"PARECE QUE É UMA COISA ATÉ MEIO NORMAL, NÉ?" ANÁLISE DE NARRATIVAS SOBRE "RISCO" EM CRECHES ...

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"PARECE Q,UE É UMA COISA ATÉ MEIO NORMAL, NÉ?" A'NÁLISE DE NARRATIVAS SOBRE "RISCO" EM CRECHES DE FAVELAS Colette Daiute (Graduate Center - CUNY) Zena Eisenberg (PUC-Rio) Vera M. R. de Vasconcellos (U ERJ) Resumo Neste artigo, analisamos uma entrevista coletiva, realizada como parte de uma pesquisa, que investiga o desenvolvimento mais amplo de práticas e mudanças na Educação Infantil ocorridas no Rio de Janeiro, a partir de narrativas de algumas de suas atoras. Depois de discutir nossa abordagem teórica sobre narrativa como ferramenta cultural que produz sentidos e ressignifica o desenvolvimento mútuo entre indivíduos e sociedade, apresentamos os resultados da análise da entrevista coletiva realizada com três jovens professoras, observando como elas, usam suas narrativas para fazer conexões entre suas experiências pessoais e profissionais trabalhando e vivendo em ambientes de alto risco (favela). Com base numa modalidade de uso da narrativa, desenhamos as entrevistas de forma a convidar as participantes a se posicionarem de diferentes formas com relação a seu trabalho como professoras de educação infantil nos contextos de risco. As análises se concentraram nas expressões referenciais (explícitas) e de avaliação (implícitas) do perigo/risco vivido, de modo a compreender como interpretam o mesmo à luz de suas atuações como professoras, isto é, em termos de suas interações - direção/ professores; pais/professor; pais/filhos. As oscilações entre visões positivas sobre seus ambientes e histórias de eventos repletas de significados negativos indicam a compreensão de uma finalidade social, criativa e adaptável do ser professora comprometida com as perspectivas futuras Educ. foco, Juiz de Fora, Edição especial, p. 209-228 ago12012

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"PARECE Q,UE É UMA COISA

ATÉ MEIO NORMAL, NÉ?"

A'NÁLISE DE NARRATIVAS

SOBRE "RISCO" EM CRECHES

DE FAVELAS

Colette Daiute (Graduate Center - CUNY)Zena Eisenberg (PUC-Rio)

Vera M. R. de Vasconcellos (U ERJ)

ResumoNeste artigo, analisamos uma entrevista coletiva, realizadacomo parte de uma pesquisa, que investiga o desenvolvimentomais amplo de práticas e mudanças na Educação Infantilocorridas no Rio de Janeiro, a partir de narrativas dealgumas de suas atoras. Depois de discutir nossa abordagemteórica sobre narrativa como ferramenta cultural queproduz sentidos e ressignifica o desenvolvimento mútuoentre indivíduos e sociedade, apresentamos os resultadosda análise da entrevista coletiva realizada com três jovensprofessoras, observando como elas, usam suas narrativaspara fazer conexões entre suas experiências pessoais eprofissionais trabalhando e vivendo em ambientes dealto risco (favela). Com base numa modalidade de uso danarrativa, desenhamos as entrevistas de forma a convidaras participantes a se posicionarem de diferentes formascom relação a seu trabalho como professoras de educaçãoinfantil nos contextos de risco. As análises se concentraramnas expressões referenciais (explícitas) e de avaliação(implícitas) do perigo/risco vivido, de modo a compreendercomo interpretam o mesmo à luz de suas atuações comoprofessoras, isto é, em termos de suas interações - direção/professores; pais/professor; pais/filhos. As oscilaçõesentre visões positivas sobre seus ambientes e históriasde eventos repletas de significados negativos indicam acompreensão de uma finalidade social, criativa e adaptáveldo ser professora comprometida com as perspectivas futuras

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ago12012Iza: As pessoasfalam: "favela não, comunidade" ....Nadia: ... Quem não vivencia, que só vê pela televisão fica

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e o desenvolvimento em condições nem sempre favoráveisde crianças muito novas e suas famílias. Interpretamos essesresultados buscando entender o uso da narrativa comoferramenta simbólica para lidar com a vida em ambientesextremamente difíceis e, sobretudo, a possibilidade de quepesquisas e práticas futuras possam dar suporte a jovensprofessoras como as aqui apresentadas, que acabam por atuarcomo agentes de mudança em espaços de vida e de trabalhoperigosos como os das favelas.Palavras-chave: narrativas; ambientes de alto risco (favela).

AbstractIn this paper, we analyze an interview as an event embeddedin the broader development of early childcare practice andreformo After discussing our foundational theory aboutnarra tive as a cultural tool for sense-making and mutualindividual-societal development, we present results ofanalyses to examine how three young teachers use narratingto connect their personal and social activities working andliving in high-risk favelas. Based on a theory of narra tiveuse, the interview design invited participants to positionthemselves in different ways in relation to their work asteachers in dangerous coritexts, and analyses examined theteachers' meaning making about risk in terms of the variousfunctional positions. Analyses focus on referential (explicit)and evaluative (irnplicit) expressions of danger/risk to revealthat these teachers interpret risk in the light of their roles asteachers, that is in terms of moments of bonding (betweenceriter director and teacher; parents/teacher; parent/ child).Such oscillating between positive views about their environsand stories of events fraught with negative meaningsindicates the creatively adaptive .social purpose of being ateacher focused on the perspectives and plights of the veryyoung children and families. We interpret these results forinsights about the use of symbolic tools like narrating tomanage life in extremely challenging environments and, inparticular, the possibility that [uture research and practicecan support young teachers' roles as agents of change in spiteof the dangers of living and working in favelas.Keywords: narra tive; living in high-risk favelas.

Narrando a vida cotidiana

muito mais assustado do que quem mora lá, né? Então assimpra algumas pessoas elas nem iam trabalhar quando tinhaalguma coisa que viam pela televisão.Luar: Ah, eu conheço pouco. Eu moro lá deve ter uns quatro

. anos. Hoje em dia eu saio de casapara o trabalho, do trabalhopara casa. Não costumo ficar na rua e antes do trabalho queaí eu conhecia menos ainda. O trabalho fez com que euconvivesse um pouco mais com aspessoas que moram ali. É,mas assim, no geral é calmo.

Com base nos fundamentos da teoria socioculturalde desenvolvimento (Vygotsky, 1978), afirmamos que acapacidade humana na produção de sentidos envolve umainteração intensa com circunstâncias sociais e materiaisda vida cotidiana em contextos de risco. O ato de narrar,em especial, é uma ferramenta poderosa para entender oque acontece no ambiente e como cada um se adequa aele (Daiute & Nelson, 1997). Assim como acontece comoutras ferramentas culturais, a narrativa é mais um processodinâmico para interagir no mundo,fazendo coisas em vez desomente relatar sobre elas.

À medida que as crianças adquirem as noções básicasda estrutura narrativa, elas podem então usá-Ia para entendernovos contextos (Nelson, 1996) e ajustar suas narrativas àsexpectativas e oportunidades dos que a ouvem em diver-sos contextos (Daiute& Nelson, 1997). As análises dodesenvolvimento dos efeitos de ambientes difíceis têmmostrado, por exemplo, que jovens que crescem em cidadessuperpovoadas e etnicamente conturbadas nos EstadosUnidos (Daiute et al., 2003) e no contexto de conflitoarmado (Daiute, 2010) interagem com esses ambientes comonormativos, usando a narrativa junto com outros recursosculturais, de organizações sociais e atividades de reconstruçãocomunitária, lidando de forma adaptável e criativa com assituações de perigo. De acordo com essa teoria, a narrativaé um processo dinâmico de mediação, o que exige quecriemos e desenhemos pesquisas que enfatizern os discursosnas interações sociais. A mediação aqui é um processo deinteração entre jovens e as circunstâncias em que vivem para

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criar e compartilhar significados por meio de ferramentassimbólicas: "um meio pelo qual a atividade humana externaprocura dominar e triunfar a natureza" resulta nos "sinais" ouem conhecimento que é um "meio, uma atividade interna queserve para a pessoa conhecer-se a si própria" (Vygotsky, 1978,pp. 55). Esta visão de processo de desenvolvimento sugereque jovens estão sempre particularmente familiarizados comseus ambientes, desafios e oportunidades. Com base nessasideias, empregamos duas fases de análise de narrativa paraexaminar como as jovens professoras deste estudo interagemcom o "risco" em seu trabalho e em suas vidas.

Este trabalho, foca na visão de jovens profissionaisenvolvidas num processo de repensar a educação infantil, noRio de janeiro, ao longo de vários anos (Vasconcellos, 2009-2011). Utiliza a análise de suas narrativas para interagir comos valores e as práticas delas mesmas e dos outros (presentese imaginários) nos ambientes (favelas) em que vivem etrabalham. Isto significa usar a narrativa, entre outros meiosde discurso, para explorar normas, desafios, necessidades,exigências e descobertas.

Acreditamos que, quando utilizamos a narrativa comoferramenta, observamos como as pessoas em ambientesconturbados podem, com bastante perspicácia, utilizar gênerosde interpretação para se conformarem às normas culturaise para preservarem seu self em situações de perigo a quepossam estar expostas (Oliveira, 1999). Argumentamos que anarrativa pode servir como autoproteção para lidar com risco,ao reconhecê-lo coletivamente como, por exemplo, ou ao seposicionar como ator social junto com ou em lugar de outraspessoas. Ao elaborarmos uma pesquisa com estes pontos emmente, percebemos que há muito que aprender, não só com anarrativa de experiências pessoais - quando o narrador fala emprimeira pessoa, como protagonista da história - mas tambémcom a narrativa sobre outras pessoas: dando um passo paratrás e focando os outros, narrando em nome deles, como asprofessoras o fazem quando concordam em faÍar sobre riscoatravés da apresentação das necessidades de seus alunos.

MÉTODO BASEADO NA TEORIA DE USO DANARRATIVA

Uma entrevista única foi elaborada de forma acompreender como professoras que trabalham com crianças emfavelas falam sobre risco e perigo. Desenhamos uma entrevistacoletiva com o intuito de registrar como as jovens professorasentendiam estes conceitos em suas vidas pessoais e de trabalho.Partimos do princípio de que questões que envolvem "risco"para jovens professoras que se deparam com ele no dia a diade seus trabalhos nas creches dentro ou próximo a favelas doRio de Janeiro, estão arraigadas nas características mundanas davida cotidiana: na necessidade de lidar com essas circunstâncias(que é o lócus do desenvolvimento) e na normalização do queparece estranho para aqueles que só o veem na televisão, comoNadia ilustra no exemplo acima.

Três professoras participantes de um estudo emandamento, realizado por Vasconcellos (2009- 2011) atua-ram deste estudo. Essas professoras vivem e trabalham emdiferentes áreas da cidade. Todas escolheram seu local detrabalho com base na distância de sua residência. Uma das trêsprofessoras vive e trabalha dentro de uma favela, enquantoas outras duas vivem próximo a, mas não dentro da favela.Além disso, elas têm tempo diferente de experiência comoprofessora: Nadia era professora há cerca de 12 anos, enquantoLuar tinha 4 anos de experiência e Iza apenas dois anos.

Como partimos da hipótese de que o reconhecimentode problemas que envolvem perigo e risco seria difícil dedetectar, elaboramos a entrevista coletiva em três movimentos,convidando as participantes a se posicionarem em relação amúltiplas questões ligadas ao seu trabalho e às suas vidas.

Em consonância com a teoria histórico-culturalsobre a organização do pensamento e do comportamentode ordem superior em termos de atividade intencional(Vygotsky 1978), começamos a entrevista com uma perguntasobre objetivos ("Por que você decidiu tornar-se umaprofessora?"), atividades específicas ("Qual foi sua melhor

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experiência em seu trabalho como professora?"; "Qual foi suaexperiência mais difícil em seu trabalho como professora?"),e interpretações explicitamente reflexivas (perguntas diretassobre perigo e risco). Essas perguntas, feitas durante conversacom outros educadores (as três autoras deste artigo), em umespaço educacional familiar (o N úcleo de Educação Infantilde uma Universidade), invocaram compreensões de seudesenvolvimento como professoras no contexto mais amplode mudanças educacionais. Dentro dessa visão, a finalidadeda entrevista era fornecer um espaço de reflexão coletiva queproduzisse atos de discurso e não somente o relato de fatosocorridos fora daquele espaço. Consideramos como temasinteressantes as interaçôes sobre os espaços de vida - a favela nasociedade brasileira contemporânea, as mudanças estruturaisna Educação Infantil e a prática cotidiana, vivida por elas, assimcomo as interações de construção de significados do próprioprocesso da entrevista. Por essas razões, a entrevista não sótratou da questão de risco concreto, mas foi uma atividadeque buscou desenvolver, no coletivo, o significado de risco emrelações sociais simbólicas e materiais. A entrevista foi gravadaem vídeo e em áudio, transcrita, traduzida e codificada pelosautores e suas equipes de pesquisa. A análise de confiabilidadeem pesquisa foi feita por alunos/bolsistas dos dois grupos daspesquisadoras brasileiras.

Questionar as experiências melhores e mais difíceistem por base a tradição de pesquisa em Psicologia. Utiliza-se a narrativa para identificar a construção de significadosculturalmente importantes em eventos de tristeza (atémesmo dolorosos) (Labov & Waletzky, 1967/1997). Narrarexperiências "boas" e "ruins" revela valores e normas culturaise pessoais, como, por exemplo, o que .seria ideal que umnarrador revelasse quando protagonista de uma história(Daiute, 2010). Para as jovens professoras aqui entrevistadasentendemos que, por causa do envolvimento por três anoscom a pesquisa e a prática de educação infantil, a escolhaque fizeram para suas experiências "boas" ecoou valotes quehaviam discutido/aprendido sobre o que significa fazer umbom trabalho. Está também relacionada à sensibilidade delas

próprias, ao interagir com suas histórias pessoais, como aspessoas e os eventos cotidianos em seus locais de trabalho,além de suas orientações subjetivas. Como os programas deeducação (inicial e continuada) também fornecem espaçospara que professoras iniciantes discutam problemas e osinterpretem teoricamente, as narrativas das experiênciasmais difíceis ampliaram o leque de critérios possíveis paraseleção destas experiências. Este processo de seleção de qualexperiência narrar é naturalmente feito na hora da entrevista,assim, é implícito, o que significa que também dependemos denosso processo de socialização com dispositivos de narrativadesenvolvidos ao longo do tempo, da vida assim como no cursoda entrevista. Como ex-professora delas e atual coordenadorada pesquisa, Vasconcellos foi a entrevistadora principal, numambiente em que elas habitualmente se encontravam. Como aentrevista coletiva foi realizada como parte da pesquisa maior,as professoras assumiram uma posição ativa, e não passiva,como habitualmente ocorre em entrevistas mais tradicionais.

Nossas análises concentraram-se nas atividadesdiscursivas da entrevista e nas narrativas nela contidas, emtermos de complexidade relacional - isto é, em avaliar asinterações das participantes entre si, com os contextos maisamplos em que estão trabalhando e com o mundo simbólicoilustrado no texto da conversa.

Analisamos1) menções explícitas de perigos e riscos de um modo

geral e no contexto onde trabalham,2) menções de perigos e riscos como são representados

com referência a personagens, inclusive à próprianarradora e a outros sujeitos mencionados pelaspartiCIpantes, e

3) a significância da narradora entre as narrativas dasmelhores e mais difíceis experiências.

Apresentaremos agora resultados de nossas análises,oferecendo uma melhor compreensão da naturalizaçãodo risco, considerando o risco em contextos profissionaiscoletivos e realizando o riscoatravés do uso de dispositivoslinguísticos, sobretudo ao recontar as "experiências mais

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difíceis" em seu trabalho como professoras. Nessas trêssessões de resultados, desenvolvemos o argumento de queas professoras parecem minimizar o foco explícito sobre operigo e o risco, quando na verdade estão lidando com estesquando a formulação simbólica (da pergunta da entrevistae das várias respostas possíveis) envolve narrar como atorcom os outros e em nome de outros.

FASES DE REFERÊNCIA E DE AVALIAÇÃO

A análise das fases de referência e de avaliação deuma narrativa permite-nos escutar bem de perto como asnarradoras estão usando suas histórias pessoais para fazera ligação de histórias literais com as de outras pessoas emdiferentes situações de interação e em contextos mais amplos.Os narradores tecem espontaneamente linhas de significado- interagindo no mundo real bem como em qualquer eventoexpressivo imaginário (Labov &Waletzky, 1967/1997). Umalinha de significado parte mais do mundo, na medida em queassimilamos a linguagem adquirida ao longo de nossas vidasem vários contextos culturais relevantes. A outra fase dosignificado se dirige interativamente para o mundo, entre onarrado r e o público (incluindo o próprio narrador). Essasrelações recíprocas da narrativa ocorrem com uma precisão naqual podemos nos basear nas pesquisas procurando reconhecera dinâmica do significado coletivo e individual. A fase dereferência do significado é o que observamos - as declaraçõesexplícitas, os substantivos, os verbos, as palavras que podemosprocurar em um dicionário - enquanto a fase de avaliação dosignificado é o que observamos menos - as palavras pequenas,as palavras entre os substantivos e os verbos, -algumas nodicionário, outras aparentemente erros, ou sem sentido. Asfases de referência e de avaliação do significado servem apropósitos diferentes que se entrelaçam - a primeira conta ahistória e a segunda pergunta por que o narrador está contandoa história. O significado envolve ambas.

As análises da fase de referência do significadoenvolveram a identificação de cada referência explícita

a "risco", "perigo e conceitos qu.e a equipe de pesquisaconsiderou serem indicadores de riscos e perigos, com baseem sua experiência da situação brasileira contemporânea, taiscomo "polícia", "crime", etc. Menções explícitas a tais palavrase conceitos foram identificadas, e sua frequência foi calculada.As palavras foram então examinadas no contexto discursivoem que estava inserido para avaliar se e como um falantecomentava sobre o risco, isto é, para melhor defini-lo, expandi-10 ou, como aconteceu muitas vezes, para qualificá-Io.

As análises da fase de avaliação do significado incluírama identificação de coocorrências de menções de risco compersonagens da narrativa e a identificação de dispositivos deavaliação que incluíam expressões para estados psicológicos(expressões cognitivas tais como "pensar", "saber", etc),conectores causais (tais como "porque", "mas"), negações("não", "nunca", 'não' em "não pode", etc) e adjetivosqualificativos (tais como "bom", "ruim", "grande", etc). Ascoocorrências de personagens com as declarações de referênciade risco/perigo tiveram sua frequência calculada por tipo depersonagem, incluindo as posições de sujeito da primeirapessoa ("eu") e as posições de sujeito da terceira pessoa no("crianças", "mãe", "pai"). As frequências dos vocábulos deavaliação por narrativa foram divididas pelo número total depalavras da narrativa resultando numa relação para fins decomparação. Abaixo, descrevemos e interpretamos o padrãodessas análises de como as professoras atribuíram significadosde referência e de avaliação na entrevista para se conectar comas questões de interesse na pesquisa.

NATURALIZANDO O RISCO

Iza: Pareceaté uma coisa meio normal, né? Que o marido tápreso, marido não, às vezes é só o pai da criança mesmo né?Tá preso ou já éfalecido.

Como aparece nesta citação por uma das professoras, paraviver e trabalhar em circunstâncias extremamente perigosas épreciso compreender essas circunstâncias como "até normais".

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Ao observar a entrevista como um todo, percebemos umacontradição aparente nas narrativas das professoras. Elasmencionam o perigo e o risco, às vezes explicitamente e, commais frequência, com palavras relacionadas, tais como "tiros"e "polícia". Começamos nossa análise com uma revisão dessasmenções explícitas no contexto em que eram utilizadas. Aentrevista incluiu 12.824 palavras, na maioria proferidas pelasprofessoras entrevistadas. As palavras relacionadas a perigo/risco só aparecerem 113 vezes, o que nos pareceu surpreendente.De um modo geral, os temas apresentados pelas professorassão os mesmos: polícia, tráfico, viciados, drogas, confrontosentre a polícia e traficantes. Os qualificadores incluem: medo,amedrontado, barulho e cercado. Dessas 113 menções, éinteressante notar que 57% delas referem-se a "polícia" (17%),"perigo" (10%), "tiros" (10%), "ação" (9%), criminoso (6%)e tiroteios (6%). Ao observar cada narrativa podemos ver queas palavras risco e perigo estão presentes em toda a entrevista,mas em maior concentração em duas partes específicas: quandosão interrogadas sobre a distância entre a casa e o trabalho eno final, quando são perguntadas explicitamente sobre sua piorexperiência e sobre o risco. Embora as professoras incluam emsuas narrativas os conceitos de perigo e risco, ao mesmo tempo,eles minimizam a importância dos mesmos, apresentando ideiasmuitas vezes contraditórias sobre seu local de trabalho.

A professora Nadia, por exemplo, está falando sobrea violência presente na favela onde mora, mas a minimiza aodizer que tudo pode ser apenas um boato:

Exemplo 1: Nadia: 'Jih, muitos são rumores, né? Asconversas aí, As conversas aí, as pessoas falam que tem umnúmero maior de traficantes por causa das UPPs, né?"

Em outra parte da entrevista, a professora Iza afirmaque seu local de trabalho é mais seguro, quando comparadocom outras comunidades, destacando imediatamente operigo e sua relativa segurança.

Exemplo 2: Iza: (...) Mas não partiu dali de onde está acreche, lá é mais seguro se a gente pensar nas outras comunidadesque tem em volta. Tem um grande número de assaltos perto,ali perto.

Neste exemplo, uma das entrevistadoras menciona adroga e a professora justifica tal presença praticamente culpandoa creche,. por ter um muro baixo, 9 que facilita a invasão.

Exemplo 3: Vera: Mas a creche é um alvo de crack?Luar: É porque ela é muito baixinha, os muros são

baixos, e muito fácil de pular ali na creche.Exemplo 4: Iza: Bem, onde se localiza a creche é cercadopor

comunidades também, e tem uma na encosta, mas essacomunidadeque tem na encosta se a gente for considerar ela é um pouco maistranquila, ela serve como ponto de encontro para o tráfico parauma outra comunidade que é maior, que é a São João.

N esse exemplo a professor considera que a comunidade écalma, mas nos diz que é um ponto de encontro para traficantesde drogas da comunidade vizinha, o que obviamente implicaempengo.

Exemplo 5: Iza: ( ). Mas onde fica localizada a creche,eu desde que trabalho lá só tive um problema, mesmo assim, emrelação a tiroteio.

Aqui, mais uma vez, a professor minimize o perigo,indicando que desde que ela trabalha na creche ocorreuapenas um "problema" e, mesmo assim, foi um tiroteio -fazendo parecer que tiroteio não apresenta perigo para aspessoas no entorno. Seu discurso é contraditório do pontode vista do que exatamente constitui perigo.

Em suma, estes exemplos apresentam um conflito sobrea vida e o trabalho em áreas propensas a perigos; demonstramque, por um lado as professoras tentam acostumar-se ao fatoe, por outro, de forma intermitente lembram-se do perigo. Épossível que as pessoas que vivem sob perigos diários tenhamum limiar alto para o que consideram perigo e risco e, por isso,o que surge numa conversa formal como a entrevista coletivapode não abranger essas questões de forma mais ampla. Podeser também que a simbolização destas questões sirva paraorganizar a realização do perigo na atividade discursiva deforma minimizao medo e a tensão, ou, colocado de uma formadiferente, que sirva para fornecer uma proteção contra as máslembranças e sentimentos contidos.

Um fator situacional que pode explicar as contradições

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nos discursos das professoras é que elas podem fazersuposições sobre quais expectativas e suposições aspesquisadoras têm em relação às pessoas que vivemdiariamente com o risco e o perigo. Elas podem quererentão, identificar-se com as entrevistadoras (que são, nofim das contas, semelhantes a elas, no que tange a vidaacadêmica) e eleger um self que se descola da realidade. Nãoobstante, ao longo da entrevista e quanto mais deparadascom questões que abordavam a realidade do risco, surgeuma dissonância cognitiva no discurso coletivo. Falandoem termos do conceito de reconhecimento (Honneth,2002), aqui criamos a hipótese de que as representaçõesque as professoras fazem do que esperamos delas e como asvemos podem estar em conflito com a forma como queremse apresentar e serem reconhecidas. Para entender melhor see como essas explicações são plausíveis, ampliamos a análiseda fase referencial da entrevista abarcando um exame da fasede avaliação do significado da narrativa.

ENVOLVIMENTO COLETIVO DO "RISCO"

É interessante observar que as menções feitas pelasprofessoras sobre desconforto pessoal raramente ocorreramjunto com menções de perigo/risco. Embora o foco daentrevista tenha sido explorar se e como jovens professoras quetrabalham em favelas perigosas enfrentavam riscos, somentequatro de 11 menções de desconforto pessoal ocorreram juntocom as menções de perigo/risco, e somente três de 8 mençõesde desconforto individual de crianças ocorreram junto comas menções de perigo/risco. Com base em nossa perspectivateórica de que a narração é um processo formador de sentidoe de ressignificações consideramos, ainda, que a minimizaçãoaparente do risco pessoal para si mesmas e para as crianças pelasquais são responsáveis pode ser uma orientação adaptativa aomodo de vida nessas circunstâncias.

Nadia: É, to acostumada né? Eu já não fico tão assustada,eu só me assusto muito se meu filho não tiver em casa, ai

eu fico meio apavorada, mas quanto a mim, em relação aotrabalho de tá havendo algum confronto e caso eu estejadentro da creche né? Eu não fico tão apavorada, eu tento narealidade manter a calma, porque as crianças ficam agitadasné? Porque elas vivenciam isso também, só que elas nãosabem lidar tão bem quanto nós né? Então assim tentoaumentar um pouco o som do DVD, distraí-Ios né? Pegaros brinquedos, os livrinhos, alguma coisa pra tentar tira-losdesse foco, do barulho né?

As expressões mais explícitas referentes a perigos eriscos em uma favela surgem quando a conversa discorre sobreas crianças e famílias. Embora as histórias na primeira pessoatendam a ser boas ou neutras, ou até mesmo controladas, asnarrativas em que crianças, famílias, e especialmente o paidas crianças são citados, são as histórias mais explicitamentehorríveis. A análise das coocorrências de perigos/riscos e depersonagens indicam que as participantes emolduram o perigoe o risco em contextos coletivos. Quarenta e dois por centode todas as menções a perigos/riscos ocorrem junto com"comunidade" (26%) e pais - "pai" e/ou "mãe" (26%). Quandosomente a mãe ou o pai é mencionado em relação ao risco, ospais (homens) são representados com uma frequência duasvezes maior que as mães (8 versus 4, respectivamente e, assim,são predominantes como um todo no discurso). As mãestambém estão implicadas na rede de violência e criminalidadeque, por fim, envolve a relação da mãe com seus filhos. Emboraa morte ou a prisão do pai possa ser mencionada vinculada aosperigos gerais da favela, o vício da mãe em crack é expressoem termos de sua falta de disponibilidade perante os filhos.Torna-se ainda mais estarrecedora a menção prevalente do"pai" junto com perigos/riscos quando vemos que de ummodo geral, o pai é mencionado menos (33 vezes) que a mãe(44 vezes) durante entrevista.

As narrativas dos participantes das suas melhoresexperiências no início de seu trabalho com cuidado infantilforam, principalmente, histórias na primeira pessoa, comênfase nos pensamentos e sentimentos delas em relação amomentos específicos em que sentiram que haviam assumido

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uma função ativa e positiva nas vidas das crianças e dasfamílias, principalmente quando haviam sido reconhecidaspor isso. Observe neste trecho, por exemplo, como Luarnarra uma "melhor" experiência.

Luar: Eu acho que a melhor [experiência] foi eu ter ficadocom o grupo de alunos que eu fiquei o ano passado e teracompanhado esse grupo. Eu sinto um vínculo muitoforte assim, com os pais, um reconhecimento assim muitobom em relação ao trabalho que a gente tá desenvolvendo,as crianças também, é... uma confiança muito grande e operíodo que eu fiquei afastada então, como as meninasfalavam, que as crianças perguntavam por mim, os paisperguntavam, quando eu ia voltar falaram para os pais e ospais ficavam né, comemoraram que eu ia voltar, eu achoque a melhor experiência foi essa, acho que praticamentepras crianças também.

Luar orienta a narrativa em termos de seu estado psi-cológico, "Acho ... sinto ... fiquei afastada ... estava prestes avoltar ..." Não só uma história individual, ela menciona a falade outros personagens "as crianças perguntavam por mim ... ospais perguntavam ...". Demonstrando também sua sensibilidadecom os outros envolvidos, Luar amplia a perspectiva no finalda história, projetando a experiência dos outros sobre a suaprópria experiência, "epara as crianças também, (. ..) foi muitoboa pra creche como um todo".

Por outro lado, as narrativas de experiências difíceis noinício do trabalho com cuidado infantil giram em torno dasperspectivas das crianças, muitas vezes refletidas nos problemascom suas mães e pais. Compare esse processo na narrativa deLuar de sua experiência mais difícil.

Luar: É... teve uma turma em que eu fiquei que as criançaseram muito assim agressivas, mas hoje, eu acho que setivesse que escolher, eu escolheria duas crianças da minhaturma, uma é um menino que ele é muito carinhoso, mas queele bate o tempo inteiro, ele piscou tá batendo em alguéme assim a gente conversou com a mãe, descobriu que a mãeapanha do namorado, que no caso nem é pai da criança, eleé muito carinhoso, mas ele bate o tempo inteiro! E temuma outra menina também que ... ( ) responde: Não! Não

pelo contrario, ele é muito carinhoso com a gente! (Luarconfirma que sim com a cabeça) E tem uma outra meninatambém que no início do ano, a gente, assim ela semprechegava com muita fome na creche, muita fome! E ela iae levava sempre as mesmas roupas, ai a gente começoua achar que ela assim passava necessidade, ai depois agente descobriu que ela teve a casa soterrada naquelesdesmoronamentos que teve e no inicio realmente a famíliatava passando por muitas dificuldades (...) Acho que essesdois casos foram os piores!

A história começa com a perspectiva em primeira pessoa"eu escolheria ...", mas depois muda exclusivamente para oestado psicológico da criança, "um menino que ele é muitocarinhoso, (...) menina ... muita fome ... ". A perspectiva daprimeira pessoa "eu" também muda para "nós" quando Luarexplica as tentativas coletivas na prática de interpretar e ajudaresses dois casos que "foram os piores!" Em suma, é como seuma mudança para o outro - outros para os quais as professorassão interlocutoras, representantes, protetoras - permitisse aelas aceitar emocionalmente ou encobrir as circunstânciasperigosas em que trabalham.

NARRANDO SIGNIFICADO COM LINGUAGEMAVALIATIVA

Uma análise dos dispositivos de avaliação em todasas seis (duas para cada professora) narrativas das melhoresexperiências e das experiências mais difíceis vividas pelas trêsjovens professoras indicou que as narrativas das experiênciasmais difíceis são mais densamente avaliadas como um tododo que as das melhores experiências. Cada participanteexpressou-se relativamente mais ou menos durante aentrevista, sendo que Iza expressou consideravelmentemenos as narrativas das melhores e piores experiênciasdo que N adia (intervalo de 224 a 417 para Iza e intervalode 671 a 1160 para Nadia, com Luar relativamente estávelentre 448 e 414). As relações entre dispositivos de avaliaçãoe o número total de palavras expressas pelas participantes

'Parece que é uma coisaaté meio normal, né?"Análise de narranvassobre "risco" em crechesde favelas

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fornecem uma medida de comparação. Os dispositivos deavaliação das narrativas das melhores experiências feitas porLuar, Iza e Nadia são 0,14, 0,23 e 0,12, respectivamente,em comparação com os dispositivos de avaliação dasnarrativas das experiências mais difíceis, 0,20, 0,27 e 0,24,respectivamente. Nadia narrou as melhores experiências eas mais difíceis de forma bem diferente com mais de 20%de palavras de avaliação nas narrativas das experiências maisdifíceis em comparação com apenas um pouco mais de 10%na melhor experiência. A narrativa da melhor experiência deIza foi a mais bem avaliada das três, assim como a narrativade sua experiência mais difícil, embora com menos diferençana expressão de avaliação na sua experiência melhor e maisdifícil do que a de seus pares.

Melhor de Iza: Experiências boas são difíceis poderacompanhar. Eu trabalho com uma turma que eu tambémtava seis meses em um ano e depois vim encontrar no anoseguinte, o bom é que realmente você cria um vínculo maiorcom as famílias uma confiança maior e até hoje tem mãese pais do ano passado que me encontra ou até por Orkurfalam que as crianças estão com saudades, fui até convidadapara uma festa de aniversário, que ela falou assim: "Ah, elapediu pra te convidar!" Eu acho isso muito legal!

No entanto, essa orientação não é absoluta, comovemos quando examinamos o risco em contexto e asdiferenças na forma como as professoras narram em diferen-tes perspectivas.

Iza worst: a gente também chamou o pai pra conversar, prafalar dessa agressividade que ele tinha com as crianças queele mordia, batia, sem motivos aparente assim, empurravaas vezes do nada, (LUANA confirma que sim com a cabeça)sem ser por disputa, entendeu? E boatos que corriam eraque o pai incentivava aquilo, tinha gente que já tinha ouvidoo pai falando que - ah porque ele bateu na avó! - e falando,contando rindo, como se isso fosse engraçado, isso fossebom, entendeu? Ai foi uma experiência difícil conseguirlidar com uma ... um pai principalmente, porque o pai queacaba ... acabou incentivando isso na criança, né?

As duas narrativas são 'avaliadas, mas a última é muitomais saturada, com 23, no trecho de 96 palavras, em comparaçãocom 13 no trecho anterior. Nesses trechos curtos, observamostambém a qualidade mais incerta da conversa" com repetições,apelos .ao ouvinte, indicando uma abordagem mais incertaou exploratória com relação à história. Essa intensidade deavaliação interage com o conteúdo de um evento que haviaobviamente causado alguma ansiedade na creche.

Com base nessas observações, supomos que essesjovens professoras utilizam a narrativa para criar umazona de proteção psicossocial contra as circunstânciasextremamente perigosas em que trabalham e vivem. Amenção surpreendentemente pouco frequente de perigo eriscos (muito embora tenham surgido com o andamento daentrevista) torna-se evidente como estratégia ao observarmosa menção de risco quando o discurso passa das histórias emprimeira pessoa para as reflexões das professoras sobre acomunidade, as crianças e suas famílias. Essa organizaçãoseletiva da experiência na narrativa pode ocorrer junto com asexplicações que oferecemos acima sobre as autoapresentaçõesdas professoras no contexto, já que experiências moldadascomo "mais difíceis" provavelmente seriam desgarradasde qualquer julgamento presumido sobre as pessoas que. .convrvern com o nsco.

NARRANDO MUDANÇA

A análise da narrativa como ferramenta cultural nãoreduz a violência, mas mostra sim que a narração pode serum recurso humano para lidar com as vicissitudes da vida.Quando analisamos as narrativas em relação a como aspessoas entendem suas vidas diárias em relação às atividades(neste caso, agindo como professoras em uma creche), àsinstituições sociais (neste caso, as mudanças educacionais) ea atores sociais relacionados (neste caso, colegas de trabalhoe mentores), lemos a entrevista e as narrativas nela embutidasna busca de relações sociais em torno e dentro da narrativa.O que chama a atenção nessa análise é o fato de que a visão

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que as professoras têm das circunstâncias mais extremas nocontexto de seu trabalho e de sua vida está embutida emcontextos sociais de "comunidade" e família. Enquanto asnarrativas em primeira pessoa se desviam do risco, aquelasemolduradas em torno das crianças dentro do contexto dafamília, da comunidade e do ambiente da entrevista parecemevitar a discussão de risco, o que também se tornou focomais central em toda a estrutura social da própria entrevistano contexto de mudanças sociais no Brasil.

Durante a entrevista, observamos que as reflexões dosparticipantes giraram em torno da narrativa de sua funçãocomo agentes de mudança nas vidas das crianças e das famílias.V ários tipos de coletividade envolvem essa discussão derisco com três jovens professoras expostas a ela, incluindo asmudanças educacionais municipais que se processam ao longode vários anos na cidade, o projeto de pesquisa em que essasprofessoras participaram como co-pesquisadoras durante trêsanos, a entrevista em grupo com duas de suas professorase suas colegas, e o contexto simbólico das atividades denarração, emoldurados em parte pela estrutura da entrevista,mas também pela forma como as participantes utilizam suasinterações e suas expressões pessoais.

Embora a mudança de vida nas favelas esteja além daresponsabilidade e dos recursos de três jovens mulheres ou deum projeto de mudanças educacionais, um processo interativocomo a entrevista coletiva relacionada à prática, serve comoatividade para produção de sentido e ressignificações, talvezpara ajudá-Ias a entenderem melhor o que está acontecendo,a importância de certas práticas pedagógicas, como abrincadeira e o envolvimento dos pais e as. necessidadesdas participantes em obter alívio coletivo para mediar aexposição à violência e, se possível, para entender sua funçãopositiva nas vidas das crianças e da comunidade. Essa análise,portanto, mostra como três jovens professoras utilizaram oambiente da entrevista para refletir sobre suas atividades, paraaumentar sua reflexão coletiva e para começar a perceber suaparticipação convencional e criativa como professoras.

Entendemos que as creches podem ser espaços de

transição necessários por causa da violência, mas tambémpoderosos, por serem espaços para relações únicas.Percebemos desta forma, que as jovens professoras quetrab;iham nas creches podem assumir a posição de agentesde mudança - talvez para minimizar riscos que enfrentamtodos os dias, mas também, como esperamos discutir comos leitores deste texto, para criar objetivos de carreiracontínuos e gerar transformações significativas nas propostasde Educação Infantil.

CONCLUSÃO

As pessoas que vivem em extremo perigo ou duranteperíodos de extremo perigo não podem narrar sobre eleou sobre seu próprio risco pessoal nessas situações. Oque vemos, em vez disso, neste estudo, é como jovensadultos utilizam a narrativa como forma de interagir comesses perigos e a forma como podem usar coletivamente asferramentas e os contextos culturais. Neste caso, ser umaprofessora trabalhando com um grupo de crianças e suasfamílias oferece o contexto psicossocialmente protetorda função social com uma força que é capaz de agir emsolidariedade, e não só como um agente individual. Asimplicações desta abordagem com relação à narrativa emcontexto são, primeiramente, a solicitação contínua deresolver questões sobre como o conjunto de professoraspode usar as narrativas para a solidariedade e, por fim, paraa mudança social. Embora a narrativa de mudança social sejaum grande salto, pesquisas baseadas na prática, como esta,podem avançar compilando-se essas histórias de realidadescontemporâneas como argumentos para processos políticossensatos que forneçam recursos para quem vive em meio àmudança. Começamos este artigo com um comentário - umeufemismo, talvez - de que "as pessoas falam da favela comocomunidade", e acrescentamos a essa ideia o fato de que acomunidade pode ajudar as pessoas que vivem neste meio afalar da favela.

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