PARADOXOS DA CONDIÇÃO HUMANA EM BLAISE PASCAL

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UNIVERSIDADE PÚBLICA DE CABO VERDE Departamento das Ciências Socais e Humanas Delegação de São Vicente Curso de Filosofia (1623-1662) Título “PARADOXOS DA CONDIÇÃO HUMANA EM PASCAL” “Grandeza e Miséria Humana.” Realizado por Arlindo Nascimento Rocha Orientadora Mestre Elisa Silva Mindelo Ano lectivo 2010/2011 Licenciatura em Filosofia para Docência

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UNIVERSIDADE PÚBLICA DE CABO VERDE

Departamento das Ciências Socais e Humanas

Delegação de São Vicente

Curso de Filosofia

(1623-1662)

Título

“PARADOXOS DA CONDIÇÃO HUMANA EM PASCAL”

“Grandeza e Miséria Humana.”

Realizado por

Arlindo Nascimento Rocha

Orientadora

Mestre Elisa Silva

Mindelo

Ano lectivo 2010/2011

Licenciatura em Filosofia para Docência

II

Arlindo Nascimento Rocha

Paradoxos da Condição Humana em Pascal

Grandeza e Miséria

Licenciatura em Filosofia

Universidade Pública de Cabo Verde

2011

III

O JÚRI

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

Universidade Pública de Cabo Verde, Pólo do Mindelo, aos ______ de Julho de 2011

IV

I - DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho, a todos que colaboraram para o meu desenvolvimento como

pessoa, nomeadamente:

Aos meus pais, Domingos Rocha e Georgina Rocha, que amorosamente me ensinaram

os primeiros passos, e que, nas suas exigências me impulsionaram a buscar ser quem sou, e

quem serei.

Aos meus três irmãos: António, Isabel e Maria pelo apoio demonstrado ao longo dessa

jornada;

À minha filha Linda Inês, com muito carinho e amor.

À minha esposa Priscilla, com muito amor e elevada consideração pelo respeito e

apoio, sobretudo pela confiança em mim depositada e pelos sacrifícios que a vida nos impôs

ao longo desse trecho de nossas vidas;

Aos meus amigos e colegas de trabalho do Pólo n.º 17 de São Vicente – Escola de São

Pedro, que sempre me apoiaram e me motivaram para continuar;

Às pessoas que me mostraram a importância das grandes obras da humanidade;

Aos meus professores, pela sapiência demonstrada em prol do meu aperfeiçoamento

como aluno e como pessoa.

Aos colegas de turma pelo companheirismo e amizade.

V

II – AGRADECIMENTOS

Agradeço:

Em primeiro lugar, a Deus por ter me dado forças, para lutar no decorrer de toda esta

jornada e, principalmente, ter-me dado vida e saúde para honrar o mérito que Ele me

concedeu: estar fazendo um curso superior, desejado por muitos, e alcançado por tão poucos.

Aos meus amados e saudosos pais, Domingos e Georgina, que sempre lutaram para me

verem chegar onde estou e que, apesar de não estarem mais entre os mortais, sei que estão

contentes com o meu desempenho; à minha filha e aos meus irmãos que tanto amo.

Agradeço também aos professores e professoras do Curso de Licenciatura em Filosofia

para docência do Departamento de Ciências Sociais e Humanas da “UINI-CV”, Delegação do

Mindelo, e que contribuiriam para a minha formação, e às pessoas que, de alguma forma ou

de outra, contribuíram para que este trabalho fosse materializado.

Contudo, realço com muito respeito e admiração alguns em especial:

A minha Orientadora Mestre Elisa Silva, pela orientação sempre motivadora, pela

disponibilidade que demonstrou desde o início, e principalmente pela boa vontade,

simplicidade e sabedoria demonstrada ao longo desse processo. O meu reconhecimento e

amizade.

Aos professores do curso, particularmente ao Professor Alcides Ramos, António

Ramos, Ariana Lopes, Alfredo Brito, Antónia Gomes, Jair Silva, Lindsay Willasson, Dora

Pires e Henriqueta Silva.

Agradeço especialmente, com elevada consideração e amor à minha esposa e

companheira, Priscilla Lundstedt, pelo apoio, paciência e conselhos que fizeram com que

esse trabalho fosse uma realidade.

Aos meus colegas de turma, que me acompanharam durante os cinco anos da

licenciatura, como forma de demonstrar o quanto foi bom e proveitoso para a minha

formação pessoal e em especial, aos meus colegas de trabalho. A todos faço votos de

melhores sucessos na vida pessoal e profissional.

A todos um especial agradecimento e um afetuoso abraço!

VI

III - CITAÇÃO

O homem não passa de um caniço, o mais fraco da

natureza. Mas é um caniço pensante. Não é preciso que o

universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma

gota de água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o

universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do que

quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o

universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso...

Pascal – “Os Pensadores” frag. 347. Pág 123

VII

IV - RESUMO

Esta monografia de término de licenciatura tem como objectivo analisar a concepção

paradoxal do homem, presente na filosofia de Blaise Pascal; na sua dimensão antropológica,

entre “grandeza e miséria”, como paradoxo fundamental, e também, investigar a ideia de uma

individualidade, que se apresenta como ser humano consciente, que reconhece a própria

identidade.

A nossa análise será temática, sobretudo antropológica e psicológica, apesar do enfoque

epistemológico. Parte-se da visão antropológica do homem antes e depois do pecado original,

a desproporção entre o homem e a pesquisa da natureza, a constituição do eu no mundo e a

graça, acreditamos obter informações necessárias, para a busca do nosso principal objectivo:

alcançar a verdade da condição humana entre miséria e grandeza, através do eixo da queda e

redenção, e do conhecimento do “eu” como ser naturalmente limitado, pela finitude da nossa

existência e pela desproporção entre o “eu” e a natureza.

Analisaremos em Pascal os limites do conhecimento racional, que são colocados pela

condição da própria finitude humana, como insuficiência que marca o homem pascalino, que

só é ultrapassado mediante o conhecimento de si próprio e das suas insuficiências.

A análise de outras dimensões que assume o conhecimento humano em Pascal e dos

paradoxos que fazem o “eu” na dimensão empírica, nos darão a chave da compreensão do

homem no seu verdadeiro conceito.

Definimos o nosso objecto como o estudo da antropologia pascalina, na qual o conceito

central se revela: a insuficiência humana. Todavia para nós, a antropologia pascalina não se

limita aos textos escritos unicamente por Pascal, mas também a uma rica rede de

comentadores, que ao longo dos séculos se dedicaram à compreensão da obra pascalina.

Este trabalho é o resultado de uma pesquisa bibliográfica, onde se procura fundamentar

a condição humana segundo Pascal, onde procuramos pôr em evidência aspectos muito

importantes para o próprio entendimento do homem na sua situação actual. Esse factor foi

determinante na escolha do tema, e particularmente do filósofo Pascal que, em nossa opinião,

soube melhor que ninguém caracterizar o homem em todas as suas dimensões.

Palavras-chave:

Concepção paradoxal; dimensão antropológica; miséria e grandeza; queda e redenção;

finitude humana; conhecimento humano;

VIII

INDÍCE

I - DEDICATÓRIA ................................................................................................................ IV

II – AGRADECIMENTOS .................................................................................................... V

IV - RESUMO ...................................................................................................................... VII

I - INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1

1. Introdução ....................................................................................................................... 1

1.1. Vida e obras ................................................................................................................. 4

1.2. Fundamentação teórica ................................................................................................ 6

CAPÍTULO - I ........................................................................................................................ 7

“CONCEPÇÃO HISTÓRICA DO HOMEM PASCALINO” ............................................. 7

1. Antropologia pascalina ................................................................................................... 7

1.3. A natureza do homem antes do pecado ..................................................................... 10

1.4. A natureza do homem depois do pecado ................................................................... 11

1.5. A compreensão do homem ........................................................................................ 13

CAPÍTULO - II ..................................................................................................................... 17

“CONCEPÇÃO EPISTEMOLÓGICA DO HOMEM PASCALINO” ............................. 17

1. Desproporção entre o homem e a natureza .................................................................. 17

1.1. Dimensões do conhecimento em Pascal.................................................................... 20

1.2. Paradoxos da condição humana ................................................................................ 24

CAPÍTULO - III ................................................................................................................... 29

“CONCEPÇÃO PSICOLÓGICA DO HOMEM PASCALINO” ...................................... 29

1. Constituição do eu no mundo ....................................................................................... 29

1.1. Grandeza e miséria do homem .................................................................................. 33

1.2. A graça ...................................................................................................................... 38

I. CONCLUSÃO ................................................................................................................. 44

II. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 50

1

I. INTRODUÇÃO

1. Introdução

Blaise Pascal (1623-1662) desenvolveu uma influente leitura da condição humana que

se destaca entre os filósofos modernos. Isto ocorre, principalmente, pela tentativa de conciliar

dois aspectos que, a partir dos inícios da modernidade, estarão em conflito: fé e razão. Nesta

tensão, o homem desenvolve outro conflito existencial, a sua condição paradoxal, que se

constitui entre grandeza e miséria, que definem o seu modo de ser.

Este trabalho tem por objetivo alcançar a compreensão do ser do homem em Pascal.

Parte-se da antropologia pascalina antes e depois do pecado, da desproporção entre o homem e

a pesquisa da natureza, em que Pascal marca a tragicidade humana; e também nos dá a

orientação para o resgate do homem através do aniquilamento, do autoconhecimento e do

reconhecimento da própria condição insuficiente diante das fraquezas e misérias humanas.

Neste aspecto, o estudo da constituição do “eu” no mundo, a grandeza, a miséria e a graça,

que se atestam na relação do conhecimento da parte e do todo, tornam-se necessárias.

Ao levantar a problemática do infinito, Pascal convoca o homem a tomar consciência

das suas limitações, única condição para que ele possa abrir-se às verdades que ultrapassam os

limites da compreensão racional, ou melhor, para que ele possa se abrir à sua própria verdade.

A partir da apresentação das dimensões que assume o conhecimento humano no pensamento

de Pascal, acreditamos obter uma primeira orientação para a busca do nosso objectivo central:

alcançar a compreensão da verdade da condição humana.

Ao buscar uma caracterização da verdade do homem em Pascal, cabe esclarecer que

pretendemos com o tema de “homem” expressar a ideia de uma individualidade que se

apresenta como ser humano consciente que reconhece a sua própria identidade.

A nossa análise será temática, sobretudo psicológica e antropológica, além do enfoque

epistemológico. A análise dos paradoxos insuperáveis que fazem do eu na sua dimensão

empírica, nos darão a chave para a compreensão da dimensão da verdade.

Pascal propõe ao homem a tomada da consciência das suas limitações, como condição

para chegar às verdades que ultrapassam os limites do conhecimento racional.

2

Ao buscar uma caracterização da verdade do homem em Pascal, cabe esclarecer que

pretendemos com o tema “homem”, expressar a ideia de uma individualidade que se

apresenta como ser humano consciente que reconhece a sua própria identidade.

Em geral, a discórdia entre filósofos e cientistas dá-se sobre aquilo que é acidental,

embora ocorra no essencial; quando se deixa de contemplar o real.

Pascal soube separar a filosofia e a ciência em si, do ser humano. “O coração tem

razões que a própria razão desconhece”, e por isso, a ciência e a técnica sempre ficarão

aquém de dar uma resposta definitiva quando o assunto é o homem.

A defesa da riqueza humana, consiste justamente em aprofundar aspectos individuais e

sociais que estejam de acordo com o real, sem esgotar o diálogo que cada um tem consigo

mesmo e com o outro.

Se Pascal merece ser estudado, é porque viveu intensamente situações que fazem o

homem lembrar-se de quem é, a morte prematura da mãe, a vida mundana após a morte do

pai, o convívio com os pobres, diálogo com os demais, a doença, a busca da verdade de modo

aberto e profundo.

Mais de trezentos anos se passaram depois da sua morte, e o momento não deixa de ser

oportuno para recordar como Pascal viveu a ciência sem deixar, que a ciência fosse a sua

vida.

A sua contribuição para a filosofia e a ciência foi significativa e de grande importância.

Actuou na matemática, na física, na geometria, mas é com as suas reflexões filosóficas e

teológicas que mais surpreende a humanidade. Só não contribuiu mais, devido à sua morte

prematura aos 39 anos.

Os seus escritos filosóficos exprimem com incomparável eloquência as ansiedades que

agitam a alma humana. Ao longo dos seus escritos, pode-se notar um certo cepticismo,

pessimismo e misticismo; sente-se no entanto, uma forte disciplina do espírito filosófico e

teológico. Mais do que a disciplina, a inspiração. O pensamento de Pascal tem raízes

profundas na análise do infinito, que no seu tempo ressurgiram com nova roupagem.

Para o presente trabalho, tivemos como suporte a edição de “Os pensadores” de Pascal, e

quando citamos os fragmentos dos Pensamentos, no final da citação, oferecemos o número

correspondente da ordenação precedido de fragmento.

Sendo assim, e para que pudéssemos materializar o nosso propósito, dividimos o

trabalho em três capítulos (parte textual), onde abordamos as questões que achamos de maior

pertinência e objectividade, além da parte pré-textual e pós-textual.

3

Assim, a parte pré-textual contém: dedicatória, agradecimentos, citação, resumo,

introdução, vida e obras.

No primeiro capítulo, pretendemos analisar as bases teóricas fundamentais para uma

verdadeira compreensão do homem pascalino, o que nos remete para o estudo antropológico,

e a compreensão histórica e teológica do homem, através dos dois estados da natureza

humana “antes e depois o pecado”, para que possamos fundamentar melhor o conhecimento

do homem nas suas múltiplas dimensões, como ser natural e racionalmentete limitado, e

melhor comprender os paradoxos que o afligem.

No segundo capítulo, iniciaremos a nossa análise, refletindo sobre a desproporção

existente entre o homem perante pesquisas da natureza, para depois incidirmos o nosso

estudo nas dimensões do conhecimento e nos paradoxos da condição humana, que estão

intimamente ligados à insuficiência e à miséria humana.

No terceiro capítulo, incidiremos o nosso estudo na dimensão psicológica do homem

pascalino, abordando primeiramente a constituição do “eu” no mundo, a grandeza e a miséria

humana e, por último, a graça, como atalho fundamental para a conquista do divino.

Finalmente, concluiremos a monografia e destacaremos as referências bibliográficas, de

acordo com a “ABNT 6023 – 2000” que utilizamos como base para iniciar a investigação e

elaboração desta monografia.

4

1.1. Vida e obras

Filho de Étienne Pascal e Antoniette Bejon, Blaise Pascal nasceu em 19 de Junho de

1623, em Clermont-Ferrand, na França. Quando tinha apenas três anos, perdeu a mãe e, como

era o único filho do sexo masculino, o pai encarregou-se directamente da sua educação.

Étienne desenvolvia um método singular de educação do filho, com exercícios de diversos

tipos para despertar o apego à razão e ao juízo correcto. Geografia, história e filosofia eram

disciplinas ensinadas, sobretudo, por meio de jogos. Acreditava, que aulas de matemática só

deveriam ser ministradas ao filho quando este estivesse mais maduro. (Falceta, 1998b)

Assim sendo, mantinha longe de Pascal os grossos livros de matemática, mas das

conversas que ouvia ou de obras que passavam pela censura do pai, logo descobriu as

maravilhas da ciência dos números. Mesmo sem professor ou livro guia, passou a

desenvolver os seus estudos. Um dia, o pai surpreendeu-o desenhando no piso figuras

geométricas com carvão. Fez por intuição, várias das proposições da matemática de Euclides.

Foi dada a Pascal a permissão para que avançasse livremente sobre aqueles ramos do

conhecimento.

Pascal juntou-se aos sábios do círculo de Mersenne quando tinha 13 anos de idade. Ali,

pode coleccionar informações para desenvolver mais rapidamente seus trabalhos. Aos 17

anos, descobriu e publicou uma série de teoremas em geometria projectiva, fundamentais ao

desenvolvimento tecnológico futuro, no campo da aviação." (Falceta, 1998c).

Posteriormente, para ajudar o pai, sempre ocupado com números, dedicou-se a criar

uma máquina de calcular. A partir de 1647, Pascal passou a dedicar os seus dias à aritmética.

Desenvolveu cálculos de probabilidade, a fórmula de geometria do acaso, o conhecido

Triângulo de Pascal e o tratado sobre as potências numéricas.

Na física, contribuiu no campo da hidrostática, desenvolvendo importantes estudos

sobre a pressão atmosférica; escreveu o texto Prefácio ao tratado sobre o vácuo, no qual trata

da questão da Ciência e da tradição.

Outro trabalho científico nesta fase: o Tratado sobre as Potências Numéricas, no qual

trata dos elementos "infinitamente pequenos".

Entre outras obras suas, citam-se Nouvelles Expériences sur le Vide (Novas

Experiências sobre o Vácuo, 1647) e Discours sur le Passions de l’Amour (Discurso sobre as

Paixões do Amor); De Alea Geometriae (O Jogo da Geometria); Memorial; Oração para

pedir a Deus a graça de fazer bom uso das enfermidades e Pensées (Pensamentos), que

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constituem um conjunto de reflexões pessoais acerca do sofrimento humano e da fé em Deus.

Deixou também um conjunto de reflexões sobre a condição humana, sobre os meios de se

atender a verdade, sobre a miséria e a grandeza do homem em relação a Deus.

O trabalho excessivo minou a sua saúde, débil por constituição, e cedo ficou

gravemente doente. Em 1648 frequentou, com a sua irmã Jacqueline, os seguidores de Saint-

Cyran, que o levaram ao misticismo de Port-Royal. Depois da morte do pai, o seu fervor

religioso arrefeceu um pouco, iniciando-se o chamado período mundano de Pascal, devido

em parte à proibição médica de dedicar-se a trabalhos intelectuais, prejudiciais à sua saúde.

A crise mundana foi superada na noite de 23 de novembro de 1654, graças a uma

espécie de visão mística.

Pascal morreu em Paris, aos 19 de Agosto de 1662, depois de atrozes sofrimentos, que

soube suportar com grande resignação. As suas últimas palavras foram: "Que Deus jamais me

abandone!"

6

1.2. Fundamentação teórica

A escolha do filósofo “Blaise Pascal”, para elaboração da monografia, prende-se em

primeiro lugar, pela grandiosidade com que Pascal, contra tudo e todos propõe uma ruptura

epistemológica, que rompe com os traços característicos da Modernidade, defendidos

nomeadamente por filósofos como Descartes, Francis Bacon, Espinosa e Malebranche. Pascal

propõe métodos, para cada problema. Haveria tantos métodos quanto aos problemas a serem

resolvidos, diferente de Descartes, que tem um único método.

Em segundo lugar, pela genialidade que revelou desde cedo tendo dedicado grande

parte da sua vida reflectindo sobre a ciência (matemática e física), a filosofia e a teologia,

tentando conciliar a fé e a razão, que estiveram em conflito a partir do início da Modernidade.

Reconheceu a autonomia da razão como grandeza humana no campo científico, onde a

autoridade era inútil, e a miséria humana como sendo a vivência do homem mergulhado no

pecado; e a única forma para sair deste estado, é a verdadeira conversão, assim demonstraria

que a razão e a autoridade tem campos delimitados.

Em terceiro lugar, por ser um filósofo apaixonante, pela visão que tinha sobre a

condição paradoxal do homem, pela profundidade das suas reflexões, pela actualidade que o

seu pensamento goza passados três séculos após a sua morte, e também pelo percurso como

homem libertino de Port Royal, tendo optado pela verdadeira conversão religiosa, como

forma de se libertar da concupiscência, e levar uma vida austera.

E em quarto lugar por sua obra ser destacada entre os estudiosos deste campo, seja por

cientistas, filósofos, teólogos entre outros, mas que não tem tido uma dimensão académica a

altura da sua grandiosidade.

Tem-se como intenção ao elaborar esta monografia, divulgar sua Obra, e tornar mais

inteligível a sua visão antroplógica em que o homem se encontra em constantes paradoxos.

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CAPÍTULO - I

“CONCEPÇÃO HISTÓRICA DO HOMEM PASCALINO”

1. Antropologia pascalina

Neste capítulo, pretendemos analisar as bases teóricas fundamentais para uma verdadeira

compreensão do homem pascalino, o que nos remete ao estudo antropológico, e à

compreensão histórica e teológica do homem, através dos dois estados da natureza humana

“antes e depois do pecado”, para que possamos fundamentar melhor o conhecimento do

homem nas suas múltiplas dimensões, como ser natural e racionalmente limitado, e melhor

compreender os paradoxos que o afligem.

No século XVII, a fundação das ciências encontra o seu ponto de partida, segundo a

ordem das razões, numa análise do homem e da sua constituição, numa antropologia. É no

homem que se encontra a chave que permite fundar um conhecimento verdadeiro e explicar

como se pode atingi-lo. Da consciência de que o conhecimento pode ser alterado pelo

trabalho das paixões, comum à maioria dos filósofos clássicos, decorre a necessidade de

purificar o pensamento de todos os elementos provenientes do conhecimento sensível.

Diferente dos seus contemporâneos1, Pascal não retoma o discurso sobre as paixões. Não

existe na psicologia pascalina qualquer conflito entre a fé e a razão, nem entre a alma e as

paixões, que viriam de algum modo impedir o pleno desabrochar da razão. É impossível para

Pascal modificar o intelecto, purificando-o da influência das paixões, pois essa modificação

exigiria uma perfectibilidade virtual no homem, ao passo que o pecado original lhe retirou em

definitivo toda a capacidade de progresso.

Na realidade, enquanto os seus contemporâneos pensam o homem como composto de

alma e corpo, de racionalidade e concupiscência, de um elemento positivo e de um elemento

negativo, Pascal embora retome essa dualidade, não pode pensá-lo como presença simultânea

de um princípio positivo e um negativo no homem, a respeito do qual pensa que o pecado de

Adão lhe interditou definitivamente qualquer saída do “estado de menoridade” em que está

mergulhado.

Assim, a antropologia de Pascal leva em conta duas doutrinas, o que torna difícil a sua

compreensão. O primeiro estrato é constituído pela concepção dualista do homem como ser

1 “Descartes, Francis Bacon, Espinosa e Malebranche” cujo objectivo era a procura de um método universal que

constituísse um conhecimento seguro.

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dotado de uma alma e de um corpo que se poderia chamar de platónica2, e o segundo é

constituído pela antropologia Cristã “Santo Agostinho”, noção de pecado original.

Pascal efectua duas mudanças na teoria platónica. A primeira concerne ao corpo,

englobando uma noção muito mais vasta da carne: ela designa que é material, e o que se opõe

ao movimento da elevação para Deus. A segunda consiste na introdução de um novo

elemento, o coração, que não pode ser identificado à alma platónica3. Para compreender qual

a realidade que a noção do coração abrange, pode-se, lembrar que, no momento da conversão,

Deus age sobre o coração, tornando-o receptivo à sua lei. “Eu vos darei um coração novo,

porei em vós um espírito novo, retirarei de vossa carne um coração de pedra e vos darei um

coração de carne”.(Ezequiel, 36, 26).

O coração é considerado ao mesmo tempo o receptáculo da lei e o lugar de irradicação

dessa lei no corpo e, assim, subtraído à lei oposta da carne. Pode-se considerar o coração

como sinónimo de vontade que dirige o seu amor a Deus – e então será fonte de caridade e a

carne será a fonte da concupiscência. Como veremos, o coração é muito mais que uma

faculdade volitiva, pois pode também, conhecer.

No centro da doutrina agostiniana, há a noção de pecado original, que constitui o

momento da mudança da natureza humana. Pascal fará a distinção entre os dois estados do

homem “antes e depois do pecado”, a cada um corresponde a uma visão do homem, base do

seu projecto antropológico. Este, baseia-se na constatação deste duplo estado da natureza

humana, que se reflete na presença de sinais de um e de outro. Colocando enfoque essa dupla

natureza do homem, a apologia deve produzir um choque na razão presa na contradição entre

a grandeza e a miséria do homem desconcertado pela copresença de factores incompatíveis.

É a antroplogia agostiniana que orquestra todos os movimentos que deviam compor a

apologia pascalina. Mas, apesar do seu carácter originalmente religioso e do seu quadro de

desenvolvimento apologético, o móvel da antropologia pascalina ultrapasssa em muito uma

reflexão moral sobre o homem para abranger uma ontologia e uma epistemologia. A partir

dessa antropologia Pascal pode pensar os fundamentos da natureza do homem e desenvolver

as suas reflexões metodológicas.

2 PASCAL– “Figuras do Saber” pág 34. “Esta diferença é válida sob a condição de se fundamentar bem as

diferenças ou semelhanças com o dualismo cartesiano e, depois, de considerada a parte do platonismo, no

agostinismo jansenista. 3 PASCAL– “Figuras do Saber” pág 34. “As diferenças, que ele não mensiona P. Guénancia acrescenta que

existe entre um homem composto de alma e de corpo, como em Platão, o um homem na qual coabitam duas

naturezas, como em Agostinho e em Paulo, cf. P. Guénancia, Descartes et l´ordder politique, Paris PUF, 1983.

P. 162-3.

9

Verificamos que ao longo dos seus escritos, funda um campo antropológico da

insuficiência humana, partindo de uma questão propriamente teológica, para chegar aos

aspectos psicológico, social, político, epistemológico e mesmo ontológico dessa

insuficiência.

Não nos ocuparemos em particular da questão epistemológica, antes buscaremos lançar

algumas luzes sobre essa questão como mais um campo do problema antropológico da

insuficiência. Para nós, o problema da concepção antropológica do homem se revelará como

cenário de fundo para todo o seu pensamento: o homem é um ser insuficiente por definição. É

a consciência desse drama humano, que na obra pascalina será tratada em diversos modelos

temáticos, e é no conteúdo empírico desses modelos que entendemos por diversidade da

insuficiência, o qual iremos abordar ao longo do trabalho.

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1.2. A natureza do homem antes do pecado

O estado em que Adão encontrava-se antes do pecado era de santidade e, sobretudo, de

inteligência completa e total. No estado de perfeição todas as faculdades de Adão eram

ordenadas para lhe permitir atingir a felicidade representada pela visão e conhecimento de

Deus. Além disso, a natureza inteira estava disposta em função de Deus, segundo uma

hierarquia que permitia atingir a felicidade máxima. Os seres estavam dispostos em sequência

ordenada, do menos perfeito ao mais perfeito, cada um dominado pela vontade do ser

superior que o dirigia, em compensação a essa dominação, rumo à felicidade.

O mesmo acontecia com cada ser, todas as suas faculdades, seguindo a mesma

hierarquia. Assim, as faculdades humanas estavam submetidas umas às outras em função do

seu grau de perfeição e de participação na felicidade total de Adão.

A concupiscência estava subordinada à vontade que se deixava guiar pelo intelecto. Este,

oferecendo uma visão e um conhecimento perfeito de Deus, permitia ao homem atingir a sua

felicidade completa. Os membros do homem, por sua vez, obedeciam completamente e sem

oposição às ordens que vinham da vontade, pois não era o lugar de aplicação de uma lei

oposta à que neles estava presente.

Entre a concupiscência, “o amor da carne”, a caridade, “amor de Deus”, não havia

oposição, mas subordinação. Esse estado e inocência natural é inseparável aos dons da graça,

e é identificada com a natureza original do Homem.

Em si mesma, a vontade não é senão o desejo de querer atingir o que satisfaz,

independente de qualquer objecto particular. Visto que o desejo natural de todos os seres

humanos é a felicidade, a vontade se dirige para os objectos cujo intelecto indica como

podendo dar-lhe o máximo de ventura. Nesses estados o homem não ama senão a Deus, no

qual encontra a sua beatitude. Todo o amor que tem por si mesmo ou que dedica às criaturas,

não passa de um amor parcial, que é um meio que, parando nas criaturas, tem por fim o amor

de Deus, isto é, a caridade. Quando o homem respeita essa ordem ele é glorioso e poderoso.

Porém o homem querendo se igualar a Deus movido pela ambição acabou caindo na segunda

natureza, que fez dele um ser mísero e paradoxal.

Para nós, o estudo desse estado em que Adão se encontrava, revela alguns dados

essenciais. Ainda que sem qualquer sujeição à concupiscência, isto é, sem sofrer a terrível

atracção pelo amor de si mesmo, Adão, para realizar o seu fim supremo, necessita da acção

divina, uma vez que a primeira natureza é uma realidade insuficiente sem o mal.

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1.3. A natureza do homem depois do pecado

Se a primeira natureza é uma realidade insuficiente sem o mal, a segunda é a

insuficiência vivida com o mal – insuficiência concupiscente.

Este princípio “Queda”, que Pascal trabalha, tem a sua origem no pecado do homem

diante do seu criador. O homem quis fazer de si causa final e objecto de delícias prescindindo

do único e digno de tal status: Deus. Por essa razão, o homem-criatura foi precipitado a um

segundo estado de natureza. Já não mais um estado sadio como fora criado outrora, mas sim

um estado no qual as suas misérias lhe são visíveis, e mais, são causa de inquietude e

tormento.

O pecado consiste num acto de orgulho da vontade que se revela contra a ordem em que

se encontrava o homem4 e muda o centro da sua vida. Em vez de considerar Deus como

centro e objecto de seu amor, o homem coloca a vontade no centro do seu amor. Essa

mudança atinge todos os planos do ser humano.

No interior do homem, a razão foi atingida por três vezes: não pode conhecer os

primeiros princípios que lhe são comunicados pelo coração; a verdade não pode ser recebida

na alma a menos que seja aceita pela vontade, que é o guia do intelecto; a razão é atingida

uma terceira vez pela guerra que trava com a imaginação. Essas três limitações fazem com

que a razão não esteja em condição de fixar um valor às coisas.

Se no estado de perfeição, a razão, que encontrava a sua fonte na luz comunicada por

Deus, estava em condição de guiar todas as suas faculdades, no estado de pecado ele se deixa

guiar pelos sentidos na busca do prazer da carne. Os sentidos orientam a razão, rumo ao

conhecimento da criatura, e a satisfação de todas as necessidades do corpo enquanto carne.

No estado de pós-queda, o homem encontra-se numa situação tal que, tendo a vontade

operado esse deslocamento, os sentidos podem indicar à razão onde se encontra o prazer e

levá-lo ao conhecimento dos objectos que o satisfaçam. Mas, fazendo-se de si, o centro

inverteu também a ordem hierárquica em que se encontrava em relação aos outros seres.

Antes do pecado havia uma espécie de graduação dos seres, que partindo do mais baixo

grau de perfeição, o dos animais, passando pelos homens chegando até Deus, definia também

estados de dominação dos mais perfeitos sobre os menos perfeitos. Amor de Deus e

submissão à sua vontade coincidiam perfeitamente na vontade do homem. Assim, todos os

4 PASCAL - “ Oeuvres Complétes, pág. 952” ... O pecado original somos todos culpados...”

12

seres animados lhe eram submissos, como ele próprio era submisso a Deus. Depois do pecado

a desordem introduzida no mundo pela mudança do centro, o desejo repercutiu também nas

relações de dominação e de submissão, assim como entre o homem e a criatura. O pecado

subverteu a ordem em que as faculdades humanas estavam dispostas, perturbando a

hierarquia que lhes permitia atingir a visão de Deus. O intelecto e o espírito sofreram as

consequências do pecado que enfraqueceu de modo considerável as suas capacidades.

Concordamos com Pascal, quando afirma que “...o homem é uma criatura que o pecado

impede de coincidir consigo mesmo, esquartejado entre o coração que sabe com certeza um

saber indemonstrável e a razão que não pode senão tender para o saber convincente”.

Diante deste quadro, afirmamos que a antropologia pascaliana, fundado num princípio

teológico (o homem é um ser decaído), é, antes de tudo, uma antropologia que se pode

observar, pois é passível de verificação na realidade (o homem não é soberano). A queda é

um mito que explica o que vemos no quotidiano.

A problemática das duas naturezas, que vimos apresentam um conceito de insuficiência

não sob um formato de falta de algum componente estrutural, mas de um cenário no qual a

insuficiência surge como consequência de uma não organização entre os componentes

antropológicos do homem: Adão era feliz e desejou o mal. Pensar o homem como um ser

atormentado por ter duas natuezas é uma das figuras mais fortes da condição insuficiente,

pois ela nos remete a uma espécie de falta de funcionalidade humana em virtude de uma

multiplicidae de estruturas antropológicas componentes.

Pode-se concluir que, na antroplogia pascalina, o homem é o que ele é, antes e depois do

pecado, não porque é um senhor sem Deus, mas porque Deus planeou o Homem como uma

criatura que só pode ser completa quando ligada-se a Deus.

13

1.4. A compreensão do homem

Pascal empenha-se no estudo do homem pela necessidade de comunicação, que não é

apenas com os outros, mas também consigo mesmo, isto é, clareza e sinceridade consigo

próprio. “O homem que foi feito visivelmente para pensar5” (...) devia começar a pensar em

si próprio, mas tal não acontece e procura-se de preferência a ciência das coisas exteriores.

O homem deve começar por si, a sua tarefa essencial e primeira é a de conhecer-se a si

mesmo. Mas para tal a razão não lhe serve de nada. Como guia do homem, a razão é débil,

inútil e incerta. Ela submete-se facilmente à imaginação, ao costume e ao sentimento, que

impelem o homem para extremos opostos, e a razão que devia instituir regras é flexível e

incapaz de a instruir.

Uma outra via de acesso à realidade humana é o coração. O coração, diz Pascal, “tem

razões que a razão desconhece6”, entender e fazer valer as razões do coração é a tarefa do

espírito de finura.

O antagonismo entre coração e razão, entre o conhecimento demonstrativo e a

compreensão instintiva é expresso por Pascal como um antagonismo entre o espírito de

geometria e o espírito de finura. No princípio de geometria, os princípios não são palpáveis,

alheios ao uso comum, e difíceis de ver; mas, uma vez vistos, é impossível que nos fujam. No

espírito de finura, os princípios estão no uso comum, perante os olhos de todos7. As coisas

relativas à finura sentem-se mais do que se vêem, requer um esforço imenso para as fazer

sentir aos que não sentem por si e não se podem demonstrar completamente porque não se

conhecem os seus princípios como se conhecem os da geometria. O espírito de finura vê o

objecto de um só golpe de vista e não através do raciocínio. A diferença é que o primeiro

raciocina e o segundo compreende.

A eloquência, a moral, a filosofia fundam-se no espírito de finura, isto é, na compreensão

do homem, e quando dele prescindem tornam-se incapazes de atingir os seus objectivos. O

homem não pode conhecer-se como objecto geométrico, não pode comunicar consigo mesmo

e com os outros mediante uma cadeia de raciocínios.

5 PASCAL - “Os Pensadores”frag 146. pág 76 “O homem é visivelmente feito para pensar, toda a sua dignidade

e todo o seu mérito; e todo o seu dever consiste em pensar correctamente”(...) 6 PASCAL - “Os Pensadores”frag 277. pág 107- “O coração tem suas razões que a própria razão desconhece:

percebe-se isso em mil coisas”... 7 PASCAL - “Os Pensadores” frag 1. pág 37 “ A diferença entre o espírito de geometria e o espírito de finura,

num os princípios são palpáveis, mas afastado do uso comum; (...) no outro os principios são de usocomum aos

olhos do mundo...

14

A maior baixeza do homem é a procura da glória, por mais posses que tenha na terra, por

mais saúde e comodidade que possua, não se sente satisfeito se não conta com a estima dos

homens. Ele considera a razão do homem tão grande que, por maior vantagem que tenha na

terra, não se considera satisfeito se não estiver também vantajosamente colocado na razão

humana. É o mais belo lugar do mundo, e nada pode desviar o homem desses desejos. É essa

a qualidade mais indelével do coração humano.

Os que mais desprezam os homens igualando-os aos animais, ainda querem ser

admitidos e acreditados, por isso contradizem por seu próprio sentimento, a sua natureza é

mais forte do que tudo, convence-os de grandeza do homem mais fortemente do que a razão

os convence da sua baixeza8.

Neste capítulo, pensamos que está evidente o marco controverso em que Pascal se

demarca dos seus comtemporâneos, relativamente ao método para se chegar ao conhecimento

e ao conflito entre “fé e razão”. Por isso, Pascal propõe um pluralismo metodológico. Embora

Pascal aceite a dualidade “fé e razão”; mostra-nos que essas duas faculdades nunca entram

em conflito. Para isso, ele mescla duas doutrinas, “a platônica e a agostiniana”, em que na

primeira introduz a noção de coração, como elemento fundamental para o conhecimento, e a

segunda aproveita a noção do pecado original, como factor limitador do conhecimento de si

mesmo e da natureza.

Está claro para nós, a distinção que Pascal faz entre os dois estados do homem “antes e

depois do pecado” e que a cada um deles corresponde uma visão do homem, que constui a

base do seu projecto antropológico. Esse projecto tem como tema central as questão da

“queda” ou então a perda das faculdades que o orientavam para Deus, para ater-se numa

dimensão em que a sua razão foi atingida, decaindo do estado de extrema perfeição para uma

segunda natureza, em que tudo se inclina para o conhecimento da criatura e a satisfação dos

prazeres da carne.

Acreditamos também que, a partir desse projecto antropológico, Pascal pensou todos os

fundamentos da natureza humana, e desenvolveu as suas reflexões metodológicas tornando

possível uma leitura objectiva da sua posição quanto à condição do homem.

Por isso, pensamos que não se trata de um voltar-se para si soberbo, nem de uma rejeição

de todas as qualidades do homem, mas sim de um processo de renúncia de toda e qualquer

forma de concupiscência. Trata-se de um voltar-se sério e objetivo para a sua condição de

finitude e da aceitação desta situação, para procurar a verdade.

8 PASCAL - “Os Pensadores” frag 404 - pág 133

15

Parece-nos também que não se pode abstrair da reflexão psicológica, caso queiramos

compreender em que consiste o conhecimento e a reflexão sobre “si”, onde a tarefa

primordial é o “conhecer a si mesmo”, a sua grandeza, em que o homem se reconhece como

mísero; e a sua miséria quando o homem não consegue se livrar das amarras que o prendem,

fruto da decadência humana, e a necessidade de comunicação consigo mesmo, em detrimento

da procura das coisas exteriores.

A conclusão extraída desse capítulo, é que o estudo e a compreensão da antropologia

pascalina passa necessariamente pelo estudo e a interpretação dos dois estados “antes e

depois do pecado”; o que nos serviu de guia inicial, como força motriz para alargar a nossa

pesquisa para outros domínios da condição humana. Nesse capítulo, pusemos tónica

principalmente nas aptidões que o homem possuía, quando estava subordinada ao amor de

Deus, e quando perdeu esse mesmo amor. Com a mudança desse amor, para com Deus, na

sua infinita bondade, o homem passou a ser objecto e artífice do seu próprio amor. Nesse

aspecto, Pascal mostra-nos claramente as consequências desse acto de desobediência e as

suas verdadeiras consequências.

Revisitando tudo o que foi dito, podemos chegar a algumas conclusões importantes. Não

existe na psicologia pascalina conflito entre a fé e a razão, nem entre a alma e as paixões,

como defenderam alguns dos seus contemporâneos. Entretanto, Pascal apoia-se em duas

doutrinas: a concepção dualista platónica do homem como ser dotado de uma alma e de um

corpo; e a segunda, a concepção cristã “Santo Agostinho”, noção de pecado original.

Vimos também, o estado em que Adão se encontrava antes do pecado: era de santidade e

sobretudo, de inteligência completa e total. Todas as faculdades estavam ordenadas para

poder atingir a felicidade pela visão e pelo conhecimento de Deus. Pela desobediência, o

homem foi precipitado no segundo estado de natureza motivado por um acto de orgulho,

“pecado”, da vontade que se revelou contra a ordem, na qual se encontrava o homem.

Pensamos que é na dimensão histórica – teológica: criação, queda e redenção – que

podemos esperar alguma luz sobre o estado insuficiente do homem. A queda surge como uma

hipótese explicativa que busca iluminar, na forma de um mito, um dado observado

empiricamente. É a partir daí que a questão das duas naturezas, antes e depois da queda,

surgirá como uma análise antropológica que tentará pensar a insuficiência e os seus graus de

manifestação.

Por isso, Pascal empenha-se no estudo do homem pela necessidade de comunicação, que

não é apenas comunicação com os outros, mas também comunicação consigo mesmo, isto é,

16

clareza e sinceridade consigo próprio. Para tal, a razão não lhe serve de nada, uma vez que

não possui o monopólio do conhecimento humano. Assim sendo, Pascal vê o coração como

outra via de acesso à realidade humana.

Conclui-se que, a postura de Pascal, a nosso ver, é definida como “anti-humanista”,

porque para ele, o humanismo significa esquecer o Divino. isto é, de certa forma, a mesma

atitude que Adão teve, ao virar as costas para Deus, e afirmar a sua própria suficiência como

criatura. Nesse caso, entendemos a concupiscência como o abandono de Deus. Por isso, para

sermos capazes de desejar de modo recto, precisamos pedir ajuda a Deus.

Em forma de síntese, podemos verificar que Pascal, no seu estudo antropológico, se

demarca dos seus contemporâneos, no que tange ao conhecimento, propondo um pluralismo

metodológico. Mescla a doutrina dualista platónica e a agostiniana, introduzindo a noção de

pecado original. Pascal, enfatiza a questão da dupla natureza humana, como forma de melhor

compreender s situação actual do homem. Por isso, assinala as qualidades que o homem

possuía antes da Queda, “natureza sadia e o amor direccionado à Deus”, e as qualidades da

segunda natureza, pós-Queda, onde impera o “amor à criatura e a concupiscência”. Por isso, o

homem deve empenhar-se e conhecer-se a si mesmo a partir das suas insuficiências, como

um ser historicamente dividido, extraviado e esquartejado entre duas naturezas antagónicas,

no qual não é possível existir comunicação entre as três ordens “carne, espírito e vontade”.

17

CAPÍTULO - II

“CONCEPÇÃO EPISTEMOLÓGICA DO HOMEM PASCALINO”

1. Desproporção entre o homem e a natureza

No segundo capítulo do nosso trabalho, iniciaremos a nossa análise, reflectindo sobre a

desproporção existente entre o homem perante pesquisa da natureza, para depois incidirmos o

nosso estudo nas dimensões do conhecimento e nos paradoxos da condição humana, que

estão intimamente ligados à insuficiência e à miséria humana.

No primeiro caso, pelo homem estar dividido entre dois abismos “o infinitamente

grande e o infinitamente pequeno”, o que caracteriza a sua situação de desproporção em

relação aos dois extremos; no segundo, pela incapacidade do homem em conhecer as

verdades ontológicas uma vez que está vedado ao homem o conhecimento racional da

verdadeira essência humana, e em terceiro, pela sua situação paradoxal subjacente à miséria,

a insuficiência e a opção pelo ser imaginário, em detrimento da sua verdadeira condição.

Ao refletir sobre a relação entre o homem e a natureza, Pascal vê o carácter insuficiente

da existência humana, porque a razão se depara com aquilo que a ultrapassa infinitamente. O

homem encontra-se num estado de desproporção em relação à natureza, e isso indica os

limites da capacidade racional de conhecer as coisas.

O homem está entre dois abismos, “o infinitamente grande” e o “infinitamente

pequeno”. O carácter infinito da natureza impossibilita qualquer relação proporcional. A

desproporção entre a finitude humana e a natureza, mostra a impossibilidade de acesso ao

plano essencial das coisas infinitas. O mesmo tipo de abismo que encontramos no

infinitamente grande da natureza, surge também no infinitamente pequeno9.

A partir da consideração da insuficiência cosmológica e epistemológica do homem,

Pascal convida-nos a combater a “presunção” no campo do conhecimento científico, que

conduziu os homens a ambicionarem alcançar o princípio das coisas, confiando ter alguma

proporção com estas mesmas.

Tendo em vista que o duplo infinito impossibilita ao homem o alcance do

conhecimento acerca da matéria, cabe a ele constatar a sua falta de proporção com as coisas,

9PASCAL - “Os Pensadores” frag 72 – pág 52 “(...) O homem é um nada em relação ao infinito; tudo em

relação ao nada; um ponto intermediário entre o nada e o nada “(...)

18

situada entre os “dois abismos do infinito e do nada”. Segundo Pascal, não podemos conhecer

as coisas devido à nossa desproporção em relação a elas. Devemos, portanto, combater a

presunção, que produz equívocos nos resultados a que chegam os conhecimentos das

ciências. Desse modo, temos no pensamento filosófico, um direcionamento epistemológico

que ressalta a importância ética da consideração dos limites do conhecimento humano.

O duplo infinito da natureza sugere os limites do conhecimento racional; o homem é

incapaz de apreender os princípios últimos do conhecimento verdadeiro. A propriedade do

duplo infinito também se exprime na concepção pascalina de homem como “caniço

pensante10

”. Essa noção caracteriza dois aspectos da condição humana: o homem é

materialmente limitado por um corpo finito, e a razão é incapaz de compreender a infinitude

do espaço, mas conhece a existência do infinito. Esses aspectos ressaltam a finitude do corpo

e a amplitude da razão. Cabe à razão a produção do conhecimento, e o conhecimento dos

limites do corpo.

Mas de acordo com Pascal, o acesso aos primeiros princípios dar-se-á por outras vias,

porque não há no homem uma compreensão imediata. O acesso deve provir do corpo, por

meio do “sentimento”. É o coração que apreende os primeiros princípios através do

“sentimento”. Desse modo, o corpo e a razão encontram-se num estatuto semelhante, e a

relação entre ambos é mediada pelo “coração”, e nenhum ocupa um patamar mais elevado na

hierarquia das condições do conhecimento possível.

Os primeiros princípios, fornecidos à razão pelo “coração”, são os que possibilitam a

produção do conhecimento. O coração fornece os princípios com que a razão trabalha de

modo lógico-demonstrativo (o método geométrico). Consideramos que está descartada em

Pascal a possibilidade de fundamentar o conhecimento racional em termos ontológicos,

porque o processo racional trabalha a partir de referenciais que a razão é incapaz de

demonstrar.

Ao considerar a dimensão epistemológica do pensamento pascalino, alcançamos a

desproporção como traço elementar do homem, “está vedado à razão, o alcance de verdades

ontológicas”, o que também significa não ser possível uma apreensão racional da essência

humana11

. Concordamos com Pascal, quando diz que a razão não possui o monopólio do

10

PASCAL- “Os pensadores” frag. 347. Pág 123 “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza.

Mas é um caniço pensante(...) 11

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 72. Pág 55. “Assim, se [somos] simplesmente materiais nada podemos

conhecer; e se somos compostos de espírito e matéria não podemos conhecer perfeitamente as coisas simples,

espirituais ou corporais...”

19

conhecimento. Neste caso, a análise de outras dimensões produtoras de conhecimento

representa um alargar do campo da compreensão do sujeito como um ser dividido.

Achamos também pertinente a análise dessas dimensões, uma vez que em Pascal não há

a possibilidade de compreensão racional da identidade humana, visto a impossibilidade de

uma apreensão racional da sua própria essência, tendo em conta a sua situação de

desproporção cosmológica, e a sua posição entre os dois abismos do infinito e do nada.

20

1.1. Dimensões do conhecimento em Pascal

A relação entre o homem e a natureza em Pascal resulta no estudo das possibilidades e

limites do conhecimento racional. A desproporção aponta para uma dimensão que a razão não

abarca. Assim, ao delimitar o âmbito da produção das verdades racionais, Pascal realizou uma

“cisão” no conhecimento em diversas esferas12

.

Segundo Pascal, o coração é um parâmetro de apreensão da verdade que exclui da razão

o monopólio das certezas. Cabe ao coração a apreensão dos “primeiros princípios” como

“espaço, tempo, movimento, número, igualdade entre outros”. Esses conhecimentos são

naturalmente claros, imediatos e universais13

. Esses princípios são necessários como apoio e

fundamento de todo o discurso racional. O coração apreende esses princípios por “instinto” e

por “sentimento” e a razão segue o seu percurso lógico-demonstrativo a partir desses

princípios. Portanto, o coração tem no “sentimento” e no “instinto” dimensões de

conhecimento que apreendem os seus objectos de modo imediato.

Considerando que o coração constitui-se como apoio ao discurso racional, a razão

apreende o seu objecto de modo mediato. O coração “sente” os princípios e a razão trabalha de

modo discursivo e demonstrativo extraindo conclusões dos princípios que lhe são dados.

Segundo Pascal, há uma diferença entre coração e razão14

, entre conhecimento mediato e

imediato. O conhecimento racional dá-se através da presença de princípios, que a razão não

pode demonstrar, necessitando das certezas do coração. Já o coração não necessita do auxílio

de outra faculdade, ele “vê” claramente de um só “golpe de vista”. Por isso, o seu tipo de

conhecimento é imediato.

Pensamos que ao distinguir razão e coração, Pascal exclui a razão da esfera do coração,

mas, essas faculdades acabam por se complementar, na medida em que, é o coração o

fornecedor da razão nos primeiros princípios. Sendo assim, o coração é como uma espécie de

instrumento mediador, a base de todo o conhecimento humano.

O conhecimento dos primeiros princípios que servem como base ao discurso racional

constituem somente um dos aspectos do potencial do coração. Ao estabelecer a diferença entre

o “espírito geométrico” e o “espírito de finura”, Pascal indica alguns dos aspectos dessa

12

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 282. Pág. 107 “Conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também

pelo coração; 13

PASCAL - “Os Pensadores”. Frag 434. Pág. 143 “Sentimos naturalmente em nós a certeza da verdade dos

primeiros princípios por sentimento natural” 14

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 252. Pág. 103 “A razão age lentamente, com tantos exames e em tantos

princípios que sempre devem estar presentes que a todas as horas” (...); sentindo não age assim; age em um

momento, e sempre está pronto agir...

21

potência. O “espírito de finura” está ligado ao coração e encontra-se mais voltado aos

princípios indemonstráveis, “vê de um só golpe de vista”; já o “espírito geométrico”, ligado à

razão, volta-se para as coisas da ciência, para em seguida empregar o raciocínio.

O coração tem ainda a “memória” como uma das suas dimensões do conhecimento, em

que o homem pode guardar a ideia das coisas. Essas ideias transformam-se em sentimentos15

.

Outra faculdade que abarca o homem é a “imaginação” que é contrária ao sentimento porque

opera somente com as imagens corpóreas que a memória retém. Ao trabalhar com as imagens

corpóreas, a imaginação estabelece indevidamente nexos causais entre as imagens. “A

imaginação impede o homem de tomar conhecimento da verdade16

”, da sua condição, na

medida em que o induz a chegar a conclusões falsas, mas, com caráter verdadeiro. Esse caráter

de verdade emprestado às imagens conduz o homem ao erro.

A imaginação é contrária ao sentimento, mas a razão, por ser flexível, não é capaz de

distinguir estes contrários. Ela é considerada por Pascal como sendo responsável e autora da

criação do hábito no homem, e por isso impede-o de conhecer a verdade da sua condição, e o

induz a cultivar somente aparências, ampliando-as ou diminuindo-as e afastando os homens de

considerar as coisas tais como são.

Outra dimensão do conhecimento corresponde ao “instinto”, que enquanto dimensão do

conhecimento pertence à ordem do coração. É a faculdade que actua como uma espécie de

revelador da condição dupla do homem. A partir dele o homem lembra-se da dignidade da sua

primeira natureza ou ainda desvia-se de pensar sobre as misérias de sua natureza actual.

Embora o instinto e o coração apreendam a verdade de forma intuitiva e imediata, Pascal

aponta a diferença que há entre os dois: os conhecimentos advindos do instinto são mecânicos

e rígidos, marcam os aspectos da natureza animal do homem; já o coração caracteriza-se como

uma faculdade de conhecimento por excelência, na medida em que oferece à razão os seus

princípios primeiros. Assim, a diferença que Pascal assinala entre instinto e razão é também a

diferença entre a natureza animal e a espiritual. Como é através do instinto e da experiência

que o homem poderá conhecer as contrariedades da sua natureza, a razão, por si, não pode dar

conta de uma explicação plena do homem.

15

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 95. Pág. 63 “A memória, a alegria são sentimentos e mesmo as proposições

da geometria se tornam sentimentos, pois a razão torna naturais os sentimentos e os sentimentos naturais se

apagam pela razão” 16

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 82. Pág 58 “Essa soberba potência inimiga da razão, que se compraz em

controlá-la e em dominá-la para mostrar quanto pode em todas as coisas, estabeleceu no homem uma segunda

natureza...”

22

Pascal considera os conhecimentos do instinto úteis à vida, porque levam o homem à

conservação da sua existência. O instinto é considerado conhecimento natural, mas ressalta

que nem tudo que o homem faz mecanicamente é um conhecimento natural, ou seja, um

conhecimento instintivo17

. “O costume que faz do rei o temor de seus súditos não corresponde

a uma força natural, ainda que também seja pautado na repetição. Por costume o homem não

age instintivamente, mas pela força da repetição18

”. Mas o homem toma o costume –

adquirido pela força da repetição – como sua própria natureza19

.

O corpo é responsável pela criação de costumes e desenvolve mecanismos que

conduzem o homem na adaptação a todo tipo de coisas que se repetem com frequência. O

corpo é como uma máquina que automatiza tudo o que é necessário para a sobrevivência. Essa

automatização que produz hábitos e costumes, retira a liberdade de agir de modo lúcido.

O hábito modela uma natureza no homem que acaba por distanciá-lo da necessária

reflexão sobre a verdade da sua condição, na medida em que cria um ambiente artificial no

qual os homens acabam por viver de determinados modos, em função de hábitos adquiridos.

Pascal desenvolve o tema do corpo-máquina como um obstáculo às faculdades

superiores da alma, “a razão e o coração”. Embora o homem seja na essência a união entre

corpo e espírito, o corpo-máquina é um obstáculo para o espírito, para se despir dos hábitos

que este fez o homem adquirir.

Revisitando essa análise, temos a caracterização de algumas dimensões do

conhecimento em Pascal que nos permite analisar a relação do homem com a natureza

caracterizada pela finitude humana como marca central dessa relação. Vimos que, os limites

da capacidade racional impedem ao homem o acesso a verdades ontológicas. Isso equivale a

dizer que não há em Pascal a possibilidade do acesso racional à essência do homem.

Assim, podemos concluir que o homem encontra-se numa cegueira cognitiva, diante da

desproporção, fraqueza intelectual diante da faculdade da imaginação, infinitas possibilidades

de significado para as palavras devido ao equívoco dos sentidos, vácuo existencial causado

pela constante combate entre o divertimento e o ennui (angústia), medo diante do silêncio dos

espaços infinitos e as eternas razões do coração.

17

PASCAL - “Os Pensadores” frag.308. Pág. 115 “O costume de ver o rei acompanhado de guardas, de

tambores, de oficiais e de todas as coisas que levam ao respeito e ao terror faz com que seu rosto, quando ele está

às vezes sozinho e sem estes acompanhamentos, imprima em seus súditos o respeito e o terror...” 18

PASCAL - “Os Pensadores” frag.91. Pág. 63 “Quando vemos um efeito repetir-se seguidamente concluímos

tratar-se de uma necessidade natural: amanhã será dia...” 19

PASCAL - “Os Pensadores” frag.93. Pág. 63 “O costume é uma segunda natureza que destrói a primeira...”

23

A partir da posição pascalina, assistimos ao drama da racionalidade local, dependemos

de um ponto de vista, a partir da qual, construímos o nosso pobre conhecimento racional local

em relação a uma série de fenómenos. Esse ponto de vista é o “limite” da nossa racionalidade

empírica, entendida como a sua “localidade”, de certa forma, pode-se considerar um

“provincianismo cognitivo”.

Para nós, todos esses dados afirmam, de diferentes formas, o princípio da insuficiência,

seja ela tomada na sua face mística “boa face”, seja em sua face desgraçada “miserável”.

Sendo assim, a filosofia pascalina, representará sobretudo um conjunto de “olhares” diferentes

sobre essa profunda realidade.

24

1.2. Paradoxos da condição humana

Em Pascal não há a possibilidade de alcançar a compreensão essencial do homem,

caracterizada pela negação das percepções sensíveis. Portanto, não há no pensamento de

Pascal uma crítica directa das percepções sensíveis. Ao contrário, afirma a evidência dos

dados fornecidos pelos sentidos20

. Tanto as percepções como a razão somente tornam-se

enganadoras quando tentam operar fora do âmbito a que pertencem.

Mesmo que as percepções e a razão possam ser princípios de verdade a partir da

mediação do “coração”, estão em permanente conflito, enganando-se mutuamente. As

percepções conduzem a razão ao erro quando lhe fornecem impressões falsas; e a razão, por

sua vez, interpreta os dados sensíveis de modo equivocado. Esse conflito que surge entre razão

e percepções decorre dos próprios limites do intelecto finito.

Tanto a imaginação como a vontade são dimensões do conhecimento que se estabelecem

nos limites do conhecimento racional. A imaginação é considerada uma parte enganadora no

homem, porque conduz ao erro, pronunciando sobre factos que estão além do seu alcance. Ela

é a faculdade responsável por fundar no homem a aparência de felicidade, riqueza, crenças e

todos os disfarces que o distanciam de pensar na sua condição miserável.

Enquanto a razão faz ver no homem a sua miséria, a imaginação molda uma realidade

fora do âmbito dessa faculdade. A imaginação estabelece no homem a segunda natureza e um

mundo marcado pela aparência. O homem prefere representar para si e para os outros esse

disfarce, que a imaginação sobreponha à razão, em que o mundo que ela lhe oferece

proporciona mais prazer. Essa faculdade segundo Pascal é a “senhora do erro e do engano21

”.

A imaginação alicia o homem com promessas de prazeres que seu estado de miséria

revelado pela razão não pode cumprir. Enquanto essa faculdade pode oferecer satisfação para

o homem, a razão só pode lhe proporcionar desespero. Como sugere Pascal: “(...) Não pode

tornar sábios os loucos; mas os torna felizes, ao contrário da razão, que só pode tornar seus

amigos miseráveis; uma cobrindo-os de glória, a outra de vergonha22

”.

Tanto no plano epistemológico, como no moral e no psicológico reina a imaginação,

visto que, estas faculdades estão aliadas à busca do prazer, à satisfação da concupiscência. Sob

20

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 9. Pág. 40 “... “As percepções dos sentidos são sempre verdadeiras...” 21

PASCAL - “Os Pensadores” frag.82. Pág. 60 “... A imaginação dispõe de tudo: faz a beleza, a justiça e a

felicidade, que é tudo no mundo.” 22

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 82. Pág. 59

25

o ponto de vista da psicologia existencial é mais aprazível orientar-se pela imaginação,

possibilita a criação de um modo de felicidade e satisfação que a razão não poderia oferecer.

A vontade também se instala como a imaginação no reconhecimento dos limites da

razão; a sua função cognitiva consiste em reconhecer esses limites. Desse modo, embora seja

ela que revele a condição insuficiente do homem em relação ao infinito, também conduz a

razão ao erro ao fazê-la extrapolar os limites que lhe são próprios.

A vontade pode desviar a razão do caminho dedutivo-demonstrativo em relação à

produção dos saberes geométricos, ao persuadi-la a estabelecer como verdadeiros e válidos os

juízos produzidos geometricamente sobre objectos não geométricos. A vontade persuade a

razão da evidência dos princípios possíveis do conhecimento geométrico, assim como a

persuade da certeza das verdades divinas.

A razão não pode alcançar um conhecimento acerca da essência dos objetos da natureza,

porque a miséria da razão é também resultado desses limites. A imaginação e a vontade,

quando extrapolam os limites da razão, marcam a sua miséria e, em consequência, marcam a

miséria da condição humana.

É essa situação de desproporção perante o universo e a insuficiência que marcam a

miséria da condição humana em Pascal. No entanto, é também a consciência da própria

miséria que faz a grandeza do homem, "é necessário saber-se miserável para ser grande23

”.

Sendo a essência do eu racionalmente inapreensível, restam apenas as qualidades

exteriores observáveis pelas percepções. Todavia, o homem deve buscar conhecer-se para

ordenar a sua conduta, como diz Pascal, “é preciso conhecer-se a si mesmo; se isso não

servisse para encontrar a verdade, serviria ao menos para regular a vida, e não há nada mais

justo 24

”.

A impossibilidade da compreensão racional da sua essência leva-o a tomar consciência

desse estado para ordenar melhor a sua vida. Mas a imaginação encobre com artifícios o

estado de miserabilidade do homem e a vontade o persuade de não buscar se conhecer.

A partir da análise da imaginação no pensamento de Pascal, podemos caracterizar essa

faculdade como produtora de enganos, porque forja no homem um ser imaginário. A opção

que faz pela imaginação leva-o a fugir de vivenciar a miséria da sua verdadeira condição. O

homem opta por se distanciar da verdade da sua condição, na medida em que a orientação do

seu ser no mundo é a dinâmica do prazer.

23

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 397. Pág. 132. “A grandeza do homem é grande na medida em que ele se

conhece miserável...” 24

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 66. Pág. 50

26

Consideramos, desse modo, que o domínio da imaginação sobre o homem, leva-o a não

considerar racionalmente a verdade da sua condição, a opção pelo ser imaginário, faz notar o

rompimento entre a busca do conhecimento e a aspiração à felicidade. Todavia, ao optar pelas

construções imaginárias, o homem escolhe uma forma de felicidade marcada pela

inconstância, uma vez que, a imaginação deforma a imagem das coisas, e o homem é

direccionado a cultivar somente falsidades25

.

Julgamos que a imaginação ao actuar desse modo amplia as qualidades que o homem

julga possuir, e cria uma imagem de grandeza para preencher um espaço interno que se

caracteriza como miséria. Imaginando-se grande, o homem esquece-se de constatar as misérias

presentes na sua condição. A imagem de grandeza com a qual a imaginação veste o homem

não pode constituir o seu verdadeiro ser.

A imaginação enquanto instância produtora de subjetividade afasta-nos da verdade do

ser do homem. Essa incapacidade é extremamente problemática, porque a própria ideia de

identidade do sujeito supõe uma permanência na continuidade.

É certo que a análise da capacidade racional do homem em Pascal fez notar a

insuficiência humana perante um universo que o ultrapassa. Pensamos, e concordamos com

Pascal, que é do reconhecimento dessa insuficiência (da sua miséria) que faz o homem

grande. Já a imaginação pode ser caracterizada como a faculdade da contingência e da

insuficiência como miséria, uma vez que instaura no homem o sentimento de grandeza.

No entanto, a uma conclusão se chega a partir da análise dessa faculdade: a opção do

homem pelo ser imaginário vai de encontro com a recusa em aceitar a sua condição de miséria

que ele mesmo encobre. Mas Pascal diz-nos que o homem só pode ser grande quando

reconhece a sua miséria, e tal facto sugere que a verdade do ser (a sua grandeza) deve passar

pela consideração da miséria.

Deste capítulo, e em breves trechos, podemos concluir os seguintes aspetos pertinentes:

relativamente à natureza, o homem está entre dois abismos, “o infinitamente grande” e o

“infinitamente pequeno”. Esse duplo infinito impossibilita-o de alcançar o conhecimento da

matéria. Segundo Pascal, o “homem é materialmente limitado por um corpo finito, e a razão

é incapaz de compreender a infinitude do espaço”. Sendo assim, a desproporção é um traço

elementar do homem, “está vedado à razão, o alcance de verdades ontológicas”.

25

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 84. Pág. 62 “A imaginação amplia os pequenos objetos até encher- nos a

alma com eles, em uma avaliação fantasista; e numa insolência temerária diminui os grandes e os reduz à sua

medida, como ao falar de Deus”

27

Ao delimitar o âmbito da produção das verdades, Pascal realizou uma “cisão” no

conhecimento em diversas esferas, razão e coração. Cabe ao coração a apreensão dos

“primeiros princípios” pelo “sentimento”, e a razão segue o seu o percurso lógico-

demonstrativo a partir desses princípios. O coração tem ainda a “memória”, o “instinto”,

como uma das suas dimensões do conhecimento.

Não há no pensamento de Pascal, uma crítica directa das percepções sensíveis, ao

contrário, afirma a evidência dos dados fornecidos pelos sentidos. Segundo Pascal, as

percepções só conduzem a razão ao erro, quando lhe fornecem impressões falsas, e a razão

interpreta os dados sensíveis de modo equivocado.

A imaginação é considerada uma parte enganadora no homem porque conduz ao erro,

pronunciando sobre factos que estão além do seu alcance. Enquanto a razão faz ver no homem

a sua miséria, a imaginação molda uma realidade fora do âmbito dessa faculdade. A

imaginação alicia o homem com promessas de prazeres que o seu estado de miséria revelado

pela razão não pode cumprir, enquanto essa faculdade pode oferecer satisfação para o homem,

a razão só lhe pode proporcionar desespero.

A razão não pode alcançar um conhecimento acerca da essência dos objectos da

natureza, porque a miséria da razão é também resultado desses limites, e é essa situação de

desproporção perante o universo e a insuficiência que marcam a miséria da condição humana

em Pascal.

Sintetizando, podemos afirmar que, para Pascal, o homem encontra-se no meio de dois

abismos, o que deixa claro a sua situação de desproporção com a natureza, mas também entre

as três ordens. Existe então, uma desproporção teológica, cosmológica e epistemológica

quando se trata dos limites do conhecimento humano. Por isso, torna-se necessário o estudo

dessas mesmas dimensões.

Segundo Pascal, o homem não é um ser racional por excelência, por isso, aponta outras

faculdades que também permitem o homem chegar ao conhecimento, tendo em conta que o

conhecimento racional é local e parcial, devido à situação de insuficiência humana. Pascal

mostra que o coração é o parâmetro mais importante, uma vez que, é ele que fornece à razão

os primeiros princípios.

O coração apreende os primeiros princípios através do sentimento e do instinto, que

apreendem os objectos de modo imediato, e ainda a memória, a imaginação e o costume que

apreendem os objectos de modo mediato, e por isso, quando se apoiam em dados falaciosos

impedem o homem de conhecer a sua verdadeira natureza.

28

Sendo assim, existe um conflito permanente entres as várias faculdades do

conhecimento “sensações e razão”, uma vez que enganam-se mutuamente. Os sentimentos

fornecem dados por vezes falsos e a razão interpreta-os de modo equivocado.

29

CAPÍTULO - III

“CONCEPÇÃO PSICOLÓGICA DO HOMEM PASCALINO”

1. Constituição do “eu” no mundo

Por último, e para finalizar o trabalho, tendo em vista o enfoque antropológico e

cosmológico dos capítulos antecedentes, neste presente capítulo, incidiremos o estudo na

dimensão psicológica do homem pascalino, abordando primeiramente a constituição do “eu”

no mundo, a grandeza e a miséria humana e, por último, a graça.

No primeiro ponto, destacaremos a questão da fuga do homem mediada pela projecção

de um ser imaginário; e o divertimento, como forma do homem esconder a sua verdadeira

condição. No segundo incidiremos no ponto focal do nosso trabalho, destacando a situação

trágica do homem marcado e dilacerado por traços de grandeza e miséria, para depois nos

atermos no último ponto como sendo a solução pela qual o homem poderá ser resgatado,

mediante a ligação à potência divina.

A construção do sujeito na psicologia pascalina e na ordem social realizam-se através da

imaginação, em que o homem se sobrepõe ao seu ser verdadeiro. O espaço psicológico é

marcado pela exterioridade do ser, uma vez que o objecto é definido no mundo a partir de

qualidades artificiais. A dimensão verdadeira do eu opõe-se ao ser imaginário e não se

comunica com o real empírico.

A necessidade que o homem possui de desligar-se da sua condição pode ser

compreendida em Pascal, como a busca do amor: “A natureza do amor-próprio e desse eu que

é não amar senão a si e não considerar senão a si26

”. Pascal mostra que esse “eu” está cheio

de misérias, mas quer ser objecto de amor e estima dos outros. Para isso, precisa cobrir com

construções imaginárias as suas imperfeições. Ao se negar reconhecer as suas imperfeições, o

homem soma às mesmas uma ilusão que resulta da sua aversão à verdade. É preciso encobrir

as suas misérias para forjar no olhar do outro uma aparente grandeza que o torne objecto

amado.

Nas suas meditações sobre o homem, Pascal considerou que este deve sempre ver a si

mesmo enquanto Ser capaz de pensar, e afirma: “O homem é visivelmente feito para pensar; é

toda sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever consiste em pensar

26

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 100. Pág. 64.

30

corretamente27

”. Pascal opõe aquilo que deveria ser o pensamento às actividades do

divertimento: dançar, jogar, etc. em tornar-se rei, sem pensar o que é ser rei, e o que é ser

homem”.

A descrição do plano existencial do homem em vários fragmentos nos “Pensadores”

expressa a condição de um ser que vive a constante fuga de pensar em si mesmo, e para

desviar-se dessa angústia o homem deixa-se alienar pelo divertimento. Um homem sem

diversão é um ser infeliz, pois nesse estado ele contempla o seu vazio. “No fragmento 164,

pág. 79 de “Os Pensadores”, Pascal esclarece essa necessidade de divertir-se: Mas, “tirai-lhes

a diversão, vós os vereis consumir de desgosto. Sentem “então o seu nada sem o conhecê-

lo...” O divertimento expressa a maneira pela qual um ser desejoso busca a felicidade.

O homem que se diverte ocupa-se com uma actividade ilusória. Em qualquer actividade

os homens se iludem, e continuam indefinidamente buscando a felicidade. Marcado pela

escravidão do desejo e a fuga constante de admitir a miséria da sua condição surge no

divertimento como um ser que possui uma profunda necessidade de estima28

.

O homem que cria para si uma imagem de grandeza é incapaz de amar o outro, mas,

necessita do outro para reforçar a imagem que constrói de si. Essa necessidade de legitimar a

construção de si mesmo através do reconhecimento do outro é caracterizada por Pascal como a

guerra entre os “eus”. Tal situação impossibilita a realização da felicidade humana, uma vez

que todos querem ser estimados. Portanto, por mais que o homem preencha com disfarces

aquilo que nele falta, vive numa constante luta para ser confirmado pelo olhar do outro,

colocando em evidência a sua condição de miséria.

Assim, a necessidade que o homem possui de se ocupar com actividades do

divertimento, pode ser explicada, na medida em que se compreende a sua condição: a de um

ser marcado por um desejo de estabelecer-se como uma entidade digna de estima. Mas, no

confronto com o outro, o homem sente o fracasso do seu projecto de felicidade e angustia-se.

Desse modo, o homem caracteriza-se pela marca de um paradoxo insuperável: embora a

verdade da sua condição aponte para um estado de miséria, enquanto ser desejoso, o homem

aspira à felicidade que resulta no campo existencial, na constituição de uma identidade digna

da estima do outro.

A imaginação que actua no divertimento não livra o homem de sentir os paradoxos da

sua condição. Seguir os mecanismos do divertimento ou interrompê-los conduz o homem a

27

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 146. Pág. 76. 28

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 400. Pág. 132 “Grandeza do homem: temos uma ideia tão grande da alma

do homem que não podemos tolerar que sejamos desprezados e não estimados...”

31

dois estados: no primeiro, sente a sua incapacidade para a felicidade, porque não tem a

confirmação do olhar e do amor do outro; no segundo, ele é lançado na angústia que provém

do sentimento do vazio original da natureza humana, e que foi encoberto pelas vestes do

hábito.

Em Pascal o homem só pode constituir-se enquanto identidade no mundo da seguinte

forma: “Não nos contentamos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser: queremos

viver na ideia dos outros uma vida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por fingir.

Trabalhamos incessantemente para embelezar e fingir. E se temos tranquilidade, ou

generosidade, ou fidelidade, apressamo-nos em fazê-lo saber, a fim de ligar essas virtudes a

esse nosso outro ser.29

(...) Nesse fragmento, há a descrição de uma identidade que só pode ser

construída através da imaginação, em que o sujeito está entregue às construções imaginárias.

Temos desse modo, representando a insuficiência humana em constituir-se enquanto

identidade.

Está presente no homem uma desproporção entre uma substância necessária (eu

verdadeiro), e as qualidades artificiais buscados pelo próprio. Ao buscar a verdade do ser do

homem constatamos que o ser verdadeiro opõe-se ao ser imaginário. O homem é descrito a

partir das nuances do hábito e do costume, que para Pascal não equivalem à nossa verdadeira

natureza. Em suma, temos que a verdade do eu não pode estar presente na realidade empírico-

psicológica do homem, pois há uma desproporção entre esta e a verdade ontológica do ser.

No entanto, se o homem somente se torna real a partir da imaginação, a base em que se

assentam tais construções (a falta, o vazio) faz notar a inconsistência de uma realidade

subjectiva artificial, imaginária e inacabada. O homem que optou pelo ser imaginário vive o

império do amor-próprio e, como diz Pascal: “A natureza do amor-próprio e desse eu humano

é não amar senão a si e não considerar senão a si30

”(...), pois tudo tende para si mesmo, e a

tendência para si é o começo de toda desordem.

A ideia de “tendência a si mesmo”, surge em Pascal como incapacidade presente no

homem em transcender o anseio de ser desejado. Tal anseio caracteriza o homem que se

constrói pela imaginação. O conceito do eu enquanto identidade não pode ser apreendido nem

externamente (socialmente), nem internamente (psicologicamente), ele só se pode sustentar a

partir de artifícios, tendo em conta que a razão é insuficiente para explicar a verdade da

condição humana, e a imaginação só nos permite ver uma condição que preenche esse vazio

29

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 147. Pág. 77. 30

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 100. Pág. 64

32

essencial com uma série de artifícios que constituem a base do ser social e psicológico do

homem.

Como diz Pascal, o erro do homem não está em procurar actividades que o distanciem

de ver as suas misérias, mas sim em acreditar que toda a sua agitação visa o repouso; pois os

homens que sentem naturalmente a sua condição, não evitam nada quanto ao repouso; nada há

que não façam para buscar a agitação31

.”

Pascal censura aqueles que condenaram o homem por ser incapaz de ficar em repouso,

como o homem que se ilude pensando que o seu movimento visa um fim específico que lhe

proporcionaria a felicidade. Em ambas as situações há um desconhecimento da verdadeira

natureza humana.

Em Pascal, o homem no seu estado actual está absorvido pelo jugo do desejo, mas a

mecânica do divertimento não assegura ao homem um estado de felicidade. De acordo com

Pascal, divertir-se é a única coisa que consola o homem das suas misérias e, no entanto, é a

marca de sua maior miséria. Portanto, convida o homem a opor-se ao divertimento e

mergulhar na angústia que o permite compreender a sua condição de miséria. Há dois

instintos que actuam no homem na mecânica do divertimento: um que o faz buscar as

agitações exteriores e que é fruto de suas misérias presentes; e outro instinto secreto que restou

da grandeza de sua primeira natureza e que o faz pressentir que a felicidade só está no

repouso.

Como vimos no estudo das dimensões do conhecimento em Pascal, o instinto é marca de

duas naturezas no homem: “Instinto e razão”. Ele aponta que há no homem a marca de dois

instintos que o faz um todo confuso e dilacerado por paradoxos, procura o repouso pela

agitação e se o encontra não suporta o tédio que esse estado proporciona.

A partir da multiplicação dos paradoxos da condição humana, do desenho de toda a

miséria em que vive o homem, Pascal considera que a problemática da nossa condição deve

ser buscada a partir do reconhecimento do nosso “coração”. A dimensão de nosso ser

verdadeiro deve ser buscada no encontro da teologia com a psicologia. É somente opondo

concupiscência e graça que nos aproximamos da definição essencial de nossa natureza. Mas

antes, pretendemos estender a nossa análise do homem visando compreender a duplicidade de

sua natureza caracterizada pelo paradoxo entre grandeza e miséria, para depois investigar

sobre a graça como o único meio capaz de alcançar a compreensão da plenitude de sentido da

existência humana.

31

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 139. Pág. 71

33

1.1. Grandeza e miséria do homem

Como vimos, “Os Pensadores” apresentam um desenho trágico da condição humana. O

homem vive uma situação paradoxal marcada por traços de grandeza e miséria. No entanto, o

homem recusa-se a ver a verdade da sua condição e vive disfarçando, forjando para si uma

máscara que esconda a sua miséria. Miséria que marca o homem com o selo da discórdia,

interna e externa. No plano interno, ela se reflete na luta entre a razão e as paixões; no plano

externo entre o homem e a natureza. O sujeito pascaliano vive o conflito do homem entre a

“Guerra intestina do homem entre razão e as paixões. Se só tivesse a razão sem as paixões...

Se só tivesse as paixões sem razão... Mas, tendo ambas não pode ficar sem guerra, não

podendo estar em paz com uma, senão entrando em guerra com a outra; assim está sempre

dividido e contrário a si mesmo32

”.

O homem marcado pela discórdia vive o império do amor-próprio. Esse amor

exagerado por si faz, no plano externo, o ódio nas relações na vida social33

. Para Pascal, toda a

moral foi criada a partir da concupiscência e de modo algum pode apagar os traços de miséria

da condição humana, apenas os deixam velados aos olhos do homem que deseja parecer

grande. A verdadeira grandeza do homem só pode ser percebida a partir do conhecimento da

sua miséria. “A grandeza do homem é grande na medida em que ele se reconhece

miserável34

” É através do conhecimento que pode vir a ter de si mesmo que vai ao encontro da

sua grandeza, e não do conceito que faz de si.

Quando Pascal aponta as misérias da condição humana e acusa o amor-próprio como o

responsável por essa situação, ele está conduzindo a sua análise do homem à teologia. A

explicação para o estado de miséria da nossa condição repousa na ideia cristã da Queda. Deus

puniu o pecado original convertendo o homem em Deus de seu amor próprio. No paraíso, o

homem vivia num estado de harmonia consigo, na medida em que vivia no seu plano

essencial, participando da essência divina. Com a queda, há uma ruptura do homem consigo

mesmo, e deixa de se relacionar com Deus. O homem decaído vive uma situação de miséria

existencial, lançado no vazio deixado pelo abandono de Deus.

Dado o enfoque histórico-teológico que Pascal empreende na consideração do homem,

compreendemos a problemática do seu ser no seu pensamento. Sobre o eu Pascal nos diz: “o

eu tem duas qualidades: é injusto em si, fazendo-se centro de tudo; é incómodo aos outros,

32

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 412. Pág. 134. 33

PASCAL - “Os Pensadores” frag.451. Pág. 150 “todos os homens se odeiam naturalmente entre si”(...) 34

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 397. Pág. 132.

34

querendo sujeitá-los: pois cada eu é o inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros35

”.

O eu pascaliano apresenta-se como sujeito e objecto do seu próprio amor que pretende destruir

os desejos dos outros eus. Esse eu é a expressão do homem separado de Deus e que se toma

por Deus. Um eu que cria para si mesmo no espaço vazio, da sua miséria existencial e busca

confirmar a sua dissimulação a partir do olhar do outro.

Porém, ainda que o homem se esforce por preencher esse vazio que lhe é inerente, “o eu

não poderá impedir que esse objecto que ama esteja cheio de defeitos e misérias”. Pascal diz

desse eu: “... quer ser grande e acha-se pequeno; quer ser feliz e acha-se miserável; quer ser

perfeito e acha-se cheio de imperfeições; quer ser o objecto do amor e da estima dos homens,

e vê que seus defeitos só merecem deles aversão e desprezo36

·. (...) Esse eu conduz o homem à

fuga de si mesmo e a só buscar -se fora de si. Marcado pelo vazio essencial, e por uma série de

contradições, o homem ocupa-se em mascarar -se. É evidente essa necessidade que o eu tem

de mascarar-se, forjando “eus” imaginários entre ele e si mesmo, entre ele e os outros “eus”.

Podemos notar que, na verdade, o eu se odeia profundamente, pois é no disfarce de si que ele

se sente tranquilo.

No entanto, a grandeza do homem é tão visível, que se tira mesmo de sua miséria, a

natureza corrompida do homem, aponta para a sua grandeza. Mesmo na sua condição

miserável o homem mantém a sua dignidade e esta afirma-se no distanciamento do eu em

relação a si mesmo. O homem no seu estado actual é escravo da concupiscência e do amor

próprio. Portanto, é preciso que nesse estado o homem se odeie a si mesmo, para poder se

amar verdadeiramente.

Como vimos, no divertimento o eu mascara o seu vazio com actos ilusórios, e se

aniquila completamente, uma vez que nega a sua capacidade de participação essencial com

Deus. Somente odiando a si mesmo e amando a Deus é que o eu assegura a possibilidade de

restituição da sua essência divina37

. Desvencilhando-se do amor próprio, o eu pode se

direccionar a Deus e a ele se unir, porque enquanto natureza isolada, o eu não pode resgatar a

sua dimensão essencial, somente no desprendimento de si mesmo é que ele se ultrapassa e se

auto-supera.

Concluídos que, é a partir do eixo da Queda e Redenção que Pascal assinala a destruição

total do conceito de eu, que se encontra escondido de si mesmo. Somente na revelação divina

o homem pode se ver a si mesmo, porque vê Deus. Pascal ressalta que sem esse mistério o

35

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 455. Pág. 150 36

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 100. Pág. 64 37

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 476. Pág. 154 “é preciso amar só a Deus e só odiar a si mesmo”

35

homem é um “monstro incompreensível38

”. O eu que se afirma para si mesmo e para os

outros enquanto superficialidade através das construções da imaginação, na relação com Cristo

se aniquila e assim se restitui.

Pascal contrapõe e se distancia da concepção do eu cartesiano: ao “eu do cogito”, que se

realiza enquanto substância pensante. Contrapõe o sujeito na sua dimensão puramente

humana. Mas ao questionar o sujeito cartesiano, não desqualifica a racionalidade humana.

Num dos fragmentos de “Os Pensadores”, afirma a importância do pensamento: “O homem é

visivelmente feito para pensar (...) e toda a sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu

dever consiste em pensar corretamente39

. No entanto, Pascal também aponta que a ordem do

pensamento não deve deter-se no eu, ele deve “começar por si”.

Sendo assim, pensamos que o indivíduo só pode tomar consciência de si mesmo, a partir

da relação com a consciência que tem dos outros em relação a si mesmo, pois, na medida em

que ele não possui um eu constitutivo necessita então criar um para si, ele se faz nesse

movimento um eu que só se afirma a partir do outro.

Por fim, esse eu que se apresenta na dimensão humana só se realiza enquanto imagem

que constrói de si e que pretende impor aos demais. Tais imagens são forjadas através do

disfarce do eu, que esconde as suas qualidades. Esse eu nos apresenta como uma mentira,

caracterizada como uma realidade miserável. É o resultado da separação entre o homem e

Deus. A partir dessa separação, o homem foi condenado a separar-se de si mesmo, buscando

sempre em qualquer outra parte, onde não se encontra, e somente pode ser salvo desse estado

na relação com Deus, através do aniquilamento40

.

O homem perante a Natureza é frágil, insuficiente para abarcar tudo o que lhe escapa, na

vida social vive a superficialidade de ser uma máscara, “disfarce, mentira e hipocrisia”, e no

abandono de si mesmo vive a angústia existencial. Pascal convoca o homem a se considerar

perante o infinito: o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, com o intuito de que

nesse movimento ele perceba a sua insignificância. Mas o homem dominado pelo amor

próprio não quer achar-se pequeno quando almeja ser grande, na relação consigo mesmo

coloca-se como o centro do mundo; perante os outros, encontra-se aprisionado na cela dos

seus desejos, e vive uma situação angustiante.

38

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 420. Pág.135. 39

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 146. Pág. 76. 40

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 492. Pág. 157. “Quem não odeia em si o seu amor-próprio, e esse instinto

que o leva a fazer-se Deus, é bem cego (...)”

36

Considerado esse quadro de miséria que caracteriza a relação do homem consigo

mesmo, com os outros e com o mundo, notamos a necessidade de encontrar uma “plataforma

firme e segura” que resolva as contradições, os paradoxos da condição humana. Todavia, nas

palavras de Pascal essa plataforma é sempre frágil e com o menor vento rui, não há ponto fixo

que solucione as misérias humanas. “Os que vivem no desregramento dizem aos que vivem na

ordem que são estes que se afastam da natureza, e julgam segui-la: como os que estão no

barco julgam que os que estão na margem fogem41

(...)

Ao desenhar as misérias da condição humana, Pascal aponta para a necessidade de

encontrar o sentido dessa mesma condição. Todavia, encontrar a verdade, da nossa condição

humana é tarefa árdua, uma vez que o homem encontra-se numa situação paradoxal, “um

ponto intermediário entre tudo e nada42

”. Sendo apenas um ponto entre extremos infinitos, o

homem não pode de modo algum suprimir os contrários.

Na filosofia pascalina há uma crítica contundente à filosofia cartesiana. De acordo com

Pascal, a metafísica, ao pretender estabelecer o vínculo entre o homem e o mundo através da

prova racional da existência de Deus, está fadada ao fracasso, porque a razão é sempre iludida

pela inconstância das aparências e nada pode fixar o finito entre dois infinitos.

O eu pascaliano é expressão do ser paradoxal que reúne em si grandeza e miséria.

Reflete a consciência trágica que viveu a separação entre o finito e o infinito e que não pode

vislumbrar uma reconciliação desse estado a partir da razão. Esse homem paradoxal está

fadado a um emaranhado de dificuldades quando pretende encontrar um ponto de equilíbrio

para a sua condição. O próprio homem é um referencial que está em movimento num universo

descentrado. Desse modo, qualquer ponto tomado como centro equivale a qualquer outro.

Diante de um universo descentrado, entre o infinitamente pequeno e o infinitamente

grande, qualquer ponto pode se constituir como centro. Nessa condição de desespero o homem

só pode acomodar-se em falsos centros. Grandeza e miséria marcam a nossa condição. O

homem é grande, na medida em que admite a sua miséria quando reconhece que a partir da

razão não pode encontrar um ponto de equilíbrio, a verdade da sua condição. O ponto de

equilíbrio que o homem busca é orientado pelo desejo, comum a todos, de busca da felicidade.

A felicidade humana, o repouso da condição paradoxal do homem, só pode ser

designada por aquele que conhece os limites da circunferência, em quem as extremidades se

tocam e reúnem. Somente Deus pode ser essa verdade, Ele que é “o movimento infinito, o

41

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 383. Pág. 130. 42

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 72. Pág. 52.

37

ponto que tudo enche o movimento de repouso 43

” (...) Desse modo, temos em Pascal uma

explicação da verdade do ser do homem que se dá em termos teológicos. A religião cristã é o

norte que explica o sentido da condição humana, o ponto de equilíbrio que explica a condição

paradoxal do homem. “(...) a religião deve de tal maneira ser o objecto e o centro para onde

todas as coisas tendem 44

(...) O homem somente pode encontrar a verdade da sua condição

num plano sobrenatural. No plano natural: “a vida humana nada mais é que uma perpétua

ilusão; não fazemos outra coisa senão nos enganarmos e adularmos mutuamente45

(...)

A nosso ver, para compreender melhor a dimensão da verdade do eu em Pascal, é

necessário uma apresentação do modo que o filósofo concebe o conceito de natureza humana,

uma vez que ele nos afirma que, na sua existência actual, o homem vive uma natureza

corrompida. E é no confronto entre concupiscência e graça ou entre natureza corrompida e a

primeira natureza, que se abre a fenda para a compreensão da verdade do ser do homem em

Pascal.

Está claro para nós, que o homem pascaliano vive uma condição paradoxal marcada por

traços de grandeza e miséria. Nesse ponto, procuramos enfatizar principalmente os traços de

miséria presentes na condição humana. Sob o império do amor-próprio, o homem vive uma

situação existencial de fuga constante de si mesmo através das construções da imaginação e

das ocupações do divertimento. Cientes de que os traços de miséria por si sós não podem

explicar a verdade do homem, pois esta se encontra não no conceito que do homem

concupiscente do divertimento faz de si mesmo, mas no conhecimento que o homem que

assume a própria miséria pode vir a ter de si. Desse modo, temos que miséria e grandeza são

opostas e comunicáveis. Somente sendo consciente de seu estado de miséria, o homem pode

vislumbrar a grandeza que o abarca e também o ultrapassa.

43

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 232. Pág. 94. 44

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 556. Pág. 173. 45

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 100. Pág. 66.

38

1.2. A graça

Segundo Pascal, os filósofos (Montaigne e Epicteto) que pretenderam conhecer a essência

do homem, atribuindo ou não uma substância divina, só puderam obter insucesso porque

tomaram por origem apenas as construções da razão.

Epicteto considerou o homem capaz de realizar a vontade divina, por isso escondeu os

traços da miséria da sua condição. Já Montaigne percebeu que o homem não tinha forças

suficientes para atingir a divindade, viu motivo suficiente para o homem se refugiar na

ignorância, perdendo de vista as marcas de grandeza, da sua primeira natureza.

Segundo Pascal, o conhecimento racional não pode dar conta da verdade da natureza

humana, porque alcança apenas parte do conhecimento. Ainda que a razão detecte as

contradições presentes na natureza, é incapaz de harmonizá-las. Para uma compreensão plena

da noção de natureza humana, é necessário harmonizar os contrários (grandeza e miséria).

Com elas, o homem pode distinguir em si uma natureza sadia (antes da Queda) de uma

natureza corrupta (pós- Queda).

Todavia, a fé, ao ensinar que esses traços provêm de dois momentos distintos da natureza

humana, permite ao homem pensar “que paradoxo é em si mesmo”, ao mesmo tempo fraco e

forte, grande e pequeno, nem anjo e nem animal. Somente a verdade do evangelho é capaz de

conciliar estes opostos, a figura de Cristo ao reunir em si o humano e o divino corresponde ao

núcleo de certezas no qual as contrariedades humanas se harmonizam. “Somente Nele o

homem pode encontrar a verdade de sua natureza: fora de Jesus Cristo não sabemos o que é

nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos46

”. Somente a partir da mediação

de Cristo o homem miserável, separado de Deus, pode obter a comunicação com a sua própria

verdade. Portanto, é na relação com Cristo que o homem pode conhecer Deus e a si mesmo, e

o paradoxo da condição humana (grandeza e miséria) torna-se pensável.

Em Pascal, grandeza e miséria, são traços da natureza humana, que no seu estado actual

se identifica com o hábito, uma vez que o homem após a Queda está privado da essência que

na primeira natureza representava a sua relação com Deus. A razão, incapaz de provar Deus,

só pode exaltar ou rebaixar o homem, mas o coração, ao poder provar a divindade de Cristo,

sente também a grandeza e a miséria humana. Os filósofos que através da razão almejaram

explicar a condição humana, ao exaltarem a grandeza ou a miséria dessa condição sem

conhecer Deus, não conseguiram provar a essência do Ser universal.

46

PASCAL - “Os Pensadores” frag. 548. Pág. 166.

39

A partir do amor-próprio que o eu se constrói, perde-se de vista, uma vez que deposita em

si um amor infinito, igualando-se a Deus, o qual a razão não pode medir. Portanto, para que o

eu se conheça verdadeiramente é preciso conduzi-lo à descoberta do seu lugar de origem e isso

só é possível atacando este amor-próprio, que leva o eu a fazer de Deus. A partir do

aniquilamento do eu é que o homem pode verdadeiramente se conhecer. Separado de Deus,

passa a enganar-se a si mesmo e aos outros, e só pode imaginar-se grande por desconhecer que

está cheio de misérias.

O eu vive um conflito interior entre a razão e as paixões, mas também estende essa guerra

para o exterior, porque necessita dominar os outros “eus” para satisfazer os seus interesses. Tal

conflito deve-se à perda da unidade estabelecida por Deus. Com a Queda o homem passou a

ser dividido e contrário a si mesmo. Este homem dividido é aquele que sente o vazio dos

espaços infinitos abertos com o abandono de Deus, e pretende a todo o custo preencher este

vazio amando tudo aquilo que julga útil.

Sendo o amor-próprio responsável pelas contradições presentes no homem, tudo que ele

faz é visando a si mesmo. Ao se considerar grande, tal grandeza é forjada apenas para a

satisfação do amor-próprio. Esse amor contrapõe à “Ordem da Caridade” que corresponde ao

amor para Deus. A partir da oposição entre amor-próprio e caridade, Pascal constata que o

homem é completamente dominado pelo seu amor-próprio, e incapaz de dominar as suas

paixões, uma vez que fazem parte de sua natureza decaída.

O homem só pode construir-se grande velando todas as suas misérias, fraquezas e

imperfeições, mas Pascal afirma que é necessário amar o eu verdadeiramente. O vazio

presente no eu não é devido à distância deste em relação a si mesmo, esse vazio foi deixado

por Deus ao abandonar o homem.

Somente a verdade da Revelação é que pode conduzir o homem a ver-se a si mesmo tal

como é, ou seja, ver Deus. Através da graça divina que toca o “coração”, o homem pode

resgatar a sua unidade. Ao amar Deus, o eu desvia o olhar das suas misérias e poderá se

desfazer das injustiças a partir da negação do amor-próprio e, ao abrir-se para Deus, resgata o

sentido da sua condição.

Miséria é a consequência da Queda do primeiro homem, a natureza humana foi

corrompida com a Queda, na medida em que, a partir dela, o homem se separou de si mesmo e

distanciou-se de Deus. Portanto, a chave para a compreensão da miséria actual da condição

humana não será encontrada no homem, mas através de Cristo, espelho onde o homem pode se

40

desdobrar e se ver, uma vez que reúne em si a dualidade da natureza humana e se apresenta

como o mediador entre o finito e o Infinito.

No estado da primeira grandeza, o homem, enquanto criatura podia participar da natureza

divina, vivia a plenitude do seu ser que se realizava a partir da ligação entre criatura e Criador,

mas o homem deveria observar os preceitos divinos, jamais deveria cortar os seus vínculos de

dependência com Deus. Mas, ainda que Deus tenha fornecido ao homem a graça que o

orientaria para o Bem, não impediu que optasse pelo mau uso da graça, visto que lhe deu a

livre escolha de fazer bom ou mau uso dela.

O primeiro homem conhecia os preceitos divinos, possuía uma vontade sã e forte e a

graça para realizar tais preceitos. A liberdade do primeiro homem consistia em não poder

pecar. Deus impôs ao homem a observação dos preceitos, para que este não se sentisse como

senhor de sua beatitude, e observando os preceitos o homem se preservava do orgulho. No

entanto, Adão optou pelo abandono da graça divina, buscando em si mesmo a sua beatitude.

Ao querer ser independente de Deus e se igualar a Ele, o primeiro homem buscou uma

autonomia moral que atentava contra a soberania divina. A consequência foi o mergulho do

homem na concupiscência e no amor exagerado de si mesmo.

Com a falta de Adão, o homem afasta-se da sua primeira natureza, e passa a viver uma

natureza corrompida. No seu estado de primeira grandeza o homem não podia pecar porque

tinha a vontade dirigida para o Bem, mas na natureza corrompida encontra-se no reino do

pecado, porque a vontade está dirigida para si mesma. Ao abandonar a graça o homem se

tornou juiz do bem e do mal, a sua vontade foi enfraquecida.

Em nossa opinião, e segundo Pascal, toda a pretensão da compreensão do homem deve ter

em conta que na sua condição actual se encontra destituído do seu ser autêntico e, como

vimos, ele explica a condição humana a partir do eixo histórico da Queda e da Redenção.

Daqui se conclui que o homem se caracteriza como um ser abandonado. Vimos também que a

busca da compreensão do homem em termos racionais está condenada ao fracasso, porque o

homem na sua dimensão temporal se caracteriza como um ser extraviado da sua verdadeira

natureza, dado que o discurso racional não explica o sentido pleno do homem.

Entendemos que é a partir da noção de graça que Pascal coloca como o único meio capaz

de alcançar a compreensão da plenitude do sentido da existência humana, em que Deus actua

no homem através da sua graça, e o homem só age corretamente com a graça divina. Somente

conhecendo a união do humano e divino, expressa a partir da graça na figura de Cristo, é que

se pode esclarecer o verdadeiro sentido da condição humana.

41

Como vimos, assim como Pascal distingue no homem um estado antes e outro depois da

Queda, também distingue duas graças: uma relativa ao homem antes da Queda e outra própria

do seu estado actual, no qual necessita de uma graça que ao mesmo tempo o faça querer e agir,

visto que, após a queda, o homem teve a sua liberdade enfraquecida. O homem, na sua

primeira natureza, realizava plenamente o seu ser porque estava em sintonia com Deus,

participando da divindade. Mas como foi criado com o livre-arbítrio, o homem possuía a

liberdade de escolha, tanto para o bem quanto para o mal. Devido a flexibilidades do livre

arbítrio, o homem escolheu separar-se de Deus e lançou-se no infinito, onde ele é dono e

senhor de si mesmo. No entanto, e segundo Pascal, o homem precisa ser resgatado, e isso será

possível mediante a graça. Mas para receber a graça divina, o coração humano deve ser

constantemente purificado, através da prece e da penitência.

Corroboramos a ideia de Pascal, que toda a interpretação da graça deve ter em conta que o

homem actual tornou-se escravo da concupiscência, que somente se orienta para aquilo que o

satisfaz mais. Logo, a verdadeira graça consiste em exaltar a potência divina, afirmando ao

mesmo tempo a insuficiência humana. O homem encontra-se preso às amarras da

concupiscência, e só pode voltar-se para Deus, a partir da ligação de suas misérias com a

potência divina. A graça reactiva a ordem do amor estabelecida por Deus no acto da criação;

nesse ponto encontra-se a autenticidade do ser do homem e a sua verdadeira natureza.

Do estudo da vertente psicológica do homem pascalino, podemos destacar os seguintes

aspectos que nos ajudam a entender o homem e a nos situar perante a nossa posição perante o

homem actual:

A primeira conclusão a que chegamos é que o “eu” pascalino está cheio de misérias, mas

quer ser objeto de amor e estima dos outros. Por isso cria para si uma imagem de grandeza,

mas necessita do outro para reforçar a imagem que constrói de si. Consequentemente, está

presente no homem uma desproporção entre o eu verdadeiro e as qualidades artificiais. O

homem que optou pelo ser imaginário vive o império do amor-próprio.

A ideia de “tendência a si mesmo” surge em Pascal como incapacidade presente no

homem em transcender o anseio de ser desejado, porque no seu estado actual está absorvido

pelo jugo do desejo, mas não lhe assegura um estado de felicidade.

Pascal considera que a problemática de nossa condição deve ser buscada a partir do

reconhecimento do nosso “coração”. É opondo concupiscência e graça que nos aproximamos

da definição essencial da nossa natureza.

42

Em Os Pensadores, Pascal, apresentam um desenho trágico da condição humana. O

homem vive uma situação paradoxal marcada por traços de grandeza e miséria. Marcado pela

discórdia vive o império do amor-próprio. O amor exagerado por si faz, no plano externo, o

ódio nas relações na vida social. Pascal aponta para as misérias da condição humana e acusa o

amor-próprio como o responsável por essa situação.

O homem no seu estado actual é escravo da concupiscência e do amor próprio, logo, é

preciso que nesse estado o homem se odeie a si mesmo, para poder se amar verdadeiramente.

O eu pascaliano é expressão do ser paradoxal que reúne em si grandeza e miséria.

Reflecte a consciência trágica que viveu a separação entre o finito e o infinito e que não pode

vislumbrar uma reconciliação desse estado a partir da razão.

Grandeza e miséria marcam a nossa condição, o homem só é grande, na medida em que

admite a sua miséria quando reconhece que a partir da razão não pode encontrar um ponto de

equilíbrio. O conhecimento racional não pode dar conta da verdade da natureza humana,

porque alcança apenas parte do conhecimento. Portanto, os filósofos que pretenderam

conhecer a essência do homem, atribuindo ou não uma substância divina, só puderam obter

insucesso, porque tomaram por origem apenas as construções da razão.

É somente a verdade do evangelho, “graça”, que é capaz de conciliar os opostos, a figura

de Cristo ao reunir em si o humano e o divino corresponde ao núcleo de certezas no qual as

contrariedades humanas se harmonizam.

Em Pascal, grandeza e miséria são traços da natureza humana, que no seu estado actual

se identifica com o hábito, uma vez que o homem após a Queda está privado da essência que

na primeira natureza representava a sua relação com Deus.

A partir do aniquilamento do eu é que o homem pode verdadeiramente se conhecer.

Separado de Deus, passa a enganar-se a si mesmo e aos outros, e só pode imaginar-se grande

por desconhecer que está cheio de misérias.

A partir da oposição entre amor-próprio e caridade, Pascal constata que o homem é

completamente dominado pelo seu amor-próprio, e incapaz de dominar as suas paixões, uma

vez que fazem parte da sua natureza decaída. Somente a verdade da Revelação é que pode

conduzir o homem a ver-se a si mesmo tal como é, ou seja, ver Deus. Através da graça divina

que toca o “coração”, o homem pode resgatar a sua unidade.

Portanto, a chave para a compreensão da miséria actual da condição humana não será

encontrada no homem, mas através de Cristo, espelho onde o homem pode se desdobrar e se

43

ver, uma vez que reúne em si a dualidade da natureza humana e se apresenta como o mediador

entre o finito e o Infinito.

A nossa hipótese, é que não há em Pascal nenhuma saída, de um ponto de vista

antropológico e psicológico, para o drama da insuficiência. Só há solução no campo teológico:

aquela que se refere a uma variação de modalidade de insuficiência, e não à dissolução desta,

que implica a ideia de um retorno à “boa insuficiência adâmica” pré-queda.

De qualquer forma, o que é claro nessa problemática é que a vontade será

necessariamente direccionada pelo sobrenatural, pois se deixada a si mesmo, a concupiscência

será sempre a vencedora, repetindo a trajectória da queda, cuja cadeia anatómica mecânica é a

cadeia que deriva do desejo de divertimento.

Concordamos com Pascal, que o homem só escapa pela graça – conversão natural, lugar

da cognição mística. O homem pode libertar-se deste trágico teatro do mundo empírico e deste

terreno baldio, onde se encontra perdido.

Em síntese, vimos que na psicologia pascalina, a construção do eu é marcada pela

exterioridade, e que o ser verdadeiro opõe-se ao imaginário. Esse eu está cheio de misérias e

nega reconhecer as suas imperfeições e, para desviar-se da angústia que por vezes o atormenta,

refugia-se no divertimento, como uma actividade ilusória. Assim sendo, Pascal nos mostra que

o homem vive o “império do amor próprio”, que o torna escravo da concupiscência, dono e

senhor do seu próprio amor.

Pascal propõe ao homem que se aniquile, para que se posso conhecer verdadeiramente. É

opondo concupiscência à caridade que ele reconhece os traços de miséria, e reconhecendo suas

insuficiências, ele se torna grande. Por isso, é somente através da graça e da verdade da

revelação divina que o homem se pode esvaziar das suas misérias e ineficiências.

44

I. CONCLUSÃO

Ao longo da nossa investigação, vimos que Pascal é, acima de tudo, um teólogo com

preocupações antropológicas e epistemológicas. A partir desse cosmo não-integrado, ele

construirá diversas áreas do conhecimento, a partir das quais ele pensa o destino e as

possibilidades do homem.

Deparamos que, o pensamento de Blaise Pascal é profundamente marcado por uma

tensão permanente entre dois elementos indispensáveis para a compreensão da génese do

pensamento moderno: a dualidade fé e razão. Essa tensão aparece no contexto da produção de

várias filosofias, como se o exercício filosófico deste período não pudesse prescindir dessa

questão.

Estamos perante uma tentativa de alcançar um retrato da verdade do ser, ao analisar o

homem partindo principalmente da visão antropológica, antes e depois do pecado (primeiro

capítulo), que marca uma ruptura entre um estado de santidade, de inteligência pura e

completa. Nela o homem orienta-se para Deus e a concupiscência estaria subordinada à

vontade guiada pelo intelecto, para um estado onde o pecado subverteu a ordem das

faculdades humanas, perturbando e lançando o homem para um estado de miséria e

concupiscência. Essa ruptura epistemológica serviu de base para o início da nossa pesquisa,

uma vez que não se poderá compreender o homem pascalino sem antes referir a essas duas

etapas que Pascal adotou para desenvolver as suas reflexões metodológicas.

Da nossa análise, vimos que as fronteiras do pensamento pascalino são infinitas,

sobretudo, por ser um filósofo ocupado com o destino do homem. Por isso, pensamos que a

sua antropologia é central, dado que trabalha no limite o problema da natureza humana e os

seus traços e afectos fundacionais.

Ao longo deste trabalho, procuramos iluminar a importância do conceito de miséria e

insuficiência, para a antropologia pascalina. Além disso, procuramos compreender a relação

entre elas e a contingência, coração da condição caída, matéria prima para Pascal na sua

antropologia. Nesta, suficiência é a representação da queda, ou seja, o homem peca porque

busca afirmar desde Adão a sua autonomia.

Relativamente à desproporção entre o homem e a pesquisa da natureza (segundo

capítulo), a nossa preocupação foi relativa à consideração da crítica que Pascal faz à

metafísica em matéria de conhecimento científico e a ruptura entre as dimensões do

conhecimento. Mas como o nosso objetivo nesse campo do pensamento de Pascal foi somente

45

o de focalizar as marcas da desproporção e a consciência da finitude como um problema, não

nos detivemos em questões científicas, uma vez que tal abordagem nos faria perder de vista o

nosso objetivo.

Um dos traços da filosofia moderna, em matéria de epistemologia, consistiu em tomar

como o principal problema da filosofia o tema da relação entre o sujeito e o objecto de

conhecimento, logo, o método desta relação como problema do conhecimento. O pensamento

filosófico desse período apresenta uma série de obras que carregam a marca da busca de um

método de conhecimento único e rigoroso. Mas o que nos interessou focalizar na

epistemologia de Pascal foi o seu desdobramento ético, a preocupação com os fundamentos do

conhecimento a partir da consideração da desproporção entre o homem e a natureza, a finitude

humana e os limites do conhecimento racional.

Para Pascal, a razão é insuficiente para alcançar tanto a essência da realidade física,

“está vedado ao homem o conhecimento dos primeiro princípios e os princípios últimos do

conhecimento verdadeiro”, bem como a própria verdade ontológica do homem. Desse modo,

o nosso objetivo extravasou do campo racional para considerar outras modalidades

importantes do conhecimento, porque Pascal pensou o homem na totalidade dos campos

antropológicos: política, sociedade, psicologia, teologia e epistemologia.

No que diz respeito à desproporção entre o homem e a natureza, enfatizamos a sua

insuficiência cosmológica que o situa entre dois abismos; “o infinitamente grande” e o

“infinitamente pequeno”. Esse facto impossibilita o homem de alcançar o conhecimento

acerca da matéria, tendo em conta que o duplo infinito surge nos limites do conhecimento

racional e manifesta a incapacidade do homem em apreender os princípios últimos do

conhecimento verdadeiro. Deste modo, e considerando a dimensão epistemológica do

pensamento pascalino, observamos que “está vedado à razão, o alcance de verdades

ontológicas, e a apreensão racional da essência humana”.

Na consideração das dimensões do conhecimento e os paradoxos da condição humana,

focalizamos a imaginação e a vontade como faculdades produtoras de subjetividade que

caracterizam no homem a insuficiência como miséria. Tais faculdades atuam no limite do

intelecto finito: a imaginação forja no homem um “ser imaginário” que mascara a sua miséria

e a vontade o persuade a vivenciar essa ilusão.

A opção do homem pelo ser imaginário expressa uma condição que, ao orientar-se pelo

prazer, vive a fuga de considerar a verdade da sua condição miserável. Caracterização da

condição humana é o rompimento que há entre verdade e felicidade. O curioso dessa homem

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pascaliano somente pode ser feliz, na medida em que mente para si e para o outro. Mas, essa

frágil felicidade, pautada na fuga de si e no movimento incansável da dinâmica do prazer, não

permite nenhum estado de constância no homem. A consciência da sua finitude, da sua falta,

somente pode proporcionar angústia, por isso ele experimenta a constante fuga da verdade de

sua condição.

Em nossa opinião, a ruptura entre conhecimento e verdade em Pascal, certamente, é de

extrema importância para compreender melhor o universo humano de hoje, em que se vive a

tirania do imperativo “seja feliz”, por e pela diversão; em que cada vez as ocupações com

actividades e manobras de diversão são supervalorizadas, para não nos ater demasiadamente

nos problemas reais. Os movimentos sociais que visam a transformação parecem abrigar uma

crença na evidência de que a felicidade e o bem estar reside na diversão desenfreada e na fuga

constante do homem da sua verdadeira natureza.

Como se pode observar no mundo actual, a proclamação da evidência de que o homem

nasceu para ser feliz e de que ele deseja ser, é tomada como solução e não como um problema.

Certamente, uma sociedade baseada no acto de consumo como equação da felicidade produz

uma antropologia simétrica às suas necessidades. A felicidade passa a ser um critério moral. O

que podemos concluir é que a opção do homem pelo ser imaginário vai de encontro com a

recusa em aceitar a sua condição de miserável, que procura a todo o custo encobrir, para que

possa ser valorizado e estimado pelos outros.

Na análise da constituição do “eu”, vimos que a questão particular do “eu” nasce por

causa do desejo de independência, rebelião malsã, que será sempre relacionada com a

tendência do homem em tornar-se causa do bem. Desta análise do “eu” no mundo,

caracterizamos a oposição entre o divertimento e a angústia. O divertimento expressa os

modos de comportar-se de um ser que se sustenta pela imaginação e que vive o “calvário do

desejo”.

Divertir-se é o recurso que o homem utiliza para deixar de pensar na sua miséria.

Através dessa actividade ele se aliena de pensar na sua condição. Essa abordagem pascalina é

bastante relevante ao pensamento contemporâneo, que tem por reflexo um mundo em que

divertir-se significa que não devemos pensar; devemos esquecer a dor, mesmo aonde ela se

mostra.

Segundo Pascal, para encontrar a verdade do homem é preciso mergulhar na miséria e

compreender que a escravidão do desejo, o impede de realizar-se como um ser. Os seus

paradoxos são remetidos à explicação teológica. Miséria e grandeza no homem remetem à

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primeira e à segunda natureza no eixo da Queda e redenção. O hábito e o costume modelam

esta segunda natureza, e fazem com que o homem perca de vista a dimensão de sua verdade.

Mas é a própria dimensão de verdade do homem em Pascal que dissolve a ideia de homem

como Ser autónomo. O homem pascaliano não possui a razão do Ser em si mesmo, pelo

contrário, é só no desprendimento de si e no encontro com o sobrenatural, com Cristo, que ele

se realiza.

A filosofia de Pascal reflecte uma visão trágica que caracteriza o homem como um ser

dilacerado entre duas exigências contraditórias que o mundo não permite conciliar. O homem

é grande pela sua consciência, mas pequeno pela sua insuficiência. A própria compreensão

pascaliana da filosofia já apresenta paradoxalmente as duas possibilidades em relação aos

resultados do conhecimento: de um lado, os dogmáticos, e do outro, os pirrónicos. A verdade

em Pascal aparece inicialmente em três ordens distintas: o corpo (sentidos), a razão

(intelecto) e a fé (sobrenatural). Cada uma destas ordens dispõe separadamente dos seus

próprios critérios e meios para o conhecimento das suas próprias verdades. Isto é, há uma

ruptura epistemológica entre as ordens que compõem a antropologia humana. Os diferentes

métodos que Pascal utiliza para chegar ao conhecimento destas verdades, que são

independentes no interior de cada ordem do conhecimento, fazem ver uma concepção de

verdade que não é unívoca como pretendida Descartes.

Para Pascal, apenas quando lançamos sobre a questão da verdade a luz do drama

teológico que envolve a existência humana é que nos aparece a real situação na qual

existimos: num completo vazio de comunicação com a verdade, uma vez que a nossa situação

exprime uma total quebra de elos entre Deus e mundo, entre o mundo e o homem, e o homem

e Deus; ou seja, o homem vive isoladamente num mundo que não lhe oferece segurança,

certeza e verdade.

Isso significa que a existência humana como mero ser da natureza deverá ser

necessariamente um fracasso. Ele é insuficiente como um ser natural. Em Pascal, o natural é

sinônimo de imperfeição, miséria e fracasso. É o próprio sentimento natural o mecanismo que

nos oferece o conhecimento da desproporção e da nossa cegueira cognitiva em relação à

verdade essencial, limitando-nos a um campo restrito de verdades apenas fenomenais e

possíveis dentro da ordem do corpo (sentidos), que nos possibilita viver nessa condição de

insuficiência e mesmo precária em relação ao conhecimento da verdade como tal.

O facto da razão fracassar na „legitimação‟ das coisas que o nosso sentimento natural

apreende apenas revela que temos outras formas cognitivas de nos relacionarmos com o

48

mundo e que elas são, infelizmente, disjuntivas. Para Pascal, é muito claro que o cepticismo

seja um fenómeno „local‟ que não invalida a cognição humana como um todo, mas somente

revela o nosso mau funcionamento geral pelo simples facto de que, apesar das

„demonstrações‟ cépticas, continuamos a viver por meio das nossas cognições.

Para Pascal, antropologia e epistemologia são simplesmente áreas específicas dentro de

um drama teológico geral, e a maneira como Pascal trata a questão da miséria da grandeza da

condição humana, leva-nos a perceber a importância desse tema na sua reflexão,

especialmente quanto ao problema da verdade. Como observamos ao longo da nossa

exposição, Pascal leva-nos por caminhos muito diversos, tendo em conta a maneira como

aborda esse tema, ora questionando a necessidade da fundamentação racional, ora analisando

a descrição do homem separado da verdade. Constrói duas vias para se chegar a uma

compreensão do homem. Estabelece então, um impasse em que razão, em conflito

permanente, não é suficiente para decidir entre um e outro. Deste modo, a pretensão

cartesiana está condenada ao fracasso.

O paradoxo, no caso de Pascal, não supõe apenas termos contrários ou ideias opostas,

mas o próprio mecanismo de funcionamento da razão em procurar a verdade. Em Pascal, o

paradoxo adquire valor teórico e filosófico próprio, quase como arma de combate contra

aqueles que procuram apresentar a verdade de maneira unívoca, desconsiderando o carácter

diverso pelo qual o ser humano tem acesso à verdade. Pascal prefere manter, através do

paradoxo, essa característica binária de oposição à descrição do verdadeiro, do que

simplesmente lançar uma solução definitiva sobre a questão da verdade. Por conta disso, é

justo observar que o paradoxo não tem como objectivo promover um dos dois lados dos

elementos em questão, como se procurasse afirmar um em detrimento do outro. Pelo

contrário, o paradoxo em Pascal diz tanto de um quanto o outro. Pensamos que a intenção é

promover a igualdade dos dois elementos; que mesmo sendo contrários marcam, de modo

preciso, a descrição do verdadeiro.

Nesta clássica descrição pascaliana da situação do ser humano, o valor do paradoxo não

se restringe à intenção de anular um elemento pelo outro. Pelo contrário, o objectivo de

Pascal é mostrar o ser humano como um campo fértil para as contradições.

Pascal procura mostrar que o ser humano é um ser paradoxal e ambíguo, característica

que se estende desde a linguagem até à possibilidade de conhecer e comunicar o verdadeiro.

A filosofia cartesiana, aos olhos de Pascal, procurava fundamentar a experiência

humana do conhecimento exclusivamente na razão, como se ela fosse dotada de uma

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capacidade absoluta de construir um método correcto (com base na matemática), pelo qual

seria possível o acesso à verdade. Mas Pascal critica a pretensão de construir uma apreensão

unívoca da verdade, através da razão. Sobre esta questão, Pascal afirma que a verdade não

estaria disponível somente à razão e, por isso, seria de carácter diverso, bem como a própria

condição do ser humano, caracterizada pelo paradoxo, pela ambiguidade e pelas

contrariedades.

Pascal revela o “erro” na assunção cartesiana de que existe a possibilidade de um

conhecimento universal. Descartes acreditava que na sua metafísica pudessemos visualisar a

relação com a “suficiência”. Pascal, ao conrário, mostra-nos a “insuficiência”, cuja distância

infinitamente infinita entre as ordens, nunca permite supor ou explicar todo o conjunto de

elementos existentes via uma síntese conceitual.

Ainda em Montaigne, Pascal destaca a miserabilidade do ser humano, a sua

insuficiência em conhecer a verdade e a fragilidade da razão que é rebaixada ao nível de uma

faculdade humana. Tanto Descartes quanto Montaigne, serviram à crítica pascaliana da razão

na busca de compreender-se a si mesma, a própria situação humana e as possibilidades para o

conhecimento. Nesta perspectiva crítica, Pascal não compartilha com Descartes a crença de

uma razão segura de si mesma, nem com Montaigne a apreensão do ser humano

exclusivamente pela razão.

Pascal, mesmo quando é visível a sua preocupação no domínio do conhecimento em

termos contemporâneos, permanece na unidade da sua obra a inquietação – um pensamento

preocupado com o destino do homem, daí o carácter situacional de seu pensamento. Dúvida,

corrupção, inconstância, contingência, angústia. Todas as figuras de uma realidade única:

condição insuficiente, vivida como o exilio do sobrenatural.

Pensamos que, Pascal reconheceria facilmente no homem contemporâneo o que, em

termos actuais, definimos como narcisismo monstruoso, que não é outra coisa senão a

materialização tardia da paixão pela suficiência, da substituição da ausência da substância

autónoma do Eu pelo amor desmedido por si mesmo.

Desta forma, concordamos que o homem é miséria e grandeza, mesmo que a sua

grandeza esteja em reconhecer-se miserável, ou seja, conhecer-se é reconhecer-se miserável e

insuficiente.

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II. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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