O Santuário de Sulis Minerva: Uma Abordagem das Interações Religiosas Romano-Bretãs na Britannia...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
ESCOLA DE HISTÓRIA - EH
BACHARELADO E LICENCIATURA EM HISTÓRIA
O Santuário de Sulis Minerva: Uma Abordagem das Interações Religiosas
Romano-Bretãs na Britannia Romana
Orientadora: Profª Drª Claudia Beltrão da Rosa
Autor: Jhan Lima Daetwyler
Rio de Janeiro
2014
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JHAN LIMA DAETWYLER
O Santuário de Sulis Minerva: Uma Abordagem das Interações Religiosas
Romano-Bretãs na Britannia Romana
Monografia apresentada à Escola de
História da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários para a
obtenção dos títulos de Bacharel e
Licenciado em História.
Orientadora: Profª Drª Claudia Beltrão da Rosa
Rio de Janeiro
2014
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JHAN LIMA DAETWYLER
O Santuário de Sulis Minerva: Uma Abordagem das Interações Religiosas
Romano-Bretãs na Britannia Romana
Monografia apresentada a Escola de
História da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção dos
títulos de Bacharel e Licenciado em
História.
AVALIADORES
_____________________________________________________
Profª. Drª. Claudia Beltrão da Rosa - Orientadora
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
______________________________________________________
Profº. Drº Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________________
Profª. Drª. Norma Musco Mendes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2014
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente a minha mãe, que teve a árdua tarefa de me criar e educar durante
muitos anos. Sem a sua sabedoria, companheirismo e discussões, provavelmente eu me
encontraria em outro caminho.
Á professora e doutora Claudia Beltrão, que me orientou e guiou sobre a
complexa religião (ou religiões) romana desde 2011 e me ensinou não somente como
ser um historiador competente, mas também a buscar ir além disso, sempre
questionando e refletindo sobre o nosso mundo, seja ele contemporâneo ou antigo.
Aos demais professores, professoras e funcionários da Unirio que me ajudaram
na graduação com seus conselhos, dentre eles: Erica Sales, Mirian Coser, Patrícia
Horvat, Paulo André.
Aos amigos e colegas que tive a oportunidade de conhecer durante a graduação
na Unirio. Dentre eles cito alguns, pois senão essa lista ficaria demasiadamente grande:
Debora Casanova, cuja experiência e temperamento, dignos do deus Marte foram de
grande ajuda; Diego Machado, pela sua criatividade e habilidade de perceber os
mínimos detalhes em tudo; Gabriel Marinho, por mostrar que ainda há muita coisa
estranha nesse mundo; Leila Grossi, pelas receitas e fofocas trocadas; Marcio Henrique,
pelas discussões sobre Pokémon; Raquel Soutelo, por ser um exemplo de historiadora a
ser seguido e por me convidar à sua casa em Teresópolis; Ricardo de Castro, por ser um
irmão não consanguíneo que eu acabei descobrindo.
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O Som do Silêncio
“(...) E na luz nua eu enxerguei
Dez mil pessoas talvez mais
Pessoas conversando sem estar falando
Pessoas ouvindo sem estar escutando
Pessoas escrevendo canções
que vozes jamais compartilham
E ninguém ousou
Perturbar o som do silêncio (...)
(...) E as pessoas se reverenciaram e rezaram
Para o Deus de neon que elas criaram
E um sinal faiscou o seu aviso
Nas palavras que estavam se formando
E o sinal disse: ‘As palavras dos profetas
estão escritas nas paredes do metrô
E nas salas dos cortiços
E sussurraram no som do silêncio’.”
(Paul Simon. 1966)
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RESUMO
Esta monografia tem o objetivo de analisar o processo de criação do santuário da
deusa Sulis Minerva, observando questões relacionadas com a permanência de
divindades locais tradicionais durante o período romano e sua interpretatio pelos
romanos, se houve resistência ou não por parte dos bretões, as relações religiosas e
trocas culturais entre romanos e bretões, e suas consequências. Com isso, tentamos
também perceber os motivos pelos quais Roma uniu ou caracterizou a deusa Sulis como
a deusa romana Minerva, uma das principais divindades de seu panteão. Após 43 e.c., a
Britannia estava anexada ao Império Romano. Durante o processo de pacificação da
nova província, os romanos encontraram uma deusa nativa no local que seria a futura
cidade de Aquae Sulis. Utilizando-se da interpretatio, Roma criou uma nova divindade,
Sulis Minerva. A monografia consiste em uma abordagem da construção do santuário
bretão de Sulis no modelo clássico romano, discutindo sua arquitetura, práticas
religiosas realizadas, as relações de romanos e bretões com a divindade Sulis Minerva e
as características dessa nova deusa.
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ABSTRACT
This monograph aims to analyze the process of creating the sanctuary of the
goddess Sulis Minerva, noting issues related to the permanence of traditional local
deities during the Roman period and its interpretatio by the Romans, if there was or was
not resistance by the Britons, relations religious and cultural exchanges between
Romans and Britons and their consequences. With this, we also try to understand the
reasons why Rome united or characterized the goddess Sulis as the Roman goddess
Minerva, one of the principal deities of their pantheon. After 43 e.c., Britannia was
annexed to the Roman Empire. During the process of pacification of the new province,
the Romans found a native goddess in the future city of Aquae Sulis. Utilizing the
interpretatio, Rome created a new deity, Sulis Minerva. The monograph consists of an
approach in the construction of the Breton sanctuary of Sulis as the classical Roman
model, discussing its architecture, religious practices conducted, relations with the
Romans and Britons with the deity Sulis Minerva and the characteristics of this new
goddess.
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SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS___________________________________________________9
INTRODUÇÃO______________________________________________________ 10
AQUAE SULIS_______________________________________________________ 12
1.1 O santuário e sua deusa____________________________________ 12
1.2 As religiões de Roma e as práticas de interpretatio______________ 17
1.3 Os mundos dentro do império_______________________________25
O SANTUÁRIO DE SULIS MINERVA__________________________________ 31
2.1 Os banhos divinos_________________________________________ 32
2.2 O templo de Sulis Minerva__________________________________38
2.3 As defixiones_____________________________________________ 52
2.4 A relação do santuário com o lugar___________________________62
CONCLUSÃO________________________________________________________65
REFERÊNCIAS______________________________________________________ 67
BIBLIOGRAFIA_____________________________________________________ 69
APÊNDICE__________________________________________________________73
Ficha Documental I______________________________________________74
Ficha Documental II_____________________________________________75
Ficha Documental III____________________________________________ 76
Ficha Documental IV____________________________________________ 77
Ficha Documental V_____________________________________________78
Ficha Documental VI____________________________________________ 79
Ficha Documental VII___________________________________________ 80
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LISTA DE FIGURAS
Fig. 1. Mapa da Britannia_______________________________________________ 13
Fig. 2. Mapa geral da cidade de Aquae Sulis _________________________________15
Fig. 3. Reconstrução gráfica do santuário___________________________________ 31
Fig. 4. Planta do santuário_______________________________________________ 33
Fig. 5. Alguns dos objetos encontrados na fonte______________________________ 34
Fig. 6. Principal fonte do santuário________________________________________ 35
Fig. 7. Mosaico________________________________________________________36
Fig. 8. O templo_______________________________________________________ 38
Fig. 9. Epígrafe do haruspex L. Marcius Memor_____________________________ 39
Fig. 10. Lápide romana__________________________________________________40
Fig. 11. Primeira coluna do grande altar____________________________________ 41
Fig. 12. Segunda coluna do grande altar____________________________________ 42
Fig. 13. Terceira coluna do grande altar_____________________________________43
Fig. 14. Reconstrução do altar de sacrifícios_________________________________ 45
Fig. 15. Fragmentos do frontão___________________________________________ 48
Fig. 16. Reconstrução do frontão a partir dos fragmentos encontrados_____________48
Fig. 17. Face do frontão_________________________________________________ 50
Fig. 18. Defixiones_____________________________________________________ 54
Fig. 19. Desenho da defixio restaurada______________________________________57
Fig. 20. Alfabeto no latim vulgar__________________________________________60
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INTRODUÇÃO
Aquae Sulis era uma pequena cidade pertencente à província da Britannia, uma
região distante de Roma. Durante o século I de nossa era, enquanto os romanos
adentravam e exploravam essa nova província, encontraram nesse lugar algo que
chamou a sua atenção. Os romanos perceberam que ali havia uma sacralidade não muito
diferente daquela à qual eles estavam acostumados. As fontes termais, naturalmente
quentes e de cor avermelhada podem ter-lhes provocado um misto de espanto e
veneração. Logo, aquela era uma região onde se deveria ter cuidado, mas que também
se apresentava proveitosa para o estilo de vida romano, principalmente no que tange ao
quesito religioso.
Desse modo, Roma construiu em Aquae Sulis um santuário, um complexo
arquitetônico que incluía um templo, teatro, biblioteca, e uma terma (salas de banhos). E
não eram banhos simples, mas sim banhos cujas águas vinham da própria fonte natural.
Eram águas avermelhadas que a população nativa e os recém-chegados acreditavam ter
poderes de cura, oriundos da própria deusa bretã local, chamada Sulis. Mas ao
construírem um santuário no modelo romano clássico, a deusa local também foi
transformada junto com a região. Via interpretatio, ela adquiriu novas formas, sendo
associada à deusa romana Minerva Medica, se tornando, então, uma divindade romano-
bretã.
Nossa pesquisa, inserida no projeto Religio romana: uma análise das
instituições religiosas romanas em discursos tardo-republicanos, da Profa. Dra.
Claudia Beltrão, que foi realizada entre 2011 e 2013, com apoio da Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Visando a
compreender a interpretatio das deusas Sulis e Minerva, a arquitetura de seu templo e a
documentação arqueológica ali encontrada foram elementos primordiais para a tarefa1.
Sendo assim, o foco central desta monografia está na religião, suas práticas e
seus conceitos, pois o aprofundamento da pesquisa sobre as práticas e crenças religiosas
nos faz compreender o modo de vida dos diversos grupos humanos no passado. Desse
modo, é possível afirmar que toda religião influencia a vida de um indivíduo ou um
1 A coleção de objetos que foram encontrados no templo pode ser acessada a partir do site dos banhos
romanos de Bath: http://www.romanbaths.co.uk/ , acessado no dia 13/05/2014.
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grupo. A vida religiosa romana conecta-se com todos os tipos de relacionamentos
interpessoais, sejam eles públicos ou privados e o antropólogo Clifford Geertz nos alerta
para o fato de que:
Deixando de lado o fraseado, uma coisa é certa: a noção de que a
religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e
projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana
não é uma novidade. Todavia, ela também não é investigada e, em
termos empíricos, sabemos muito pouco sobre como é realizado esse
milagre particular (GEERTZ, 2008: 66).
Outros documentos, como plantas da cidade, do templo, imagens dos tabletes
religiosos e as defixiones, assim como imagens do interior do templo em geral podem
ser encontradas, principalmente, em três livros fundamentais para esse trabalho: Roman
Bath Discovered de Barry Cunliffe (1984); Roman Imperialism and local identities de
Louise Revell (2009) e Religion in Britain de Martin Henig (2003). Nesta monografia,
iremos privilegiar a iconografia, pois ela consiste em um vestígio histórico
indispensável para compreender o modo de vida das populações antigas. E para analisa-
la, utilizaremos as propostas metodológicas de Martine Joly (1996), em sua Introdução
à Análise da Imagem.
Sendo assim, no primeiro tópico desta monografia abordaremos a cidade de
Aquae Sulis e quem era a deusa ali cultuada. O foco é entender o que era e como foi
realizada a interpretatio entre as divindades, a importância das trocas culturais nesse
processo e, além disso, refletir sobre as transformações culturais geradas pela ocupação
romana na região.
Já no segundo tópico, faremos uma análise dos principais aspectos do santuário
da deusa Sulis Minerva, concentrando-se no funcionamento de seus banhos, o seu
templo e a rica linguagem imagética ali encontrada em sua arquitetura. Também
analisaremos os tabletes religiosos escritos pela população local e procuramos entender
o que a cidade significava para ela. No caso dos tabletes, utilizo uma tabela para
analisar o discurso contido neles e então perceber se o tablete trata-se realmente de uma
inscrição religiosa.
O objetivo principal do trabalho está na análise das interações religiosas entre
romanos e bretões. Para isso, enfocamos o templo do santuário e sua iconografia, e
como fluía a relação do santuário de Sulis Minerva com as pessoas que o frequentavam.
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AQUAE SULIS
O objetivo deste tópico se concentra no estudo das interações culturais e na
formulação de identidades híbridas. Embora os processos de hibridização possam
acontecer nas esferas econômica, social e política, restringiremos nossa abordagem à
esfera da cultura (mais especificamente da religião), que abrange atitudes, mentalidades
e valores e suas expressões, simbolizações e concretizações nos artefatos e práticas
produzidas (BURKE, 2010: 16-17). Para isso, precisamos então conhecer a cidade em
questão, a divindade que era cultuada e a sociedade que se estabeleceu ali.
O santuário e sua deusa
A Britannia era uma província romana. Mas o conceito romano de “província”
não é facilmente definido, pois ela não é um território no sentido moderno do termo e
nem um domínio pessoal de um magistrado. De acordo com Patrick Le Roux (2009:
55), o termo tinha um sentido de designar uma “esfera de competência” temporária de
um representante da res publica. Ou seja, a província (mesmo sendo um local físico) é
um cargo designado a um cidadão romano que irá se responsabilizar por ela o tempo
que for necessário. E nela, o santuário de Sulis Minerva é talvez uma das mais
evocativas imagens da presença romana na Britannia. Aqui, especificamente na
Britannia, encontram-se os problemas com a divisão entre “bretão” e “romano” como
categorias aplicadas no período posterior à conquista. E na Britannia, uma cidade
chamada Aquae Sulis ganhou um destaque singular como centro religioso de
peregrinação.
A urbanização da cidade de Aquae Sulis começou com a construção de moradias
em madeira na metade do século I e.c., mas rapidamente se desenvolveu para casas de
alvenaria no início do século II e.c. (CUNLIFFE, 1984: 164). O crescimento da cidade
pode ser devido à sua importância militar, por causa do cruzamento de rios próximo a
ela, e pelo valor religioso de suas nascentes. Para uma grande parte da população
romana, os rios eram estabelecidos como fronteiras naturais, não exatamente por
separarem territórios, mas porque eles eram elementos que faziam parte de uma ordem
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do mundo2 (BRAUND, 2011: 19). A cidade ainda apresentava uma rica atividade
comercial, possuindo áreas de produção de milho, lã, pedra e chumbo (CUNLIFFE,
1984: 181), assim como estradas que ligavam Aquae Sulis com outras cidades da
província, por exemplo, Londinium.
Figura 1. Mapa da Britannia. Fonte: http://drpinna.com/wp-content/uploads/2012/05/Map-of-
Roman-Britain-1956.jpg
Aquae Sulis se tornou um oppidum (cidadela, pequena cidade) após a sua
urbanização, gerado pelo poder de atração do santuário de Sulis Minerva. Os romanos
2 Um mundo, que afinal, era dividido. Um oceano separava a província da urbs, literal e metaforicamente.
O oceano não era somente o pai de todos os rios, mas também uma divindade (Oceanus) e era a borda do
mundo (BRAUND, 2011: 177).
14
chegaram a essa região no primeiro século de nossa era, provavelmente após o ano 43
e.c., onde encontraram o santuário das águas termais no vale do rio Avon, no sudoeste
da atual Inglaterra. Roma construiu uma espécie de reservatório ao redor das águas e
uma série de fontes termais (GREEN, 2006: 200). Perto do rio Avon, três nascentes
naturais bombeiam água aquecida a uma taxa média de 250 mil galões de água por dia.
Os minerais ferruginosos naturais do local dão à água um brilho vermelho-fogo e o
vapor saído das nascentes parece encobrir alguma presença mística.
De acordo com alguns historiadores como Martin Henig (2006), Miranda Green
(2006) e Louise Revell (2009), parece ser muito provável que antes da chegada dos
romanos existisse uma espécie de santuário nativo na região. No momento em que a
invasão do princeps Cláudio adentrou na região oeste, Aquae Sulis forneceu um
importante ponto de passagem sobre o rio Avon, e um forte romano teria sido
estabelecido rapidamente para controlar a travessia e seu tráfego. No início do período
romano, as nascentes quentes naturais se tornaram o foco de um santuário
monumentalizado que incluía uma fonte sagrada dentro de um reservatório, um templo
imponente, com um altar externo e uma elaborada “suíte” de banhos. A
monumentalização é datada sob o período Flaviano, no final do século I e.c. (HENIG,
2006: 224), em torno do templo, do altar, e da fonte, foi delimitado um grande pátio por
um pórtico com colunas.
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Figura 2. Mapa geral da cidade de Aquae Sulis. O santuário da deusa Sulis Minerva se
localizava bem no centro da cidade, sendo possível acessá-lo de qualquer ponto dela. Fonte: CUNLIFFE,
1986: 13.
A cidade contém o maior complexo em arquitetura clássica da Britannia já
registrado. Nenhum texto ou inscrição romana diz se a área murada de Aquae Sulis era
realmente urbana ou não. Só podemos identificar o status da região através de
evidências arqueológicas. (DARK, 1993: 254). Todavia, mesmo sendo uma cidade
pequena, a presença de edifícios residenciais, alguns mercados ou atividades artesanais
e residências sacerdotais nos levam a crer que ela possuía um caráter urbano (DARK,
1993: 255).
Ainda não há evidências de que a cidade tivesse outro foco de atração para os
bretões e romanos além de suas fontes quentes, as quais atraíam peregrinos procurando
por curas de doenças, ou para participar dos rituais e cerimônias em honra da deusa
Sulis. Era no culto da deusa Sulis e nos banhos termais que o oppidum, e o futuro
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municipium tinha sua razão de ser, pois a cidade era pequena, não havendo nem mesmo
uma legião romana que a guardasse, sua localização servia mais como um ponto de
passagem entre as rotas das cidades vizinhas. Mais especificamente, a cidade ficava na
região das tribos belgas, as quais, segundo as fontes, pertenciam ao “rei cliente”
Togidubnus (HENIG, 2006:223).
Sulis foi, provavelmente, uma divindade cujo poder de cura foi fundado sobre a
capacidade de suas sagradas fontes de água quente para aliviar o sofrimento e curar
enfermidades (seja de origem física ou espiritual). Sulis (Sul, Sulla, Sulei) é a deusa das
fontes quentes de Aquae Sulis. O nome em latim significa literalmente “as águas de
Sulis”. Fontes, assim como rios, eram frequentemente associadas em cultos “celtas”
com a fertilidade, a deusa mãe e a cura. Ela representava dois elementos, a água e o
fogo. Ao mesmo tempo, à Sulis eram atribuídos grandes poderes da saúde e de cura.
Oferendas (principalmente moedas) no templo ou lançadas na fonte sagrada e sacrifícios
de animais do sexo feminino realizados no altar do templo (REVELL, 2009: 118),
frequentemente tinham como pedido principal para Sulis a recuperação da saúde, mas
os apelos também clamavam por vingança na forma de doença ou morte para aqueles
que desagradaram os fiéis.
Ela pode muito bem ter sido venerada por séculos anteriores da chegada dos
romanos e virou um centro de peregrinação e turismo dos habitantes do Império depois
de terminada a reformulação romana do santuário no estilo clássico. Mas, quando os
artesãos ergueram os grandes edifícios permanentes no final do primeiro século, a
identidade de Sulis também foi alterada, e “interpretada” com uma deusa familiar para
os romanos, Minerva. Sulis podia então ser vista como a controladora da saúde
(CUNLIFFE, 1984: 81) e a associação com a deusa romana pode ser entendida pelas
características que a própria Minerva adquiriu em Roma.
Conforme o território romano se expandia, Minerva ganhava novas faces. Ela se
tornou Minerva Medica (uma divindade também interpretada em Roma), a patrona dos
médicos, que possuía um templo no monte Esquilino, uma colina tradicionalmente
relacionada aos etruscos no período republicano (ZIÓLKOWSKI, 1992: 115). A
interpretatio Sulis Minerva foi facilitada devido a algumas de suas características
compartilhadas entre Sulis e Minerva Medica, a maioria sobre combates e cura. E essa
“nova” divindade, Sulis Minerva, era realmente diferente da deusa Sulis, ou de Minerva.
O historiador Rudolf Haensch (2009: 181-182) afirma que as divindades interpretadas
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não são uma soma de uma e de outra, ou uma mais poderosa do que outra, e sim
divindades novas. A habilidade de curar permaneceu em seus atributos, porém a
influência de Minerva fez com que Sulis se tornasse mais associada com as artes e
ciências.
Além do templo e estátua de culto, o santuário continha um altar sobre o qual
provavelmente carvão era queimado, o que talvez indique um prédio usado para
incubação (o sono sagrado). Ou seja, tratava-se talvez de um santuário termal, com os
poderes curativos através da água, mas também provavelmente um local de incubação, e
quase certamente, um teatro (HENIG, 2006: 224). Em suma, os poderes curativos
estavam sempre presentes nele. O santuário foi, desse modo, tão sofisticado quanto os
grandes santuários do Mediterrâneo, como Olympia, Delfos ou Eleusis, embora em
menor escala.
A deusa Sulis Minerva foi criada mediante a hibridização romano-bretã e para
entender esse processo, é preciso analisar as práticas da interpretatio romana, que se
apresentam como uma adaptação religiosa para auxiliar o culto dos romanos e, talvez,
de outros povos com os quais interagiram, e não para complexificar as divindades. Mas
antes de nos inserirmos sobre a interpretatio, é necessário perceber as particularidades
da religião romana.
As religiões de Roma e as práticas da interpretatio
Dificilmente podemos compreender uma religião da mesma forma que os
antigos, pois o termo religio não designava laços sentimentais diretos ou pessoais do
indivíduo com a divindade, mas um conjunto de regras formais e objetivas oriundas da
tradição para o relacionamento com os deuses (BELTRÃO, 2011: 3). Portanto, a
religião consistia em cultivar corretamente as relações sociais com os deuses,
celebrando os ritos que consagram esta comunhão e garantindo a obtenção dos favores
divinos.
A religião ou religiões romanas expressavam a observação escrupulosa dos
rituais religiosos (SCHEID, 2003:19); era, então, um sistema comunicativo
(BELTRÃO, 2010:49). No entanto, não significava uma ligação direta, pessoal e
sentimental entre o indivíduo e as deidades, mas um conjunto de regras formais e
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objetivas baseadas na tradição (SCHEID, 2003: 22). E apesar de a religião romana ser
uma religião ritualística, e como tal, estritamente tradicionalista (SCHEID, 2003: 18),
ao mesmo tempo fazia parte da tradição romana a integração de novos elementos na
religião para que esta fosse aberta a entrada de novos cidadãos e deuses (SCHEID,
2003: 19). Até porque os romanos tinham a premissa de que as divindades de todos os
povos eram verdadeiras, afinal somente dois cenários eram plausíveis; primeiro, que os
outros povos conheciam deuses cuja existência o mundo greco-romano ignorava, e
segundo, que as divindades dessas comunidades estrangeiras já eram conhecidas, mas
os nomes foram traduzidos para as línguas nativas (VEYNE, 2009: 190), uma
característica que possibilitou o fenômeno da interpretatio romana.
As divindades, patronas de todo tipo de atributos (coisas, lugares, atividades,
grupos humanos), desempenhavam um papel essencial na definição comunal das
sociedades e nas relações de poder estabelecidas nas cidades e entre cidades
(BELTRÃO, 2011: 11). As deidades romanas variavam de acordo com a comunidade a
que concerniam, estas eram de certa forma, membros da mesma comunidade que seus
seguidores.
As características básicas da religião romana são a ausência de revelação,
dogmas e de ortodoxia; era uma religião baseada na correta execução dos rituais
(SCHEID, 2003: 21). Rituais esses que definiram e disseminaram representações de
deuses e da ordem divina, e que não envolviam nenhuma iniciação ou ensino formal, o
que pode ter facilitado a difusão e adaptação desta religião pelos nativos das províncias
(SOUTELO, 2012: 52-53). Os rituais integravam, separavam e reforçavam as estruturas
sociais e também as mudavam. Trata-se de um fenômeno social que integrava as
pessoas e servia para evitar um conflito, reforçar um conflito, e a sua comunicação é
uma performance com elementos teatrais. É uma prática visual com gestos, sons e
odores, e é necessário um conhecimento para ser realizado.
A vida dos romanos era infinitamente mais complexa do que pensam
aqueles que só consideram a religião oficial e ignoram as
manifestações cotidianas extremamente numerosas de um sentido do
sagrado que nunca lhes faltou (GRIMAL, 2009: 73).
Era uma religião que vinculava os deveres religiosos ao status social do
indivíduo, e se ligava mais à comunidade, aos grupos sociais do que ao próprio
19
indivíduo. O princípio que a regia era a racionalidade cívica que garantia a liberdade e a
dignidade dos seres humanos e divinos, a liberdade do cidadão estava acima de tudo
(SCHEID, 2003: 22). As pessoas eram perfeitamente livres para conceber suas
divindades, a religião e o mundo da forma como quisessem, afinal, esta religião
mantinha a expressão explícita da crença separada da prática religiosa (SOUTELO,
2012: 53). Não possuía um código moral particular, sendo que o código ético era o
mesmo que regia as relações sociais não religiosas.
Os deuses e deusas romanas eram partes integrantes e primordiais para a vida da
urbs, e eles respeitavam algumas leis físicas relativas ao tempo e espaço (BELTRÃO,
2011: 12). Segundo Claudia Beltrão, a presença deles em um ritual não podia ser
considerada certa de antemão, a divindade tinha que ser convidada para participar dos
rituais, festivais, ou convidada a vir em ajuda aos seres humanos, e isso tudo implica um
esforço por parte dos mortais para atrair seus interesses. As divindades de Roma se
assemelhavam muito com os próprios homens e mulheres em suas complexidades,
desejos, temperamentos e conflitos internos.
Para compreender as relações dos romanos com divindades estrangeiras (as
quais possivelmente despertavam fascinação e receio para Roma) será preciso uma
análise de como eles as interpretavam, ou seja, como se utilizavam da interpretatio
romana. A interpretatio, que Tácito definira como uma interpretação das divindades
estrangeiras pelos romanos pode ser entendida como uma acomodação de deidades
reconhecidas como divindades do panteão romano (WEBSTER, 1997: 331). Tácito
providenciou uma forma simples de possível tradução para os nomes das divindades
que, de acordo com os romanos, poderiam ter diferentes nomes (ANDO, 2006: 52).
A historiadora Mary Beard e os historiadores John North e Simon Price analisam
os processos de interpretatio como partes da operação do poder imperial no mundo
romano com base na ideia de que o “imperialismo” romano teve uma forte ação sobre as
religiões no território imperial (BEARD, NORTH & PRICE, 1998. v.1: 313). Os
romanos tinham a ideia de que a religião era estritamente ligada a uma região específica
ou a uma comunidade, pois eles também tinham suas próprias divindades e ritos
públicos (MENDES; OTERO, 2004: 203). Assim, o que alguns pesquisadores chamam
de “tolerância romana” não se fundamentava apenas na benevolência ou no interesse de
atrair outros povos para a órbita imperial, mas no temor e precaução em não desafiar os
deuses dos “outros”, os quais poderiam vir a ser úteis aos romanos em determinado
20
momento. Roma tolerava aquilo que não lhes parecia ser perigoso e não tolerava o que
ameaçava a sua ordem, contudo poucos eram os cultos que foram considerados
perigosos, afinal muitas vezes as deidades e ritos de outras religiões se assemelhavam
aos seus (BELTRÃO, 2006: 151).
A questão de a divindade estar ligada a uma região específica, entretanto,
levanta uma problemática. Se a religião é localizada, como pode haver a interpretatio?
Talvez as divindades e religião sejam coisas distintas no pensamento romano, pois se
uma divindade pode aparecer e agir em outro local, a religio romana parece dizer
respeito apenas à cidade de Roma, e não nos parece que manter as religiões locais do
Império, e inclusive estimulá-las, tenha a ver com as divindades, mas sim com o sistema
religioso romano, que é jurídico, administrativo e humano.
Uma característica do sistema religioso romano, de estar muitas vezes aberto à
influência de outras culturas possibilitou o fenômeno da interpretatio. Dessa maneira,
algumas questões, como até que ponto as novas divindades mantinham suas
características originais e qual é o tipo de equilíbrio que existia nessa transformação, são
pertinentes para se entender como era o tratamento de Roma em relação às divindades
de outros locais (BELTRÃO, 2010: 11).
A interpretatio de divindades foi estabelecida devido às possíveis características
semelhantes entre elas. Para muitos pesquisadores, ela se refere normalmente à
identificação de divindades estrangeiras pelos romanos com os deuses de seu panteão
(ANDO, 2006: 51). Uma base para nossa análise sobre a interpretatio foi dada por W.
van Andringa. Ao estudar o deus Marte Mullo (AE 1969/70, 405 a-c), por inscrições
datadas do Principado Augustano, Andringa supõe que a interpretatio ocorreu no século
I e.c., provavelmente relacionada com a obtenção do ius latinum pela comunidade. Para
Andringa, o nome composto, no qual o epíteto Mullo é conectado com o teônimo Marte,
permite depreender que as divindades interpretadas não são deidades híbridas (no caso,
meio romana, meio gaulesa), e sim divindades municipais “novas”, cujos poderes são
específicos e particulares àquela região e comunidade, declarando “Não há fusão ou
sincretismo – esses deuses mudam tanto de nomes como de identidades” (ANDRINGA,
2006: 87-88).
Ou seja, divindades antigas se transformam, podem mudar até mesmo seus
nomes e “identidades”. Algumas podem simplesmente ser equiparadas a deuses e
deusas do panteão romano (o que já implica certa transformação) e outras adquirem
21
uma identidade totalmente nova a partir do momento que o teônimo nativo acompanha
um romano. As deusas e os deuses se mostram, dessa maneira, muito mais complexos e
interessantes, pois apresentam características (atributos, elementos ou símbolos de
reconhecimento) mutáveis e não solidificados no tempo. Entretanto, esse tipo de
pensamento não é compartilhado por todos os estudiosos da interpretatio.
Por exemplo, Jane Webster acredita que a interpretatio é um discurso pós-
conquista romana de uma determinada região. Para a autora, a interpretatio assume
diferentes formas, mas basicamente é uma “equação” entre uma divindade estrangeira
com uma do clássico panteão romano. Porém, a nosso ver, essa explicação se mostra
muito aquém da realidade, pois é demasiada simples e generalizante. Além disso,
Webster ignora que a interpretatio também ocorreu na Península Itálica. Em muitos
casos, a divindade nativa é totalmente “submetida”, ou as referências apenas invocam o
nome latino dela. Segundo Webster, as definições dos deuses bretões então se tornam
dependentes dos exemplos de interpretatio nos quais eles adquirem um nome duplo,
como Apolo Maponus, Lenus Marte e Sulis Minerva (WEBSTER, 1995: 154). Dessa
maneira, pode-se compreender melhor a natureza da divindade bretã. É muito difícil que
por detrás do nome de uma divindade encontrada nas províncias não estejam deuses e
deusas romanas que possam ter sido interpretados com divindades de características
similares (SOUTELO, 2012: 86).
Para o deus Marte, por exemplo, detectam-se dezesseis deuses bretões
interpretados segundo as pesquisas de Webster (1995: 155), evidenciando que muitas
divindades bretãs poderiam ser interpretadas com uma única deidade romana3. Erros na
interpretação das divindades locais poderiam ter levado a diferentes transformações.
Um ponto importante que Webster mostra é que isso poderia mostrar a polivalência da
natureza dos deuses romanos. Por exemplo, Marte, sendo um deus guerreiro, aparecia
muito protegendo os campos. Isso porque os próprios deuses romanos se modificaram
ao longo do tempo, principalmente após entrarem em contato com as divindades gregas
como Zeus/Júpiter; Hera/Juno, dentre outros exemplos de interpretatio e adoção de
divindades estrangeiras (BELTRÃO, 2010: 1).
3 Marte é um deus guerreiro, então, é compreensível que tantas divindades fossem interpretadas como
Martes, bem como Mercúrio foi uma divindade muito popular nessas interpretationes, já que soldados e
comerciantes são os tipos romanos mais recorrentes nas províncias.
22
É válido perguntar-se, todavia, até que ponto os habitantes do Império
adquiriram identidades religiosas “romanas”. E como variou este processo no tempo e
no espaço e em seus diferentes grupos sociais? Segundo Greg Woolf, os efeitos da
expansão romana não resultaram apenas no recrutamento de novos membros para uma
sociedade mais complexa. Ela também ocasionou uma complexificação da própria
sociedade romana (WOOLF, 1997: 345).
A grande quantidade dos panteões espalhados pelo Império Romano é o
resultado de vários processos comuns desencadeados pela organização e reorganização
dos povos de suas cidades através de elementos do sistema religioso romano. Em várias
regiões, para Andringa, a municipalização foi o catalisador para a progressiva
recomposição dos sistemas religiosos já existentes (ANDRINGA, 2006: 86). Com a
autonomia das cidades definidas e enquadradas por Roma, é fácil entender que as
alterações incentivadas pelas próprias cidades dependiam da manifestação religiosa do
poder romano, que era o inevitável ponto de referência. Esse tipo de integração era
inseparável do controle das províncias. A religião se refletiu nas crenças e ideologias de
seu próprio tempo com um lento processo de transformação dos padrões sociais, que
modificaram o estilo de vida da população das regiões conquistadas (SOUTELO, 2012:
50). Inserida nessa interação social, a religião romana pode ser entendida como um
sistema comunicativo, pois o ritual é, dentre outras coisas, um código em comum
(BELTRÃO, 2011: 1).
Segundo Louise Revell (2009: 110) a religião e a atividade religiosa foram parte
central das mudanças culturais que ocorreram nas províncias ocidentais, havendo a
difusão da dedicação em latim tanto a divindades romanas quanto a nativas. Afinal,
antes da chegada dos romanos, a população local não possuía escrita, desse modo, a
própria formulação de epígrafes, por exemplo, é um resultado de um encontro cultural
(SOUTELO, 2012: 54). O reordenamento espacial romano não trouxe apenas formas de
monumentalização e inovações arquitetônicas nos santuários, mas também a expansão
de formas rituais romanas, como formas de sacrifício.
Essas mudanças, contudo, não nos permitem dizer que houve um embate entre
as religiões locais e romanas. A partir da análise da documentação supérstite, percebe-se
atualmente que elas se interpenetravam, e reciprocamente, se influenciaram muitas
vezes. E os rituais e os significados dos cultos dessas culturas tiveram que evoluir
constantemente para se manterem significativos para a sociedade nas províncias
23
(SOUTELO, 2012: 55). Assim, vemos o fenômeno da interpretatio, uma
“convergência” de elementos culturais que são adaptados de acordo com o contexto
local. O reordenamento do espaço religioso romano ocorria em paralelo com a
transformação dos próprios deuses via interpretatio, ou seja, “a naturalização de
divindades estrangeiras que tomavam nomes romanos, a partir de semelhanças possíveis
com base em sua aparência ou esfera de ação” (BELTRÃO, 2011: 18).
Nos séculos I e II e.c., multiplicaram-se os exemplos de divindades romanas e
provinciais reunidas nas mais diversas combinações divinas (BELTRÃO, 2011: 17). A
epigrafia, um dos principais tipos documentais pelos quais podemos estudar as
interações religiosas, era utilizada para uma variedade de propósitos no mundo romano
sendo que funerais, inscrições votivas e honoríficas são as principais categorias
(WOOLF, 1997: 344). Táticas de uma resistência indireta nativa, de negociações ou
recepções possivelmente podem ser observadas no modo como a interpretatio foi
recebida pelos bretões. Há algumas evidências de que os nativos utilizaram a epigrafia
para invocar divindades bretãs sem o seu nome romano equivalente (WEBSTER, 1995:
159).
A interpretatio é um conceito mais dinâmico e construtivo do que simplesmente
destrutivo. Ela modificava as divindades, mas não as aniquilava. É uma inovação, e toda
inovação é uma espécie de adaptação na qual os encontros culturais encorajam a
criatividade (BURKE, 2003: 17). O mecanismo da interpretatio aos poucos criava no
mundo dos deuses cultuados nas províncias um tipo de linguagem religiosa comum.
Nessa linguagem, segundo Beltrão, cada povo podia identificar, em seu próprio idioma,
uma série de figuras religiosas interessantes para si mesmo (BELTRÃO, 2011: 19).
Após suas escolhas e sua organização, formavam o que denominamos um panteão e
cada comunidade reservava espaços determinados aos seus deuses e os honrava segundo
os procedimentos de costume e da tradição.
Com a nomeação romana de uma deidade estrangeira, os romanos acabavam
alterando seu caráter único através de uma linguagem comum entre eles e os
estrangeiros (SOUTELO, 2012: 55). Isso acontecia porque os romanos não faziam nada
antes de saberem o nome da divindade de algum local desconhecido e de lhe prestarem
a devida homenagem, afinal, para eles, os deuses estavam em todos os lugares, eram
forças poderosas que tinham interesses em todos os aspectos da vida (REVELL, 2009:
110) e por isso se preocupavam em não perturbar a pax deorum.
24
Desse modo, segundo Raquel Soutelo, um romano perguntava ao nativo o nome
do deus local, mais por gestos do que por palavras, questionava qual ser supremo
protegia aquela localidade e pelo o que ouvia, tenta dessa forma, traduzir o teônimo para
a sua fonética latina (SOUTELO, 2012: 56). Assim, os romanos conseguiam um
convívio melhor entre as duas culturas já que demonstravam respeitar o que é sagrado
para o outro, o que aparenta ter sido uma diretriz política de convivência religiosa para
Roma. Entretanto, ao praticar a interpretatio, ela está sujeita à aplicação de nomes de
divindades romanas (ANDO, 2006: 62).
É importante frisar a pluralidade de identidades e atributos que uma única deusa
pode possuir. Seus signa se modificaram ao longo da história romana, eles não estão
estagnados como algo sólido, mas fluem livremente como a correnteza de um rio
durante uma tempestade. E ao longo dos séculos da história romana, percebe-se como as
divindades foram se transformando. Durante a Roma dos reis, Minerva já estava
constituída como uma deusa de grande importância, junto com Juno e ambas possuíam
provavelmente uma origem etrusca, ou podem ter sido interpretadas com as deusas Uni
e Menrua etruscas (ZIÓLKOWSKI, 1992: 109-111). Durante os séculos da República
romana, novas transformações ocorreram com as divindades, dessa vez compostas por
elementos gregos (ZIÓLKOWSKI, 1992: 116). Então, na época do Principado, no
século I e.c. a deusa passou a sofrer mudanças não apenas na cidade de Roma e na
Itália, mas também nas províncias, ao associá-la com as divindades locais. E desse
modo, surge na província da Britannia, uma nova deusa.
A deusa bretã Sulis, ao se tornar Sulis Minerva, ganha agora uma forma
imagética, com base em modelos escultóricos romanos, contribuindo, desse modo, para
a expansão de elementos da religião romana entre os bretões. O local de seu santuário,
monumentalizado pelos romanos, é um centro para o culto da deusa, para a possível
cura de doenças em suas águas sagradas, e para oferendas e pedidos de justiça na forma
de tabletes religiosos e defixiones. Mas, no santuário também se detecta indícios de um
forte propósito de festividades e propaganda da cultura romana, com seu sistema de
banhos, festas realizadas em seu teatro, sacrifícios e altares erigidos no templo.
E ao problematizar o tema da ocupação romana, podemos perceber como o
hibridismo cultural foi um fator determinante nas interações religiosas e no processo de
desenvolvimento do Império Romano.
25
Os mundos dentro do Império
Ao estudar o santuário de Sulis Minerva, caminha-se para uma discussão
amplamente complexa, problemática e atual: o encontro de culturas diferentes.
Pesquisar os registros arqueológicos do santuário nos permite rever o conceito de
romanização, um conceito que foi aproximado do sentido de imperialismo, e para
Richard Hingley: “Romanização está ligada a ideologias imperiais e nacionais mais
recentes, embora se relacione as narrativas de império e de civilização formuladas nos
períodos romanos do fim da República e do início do Império” (HINGLEY, 2010: 31).
O conceito de “romanização” surgiu na historiografia do século XIX e início do
XX, para descrever o contato entre os romanos e outros povos, com a adoção dos
padrões estéticos e éticos dos primeiros nas práticas culturais encontradas nas
províncias do Império (SOUTELO, 2012: 16). Theodor Mommsen e Francis Haverfield
construíram este termo acreditando que nessas províncias tinha acontecido uma
transferência de cultura, uma mudança cultural por imitação, progressista, direcional e
uniforme (HINGLEY, 2006:39).
Desse modo, a “romanização” foi usada para ajudar a corrigir uma primeira
imagem que sugeria que um pouco da civilização romana fora transmitida para os
antigos bretões. Esta ideia foi alcançada a partir do desenvolvimento de um significado
no qual civilização era tida como algo que poderia ser transferido. Era o processo pelo
qual o bretão não civilizado alcançava a civilização. Essa teoria se encaixa em um
contexto no qual muitos escritores populares e políticos estavam buscando uma
continuidade nas imagens da vida nacional inglesa.
O que se encontra na Britannia após a sua anexação é uma ambiguidade de
identidades locais. Não se pode afirmar que existe uma identidade totalmente romana ou
bretã, mas sim diferentes identidades, que estão em constante mudança com o tempo,
são mistas, hibridizadas, não necessariamente mais ou menos romanas. Encontra-se
nativos que agiram violentamente contra a presença romana, outros que parecem tê-la
aceitado de bom grado, resistências passivas ou até mesmo uma indiferença às
modificações, tudo isso variando com a época e a região, se é uma zona rural ou urbana,
se é bastante visitada ou possui uma forte presença romana.
É preciso repensar o nosso entendimento das cidades locais que tiveram contato
com Roma. Elas não eram vítimas passivas, nem participantes entusiasmados ou
26
agentes totalmente livres nessas relações. A prioridade deve ser localizar o que uniu
essas sociedades com Roma e procurar entender o prelúdio, os processos e os resultados
de suas complexas negociações. As vítimas do “poder imperial” são aquelas que
resistiram ativamente (MATTINGLEY, 1997). Aqueles que negociaram e que
procuraram certa acomodação com o parceiro dominante podem ter recebido o poder
em suas mãos no processo. Particularmente, não se pode esperar que uma população
nativa inteira reagisse da mesma maneira à conquista romana da Britannia. Os
processos de mudança teriam envolvido interações complexas e contínuas.
Diante da complexidade ao lidar com vestígios materiais, a historiadora Norma
Musco Mendes (2001: 27) afirma que o conceito do que era “romano” e o que era
“nativo” não pode ser homogêneo. Da mesma maneira, seria simplista demais afirmar
que o uso e adoção da cultura material romana foi uma questão de aceitação ou
resistência. Mendes entende a “romanização” em um contexto de mundialização do
mundo antigo (MENDES, 2001: 26), com base na ideia de que a mundialização visa à
diversidade e a multiplicidade.
Assim como muitos impérios que se constituíram, Roma concebeu sabiamente
um mundo e pôde mantê-lo. Apesar dos muitos sentidos de “romanização” que
historiadores procuram utilizar, ainda não existe uma definição específica para
caracterizar em toda a sua complexidade o fenômeno de transformação social e cultural
entre os romanos e provinciais. Por isso, os processos de interações culturais de Roma
com diferentes regiões deve ser problematizado e não pressupor que o modo de agir dos
romanos se deu da mesma maneira em cada província.
Roma, em contato com as diferentes culturas inseridas em seus domínios
territoriais, transformou-se também, adotando diferentes elementos culturais, religiosos
etc. das culturas dominadas, já que os processos de interações culturais ocorridos no
interior de seus domínios devem ser entendidos como uma “via repleta de caminhos
diversos”. Isso implica dizer, portanto, que a possível dinâmica reprodutiva do Império
Romano era responsável pelas variações que ele conheceu ao longo do tempo e do
espaço (MENDES, 2001: 27).
Aqueles que tinham poder criaram novas maneiras de dominação. Ao mesmo
tempo, aqueles que eram controlados encontraram maneiras de resistir, ou ao menos,
reagir. Durante a conquista da província, olhares antirromanos foram comuns. Porém, o
fato de que algumas elites nativas viram uma possível vantagem em se aliar com Roma
27
mostra como as atitudes nativas variam. Enquanto a província se estabelecia sob o
controle romano, as atitudes nativas se tornariam mais complexas. Percebe-se que esse
“imperialismo” da cultura romana foi mais sutil do que simples intervenção. Um
problema relevante é que muitos historiadores e estudiosos estão muito inclinados em
ver cada forma de diversidade cultural nas províncias como uma evidência de
resistência à cultura romana (WHITTAKER, 1997). É preciso avaliar e interpretar as
fontes com extremo cuidado para não acabar tomando partidos nativos/romanos. Por
esse motivo, tendo a concordar com Greg Woolf (1998: 25), pois de acordo com ele,
pode-se compreender melhor a ocupação romana como um fenômeno de mudanças
culturais que criou uma civilização na qual semelhanças e diferenças formaram um
novo padrão cultural.
Desse modo, o domínio romano não foi simplesmente imposto nas províncias
(BUSTAMANTE, DAVIDSON, MENDES, 2005: 40), num sentido unidirecional. Foi
um processo lento e interativo que implicou não só em coerção (pacífica ou violenta)
como também recompensa, transformação estrutural, cooptação, resistência e
acomodação que eram mecanismos da “romanização” e que atuaram como diferentes
formas de discursos hegemônicos (BUSTAMANTE, DAVIDSON, MENDES, 2005:
24). Foi esse embate que permitiu que no seio do Império Romano, fosse possível
encontrar locais de ambiguidade, de culturas híbridas, que ampliaram os mecanismos de
integração sem eliminar por completo os elementos de resistência.
Ser ou não ser romano, nas províncias do Império, pode depender de diversos
fatores de alcances legais e culturais, como obter a cidadania romana, adorar os mesmos
deuses, participar do teatro, dos jogos e ir ao circo, frequentar as casas de banhos.
Porém, mesmo se um bretão fizesse isso tudo, ele próprio se consideraria um romano?
Ou a questão da identidade ainda estaria ligada diretamente à terra a que ele pertence?
Questões como essas podem ter surgido muitas vezes durante a ocupação romana nas
províncias, sendo possível também que, mesmo com os nativos adotando todos esses
costumes, modificando-os a sua maneira, ainda considerassem os romanos, para todos
os efeitos, como um povo estrangeiro. A hibridização romano-bretã se daria, então com
uma mistura de acomodação nativa, resistência passiva, e também o usufruto das
vantagens do modo de viver romano.
Há uma tentação em focar-se nas atividades das elites como o resultado de seus
visíveis impactos sobre a paisagem física da cidade. Geralmente, elas eram responsáveis
28
por financiarem construções dos edifícios públicos e sua manutenção. A participação do
resto dos habitantes das cidades era menos óbvia, das pessoas que estavam envolvidas
nas atividades mundanas de viver e trabalhar na cidade. Menos óbvio ainda é o papel de
alguém que vivia na área rural, que talvez apenas fosse à cidade ocasionalmente para
vender bens no mercado ou pagar impostos. Mesmo assim, todos esses grupos estavam
envolvidos no projeto de urbanismo, em diferentes níveis.
Louise Revell critica bastante esse foco nas elites, pois não acredita que a
experiência de compartilhar a identidade romana fosse um fenômeno restrito a elas
(REVELL, 2009: 153 - 192). Ela prefere trocar o conceito de “romanização” por
“romanidade”. Se ambos mostram-se teleológicos, ao menos o último tem o diferencial
de ser entendido como um discurso propagado conscientemente por Roma, através da
arquitetura das cidades e do culto ao princeps. Entretanto, Revell deixa de lado os casos
violentos que em certos casos acompanharam esse discurso romano.
Pensando em termos de organização espacial, a conquista de Roma provocou um
impacto muito profundo. É claro que aquela não era a primeira experiência das tribos da
ilha em termos de guerras ou invasões. A conquista romana e a organização territorial
decorrente dela, contudo, se revelariam como uma mudança radical. No processo de
mudança da lógica do território, Roma investiu no controle e na modulação da
mobilidade, isto é, da circulação de pessoas, bens e dinheiro (REVELL, 2009: 49). Para
atingir este objetivo, limites, caminhos e cidades revelaram-se como elementos centrais.
O Império Romano não podia crescer e consolidar-se sem olhar constantemente para
além de suas fronteiras, ou seja, o exterior lhe era fundamental, já que a incorporação de
terras e a expansão demográfica constituíam os motores que conduziam Roma ao seu
lugar de proeminência no mundo mediterrâneo (SOUTELO, 2012: 30). O controle da
mobilidade exigiu a construção de uma rede viária para comunicar e integrar a ilha. O
objetivo prático imediato era estabelecer vias de comunicação rápidas e seguras entre as
diversas cidades e regiões para permitir a circulação de pessoas (soldados,
representantes do poder central etc.), informação e mercadorias.
As mudanças espaciais podem ser mais bem evidenciadas com a arquitetura e a
linguagem visual que ela carrega. Segundo o historiador da arte Paul Zanker (1990), o
imperialismo romano pode ser entendido como o discurso veiculado pela produção
intelectual, principalmente pela “linguagem das imagens” produzidas pelo
relacionamento complexo entre o governo imperial, a persuasão e a transformação tanto
29
das culturas locais quanto da cultura central. Dessa maneira, é possível perceber
discursos textuais e imagéticos que veicularam, por todo o território imperial, sistemas
de representação que davam sentido à vida humana, através de uma série de
mecanismos que modelavam e remodelavam a vida pública e a vida privada,
estimulando a adoção do modus vivendi romano, como a religião, as práticas sociais, a
educação, a organização administrativa, as instituições, a rede viária, a organização
militar, as cidades etc.
Ser romano faz parte de um discurso, uma projeção na qual cada indivíduo do
Império entendia de uma maneira diferente. As estruturas do imperialismo romano,
tanto na religião ou urbanismo, eram localizadas junto das rotinas cotidianas das
populações, e através dessas atividades elas compartilhavam um discurso de como a
vida romana deveria ser vivida (REVELL, 2009: 191). O poder imperial era exercido
em grande parte de maneira a aliar os interesses dos conquistados aos dos
conquistadores. Nesse sentido, o imperialismo romano era dialético, no qual ambos os
lados faziam parte. E no século I e.c., o padrão cultural romano era o fruto das
interações entre os romanos e os outros povos que compunham o Império. Nesse
sentido, o Império Romano pode ser compreendido como um projeto cultural, que
permitia a participação e implicava a cooptação, cooperação e identificação entre a
alteridade das regiões e a identidade imperial romana (MENDES, 2006: 41).
O Império Romano nunca produziu uma identidade4 nacional como as criadas
pelos estados-nacionais contemporâneos. Persistiu sempre composto de uma
multiplicidade de identidades étnicas parcialmente integradas. O que a historiografia
denomina de “sociedade romana” é apenas uma abstração, ou uma generalização para o
Império, de uma realidade que talvez somente era válida para a cidade de Roma. Dentro
desse caleidoscópio cultural, percebe-se que as sociedades poderiam possuir múltiplas e
variadas identidades vinculadas com sua cidade e tradições. Desse modo, Roma é um
paradigma útil de cruzamento de identidades locais e heterogêneas e que, mantendo a
diversidade, tendeu a estruturar uma unidade, que era o sentido de ser romano
4 Entendemos como “identidade” o conjunto de características de um povo, oriundas da interação dos
membros da sociedade e de sua forma de interagir com o mundo. Ela comporta as tradições, a cultura, a
religião, a música, a culinária, o modo de vestir, de falar, entre outros, que representam os hábitos de uma
população.
30
(MOLINA, 2007). Criava-se um sentimento de pertencer a um mesmo mundo político,
socioeconômico e cultural.
Esse “caleidoscópio” sintetiza como podemos imaginar as diferentes sociedades
interagindo dentro do Império Romano. A palavra significa um aparelho em que é
possível ver várias imagens coloridas por causa da reflexão da luz solar em seus
espelhos. E dependendo do seu ângulo de visão, as cores e os formatos vão mudando,
fornecendo a cada momento combinações variadas e interessantes. Essas cores, ou no
caso, as culturas, acabam formando um conjunto de características que estão se
sucedendo e em constante mudança.
O Império era, então, um território imenso, habitado por diversos povos, cada
qual com suas especificidades no ver, no sentir e no pensar em relação aos demais. Na
medida em que reconhecemos esses encontros e essas trocas (muitas vezes violentas),
admitimos também uma transformação local nas experiências vividas por essas
comunidades. Michel De Certeau (2010: 95) chama atenção para o caso das
hibridizações culturais que ocorrem com duas sociedades díspares. Ele critica
fortemente o preconceito de muitos ao acharem a cultura do dominado (no caso, os
nativos) inferior. Também afirma que essa pretensiosa “vulgarização” ou “degradação”
de uma cultura superior (a dos romanos), através dessa fusão entre os bretões e
romanos, seria apenas uma visão partidária da existência de uma cultura romana pura, o
que está bem distante da realidade. Desse modo, o processo de “integração” dos novos
povos tinha como mecanismos a própria religião, ferramenta muito eficaz para
congregar populações diferentes através de suas crenças comuns. No caso de uma deusa
como Sulis Minerva, era uma divindade reconhecida por bretões e romanos, todavia, era
também uma divindade nova.
31
O SANTUÁRIO DE SULIS MINERVA
Agora que já vimos algumas questões que nos levam a pensar que a hibridização
religiosa criou uma divindade nova em Aquae Sulis, mas mesmo assim reconhecível
para bretões e romanos, podemos abordar o local específico de seu culto. A principal
atividade no santuário consistia em seus banhos medicinais e na fonte sagrada que
ficava dentro do templo. Nela, muitas oferendas foram presenteadas à deusa, assim
como pedidos religiosos na forma de tabletes e também defixiones. Em sua arquitetura,
percebemos que a linguagem visual sugere uma rica interação cultural na cidade que
acabou produzindo algo inovador e curioso. Nesse caso, trata-se especificamente do
frontão do templo de Sulis Minerva. Além disso, é dentro do santuário que percebemos
como era realizado o culto a essa deusa.
Figura 3. Reconstrução gráfica do interior do Santuário. Fonte:
http://www.romanbaths.co.uk/images/bathing%20complex_v_Variation_1.jpg
Ao entrar no espaço religioso do santuário, a travessia pelo complexo se inicia
com o seu templo, que foi construído em um estilo clássico, o que o torna bastante
incomum na província. O templo foi abordado por um lance de escadas e havia quatro
colunas coríntias, apoiando um frontão decorado. Atrás das colunas, a estátua de culto
da deusa era mantida em um espaço mal iluminado, sem janelas, com a única luz que
entrava pela porta e pela queima do fogo. Atravessando o templo e passando do lado da
fonte sagrada, entra-se então, nos cômodos de banhos, sendo possível acessar cada tipo
32
de sala e seu específico banho. Em seu centro, se localizava a maior piscina do santuário
e ao transitar pelo local, o visitante poderia observar os mosaicos coloridos e os detalhes
decorativos em seu interior. O vapor da água quente seria provavelmente constante no
caldarium e as águas medicinais de Sulis Minerva foram responsáveis por tornar a
cidade um grande centro de peregrinação.
Os banhos divinos
O complexo consiste em três grandes divisões em torno da Fonte, ou Nascente
Sagrada. Segundo Revell, ninguém tinha permissão para banhar-se nela. Em vez disso,
a fonte foi utilizada como local para orações e oferendas à deusa. A fonte foi construída
de paredes de chumbo grosso e tinha um grande telhado sobre a área inteira. Milhares
de moedas e placas foram retiradas do sedimento nesta construção. Ao norte da fonte
estava o templo de Sulis Minerva. O templo consistia em uma pequena câmara com um
altar sacrificial em sua entrada, no pátio. Há evidências de que o templo era
suntuosamente decorado, indicando que o santuário foi de grande importância para
ambos romanos e bretões. Os banhos são compostos por três piscinas grandes
alongando-se de leste a oeste, ao sul da Fonte Sagrada (REVELL, 2009: 177).
33
Figura 4. Planta do santuário. Fonte: REVELL, 2009: 177
Alterações posteriores no pátio frisam a importância do altar. Uma plataforma
adicional foi construída, e mais tarde, uma estátua e outro altar foram construídos,
juntando-se com o primeiro. Como parte do culto, os construtores tiveram que primeiro
definir um limite entre o espaço sagrado e o caminho para o altar. O largo pátio sugere
que os rituais eram vistos como ocasiões públicas, um evento comum para uma gama de
adoradores. O desing do pátio do templo, dominado pelo altar, é um indício forte que o
sacrifício era um elemento proeminente no culto em Aquae Sulis (REVELL, 2009: 120).
Este sacrifício coletivo era performado em frente ao templo, diante da própria deusa
sob a forma de estátua.
Evidências também apontam para a realização de libações como mais uma parte
do uso ritualístico do complexo. Junto da fonte sagrada, oito patere foram encontradas,
uma de bronze, duas de prata e cinco de chumbo. Dessas, cinco tinham o nome da deusa
(REVELL, 2009: 121-122). Elas poderiam ser oferendas, mas, como elas possuem
evidência de uso, e algumas são remendadas, parece mais provável que elas tenham sido
utilizadas no culto, com as pessoas oferecendo água da fonte, ou outros líquidos como o
34
vinho (CUNLIFFE, 1984: 77). Sacrifícios e libações talvez tenham sido comandados
por um sacerdote que possuía uma autoridade religiosa especial.
Figura 5. Alguns dos objetos encontrados na fonte. Dentre eles, percebem-se joias, jarros, pratos e a
abundância de moedas. Fonte:
http://www.romanbaths.co.uk/images/romansandgoddess_v_Variation_1.jpg
A fonte e o reservatório claramente formavam uma segunda área de culto no
santuário. Pode-se ver, a partir do registro arqueológico5, que havia duas formas de
deposições consideradas apropriadas à deusa. Objetos diversos foram encontrados,
principalmente consistindo moedas, e os tabletes religiosos. Os objetos que
sobreviveram são feitos predominantemente de metais: joias, pratos e tigelas e alguns
itens militares como lanças. Havia também alguns objetos de madeira e couro, assim
como certo número de gemas. Entretanto, os objetos mais frequentes são as moedas.
Não lidamos aqui com o total de oferendas dedicada à deusa, pois as pessoas podem
muito bem terem jogado itens na fonte que não sobreviveram, mas esse número
heterogêneo de objetos dedicados à Sulis Minerva nos mostra como as oferendas
podiam ser bastante diversificadas. E jogar uma moeda parece ter sido uma das
oferendas mais populares, embora isso não exclua a dedicação dos outros objetos. Uma
vez a abertura da nascente sagrada fechada, havia duas maneiras de acessar a fonte, uma
5 A maioria dos objetos encontrados podem ser visualizados no site do museu de Bath disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/artefacts.aspx, acessado no dia 25/05/2014.
35
pelos banhos, a outra ainda pelo templo, através de seu pátio via uma pequena porta
(REVELL, 2009: 125). Utilizar essa porta talvez permitisse a ligação entre as oferendas
e tabletes religiosos e o próprio templo, uma ligação que teria sido perdida se elas
fossem depositadas a partir dos banhos.
Figura 6. Principal fonte do santuário. Fonte:
http://visitbath.co.uk/site/things-to-do/attractions/roman-baths-p25681
Fica evidente que o templo e os banhos eram dois complexos interligados. A
nascente, uma parte integral do santuário, alimentava os banhos, dos quais os visitantes
dos banhos poderiam olhar para a fonte sagrada e o altar. O fato que o banho era, sem
dúvida, uma prática importante para introduzir uma caracterísica bastante romana
associado a uma deusa local. Como o romano visitava o banho nu (ou quase nu), isso
pode levar alguns a assumirem que as hierarquias sociais eram despidas ao mesmo
tempo em que as togas. Porém, isso é uma falsa imprensão, pois dentro dos próprios
banhos havia maneiras de um indivíduo demonstrar sua riqueza, e o próprio fato de os
bretões frequentarem os banhos já denota um possível desejo ou status de pertencer à
“romanidade”. Significava que, ao adotar um costume romano talvez levasse o bretão a
um patamar hierárquico superior no sistema político e econômico da época.
A oeste do santuário há um complexo de vários comôdos que serviam como
salas de ginástica e banhos de vapor. Acima da estufa (caldarium), ficavam os quartos
de banhos mornos (tepidarium). Estes comôdos eram locais onde um romano ou bretão
podia se preparar através de massagens, exercícios, jogos, limpeza, ou simplesmente
sentar para tomar os banhos. (REVELL, 2009: 176-177).
36
Figura 7. Mosaico. Fonte: www.romanbaths.co.uk/explore.aspx
O visitante se despia em imensos vestiários com divisórias de estuque, em cujas
paredes havia nichos onde se colocavam calçados e as roupas. Nu ou quase, calçado de
sandálias de madeira e tomando cuidado para não escorregar nos mosaicos ou no
mármore que decoravam o piso, entrava em seguida no tepidarium, onde reinava
normalmente uma temperatura de 20 a 30°C para uma higrometria de 20 a 40ºC. No
calor úmido, o corpo relaxava e se aquecia, depois começava a transpirar. Podia-se
então entrar no caldarium. O lugar era menos iluminado, menor e a temperatura
chegava aos 40°C. O fundo era recoberto de mosaicos representando peixes, divindades
ou monstros marinhos, abastecida por água muito quente. Entrava-se descendo alguns
degraus, nos quais se podia sentar perto das pessoas que já estavam mergulhadas.
Imerso até a cintura ou até os ombros, ficava-se lá tanto quanto possível. Quando a
sensação de calor deixava de ser agradável, o banhista ia à outra extremidade da sala,
refrescar-se em uma grande cuba de pórfiro, que uma fonte ornada de grifos abastecia
continuamente de água fria. Podia-se ficar de pé algum tempo, conversando com
alguém. Esfregava-se o corpo para tirar o suor e o sabão, e voltava-se a mergulhar na
bacia fervente. (MALISSARD, 2009: 67).
É preciso discernir bem a diferença entre as termas imperiais e os banhos do
santuário. Apesar da mesma divisão de banhos nos dois (frigidarium, tepidarium e
caldarium), o sentido é muito diferente. As termas eram locais de relaxamentos e
37
prazeres, incentivadas para atrair uma massa de pessoas e expandir o modo de vida
romano, ou seja, seu estilo de civilização. Foi provavelmente durante o Império que
nasceu o costume de dizer que as termas eram os palácios da plebe. Isso não quer dizer
que não existia relaxamento e prazeres nos banhos do santuário de Sulis Minerva.
Deveriam existir, mas em uma escala muito menor e mais “comportada”, pois o sentido
de ir para esses banhos estava, primeiramente, no desejo de suas águas medicinais
geradas pela deusa, visitar seu templo, oferecer algo a ela, depositar uma oferenda ou
uma defixio (tábua de maldição ou tábua de justiça) ou erigir um altar (CUNLIFFE,
1984: 74).
Das três grandes piscinas, a fonte principal é a mais significativa. Como o nome
sugere, era a maior das piscinas no complexo, cerca de 12m de largura e 24m de
comprimento por 1,6m de profundidade. A fonte principal foi cercada com colunas,
sugerindo que ela também era uma vez abobadada, mas nenhuma das colunas
permanece além das pedras de sua base. O piso é impressionantemente pavimentado
com grandes pedras. Estas pedras de pavimentação têm canais escavados que alimentam
as fontes com água quente das nascentes (CUNLIFFE, 1984: 113).
As piscinas drenavam o rio da cidade através de canos de chumbo. Diretamente
para o leste da fonte principal há outra grande piscina de 6m de comprimento por 12m
de largura. Esta foi outra piscina de banho quente. O piso desta piscina foi modificado
várias vezes ao longo dos séculos. Movendo para o leste a partir deste conjunto há
muitas outras fontes menores e as câmaras que foram adicionadas após a construção
original dos banhos. Isso foi, presumivelmente, para acomodar a crescente popularidade
dos banhos. A terceira fonte maior fica a oeste da fonte principal. Este banho é um
frigidarium, o banho frio. É uma piscina circular de cerca de 6m de diâmetro. Esta foi
provavelmente uma área na qual os romanos limpavam-se antes ou após o banho nas
piscinas de água quente (CUNLLIFFE, 2002: 56).
De todas as salas, o frigidarium era a mais alta e espaçosa. Tinha a aparência de
um vasto “bulevar”, rodeado de colunas de granito vermelho e decorado com obras de
arte que o transformavam em um verdadeiro museu. As termas ofereciam ainda
massagem, depilação, concertos e biblioteca. Todos os dias, pessoas das origens mais
diversas, poderiam se abandonar no luxo e no conforto, aos prazeres do ócio.
Saindo do âmbito das nascentes medicinais da deusa, abordaremos então o local
principal de seu culto, o templo.
38
O templo de Sulis Minerva
O templum é uma área definida para rituais, podendo ser localizado a um ponto
do céu selecionado pelo augúrio para a observação dos auspícios do vôo dos pássaros
(EGELHAAF-GAISER, 2006: 206). Uma aedes sacra, por outro lado, refere-se ao
nome do edifício como a casa dos deuses. Dependendo do culto, as divindades eram
adoradas em formas de símbolos ou antropomorficamente.
O templo de Sulis Minerva era certamente conhecido por causa de seu altar
miraculoso, no qual a fogueira era mantida queimando carvão e não madeira (HENIG,
2003: 157). A maioria dos templos provavelmente incluía festivais, procissões,
sacrifícios entre seus rituais que, em um nível mais pessoal, tinham potencial para
possibilitar a comunicação ou conselho da divindade sob a forma de orações e pedidos.
O templo original de Sulis Minerva foi construído acima de um pódio com cerca de
1,5m de altura, sendo acessível por um lance de escadas (CUNLIFFE, 1984: 39). O
templo era feito de concreto, com 9m de largura e 14m de comprimento.
Figura 8. O templo de Sulis Minerva. À esquerda se encontra a fonte sagrada e seguindo em frente
chegaria ao local onde provavelmente a estátua da deusa estaria. Fonte: REVELL, 2009: 121
39
Ao adentrar no templo, a visão em frente do indivíduo é atraída primeiramente
pelo altar, e atrás dele, no pódium do templo, possivelmente pela estátua da deusa
visível pela cella (REVELL, 2009: 119). Somente ao entrar no recinto o indivíduo
perceberia a fonte sagrada, localizada em um canto, com uma vista para os banhos. A
posição e a decoração do altar sugerem que os sacrifícos eram uma importante parte da
atividade ritualística do santuário. O altar ficava em uma base acima do pavimento
central, sua largura estimada em dois metros quadrados, e quase um metro e meio de
altura. As colunas mostram um esquema de decoração sofisticado e elaborado das
divindades romanas. Era, provavelmente, onde sacrifícios de animais para a deusa
foram realizados.
Aproximadamente a uma distância de 15m em frente ao templo ficava o grande
altar para sacrifícios. Tudo o que restou do local exato do altar foram algumas placas de
calcário que indicam a posição dele (CUNLIFFE, 1984: 50). A plataforma teve suas
extremidades corroídas pelas alterações climáticas, e é muito possível que o seu
tamanho real fosse de 2,40 m².
Figura 9. Epígrafe do haruspex L. Marcius Memor. Fonte:
http://www.romanbaths.co.uk/walkthrough/6_temple_courtyard/the_haruspex_stone.aspx
O ritual de sacrifício era realizado por um sacerdote do templo, e após o
sacrifício do animal, o haruspex do santuário, chamado L. Marcius Memor, tentaria
40
perceber os auspícios das entranhas do ser que agora pertence às divindades. A epígrafe
do haruspex foi encontrada em uma escavação em 1965 (CUNLIFFE, 1984:183). A
palavra haruspex era originalmente abreviado como “HAR” e esta foi estabelecida de
forma simétrica, mas foi depois expandida de modo assimétrico para “HARVSP” com
as últimas três letras em um tamanho diferente. Como a presença de um haruspex na
província da Britannia é algo raro, Cunliffe (1984: 56) acredita que o sufixo “VSP”
tenha sido acrescentado para que a população local compreendesse melhor o significado
da sigla. A letra “L” de seu primeiro nome provavelmente se refere a Lucius.
Pode-se então afirmar a existência desses sacertodes devido às inscrições de
lápides funerárias encontradas no santuário. Uma delas pertence a um sacertode do
templo de Sulis Minerva que era romano e sabemos disso por causa de sua lápide de
1,35m de altura encontrada no local. Nela se lê:“ Aos deuses Manes, Gaius Calpurnius
Receptus, sacerdote da deusa Sulis, viveu 75 anos; Calpurnia Trifosa, sua liberta e
esposa, o erigiu" (CUNLIFFE, 1984: 186).
Figura 10. Lápide romana do século I e.c. Fonte:
www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1986_5_1
A lápide tem a forma de um altar, o que era apropriado, pois Calpurnius foi um
sacerdote da deusa. Ele deve ter servido ao templo, e trabalhado em suas fontes. Trifosa
41
foi uma escrava que Calpurnius libertara e com quem se casou. Como uma escrava, ela
só tinha um nome, adotando o nome de seu antigo mestre e marido ao ser libertada.
Os pilares decorativos foram encontrados durante escavações em 1965
(CUNLIFFE, 1984: 51). Estes são os três pilares que sobreviveram do grande altar que
ficava no centro do pátio do templo. É provavelmente o lugar onde os sacrifícios de
animais do sexo feminino foram realizados para a deusa. Eles são feitos de pedra local e
teriam sido esculpidos no final do século I.
Figura 11. Coluna do grande altar. Fonte:
www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_27
Em um deles, apresentado em sua parte frontal da pedra provavelmente é o deus
Baco, o deus romano do vinho (CUNLIFFE, 1984: 51). Ele possui um tirsus (um bastão
com um cone de pinheiro no topo) na mão esquerda e derrama uma oferta de vinho de
uma taça (libação) para uma pantera ao seu pé. A outra figura provavelmente é uma
divindade feminina. A deusa não é possível de ser identificada, mas o que parece ser
42
uma cornucopia que ela carrega em sua mão direita e a libação fluindo pelo vaso
indicam que a deusa talvez esteja conectada com a fertilidade. A coluna possui uma
altura de 1,26m (CUNLIFFE, 1984: 52).
Figura 12. Coluna do grande altar. Fonte:
www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_28
Após a descoberta, uma inspeção no local encontrou uma coluna com
características similares (CUNLIFFE, 1984: 52). Apesar de mal conservada, é possível
reconhecer o mesmo padrão de divindades, no caso um par, estando uma divindade nua
ou parcialmente vestida e outra completamente vestida. Nesse caso, é Júpiter, o rei dos
deuses romanos, segurando um tridente6 em uma mão e com uma águia aos seus pés (os
símbolos de sua autoridade). Ao lado da pedra há uma figura que pode ser o deus
6 Apesar de o tridente estar mais associado com o deus Netuno, o artesão que pretendeu retratar o deus
Júpiter parece ter realizado uma interpretação própria, apropriando-se de elementos diversos.
43
Hércules com uma manta de pele de leão em seu ombro. As patas do leão atravessam o
seu peito. Nesse caso, a divindade parcialmente vestida seria de Hercules Bibax, o
“Hercules bebedor”, segurando um grande jarro de beber em uma mão e a outra
repousando em uma clava nodosa (CUNLIFFE, 1984: 52).
Figura 13. Coluna do grande altar. Fonte:
www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_29
O terceiro pilar foi exposto a muita erosão, porém é possível identificar o mesmo
padrão de divindades nele. Infelizmente a divindade nua está muito deteriorada para que
possa ser identificada. Porém, o seu parceiro pode ser o deus Apolo, o deus da música e
da poesia ou então Orfeu, já que a figura possui uma lira no joelho (CUNLIFFE, 1984:
53).
Para uma análise detalhada dos pilares, utilizei alguns dos elementos do método
da semiótica da imagem proposto por Martine Joly (1996):
44
Ícone Símbolo Interpretante
Duas figuras humanas,
uma seguida de um animal.
Deus Baco fazendo uma
libação à pantera e
segurando um tirsus. A
figura feminina segura uma
cornucópia.
A libação do deus Baco e
seu tirsus sugerem um
ritual em busca de
fertilidade. A pantera é um
de seus símbolos
(CUNLIFFE, 1984: 51).
Assim como a cornucópia
carregada pela figura
feminina traz uma
mensagem de abundância.
Duas figuras humanas,
uma sentada, seguida de
um animal, e a outra de pé.
Deus Júpiter segurando um
tridente e com a águia ao
seu lado. Hércules veste
uma pele de leão e um
grande jarro de beber e a
outra mão leva uma clava.
Júpiter junto com os seus
símbolos (curiosamente um
tridente nesse caso, e a
águia) poderiam evidenciar
a importância do templo da
região, já que conta com a
presença do rei dos deuses
romanos (CUNLIFFE,
1984: 52). Junto com ele
está seu filho, em uma
clara manifestação de que o
momento é festivo, pois ele
carrega um jarro para beber
vinho.
Duas figuras humanas,
uma possívelmente é
masculina.
A figura masculina nua
carrega uma lira, sendo
possível que seja o deus
Apolo ou Orfeu.
A lira indica que a figura
trata-se de algum deus ou
semideus ligado à música
(CUNLIFFE, 1984: 53).
Observando como as divindades são apresentadas nessas colunas, a imprensão
que fica é que todas (até mesmo as que não podem ser identificadas) estão conectadas
com algum culto de fertilidade que envolve uma celebração festiva. A presença de uma
45
cornucópia, libação, jarro de beber vinho e um instrumento musical (a lira) sugere
talvez um culto que celebre a abundância. A divindade estar nua ou seminua entraria de
acordo com o contexto do santuário, já que o complexo possui banhos termais.
Barry Cunliffe apresenta uma reconstrução do altar de sacríficios do templo,
sendo assim, essas colunas apresentariam a seguinte forma:
Figura 14. Reconstrução do altar de sacrifícios. Fonte: CUNLIFFE, 1984: 55
Há pouca dúvida de que os três blocos pertencem ao mesmo monumento
(CUNLIFFE, 1984: 54). Eles têm o mesmo tamanho e padrão de divindades, uma nua e
outra vestida. Uma observação curiosa sobre o modo que as deidades são apresentadas
poderia indicar a ida aos banhos quentes após a realização do sacrifício. Temos deuses e
deusas vestidos, com atributos de fertilidade (cornucópia) e celebração (Baco fazendo
uma libação e Hércules bebendo) e logo depois divindades nuas ou parcialmente
vestidas.
Além disso, há semelhanças no estilo, como a postura do corpo e a espessura dos
pescoços. Tudo isso é uma forte indicação de que os três pilares foram construídos pela
mesma oficina, senão pelo mesmo artesão. As duas deusas que não podem ser
identificadas geram dúvidas, mas minha hipótese é que talvez elas poderiam ser
divindades que forneceriam um par adequado aos deuses que se encontram do lado
delas. Uma delas, poderia ser alguma deusa com atributos musicais ou festivos, pois ao
seu lado se encontra um deus carregando uma lira. A outra, que carrega uma cornucópia
46
e tem o deus Baco como par, estaria então ligada à fertilidade, abundância, sendo talvez
Vênus, ou Flora, sendo assim, as especulações são muitas.
O que fica evidente é a forte preocupação na construção e no tratamento do
santuário de Sulis Minerva para que ele se tornasse o mais romano possível (apesar de
não conseguir ignorar algumas influências bretãs em sua estética). Percebe-se isso na
sua arquitetura, nas suas imagens e nos sacertodes que estavam presentes no santuário.
Matin Henig (2003: 39) demostra de uma maneira simples e narrativa como
seria o cenário em um dia de festividades. As pessoas de Aquae Sulis e visitantes de
outras regiões vão chegando aos poucos e se refrescam. Alguns poderiam estar doentes
e, desse modo, descanso e medicamentos eram requeridos, e a deusa Sulis Minerva
poderia ajudar na cura. Outros visitantes poderiam estar preocupados com questões
distintas, como problemas pessoais, desejando evitar tragédias ou punir algum inimigo,
pedindo pela assistência divina. As portas do templo ficavam abertas e lá, sob uma meia
luz sobre o suggestus (plataforma) flanqueado por colunas, estava a deusa, isto é, a
figura de pedra erigida de Sulis Minerva, pintada com cores vivas e segurando velas,
fazendo com que o imaginário do indivíduo criasse o sentimento de que ele realmente
estava na residência de um ser divino. Ele para diante do altar, no qual um fogo queima
enquanto o oficiante puxa sua toga mais firme sobre a cabeça e começa uma oração em
latim.
Os chifres do boi são dourados e penduram neles grinaldas de flores da estação.
O animal mal nota que o oficiante espalha uma camada de farinha e sal em sua cabeça e
corta um pouco de seus pêlos. Os habilidosos atendentes distraem o boi enquanto o
oficiante o apunhala rapidamente com uma faca de bronze (HENIG, 2003: 41). O
sangue escorre pelo chão. Mais incenso é queimado e o observador sente que a
cerimônia atingiu a união sacramental com os deuses.
A palavra sacrifício7 vem do latim, que significa “tornar sagrado” (ALMEIDA,
2008: 517). A pessoa que pagara pelo sacrifício ainda estaria um pouco ansiosa até o
haruspex, especialista em interpretar o significado do coração, intestino e fígado,
apontasse que tudo estava bem (GREEN, 2002: 42). A dedicação de uma criatura
7 É realizado em ordem para adquirir benefícios para um indivíduo ou comunidade. Há uma expectativa
quanto ao mundo divino, pois o sacrifício pode ter sido feito em troca de vitórias nas batalhas, o
nascimento de uma criança saudável, recuperação de uma doença, boa fortuna (GREEN, 2002: 20).
47
doente ou deformada poderia constituir um insulto para as divindades e poderia trazer
azar para a população. É então pronunciado pelo sacerdote que as vísceras não estão
infectadas e podem ser queimadas no fogo junto com a gordura da coxa. Enquanto a
fumaça da cremação oferecida ascendia para os céus, os cozinheiros estão ocupados
preparando o boi para assar em outra fogueira.
Desse modo, percebemos que havia cultos realizados ao modo itálico. Esses
elementos apresentados são parte integral do culto romano, e o que isso nos permite
depreender, é uma tentativa de reprodução das ações religiosas romanas. É bem possível
que somente no frontão do templo haja evidência de algum elemento possivelmente
bretão, o que o torna muito importante para perceber uma nova concepção religiosa no
santuário.
A maior parte da Britannia era composta por regiões arborizadas, e os bosques
escuros eram áreas com poderes divinos (HENIG, 2003: 17). Locais sagrados para os
bretões não precisavam ser necessariamente construídos, talvez uma árvore sagrada
fosse o bastante. É difícil refletir sobre os nomes e atributos dos deuses bretões porque
inscrições são desconhecidas na Idade do Ferro e imagens nunca foram encontradas.
Provavelmente, a maioria dos nomes recordados nas inscrições romanas é de divindades
da Idade do Ferro, porém há muitas dificuldades na tentativa de se reconstruir rituais
pré-romanos.
As características romanas e bretãs se tornam evidentes na arquitetura do templo
de Sulis Minerva. O frontão do templo fornece uma imagem clara da hibridização
romano-bretã. Trabalhando em conjunto com o registro arqueológico, torna-se possível
uma análise aprofundada da estrutura desse frontão, pois quatorze fragmentos de pedra
trabalhada que pertencia a ele foram encontrados em 1790 (CUNLIFFE, 1984: 45). Ele
Possuía uma altura de quase 2,5m e largura de 8m. Foi construído a partir de oólito
(grãos arredondados do tamanho de areia formados por carbonato de cálcio).
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Figura 15. Os 14 fragmentos encontrados durante escavações. Fonte:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_9
Figura 16. Reconstrução do frontão a partir dos pedaços encontrados. Fonte: RICHMOND &
TOYNBEE, 1955: PLATE XXIX.
Na imagem apresentada no frontão, as duas Vitórias flutuam com um pé
repousando sobre um globo (apenas o globo direito sobreviveu). De acordo com os
historiadores Richmond e Toynbee (1955: 99), as Vitórias sobre os globos representam
a vitória universal de Sulis Minerva sobre a morte. Se as figuras masculinas presentes
49
são mesmo tritões, é possível que eles estejam usando conchas como instrumentos
musicais. Tritões seriam apropriados no contexto de águas sagradas. A face central se
localiza dentro de um escudo cujas bordas são preenchidas com folhas de carvalho, as
quais indicam uma forte ligação com a religião bretã (CUNLIFFE, 1984: 41 – 42).
Abaixo do escudo, entre as duas Vitórias, podem ser percebidos dois elmos, o da
esquerda com um formato peculiar de cabeça de golfinho, enquanto o elmo direito
apresenta uma pequena coruja pousada nele. Ambos os animais são criaturas
extremamente ligadas com a deusa romana Minerva, representando sabedoria e os
tritões reforçariam a influência das águas no santuário.
Ainda que o frontão não esteja disponível em sua totalidade, é possível
identificar elementos para recompô-lo. As referências para completar a imagem do
frontão vêm de um pequeno sarcófago romano agora presente no museu de Ashmolean,
em Oxford, no qual há uma górgona rodeada por cupidos. Uma variante da mesma
imagem aparece em um grande sarcófago encontrado perto da porta pia em Roma com
o escudo com uma górgona e as duas vitórias (RICHMOND & TOYNBEE, 1955: 100).
Em um primeiro momento, a face masculinizada da “górgona” prende mais
atenção e enfatiza o conceito de uma cultura hibridizada apenas nesse rosto. Entretanto,
há outros elementos bretões que podem ser encontrados nesse frontão sem serem tão
evidentes como o rosto central. Por exemplo, as deusas Vitórias presentes possuem
suas peculiaridades.
Há diferenças entre essa Vitória e as do Mediterrâneo. No caso da Vitória da
esquerda, ambas as pernas estão envoltas da saia de sua túnica e suas dobras são
lineares, bidimensionais e fluindo de uma maneira energética e padronizada tipicamente
bretã. O escultor lapidou verticalmente a superfície da pedra, produzindo um efeito de
preto e branco que fica bem em contraste, o que é comum nas províncias do norte. As
Vitórias africanas geralmente são nuas, enquanto as romanas normalmente deixam á
mostra uma perna torneada (RICHMOND & TOYNBEE, 1955: 102). Desse modo, as
Vitórias de Aquae Sulis oferecem um vocabulário nativo representado na arte sob a
tutela romana.
50
Figura 17. Face do frontão. Fonte: www.kernunnos.com/deities/godimage/medusalg.jpg
A “górgona” permite supor que a escultura foi obra de um artesão nativo,
provavelmente treinado em uma oficina da província, porém resolveu transportar seu
conhecimento em uma imagem que fosse familiar e reconhecível para sua população
(RICHMOND & TOYNBEE, 1955: 103). Para os autores, a fusão da “górgona” com
uma possível divindade marinha foi deliberada e não acidental, ou devido a uma
confusão do artesão. Fons era um deus masculino assim como Nemausus, deus gaulês
de nascentes medicinais em Nimes, sul da Gália. Outra teoria é a de que Sulis era filha
de algum deus marinho, assim como as ninfas aquáticas eram filhas do deus Oceanus
(RICHMOND & TOYNBEE, 1955: 104).
O historiador Martin Henig acredita que o pedimento do frontão do templo está
caracterizado por duas divindades (Minerva e Netuno), representando os elementos terra
e água respectivamente (HENIG, 2006: 223). É possível que o patrono do templo fosse
Togidubnus, pois, se ele era realmente o rei supremo (Rex Magnus Britanniae) da
região bretã do Belgae bem como outras áreas, muito provavelmente teria Aquae Sulis
controlada na época em que o santuário foi construído.
51
Para Henig, a coroa de grinaldas representa simbolicamente a que foi entregue a
Augusto e outros princeps romanos, como Vespasiano (por supostamente salvar a vida
dos cidadãos) e ela é destaque nas moedas (HENIG, 2006: 224). Vitórias sobre os
globos, segundo Henig, provavelmente apontam para vitórias no reino de Minerva, ou
seja, sobre a terra. Tritões são membros da “marinha” de Netuno e simbolizam vitória
no mar, nomeadamente o triunfo de Augusto na batalha de Ácio em 31 a.e.c., e a
travessia do mar e bem sucedida invasão da Britannia envolvida em 43 e.c.
Outra hipótese sobre de quem seria o rosto representado no centro do frontão é
apresentada pelo historiador John Hind. Ele afirma que na época da conquista da
Britannia por Cláudio, o deus Oceanus era mencionado na poesia para celebrar a vitória
(HIND, 1996: 358). Talvez para os romanos o cruzamento do Oceano Atlântico rumo à
ilha fosse algo mais impressionante do que a vitória sobre as populações bretãs.
Segundo Hind, a face no frontão pertenceria ao gigante Tífon. As cobras são as
serpentes que fazem parte de seu corpo, as asas pertencem propriamente aos seus
ombros. O gigante é conhecido como a personificação das atividades geotermais, e por
esse motivo, teria algum tipo de ligação com as águas termais (HIND, 1996:360).
Desse modo, o escultor teria incorporado características bretãs na face da
górgona, a qual se tornou masculinizada. O rosto poderia representar algum deus bretão
desconhecido atualmente ou até mesmo o possível líder bretão da época. O cabelo de
serpentes lembra as ondas do mar e a barba apresenta traços que podem ser raios
solares, o que representaria respectivamente a água e o fogo, elementos da deusa nativa
Sulis. As asas ao lado da cabeça poderiam representar o elemento ar e a própria pedra
na qual a imagem foi esculpida, a terra. Na tradição bretã, os elementos da natureza
eram extremamente importantes para suas crenças. Se o símbolo que aparece no topo do
frontão for mesmo um sol, isso pode colaborar na tentativa de encontrar atributos
solares no templo. É possível que exista um aspecto duplo personificado da própria
fonte sagrada, a água e o calor (CUNLIFFE, 1986: 8). Os globos (que representam
vitória) e as duas deusas Vitórias podem muito bem se referir a vitória sobre a morte (já
que se trata de um santuário de águas medicinais) do que vitórias militares.
Novamente, utilizo outros elementos do método proposto por Martine Joly, pois
com sua abordagem semiótica, considera a imagem um tipo de linguagem. Desse modo,
sendo um mecanismo de expressão e de comunicação, a imagem é sempre uma
52
mensagem para alguém. Utilizando o método elaborado por ela para analisar a imagem
do frontão do templo, temos:
Contexto: Ocupação romana e reconstrução de um santuário nativo com
elementos da arquitetura clássica greco-romana.
Destinador: Artesão bretão (mais provável) ou romano.
Mensagem: Religiosa. Possivelmente ela foi construída para trazer bons augúrios
e espantar as mazelas, pois o santuário era um centro de cura de
enfermidades físicas e mentais.
Destinatário: Bretões (mais intimamente) e romanos.
Contato: Arquitetura/escultura.
Código: A cabeça da “górgona” modificada, pois é algo que representa um
elo entre bretões e romanos.
O motivo da face da górgona se tornar masculina é uma questão pertinente que
ainda carece de respostas satisfatórias. Talvez por detrás disso, segundo Barry Cunliffe
(1986: 8), esteja uma união sagrada entre um deus celeste bretão, representando o sol, e
a deusa terrestre da fonte, que juntos, formam a nascente quente. A face se tornaria
então, um símbolo do espírito da fonte sagrada, o que explicaria a figura masculina
representada na iconografia.
Não é somente na arquitetura do templo de Sulis Minerva que podemos perceber
as manifestações da cultura bretã. Dentro da fonte sagrada, muitos pedidos escritos em
um latim vulgar foram depositados pela população local. Sendo assim, observaremos
agora algumas defixiones de Aquae Sulis.
As defixiones
As defixiones são finas tábuas revestidas de metal ou couro, nas quais são feitas
inscrições em um latim vulgar típico das províncias romanas (HAENSCH, 2007: 185).
A função delas é de influenciar, por maneiras sobrenaturais, as ações humanas e o bem
estar de pessoas ou animais. O chumbo era martelado em uma fina folha, inscritos com
uma caneta stylus, (estilete, modo de escrever), muitas vezes, dobrado ou enrolado e
53
perfurado com um tipo de prego especial para "conservar" seu poder (defigo). O tablete
podia ser colocado em um recipiente de chumbo selado por si ou com outros materiais e
depositados em água parada ou corrente em uma cova ou túmulo, ou afixada plana na
parede de um santuário.
Para um romano, os deuses estavam em todos os lugares, eram forças poderosas
com interesses em todos os aspectos da vida. Na própria Roma, o Senado podia apenas
fazer esses “encontros” no templo, uma área designada como espaço religioso pelos
augúrios (REVELL, 2009: 110). Antes do encontro, os auspícios precisavam ser
tomados para saber se os deuses eram favoráveis ou não, e quaisquer negócios
realizados sem a sanção divina poderiam ser declarados inválidos.
Embora o que se conhece como magia antiga tenha alguma semelhança
superficial com a religião, as diferenças são fundamentais, pois a religião é uma
tentativa aberta e pública para se comunicar com os deuses e propiciar consultas e
possíveis favores, enquanto a magia opera em segredo e procura manipular poderes
sobrenaturais em seu benefício pessoal, frequentemente, a fim de prejudicar inimigos.
Magia era uma forma de produzir, por meio de certas ações, palavras e por adoração de
espíritos, gênios, demônios e até mesmo deuses, efeitos e fenômenos extraordinários,
contrários às leis naturais (CAMPOS, 2009: 17).
Possivelmente a oposição entre religião e magia está no fato das
sociedades antigas, no caso a grega, acreditarem na ação eficaz e
imediata da magia. Algumas destas práticas mágicas
faziam parte de ritos e cerimônias religiosas que visavam o benefício
da coletividade (CANDIDO, 2002: 25).
As inscrições nos tabletes, muitas vezes pediam ajuda divina para a retribuição
quando a lei fosse considerada insuficiente para a tarefa: vingar a perda ou a obtenção
do retorno de alguém ou algo, punir os rivais e traidores. A magia não pode ser aceita
como religião, mas sim como um mecanismo no qual os deuses podem ser controlados
pelos mortais (HENIG, 2003: 32). Já os pedidos religiosos, eram dirigidas aos deuses,
os quais eram agentes livres, não obrigados a responder.
As defixiones geralmente eram a última tentativa da pessoa que se sentiu
prejudicada ou ofendida para conseguir algum tipo de justiça. A tradição de escrever
54
maldições parece ter se originado na Hélade, por volta do século V a.e.c8. Ela se
espalhou por todo o continente ocidental ao longo dos anos. A maioria das defixiones se
dirigia à Hécate (deusa da magia, morte, nascimento, renovação), Deméter (deusa da
colheita, da terra) e sua filha, Perséfone. Pois elas tinham uma conexão com a morte ou
com o mundo inferior. Maldições foram escritas em cera, cerâmica quebrada, ou
chumbo, e materiais da terra. Portanto, eram intimamente ligadas ao submundo.
(ADAMS, 2006: 2) Outro deus característico que era mencionado era Mercúrio, muito
provavelmente pela sua liberdade de transitar entre o mundo dos vivos e o mundo dos
mortos.
Ao que parece, a análise dos tabletes do santuário indica que existiram dois
meios dos bretões se comunicarem com a deusa local em troca de favores. Em um
primeiro momento, percebe-se a presença de tabletes com características claras de uma
defixio, um tablete de maldição, relacionado a rituais de magia. Porém, há também
tabletes diferenciados, não podendo ser classificados simplesmente como defixiones.
Figura 18. Defixiones. Fonte: http://www2.cnr.edu/home/araia/defixiones.html
8 Em Atenas, as defixiones eram chamadas de “katádemos” e tinham um sistema distinto. As inscrições
solicitavam permissão de fazer uso das almas de pessoas que não conseguiram seguir um ciclo de vida
adequado, que era nascer, viver, tornar-se adulto e envelhecer. Ou seja, eram utilizadas almas de crianças,
suicidas e pessoas assassinadas (CANDIDO, 2011: 1 – 2, disponível em:
http://www.nea.uerj.br/publica/artigos/21558898-Os-atenienses-seus-deuses-e-a-sua-vinganca-atraves-
dos-Katadesmoi.pdf). O nome em grego tem o sentido de amarrar, atar, prender alguém embaixo da terra.
Este mecanismo era facilitado pela divindade evocada. Claramente, no final do século I a.C., a
comunicação entre a Britannia e o continente estava muito bem estabelecida. Havia um comércio
marítimo desde o século IV a.e.c.
55
O tablete podia ser colocado em um recipiente de chumbo selado por si ou com
outros materiais e depositados em água parada ou corrente em uma cova ou túmulo, ou
afixada plana na parede de um santuário9. As inscrições se dividem em dois aspectos.
Uma em que se pede à divindade que prejudique alguém, frequentemente gerado por um
desejo de vingança, seja por uma ofensa sofrida ou por ter sido roubada. Em outro
aspecto, há a dedicação da pessoa para essa divindade, agradecendo pela sua ajuda em
algo ou para receber favores divinos (HAENSCH, 2007: 186), o que nesse caso, não
demonstra ser um ritual mágico, mas sim religioso. Mas, quando o tablete encontra-se
com sinais de perfurações e com um latim em tom de ordem, ele é uma defixio, ou seja
uma prática mágica. Por esse motivo, na bibliografia britânica, as defixiones também
são chamadas de tábuas de maldição ou tábuas de justiça. Acredito que o termo defxio
seja mais apropriado aos tabletes encontrados com marcas de perfurações, o que
caracteriza que o tablete tivesse um objetivo de prejudicar alguma pessoa ou conter
algum tipo de energia exterior e sobrenatural. Para os demais, tratar-se-iam então de
tabletes com pedidos à deusa.
Sulis Minerva, por ser uma deusa controladora da saúde, era desse modo, uma
deusa perfeita para esses pedidos de justiça na forma de maldição. Afinal, ela seria
capaz de julgar se o pedido no tablete era justo ou não, e então, através de seu poder
divino, poderia aplicar o castigo na pessoa que estava ali marcada, retirando sua saúde,
física ou espiritual. Sulis Minerva não era mais vista apenas como uma deusa que zelava
pela saúde das pessoas, mas que também era encarregada de uma justiça acima dos
homens. Seu poder medicinal estava relacionado à água das nascentes, desse modo
lugar e divindade mantém uma relação de íntima reciprocidade. Isto fica mais evidente
pelo fato dos tabletes serem depositadas na fonte sagrada, assim como as oferendas à
deusa (REVELL, 2009: 177). A construção da identidade dos deuses se faz
primordialmente nos espaços destinados ao seu culto e ritualização. O espaço, seja ele
um santuário, templo, floresta, nascente, cria e reconhece a divindade escolhida. Os
tabletes, sendo endereçados a Sulis Minerva, implicavam que somente ela deveria ter
conhecimento de seu conteúdo e suas informações eram vedadas aos vivos.
9 Com escavações mais cuidadosas sendo realizadas ultimamente e por causa inclusive da utilização de
detectores de metais, o número de tabletes encontrados está aumentando (HAENSCH, 2009: 186).
56
É importante conhecer qual era a região na qual o tablete era depositado, essa
questão poderia ratificar o seu potencial. As sepulturas, o fundo de poços, fendas nas
paredes de santuários e templos eram locais relevantes para o tablete ser depositado,
devido ao contato com o sagrado (CAMPOS, 2009: 16). No caso dos tabletes
encontrados no santuário de Sulis Minerva, praticamente todos estavam na Fonte
Sagrada.
Ao que parece, a maioria das defixiones encontrado na Britannia lida com roubo,
um número muito maior se comparado com o mundo greco-romano (CUNLIFFE, 1984:
80). As duas divindades mais comuns eram Sulis Minerva, em Aquae Sulis e Mercúrio,
em Uley (HAENSCH, 2007: 186). Entretanto, mesmo que essa maioria lide com roubo,
não se pode generalizar e pressupor que o furto era uma atividade que ocorria em larga
escala na cidade. Deve-se lembrar de que se tratava de um santuário famoso, bastante
frequentado, sendo muito possível que fossem depositados milhares de defixiones e
tabletes religiosos ao longo dos séculos. Os artigos roubados são itens portáteis, poucos
com algum alto valor. Eram roupas, moedas e alguns anéis. Mas aqui as sutilezas
jurídicas surgem em pequenas distinções: se a implicação é que se o mandante do crime
fosse um homem, mas quem cometeu o ato em si, uma mulher, a deusa não será capaz
de ajudar (HENIG, 2006: 228). Da mesma forma, se o ladrão era um escravo, seja de
ambos os sexos, tinha que ser lembrado que o escravo era um bem móvel, e a maldição
ficava desse modo sem energia.
Os dois pedidos religiosos escolhidos para fazer parte desta monografia talvez
possam exemplificar como era o procedimento mais comumente realizado no santuário.
O primeiro é um pedido de justiça à deusa por um objeto roubado, enquanto o outro
pede o auxílio de Sulis Minerva em uma questão familiar. Em ambos os casos, não
parece se tratar de um ritual mágico, mas sim religioso.
Tablete 1:
[D]OCIMEDIS
[P]ERDIDI(T) MANI-
CILIA DVA QVI
ILLAS INVOLAVI(T)
VT MENTES SVA(S)
PERD[AT] ET
57
OCVLOS SV[O]S
IN FANO VBI
DESTINA[T]
“Docimedis perdera duas luvas. Ele pede que a pessoa que as roubou perca sua
mente e seus olhos no templo onde (ela, a mensagem) aponta.” (ADAMS, 2009: 7)
Segundo Adans, a palavra latina “ut” nesse tablete aparece como uma referência
a algum tipo de desejo e os erros de latim, como omissões de “t” no final de algumas
palavras são bem comuns nos tabletes, não apenas na província da Britannia, mas em
todas as regiões do Império que começaram a adquirir a língua latina, como por
exemplo, inscrições atestadas em Pompeia (ADANS, 1992: 6).
O latim coloquial nos tabletes sugere que a maioria das dedicações foi escrita
por membros da população local. Uma hipótese plausível é de que grande parte dos
roubos aconteceu nos banhos, por isso o grande número de moedas perdidas. Isso
também sugere que grande parte dos pedidos era de indivíduos de um nível social mais
baixo, sendo que a vítima não podia sustentar um escravo próprio, ou pagar um para que
tomasse conta de suas coisas. Por outro lado, a perda pode ser também devido ao pouco
cuidado dos visitantes nos banhos, perdendo seus itens, como os anéis, e então
instantaneamente suspeitaram de roubo.
Tablete 2:
Figura 19. Desenho da defixio restaurada. Fonte: http://www2.cnr.edu/home/araia/defixiones.html
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VRICALVS, DO[C]ILOSA VXOR SVA,
DOCILIS FILIVS SVVS ET DOCILINA,
DECENTINVS FRATER SVVS, ALOGIOSA,
NOMINA<A> EORVM QVI IVRAVERVNT.
QVI IVRAVERVNT AD FONTEM
DEAR SVLI[S]
PRID[I]E IDVS APRILES QVICVMQVE ILLIC PER-
IVRAVERIT DEAE SVLI FACIAIS ILLVM
SANGVINE SVO ILLVD
SATISFACERE.
“Uricalus10, sua esposa, Docilosa, o filho dócil de Docilina, Decentinus e seu
irmão, Alogiosa, os nomes daqueles que fizeram um juramento sob a fonte da deusa
Sulis no dia antes dos idos de Abril. Todos aqueles que lá permaneceram, juro pela
deusa Sulis que podes fazê-lo com seu próprio sangue para satisfazê-la” (CUNLIFFE,
1984: 81).
Este tablete é uma folha retangular de liga de estanho ou chumbo, plana e não
perfurada, embora ligeiramente danificada no canto inferior esquerdo e superior central.
Foi inscrita em um dos lados com uma stylus em escrita cursiva datada do século II e.c.,
em seguida, jogada na nascente quente da deusa que a guarda. É um pedido que
apresenta uma ameaça como punição preventiva mortal para indivíduos nomeados de
uma família se eles quebrassem o juramento que realizaram no santuário da deusa.
Utilizando uma tabela, procuramos facilitar a compreensão dos tabletes acima.
Analisando os tabletes, temos:
10 Provavelmente é o mais velho dos dois irmãos. Os indivíduos em suas famílias estão listados por nome
nesta tábua (Uricalus tem uma esposa, filho e filha; Decentinus é nomeado, provavelmente, com sua
esposa). O juramento que tomaram pode ser relacionado com a alienação de bens herdados, o que
explicaria a importância de guardá-la com uma maldição. Letras entre colchetes são adições ao texto
(CUNLIFFE, 1984: 192).
59
Solicitante: Tablete 1:
Docimedis.
Tablete 2:
Provavelmente,
Uricalus.
Objetivo: Punir o ladrão. Garantir uma promessa
realizada.
Local do achado: Fonte do templo. Fonte do templo.
Motivo: [D]ocimedis
[p]erdidi(t)manicilia
dua qui illas inuolaui(t)
Docimedis perdera duas
luvas.
Uricalus, Do[c]ilosa
uxor sua, Docilis filius
suus et Docilina,
Decentinus frater suus,
Alogiosa, nomina<a>
eorum qui iurauerunt.
qui iurauerunt ad
fontem deae Suli[s]
prid[i]e Idus Apriles.
Uricalus, sua esposa,
filho e cunhado fazem
um juramento na fonte.
Solicitação: Vt mentes sua(s)
perd[at] et ocuulos
su[o]s in fano ubi
destina[t]
Pede que a pessoa que
as roubou perca sua
mente (consciência) e
seus olhos.
Qvicumqve illic
periuraverit deae Sulis
faciais illum sanguine
suo illud satisfacere
Jura pela deusa Sulis
que pode se satisfazer
com o sangue de todos
os nomeados no tablete.
Nesses dois tabletes analisados, mesmo com pedidos distintos, não se encontram
características de um ritual mágico (inscrição anônima, perfuração do tablete por um
60
defigo e verbo no modo imperativo). Nesse caso, é mais provável que estejamos lidando
com um pedido religioso, sendo que no segundo tablete há uma tentativa de acordo com
a deusa Sulis Minerva.
Há também tabletes relatando roubos que aconteceram em suas próprias casas.
Examinando os tabletes romano-bretões, fica evidente que a maioria delas foi escrita
por uma classe mais baixa. Eram donas de um pequeno punhado de dinheiro, e os
tabletes de couro eram baratos de serem produzidos.
Figura 20. As letras mais comuns do latim vulgar na província da Britannia. Fonte:
http://vindolanda.csad.ox.ac.uk/exhibition/images/letterformsbasic.gif
Os tabletes de Aquae Sulis são em sua maioria muito mal escritos, o que torna
difícil distinguir o que poderiam ser erros fonéticos de palavras perdidas (ADANS,
1992: 24). Alguns erros como a omissão final de “t” e “s” é bem comum pelo Império,
tendo pouco a dizer sobre o possível status social do escritor do tablete. Desse modo,
essa tarefa só pode ser realizada através do conteúdo do tablete e não na forma como foi
escrito.
Talvez os tabletes fossem usados somente pelas classes baixas, porém, é muito
possível que as classes mais altas os usassem quando sentiam que a ajuda divina era a
única disponível (ADAMS, 2009: 10. A maioria dos nomes dos suplicantes era de
nativos. É importante, ao analisar essa “estranha” atitude religiosa, distanciar-nos de
nossos olhares modernos para o passado, especialmente quando se trata da religião.
61
Uma questão que se levanta era por que essa pessoa que foi roubada não
procurou alguma autoridade local para reportar o crime? Primeiramente, essa sociedade
romano-bretã era extremamente religiosa, os deuses estavam presentes no mundo dos
vivos, existia uma relação muito próxima entre o humano e o divino, por diversos
mecanismos, como os rituais, festivais, sacrifícios e orações. Procurar uma ajuda divina
talvez fizesse mais sentido do que procurar a ajuda de uma autoridade local. Aliás, era
mais provável que, para os habitantes, pedir auxílio a uma divindade surtisse mais
efeito. As inscrições demonstram claramente o tipo de reparação que o indivíduo
desejava, era uma maldição forte, que acarretasse no sofrimento e na morte do
amaldiçoado.
Outra dúvida que surge ao analisar esses tabletes é sobre a natureza dramática e
violenta dos pedidos inscritos. Por que visavam fazer um mal por objetos, que
aparentemente, tinham apenas pouco valor? Uma possível resposta para isso pode ser
encontrada no estudo do contexto social da Britannia pós-conquista romana. A
anexação romana transformou a província, modificou ou criou edifícios, construíram-se
estradas, o “mundo bretão” saiu de seu eixo e para a população local se conformar com
isso levaria algum tempo. Os bretões se confrontaram com situações novas que talvez
não pudessem garantir respostas suficientes às suas necessidades. Com novos
obstáculos a serem transpostos, o desejo de uma maior justiça divina torna-se
possivelmente a melhor alternativa. Devido ao fato de Sulis Minerva ser uma deusa de
águas medicinais, essa justiça divina viria através da pouca saúde, sofrimento e morte
dos oponentes.
Os tabletes procuraram uma “justiça”, a partir da perspectiva do autor, ou
vingança por um erro anterior, o que sugere um motivo completamente diferente.
Percebemos assim, como o templo, as defixiones e os banhos termais estão interligados,
tendo a deusa Sulis Minerva e seus atributos sempre presentes como o foco principal de
todo o culto ali realizado pela população local.
Após abordar a construação do santuário e as mudanças religiosas (a
interpretatio, os cômodos de banho, o templo e seu culto, as defixiones) que ele
acarretou para a cidade de Aquae Sulis, enfocaremos o que esse novo santuário
significava para a população da província.
62
A relação do santuário com o lugar
O santuário em Aquae Sulis era bastante fora de proporção comparando-se com
o tamanho da pequena cidade. Provido com água naturalmente quente, ele foi projetado
para atender às necessidades não só da população local, mas de pessoas que viajavam
como peregrinos de todo o Império Romano.
A cidade de Aquae Sulis11
apresentava uma população diversificada. De acordo
os vestígios epigráficos (CUNLIFFE, 1984: 182), não eram poucos os habitantes que
podiam pagar para erigir altares aos deuses. Artesões, soldados aposentados e outros
membros de uma elite local certamente eram financeiramente providos o suficiente para
terem seus nomes gravados para a posteridade. Não só soldados aposentados estavam
presentes na cidade, mas também aqueles que estavam na província e então visitavam as
nascentes, junto com todos os turistas da Britannia.
Aquae Sulis era o centro de uma rica área que produzia pedras de calcário12
coloridas, que com o tempo, foram utilizadas na produção de altares, epígrafes e
estátuas em larga escala na província (CUNLIFFE, 1984: 187). Muitas epígrafes do
santuário de Sulis Minerva eram dedicadas para outras divindades (bretãs e romanas),
sugerindo que o local era um lugar no qual viajantes poderiam agradecer a seus próprios
deuses e deusas pessoais sem o risco de desrespeitar a deusa local (CUNLIFFE, 1984:
190).
Sobre a relação do santuário de Sulis Minerva com os bretões, ele era um local
de espaço público e frequentado por bastantes pessoas. A cidade de Aquae Sulis se
encontrava em um local estratégico, entre diferentes cidades, se tornando um ponto de
parada para muitos viajantes. E nesse espaço, o indivíduo pode se encontrar com muitas
outras pessoas. Entretanto, por causa do santuário ter sido reconstruído no modelo
clássico, claramente ele era um lugar próprio é bastante pessoal para os romanos. Pois
se analisarmos a visão dos bretões, especificamente para as primeiras gerações que
11 Os vestígios sobreviventes das construções romanas são a mais visível evidência que a Britannia fez
parte do Império Romano. As gerações nativas que seguiram após a conquista da província presenciaram
o ambiente ao redor se transformar com os novos modelos arquitetônicos (JONES, 1991: 3). A única
evidência literária existente até agora para o processo de construções na Britannia romana vem de Tácito.
12
Assim como a produção de calcário, a cidade também tinha uma rica manufatura de vasos de chumbo
(CUNLIFFE, 1984: 195).
63
presenciaram a chegada dos romanos e puderam vivenciar as mudanças ocorridas em
Aquae Sulis, o santuário mostra-se ao mesmo tempo conhecido e desconhecido, afinal,
ele foi transformado radicalmente. O local sagrado anterior à chegada dos romanos
poderia ser caracterizado claramente como um lugar reconhecível, pois representava um
lugar muito pessoal para os bretões. A intervenção romana, física e religiosa, abalou
essa região, enquanto que para os romanos essa mudança não alteraria seus sentimentos
ou geraria uma maior reflexão sobre si mesmo. Desse modo, o santuário de Sulis
Minerva pode ser caracterizado de duas formas: como um ambiente familiar ou um
agente estranho. Essa visão provavelmente variava de acordo com a geração de
habitante local e dependia do status de quem a estava adotando.
Dentro do santuário, as nascentes tinham propriedades medicinais que eram
realmente boas para doenças como artrite e gota, o que pode ter fornecido à deusa uma
reputação de ser capaz de curar tudo. Havia devotos que doaram modelos de seios13
em
marfim e bronze, junto de joias (GREEN, 1996: 33). Peregrinos visitaram o santuário
talvez para uma cura física, ou talvez mais frequentemente para um alívio espiritual.
Procedimentos como a imersão e purificação, absorvendo a água medicinal, a cura
através do sono, sacrifícios, festivais e orações, faziam parte constante no santuário,
assim como a oferta de presentes à deusa.
O santuário se tornou de fato um local de grande atração e já no início do século
II era frequentado por viajantes do Império Romano, que deixavam suas inscrições
gravadas em seus altares (CUNLIFFE, 1984: 179). Alguns deles eram erigidos para a
deusa Sulis Minerva em nome de centuriões veteranos, sendo custeados por seus
libertos (CUNLIFFE, 1984: 91). Outros altares foram dedicados a outras divindades
como Diana.
Ao analisar os processos de modificações religiosas na cidade de Aquae Sulis,
torna-se inerente um estudo amplo sobre as mudanças culturais que ocorreram, tanto
para os bretões nativos e romanos. A chegada do Império Romano é como uma força de
transformação, seja ela passiva ou não, e essas transformações acabaram gerando novas
concepções de como pensar, agir e no próprio sistema de crenças e valores. O seu
13 Alguns modelos possuem um furo na parte superior para que pudessem ser suspensos ou presos a algo.
É provável que esta fosse uma oferenda dada à deusa Sulis Minerva por uma mulher e ela poderia ter a
oferecido para pedir ajuda na cura de sua filha ou filho, ou como agradecimento por um parto bem-
sucedido.
64
impacto e intensidade variam de acordo com a região. A grande variedade de situações
religiosas foi em grande parte devido ao sistema de organização dos cultos
supervisionados pela cidade. Cada cidade tinha sua religião, e isso ainda era válido para
a época imperial, não obstante a aproximação progressiva das comunidades do Império
com Roma (ANDRIGA, 2006: 91).
De acordo com o levantamento bibliográfico e documental relativo ao santuário
no século I e.c., buscamos compreender a interpretatio realizada entre as deusas bretã e
romana, Sulis e Minerva como principal estratégia de consolidação do poder romano na
região. Assim, conseguimos delimitar, a partir do registro arqueológico, rituais
realizados no santuário de Sulis Minerva, buscando identificar as interações culturais e
religiosas das populações presentes que cultuavam a divindade.
65
CONCLUSÃO
Nesta monografia buscamos compreender melhor o resultado do encontro entre
romanos e bretões, que foi uma verdadeira fusão de seus sistemas culturais, gerando
mudanças nas crenças, valores e modos de agir. Entretanto, a política para a província
era expandir/disseminar o máximo possível da cultura latina (HENIG, 2003: 36). O
mundo romano era repleto de variadas cidades que falavam latim, grego, púnico, céltico
e muitas outras. Percebe-se que um diálogo entre Britannia e Roma ocorreu de forma
heterogênea, produzindo consequências multifacetadas para a província e para a própria
urbs.
A principal questão desta monografia era situar o santuário de Sulis Minerva, na
cidade de Aquae Sulis dentro do Império Romano sob um viés religioso e compreender
como a hibridização romano-bretã se sucedeu a partir da interpretatio da deusa Sulis
Minerva. Além disso, buscamos perceber quais foram as interações religiosas que
ocorreram dentro do santuário da divindade e seus significados para a população.
Aquae Sulis não era uma cidade que possuía funções militares e nem era um
grande centro comercial. Entretanto, parece que Roma a considerou um ponto
estratégico da Britannia. Talvez a construção do santuário fizesse parte de uma tentativa
de pacificar a região, tornando o local religioso um centro de descanso, cura e culto para
os soldados romanos, a população que ali habitava e para os visitantes.
No primeiro capítulo, definimos quem era a deusa que era cultuada em neste
santuário e como sua interpretação foi percebida pelos romanos. Para isso foi necessário
um estudo do sistema religioso romano e como ele lidava com as interpretationes de
divindades desconhecidas. A interpretatio se encontra fortemente inserida no contexto
de trocas culturais, sendo assim, a análise de como se sucedeu o encontro entre bretões e
romanos e suas consequências se mostra relevante para compreender a diversidade
cultural que caracterizou o Império Romano.
No segundo capítulo, analisamos o santuário da deusa Sulis Minerva e
buscamos, a partir de sua documentação material sobrevivente, entender como a vida
sócio-religiosa entre bretões e romanos se estabeleceu. Para isso, enfocamos o
funcionamento dos banhos dentro do complexo, as imagens religiosas ambíguas de seu
templo e as inscrições religiosas e de maldições que eram depositadas na fonte sagrada.
66
Desse modo, tentamos então entender como era a relação desse santuário com a
população local.
Alguns locais podem adquirir reputações positivas ou negativas devido à como
as pessoas julgam se eles cumpriram ou não com suas funções e se atenderam
necessidades humanas como prover segurança, um sentimento de identidade ou prazer
estético. Com o tempo, o possível cumprimento dessas necessidades podem levar a uma
“verdade” de como as pessoas se posicionaram sobre o local. Mas essa “verdade” não
deixa de ser uma construção cultural que se manifesta através de experiências,
percepções, ideologias e sentimentos. Nesse caso, podemos afirmar que o santuário de
Sulis Minerva cumpriu sua função como lugar sagrado e centro de cura. Ele recebeu sua
reputação positiva através de um acúmulo histórico de sentimentos diversos sobre suas
águas medicinais e sua deusa.
E como conclusão, percebe-se a interpretatio entre a deusa romana Minerva e a
deusa bretã Sulis como um mecanismo religioso que aproximou dois povos através de
suas crenças, criando uma nova divindade que todos pudessem cultuar, um santuário
que propagandeasse a cultura romana e que servisse de encontro para diferentes
visitantes que passassem pela região.
67
Referências Documentais
Para a realização dessa monografia, as análises do arqueólogo Barry Cunliffe se
mostraram de principal relevância. Cunliffe participou das escavações do santuário em
1965 e então esteve presente quando foram descobertos grande parte do acervo
arqueológico que agora se encontra no museu de Bath. O site desse mesmo museu
também contribuiu bastante para a pesquisa, pois ele forneceu imagens e informações
sobre o santuário e o seu acervo, propiciando, assim, a documentação necessária para o
nosso objetivo.
CUNLIFFE, Barry. Roman Bath Discovered. London. Routledge & Kegan Paul, 1984.
Museu de Bath (Data da última consulta: 25/05/2014): http://www.romanbaths.co.uk/
No site encontramos:
- Reconstrução gráfica do sítio da cidade;
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/walkthrough/the_roman_site.aspx
- Frontão do templo com a cabeça de “górgona”;
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_9
- Coluna do grande altar do templo com a imagem do deus Baco;
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_27
- Segunda coluna do grande altar do templo com a imagem dos deuses Júpiter e
Hércules Bibax;
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_27
- Terceira coluna do grande altar do templo com a imagem do deus Apolo;
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_1_29
- Epígrafe erigida pelo haruspex para a deusa Sulis Minerva;
Disponível em:
68
http://www.romanbaths.co.uk/walkthrough/6_temple_courtyard/the_haruspex_stone.asp
x
- Altar erigido para sacerdote Calpurnius;
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1986_5_1
- Modelo de um seio de marfim encontrado na fonte sagrada;
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_13_a
_1
- Modelo de lança de madeira romana encontrada na fonte sagrada.
Disponível em:
http://www.romanbaths.co.uk/explore/Object_Details.aspx?objectID=batrm_1983_13_d
_106
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Ficha Documental I:
Tipo de suporte: Base para uma
estátua.
Material: Calcário.
Local do achado: Abaixo da sala
dos canos, em 1965.
Contexto arqueológico: Base de
uma estátua que provavelmente fica
em frente do altar.
Datação: Século I ou II e.c.
Localização atual: Museu de Bath.
Descrição: Epígrafe dedicada à
deusa Sulis Minerva pelo haruspex
do templo.
Dimensões totais: Altura = 60cm.
Bibliografia: CUNLIFFE, Barry.
Roman Bath Discovered. London. Routledge & Kegan Paul, 1984.
75
Ficha Documental II:
Tipo de suporte: Lápide.
Material: Calcário.
Local do achado: Na cidade de Bath, próximo aos
jardins Sydney, em 1793.
Contexto arqueológico: Lápide de um sacerdote do
templo de Sulis Minerva.
Datação: Século I ou II e.c.
Localização atual: Museu de Bath.
Descrição: A lápide romana com a forma de um
altar.
Dimensões totais: Altura = 1,35m.
Bibliografia: CUNLIFFE, Barry. Roman Bath
Discovered. London. Routledge & Kegan Paul,
1984.
76
Ficha Documental III:
Tipo de suporte: Coluna do grande altar.
Material: Calcário.
Local do achado: Na sala de canos, dentro
do santuário, em 1965.
Contexto arqueológico: Faz parte dos 3
pilares encontrados do grande de altar de
sacrifícios que ficava no pátio do templo da
deusa Sulis Minerva.
Datação: Final do século I e.c.
Localização atual: Museu de Bath.
Descrição: Deus Baco segurando um tirsus
na mão esquerda e derramando uma oferta
de vinho de uma taça para uma pantera ao
seu pé. A outra figura não pode ser
identificada.
Dimensões totais: Altura = 1,27m.
Bibliografia: CUNLIFFE, Barry. Roman
Bath Discovered. London. Routledge &
Kegan Paul, 1984.
77
Ficha Documental IV:
Tipo de suporte: Coluna do grande
altar.
Material: Calcário.
Local do achado: Na sala de canos,
dentro do santuário, em 1790.
Contexto arqueológico: Faz parte dos 3
pilares encontrados do grande de altar de
sacrifícios que ficava no pátio do templo
da deusa Sulis Minerva.
Datação: Final do século I e.c.
Localização atual: Museu de Bath.
Descrição: Deus Júpiter segurando um
tridente em uma mão e com uma águia
aos seus pés. Ao lado pode ser o deus
Hércules com uma manta de pele de leão
em seu ombro e segurando um grande
jarro de beber em uma mão e a outra
repousando em uma clava nodosa.
Dimensões totais: Altura = 1,27m.
Bibliografia: CUNLIFFE, Barry. Roman Bath Discovered. London. Routledge &
Kegan Paul, 1984.
78
Ficha Documental V:
Tipo de suporte: Coluna do grande
altar.
Material: Calcário.
Local do achado: Igreja de Compton
Dando.
Contexto arqueológico: Faz parte dos
3 pilares encontrados do grande de
altar de sacrifícios que ficava no pátio
do templo da deusa Sulis Minerva.
Datação: Final do século I e.c.
Localização atual: Museu de Bath.
Descrição: A divindade nua se
encontra deteriorada, não sendo
possível ser identificada. O seu
parceiro pode ser o deus Apolo ou
então Orfeu.
Dimensões totais: Altura = 1,27m.
Bibliografia: CUNLIFFE, Barry.
Roman Bath Discovered. London.
Routledge & Kegan Paul, 1984.
79
Ficha Documental VI:
Tipo de suporte: Frontão.
Material: Calcário.
Local do achado: Na sala
dos canos, dentro do
santuário, em 1790.
Contexto arqueológico:
Templo do santuário da deusa
Sulis Minerva da cidade de
Aquae Sulis.
Datação: Final do século I
e.c.
Localização: Museu de Bath.
Descrição: Fragmento composto de quatorze pedaços do frontão, que foram
encontrados em 1790.
Dimensões totais: Altura = 2,5m e Largura = 8m.
Bibliografia: CUNLIFFE, Barry. Roman Bath Discovered. London. Routledge &
Kegan Paul, 1984.
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Journal of Roman Studies, Vol. 45, 1955: 97 – 105.
80
Ficha Documental VII:
Tipo de suporte: Defixio.
Material: Chumbo.
Local do achado: Na
fonte sagrada.
Contexto arqueológico:
Depositado na fonte
sagrada do templo da
deusa Sulis Minerva.
Datação: Século II e.c.
Localização atual:
Museu de Batn.
Descrição: Uma folha de liga de estanho / chumbo retangular, plana e não perfurada,
ligeiramente danificada no canto inferior esquerdo e superior central.
Dimensões totais: Altura = 2cm. Largura = 3cm.
Referência: Fonte: http://www2.cnr.edu/home/araia/defixiones.html