Blaise Pascal e as primeiras calculadoras

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HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: [email protected] 29/11/2013 Page 131 of 484 Blaise Pascal “O pensamento lógico puro não pode nos proporcionar qualquer conhecimento de mundo empírico; todo o conhecimento da realidade parte da experiência e nela termina. As proposições a que se chega por meios lógicos exclusivamente são completamente desprovidos de realidade.” Albert Einstein Blaise Pascal (1623 - 1662), notável matemático, filósofo, físico, teólogo e cientista, nascido em 19 de junho de 1623, em Clermont-Ferrand, a cerca de 400 km de Paris, na região administrativa de Auvergne, uma das 26 existentes, no coração da França. Uma terra de contrastes e de natureza exuberante, Auvergne exibe cadeias de montanhas vulcânicas, desfiladeiros profundos, vales verdejantes, rios, planícies, florestas e fontes naturais. Filho de Étienne Pascal (1588 – 1651), presidente da Corte de Apelação, e de Antoinette Bégon, Blaise Pascal revelou seu gênio precoce, segundo sua irmã mais velha e biógrafa, Gilberte Périer, por meio de um espírito investigativo e perspicaz, não somente por suas respostas a certas questões, mas principalmente pelas questões que ele próprio propunha sobre a natureza das coisas. (220) Contemporâneo de Galileu Galieli (1564 – 1642), (René Descartes (1596 – 1650) e do Cardeal de Richelieu (1585 – 1642), Blaise Pascal viveu em um mundo em que imperavam a superstição e a intolerância religiosa, as quais combateu durante toda sua vida, por meio de uma linha de raciocínio científico e de uma lógica impecáveis. Na esfera política, reinava Luís XIII de Bourbon (1601 – 1643), chamado O Justo, que, auxiliado por seu poderoso primeiro ministro Richelieu, a quem sua imagem permanece inseparavelmente atrelada, promoveu a reorientação da monarquia francesa para um modelo absolutista * . À medida que a monarquia absolutista se firmava, a administração pública se profissionalizava, preferindo o rei dividir o poder com funcionários graduados do que com outros nobres, surgindo assim uma nova classe social, a burguesia. Étienne Pascal, homem culto e respeitado, fazia parte desta nova classe de funcionários do reino, sendo nomeado, em 15 de setembro de 1639, administrador da província da Normandia, região litorânea ao noroeste da França. Fixando-se com a família nesta região, com o cargo de Intendente Real de Taxas e Impostos, semelhante a uma função atual de Secretário da Receita, era encarregado por determinar e arrecadar impostos dos comerciantes e * A monarquia absolutista francesa atingiu seu ápice no reinado de Luís XIV (1638 – 1715), de 1643 a 1715. Conhecido como o Rei Sol, ele próprio símbolo da monarquia absolutista, provocou uma série de guerras entre 1667 e 1697, para estender as fronteiras da França para o leste, conquistando terras do Sacro Império Germânico, e mais tarde, de 1701-1714, para assegurar o trono espanhol à seu neto. (Nota do Autor)

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Blaise Pascal

“O   pensamento   lógico   puro   não   pode   nos   proporcionar   qualquer  conhecimento  de  mundo  empírico;   todo  o  conhecimento  da  realidade  parte  da  experiência  e  nela  termina.  As  proposições  a  que  se  chega  por  meios   lógicos   exclusivamente   são   completamente   desprovidos   de  realidade.”                                                                                                                                                                                                        Albert  Einstein    

Blaise Pascal (1623 - 1662), notável matemático, filósofo, físico, teólogo e cientista, nascido em 19 de junho de 1623, em Clermont-Ferrand, a cerca de 400 km de Paris, na região administrativa de Auvergne, uma das 26 existentes, no coração da França. Uma terra de contrastes e de natureza exuberante, Auvergne exibe cadeias de montanhas vulcânicas, desfiladeiros profundos, vales verdejantes, rios, planícies, florestas e fontes naturais. Filho de Étienne Pascal (1588 – 1651), presidente da Corte de Apelação, e de Antoinette Bégon, Blaise Pascal revelou seu gênio precoce, segundo sua irmã mais velha e biógrafa, Gilberte Périer, por meio de um espírito investigativo e perspicaz, não somente por suas respostas a certas questões, mas principalmente pelas questões que ele próprio propunha sobre a natureza das coisas. (220)

Contemporâneo de Galileu Galieli (1564 – 1642), (René Descartes (1596 – 1650) e do Cardeal de Richelieu (1585 – 1642), Blaise Pascal viveu em um mundo em que imperavam a superstição e a intolerância religiosa, as quais combateu durante toda sua vida, por meio de uma linha de raciocínio científico e de uma lógica impecáveis. Na esfera política, reinava Luís XIII de Bourbon (1601 – 1643), chamado O Justo, que, auxiliado por seu poderoso primeiro ministro Richelieu, a quem sua imagem permanece inseparavelmente atrelada, promoveu a reorientação da monarquia francesa para um modelo absolutista*. À medida que a monarquia absolutista se firmava, a administração pública se profissionalizava, preferindo o rei dividir o poder com funcionários graduados do que com outros nobres, surgindo assim uma nova classe social, a burguesia.

Étienne Pascal, homem culto e respeitado, fazia parte desta nova classe de funcionários do reino, sendo nomeado, em 15 de setembro de 1639, administrador da província da Normandia, região litorânea ao noroeste da França. Fixando-se com a família nesta região, com o cargo de Intendente Real de Taxas e Impostos, semelhante a uma função atual de Secretário da Receita, era encarregado por determinar e arrecadar impostos dos comerciantes e

* A monarquia absolutista francesa atingiu seu ápice no reinado de Luís XIV (1638 – 1715), de 1643 a 1715. Conhecido como o Rei Sol, ele próprio símbolo da monarquia absolutista, provocou uma série de guerras entre 1667 e 1697, para estender as fronteiras da França para o leste, conquistando terras do Sacro Império Germânico, e mais tarde, de 1701-1714, para assegurar o trono espanhol à seu neto. (Nota do Autor)

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proprietários de terras, representando localmente a autoridade e poder do próprio monarca.

O talento de Blaise Pascal ficou evidente desde sua infância, pela facilidade natural que tinha em ajudar seu pai nos cálculos dos impostos. Apesar de ter demonstrado precocemente seu interesse pela matemática, área do conhecimento em que mais se destacou, sendo considerado dentro desta área não apenas um grande matemático, mas responsável por estruturar certos campos que inexistiam antes dele, Blaise Pascal viu-se instigado por seu pai a dedicar-se primeiramente ao estudo das línguas clássicas. Tendo perdido sua mãe aos três anos de idade e sendo o único filho do sexo masculino de uma família composta ainda por três irmãs (uma das quais também faleceu durante seus primeiros anos de vida), seu pai Étienne apegou-se muito a ele, assumindo para si a responsabilidade por sua instrução. Pascal nunca freqüentou escolas, nem mesmo quando sua família mudou-se para Paris, em 1631. Étienne, ele próprio um matemático, encarava com certa relutância a predileção de Pascal pela matemática, área a qual, em sua concepção de educação, considerava como avançada e que deveria ser alvo de estudos posteriores. Desejando que Blaise deixasse para dedicar-se a ela mais tardiamente, prometia-lhe que a ensinaria quando ele dominasse o grego e o latim.  

Além das línguas, Étienne Pascal ensinava ao filho os princípios básicos sobre as leis da natureza e sobre as técnicas humanas. Isto aguçava a curiosidade do menino, que sempre queria saber a razão de todas as coisas e não se satisfazia diante de explicações incompletas ou superficiais. Quando se deparava com uma explicação que considerasse insuficiente, passava a pesquisar por conta própria até encontrar uma resposta satisfatória e, diante de um problema, não o largava até resolvê-lo plenamente. Suas experiências sobre os sons levaram-no a escrever um pequeno ensaio, aos onze anos de idade, considerado de nível elevado para sua idade. (220)

Aos 12 anos, Blaise Pascal encontrou na mesa de trabalho de seu pai um

exemplar do livro Elementos, de Euclides (≈ 325 a.C. - ≈ 265 a.C.)*, que versava sobre geometria avançada, e que veio a aguçar a afinidade que ele nutria pela área da matemática. Reza a lenda que, autodidata que era, aprendeu geometria sozinho, divertindo-se com as figuras geométricas que o pai lhe havia mostrado. Inicialmente, procurava traçá-las corretamente, passando em seguida a buscar as proporções entre elas e, depois de propor axiomas relativos às figuras, dedicou-se a fazer demonstrações exatas, chegando até a 32ª proposição do livro I de Euclides. Para seu espanto e orgulho, Étienne descobriu que o filho aprendera a

* Proeminente matemático grego, nascido na Síria e educado em Atenas, professor em Alexandria. As datas exatas de seu nascimento e morte são desconhecidas, sendo estimada a primeira entre 360 aC. e 325 aC., e a última entre 295 aC. e 260 aC. Ver também nota sobre “Os Elementos”, na página 32.(Nota do Autor)

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matemática sem a sua ajuda. A partir de então, Blaise pôde dedicar-se livremente ao estudo da geometria.

Com a idade de 13 anos, em reconhecimento de seu talento, foi levado pelo pai e admitido nas reuniões semanais promovidas por um grupo recém-formado, auto-intitulado Académie Mersenne (em homenagem ao seu fundador, o monge Marin Mersenne (1588 – 1648), da Ordem dos Mínimos). Nestas reuniões Pascal conheceu e passou a manter laços de amizade com René Descartes e com o matemático amador Pierre de Fermat (1601 – 1665), com quem manteria uma profíqua correspondência na troca de informações e experiências, principalmente sobre temas ligados à matemática. (467)

Blaise Pascal rapidamente progrediu em seus estudos e, quatro anos após ter encontrado o livro de Euclides na mesa de seu pai, contando então com apenas 16 anos de idade, concluiu um ensaio sobre geometria das seções cônicas, o Tratado Sobre as Cônicas, retomando o desenvolvimento de um campo estagnado há 19 séculos. Este trabalho, por sua própria vontade, não foi impresso naquele momento.

Três anos mais tarde, em 1642, agora com 19 anos de idade, Pascal criou a primeira máquina de somar a funcionar perfeitamente, a “Pascaline”. Com o objetivo de ajudar seu pai, que gastava um tempo considerável realizando o cálculos de impostos, e inspirado em descrição originária de Hero de Alexandria (2 d.C.), Pascal desenvolveu um equipamento com capacidade de realizar operações de adição e subtração de até 5 dígitos, com segurança infalível, mesmo para quem não conhecesse qualquer regra de aritmética. A “Pascaline”, foi construída com um mecanismo de várias rodas dentadas, de 10 dentes cada, sendo uma para representar as unidades, outra para as dezenas, mais uma para as centenas e assim sucessivamente, e utilizava uma manivela para posicionar cada uma destas rodas no dígito desejado. Pascal, sucedendo a Schickard, conseguiu resolver o problema do transporte de resultados intermediários, questão que atormentou seus predecessores, sendo este, talvez, o maior mérito de sua máquina, sob o ponto de vista da ciência da computação.

Apesar da relativa facilidade para projetá-la, a construção da Pascaline mostrou-se complicada e Pascal precisou de dois anos trabalhando com os artesãos para concluí-la. De constituição frágil e saúde inconstante, Pascal se ressentia deste tipo de esforço e, com freqüência, permanecia enfermo com dores de cabeça e nas pernas, além de sensações de fraqueza que dificultavam seus movimentos. Após este período, sua saúde tornou-se definitivamente comprometida.

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A Pascaline

Tendo solicitado e recebido uma patente do rei da França, Pascal chegou a fabricar cerca de 50 unidades de sua máquina de calcular, algumas com oito dígitos, mas comercializou apenas uma pequena parte deste total (entre 10 e 15 peças). A Pascaline, apesar de sua utilidade, não obteve aceitação comercial devido ao seu alto custo de produção torná-la mais cara do que o trabalho manual que ela poderia substituir. Assim, por falta de interessados, interrompeu definitivamente a sua manufatura, em 1652. Entretanto, o princípio básico deste instrumento é utilizado até hoje, em modernos hidrômetros e odômetros e o Conservatoire des Arts et Métiers de Paris (Conservatório de Artes e Profissões) mantém em seu acervo uma destas somadoras, que permanece em perfeito

funcionamento, havendo ainda outro exemplar no Museu de Ciências de Londres.*

Aos 23 anos de idade, Pascal estudou o comportamento dos fluidos, descobrindo que a pressão se transmite a todos os pontos de um líquido, progressivamente aumentando com a profundidade, e agindo de modo perpendicular às superfícies que o limitam. Ao aplicar suas conclusões às idéias de Evangelista Torricelli (1608-1647)   sobre a pressão atmosférica, desenvolveu diversos experimentos físicos (“a experiência do vácuo”), percebendo que à medida que nos elevamos em relação ao solo, a pressão do ar acima de nós diminui, havendo uma redução progressiva na quantidade de ar com a altitude, até seu completo desaparecimento, provando assim que os efeitos comumente atribuídos ao vácuo eram, na verdade, resultantes do peso do ar. Suas experiências fundamentaram a invenção do barômetro e levou-o também a defender a existência do vácuo, na época fervorosamente combatida pela Igreja Católica. Esta atitude gerou admiração por parte de alguns e intolerância por parte de vários outros, levando-o a enfrentar freqüentes discussões com os defensores dos pontos de vista da igreja, para os quais sempre tinha respostas sagazes:

* Também é creditada à Pascal a invenção da máquina registradora, a partir do mecanismo originário da Pascaline, que resistiu em uso há até pouco tempo à sua versão digital. (Nota do Autor)

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 “O  vácuo  é  uma  imagem  do  infinito,  e  se  procuro  o  vácuo  na  natureza  e   o   demonstro,   encontrarei,   por   analogia,   o   que   lhe   corresponde   no  coração  dos  homens.    

Quando   puser   a   nu   o   vazio   da   minha   vaidade,   quando   minha  consciência   não   estiver   presa   a   tantos   pensamentos   e   desejos   vãos,  Deus,  que  busquei  com  a  razão  e  por  isso  não  conheço...  Talvez,  Deus  levará   em   consideração   o   lugar   que   fiz   pra   Ele   no  meu   coração.  Um  lugar  que  não  terá  a  dimensão  finita  e  miserável  da  minha  razão,  mas  infinita   como   o   vácuo.   Que   Deus   se   mostre   e   ei   de   conhecê-­‐Lo!   A  natureza  tem  em  si  a  marca  de  Deus.  

Os  sábios  não  O  encontrarão  jamais,  logo  eles  que  têm  a  pretensão  de  serem   os   únicos   a   conhecer   o   sentido   das   Escrituras,   como   se   a  Verdade  fosse  um  objeto  que  se  possuísse  e  não  uma  coisa  viva  que  se  conhece  e  se  cultiva  com  a  razão  e  o  coração.    

Na  ordem  do  mundo,  eu  desconfio  de  todas  as  certezas  dos  sábios.”(219)  

Em suas discussões filosóficas, Pascal se utilizava da razão e de um raciocínio lógico irrepreensível para esclarecer, àqueles que tentavam impor pontos de vista sem a devida fundamentação, as diferenças entre idéias fantasiosas e verdades científicas:

“Há  uma  regra  universal  que  se  aplica  a  todas  as  controvérsias  em  que  é  necessário  verificar  a  verdade.  

-­‐   Nunca   se   deve   emitir   um   juízo   definitivo   a   cerca   da   negação   e   da  afirmação  de  uma  proposição,  se  uma  das  seguintes  condições  não  se  verificar:  

Ou   a   proposição   é   tão   clara   que   a   mente   não   tem   como   duvidar   e  temos  o  que  se  chama  de  postulado  ou  axioma.    Dou  um  exemplo:  Se  a  coisas  iguais  acrescentamos  coisas  iguais,  as  somas  serão  iguais.  

Ou,   segunda   condição,   a   proposição   é   demonstrar   mediante  conseqüências  infalíveis  derivadas  de  outras  ações  ou  postulados.  

Tudo  o  que   satisfaz  a  uma  dessas   condições  é   certo  e   verdadeiro.  As  afirmações   que   não   satisfazem   nem   uma   nem   outra   permanecem  dúbias   e   são   chamadas   então,   segundo   seus   méritos,   de   caprichos,  visões,   as   vezes   fantasia,   outras   vezes   idéias   ou,   no   máximo,  pensamentos.”  (219)  

Ao ser acusado de presunção, de ser jovem demais para tomar a liberdade de inventar uma nova ciência e de querer fazê-la progredir, renegando e ignorando o respeito pelos antigos, afirmando impunemente o contrário daquilo que os homens de ciência de todo o mundo descobriram através dos séculos, Pascal replicava afirmando que não só não os desprezava, mas os reverenciava.

“Aqueles  a  quem  chamam  de  “antigos”  eram  homens  para  quem  tudo  era   novo.   Em   outras   palavras,   a   infância   da   humanidade.   E,   como  

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acrescentamos   a   seus   conhecimentos   a   experiência   dos   séculos  seguintes   é   em   nós   que   se   encontra   viva   aquela   antiguidade   de   que  falam.  

De  fato,  podemos  compreender  os  antigos  pelo  que  pensavam  da  Via  Láctea?  Atribuíam  sua   luminosidade  a  uma  maior  densidade  daquela  parte  do  céu.  Mas  não  seria  imperdoável  se  continuássemos  a  pensar  dessa   forma  agora  que  descobrimos  com  o  telescópio  uma   infinidade  de  pequenas  estrelas?  

Inventar  uma  nova  ciência?  Certamente  não  o  farei.  Não  seria  capaz!    

Em  minha  opinião,  porém,  é  preciso  dar  coragem  aos  tímidos  que  não  ousam   inventar   nada   em   física   e   desestimular   a   insolência   dos  temerários  que  produzem  novidades  em  teologia.    

O  mal  desta  época  é  tal  que  se  vê  muitas  opiniões  novas  em  teologia,  desconhecidas   da   Antiguidade,   sustentadas   com   obstinação   e  recebidas  com  aplauso,  enquanto  as  novas  opiniões  em  física,  embora  pouco   numerosas,   parecem,   necessariamente,   ser   culpadas   de  falsidade  só  porque  se  chocam  com  as  opiniões  tradicionais,  por  pouco  que  seja.”  (219)

A família de Pascal, não fazia parte da nobreza mas possuía grande status social, além de projeção intelectual e confortável condição financeira, não precisando, ele próprio, se preocupar com questões econômicas. Apesar disso, a arrogância e o orgulho, tão em voga naquela época, em pessoas de condições sociais equivalentes a sua, não faziam parte de sua personalidade, identificando-se Pascal mais com os pensamentos de Santo Agostinho (354-430) sobre o propósito humano. Em diversas passagens de seus textos, Pascal expõe estas tendências filosóficas, dizendo que o orgulho desmedido deve ser evitado, por ele mesmo e por aqueles dotados de conhecimentos e talentos intelectuais, uma vez que a ciência, por mais que progrida, não poderá alterar a condição humana, finita, fadada ao erro e a uma certa miserabilidade.

“A  ciência  tem  dois  extremos  que  se  tocam.  O  primeiro  é  a  ignorância,  pura   e   natural.  O   outro   só   é   alcançado  pelas   grandes   almas   que,   ao  aprenderem  tudo  que  é  dado  ao  homem  conhecer,  descobrem  que  não  sabem  nada.  

Os  que   ficam  no  meio,  que  superaram  a   ignorância  natural,  mas  não  conseguem  alcançar  a  outra  extremidade,...  têm  apenas  um  verniz  da  ciência,  mas  passam  por  sábios.  É  gente  que  cria  confusão  e  julga  mal  todas  as  coisas.  

O  único  conhecimento  necessário  ao  homem  é  reconhecer  a  existência  de   uma   infinidade   de   coisas   que   estão   acima   dele.   A   razão   é   muito  pouco  quando  não  se  tem  consciência  disso.    

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Todos   imaginam  Platão  e  Aristóteles  metidos  nas  vestes  austeras  dos  pedantes.  Ora,  eram  boa  gente  e,  como  os  outros,  davam  risadas  com  os   amigos.   E,   quando   ensinavam   suas   teorias   e   faziam   política,  divertiam-­‐se   também.   E   esta,   era   a   parte  menos   filosófica   e   séria   de  suas   existências.   Sua   filosofia   consistia   em   viver   tranqüila   e  simplesmente.   Seus   pensamentos   agudos   e   as   qualidades   das   coisas  estranhas  que  os  cercam,  nos  encantam.”  (219)  

Em janeiro de 1646, Blaise Pascal conheceu dois religiosos jansenistas, que foram à sua casa tratar um sério ferimento na perna de seu pai, causado por um acidente, estabelecendo com estes uma forte amizade, cultivada até o final de sua vida. Esta proximidade, provavelmente, influenciou-o a tornar-se adepto do Jansenismo, movimento religioso que tentava restaurar a intensidade da fé católica, uma disciplina religiosa severa e defendia uma moral rigorosa, em oposição ao racionalismo dos teólogos escolásticos, posicionando-se em conflito

aberto com os Jesuítas.*

Por volta de 1650, Pascal subitamente abandonou seus estudos e pesquisas nas áreas da física e da matemática, interessando-se mais intensamente por filosofia e religião, dedicando-se à meditação e à literatura, ou como descrito por ele próprio “a contemplar a grandeza e a miséria do homem”. Passando madrugadas inteiras acordado, devido à insônia, produziu, neste período, as obras Pensées (Pensamentos) e Provincial Letters (Cartas às Províncias, ou As Provinciais), esta última dirigida contra o modo de pensar e de agir dos jesuítas. Seu livro Pensées, produzido em grande parte enquanto encontrava-se acamado, trabalho este que servia para distraí-lo de seus infortúnios físicos, segundo ele próprio, foi deixado incompleto, interrompido por sua morte prematura, em 1662, sendo considerado seu principal trabalho e cujo objetivo era fazer uma Apologia do Cristianismo, sendo ainda publicado nos dias atuais. Embora um homem de ciência, Pascal era ao mesmo tempo profundamente religioso e versado em teologia e estudos bíblicos, não se opondo à Igreja Católica ou ao Cristianismo, mas sim àqueles que estavam conduzindo-a, a seu ver, para rumos duvidosos.

Com a morte de seu pai, em 1651, Pascal passou a administrar os bens da família e retornou à sua antiga vida de estudos. Um pouco mais tarde, entre 1652 e 1654, motivado pelo jogo de dados, interessou-se por uma abordagem matemática para a sua previsão e, em colaboração com o matemático francês Pierre de Fermat (1601 – 1665)(110), formulou o cálculo das probabilidades, * Descontente com o exagerado racionalismo dos teólogos escolásticos, o holandês Cornélio Jansênio (1585-1638) - doutor em teologia pela universidade de Louvain e bispo de Ypres - uniu-se a Jean Duvergier de Hauranne, futuro abade de Saint-Cyran, que também pretendia o retorno do catolicismo à disciplina e à moral religiosa dos primórdios do cristianismo, dando início a um movimento que abalou a Igreja católica durante os séculos XVII e XVIII. Com o intuito de reformular a vida cristã, Jansênio escreveu um livro intitulado Augustinus, buscando nas obras de Santo Agostinho (354-430) elementos que permitissem conciliar as teses dos partidários da Reforma com a doutrina católica. (220) (Nota do Autor)

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denominado por ele de Aleae Geometria (Geometria do Acaso), permitindo medir numericamente coisas até então consideradas obras do acaso, como prever a taxa de possibilidade de ocorrência de um evento. Ao rastrearmos suas origens, encontramos que neste trabalho Pascal utilizou o método de cálculo probabilístico originalmente desenvolvido pelo matemático chinês Jia Xian (≅ 1010 – ≅ 1070), por volta do ano de 1050, sendo mais tarde publicado por outro matemático chinês, Zhu Shijie (≅ 1260 – ≅ 1320), em 1303, e mencionado num trabalho do matemático, filósofo e médico Girolamo Cardano (1501 – 1576), em 1570. A correspondência entre Pascal e Fermat relata que, apesar da colaboração, ambos se dedicaram de forma independente ao estudo e resolução de problemas sobre aletoriedade e o desenvolvimento de uma teoria da probabilidade. Este estudo resultou em um dispositivo matemático, desenvolvido por Pascal, chamado Triângulo Aritmético (ou Triângulo de Pascal), uma tabela numérica para calcular as combinações possíveis de um determinado número m de objetos agrupados n a n. O Triângulo de Pascal ainda hoje é utilizado. (468)

Ainda deste período, é o Tratado Sobre as Potências Numéricas, trabalho em que Pascal aborda a questão dos "infinitamente pequenos", e para o qual retornou em 1658, finalizando o estudo sobre a área de um ciclóide, curva descrita por um ponto de uma circunferência ao deslizar sobre uma reta. O método empregado por Pascal para determinar tal área abriu o caminho para a invenção do cálculo integral por Gottfried Leibniz (1646 – 1716) e Isaac Newton (1642 – 1727).

Embora Pascal tenha dedicado sua vida às coisas do espírito, ocupando-se prioritariamente com a ciência e a filosofia e sem maiores preocupações com as questões terrenas, seu senso de praticidade e pragmatismo ficou evidente com sua tentativa, ainda que frustrada, de comercializar a Pascaline, providenciando uma patente e organizando sua manufatura. Estas características de sua personalidade podem ser avaliadas ainda pelo projeto que concebeu e implantou do primeiro transporte público coletivo de Paris, que consistia numa espécie de grande e confortável carruagem, porém mais parecida com os bondes da primeira metade do século XX. De enorme sucesso entre os mais abastados, gerando significativa receita, este projeto nasceu destinado a ajudar “os seus pobres”. Uma vez decidido a fazer contribuições para a caridade, preferiu pensar em um modo de providenciar-lhes uma renda contínua, concebendo este projeto, para o qual determinou o público alvo, desenhou o veículo, definiu suas cores e acabamento, traçou as linhas a serem percorridas dentro da cidade, apresentando, por fim, ele próprio ao Rei a sua idéia, conseguindo assim a aprovação e a concessão do serviço. (219)

“Creio   que   a   caridade   não   é   caridade   sem   se   não   for   iluminada  pela  clareza  e  pelo  conhecimento.”  

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Esta facilidade (ou preocupação) de Pascal, de conciliar suas atividades intelectuais com a capacidade de gerar conforto material, mais presente nos dias atuais, não era algo de todo comum nas grandes mentes de sua época. Talvez um dos exemplos mais significativos da situação inversa seja o de Johannes Kepler (1571 – 1630) que, mesmo tendo o status de matemático imperial, autor das leis do movimento celeste que revolucionaram o entendimento da astronomia e inspirariam Newton a descobrir as leis da gravidade sessenta anos mais tarde (e não a queda da maçã em sua cabeça), sofreu dificuldades financeiras por toda a sua vida, passando mesmo por situações de penúria. (221)

Pascal morreu precocemente, em 19 de agosto de 1662, em Paris, aos 39 anos de idade, vitimado por uma hemorragia cerebral. Sua autópsia revelou, além da causa de sua morte, lesões no estômago, fígado e intestinos, explicando seus problemas de saúde e insônia que o atormentaram desde a infância. Mesmo sofrendo boa parte de sua vida com uma saúde debilitada, Pascal deixou significativa contribuição a várias áreas do conhecimento. (3 e 4)

Na área da computação, a contribuição de Blaise Pascal foi reconhecida por Nicklaus Wirth (1934 - ), engenheiro eletrônico suíço e professor da ciência da computação da Universidade Técnica de Zurique, criador da linguagem de programação Pascal, em 1971. Mais tarde, em 1983, o engenheiro de software dinamarquês Anders Hejlsberg (1960 - ) criou o Turbo Pascal.*

Blaise Pascal

Prestes a morrer, Pascal declarou haver refletindo o suficiente para concluir que a razão, sozinha, não servia de instrumento para a compreensão por completo do universo dos fenômenos. Sua conclusão traduziu-se, naquilo que talvez seja sua mais forte herança nos dias atuais, a frase de sua autoria:

“O  coração  tem  razões  que  a  própria  razão  não  conhece.”

* Em 20 de novembro de 1983, a empresa de origem norte-americana Borland Software (atualmente pertencente ao grupo inglês Micro Focus), fabricante de ferramentas para desenvolvimento de aplicações de software, lançou no mercado um produto inovador, o Turbo Pascal 1.0, um ambiente de desenvolvimento integrado (IDE, em inglês) e um compilador para a linguagem de programação Pascal. “O desenvolvimento do compilador Turbo Pascal, pela Borland, teve grande importância no sucesso da linguagem Pascal, já que ele não era um simples compilador, mas um ambiente de desenvolvimento, onde se podia construir e depurar o código, o que foi uma novidade para a época. Devido a sua grande utilização a linguagem de programação Pascal foi incorporando as novas tecnologias da área de linguagens de programação, como por exemplo a orientação a objetos, o que deu origem a uma versão da linguagem popularmente conhecida como Object Pascal”(218), lançado comercialmente pela Borland, em 14 de fevereiro de 1995, como Delphi, talvez seu produto mais popular. (Nota do Autor)