Escutas telefónicas, outros Meios Ocultos de Obtenção de Prova e Garantias Processuais

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PRÁTICA JURÍDICA INTERDISCIPLINAR Escutas telefónicas, outros Meios Ocultos de Obtenção de Prova e Garantias Processuais - Crítica ao catálogo fechado do artigo 187ºCPP - Princípios Fundamentais do Processo Penal Sofia Ferreira Nogueira Leite n.º 001528 2011/2012

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PRÁTICA JURÍDICA INTERDISCIPLINAR

Escutas telefónicas, outros Meios Ocultos de Obtenção de Prova e

Garantias Processuais

- Crítica ao catálogo fechado do artigo 187ºCPP

- Princípios Fundamentais do Processo Penal

Sofia Ferreira Nogueira Leite

n.º 001528

2011/2012

Prática Jurídica Interdisciplinar – Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; 2011/2012

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Abreviaturas:

CEDH – Convenção Europeia dos Direitos do Homem

CP – Código Penal

CPP – Código de Processo Penal

CRP – Constituição da República Portuguesa

DL – Decreto-lei

DUDH- Declaração Universal dos Direitos do Homem

JIC – Juiz de Instrução Criminal

pág –página

pp.- páginas

PIDCP – Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

StPO – Strafprozeßordnung (Códido de Processo Penal Alemão)

STJ – Supremo Tribunal de Justiça

TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TRL – Tribunal da Relação de Lisboa

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Índice

1. Introdução………………………………………………………………………………………………………………….…pág. 4

2. Princípios gerais relativos à obtenção de prova…………………………………………………………….pág. 6

3. O Direito (Processual) Penal do Inimigo…………………………………………………………………………pág. 9

4. As Escutas Telefónicas em Especial………………………………………………………….………………….pág. 12

4.1. Perspectiva histórica……………………………………………………………………………………….……pág. 12

4.2. Perspectiva comparada…………………………………………………….………………………………….pág. 16

4.3. Crítica ao catálogo fechado do artigo 187º CPP à luz do princípio da

proporcionalidade………………………………………………………………………………………………..…………pág. 20

4.4. Crimes que não foram incluídos no catálogo………………………………………………………..pág. 25

5. A concordância prática das finalidades conflituantes: a descoberta da verdade material e as

garantias processuais penais……………………………………………………………………………………….pág. 30

5.1. Princípio da Lealdade na Prova…………………………………………………….………………………pág. 31

5.1.1. O Direito ao Silêncio………………………………………………………………………………………pág. 31

5.1.2. A Protecção das Relações Familiares……………………………………………………..……..pág. 32

5.2. A Presunção de Inocência………………………………………………………………………….…………pág. 32

5.3. “Estabelecer a fronteira” num Estado de Direito…………………………………………….……pág. 33

6. Conclusão……………………………………………………………………………………………………………………pág. 35

7. Bibliografia……………………………………………………………………………………………………….…………pág. 37

8. Declaração de compromisso Anti-Plágio……………………………………………………………………..pág. 38

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1. Introdução:

O final do século XX e o início do século XXI foram marcados por um aumento da criminalidade

e, sobretudo, por novas formas da mesma, em particular a criminalidade organizada (muitas

vezes global e internacionalmente operante), na qual a comparticipação e a cumplicidade se

traduzem na utilização de meios sofisticados de comunicação não presencial, pelo que as

fronteiras da investigação são dissipadas e os meios físicos de obtenção de prova

relativamente ineficazes. Neste sentido, tem o Processo Penal Português vindo a admitir meios

de obtenção de prova decorrentes da recente evolução tecnológica, até então inimaginados,

os quais, embora contribuindo para uma maior eficácia das investigações, podem tornar-se

num factor de restrição a direitos, liberdades e garantias, em geral, e garantias processuais,

em particular. São eles os meios ocultos de obtenção de prova, designadamente as escutas

telefónicas, a figura do agente encoberto, o registo de som e imagem.

Como refere GERMANO MARQUES DA SILVA1, O moderno desenvolvimento dos métodos científicos

de investigação recolocou a problemática do respeito pela dignidade da pessoa humana em

termos tão prementes como relativamente a alguns dos métodos bárbaros do passado e, por

isso, a preocupação pela lealdade na obtenção da prova tem merecido consagração no próprio

direito internacional.

É neste contexto que surge o tema “Escutas Telefónicas, outros Meios Ocultos de Obtenção de

Prova e Garantias Processuais”, que nos propomos tratar com pertinência, no âmbito da

cadeira de Prática Jurídica Interdisciplinar, leccionada aos alunos do 4º ano da licenciatura em

Direito da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Este trabalho visa analisar o

regime da admissibilidade de obtenção de prova por meios ocultos de uma perspectiva

transversal entre os Direitos Fundamentais e o Direito Processual Penal.

Ofereceremos mais atenção ao meio de obtenção de prova previsto nos artigos 187º e

seguintes do CPP - as escutas telefónicas, às quais nos referiremos doravante como

intercepção de comunicações, pois o artigo 189ºCCP estende o regime daquelas à

correspondência electrónica e a qualquer meio de transmissão de dados por aquela via. Deter-

nos-emos, contudo, ao estudo do regime da admissibilidade, seus pressupostos e requisitos.

1 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal- volume I, 6ª edição, Lisboa, Verbo, 2010, pág. 81

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Trataremos do catálogo fechado de crimes que admitem o recurso à intercepção de

comunicações à luz do princípio da proporcionalidade, de uma perspectiva de jure

constituendo.

Após relacionarmos as mutações recentes do Processo Penal em matéria de meios de

obtenção de provas com o “Direito Penal do Inimigo” de Gunther Jakobs, e apurarmos de que

forma é que os meios ocultos de obtenção de prova colidem com os princípios fundamentais

de processo penal, procuraremos realizar um juízo de concordância prática das finalidades em

conflito2 no processo penal – a verdade material e a sua harmonização com as garantias

processuais do arguido, maxime o direito ao silêncio e a presunção de inocência.

Este trabalho procurará realizar uma aproximação prática, o que constitui naturalmente um

desafio para quem não ingressou ainda numa actividade profissional, desconhecendo as

frustrações e as vicissitude que ela acarreta. É, porém, um desafio que aceitamos com alegria,

pois compreendemos a importância de conjugar a prática com a teoria. Como refere O

Procurador Fernando Pinto Monteiro3:

O Direito não pode esquecer a realidade concreta que o justifica e para a qual existe, sob pena

de o divórcio entre o Direito e a Vida provocar aquilo a que um Jurista chamou a ‘revolta dos

factos contra o Código’.

A lenta maturação das leis não acompanha a acelerada evolução da sociedade, as

transformações sócio-económicas, a queda de vários padrões morais, o desenvolvimento

tecnológico.

Por tudo isto é necessário, muitas vezes, partir da prática para a teoria, teorizar a prática e não

só resolver as questões do dia-a-dia com recurso e ‘citação’ dos teóricos. Essa ausência de

teorização da prática é um dos males de que padecem as nossas leis.

2 Jorge de Figueiredo Dias; Direito Processual Penal, Lições na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, coligidas por Mª João Antunes, 1988/1989, pp. 41ss. 3 Manuel João Alves e Fernando Gonçalves, A Prova do Crime - Meios legais para a sua obtenção,

Coimbra, Almedina, 2009 (prefácio)

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2. Princípios gerais relativos à obtenção de prova

Em processo penal, a obtenção de prova está vinculada a certos princípios, decorrentes de

garantias constitucionais de defesa consagradas no artigo 32º, nº1 CRP. Enunciaremos aqueles

princípios de seguida, pois é à luz dos mesmos que analisaremos o regime dos meios ocultos

de obtenção de prova no Direito Processual Penal Português.

Apesar de corresponder a uma noção moral, que pretende compatibilizar a investigação e a

obtenção de prova com o sistema constitucional democrático4, o princípio da lealdade

processual é um princípio estruturante do processo penal e tem importância significativa na

fase de inquérito do Processo Penal, na medida em que constitui um pressuposto das garantias

de defesa do arguido, em particular com o princípio da presunção de inocência e com o direito

ao silêncio. Este princípio relaciona-se fortemente com o movimento de judicialização do

processo crime e de consagração constitucional das garantias do arguido, isto é, com a

consagração de um processo equitativo, que respeite a Dignidade da Pessoa Humana e a tome

como valor absoluto.

Assim foi consagrado nos artigos 5º e 12º da DUDH, nos artigos 3º e 8º da CEDH e no artigo 7º

do PIDCP.

É neste sentido que vem expressamente consagrado no artigo 32º, n.º 8 da CRP – são nulas

todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da

pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas

telecomunicações, isto é aquelas e outras actuações, que, por revelarem uma investigação

conflituante com os direitos fundamentais das pessoas e por deterem um carácter pouco

objectivo, são consideradas desleais, quando praticadas durante a investigação e invalidam a

prova obtida, em virtude dos artigos 125ºCPP e seguintes.

Como refere JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: A legalidade dos meios de prova, bem como as regras

gerais de produção de prova e as chamadas proibições de prova são condições de validade

processual da prova, por isso mesmo, critérios da própria verdade material.

Assim, o princípio da verdade material, que enunciaremos de seguida, está vinculado aos

limites impostos pelo princípio da lealdade e da legalidade da prova, ou seja não se trata de

uma verdade histórica, mas de uma verdade processual, condicionada a outros interesses

4 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal volume I, 6ª edição, Lisboa, Verbo, 2010, pág. 81

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prosseguidos pelo processo. A isto denominou JORGE DE FIGUEIREDO DIAS5 “o princípio da

concordância prática das finalidades em conflito”.

O princípio da investigação ou da verdade material refere-se à competência do juiz para

oficiosamente ordenar a produção de todos os meios de prova, não existindo em processo

penal um ónus da prova. Aquela competência estende-se aos actos que entenda necessários

para a “descoberta da verdade” e à “boa decisão da causa”. Quanto a estas duas expressões

explica PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE6 o seguinte:

a) A “descoberta da verdade” respeita à imputação dos factos da acusação e da contestação,

à determinação das incriminações e das sanções e à fixação de responsabilidade civil.

b) A “boa decisão da causa” respeita à verificação dos pressupostos processuais, incluindo a

determinação da competência do tribunal e da legitimidade dos sujeitos processuais, e à

decisão de todas as questões prévias, interlocutórias e incidentais, incluindo a verificação

dos pressupostos das medidas de coacção e de garantia patrimonial.

Estas expressões são repetidas nos preceitos reguladores do Processo Penal relativos à matéria

da produção de prova (artigos 323º a) b), 340º, nº1 e n.º2 CPP), e também em preceitos

relativos à obtenção de prova (artigo 187º CPP).

Em conexão com o princípio da investigação ou da verdade material encontra-se o dever de

colaboração dos sujeitos processuais no processo, o qual se desdobra em 4 deveres

diferenciados em função dos sujeitos vinculados à colaboração: o dever de colaboração do

Ministério Público com o Tribunal, no sentido de descobrir a verdade material, enquanto

promotor da acção penal e defensor da legalidade democrática; o dever de colaboração do

assistente com o Tribunal e o Ministério Público (69º, nº1 CPP), enquanto “co-acusador” no

processo; o dever de colaboração dos órgãos de polícia criminal com o tribunal, tendo em

conta o seu papel de coadjuvação das autoridades judiciárias, com vista à realização das

finalidades do processo; o dever de colaboração do lesado e do demandado com o tribunal ou

com o Ministério Público, com vista à boa decisão da causa, no que respeita a questões de 5 JFD – direito processual penal, 1988/1989, Lições na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, coligidas por Mª João Antunes, pp. 41ss.; 6 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do código de processo penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, anotação ao artigo 4º (nota 44)

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responsabilidade civil. Fica, porém, excluído do dever de colaboração o arguido, que beneficia

de um direito ao silêncio, previsto no artigo 61º, nº1, d), não estando obrigado a fornecer

respostas sobre os factos que lhe sejam imputados, não sendo o seu silêncio valorado contra

si.

O princípio da presunção de inocência está previsto no artigo 32º, nº2 CRP, sendo também

consagrado no artigo 11º da DUDH e no artigo 6º da CEDH. Por um lado, consiste num

resultado de uma evolução histórica marcada pelo exercício abusivo do poder do Estado na

aplicação da Justiça, e, por outro, reflecte os valores do Estado de Direito, em particular a

liberdade e a dignidade da pessoa humana, os quais se opõem à ideia de culpabilizar alguém

sem um julgamento prévio no qual sejam produzidas provas que façam crer com certeza, face

à sua situação concreta, após lhe ser dada possibilidade de defesa, que os factos lhe deverão

ser efectivamente imputados.

Várias implicações processuais resultam da vigência deste princípio constitucional, tais como

os requisitos de legalidade, proporcionalidade e subsidiariedade da aplicação da prisão

preventiva, a obrigatoriedade de comunicação ao arguido da prova reunida contra si em

tempo útil, independentemente da prova recolhida ser favorável ou desfavorável ao arguido

(em relação com a garantia do contraditório) e a limitação de certos modos de obtenção de

prova, sendo vedados ou, pelo menos, significativamente restringidos os meios de obtenção

de prova que impliquem a intromissão na vida privada.

O artigo 32º, nº4 da CRP contém o princípio da reserva do juiz quanto aos actos

materialmente instrutórios, ao referir que Toda a instrução é da competência de um juiz, o

qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se

não prendam directamente com os direitos fundamentais. Deste preceito retiramos que a

obtenção dos elementos necessários para a decisão final que contendam com direitos

fundamentais não só é da competência de um juiz, como também a este não pode ser

subtraída.

Esta garantia constitui um limite ao poder de descoberta da verdade material do Estado e

reflecte-se na exigência de que a determinação dos actos de investigação potencialmente

lesivos de direitos fundamentais seja realizada por um juiz, havendo um fundamento razoável

e a exigência de que os actos em causa tenham lugar sob o seu controlo.

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3. O Direito (Processual) Penal do Inimigo

O Código de Processo Penal é a concretização das garantias conferidas aos cidadãos que são

alvo de investigação e enfrentam julgamento e constitui corolário de um Estado de Direito

Democrático.

Surgiu, porém, em 1985 um pensamento segundo o qual todas as formas de actuação e

intervenção processual penal são legítimas, em virtude da reserva das garantias processuais

para os cidadãos, em prejuízo das garantias do “inimigo”. Como Kant, Hobbes e Fichte,

entende Gunther Jakobs que o delinquente – aquele que recusa as regras do Estado de Direito,

pondo em causa os direitos e a liberdade alheias, de forma permanente, sem demonstrar

capacidade ou pretensões de ressocialização – deverá ser excluído dos benefícios que são

conferidos aos restantes cidadãos em nome do princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Deste modo, aqueles que são considerados meios ocultos ou enganosos de obtenção de prova,

como, por exemplo, as intercepções de comunicações ou a apreensão de correspondência, o

registo de imagem e voz, a vigilância intensiva pela utilização de agentes encobertos, ou a

quebra de segredos e sigilos profissionais, são legitimados face a estas pessoas e até preferidos

em relação a meios leais e menos intrusivos de prova. O suspeito não é passível de ser sujeito

processual, antes compete-lhe a qualidade de objecto, sendo, portante, mero instrumento

para atingir a verdade.

Deste modo, não lhe são conferidas garantias, já que nem sequer é exigível que a sua

condenação tenha lugar num contexto processual. Basta um procedimento que conduza à

descoberta da verdade (histórica, neste caso, não tanto a verdade condicionada ao processo,

pois este não existe).

Com efeito, este entendimento é contrário ao Princípio do Estado de Direito Democrático

(artigo2º CRP) e é incompatível com o regime vigente de Direitos Fundamentais e restrições

admissíveis aos mesmos, pois implica a sobrevalência da verdade material, aniquilando por

completo as garantias previstas pelo artigo 32ºCRP. Está, porém, presente na prática judiciária

e na política legislativa criminal mundial, de forma mais ou menos marcada, consoante os

riscos da sociedade em questão. Julgamos ser o resultado de um juízo de concordância prática

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das finalidades em conflito dos legisladores mundiais (em particular dos legisladores

europeus), que também o legislador processual penal português realizou7.

Por exemplo, o art. 55.2 da Constituição Espanhola8 prevê a possibilidade de suspensão, para

determinadas pessoas, e com a necessária intervenção judicial, de alguns direitos e liberdades,

como o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio, para fins de investigações sobre a

atuação de grupos armados ou elementos terroristas.

A lei portuguesa também contém regimes que admitem meios de obtenção de prova

restritivos dos direitos fundamentais e de garantias processuais, como por exemplo:

A) Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, que estatui o Regime jurídico das acções encobertas para

fins de prevenção e investigação criminal, legitimando o recurso a investigações desenvolvidas

por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Política

Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua

qualidade e identidade de agentes encobertos para os crimes previstos no seu artigo 2º, entre

os quais constam os crimes de contrabando, de terrorismo, de tráfico de estupefacientes, de

sequestro, de falsificação de moeda e relativos ao tráfico e detenção de armas, os quais

integram também o catálogo de crimes que legitimam a intercepção de comunicações (artigo

187º, n.º1 e n.º2).

B) Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece um regime especial de recolha de prova,

quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativa aos crimes previstos

no seu artigo 1º, entre os quais se incluem o crime de tráfico de estupefacientes, o crime de

terrorismo, o crime de tráfico de armas, o crime de contrabando e o crime de contrafacção de

moeda, os quais também integram o catálogo fechado de crimes que legitimam a intercepção

de comunicações (artigo 187º,n.º1 e n.º2).

A recolha de prova ao abrigo deste regime especial concretiza-se pelo registo de voz e imagem

por qualquer meio (artigo 6º) e basta-se com a sua necessidade, o que torna o acesso a este

meio de obtenção de prova mais fácil do que o recurso às escutas telefónicas, que requer a

verificação da indispensabilidade da diligência de prova.

7 Ver capítulo 5. 8 http://www.boe.es/aeboe/consultas/enlaces/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf

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Acresce que a lei n.º5/2002, de 11 de Janeiro, não restringe o registo de voz e imagem a um

elenco determinado de pessoas. É certo que, enquanto que as escutas telefónicas pressupõem

a interceptação de comunicações, ou seja registos de voz bilaterais, o registo de voz previsto

no artigo 6º deste regime se refere apenas a registos de voz sem destinatário, mas, ainda

assim, parece-nos que o regime estatuído nesta lei é mais intrusivo do que aquele previsto nos

artigos 187ºss CPP, ao conjugar voz e imagem. É menos lesivo dos direitos dos intervenientes

do arguido, mas mais lesivo dos direitos do próprio arguido. Ainda assim, é o regime de

intercepção de comunicações que detém carácter subsidiário.

Ou seja, a investigação e repressão da criminalidade organizada de carácter violento e de

carácter económico pode ser operada por vários meios de investigação de carácter oculto, isto

é, em que o alvo da investigação pode desconhecer estarem a ser tomadas diligências de

obtenção de prova contra si, o que pode contender com princípios fundamentais do processo

penal9.

Assim, surge uma preocupação especial em reduzir as situações em que a investigação através

destes meios ocultos de obtenção de prova são legitimados e é precisamente neste ponto que

surge a nossa preocupação em criticar um catálogo de crimes que admitem o recurso a

intercepção de comunicações10, que, a nosso ver, é excessivamente amplo.

9 Ver capitulo 5. 10 Ver capitulo 4.3.

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4. As Escutas Telefónicas em Especial:

4.1. História

O Direito Processual Penal Português integrou pela primeira vez as escutas telefónicas como

meio de obtenção de prova em 1987, no artigo 187ºCPP11, sendo que os únicos limites

impostos por lei à realização de escutas telefónicas eram, por um lado, o facto de a

autorização para tal diligência depender de ordem ou autorização do juiz, por despacho, e,

por outro lado, o facto de a realização de escutas se circunscrever a determinado elenco

taxativo de crimes. Assim se manteve o artigo 187º CPP, que contém os requisitos de

admissibilidade da realização de escutas telefónicas (não obstante tenha havido uma

alteração à alínea e) do seu n.º 1, que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de

Novembro, com vista a oferecer à redacção do artigo maior conformidade com a lei

substantiva, na parte em que esta previa o crime contido naquela alínea do catálogo).

Com efeito, até à alteração proporcionada ao CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a

redacção do artigo 187º CPP carecia de um catálogo subjectivo de alvos das escutas, de um

limite na duração da diligência, de uma restrição da diligência à fase de inquérito, sendo que

essas “lacunas” foram colmatadas pela actual redacção12. Nesta, embora tenha passado a ser

11 Artigo 187.º (Admissibilidade)

1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do juiz, quanto a crimes: a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos; b) Relativos ao tráfico de estupefacientes; c) Relativos a armas, engenhos, matérias explosivas e análogas; d) De contrabando; ou e) De injúrias, de ameaças, de coacção e de intromissão na vida privada, quando cometidos através de telefone, se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. 2 - A ordem ou autorização a que alude o n.º 1 do presente artigo pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes: a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada; b) Associações criminosas previstas no artigo 287.º do Código Penal; c) Contra a paz e a humanidade previstos no título II do livro II do Código Penal; d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo I do título V do livro II do Código Penal; e) Produção e tráfico de estupefacientes; f) Falsificação de moeda ou títulos de crédito prevista nos artigos 237.º, 240.º e 244.º do Código Penal; g) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima. 3 - É proibida a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento de crime. Redacção dada pelo seguinte diploma: Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro

12 Artigo 187.º (Admissibilidade)

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exigido ao juiz que fundamente o despacho pelo qual autoriza a realização das escutas

telefónicas, não é totalmente claro o grau de fundamentação para ele exigido, embora não

1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o

inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova

seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e

mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;

b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;

c) De detenção de armas proibidas e de tráfico de armas;

d) De contrabando;

e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando

cometidos através de telefone;

f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou

g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores.

2 - A autorização a que alude o número anterior pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder

efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal,

tratando-se dos seguintes crimes:

a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada;

b) Sequestro, rapto e tomada de reféns;

c) Contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal e previstos na

Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário;

d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo I do título V do livro II do Código Penal;

e) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete

para o artigo 262.º e 267.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º, do Código Penal;

f) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

3 - Nos casos previstos no número anterior, a autorização é levada, no prazo máximo de setenta e duas horas, ao

conhecimento do juiz do processo, a quem cabe praticar os actos jurisdicionais subsequentes.

4 - A intercepção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente

da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra:

a) Suspeito ou arguido;

b) Pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou

transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou

c) Vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.

5 - É proibida a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se

o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento de crime.

6 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações são autorizadas pelo prazo máximo de três

meses, renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite, desde que se verifiquem os respectivos requisitos de

admissibilidade.

7 - Sem prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em

outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por

pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1.

8 - Nos casos previstos no número anterior, os suportes técnicos das conversações ou comunicações e os

despachos que fundamentaram as respectivas intercepções são juntos, mediante despacho do juiz, ao processo

em que devam ser usados como meio de prova, sendo extraídas, se necessário, cópias para o efeito.

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nos detenhamos com esta questão, a qual julgamos devidamente resolvida13. Temos, então,

actualmente, como pressupostos de admissibilidade da intercepção e gravação de

conversações telefónicas previstos no artigo 187º CPP: Em primeiro lugar, a existência de um

processo em curso, em cuja fase de inquérito o Ministério Público requeira ao Juiz de

Instrução Criminal a autorização de realização da diligência em causa. Com efeito, a

obrigatoriedade de correr um inquérito quanto ao crime que motiva o recurso à intercepção

das comunicações foi assegurada pelo acórdão do STJ de 30 de Março de 2000. Este alerta

para o facto de a intecepção de comunicações não constituir uma medida cautelar, nem de

polícia, não podendo ter lugar com uma finalidade de prevenção, mas apenas com fins de

prova ou de auxílio na investigação num processo já iniciado. Em segundo lugar, o crime em

causa deve integrar o catálogo fechado de crimes que admitem intercepção de

comunicações, previsto no artigo 187ºCPP. Reunidos estes pressupostos cumpre ainda

verificar os requisitos de admissibilidade: Mostrando-se a diligência indispensável para a

descoberta da verdade ou mostrando-se que a prova seria impossível ou difícil de obter por

um outro meio naquele processo e visando apenas as pessoas que legitimamente possam

constituir alvos da diligência (187º. n.º4 e n.º5), caberá ao JIC autorizar a realização da escuta

telefónica (em respeito ao princípio da reserva do juiz quanto aos actos materialmente

instrutórios), através de um despacho judicial fundamentado, no qual indicará o resultado de

um juízo de proporcionalidade, adequação e necessidade da diligência ao caso concreto,

contendo, pelo menos a indicação do crime investigado, a pessoa visada, bem como a fonte

de conhecimento.

O legislador pretendeu que a autorização judicial discriminasse os crimes que justificam a

escuta telefónica e os elementos probatórios que fazem fundadamente supor que a prova

desse crime é “impossível ou muito difícil” sem a escuta telefónica, no entender de PAULO

PINTO DE ALBUQUERQUE14.

13 Carlos Adérito Teixeira, “Escutas Telefónicas: a mudança de paradigma e os velhos e os novos problemas” in Revista do CEJ, N.º9, 2008 – Será, por certo, o de uma fundamentação de nível intermédio: Não se cinge à fundamentação da generalidade dos despachos que o JIC profere nos autos, nem é expectável que constitua uma motivação equivalente à de uma sentença condenatória.” No mesmo sentido, também Ana Raquel Conceição, Escutas Telefónicas – Regime Processual Penal, Lisboa, Quid juris, 2009 14 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do código de processo pena à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, anotação ao artigo 187º (nota 5)

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As Escutas Telefónicas, outros Meios Ocultos de Obtenção de Prova e as Garantias Processuais

As profundas alterações, consideradas positivas face ao regime anterior pela maioria da

Doutrina15, foram fortemente motivadas pela vinculação do legislador ao Direito

Internacional, em particular pelas indicações jurisprudenciais do Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem, criadas a partir das suas sentenças relativas à matéria da admissibilidade

das escutas telefónicas.

Na verdade, a realização de escutas telefónicas, mais do que qualquer outro meio de

obtenção de prova e, independentemente das restrições impostas por lei à sua

admissibilidade, é tendencialmente lesiva dos direitos fundamentais, tais como o direito à

reserva da vida privada e familiar, na medida em que afecta não só o alvo da escuta, mas

também todos aqueles que intervierem na comunicação, o direito à palavra falada, o direito à

inviolabilidade do domicílio e da correspondência, o direito à honra, ao bom nome a à

reputação, especialmente se houver lugar a divulgação das gravações obtidas pela

comunicação social ou por outro meio de exposição pública, incluindo o próprio julgamento.

Para além de terem consagração e protecção constitucional expressa, enquanto direitos,

liberdades e garantias pessoais, designadamente nos artigos 26º, n º1; n.º2 e 34º, n.º1 CRP,

aqueles direitos estão também previstos em elementos de Direito Infra-Constitucional, que

vinculam o legislador português em virtude do artigo 8º CRP: O artigo 12º da DUDH confere

protecção a todas as formas de comunicação e a intromissões arbitrárias na vida privada que

afectem valores como a honra, o bom nome ou a reputação. Encontramos normas

semelhantes no artigo 17º do PIDCP e no artigo 8º da CEDH. É seguro afirmar que esta norma

se refere também à protecção de conversas telefónicas, porém a decisão do TEDH do caso

Klass e outros v. Alemanha (de 6-09-1978)16 firmou essa posição, tendo considerado que as

comunicações telefónicas são inerentes à noção de vida privada que a CEDH protege.

Outras decisões do TEDH sobre a admissibilidade das escutas telefónicas17 firmaram o

carácter potencialmente lesivo da intercepção de conversações de direitos, liberdades e

garantias dos cidadãos, dando origem a orientações quanto a medidas que os legisladores 15 Vide Revista do CEJ, n.º9,2008 16 Klass and others v Federal Republic of Germany, European Court of Human Rights (Series A, NO 28) (1979-80) 2 EHRR 214, 6 September 1978. 17Malone v. The United Kingdom, (Application No. 8691/79) (1984), 2 August 1984 Huvig v France, European Court of Human Rights (Series A, No 176-B; Application No 11105/84) (1990) 12 EHRR 528, 24 April 1990 Valenzuela Contreras v. Spain, European Court of Human Rights (No 83; Application No 27671/95) (1998), 30 September 1998

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deverão tomar para reduzir a margem de discricionariedade da ingerência do Estado na

esfera privada dos cidadãos, de modo a salvaguardar os direitos fundamentais destes. Das

decisões referidas, retiram-se as seguintes exigências legais quanto à admissibilidade das

escutas telefónicas, em concretização do princípio da proporcionalidade:

A disposição legal que define a extensão da admissibilidade das escutas telefónicas deverá

impôr que a ordem judicial delimite os sujeitos que serão alvo de escuta telefónica, deverá

conter a natureza dos crimes que originem o recurso a escutas telefónicas, deverá impôr um

limite máximo de duração das escutas, deverá prever o procedimento para a elaboração do

relatório sumário que contenha as conversas interceptadas e deverá prever o conjunto de

circunstâncias que determinam a destruição das conversas gravadas ou a possibilidade de

contraditório sobre elas.

4.2. Perspectiva comparada

Analisaremos agora, de forma sucinta, as regras de admissibilidade das escutas telefónicas

acolhidas pelo legislador em Espanha, Itália e Alemanha.

Itália18

Os requisitos de admissibilidade das intercepções das comunicações (telefónicas ou por via

informática) estão previstos no artigo 226º do Código de Processo Penal Italiano. A

18 art. 266. Limiti di ammissibilità. (http://www.slpc.eu/master/novembre/ART%20266%20CPP.pdf) 1. L'intercettazione di conversazioni o comunicazioni telefoniche [c.p.p. 295] e di altre forme di telecomunicazione è consentita nei procedimenti relativi ai seguenti reati [Cost. 15; c.p.p. 103] a) delitti non colposi per i quali è prevista la pena dell'ergastolo o della reclusione superiore nel massimo a cinque anni determinata a norma dell'articolo 4; b) delitti contro la pubblica amministrazione per i quali è prevista la pena della reclusione non inferiore nel massimo a cinque anni determinata a norma dell'articolo 4; c) delitti concernenti sostanze stupefacenti o psicotrope; d) delitti concernenti le armi e le sostanze esplosive; e) delitti di contrabbando; f) reati di ingiuria, minaccia, usura, abusiva attività finanziaria, abuso di informazioni privilegiate, manipolazione del mercato, molestia o disturbo alle persone col mezzo del telefono f-bis) delitti previsti dall'articolo 600-ter, terzo comma, del codice penale, anche se relativi al materiale pornografico di cui all'articolo 600-quater.1 del medesimo codice 2. Negli stessi casi è consentita l'intercettazione di comunicazioni tra presenti. Tuttavia, qualora queste avvengano nei luoghi indicati dall'articolo 614 del codice penale, l'intercettazione è consentita solo se vi è fondato motivo di ritenere che ivi si stia svolgendo l'attività criminosa.

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admissibilidade de recurso a esta diligência restringe-se à fase de inquérito e a um catálogo

fechado de crimes: crimes dolosos puníveis com pena não inferior a 5 anos, crimes contra a

administração pública puníveis com pena superior a 5 anos, crimes relativos a substâncias

estupefacientes e psicotrópicas ou a armas e explosivos, crimes de contrabando, crimes de

injúria, ameaça e perturbação através do telefone. Ou seja, o legislador italiano, tal como o

legislador português, adoptou um critério misto, que conjuga o critério quantitativo e o

critério da perigosidade dos crimes. São requisitos cumulativos de diferimento do

requerimento de recurso às intercepções das comunicações (efectuado pelo Ministério

Público – artigo 267º) a existência de indícios concretos da prática do crime e a

impossibilidade de obtenção de prova através de outro meio. O juiz que autorizar a

realização de intercepção das comunicações deverá verificar a existência de todos os

pressupostos e requisitos legalmente exigidos e indicá-los no despacho judicial de

autorização, o qual deverá ser fundamentado.

Excepcionalmente, isto é em casos de urgência em realizar a diligência, quando exista

motivo fundado para crer que a demora em proceder à intercepção das comunicações

possa causar prejuízo, está o Ministério Público autorizado a proceder à intercepção das

comunicações, desde que emita uma decisão fundamentada e comunique a diligência em

menos de 24h ao juiz competente, que decidirá se a intercepção deverá prosseguir (artigo

261º).

Espanha19:

19 Artículo 579. (http://noticias.juridicas.com/base_datos/Penal/lecr.l2t8.html)

1. Podrá el Juez acordar la detención de la correspondencia privada, postal y telegráfica que el procesado remitiere o recibiere y su apertura y examen, si hubiere indicios de obtener por estos medios el descubrimiento o la comprobación de algún hecho o circunstancia importante de la causa. 2. Asimismo, el Juez podrá acordar, en resolución motivada, la intervención de las comunicaciones telefónicas del procesado, si hubiere indicios de obtener por estos medios el descubrimiento o la comprobación de algún hecho o circunstancia importante de la causa. 3. De igual forma, el Juez podrá acordar, en resolución motivada, por un plazo de hasta tres meses, prorrogable por iguales períodos, la observación de las comunicaciones postales, telegráficas o telefónicas de las personas sobre las que existan indicios de responsabilidad criminal, así como de las comunicaciones de las que se sirvan para la realización de sus fines delictivos. 4. En caso de urgencia, cuando las investigaciones se realicen para la averiguación de delitos relacionados con la actuación de bandas armadas elementos terroristas o rebeldes, la medida prevista en el número 3 de este artículo podrá ordenarla el Ministro del Interior o, en su defecto, el Director de la Seguridad del Estado, comunicándolo inmediatamente por escrito motivado al Juez competente,

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O artigo 579º da Lei de Processo Penal Espanhola refere que o juiz pode autorizar a

intercepção de comunicações do mesmo modo que pode realizar apreensões da

correspondência, isto é, desde que existam indícios de que a intercepção pode contribuir

para a descoberta ou a comprovação de factos ou circunstâncias importantes na causa.

Apesar da decisão do TEDH contra Espanha no caso Valenzuela Contreras v. Espanha, de

1998, a qual determinou que a densificação legislativa espanhola era insuficiente para

garantir a salvaguarda dos direitos constitucionalmente protegidos em conflito, a lei

espanhola não contém um rol de pessoas que podem ser alvo da diligência, nem a

indicação do objecto a que ela se destina, não contendo um catálogo de crimes que

admitem o recurso à intercepção de comunicações, como o nosso artigo 187º CPP.

O artigo 579º, n.º4 da Lei Processual Espanhola admite ainda, tal como a lei Italiana, que,

em situações de urgência em investigar crimes cujos suspeitos sejam bandos armados,

terroristas ou rebeldes, é admissível proceder à intercepção de comunicações por decisão

do Ministro do Interior ou, na sua ausência, do Director da Segurança do Estado, estando

esta decisão sujeita a confirmação judicial posterior do juiz competente, o qual deverá

sempre realizar um controlo efectivo das operações de intercepção nas comunicações.

Alemanha:

O regime alemão da admissibilidade das intercepções das comunicações identifica certas

exigências para que seja considerado legítimo o recurso a um meio de obtenção de

prova restritivo de Direitos Fundamentais, como o é a intercepção de comunicações sem

consentimento do lesado. São elas:

- Ter como fim a localização ou a exploração de factos ((100a), nº1 do StPO);

- A observância de um elenco taxativo de crimes que legitimam a intercepção de

comunicações, previsto no parágrafo 100a), n.º2 do StPO20;

quien, también de forma motivada, revocará o confirmará tal resolución en un plazo máximo de setenta y dos horas desde que fue ordenada la observación. 20 Ver http://www.gesetze-im-Internet.de/stpo/BJNR006290950.html#BJNR006290950BJNG000902301

Do Código Penal: Traição, pôr em perigo o Estado Democrático ou a segurança externa, suborno e corrupção, crimes contra a defesa nacional, delitos contra a ordem pública, dinheiro e falsificação de selos, crimes contra a auto-determinação sexual, aquisição, divulgação ou posse de pornografia infantil, homicídio e homicídio doloso, crimes contra a liberdade pessoal, crimes de roubo e extorsão, lavagem de dinheito e ocultação de bens adquiridos ilegalmente, fraude, crimes de falsificação. O catálogo fechado extende-se ainda a crimes tipificados fora do Código Penal – no Código Fiscal, na Lei de

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- A consumação ou tentativa punível do crime investigado (§100a), nº1 StPO), deixando

de fora a intercepção de comunicações para se obter prova de actos preparatórios, já

que quanto a estes não pode correr um inquérito;

- A existência de fundadas suspeitas com base em factos determinados; que o recurso a

esta diligência de obtenção de prova seja subsidiário face a outros meios e que seja um

meio idóneo a produzir o resultado pretendido – ou seja, para além de ser impossível

obter o resultado necessário por outro meio de prova, menos lesivo de direitos e

interesses, é ainda necessário que seja demonstrado que a intercepção de

comunicações é um meio eficaz e adequado a obter a prova;

- A intercepção de comunicações restringir-se a um conjunto de alvos (§100a), nº3 do StPO).

O §100b) do StPO admite, tal como a legislação espanhola e italiana que o Ministério

Público proceda à intercepção das comunicações sem prévia autorização do juiz,

devendo este convalidar aquela opção em 3 dias.

Em 1986, coincidindo com o despertar da doutrina de Gunther Jakobs, surgiu em

Portugal uma proposta de lei do Ministério da Segurança Interna do XX Governo

Constitucional, que pretendia inserir na lei portuguesa norma semelhante - a

admissibilidade de intercepção de comunicações pelo Ministério Público, sem a

autorização prévia do juiz competente, que, posteriormente convalidaria a decisão.

Felizmente, não vingou.

Medicamentos, na Lei de residência, na Lei do comércio externo, na Lei sobre o combate à droga, na Lei sobre o controlo de armas de guerra, no Código Penal Internacional e na Lei do Armamento.

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4.3. Critica ao catálogo fechado do artigo 187º CPP à luz do princípio da proporcionalidade.

O catálogo fechado de crimes que admitem escutas telefónicas consubstancia, no

entendimento de MANUEL DA COSTA ANDRADE21, um juízo de ponderação inicial dos interesses

em conflito realizado pelo legislador. Subscrevemos esse entendimento, pois a gravidade da

lesão comportada pela realização de escutas telefónicas motiva a sua sujeição a um juízo de

proporcionalidade, isto é:

Em concretização do artigo 18º, n.º2 CRP, todas as restrições a direitos fundamentais devem

ser expressamente legitimadas pela CRP e deverão limitar-se ao necessário, mostrar-se aptas

para o efeito e ainda salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos. As leis

ordinárias que restrinjam direitos, liberdades e garantias terão de revestir carácter geral e

abstracto e não podem aniquilar, diminuir a extensão ou retirar o alcance do conteúdo

essencial dos preceitos constitucionais22, segundo o artigo 18º, nº3 CRP, que apela à

protecção da confiança, enquanto função do Direito e ao princípio da concordância prática,

enquanto meio harmonizador de situações de direitos fundamentais em conflito, que

trataremos noutro ponto.

Assim sendo, o legislador entendeu que a intercepção de comunicações, tratando-se de uma

medida de obtenção de prova altamente restritiva de direitos fundamentais, que extravasa a

esfera jurídica do suspeito, deveria revestir um carácter excepcional, de forma a respeitar os

requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade, impostos constitucionalmente

para qualquer lei restritiva de direitos fundamentais.

Porém, estamos em crer que o carácter de excepcionalidade em que se traduz o juízo de

proporcionalidade do legislador é uma falsa excepcionalidade, pois parece-nos que o

legislador caiu na tentação típica do legislador da sociedade de risco23 - de estatuir sob a

denominação de excepção aquilo que, em verdade, se trata de regra, embora devesse

constituir, de facto uma excepção.

21 Manuel da Costa Andrade, “Bruscamente no Verão Passado”, A Reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, Coimbra Editora, 2009, pág. 177 22 “o conteúdo essencial tem de ser entendido como um limite absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que justifica o direito.” – Jorge Miranda, Manual de direito constitucional - Tomo IV, 2ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pág. 308 23 Na terminologia de Ulrich Beck em BECK, Ulrich; Risk Society-Towards a new modernity (Theory, Culture & Society); Sage Publications, London, 1992 (tradução de Mark Ritter)

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Este aspecto torna-se especialmente relevante quando, como refere Mª DE FÁTIMA MATA-

MOUROS24: Na prática confunde-se a previsão legal do catálogo de crimes que admitem prova

por via de intercepções telefónicas com a legalidade das mesmas. E esta confusão é desde

logo detectável na gritante desproporção visível em múltiplos processos entre o volume e a

duração das intercepções telefónicas autorizadas e o resultado oferecido em sede de prova

adquirida. Ou seja, há demasiadas escutas desnecessárias!.

Isto é, o JIC, na prática, tem permitido que o legislador se substitua a ele, abstendo-se de

realizar um juizo prévio de proporcionalidade relativamente ao caso concreto e às exigências

da investigação. É que o referido artigo 18º, n.º2 CRP parece exigir um juízo de adequação da

diligência aos fins da investigação, devendo ele constar do despacho de autorização, bem

como parece exigir um exercício de exclusão de outros meios de obtenção de prova, de modo

à prossecução do carácter subsidiário das escutas telefónicas, ou seja, um juízo de

necessidade. Estes juizos só serão eficazes no momento do confronto com a diligência em

conexão a um crime determinado e visando uma pessoa concreta, pelo que o juízo de

ponderação inicial fornecido pelo legislador através do catálogo fechado contido no artigo

187.º CPP não basta para estarem reunidos os requisitos materiais de legalidade da

diligência.

Cumpre-nos, então, avaliar algumas opções do legislador para crimes-catálogo, à luz do

princípio da proporcionalidade:

- O critério da medida da pena abstracta superior a 3 anos de prisão:

A alínea a) do n.º 1 do artigo 187º CPP legitima o recurso a meios de intromissão nas

comunicações para crimes cuja medida abstracta máxima da pena seja superior a 3 anos, o

que, segundo MANUEL DA COSTA ANDRADE25, resulta numa violação do princípio da

proporcionalidade. Como este autor apontava antes da reforma ao CPP operada pela Lei n.º

26/2010, de 30 de Agosto, o legislador submete a generalidade dos meios de intromissão na

esfera privada dos cidadãos à pena abstracta máxima superior a 5 anos, como no caso de

prisão preventiva (artigo 202º CPP). Porém, após a alteração legislativa de 2010 ao artigo

24 Mª de Fátima Mata-Mouros, Direito à Inocência, 1ª edição, Estoril, Principia, 2007, pág. 214 25Manuel da Costa Andrade, “Bruscamente no Verão Passado”, A Reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, Coimbra Editora, 2009, pág. 55

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202º CPP, que ampliou a admissibilidade de medidas de coacção aos crimes com pena

máxima superior a 3 anos, conjugando o critério da medida da pena com o critério da

perigosidade dos crimes em causa, torna-se incoerente impor um critério de admissibilidade

de um meio de obtenção de prova que constitua uma medida da pena que excede o critério

de admissibilidade de uma medida de coacção privativa da liberdade, como o é a prisão

preventiva. Ainda assim, a dignidade criminal reduzida dos crimes punidos com uma pena

máxima inferior a 3 anos de prisão importa a sua demarcação face a meios de obtenção de

prova subsidiários e restritivos de DLGs. A verdade é que esta alínea resulta numa amplitude

grande de legitimidade de recurso à intercepção de comunicações, com as consequências

lesivas de DLGs que isso acarreta e, portanto, viola o princípio da intervenção mínima ao

qual estão vinculadas as restrições de DLGs ao abrigo do artigo 18º CRP. Com efeito, há um

conjunto significativo de crimes que ficam excluídos do recurso a este meio de obtenção de

prova, mas existe também um elenco bastante significativo de crimes em que as escutas são

admissíveis sem que possam ser um meio de obtenção de prova especialmente necessário,

não obstante, na prática, a verificação da legalidade das escutas não se restrinja ao catálogo

fechado, mas depende também de pressupostos de indispensabilidade da diligência no caso

concreto, ou seja de um juízo de idoneidade do meio e de proporcionalidade em sentido

restrito. Julgamos que um catálogo tão amplo não está, independentemente das opções

sistemáticas do legislador, em conformidade com a necessidade de proporcionalidade em

sentido amplo que a CRP e o TEDH26 exigem, especialmente se aquele juízo casuístico que

compete ao JIC realizar previamente à autorização da diligência for negligenciado. Estamos

em crer que a restrição deste meio de obtenção de prova a crimes com maior dignidade

penal seria favorável para reduzir o número de escutas e promoveria maior respeito pelo

princípio da intervenção mínima, numa era em que os JIC não se adaptaram ainda

plenamente à realidade que impõe o recurso a meios de prova mais ofensivos de direitos.

Cremos, contudo, que o critério relevante não deverá ser o da medida da pena dos crimes,

mas o da natureza do crime, isto é os crimes tipicamente praticados por via telemática, cuja

prova não será possível de outra forma que não a intercepção de conversações e de trocas

de dados telemáticos.

26 Caso Valenzuela Contreras v. Spain, European Court of Human Rights (No 83; Application No 27671/95) (1998), 30 September 1998

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- O crime de evasão:

A inserção do tipo de crime de evasão (352º CPP) no catálogo fechado pela alínea g) do n.º1

do artigo 187º CPP tem sido fortemente criticada na Doutrina, em particular por Mª DE

FÁTIMA MATA-MOUROS, que a classifica como inconstitucional, na medida em que o que neste

caso motiva o recurso à intercepção de conversações não é a necessidade de obtenção de

prova do crime de evasão ou a investigação do mesmo, antes é uma motivação conexa com

a investigação, que é a localização do sujeito evasivo ou a prevenção da continuidade da

prática de crimes pelo sujeito evadido.

De facto, o crime de evasão não se caracteriza pela dificuldade de prova dos elementos do

ilícito. Correndo inquérito contra um indivíduo suspeito do crime de evasão (artigo 352ºCP),

conhece-se o indivíduo em causa e o facto de ele se ter subtraído ao controlo das

autoridades prisionais, embora (re)conhecesse que o facto praticado é proibido por lei. São,

portanto, conhecidas a culpa e a ilicitude. Sendo estes os factos constitutivos do crime de

evasão, a verificação dos mesmos é bastante para imputar os factos ao evadido, sem que

seja necessária obtenção adicional de prova. O que não se conhece é o paradeiro do

indivíduo, sendo que a descoberta ou captura do mesmo não corresponde a nenhum fim

contido no artigo 187º CPP. Também não se conhece a eventual intenção de persistir na

prática de crimes. No entanto, havendo indícios para suspeitar da intenção criminosa do

evadido, caberá aos órgãos de polícia criminal adoptar as diligências necessárias para

prevenir eventuais crimes que o evadido possa cometer, mas essas diligências serão

independentes do crime de evasão, o qual se encontrará já consumado – desde o momento

em que o indivíduo, preso em conformidade com requisitos de legalidade, readquiriu a

liberdade através da prática do tipo de ilícito evasão.

Então, estamos de acordo com Mª DE FÁTIMA MATA-MOUROS quando refere que a inserção do

crime de evasão no catálogo dos crimes que legitimam a intercepção de comunicações é

desconforme com o artigo 18º CRP, na medida em que após um juízo de proporcionalidade

ela revela-se desproporcional por carecer a intercepção de comunicações de idoneidade

quanto aos fins prosseguidos, isto é: não se justifica afectar direitos fundamentais do

arguido do crime de evasão ou dos intervenientes nas suas comunicações quando o fim

realmente protegido é meramente a sua captura. Não é legítimo que o Estado se aproprie

de factos privados da vida do arguido quando eles são totalmente irrelevantes aos fins

perseguidos.

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Estamos porém de acordo com ANDRÉ LAMAS LEITE e HELENA SUSANO, quando os autores

referem que, sendo a localização por via celular a única forma possível de captura, ela

deverá ter lugar, de modo a que um agente de crime contra a autoridade pública não

permaneça impune e em liberdade, pois essa praxis contraria os fins do Estado de garantir a

segurança e contrariaria os fins do próprio direito penal, dos quais o direito processual penal

tem um importante papel de prossecução. Assim, julgamos que a admissibilidade da

localização celular em caso de evasão, independentemente de ter por objecto apenas os

crimes mais graves ou um elenco indeterminado, deverá ser expressamente prevista numa

norma autónoma do título do CPP referente aos meios de obtenção de prova, ou no artigo

de extensão do regime de admissibilidade das escutas telefónicas a outros meios de

intercepção de comunicações e dados – artigo 189º CPP, já que este artigo contém já, no

seu n.º 2, uma norma relativa à obtenção de dados sobre a localização celular, restringindo-

a aos crimes contidos no catálogo fechado. Ora, de uma perspectiva de iure constituendo,

pela qual o crime de evasão seja retirado do catálogo de crimes constante do artigo 187º,

n.º1 CPP, haveria naturalmente lugar a uma alteração da redacção do artigo 189, n.º 2 CPP:

A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular (…) só podem ser

ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a

crimes previstos no n.º1 do artigo 187º [ou quanto ao crime de evasão (por qualquer desses

crimes)] e em relação às pessoas referidas no n.º4 do mesmo artigo.

Diferente será a situação de um funcionário que permita, auxilie ou facilite a evasão de

alguém legalmente preso, estando, nesse caso, a cometer o crime de auxílio de funcionário

à evasão, tipicado no artigo 350º CP, bem como, igualmente diferente será a situação de

qualquer pessoa que liberte pessoa legalmente privada da liberdade ou instigue, promova

ou auxilie a sua evasão. A menos que o legislador se refira a evasão em sentido amplo,

integrando nesse tipo de crime também os tipos de crime previstos nos artigos 349º e 350º,

o que nos parece descabido, não encontramos motivos para o crime de evasão estar contido

no catálogo.

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4.4. Crimes que não foram incluídos no catálogo:

- Crime de violação de segredo de justiça (371º CP):

A questão da integração do crime violação de segredo de justiça não tem uma resposta fácil.

Por um lado, é certo que o alargamento do catálogo pode resultar na banalização das

escutas, o que não é desejável, tendo em conta que a sua finalidade no elenco de meios de

obtenção de prova é meramente subsidiária. Acresce ainda que, detém uma dignidade

penal reduzida, pelo que pode mostrar-se desproporcional inclui-lo no conjunto de crimes

quanto aos quais é admissível a intercepção de comunicações e as restrições a direitos

fundamentais que isso acarreta. Por outro lado, a sua inclusão no catálogo fechado teria

como finalidade efectivar a criminalização do mesmo, podendo esta intercepção de

comunicações mostrar-se indispensável para obter prova e identificar os agentes do crime,

dentro de um elenco de suspeitos que poderia ser constituído não só pelos advogados ou

por funcionários judiciais, mas também por magistrados. Com efeito, o crime de violação de

segredo de justiça, para além de nefasto para o processo, quer ao perturbar a investigação,

quer ao colocar em causa certos direitos do arguido e da vítima, não é fácil de investigar

sem a intromissão da investigação nos meios que habitualmente são utilizados para o

praticar (telefones, correio electrónico, mensagens escritas…). A inclusão deste crime no

catálogo do artigo 187º CPP traria, portanto, benefícios para o processo, na medida em que

teria efeitos preventivos da prática do crime, cujo bem jurídico protegido (o segredo de

justiça) se relaciona com os interesses do processo penal.

Em princípio, afigura-se um meio necessário e idóneo à investigação deste tipo de crime,

pelo menos enquanto a cultura jornalística e a ética dos intervenientes nos processos

permitirem a manutenção da prática da violação do segredo de justiça.

- Crime de difamação (180ºCP):

Ao crime de difamação (artigo 180º CP) corresponde uma moldura penal abstracta máxima

de 6 meses de prisão. Segundo o critério da medida da pena e da dignidade penal do crime,

seria desproporcional incluí-lo no catálogo fechado de crimes que legitimam o recurso à

diligência das intercepções de comunicações.

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Porém, segundo a alínea e) do n.º 1 do artigo 187º CPP, os crimes de injúria (181ºCP),

ameaça (153º CP), coacção (154º CP), devassa da vida privada e perturbação da paz e

sossego (192º CP), conquanto tenham sido cometidos através do telefone ou, segundo a

extensão prevista no artigo 189º CPP, através de correio electrónico ou outra qualquer via

telemática e, segundo a alínea f) do mesmo artigo, os crimes de ameaça com prática de

crime (305º CP) ou de abuso e simulação de sinais de perigo (306º CP), legitimam o recurso

à intercepção de comunicações privadas, não obstante a sua menor dignidade criminal face

aos restantes crimes que integram o catálogo fechado. Este aspecto justifica-se por as

gravações das conversas ou os registos das comunicações constituírem, por vezes, em

relação a este crime o único meio existente de provar a ocorrência dos factos e de os

imputar ao seu agente.

Porém, o crime de difamação (artigo 181º CP) podendo ser cometido por por via telemática,

designadamente através de sites na Internet como os fora ou blogs, não admite o recurso à

intercepção telefónica ou de dados, pelo que não podem ser utilizados como meios de

prova os resultados dessa intercepção, sob pena de se estar a violar os artigos 187º CPP e

126º, n.º 3 CPP.

Não obstante a proibição legal de intercepção de comunicações fora dos crimes referidos no

catálogo fechado, houve duas decisões de Tribunais da Relação que defenderam a

admissibilidade das intercepções telefónicas ao crime de difamação por interpretação

extensiva:

No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Janeiro de 2011, está em causa um

requerimento do Ministério Público com vista à obtenção da identificação completa e

morada das pessoas a quem foram atribuídos os IPs que o Ministério Público identifica, no

âmbito de um processo pelo crime de difamação, tendo sido publicados num blog, juízos de

conteúdo ofensivo à honra de uma das pessoas referidas na alínea l), n.º2 do artigo 132ºCP.

O JIC indeferiu o acesso pelo Ministério Público à informação pretendida, por o mesmo não

ser legalmente admissível, uma vez que tais elementos integram a tipologia de dados de

tráfego, nos termos do artigo 4º da Lei 41/2004, de 18 de Agosto, estando por isso sujeitos

ao sigilo das comunicações electrónicas, podendo apenas ser fornecidos nos casos

expressamente previstos na lei. Ora, ao crime de difamação corresponde uma pena máxima

abstracta inferior a 3 anos de prisão (6 meses) e também não tem correspondência em

nenhuma das alíneas de b) a g) do n.º 1 do artigo 187º CPP. O Ministério Público apresenta

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recurso do despacho judicial de indeferimento, fundamentando que Sem a obtenção de tais

elementos não será possível avançar com a investigação nos presentes autos uma vez que só

através dessa informação é que será possível identificar a pessoa ou pessoas que publicaram

o referido “post” no blog “….”. O recurso interposto pelo Ministério Público acolhe

provimento diante do seguinte entendimento do Tribunal: Considerando que o bem jurídico

protegido pelos crimes de injúria e difamação é o mesmo, deve entender-se que este é

abrangido pela alínea e) do nº1, do art.187, CPP, integrando, assim, os crimes de “catálogo”

referidos nesse preceito. Utiliza a argumentação do acórdão proferido pelo Tribunal de

Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010: Tendo no decurso do inquérito sido

participado contra desconhecidos um crime de difamação agravada praticada através da

Internet, e visando-se apurar dados de tráfego de comunicações electrónicas (dados

relativos às ligações do computador de um agente a um fornecedor de serviço de acesso à

Internet), cujo acesso só é possível, nos termos legais, através de autorização do JIC, o

regime aplicável é o prevenido no artº 187º, por remessa do artº 189º do C.P.Penal. E tal

conclusão decorre exactamente da equiparação do crime de difamação ao crime de injúria,

sob pena de, doutra forma, a prática dum crime de injúrias por via telemática só ser possível

aquando duma videoconferência, situação completamente restritiva e injustificada quando

num qualquer crime de difamação em causa estão precisamente os mesmos bens jurídicos

que no crime de injúrias. O correio electrónico nunca seria possível de interceptar e gravar

porque, por natureza, lhe falta a “presencialidade”, elemento crucial para a verificação do

mencionado crime de injúrias.

Parecem-nos aquelas decisões inadmissíveis face ao princípio geral de interpretação das leis

previsto no artigo 9º do Código Civil27, aplicável através da remissão do artigo 4º CPP. Com

efeito, não podem ser aplicadas soluções que não tenham qualquer correspondência com a

letra da lei.

A própria interpretação extensiva utilizada pelo Tribunal, que o artigo 11º do Código Civil

autoriza para as normas excepcionais, não se compadece com este caso. Como refere o

27 1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

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artigo 4º CPP, apenas as disposições do processo civil que se harmonizem com o processo

penal poderão ser a este aplicadas e, neste caso, o que o Tribunal pretende é a aplicação de

uma solução excepcional restritiva de direitos fundamentais a um caso para o qual essa

solução não está expressamente prevista por lei, como exige o artigo 18º, n.º3 CRP. Um

entendimento pela não taxatividade do elenco seria desvirtuar o regime excepcional e

subsidiário previsto no artigo 187º ss. CPP.

Porém, numa perspectiva de iure constituendo, poderemos apurar se existem razões para

não incluir o crime de difamação no elenco de crimes que admite o recurso à intercepção de

comunicações e de dados. Perante este contexto é necessário apurar se a exclusão do crime

de difamação do catálogo foi ou não intencional. Por um lado, parece-nos menos razoável

ou provável que um crime de difamação seja praticado pelo telefone. No entanto, por

correio electrónico ou por outro modo de transmissão telemática de fácil propagação de

dados já se afigura possível a prática de actos passíveis de ofender publicamente a honra ou

a consideração, de forma a preencher-se o tipo de ilícito em causa.

Contudo, a admissibilidade de escutas telefónicas seria desproporcional na medida em que

o fim da diligência nunca seria a intercepção do conteúdo transmitido, pois esse será de fácil

acesso tendo em conta a publicidade inerente ao mesmo em que se substancia o tipo de

crime, mas apenas os dados que permitam a identificação do difamador. Por isso, julgamos

que poderia o crime de difamação integrar o catálogo, sendo competência do juiz delimitar

o alcance da intercepção de dados, de forma a que a mesma abranja apenas dos dados de

tráfego.

Assim, parece-nos que o catálogo fechado de crimes, sendo definido por um critério

quantitativo, isto é referente à moldura penal abstracta dos crimes, torna excessivamente

permissivo o recurso à intercepção de comunicações. Aliás, sendo o recurso à intercepção

de comunicações permitido apenas quando indispensável, ao passo que o recurso à

gravação de imagem e som tem lugar sempre que necessário, não se compreende como o

catálogo fechado do artigo 187ºCPP, que pretende legitimar um meio de obtenção de prova

excepcional, pode, no estado actual das leis, ser mais amplo do que o catálogo do artigo 1º

da Lei n.º5/2002, de 11 de Janeiro.

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Deste modo, seria razoável que o catálogo fechado fosse o mais restrito possível, fazendo a

intercepção de comunicações corresponder a um meio de obtenção de prova utilizado

apenas quanto aos crimes praticados por telefone, correio electrónico ou outro meio

técnico diferente do telefone e quanto aos crimes mais graves, apurados não em função de

um critério de medida da pena, mas em função da utilidade e indispensabilidade que este

meio de prova possa representar na sua investigação. Julgamos que isso corresponderá a

um catálogo um pouco mais aproximado do catálogo previsto no artigo 1º do regime

especial de recolha de prova, que visa o combate à criminalidade organizada (lei n.º5/2008,

de 11 de Janeiro).

Uma alteração legislativa deverá densificar os pressupostos de autorização da intercepção

de comunicações e exigir expressamente do juiz uma fundamentação baseada num juízo de

proporcionalidade, no qual demonstre que o recurso à intercepção de comunicações

restringe ao mínimo os direitos envolvidos e não só que corresponde a exigências de

investigação, pois como refere Mª DE FÁTIMA MATA-MOUROS28, certo é que a exigência da

autorização judicial não constituirá, naturalmente, salvaguarda suficiente da intimidade das

pessoas e da reserva das telecomunicações, se se traduzir numa mera tramitação

burocrática ou, na expressão conhecida, “um cheque em branco” para os investigadores

policiais.

28 Mª de Fátima Mata-Mouros, Direito à Inocência, 1ª edição, Estoril, Principia, 2007, pág. 210

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5. A concordância prática das finalidades conflituantes: a descoberta da verdade material e

as garantias processuais penais

É verdade irrefutável que, citando MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE29, Temos uma relação

agri-doce entre as esferas operativas e normativas situadas espaço-temporalmente em polos

de convergência.

Konrad Hesse formulou30 que, a interpretação da Constituição está vinculada a um esforço

hermenêutico, pelo qual os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou

concorrência, devem ser tratados de maneira a que a afirmação de um não implique o

sacrifício do outro, o que é alcançável na aplicação prática da lei. Tem em vista a harmonização

de interesses não hierarquizáveis em conflito, como o são os preceitos constitucionais,

particularmente os direitos, liberdades e garantias entre si.

Trata-se de um exercício de ponderação, cujo resultado deverá ser a aplicação simultânea dos

interesses em conflito, ou seja compatibilizá-los face ao caso concreto, o que impõe que o

núcleo essencial de ambos permaneça intacto, pois só na manutenção da eficácia das normas

que tutelam os interesses divergentes a restrição de um e de outro será legitima, sob um juizo

de proporcionalidade. Um e outro deverão manter a maior extensão possível, que permita

ainda salvaguardar os interesses contrários. É isso que dispõe o artigo 18º, n.º3 da CRP.

A estrutura acusatória do processo penal visa precisamente esse objectivo. Por um lado, a

existência de uma investigação séria, por outro lado o controlo efectivo de um juiz sobre todos

os actos que se relacionem com direitos fundamentais, bem como a transposição do resultado

da investigação para a acusação, a qual marca o final da fase de inquérito, sendo, assim,

garantido ao arguido um momento de defesa quanto aos factos que na acusação lhe são

imputados. Resta saber se os meios ocultos de obtenção de prova se compadecem com os

princípios fundamentais do processo penal, em particular com garantias conferidas ao arguido

pelo artigo 32ºCRP, já que, nos termos do artigo 58º, n.º1, é obrigatória a constituição de

arguido logo que, correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja

suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade

29 Manuel Monteiro Guedes Valente, “Terrorismo e Processo Penal” in II Congresso de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 2006 30 Konrad Hesse. A Força normativa da Constituição (Tradução de Gilmar Ferreira Mendes), Porto Alegre, Sérgio A. Fabris Editor, 1991

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judiciária ou órgão de polícia criminal. Julgamos que o suspeito da prática de um crime que

seja alvo de um meio oculto de obtenção de prova deverá beneficiar da qualidade processual

conferida ao arguido, não obstante a ressalva do artigo 60º CPP, pela qual os direitos e

garantias que àquele são conferidos não prejudicam a efectivação de diligências probatórias.

5.1. Princípio da Lealdade na Prova:

O Princípio da Lealdade na prova, que enunciámos no ponto 2 deste trabalho, está

consagrado no artigo 32º, n.º8 CRP e tem como corolários o direito do arguido previsto no

artigo 61º, n.º1, al c) de conhecer os factos que lhe são imputados antes de prestar

declarações perante qualquer entidade e, segundo o artigo 61º, n.º1, alíneas e) e f), de

constituir um defensor e ser por ele acompanhado. Ora, estas faculdades estão subtraídas ao

arguido que seja alvo de escutas, se entendermos que as escutas telefónicas são equiparáveis

à prestação de declarações, quando, por exemplo, têm por conteúdo uma confissão.

5.1.1. O Direito ao Silêncio:

O direito ao silêncio, como referimos no capítulo 2 deste trabalho, constitui uma

decorrência do princípio da lealdade da prova consagrado no artigo 32º, n.º8 CRP. Traduz-

se no direito do arguido a não contribuir positivamente para a sua condenação e à

impossibilidade de valoração de provas produzidas contra a sua vontade ou sem o seu

consentimento. Do mesmo modo que pode conhecer os factos que lhe são imputados

antes de prestar declarações, poderá também conhecer quando está a prestar

declarações. Consiste no expoente máximo da demarcação do Direito Processual Penal

face aos procedimentos que não conferem garantias aos suspeitos que são alvos de

investigação, como os procedimentos incriminatórios da Idade Média e num corolário do

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Com efeito, no nosso Processo Penal a

confissão deverá ser livre para que possa ser valorada.

O artigo 61º, n.º1, alínea d) CPP refere expressamente a existência de um direito ao

silêncio, ao eximir o arguido à resposta a perguntas relativas aos factos que lhe forem

imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles prestar. Os meios ocultos

de obtenção de prova (como a intercepção de comunicações por via telefónica ou

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electrónica, os agentes em acções encobertas ou o registo de voz) detêm a

particularidade de forçar declarações de um suspeito a quem ainda não foram imputados

factos, pois ainda não houve acusação.

Assim, quando o meio de obtenção de prova tem por alvo o arguido, existe uma efectiva

compressão do seu direito ao silêncio.

5.1.2. A Protecção das Relações Familiares

Embora não constitua uma garantia processual conferida ao arguido, consiste numa

tutela decorrente do princípio da lealdade que a lei processual confere à família e à

sociedade no geral. Corolário desta tutela é o artigo 134º que admite a recusa a depor

como testemunhas os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao segundo

grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido. Ora, é questionável a

admissibilidade de qualquer destas pessoas ser alvo de intercepção de comunicações,

caso não se suspeite de actividades criminosas praticadas entre estas pessoas.

5.2. A Presunção de Inocência.

A presunção de inocência é uma garantia constitucional (32º, n.º2 CRP) que reflecte a

preocupação pela liberdade e pela dignidade da pessoa humana, impondo que ninguém seja

considerado culpado previamente à conclusão de um julgamento. Sucede que se colocam

limitações a esta garantia, em virtude do carácter necessariamente mediático inerente aos

resultados dos meios ocultos de obtenção de prova, maxime num contexto de publicidade

do processo penal, como é o caso no regime vigente. Tendo em conta o elevado grau de

exposição dos alvos daquele meio de prova, em particular quando o resultado por eles

obtido se traduz em gravações de som ou imagem, que possam ser propagadas nos meios

de comunicação e sugerir junto da opinião pública a efectiva existência de culpa,

dificilmente haverá uma presunção real de inocência do indivíduo. Como refere Mª DE

FÁTIMA MATA-MOUROS31, Perante um tal tratamento dado a presumíveis inocentes, não

consigo sequer imaginar aquele que sobrará para uma declaração de culpa comprovada.

31 Mª de Fátima Mata-Mouros, Direito à Inocência, 1ª edição, Estoril, Principia, 2007, pág. 38

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5.3. “Estabelecer a fronteira” num Estado de Direito

É premente estabelecer a fronteira entre a restrição das garantias processuais conferidas

aos arguidos e a mera aniquilação das mesmas, instrumentalizando os actos do arguido,

transformando-o num objecto do processo, ao invés da qualidade de sujeito processual que

lhe compete. Esse juizo caberá antes de autorizar a diligência e caber-lhe-á durante o

controlo da mesma, ao apurar que restrições aos direitos das pessoas é razoável impôr.

Na prática, não é razoável interceptar uma conversa entre um suspeito da prática do crime

de homicídio e o seu pai, na qual se converse sobre o crime cometido e o suspeito afirme

expressamente que o praticou. Para além de certamente existirem meios menos intrusivos

na esfera jurídica do indivíduo e das suas relações familiares que permitam a investigação

do crime com igual eficácia, este meio de obtenção de prova carece de lealdade face ao caso

concreto, pois nem o arguido estaria obrigado a confessar a prática, nem o seu pai a

reproduzir aquela conversa se chamado a depor, ao abrigo do artigo 134ºCPP.

Também nos parece desleal utilizar como meio de prova uma conversa entre o suspeito da

prática do crime e outro interveniente, da qual se retire por si só conteúdo bastante que

prove a sua culpa na prática do crime, pois, mais uma vez, o arguido nunca estaria obrigado

a contribuir positivamente para a sua condenação. Legítimo será recorrer àqueles meios de

prova, incluindo a intercepção de comunicações, em termos subsidiários, quando, havendo

já indícios suficientes da prática do crime, apenas falte obter a prova. Parece ser isso que a

lei pretende transmitir, tanto relativamente à obtenção de prova como relativamente à

investigação do crime.

Porém, já será razoável, respeitados aqueles limites, utilizar estes meios contra

criminalidade violenta e organizada que coloque em perigo efectivo a liberdade e a

segurança dos cidadãos, sob pena de esses crimes, que atentam realmente contra o Estado

Democrático ficarem por investigar. Deverá, pois o legislador restringir estes meios de

obtenção de prova a ameaças reais e efectivas à liberdade e segurança dos cidadãos, sob

pena de se cair num processo autoritário e de estes meios de obtenção de prova, ditos mais

eficazes, perderem essa eficácia.

Independentemente do grau de restrição das garantias processuais do arguido - em nome

da efectivação das diligências probatórias e da descoberta da verdade, em virtude do

princípio do Estado de Direito, não pode o interesse da descoberta da verdade restringir por

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completo as garantias processuais. É com isso em mente que o legislador confere um

carácter excepcional aos meios ocultos de produção de prova, submetendo a sua utilização

a um carácter, pelo menos, necessário e a um catálogo fechado de situações. É também por

isso que não são admissíveis estas medidas fora de um processo criminal.

As garantias do arguido, como o direito ao silêncio e a presunção de inocência são

pressupostos de uma sociedade livre e democrática, onde só encontram validade para

efeitos processuais as confissões livres e conscientes.

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6. Conclusão:

Confrontamo-nos pois com um problema: A sociedade mudou e o processo penal é feito de

garantias, consagradas ao longo da sua evolução, tendo em vista o respeito pela dignidade da

pessoa humana. Há quem defenda que o processo penal vigente é demasiado garantístico e

que o futuro passa necessariamente por uma alteração profunda do mesmo no sentido de

acolher de uma forma ampla meios eficazes de investigação.

Claus Roxin compara o processo penal a um sismógrafo da sociedade. Na sua esteira, Gregor

Stächelin, associa as escutas telefónicas à figura de um sismógrafo da evolução do processo

penal.

O mesmo é aplicável a todos os meios ocultos de obtenção de prova. O modo como a eles

recorre a investigação pode constituir um critério de avaliação do estado da Justiça e até da

própria sociedade. Uma realidade processual marcada pelo menosprezo das garantias dos

cidadãos e pela banalização de meios de obtenção de provas desleais, apenas legitimados a

título excepcional, só poderá ter lugar numa sociedade em que as relações pessoais e

profissionais entre as pessoas se traduzem numa total devassa. Uma sociedade que, por seu

lado não aceite tal realidade, mas se veja confrontada com ela, caracterizar-se-á por uma

vivência num medo alargado da intromissão dos meios policiais na vida privada.

Uma realidade processual em que às garantias dos sujeitos processuais, conquistadas ao longo

da evolução do processo penal, se sobrepõem outros interesses só pode consistir num

retrocesso civilizacional e numa negação do Estado de Direito Democrático.

É certo que hoje nos deparamos com mais frequência do que nunca com crimes mais

violentos, incertos, de planeamento e execução sofisticados e de agentes difíceis de capturar.

Enquanto a criminalidade colocar os meios de investigação convencionais numa situação de

insuficiência fase aos agentes do crime, deverão os meios de investigação socorrer-se de meios

adicionais de prova, mais eficazes, que diminuam tal desvantagem.

E é certo que a investigação penal tem pela frente um desafio no sentido de combater essa

criminalidade – violenta e sem vítimas certas, como o terrorismo, ou tão sofisticada que os

seus efeitos nefastos sejam difíceis de delimitar, como a criminalidade económica. O maior

desafio será, contudo, o do legislador processual penal, a quem caberá delimitar a fronteira

entre o interesse público e as garantias dos arguidos e a densificação das leis restritivas de

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direitos, liberdades e garantias, como o são as leis que admitem meios ocultos de obtenção de

prova.

Para que o cidadão comum, ao tornar-se suspeito de uma investigação criminal, possa

reivindicar as garantias processuais que lhe pertencem por direito, que hoje dá como

adquiridas, a lei terá de sindicar uma maior credibilidade das informações recolhidas pelos

órgãos de polícia criminal e impôr maior transparência por parte dos juízes que emitem

despachos de autorização de medidas de obtenção de prova contendentes com aquelas

garantias.

As medidas de investigação que contendam com direitos, liberdades e garantias dependem de

um teste prévio de proporcionalidade e devem, independentemente da ameaça à segurança

pública que estiver em causa, salvaguardar interesses e direitos de modo a que estes

mantenham a sua eficácia.

Então, deverá a prática servir-se destes meios a favor do processo e não contra os indivíduos,

devendo resistir à tentação da objectivação dos suspeitos.

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7. Bibliografia:

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ANDRADE, Manuel da Costa, “Bruscamente no Verão Passado”, A Reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, Coimbra Editora, 2009

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MATA-MOUROS, Mª de Fátima, Sob-Escuta reflexões sobre o problema das escutas telefónicas e as funções do juiz de instrução criminal, Cascais, Principia, 2003

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MEIREIS, Manuel Augusto, “Homens de Confiança. Será o Caminho?” in II Congresso de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 2006

MIRANDA, Jorge, Manual de direito constitucional - Tomo IV, 2ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 2000

SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal- volume I, 6ª edição, Lisboa, Verbo, 2010

TEIXEIRA, Carlos Adérito, “Escutas Telefónicas: a mudança de paradigma e os velhos e os novos problemas” in Revista do CEJ, N.º9, 2008

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes, “Terrorismo e Processo Penal” in II Congresso de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 2006

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Declaração de Compromisso de Anti‐Plágio

Declaro, por minha honra, que o trabalho que apresento é original e que todas as

minhas citações estão correctamente identificadas. Tenho consciência de que a

utilização de elementos alheios não identificados constitui uma grave falta ética e

disciplinar.

Sofia Ferreira Nogueira Leite

Lisboa, 8 de Junho de 2012