PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Resistência Informal através da Oficialidade: Defloramento nos processos judiciais durante a prefeitura de Antônio Prado em São Paulo (1899 – 1911)

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DESÃO PAULO – PUC-SP

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Resistência Informal através da Oficialidade: Defloramento

nos processos judiciais durante a prefeitura de Antônio

Prado em São Paulo (1899 – 1911)

Celso Demétrio Justo da Silva FilhoOrientadora: Carla Longhi

SÃO PAULO2013

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DESÃO PAULO – PUC-SP

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAISDEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Resistência Informal através da Oficialidade: Defloramento

nos processos judiciais durante a prefeitura de Antônio

Prado em São Paulo (1899 – 1911)

Celso Demétrio Justo da Silva Filho

Trabalho de Conclusão do Curso, apresentado ao Departamentode História da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como requisito final paraobtenção do Título de Bacharel em História.

Orientadora: Carla Longhi

SÃO PAULO2013

Resumo

O trabalho de pesquisa tem como mote a análise de processos

judiciais referentes ao artigo 267 do Código Penal de 1890,

que caracteriza como crime punível com prisão de um a

quatro anos o ‘’defloramento’’ de mulheres com idade abaixo

da maioridade penal de 21 anos. O período escolhido

compreende-se entre 1899-1911, época de exercício do

mandato do primeiro prefeito da cidade de São Paulo,

Antônio da Silva Prado. O intuito é analisar o discurso

produzido a partir das querelas entre réu e vítima,

mediadas por juízes, testemunhase promotores.

Apresentação:

Este trabalho pretende compreender a relação entre

moralidade familiar e leis no início do século XX entre os

anos de 1899 e 1911 na cidade de São Paulo que compõe o

mandato de Antônio da Silva Prado, partindo-se dos

processos referentes ao artigo 267 de defloramento do

Código Penal de 1890 da 1° Vara Criminal de São Paulo.

Os últimos anos do século XIX e os primeiros anos do século

XX trouxeram para o Brasil uma nova realidade econômica. A

enorme profusão de imigrantes vindos de todas as partes do

mundo, principalmente do continente europeu, modificou a

realidade de pequenos centros urbanos, como foi o caso da

cidade de São Paulo. Essa situação foi facilitada pela

realidade social específica que viviam os diferentes países

neste momento.

De um lado havia o crescimento do setor monopolista

agrícola, que impossibilitava a continuidade do negócio dos

pequenos produtores, que agora não tinham mais a capacidade

de concorrer com os baixos preços promovidos pelos

latifundiários (Alvim, 1983). Do outro, a realidade

brasileira de expansão do ciclo cafeeiro e do setor

agrícola em geral em fins do século XIX criava uma demanda

que dificilmente poderia ser alcançada sem a chegada de

estrangeiros. Entre 1890 e 1920 a cidade de São Paulo

passou de 64.934 habitantes para 579.033, um crescimento

aproximado de 784%1.

Além disso, a demanda de mão-de-obra assalariada de ex-

escravos não era desvalorizada, além do fato de que o

sujeito nacional, pobre era de forma geral visto como

despreparado. Mesmo quando da época em que crescia o

liberalismo empresarial e surgiam os primeiros resquícios

de indústria na cidade de São Paulo, até os trabalhos mais

simples eram vistos como complexos demais para os nacionais

(Santos, 1998).1http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/tabelas/pop_brasil.php

O crescimento populacional acelerado, feito a partir de uma

demanda que não levava em conta um desenvolvimento urbano

saudável, provocou um crescimento altamente problemático

que passou São Paulo de uma cidade com aspectos de vila

colonial para inflado centro urbano e comercial.

A importância adquirida pela cidade neste período se pode

ser entendida através de dois fatores muito importantes. O

primeiro deles se dá pela condição geográfica da cidade no

período de desenvolvimento do ciclo cafeeiro. A cidade, com

a construção da ferrovia ‘’Inglesa’’ em 1867, se tornou o

nó que ligava diversas linhas de trem que separavam a

região portuária de Santos do sertão agricultor (Prado,

1975). Outro fator importante para a receptividade em

relação ao aparecimento de novas ideias foi a necessidade

de se destacar em relação à cidade do Rio de Janeiro. São

Paulo tinha uma oferta de mão-de-obra cada vez maior vinda

das rebarbas do setor agrícola. Essa oferta aliada a

centralidade geográfica da cidade dentro do ciclo econômico

exigiu dos principais atores sociais uma abertura a

novidades em busca de um destaque que conseguisse destacar

a cidade em relação a segurança já trazida pelo Rio de

Janeiro, que já era local consagrado(autor, ano).

As especificidades do crescimento de São Paulo levantaram

características muito particulares no desenvolvimento das

classes alta e baixa. No que se refere a classe mais baixa,

composta por ex-escravos, população nativa nacional e

imigrantes a falta de uma ordenação do crescimento agravou

a falta de qualidade de vida. Questões de suma importância

para o meio urbano como saneamento básico, transporte

público e eletricidade ainda não faziam parte da vida da

maioria da população. No que diz respeito ao saneamento

básico, o que inclui sistema de esgoto, o estado não

conseguiu acompanhar o ritmo de crescimento da cidade e o

alcance geográfico cada vez maior que esta tomava.

Tanto o sistema elétrico quanto o sistema de bondes na

cidade de São Paulo eram de exploração exclusiva da The São

Paulo Tramway, Light and Power Company, mais conhecida como

Light. Antes disso a exploração do sistema de transporte

público era de monopólio da empresa nacional Companhia

Viação Paulista, que enfrentou graves problemas de

implantação e acabou, depois de dura batalha, perdendo o

direito de explorar o sistema em 1900. Nesta conjuntura de

busca pela monopolização do sistema de serviços públicos a

Light adquiriu também a Companhia Água e Luz do Estado de

São Paulo.

O monopólio dos serviços públicos alcançado pela Light e o

consequente acelerado crescimento do capital da empresa não

garantiram uma distribuição de qualidade de nenhum dos

serviços. O sistema de bondes não alcançava regiões mais

distantes, que tinham dificuldade, inclusive, de ser

providas de pavimentação nas ruas. A urbanização ainda

muito incipiente se chocava com o ritmo de ocupação.

O fim da escravidão e a chegada dos imigrantes, a passagem

de um sistema puramente agrícola para o surgimento de um

empresariado atuante, novas lógicas médico-legais e

ideológicas trazidas tanto por liberais quanto por

positivistas. A cidade de São Paulo em sua primeira década

passava por um amplo processo de transformação, tanto no

campo material quanto no campo das ideias.

No contexto nacional, perceber que o Brasil havia se

tornado um grande canteiro de obras, tanto material quanto

ideologicamente, era tarefa simples. O positivismo trazia o

cientificismo para o centro de sua linha de pensamento.

Este viés de pensamento vindo da Europa, através dos

trabalhos de Auguste Comte, propunha uma gama de novas

teorias científicas que foram desenvolvidas por médicos e

cientistas europeus, como o italiano CésareLombroso, e

adaptadas para a realidade brasileira.

Dentre as linhas mestras da ideologia que foram utilizadas

como política de estado está a noção de que a sociedade tem

um funcionamento regido por leis científicas e que deve

funcionar como um corpo, em que cada órgão tem sua função

específica. Dentro dessa visão, o autoritarismo é uma

consequência já que não se admite contestação social e

mobilidade de classes já que cada componente do estado tem

uma função e lugar próprios. A valorização da família e da

configuração tradicional de família seguia a mesma lógica

de valorização da estrutura em detrimento do indivíduo.

No lado da perspectiva liberal, a valorização era sempre

focada nos direitos do indivíduo e baseava-se em noções

econômicas surgidas no seio do desenvolvimento industrial

europeu. A perspectiva de Antonio da Silva Prado era de

arejar a cidade. Para tanto propôs todo tipo de projeto que

evitasse o ajuntamento urbano. Ajardinamentos, praças e

arborização. Ampliar o espaço urbano era medida

imprescindível para se evitar a proliferação de doenças.

A presença da autoridade pública no seio familiar era algo

palpável, e pode ser comprovado pelas falas de Antonio da

Silva Prado em seu relatório anual de 1899:

“Dividi a cidade em trinta distritos, nomeando para cada circunscrição

comissões de três membros, cujos encargos principais consistiam em visitas

domiciliares, conselhos aos moradores e proprietários das casas, e

comunicações de quaisquer ocorrências à autoridade competente”

O artigo número 267 do Código Penal de 1890 não fui uma

novidade em sua intenção mas se desdobrou de forma complexa

pela simplicidade de seu teor descritivo do crime. O

primeiro código criminal que vigorou na América Portuguesa

foram as Ordenações Filipinas de 1603. O código de 1603

trazia para a questão do defloramento a punição de desposá-

la ou dar-lhe um dote, caso não tivesse condições de

cumprir dessa forma seria mandado para a África. Se fosse

plebeu seria chicoteado publicamente antes de ser enviado.

O código penal de 1830 ficou conhecido por seu caráter

renovador, calcado em uma ideologia liberal vinda

diretamente da Europa foi visto como uma dura conquista,

ainda mais vinda de um país como Portugal, que teve grande

resistência com a entrada do pensamento iluminista. O

código trazia a questão da honra, tal qual havia nas

Ordenações Filipinas, a diferença é que agora a honra

perdia o caráter religioso e estava ligada a moralidade do

indivíduo. A lei defenderia a pessoa de acordo com sua

patente na sociedade, começando pelo monarca e chegando ao

ser comum.

O código possuía uma sessão específica para o que eram

chamados de “crimes contra a segurança da honra – secção 1

– estupro’’. Percebe-se então a importância que era dada a

honra pessoal. O artigo 219 referente ao defloramento

dizia:

Art. 219. Deflorar mulher virgem, menor de dezaseteannos.

Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a deflorada, por um

a tresannos, e de dotar a esta.

A composição de punições era, então, clara e abrangente,

apesar de não estar descrito o modo como se definiria uma

mulher deflorada. O código penal de 1890 foi muito

criticado desde sua formulação por ter sido considerado que

muitos de seus artigos foram mal elaborados e deixaram

pouco explicitas suas descrições de muitos dos crimes.

O código surgiu em um momento em que o setor jurídico

estava fortemente banhado pela escola positivista e pelos

preceitos de que a entrada da medicina no sistema legal era

tema de última importância. Havia um embate entre a visão

do antigo código com o código de 1890, este segundo estava

baseado não nos conceitos de livre-arbítrio e

individualidade característicos do pensamento liberal, mas

em um projeto de reforma social que se baseava na

predisposição ao crime ligada a um caráter biológico.

A intenção da escola positivista era realizar uma reforma

na nação brasileira, e para isso o diagnóstico científico

que conseguisse avaliar e ordenar o elemento nacional era

muito importante.

CesareLombroso (1835 – 1909), Enrico Ferri (1856- 1929) e

Alexandre Lacassagne (1843 – 1924) eram alguns dos

principais nomes que influenciaram a composição do código

penal de 1890 (Sueann, 2000). Juristas como Viveiros de

Castro e Nina Rodrigues foram alguns dos brasileiros

responsáveis por uma forte campanha de reforma da nação

baseada no sistema médico-legal.

O novo código trazia como enfoque central desta vez o crime

contra a honra como sendo um aspecto de ofensa da família e

não do indivíduo. Desta vez havia a necessidade de se

explicitar o quão prejudicial era o crime para o

desenvolvimento de um sistema familiar saudável. As

dificuldades na avaliação do crime de defloramento estão

muito mais presentes então nesta versão do código:

Art.

267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou

fraude:

 

Pena - de prisão cellular por um a quatro annos.

Novamente não havia a definição do que definiria

especificamente o que é o defloramento e a pena perdeu suas

variáveis anteriores, estando restrita teoricamente a

apenas a punição com prisão.

O modo vago como foi redigido o artigo abriu precedente

para fortes debates em relação às condutas a serem tomadas

para a avaliação do defloramento (Sueann, 2000). Viveiros

de Castro, um dos juristas que mais se apegou ao assunto,

chegou a escrever um livro em grande parte dedicado ao

assunto, intitulado “Os delitos contra a honra da mulher: Adultério –

Defloramento – Estupro. A sedução no direito civil.”.

A punição dos crimes se tornou mais branda durante o tempo,

apesar disso a idade da mulher protegida pela lei de

defloramento passou de 17 para até 21 anos de idade no

Código Penal de 1890. A abertura para diversos tipos de

interpretações jurídicas dos casos fez com que houvesse uma

flutuação no caráter dos julgamentos dependendo do período

e do local.

Uma edição da Revista de Polícia de São Paulo de 1908

(edição não identificada) traz um artigo sobre defloramento

e o vertiginoso aumento de casos referentes ao crime. O

artigo sugere que a própria população se utiliza de

diversas estratégias para usar a lei de forma a facilitar a

própria vida, e não como busca de uma reparação de honra

simplesmente. A revista cita o caso de um italiano que

chegou ao Brasil e queria casar-se com uma mulher. Sabendo

que o casamento terá as despesas pagas pelo estado caso o

marido seja processado por defloramento, aceitar casar e

apresentar o atestado de miserabilidade ele combina com a

família da mulher para que possa deflora-la, ser processado

e assim conseguir casar-se de graça. O escritor não

identificado da reportagem continua dizendo que “A’s vezes

nestes casos de queixas, que na policia apparecem, há pura

chantage[...] Essa casta de gente quando vem ao delegado é

impellida apenas pelo interesse pecuniário, e pouco se

importando que o indiciado seja punido, insinuam até que se

calarão, si a auctoridade fazer com que o culpado indemnize

com dinheiro o damno.’’

Essas falas do autor da reportagem podem até não ser

acuradas, mas aliadas aos estudos de Martha Abreu Esteves e

Cláudia Sueann a respeito da questão no Rio de Janeiro,

pode-se perceber que a dubiedade da lei abria espaço para

diversos tipos de estratégias que poderiam ou não estar

ligadas com uma tentativa de manutenção da moralidade

familiar prevista pelos positivistas.

O momento de reforma estrutural e ideológica da cidade se

encontra na questão da lei do defloramento campo fértil

para reprodutibilidade de diferentes versões dos ideais

liberais e positivistas graças a característica vaga da

lei. Além disso, a mudança no campo estrutural da cidade,

com novos sujeitos surgindo a cada momento e interagindo em

um complexo mapa de deslocamentos internos faz com que se

torne campo muito rico de análise.

Justificativa:

O primeiro decênio do século XX na cidade de São Paulo foi

momento de muito progresso para a burguesia e amplas

reformas estruturais na cidade, mas o que se via nas

classes mais baixas era o aprofundamento das desigualdades

sociais e o crescimento da pobreza. A chegada de um

contingente populacional muito grande e sua consequente

expulsão para as regiões periféricas da cidade tornou a

vida na cidade muito difícil. A quantidade de imigrantes

vindos do setor agrícola para a cidade excedia a demanda

dos empresários paulistas, fazendo com que a disputa por

emprego fosse muito intensa. Quando conseguiam empregos as

fabricas submetiam os funcionários a atividades apenas

sazonais em muitos dos casos, deixando a renda das famílias

comprometida pela irregularidade. (Izilda,2002)

Muitas mulheres tinham então que contribuir para a renda do

lar, fosse com empregos informais como a venda ambulantes,

empregos formais sazonais como costura de sacas de juta ou

empregos formais com empregadas domésticas. De qualquer

forma a mulher a acabava exercendo um papel fundamental na

família. Além de administrar as finanças da casa e cuidar

dos filhos tinha que trabalhar para complementar ou mesmo

compor totalmente a renda da casa.

O estudo dos casos de defloramento tem importância

fundamental no entendimento da relação entre a moralidade

produzida pela burguesia brasileira e os costumes da

população mais pobre, que geralmente eram aqueles que

requeriam a processos de defloramento. Os mais ricos

resolviam questões ligadas à sexualidade no âmbito

familiar, privado.

A análise da questão feita por historiadores de outras

partes do país, como Martha Abreu Esteves e Cláudia Sueann

no Rio de Janeiro e João Valério Scremin em Piracicaba

demonstra que muitas vezes a lei de defloramento era

utilizada como meio de se alcançar conquistas que estavam

além da honra familiar.

Brechas da lei possibilitavam o uso do artigo 267 do Código

Penal de 1890 como meio de se resolver querelas e alcançar

certos objetivos diferentes do que estava previsto

legalmente.

A pretensão é contribuir para a formação de um quadro mais

amplo no entendimento do discurso moral familiar do início

do século XX no cotidiano das classes mais pobres. As

argumentações feitas nos processos judiciais em que se

tentava comprovar a falta de validez convergiam no sentido

de culpar a mulher pela ofensa sofrida por considerar-se

que a mulher não possuía a pureza e moralidade esperadas.

Essa argumentação era construída a partir de uma análise do

cotidiano da mulher, tentando demonstrar o tipo de

liberdade possuída para sair à rua em certos horários e o

modo como se comportava diante de outras pessoas.

Esse agregado de informações verificado preliminarmente na

documentação encontrada aliado a uma produção

historiográfica forte em relação a questão em outras partes

do Brasil aciona um interesse para o entendimento da

complexidade da temática. A questão da culpabilização da

mulher por ofensas sofridas é uma temática muito presente

na atualidade em que casos de estupro são amenizados,

transformado a mulher em agente provocador do

acontecimento, seja por seu modo de vestir, pelo horário

que frequenta as ruas ou por seu comportamento diário.

Levando em conta a concepção de Marc Bloch de que os temas

do presente condicionam e delimitam o possível retorno ao

passado, a escolha do tema cumpre seu papel.

Objetivos

Geral:

- contribuir para o entendimento dos processos de

resistência cotidiana da mulher.

- contribuir para a compreensão da análise mentalidades

através dos processos judiciais

Específico:

- Compreender a relação entre discurso moral e prática no

cotidiano popular

- Refletir sobre o conceito de honra familiar e moralidade

para as diferentes classes sociais e para os diferentes

agentes sociais do início do século XX no Brasil.

- Analisar a importância da questão da perda da virgindade

para as famílias em geral, e de modo específico para a

vítima do defloramento no período.

Fontes

As fontes a serem utilizadas são cerca de 60 processos

encontrados no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo

referentes ao período que vai de 1900 à 1911 da 1° Vara

Criminal da época. Os processos encontrados foram todos

fotografados para análise.

O trabalho com a fonte em questão se torna desafiador em

sua praticidade, isso por que os processos do Arquivo do

Tribunal de Justiça de São Paulo não estão catalogados por

tema, apenas por data, exigindo que seja feita uma busca em

todo o arquivo de processos do recorte histórico desejado.

Apesar disso, ao longo do trabalho no arquivo foi possível

perceber uma incidência do número de processos de

defloramento que gira em torno de 8% do total de processos.

A utilização de processos como fonte documental para

entender a questão do defloramento fornece um abrangente

entendimento das estratégias de alcance de sucesso na

exigência de uma reparação pelo defloramento. Ficam claras,

em alguns casos, as intenções de mulheres que foram

defloradas.

Podemos pegar como exemplo o processo da 1ª Vara Criminal

de São Paulo que apresenta um processo aberto por

EncarnaciónGonsales, imigrante espanhola e mãe de

CarménGonsales de 16 anos que acusava José Moledo de

Almeida, de 21 anos, de ter deflorado sua filha usando

métodos de sedução e engano.

O processo em questão traz logo de cara uma confirmação

importante, a sua existência dada pura e simplesmente em

razão de uma promessa de casamento não realizada:

(...) que este moço há trezmezes, pediu sua filha em casamento, sendo acceito

desde esta ocasião o referido moço, comprando uma cama de casal, colocou-a

no quarto de sua filha, e começou deste dia em diante, a dormir com a mesma

filha, com o consentimento da declarante que accedeu a isto devido a ter, o

referido moço, comprometido a se casar com a alludida sua filha dentro do

prazo de um mez(...).

No Termo de Declaração do processo vem colocada a

resistência da família em liberar a filha para ser

deflorada com por José:

“(...) promettia de casar-se com a declarante, mas com a condição de ella ter

relações sexuais com elle; que a princípio não quiz, mas como todos os dias o

seu namorado lhe fazia novos juramentos de casamento, accreditou que ele

não a enganava e consentiu(...).”

A documentação ainda sinaliza que o casa já namorava havia1

ano e 3 meses, fato confirmado tanto por CarménGonsales

quanto por José Moledo em depoimento. Apesar desse extenso

tempo de namoro fica registrado o defloramento como um

selamento contratual de casamento. Para que possa

conquistar um acordo em que obrigue José a se casar com ela

ao invés de ser preso em regime fechado a declarante tem de

comprovar três coisas:

A primeira delas é o atestado de miserabilidade, exigido

pelo parágrafo primeiro do art. 274 do Código Penal de 1890

que estabelece:

Art. 274 Nestes crimes haverá logar o procedimento official de justiça

sómente nos seguintes casos:

1º si a offendida for miseravel, ou asylada de algum estabelecimento de

caridade;

O segundo fator importante que dá procedência a acusação é

a comprovação de que o crime foi cometido através de

sedução, engano ou fraude. Neste caso, há a tentativa de se

comprovar a inocência de Carménem relação ao fato de que

José não se casaria com ela ao tirar sua virgindade.

O terceiro fator que é de profunda importância em um

processo como este é a comprovação de inocência de Carmén.

Isso porquê caso fosse comprovado que a garota não era uma

mulher de família estava anulada a questão do engano ou

fraude, já que a garota estaria propensa a perder a

virgindade com algum homem de qualquer forma.

Sendo assim, as testemunhas de defesa tentam, ao longo do

processo, comprovar que Carmén não andava na rua sozinha em

horários não apropriados para uma garota de honra.

Outro quesito importante em um processo de defloramento é a

prova material do crime. A prova material neste caso é a

comprovação de perda da virgindade através da laceração do

hímen. No processo de Carmén o auto da perícia atesta o

seguinte:

“Passando os peritos ao exame da queixosa verificaram que os grandes lábios

achavam-se afastados, o canal vaginal estava dilatado, a membrana hymen

apresentava retalhas já cicatrizadas, sem inflamação, nem suffuração e

finalmente que o útero se achava augmentado de volume.”

Ao final do processo, José Moledo de Almeida deixa de se

apresentar às datas estabelecidas nos procedimentos

burocráticos e é declarado como foragido. O caso é

encerrado sem uma reparação com Carmén que estava grávida e

alegava que José era o pai.

Apesar de a proposta não apresentar uma profusa variedade

de fontes traz o processo judicial como rico material para

a análise desta questão. Justamente por se verificar que a

demanda de uma luta pela manutenção da virgindade se

tornava mais importante como estratégia de alcance de

certos interesses específicos do que como uma real

reparação moral.

O processo judicial como fonte documental neste caso é a

fonte documental com maior relevância, pois transforma uma

questão que deveria tratar simplesmente da honra familiar e

a coloca em um campo de disputa em que a honra tem a

serventia específica de garantir a vitória do processo, que

não se reproduz, necessariamente, em uma reparação direta

da honra, mas sim em conquistas específicas de acordo com

as demandas diferenciadas. O espaço de disputa se utiliza

de um preceito moral estabelecido pela burguesia na busca

de resultados que ultrapassam a questão da honra familiar.

Pressupostos teóricos metodológicos

O estudo das questões de gênero é uma temática

relativamente nova na historiografia, foi na terceira

geração da Escola dos Annalesque realmente ganhou força.

Autores como Georges Duby e Michelle Perrot trouxeram a

figura feminina para o centro de seus estudos. Inovaram não

simplesmente em colocar a mulher como sujeito histórico,

mas, principalmente, como agente ativo no desenvolvimento

da sociedade.

O elemento feminino no início do século XX do Brasil tem

grande importância na historiografia atual. Uma mudança na

perspectiva do cotidiano feminino vem à tona quando

historiadores como Margareth Rago e Maria Odila Silva Dias

passam a trabalhar os processos de resistência e

sobrevivência. O estudo deste tipo de documento é de suma

importância para desvelarem-se fatores que agregam ao

entendimento do passado, levando em conta que a

historiografia atual admite todo tipo de documentação para

a composição de análises (Bloch, 1998).

A análise do cotidiano propõe uma resolução para a oposição

entre uma racionalidade formal e científica e a concretude

social delimitadora. A ideia é propor uma analise não

linear dos acontecimentos que possa “focalizar em

conjunturas específicas, estruturas da vida social, visões

ou concepções do mundo relativas a si mesmas e não a planos

universais teleológicos do desenvolvimento universal da

humanidade.”2.

Pressupõe-se que deve haver formas de compreensão do mundo

que superam uma dicotomia entre natureza e cultura. Há sim

uma necessidade de se abrir para uma abordagem cotidiana,

que privilegia o estudo do concreto e coloca de lado o

generalizado. É através da união de diversas análises

micro-históricas que é possível formarem-se teorias que

abarquem algum sentido para desdobramentos históricos.

Longe de uma posição positivista, este tipo de análise da

hermenêutica do cotidiano tem como princípio que um

desenvolvimento teórico que tenha como função abarcar

amplas questões, de modo a desenvolver um entendimento de

mundo mais unificado, deve fazer primeiramente uma coleta

de todas as especificidades para, aí sim, conseguir montar

um quadro geral que se baseie nas complementaridades e

diferenças.

Fator importante na análise documental é a liberdade e a

necessidade interpretativa que cabe ao historiador. Para

que se possam compreender as intenções e pensamentos que

ultrapassam o formalismo e (ou) o mascaramento de uma

mentalidade deve-se fazer uma análise interpretativa dos

2 Maria Odila

documentos. É através da leitura nas entrelinhas que se

busca um sentido na narrativa verificada.

Esta análise dos documentos está baseada na Hermenêutica do

Cotidiano na Historiografia Contemporânea de Maria Odila

Silva Dias, escrita para a revista Projeto História.

Segundo a autora:

“Na leitura de processos criminais ademais da formação dos processos e dos

conceitos jurídicos, frequentemente, é o pormenor imperceptível e secundário

que interessa ao historiador: a identificação de uma testemunha, por vezes

analfabeta, ou uma menção de passagem no depoimento a um ponto de

sociabilidade na vizinhança...”

A resistência como conceito teórico deve ser expandida para

algo maior do que a manifestação política formal, ela está

nos meandros da sociedade. Desde a servente que realiza seu

trabalho de forma vagarosa até as costeiras sazonais de São

Paulo que desenvolvem um proto-sindicalismo, a resistência

vem através de contradições e oposições que apenas a

hermenêutica do cotidiano é capaz de elucidar.

Quando tratamos então da questão feminina no perpassar da

história, principalmente em momento que correspondem a um

crescimento econômico e a momentos de urbanização intensa,

devemos verificar a maciça presença não oficial ou formal

desses sujeitos no meio social.

Michelle Perrot, Maria Odila e Maria Izilda ressaltam a

importância do elemento feminino na manutenção dos lares.

No início do século XIX “40% dos moradores da cidade eram

mulheres sós, chefes de família, muitas delas concubinas e

mães solteiras.”.

Sendo assim, o desvelamento do papel das mulheres no

cotidiano e no desenvolvimento social tem importância

mister na formação do mosaico que possibilita a formação de

teorias que possam abarcar a historicidade de forma mais

ampla.

Como ressalta Maria Odila Leite da Silva Dias em seu livro

Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX:

“A historiografia das últimas décadas favorece uma história social das mulheres, pois

vem se voltando para a memória de grupos marginalizados do poder. Novas

abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os historiadores de

preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história microssocial do quotidiano: a

percepção de processos históricos diferentes, simultâneos, a relatividade das

dimensões da história, do tempo linear, de noções como progresso e evolução, dos

limites de conhecimento possível diversificam os focos de atenção dos historiadores,

antes restritos ao processo de acumulação de riqueza, do poder e à história política

institucional.”

Bibliografia Coletada: