 2002; ROSENTHAL et al. 1988; ROSTRON e BOTTRILL, 2000; WILLIAMON E THOMPSON, 2003; WILLIAMON e VALENTINE, 2000, 2002; WOODY, 2003; dentre outros). Esses dois eixos sobre o desempenho instrumental desencadeiam as investigações sobre as referidas temáticas.

2 - Definições de Planejamento da Execução Instrumental Este artigo restringe-se à linha de pesquisa1 nº 5, chamada por GABRIELSSON (2003) de Planejamento da Execução Instrumental. No mapeamento de GABRIELSSON, essa vertente investigativa é representada por trabalhos escritos entre 1995 e 2002, destacando os seguintes autores: CHAFFIN et al. (2001, 2002); CLARKE (1988); DRAKE et al. (2000); ERICSSON et al. (1993, 1997, 1998); GINSBORG (2002); GRUSON (1988); HALLAM (1995, 1997); KRAMPE (1997); LEHMANN (1997, 1996, 1998); MIKLASZEWSKI (1989, 1995); MACPHERSON e MCCORMICK (1999); NIELSEN (1997, 1999, 2001); O´NEILL (1997, 1999, 2002); SLOBODA (1996); SULLIVAN e CANTWELL (1999); PALMER e MEYER (2000); PALMER e VAN DE SANDE (1995); WILLIAMON e VALENTINE (2000, 2002). Entretanto, GABRIELSSON não realizou uma análise crítica do conhecimento produzido sobre o planejamento da execução, visto que seu foco foi fornecer principais fontes bibliográficas e a discriminação das dez linhas de pesquisa em Práticas Interpretativas. Outros trabalhos que trouxeram contribuição para a linha de pesquisa nº 5 foram examinados e acrescidos ao presente artigo.

A conceituação de planejamento da execução foi indispensável para realizar uma análise precisa e imparcial, provendo foco e prevenindo eventuais desvios do cerne investigativo. As definições foram retiradas dos referenciais teóricos do trabalho e

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serviram para delimitar as pesquisas e as fontes bibliográficas percorridas e os limites temáticos pertencentes à linha de pesquisa. Assim, entende-se por planejamento da execução instrumental:

2.1. A sistematização e organização consciente e refletida da prática diária do instrumento através de um conjunto de estratégias e técnicas de estudo (utilizadas com um objetivo específico a ser alcançado) as quais irão, indubitavelmente, otimizar os resultados da ação músico-instrumental. Essas características estão relacionadas ao que HALLAM (1997c) denomina de metacognição. Para essa autora, as estratégias metacognitivas estão centradas no planejamento, monitoramento e avaliação do aprendizado (p.209). Segundo CHAFFIN (WILLIAMON, 2004, p.28), o músico deve ter uma grande variedade de estratégias para serem utilizadas flexivelmente, de acordo com a finalidade do estudo e as dificuldades a serem solucionadas. HALLAM ressalta que músicos profissionais detêm o controle sobre a prática instrumental, pois esses têm a “necessidade de ajustar continuamente os processos de planejamento, coletando informações, formulando hipóteses, fazendo escolhas e reconsiderando decisões”, ou seja, “alcançando o produto-alvo no menor tempo possível” (1997c, p.181). Essas características são atributos do que considera como uma prática efetiva, tendo como modelo o exame sobre a prática de estudo do músico profissional. Sua pesquisa descritiva de 2001b sugere que o aumento no nível de planejamento da prática instrumental pode ser uma característica necessária para se tornar um músico de excelência (p.13);

2.2. O estudo do instrumento baseado em resultados qualitativos acima dos

quantitativos, partindo-se do pressuposto de que o conteúdo e a qualidade da prática são mais importantes do que a quantidade de horas despendidas na prática (WILLIAMON e VALENTINE, 2000). A qualidade subentende um constante monitoramento pela própria pessoa do seu desempenho técnico-motor em relação à produção sonora. Nesse sentido, REID (2002, p.110) postula que a prática deve ser vista como uma atividade que busca solucionar problemas (problem-solving activity), em que o músico identifica a dificuldade para encontrar meios de eliminá-la. Ressalto que essas soluções devem ser estabelecidas a partir da resultante sonora, estabelecendo uma conexão onde a qualidade do estudo e da execução relaciona-se à qualidade da sonoridade produzida;

2.3. A maneira como a representação mental e a estrutura da música influencia

a execução e a organização da prática instrumental (CHAFFIN et al., 2002). Para WILLIAMON (2004, p.28), as decisões iniciais sobre a técnica devem ser embasadas sobre a ideia musical e os objetivos expressivos finais da execução. Sem isso em mente, muitas dessas decisões poderão ser mudadas futuramente, ocasionando um prolongamento do período de aprendizagem. A representação mental é fundamentada nas experiências musicais prévias, ou seja, na familiaridade que temos com a obra em

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questão, estabelecidas pela apreensão, entendimento e concepção imaginária da peça musical;

2.4. As etapas e o conteúdo do processo de aprendizagem que levam a uma execução em nível de expertise. Segundo WILLIAMON (2004, p.8), o refinamento da habilidade musical é proveniente de uma prática de estudo altamente eficiente após anos de experiência. Outros autores também destacam que “o nível de proficiência em um determinado domínio de conhecimento é uma função direta da quantidade e qualidade de esforço na prática estruturada das habilidades específicas que o compõem” (ERICSSON et al.; SLOBODA citado por BORÉM et al., 2002, p.18). De acordo com ERICSSON et al. (1993, p.14), um padrão de desempenho superior vai além do domínio do conhecimento e da habilidade com o instrumento, visto requerer contribuições inovadoras e relevantes para a área. Assim, um músico eminente deverá fornecer novas ideias, teorias, métodos, técnicas e interpretações distintas da música que executa.

3 - Retrospectiva histórica das pesquisas empíricas sobre o Planejamento da Execução Instrumental JORGENSEN (WILLIAMON, 2004, p.87) apresenta uma retrospectiva histórica das pesquisas empíricas sobre o Planejamento da Execução Instrumental. Segundo fontes bibliográficas, a data de 1916 marca a publicação do primeiro trabalho sobre os aspectos da preparação de um repertório a partir de um procedimento prático realizado pelo pianista húngaro Sandor Kovacs. Esta pesquisa investigou meios de aprimorar a memorização e, em especial, a importância do estudo mental da obra no início do processo de aprendizado de um novo repertório. Os resultados mostraram que a retenção dos fragmentos musicais foi superior quando aprendidas longe do instrumento (HALLAM, 1997, p.207). Nas duas décadas subseqüentes a esse estudo, apenas três trabalhos foram publicados: BROWN (1928, 1933) examinando a relação entre segmentação e não-segmentação da obra musical durante a prática e EBERLY (1921) investigando a coordenação entre as mãos durante a execução. O trabalho de BROWN (1928) é considerado um dos primeiros estudos experimentais sobre estratégias de estudo. Alguns anos depois, entre 1937 a 1947, a psicóloga e educadora americana Grace Rubin-Rabson publicou uma série de dez estudos sobre o comportamento durante a prática do instrumento. WILLIAMON E VALENTINE (2000, p.356) criticam muitos dos trabalhos de Brown e Rubin-Rabson por terem investigado a prática do instrumento e a memorização requerendo apenas que os sujeitos aprendessem pequenas seções musicais. Assim, muitas das conclusões extraídas desses estudos tendem a ser limitadas, visto que esses trechos musicais curtos não representam a complexidade e o esforço total requerido no aprendizado de um repertório de concerto. Conseqüentemente, não proporcionaram uma situação de aprendizagem “real e familiar” ao músico para que o fenômeno fosse examinado em contexto. Apesar dessas críticas, os trabalhos sobre memorização do repertório pianístico de RUBIN-RABSON (1937, 1939, 1940a, 1940b, 1941) são sempre citados por pesquisadores que investigam os aspectos relativos à memorização e por terem sido estudos pioneiros sobre as estratégias da prática instrumental envolvidas no

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processo cognitivo de assimilação mental do repertório. Conforme COFFMAN (1990, p.189), Rubin-Rabson foi a primeira pesquisadora a examinar a prática mental e a mostrar que o estudo mental da partitura é superior à prática física (de execução) para reter o conteúdo musical na memória.

O´BRIEN (1943), autor da área da psicologia, averiguou algumas estratégias específicas utilizadas durante o estudo instrumental, como a organização da prática a partir de trechos musicais curtos e longos e sua influência na memorização. Outro pioneiro na área da psicologia da música é C. E. SEASHORE (1937, 1938/1967, 1939), sendo amplamente citado por autores de pesquisas sobre a prática deliberada, principalmente o trabalho publicado em 1939, abordando a extensão do tempo gasto na prática. Alguns outros experimentos sobre aspectos interpretativos da execução musical, como altura, timbre, tempo e intensidade foram descritos no livro publicado em 1938 (MIKLASZEWSKI, 1989, p.95). WICINSKI (1950) e MANTURZEWSKA (1969) também desenvolveram trabalhos precursores coletando dados sobre músicos profissionais. WICINSKI realizou um estudo de entrevistas com pianistas russos eminentes, dentre os quais, Richter, Gilels e Neuhaus. Objetivou-se averiguar como esses músicos estudavam uma nova peça musical. A partir da prática do instrumento, os músicos foram categorizados em dois grupos: (1) o primeiro formado pelos pianistas que dividiam o aprendizado em três etapas (o conhecimento da música e a formação das ideias preliminares sobre como a peça deveria ser executada; o trabalho intensivo nos problemas técnicos; a fusão das duas primeiras etapas com o objetivo de formar a versão interpretativa final) e; (2) o segundo grupo, constituído por pianistas que tinham uma visão global e orgânica do processo de aprendizagem, os quais não dividiam o estudo em etapas, mas o organizavam de acordo com a situação. MANTURZEWSKA (1969) efetuou um estudo através de entrevistas com participantes do Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin para verificar como esses estruturavam sua prática instrumental. A autora relatou que houve significativas diferenças entre os músicos. Todos os pianistas estudavam muitas horas e com estratégias de estudo semelhantes. Os premiados, porém, tinham uma prática muito mais sistemática, regular e disciplinada, preferindo estudar a realizar outras atividades (WICINSKI, 1950; MANTURZEWSKA, 1969, citada por MIKLASZEWSKI, 1989, p. 96).

A partir de 1980, houve uma intensificação nas pesquisas sobre planejamento da execução e após 1990 houve um aumento considerável do número de trabalhos publicados. Segundo GABRIELSSON (2003, p.236), as pesquisas sobre o planejamento da execução instrumental iniciaram-se tardiamente na área de Práticas Interpretativas, ou seja, somente a partir da segunda metade do século passado com a emergência da psicologia cognitiva, através do entendimento de como se formam as representações mentais da música e as estratégias para uma prática eficiente. As razões para a intensificação dos trabalhos a partir do final da década de 1980 foi devido aos novos recursos tecnológicos oferecidos, como o registro em vídeo e áudio e, posteriormente, a utilização de programas de computador para a análise dos dados coletados, além do crescente interesse dos pesquisadores na temática. JORGENSEN (WILLIAMON, 2004, p.87) relata que alguns resultados conflitantes

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têm aparecido no corpo dos estudos empíricos desde 1916. Todavia, não evidencia quais seriam as inconsistências encontradas. Uma das razões para a falta de legitimação ou abertura para questionamentos em algumas dessas investigações talvez esteja centrada na fragilidade do referencial teórico utilizado. Um fator que vincula as pesquisas sobre o planejamento da execução à área de psicologia da música é o fato de que um maior desenvolvimento dessas pesquisas coincidiu também com o período em que houve um incremento dos trabalhos em psicologia da música. Segundo WILLIAMON e THOMPSON (2004), foi somente a partir dos últimos trinta anos que a psicologia da música emergiu como um campo unificado de pesquisa com o surgimento de Sociedades Internacionais (como, por exemplo, o European Society for the Cognitive Sciences of Music e International Society for Music Perception and Cognition) e o lançamento de importantes periódicos da área de psicologia da música: Psychology of Music, em 1973, Psychomusicology, em 1982, Music Perception, em 1983 e Musicae Scientiae, em 1997.

4 - Temáticas abordadas pela linha de pesquisa do Planejamento da Execução Instrumental A retrospectiva histórica se ateve aos estudos empíricos pioneiros, fornecendo um breve panorama sobre o que foi realizado na referida linha de pesquisa antes de 1980. Contudo, para a categorização das temáticas investigadas pelo Planejamento da Execução, o presente artigo se concentrou nos trabalhos publicados a partir de 1980, por se tratar de pesquisas mais recentes e metodologicamente bem construídas. As temáticas investigadas podem ter muitas ramificações, abordagens e especificidades, sendo que grande parte dos temas de pesquisa pode ser enquadrada dentro de três categorias de maior abrangência:

4.1. Temáticas relativas à análise do comportamento durante o estudo; organização, características e tipos de prática;

4.2. Temáticas que abordam as estratégias de estudo; 4.3. Temáticas que abordam a representação mental da música e

processos cognitivos envolvidos na memorização.

A subdivisão em três categorias visa à organização das referências disponíveis, ou seja, tem uma finalidade didática, o que não impede que determinados trabalhos se encaixem em mais de uma categoria. O critério principal para o enquadramento dos trabalhos nas categorias foi a preponderância dos temas abordados pelos autores no contexto de cada pesquisa. Assim, tabela a seguir apresenta os trabalhos que se inserem na primeira categoria temática, agrupados por tipo de pesquisa, ordem cronológica de publicação e temática investigada:

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TIPO DE PESQUISA

AUTOR (ES) ANO TEMÁTICA

Pesquisas experimentais e pesquisas descritivas com delineamento experimental

GRUSON 1988

Análise da prática x estratégias de estudo

COFFMAN 1990

Tipos de prática x influência na otimização do aprendizado

BARRY 1992 Comportamento no estudo; efeitos da prática estruturada/formal e da prática livre/informal

ERICSSON et al 1993

Prática deliberada

ERICSSON e KRAMPE 1996

Prática deliberada

DRAKE e PALMER 2000

Análise da prática, planejamento

ROSTRON e BOTTRILL 2000

Estrutura da prática x efeitos no rendimento da execução

WILLIAMON e VALENTINE

2000 Relação quantidade x qualidade da prática

WILLIAMON e VALENTINE

2002b A organização da prática a partir da estrutura formal da peça

Estudos de caso

MIKLASZEWSKI 1989

Análise da preparação de um repertório

CHAFFIN e IMREH 1997 2001 2002

Análise da prática de uma pianista-concertista; memorização

CHAFFIN; IMREH e CRAWFORD2

2002 Acompanhamento do processo de aprendizagem de uma obra de J.S.Bach por uma pianista-concertista

RENWICK e MCPHERSON

2002 Relação entre repertório e motivação para a prática (análise do comportamento de estudo) de uma clarinetista

CHAFFIN; IMREH; LEMIEUX e CHEN

2003 O papel da prática na solução de dificuldades técnico-musicais em músicos proficientes

CHAFFIN; LEMIEUX e CHEN

2004 Diferenças interpretativas em execuções de uma mesma peça

CHAFFIN; LISBOA e LOGAN

2005 Acompanhamento do processo de aprendizagem até a performance

CHAFFIN e LOGAN 2006

A preparação de uma concertista para uma performance

Estudos com entrevista e/ou questionário

SOSNIAK 1985 Estudo de entrevistas com 21 pianistas concertistas sobre seu desenvolvimento profissional

SLOBODA e HOWE 1991a

Estudo de entrevistas com 42 jovens alunos sobre influências na formação instrumental

HALLAM 1995a Estudo de entrevistas com 22 músicos sobre a prática de estudo

HALLAM 1995b Estudo de entrevistas com 22 músicos sobre a relação entre aprendizagem e interpretação

HALLAM

1997b Estudo de entrevistas com 22 músicos profissionais e 55 iniciantes: análise da prática

DANIEL 2001 Estudo com questionário para 35 instrumentistas sobre a auto-avaliação da prática e da performance

BURLAND e DAVIDSON 2002 Estudo de entrevistas com 18 músicos de nível de excelência fatores atuantes na formação profissional

Levantamento /Survey

SLOBODA e DAVIDSON 1996 Levantamento com 257 crianças e jovens sobre seu desenvolvimento musical

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SLOBODA; MOORE; DAVIDSON; HOWE

1996 Levantamento 257 crianças e jovens sobre a relação prática e desenvolvimento da execução

HARNISCHMACHER 1997 Levantamento com 151 instrumentistas sobre o efeito das diferenças individuais na estruturação da prática

JORGENSEN 1997 Levantamento com 182 alunos para verificar o tempo despendido na prática

KOTSKA 2002 Levantamento com 261 alunos e professores sobre atitudes e expectativas em relação à prática

JORGENSEN 2002 Levantamento com bacharelandos sobre a relação entre nível de habilidade e quantidade de estudo

MCPHERSON e MCCORMICK

2003 Levantamento com 332 instrumentistas sobre o papel da auto-eficiência na preparação da performance musical e nos provas de execução

SMITH 2005 Levantamento com 344 instrumentistas sobre o comportamento de estudo e análise de estratégias

TIPO DE PESQUISA QUANTIDADE DE PUBLICAÇÕES

Pesquisas experimentais e pesquisas descritivas com delineamento experimental

9

Estudos de caso 10

Estudos com entrevista e/ou questionário 7

Levantamentos / Survey 8

TOTAL DE PESQUISAS EMPÍRICAS NA TEMÁTICA 1

34

Ex.1 – Tabela de temáticas relativas à análise do comportamento durante o estudo; organização, características e tipos de prática.

A próxima tabela identifica os trabalhos que se inserem na segunda categoria temática (temas que abordam as estratégias de estudo), agrupados por tipo de pesquisa, ordem cronológica de publicação e temática investigada:

TIPO DE PESQUISA

AUTOR (ES) ANO TEMÁTICA

Pesquisas experimentais e pesquisas descritivas com delineamento experimental

ROSENTHAL et al. 1988 Efeitos de cinco estratégias de estudo sobre a execução ao aprender uma nova peça musical

LIM e LIPPMAN 1990 Tipos de estudo mental no processo de memorização

CAMP BINKOFSKI, HALSBAND

1994 O papel da percepção do agrupamento rítmico (estratégia de agrupar notas para memorizar) na prática como evidência para o desenvolvimento motor

PARNCUTT et al. 1997 Estudo do dedilhado utilizado por 28 pianistas durante a leitura de uma nova peça

BURNSED e HUMPHRIES

1998 Pesquisa experimental com 24 sujeitos, examinando o efeito da reverter a importância das mãos, ênfase na m.e., no desenvolvimento da habilidade pianística

COSTA 1999 Aplicação de diferentes tipos de estratégias de estudo

HENLEY 2001 Estratégias sobre tempo/andamento

HALLAM 2001b3 O desenvolvimento musical; estratégias de estudo

Estudos de

caso

NIELSEN 1997 1999a/b 2001

Auto monitoramento no aprendizado de estratégias durante a prática

PITTS; DAVIDSON; MCPHERSON

2000 Tipos de estratégias cognitivas utilizadas por três instrumentistas durante a prática

Estudos com HALLAM 1997a Estudo com entrevista com 22 músicos profissionais e

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entrevista e/ou questionário

2001a

55 alunos iniciantes sobre o desenvolvimento de estratégias metacognitivas

Levantamento/Survey

BARRY e MCARTHUR

1994 Levantamento com 94 professores sobre o ensino de estratégias de estudo

NIELSEN 2004 Levantamento 130 músicos avançados sobre utilização de estratégias de estudo e o papel da auto-eficiência

TIPO DE PESQUISA QUANTIDADE DE PUBLICAÇÕES

Pesquisas experimentais e pesquisas descritivas com delineamento experimental

8

Estudos de caso 5

Estudos com entrevista e/ou questionário 1

Levantamentos / Survey 2

TOTAL DE PESQUISAS EMPÍRICAS NA TEMÁTICA 2

16

Ex.2 – Tabela de temáticas que abordam as estratégias de estudo.

A última tabela identifica os trabalhos que se inserem na terceira categoria temática (temáticas que abordam a representação mental da música e processos cognitivos envolvidos na memorização), agrupados por tipo de pesquisa, ordem cronológica de publicação e temática investigada:

TIPO DE PESQUISA

AUTOR (ES) ANO TEMÁTICA

Pesquisas experimentais e pesquisas descritivas com delineamento experimental

LEHMANN 1997

Representação mental da música

WILLIAMON 1999

Os efeitos da performance memorizada sobre o ouvinte

MISHRA 2002 Análise de estratégias eficiente e ineficientes na memorização

WILLIAMON; VALENTINE

2002a O papel da estrutura formal da peça na memorização

Estudos com entrevista e/ou questionário; levantamento

HALLAN 1997a Entrevista com 22 músicos profissionais e 55 iniciantes sobre o desenvolvimento de estratégias de memorização

HOLMES 2005 Estudo de entrevista com dois músicos profissionais sobre os aspectos cognitivos, representação mental e memorização

TIPO DE PESQUISA QUANTIDADE DE PUBLICAÇÕES

Pesquisas experimentais e pesquisas descritivas com delineamento experimental

4

Estudos com entrevista e/ou questionário

2

TOTAL DE PESQUISAS EMPÍRICAS NA TEMÁTICA 3

6

Ex.3 – Tabela de temáticas que abordam a representação mental da música e os processos cognitivos envolvidos na memorização.

As fontes bibliográficas sobre o planejamento da execução mostram que os trabalhos sobre a análise do comportamento durante o estudo, sua organização, características e tipos de prática constituem o foco temático principal dessa linha de

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pesquisa, totalizando trinta e quatro trabalhos. Alguns assuntos, inseridos nas categorias anteriormente citadas, são apoiados em pesquisas desenvolvidas principalmente nos campos da psicologia da música (sob tendências da psicologia cognitiva) e da neurociência. Assim, alguns termos e teorias de outras áreas do conhecimento foram aplicados e transformados de acordo com as características e os objetivos da área de Práticas Interpretativas. O termo prática deliberada de estudo foi criado justamente para ilustrar essa interferência interdisciplinar na linha de pesquisa do planejamento da execução para designar as estratégias de estudo que levam o pianista a alcançar um alto nível na execução instrumental. Segundo GABRIELSSON, o termo significa uma “série de atividades cuidadosamente estruturadas objetivando a otimização da execução e que pressupõe um elevado nível de motivação e de esforço estendido” (2003, p.241). Desse modo, o resultado final da execução depende do trabalho precedente e inclui a análise e a verificação dos processos e estratégias de sua preparação. Esta denominação é empregada em trabalhos de ERICSSON, KRAMPE e TESCH-ROMER (1993); ERICSSON e CHARNESS (1994); ERICSSON e KRAMPE (1996); ERICSSON e NEIL (1994); LEHMANN et al. (1996, 1997, 1998) e SLOBODA et al. (1996), os quais postulam que o principal fator para o desempenho instrumental de excelência é dado pela quantidade acumulada de horas de estudo - um mínimo de dez anos na prática deliberada, eficazmente distribuída (GABRIELSSON, 2003, p.241).

Grande parte dos estudos sobre a temática “prática deliberada” em música foi realizada através de pesquisas descritivas com delineamento experimental. O trabalho pioneiro sobre esse tema é a pesquisa experimental de ERICSSON et al., (1993). Esse estudo resultou em um dos referenciais mais relevantes em relação à prática deliberada de estudo, sendo citado em muitos artigos sobre o planejamento da execução instrumental. Com isso, através de entrevistas, uso de diários de acompanhamento da prática, testes experimentais, observações e acompanhamento em dois estudos descritivos, um com violinistas e outro com pianistas, chegou-se à conclusão de que muitas características atribuídas ao talento inato provêm, na realidade, de uma extensa e planejada prática de estudo ocorridas em um período mínimo de dez anos. A prática deliberada também assegura que o estudo diário do instrumento engloba, além de suas etapas e atividades estruturadas, outros aspectos subjacentes como fatores psicológicos, cognitivos, físicos, emocionais, dentre outros. As pesquisas sobre a prática deliberada são influenciadas pelos procedimentos metodológicos utilizados pela área da psicologia, tendendo a realizar estudos de caráter prático e empírico.

Certas correntes de estudos dentro do planejamento da execução contrariam alguns resultados apregoados pelos estudiosos da prática deliberada, a exemplo de WILLIAMON e VALENTINE (2000 e 2002). Esses pesquisadores acompanharam o aprendizado e memorização de obras de J. S. Bach com vinte e dois pianistas, divididos em quatro níveis de habilidade. O trabalho opõe-se ao argumento de que a quantidade de horas de estudo é fator determinante para a qualidade da execução. Ao contrário, notou-se que o conteúdo e a qualidade individual da prática de estudo precisam ser investigados como fatores determinantes da habilidade musical, sugerindo que não se considere somente o enfoque quantitativo ao examinar a

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constituição da habilidade musical, mas, sobretudo, os aspectos qualitativos e de conteúdo dessa prática. Desse modo, não é somente a quantidade de horas de estudo que determina o resultado, mas principalmente como o tempo consumido nessa prática é distribuído e organizado e se é capaz de produzir resultados altamente eficazes. Considerando as implicações da relação entre quantidade e qualidade da prática como potencial temático para pesquisas, WILLIAMON ressalta que, ainda, não foi claramente determinado até que ponto a extensão e quantidade da prática resultam em qualidade (2000, p.3). HALLAM (2001b, p.7) aponta que nem todas as evidências corroboram o argumento sobre o número de horas como fator determinante para o nível de habilidade, visto que outros aspectos como o conhecimento musical prévio e a qualidade da prática podem atuar como fatores interferentes no desempenho musical.

As pesquisas sobre o comportamento de estudo podem elucidar muitas indagações referentes à aquisição do conteúdo musical. Dentre os resultados encontrados, a partir da observação de músicos com diferentes níveis de desempenho, notou-se que a condução da prática depende do grau de habilidade do músico. Verificou-se que instrumentistas profissionais demonstram extensivas habilidades metacognitivas e conseguem avaliar seus pontos fracos e fortes, ou seja, aprendem como estudar e desenvolvem apropriadas estratégias para a prática (CHAFFIN et al., 2002; HALLAM, 2001; WILLIAMON, 2004; dentre outros). MCPHERSON e MCCORMICK (2003) indicaram que os alunos que obtiveram resultados de execução superiores foram os que exibiram maiores níveis de estratégias cognitivas, tais como estudar a música mentalmente, avaliar criticamente seus esforços e organizar sua prática de estudo para alcançar resultados produtivos. Isto mostra que a utilização de aspectos cognitivos durante o estudo é uma tática importante para refinar o trabalho musical. O segundo foco temático em número de publicações são as pesquisas que examinaram as estratégias de estudo, totalizando dezesseis trabalhos. A temática, considerando sua especificidade e aplicação prática, é a que possui maior potencial investigativo para ser examinada por meio de pesquisas empíricas - muitas estratégias nunca foram testadas cientificamente, mesmo sendo embasadas em um contexto teórico ou informalmente testadas dentro da experiência do ensino instrumental. Em relação ao número de pesquisas empíricas sobre o planejamento, existem poucos trabalhos com delineamento experimental sobre as estratégias de estudo empregadas na prática instrumental. Por outro lado, existem inúmeras referências puramente teóricas que abordam e sugerem técnicas e estratégias a serem aplicadas no aprendizado do repertório. Esse conhecimento pode ser fonte para procedimentos que possam testar as teorias formuladas.

Diversos trabalhos (HALLAM, 1995, 2001; BARRY, 1992; COSTA, 1999; WILLIAMON, 2004; ERICSSON et al., 1993, dentre outros) mostraram que o uso flexível de estratégias de estudo é uma das características da prática de músicos em nível de expertise. Isto foi verificado na pesquisa participante de CHAFFIN et al., (2002), em que a pianista valeu-se de um grande número de estratégias e utilizava-as de acordo com cada situação encontrada durante a prática. Existem, assim, incontáveis possibilidades investigativas a serem examinadas dentro dessa temática

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e que poderiam indicar maneiras de aperfeiçoar a prática instrumental por meio da validação dessas estratégias. Isto poderia revelar quais seriam as estratégias utilizadas por músicos profissionais, em que contexto e como são aplicadas e qual o resultado alcançado.

Embora em menor número (seis, no total), provavelmente as temáticas envolvendo os processos de memorização e de representação mental da música5 são, dentro do planejamento da execução instrumental, as que apresentam um dos maiores níveis de desenvolvimento investigativo, englobando trabalhos de resultados substanciais e de reconhecido mérito. Embora não tenha inserido os trabalhos de CHAFFIN et al. (1997, 2002, 2006) na tabela Ex.3, o incluo nesta análise, pois seus trabalhos examinam a memória proficiente em músicos, mesmo que não especificamente a representação mental. A consistência científica dos trabalhos dessa temática deve-se à influência do embasamento teórico das pesquisas realizadas no campo da psicologia e da neurociência e de pesquisadores dessas áreas, os quais atuam em investigações na área de Práticas Interpretativas, como CHAFFIN (2002); DAVIDSON (2004); ERICSSON et al., (1993); GINSBORG (CHAFFIN et al., 2006b); JORGENSEN (2000); JUSLIN (2002); LEHMANN (1997); PALMER (1997); WILLIAMON e VALENTINE (2000), dentre outros. Segundo HIGUCHI:

As pesquisas neurocientíficas proporcionaram informações a respeito do processo de memorização que permitiram elaborar procedimentos eficientes para desenvolver uma memorização mais adequada para um aprendizado pianístico elaborado (HIGUCHI, 2005, p.222).

Os estudos envolvendo a temática da memorização variam quanto ao método de pesquisa. Um dos livros de maior relevância e citação em artigos sobre a temática da memorização é o estudo de caso realizado por CHAFFIN et al., (2002). Esse trabalho apresentou o sistemático processo de observação de uma pianista concertista preparando o 3o Movimento do Concerto Italiano de J. S. Bach (desde a leitura à gravação de um CD dessa obra), apresentando uma rigorosa análise de sua prática. Outras pesquisas examinaram a temática a partir de um foco menos abrangente, como o de MISHRA (2002), utilizando apenas um pequeno trecho de uma peça musical para verificar o tipo de estratégia de memorização empregada pelo músico e seguindo modelos investigativos semelhantes aos estudos pioneiros realizados por RUBIN-RABSON (1937, 1939, 1940, 1941). Embora haja avanço nas temáticas sobre a memorização, ainda há muito o que se investigar, principalmente se, além de descrever as estratégias de memorização que os músicos utilizam, essas forem selecionadas pelo pesquisador e aplicadas com sujeitos, a fim de comparar as estratégias que melhor possibilitam a retenção do conteúdo musical na memória de longa duração.

5 - Conclusão

A análise crítica e a reflexão sobre as fontes bibliográficas do presente artigo mostraram que o planejamento da execução instrumental é uma das linhas de

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pesquisa mais relevantes e promissoras das Práticas Interpretativas, justamente por apresentar abundante fonte de material temático a ser examinado por pesquisas empíricas. A retrospectiva histórica aponta que essa vertente investigativa é relativamente nova e possui poucos trabalhos empíricos se comparada às demais áreas do conhecimento. As três categorias temáticas propõem sistematizar o direcionamento investigativo dos trabalhos, indicando os tipos de pesquisa utilizados, as temáticas mais examinadas e os principais autores. Contudo, existem inúmeras possibilidades de validação científica e experimentação prática dos conceitos, princípios e teorias formuladas que têm sua origem nos trabalhos puramente teóricos ou na prática vivenciada de especialistas da área instrumental (a tradicional transmissão oral do conhecimento) que podem ser examinadas por meio de diferentes técnicas de pesquisa. Depreende-se, então, que o planejamento da execução instrumental tem a maior quantidade de problemas de pesquisa inexplorados, pois a linha de investigação compreende todo o processo de aprendizagem de um determinado repertório musical: inicia-se no primeiro contato com a partitura (leitura à primeira vista) até o resultado final da performance (apresentação da obra). Isso também corrobora para que a mesma seja estabelecida como uma das linhas que mais se vincula ao campo da didática do instrumento, transformando-se numa justificativa para incentivar estudos empíricos que possam descrever e validar, ou não, aspectos fundamentais da prática instrumental. Referências BARRY, N. The effects of practice strategies, individual differences in cognitive style, and gender upon technical accuracy and musicality of student instrumental performance. Psychology of Music, v. 20 n.2, p.112-123, 1992. BORÉM, F.; BENDA, R.; LAGE, G.; MORAES, L. Aprendizagem motora na performace musical: reflexões sobre conceitos e aplicabilidade. PER MUSI, v. 5 e 6, p.14-37, 2002. BURNSED, V.; HUMPHRIES, S. The effects of reversing the roles of the hands on the development of piano performance skill: a preliminary investigation. Psychology of Music, v.26, p.89-96, 1998. CHAFIN, R.; IMREH, G.; CRAWFORD, M. Practicing perfection: memory and piano performance. Mahwah. NJ: Erlbaum, 2002. CHAFFIN, R.; LOGAN, C..; LISBOA, T. An inquiry into the dynamics of performance investigating conception and attention from practice to performance on the cello. In: Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais, 1o., 2005, Curitiba. Anais. Curitiba: Deartes - UFPR, 2005. p. 228-236. CLARKE, E. F. Generative principles in music performance. In: SLOBODA (ed) Generative processes in music: the psychology of performance, improvisation and composition. Oxford: Clarendon Press, 1988, p.1-26. COFFMAN, Don. Effects of mental practice, physical practice and knowledge of results on piano performance. British Journal of Music Education, v. 38 n.3, p.187-196, 1990. COSTA, Doris. An investigation into instrumental pupils’ attitudes to varied, structured practice: two methods of approach. British Journal of Music Education, v. 16 n.1, p.65-77, 1999.

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1 Um dos referenciais para o presente artigo foi o trabalho de GABRIELSSON, A. (2003), publicado no periódico Psychology of Music e tendo como título “Music performance research at the milennium”. Gabrielsson fez um mapeamento sucinto, revisão e análise da estrutura organizacional de dez linhas de pesquisa em Práticas Interpretativas, a partir de mais de quinhentos artigos compilados em revistas e periódicos entre 1995 e 2002. A opção por esse referencial se fundamenta na evidência de que Gabrielsson foi o primeiro pesquisador a indicar esse foco investigativo (linha de pesquisa n.5), além de descrever de forma concisa e conceitual o panorama das linhas de pesquisa em Práticas Interpretativas, indicando as principais fontes e fornecendo um breve resultado de algumas dessas

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investigações. As linhas foram estabelecidas por ordem decrescente de número de trabalhos, a saber: 1. Medição da Execução Instrumental (Measurements of performance); 2. Fatores Psicológicos e Sociais da Execução Instrumental (Psychological and social factors); 3. Fatores Físicos na Execução Instrumental (Physical factors in performance); 4. Processos Motores na Execução Instrumental (Motor processes in performance); 5. Planejamento da Execução Instrumental (Performance planning); 6. Modelos da Execução Instrumental (Models of music performance); 7. Leitura à Primeira Vista (Sight reading); 8. Avaliação da Execução Instrumental (Performance evaluation); 9. Improvisação (Improvisation) e; 10. Feedback na Execução Instrumental (Feedback in performance). 2 Os estudos de caso de CHAFFIN et al., devido a sua abrangência e detalhamento, também, se

inserem nas outras tabelas temáticas. 3 Embora essa pesquisa faça parte do mesmo estudo com entrevista, relatado nos demais artigos de

Hallam, eu o considerei como uma pesquisa descritiva com delineamento experimental, visto que esse artigo abordou, principalmente, o resultado das gravações da prática de uma nova peça musical realizadas por 55 instrumentistas. 4 Alguns autores como BOGDAN e BIKLEN (1994) adotam o termo estudo multicasos ou estudos de casos múltiplos para designar estudos de caso que lidam dois ou mais sujeitos. O termo em inglês é multiple case studies. Selecionei alguns estudos de caso que tiveram mais de dois participantes, como os de NIELSEN (1999, 2001) com dois organistas; e PITTS el al. (2000) com três instrumentistas. Para o presente trabalho decidi manter a mesma terminologia que esses autores empregaram em suas pesquisas: estudos de caso. 5 Termo utilizado pelos pesquisadores da psicologia da música para designar a apreensão,

compreensão e concepção imaginária de uma peça musical, a qual é fundamentada nas experiências musicais prévias do músico. Entre os trabalhos mais relevantes sobre a representação mental estão: LEHMANN (1997), ERICSSON (1997), LEHMANN et al. (2007); LEHMANN e DAVIDSON (2002). Segundo Lehmann, o conceito de representação mental é ambíguo na psicologia, referindo-se à reconstrução interna de um mundo exterior. Nas palavras de um renomado pianista e professor, como NEUHAUS (1967), esse conceito poderia significar “a imagem artística” da obra musical (LEHMANN et al. 2007, p.19).

Luís Cláudio Barros é professor de piano do Departamento de Música da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). É bacharel em piano pela Faculdade de Música do Espírito Santo, sob orientação da pianista Célia Ottoni, mestre em piano pela Eastman School of Music (NY/EUA), sob orientação da Dra. Nelita True e doutor em música na área de Práticas Interpretativas pela UFRGS, tendo orientação acadêmica com a Dra. Any Raquel Carvalho e artística com os doutores Ney Fialkow e Catarina Domenici. Entre 2006 e 2007 realizou o Estágio de Doutorado na Universidade de Connecticut (EUA) sob a co-orientação do Dr. Roger Chaffin, tendo trabalhado no Laboratório de Performance e Psicologia da Música. É detentor de seis primeiros lugares em Concursos Nacionais de Piano. Tem desenvolvido atividades de pesquisa com as temáticas “planejamento da execução instrumental” e didática do instrumento. Fez parte do “Piano Faculty” no 14th World Piano Pedagogy Conference, nos EUA, além de realizar recitais solo e de câmara no Brasil e no exterior.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3116

Acis y Galatea: reflexos da Guerra de Sucessão Espanhola na zarzuela de Cañizares-Literes, de 1708 Iara Luzia Rodriguez (UFPR, Curitiba, PR) [email protected] Resumo: o presente artigo busca discorrer sobre a prática músico-teatral na Espanha do início do século XVIII, com foco no estudo da zarzuela Acis y Galatea. Este ensaio pretende demonstrar como o teatro foi utilizado pela dinastia Bourbon para fazer sua propaganda política, incorporando elementos da tradição espanhola, bem como da ópera italiana. Palavras-chave: Zarzuela; Guerra de Sucessão Espanhola; Teatro e Propaganda. Acis y Galatea: reflections of the War of Spanish Succession in the Cañizares-Literes’s zarzuela, 1708 Abstract: this article attempts to discuss the musical-theatre practice in Spain during the early Eighteenth Century, emphasizing the zarzuela Acis y Galatea. It also intends to show how the theatre was used by the Bourbon dynasty for its propaganda, incorporating elements of the Spanish tradition and Italian opera. Keywords: Zarzuela; War of Spanish Succession; Theatre and Propaganda. 1. O Teatro: um instrumento de propaganda monárquica Desde o século XV, época em que as primeiras companhias e autores de teatro profissionais passaram a atuar na Península Ibérica, as representações cênicas estavam diretamente ligadas à difusão de uma determinada ideologia. Neste período, dominado fundamentalmente pela Igreja Católica, as principais peças teatrais na Espanha eram os Autos Religiosos. No século XVII, com a chegada de Felipe IV ao trono espanhol e a presença de uma monarquia mais poderosa no país, o teatro passa a ser um dos principais meios de propaganda política da coroa. Não é por acaso que é durante este período que foram representadas as primeiras óperas espanholas, sempre ligadas a importantes acontecimentos políticos, como casamentos e alianças entre os monarcas1. As representações teatrais eram, portanto, uma afirmação do poder da nobreza2, e, em especial do rei, constantemente apresentado através da utilização de divindades nas peças teatrais, justificando o porquê da preferência pelos temas mitológicos. Neste sentido, o teatro barroco espanhol é mais que “um mero entretenimento, mas um sistema de representação de um programa político que transmite uma determinada visão do mundo e do papel do monarca sobre o mesmo.” 3 (ASENSIO, 2004, p.11).

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No teatro barroco espanhol percebe-se uma organização fixa muito rigorosa, cuja estrutura básica é observada em grande parte das peças do período, inclusive naquelas pertencentes aos gêneros músico-teatrais. Uma vez que as obras teatrais deveriam refletir a monarquia, bem como o papel que esta exercia perante a sociedade, esta organização formal no teatro, mesmo que intrinsecamente, desempenhava uma função de caráter didático e moralizante para a população. Ou seja, um teatro organizado, com normas rígidas e bem fixado, transmite a mesma ideia com relação ao governo desempenhado pelo monarca. Não é coincidência que o modelo da comedia nueva, instituído por Lope de Vega, é seguido por todos os dramaturgos ao longo do século XVII e início do século XVIII. O mesmo é verificado nas peças que misturam momentos de canto com os de fala, como é o caso da zarzuela. Elas conservarão as regras de Lope, juntamente com as normas que Calderón de la Barca estabelece para estes gêneros híbridos.4 O período em questão foi uma época de grandes monarquias absolutistas na Europa, nas quais o rei representava uma figura quase divina, unindo todos os poderes em suas mãos. Logo, a figura do monarca deveria ser refletida da mesma maneira no teatro. Portanto, as produções eram custosas, com diversas mudanças de cenário, trajes pomposos, fundamentais para enaltecer a magnificência do rei, bem como salientar a ideia do “maravilhoso”, elemento retórico bastante utilizado para persuasão, de acordo com LOPEZ CANO (2000). Nada ocorria por acaso, isto é, no teatro espanhol do século XVII e, principalmente, nas primeiras décadas do XVIII, tudo era previamente organizado, desde os gestos dos atores e atrizes ao local em que o espetáculo seria apresentado, e, até mesmo a música possuía suas próprias convenções a serem seguidas, uma vez que a mesma “geralmente refletia os debates políticos, sociais e econômicos”. (BUSSEY, 1980). As obras teatrais funcionavam também como um espelho da sociedade, logo, é possível compreender porque a ópera italiana não foi bem aceita no país, resultando na criação de gêneros híbridos, como a zarzuela, e, mais que isso, a resistência, em especial por parte da Igreja5, em relação à influência estrangeira sobre a tradição espanhola. Acis y Galatea foi composta durante uma época bastante conturbada na história da Espanha, que foi a transição da dinastia Habsburgo para Bourbon. Em muitos momentos, esta zarzuela faz menção a eventos que realmente aconteceram, além de também assumir um caráter propagandístico, buscando sempre a ascensão da figura do rei.

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2. A Música no Teatro: mais uma ferramenta política A música no teatro espanhol, como afirmam ASENSIO (2004) e STEIN (1993), é mais do que um mero elemento de ornamentação, e, a ela são atribuídas diversas funções, que podem estar relacionadas à trama (para, por exemplo, abrir e fechar cenas), aos personagens (para apresentá-los e caracterizá-los), ou ainda, embora, de forma não tão evidente, à ideologia. O papel exercido pela música com relação à ideologia pode acontecer de duas maneiras. Em um primeiro momento, foi utilizada como um elemento de louvor e consagração da figura do rei e da monarquia. A principal função ideológica da música refere-se à doutrinação da população.

A música promoveu os benefícios morais, políticos e educacionais do gênero através do reforço da verossimilhança teatral (essencial para as artes barrocas espanholas em geral) com o realismo afetivo em cenas que refletiam as expressões da vida real. Por formar uma associação imediata entre o palco e o dia-a-dia, as canções conhecidas da época, dominavam o repertório musical da comedia. (STEIN, 1993, p.13)

Para melhor compreender como a música adquiriu essa característica doutrinária, deve-se tentar entender a mentalidade dos dramaturgos da época. As zarzuelas possuíam dois elementos formadores bem diferentes entre si, o cantar e o declamar. A declamação está diretamente relacionada à fala, e, é nesta ocasião em que a história se desenvolverá. Os momentos de canto, por sua vez, estarão conectados à música e, em geral, eles acontecem quando a cena pede um elemento mais forte de persuasão.

Este poder persuasivo se consegue mediante a perfeita simbiose entre a letra cantada e a música (...). Não deve, portanto, surpreender-nos, que os poemas cantados protagonizem as declarações amorosas, já que, tanto para comunicar os próprios sentimentos, como, sobretudo, para tornar alguém apaixonado, o poder da música parece ter sido irresistível. (ASENSIO, 2004, p.741)

Devido a essa característica persuasiva, resultante da junção entre poesia e música, as canções6, em especial, eram utilizadas como um meio de doutrinação. A principal ideia a ser transmitida ao público era colocada no estribilho, já que este seria repetido diversas vezes durante a obra, ou ainda, em uma melodia conhecida pelo público, inseria-se um novo texto, como já era observado nas obras de Calderón de la Barca. A presença de canções populares torna-se um elemento fundamental no teatro espanhol. A música exercia uma função simbólica bastante importante nas peças de teatro, que, de certa forma, está ainda ligada à ideologia. Canções mais complexas, em geral Árias da Capo, vinculadas aos estrangeirismos, caracterizariam simbolicamente os personagens divinos, logo, a monarquia e a nobreza, os únicos que seriam capazes de compreender tais formas. Enquanto as canções mais simples, muitas vezes já conhecidas pelo público, seriam

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cantadas pelos personagens vulgares, representando o povo. As músicas para coro, por outro lado, simbolizariam “uma voz impessoal, bem como a manifestação do destino, da consciência, ou como voz divina que avisa, aconselha e estimula o homem a cometer uma ação ou evitá-la”. (ASENSIO,2004, p.749) Em Acis y Galatea, esses elementos serão encontrados, como será exemplificado adiante, caracterizando-a, portanto, não só como uma zarzuela festiva, mas também como uma obra com função social e política. 3. Acis y Galatea: uma obra política O princípio da verossimilhança, talvez o mais importante da convenção teatral espanhola, regia a elaboração das obras teatrais em toda Espanha. Observa-se em diversas peças músico-teatrais deste período, referências claras a acontecimentos políticos ocorridos na época, como é o caso de Acis y Galatea. Esta peça, composta em 1708, para comemoração do aniversário do rei Felipe V, além de apresentar várias cenas que podem ser associadas a fatos decorridos no período de elaboração da mesma, tornou-se um meio propagandístico do monarca. Entretanto, nem todas estas referências aparecem de maneira direta na obra, estando presente, muitas vezes, através de metáforas. A música foi composta por Antonio Literes (1676 - 1747), Mestre da Capela Real em Madrid, com o libreto de José de Cañizares (1676 - 1750), renomado dramaturgo espanhol do século XVIII, baseado no conto homônimo de Ovídio. Neste o ciclope, Polifemo, lamenta-se por não ser amado pela ninfa Galateia, a qual, por sua vez, é apaixonada pelo pastor Ácis, que acaba sendo morto devido ao ciúme do gigante. Muitas diferenças serão encontradas na releitura espanhola, todas sendo justificadas pelo caráter propagandístico que a mesma adquire. No trecho abaixo há uma clara exaltação ao rei. Neste, uma nereida7 do séquito de Galateia pede para que se cantem todas as façanhas de Felipe V. Si el triunfo que ama veloz la fama con bronce aclama, pues le posee, gorjee, que de la España la mayor gloria será la hazaña de su memoria, cuando en Philipe su aliento emplee.8

Se o triunfo que ama veloz a fama com bronze aclama, pois o possui, gorjeie, que da Espanha a maior glória será a façanha de sua memória, quando em Philipe seu alento empregue.

Este é um dos poucos momentos da zarzuela em que se verifica o uso de coloraturas, justificadas, claramente, pelo texto. Estes ornamentos sobre gorjee, além de representarem o verbo de forma musicalmente coerente,

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tornam-se uma representação mimética do mesmo, um exemplo claro de pintura de palavra, muito comum nos madrigais renascentistas. Eles funcionam ainda como um elemento retórico para enfatizar o seu significado, ou seja, que se cante (gorjeie), mundo afora, todas as glórias do rei. A repetição da frase pelos violinos intensifica esta ênfase, passando a ideia de que todos devem cantar as façanhas de Felipe V, como pode ser observado no Ex.1 abaixo.

Ex. 1 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Aria de uma nereida: Si el triunfo

que ama, c.85-90, p.187. Esta prática difere bastante da ópera italiana do mesmo período, na qual as ornamentações vocais prevaleciam sobre o texto. Aqui, no entanto, observa-se que nos momentos em que há mais poesia, há pouca ou nenhuma ornamentação, não comprometendo, portanto, a compreensão do ouvinte, como pode ser verificado no Ex. 2:

 

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Ex. 2 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Parte B da Ária Si el triunfo que

ama, c.97-102, p.188. Na passagem abaixo, existe uma clara referência ao aniversário do rei. A personagem, novamente uma nereida, homenageia o monarca, através das mensagens de sucesso e glória, evocando, inclusive os deuses mitológicos. De María Luisa y de Luis los abrazos dulces coronen al héroe mayor, porque la dicha más noble del uno es la fineza inmortal de los dos

De Maria Luisa e de Luis9 os abraços doces coroem ao herói maior, porque a felicidade mais nobre do um é a bondade imortal dos dois

Nota-se uma pequena divergência entre o libreto encontrado em Madrid e o que se situa na biblioteca de Évora10. É possível que tenham ocorrido modificações, tanto na partitura, como no libreto, pois, de acordo com González Marín11 (2002), provavelmente a edição original de Acis y Galatea, tenha sido perdida e esta é possivelmente de alguma representação posterior. No libreto da Biblioteca Pública de Évora, encontra-se uma clara referência aos sucessos do rei francês, Luis XIV, também conhecido por Rei Sol. Felipe V, sendo neto do monarca francês, e devido à troca de dinastia da coroa

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espanhola para Bourbons, não mais Habsburgos, a alusão a Luis XIV torna-se bem clara, através da metáfora “reflexos o Sol”. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora: Y a sus laureles de palma y oliva orlas formando de regio esplendor , Marte la rinda gloriosos trofeos, triunfos la Fama y reflejos el Sol.

E aos seus louros de palma e oliveira orlas formando de real esplendor, Marte o renda gloriosos troféus, triunfos a Fama e reflexos o Sol.

Marte, de acordo com a mitologia romana, é o deus que representa a guerra. Logo, este trecho está diretamente ligado à situação política espanhola, pois, desejar que Marte lhe dê muitos troféus, é o mesmo que desejar ao soberano, vitória nas diversas batalhas, contra a dinastia austríaca, que ocorriam pela coroa espanhola, como será detalhado mais adiante. A Fama, por sua vez, é a figura mitológica que se encarregava de contar para todos, dia e noite, as novidades que via com seus vários olhos e ouvia, através de suas diversas orelhas. Portanto, nesta passagem, deseja-se ao rei, que seus triunfos sejam narrados incessantemente e que sejam de conhecimento de todo o mundo. Entretanto, no manuscrito existente na Biblioteca Nacional de España é encontrado um texto diferenciado. Manuscrita da Biblioteca Nacional de España: Y uniendo al laurel pacífica oliva, de regios pimpollos ceñida y orlada, Minerva le postre afables inciensos, y Marte guerrero le rinda holocausto.

E unindo ao laurel pacífica oliveira de reais galhos justa e adornada, Minerva o prostre afáveis incensos e Marte guerreiro o renda holocausto.

Novamente, encontra-se uma alusão aos deuses mitológicos. Minerva é a divindade romana das artes, da sabedoria e também da guerra, mas diferentemente de Marte, ela representa a guerra justa e diplomática, enquanto seu irmão está associado à guerra de maneira mais violenta e sangrenta. Por isso, “Minerva prostrar afáveis incensos” tem um significado muito forte, insinuando que até mesmo as artes, a sabedoria e a guerra se curvariam em adulação ao monarca. Não se sabe o motivo para a ausência à menção ao rei francês, que pode ter um fundo político, ou pode ser simplesmente a adaptação mais adequada do libreto à música, como defende o editor da versão crítica da partitura: “em minha transcrição utilizei o texto de Madrid, que encaixa melhor com a música” (GONZÁLEZ MARÍN, 2002, p.XIX). Nos Ex.3 e Ex.4, é possível notar como a ideia exposta pela voz é reforçada pelos violinos.

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Ex. 3 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Final da Zarzuela: Viva quien

hace siglos de dichas sus años, c.22-25, p.192. Esta forma de ênfase, com uma mesma frase repetida por outra voz é um elemento bem comum, encontrada em diversos momentos desta zarzuela.

Ex.4 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Repetição da melodia enfatizada

pelos violinos, c.30-33, p.192. Além de celebrar o aniversário do rei, esta zarzuela tem uma função social muito importante, que é a de demonstrar os seus grandes feitos, bem como, refletir, através da obra, a boa índole do monarca. Como já foi dito anteriormente, a Espanha estava passando por uma troca de dinastia, portanto, era fundamental demonstrar à corte e à população os benefícios desta mudança. Em Acis y Galatea, há certas referências a fatos, de maneira mais discreta. Uma delas está logo no início da primeira jornada12, onde Polifemo, após sua volta a Trinacria13, depara-se com a população prestando homenagens a Galateia (ver Ex. 5). No hay otras iras que deban temerse en cielo y en tierra que los activos incendios que exhalan los ojos de Galatea.

Não há outras iras a temer no céu e na terra que os incêndios ativos que lançam os olhos de Galateia.

Durante todo este trecho, o coro, bem como os instrumentos permanecem em homofonia e, preponderantemente, com movimentos em grau conjunto, distinguindo-se da polifonia, ainda comum nas igrejas.

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Ex. 5 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Coro de abertura, c.1-8, p.5.

Para uma melhor compreensão desta passagem, é necessário o conhecimento do que estava acontecendo politicamente na Espanha, no início do século XVIII. Em 1700, com a morte, sem herdeiros, do rei Carlos II (último rei da dinastia dos Habsburgos), inicia-se a Guerra de Sucessão Espanhola. Em seu testamento, Carlos II decreta como seu herdeiro, Felipe, conde de Anjou. O neto de Luis XIV assumirá o cargo em 1701, ao chegar a Madrid. Os demais países europeus, temendo o poder da união entre França e Espanha, apoiam a dinastia dos Habsburgos, cujo representante seria o Arquiduque austríaco Carlos, formando uma aliança entre ingleses, holandeses, austríacos e, posteriormente, portugueses. No ano de 1705, exércitos anglo-holandeses chegam ao litoral hispânico e o arquiduque é proclamado rei. Felipe V, após perder muito território para os austríacos, acaba retirando-se de Madrid, mas, devido à simpatia que o mesmo despertava nos espanhóis, exércitos voluntários foram incorporados às tropas francesas, devolvendo o trono ao representante dos Bourbons:

Neste momento crítico, a lealdade dos castelhanos salvou a coroa. À frieza com que foram acolhidas as tropas invasoras em Madrid, se somou a resistência das cidades castelhanas que não reconheceram ao arquiduque como soberano. Não se produziu o efeito de adesão em cadência que os aliados esperavam, com a ocupação da capital. Pelo contrário, a hostilidade generalizada os obrigou a abandonar Madrid. (CALVO, 1988, p.51)

Esse mesmo jogo de poderes pode ser observado na zarzuela.

(...) a obra de Cañizares-Literes é a expressão de um conflito de poderes: o do gigante ciclope Polifemo que vê seu território ser tomado por outra divindade, e o da ninfa Galateia, venerada por todos, no mesmo território de Trinacria, onde um dia reinava e aterrorizava seus súditos, Polifemo. (MARROQUÍN, 2004, p.440)

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Os austríacos, que antes reinavam na Espanha, ao tentar retomar seu poder, encontram a população apoiando o monarca francês. Logo, torna-se clara a associação entre o coro acima citado com essa situação ocorrida durante a Guerra de Sucessão. É possível vincular a figura de Polifemo ao candidato ao trono da dinastia dos Habsburgos. Um fato interessante é que este personagem, apesar de estar entre os protagonistas, possui um papel essencialmente falado, linguagem atribuída aos personagens de baixo nível, e, um dos únicos momentos que canta é para falar com a divindade Galateia. O gigante, furioso com o culto a Galateia, passa a convencer a população que o melhor será adorá-lo, ressaltando sua nobreza. Este trecho é uma novidade inserida pelo dramaturgo, uma vez que na fábula de Ovídio, Polifemo sempre dirá à ninfa as suas qualidades. Cuán más útil os será convertir vuestras cadencias en mi aplauso: Hijo soy noble del monarca que gobierna el tripartido tridente con que hiere el mar las tersas repúblicas de sus aguas, donde logra que obedezcan marinas tropas de dioses, (…) náutica deidad le adoran, undoso numen le inciensan.

Tanto mais útil será que convertam suas cadências em meu aplauso: nobre Filho sou do monarca que governa o tridente tripartido com o qual fere o mar as suaves repúblicas de suas águas, aonde consegue que obedeçam-no tropas marinhas de deuses, (...) divindades náuticas o adoram, númens das ondas o louvam.

Esses triunfos marítimos, ainda que metaforicamente, podem estar associados à superioridade naval anglo-holandesa, apoiando os Habsburgos, que no ano de 1704, conquistou Gibraltar e, em 1708, as ilhas de Sardenha e Menorca, além da província de Oran, na Argélia, pertencentes então a Espanha. Esse domínio devia-se não somente à maior quantidade de navios, mas também à melhor condição destes e das tripulações. Polifemo segue em seu discurso, afirmando que se a sua descendência não é suficiente, um bom motivo para que o cultuem é a sua grandeza. Y cuando el ser yo quien soy mis méritos no os dijera, esta gigante estatura ¿no os explica mi grandeza? (…) Yo soy aquél que si el día tal vez a enojarme llega puesto en pie, a la inmensa sombra que mi adusto cuerpo ostenta, a mediodía consigo que dos orbes anochezcan.

E quando o ser eu quem sou meus méritos não vos dissera, esta enorme estatura não os explica minha grandeza? (...) Eu sou aquele que, se o dia, alguma vez chega a me irritar levanto e a imensa sombra que meu adusto corpo ostenta, ao meio-dia consigo que dois orbes anoiteçam.

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A sua descrição é de tamanha grandeza, que o gigante, conseguiria cobrir com a sua sombra dois mundos, mesmo ao meio dia. Ou seja, nada para ele é impossível. O ciclope passa a fazer promessas aos seus seguidores, afirmando que poderão ter tudo o que quiserem, já que imensa é sua força física: Si me dais adoración, Trinacrios, nada hay que sea difícil para vosostros; pues si queréis que dé vuelta el orbe porque gocéis la luz del sol de más cerca, en levantando yo un brazo esa máquina primera del cielo desfijaré hasta que a mi impulso atenta disponga a mi arbitrio el orden de Signos y de Planetas.

Se me ofereceis adoração, Trinacrios, não há nada que seja difícil para vós; pois se quereis que dê volta o orbe porque gozeis da luz do sol mais perto, ao levantar um braço essa máquina primeira do céu arrancarei até que a meu impulso alerta disponha ao meu arbítrio a ordem de Signos e de Planetas.

Toda essa caracterização dada pelo ciclope busca ao mesmo tempo surpreender a população, mas principalmente assustar, soando quase como uma ameaça. Mais uma vez este trecho pode ser comparado a uma situação semelhante ocorrida durante a Guerra de Sucessão. Em 1702, as frotas anglo-holandesas preparavam-se para um ataque a Cádiz. Entretanto, devido a uma carta escrita pela rainha, com forte caráter religioso, as populações vizinhas, na região de Andaluzia, auxiliam na defesa da cidade. As esquadras aliadas acabam realizando apenas saques em algumas cidades. Essa situação causou muito receio na população, constantemente ameaçada pelo poderio naval inglês e holandês.

As consequências que se derivaram deste feito, para as pretensões do arquiduque foram muito negativas. O duro saque, a que se submeteram estas povoações, manchou a imagem dos aliados. Além disso, a notícia dos excessos e roubos cometidos em igrejas e conventos, convenientemente manipulada pela propaganda felipista, marcou de forma tenebrosa o seus autores. (CALVO, 1988, p. 29)

Os ingleses e holandeses, que já tinham fama de hereges na Espanha, passam a sofrer os danos com essa propaganda de cunho essencialmente religioso, e, não por acaso, nesta peça, o arquiduque Carlos está associado à figura de Polifemo, que, de acordo com toda a tradição literária14, não possui nenhum tipo adoração aos deuses, somando-se a este fato sua imensa barbárie. Nos versos finais de sua fala, há uma repreensão aos súditos, os quais poderão ter todas as coisas que desejarem, Menos una, y es que yo ni Amor ni que améis consienta, pues no sé que pueda haber

Menos uma e é que eu nem Amor, nem que ameis concederei, pois não sei se pode haver

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más miserable bajeza en mi propio vencimiento aplaudir mi misma afrenta

mais miserável baixaria à minha própria vitória aplaudir minha afronte.

Esta censura feita aos súditos, com relação ao amor, é facilmente explicada, uma vez que o mesmo está associado à figura de Galateia, ao longo de toda a obra, como afirma MARROQUÍN (2004, p.441): “Através de seu único olho, o orgulhoso ciclope contempla como seu povo, de pastores e zagais, cedeu ao senhorio do Amor, personificado no novo domínio de Galateia.” Com a entrada do personagem Ácis, logo depois da cena acima, o trecho abaixo é repetido seis vezes, alternando-se com momentos de fala e de canto. Ay de aquél que desprecia el poder del amor y la belleza.

Ai, daquele que desdenha o poder do amor e da beleza.

O Ex.6 demonstra como era a música utilizada para persuasão. Trata-se de uma melodia simples, que, em todas as seis vezes, não apresenta nenhuma alteração, apenas intensifica a ideia em cada vez que é cantada. Neste momento o povo da Trinacria acaba de aceitar Polifemo como a nova divindade a ser cultuada no local, ao invés de Galateia, que como já visto, é a personificação do amor. Portanto, aquele que desdenha o poder do amor, estaria desdenhando também, Galateia.

Ex. 6 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Estribilho cantado por Ácis, c.1-11,

p.14. Essas pequenas intervenções musicais adquirem um papel muito importante para a persuasão, bem como para o caráter moralizante da peça, pois une os elementos retóricos musicais com os textuais, possuindo, portanto, mais força do que uma música unicamente instrumental. Logo, esta advertência de Ácis é, na realidade, um aviso ao próprio povo espanhol de que o poder de Felipe V não seja subestimado.

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Ao mesmo tempo em que Polifemo é associado ao arquiduque Carlos da Áustria, a figura de Galateia está diretamente relacionada à imagem do próprio rei Felipe V, cujo reinado, por sua vez, representaria um governo de amor. Polifemo (representando o arquiduque austríaco), por outro lado, diferencia-se de Galateia (Felipe V), pois constrói seu domínio ao provocar medo na população. A fala do personagem Momo reflete a obrigação em servi-lo: MOMO Puesto que allí le descubro, venid, que hacia allí me manda que lleguemos, repitiendo su victoria en voces altas.

MOMO Pois ali o vejo, vinde, que até ali ele mandou que fôssemos, repetindo sua vitória em vozes altas.

Nesse momento, o povo da Trinacria entra no palco e depara-se com Polifemo aos pés de Galateia; a reação é de estranhamento, mas observa-se também certa ironia na última frase do personagem Telemo, ao interrogar se aquelas eram suas façanhas, assim como na fala de Tisbe, ao questioná-lo sobre sua valentia: POLIFEMO ¿Qué os espanta? TELEMO Que cuando, de parte tuya, oh, Polifemo, nos llaman a celebrar tus blasones, te hallemos puesto a las plantas de la deidad que desprecias. TÍNDARO ¿No eras tú el que aconsejaba que el templo de Galatea a tu honor se dedicara? DORIS ¿No eras tú quien al Amor baldonaste con jactancia? TISBE ¿No era Su Largueza quien nos echó cien mil fanfarrias? TODOS Pues ¿cómo a los pies te postras de aquello mismo que ultrajas? TELEMO ¿Ésta es la hazaña y el triunfo a que nos convocas?

POLIFEMO O que os espanta? TELEMO Que quando, ao teu pedido, oh, Polifemo, nos chamam para celebrar tuas glórias te encontramos aos pés da divindade que desdenha. TÍNDARO Não eras tu que aconselhavas que o templo de Galateia a tua honra se dedicasse? DORIS Não era tu quem ao Amor insultaste com jactância? TISBE Não era Sua Largueza15 quem nos deu cem mil fanfarrices? TODOS Pois, como aos pés te pões daquele mesmo que ultrajas? TELEMO Esta é a façanha e o triunfo ao qual nos chama?

Em 1708, na estreia de Acis y Galatea, a Guerra de Sucessão Espanhola ainda não havia terminado, entretanto, muitas conquistas foram feitas pelos Bourbons

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nesse período. Devido ao apoio popular conquistado por Felipe, o arquiduque austríaco se viu obrigado a retirar-se de Madrid, restabelecendo-se em Valência, cidade que foi reincorporada à coroa espanhola, durante a Batalha de Almansa, conflito ocorrido em 1707. No trecho acima, metade da primeira jornada, Polifemo acaba curvando-se aos poderes de Galateia, e, cantando junto ao coro, reconhece suas glórias. Pues que Galatea todo lo avasalla y hasta Polifemo la sirve y la ama, venid con aplauso, con música y salva a cantar sus glorias a ver sus hazañas.

Pois que a Galateia Todos se submetem e até Polifemo serve-a e ama-a vinde com aplauso, com música e cantar suas glórias e ver suas façanhas.

Pode ser observado o predomínio da escrita homofônica para o coro, no qual o próprio personagem protagonista não é destacado das demais vozes. Cabe lembrar, que o coro, não apenas desta peça, mas da maioria das obras compostas neste período, era constituído por soprano I e II, contralto e tenor. Como pode ser verificado Ex.7, Polifemo cantaria o tenor, o que, de certa forma, vai contra toda tradição musical16, em que o mesmo é representado por um baixo. Este é outro elemento para dar uma caracterização bizarra ao gigante, já que causaria grande estranhamento ao público, a grande e poderosa figura mitológica possuir uma voz aguda. É importante ressaltar a constante associação entre o personagem e o Arquiduque Carlos.

Ex.7 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Coro Pues que Galatea todo lo

avasalla, c.1-6, p.58. Nesta zarzuela, além dos trechos acima exemplificados, encontra-se outro elemento comum do teatro espanhol que são os personagens estereotipados,

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dentre os quais podem ser destacados Momo e Tisbe, que juntos formam a pareja de graciosos (casal de graciosos). Estes personagens estão presentes em praticamente toda peça teatral desde o século XVI, caracterizados pelo seu papel bufo, com linguagem essencialmente coloquial. No trecho abaixo, após a população se render à Polifemo, o casal, através de linguagem cotidiana e de ironias fazem oferendas ao gigante. MOMO Y si acaso como cuentan su merced ofrendas humanas admite, cuando se almuerza dos hombres en estofado y una mujer en conserva, aquí le presento una que, a un lado el asco, en su mesa pueda zampársela, pues sólo para asada es buena. TISBE Y si su Gigantidez gusta de caza de bestias, llévese allá mi marido, llevará la mayor dellas.

MOMO E se por acaso como contam sua mercê oferendas humanas aceite, quando se almoça dois homens ensopados e uma mulher em conserva aqui o apresento uma que, apesar do asco, em sua mesa pode engoli-la, pois somente para assar é boa. TISBE E se sua Gigantude17 gosta de caça de bestas leve junto meu marido, levará a maior delas.

De acordo com Marroquín, personagens com este perfil “mostrar-se-iam mais inclinados ao riso fácil e à expressão das paixões e defeitos alheios” (2004, p.434). Musicalmente também há uma diferenciação com relação aos demais personagens. Uma vez que representam papéis simples, a música que cantarão tende a ser menos elaborada, e, muitas vezes, já conhecida pelo público, pois em geral, eles serão responsáveis pela persuasão das classes mais baixas, causando assim uma identificação com a audiência. No trecho seguinte, Tisbe pergunta a Momo o que aconteceu com Ácis e Galateia. O acompanhamento é feito somente pelo baixo contínuo, a melodia bastante repetitiva será apresentada por Tisbe e reapresentada por Momo, o compasso é ternário (atribuído aos personagens tipicamente espanhóis18), como pode ser visto no Ex.8. TISBE Desgraciado gracioso a quien Amor ha hecho ridícula figura deste cómico enredo (…) MOMO Endemoniada ninfa que en contrarios aquellos en latín me amenazas para aburrirme en griego

TISBE Desgraçado gracioso a quem o Amor fez ridícula figura deste cômico enredo (...) MOMO Demoníaca ninfa que ao contrário daqueles em latim me ameaça para aborrecer-me em grego

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A presença de palavras coloquiais, bem como as rimas nos versos pares19 e livres nos demais, ressaltam o caráter espanhol deste trecho, caracterizando-o também como um romancillo, forma muito encontrada na literatura hispanica.

Ex.8 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Canção espanhola em forma de

romancillo, c.1-10, p.97. O papel de Polifemo, como já foi afirmado acima, estaria associado ao arquiduque austríaco, pretendente ao trono espanhol da dinastia Habsburgo, representando, portanto, um papel mais elevado. Entretanto, a forma como o mesmo é retratado na zarzuela, é a mesma de um personagem comum à classe baixa, onde há predomínio da fala, embora a linguagem, diferentemente dos demais personagens que não cantam, seja bastante elaborada, seguindo um dos princípios da verossimilhança teatral espanhola. Dulce Galatea, pues Amor me ha hecho de tu hermosa ira infeliz objeto, ay tirano dueño, más duro que el bronce es tu ingrato pecho, puesto que le ablando y no le enternezco. Como a heroica reina del marino imperio te labro el tridente que será tu cetro.

Doce Galateia, pois Amor me fizeste da tua linda ira infeliz objeto, ai tirano dono, mais duro que o bronze é teu ingrato peito posto que o suavizo e não o comovo. Como a heroica rainha do marinho império te lapido o tridente que será teu cetro.

Apesar do texto elaborado, os trechos musicais, por sua vez, não são de grande complexidade, baseados em melodias simples e repetitivas, com um contraponto bastante simples de primeira espécie e no em compasso ternário. No Ex.9, pode-se observar a semelhança desta canção com as citadas acima, no Ex.8, de personagens considerados mais baixos.

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Ex.9 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Canção de Polifemo, c.1-10, p.111 É provável que o motivo do tratamento dado ao personagem tenha caráter político e doutrinário. Se o papel de Polifemo fosse cantado, assim como o de Galateia, seria o mesmo que equiparar Felipe V ao arquiduque Carlos, o que poderia exercer um efeito não desejado na população. Polifemo, apesar de sua força, em nenhum momento da obra é temido por Galateia, que inclusive o enfrenta, após as oferendas a ela dadas pelo ciclope, na frente de toda população. Estes elementos diferenciam esta versão de Acis y Galatea das demais versões da fábula de Ovídio, em que a ninfa é intimidada pelo gigante. Novamente, encontra-se uma forte propaganda por trás desta alteração: Felipe V não teme seu adversário, e mais do que isso, é capaz de encará-lo, se necessário. Na zarzuela, neste momento, encontra-se uma Ária da Capo, na qual Polifemo é repudiado por Galateia, com muitos elementos do stilo concitato20, com elaboração musical muito mais complexa. Cielo ha de ser el mar, mar el Cielo ha de ser, el incendio ha de helar, la nieve arder, primero que lograr tu fino proceder que pueda yo estimar horror que he de olvidar y aborrecer.

Céu há de ser o mar, mar o Céu há de ser, o incêndio gelará, a neve arderá, primeiro que conseguir teu fino comportamento que eu possa estimar horror que hei de esquecer e odiar.

No Ex.10, verifica-se que o início da ária, com movimentos rápidos e extensos dos violinos em uníssono, deixa claro para o ouvinte, ou o intérprete, o caráter agitado desta peça.

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Ex.10 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Abertura da ária de Galateia,

c.20-22, p.126. Uma movimentação semelhante é realizada pela personagem, em um momento de expressão de ódio e aversão a Polifemo, como pode ser observado no Ex.11 abaixo.

Ex.11 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Trecho cantado da Ária de

Galateia, c.36-37, p.128

O baixo-contínuo segue esta mesma caracterização, movimentando-se, essencialmente, através de colcheias, como mostra o Ex.12.

Ex.12 – José de Cañizares e Antonio Literes. Acis y Galatea. Abertura da ária, baixo-contínuo,

c.20-22, p.126. A Ária da Capo, forma italiana, é, em geral, associada aos personagens divinos. A linha do canto possui uma extensão maior, além da presença de coloraturas e notas alteradas, em compasso quaternário. Ao mesmo tempo, é possível reparar um contraponto entre a melodia e o baixo-contínuo, bastante característico ao barroco tardio. O emprego de elementos estrangeiro possui um simbolismo muito forte, pois ainda em inícios do século XVIII, não era bem aceito pela população espanhola. Por essa razão, os mesmos eram usados somente para representação da nobreza, os únicos que seriam capazes de compreender tais elementos, enquanto as formas mais simples eram deixadas para os personagens mortais, ou seja, a plebe.

 

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O gigante, muitas vezes, é tratado de forma caricata pelos próprios personagens populares, em especial pelos graciosos.

TISBE Está el Gigante, por cierto, para tarasca barbuda, hecho un ángel del Infierno.

TISBE Está o Gigante, certamente, mais para uma tarasca barbuda, feito um anjo do Inferno.

Polifemo, ao mesmo tempo em que é temido pela população de Trinacria, é ridicularizado pela mesma, como pode ser verificado na passagem acima. É ainda possível, atribuir uma dualidade ao caráter do personagem, quando Tisbe refere-se ao mesmo como “anjo do Inferno”. O gigante, ao chegar a Trinacria, promete ser capaz de realizar qualquer façanha, através de atos simples, descreve-se como possuidor de uma grandeza inconcebível para a população e ainda afirma que os libertará da prisão, que nada mais é que o reinado de amor de Galateia. Entretanto, o seu comportamento, causador de medo, combinado à sua figura grotesca, demonstra o inverso. Mais do que isso, através dessa metáfora, também se faz uma alusão ao caráter herege dada à causa dos Habsburgos pelos Bourbons e aos demais fatos sucedidos durante a guerra, como os vários saques feitos às cidades litorâneas. A associação do gigante a Tarasca, por sua vez, possui outro papel importante na propaganda de Felipe V. De acordo com a crença popular, a Tarasca era um monstro mitológico bastante temido, que devastava todo lugar em que passava. Era descrito como um dragão, com seis patas curtas, semelhantes às de um urso, com o torso parecido ao de um boi, com carapaça de tartaruga e uma cauda escamosa. A cabeça seria a de um leão com orelhas de cavalo, com uma expressão desagradável. Era bastante comum a representação desta criatura durante as festas de Corpus Christi. Conta a lenda que a Tarasca – lembrando o paralelo entre Polifemo e o Arquiduque austríaco – teria sido derrotada por Santa Marta, conquistando muitos fiéis ao libertar a população do monstro. Ou seja, o mesmo papel exercido por Galateia na peça, ao derrotar Polifemo, logo, pelo novo monarca, Felipe V, que certamente venceria o outro candidato ao trono. O único momento da peça em que Polifemo demonstra um gesto nobre é quando se curva a Galateia, mas mesmo assim é visto pelos demais personagens de maneira irônica e até mesmo bizarra, como já foi explicado anteriormente. 4. Conclusão Em plena Guerra de Sucessão, a propaganda política como meio de exaltação ao novo rei era fundamental para estabelecer um reinado duradouro e aceito pela população. Felipe V, sendo neto do monarca francês, o maior exemplo de absolutismo na Europa no período, deveria demonstrar todo esse poderio. Como afirma Castro,

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Luis XIV queria na Espanha uma monarquia mais absoluta e centralizada, ao modo francês; (...) Tinha-se que começar colocando fim à etiqueta dos Austríacos, que mantinha o rei enclausurado e acessível somente aos grandes da Espanha; tinha-se que ressaltar seu prestígio, tornando-o visível ante a generalidade da nobreza e o povo; tinha-se que conseguir que o palácio tivesse um papel político de exaltação do soberano, como em Versalhes. (2004, p.43)

A propaganda política foi um meio utilizado pelos dois pretendes ao trono, sempre buscando “legitimar os direitos e atuações de cada um, ao mesmo tempo em que buscava a desqualificação do inimigo.” (CALVO, 1988, p.49). Era fundamental, por um lado, exaltar a figura de Felipe V, por outro, passar uma imagem negativa do Arquiduque Carlos. O teatro foi um meio bastante eficaz para propagar a imagem pretendida por Luis XIV para seu neto. Nesta zarzuela há tantos elementos de consagração a Felipe V, e, de propaganda política, encontradas de diferentes maneiras, como por exemplo, na caracterização dos personagens: Galateia, incorporando uma figura boa, amorosa e piedosa, representando Felipe V, enquanto Polifemo, assustador e orgulhoso, simulando o candidato austríaco ao trono. Um dos elementos principais para a propaganda felipista, aqui apresentado, foi o cunho religioso que a campanha adquiriu. A França e, especialmente, a Espanha, eram países católicos, com um grande domínio da igreja, diferentemente da Holanda e da Inglaterra, considerados pagãos devido ao repúdio dessa religião, o que não deixa de ser um reflexo do caráter de Polifemo. Logo, ressaltar essa aversão ao catolicismo foi fundamental para a conquista da população, bem como para o êxito da dinastia Bourbon. Musicalmente, observa-se o papel retórico de alguns trechos, como o que é cantado por Acis, como já foi demonstrado no Ex.6 acima, advertindo para que não se desdenhe o poder do amor (Galateia - Felipe V). A repetição deste trecho tem a ver com a persuasão, e, metaforicamente tem um significado muito importante: que não se despreze o poder de Felipe V. A incorporação de características típicas do teatro espanhol, como o casal de graciosos, comunicando-se através de seu modo de falar peculiar, apresentados juntamente com elementos muito comuns na ópera francesa: a glorificação do rei e de seus grandes feitos, como canta uma das nereidas e a presença do minueto ao final da peça21, ao invés do típico baile. Esta união foi essencial para comunicação direta com o povo e também com a nobreza. Na realidade, a própria festa teatral era um evento propagandístico, através de toda sua riqueza, cenários, trajes, música e danças, o mesmo atuava de maneira positiva no público, uma vez que “a grandeza da corte de Luis XIV seduzia a nobreza de Castilla, desejosa de imitar as festas de Versalhes no palácio madrileno.” (CALVO, 1988, p.50)

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Referências ASENSIO, María Asunción Flórez. Teatro Musical Cortesano en Madrid durante el siglo XVII: Espacios, Intérpretes y Obras. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2004. BUSSEY, William M. French and Italian Influence on the Zarzuela 1700-1770. Michigan: UMI Research Press, 1980. CALVO, José. La Guerra de Sucesión. Madrid: Grupo Anaya S.A., 1988. CAÑIZARES, José. Acis y Galatea. Madrid: Iberoamericana, 2011. CASTRO, Concepción de. A la sombra de Felipe V – José de Grimaldo, ministro responsable (1703-1726). Madrid: Marcial Pons Historia, 2004 GONZÁLEZ MARÍN, Luis Antonio. Introducción. In: Acis y Galatea – zarzuela en dos jornadas. Madrid ICCMU, 2002. LITERES, Antonio. Acis y Galatea – zarzuela en dos jornadas. Madrid: ICCMU, 2002. LOPEZ CANO, Rúben. Música y Retórica en el Barroco. México: UNAM, 2000. MARROQUÍN, Lucía Diaz. La nieve arder: retórica afetiva en el universo petrarquista de la zarzuela Acis y Galatea. In: Revista de Literatura. Madrid: Consejo de Investigaciones Cientificas, 2004, p.431-464. STEIN, Louise K.. Songs of Mortals, Dialogues of the Gods – Music and Theatre in the Seventeenth-Century Spain. New York: Oxford University Press Inc., 1993.                                                             1 Vide STEIN, Louise K. Opera and the Spanish Political Agenda. In: Acta musicological, 63 (1991). 2 Segundo Calvo (1988), a nobreza, na realidade, ocupava um lugar de prestígio social, mas possuía pouquíssimo poder, ocupando-se, portanto, com festas (dentre as quais estão as fiestas de zarzuela) e caças. 3 Todas as traduções presentes neste trabalho foram realizadas pela própria autora do artigo. 4 Para maiores informações sobre o assunto recomenda-se a leitura de El arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, de Lope de Vega, bem como Songs of mortals, dialogues of the gods, de Louise K. Stein. 5 É importante lembrar que os compositores de música de Igreja, na maioria das vezes, eram os mesmos que compunham para as grandes representações teatrais. Por esse motivo, críticas aos estrangeirismos na música espanhola do período, são encontradas em documentos da época, principalmente El theatro critico universal do Padre Benito Feijoó. 6 Encontra-se nas zarzuelas deste período uma predominância dos gêneros vocais e pouquíssimos momentos instrumentais. As aberturas das peças serão cantadas e até mesmo as danças possuem trechos vocais. 7 As nereidas eram ninfas marítimas, filhas de Nereu e Dóris. Diferentemente das ninfas dos bosques, as nereidas eram imortais. Dentre as mais conhecidas estão Tétis – mãe de Aquiles – e Galateia. 8 Todos os exemplos do texto poético desta zarzuela foram retirados do libreto de José de Cañizares, que antecede a versão moderna da partitura, ambos editados por González Marín. 9 Maria Luisa e Luis são, respectivamente, a rainha e o príncipe herdeiro. 10 Para o presente artigo foi utilizada a edição crítica de Acis y Galatea, realizada por Luis Antonio González Marín. A mesma foi realizada a partir dos dois manuscritos existentes da obra, que se encontram em Madrid, na Biblioteca Nacional de España, e em Évora, na Biblioteca Pública de Évora. 11 Luis Antonio González Marín, responsável pela edição moderna de Acis y Galatea, realizou um estudo com as partituras existentes da obra, entretanto, acredita-se que nenhuma delas seja a versão original, feita para a comemoração do aniversário de Felipe V, no ano de 1708. A primeira delas, localizada na Biblioteca Nacional de España , data de 1709, enquanto a segunda, sem data, localizada na Biblioteca Pública de Évora, referente, provavelmente, a alguma apresentação da zarzuela em Portugal. Por outro lado, é de conhecimento dos

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                                                                                                                                                                              pesquisadores de música deste período, que a adaptação de obras, para que melhor se adequassem ao local aonde seriam apresentadas, bem como aos músicos (neste caso também atores) que as executariam, era bastante comum. 12 “Jornada” é um termo utilizado no teatro espanhol para substituir “ato”, pois estaria mais de acordo com a concepção de tempo das obras teatrais. Para mais informações vide La teoría y formas dramáticas en el siglo XVI, em História del Teatro Español, de Javier Huerta Calvo. 13 Trinacria é o antigo nome grego atribuído à ilha de Sicilia, na época, território espanhol. 14 A primeira referência ao ciclope é na Odisseia de Homero, onde é descrito como um bárbaro, sem leis, que não cultua aos deuses e alimenta-se de humanos. Esse caráter de Polifemo é recorrente em diversas obras. 15 “Sua Largueza” trata-se, na realidade, de uma forma irônica que o dramaturgo encontra para que os personagens mais baixos se refiram a Polifemo, ressaltando, inclusive o quão grotesco o mesmo seria. 16 Por exemplo, nas obras de Loreto Vittori (1600-1660) - La Galatea (1639), G.F.Händel, Jean Baptiste Lully (1632-1687) - Acis et Galatée (1686), George Friedrich Händel (1685-1759) - Aci, Galatea e Polifemo (1708) e Acis and Galatea (1719), que na realidade, refletem a literatura, na qual o ciclope teria uma voz muito grave. 17 “Gigantidez” não possui uma tradução para o português, mas aqui, é utilizada como uma forma coloquial de atribuir o título de nobreza ao gigante, assim como “Su Largueza” foi utilizado anteriormente. 18 Há certas características típicas da música espanhola, que são listadas por José López-Calo, em Historia de la música española – siglo XVII, as quais estariam presentes nas canções dos personagens mais simples. 19 Reparar na rima e-o, em hecho, enredo, aquellos, griego. 20 O stilo concitato é definido por Monteverdi, no prefácio de Madrigali guerreri, et amorosi (1638). Caracteriza-se pelo tempo rápido, com a divisão da semibreve em dezesseis semicolcheias, combinando com palavras que expressem raiva, sempre movido pelo afeto da guerra. 21 No final da zarzuela há a seguinte indicação “Pasan las tramoyas y tomando sus puestos danzan un Minué”, ou seja, após a retirada do maquinário e cenário, dançam um Minueto.

Iara Luzia Fadel Rodriguez é mestre em música pela UFPR, sob a orientação da Profa. Dra. Silvana Scarinci. Graduou-se como bacharel em música - habilitação em canto, pela UFRGS, em 2010, instituição na qual atuou em projetos como “Música para Bebês”, com orientação de Esther Beyer, e foi ministrante no curso de extensão em instrumentos da universidade, na área do canto. Atualmente é aluna do curso de doutorado em musicologia da UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo M. Kühl. Sua pesquisa concentra-se essencialmente sobre a música teatral espanhola, da primeira metade do século XVIII, dando ênfase aos gêneros espanhóis, abordando convenções espanholas e estrangeiras presentes nestas obras. Interessa-se pelo estudo envolvendo e misturando diversas áreas do conhecimento, buscando compreender não apenas um evento de maneira isolada.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3117

Agência dos objetos sonoros

Rosângela Pereira de Tugny (Escola de Música da UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected] Resumo: Este texto busca se aproximar do discurso de especialistas ameríndios sobre a origem não autoral de suas músicas, onde a escuta ocupa a função de produção. Busca também compreender as limitações dos artistas ocidentais quando tentam colaborar com as formas de trabalho acústico operantes entre estes coletivos. À luz de reflexões de Bruno Latour e Jacques Rancière em torno de temas relacionados às políticas da estética, às noções de “produção” e às fissuras construídas pelas sociedades modernas entre noções de natureza e cultura, é revisitado o percurso singular do compositor francês Pierre Boulez, como forma de problematizar um encontro da produção artística musical dos círculos de compositores de salas de concerto com as cosmossonologias ameríndias. Palavras-chave: estéticas ameríndias; criação musical; políticas da estética. Sonorous Objects Agency Abstract: This text aims at approaching the speeches of Amerindian specialists on non-authorial origin of their music – in which the activity of listening occupies the function of production – and also to understand the limitations of Western artists whenever they try to collaborate with the forms of acoustic work which operate in these collective realities. Under the light of reflections made by Bruno Latour and Jacques Rancière on themes related to the politics of aesthetics, the notions of “production” and the breaches built by modern societies between nature and culture, the present study revisits the singular path of French composer Pierre Boulez as a way of dealing with the encounter between the artistic musical production of the circle of composer who write for concert halls with Amerindian cosmosonology. Keywords: Amerindian aesthetics; musical creation; politics of aesthetics.

1. Preâmbulo

Em 2008 fui convidada a participar de um projeto de concepção e realização de uma ópera sobre a “Amazônia” – finalmente, e sem a minha participação, estreada como “Teatro musical” – na Bienal da Ópera de Munique em Maio de 2010. A sua idealização e produção se dividia entre a direção desta Bienal, a Petrobrás, o Goethe Institut de São Paulo e o Museu ZKM de Arte e Tecnologia de Karlsruhe. Antes mesmo desse convite, seus produtores já haviam escolhido os compositores, diretores de cena e artistas plásticos que comporiam a equipe de criação. Esperava-se de mim alguma consultoria sobre a “música indígena” que pudesse contribuir com a concepção da ópera. Em um dos seus primeiros textos, o projeto expunha o desejo de colocar em perspectiva duas visões de mundo confrontadas atualmente na Amazônia: a da tecnociência e a dos indígenas, ambas atualmente produtoras de informação sobre a floresta. O espaço de produção desta ópera se transformaria em um espaço comum, onde a virtualidade produtiva do xamã se encontraria com a do filósofo ou do cientista ocidental.

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No entanto, bem além deste sonho de partilha de um espaço comum, e desta promoção científico-filosófica concedida ao xamã, o que me parecia mais importante encenar neste projeto de ópera era o drama da irreparável assimetria que envolve o universo dos homens da floresta com respeito ao universo dos criadores da ópera reunidos em Munique. Em primeiro lugar porque os poderes que um destes grupos tem para agir sobre o espaço de vida do outro são, de entrada de jogo, sem nenhuma possibilidade de reciprocidade. A tecnociência possui efeitos gigantescos sobre a vida dos indígenas da floresta e não o contrário. Em seguida porque estão aí duas modalidades disparates de fazer uso do conhecimento e da tecnologia da sociedade dos humanos com respeito às demais. Se, seguindo o pensamento de CLASTRES (1974), as técnicas desenvolvidas pelas sociedades ocidentais para obter os recursos vitais em um ambiente qualquer funcionam por atos de dominação absoluta de tudo aquilo que em nossa partição moderna classificamos como pertencendo ao domínio da natureza, entre os povos indígenas, o que se passa é o contrário: lidam moderadamente com os recursos, apenas os necessários, para que possam justamente empreender o seu verdadeiro trabalho: o trabalho estético. Não pretendia colaborar como um agente facilitador na captação de sons, de instrumentos, e mesmo - quem sabe? - de alguns cantores indígenas escolhidos na floresta para comporem o cenário da produção de um evento artístico sobre eles e sua floresta. Mas esta recusa ainda não me parecia suficiente: teria sido necessário ir mais além e inverter desde o início do jogo todos os agentes e os espaços do evento. Deitar abaixo os espaços fechados de produção artística criados pelo mundo ocidental, refletir sobre os sentidos da escuta antes de levar sensores para captar os sons da floresta - como expunha em seu desejo o Diretor do ZKM, um dos principais idealizadores do projeto. Seria necessário repensar estes “parques humanos” que nas palavras do filósofo alemão SLOTERDIJK (2000) definem as repartições da vida urbana em esferas domesticadas: do trabalho, da atividade artística, do lazer1.

2. Uma estético-ecologia-política indígena

Entre as populações ameríndias, o que vemos como danças, músicas, rituais, máscaras, pinturas corporais, grafismos, enfim, como produções que tenderíamos a pensar como formas artísticas, são apenas as expressões mais perceptíveis de um modo de ser que é o da maioria deles, e que os etnólogos vêm tratando como o xamanismo. Este modo de ser, intensamente relacional, funciona como uma estético-ecologia-política indígena, fundada numa ontologia que pressupõe a copresença densa de corpos singulares, visíveis, invisíveis, móveis e imóveis em seus espaços de vida. Em outros termos, junto aos povos indígenas, aquilo que gostaríamos de denominar fatos “artísticos” forma um modo de ser e gerenciar relações carregadas de afetos entre distintas sociedades corporais que coabitam os seus espaços. Estas relações existem a partir de suas qualidades sensíveis plenas. Não existe, nesta rede de relações, um uso utilitário de coisas, de

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recursos, de alimentos. Em cada intervenção há uma medida, a observação atenta de um acordo, o controle de uma contrapartida. A medida dos atos entre os ameríndios é geralmente objeto de um intenso trabalho, de uma rigorosa etiqueta. O cuidado com o excesso, com o perigo do extermínio, e tudo o que diz respeito à intensidade dos gestos, se revela talvez como o centro das mais fortes atenções no coração da Amazônia e outras regiões habitadas por povos ameríndios. Todo o trabalho ritual e a carga atualizada de seus mitos estão a relembrar a estes povos esta possibilidade. Um mundo demasiado humano, sem alteridade: é nisto que reside o horror, o caos para estes povos.2 Os atos estéticos entre os povos ameríndios servem então incessantemente a controlar a medida de suas intervenções sobre outros povos que partilham com eles o seu espaço, a regular as trocas que realizam com diferentes coletivos. Se parecíamos todos os criadores desta Ópera concordar com os trágicos problemas que a Amazônia desvela no cenário cosmopolítico, havia um problema pendente neste grupo, o da sua criação, ou seja, a criação de uma obra artística do homem ocidental, com todos os investimentos que isto significa. E este complexo fato artístico-econômico, a Ópera Ocidental dizia exatamente respeito a esta ruptura de vínculos com respeito aos vários coletivos que foram emudecidos pelas sociedades urbanas. Não, desta vez não: os coletivos da floresta não poderiam servir de matéria – amorfa e silenciosa – para que os artistas do velho mundo encenassem o seu temor diante de seu anunciado desaparecimento.

3. Escuta versus criação

O que esta impossibilidade de colaboração me proporcionou foi um desejo maior de confrontar a noção de criação artística humanocêntrica, ocidental, onde o humano age sobre os materiais e a cultura age sobre a natureza, a uma noção de escuta, a ameríndia, que se situa em outra região de sociabilidade, onde os humanos não são os únicos agentes que modificam o espaço em que vivem, onde a fonte da subjetividade não está no sujeito, mas fora dele. Ainda que tenhamos assistido desde os anos 50 a uma série de discursos sobre a crise da subjetividade dos artistas pertencentes a determinados regimes de validação estética dos centros urbanos – cujas obras se apresentam em exposições, galerias ou salas de concertos – raros são os que passaram a abdicar da noção mesma de autoria e de obra artística, em função de algum projeto de diluição gestual coletiva. Em contraposição, releva-se de praticamente todas as etnografias, que os povos ameríndios remetem a aquisição dos seus repertórios gráficos e musicais a encontros realizados com diferentes agentes que fazem parte de seus coletivos, aos quais estão ligados (SEEGER 1987, VIVEIROS DE CASTRO 2002, LAGROU 2007). Suas músicas são coisas objetivas, são portanto adquiridas, capturadas como outras substâncias de troca ou de guerras. Em outras palavras, são coisas do mundo, estão aí, materialmente, e não são a expressão, impalpável, do desejo e da subjetividade humana.

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É em torno deste discurso ameríndio que afirma uma origem não autoral das suas músicas e das suas implicações sobre um dos mais importantes divisores de nossas esferas de percepção dos espaços e das coletividades – opondo em dois extremos um polo denominado natureza e outro denominado cultura – que proponho esta reflexão. O que seria uma música objetiva, não processada pela subjetividade artística humana? O que seria uma música onde natureza e cultura não se opõem como campos excludentes? O que dizem os ameríndios quando dizem que suas músicas lhes foram dadas por coletivos-morcegos, gaviões, abelhas, papagaios, enfim, por uma série de coletivos que nos acostumamos a conter como inexpressivos, não dotados de linguagem, sob um véu chamado “Natureza”? Como refletir sobre este tema de outra forma que não seja a de velar sob o cômodo discurso de um “relativismo cultural”, uma crença minha na crença dos indígenas? Como cercar este problema sem apenas interpretar esta enunciação nativa, fazendo-a dizer outra coisa, sem lhe conferir o tratamento objetivo que reclamam os indígenas? Na minha condição de pesquisadora de uma sociedade moderna e ocidental, este problema consiste em compreender a natureza do vínculo que podem ter os cantores indígenas com estes coletivos que lhes ensinam as suas músicas, diferentemente dos meus vínculos, pois pertenço a uma sociedade onde objetos e seres não-humanos não possuem agência. Mas antes disto, um esclarecimento sobre os termos “moderno”, “ocidental” e sobre a forma como venho pensando o problema da autoria como sendo essencialmente relacionado ao divisor “Natureza” X Cultura”, com o qual vimos construindo nossos discursos sobre as relações entre pessoas, pessoas e coisas, e entre pessoas e coisas da natureza.

4. A “multidão daquilo que faz agir”

Bruno LATOUR, professor na École Nationale Supérieure des Mines em Paris, filósofo, epistemólogo, historiador das ciências, se definindo ele mesmo como um “sujeito híbrido” vem, desde seu livro-manifesto Jamais fomos modernos (2000 [1991]), tratando de esmiuçar os mecanismos – sociais, políticos, científicos, religiosos – criados pela contenção em esferas separadas daquilo que os modernos denominam como “natureza” e “cultura”. Latour poderia assim ser considerado um antropólogo da modernidade – ou um antropólogo da ciência ou ainda antropólogo da natureza, já que o que busca é pensar este divisor. Latour propõe que

“O etnólogo do nosso mundo deve colocar-se no ponto comum, onde se dividem os papéis, as ações, as competências que irão enfim permitir definir certa entidade como animal ou material, uma outra como sujeito de direito, outra como dotada de consciência, ou maquinal e outra como inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo comparar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a consciência, a alma dos animais sem partir da metafísica moderna.” (LATOUR, 2005, p.21)

Como um historiador das ciências, LATOUR busca retraçar os momentos de invenção deste “mundo moderno”, a partir dos trabalhos realizados por Robert

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Boyle e Thomas Hobbes no século XVII. Boyle construiu um laboratório em sua casa e fez experiências com a câmara de vácuo e a máquina de ar. Hobbes propôs em Leviatã a teoria de um estado, um contrato social que estivesse acima dos indivíduos. Segundo LATOUR este é o momento em que os divisores das esferas Natureza e Cultura passaram posteriormente a ser domínio de diferentes ciências:

“Se formos até o fim da simetria entre as duas invenções de nossos dois autores [Boyle e Hobbes], compreenderemos que Boyle não criou simplesmente um discurso científico enquanto Hobbes fazia o mesmo para a política; Boyle criou um discurso político de onde a política deve estar excluída, enquanto que Hobbes imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar excluída. Em outras palavras, eles inventaram nosso mundo moderno, um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. (...) Os dois ramos do governo elaborados por Boyle e Hobbes só possuem autoridade quando claramente separados (...) Cabe à ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e tecnologia.” (LATOUR, 2005, p. 33 e 34)

É assim que, em um texto posterior, Bruno LATOUR se consagrou a uma discussão que denominou Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches (2002 [1996]). A expressão forjada por ele na língua francesa como faitiche buscava associar na mesma palavra os termos “fato”, e “fetiche” associando etimologicamente dois trabalhos de fabricação: o do laboratório científico onde se enclausura o estabelecimento dos fatos, e os fetiches. Ambos são termos que dizem respeito a ações, embora sujeitos à “obsessiva distinção”: os fatos são racionais, os fetiches irracionais. A associação de LATOUR deve permitir desviar a atenção em direção “daquilo que nos faz agir”, tornando, nas suas palavras, “as distinções entre as figuras obsoletas do objeto e do sujeito, do fabricante e do fabricado, do ator e do “agido” cada dia mais improváveis”. É assim que LATOUR comenta que as “noções vagas de ‘Ocidental’ e ‘Moderno’” podem ser definidas “muito simplesmente” da seguinte forma:

“[o ocidental é] aquele que quebrou os fetiches, vê nos Outros, seres estranhamente vinculados (presos), monstros perdidos nas suas crenças...” e: “Incapaz de ver em si os vínculos que o fazem agir, aquele que se crê, por este único fato, Ocidental, imagina que os Outros não o são, e que eles são, consequentemente Outros, embora apenas se diferenciem por aquilo

que justamente os vincula.” (LATOUR, 2000, p. 7) O que persegue LATOUR é então o desejo de criar uma modalidade de ciências sociais que, mais do que se interessar pelos indivíduos e sociedades, se interesse à “multidão daquilo que faz agir”. Se no primeiro caso tratava-se de percorrer o espaço que liga os sujeitos às estruturas sociais, no segundo atravessar-se-ia espaços que “não encontram nem o indivíduo e nem a sociedade, pois tudo o que é posto em movimento depende da natureza dos

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vínculos e da capacidade que eles podem ter de produzir sujeitos que são a eles ligados” (LATOUR, 2000, p. 3).

5. “Ouvir como falantes aqueles que apenas eram entendidos como animais ruidosos”

Ainda que com reflexões que pareçam se voltar exclusivamente para o mundo artístico ocidental, um outro filósofo, Jacques RANCIÈRE, em Malaise dans l’esthétique (2004), apresenta questões que se aproximam desta antropologia das “multidões daquilo que faz agir” de Bruno LATOUR. Suas reflexões prefiguram um certo pensamento sobre as formas artísticas ocidentais que nos ajudariam ao mesmo tempo cotejar algo que aqui chamaria de uma cosmopolítica-ecologia-estética indígena e pensar o problema que venho colocando em torno da autoria ou da noção de criação artística. Este filósofo distingue três regimes de identificação da arte ocidental, de seu edifício e de seus modos de inteligibilidade: o regime ético das imagens, o regime representativo da arte e o regime estético da arte. O “regime estético da arte” é aquele que parece mais interessá-lo, bem como às reflexões que tento formular aqui. Segundo RANCIÈRE, no regime estético da arte, as coisas da arte pertencem a um “sensorium específico, que “se realiza dentro de uma experiência específica suspendendo as conexões ordinárias, não apenas entre aparência e realidade, mas também entre forma e matéria, atividade e passividade, entendimento e sensibilidade”. (...) Pertencer a um sensorium específico, significa para RANCIÈRE se opor duas vezes a um estatuto representativo: não possuir uma aparência que se refira a uma realidade e “não ser uma forma ativa imposta a uma matéria passiva”. Este sensorium se configuraria como uma suspensão que fundaria uma “nova arte de viver”, uma “nova forma de vida em comum”, “uma certa política”. Estar neste regime estético seria “pertencer a um sensorium diferente daquele do poder, da dominação”:

“O poder da «forma» sobre a «matéria» é o poder do Estado sobre as massas, é o poder da categoria da inteligência sobre a categoria da sensação, dos homens da cultura sobre os homens da natureza. Se o «livre-jogo» [Friedrich Schiller] e a «aparência» estética fundam uma nova comunidade, é porque eles são a refutação sensível desta oposição entre a forma inteligente e a matéria sensível que consiste justamente na diferença entre duas humanidades”. (RANCIÈRE 2004, p.46)

É assim que RANCIÈRE chega a definir uma política própria a este “regime estético da arte”, uma política que o distancia do poder e que designa um modo de ser e partilhar a experiência no espaço:

“Com efeito, a política [a política deste regime estético da arte] não é o exercício do poder e a luta pelo poder. Ela é a configuração de um espaço específico, o recorte de uma esfera particular de experiência, de objetos colocados como comuns ligados a uma decisão comum, de sujeitos reconhecidos capazes de designar estes objetos e de argumentar a seu respeito.” [...]

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“[Esta] política consiste em reconfigurar a partilha do sensível que define aquilo que é comum em uma comunidade, a introduzir aí sujeitos e objetos novos, a tornar visível aquilo que não era e a fazer ouvir como falantes aqueles que apenas eram entendidos como animais ruidosos. Este trabalho de criação da dissensão constitui então uma estética da política, o que não teria nada a ver com as formas de mise en scène do poder e da mobilização das massas, designadas por Benjamim como a «estetização da política»”. (RANCIÈRE, 2004, p.38)

A experiência de certos regimes estéticos da arte consiste numa resistência radical à necessidade capitalista de suprimir a ociosidade, o livre-jogo e a estética do cotidiano em proveito da produtividade. Tratar-se-ia, para RANCIÈRE, de uma resistência própria de uma comunidade autônoma:

“...uma comunidade livre, autônoma é uma comunidade cuja experiência vivida não se parte em esferas separadas, ela não conhece separação entre a vida cotidiana, a arte, a política ou a religião”. (RANCIÈRE, 2004, p.52)

Mas antecipemos o cenário diante do qual nos conduzirá RANCIÈRE: encontramo-nos novamente na linha de tensão, a reanimar o paradoxo que a promessa política de uma experiência estética deste tipo expõe. Por um lado uma “política” própria ao regime estético da arte que propõe anular o suspense estético e transformá-lo em forma de vida – como as Artes decorativas, os ensaios dos engenheiros e arquitetos do Werkbund ou do Bauhaus, enfim, conhecemos algumas destas tentativas. Por outro, “a política da forma resistente” preferida de Adorno, ela também bem própria ao regime estético da arte, em que “a forma artística afirma sua politicidade ao se afastar de qualquer forma de intervenção sobre e no mundo prosaico” (idem, p.54). Um paradoxo que no cenário musical seria a grosso modo representado pelas figuras de Kurt Weil (anulando o suspense estético e transformando-o em forma de vida) e Schoenberg (afirmando a política da forma resistente). Uma estratégia de politicidade que teria sido “interiorizada por toda uma tradição vanguardista”, nos diz o autor. Duas políticas, duas estratégias próprias ao regime estético da arte que se articulam em um limite, que se animam de uma tensão. É diante desta zona-limite que RANCIÈRE evoca uma “estética liotardiana do sublime”, uma estética que trata da experiência do homem ocidental diante da “potência de uma alteridade irremediável”:

“A heterogeneidade sensível da obra não é mais garantia da promessa de emancipação. Ao contrário, ela passa a invalidar qualquer promessa deste tipo, testemunhando uma irremediável dependência do espírito com respeito ao Outro que o habita. O enigma da obra que antes inscrevia a contradição de um mundo, se torna puro testemunho da potência deste Outro”. (RANCIÈRE, 2004, p.61)

LYOTARD se separa de seus predecessores ao definir a potência do sublime como a potência do sensível, opondo à arte do belo – que impõe uma forma a uma matéria – uma arte do sublime, cujo trabalho é o de se aproximar da matéria, de “se aproximar da presença sem recorrer aos meios da representação”

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(LYOTARD, citado por RANCIÈRE, p.122). Trata-se então de estabelecer um novo vínculo com a matéria sensível reconhecendo sua alteridade... uma alteridade cujos traços essenciais seriam a pura diferença na qual consiste a matéria e sua possibilidade de “desamparar o espírito”.

6. “Relações de objeto a objeto...”

“Estabelecer um novo vínculo com a matéria sensível reconhecendo sua alteridade”: é neste ponto de encontro entre as reflexões de RANCIÈRE e LYOTARD que reconheço também os propósitos da antropologia do centro, ou a antropologia simétrica de Bruno LATOUR, esta antropologia que se interessa pelos ‘vínculos’ existentes dentro dessa “multidão de tudo o que faz agir” e não apenas pelos indivíduos e suas sociedades. E é também sobre este terreno que me interessa tratar parcialmente da obra do compositor francês Pierre Boulez que há décadas vem manifestando dúvidas sobre este terreno turvo da criação artística. Este compositor e também teórico da música, totalmente inserido no contexto das produções musicais de salas de concerto europeias e norte-americanas, caminhou para um certo caso-limite no que diz respeito à sua noção de obra, mas mais ainda: sobre a possibilidade mesma de considerar a criação musical. Já há alguns anos que os frequentadores da Paul Sacher Stiftung - uma fundação suíça onde seus manuscritos fermentam ao lado daqueles de Webern e Strawinski, dentro de abrigos antiatômicos, às margens do Reno, na Basiléia – enquanto esperam novos títulos de sua pluma, assistem às visitas intempestivas do compositor, que ora vem agenciar fluxos de materiais migrantes de obras adormecidas para ampliações de obras “vivas”, ora agregar cascadas instrumentais a passagens inteiras de obras antigas. Nada está jamais concluído entre suas obras e nada nelas surge de realmente inédito. Werner STRINZ, um musicólogo, que pesquisa nesta fundação, em um artigo no qual tenta acompanhar o processo de gestação e ampliação de algumas obras da juventude do compositor que intitulou “Objetos reencontrados”, teceu o seguinte comentário:

“Seja em um projeto a longo termo como o Livro das Estruturas para dois pianos, seja no “renascimento” das Doze Notações na forma de uma composição para orquestra, a criação musical de Boulez parece se constituir sob o signo de uma potencialização, de uma “criação das criações”. As filiações são ainda mais impressionantes porque elas se tecem à distância e se re-vinculam em momentos muito distantes da evolução técnica e estética do compositor”. (STRINZ, 2006, p.46)3

Mais do que viver junto com os artistas de sua geração a grande passagem a vácuo configurada pela profunda crise de subjetividade dos artistas ocidentais deste período, e mais que uma fácil adesão aos encantos do automatismo criativo das experiências surrealistas, Boulez parece ter perseguido no trânsito de suas diferentes obras, um desejo de escutar e por em cena o material sonoro com toda sua capacidade de agência. Talvez estivesse ele na busca deste vínculo com a “multidão daquilo que faz agir” de LATOUR, ou de se defrontar a esta alteridade da matéria sensível que desampara o espírito, da qual fala LYOTARD.

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Por muito tempo, e creio que ainda nos dias atuais, a música deste compositor foi considerada sob o único prisma de uma abstração formal exacerbada. Algumas de suas declarações de juventude, de tom panfletário ou a exploração de uma técnica musical ainda muito nova, fez com que uma geração inteira de compositores e musicólogos o seguissem por esta via. Mas o fato que mais leva a este tipo de avaliação é o estilo mesmo do seu processo criativo, submerso em um impressionante número de projetos, esboços, rascunhos, enfim, uma profusão incalculável de planos, grades de agregados sonoros, testemunhando quiçá um desejo de ter sob a lupa todas as arestas da fabricação sonora. Mas já me precipito aqui sobre algumas considerações que devo retomar posteriormente, quando pretendo comentar esta profusão escritural do compositor. Para pensar neste processo criativo, retomo uma passagem de Constellation-Miroir, um dos dois formantes levados ao público em 1957 que deveriam integrar um grupo de 5 formantes (ou “movimentos”) pertencentes ao projeto inicial da Troisième Sonate para piano. O fragmento expõe uma sequência de blocos sonoros nos registros mais graves do instrumento. Na realidade, ele vem pontuar uma trama dramática, construída no decorrer desse formante. A trama consiste na gravitação de seções de sons com grande densidade - denominadas pelo compositor como “Blocos” - em regiões cada vez mais opostas e extremas no registro, em torno de uma zona estável, situada no registro médio, caracterizada por sons de pequena densidade, e por ele denominada “Pontos”. Este fragmento se estende pelos 3 folhetos – G, H e I - da partitura, que podem, de acordo com as versões da execução, serem lidos como os seus 3 primeiros ou seus 3 últimos. O que chama a atenção é justamente o último bloco do fragmento, situado na extremidade do último folheto, marcando de várias formas um limite da obra: um cluster. Dez notas concentradas no registro grave pontuando um fragmento que expõe os blocos mais densos na região mais grave do piano.

Ex.1 - Pierre Boulez, UE 13293 (b). Seção final do fragmento Blocos I de Constellation-Miroir.

Um dos raros clusters, que podemos encontrar na obra de Boulez, ainda que aqui, na sua maneira de grafar cada nota, entendamos seu desejo de não deixá-lo figurar como cluster e sim como uma graduação mais intensa naquilo que ele qualificou como “complexos de sons”. Esta pontuação, de uma obra destinada a uma variação de sentidos na leitura, leva ainda mais à perplexidade aqueles que estiveram atentos às suas críticas ao uso do cluster.4 Entidades sonoras semelhantes, próximas do que tendemos a caracterizar como clusters - aparecem em outra passagem deste mesmo fragmento, constituída de

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uma trama de blocos densos, graves, atacados seca e rapidamente. São sonoridades de forte pregnância, que poderíamos considerar como ruídos mais ou menos matizados.

Ex.2 - Pierre Boulez, UE 13293. Seção inicial do fragmento de Blocos I de Constellation-Miroir.

Estes blocos se agrupam em 3 classes de densidades - 8, 9 e 11 sons - dentro das quais observam a mesma estrutura intervalar. Estão nesta passagem sujeitos a um certo número de repetições. Um longo procedimento é realizado até que o compositor chegue a compor estes blocos.

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Ex.3 - Transcrição demonstrativa de um processo de ampliação dos complexos de sons utilizado

por Pierre Boulez em Constellation-Miroir.

Ele repousa na leitura de redes de hierarquias criadas pela série. Na realidade, nesta composição, a série funciona como uma palheta de 6 sonoridades, com densidades variando de 1 a 3 sons, observando disposições intervalares variadas. Estas sonoridades interagem com outras, pela acumulação e pelas variações criadas nas transposições, seguindo um processo controlado pelo compositor, até que chegue à composição de blocos de grande densidade, próximos do total cromático, assim como estes que vimos. Estes blocos mais complexos, resultantes destes procedimentos já intitulados como “multiplicação de acordes” são verdadeiras amplificações das sonoridades iniciais pertencentes às diferentes formas seriais. A independência destes blocos com respeito a uma distribuição de registros fixada a priori e a recusa a se deixar recuperar pelo princípio de identidade próprio do sistema de transposições é uma das características mais importantes da estética de Boulez. Cada objeto sonoro – e aqui neste caso, o bloco amplificado – é dotado de uma única disposição na tessitura, a única que anima e se torna responsável de sua função real. Sua figuração e disposição na tessitura revelam funções e relações entre as sonoridades. Estas não são dadas e sim

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agenciadas. Não existe um dado estrutural que encerre propriedades dos sons antes daquilo que Debussy teria chamado de mise en place sonore. Para reforçar a importância deste dado no processo de composição, proponho que imaginemos um outro caminho: estes blocos, uma vez que pertencem a uma mesma classe de densidades e possuem a mesma estrutura intervalar – tendo sido criados a partir dos mesmos princípios de interação – poderiam seguir um esquema de apresentação uniforme e mecânico, oferecendo a mesma disposição, a mesma extensão dentro do registro. Assim, a forma estaria correspondendo à estrutura. As estruturas seriam mais facilmente percebidas pelo ouvinte e o intérprete. O que obteríamos assim seriam simples transposições:

Ex.4 - Exemplo de uma disposição uniformizada dos blocos do fragmento de Constellation-Miroir

de Pierre Boulez.

Mas, ao contrário: a disposição de blocos de uma mesma densidade pertencendo a uma mesma classe, bem como a forma como eles são replicados na seção, varia a cada instante. Um esboço de Boulez demonstra como o tipo de figuração que os blocos assumem nas seções é determinado pelas propriedades acústicas exploradas no instrumento.

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Ex.5 - Fragmento de manuscrito de Constellation-Miroir de Pierre Boulez. (Paul Sacher Stiftung,

Microfilme 138 - 0827. Mapa H. Dossier 2d).

Os fragmentos se repartem em seções cujo envelope acústico se define de acordo com propriedades aqui descritas: “ataques secos”, “uso de ressonâncias de harmônicos produzidas pela liberação de cordas graves”, “usos de harmônicos com variações dos pedais”, “tenutos”, “tenutos com uso de pedais”, etc. Assim, a passagem de blocos totalmente verticalizados, atacados seca e rapidamente se contrasta com a precedente em que eles se estendem em arabescos e grandes momentos de suspensão que possibilitam a escuta das ressonâncias.

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Ex.6 - Fragmento de Blocos I de Constellation-Miroir de Pierre Boulez (UE 13293 b).

Desta forma, a matéria sonora está se expressando e agindo, não em função de uma estrutura predeterminada, intervalar, serial, como muitos acreditam. Ela se exprime a partir daquilo que o compositor passou a denominar como “deduções localizadas e variáveis”, uma forma radical de negar o princípio de identidade por transposição próprio da música tonal. A este respeito, e para melhor demonstrar o que tento aqui colocar, evocaria outra passagem do mesmo formante Constellation-Miroir, extraído da seção intitulada Blocos I. Os blocos iniciais empregados nesta seção possuem estrutura semelhante àqueles que vimos na seção precedente, próximos ao cluster, se consideramos as suas alturas e densidades dentro de um espaço reduzido de uma oitava.

Ex.7 - Pierre Boulez. Fragmento da seção Blocos I de Constellation-Miroir (UE 13293 b) e

composição dos complexos de sons.

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No entanto, ainda que aqui estejam totalmente verticalizados, a disposição aberta pela qual se estendem no registro agudo do piano e a qualidade temporal “muito lenta” conferem a estes blocos propriedades musicais totalmente diferentes daquelas dos blocos da seção precedente. Antes estávamos em uma zona de ruídos matizados, o piano ocupando função de instrumento de percussão. Aqui, estamos em uma zona de sonoridades agudas, com variações de alturas expressivas. As duas passagens precedentes ilustram este desejo do compositor em tornar ambivalentes funções e categorias do material sonoro, cuja tendência é tomá-las como definidas antes mesmo da mise en place. Esta atitude se demonstra no que diz respeito ao tema do “ruído”, tão importante no contexto da criação musical dos anos 50 e 60, cujas implicações na escuta construída pelos compositores ocidentais das músicas de povos tradicionais africanos, orientais e americanos foram significativas. Acredito que o que Boulez busca nesta experiência, que, aliás, havia já se realizado em Marteau sans Maître, é extirpar os sons, antes pensados como “ruídos” de um contexto que o define como pura matéria, inerte - porque por demais pregnante - sem propriedades ativas e expressivas - porque não inseridas na lógica de identificação e transposição do sistema musical ocidental - levando-os a se vincularem às demais sonoridades da obra em constante estado de mutabilidade, de agregação e diluição. E o faz justamente porque conduz todos os seus materiais sonoros a um “ponto-precário, onde a responsabilidade das estruturas e a personalidade dos objetos se equilibram”, segundo suas palavras (BOULEZ, 1974, p.45). É neste “ponto-precário” onde os objetos sonoros se encontram e se revelam, que se realizam as deduções localizadas e variáveis. Podemos assim compreender os termos em que o compositor formula suas reflexões sobre o uso destes objetos-estruturas sonoros, recusando congelá-los em definições estanques de ruído e som, propondo os termos “complexos de sons” e “sons complexos” para demonstrar a continuidade entre o que antes se definia em zonas:

“Com esse propósito, abrirei um parênteses sobre as relações que ruído e som mantêm entre si. É certo que a hierarquia, na qual viveu o Ocidente até agora, praticamente exclui o ruído de seus conceitos formais; a utilização que dele se faz depende naturalmente de um desejo de ilustração “para-musical”, descritiva. Não vejamos aí uma coincidência ou uma simples questão de gosto: a música do Ocidente recusou, durante muito tempo, o ruído porque sua hierarquia repousava no princípio da identidade das relações sonoras transponíveis para todos os graus de uma dada escala; sendo o ruído não diretamente redutível a um outro ruído, é, pois, rejeitado como contraditório ao sistema. Agora que temos um organismo como a série, cuja hierarquia não está mais fundada no princípio de identidade por transposição, mas, ao contrário, em deduções localizadas e variáveis, o ruído se integra mais logicamente a uma construção formal, contanto que as estruturas por ele responsáveis, se fundem em critérios próprios. Eles não são, fundamentalmente, diferentes – acusticamente falando – dos critérios de um som.”(BOULEZ 1974 [1972])5

O que me interessa não é reanimar aqui as discussões apaixonantes em torno do tema do ruído que afloraram nos anos 50 e 60, da forma como Boulez se demarcou de outros compositores a este respeito, e nem falar dos diversos

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projetos de obras para percussão iniciados por ele e não concluídos, do particular uso que ele fez de um vasto conjunto de instrumentos de sons complexos em diversas de suas obras, de seu interesse por músicas não-ocidentais, de seu projeto de estudos etnomusicológicos no Camboja, embora tudo isto possa esclarecer muito do que está em jogo na discussão que apresento. Não é este o objetivo principal do texto e não poderia aqui prosseguir esta discussão com o cuidado que ela merece. O que me parece mais importante explorar nos exemplos que apresentei é o quanto um procedimento que Boulez denominou “deduções localizadas e variáveis” – o que parece ser um detalhe técnico em seu método composicional – pode revelar todo o problema da autoria da obra que venho tentando problematizar neste texto. Por este fundamento, a composição musical se revela apenas no instante em que se vinculam e interagem as várias propriedades ativas da matéria sensível. Não há uma propriedade sonora que adquira uma função pré-determinada no processo criativo, passível de agir sobre as demais. Todas as propriedades estão sujeitas a se revelarem a partir de instantes, de cruzamentos, na interação com outras propriedades encontradas. Neste sentido, não existe no processo de composição de Pierre Boulez nenhuma noção musical imutável. Não existe propriamente uma repartição entre o material sonoro e o processo de agência ou estruturação. A noção bouleziana de deduções localizadas e variáveis é o que faz com que a produção material na obra seja incessante, já que não há um instante do processo de composição em que a estrutura se separe da força, ou o material se separe da forma. Há sempre uma dedução, um ponto de encontro, que faz com que a força do material revele novas propriedades e cause novos desvios, novas dobras, e incontáveis retornos. A composição da obra passa a ser o trabalho desta sensibilidade ativa do material sempre em expansão. Seria então o momento de evocar novamente a reflexão sobre a razão de tal procedimento de escritura, cujo resultado, – no que diz respeito à obtenção destes blocos de sonoridades por um procedimento pontual de acumulação de notas – poderia a priori ser obtido empiricamente. Na realidade, esta formulação já é sintomática de um determinado modo de pensar a música, não como uma complexa cadeia de interações, mas como um resultado sonoro, impresso em partituras, gravações ou apresentados em concertos. A obra musical neste caso é pensada como um dado objetificável, um resultado. O que proponho, após alguns anos de imersão em estudos etnomusicológicos, é pensar já um ritual da escritura em Boulez como um ritual musical. Na realidade a escrita, ou a escritura, se a tomamos nos termos de DERRIDA (1997) não é um processo exterior ou posterior ao desejo de um suposto ente, a expressão da sua imaginação e uma instância exterior à sua corporalidade. Ao contrário: a escrita é um ritual onde o corpo se inscreve, imprime seus traços. Seguindo as reflexões de DERRIDA, a escrita ocidental, foi condenada, culpabilizada, nos textos de ROUSSEAU e posteriormente de LÉVI-STRAUSS, por se constituir em um suplemento que pressupõe e anula uma originalidade de um agente pensante. Se propomos a escrita como uma instância, pensada como ritual, é porque neste caso, ela não é o instrumento de um pensamento lógico racional, ela é um terreno de concertação

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entre várias vozes, apagando o sujeito humano como único agente do processo criativo. É com base nesta premissa que sugiro que Pierre Boulez, no terreno da escrita, está ritualizando, se colocando no meio de um fluxo de possibilidades, da interação de vários objetos-sujeitos, onde qualquer ponto de junção pode dar nascimento a novos materiais, novas estruturas e novas obras.

7. “Eis a criança de uma noite da Iduméia...”

Constellation-Miroir marcou talvez esse passo vertiginoso pelo qual Boulez descobre um modo de se relacionar com o objeto sonoro, deixando marcas na inauguração de uma forma a percursos variáveis, e suspendendo para sempre qualquer possibilidade de conclusão de suas obras. Sob vários aspectos o compositor percebe ecos de alguns dados desta experiência ao contato que teve com a publicação dos manuscritos do Livro de Stéphane Mallarmé par Jacques SCHÉRER (1954). Um Livro que nunca poderia ser lido, segundo os desejos deixados escritos pelo autor, se não fosse em situação ritualizada. Um Livro cuja escritura e cuja leitura era ela própria o seu ritual. Mas, parece-me ainda mais significativa a escolha do ciclo de poemas sob o título de Pli selon pli, retrato de Mallarmé, para o qual Boulez retira poemas situados em um largo período dentre as obras do poeta, ordenados cronologicamente do “nascimento” (Don du poème) à “morte” (Tombeau)6. Todos eles, gravitando em torno dos conceitos da “mimeses”, da “produção” e da “escritura”. O primeiro verso de Mallarmé de Don du poème que abre o ciclo aparece então como um empréstimo tomado por Boulez, como forma de analisar a experiência criativa com Constellation-Miroir, da qual estava apenas saindo: “Eis a criança de uma noite da Iduméia”. Segundo os responsáveis da edição de obras de MALLARMÉ estabelecida pela coleção Pléiades:

“Iduméia é o país de Edom, de Esaú, o filho mais velho deserdado a favor de Jacó, o mais velho, descabelado e monstruoso. “Para a cabala judaica”, continua Denis Saurat, Deus havia primeiramente criado uma humanidade monstruosa. Ela a substituiu pela humanidade atual. Jacó substituiu Isaú: homens pré-adâmicos, reis da Iduméia”. Eram seres sem sexo, que se reproduziam sem mulheres, e não hermafroditas à imagem de Deus... O poeta faz seu poema só, sem mulher, como um rei da Iduméia, monstruoso nascimento. Este monstro será humanizado se a mulher o acolhe, o alimenta com seu leite.” (notas de Henri MONDOR e G. JEAN-AUBRY in Mallarmé, 1945, p.1439)7

Reprodução sem debate sexual, protozoária, caótica. Multiplicação desordenada, sem aliança. O poema traduz e denuncia o confinamento, a solidão que demanda a criação do poeta e a monstruosidade da obra - a criança - única alteridade que acompanha o artista. Uma criança que nasce de um mundo esvaziado de alteridades, onde a experiência poética surge como única presença, ela nasce como pura diferença. O texto de Mallarmé assumiria aqui uma função de paráfrase analítica do que parecia se configurar na experiência de Pierre Boulez. O compositor adentra um universo em que seus diversos objetos sonoros se

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animam, falam por si, se reproduzem. Boulez compõe a partir de uma escuta à sensibilidade ativa do material, criando vínculos entre suas qualidades sensíveis, e por isto esvai-se pouco a pouco sua autoimagem enquanto autor. Mas por outro lado, sua obra é fruto de uma noite de dramática solidão. Noite sem aliança. Como estar vinculado a “uma multidão que faz agir”, como parece ser o limite, a borda aonde seu procedimento criativo o levou, e ao mesmo tempo criar meio a uma irreparável solidão? Entendo aí um ponto de tensão, de suspensão, próximo ao paradoxo exposto acima por RANCIÈRE: por um lado, a força corrosiva de sua experiência musical sobre uma modalidade de escuta que deveria aproximá-lo de uma forma de sociabilidade onde o homem não é o único a modificar o espaço, os objetos, a paisagem sonora, por outro, o confinamento no qual ele permanece, como artista ocidental, a produzir suas obras, destiná-las às salas de concerto, aos parques de circulação da obra artística. Cabe agora um parêntesis sobre o uso do termo “objeto sonoro” no título deste texto. Embora tenha uma forte conotação histórica, sobretudo a partir dos textos de Pierre Schaffer, meu intuito aqui era pensar, não em algum material definido – um agregado sonoro, um tema musical, um motivo, um acorde, um timbre instrumental, um som captado em gravadores e pensá-los com ou sem o pressuposto de uma cultura que o interprete. O termo objeto apenas vem se opor a sujeito. E se opõe estrategicamente até quando ele não se encerra mais em uma estrutura, em um conjunto material constituído antes da composição, dotado de funções e força pré-definidos. Da mesma forma, tomo emprestada a noção de “agência” de Alfred GELL (1998), para o qual os objetos podem ser pensados como pessoas, por terem capacidade de mediar relações entre sujeitos. Capacidade que não é inata, estanque, pré-determinada, e sim relacional. O título que escolhi vem para se entregar a um sacrifício, já que a “agência” de um objeto, como venho formulando aqui, é algo paradoxal: se objetos possuem agência, deixam de ser objetos ou, podemos também pensar de forma inversa: artista-compositor e objetos sonoros se tornam assim todos objetos. Aqui a composição se transfere para a escuta. Cabe mais uma observação a estas discussões: se no processo de composição de Boulez o objeto resiste a ser objeto, pois invade a estrutura até o último momento, até a dedução mais localizada, apagando assim o limite entre o objeto e o sujeito da constituição da obra, esta sua experiência não se assemelha aos jogos e cenários de azar construídos por alguns de seus colegas e artistas contemporâneos. Alguns textos de Pierre Boulez, certos deles de circulação mais marginal, poderiam compor este comentário que pretendo realizar aqui. Por um lado, exprimem esta noção que intitulo aqui como “agência dos objetos sonoros”. Não é por acaso que, no ano mesmo da conclusão de Constellation-Miroir, ele tenha escrito seu belo texto sobre Debussy, onde propõe que, na forma de organização dos sons por este compositor as relações de objeto a objeto se estabelecem no contexto segundo funções não constantes.

“Foi preciso que o fato Debussy, incomensurável com qualquer academismo, incompatível com qualquer ordem não vivida, com qualquer

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regulamento que não fosse fruto do momento, permanecesse um corpo estranho à música do ocidente para que ela ficasse tão impermeável em seus desenvolvimentos posteriores: um verdadeiro banho de mercúrio. Vê-se claramente o que provocou esse isolamento: Debussy recusa toda hierarquia que não esteja implicada no instante musical. Com ele, muitas vezes, o tempo musical muda de significação, sobretudo em suas últimas obras. Assim, criar sua técnica, criar seu vocabulário, criar sua forma, levaram-no a alterar profundamente noções que, até ele, tinham permanecido estáticas: o movimento, o instante fazem irrupção na música; não apenas a impressão do instante, do fugitivo, a que o reduziram; mas sim uma concepção irreversível, própria do tempo musical, e do universo musical de um modo geral. É que na organização dos sons essa concepção se traduz pela recusa das hierarquias harmônicas existentes como dados únicos dos fatos sonoros; as relações de objeto a objeto se estabelecem no contexto segundo funções não constantes.” (BOULEZ 1966)8

Por outro lado, encontramos noções mais ou menos explícitas quanto à dissolução da autoria. Já o título de um dos textos publicados a respeito da Terceira Sonata em Points de repères – “Sonate, que me veux-tu?” (“Sonata, o que queres de mim?”) revela muito sobre essa inversão entre os papéis de agente a paciente, sujeito e objeto do processo de composição. As últimas frases deste texto dizem em todas as letras:

“Ainda uma palavra: a forma adquire sua autonomia, tende em direção de um absoluto que jamais conheceu; rejeita a intrusão de qualquer acidente pessoal. As grandes obras às quais me referi – Mallarmé, Joyce – constituem dados de uma época: o texto se torna “anônimo” por assim dizer, “falando por ele mesmo, sem a voz do autor”. Se fosse necessário encontrar um sentido profundo para esta obra que tentei escrever, seria a procura deste “anonimato”.” (BOULEZ, 1981, p.163).

Em outro texto, intitulado “Musique traditionnelle - un paradis perdu?”, BOULEZ evoca uma imagem – a de viver em um plasma criativo – onde podemos entender esta diluição de fronteiras entre ele e os objetos de sua criação:

“Com respeito à noção temporal diferente, de obras cíclicas sem começo e nem fim – na Índia ou no Japão a música se escuta, se abandona, dentro de uma duração diversa da nossa – posso também dizer que no plano da criação, vivo numa espécie de plasma criativo, que me permite me deslocar, escorregando de frente para trás. Permaneço em uma só coisa e irradio em muitas direções ao mesmo tempo. Possuo agora um material maleável que me permite estes deslizes no tempo e estas recreações. É assim que já fiz muitas versões de ”Pli selon pli e penso a uma ampliação de “Éclat”.” (BOULEZ, 1967, p.8)9

“Relação de objeto a objeto”, “plasma criativo”, “um texto sem voz do autor”, “busca do anonimato”: temos aqui vários pontos de abertura para retornarmos aos problemas colocados no início deste texto. Mas não na forma de alguma resposta. Não calculei logicamente que uma crítica genética sobre experiências boulezianas pudesse me responder algo da questão que coloquei sobre a origem não autoral dos cantos entre os povos indígenas. O que a antropologia deve fazer, evocando aqui os termos de VIVEIROS DE CASTRO é

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“colocar em relação problemas diferentes, não um problema único (‘natural’) e suas diferentes soluções (‘culturais’). A “arte da antropologia”(...) é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002 b., p.117).

Tampouco buscava aqui uma equação de semelhança, um ponto de encontro entre as naturezas de atividades que se passam no sonho do xamã e na noite da Iduméia de Boulez e Mallarmé. A noite da Iduméia, onde se passa a criação do poeta-músico ocidental permanece este gesto de uma “política da forma resistente”, da obra autônoma, auto-contemplativa cara a Adorno. Sua evocação surge nos versos postos em música por Boulez como um grito de asfixia de um artista cujo mundo está já esvaziado de alteridades. A humanidade e os seus híbridos (LATOUR 1994) formariam a única geração de remanescentes que podem comparecer a esta aventura musical. “Anular este suspense estético” e dissolvê-lo na própria vida seria novamente cair em um mundo esquadrinhado, repartido, não qualitativo, sem vínculos, como sucedeu aos artistas da Bauhaus. De nada serve a Boulez ter desenvolvido a escuta de sujeitos sonoros, ter sonhado vincular-se à multidão que faz agir, se – flecha solitária, como ele escreveu certa vez a respeito de Debussy –, nasceu, vive, compõe e dirige suas obras nessa sociedade demasiado humana como foi acusada por Nietzsche. Impossível sonhar com a escuta de seus sujeitos musicais, se os humanos são de fato os que tomaram o poder de todo espaço, eles e seus híbridos, e cortaram seus vínculos com tudo o que faz agir. A ópera nasceu em um dos momentos mais intensos de afirmação do humanocentrismo. Consiste na nostalgia do sátiro-pastor (a natureza), na dúvida com o invisível e na exaltação do sujeito. Todos aqueles que entrevistam Boulez, perguntam-lhe sobre seu projeto malogrado de compor uma ópera. Ele sempre a deixou em suspense. Debussy, que tanto tardou a concluir seu Pélleas, buscava um libreto “sem país, sem datas, sem cenas a realizar... os personagens sem discutir, sujeitos à vida e ao destino” 10. Com o primeiro verso de Mallarmé, Boulez compôs e abortou toda a sua ópera, exprimindo o cruel paradoxo de um artista ocidental que quisera transformar-se em ouvinte. Exprimiria ao mesmo tempo toda a impossibilidade de se colaborar hoje em um projeto artístico, autoral, ocidental, e milionário, sobre a Amazônia.

1 Este texto foi escrito a partir de um seminário apresentado na Escola de Música da

UFMG. Agradeço aos colegas Rogério Vasconcelos e André Cavazotti pelo apoio na

leitura e revisão do texto e pela tradução do resumo.

2 Dentre várias narrativas expressas pelos povos indígenas, retomo aqui uma reflexão minha sobre um mito tikmũ'ũn do dilúvio ocasionado pelo cunhado do pai adotivo da lontra: “Após um

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grande dilúvio enviado pela ira de uma lontra, filha adotiva de um casal, um homem sobrevivente tentou de várias formas se procriar. Quando enfim nasceram os primeiros filhos na forma humana, Topa trouxe a eles um arco e flecha e uma arma de fogo. A escolha das armas deu origem à diferenciação entre os Tikmũ’ũn e os que eles chamam de “ãyuhũk”, uma classe de pessoas que traduzimos como os “brancos”. Acredito que a diferenciação já estava presente nessa história antes do dilúvio: entre o pai adotivo da lontra e seu cunhado. O pai adotivo, recebia fartos peixes de sua filha lontra, e em troca, deixava a ela os melhores e maiores peixes. O cunhado, pediu a lontra emprestada para receber da mesma forma tantos peixes, mas tentou enganá-la, escondendo para si os melhores. Não seria a diferença dos procedimentos entre o pai adotivo e seu cunhado a mesma que observamos entre a “economia sustentável” praticada milenarmente pelos povos indígenas, essencialmente relacional, e a exploração absoluta pela “insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais finitos de satisfazê-los”, como certa vez escreveu Eduardo Viveiros de Castro, pelos homens do Progresso?” (TUGNY, 2011, p.4) 3 Nossa tradução. 4 “Até agora só considerei os complexos de intervalos simples; para ser completo, preciso assinalar a integração destes mesmos intervalos. Este método nos dá, por assim dizer, “superfícies” sonoras que utilizam, seja verdadeiramente o continuum, seja uma aproximação – bastante grosseira, aliás – deste continuum pela aglomeração de todos os intervalos unitários compreendidos entre os limites dados; o que chamamos clusters no sentido vertical ou glissandi no sentido diagonal. Estudaremos mais adiante como essa idéia primitiva e excessivamente sumária está longe de uma concepção elaborada do continuum; dele, o que retém-se aqui, é apenas a sua aparência mais superficial” (BOULEZ, 1964, p.45). 5 Citamos aqui a tradução de Reginaldo de Carvalho e Mary Amazonas Leite de Barros: A Música Hoje. S.P., Ed. Perspectiva, 1972. 6 Os anos de publicação dos poemas são: Don du poème (1865), Le vierge, Le vivace et le bel aujourd’hui (1885), Une dentelle s’abolit (1887), A la nue accablante tu (1895), Tombeau (de Verlaine) (1987). 7 Nossa tradução. 8 Publicado originalmente em 1956 em La Nouvelle Revue Française, n.48. Nossa tradução. 9 Nossa tradução. 10 Léon Vallas, 1958 [1932], p.141. Debussy teria respondido ao seu professor, Albert Guiraud, quando questionado sobre seu projeto de ópera e escolha de libreto: « Celui des choses dites à demi. Deux rêves associés : voilà l’idéal. Pas de pays ni de date. Pas de scène à faire. Aucune pression sur le musicien qui parachève [...] Je rêve poèmes courts : scènes mobiles. Me f... des 3 unités. Scènes diverses par lieux et caractère ; personnages ne discutant pas ; subissant vie, sort, etc ». Referências BOULEZ, Pierre. Penser la musique aujourd’hui. Paris, Gonthier, 1964. Tradução brasileira: Reginaldo de Carvalho e Mary Amazonas Leite de Barros: A Música Hoje. S.P., Ed. Perspectiva, 1972. ______. Relevés d’apprenti. Paris: Seuil, 1966. ______. Points de repère. Paris: Christian Bourgois Éditeur, Édition du Seuil, 1981. ______. Musiques traditionnelles – un paradis perdu?» In The World of Music Quartely Journal of the International Music Council (UNESCO). Bärenreiter, IX/2, 1967. ______. Existe-t-il un conflit entre la pensée européenne et non-européenne?» Europäische Musik zwischen Nationalismus und Exotic, (ed. Hans Oesch, Wulf Arlt & Max Haas), Winterthur: Amadeus, 1984. ______. Penser la Musique Aujourd’hui, Paris: Gallimard, rééd. coll. « Tel », 1963. ______. Constellation-Miroir. Troisième Sonate pour piano. Formant 3. Universal Edition UE 13293 (b) [2a edição: 1993]

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Rosângela Pereira de Tugny é integrante do INCT–CNPq de Inclusão Social no Ensino Superior e na Pesquisa. Graduada em música pela UFMG, possui Doutorado em Música pela Université de Tours (França) e realizou pós-

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doutorado em Antropologia Social junto ao Museu Nacional da UFRJ. É professora associada do Departamento de Teoria Geral da Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG. Como pesquisadora do CNPq realiza pesquisas sobre os trabalhos acústicos dos povos tikmũ’ũn e sua continuidade na escrita. Coordena o projeto de Documentação de sonoridades indígenas “O trabalho da memória através dos cantos” junto ao Museu do Índio – Funai. Em colaboração com xamãs, ilustradores e narradores tikmũ’ũn, organizou dois livros de tradução de cantos e mitos de sua cultura ancestral - “Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex” e “Cantos e histórias do gavião-espírito” e foi curadora da exposição “Cantobrilho tikmũ’ũn, no limite do país fértil” realizada pelo Museu do Índio – Funai. É autora de artigos e livros publicados no Brasil, em Portugal, na Suíça, na França e no Japão.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3118

Resenha do livro Ampliando o repertório do coro infanto-juvenil: um estudo de repertório inserido em uma nova estética VERTAMATTI, Leila Rosa Gonçalves. Ampliando o repertório do coro infanto-juvenil: um estudo de repertório inserido em uma nova estética. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: FUNARTE, 2008. R$ 34,00. Débora Andrade (Universidade Federal de S. João del-Rei, São João del-Rei, MG) [email protected] Palavras-chave: coro infanto-juvenil; música vocal; repertório de música contemporânea. Review of the book Ampliando o repertório do coro infanto-juvenil: Um estudo de repertório inserido em uma nova estética [Expanding the repertoire of the youth choir: a study of the repertorie within in a new aesthetics] Keywords: youth choir; vocal music; contemporary music repertoire. Leila Rosa Gonçalves Vertamatti, autora do livro, possui uma sólida formação musical. Ela é Mestre em Educação Musical, Licenciada em Educação Artística, Bacharel em Piano, Composição e Regência e, atualmente, está se doutorando em Música, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. O livro em questão é fruto de seu mestrado, sendo ele mesmo sua dissertação de conclusão de curso. Ao introduzi-lo, a autora informa ao leitor de forma sucinta sua formação musical, bem como sua inserção no universo da música contemporânea - objeto que inspirou sua pesquisa. E, nesse caso, ela considera como contemporâneas obras do período da história da música em que o sistema tonal vê-se ampliado, surgindo consequentemente novas técnicas composicionais, novidades timbrísticas, utilização de materiais “extra-ocidentais” e mudanças na maneira como são usadas a voz e os instrumentos. O que motivou Vertamatti à escrita da obra foi a percepção da existência de uma lacuna entre o universo musical contemporâneo e o repertório vivenciado por seus alunos, participantes do CantorIA – grupo que resulta do Projeto “Coros Infantis da UNESP – Educação Musical pela voz”, iniciado por Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, em março de 1989. O livro questiona ao leitor sobre a possibilidade de se trabalhar a educação musical pela voz na prática de canto coral, aproximando os coristas de uma produção musical que lhes apresente outras abordagens estéticas, diferentes da organização tonal. A fim de colher dados que fomentassem esta reflexão, a autora investigou vários regentes de grupos infanto-juvenis, de São Paulo, percebendo que o repertório utilizado por eles tem ênfase em canções étnicas e na Música

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Popular Brasileira (MPB) e estrangeira. Isto significa que se trabalha apenas parte da linguagem musical, não sendo esta vivenciada em todas as suas modalidades. Esta reflexão se desenvolve a partir da concepção de música como linguagem, por parte de MERLEAU-PONTY (1975) e de GADAMER (1977). Baseando-se na teoria do primeiro autor, ela acredita que, assim como na língua, o passado de uma música já foi presente e as modificações que ocorrem com o tempo são incorporadas no sistema pela vivência corporal. E, para se compreender as palavras do outro é necessário que sua linguagem seja conhecida. De Gadamer, ela enfatiza que o conhecimento adquirido pelo homem se dá pela linguagem. Uma vez que ele a domina, compreende o mundo. Suas experiências vividas são acumuladas e utilizadas para conhecer fatos presentes. Isto significa que a retenção pela memória de diferentes experiências sonoras permite que o indivíduo reconheça sonoridades familiares que só terão significado se fizerem parte das experiências do sujeito. Além destes, autores como GUY REIBEL (1984) e MURRAY SHAFER (1991), que propõem uma pedagogia musical próxima da música contemporânea por meio da criação, JOHN PAYNTER (1972), que defende a escuta ativa, SHARON MABRY (2002) e BRIGITTE ROSE (2000), que desenvolvem técnicas específicas para a produção vocal de crianças e jovens, necessárias à execução da música do século XX, também, embasam seu trabalho que se desenrola em quatro capítulos, sendo os três primeiros pertencentes à primeira parte, intitulada Os fundamentos e a segunda, capítulo único, intitulada A experiência. No primeiro capítulo, O Coro infanto-juvenil e seu repertório, Vertamati discorre sobre o trabalho realizado, por alguns corais da Grande São Paulo, que ilustra esse distanciamento do universo musical contemporâneo e a priorização do repertório tonal. Para tal, ela realiza uma observação informal do repertório realizado em 2004 por diferentes grupos corais. Nesta pesquisa, os dados foram coletados nos programas de concerto destes corais e em questionários distribuídos aos regentes pertencentes à Associação de Regentes de Corais Infantis (ARCI). Os dados levantados, em sua pesquisa, reafirmaram o pressuposto da autora de que a maioria dos coros infanto-juvenis de São Paulo possuem uma prática unilateral da linguagem musical, comprometendo o processo educacional, que deveria promover a multiplicidade de experiências musicais para o corista. Os dados revelaram que, dentre as 209 músicas identificadas, 85,92% delas eram tonais, estando quase 74% delas em português brasileiro e 81% acompanhadas por instrumentos, como o piano e o violão. Apoiando-se em DOREEN RAO (1987) e em Kodaly, ela justifica o prejuízo pedagógico que esse perfil de repertório promove. Primeiramente, a prática do canto em diversas línguas favorece o desenvolvimento de outros músculos do aparelho fonador, além dos usualmente empregados na fala, e amplia a percepção auditiva, habituando-a à outras sonoridades. Em segundo lugar, a utilização do piano, instrumento temperado, no auxílio do canto entraria

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em conflito com o não temperamento vocal – argumento defendido por Kodaly. Essa unilateralidade da linguagem musical foi principalmente observada nos gêneros musicais apresentados no repertório: 67,41% das músicas são consideradas populares, 32,33% étnicas e 9,26% eruditas. Quase nenhuma pertence ao repertório contemporâneo. No segundo capítulo, chamado de Transformações: a procura de novas experiências, a autora identifica as principais mudanças ocorridas na linguagem musical, desde a metade do século XIX até 2008, que serviram de subsídio para o trabalho prático da pesquisa. Aqui, ela demonstra o potencial da música contemporânea em ampliar as vivências musicais das crianças, por meio de elementos que não comparecem ou são pouco explorados na prática coral, como as modulações em intervalos de 3as para a mediante, a polirritmia, a polimetria, a aperiodicidade e a assimetria das construções rítmicas, a justaposição melódica, em detrimento da variação, o emprego da harmonia não-funcional, o uso de diferentes organizações escalares, como as escalas octatônica e a dodecafônica, a utilização de clusters, notas pedais, ostinati, bitonalidade, o emprego seriado do ritmo, da intensidade e da duração, a combinação de voz de peito e cabeça, a não utilização do vibrato, característico do bel canto, a inserção de efeitos vocais como risos, assobios, sussurros, suspiros, choros, gritos, estalos de língua, trilos, glissandi e respiração audível. Em seguida, Vertamatti retoma os pensamentos de compositores-educadores que defenderam a aproximação da criança à linguagem contemporânea e conclui o capítulo lembrando ao leitor da necessidade de conviver com as mudanças que ocorrem com o tempo – postura que as obras do século XX exigem de seus ouvintes. Em O Grupo CantorIA e o surgimento do repertório, terceiro capítulo, que encerra a primeira parte, a autora apresenta os ideais pedagógicos e os fundamentos de Fonterrada, na criação do Grupo CantorIA, bem como o trabalho que ali é realizado. Baseada na concepção da música como linguagem já enunciada, Vertamatti propõe uma educação musical, com ênfase na voz, que “priorize a prática e a percepção como meio de transformação do sujeito praticante de música.” (VERTAMATTI, 2008, p.63), incluindo no trabalho com o coral infanto-juvenil experiências musicais diversificadas. Neste contexto, o grupo interpretou obras como The Encanteded Forest, de Murray Schafer, Quelques Étoiles Claires, de David Bedford, Plumbas Spes, de Jorge Antunes, Realidarte e Sinestesia, de Alexandre Renche, The Chichester´s Psalm, de Leonard Bernstein, Te Deum Puerorum Brasiliae, de Edino Krieger, O Negrinho do Pastoreio, de Eunice Catunda e o musical Edu e a Orquestra Mágica, de Marisa Fonterrada e Heliel Lucarelli. Mas esse rico repertório não se encerra aqui. Há mais uma lista razoavelmente grande de músicas que compõem o repertório do grupo e que será apresentada no quarto capítulo do livro.

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O terceiro capítulo estuda a inserção da música contemporânea no repertório do Grupo CantorIA, assim como as estratégias pedagógicas utilizadas e a reação do grupo ao trabalho realizado. Este é um capítulo historicamente mais denso, pois a autora relata minuciosamente o processo de construção do repertório, que valorizou a diversidade de linguagens musicais, e que se deu pela interação do projeto com diferentes compositores e regentes, além de destacar a importância, para essa construção, de um estágio realizado por ela, na França, junto à educadora musical e cantora Brigitte Rose, da École Nationale de Musique Du Pays de Montbéliard. Ao ler o livro, percebe-se que o trabalho de aproximação das crianças com o universo sonoro contemporâneo aconteceu por um processo didático: propuseram-se criar sonoridades vocais que refletisse determinado caráter expressivo, imaginar, desenhar e descrever verbalmente paisagens sonoras e escolher os materiais sonoros que representassem cada elemento contido nelas. Além do ensaio do repertório ter início por obras tonais e, deste universo, ir-se distanciando gradativamente, foram aplicados exercícios propostos por Guy Reibel, no livro Jeux Musicaux (1984). O quarto capítulo, intitulado “Limpeza de ouvidos”, é um capítulo denso e longo, no qual ela descreve todo o rico processo pedagógico demandado por cada música ensinada, cada exercício proposto e a reação do grupo a cada novidade musical surgida. Aqui, Vertamatti informa ao leitor os novos conceitos musicais apreendidos, as habilidades e os conteúdos musicais trabalhados com os coristas, por meio de um repertório nada comum entre os corais infanto-juvenis brasileiros. No repertório apresentado no livro, constam as seguintes obras: Volt nekën ëgy Kecském, de Zóltan Kódaly, O cachorro vira-lata, de Marisa Fonterrada, Gomb, Gomb, Die Bommel, Pom-pom, Frauenkklatsch, “Pletykázó asszonyok e Tittle-talle, de Gyorgy Ligeti, O navio pirata, de Lindembergue Cardoso, Seis Oraciones op.78b – Oracion I, de Mario Alfaro Güell, Snowforms e Gamelan, de Murray Schafer, Eu e O bicho alfabeto, de Jean-Yves Bosseur, The wonderful widow of the eighteen springs, de John Cage, Ballo, de Luciano Berio, Quand il souffle de l´ouest eles se réfugient à l´est les feuilles tombeés e He! C´est l alune qui a chanté coucou?, de Victor Flusser, Süβer Tod, de Klaus Stahner e Johannes R. Köhler, Wenn der schwer Gedrückte Klagt, de Arnold Schoenberg, Der Glühende”-op.2 nº2, de Alban Berg, Pequeno nascer, grande morrer, de Álvaro Borges, Little Grey Eyes, de Arthur Rinaldi e Der Nordwind, de Arne Mellnäs. Ufa! Nada mau para um grupo que está apenas dando início à uma vida de experiências musicais! Dentro deste imenso universo musical citado, o grupo experimentou diferentes maneiras de se usar a voz, como a do Sprechgesang, do sussurro, da fala, da fala entoada, do grito, da improvisação vocal e de outros diferentes efeitos vocais. Em relação à leitura, foram trabalhados o ritmo livre, a complexidade rítmica, a combinação de notação gráfica e aproximada, a fragmentação melódica e as mudanças frequentes de compasso. Cantaram cromatismos,

ANDRADE, D. Resenha do livro Ampliando o repertório do coro... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.345-349.

 

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clusters, glissandi, textura granulada, sonoridade pentatônica, modal, coloração tonal e não tonal e harmonia de quartas. As imagens, trazidas por este capítulo, de desenhos feitos pelos alunos durante as intervenções pedagógicas, ilustram a real apreensão do universo sonoro trabalhado, expressa por meio da grafia livre. Mas criança pode gostar de música contemporânea? Esse não é um universo tão distante do que é veiculado no dia-a-dia de todos nós? A dificuldade em lidar com a linguagem é delas ou nossa (regentes)? Os depoimentos, que encerram este agradável livro, refletem o alcance deste trabalho na vida de alunos que permaneceram no grupo por seis, oito anos e que até se tornaram cantores profissionais, após o egresso. A experiência pedagógico-musical de Vertamatti revelada no livro junto ao CantorIA é, sem dúvida, muito rica, inspiradora e singular. Como resultado deste trabalho, o grupo foi coroado com apresentações em Amsterdã, em The Bonn International Chorus in Concert e, dentre outros lugares, em workshop na França, sob a regência de Brigitte Rose. É isto! Uma obra fácil de ser lida, por possuir uma linguagem clara e didática, e agradável! Constitui-se, sem dúvida, numa proposta ousada, ainda mais em relação à realidade coral de determinadas regiões do Brasil, onde essa cultura ainda é incipiente. Mas seu conteúdo nos provoca, enquanto regentes e educadores musicais. Impossível ler a obra sem se sentir, no mínimo, aquém do tempo! O livro Ampliando o repertório do coro infanto-juvenil: Um estudo de repertório inserido em uma nova estética pode ser adquirido no endereço www.editoraunesp.com.br. Débora Andrade Débora Andrade possui Mestrado em Música, Especialização em Educação Musical e Bacharelado em Regência pela UFMG. Foi regente dos Corais Infantis do Centro de Musicalização da UFMG (1999-2005), Projeto Cariúnas (2001-2008), Minas Tênis Clube (2005-2009) e Infanto-juvenil da Escola Theodor Herzl (2011 – 2013). Foi professora do Curso de Licenciatura em Música do Centro Universitário Metodista Izabela (2009–2013) e, atualmente, é professora no Departamento de Música da UFSJ (Universidade Federal de São João del Rei), onde coordena o Projeto de Extensão Benke, que visa a expansão dos corais infanto-juvenis na Região das Vertentes.

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SILVA, V. O.; FERREIRA L. P. Resenha... Alemão para Cantores. Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.350-353.

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DOI: 10.1590/permusi2015a3119

Resenha sobre o livro Alemão para Cantores Verônica Oliveira da Silva (PUC-SP, São Paulo) [email protected]

Léslie Piccolotto Ferreira (PUC-SP, São Paulo) [email protected]

Palavras-chave: canto em alemão; dicção e articulação da voz na música.

Review of the book Alemão para cantores [German for singers] Keywords: singing in German; voice diction and articulation in music. TENGARRINHA, Barbara Schilling. Alemão para cantores. Books on Demand GmbH: Norderstedt, 2009. US$ 21,90.

Alemão para cantores é um livro didático de Barbara Schilling Tengarrinha, lançado pela Books on Demand Gmbd em 2009. A autora é docente no Conservatório Nacional de Lisboa, desde 1986, da disciplina de Alemão para cantores Cantores e elaborou o programa de línguas para o curso de canto. A opção pela resenha desse livro foi motivada pela grande importância do repertório germânico para a música ocidental, especialmente a música vocal, como a canção do período romântico (o Lied), a ópera, a cantata, o oratório e a música vocal do século XX, que exige do cantor o conhecimento do idioma alemão. Esse é, portanto, um livro indicado para cantores líricos que desejam não apenas ter o conhecimento da dicção alemã por meio de manuais, que na maioria das vezes possuem apenas símbolos e regras fonéticas, mas sim compreender outros aspectos básicos, como a gramática do idioma alemão, para melhorar sua compreensão. O livro é composto por 51 capítulos que abordam a pronúncia do alemão padrão, a pronúncia para palcos, as estruturas linguísticas do idioma alemão – levando em conta a frequência de certas estruturas no repertório e a forma poética –, o vocabulário, a gramática, a terminologia musical, a interpretação de textos e estratégias de leitura. Elsa Saque, responsável pelo prefácio do livro, observou que “... o objetivo primeiro de um músico é comunicar. Comunicar a ideia, a estrutura e a mensagem poética expressa pelo compositor em cada obra que escreve”. Na música instrumental, a principal fonte de informação que o executante possui é a partitura. Esse documento, em geral, traz informações como as notas a serem tocadas e suas durações relativas, indicações subjetivas de

SILVA, V. O.; FERREIRA L. P. Resenha... Alemão para Cantores. Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.350-353.

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velocidade e intensidade de execução, e o nome do compositor. A partir dessas informações, do conhecimento prévio do estilo musical da época e das gravações de outros intérpretes, o músico busca comunicar ao público as intenções do compositor. Já a música vocal traz, além de todas essas informações, um texto ou poema em torno da qual toda a obra foi construída. Esse texto passa a ser, então, a informação mais importante a ser comunicada ao ouvinte ou espectador. Para que essa comunicação seja efetiva, uma boa dicção é essencial, pois cometer erros de pronúncia compromete a obra executada dificultando o entendimento ou mesmo mudando o sentido de uma frase ou até de toda a peça. O material apresentado no livro, desenvolvido para pessoas que possuem o português como língua materna, procura apresentar as semelhanças e diferenças entre os dois idiomas. A língua alemã falada é extremamente rica em variações, nomeadas como dialetos. Neste trabalho, a autora se baseou na pronúncia do idioma padrão Hoch-Deutch (alto-alemão), considerado a forma culta do idioma alemão, utilizado em escolas, empresas, nas mídias impressa e televisionada. No que diz respeito ao canto, é utilizada a denominada “pronúncia de palco”. Essa pronúncia de palco pode ser notada quando se vai ao teatro apreciar um(a) cantor(a) e se percebe que, na execução, o artista articula as palavras de uma forma mais exagerada que na fala utilizada no dia-a-dia. Isso é necessário porque, frequentemente, o cantor lírico canta sem amplificação e em um grande espaço físico. Ainda assim, ele precisa ser entendido por todos, independentemente do apreciador estar sentado na primeira ou na última fileira do teatro. Um exemplo dessa forma de pronúncia é o /r/ alveolar - chamado pelos cantores de /r/ rolado ou italiano-, que se assemelha ao som do /r/ quando a língua vibra. Tengarrinha aborda o tema por meio de uma metodologia diferente dos manuais mais comuns de dicção para cantores. Ela ensina o idioma alemão utilizando textos, poemas, enredos de óperas alemãs. Dessa forma, trabalha sua compreensão do ponto de vista gramatical, não apenas utilizando regras da fonética alemã e questões articulatórias. Entretanto, para cantores líricos que possuem o português como sua primeira língua, aprender um idioma como o alemão, do ponto de vista gramatical, não é uma tarefa simples. Levando em consideração que as estruturas desses dois idiomas são diferentes, e que cantores líricos brasileiros precisam conhecer no mínimo sete línguas (português, inglês, alemão, francês, italiano, latim e espanhol) para poder desenvolver seu repertório, aprender todos esses idiomas com fluência em pouco tempo se torna uma tarefa difícil. Uma ferramenta indispensável para facilitar o aprendizado da pronúncia de diversas línguas é o International Phonetic Alphabet (IPA), que procura organizar e padronizar os numerosos sons dos idiomas falados de todo o

SILVA, V. O.; FERREIRA L. P. Resenha... Alemão para Cantores. Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.350-353.

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mundo, fornecendo um símbolo para cada som. É claro que o IPA não substitui o estudo aprofundado de uma determinada língua, mas pode ser usado como um meio eficiente para o desenvolvimento de uma boa dicção. O conhecimento do IPA pode evitar o aprendizado incorreto decorrente da simples repetição da fala de outra pessoa, que acarreta uma série de problemas pedagógicos quando não acompanhada de uma conscientização dos mecanismos articulatórios. Mas, no caso do idioma alemão, como de qualquer outro, o uso desse instrumento e o conhecimento de regras específicas estão longe de ser suficientes. Para compreender a dicção alemã, é necessário conhecer dados básicos da gramática, como artigos, tempos verbais, sufixos e prefixos. Um bom exemplo é a regra que diz: “Uma vogal seguida de duas ou mais consoantes, em geral, tem pronúncia aberta”. Dessa forma, a palavra Herr (senhor) será pronunciada [hεr], com /e/ aberto, o que está correto. Mas essa regra pode levar a equívocos, como pronunciar, por exemplo, a palavra Loblied (hino) como [‘lכpli:t], com pronúncia aberta da letra /o/. otnatnrtnE, um aluno que apresente um conhecimento básico da língua perceberia que essa palavra é uma junção de outras duas: Lob+Lied=Loblied. Ou seja, são duas consoantes juntas, mas em palavras diferentes. Por esse motivo, a vogal /o/ será pronunciada com som fechado [lo:pli:t]. A vogal /o/, nesse caso, terá o som semelhante ao /o/ da palavra hoje, do idioma português brasileiro. Ao propor exercícios que remetem à gramática do idioma alemão, ao sugerir estratégias de leitura de textos, ao utilizar o IPA como ferramenta de apoio e expor regras específicas de pronúncia, Tengarrinha cerca o tema de sua obra de forma completa, fornecendo diversos subsídios para que o cantor falante do português execute peças alemãs com a maior correção possível, tanto no que diz respeito à pronúncia do texto como quanto à interpretação musical. Em suas próprias palavras, o autor na página 17 comenta:

É extremamente importante não apenas estudar os textos musicais enquanto textos de língua, mas também ouvi-los enquanto composições musicais, tematizando a relação entre música e texto, tal como o papel dos intérpretes.

Cantar corretamente em alemão costuma ser um problema significativo para os falantes do português. Enquanto um curso completo de alemão demanda vários anos de estudo e é focado na escrita e na fala, os manuais de dicção são totalmente voltados para a pronúncia no canto, mas não costumam trazer informações sobre a estrutura da língua. Em Alemão para cantores, Tengarrinha buscou, com sucesso, o meio termo entre as duas opções anteriores. Um texto que pode ser estudado em um tempo relativamente curto, que é voltado para a dicção no canto e que traz as informações necessárias para compreender melhor o funcionamento do idioma e reduzir a necessidade

SILVA, V. O.; FERREIRA L. P. Resenha... Alemão para Cantores. Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.350-353.

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de decorar tantas regras e exceções, ajudando o cantor a interpretar obras em alemão com mais segurança e correção. Verônica Oliveira da Silva possui Bacharelado em Canto Lírico pela Faculdade de Artes Alcântara Machado (FiamFAAM-FMU). Foi coralista do Coral Jovem do Estado de São Paulo regido por Naomi Munakata de 2007 a 2012. Mestre em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e integrou o coro de ópera do Theatro São Pedro de 2011 a 2013. Leslie Piccolotto Ferreira possui graduação em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1971), mestrado em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1981) e doutorado em Distúrbios da Comunicação Humana (Fonoaudiologia) pela Universidade Federal de São Paulo (1990). Atualmente, é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência na área de Fonoaudiologia, atuando principalmente nos seguintes temas: voz, docente, fonoaudiologia, atuação fonoaudiológica e voz profissional. Membro da Comissão Editorial dos periódicos Distúrbios da Comunicação, Jornal da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, CEFAC, Saúde em Revista e Revista da SBFa.