Política criminal na Constituição de 1988: dos direitos e garantias fundamentais beccarianos ao...

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1 Política criminal na Constituição de 1988: dos direitos e garantias fundamentais beccarianos ao resquício lombrosiano na efetiva aplicação Marco Aurélio Souza Mendes Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia-MG. E-mail: [email protected] Moacir Henrique Júnior Professor, Doutorando em Direito e Ciência Política, Mestre em Criminologia e Sociologia Jurídico-Penal ambos pela Universidade de Barcelona – Espanha. E-mail: [email protected] “A moral da criação e a moral da domesticação se equivalem absolutamente pelos meios de que se servem para atingir seus fins: podemos estabelecer como primeira regra que para fazer moral é necessário absolutamente ter vontade do contrário.” (Nietzsche). Uma incursão histórica do Humanismo ao Positivismo Criminológico na discussão dos Direitos Fundamentais sob o prisma do delito Césare Bonnesana, ou melhor conhecido para os mais íntimos como Marquês de Beccaria, inaugurou o marco da Escola Clássica Criminológica com sua obra Dos Delitos e das Penas, numa era em que “castigo” era sinônimo de “espetáculo”. O interstício temporal de 1764 até o atual ano de 2014 é imenso, mas os reflexos de sua tentativa de afastar a pena vinculada aos castigos corpóreos e limitar o ius puniendi do

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Política criminal na Constituição de 1988: dos

direitos e garantias fundamentais beccarianos ao

resquício lombrosiano na efetiva aplicação

Marco Aurélio Souza MendesAcadêmico do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade

Federal de Uberlândia-MG. E-mail: [email protected]

Moacir Henrique JúniorProfessor, Doutorando em Direito e Ciência Política, Mestre em

Criminologia e Sociologia Jurídico-Penal ambos pela Universidadede Barcelona – Espanha. E-mail: [email protected]

“A moral da criação e a moral da domesticação se equivalemabsolutamente pelos meios de que se servem para atingir seusfins: podemos estabelecer como primeira regra que para fazermoral é necessário absolutamente ter vontade do contrário.”(Nietzsche).

Uma incursão histórica do Humanismo ao Positivismo

Criminológico na discussão dos Direitos Fundamentais

sob o prisma do delito

Césare Bonnesana, ou melhor conhecido para os mais

íntimos como Marquês de Beccaria, inaugurou o marco da Escola

Clássica Criminológica com sua obra Dos Delitos e das Penas, numa

era em que “castigo” era sinônimo de “espetáculo”. O

interstício temporal de 1764 até o atual ano de 2014 é

imenso, mas os reflexos de sua tentativa de afastar a pena

vinculada aos castigos corpóreos e limitar o ius puniendi do

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Estado reflexionam até hoje. Von Liszt, ao inaugurar sua obra

Programa de Marburgo, percebeu que Direito Penal,

Criminologia e Política Criminal possuem os mesmos objetos,

mas objetivos e enfoques totalmente diferentes e

complementares entre si. Limita-se esse breve espaço a fazer

dois tipos de análise da presença da Criminologia na

Constituição de 1988: a) Em primeiro plano, as implicações

teóricas dos princípios humanistas desembocados no art. 5º e

incisos; b) Em segundo plano ver a distância das práticas

penais e da política criminal distantes da ótica Iluminista e

aproximarem-se de um incisivo positivismo lombrosiano e afins.

Pois afinal, o que pode ter instigado a recorrer a leitura

deste artigo é o seguinte questionamento: existe, desde a

priori, uma Política Criminal dentro de nossa Carta

Constitucional? Não ousarei de esboçar uma resposta de pronto

para uma questão que, em diversas discussões na busca de

argumentos para a escrita deste trabalho, provocou

divergências tão contundentes. De forma metodológica, para

compreender melhor como se dá o tratamento criminológico

pelos Direitos Transindividuais na Constituição, necessitamos

abordarmos a história, entendermos o processo de construção

dos conceitos da Criminologia e de nosso próprio ordenamento

constitucional.

Ipsis litteris o art. 5º, inciso III, diz: “Ninguém será

submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.”

Abro o estudo dizendo que nossa Constituição consagrou nesse

inciso o que mais os humanistas buscavam na época de

Beccaria: afastar a severidade das penas e provar que não há

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relação entre sua eficácia e meios cruéis. Advertia o jovem

Marquês que “[...] toda pena que não advier da absoluta

necessidade, diz o grande Montesquieu, é tirânica”.

(BECCARIA, 2012). A Escola Clássica da Criminologia não era

ainda um foco de estudos etiológicos (como posteriormente

será o Positivismo). A ideia era de que a pena deveria ser

aplicada na mesma medida que sua culpabilidade, portanto a

finalidade da pena era a prevenção da violação do contrato

social.

Perceba-se que até antes de Beccaria1 a pena não tinha

um fim específico. As concepções de Kant e Hegel como formas

justificadoras da pena fundavam-se em auxiliares éticos ou de

restaurações morais. Eis que o conceito adequava-se com a

retribuição, não melhor chamado, por isso, de Teorias

Retributivas. Em Kant a pena reestruturava-se na base de seus

imperativos categóricos em uma pena que se fundamentava por

si só. Hegel, apesar de sua dialética distanciar-se da

perspectiva ética kantiana, encontrando uma defesa mais

acentuada na restauração da fundamentação da norma, em que a

síntese qualificava-se na aplicação de uma pena com quantum

equivalente de negação do Direito, aproximava-se um pouco

indiretamente do caráter ético; como Tese, Hegel previa que

as pessoas obedeceriam o Direito por ser lei, o que fazia da

pena ser uma medida contrafática perante a ação delituosa.

1 Cito contundentemente o Marquês por ser o expoente de maior impacto comsua obra Dos Delitos e das Penas, mas se deve ressaltar que não fora o únicocontratualista a desembocar princípios humanistas relacionados com aprevenção tirânica das penas, podendo-se achar argumento até mesmo emRosseau para tal.

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Assim, “apenas no século XIX é que os grandes sistemas penais

afastaram-se da filosofia do Direito e centrarem-se na

discussão dogmática de problemas concretos”. (BUSATO, 2013,

p.745).

Desembocando-se na Escola Clássica, percebe-se que ela

“foi construída com fundamentos de uma responsabilidade penal

baseada no livre-arbítrio e na culpabilidade individual”

(BUSATO, 2013, p.747). Determinar o nascimento dos Princípios

da Legalidade e da Culpabilidade foram fundantes para

desvincular a pena como expurgo do pecado, tal como era a

doutrina da época inquisitorial. Novamente ipsis litteris os

incisos II e LVII do artigo 5º: “Ninguém será obrigado a

fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de

lei” e “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em

julgado de sentença penal condenatória”. Duas análises

percorreremos daqui.

Em primeiro lugar, o fato típico deve estritamente

conter a descrição do verbo núcleo do tipo em lei, fato que a

obscuridade já é característica para se afastar uma

incidência penal. Então além da Legalidade, é a Taxatividade

que necessariamente deve estar presente. O que deve se

entender por ação não é o que os homens fazem, se não o

significado daquilo que fazem, já que “[...] Vives Antón

estabelece que o ponto de partida da estruturação do sistema

é a relação entre a norma e a ação a que se resume”. (BUSATO,

2012). Beccaria já discorreu há tempos em sua obra: "O mal

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será ainda maior se as leis forem escritas em uma linguagem

desconhecida pelo povo”. (BECCARIA, 2012)”. 2

A segunda análise é perante a culpabilidade, assumida

na época de Beccaria como fruto do livre arbítrio e

decorrente da perspectiva causal-naturalista. Muito se

evoluiu até o conceito de Culpabilidade moderno, e

notadamente não é esse conceito naturalista que o Direito

Penal e a Constituição de 1988 adotam. Por outro lado, o

gérmen para afastar uma pena desmedida e arbitrária estava

lá, desde o século XVIII e XIX. Von Liszt adotava a

bipartição modular do injusto em objetivo e subjetivo,

compreendendo a culpabilidade como elemento do sujeito, sendo

elemento de união entre conduta e autor (BUSATO, 2013). A

primeira construção teórica de culpabilidade foi ela como

princípio. O Marquês no capítulo de sua obra nominado de “Da

Tortura” dizia que “[...] ninguém pode ser condenado

criminoso até que seja provada sua culpa, nem a sociedade

pode retirar-lhe a proteção pública”. (BECCARIA, 2012). Já

dentro da Culpabilidade de Beccaria extraímos a própria

proporcionalidade e a presunção de inocência. O art. 5º,

2 Ademais, não fruto de discussão deste trabalho, não se deve apegar àLegalidade e Taxatividade como dogmas inquestionáveis e subsídiouniversal da resolução de todos os problemas penais através daConstituição. Lenio Streck afirma em sua obra Verdade e Consenso que“literalidade e ambiguidade são conceitos intercambiáveis nãoesclarecidos numa simples análise abstrata dos signos” (STRECK, 2014,p.37). O problema é da polissemia das palavras, trabalho hoje muito bemdesenvolvido pela Filosofia da Linguagem e que questiona desde Kelsen eHart sobre a discricionariedade no âmbito dos valores da atuação dojurista na pragmática do Direito, e não da ciência do Direito (se é querealmente superamos essa ambivalência ou ainda insistimos em separarfunções que se complementam, e na verdade não se antagonizam). Discursopara a Teoria do Direito e a Hermenêutica.

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inciso LVII, é o reflexo desse humanista em nossa

Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o

trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”.

Parece que fica claro, diante do discurso apresentado

anteriormente a clara influência dos postulados da Escola

Clássica nos Direitos e Garantias Fundamentais. Descontruindo

todo esse raciocínio, surge a Escola Positiva ou Positivismo

Criminológico, famoso pelo seu expoente Césare Lombroso, foco

do nosso estudo por aqui. O efervescer das ciências como

Antropologia, Biologia e a Frenologia fez nascer uma

Criminologia Científica, voltada não mais para o delito e sim

para o delinquente. Lombroso expõe em sua obra O homem

delinquente que o criminoso passou por um processo chamado

Regressão Atávica, portanto era evolutivamente inferior ao

homem comum. Temos o desembocar do delinquente nato.

Compreendia até um núcleo específico de características

físicas. Lombroso afirmava ser o crime um ente biológico e

não um ente jurídico como os Clássicos afirmavam, razão pela

qual “[...] o delinquente era submetido ao método indutivo e

a etiologia criminal poderia ser encontrada nas

características físicas dos mesmos”. (SHECAIRA, 2008).

Quando escrevi no título “discussão dos Direitos

Fundamentais sob o prisma do delito”, quis ressaltar duas

construções teóricas que se encontram até hoje conviventes

juntas, a dizer: uma desembocadura principiológica normativa

construída em parâmetros humanitários e uma prática ainda

reverberada por atitudes do Positivismo citadas. Resume-se

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em: utilização da medida de segurança, conceito de

personalidade concebido pelo Poder Judiciário e a forma de

como o exame criminológico é realizado. Essa introdução

histórica foi necessária para eu mostrar em que bases

criminológicas fundamenta-se nossa Constituição, bases

claramente garantidoras dos pressupostos humanistas, e como

ela se encontra positivada no próprio texto constitucional.

Descrevendo a Escola Positiva, fica claro para qualquer

leitor em como a realidade da sociedade brasileira, eis que a

análise do trabalho tem objeto delimitado e específico, está

distante da teoria. Portanto isso é Política Criminal? Os

Direitos Fundamentais não são normas de Política Criminal,

mas para a construção presente neste artigo, estão

intrinsecamente relacionados com as bases que a Constituição

moldará para um Estado garantidor de seu próprio fundamento

na dignidade da pessoa humana, bases que mais a frente

comentarei.

A construção do Estado de Direito ao Estado

Constitucional de Direito

Se quero construir Política Criminal, então preciso

construir um Estado que garanta a efetividade dessas

políticas públicas. Se a acepção penal e criminológica da

história fora explicada no título anterior, é necessário

falar agora em como o Estado sob sua forma constitucional se

construiu para finalmente chegarmos até a Constituição de

1988 e seu constituinte originário. Zagrebelsky define Estado

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de Direito como “Estado bajo em régimen de derecho”. Parto

dessa premissa para que entendamos o Estado de Direito

representado historicamente através das Constituições

Liberais e que se definia como um “Estado da Razão”.

Ao construir-se toda uma doutrina política para um

Estado, estamos, na verdade, determinando razões para a

atuação de determinado segmento e os limites dessa atuação,

contrariando a premissa lex facit regem para rex facit legem. Direito

como ordenamento jurídico num acento de que o Soberano

legítimo atuava predeterminado pelas leis. Especificamente, a

forma de Estado tratada dessa forma era o Estado Liberal de

Direito, que “tenía una conotação sustantiva, relativa a las

funciones y fines del Estado”. (ZAGREBELSKY, 2011, p.23).

Essa conotação que Zagrebelsky coloca é sobre a atuação do

Parlamento, um discurso trazido da conformação do rule of law,

pois haveria uma supremacia da lei frente à Administração e

que apenas a lei poderia trazer os poderes autônomos do

Soberano e sua atuação incidente sobre os cidadãos. Essa foi

a forma encontrada de confrontar o princípio do rule of law

inglês com o princípio da legalidade presente na Europa

continental. Ora, veja-se por Sieyès, numa França

revolucionária em que a soberania da lei apoiava-se na

doutrina da soberania nacional (“O que é o Terceiro Estado?).

Assim, utilizo-me para concluir sobre o Estado de Direito o

que Zagrebelsky conclui em sua obra El Derecho dúctil como suas

características:

“[...] la idea del Rechtsstaat, en cambio, se reconducea um soberano que decide unilateralmente. [...] El

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Rechtsstaat, por cuanto concebido desde um punto devista jusnaturalista, tiene en mente un derechouniversal y atemporal. [...] Según el Rechtsstaat, porel contrario, el derecho tiene la forma de un sistemaen el que a partir de premissas se extraemconsecuencias, ex principiis derivationes. [...] Laconcepción del derecho que subyace al Rechtsstaat tienesu punto de partida em el ideal de justicia abstracta.[...]” (ZAGREBELSKY, 2011, p.26).

O período dos conflitos bélicos da II Guerra Mundial e

a insurgência dos regimes totalitários acenderam o debate da

possibilidade de definir tais regimes como Estados de

Direito. O Totalitarismo culminava não como uma ruptura do

movimento doutrinário concebido pelo Estado de Direito, e sim

como uma elevação máxima do princípio da legalidade, como uma

vontade exclusiva da lei positiva e que atuava com eficácia

para a imposição do direito nas relações sociais. O mote do

respeito à lei poderia ser organizado para aplicar-se em

qualquer situação, mesmo em nome de arbitrariedades do poder

estatal, pois era lei. Isso é o que Zagrebelsky afirma em sua

obra como “[...] la primera y más rigurosa concepción del

principio de legalidade, el poder ejecutivo que dependía

íntegralmente de la ley [...].” (ZAGREBELSKY, 2011, p.27).

Assim, ao dizer que a lei possuía a superioridade mais

alta, não havia nenhuma regra jurídica que servisse para

limitar essa tal “supremacia das leis”. Colocando a lei

exclusivamente no mundo jurídico, a lei poderia tudo por

estar materialmente vinculada ao contexto político da época,

e ao retratarmos de um liberalismo, estamos tratando dos ideais

de liberdade burgueses. E era nos ideais políticos que a lei

se via limitada, já que era fruto da atividade de um

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Parlamento previamente eleito e legitimado, sem a menor

necessidade que houvesse uma medida jurídica que colocasse

uma barreira para a supremacia da lei. “Una sociedad política

monista, o monoclasse, como era la sociedad liberal del siglo

pasado, incorporaba en sí las reglas de su próprio orden.”.

(ZAGREBELSKY, 2011, p.31).

A concepção do Estado de Direito ao ser criticada e

repensada levava à própria reconstrução do positivismo

jurídico, especificamente um positivismo ideológico. Kelsen

operava em sua Teoria Pura do Direito sobre dois planos, o da

ciência do Direito e do Direito como atuação prática. O que

deveria ser observado era a aplicação do direito simplesmente

por ser direito, indiferente do seu conteúdo. Os juízes

deveriam aplicar um único princípio moral: o do direito

vigente. (STRECK, 2014, p.38).3 Por isso adverte Zagrebelsky

que o Estado Constitucional de Direito é muito mais que a

presença de uma Constituição, pois “está en contradición con

esta inercia mental.” (ZAGREBELSKY, 2011, p.33).

Então com o advento do Estado Constitucional de Direito

surge a novidade de que a lei, pela primeira vez na história3 Extraí essa observação do capítulo da obra Verdade e Consenso em que oautor conceitua baseado na obra de Bobbio os positivismos ideológico,teórico e metodológico/conceitual. Citando Rodriguez Puerto, afirma quepara Kelsen o juiz é criador do direito por delegação do soberano, umaideia já presente em Hobbes, Bentham e Austin. Acontece que aoobservarmos as anotações do autor sobre Kelsen, dizendo que o comandodeterminante da redução da atividade jurídica ao que estava adstrito àsnormas vigentes, adequadas por uma norma hipotética fundamental, é denatureza epistemológica e aplica-se como tal apenas a ciência do direito,podemos perceber uma certa confusão. A prática mostrada pelosTotalitarismos demonstrou uma atuação dos operadores do Direito dentro dasociedade da mesma forma que Kelsen enxergava a prática jurídica daciência do direito.

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da época moderna, vem submetida a uma relação de adequação

(leia-se subordinação) frente à Constituição. Diante de um

pluralismo de forças políticas e sociais conduz a

heterogeneidade de valores e interesses que virão a ser

expressados numa carta de compromisso. Não diferente, nosso

processo constitucional de 1988 traduz essa realidade

pluriaxiológica. Segue Zagrebelsky posicionando-se de que a

Constituição propõe um direito mais alto e dotado de força

obrigatória para o legislador e os atores políticos,

acrescento eu. Dessa forma, temos o estabelecimento de uma

nova noção de Direito mais profunda do que aquela proposta

pelo positivismo legislativo e exegético (uma forma

totalmente reducionista).

Com isso, creio que fica claro que as diretivas do

Estado Constitucional de Direito visam dar um giro ontológico

em o que se define por atuação estatal e quais seus limites.

Mais do que isso, quando Zagrebelsky afirma ser uma união dos

valores plurais da sociedade, é cabível entendermos como um

compromisso de interesses. E dentro desse compromisso de

interesses, não está ausente o que se espera da sociedade

como forma de Política Criminal. E como tudo dentro do

sistema constitucional, possui diretivas, limites e garantias

pela própria Constituição. Chega agora o momento de

começarmos a falar especificamente do tema proposto como

cerne do trabalho deste artigo.

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Direitos Difusos e Coletivos como bases para

construção de uma Política Criminal na Constituição

de 1988

Serviu-me de base a construção teórica do

desenvolvimento do Estado de Direito e do Estado

Constitucional de Direito, bem como a evolução da

Criminologia, para chegarmos a um dos objetivos que coloquei

da Constituição perante a sociedade e seus políticos (mas não

único): de uma carta de “compromissos”.

Retornando aos conceitos de Franz Von Liszt, política

criminal dá fundamento jurídico e orienta os fins estatais do

poder punitivo do Estado, sendo uma forma de manipular melhor

e de uma maneira mais eficaz os possíveis remédios que o

Estado tem a possibilidade de escolher na prevenção criminal

e na sua repressão. Saliento: prevenção e repressão são faces

de uma mesma moeda, mas que não devem conceitualmente

misturar-se em sua aplicação. E as limitações, de forma como

já apresentei e ainda tenho outros argumentos a dissertar,

encontram-se balizadas pela Constituição: seja no art. 5º

como princípios limitadores e fundamentadores da pena e da

repressão do Estado ou através de uma diretriz de políticas

públicas num cenário do facere estatal para a garantia dos

Direitos Difusos e Coletivos como forma de prevenção

criminal.

Diz Nilo Batista em sua obra Introdução crítica ao direito penal

brasileiro que se entende melhor a política criminal como o

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conjunto de princípios e recomendações que orientam as ações

da justiça criminal em dois momentos: na elaboração

legislativa e na aplicação e execução da disposição

normativa. Assim, seria possível compreendermos o conceito de

Direitos Difusos e Coletivos como também (além das muitas

outras garantias) bases legislativas para a Política Criminal

brasileira? Os titulares desses direitos são indetermináveis,

mesmo que estimados numericamente, e possuem uma relação

impossível de individualizar os prejuízos. Superadas as

definições clássicas do crime como ente jurídico de Carrara,

não há como não enxergar os prejuízos oriundos da relação

delituosa como apenas direcionados a uma única vítima, como

com uma possível parcela de culpa e efeitos dentro da própria

sociedade.4 Ademais, adverte em artigo sobre o tema o Profº

da Universidade Federal de Viçosa, Fernando Galvão, que “os

doutrinadores há muito discutem sobre ser a política criminal

uma técnica ou uma ciência.” (Galvão, 1997). A proposição

tratada nesse trabalho não visa conceber a política criminal

como acientífica, pois faltaria pressupostos legitimantes

para a própria atuação do Estado nesse sentido. E o que

legitima essa atuação do Estado se faz presente inteiramente

dentro da Constituição de 1988 no caso brasileiro.

4 Aqui me refiro ao que Zaffaroni nomeia como Teoria da Coculpabilidadeou vulneração dos agentes sociais, em que o conceito de culpabilidadetranscende o indivíduo e se alastra pela sociedade como “parte do bancodos réus”, eis que pelas condições socioeconômicas, culturais,educacionais, saúde, lazer e dentre outras, não há que mensurar uma mesmaculpabilidade ou assimilação do comando normativo de forma equânime nasociedade.

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A proposição do conjunto dos Direitos Difusos e

Coletivos indica um conjunto de elementos que o constituinte

originário valorizou para a construção da sociedade

brasileira mais justa, livre, solidária e pautada na

dignidade da pessoa humana, que desde logo legitimam um

caminhar distante de uma sociedade avançada pelo medo,

desconfiança e criminalidade. O Capítulo III da Educação,

Cultura e Desporto pode ser citado como uma das formas

propostas pelo legislador constituinte, porém não únicas,

visto que o Meio Ambiente, a Saúde, Lazer, Ordem Econômica e

Social são as demais bases diretivas dessas políticas.

Exemplifico pelo enunciado do art. 205: “A educação, direito

de todos e dever do Estado e da família, será promovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno

desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

O que quero concluir é que a Constituição é ilustrada

por inúmeras políticas públicas e de cooperação social para

afastar a incidência criminal através da prevenção primária e

do controle social informal, e compartilho do auxílio da

hermenêutica para os Poderes Executivo, Legislativo e

Judiciário no entendimento e sentido de aplicação de cada

enunciado normativo presente na Constituição nesse caminho.

“As instâncias sociais do controle social informal operam

educando, socializando o indivíduo, por fazer assimilar nos

destinatários valores e normas de uma dada sociedade sem

recorrer à coerção estatal”. (SHECAIRA, 2008). Dentro das

Atas dos Atos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88,

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discursos justificantes da escolha coadunam com a posição

aqui adotada:

“Cabe a um processo pedagógico interétnico, vialegislação ordinária, onde o etnocentrismo sejaeficazmente combatido, potencializar todos ossegmentos raciais em seus múltiplos aspectos. Atéporque, entre nós, todos somos negros de alguma forma.O Brasil formal necessita se reencontrar com o Brasilreal. O cotidiano é onde a vida flui. E este é,inequivocamente, um modus vivendi híbrido, atípico.Vale dizer, brasileiro. Onde Europa e África seequivalem e onde, mais recentemente, grupos étnicosminoritários vieram enriquecer a nacionalidade. Estamescla de coisas que somos é marcadamente negra. Com oreconhecimento constitucional se permitirá ofortalecimento do negro e do não-negro. É que noBrasil a discriminação ao negro humilha este por umlado e ironiza ao branco por outro; tendo em vista oque este último tem de negro e não sabe.” ASSEMBLÉIANACIONAL CONSTITUINTE (ATAS DE COMISSÕES).

A política criminal deve ser instrumento para

realização do bem comum e não pode permitir que o legislador

se aventure em experienciar elementos arbitrários e sem

diretrizes ou justificativas. Esclarece Roxin que a “[...]

política criminal deve definir o âmbito da incriminação bem

como os postulados da dogmática jurídico penal [...]”.

(ROXIN, 1992). Os detentores das ferramentas de atuação

política escolhem, baseados portanto na Constituição, quando

e em que devem colocar a ótica da prioridade, seja em

diretrizes públicas para educação, para saúde, cultura ou

outro elemento social, tais instâncias configuradas como

elementos da prevenção primária mencionadas por Shecaira.

Prevenir também é elemento de política criminal e quem detém

um papel fundante na expressão da construção de uma sociedade

de valores mais coesos é o Estado. Volto a embasar-me até

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mesmo em Zagrebelsky pelo princípio da constitucionalidade,

que diz ser “[...] el principio que debe assegurar la

consecución de este objetivo de unidad.” (ZAGREBELSKY,

2011)5.

Direito Penal Simbólico, política criminal

repressiva e supremacia do dogmatismo: a

Constituição de 1988 como folha lassaliana

Consegui abordar até esse ponto dois dos três marcos

teóricos propostos no título: o da construção dos Direitos e

Garantias fundamentais com Beccaria e os Humanistas e o que

se entende por Política Criminal e como ela pode ser

formulada a partir dos pilares normativos da Constituição de

1988. Falta agora a análise da prática lombrosiana. Eu deixo o

meio normativo-jurídico e até mesmo o filosófico para mudar o

objeto de estudo agora para uma pauta sociológica e de fatos,

pois apenas com uma empreitada empírica é que se pode

analisar a realidade na abordagem aqui proposta.

A política criminal adotada por uma sociedade, nos

dizeres de Hassemer, não resulta apenas da observação sobre

causas da criminalidade ou violência, mas também dos

múltiplos fatores que influenciam a percepção social do

delito. Se é política, é fruto de poder, portanto capitaneada

por grupos majoritariamente dominantes na política ou na5 O que trato aqui é de que o legislador, ao determinar suas diretrizespolíticas, e até mesmo legislar sobre a dogmática penal, tudo se trata deordem infraconstitucional, o que configura a natureza de unificação queZagrebelsky escreve em sua obra, pois no Estado Constitucional não hámais um “estado das coisas” unificado e reduzidos à lei como no séculoXIX (ver Zagrebelsky, p.40).

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expressão social. E com grupos pode-se entender a presença de

ideologias.

Ao Estado que caberia pacificar o convívio, faz o

contrário: institucionaliza uma política lombrosiana de

medidas de segurança indeterminadas e uma definição de

personalidade criminosa cheia de preconceitos e certezas mais

que incertas, haja vista que o melhor ramo para dissertar

sobre assunto não é o do jurista, e sim a psicologia. A

sociedade também continua com essa perspectiva através dos

constantes linchamentos e do movimento criminológico que

chamamos de cárcere e consumo. “O mundo de hoje conta com

outras dicotomias de inclusão-exclusão, muito mais vinculadas

à questão do consumo”. (BUSATO, 2013).

Modernamente, o paradigma da política criminal é acerca

da intervenção mínima e de um Direito Penal de ultima ratio.

Outrora, assim seria se a prática caminhasse em consonância

dos fundamentos esboçados em linhas anteriores desse artigo.

Distante do Funcionalismo de Malinowski ou Talcott Parsons,

aproximamos nossa prática penal da elaboração que Merton dá

para o conceito de anomia.6 “O insucesso em atingir as metas

culturais devido a insuficiência dos meios

institucionalizados pode produzir o que Merton denomina de

anomia: manifestação de um comportamento no qual as ‘regras’

do jogo social são abandonadas.” (SABADELL, 2008). E por que

analisar questões de cunho sociológico para a criminalidade

se faz necessária numa abordagem constitucional da Política6 Merton é considerado por muitos estudiosos como aquele que fez a ponteentre as Teorias Funcionalistas e as Teorias do Conflito Social.

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Criminal? A resposta vem pelos efeitos propagados numa

sociedade dominada pela anomia. Não me posiciono totalmente a

favor da construção teórica de Merton e como sendo o único

autor para poder se basear, mas de sua premissa pode-se

concluir, dentre os vários comportamentos previstos pela sua

Teoria da Anomia, o da evasão, “que se caracteriza pelo

abandono das metas e dos meios institucionalizados”.

(SABADELL, 2008).

O que Merton põe em cheque é a concepção psicológica de

Freud sobre o indivíduo e a origem do delito em seu

comportamento egoísta e individual, e procura demonstrar que

sua origem é social e cultural. (BUSATO, 2013, p. 780). O

Direito Penal Simbólico explica-se nesse diapasão, pois é uma

insurgência de uma realidade social cansada da atuação

delituosa, mas que esquece de raciocinar frente ao campo

científico da Criminologia e das bases do Estado

Constitucional de Direito para aumentar os mecanismos de

punição incisiva, num sentimento de prazer egoístico tão

parecido quanto o do tempo da Autotutela.

Nesse cenário é que se coleciona histórias e formas de

uma política criminal repressora, distante dos pressupostos

daquela prevenção primária idealística presente na

Constituição. A questão, em verdade, vai bem mais além do que

uma institucionalização da repressão para um conflito entre

anomia e poder. O grupo que não respeita as normas jurídicas

vivencia muitas vezes um conflito entre convicções e

prescrições do sistema jurídico oficial, e nesse caso em

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específico, do sistema penal. É nesse sentido que Ana Lúcia

Sabadell confirma minha posição de uma política criminal

constitucional como folha lassaliana:

“Nesse contexto, a anomia também pode se relacionarcom a ausência do Estado que, ao não cuidar daefetivação dos direitos sociais, abandona parcelas dapopulação à sua sorte. Isso propicia o aparecimento degrupos de poder, em geral relacionados com práticasdelitivas, que ocupam o espaço deixado pelo Estado. Umexemplo é o tráfico de drogas nas favelas do Rio deJaneiro. Os traficantes resolvem os conflitos entremoradores e assistem famílias desamparadas peloEstado. Por isso, os laços de solidariedade que sedesenvolvem entre jovens traficantes de drogas sãomuito mais fortes e aquilo que é percebido comocomportamento anômico a partir da perspectiva dalegalidade estatal não o é no âmbito da estruturasocial na qual estão inseridos esses jovens.”(SABADELL, 2008).

Cito como exemplo ainda mais concreto dessa distância o

modo como foram implementadas as UPP’s no Rio de Janeiro. Em

teoria, a proposta da UPP visa integrar comunidade e Estado

nos moldes da prevenção primária, criando vínculos sociais

maiores que o vínculo entre sociedade e atores dos delitos. É

uma forma de reconquistar uma confiança social já abalada e

fragmentada pelo descaso e esquecimento de décadas e de

opressões violentas contra grupos específicos e

marginalizados, posturas certamente definidas pelas teorias

do labbeling approach ou das Teorias do Conflito. Em real, a

tomada dos morros foi nada mais que uma incursão bélica num

molde não muito distante das criticadas intervenções

militares estadunidenses, uma forma de colocar a bandeira

nacional no topo do morro e mostrar, através da força, quem

20

detém o maior domínio de poder, expulsando aquele considerado

“marginalizado”.

Políticas como essas são frutos do movimento

neoconservador da década de 70, com Nixon nos EUA e Tatcher

na Inglaterra; e posteriormente na década de 80 nos EUA com

Ronald Reagan. Criminalizar até o banal não parece ser o

melhor caminho, e dados mostram a ineficácia desse modelo

equiparador de consumidor a traficante.7 No caso específico

brasileiro, em se falando das drogas, critica-se o art. 33 da

Lei 11.343/06 definindo-o como expressão de um direito penal

do inimigo, a seguir a teoria de Jakobs. É dessa necessidade

que surge a polícia comunitária, que ouve as necessidades da

comunidade local, resolvendo seus problemas sociais, não

ficando adstrita ao objeto-crime, o que lhe retira o caráter

exclusivamente repressivo. (Barroso, 2009).

Ainda na temática lassaliana de uma política criminal

constitucional, cabe aqui eu concluir o título com três

concepções: antecedentes criminais, personalidade e conduta

social. Superada a doutrina das teses etiológicas do crime em

uma culpabilização única do delinquente e este como fruto de

uma irreversibilidade determinística e biológica, a Justiça

Penal ainda limita-se a utilizar esses vagos conceitos da

forma arcaica como surgiu em meados de séculos passados.

7 Dados do Instituto Avante Brasil (IAB) demonstram que em 1986, os EUAaprovaram uma lei que aumentava em 100% a porcentagem de condenações poruso de crack. Antes da lei, 5mil pessoas estavam presas por posse daqueladroga. Dados de 2009 demonstram que já passam de 100mil os encarceradospor esse motivo. E não houve majoritária redução do consumo de drogas,especialmente do crack.

21

Os antecedentes ao possuírem as características do

subjetivismo, negatividade e perpetuidade contribuem para o

estigma de uma característica marginal na sociedade,

desvinculando-se do que a Constituição objetiva como uma

sociedade “livre e digna”, em que até enunciei pelos

transcritos dos Atos da Assembleia Constituinte. A

personalidade, critério do art. 59 do Código Penal, exige do

magistrado uma qualificação em que ele não se mostra

possuidor. O conceito de personalidade carece de boas

definições até mesmo nas ciências que o estudam mais

detidamente, como a Antropologia ou a Psicologia. Lombroso

que pontuou diversas características para seu delinquente nato

não se diferencia do juiz que hoje determina ao seu arbítrio

características psicossociais que lhe induzem a um tipo

criminógeno. A conduta social, ainda no art. 59, incidem nos

mesmos questionamentos e críticas que a personalidade, por

isso resguardo-me de maiores redundâncias.

Se o Estado é legítimo para se apropriar de conceitos

tão personalíssimos, então temos uma inversão do que propõe o

Estado Constitucional de Direito para um retorno ao modo de

intervenção arbitrária pautada na mera legalidade pelo Estado

de Direito do século XIX. As formas de sustentar um “direito

penal do sentimento” e de um afastamento de grupos sociais

não estão distantes de nossa realidade e presentes apenas em

discursos de uma história recente totalitária, visto o

acontecido e noticiado nacionalmente em 2007 no Paraná,

cidade de Apucarana:

22

No dia 23 de Março de 2007, a Gazeta do Povo publicouem seu sítio a notícia de que a Prefeitura deApucarana (PR) expulsou, em um ano, quase 60 pessoaspor serem mendigas. Quem capturava os mendigos eram ospoliciais e assistentes sociais. Todos foram fichados,mesmo os que não tinham antecedentes criminais. [...]Sobre o caso há ainda outra reportagem publicada, nadata de 27 de Setembro de 2006, no mesmo sítio, ondepadre Adelir fez a denúncia desses abusos. [...] Umdos mendigos alega que ficou nu e que foi agredido. Osagressores revestiram o material da agressão comborracha, para não aparecer hematomas. [...] O padreafirma que tratam essas pessoas assim porque sujam acidade.

Conclusão: possíveis diretivas de uma políticacriminal eficaz com base na Constituição de 1988

O cárcere ainda retrata um estigma para o preso. A

despeito de possuirmos uma Carta Constitucional avançadíssima

em termos de tutela dos direitos fundamentais, o tratamento

do réu no processo, bem como do homem como “delinquente”

mostra que o crime em nossa sociedade ainda é fruto de uma

rotulação, uma mostra do que os criminólogos chamam de

Labbeling Approach. É comum ter-se noticia por todo país sobre

presos em condições sub-humanas, tal como ocorre na crise

penitenciária em Pedrinhas e outras localidades do Nordeste

do país. O direito ao trabalho externo e a frequência em

aulas, que é garantia da atual Lei de Execuções Penais e

mostra-se uma ferramenta extremamente condizente com o

pensamento humanista de Beccaria, é denegado ao preso, por

muitas vezes, pela inércia estatal em efetivar a construção

das políticas públicas necessárias para transformar a

realidade normativa de nossa própria Constituição e outras

leis infraconstitucionais em uma realidade fática. O retrato

23

é de um in dubio pro societati em Direito Penal do autor, e não do

fato.

“A política criminal é, enquanto disciplina que oferece

aos poderes públicos as opções científicas concretas mais

adequadas para controle do crime, a ponte eficaz entre

Direito Penal e a Criminologia.” (SHECAIRA, 2008). Que os

legisladores olhem a atuação política sob dois aspectos: uma

fonte subjacente da sociedade e seus conflitos (Criminologia)

e por outro lado da construção dogmático-jurídica e das penas

(Direito Penal), e sem esquecer que a ponte eficaz chamada

política criminal encontra-se com suas diretrizes positivadas

nos artigos de nossa profícua Constituição.

Assevero que perante as escolas criminológicas, se

considerarmos seu estudo histórico, há de percebermos que já

existem inúmeras contribuições teóricas para uma política

criminal longe do arbitrarismo e do punitivismo de prima ratio.

Sendo que essa seara plasma-se em concretas políticas

públicas ou mesmo enunciados de cogente diretriz para o

legislador pós-constituinte ou mesmo os operadores do direito

no que concerne à escolha da melhor política criminal para o

combate de determinados delitos na sociedade. A saber: o

crime não pode ser tratado de forma equânime e como algo

único para todas as classes, pessoas ou fatos típicos. E por

isso finalizo a exposição com algumas conclusões de como a

política criminal poderia ser eficaz nas bases

constitucionais e quais argumentos teóricos da Criminologia

como ciência posso me embasar.

24

A Escola de Chicago concentra seus esforços em realçar

a prioridade do controle social informal, “[...] dando-se

menor importância ao controle social formal, que tem uma

posição acessória em relação ao controle primário. Além das

contribuições na esfera de política criminal, especialmente

no que concerne à criminalidade das massas.” (SHECAIRA,

2008). Ora, não ficou mais claro por esse trabalho em como a

Constituição está permeada de políticas públicas referentes

ao controle primário dentro de seus direitos difusos e

coletivos. Uma sociedade com desenvolvimento em educação,

saúde, lazer, desporto e valorização das manifestações

culturais contribui para nossos objetivos da República de uma

sociedade mais justa, livre, solidária e pautada na dignidade

da pessoa humana.

O impacto que a teoria da Associação Diferencial causou

foi na definição mais científica dos crimes cometidos pelas

classes de maior poder econômico, tornando-se famosa pelo

cunho da expressão “crimes de colarinho branco”. Sutherland8

tece um mosaico específico das características desse crime e

no plano penal “[...] a teoria da associação diferencial

permite compreender o direito penal econômico, com todas suas

especificidades, mostrando como a empresa pode ser um centro

de imputação.” (SHECAIRA, 2008). Dever do Estado, colaciono

eu, de garantir o funcionamento do mercado de uma forma livre

e justa, permitindo que se afaste os comportamentos

desviantes da norma, demonstrando que os que seguem um

8 Ver SUTHERLAND, Edwin H. Criminologia comparada. Trad. Faria Costa e CostaAndrade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbelkian, 1985.

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comportamento lícito corroboram para um melhor funcionamento

da sociedade e contribuem para a própria função social que a

Constituição plasma. Isso em detrimento dos que seguem pelo

caminho das condutas desviantes. Nesse diapasão, impossível

não concordar que os pilares de princípios presentes no que a

Carta Magna compõe como a “Ordem Econômica e Financeira” não

são também diretivas para como o Estado deve gerir e tratar

os crimes contra a sua própria ordem econômica. É o que se

compreende de uma interpretação sob a ótica criminológica do

art. 170 e seus incisos da Constituição de 1988: defesa do

consumidor, meio ambiente e redução das desigualdades sociais

são caminhos próprios que desde a Escola de Chicago na

análise da ecologia criminal traçam para o afastamento do

crime e explicação de sua existência.

Tanto acirrou-se nos últimos cenários eleitorais o

debate da diminuição da maioridade penal, num caminho do já

citado direito penal simbólico e do sentimento da

ineficiência dos meios estatais para combate ao crime, que a

criminalidade juvenil passou a ser tratada como uma típica

criminalidade, sem suas próprias ressalvas que desde a

introdução do Estatuto da Criança e do Adolescente no

ordenamento brasileiro pedem para serem observadas na

persecução e imputação. As manifestações juvenis “[...] não

se combatem com pura repressão, mas sim com um processo de

cooptação dos grupos, envolvendo-os com o mercado de trabalho

e com acesso à sociedade produtiva.” (SHECAIRA, 2008). Mais

uma vez a repressão possui uma função acessória ao conceito

de prevenção primária.

26

A teoria da anomia contribuiu para a formulação do

conceito de pena funcional, com três funções básicas: meio de

intimidação dirigida ao criminoso, instrumento de reinserção

social e neutralização do criminoso incorrigível, com as

pertinentes ressalvas e críticas. Ademais, a própria

Constituição recepciona a nossa Lei de Execução Penal que

traz um caráter da pena com uma proposição similar a essa da

funcionalidade e assegurando através dos próprios Direitos

Fundamentais aquilo que seria minimamente digno para uma

reinserção do condenado ao meio social, ou mesmo com os

próprios Direitos Sociais ao garantir um efetivo exercício do

trabalho como forma de (re)integração.

O que se percebe no cenário do mundo real é uma intensa

proliferação de afastar para institucionalizar (ou nossas

prisões não seriam “instituições totais?”). A diferença entre

o delinquente e o homem normal é que “[...] o delinquente

apenas se distingue do homem normal devido à estigmatização

que sofre, particularmente aquela decorrente das instituições

totais, em especial a prisão.” (SHECAIRA, 2008).

Clara é a posição que a Constituição propõe para que o

Estado assuma: coibir as práticas criminais nas classes

sociais dominantes garantindo que se faça políticas sociais

tangendo a segurança, amplo acesso ao trabalho, saúde

pública, meio ambiente, ordem econômica e financeira,

patrimônio coletivo, bem como a cultura de cada região ou

grupo. A teoria da ultima ratio determina uma maximização da

intervenção punitiva no mínimo possível dos casos. Se o

27

Direito Penal fora chamado, é a última das soluções após

tentativas reintegrativas, conciliativas e educativas;

portanto uma atuação em último grau, mas que deve ser em seu

grau máximo de eficiência e força.

Referências

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Direito. Florianópolis-SC: Conceito Editorial.

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28

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