O QUIXOTE DE CERVEISNER: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE O CAPÍTULO VIII DO QUIXOTE DE CERVANTES E SUA...

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO CURSO DE LETRAS Leonardo Poglia Vidal O QUIXOTE DE CERVEISNER: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE O CAPÍTULO VIII DO QUIXOTE DE CERVANTES E SUA ADAPTAÇÃO PARA OS QUADRINHOS POR WILL EISNER. São Leopoldo 2010

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

CURSO DE LETRAS

Leonardo Poglia Vidal

O QUIXOTE DE CERVEISNER: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE O CAPÍTULO VIII DO QUIXOTE DE CERVANTES E

SUA ADAPTAÇÃO PARA OS QUADRINHOS POR WILL EISNER.

São Leopoldo 2010

Leonardo Poglia Vidal

O QUIXOTE DE CERVEISNER: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE O CAPÍTULO VIII DO QUIXOTE DE CERVANTES E

SUA ADAPTAÇÃO PARA OS QUADRINHOS POR WILL EISNER. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Letras, pelo curso de Letras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Orientador: Prof. Ms. Claudio Vescia Zanini

São Leopoldo 2010

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos são importantes. Se não por questão estética, pela consciência de que,

como animais sociais que somos, não há quem se tenha feito sozinho. Não de verdade.

Assim sendo, gostaria de agradecer a pai e mãe, talvez escolhas óbvias mas com

certeza inevitáveis. Pelo quê? Bom... pelo apoio, pela existência... por terem se eximido de me

eliminar como – com certeza – tiveram vontade em meus humores na adolescência. Por tudo,

ué.

Gostaria de agradecer à minha proprietária Roberta Milaine por me aturar durante a

realização deste trabalho. Falar nisso, por me aturar em termos gerais. Não pode ser tão fácil.

Eu mesmo, sozinho em um quarto, não me aturo por mais de umas quatro horas. E, depois

disso, me limito a conviver comigo.

Gostaria de agradecer também ao caro professor Cláudio Zanini, que orientou (e teve

que ler) esse miasma de álibis lunáticos que tenho a desfaçatez de denominar “trabalho”.

E, já que estou agradecendo, gostaria de agradecer aos irmãos, em todos os sentidos

exceto o biológico, Diego e João Paulo, por estarem aí; pela irmã em todos os sentidos

Daniela por estar lá (ela mora mais longe); aos sobrinhos Germano e Antônia por existirem; à

minha família e à família de minha proprietária por serem rostos amigos e gentis em um

mundo tão estranho. Aos amigos, próximos e distantes, de relações cotidianas e de Internet. E

só não vou agradecendo aqui a Deus e a torcidas de times de futebol porque sou agnóstico e

não assisto futebol.

À banca examinadora não seria apropriado agradecer, mas sim oferecer humildes

desculpas dada a extensão (necessária) desta falácia. A única coisa que se pode dizer em

minha defesa é que busquei, contaminado pelo espírito de Cervantes e de Eisner, colocar em

suas páginas algum humor, o que, espero, pode tornar mais leve sua leitura.

Finalmente, agradeço a Miguel de Cervantes e a Will Eisner por terem me dado o que

falar e momentos como os que tive na realização deste estudo. Foi divertido. Talvez uma

exumação futura mostre, daqui a um século, que se reviraram ambos no túmulo no começo do

século XXI por alguma razão. Mas penso que não é o caso.

“Ao chegar o momento em que, velho, pobre e fracassado, não podia esperar nada do mundo exterior, se refugia dentro de si mesmo e encontra no fundo de sua alma os recursos íntimos inalienáveis para criar-se um mundo poético próprio em que se salva a si mesmo e salva tudo o que a vida havia depositado nele.”

FEDERICO DE ONIS (Sobre a vida de Miguel de Cervantes, no prefácio de Dom Quixote de La

Mancha, vol.1, Clássicos Jackson, São Paulo, 1949)

RESUMO

O presente trabalho visa estabelecer as relações narrativas entre as linguagens escrita e

iconográfica. Para tanto, se realizará uma comparação entre o capítulo VIII do romance O

Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra e sua

adaptação para Graphic Novel, O Último Cavaleiro Andante, de Will Eisner. Tal comparação

será orientada pela visão da narrativa apresentada por SOARES (2007), entre outros autores.

A leitura da linguagem iconográfica, por sua vez, seguirá preceitos de CAGNIN (1975),

MCCLOUD (2008 e 1995) e EISNER (2005 e 1999). O trabalho analisará as relações entre as

duas narrativas comparando seus elementos (tempo, espaço, personagens, ponto de vista e

enredo) e estabelecendo suas diferenças e semelhanças.

Palavras-Chave: Dom Quixote. Graphic Novel. Literatura. Narrativa. Quadrinhos. Romance.

Will Eisner.

ABSTRACT

This present work aims to stablish the narrative relations between written and iconographic

languages. For this purpose, a comparison between chapter VIII of the novel The Ingenuous

Hidalgo Don Quixote of La Mancha, by Miguel de Cervantes Saavedra, and its adaptation to

Graphic Novel form, The Last Knight, by Will Eisner. Such comparison will be oriented by

the views on narratives presented by SOARES (2007), among others. The reading of the

iconographic language, in turn, will be oriented by precepts by CAGNIN (1975), MCCLOUD

(2008 and 1995) and EISNER (2005 and 1999). This study will analyze the relationship

between the narratives by comparing their elements (time, space, characters, viewpoint and

plot) and establishing differences and similarities.

Key-words: Cervantes. Comics. Don Quixote. Graphic Novel. Literature. Narrative. Novel.

Will Eisner.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 – O CAMINHO DO QUIXOTE ....................................................................... 24

FIGURA 02 – LÉGUAS TRILHADAS POR QUIXOTE E SANCHO ................................. 24

FIGURA 03 – CAMPO DE CRIPTANA 01 ......................................................................... 28

FIGURA 04 – CAMPO DE CRIPTANA 02 ......................................................................... 29

FIGURA 05 – TERRITÓRIO INEXPLORADO ................................................................... 55

FIGURA 06 – ESCRITAS PICTÓRICAS E REALIDADE .................................................. 56

FIGURA 07 – EXEMPLOS DE FIGURAS ESTEREOTÍPICAS.......................................... 57

FIGURA 08 – BALÕES DIVERSOS ..................................... Error! Bookmark not defined. FIGURA 09 – MEDIDA DE TEMPO ................................................................................... 58

FIGURA 10 – DISCIPLINAS ENVOLVIDAS ..................................................................... 58

FIGURA 11 – HISTÓRIA COMO “SEQUÊNCIA DE EVENTOS DELIBERADAMENTE ARRANJADOS” ................................................................. Error! Bookmark not defined.9

FIGURA 12 – ORIGENS COMUNS DESENHO/ESCRITA .. Error! Bookmark not defined. FIGURA 13 – IMAGENS E ESCRITA ................................................................................ 60

FIGURA 14 – SÍMBOLOS .................................................................................................. 60

FIGURA 15 – CARTUM ..................................................................................................... 61

FIGURA 16 – REPRESENTAÇÃO DO TEMPO ................................................................. 62

FIGURA 17 – MOVIMENTO .............................................................................................. 62

FIGURA 18 – SONS ............................................................................................................ 63

FIGURA 19 – NARRATIVAS EM UM QUADRO ............................................................... 63

FIGURA 20 – EVOLUÇÃO DAS LINGUAGENS VERBAL E NÃO-VERBAL ................. 66

FIGURA 21 – QUADRO 01 ................................................................................................ 69

FIGURA 22 – QUADRO 02 ................................................................................................ 70

FIGURA 23 – QUADRO 03 ................................................................................................ 72

FIGURA 24 – OLHO DO LEITOR ...................................................................................... 72

FIGURA 25 – QUADRO 04 ................................................................................................ 73

FIGURA 26 – QUADRO 05 ................................................................................................ 74

FIGURA 27 – QUADRO 06 ................................................................................................ 75

FIGURA 28 – METAQUADRINHO .................................................................................... 76

FIGURA 29 – QUADRO 07 ................................................................................................ 77

FIGURA 30 – QUADRO 08 ................................................................................................ 78

FIGURA 31 – QUADRO 09 ................................................................................................ 79

FIGURA 32 – QUADRO 10 ................................................................................................ 80

FIGURA 33 – QUADRO 11 ................................................................................................. 81

FIGURA 34 – QUADRO 12 ................................................................................................ 82

FIGURA 35 – QUADRO 13 ................................................................................................ 84

FIGURA 36 – COMPOSIÇÃO DO QUADRO 13 ................................................................ 85

FIGURA 37 – PÁGINA DE APRESENTAÇÃO................................................................... 88

FIGURA 38 – MOINHO DE ROJALES .............................................................................. 90

FIGURA 39 – JUSTIFICATIVA TRANSCEDENTAL 01 ..................................................... 97

FIGURA 40 – JUSTIFICATIVA TRANSCEDENTAL 02 ..................................................... 98

FIGURA 41 – ENVOLVIMENTO DE SANCHO .............................................................. 101

FIGURA 42 – QUIXOTE CONTRA O GIGANTE ............................................................ 103

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 8

2 DOM QUIXOTE DE LA MANCHA - CAPÍTULO VIII............................................... 13

2.1 TEMPO ...................................................................................................................... 18

2.2 ESPAÇO ..................................................................................................................... 20

2.3 PONTO DE VISTA .................................................................................................... 29

2.4 PERSONAGENS ....................................................................................................... 33

2.5 ENREDO ................................................................................................................... 40

3 DOM QUIXOTE DE LA MANCHA – ADAPTAÇÃO PARA GRAPHIC NOVEL DO CAPÍTULO VIII ................................................................................................................ 48

3.1 ANÁLISE QUADRO-A-QUADRO DA NARRATIVA............................................... 69

3.2 ELEMENTOS DA NARRATIVA DOS QUADRINHOS ............................................ 86

3.2.1 Tempo ............................................................................................................... 87 3.2.2 Espaço............................................................................................................... 88 3.2.3 Ponto de Vista ................................................................................................... 90 3.2.4 Personagens ...................................................................................................... 92 3.2.5 Enredo .............................................................................................................. 94

4 CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 100

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 105

ANEXO A – QUADRINHOS COLORIDOS .................................................................. 108

8

1 INTRODUÇÃO

Introduzir um trabalho científico não deixa de ser um exercício filosófico: como na

filosofia, devemos explicar de onde vem, o que está a fazer aqui e para onde ele vai. Espera-

se, no entanto, que as respostas a estas questões sejam menos vagas que as que a filosofia

consegue determinar. E outro tanto mais úteis ao leitor para fins de compreensão deste

trabalho.

A idéia, em si, veio do nada. Coerente com uma das maneiras de se escolher um objeto

de pesquisa, buscou-se, no âmbito do estudo de trabalhos relacionados à linguagem

iconográfica – devido a trabalho anteriormente realizado e preferências pessoais dos

realizadores – o que ainda não havia sido feito. Ao constatar a ausência de trabalhos que

comparassem uma narrativa iconográfica à correspondente escrita, escolheu-se, então,

preencher esse vácuo teórico. Esse nada.

Tendo sido, há anos, internalizados os conceitos representados pelas palavras em

inglês novel (romance) e graphic novel (romance gráfico), a tentação de buscar uma

comparação entre os objetos e achar o ponto comum entre o romance e o romance gráfico

seria difícil de resistir, especialmente se considerarmos que ambas as formas de narrativa

surgiram em contextos tão semelhantes, superando epopéias repetitivas e cheias de sonhos de

onipotência: o romance desperta com (segundo Lukács, como adiante se verá) Dom Quixote,

na Espanha, em 1605, onde, apesar de a novela estar se tornando popular, ainda é grande a

apreciação de épicos da cavalaria andante, com heróis incrivelmente fortes a realizar feitos

impossíveis contra feiticeiros, dragões e gigantes. A graphic novel vem bem mais tarde, no

século XX, usando o meio dos quadrinhos, que até a atualidade é usado principalmente para

narrar as epopéias modernas, com os super-heróis a viverem aventuras impossíveis, lutando

contra feiticeiros e supervilões e... também contra feiticeiros e dragões, de forma tão colorida

e inverossímil quanto seus ancestrais de armadura e espada.

Ora, a maioria dos trabalhos investigativos sobre os quadrinhos trata de sua linguagem

e de seus recursos narrativos, buscando enumerá-los ou analisando uma produção

quadrinística específica. Não há, até onde se sabe (ou, no caso, até o momento) trabalho que

compare uma narrativa escrita à sua transcrição para a linguagem dos quadrinhos. E é

9

estranho que assim seja, uma vez que adaptações de clássicos da literatura para quadrinhos

são comuns. E foi esse nicho que se decidiu preencher.

Sabendo o que se havia de fazer (comparar uma narrativa escrita à sua transposição

para a escrita iconográfica, ou seqüencial, ou quadrinhos), cumpria buscar a base teórica para

realizar essa comparação. Tendo já alguma experiência na análise da linguagem iconográfica,

como se disse, devido à realização de trabalho anterior1, já se sabia algo da ampla base teórica

sobre o assunto. Escolheu-se utilizar principalmente Cagnin, em seu clássico Os Quadrinhos2,

por apresentar um viés semiótico completo do processo de leitura de imagens e uma

compreensão da leitura da linguagem iconográfica baseada na teoria da Gestalt, e, portanto,

orientada pela percepção das imagens em sua relação entre si. A visão de Cagnin seria

complementada pelo estudo das teorias de Will Eisner, ele próprio um conhecido quadrinista,

e Scott McCloud, também quadrinista, mas conhecido principalmente por seus livros teóricos

sobre quadrinhos – que são, interessante ressaltar, escritos na linguagem dos quadrinhos, o

que não é apenas inusitado, mas problemático, se se considerar a forma a ser utilizada na

citação direta.

Eisner é conhecido por ser um dos pais do termo Graphic Novel, usado para designar

narrativas mais sutis e complexas de quadrinhos, em que “a aplicação da arte seqüencial, com

seu entrelaçamento de palavras e figuras, possa oferecer uma dimensão da comunicação que

contribua para o corpo da literatura preocupada em examinar a experiência humana”

(EISNER, 1999, p.138). Tendo influenciado gerações de quadrinistas, é um dos mais

conhecidos autores de quadrinhos do mundo, sendo que o maior prêmio internacional leva seu

nome. Neste trabalho, se analisará suas duas principais obras, Quadrinhos e Arte Seqüencial e

Narrativas Gráficas. McCloud é, como se viu, também quadrinista, e, de suas três

publicações sobre o assunto, se escolheu duas3 para a compreensão de sua visão da leitura e

recursos dos quadrinhos. Se falará mais desses livros e autores adiante no trabalho.

No entanto, sendo este trabalho sobre a análise de narrativas, é também necessário

estabelecer um método para a análise dessas narrativas. Após a comparação de conceitos de

Angélica Soares, Cândida Vilares Gancho e Donaldo Schüller, assim como conceitos relativos

à narrativa e aos romances de autores como Lukács e Todorov, resolveu-se pela análise da

1 VIDAL, Leonardo Poglia. O Humor na Leitura da Charge. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.115 p. Monografia. Faculdade de Comunicação Social – Jornalismo. 2 CAGNIN, Antônio Luís. Os Quadrinhos. São Paulo: Ed. Ática, 1975. 3 Desvendando os Quadrinhos (1995) e Desenhando Quadrinhos (2008).

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narrativa conforme proposta pela autora Angélica Soares, que decompõe a estrutura do texto

em tempo, espaço, ponto de vista, personagens e enredo. A comparação do tratamento dos

diversos fatores nas duas narrativas seria o objeto do estudo, que tem por problema entender

de que forma ambas as linguagens desenvolveriam a narrativa.

O próximo passo lógico seria escolher quais narrativas (ou partes de narrativas) seriam

analisadas. Afinal, todo estudo precisa de um objeto de análise. Esse passo lógico, no entanto,

quase não existiu: no que pode ser descrito (jocosamente) como um tropeção no

desenvolvimento do trabalho, se pulou essa parte devido à escolha óbvia que se impunha:

ambos os autores considerados “pais” dos gêneros estudados haviam trabalhado na mesma

obra. Miguel de Cervantes era o autor do Quixote (primeiro romance), que havia sido

adaptado por Eisner (um dos pais da graphic novel) em 20004. Além de contornar o problema

de buscar um objeto de análise, ainda se apresentava a fascinante possibilidade de julgar a

obra de Eisner através de sua própria teoria, uma vez que seu Quadrinhos e Arte Seqüencial é

um dos livros mais famosos sobre análise de quadrinhos já escritos.

Para fins de brevidade (e o leitor que segura o trabalho no momento pode se

surpreender com o uso do termo, mas – creia – este é apropriado), se resolveu analisar apenas

um pedaço pequeno da obra de Cervantes e seu correspondente na obra de Eisner. No entanto,

um problema impunha-se: a obra de Eisner não era propriamente uma adaptação, mas sim

uma introdução à leitura do Quixote, de 32 páginas, dirigida a crianças. Mais que isso, não

estava (obviamente) representado em sua totalidade o romance. O fato de a obra ser dirigida a

crianças não constituiria um problema: afinal, toda adaptação implica mudança. A brevidade

do texto iconográfico, porém, impunha limitações no tocante à escolha do texto: uma parte

comum a ambas as narrativas deveria ser adotada. O capítulo dos moinhos de vento, oitavo do

primeiro romance de Cervantes, foi a escolha óbvia que, mais uma vez, se impôs. Óbvia,

porque é talvez o capítulo mais conhecido do livro, de acordo com a autora Célia Navarro

Flores, em seu estudo sobre a iconografia do Quixote5, “alguns episódios, como o ataque às

ovelhas, o manteamento de Sancho e a aventura dos moinhos de vento, serão extremamente

recorrentes nessa iconografia” (FLORES, 2007, p.282).

4 EISNER, Will. The Last Knight. An introduction to Dom Quixote by Miguel de Cervantes by Will Eisner. New York: NBM Ed., 2000. 5 FLORES, Célia Navarro. Da Palavra ao Traço: Dom Quixote, Sancho Pança e Dulcinéia del Toboso. São Paulo: USP, 2007. 298 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

11

Isso dito, resta mencionar que, ao contrário da estrutura normal (ou mais comum) de

um trabalho científico, em que a revisão bibliográfica vem depois da introdução e depois se

passa puramente à análise, neste trabalho se resolveu pela apresentação da revisão

bibliográfica durante a análise dos textos. A razão para tanto é que há duas metodologias de

análise diversas que necessitam de menção no trabalho: a metodologia da análise das

narrativas e a metodologia e conceitos a serem usados na análise da narrativa iconográfica. E

a revisão bibliográfica de ambas ao mesmo tempo seria extensa e cansativa, especialmente se

posta na folha para uso posterior. Assim, a fim de manter a legibilidade do trabalho, escolheu-

se, após a introdução, passar diretamente à análise dos textos, realizando a revisão

bibliográfica à medida que esta se faz necessária: um capítulo para a análise do capítulo dos

moinhos de vento (capítulo VIII do Quixote) em seus aspectos narrativos e outro para a

análise dos quadros correspondentes a esse capítulo (Eisner não divide assim sua narrativa) da

narrativa de Eisner. No caso, primeiro se apresenta um resumo da narrativa, depois se expõe a

teoria e, finalmente, se analisa a narrativa. No caso de Eisner, entretanto, uma análise quadro-

a-quadro da narrativa se faz necessária também para a análise. Serão, portanto, duas análises

de sua obra: uma da linguagem iconográfica e outra da narrativa. Primeiro se coloca ambas as

narrativas em uma linguagem comum, para depois analisá-las.

Isso não é uma recomendação teórica, e sim uma necessidade sentida durante a

realização deste trabalho: como se disse, não se sabe de trabalhos análogos de comparação de

narrativas escritas com quadrinhos.

Depois de tudo, ainda restam alguns conceitos e escolhas (e razões para essas

escolhas) adotadas durante o trabalho a serem explicadas para seu melhor entendimento pelo

leitor: primeiro, para uma leitura apropriada, se usará durante a realização deste trabalho o

conceito de texto em seu sentido lado, conforme utilizado por Edson Carlos Romualdo6. Para

Romualdo, o texto designa

[...] toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura, etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. (ROMUALDO, 2000, p. 16 apud FÁVERO & KOCH 1988, p. 25).

6 ROMUALDO, Edson Carlos. Charge Jornalística: Intertextualidade e Polifonia. Maringá: ed. Eduem, 2000.

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Para fins de análise foram considerados uma versão do Dom Quixote no original em

Espanhol7 e o livro de Eisner no original, em Inglês8. A principal razão desta escolha foi a de

a palavra “dragão” ter sido utilizada no princípio da narrativa de Eisner para substituir os

gigantes que o Quixote veria em vez dos moinhos de vento. Ora, para mudança tão inusitada,

era necessário checar o original, para ter certeza de que tal não se dava devido a um erro de

tradução, fosse ele de Eisner ou do tradutor da versão utilizada por Eisner para a adaptação.

Por isso, foi também necessária a leitura do original em Espanhol – ter a certeza de que

Cervantes não havia usado um termo passível de erro de tradução. E, para fins de fidelidade,

resolveu se manter os textos nas linguagens originais, com traduções livres dos textos, tanto

em Inglês quanto no Espanhol. Para as traduções do Espanhol, entretanto, se baseou em uma

versão do texto já transcrito para o Português9, a fim de evitar enganos.

7 CERVANTES, Miguel de. El Inhenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Disponível em formato HTML no endereço <http://www.gutenberg.org/files/2000/2000-h/2000-h.htm>. Acesso em 02/09/2010. 8 EISNER, Will. The Last Knight. An introduction to Dom Quixote by Miguel de Cervantes by Will Eisner. New York: NBM Ed., 2000. 9 CERVANTES, Miguel de. D. Quixote de La Mancha. Clássicos Jackson, Volume VIII. Tradução de Antônio Feliciano de Castilho. Uma versão digitalizada desta obra (utilizada como base para as traduções, mas não a utilizada durante a realização do trabalho – por haver ao alcance das mãos uma versão em papel da mesma edição, coloca-se aqui o endereço eletrônico mais para disponibilizá-lo também ao leitor) encontra-se disponível em formato HTML no endereço: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/quixote1.html>, acesso em 28/10/2010.

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2 DOM QUIXOTE DE LA MANCHA – CAPÌTULO VIII

Temos, pois, a desventura em que Dom Quixote, confundindo um campo (em

Montiel) cheio de moinhos de vento com um exército de gigantes, arremete contra o mais

próximo, e, enfiando sua lança em uma das pás do moinho e prendendo-a na vela, é arrojado

ao chão junto de seu cavalo, “rodando miseravelmente pelo campo afora”, a lança feita em

pedaços.

Acudido por seu escudeiro, que faz-lhe notar serem moinhos de vento, e não gigantes,

os inimigos contra quem lutara, Dom Quixote chega à conclusão de que o episódio foi obra

do sábio Frestão, que, para roubar-lhe a glória do combate vencido, transformou os gigantes

em moinhos. Tal sábio seria o mesmo que roubou ao fidalgo os livros e o aposento onde

estavam. O leitor, no entanto, sabe que os livros haviam sido queimados pela ama de Dom

Quixote, com a aquiescência de sua sobrinha e de seus amigos (o padre cura e o barbeiro –

depois de hilariante sessão de crítica literária onde condenavam, um a um, os títulos ao fogo

ou reservavam-nos a salvação), como recurso para a recuperação da sanidade do fidalgo. O

emparedamento do quarto também tencionava servir ao mesmo fim. A medida, porém, teve

pouco sucesso, talvez pelo fato de, quando o fidalgo perguntou pelos livros e o aposento, os

dedos terem sido apontados para um diabo ou feiticeiro que o próprio fidalgo decidiu ser

Frestão, continuando em sua mania.

Após a desventura, que deixou Dom Quixote torto no cavalo, retomam o caminho para

Porto Lápice, onde o fidalgo espera encontrar várias aventuras. Vão conversando sobre suas

dores (e como cavaleiros fazem por bem não queixar-se) e a intenção de Dom Quixote de

reparar sua lança. Sancho salienta que, caso se veja incomodado por dores, não deixará de se

queixar, o que diverte Dom Quixote. Ao pararem para descansar pela noite, o fidalgo troca o

cabo de sua lança quebrada, jejua e passa a noite em claro, de acordo com as aventuras de

seus heróis cavaleiros, enquanto Sancho se empanturra e dorme profusamente.

No dia seguinte, retomam sua jornada sem que o fidalgo quebre seu jejum. Quixote

avisa Sancho que não intervenha em seus embates, por mais perigosos que possam lhe

parecer. Sancho afirma que não tem essa intenção, desde que se possa defender. Nisso notam

a passagem de um coche que vem precedido de dois monges em mulas enormes (Cervantes as

compara com dromedários) e cercado por quatro ou cinco cavaleiros e mais dois “moços de

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mulas”, levando pelo freio mulas carregadas com pertences e provisões. No coche vinha uma

senhora biscainha10 a caminho de Sevilha.

Dom Quixote imediatamente toma os monges por feiticeiros a raptarem uma princesa,

idéia que Sancho imediatamente contradiz, sem ser ouvido por Dom Quixote, que replica que

Sancho, por ser novo em escuderia, sabe pouco das aventuras de cavaleiros. Desfia, então, um

dos monges e, sem acreditar na réplica do frade, arremeteu contra ele o cavalo, dando com o

religioso ao chão. Ao ver isso, o outro frade foge. Ao ver o frade caído, Sancho Pança

imediatamente corre até ele e começa a despir-lhe. Ao ser confrontado por dois moços sobre o

que acontecia, Sancho explica-lhes que, como escudeiro do cavaleiro vencedor do embate,

cabem-lhe por direito os despojos da batalha – e isso incluiria a roupa do frade. Não sendo

versados nas leis da cavalaria andante, os moços dão uma tareia em Sancho e o deixam

estendido no chão. O monge atacado se recupera e foge.

Enquanto isso, Dom Quixote falava com a Biscainha que recém “salvara”, revelando-

lhe sua identidade e seu propósito e exigindo que a donzela resgatada, como paga pela

bravura de seu salvador, fosse até Toboso e narrasse sua aventura para sua amada Dulcinéia.

Um dos escudeiros do coche, também biscainho, vendo que Dom Quixote não deixaria o

coche seguir viagem, agarra a lança e ameaça-o. Dom Quixote, instado ao combate, joga a

lança ao chão e arremete contra o biscainho, de espada em riste.

O biscainho, que estava montado em uma mula alugada, puxou sua espada, agarrou

uma das almofadas do coche à guisa de escudo e arremeteu, também, contra o cavaleiro. Nos

primeiros lances da contenda, o biscainho atinge Dom Quixote com certa gravidade, fazendo

com que o cavaleiro evocasse o nome de sua amada Dulcinéia, para que lhe desse forças no

combate. Dito isso, armou-se de vontade e arremeteu novamente contra o biscainho, disposto

a arriscar tudo em um último golpe. O biscainho, por sua vez, adivinhando o intuito do

cavaleiro, resolveu fazer o mesmo, esperando o fidalgo de almofada em punho.

Todos à volta seguram suas respirações, sentindo que aquele momento era o definitivo

da batalha. E, precisamente neste ponto, o autor se desculpa, comentando que o autor11

10 Biscainho, de acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa (v. 1.0.5), significa “indivíduo natural ou habitante de Biscaia, região e província espanhola, no País Basco; biscaio”. 11 Cervantes aparenta, através do narratério intradiegético e desde o prólogo do primeiro livro, estar relutante em assumir a autoria da história. Primeiro declara-se não o pai, mas sim o padrasto do conto de Dom Quixote. A seguir confessa-se preguiçoso demais para citar os autores recolhidos na composição do livro e outros famosos, que comumente aparecem em outras obras. Finalmente, ao apresentar o protagonista, não quer lembrar nem o local exato de onde saiu Dom Quixote e limita-se a citar suas fontes por “quieren decír que tenía el sobrenombre

15

encerrou a crônica que narrava de segunda mão, sem dar mais notícias do desfecho de

tamanha batalha. No entanto, o acaso acaba por suprir o autor de mais fatos a respeito do

épico combate, permitindo ao autor contar o desfecho da aventura, a ser narrado no capítulo

seguinte.

Seria, não será. Aqui se deixa Dom Quixote, em meio à sua luta contra o biscainho.

Depois virá a eventual vitória, suas dores e o futuro encontro com os cabreiros e os sucessos e

padecimentos entre os pastores. É interessante que este trabalho possa ter consonado com a

rotina de Cervantes, criando uma expectativa em relação ao golpe final apenas para

interromper a ação e deixar o desfecho para um outro capítulo. Porém, dissonante, este estudo

não retomará as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, limitando-se a um capítulo da obra.

É consoante com a modernidade que a ciência se vá especializando cada vez mais,

detalhando seus objetos de estudo e aprofundando o conhecimento sobre parcelas cada vez

menores de seu objeto: o óbvio já foi explorado, e é preciso olhar mais detidamente o objeto

para perceber nele qualquer coisa de novo. Comentando o fenômeno, George Bernard Shaw

definiu “especialista” como um “homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por

fim acaba sabendo tudo sobre nada”. Deve-se, portanto, quebrar o objeto em partes para

analisar sua constituição, e é de admirar que a medicina ou psicologia ainda não tenham

desenvolvido uma proposta de tratamento que envolva desmembrar o paciente para melhor

diagnosticar sua doença. Porém, no caso em questão, a escolha é necessária, dada a

necessidade de limitar o objeto de análise a um tamanho manejável. Era isso ou postergar a

análise por algumas décadas, até que se analisasse, detidamente, o romance inteiro.

Daqui se passa, portanto, à análise das partes constituintes das narrativas em geral e do

romance em específico, conforme enumeradas por Angélica Soares, que sustenta que

ora perfeitamente delineados e identificáveis, ora desestruturados. e camuflados,

o enredo, as personagens, o espaço, o tempo, o ponto de vista da narrativa

de Quixada, o Quesada”(cap. I). Assim, não é responsável pela história, afinal, tem-na de segunda mão. Ao início da segunda parte do livro, onde, finalmente, narra o desfecho do combate contra o biscainho, explica que o faz por intermédio da sorte: ele completa a história de Dom Quixote após comprar, quase por acaso, um manuscrito do historiador árabe Cide Hamete Benengeli de um rapaz que vendia manuscritos na rua, por meio real. Após mandar traduzi-los, retoma suas pesquisas. A malandragem estilística tem a vantagem de liberar o escritor em seu processo criativo: pode, pois, dedicar-se à criação com o melhor de sua capacidade e, se houver algo inacurado, bem... a culpa é do Hamete. Curiosamente, a segunda parte do romance nasceu afirmativa, com uma nota em que defende-se dos comentários cáusticos de Alonso Fernández de Avellaneda, suposto autor de uma falsa continuação do Quixote, publicada em 1614, e cujo verdadeiro nome continua razão de debates entre os entendidos.

16

constituem os elementos estruturadores do romance. (SOARES, Angélica,

2007, p.43)

A proposta de Angélica Soares não foi a única analisada como possível amparo da

análise, mas foi a escolhida por parecer a mais completa para os objetivos deste trabalho, e

também dadas as semelhanças com outros textos cujo objetivo é o de propor uma leitura

crítica de narrativas. Um desses textos é A Teoria do Romance, de Donaldo Schüller12.

Diferente de Soares, Schüller divide seu livro (em que busca sintetizar uma teoria para a

leitura do romance) em onze partes. Sendo a primeira um comentário sobre a morte do

romance (que ele descarta como uma certeza: só pode morrer o gênero que está vivo, e, a

rigor, todo gênero está em ruína13), a nona um comentário sobre romance e Modernidade (em

que discorda de Lukács, argumentando haver heróis romanescos ambíguos anteriores ao

Quixote, e chega à conclusão de que o romance é o “gênero da Modernidade” – p. 80), a

décima um vocabulário crítico e a última uma bibliografia comentada, só se vai considerar os

capítulos 02-08 como sendo atributos do romance segundo o viés do autor.

Schüller começa pela delimitação do tecido verbal, que divide entre transparência e

opacidade (que associa à fluidez do texto), o romance como poesia (recordando o leitor que a

poética se encontra também em prosa), ritmo (a narração da ação do texto) e a escrita

(recursos narrativos do texto).

A seguir, o autor trata da intertextualidade, salientando que um texto remete a outro,

diferenciando o texto seqüestrado (que seria o texto contido, restrito por meadas gramaticais

ou pelo uso ou costumes) do texto liberto (o texto inventivo e versátil).

O Narrador é o tema do quarto capítulo do livro. Os comentários do autor abrangem a

voz, perspectiva (o “ângulo” pelo qual o autor observa, de que maneira distancia-se e

aproxima-se, na narração), o narrador como leitor (“o narrador dirige-se ao leitor, e o primeiro

leitor é o próprio narrador” – p. 36) e o trabalho do narrador (separação entre autor e

narrador), sendo que a seção sobre a voz se divide em voz e perspectiva, voz do alto, gênios,

eu narrador, romance de memórias, epistolografia romanesca, monólogo, narrador ausente e

vozes múltiplas. A classificação da voz diz respeito ao uso da voz pelo narrador, e para que

fim essa voz é empregada.

12 SCHÜLLER, Donaldo. A Teoria do Romance. São Paulo: Ed. Ática, 1989. 13 SCHÜLLER, 1989, p. 9.

17

Em O Personagem, capítulo seguinte, Schüller fala de actantes e actores (sic), busca

uma classificação para os personagens (em seis categorias distintas, proposta por Greimas,

1971) e detém-se a falar sobre a ruína actancial, categorias gerais (do romance, não de

actantes), telurismo e antitelurismo, estrangeiros e nativos, desarraigados militantes e

textualidade. Não se irá deter em cada um desses conceitos porque, apesar de terem

semelhança com conceitos usados por Soares, não serão os adotados nesta análise.

Nos capítulos seguintes o autor trata de Tempo (o da narrativa, o da leitura e o da

narração) e Espaço (o autor dá exemplos de espaços gerais, a saber: verticalidade e

horizontalidade, leste e oeste, Europa-América, campo e cidade, norte e sul, microespaços,

espaço e ação, local e universal e espaço textual). A seguir, trata da Imaginação, a necessária

co-construção da diegese pelo autor e o leitor, e também fala da imaginação agrilhoada (na

Idade Média) e de verossimilhança, detendo-se a comentar brevemente Galvez, O Imperador

do Acre, de Mário Souza.

A razão para se ter estendido no comentário do livro de Schüller é a de fazer ver ao

leitor que há estruturas semelhantes e há estruturas coincidentes: Tempo, Espaço,

Personagens (que, na classificação proposta por Soares, incluem o Narrador, enquanto que

Schüller fala de Perspectiva enquanto Soares menciona Ponto de Vista. Não importa, a

semelhança permanece.) Talvez, portanto, o principal ponto de discordância entre os dois

autores (excetuando-se a aceitação da visão de Lukács sobre o Quixote) seja o da menção da

intertextualidade por Schüller (que Angélica Soares não faz na parte dedicada ao romance.

Porém, como seu trabalho busca um alcance mais amplo que o romance, acaba por dedicar

um capítulo inteiro denominado “Dialogismo ou Intertextualidade” à característica (SOARES,

2007, p.72).

Cândida Vilares Gancho, em seu livro Como Analisar Narrativas, divide os elementos

da narrativa em Enredo, Personagens, Tempo, Espaço, Ambiente e Narrador14. Já no início do

capítulo a autora revela:

Toda narrativa se estrutura sobre cinco elementos, sem os quais ela não existe. Sem

os fatos não há história, e quem vive os fatos são as personagens, num determinado

tempo e lugar. Mas, para ser prosa de ficção, é necessária a presença do narrador,

pois é ele fundamentalmente quem caracteriza a narrativa. (GANCHO, 2004, p.11)

14 Na segunda parte de seu livro: GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. São Paulo: Ed. Ática, 2004. 8ª Edição.

18

Há diferenças sensíveis em relação à análise proposta por Soares, como se nota pela

inclusão de Ambiente, na presença da categoria Narrador, analogamente a Schüller. Mas é

como a letra do Samba de Uma Nota Só: outras nomenclaturas entram, mas a análise é

realizada da mesma forma. “Outras notas vão entrar, mas a base é uma só”... ou seja: o tom é

o mesmo.

Como neste trabalho não se busca uma classificação definitiva das partes constitutivas

do romance ou narrativa, e sim uma leitura efetiva, ater-se-á aos conceitos apresentados por

Soares (lembrando que a análise proposta dos elementos constituintes foi proposta

especificamente para o romance, o que, acredita-se, vem ao encontro do uso proposto para

este trabalho) acreditando-se que, dado o amparo de autores diferentes com leituras

semelhantes, se anda sobre terreno sólido.

2.1 TEMPO

De acordo com Angélica Soares:

Toda narrativa desenrola-se dentro do fluxo do tempo, tanto no plano da diegese,

quanto no do discurso (que conforma a diegese); pois este se organiza como

sucessão de palavras e frases, que podem apresentar os fatos cronologicamente ou

não. (SOARES, Angélica, 2007, p. 49-50).

O romance é narrado na ordem cronológica, mencionando por vezes a hora

aproximada. Da leitura do capítulo anterior (VII), pode-se apreender que Dom Quixote e

Sancho Pança saíram à noite, à surdina, sem avisar ninguém. Caminham toda a noite até

chegarem em campos de Montiel com o sol da manhã em seus rostos, conforme o trecho a

seguir indica:

fue por el campo de Montiel, por el cual caminaba con menos pesadumbre que la

vez pasada, porque, por ser la hora de la mañana y herirles a soslayo los rayos del

sol, no les fatigaban. (CERVANTES, 1605, cap. VII)

19

A partir daí, Quixote e Sancho travam um diálogo de poucas linhas – que, mesmo que

respondessem um ao outro de forma comicamente espaçada não poderia se estender por mais

que alguns minutos – quando dão com a paisagem peculiar dos campos de Montiel, cheia de

moinhos de vento. É o começo do capítulo analisado e pode-se assumir, portanto, que seja de

manhã.

Dom Quixote em seguida arremete contra o primeiro dos moinhos de vento, cai do

cavalo, quebra sua lança e monte novamente, cavalgando torto, como Sancho não deixa de

observar. E seguem caminho, comentando a aventura recém vivida. Neste ponto tomam o

caminho para Porto Lápice, e Quixote, aborrecido pela perda da lança, recusa-se a comer,

enquanto Sancho come e bebe sobre o burro. Chegada a noite, comem e dormem (ao menos

Sancho come e dorme... Quixote se abstém de comer e mantém vigília) e retomam o caminho

pela manhã. A próxima referência temporal é sua chegada a Porto Lápice “às três do dia”15,

ou seja, aproximadamente às três da tarde.

Tal cálculo é amparado pela continuação do romance, onde, no capítulo X, após a luta

com o biscainho, Dom Quixote e Sancho Pança cavalgam até um arvoredo, onde, tratados os

cortes de Quixote (em especial um corte na orelha que lhe fez o biscainho), comem uma

refeição às pressas, temerosos de que a noite os surpreenda antes que achem lugar para passar

a noite. O tempo diegético do capítulo, então, iria da manhã de um dia até o meio da tarde de

outro, cerca de um dia e meio de andanças para os personagens, em busca de sítio mais

populoso, onde encontrassem mais aventuras. Entre ser jogado ao chão por uma pá de moinho

com cavalo e armadura, assaltar um monge e quase ter a orelha arrancada por um golpe de

espada, não pode o fidalgo, acredita-se, reclamar de monotonia. Fossem as aventuras um

pouco mais movimentadas e ficaria o fidalgo em tal estado que nem o famoso bálsamo de

Ferrabrás16 nem toda a credulidade de Sancho convertida em ungüentos o poderiam colocar

de pé.

Há um paralelismo no tempo diegético: a ação do ataque de Sancho ao frade para

tomar-lhe os pertences (e a sova subseqüente) acontece enquanto Dom Quixote fala com a

biscainha, instando-a a ir a Toboso, prostar-se aos pés de Dulcinéia.

15 “Tornaron a su comenzado camino del Puerto Lápice, y a obra de las tres del día le descubrieron.” (Cap. VIII) 16 Bálsamo cuja receita Dom Quixote diz ter de memória, capaz de curar um homem partido em dois, bastando para isso juntar as partes e dar ao ferido o bálsamo de beber. Sustenta, ainda, que com dois reales (moeda da época) se faz “canada e meia” (medida equivalente a quatro quartilhos, ou pouco mais de dois litros), o que impressiona Sancho e faz-lhe propor trocar o governo da ilha pela receita do bálsamo. Não seria má idéia. (Cap. X)

20

O tempo do discurso é marcado, obrigatoriamente, pelas ações dos personagens:

descrever o diálogo toma mais espaço do que as ações de Quixote durante a noite inteira, por

exemplo, uma vez que, tirando arrumar outro cabo para sua lança e manter vigília, o fidalgo

pouco mais fez. As passagens em que Sancho vai comendo atrás de Dom Quixote ou as

viagens entre as aventuras também são breves. Cervantes usa o recurso de escrever um

diálogo breve, travado entre Quixote e Sancho e sugerir que o resto do caminho se deu em

práticas semelhantes, ou outra expressão similar, deixando por conta da imaginação do leitor

suprir os espaços em branco. No entanto, os momentos cruciais merecem atenção especial.

Infelizmente o capítulo acaba antes de a totalidade da batalha contra o biscainho ser

narrada, mas pela parte constante no capítulo se pode notar o tempo da narrativa se

distendendo para narrar cada mínima ação dos combatentes, até que, num anticlímax

proposital, a expectativa do leitor seja seccionada pela “falta de fontes”, uma vez que o autor

desconhecido, precisamente no ponto crucial, tenha abandonou a história. Trata-se,

obviamente, de um artifício da narrativa para capturar o leitor, uma vez que Cervantes

imediatamente promete o final da aventura no capítulo que se segue.

Uma observação interessante quanto ao tempo diegético: embora seja detalhado em

relação à passagem do tempo e dificilmente se desvie do avanço cronológico, o recurso

narrativo de falar através de um narrador intradiegético, um historiador de Dom Quixote, faz

com que toda a história narrada pertença ao passado (e, portanto, deve-se presumir, anterior à

primeira edição do livro, em 1605), e seja produto da pesquisa do narrador, que pode ser

imperfeita.

2.2 ESPAÇO

As noções de tempo e espaço são interligadas, não têm existência separada. A analogia

mais óbvia seria definir um segundo como o tempo que o ponteiro do relógio leva para pular

de um marcador de segundo a outro. O que não deixa de ser uma noção divertida, se

completamente inútil: um segundo como um segundo passando no relógio. Hoje em dia,

devido à necessidade de precisão nas investigações da física quântica (que lida com eventos

infinitesimais), computação e astronáutica, determinou-se, por tratado internacional, que a

21

unidade de tempo – o segundo – é composto por 9,192,631,770 órbitas de um determinado

elétron em um átomo de césio 133. Tal medida é realizada em condições de resfriamento a

laser, e a margem de erro de um relógio hipotético, que funcionasse através deste princípio

seria menor que um segundo de desvio em um tempo estimado de 50 milhões de anos17. Por

preciso que seja, a noção de segundo ainda está relacionada ao espaço percorrido pelo elétron

em torno do átomo. Ou, em quantificações menos abstratas, o ano do calendário, tempo

necessário para o planeta dar uma volta em torno do sol.

Logo, tempo e espaço são noções afins, determinadas uma em função da outra, e não

podem ser razoavelmente separadas, de onde pode o leitor compreender o malabarismo

dialético que foi determinar o tempo da narrativa do capítulo sem grandes referências a

espaço. No entanto, sabe-se que os personagens andaram desde os campos de Montiel até

entrarem em Porto Lápice, onde o capítulo termina. São regiões do interior da Espanha, e

dizer isso é semelhante mencionar as costas do Brasil, sem especificar o ano: o leitor fica sem

saber se encontra gente sem roupa ou gente quase sem roupa, se essa gente estaria comendo

seus inimigos e homens brancos ou milho verde e camarão. O ambiente do capítulo necessita

de mais informações, e tal não se pode prover sem mencionar também o tempo.

Trata-se da Espanha, portanto, mas a Espanha, como se mencionou anteriormente, das

cercanias de 1605, quando houve a publicação do romance, provavelmente, pela lógica da

diegese, algum tempo antes, uma vez que o narrador intradiegético teve tempo para ler vários

autores que trataram de Dom Quixote e de escrever seu estudo, sem mencionar o tempo que

Cide Hamete levou para escrever seu estudo e o tempo que o texto levou até chegar a Toledo,

já em condições de ser chamado uma coleção de “cartapacios y papeles viejos”18, e

posteriormente traduzido (pois vinha em árabe). Mas qualquer especulação a respeito seria...

especulação, e sabe-se lá se um nigromante não mandou os papéis até Toledo por mágica.

Basta que se ressalte que o tempo diegético é a época em que o narrador escreve sobre fatos

passados alguns anos antes, não se sabe ao certo quantos. E que, com base em tal informação,

se pode ter uma idéia mais precisa do cenário dos acontecimentos do capítulo.

Cervantes escreve sobre sua época, sobre seu chão, e o faz com a mesma familiaridade

e simpleza com que hoje se indicaria o caminho até ali à esquina, o que, se por um lado

17 Informações encontradas no site da revista americana Scientific American, em artigo de Scott Diddams e Tom O’Brian, encontrado no endereço <http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=what-is-the-fastest-event>, acesso em 08/09/2010. 18 Alfarrábios e papéis velhos. (Cap. IX)

22

denuncia a familiaridade do autor com o cenário, por outro lado pode ser de pouca ajuda para

o leitor que, não familiarizado com as paragens da Espanha (e em especial a Espanha de

1600), tem de buscar mais referências para construir uma imagem mais precisa do ambiente

do capítulo. Neste ponto é digna de menção a qualidade hipertextual do romance, embora esta

seja indireta, provavelmente não-intencional.

Com os novos paradigmas trazidos pela ciência e as novas tecnologias de que tanto se

fala na mídia e no mundo acadêmico, cresceu a noção de hipertexto como sendo um texto que

dialoga com outros textos, às vezes através de hyperlinks mas não necessariamente19. Ora, tal

noção é parecida com o uso normal de uma enciclopédia, por exemplo, em que um verbete

remete a outro sem ser necessária uma ordem coerente. Outro exemplo, talvez mais afim ao

espírito deste trabalho (ao menos mais afim ao gênero) é o do trabalho de pesquisa científica,

em que o pesquisador deve buscar os conceitos que definem sua área de pesquisa, apoiando-se

em textos de outros autores. Porém, talvez o que a noção de hipertexto tenha trazido antes de

mais tudo seja a intencionalidade de tais ligações, uma vez que os textos têm dialogado entre

si desde que se inventou os textos. Ou, antes, o leitor, difícil saber o que veio primeiro. Uma

vez que a maneira que o Homem encontrou de pensar logicamente é fazendo associações,

talvez não seja mais que um caminho natural. No entanto, cumpre ressaltar que o autor,

mesmo não dando detalhes sobre o cenário da história, deu ao autor as ferramentas

necessárias para determiná-lo, caso se detenha em uma busca mais minuciosa. Verdade que,

na época de publicação do romance, tais ferramentas talvez fossem desnecessárias: quisesse o

leitor situar-se a respeito da paisagem e o espaço da narrativa compreendida no decorrer do

capítulo VIII do livro, entre os campos de Montiel e Porto Lápice, que fosse até lá dar uma

olhada e deixasse de especulações, ainda mais que, de acordo com a estimativa que

Caravaggio traça a respeito de Cervantes, “Nem ele nem os seus leitores perceberam,

certamente, o alcance da obra.” (CARAVAGGIO, 2005, p. 237) Claro, o autor menciona o

ponto tratando das inovações estilísticas, e a seguir argumenta que o sucesso e a enorme

difusão do livro logo legitimaram o esforço do autor. No entanto a teoria é instigante: talvez o

cenário não tenha sido detalhado com mais esmero justamente porque era atual na época da

publicação. Cervantes, por mais que se tenha esmerado na produção do livro, não tinha como

saber que sua obra estaria tão viva séculos depois. E talvez fosse de se agradecer que assim

19 Segundo Marcushi, hipertexto seria o texto que “(...) consiste numa rede de múltiplos segmentos textuais conectados, mas não necessariamente por ligações lineares.” MARCUSCHI, Luiz Antônio. O hipertexto como um novo espaço de escrita em sala de aula. Linguagem & Ensino, Vol. 4, No. 1, 2001 p.83. Documento no formato .PDF disponível no site <http://www.pucsp.br/~fontes/ln2sem2006/f_marcuschi.pdf>. Acesso em 21/09/2010.

23

fosse, porque, mesmo sem tais esperanças de glória, demonstra tanta hesitação no prefácio do

livro20, ao apresentá-lo ao “desocupado leitor” que, soubesse o alcance do que escrevia no

momento, jogava a pena de lado e ainda não teríamos ouvido palavra sobre o livro.

Especulações à parte, o livro dialoga com vários outros livros, desde então e desde

antes: há as novelas de cavalaria que por vezes são referidas, há críticas à produção literária

da época e anterior (espetacularmente exemplificada pela cena em que o Barbeiro e o Cura

condenam os livros à fogueira, enquanto que a produção da época aparece em várias novelas

que eram moda ao tempo e há até ponderações críticas do fidalgo sobre a produção lírica dos

tempos, sem que se precise mencionar a irônica crítica à versão apócrifa do segundo volume).

E o romance se mostrou tão influente que acabou por dialogar com vários outros textos,

escritos a propósito ou relacionados com o Quixote por motivos secundários. Ou, antes, pode-

se dizer que outros textos foram criados em diálogo com o Quixote desde sua publicação

original. Um desses textos, oportunamente, pode dar mais detalhes sobre o espaço da

narrativa, mesmo ao tempo diegético. Trata-se de uma edição posterior, datada de 1780,

publicada pela Academia Real Espanhola, em Madrid. Considerada uma das mais exuberantes

edições do romance, tem incluso um mapa21 das aventuras e desventuras do fidalgo que,

obviamente, inclui os encontros com os moinhos de vento e com o biscainho. No detalhe

abaixo, pode-se ver o caminho que o fidalgo teria trilhado no capítulo VIII, segundo a

estimativa dos criadores do mapa22.

20 “Muchas veces tomé la pluma para escribille, y muchas la dejé, por no saber lo que escribiría; y, estando una suspenso, con el papel delante, la pluma en la oreja, el codo en el bufete y la mano en la mejilla, pensando lo que diría” (CERVANTES, 1605, Prólogo) 21 Disponibilizado online como parte da coleção McCune, em sítio de formato HTML no endereço <http://www.mccunecollection.org/don_quixote.html>, acesso em 21/09/2010. 22 Não deixa de impressionar a diligência com que se buscou reconstruir a trajetória de um personagem ficcional pela Espanha real, o que só pode ser tomado como um testemunho da força da narrativa e do contrato com o leitor. De resto, sabe-se que o mapa não representa a Espanha real, mas sim aquela por que passou Dom Quixote. Sabe-se lá qual delas é mais autêntica.

24

Figura 1 - O Caminho do Quixote

A figura foi modificada para evidenciar o caminho trilhado no capítulo VIII do

romance, mas as léguas foram mantidas na proporção correta. Esse detalhe é importante para

se determinar a distância entre um ponto a outro do mapa. Assim, colocando lado a lado o

caminho e a proporção em léguas, tem-se:

Figura 2 - Léguas Trilhadas por Quixote e Sancho

Projetando-se o caminho junto à guia tem-se cerca de 3,6 léguas; como o caminho é

consideravelmente reto, pode-se extrapolar umas quatro léguas, talvez pouco mais. A bem da

25

simplicidade, e também porque o próprio mapa é um palpite educado, se tomará aqui como

quatro léguas o caminho trilhado. Como o mapa detalha que são “leguas de una hora de

camino, de las que entran veinte en un grado”, tem-se que trata-se de léguas marítimas23,

medindo 5.555,55m. Quatro léguas, nesse sistema, representariam 22.222,22m, pouco mais de

22Km. O que não é uma distância desprezível, considerando-se os viajantes: um fidalgo de

seus cinqüenta anos (o que não era pouco para a época) montando um rocim e trilhando parte

do caminho torto na sela, após ter sido judiado por uma pá de moinho, e seu companheiro,

que viajava “asnalmente” e lanchou montado.

Uma coisa é certa: não se deve negar o conhecimento estupendo de Cervantes sobre a

Espanha e, particularmente, a Mancha: um breve passar de olhos por sua biografia nos mostra

um aventureiro e um homem buscando seu lugar no mundo, jogado de um ponto a outro do

continente à procura de alguma estabilidade financeira. De acordo com o livro O Dito pelo

Não-Dito: Paradoxos de Dom Quixote, de Maria Augusta Vieira da Costa24, Cervantes viaja

constantemente, desde tenra idade: nascido em Alcalá, filho de um cirurgião que enfrentou

diversas dificuldades (e, conforme a prática da época, mudava-se constantemente com a

família), passa por Valladolid, Córdoba, Sevilha e Madrid. Provavelmente estudou com

Jesuítas, e freqüentou o Estudio de Villa, em Madrid. Aos 22 anos parte para Roma (talvez

fugido da lei, devido ao resultado de um duelo), passando então a usar o sobrenome Saavedra.

Em Roma trabalha como camareiro de um religioso. Mais de dez anos depois, torna à

Espanha servindo como arcabuzeiro junto do irmão Rodrigo, na companhia do capitão Diego

de Urbina. De lá, viaja para o Mediterrâneo, vindo a perder o movimento na mão esquerda por

um ferimento, na batalha de Lepanto, em 1571. Participa de várias batalhas até 1575,

passando por Navarino, Túnis e Goleta, e finalmente decide retornar à Espanha, buscando

achar emprego mais estável. Parte com o irmão em uma galera chamada Sol, mas não chega a

seu destino: capturado por corsários argelinos, é levado como cativo para Argel, onde passa

cinco anos. Após diversas peripécias, que incluem quatro tentativas de fuga e o pagamento do

resgate do irmão (seu resgate era mais alto), Cervantes finalmente consegue retornar à

Espanha em 1580, após 12 anos. Porém, ao contrário de Ulisses, que conclui sua odisséia

23 Na dúvida, bebe-se da fonte: segundo a definição de légua da Real Academia Espanhola, a mesma instituição a publicar o mapa, légua marítima é “la de 20 al grado, usada por los marinos, que equivale a 5555,55 m.”. Informação encontrada no sítio <http://buscon.rae.es/draeI/SrvltObtenerHtml?LEMA=legua&SUPIND=0&CAREXT=10000&NEDIC=> No, acesso em 21/09/2010. 24 São Paulo: Ed. da USP: Fapesp, 1998. Capítulo 1, parte 1, Andanças de Dom Miguel de Cervantes y Saavedra, p. 23-39.

26

retomando seu reino, Cervantes se encontra sem ocupação e sem papéis (os que tinha ficaram

com os argelinos). Em 1581 viaja para Portugal, onde é encarregado de uma breve missão

secreta a serviço de Felipe II, em Oran, no norte da África. Em 1582, dirige-se ao Consejo de

Indias, buscando emigrar para a América. Seu pedido é negado. No ano seguinte entra com

uma petição buscando uma colocação nas Índias, que também é negada. Entre 1582 e 1590

escreve diversas obras, algumas favoravelmente recebidas, mas não resolve suas dificuldades

financeiras. Passa por Madrid onde deixa uma filha e estabelece-se, casado com Catalina de

Palacios Y Salazar, em Esquivias. A árvore genealógica de Catalina tinha um ramo de

Quijadas, descritos como “gente rica e considerada de origem judia” (VIEIRA, 1998, p.32).

Entre eles um monge, de nome Alonso, que apreciava muito novelas de cavalaria... mas

divaga-se. Cervantes, escritor buscando projeção (e talvez algo mais), deixa constantemente

Esquivias. Em 1587 deixa Catalina e assume um estilo de vida errante que dura quinze anos.

Torna-se “comissário de abastos” (função que consistia basicamente em correr a Andaluzia

obrigando agricultores a vender seus produtos por preços baixos para equipar a Armada

Invencible, de Felipe II). Em 1588 a Armada Invencible foi vencida. No exercício da

profissão, Cervantes foi excomungado (embargou safras de propriedade eclesiástica) e preso

(acusado de vender trigo sem autorização) em 1592. Em 1594 passou a coletor de impostos, o

que, devido à quebra de um banco que o deixou sem poder prestar contas e à grande sorte que

até então tinha demonstrado, o levou novamente à prisão por três meses em 1597. É na prisão

que, estima-se, começou a escrever o Quixote, e sabe-se que até 1604, pouco antes da

publicação do primeiro volume, havia passado por Madri, Toledo e Esquivias.

E, se o relato até a escrita do Quixote parece um tanto lento, difícil e confuso pelo

emaranhado de datas e lugares, serve para ilustrar as viagens do escritor, que pulava de lado a

lado de quase todo o mundo conhecido como uma bola de pingue-pongue, procurando um

lugar em que pudesse assentar e desenvolver sua arte. Esse lugar, nota-se, calhou de ser atrás

das grades, o que talvez fosse mais uma questão física do que uma coincidência: afinal, a

prisão era um dos poucos lugares capazes de impedir o fidalgo Miguel de Cervantes Saavedra

de andar de ponto a ponto e sentá-lo em um canto onde pudesse realizar toda essa experiência

de mundo em sua arte.

Pode-se, portanto, perceber na obra o profundo conhecimento de Cervantes da

Espanha. E, se o autor não se detém em detalhes a respeito da paisagem de cada ponto

visitado, tal se dá devido às particularidades da narrativa de que adiante se tratará, mas que

27

podem ser resumidas em uma frase simples, mencionada de relance apenas para não deixar

quicando o leitor, sem saber de que se trata: tivesse o autor se detido em descrever minúcias

de paisagens, não teria o cavaleiro vivido nem a metade das aventuras que viveu – a narrativa

de Cervantes é dinâmica e vai de ação a ação, de aventura a aventura, sem se deter em

detalhes.

Se Cervantes se furta a descrever a paisagem do trecho, deixa saber de que trecho se

trata. Em seu livro El Espacio Geográfico Del Quijote en Castilla – La Mancha, os

organizadores Félix Pillet e Julio Plaza recolhem as impressões de viajantes que passaram

pela região, incluindo Jacacci que, em 1897, refez o caminho do Quixote, descrevendo suas

experiências25. Embora nesses relatos haja referências ao rosa das flores de açafrão nos

campos, a impressão predominante é a de esterilidade e do calor opressivo da alcunhada “la

Mancha, patria de Don Quijote, la provincia más desolada y estéril de España” (PILLET &

PLAZA, 2006, p. 43). Os relatos descrevem a Mancha de campos planos, pedregosos e

poeirentos. Quase um deserto, cortado por campos cultivados e por vinhas que, consta, eram

famosas na região. Embora Cervantes mencione o ocasional bosque onde os personagens

descansam, não se dá muito trabalho descrevendo a vegetação. O que parece estranho se se

lembra que, para alguns, o romance é tido como uma “verdadera geografía de España en

tiempos de Cervantes” (MASSIP, 1948, apud PILLET & PLAZA, 2006, p.39). Talvez, no

entanto, não haja estranheza na atitude de Cervantes para com a paisagem da Mancha: talvez

o autor tenha sido econômico em suas descrições precisamente porque pouco havia que

descrever da paisagem.

O que se nota é o que sobressai, o que destoa da paisagem monótona: os moinhos de

vento, uma estrada, um bosque – ou arvoredo. Tendo isso em mente, pode-se imaginar sob

um novo ângulo as razões para os viajantes buscarem bosques para só então tratarem seus

ferimentos (caso do capítulo X, já mencionado): o sol inclemente da Mancha tornaria a

eventual parada desconfortável sem uma sombra que abrigasse os viajantes. A idéia da aridez

e do solo rochoso também ajuda a compreender a presença das ovelhas e cabras e também de

mulas e burros, como o ilustre Ruço: tais montarias são mais apropriadas que cavalos para

terrenos pedregosos e/ou acidentados. E eis que, quase por acidente, no processo de buscar

um entendimento maior, um olhar mais aprofundado se torna um olhar educado, com uma

visão diferenciada do objeto.

25 Cuenca: Ediciones dela Universidad de Castilla – La Mancha, 2006. P. 39-44.

28

A rota do Quixote se tornou roteiro turístico na Espanha da atualidade. Isso e a

onipresença de mídias pela Internet, dados os avanços no compartilhamento de arquivos,

tornaram possível encontrar imagens talvez análogas àquelas por que o fidalgo teria passado,

séculos atrás – não fosse ele um personagem. Algo se perdeu no tempo, claro. Algo sempre se

perde. Mesmo assim pode haver referências importantes para uma posterior comparação com

a adaptação gráfica do romance. Abaixo, para dar ao leitor uma idéia da paisagem geral da

região e dos moinhos de Montiel (retirados de sites turísticos), incluiu-se duas imagens do

local26.

Dos 32 moinhos que Quixote teria confundido com gigantes restam 10 em pé, três

com os mecanismos originais e sete convertidos em museus e na oficina de turismo. Note-se o

campo seco e árido, quase no mesmo tom do solo27.

Figura 3 - Campo de Criptana 01

26 As cores foram subtraídas das imagens por razões puramente financeiras. Mas buscou-se preservar o contraste para uma melhor visualização. 27 As informações foram retiradas do site oficial de Campos de Criptana, antigos Campos de Montiel. Acesso no sítio <http://www.campodecriptana.info/info/turismo/> em 22/09/2010.

29

Figura 4 - Campo de Criptana 0228

2.3 PONTO DE VISTA

“A distinção entre discurso e história”, observa Todorov, “permite assentar melhor

outro problema da teoria literária, o das ‘visões’ ou ‘pontos de vista’.” (TODOROV, 2006,

p.61) O autor parte da separação entre a trama (discurso) e a fábula (história), destacada pelos

formalistas russos para introduzir a discussão sobre o ponto de vista da narrativa. Todorov é

radical ao dizer que a narrativa só admite a terceira pessoa: que, mesmo quando a narração se

dá através do narrador em primeira pessoa:

“O que diz eu no romance não é o eu do discurso, por outras palavras, o sujeito da

enunciação; é apenas uma personagem e o estatuto de suas palavras (o estilo direto)

lhe dá o máximo de objetividade, ao invés de aproximá-la do verdadeiro sujeito da

enunciação.” (TODOROV, 2006, p.61)

28 Fotos tiradas do site <http://www.turismocastillalamancha.com> a 22/09/2010.

30

Ressalta, assim, a diferença entre o autor e o narrador, em que o segundo é apenas um

meio pelo qual o primeiro se expressa. Partindo dessa base, pode-se pensar em um maior

detalhamento dos possíveis pontos de vista de uma narrativa. Em seu Gêneros Literários,

Angélica Soares dita que:

Por ponto de vista, foco narrativo ou focalização, entendemos a relação entre o

narrador e o universo diegético e ainda entre o narrador e o narrador. (SOARES,

2007, p. 52)

A seguir, demarca o ponto de vista (a autora claramente prefere a denominação

“focalização”) do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, através de classificações

propostas por dois outros autores, Jean Pouillon (que divide o ponto de vista em três

categorias; “por trás”, com o narrador onisciente, “com”, na qual o narrador assume o ponto

de vista e/ou a identidade de uma das personagens, e “de fora”, quando o narrador narra o

que se vê, não entrando nos pensamentos dos personagens29) e Vítor Manuel de Aguiar e

Silva, que propõe classificação mais completa, opondo conceitos de focalização

heterodiegética (narrador externo à diegese) e homodiegética (narrador como o protagonista –

caso em que recebe a denominação autodiegética – ou como uma testemunha), interna

(narrador ciente da interioridade dos personagens) e externa (narrador conta apenas o que

aparece), onisciente e restritiva (narrador se atém aos conhecimentos de determinados

personagens) e, finalmente, interventiva (o narrador intervém com comentários) e neutral

(sem a intervenção do narrador – praticamente impossível). A autora conclui comentando que

“são fatores de eficácia ideológica da obra os tipos escolhidos de focalização.” (SOARES,

2007, p. 54)

Pelos conceitos apresentados, a narrativa do Quixote teria um narrador que se

posiciona “de fora”, narrando acontecimentos e diálogos sem entrar na cabeça dos

personagens. Seria também um narrador homodiegético (aparece na narrativa como uma

testemunha ou um estudioso do caso), externo (não entra nos pensamentos dos personagens),

restritivo (não entra nos pensamentos dos personagens) e interventivo (intervém com

comentários).

Já Maria Cristina Xavier de Oliveira trata o tema com maior simplicidade,

argumentando que 29 A classificação proposta por Pollion (apud Soares) é a que Todorov assume como lógica em seu livro As Estruturas Narrativas. (TODOROV, 2006, p. 62)

31

Há uma grande variedade de focos narrativos, mas as duas posições básicas são: o

foco daquele que está do lado de fora dos episódios narrados (3ª pessoa) e o de quem

se coloca do lado de dentro dos fatos narrados (1ª pessoa). (OLIVEIRA, 2008, p.39)

A autora ressalta que, partindo dessas duas posições básicas, o foco pode assumir

diversas outras particularidades e ser apresentado de diversas formas e ressalta que diferentes

efeitos decorrem dessas escolhas. Nessa classificação, o Quixote seria narrado em uma das

particularidades sugeridas pela autora, pois a história do Cavaleiro da Triste Figura em si é

narrada na terceira pessoa, enquanto que há raros rasgos em que o narrador aparece na

história. No caso do capítulo em questão, o narrador perde o fio da meada e acaba prometendo

o final para a outra parte do romance, que vem logo em seguida. O narrador, no capítulo fala

de si mesmo na terceira pessoa, mas começa o capítulo seguinte na primeira pessoa. Ou seja:

sabe-se lá em que pessoa está a história. Arriscando o chiste, pode-se dizer que o ponto de

vista da narrativa depende do ponto de vista do leitor, uma vez que é passível de mais de uma

interpretação.

No entanto, é em boa hora que se traz o conteúdo do capítulo para o corpo do trabalho,

uma vez que, a enumerar as diversas classificações possíveis e simplesmente classificar o

texto sem maiores comentários, poder-se-ia enfileirar indefinidamente classificações sem que

isso fosse de grande utilidade para a compreensão do texto. Parece ser de maior utilidade o

esforço de destrinchar a maneira com que o narrador se relaciona com o texto, sem buscar a

associação com alguma teoria do que o de encaixá-lo em teoria e não dizer a que esta vem.

O caso é que o Quixote tem um narrador muito particular: não é onisciente – às vezes

a ponto de se desesperar por não ter encontrado o desfecho de uma empresa – mas sabe de

coisas que um mero pesquisador da história dos personagens, como alega ser, por certo

ignoraria. Prova disso é que transcreve grandes diálogos entre os personagens em tempos, e

mesmo discussões literárias e culturais. O cronista também relata diálogos que não chegaram

aos ouvidos do protagonista, como alguns diálogos entre o Cura e o Barbeiro e, por vezes,

mostra uma qualidade reservada aos deuses e aos santos: a ubiqüidade.

É o caso, por exemplo, do trecho em que descreve alternadamente o que acontece a

Sancho Pança no governo de sua ilha e a Dom Quixote, às voltas com Altisidora e doña

Rodriguez, a partir do capítulo XLV do segundo volume – e até o que viu e ouviu o

mensageiro enviado até Teresa Pança para contar do sucesso do marido, no capítulo L.

32

O narrador explica isso através da malandragem estilística de ser apenas um cronista,

como ele próprio se define na introdução do primeiro volume não um pai, mas um padrasto do

romance, recolhido de outras fontes não nomeadas a que se acresce mais tarde (no capítulo

IX) o historiador árabe Cide Hamete Benengeli. Assim tem a vantagem de não poder ser

contestado – se fala, é por boca alheia. No entanto, nem o historiador mais diligente poderia

reunir tamanhos diálogos. Maomé não teve esse luxo – e ele falava com Deus e tinha sempre

ao lado escribas, para o caso de começar a ditar as escrituras. Claro, o recurso é efetivo. Não

só isso, como também é uma das estratégias narrativas utilizadas pelo autor. O

posicionamento do narrador como cronista-testemunha (apesar de alegar que o faz através de

narrativas de terceiros, mesmo assim cumpre esse papel) tem também papel importante no uso

de um dos recursos inovadores do romance, que é o de dar voz aos personagens, detalhe

importantíssimo, como mais adiante se verá.

Mais: conforme anteriormente mencionado, Cervantes narra as aventuras de Dom

Quixote em terceira pessoa, falando de si mesmo ora na terceira pessoa30, ora referindo-se na

primeira pessoa do plural, colocando-se ao lado de Hamete e dos demais autores a

contribuírem para a história31, ora em primeira pessoa do singular como o autor32. Além disso,

o prólogo da obra, em que se revela hesitar e comenta, de passagem e sem maiores detalhes, o

local sórdido onde o romance começou a ganhar vida33 (lembrando que Cervantes começou a

escrever o Quixote, provavelmente, quando estava na prisão, em Sevilha, 1597), têm um

pronunciado caráter autobiográfico.

2.4 PERSONAGENS

O romance teria, no todo, uma infinidade de personagens, embora a história se centre

nas aventuras de Dom Quixote (Alonso Quixano após ser armado cavaleiro pelo dono da

30 “Pero está el daño de todo esto que en este punto y término deja pendiente el autor desta historia esta batalla, disculpándose que no halló más escrito destas hazañas de don Quijote de las que deja referidas.” (CERVANTES, 1605, cap. VIII) 31 “Dejamos en la primera parte desta historia al valeroso vizcaíno” (CERVANTES, 1605, cap. IX) 32 “Causóme esto mucha pesadumbre” (Idem.) 33 “Y así, ¿qué podrá engendrar el estéril y mal cultivado ingenio mío, sino la historia de un hijo seco, avellanado, antojadizo y lleno de pensamientos varios y nunca imaginados de otro alguno, bien como quien se engendró en una cárcel, donde toda incomodidad tiene su asiento y donde todo triste ruido hace su habitación?” (CERVANTES, 1605, Prólogo)

33

estalagem34) e Sancho Pança. Afinal, o cura e o barbeiro, o bacharel Sansão Carrasco, a

sobrinha de Quixano, a família de Sancho, entre outros tantos que tomam parte importante na

narrativa, não poderiam ser esquecidos. Fora esses mais óbvios, a enorme gama de

personagens secundários com que o fidalgo e seu fiel escudeiro travam conhecimento seria

suficiente para encher um livro à parte, ainda que apenas enumerados ou brevemente

descritos. Felizmente, este trabalho requer apenas a menção dos personagens constantes do

capítulo XIII. O que é um alívio, embora deixe uma amarga sensação de incompletude na

boca35.

Dom Quixote, como o título do romance sugere, é o protagonista, personagem que

inicia a ação do romance. Tudo é decorrência de sua atitude de virar um cavaleiro andante e

sair, a caráter, a correr mundo buscando aventuras e combates. Sancho Pança, seu fiel

escudeiro, é um homem de poucas luzes e grandes ambições, extremamente ingênuo (ou

simples) e que concorda em acompanhar Dom Quixote por uma parte no botim, ou seja, uma

parte dos despojos de batalha e um governo de alguma ilha que o amo eventualmente

conquistasse. Ambos se contradizem e se completam, como adiante se verá, e põe em marcha

os acontecimentos que virão a constituir o romance. O garboso Rocinante e o ruço Ruço

também são dignos de menção, uma vez que são presença constante no romance, têm sua voz

ativa por vezes e não se tem aqui a intenção de ofender Sancho Pança ao se omitir uma

menção ao seu grande companheiro, porém no capítulo em questão não fazem muito, à

exceção da parte em que Rocinante, arrastado pela pá do moinho, rola por terra, feito perigoso

para um cavalo normal e sadio e especialmente ameaçador para um rocinante.

Outro personagem a ser destacado é o narrador intradiegético36 Miguel de Cervantes,

que vem narrar a história do fidalgo após ter lido sobre este em autores que não revela. No

início do capítulo XIX do primeiro romance, logo após a ação e a interrupção descritas, revela

ter encontrado manuscritos, em árabe, com as partes que faltam na história, narradas pelo

34 Trivia: enquanto a primeira parte do romance, de 1605, saiu intitulada “El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha”, a segunda parte, de 1615, foi publicada com o título “Segunda Parte del Ingenioso Caballero Don Quijote de la Mancha”. Entende-se que tal se deu principalmente por conta do romance apócrifo “Segundo Tomo Del Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha”, de autoria de Alonso Fernández de Avellaneda (provável pseudônimo), publicado em 1614. Porém, seja essa a razão ou não, entende-se que, uma vez armado cavaleiro, Dom Quixote passa a ostentar o título, ainda que este não valha uma peúga furada. 35 Caso o leitor desconheça que sabor tem a incompletude, fica sabendo desde já: é amarga. Se não no sentido físico/fisiológico, ao menos para fins de dramaticidade. 36 De acordo com a teoria apresentada por Angélica Soares em seu livro Gêneros Literários (São Paulo: Ed. Atica, 7ª ed., 2007, p.46).

34

historiador Cid Hamete Benengeli, o que o capacita a continuar a história de onde parou e dar

ao leitor satisfação sobre o resultado da luta contra o biscainho.

Outros personagens do capítulo são, na ordem em que aparecem no capítulo, os dois

frades beneditinos em suas enormes mulas, quatro ou cinco homens a cavalo que seguiam

com o coche, dois moços de mulas a pé, a senhora biscainha, que vinha dentro, mais “dois

moços dos frades”37, que não são mencionados antes de aparecerem e não se sabe a que vêm,

mas é certo que protegem o frade do saque de Sancho Pança e lhe aplicam uma tareia, então

se pode supôr que vêm em boa hora.

Dentre os quatro ou cinco homens a cavalo, aparentemente, se encontrava o biscainho

que vem a travar o combate contra Dom Quixote, embora o cavalo em que andava se tenha

tornado uma mula no decorrer dos acontecimentos. Interessante abrir aqui um parêntesis para

salientar que as pequenas incongruências mencionadas acima não parecem em nada afetar a

leitura do capítulo, caindo como o natural desenrolar dos acontecimentos: os detalhes vêm à

medida que o leitor se aprofunda na cena, sem o prejuízo da leitura, e apenas um olhar mais

demorado permite identificar tais discrepâncias. Uma analogia possível seria a do zoom de

uma lente, quando o objeto focado é aproximado e os detalhes, a princípio difusos, se tornam

mais nítidos. Por essas e outras é admissível que os “moços dos frades” tenham aparecido

apenas depois que o embate entre o cavaleiro e o frade foi travado (ou seja: depois que o frade

foi atacado sem provocação por Dom Quixote) e que o cavalo do biscainho, sob um olhar

mais próximo, tenha-se revelado uma mula.

Sossegue o leitor que não se vai cair na falácia de se enumerar os trinta ou quarenta

moinhos de vento como personagens, à guisa de gigantes imaginários: por mais divertida que

a idéia possa soar, não há nenhuma ação sugerida dos tais moinhos que possa implicar em

personificação. Infelizmente estes devem permanecer como moinhos de vento, por mais que a

estética sugira sua apresentação como gigantes, nem que fosse para justificar o uso do

capítulo.

A ação dos personagens secundários é olhar com incredulidade a figura de Dom

Quixote, enquanto este realiza suas peripécias. O autor não lhes dá voz até que o biscainho

entra em cena, são apenas acessórios da ação. Mesmo os moços dos frades, que, vendo

Sancho Pança entretido em despir o hábito do frade caído, resolvem lhe aplicar um corretivo,

37 “Llegaron en esto dos mozos de los frailes” (CERVANTES, 1605, cap. XIII)

35

não têm voz diante da singular figura que Quixote deve apresentar, já entrado em anos,

vestindo uma brilhante armadura remendada com papelão e barras de ferro, um pedaço de pau

com uma ponta de lança, sobre um cavalo raquítico. Sancho Pança, por sua vez, tem como

uma de suas principais características ser comum, ordinário, e por isso mesmo é passível de

levar umas bofetadas por seu comportamento exótico.

Já o biscainho, que se levanta de sua condição de personagem estanque para assumir a

função de antagonista de Dom Quixote no capítulo, e o faz em uma mula até então insuspeita,

não age expressamente em defesa de sua dama, mas sim porque o cavaleiro está impedindo o

coche de seguir adiante, insistindo que as “donzelas resgatadas” vão apresentar testemunho de

sua façanha diante de seu imortal amor, Dulcinéia Del Toboso. Não é, pois movido por ato

galante ou corajoso, mas sim por ter-se-lhe esgotado a paciência com os desvarios do

insistente cavaleiro. Tais atitudes, mundanas, egoístas e mesmo lógicas, como adiante se verá,

servem para destacar ainda mais, por contraste, o comportamento excêntrico de Quixote, que

tem em Sancho seu principal contraponto.

Para melhor detalhar a ambos (Sancho e Quixote), entretanto, é necessário fazer uma

análise mais detalhada e não restrita apenas ao capítulo em questão, uma vez que os

personagens não são estanques e nem restritos a determinada seção ou capítulo, sendo

construído ao longo do texto.

No filme As Aventuras do Barão de Münchausen (1988)38 – filme dirigido por Terry

Gillian, com roteiro de Terry Gillian e Charles McKeown que busca reinventar as aventuras

do Barão, apresentando um personagem bem mais velho que relembra suas glórias e, em uma

cidade sitiada, tem de ir em busca de velhos aliados para ajudar os moradores, reunidos em

um teatro à mercê do exército inimigo –, há uma viagem à lua. Nada de novo, em matéria do

Barão de Münchausen; sabemos que, em suas aventuras clássicas, o personagem viajou à lua

duas vezes: a primeira subindo em um pé de feijão, para recuperar uma machadinha de prata,

e a segunda em um navio arrastado por um furacão. Nessa segunda aventura somos

apresentados aos lunáticos (sic), curiosos seres, altíssimos, que têm uma portinhola na boca

do estômago, voam em abutres multicéfalos gigantes, travam guerras com legumes e –

38 Informações encontradas no site do IMBD (Internet Movie Database), no endereço <http://www.imdb.com/title/tt0096764/>, acesso em 01/09/2010.

36

pormenor interessante – têm a cabeça destacável, podendo deixá-la em casa ao ir para o

trabalho ou andar com ela embaixo do braço, a seu bel-prazer39.

No universo de Gillian e McKeown, no entanto, essa peculiaridade dos lunáticos traz

uma cor diferente à história, pois, na seqüência das aventuras do barão, a cabeça é dedicada

aos pensamentos sublimes, à lírica e à poesia, enquanto o corpo é presa das necessidades e

dos desejos. A cabeça busca destacar-se do corpo, fugir ao contato, enquanto o corpo busca a

cabeça para poder desfrutar dos prazeres terrenos. A hilariante seqüência, em que a cabeça da

rainha da lua foge para estar com o barão enquanto seu corpo está na cama com o rei da lua,

amplia o tratamento dos personagens, denotando a oposição entre o sublime e o sensual, o

mundo abstrato das idéias e o cotidiano, mundano, do corpo e das necessidades. Alegoria

semelhante pode ser encontrada no Quixote de Cervantes.

O fidalgo que, armado cavaleiro pelo dono da estalagem, se entrega aos altos ideais da

cavalaria andante não se limita a buscar aventuras em que possa exercer o desgastado

heroísmo fanfarrão, mas busca assumir o código como modo de vida, direcionando-se ao

sublime e deixando o terreno. Seu amor por Dulcinéia é casto: jamais se materializa

(Dulcinéia – aliás, Aldonça Lourenço – sequer desconfia de suas intenções40). Mas por esse

amor é capaz de relegar todo o prazer carnal. É assediado por donzelas e se recusa ao pecado,

preservando, assim, o ideal do amor. Verdade que sua renúncia é posta em maneira de

comicidade, verdade que suas reclamações sobre o assédio interminável de donzelas, mal se

põe a serviço de Dulcinéia são hilárias. Verdade que pelo menos uma das “donzelas” era uma

asturiana que, na calada da noite, andava à procura de um arrieiro que se encontrava no

mesmo quarto que Quixote. Não importa: a renúncia continua. E é tal que o cavaleiro se

resigna a uma dieta frugal, jejua com freqüência, mantém vigílias e, em um capítulo

memorável, dispõe-se a enlouquecer para melhor louvar as graças de Dulcinéia, propondo-se

a tirar a roupa e fazer sandices pelado pelos montes (o que Sancho Pança, prudentemente, se

escusa de assistir).

Sancho Pança é o oposto: guloso, beberrão, sempre disposto a esvaziar uma bota de

vinho, comer ou dormir, eternamente na expectativa da ilha cujo governo lhe foi prometido, 39 KÄSTNER, Erich. Aventuras do Barão de Münchausen. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 2ª ed., s/d. Tradução de Pedro de A. Briese. 40 “(...)en un lugar cerca del suyo había una moza labradora de muy buen parecer, de quien él un tiempo anduvo enamorado, aunque, según se entiende, ella jamás lo supo, ni le dio cata dello. Llamábase Aldonza Lorenzo, y a ésta le pareció ser bien darle título de señora de sus pensamientos(...)” (CERVANTES, Miguel de. El Inhenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Cap. I. Disponível em formato HTML no endereço <http://www.gutenberg.org/files/2000/2000-h/2000-h.htm>. Acesso em 02/09/1020.)

37

sempre com os olhos abertos para eventuais despojos de batalhas, bem como nos reais de seu

patrão. Sancho não suporta dores com o mesmo donaire que o companheiro, e mesmo anuncia

que não tem em mente ser bravo. Sua extrema simplicidade vem em vários pontos do

romance impressionar o patrão, que é tido por todos (especialmente na segunda parte do

romance, publicada em 1615) como discreto, exceto em matéria de cavalaria e de suas leis,

leituras e feitos relativos ao assunto.

Cumpre aqui uma breve observação quanto ao uso das palavras simples e discreto no

romance: simples, como qualidade de uma pessoa, significa ingênuo, tolo. Enquanto discreto

não vai fazer oposição à conspicuidade, como hoje em dia, mas é relativo ao bom senso.

Significaria sensato.

Não apenas a simplicidade de Sancho Pança faz oposição à discrição de Quixote,

como também, por vezes, esses atributos se invertem nos personagens: Sancho Pança, de uso

tão simples, por vezes surpreende o cavaleiro com rompantes de discrição. E não apenas Dom

Quixote se surpreende com os recursos de Sancho: posto no governo de uma ilha, uma

complexa pilhéria para diversão dos que ali residem, acaba por apresentar astutas soluções

para os problemas a ele apresentados, desconcertando os que esperavam tirar risadas do

julgamento do escudeiro.

Quixote é, como já dito, sensato em tudo, exceto pelos rompantes relacionados à

cavalaria andante. Assim, temos um discreto com rompantes de simplicidade (ou loucura) e

um simples com rompantes de discrição. Não bastassem tamanhas diferenças entre as

personalidades das personagens, ainda pode-se ponderar sobre o físico dos aventureiros:

Quixote alto e magro, montando seu Rocinante, conseguindo a duras penas um brilho na

armadura41 e (em sua cabeça) armado em galante cavaleiro, anda lado a lado com o gordo

Sancho, vestido em roupas simples e montando o humilde Ruço, um burro. Quixote chega

mesmo a ponderar a propriedade de tal arranjo ao começar a viagem com Sancho, e resolve

achar um cavalo para o escudeiro, logo que possível42.

41 “Y lo primero que hizo fue limpiar unas armas que habían sido de sus bisabuelos, que, tomadas de orín y llenas de moho, luengos siglos había que estaban puestas y olvidadas en un rincón. Limpiólas y aderezólas lo mejor que pudo” (Idem.) 42 “En lo del asno reparó un poco don Quijote, imaginando si se le acordaba si algún caballero andante había traído escudero caballero asnalmente, pero nunca le vino alguno a la memoria; mas, con todo esto, determinó que le llevase, con presupuesto de acomodarle de más honrada caballería en habiendo ocasión para ello, quitándole el caballo al primer descortés caballero que topase.”(Idem, Cap. VII.)

38

A oposição entre os personagens não é acidental: constitui um dos pontos centrais da

narrativa de Cervantes, e, de acordo com Lukács – em levantamento de suas idéias sobre o

romance realizado por Manoela Hoffmann Oliveira43 –, uma das razões a determinarem o

imenso sucesso da narrativa.

Dom Quixote é, para o autor, a encarnação dos valores feudais e, ao mesmo tempo, a

evidência de sua ruína. Ao assumir a lógica e os valores da cavalaria andante como os seus,

Dom Quixote aparenta fazer a apologia da sociedade medieval, já em seus estertores na

época. No entanto, através de suas desventuras e atos, em que a idéia romântica do cavaleiro

entra em constante atrito com os tempos práticos e o realismo presentes no resto da obra, o

personagem também é não uma testemunha da falência dos valores, mas sim um testemunho,

incorporando em si o choque entre os dois paradigmas. Um choque em que nenhum dos lados

leva vantagem, pois se, de um lado, é deitada no ridículo a lógica da sociedade medieval

através de um de seus símbolos – a cavalaria andante –, do outro lado a baixeza da sociedade

burguesa se torna evidente.

Nas palavras de Lukács:

a unidade entre o sublime e o cômico na figura de Dom Quixote, unidade que nunca

mais voltou a ser alcançada, é determinada justamente pela luta genial que Cervantes

trava, enquanto cria este caráter, contra as características principais de duas épocas

que se sucedem: contra o heroísmo desgastado da cavalaria e contra a baixeza da

sociedade burguesa cujo prosaísmo se revela nitidamente desde o início. (LUKÁCS,

1935, apud OLIVEIRA, 2008, s/p)

O protagonista, por assim dizer, sonha épico enquanto realiza mundano. O mundo em

que vive já não apresenta o mesmo brilho nem os valores dos poemas de cavalaria, de modo

que os feitos e aventuras de Quixote não são assim aceitos ou percebidos. E é esse contraste

que alimenta o trágico e o cômico na triste figura do cavaleiro.

Interessante apontar que tais aspectos do personagem – o trágico e o cômico – foram

os principais focos com que os críticos analisaram a obra. Primeiramente pelos críticos

românticos que, até o século XIX, salientaram o aspecto trágico de Quixote, idealizando o

herói. O século XX trouxe a comicidade da obra à baila salientando justamente a

incongruência entre o sonho e a realidade no personagem, caracterizando-o como burlesco

(VEIRA, 1998, apud OLIVEIRA, 2008). Porém uma visão do personagem não exclui 43 OLIVEIRA, Manoela Hoffmann. Dom Quixote como o Primeiro Romance Moderno. XI CONGRESSO NACIONAL DA ABRALIC. São Paulo: 2008

39

necessariamente a outra, e são os contrastes do Quixote que o tornaram um personagem

imortal. O caminho de Dom Quixote é trágico porque é uma ilusão, e porque nesta ilusão se

perde o iludido cavaleiro, cego para tudo senão para suas quimeras. E é cômico pelos

caminhos fantásticos e pelas desventuras a que essa ilusão o leva.

Lucáks considera, portanto, o Quixote como a personificação do conflito entre os

valores caducos da sociedade medieval e a baixeza da burguesia nascente. E, nesse conflito,

em que o herói busca o épico mas é constantemente barrado pela realidade, que não comporta

mais tal retórica, o romance se realiza. O autor considera Sancho Pança “o pólo oposto, a

figura antitética de Dom Quixote” (OLIVEIRA, 2008, s/p) e comenta que uma leitura do

romance que não leve em consideração Sancho Pança é uma leitura incompleta, pois Sancho

Pança seria não apenas o fiel companheiro de aventuras de Dom Quixote, mas também um

antagonista, sempre pronto a opor o “sadio senso comum, muito camponês” (LUCÁKS, 1952,

apud OLIVEIRA, 2008) aos desvarios do cavaleiro.

Embora o autor sugira que tal antagonismo é mais profundo do que possa parecer à

primeira vista, apontando para o fato de Sancho ter seu momento de glória (quando no

governo da ilha), enquanto a Quixote nenhum momento assim seja reservado, não lhe ocorre

opor ao cavaleiro Sancho Pança, como representantes da ideologia medieval falida e da

burguesa, respectivamente. Para Lukács, Dom Quixote representa ambas, e o conflito é

apenas aumentado pelo contraste entre os atos grandiosos do cavaleiro e seus resultados

mundanos. A leitura que se impõe no trecho analisado, porém, sugere outra dinâmica:

Cervantes usa um personagem para salientar as características do outro, tornando através

deste recurso narrativo os personagens ainda mais estilizados, por contraste. E, se Quixote

representa os valores da idade medieval agonizante, Sancho Pança, em sua simplicidade

prática e antenada com o viver simples de campônio, é a personificação da burguesia nascente

de seu tempo. Não instruído, porém atento às oportunidades que se apresentem, movido por

promessas de poder e dinheiro, Sancho Pança traz a retórica de sua época: é mais talhado para

a prática do que para as discussões filosóficas que, vez por outra, acaba por travar com Dom

Quixote, e sua sabedoria camponesa, mundana, é ambivalente, pois Sancho tanto pode chegar

ao cerne de um assunto com um dizer definitivo (que, em ocasiões surpreendem Dom

Quixote) quanto errar o alvo completamente, chegando às fronteiras da sandice. A sintonia de

Sancho com a época em que vive é mostrada inclusive em sua fala, pois suas razões

40

invariavelmente trazem por base os ditados populares44, embora sua simplicidade faça com

que os use erroneamente com freqüência.

2.5 ENREDO

Em seu Gêneros Literários, Angélica Soares descreve o enredo (também conhecido com trama

ou intriga) como “o resultado da ação das personagens” (SOARES, 2007, p. 43), algo suja

existência é determinada pelo discurso narrativo e pela organização dos acontecimentos. Basicamente,

pode-se dizer que a ação diegética é apresentada de determinada forma, e essa forma e essa ação

constituem o enredo.

Dizem que os esquimós, devido ao ambiente em que vivem, têm várias palavras diferentes

para designar a neve. Tal idéia tem sido usada como argumento ilustrativo sobre a maneira com que

uma linguagem vai necessariamente assumir características da cultura a que está ligada em mais de

uma conversa, e é quase uma necessidade lógica: para um esquimó, a capacidade de identificar

determinado tipo de neve pode ser a diferença entre a vida e a morte. Isso tudo é muito interessante e

apropriado quando se trata de esquimós e de neve, porém conceitos tendem a vir com toda uma teoria

pegada, um pacote completo cujo uso correto depende de conhecimento em profundidade. No caso,

sabe-se que o uso indiscriminado dos nomes para a ação diegética e a forma de sua apresentação pode

acabar por criar uma massaroca teórica de proporções górdias, que nem a mais afiada espada retórica

poderia cortar. Melhor, julgou-se, deixar claro que, também para a análise narrativa, há diversos

nomes para estruturas semelhantes e, embora se reconheça que podem ter suas nuances45, serão aqui

tratados como conceitos intercambiáveis, ainda de acordo com a proposta de análise apresentada por

Angélica Soares (2007, p.43-44). Independente de se chamar a ação diegética e a forma com que é

apresentada de fábula e trama (conceitos que a autora apresenta como associados à escola formalista

russa), história e discurso (de acordo com Todorov46) ou narração e diegese (segundo Lefebvre, apud

44“(...) todas o las más veces que Sancho quería hablar de oposición y a lo cortesano, acababa su razón con despeñarse del monte de su simplicidad al profundo de su ignorancia; y en lo que él se mostraba más elegante y memorioso era en traer refranes, viniesen o no viniesen a pelo de lo que trataba (...)”(Segunda Parte, Cap. XII) 45 Os conceitos propostos por Todorov, por exemplo, estão ligados a uma tentativa de convencimento, de acordo com o modelo proposto pelo autor, que considera o discurso como sendo “toda enunciação supondo um locutor e um ouvinte, tendo o primeiro a intenção de influenciar o outro de algum modo” (TODOROV, 2006, p.59, apud BENVENISTE, 1954). Note-se também que, de acordo com esse conceito, o leitor seria figura passiva da leitura, não contribuindo de modo algum. Porém este trabalho, salienta-se, não considera tais nuances. 46 Angélica Soares atribui a Todorov os conceitos de história e discurso (SOARES, 2007, p.43-44). Porém, em seu livro As Estruturas Narrativas, em que os propõe, Todorov emprega os conceitos como categorias “formuladas por Emilio Benveniste em duas pesquisas sobre os tempos do verbo” (TODOROV, 2006, p.59).

41

Silva), as análises tendem a coincidir nessa divisão. Soares salienta também que a ação diegética é

também uma criação literária, devendo ser assim entendida (p. 44).

O tema seria o fio condutor da narrativa. “O que dá unidade aos elementos da trama”

(SOARES, 2007, p.44) ou, jocosamente falando, o principal fio da trama, a emendar as demais partes

da narrativa. O tema pode ser compreendido como sendo uma idéia comum inerente à narrativa e é

construído através de elementos mínimos denominados motivos.

Todorov elabora mais o assunto do tema da narrativa, apoiando-se em Tomachévski, que

sugere que

“A obra inteira pode ter seu tema e ao mesmo tempo cada parte da obra possui o

seu... Com a ajuda dessa decomposição da obra em unidades temáticas, chegamos às

partes indecomponíveis, às menores partículas do material temático... O tema de

cada unidade indecomponível da obra se chama motivo. No fundo, cada oração

possui seu próprio motivo” (TODOROV, 2006, p. 36, apud TOMACHÉVSKI,1925,

p. 137).

Os motivos, para o autor, decorrem dos atos dos personagens e de sua importância para a

narrativa. Assim, Todorov denomina o ato significativo do personagem como função, e salienta que o

motivo pode ser formado de várias funções. Através das funções se chega ao tema geral da obra.

Assim, pode-se entender o tema como sendo a união de várias funções, ponto comum a que se

pode chegar através da análise das ações dos personagens que forem significativas para a narrativa. O

que é uma versão pouco mais elaborada que a primeira frase desta seção.

Para estudar a estrutura da intriga de uma narrativa, devemos primeiramente

apresentar essa intriga sob a forma de um resumo, em que cada ação distinta da

história corresponda a uma oração. (TODOROV, 2006, p. 137)

Verdade, o autor propõe tal apresentação com o intuito de investigar cada uma dessas orações

individualmente até reduzir todas as ações da narrativa a pouquíssimas frases, associadas a nomes

próprios, verbos, e adjetivos, no que denomina “gramática da narrativa” (TODOROV, 2006, p. 140.),

classificação a que este trabalho não aderirá, por ter objetivo menos ambicioso – ou cartesiano. Não se

está a buscar os elementos da narrativa, mas sim o que é narrado, e que significados se pode obter da

forma que essa narração acontece. A sugestão de reduzir a narrativa a sua ação para, a partir daí,

buscar compreender como a forma de sua narração influi na leitura do texto, entretanto, é uma maneira

Assim, entende-se a atribuição dos conceitos a Todorov devido ao uso destes na análise específica das estruturas narrativas, em vez de na análise de verbos.

42

apropriada de se analisar o capítulo, e assim se procederá, embora de maneira um tanto mais extensiva

do que a sugerida por Todorov, buscando não deixar nada significativo de fora. Escolheu-se colocar a

ação em itálico, para que se destaque do corpo do texto.

A ação diegética consiste em duas aventuras do fidalgo: a dos moinhos de vento e a da luta

contra o biscainho. Na primeira, talvez a mais famosa do livro, Dom Quixote confunde um campo

cheio de moinhos de vento, em Montiel, com um exército de gigantes e ataca o mais próximo. É

jogado no chão, cavalo e tudo, pela pá do moinho. É acudido por Sancho e seguem ambos viagem

para Porto Lápice em busca de aventuras. Param para dormir. Quixote troca o cabo de sua lança e

passa a noite em vigília e jejum. Sancho come e dorme. No dia seguinte, retomam a jornada sem que o

fidalgo quebre seu jejum.

Encontram viajantes: um coche com quatro ou cinco cavaleiros e dois “moços de mulas”,

precedido de dois monges em mulas enormes. Dom Quixote toma os monges por feiticeiros. Sancho

discorda. O fidalgo descarta a opinião do escudeiro e desafia um dos monges. Sem acreditar na

réplica do frade, arremete contra ele, derrubando-o da mula. O outro frade foge. Sancho Pança corre

até ele e começa a despir-lhe. Dois moços acudem o frade. Sancho explica que cabem-lhe os despojos

da batalha. Os moços surram Sancho e o deixam estendido no chão. O monge atacado se recupera e

foge.

Enquanto isso, Dom Quixote fala com a Biscainha, exigindo que ela, como paga por sua

bravura, vá até Toboso e narre o episódio para sua amada Dulcinéia. Um dos cavaleiros biscainhos

agarra a lança e o ameaça. Dom Quixote joga a lança ao chão e arremete contra o biscainho com a

espada.

O biscainho puxa sua espada, agarra uma das almofadas do coche como escudo e avança.

Lutam, ambos. O biscainho atinge Dom Quixote. Ferido, o cavaleiro evoca sua amada e reúne suas

forças para um último ataque. Arremete contra o biscainho, que espera o fidalgo com a mesma

intenção, almofada em punho. O cronista, narrador da história, revela não saber a continuação da

aventura, se desculpa e promete novidades para diante.

Eis, portanto, a ação do capítulo. A vantagem de mudar a ordem da avaliação das partes

estruturais do romance proposta por Soares talvez agora seja aparente ao leitor: sendo o tempo,

espaço, ponto de vista e personagens partes integrantes de uma narrativa, sua prévia análise ajuda a

estruturar idéias sobre a ação e a forma da narrativa. Se se fizesse o caminho contrário se teria de

analisar todas as estruturas ao se tratar do enredo e, provavelmente, repetir tudo depois. Ao passo que

deixando o estudo do enredo por último tem-se a base para estudá-lo com mais propriedade.

43

Talvez a primeira coisa a se notar, estudando a narrativa do Quixote, seja o modo como os

personagens são tratados e desenvolvidos. Uma das grandes inovações de Cervantes na construção de

seu Quixote, como se viu na parte específica sobre o ponto de vista da narrativa, é o de dar voz aos

personagens. Essa voz e independência tornam os personagens agentes legítimos, fazendo da narrativa

uma decorrência de sua relação com o mundo e, segundo preceitos de Lukács, inauguram o conceito

de romance moderno.

Ana Paula Klauk, em sua breve, objetiva e compreensiva análise sobre a teoria do autor47,

resume:

Para Lukács, o romance moderno substitui a epopéia na sociedade atual, na medida

em que as condições do mundo contemporâneo não permitem a construção de uma

narrativa épica, caracterizada pela representação de heróis coletivos e de conquistas

dos povos. O romance moderno, por outro lado, está ligado à subjetividade do

homem, a sua relação com o mundo em que vive e às problemáticas que enfrenta

dentro da realidade que o cerca. Enquanto o herói épico é essencialmente objetivo

como representação de um povo, o romanesco é subjetivo e singular, em constante

tentativa de reconciliação com o mundo e consigo mesmo. (KLAUK, s/a, p.01)

Verdade, bem se poderia ter recorrido ao original sem medo de engano, tanto já se tratou sobre

Lukács até o momento no capítulo. A qualidade da prosa da autora e a clareza de sua visão foram,

portanto, determinantes para a manutenção do texto neste trabalho.

No momento em que o autor dá autonomia aos personagens, portanto, estabelece uma relação

diferenciada com o mundo, onde a voz dos personagens não é mais intermediada pelo autor e a ação é

centrada no indivíduo em vez de num herói épico, que é mais uma representação de um povo do que

um indivíduo e cuja ação tende a evidenciar suas qualidades em lugar de colocá-lo em posição de

confronto com o mundo48.

Caravaggio assume posição semelhante ao argumentar que:

Frequentemente se diz que D. Quixote é o primeiro romance dos tempos modernos,

porque nele, como escreveu Michel Foucault, “as similitudes e os signos romperam

sua antiga aliança”; “as similitudes decepcionam, conduzem à visão e ao delírio”.

Mas é também porque este relato instalou, pela primeira vez, a dimensão imaginária

no interior do homem. Em vez de contar de fora o que acontece ao herói, dá-se a ele

47 KLAUCK, Ana Paula. A Teoria do Romance de Georg Lukács: uma reflexão sobre o herói de Os Ratos, de Dyonélio Machado. Artigo. Documento eletrônico em formato .PDF. Disponível para download e leitura no endereço: <http://www.palpitar.com.br/download.php?file=A%20teoria%20do%20romance.pdf> acesso em 30/09/2010. 48 LUKÁCS, 2000, pp.66-69.

44

a palavra e a liberdade de usá-la a seu bel-prazer, recriando assim o movimento pelo

qual cada personagem se inventa à medida que vive os acontecimentos.

(CARAVAGGIO, 2005, p.237)

O próprio uso do discurso direto, passando a palavra aos personagens, portanto, instaura uma

nova relação e uma nova dimensão ao herói romanesco, “uma revolução copernicana que ninguém

antes de Cervantes havia realizado” (CARAVAGGIO, 2005, p.237). O herói passa a definir o mundo

através de sua percepção e aspirações. O indivíduo, no romance, ocupa a posição central, e o contraste

entre a realidade e sua percepção dessa realidade são determinantes na construção do mundo diegético.

“Por meio desse próprio isolamento, contudo, o indivíduo torna-se mero instrumento, cuja posição

central repousa no fato de estar apto a revelar uma determinada problemática do mundo” (LUKÁCS,

2000, pp. 84-85).

Isso transforma a ação de Quixote em um argumento, segundo o qual se evidencia uma

relação de disparidade entre o mundo real e o interior do personagem, relação esta que vai definir o

romance. Por isso Dom Quixote é entendido como o conflito entre duas épocas, mais do que as

simples ações de um desvairado, por isso a forma é determinante do sentido da ação: os valores que

ostenta e assume como os seus pertencem a uma época passada, o mundo a que aspira não tem

correspondência com a realidade. Mais que um personagem, ao se armar cavaleiro Alonso Quixano se

torna a personificação da morte de uma época. Tal é o poder de uma simples escolha, como a de dar

voz a um personagem.

No entanto, Quixote não é sozinho em suas aventuras: tem junto a si seu duplo e oposto:

Sancho Pança. Enquanto Quixote age de acordo com o código da cavalaria andante, Sancho Pança age

de acordo com a moral e o uso da época: tal relação se explicita, no capítulo em questão, através de

várias oposições entre os personagens, podendo-se dizer que ambos são construídos através dessa

oposição. Neste ponto se pedirá ao leitor um pouco de paciência para com a análise dessa oposição,

pois é tal e tamanha que praticamente não há ponto da narrativa em que ela não acontece, e a análise

mais breve será como que uma repetição do capítulo. O que, se por um lado, teme-se, torna o trabalho

redundante, por outro é testemunho maior da enormidade da oposição.

Primeiramente se vê Dom Quixote avisando Sancho dos gigantes. Sancho retruca que não são

gigantes, mas moinhos de vento, salientando que “o que parecem braços não são senão as velas, que

tocadas do vento fazem trabalhar as mós”49. Quixote responde que essa percepção bem mostra que

Sancho não entende nada de aventuras e que, se tem medo, fique rezando enquanto ele ataca os

49 “Mire vuestra merced —respondió Sancho— que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas, que, volteadas del viento, hacen andar la piedra del molino.” (CERVANTES, 1605, cap. VIII)

45

gigantes. Depois que acaba a aventura, Dom Quixote no chão, Sancho o acode, comentando: “Não lhe

disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só o

podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?”. Sancho não apenas se opõe à percepção do

cavaleiro, como também o chama de cabeça de vento (pois onde mais se colocaria moinhos a não ser

onde ventasse muito?). Ainda assim, Quixote responde a ele que se cale, pois provavelmente o sábio

Frestão transformou em moinhos os gigantes para lhe roubar a vitória.

Dom Quixote se recusa a compartilhar a percepção de Sancho, argumentando que este “não

anda corrente nisto das aventuras”, pois não leu os livros de cavalaria e, portanto, é ignorante de seus

códigos e usos. A oposição seguinte vem logo a seguir, quando retomam o caminho de Porto Lápice:

Quixote vai comentando as façanhas de Diogo Perez de Vargas e mostrando intenção de consertar a

lança, que se quebrou no episódio dos moinhos para que possa, ele também, colher a glória de

façanhas impossíveis para o comum dos homens. Sancho observa-lhe que acredita em tudo quanto lhe

fala o Quixote, mas que se endireite na sela, pois vai torto, provavelmente pelo trambolhão da

aventura dos moinhos. Tal observação não faz mais que ressaltar a ilusão do cavaleiro que, arrotando

façanhas maravilhosas no futuro, não pode sequer andar direito no cavalo. Dom Quixote concorda que

sente dores, mas que se abstém de se queixar, pois tal não é apropriado a um cavaleiro, a que Sancho

novamente responde que, por ele, tudo bem, mas que, se tal é dado aos escudeiros, berraria assim que

sentisse alguma dor, o que diverte o cavaleiro.

A seguir, Sancho fala em comerem, e Dom Quixote recusa-se, dizendo-lhe que coma ele,

Sancho, se quiser. Aparentemente ele quer, pois come e bebe com gosto. Param pela noite. Sancho

dorme, enquanto Quixote guarda vigília pensando em Dulcinéia e substitui a lança. Quando acorda.

Sancho bebe vinho e se entristece de ver a bota mais vazia, ao passo que Quixote não quis fazer o

desjejum. E assim chegam a Porto Lápice. Repare o leitor que, até este ponto do capítulo não houve

praticamente ação de Dom Quixote a que Sancho não se opusesse de alguma maneira, fosse

manifestando-se contra o cavaleiro, fosse assumindo atitude diversa. Quando chegam ao caminho para

Porto Lápice. Dom Quixote diz ao escudeiro que não tente lhe defender caso o veja em apertos, por

pior que a situação possa parecer, a menos que sejam vis os atacantes. Sancho responde que, com

certeza, não há de mover palha para ajudar o cavaleiro, pois é pacífico por natureza. Claro que, se for

atacado, a coisa é diferente, pois há de se defender. Importante ressaltar que, ao se falar em oposição

entre os personagens, não se quer necessariamente dizer oposição diametralmente oposta, mas sim

oposição entre a lógica dos personagens: se Quixote é a cavalaria andante, Sancho é a burguesia

nascente. No caso em questão, a resposta de Sancho destaca o próprio individualismo, em oposição à

qualidade épica das intenções de Quixote50. Logo a seguir, quando o cavaleiro ressalta que, quando

50 “O herói da epopéia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial da epopéia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade.” (LUKÁCS, 2000, p. 67)

46

lutar contra nobres (outros cavaleiros), o escudeiro não deve ajudá-lo, Sancho novamente diz-lhe que

não se preocupe, pois não tem tal intenção, o que ressalta sua autopreservação, em oposição ao

sacrifício de Quixote. Que está presente em sua disposição de entrar em batalhas, apesar de estas

serem imaginárias e em um futuro incerto.

Aliás, tal futuro é mais certo do que se poderia a princípio imaginar, pois a próxima coisa a

ocorrer é avistarem os monges e o coche e seus acompanhantes, que Dom Quixote diz serem dois

feiticeiros raptando uma princesa, erro que se propõe a desfazer. Sancho repara que são frades de

passagem, e observa que essa aventura será ainda pior que a dos moinhos. Novamente o cavaleiro

observa que o servo entende pouco de aventuras de cavalaria, e ataca um dos monges após uma breve

conversa, em que, pra variar, outro personagem lhe faz oposição. Dom Quixote não acredita na

inocência do monge, e o ataca, pondo o outro monge para correr.

Sancho Pança, no momento em que vê o monge caído, corre para ele e começa a retirar-lhe o

hábito e os pertences. Mesmo neste ponto, em que o escudeiro age por si mesmo, está em oposição ao

fidalgo, pois opõe sua ganância e simpleza (até mesmo vileza – por que não dizer? O fato de ser um

personagem divertido não quer dizer que seja necessariamente destituído de defeitos. Aliás, arrisca-se

dizer, são os defeitos que o fazem divertido.) ao altruísmo e nobreza de Dom Quixote. Ao menos ao

altruísmo e nobreza que Dom Quixote pensa incorporar.

A partir deste momento, Sancho Pança some do capítulo, tendo feito oposição a Dom Quixote

em cada ação sua. Entende-se que, sendo Sancho uma representação do mundo que os cerca, e sua

lógica e seus defeitos e sua vileza as mesmas do mundo diegético, e, também, entendendo-se que

Sancho não é personagem dos mais ativos (não em sua presença no romance, mas no sentido de

disposição), pode-se compreender que resolva descansar por alguns parágrafos e deixar ao mundo – do

qual é um reflexo – que se encarregue de se opor ao Quixote por um tempo, enquanto fica deitado no

chão após apanhar dos moços das mulas. Sancho Pança pode se dar a esse luxo porque a dinâmica da

narrativa continua a mesma: o mundo se opõe ao cavaleiro, que se nega a reconhecê-lo como é. E,

assim, o cavaleiro e o mundo (ou o escudeiro) vão ganhando contornos mais claros e mais elaborados,

aumentados pelo contraste e pela constante oposição.

Não é à toa que Quixote não existiria sem Sancho: é a Sancho que Dom Quixote se encarrega

de explicar os preceitos do ofício de cavaleiro andante, é Sancho, crédulo, que opõe seus comentários,

cheios de sabedoria mundana e da retórica da época, às idéias do companheiro, colocando-as em

perspectiva. Sancho possibilita a jornada e ajuda o cavaleiro a definir-se como personagem. Pode-se

dizer que a única coisa em que ambos concordam é em empreenderem juntos a jornada, e ainda assim

por motivos diversos: Dom Quixote pela glória, Sancho Pança pela cobiça.

47

É essa qualidade da narrativa, a aproximação com a imagem da Espanha da época, amparada

pelo amplo conhecimento de Cervantes do tempo e lugares que descreve, recheada (pela primeira vez)

com a fala dos personagens, que são personagens típicos, que leva Esteban a comentar que

Dom Quixote é o triunfo do criador sobre o artista, da vida ou criação sobre a arte,

da língua viva sobre a literatura, da personalidade sobre o estilo, da língua espanhola

sobre a gramática da língua espanhola, do classisismo sobre o academicismo, e de

um monumento perene sobre uma obra-prima. (ESTEBAN, 2004, p. 128)

O louco cervantino é típico, na visão do autor, pois, a exemplo de outros loucos criados por

Cervantes (apresenta como exemplos Quixote e o Licenciado Vidriera) como profetas, cujos brados

contra as desgraças do mundo lhes poderiam acarretar várias desgraças, não fossem produtos de

mentes “avoadas” (ESTEBAN, 2004, p. 128) Assim, Quixote não é um louco, mas a consciência do

mundo colocada contra o ideal do mundo. Uma denúncia, mais que um desvairado.

Talvez a opção de Cervantes pelo discurso direto dos personagens se tenha dado pelo ponto de

vista do autor – que é, como se viu, a focalização externa – em que é apresentado o que apareceria a

uma testemunha, de acordo com Angélica Soares, aparecem: “fisionomia, vestuário, hábitos, havendo,

por isso, uma valorização dos diálogos) (SOARES, 2007, p. 53). Na opinião de Caravaggio, o ponto

de vista do autor tem outras peculiaridades que influem na leitura da obra: em Dom Quixote,

(...) o romancista se oculta atrás dos pseudonarradores aos quais empresta sua voz e

delega seus poderes. O mais fascinante desses duplos é, sem dúvida alguma, Cide

Hamete Benengeli. Êmulo aparente dos cronistas árabes que, por pura convenção,

endossavam a paternidade de vários livros de cavalaria, ele é, ao mesmo tempo,

autor postiço do qual Cervantes se afasta para julgar a obra que está escrevendo e o

historiador escrupuloso que revela ao leitor seu esforço para captar seus heróis em

toda plenitude, fazendo-o participar, assim, do próprio ato de criação literária.

CARAVAGGIO, 2005, p. 237)

O tema do romance, como se pode depreender do capítulo estudado e da revisão bibliográfica

realizada até este ponto, é a falência dos valores medievais, que dão lugar a uma mentalidade

burguesa. Essa falência é lamentada e ridicularizada ao mesmo tempo: ao passo em que a vileza das

aspirações, a ganância e a gula que são prática corrente, são denunciadas, se explicita a inapropriação

dos valores medievais em um mundo mais prático. O autor realiza essa crítica através da construção

do protagonista, que, ele mesmo uma incorporação simbólica dos valores medievais (e de sua

literatura típica, as novelas de cavalaria andantes, verdadeiras epopéias que busca mimetizar), se

defronta constantemente com a realidade em que vive.

48

3 DOM QUIXOTE DE LA MANCHA – ADAPTAÇÃO PARA GRAPHIC NOVEL DO

CAPÍTULO VIII

A primeira coisa que se deve fazer ao analisar O Último Cavaleiro Andante de Eisner,

especialmente para fins de comparação com o texto original de Cervantes, é ressaltar que o

texto não se presta à finalidade de adaptação da obra, mas que foi planejado como uma

introdução ao livro. É categorizado no site “Fontes para Bibliotecários e Educadores”51 como

indicado para crianças entre 9 e 11 anos ou cursando a partir da quarta série do ensino

fundamental. É certo que muito do sucesso do texto de Cervantes se deveu à extravagância

dos personagens: o cavaleiro em armadura brilhante é, por si só, uma imagem atraente e – nos

tempos da primeira publicação do Quixote como agora – incomum. No entanto, o cavaleiro

andante em sua armadura remendada com papelão, uma bacia na cabeça, montando um rocim

e batalhando moinhos é ainda mais colorida e chamativa. Talvez justificasse mesmo um

paralelo com as obras de fantasia que são, na atualidade, alvos preferidos da atenção dos

leitores. A diferença é o olhar irônico que coloca toda a experiência como uma fantasia, o

místico como loucura de um fidalgo que leu mais do que devia sobre a cavalaria andante. Mas

é certo que se presta à adaptação. Dom Quixote é mais do que uma obra imortal: é uma obra

sem idade. De acordo com Sônia Duarte, a obra entra como uma dentre tantas52 que, sem

terem sido idealizadas para o público infantil, acabaram por se tornarem clássicos do gênero.

A autora salienta, ainda, que:

No entanto, algo que não pode ser ignorado é que nem sempre o êxito dessas obras

junto de crianças e de jovens se deve à leitura do texto original. De facto, muitas

vezes o contacto desses leitores com a obra é feito por meio de adaptações infantis e

juvenis, Don Quijote, como muitas outras obras, não pode ser visto isoladamente,

mas sim como modelo inspirador de um vasto conjunto de textos, esses sim,

intencionalmente concebidos para esse público específico; as crianças e os jovens.

(DUARTE, 2001, p.487)

A ressalva é necessária para a compreensão de como um autor conceituado como Will

Eisner possa ter pretendido apresentar o Dom Quixote aos leitores em um livro de quadrinhos 51 “Sources for Librarians and Educators”, em <http://members.shaw.ca/yaying/518final/sources.html>, acesso em 28/08/2010. 52 Outras obras citadas pela autora são As Viagens de Gulliver, Robinson Crusoe e Os Três Mosqueteiros. (DUARTE, Sônia. Don Quijote na Literatura Infantil in: Línguas e Literaturas - Revista da Faculdade de Letras. Porto, 2001, pp. 487-502.)

49

de 32 páginas. Obviamente, muito do romance não consta nos quadrinhos: por mais sintética

que fosse a linguagem utilizada, seria impossível não cortar cenas e mesmo capítulos em uma

adaptação de tal monta.

No entanto, mesmo que o texto de Eisner não tenha o objetivo de ser completamente

fiel à história de Cervantes, o problema do espaço da narrativa desperta uma questão

interessante e digna de menção: caso fosse adaptada em sua integridade, o romance Dom

Quixote demandaria tanto ou mais tempo que levou para ser escrito por Cervantes, em 1605.

O ritmo médio de um desenhista profissional de quadrinhos na atualidade é de uma página por

dia. Não é, há de convir o leitor, pouco. Porém isso se deve à especialização do mercado,

sendo que hoje existem profissionais específicos para o roteiro (no caso, o roteiro da

adaptação) o desenho, a arte-final, as cores e as letras na produção de quadrinhos.

Considerando-se um único profissional a dedicar-se à adaptação, e imaginando que este

profissional conseguisse colocar uma página do romance em cada página de quadrinho (o que,

por si só, seria um feito notável), seriam anos antes que se visse a obra pronta. Assim, mais

que uma qualidade exclusiva da obra de Eisner, talvez se pudesse entender a concisão como

uma necessidade básica da linguagem seqüencial. É certo que uma adaptação sempre será

uma adaptação – necessariamente uma modificação do original, vertido para uma linguagem,

finalidade ou para um público diferente. Temos, portanto, um meio diverso do original, com

público diferente e necessária concisão. O texto em questão foi publicado em 2000, como

parte de uma coleção de adaptações de contos infantis pela editora NBM53. Outros títulos

adaptados por Eisner foram A Princesa e o Sapo, Moby Dick e Sundiata. Embora se tenha de

considerar esses aspectos da produção das obras (a mudança de público-alvo e a intenção de

apresentar a adaptação como uma introdução ao original), espera-se, a comparação entre o

mesmo texto em duas linguagens diferentes pode vir a indicar os pontos fortes de cada

linguagem, seus recursos narrativos e em que situações seu uso é mais eficaz, além de que

fatores influenciam sua produção. E o espaço é, indubitavelmente, um fator importante na

produção de páginas iconográficas.

Embora o tipo de comparação que é a intenção e finalidade deste trabalho seja, até

onde se sabe, inédito, muito já se escreveu sobre a análise e a leitura de obras iconográficas.

Talvez os autores mais lidos a tratarem do tema sejam Antonio Luiz Cagnin, que escreveu Os

Quadrinhos em 1975, Scott McCloud, com sua trilogia Desvendando os Quadrinhos (1995),

53 Informações disponíveis no site <http://www.willeisner.com/library/last-knight.html>, acesso em 13/10/2010.

50

Desenhando Quadrinhos (2008) e Reinventando os Quadrinhos (2006)54 e o próprio Will

Eisner com seu Quadrinhos e Linguagem Seqüencial (que calha de ser uma das principais

influências de McCloud e um marco do estudo dos quadrinhos –1999) e Narrativas Gráficas

(2005)55. Desses autores, McCloud e Eisner apresentam um viés prático da produção de

quadrinhos – ou melhor seria dizer que suas teorias das características dos quadrinhos vêm da

prática da profissão –, enquanto Cagnin parte da semiologia para traçar, em suas próprias

palavras, “um apanhado sistemático do código imagético e narrativo dos quadrinhos,

englobando, per suma capita, os assuntos principais” (CAGNIN, 1975, p.15). A teoria

proposta por Cagnin é extremamente relevante para o estudo dos quadrinhos, mas também

detalhada e extensa. Resumir-se-á da melhor forma possível, atendo-se às necessidades deste

trabalho (sem destaque para conceitos que não serão utilizados posteriormente, mas buscando

atingir uma visão geral). Mesmo assim é provável que resulte em um resumo um tanto

extenso, e não há o que fazer sobre isso a não ser pedir a paciência do leitor para a leitura um

pouco mais detida da proposta do autor, pois, embora seus conceitos não sejam absolutos na

leitura que se irá realizar, podem-se mostrar úteis. E alguns, pode-se dizer, preciosos.

Cagnin preocupa-se em classificar as histórias em quadrinhos56 e, ao estudar seus

elementos constitutivos, separar os códigos de signos gráficos (imagem e linguagem escrita) e

desenvolver suas características separadamente (pp.25-32). O autor divide o estudo da

imagem em percepção visual, contextos, leitura das imagens, meios expressivos gráficos e

tipologia icônica dos quadrinhos.

A percepção visual das imagens, para Cagnin, baseia-se na teoria da Gestalt e é

determinada por fatores como a área (quanto menor uma região fechada, maior a tendência de

ser percebida como uma figura), proximidade (pontos e objetos próximos um do outro tendem

a agrupar-se em figura), contigüidade (áreas com contornos fechados parecem mais com

figuras que as com contornos abertos), simetria (quanto mais simétrica a região fechada,

maior a tendência de sua percepção como figura) e boa continuação (menos alterações ou

interrupções nas retas e curvas do contorno levam à melhor percepção da figura) das linhas e

54 Esses, os anos das edições utilizadas na bibliografia deste trabalho. Originalmente, de acordo com o site do autor, os títulos e datas de publicação são: Understanding Comics (1993), Reinventing Comics (2000) e Making Comics (2006). Informações encontradas no site < http://www.scottmccloud.com/2-print/index.html>, acesso em 13/10/2010. 55 Publicações originais, respectivamente, em 1989 e 1996. 56 O autor classifica-as em literárias, históricas, psicológicas, sociológicas, didáticas, estético-psicológicas, de valores e publicitárias. Tais classificações não serão adotadas neste trabalho, mas considerou-se o fato digno de menção, por breve que fosse.

51

pontos formadores da representação (pp.36-38). A profundidade das imagens seria efeito da

perspectiva linear e dimensional (que varia as dimensões das representações

proporcionalmente à sua distância do suposto leitor), das dimensões relativas (o tamanho é

determinado pela distância do observador), das medidas familiares (proporções), da

interposição (objetos mais à frente cobrem os de trás), do grau de densidade da contextura

(indicação da distância e dos tamanhos de componentes da cena) e da distribuição de sombras

e iluminação (sombras graduais identificando a posição e intensidade da fonte de luz). O autor

ressalta que a eventual percepção dupla de objetos pode ser explicada por outro princípio da

lei da Gestalt (o “princípio do mínimo”) e conclui que:

ao receber um estímulo vindo diretamente de um objeto ou de uma imagem gráfica,

podemos perceber o objeto real e receber outras informações acessórias, se houver

capacidade de organizar as sensações recebidas e de relacioná-las com dados que

envolvem ou antecedem a comunicação visual. (CAGNIN, 1975, p.46)

Tais dados seriam os constituintes do contexto, que poderia ser classificado como

intra-icônico (dados relativos à relação entre elementos da imagem), intericônico (relação

entre imagens associadas em série) e extra-icônico (imagem em sua relação com outros

elementos, que podem ser situacionais – elementos comuns a emissor e receptor – e globais –

implicações socioculturais e espaço-temporais).

A leitura das imagens se dá também através da Gestalt, pela percepção dos “pontos,

linhas e massas” (p. 51) como um todo, uma imagem e, inclusive, um estilo. Cagnin salienta

que “o desenho é um código, um sistema de signos”, e que este código traz consigo o estilo do

desenhista, que, “como sua feitura já é conotativa, a denotação é menos pura e exige maior

aprendizado” (p. 52). Tal código é definido como sendo “menos dispendioso” por ser

analógico. O código compreenderia, entre outras coisas, a forma da leitura e sua ordenação,

determinadas por lógica e experiência. O processamento da imagem se daria em dois níveis: o

da percepção (dividido em identificação ou configuração, que denota a percepção de traços e

linhas como figuras, e representação, que é a identificação do objeto representado na figura) e

o da significação (o nível da mensagem conotativa, dividido em significação, com a

representação normal pela figura, e em simbolização, em que a figura passa a representar

também um segundo referente). Outro dos elementos constitutivos da percepção das imagens

que é destacado pelo autor é o tempo, que é dividido em tempo como: seqüência de um antes

e um depois, enquanto época histórica, astronômico (dia e noite), meteorológico, da narração

52

(o tempo passado é construído ou sugerido pela mudança de quadros) e o de leitura (o autor

trata o tempo de leitura como o futuro, presente e passado, designando o que não se leu, o que

se está lendo e o que já foi lido).

Os meios expressivos gráficos tratam dos constituintes dos desenhos: ponto, linha e

massa (superfícies grandes, escuras ou hachuradas, utilizadas para indicar volume), e as

formas como são percebidas, através – ainda – da teoria da Gestalt, criando significados

através de similaridade com o referente ou de contigüidade, por ser parte da imagem (pp. 60-

61). Tais relações se utilizariam, obviamente, de todos os outros recursos componentes da

imagem para criar infinitas variações de significação e representação. Cagnin destaca o uso de

planos e elementos expressivos da figura humana como meio de representação de outros

significados através da linguagem corporal57 e outras formas de expressão. O surgimento do

significado de uma imagem fixa obedece, para ele, três fases: “identificação (relação

imagem/realidade), atribuição qualificativa (conjunto de enunciados descritivos) e atribuição

dinâmica (conjunto de enunciados narrativos)” (CAGNIN, 1975, p.78)58. Não só isso, como a

construção do significado de mais de uma imagem (no que é chamado pelo autor de

“integralidade de significantes” – p.78) também se dá através de um processo em três fases:

liberação (a imagem é “liberada” de seu significado como universo de significação, ou seja,

começa a entender-se a imagem como parte de um todo maior), fixação (onde o todo é

percebido como tal e as imagens organizam-se em torno de um tema) e ligação (que é o ato

de atribuir significado ao todo das imagens). Em sua tentativa de imitar o real, por sua vez, os

quadrinhos desenvolveram um repertório de convenções para a representação de sons,

movimentos e indicadores de ordem e qualidade na leitura do texto (balões, legendas, o

próprio quadro, etc.). Assim, há duas classes de figuras, para o autor: analógicas, que seriam a

“representação mimética, figurativa” (p.83) de seres integrados à ação da narrativa e

convencionais, figuras representando ações, sons e indicadores de leitura. Forma, função,

plano, cena, ângulo, sons, ruídos, espaço, distância, proporção, afastamento, volume, são

algumas das outras qualidades incorporadas pelo meio iconográfico. O autor comenta também

os planos mais comuns, os efeitos de composição e o uso das expressões dos personagens.

57 A coisa fica mais divertida se se pensar que, na realidade, se está compreendendo a representação de um gesto corporal com uma significação própria através da linguagem corporal traduzida pela linguagem iconográfica. Ou seja: se está lendo o corpo sem um corpo, um gesto sem um corpo nem movimento, e um movimento sem movimento. Tais são as belezas da língua, no espírito de Magritte (leci n’estpas une pipe). 58 Optou-se aqui por reorganizar, sob a forma de texto corrido, as fases que o autor apontou, no original, com parágrafos numerados. O texto, no entanto, é transcrito literalmente.

53

A tipologia icônica, por sua vez, refere-se ao estilo do traço, que pode ser realista,

estilizado ou caricato, de acordo com a classificação proposta e dependendo do grau de

semelhança com a realidade (pp. 111-118). Cagnin não chega a definir os conceitos, embora

tenha ilustrado ricamente o que quer dizer com a classificação: o realista seria o desenho

proporcional, inspirado pela realidade e que busca manter com ela estreita relação. O desenho

estilizado sacrificaria um pouco dessa proporção em favor de um exagero de expressão,

enquanto que o desenho caricato seria o menos realista, os personagens figuras simplificadas

ou animais antropomorfizados, fortemente marcados pelo traço do autor.

Felizmente o texto, para Cagnin, é matéria mais simples (até porque diversas formas

pelas quais o texto e o quadrinho interagem já foram explicitadas no tratamento das imagens).

O texto nos quadrinhos é percebido em fases: fixação (onde a palavra ajuda na interpretação

da imagem, sendo ligada a esta) e ligação (em que palavra e imagem se ligam

complementarmente servindo ambas à narrativa). As diversas formas de apresentação do texto

(balões de fala e sua posição nos quadrinhos – que orienta a ordem de leitura –, legenda,

onomatopéia e título, e também o texto-figura, onde o texto é apresentado como parte da

figura) são tratadas a seguir, com exemplos e uma proposta de classificação a que este

trabalho não se aterá por considerá-la irrelevante aos propósitos da análise a ser realizada,

adotando a proposta mais orgânica de McCloud e Eisner.

Cagnin, no entanto, merece destaque por sua aproximação do objeto de estudo por um

ângulo diverso – e diametralmente oposto ao de Eisner e McCloud: o autor olha para o objeto

de estudo através das lentes da semiologia e da teoria da Gestalt, enquanto Eisner e McCloud

olham através de anos de prática com o objeto de estudo, buscando uma teoria. Não é, pois,

surpreendente que tenham chegado a visões diversas do objeto. Cagnin, após dissecar a

imagem e as palavras nos quadrinhos, chega à conclusão de que, em sua interação,

Na maioria dos casos, ocorre a junção dos dois sistemas, o icônico e o lingüístico,

em que nem sempre há uma fusão com igualdade de funções, mas a predominância

de um sobre o outro, tornando-se, em alguns casos, o elemento subordinado mero

complemento, às vezes redundante (CAGNIN, 1975, p.140).

O autor se apóia em conceitos de autores (especialmente de Propp) para defender uma

leitura comum da narrativa dos quadrinhos. Isto é, uma leitura da narrativa iconográfica

semelhante à leitura da narrativa textual: uma vez entendida a forma pela qual os diferentes

recursos dos quadrinhos transmitem significados, resta saber como esses quadrinhos se

54

relacionam entre si. Para Cagnin, os quadrinhos prescindem de uma compreensão em

conjunto, o entendimento de que se trata de uma seqüência:

O sintagma narrativo, ainda que constituído de signos icônicos e contínuos, é linear,

como os sintagmas de signos discretos concatenados. Isto determina uma relação

entre as unidades articuladas. E a relação se torna novamente geradora do

significado da seqüência, porque a comparação de duas imagens, transformadas num

só significante, evidencia os elementos que permanecem, os que são constantes, e os

que variam. (CAGNIN, 1975, p. 157)

Neste trabalho não se vai preocupar com uma classificação dos quadrinhos, mas sim

com sua leitura. Portanto, contrário à recomendação do autor, que considera a classificação

dos quadrinhos “um recurso simplesmente operatório para se poder trabalhar (...) com um

sistema homogêneo” (p.184), e considerando que aqui se analisará apenas uma narrativa, se

escolheu não ligar importância à tipologia proposta pelo autor. A leitura proposta por Cagnin,

entretanto, é importante. E é, também, típica: o autor analisa as narrativas da forma proposta

por Propp, decompondo-a em ações (Cagnin vê cada quadrinho como uma unidade narrativa a

interagir com outras – p. 156) para a melhor compreensão da trama. Essa análise é semelhante

à análise da trama anteriormente realizada e proposta por Angélica Soares: nota-se o que

acontece e a forma como o autor mostra a ação. Esse tratamento dos quadrinhos como

narrativa, proposto por Cagnin, é significativamente diverso do tratamento dado ao tema pelos

outros autores aqui analisados.

Eisner e McCloud, por sua vez, também vêem a imagem e a palavra como integrantes

da narrativa dos quadrinhos. Diferentemente de Cagnin, os autores não tentam realizar uma

classificação ou relacionar a leitura dos quadrinhos a uma teoria determinada. Ambos os

autores partem do princípio que o texto escrito e o icônico têm uma origem em comum,

derivada da necessidade de representação do mundo real, e que, com o tempo, foram-se

desenvolvendo em separado, tornando-se mais especializadas para os diferentes usos que lhes

eram dados. A língua escrita acabou por ser campo mais propício à representação do

pensamento abstrato que a imagem, ao passo que a imagem se desenvolveu em pinturas,

retratos e ilustração, tornando-se mais elaborada em técnicas e em seus usos.

Apesar de o trabalho de Cagnin ter sido publicado em 1975, aparentemente não teve

grande repercussão, pois, 14 anos mais tarde, no prefácio de seu Quadrinhos e Arte

Seqüencial, Will Eisner escreveu:

55

Por motivos que têm muito a ver com o uso e a temática, a Arte Seqüencial tem sido

geralmente ignorada como forma digna de discussão acadêmica. Embora cada um

dos seus elementos mais importantes, tais como design, o desenho, o cartum e a

criação escrita, tenham merecido consideração acadêmica isoladamente, essa

combinação única tem recebido um espaço bem pequeno (se é que tem recebido

algum) no currículo literário e artístico. (EISNER, 1999, 3ª ed., p. 5)

Assim, o livro teria sido escrito (e desenhado) com a premissa de mostrar a

profissionais e críticos a importância de levar a sério a Arte Seqüencial59. Dessa vez,

entretanto, o esforço para problematizar os quadrinhos foi recompensado, pois no início de

seu Desenhando Quadrinhos McCloud aponta ambas as publicações de Eisner60 como

influências, embora continue considerando os quadrinhos como um “território inexplorado”,

como se pode ver abaixo:

Figura 5 - Território Inexplorado (McCloud, 1995, p.2)

De tudo isso se pode apreender que ou Eisner e McCloud desconheciam o esforço

empreendido por Cagnin em 1975 ou não consideravam válida sua proposta de análise dos

quadrinhos. Tendo em vista que não são visões tão diferentes (ao menos em relação à leitura

do texto, como adiante se verá), provavelmente a primeira opção.

59 Eisner nomeia os quadrinhos Arte Seqüencial, termo que criou e de que McCloud discorda, preferindo definir os quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador.” (McCloud, 1995, p. 9) 60 Quadrinhos e Arte Seqüencial (1989) e Narrativas Gráficas (1996). Embora a capa do segundo título não esteja explícita no quadrinho de McCloud, é o único outro trabalho de Eisner sobre análise de quadrinhos e, portanto, a assunção lógica, uma vez que o que se pode ver da capa da publicação (sobre quadrinhos) é parte da assinatura de Eisner. O leitor pode se surpreender de encontrar referência a um livro ainda não publicado, mas o fato é explicável pela amizade entre os autores – tamanha que Desenhando Quadrinhos, livro do qual a referência é tirada, é dedicado a Eisner. McCloud obviamente conhecia o texto.

56

Ambos os autores (Eisner e McCloud), portanto, concordam em uma origem comum

das linguagens escrita e pictórica. Eisner considera letras “símbolos elaborados a partir de

imagens que têm origem em formas comuns, objetos, posturas e outros fenômenos

reconhecíveis” (Eisner, 1999, p. 14). Como exemplo, o autor cita as escritas pictóricas egípcia

e chinesa:

Figura 6 - Escritas Pictóricas e a Realidade (Eisner, 1999, p.15)

Eisner sustenta que a linguagem dos quadrinhos leva o leitor a uma interpretação

híbrida, tanto visual quanto verbal. Nessa interpretação, as regras comumente aplicadas à

literatura (como a gramática, ou a sintaxe) e à arte (como a perspectiva e a composição) se

superpõe, fazendo com que a leitura seja, a um só tempo, “um ato de percepção estética e de

esforço intelectual” (EISNER, 1999, p. 08). A relação imagem/escrita não é necessariamente

de prevalência de um elemento sobre outro. Pelo contrário:

Ao escrever apenas com palavras, o autor dirige a imaginação do leitor. Nas

histórias em quadrinhos, imagina-se pelo leitor. Uma vez desenhada, a imagem

torna-se um enunciado preciso que permite pouca ou nenhuma interpretação

adicional. Quando palavra e imagem se “misturam”, as palavras formam um

amálgama com a imagem e já não servem para descrever, mas para fornecer som,

diálogo e textos de ligação. (EISNER, 1999, p.122)

Esse amálgama, essa linguagem nova, teria sua gramática própria, desenvolvida

através da experiência do leitor em relação a textos iconográficos e no uso repetido de

recursos diversos, que acabariam por formar um repertório familiar ao leitor. Uma

“gramática” da arte seqüencial. Segundo o autor, “os processos psicológicos envolvidos na

compreensão de uma palavra e de uma imagem são análogos. As estruturas da ilustração de

da prosa são similares” (EISNER, 1999, p. 08).

57

Figura 7 - Exemplos de Figuras Estereotípicas (EISNER, 2005, p. 22)

Tal gramática derivaria da necessidade de representação gráfica de elementos como

tempo, som, emoções, etc. Para Eisner, “nas histórias em quadrinhos, espera-se que o leitor

entenda coisas como tempo implícito, espaço, movimento, som e emoções.” Para tanto, o

leitor teria que dispor “de um acúmulo razoável de experiência.” (EISNER, 2005, p.53)

Alguns dos recursos utilizados para esse fim são os balões de fala, efeitos de perspectiva e/ou

luminosidade, etc. Os balões de fala, por exemplo, deixaram de ser somente a representação

da locução verbal e, através do uso, evoluíram de forma a acrescer significados à fala. Não só

origem, como também a qualidade do som, e mesmo o volume, podem ser transmitidos pela

forma do balão:

Figura 8 - Balões Diversos (EISNER, 1999, p. 27)

O tempo da narrativa seria dado pela leitura dos quadrinhos e também através de

elementos dentro desses quadrinhos: a duração de uma ação representada no quadro ou o

tempo que se levaria a enunciar determinada fala. Eisner chega mesmo a comparar os

quadrinhos ao código Morse e à escrita musical, salientando que também o tempo entra em

suas composições:

58

Figura 9 - Medida de Tempo (EISNER, 1999, p. 28.)

Obviamente, o leitor deveria ter experiência com a leitura de tais textos e o

conhecimento de seus recursos (especialmente os mais convencionais, como seria o caso dos

balões de fala previamente apresentados) para uma leitura apropriada.

Tendo em comum o código, o autor pode se utilizar dos recursos da linguagem para

construir sua narrativa. De acordo com Eisner, “até um pedagogo se surpreenderia com a

diversidade de disciplinas envolvidas na realização de uma história em quadrinhos média.”

(EISNER, 1999, p.144) Afinal, a representação da realidade, seja qual for o estilo escolhido,

implica escolhas que têm de se basear no conhecimento dessa realidade. Eisner enumera

algumas das disciplinas envolvidas no quadro abaixo:

Figura 10 - Disciplinas Envolvidas (EISNER, 1999, p.144)

59

Todas essas disciplinas, portanto, estão à disposição do autor para criar a história.

Assim como McCloud, e Cagnin61 antes dele, Eisner considera quadrinhos uma narrativa, e

todas as características e recursos estão necessariamente a serviço da história a ser narrada:

Figura 11 - História como "seqüência de eventos deliberadamente arranjados". (EISNER, 2005, p.13)

Scott McCloud, em seu Desvendando os Quadrinhos, traz visão semelhante,

considerando o desenho e a linguagem escrita como tendo uma origem comum:

Figura 12 - Origens Comuns Desenho/Escrita (MCCLOUD, 1995, p.31)

61 “Os quadrinhos se fixaram na narrativa. Ao se mencionar H. Q. (Histórias em Quadrinhos), o próprio nome diz que se trata de história” (CAGNIN, 1975, p.179 – observação entre parênteses não consta no original)

60

Para o autor, as palavras são “a maior abstração de todas” (MCCLOUD, 1995, p.47),

uma vez que não possuem relação visível com o que representam. Assim, imagens e palavras

difeririam umas das outras apenas em relação a seu grau de abstração:

Figura 13 - Imagens e Escrita (MCCLOUD, 1995, p.49)

Assim como Eisner, McCloud considera necessário um “vocabulário dos quadrinhos”,

uma gramática que ajude a entender os recursos utilizados pela linguagem iconográfica na

representação de fatores como tempo e espaço, e movimento e som, que são, em parte,

convenções. Esses símbolos e convenções seriam marcados pelo uso.

Figura 14 - Símbolos (MCCLOUD, 1995, p.131)

61

Para McCloud, reduzir uma figura às suas linhas básicas (processo que o autor

denomina cartunização) é, pelo contrário, uma ampliação, uma vez que a simplificação faz

com que o leitor complete com sua experiência os detalhes que faltam, envolvendo-se na

recriação do significado (p. 27-37).

Figura 15 - Cartum (MCCLOUD, 1995, p.30)

Assim como Eisner, McCloud interpreta a leitura de quadrinhos como ligada à

experiência do leitor, que completa com sua imaginação as lacunas do texto. Dessa maneira,

uma onomatopéia se torna um som, dois quadros estáticos se tornam uma seqüência que

acontece em determinado espaço de tempo e linhas saindo da figura passam a significar

movimento. Sendo uma representação do mundo real, a narrativa dos quadrinhos buscou criar

recursos para simular o que lhe falta: profundidade, sons, movimento, tempo...

A representação do tempo pode se dar de diversas formas: na transição entre

quadrinhos (que dá idéia de tempo passado), as mudanças no quadro (que podem dar pistas de

quanto tempo se passou entre uma cena e outra), e mesmo fatores dentro do quadro, como

diálogos (que levam um tempo para serem ditos e lidos), até mesmo uma legenda indicando o

tempo decorrido, como por exemplo, um quadro com os dizeres “dez anos depois” (p. 94-

107).

62

Figura 16 - Representação do Tempo (MCCLOUD, 1995, p.96)

Os recursos usados para representar movimento nos quadrinhos são, segundo o autor,

linhas de movimento, imagens múltiplas e formas sugeridas através da incorporação de efeitos

fotográficos (p.110-115).

Figura 17 - Movimento (MCCLOUD, 1995, p.110)

Por sua vez, os sons podem ser representados de diversas formas, como balões de fala

(com falas ou símbolos), até variações de letra, dentro e fora de balões.

63

Figura 18 - Sons (MCCLOUD, 1995, p.134)

A narrativa das histórias em quadrinhos se realiza, como o próprio nome indica,

através da leitura seqüencial de cenas, geralmente contidas dentro de quadrinhos (ou quadros

pequenos). De acordo com McCloud, a escolha do momento (o momento retratado),

enquadramento (de que ângulo esse momento é mostrado), imagens (forma da representação

de personagens e objetos), palavras (e sua interação com as imagens no texto) e fluxo (falas,

sons e sua ordem de leitura) determinarão forma da narrativa, bem como suas estratégias.

Figura 19 - Narrativa em um Quadro (MCCLOUD, 2008, p.10)

64

O autor também propõe uma classificação dos tipos de transição entre os quadros,

mais para fins de quantificação e estudo do estilo das narrativas seqüenciais. McCloud

classifica as transições entre quadros como de: momento-para-momento, ação-para-ação,

tema-para-tema, cena-para-cena, aspecto-para-aspecto e non-sequitur (sem relação com o

quadro anterior). Disso se chega a duas conclusões: primeira, a de que tal classificação pode

se mostrar importante para a leitura da narrativa dos quadrinhos, especialmente no caso (que

não é o deste trabalho) de análises quantificativas e/ou de extenso corpus de dados. Segundo,

a de que McCloud aprecia hífens. Uma vez que as transições entre quadros já pressupõe uma

mudança, neste trabalho se abreviará a classificação conforme especificado a seguir:

transições de momento, de ação, de tema, de cena, de aspecto e, conforme a classificação do

autor, non-sequitur. A razão para tal postura é que, a se hifenizar cada transição de acordo

com a nomenclatura original, arrisca-se a perder o leitor em uma floresta de hífens,

comprometendo a legibilidade do texto.

Em um capítulo do livro, intitulado “Uma Palavrinha Sobre Cores”, McCloud comenta

brevemente a teoria das cores (primárias aditivas – o amarelo, azul e verde – e as primárias

subtrativas – magenta, ciano e amarelo, que constituem o sistema básico das impressoras

modernas) e sua relação com a história dos quadrinhos. As novas possibilidades criadas pelo

avanço tecnológico fizeram com que alguns aspectos da arte e dos “idiomas” (p.191) dos

quadrinhos tivessem de ser repensados. Finalmente, conclui que, embora a cor em uma página

possa transmitir significados diferentes, dando profundidade, denunciando um estado de

espírito, sensação, ambiente, etc., “em preto e branco, as idéias por trás da arte são

comunicadas de maneira mais direta62” (MCCLOUD, 1995, p.192) e que, em cores, as formas

“assumem mais significância”. Uma vez que a realidade representada é em cores, continua o

autor, uma cena em cores parece mais real. McCloud termina comentando (em um quadro

com uma imagem do auto-retrato de Van Gogh) que “quando bem usada a cor pode – assim

como os quadrinhos – resultar em mais que a soma das partes” (MCCLOUD, 1995, p.192).

No caso do Quixote de Eisner não se tratará extensivamente sobre as cores. A razão

disso é simples: talvez por ter passado a maior parte de sua vida desenhando em preto e

branco (Eisner fez pouquíssimas obras em cores), o uso de cores pelo autor é bastante

convencional e não carrega grande importância (ao menos na obra em questão, seria

62 Nesta citação retirou-se o negrito usado no original. O negrito, nos balões de fala, serve para destacar uma palavra e dar-lhe uma inflexão mais marcada, o que se julgou desnecessário no texto, já que o uso não se estende a outras linguagens.

65

irresponsável falar por toda a obra de Eisner sem uma análise mais demorada). No entanto, se

tratará de cores, nem que seja para descascar um pouco o verniz do autor63.

Da comparação entre Eisner, McCloud e Cagnin se pode tirar, então, uma linguagem

em que imagem e escrita colaboram para a formação de sentido, em que cada linha ou ponto

pode ter um significado, mas que devem ser lidas em conjunto para um entendimento

completo. Uma linguagem que usa recursos de perspectiva, sombreamento, proporções para

representar o mundo real, e que desenvolveu um rebuscado repertório de formas de

representação de outras características da realidade, como tempo, movimento, espaço e

mesmo estados emocionais ou físicos. Uma linguagem que requer a experiência do leitor,

tanto para a leitura como para complementar as lacunas do texto. Uma linguagem que narra

através de escolhas de ângulos, enquadramentos, composição, sombras e traços (entre outros

fatores). Não deixa de impressionar que, partindo de pontos de vista tão diferentes, os autores

tenham chegado a resultados tão semelhantes. Há, claro, diferenças: enquanto Cagnin

preocupa-se em destrinchar o processo sígnico da leitura de imagens, Eisner e McCloud

tratam com mais destaque da produção de quadrinhos. Cagnin esforça-se por classificar os

recursos e os diferentes tipos de quadrinhos ambicionando uma visão mais completa do

assunto (se bem que – necessariamente – sempre incompleta), enquanto Eisner e McCloud

escapam esforços mais sérios de classificação (Eisner também ensaia uma classificação dos

tipos de quadrinhos, mas liga-a ao uso dos quadrinhos e não a apresenta como definitiva, mas

sim como exemplos) e buscam tornar o leitor consciente dos recursos ainda não explorados da

linguagem. E isso – essas diferenças – é facilmente explicável: Cagnin é um teórico, Eisner e

McCloud, quadrinistas. E, portanto, olham para o objeto com olhos diferentes.

Há diversos outros estudiosos cujos nomes sequer foram mencionados neste trabalho:

o professor Jorge Arbach defende64 um raciocínio gráfico, especializado na elaboração e

compreensão de imagens e análogo ao raciocínio mental usado pelo pensante para elaboração

de idéias. A imagem também é compreendida de acordo com a experiência do leitor, através

de analogias. Para o autor, escrita e imagem acabaram por se separar devido à inadequação da

escrita figurativa para a elaboração de idéias complexas. Antes, eram unidas. Porém “a

63 No sentido de tirar-lhe o acabamento imaculado com que alguns outros estudiosos o pintam: Eisner é tido como um dos melhores quadrinistas de todos os tempos, tanto que o maior prêmio de quadrinhos leva seu nome. Mas ninguém é perfeito, e, no caso específico das cores, o tratamento do autor não parece especialmente significativo. Mas isso é para diante. 64 ARBACH, Jorge Mtanios Skandar, O Fato Gráfico: o humor gráfico como gênero jornalístico, tese de doutorado, USP, 2007.

66

reaproximação das linguagens, verbal e não-verbal, está ocorrendo em nossos dias com o

advento do processo de gravação de matrizes através da luz (fotogravura) e mais

aceleradamente ainda com as novas tecnologias digitais” (ARBACH, 2007, p.236). O autor

criou um interessante gráfico ilustrativo da evolução das linguagens (em especial do discurso

jornalístico) através da História:

Figura 20 - Evolução das linguagens verbal e não-verbal (ARBACH, 2007, p. 236).

Daniele Barbieri realiza um levantamento muito original dos recursos dos quadrinhos

em seu livro Los Lenguages del Cómic65. A autora divide seu estudo em três partes, não por

características dos quadrinhos, mas de acordo com a relação das características dos

quadrinhos com outros tipos de linguagem: Linguagens de imagem, linguagens de

temporalidade e linguagens de imagem e temporalidade. Semelhante a Cagnin, a autora não

atribui aos quadrinhos uma origem, mas contenta-se em analisar o gênero que já está

estabelecido. A seguir, presta-se a uma análise das linhas, pois, como justifica, “não há

desenho sem linhas”66 (BARBIERI, 1998, p.27). As linhas são analisadas enquanto contorno,

enquanto linhas e enquanto hachuras. O desenho, para Barbieri, é uma representação do real,

necessariamente simplificada, da qual são subtraídas características pontuais, restando da

representação traços do objeto como geralmente o percebemos. Em geral, os contornos e as

sombras (p. 25). A seguir, trata das técnicas da caricatura e da pintura, destacando nesta

última as técnicas da perspectiva e na anterior o exagero proposital, que atribui a fins

humorísticos. O interessante do olhar de Barbieri, em especial, é o uso de analogias com

65 BARBIERI, Daniele. Los Lenguages del Cómic. Buenos Aires: Ediciones Paidós Ibérica, 1998. Tradução de Juan Carlos Gentile Vitale. 66 Tradução livre. No original: “no hay dibujo sin líneas”.

67

teatro, música e cinema para indicar as representações de movimento, tempo e profundidade,

assim como para ressaltar as estratégias da narrativa dos quadrinhos.

São, portanto, inúmeras formas de se ver o mesmo objeto. Neste trabalho, se aterá ao

ponto de vista apresentado por Cagnin, Eisner e McCloud não apenas por questões de

brevidade, mas também por serem estes os autores mais amplamente divulgados a tratarem do

tema.

Tendo adquirido através da revisão bibliográfica um conhecimento básico – embora

sua apresentação até aqui possa ter sido extensa, mal se começou a arranhar a superfície da

complexidade da linguagem iconográfica – dos recursos e características da linguagem dos

quadrinhos, deve-se, então comparar a narrativa de Eisner com a de Cervantes. Para que se

possa realizar uma melhor comparação, decidiu-se analisar a narrativa iconográfica através do

mesmo tipo de análise de narrativa realizado no texto de Cervantes, problematizando,

portanto, a trama (ou enredo), o tempo, o espaço, os personagens e o ponto de vista da

narrativa e observando em que (se em alguma coisa) a adaptação de Eisner difere do original.

Tal dinâmica tem a vantagem de pôr à prova a narrativa dos quadrinhos enquanto narrativa

(de acordo com a proposta de Gancho, 2004, p. 11) e em estabelecer um paralelismo entre os

textos, facilitando sua comparação.

Realizar-se-á a análise quadro-a-quadro (aparentemente, o gosto por hífens de

McCloud é contagioso e se manifesta tanto em mesóclises quanto em aglutinações) da parte

da adaptação de Eisner correspondente ao capítulo VIII do livro de Cervantes (no total são 13

quadros) e, subseqüentemente, estruturar um resumo da narrativa como o apresentado no

início do capítulo anterior. A análise quadro-a-quadro é um passo necessário para que o leitor

tenha uma visão clara do texto analisado e a maneira de sua leitura. Afinal, tal leitura

determinará o resumo. Um resumo escrito de uma história em quadrinhos é derivado de uma

interpretação e poderia resultar um tanto vago, melhor dar ao leitor as ferramentas necessárias

para discordar dessa interpretação. E, para tanto, deve-se explicitar de que modo se chegou a

ela. No caso do capítulo escrito, não se julgou necessário demorar-se em tais minúcias, uma

vez que a leitura realizada acaba por ser explicitada na análise.

Para efeitos de descrição de quadros, se utilizará de linguagem comumente utilizada

no cinema e da tipologia proposta por Cagnin (CAGNIN, 1975, pp. 89-93): a mistura de

termos tem o objetivo de enfocar os termos mais utilizados (por exemplo, close-up no lugar

68

de plano em grande detalhe, conforme proposto por Cagnin – close-up é tão popular que se

tornou marca de creme dental por dar destaque ao sorriso, sendo, portanto, mais inteligível do

que o vocabulário utilizado por cagnin). Assim, se utilizará da seguinte tipologia: close-up

indicando a visão de um detalhe, primeiro plano incluindo a cabeça e os ombros dos

personagens, o plano médio sendo a figura até o meio do peito ou até a cintura (para

diferenciá-los, se usará plano de peito e plano de cintura para casos específicos, em

detrimento do já mencionado plano médio), o plano americano com a figura até os joelhos, o

plano de conjunto (ou plano de corpo inteiro) com a figura inteira, o plano geral ou

panorâmico dando destaque para o cenário e o plano em perspectiva quando o objetivo é

mostrar vários planos. Tal classificação é afim à de Cagnin, que acrescentaria a isso os planos

plongé e contra-plongé – tomadas de coma e de baixo, respectivamente. No entanto,

considera-se aqui que qualquer dos planos mencionados acima pode enquadrar os

personagens de diversos ângulos, sendo, portanto, passíveis de qualquer mistura com ambas

as classificações acima. Melhor mencionar o ângulo (quanto este for significativo) e o plano

em separado.

3.1 ANÁLISE QUADRO-A-QUADRO DA NARRATIVA

QUADRO 01:

Figura 21 - Quadro 01

69

Dom Quixote, em plano americano, olhos arregalados e boca crispada, curva-se para

trás com a surpresa de ver algo a uma distância considerável. Antes que o leitor resolva largar

este trabalho por um livro de profecias, que, ao menos, seria mais honesto em seu objetivo de

realizar previsões sem dados que as fundamentem, cumpre dizer que as evidências sustentam

a conclusão: olhos arregalados são evidência de surpresa. O fato de estar curvado para trás

também sugere tal estado emocional, ao passo que o fato de olhar para a frente, e não para

baixo (como faria um cavaleiro ao olhar o rosto de um homem de pé, por exemplo) e os olhos

desenhados em paralelo (ambos os fatos sugerindo a orientação do olhar do personagem para

o horizonte, e, portanto, longe). Se pode notar que o cavaleiro é retratado de forma

intencionalmente caricaturizada e que se afasta da imagem heróica que teria, por exemplo, um

cavaleiro, com o perdão da redundância.

Os elementos a denunciarem tal visão do personagem seriam o traço exagerado (mais

uma caricatura que uma cartunização67), que inclui a posição do corpo do personagem, mais

para se atirar para trás do que para a reação normal a um elemento surpreendente68. Os braços

erguidos, levantando as mãos em surpresa, de modo que mesmo as armas que porta (um leitor

crítico se perguntaria como tal figura guiaria o cavalo) seriam inúteis no caso de um ataque. A

isso, o desenhista acrescenta uma falha nos dentes do personagem, um remendo muito

surpreendente na lança (no original de Cervantes é após o encontro com o moinho que Dom

Quixote quebra a lança, e, mesmo assim, não a remenda de tal forma) – surpreendente porque

inútil: o resultado mais provável em uma situação em que o cavaleiro arremeta contra um

objeto sólido de lança em riste seria perder a ponta da lança. Note-se a atitude pouco

dramática do cavalo, em oposição à surpresa do cavaleiro. Rocinante, aparentemente, não se

impressiona com dragões, como parece ser o caso.

67 Em trabalho realizado anteriormente, comparando os conceitos de diversos autores em relação à cartunização, à caricaturização e ao desenho realista, se chegou à conclusão de que todo desenho é cartunizado, simplificado, e que a principal diferença entre cartum e caricatura é que “enquanto o cartum usa da simplificação das linhas e do tratamento estereotípico para transmitir seus significados de forma rápida e facilmente reconhecíveis ao leitor, a caricatura apresenta o exagero de traços característicos em detrimento da simplicidade dos traços (embora seja conciliável com a simplificação, sacrifica-a pela semelhança)” (VIDAL, 2009, p. 111). 68 Trivia: em inglês, uma das expressões para indicar que algo surpreendeu uma pessoa é dizer que a pessoa foi “taken aback”. Segundo o site www.phrases.org, a origem dessa expressão é a de que a pessoa encontrou algo surpreendente o suficiente para dar um salto para trás. Recuar instintivamente é uma das reações comuns à surpresa. Informações disponíveis no site <http://www.phrases.org.uk/meanings/taken-aback.html>, acesso em 24/10/2010.

70

O cavaleiro diz: “Oho’ look there a dragon abroad!”, ou, em sua tradução, “Arrá, veja

lá adiante, um dragão à solta!”69. Ou seja: a causa de tamanha surpresa é um dragão.

QUADRO 02:

Figura 22 - Quadro 02

Este quadro tem três planos diferentes: no primeiro vemos Sancho Pança, de costas

para o leitor, as pernas abertas, o braço estendido em surpresa e o outro estendido na direção

do Quixote, como se buscando impedi-lo de realizar seu intento. Novamente, o cavaleiro (um

burro também é uma cavalgadura) não se utiliza das rédeas, o que sugere que, ou o Ruço é

uma montaria ainda mais formidável do que se pensava, ou o autor não é muito familiarizado

com as técnicas da montaria. Ou prefere abrir mão do realismo das técnicas de montaria para

ganhar na expressividade dos personagens. Em segundo plano, não de costas para o leitor mas

afastando-se em direção ao moinho, vai Dom Quixote, novamente com o cavalo de cabeça

baixa, a um meio-trote, no máximo (as pernas do cavalo o indicam: não se erguem no ar como

em um trote cheio nem estão pareadas como no galope). O cavaleiro, no entanto, vai inclinado

para a frente como se estivesse indo à toda velocidade. A poeira levantada pelas patas do

cavalo é também indicador de movimento e de direção. E, porque não acrescentar, de que o

tempo está seco e a região não é das mais férteis, uma vez que poeira em meio a um campo

não é coisa comum. Na verdade, o cavaleiro está quase de perfil neste quadro, e é mais a

composição, com o moinho em terceiro plano, dominando a cena (e, deve-se dizer,

69 Resolveu-se aqui manter o negrito original para indicar quais palavras o autor buscou ressaltar na leitura, como é o caso quando palavras negritadas aparecem em quadrinhos. Todas as traduções do texto são traduções livres, realizadas para o propósito deste trabalho.

71

representado de modo realista, demonstrando que Eisner tinha conhecimento dos moinhos do

campo de Criptana, em Montiel), que vai dizer que tal é o destino do cavaleiro.

O cavaleiro diz: “Fique de lado Sancho eu lidarei com ele!”, ao que Sancho responde

“Mas é só um moinho de vento, senhor” (sic. – sem pontuação). Isso reforça a idéia de que o

cavaleiro está a se dirigir para o moinho de vento.

Curiosamente, Eisner pôs pássaros a voarem, para efeito de ambientação. Mas, caso se

considere os pássaros um quarto plano e se pense neles distantes do moinho, tem-se que,

devido às proporções, os pássaros são quase do tamanho do moinho e talvez sejam mesmo os

dragões que o cavaleiro afirma ter visto. Se os pássaros estão entre o moinho e o cavaleiro, o

desenhista poderia ter sobreposto um deles ao moinho para que isso ficasse claro. Fica sendo,

nesta leitura, um recurso de ambientação, além de uma daquelas tantas coisas em que, quanto

menos se pensar, melhor.

Há uma transição de ação em relação ao quadro anterior, uma vez que, da surpresa,

passa-se para a investida aqui. O plano muda para panorâmico, colocando em cena parte do

cenário (e mostrando o tal moinho) e distanciando o leitor.

QUADRO 03:

Figura 23 - Quadro 03

Semelhante ao quadro anterior, são a composição e o contexto que vão dizer a direção

do ataque do cavaleiro. Primeiro, se sabe que o Quixote vai atacar o moinho. Em segundo

lugar, tudo no quadro converge para o moinho: a composição do quadro e o moinho como a

área mais clara da figura atraem não apenas os olhos do leitor, mas também a ação. Se se

tomasse a proporção das figuras do Quixote, de Sancho e do Ruço em oposição ao tamanho

do moinho, teríamos algo como a figura (mal) desenhada abaixo:

72

Figura 24 - Olho do Leitor

As setas indicam o caminho do cavaleiro, supondo-se que ele teria saído da companhia

de Sancho e agora se dirigisse ao moinho. Os elementos do quadro estão dispostos em uma

linha reta, mas, caso não se levasse em conta a proporção apresentada, uma vitória sobre o

moinho seria verdadeiramente possível, uma vez que este seria pouco maior que uma pessoa –

e Sancho, um anão. Por outro lado, mesmo sendo verdade que o personagem do Quixote é um

louco, com mania de cavalaria andante, não se espera que considere um arco a menor

distância entre dois pontos, e tampouco a narrativa de Eisner sugere que tenha realizado uma

manobra elusiva, em curva.

O que se tira disso não é que Eisner errou ao representar a realidade nem que tais

detalhes são irrelevantes, mas sim que, mesmo com a arte e o conhecimento necessários à

representação da realidade (Eisner é, afinal de contas, tanto um dos maiores autores de

Graphic Novels da história dos quadrinhos, mas também um dos mais aclamados teóricos do

assunto, como anteriormente mencionado) os recursos dos quadrinhos servem à narrativa e

não estão limitados pela realidade, assim como o não está a narrativa.

O cavaleiro brada, um tanto redundante, “Eu ataco!” enquanto investe contra o

moinho, ao passo que Sancho, tendo ficado para trás, estende os braços na direção do

Quixote, impotente para impedi-lo.

73

Em relação ao quadro anterior, há uma transição de momento: Dom Quixote afasta-se

mais de Sancho. O plano panorâmico afasta ainda mais o leitor da ação, reduzindo seu

envolvimento.

QUADRO 04:

Figura 25 - Quadro 04

O quadro mostra Sancho Pança, em plano americano, com uma expressiva posição de

antecipação da desgraça: os braços erguidos, não mais em direção ao cavaleiro, mas sim como

se para se proteger do desastre, o rosto voltado para o outro lado, olhos contraídos (são apenas

duas linhas, mal visíveis e cuja expressão pode ser deduzida com algum grau de acuidade

mais pelo resto de sua expressão facial) e cantos da boca voltados para baixo, os dentes à

mostra. A expressão de temor é tamanha que até mesmo os joelhos se afastam, os ombros

encolhidos. Sancho obviamente está em guarda, mas, como não olha para o que está a

acontecer, pode-se deduzir que simplesmente evita olhar o que acontece pela antecipação e o

temor das conseqüências do que está a acontecer. O traço é caricaturizado, como é a regra,

com Eisner. Essa é uma de suas características mais marcantes: poucos autores conseguem

atingir linguagem corporal tão expressiva, embora talvez um tanto exagerada. A transição

entre quadros é a de aspecto, pois o olho do leitor é dirigido a Sancho. Assim como ele, o

leitor “volta sua face”, não vendo o desfecho dos acontecimentos, o encontro entre Dom

Quixote e moinho de vento. Esse recurso ajuda a ampliar a ação e o suspense da narrativa:

Sancho mal pode se conter diante da enormidade da ação, o corpo contraído de expectativa.

Ao mesmo tempo, é um desfecho funesto, tanto que o personagem não pode acompanhá-lo.

74

QUADRO 05:

Figura 26 - Quadro 05

Este quadro representa uma elipse, segundo a teoria proposta por Cagnin (1975, p.

163). Uma elipse representaria um vazio a ser preenchido pelo leitor, uma lacuna na narrativa

por que uma ação ou momento é substituído. No caso, temos uma imagem de explosão de

energia ou um choque, fragmentos voando para todos os lados (inclusive para fora do quadro,

o que envolve o leitor na cena e torna a narrativa mais dinâmica, fazendo com que os quadros

interajam de diversas formas – outra característica de Eisner presente neste capítulo e cuja

manifestação se dá principalmente pela superposição de quadros e por balões extrapolando os

limites). Daí se pode concluir que a lacuna substitui a ação de Dom Quixote se chocando

contra o moinho de vento, mesmo que tal não apareça no quadrinho. A assunção é lógica por

se tratar da materialização da expectativa funesta de Sancho. Sendo uma elipse, no entanto,

não se trata especificamente de uma ação ou aspecto, embora sugira essa ação. E, assim, não

cabe na classificação proposta por McCloud. Melhor seria, para efeitos de análise, considerá-

la simplesmente uma elipse, ou lacuna, e deixar a coisa por aí.

75

QUADRO 06:

Figura 27 - Quadro 06

Primeiro plano do rosto de Sancho, desesperando-se de comiseração. As mãos coladas

ao rosto em desespero, quase uma atitude de tapar os olhos para negar a cena diante de seus

olhos. Aliás, seus olhos estão fechados e o rosto contraído, também de comiseração. Fácil de

entender se se considerar a situação em que se encontra o fidalgo no momento. Sancho

exclama “Iau!”. O que, dada a ênfase à sua expressão, pode se considerar até como

desnecessário. Esta cena representa uma transição de momento em relação ao quadro 04

(sendo o 05 uma elipse): a “câmera” aproxima-se de Sancho para captar-lhe a expressão

dorida70.

Figura 28 - Metaquadrinho

70 Doída. Mas fica mais poético posto desse modo.

76

Interessante notar que os últimos quatro quadros analisados se unem em um

metaquadrinho71, em que o quadro acima (que encompassa os três abaixo através da extensão

do cenário abaixo deles) mostra a ação ocorrida enquanto os três, dispostos lado a lado,

mostrariam as reações de Sancho Pança a essa ação – com a elipse do momento do choque,

que chega a se estender para os quadros vizinhos por sua enormidade, terrível demais para ser

contemplada, tanto por Sancho quando pelo leitor. A omissão do requadro, estendendo o

cenário, faz do leitor uma parte da cena (uma vez que não há quadrinho limitando a ação)72.

Dessa forma, toda a ação do ataque ao moinho, o espaço percorrido e o tempo a percorrê-lo

estão contidos em um só quadro, união dos quatro quadrinhos. Trata-se da Gestalt em ação,

conforme os preceitos de Cagnin. E é a narrativa fenomenal de Eisner – perdoe o leitor a

empolgação. Acontece. Tal organização equivale ao “enquanto isso” em uma legenda,

possibilitando à narrativa o tratamento de dois aspectos diferentes do mesmo momento e – se

acredita – mais do que justifica a necessidade de uma análise quadro-a-quadro antes do

resumo da ação do capítulo, uma vez que tal percepção poderia se mostrar problemática. A

frase anterior, por sua vez, seria equivalente a um “Viu? Viu?”. Mas com todo respeito.

71 Metaquadrinho: expressão utilizada por Eisner para indicar quando vários quadrinhos atuam em conjundo para formar uma unidade maior (EISNER, 1999, p. 63). A percepção seque as normas da teoria da Gestalt, utilizada por Cagnin, em que as diversas imagens seriam percebidas como um todo pelo leitor. 72 Obedecendo ao que Eisner denomina “função emocional do requadro” e cuja função seria “despertar a própria reação do leitor” (EISNER, 1999, p. 59).

77

QUADRO 07:

Figura 29 - Quadro 07

O tipo de plano que melhor definiria este quadro seria o plano em perspectiva, embora

não haja destaque para o uso do recurso. Porque são vários planos em um mesmo quadro:

Dom Quixote e Sancho Pança em primeiro, Rocinante (com sua apatia característica) em

segundo e, ao fundo, em terceiro plano, orelhas em riste e voltado para a cena, o Ruço.

Interessante observar que a perspectiva funciona melhor quando há estruturas poligonais ou

simetricamente dispostas no cenário. No caso, não estando os personagens alinhados com

simetria nem sendo especialmente regular o terreno ou a distância entre eles, é a proporção do

tamanho que pode dar uma pista das distâncias entre eles.

No primeiro plano, Sancho Pança ajuda o cavaleiro a sair do embrulho em que se

meteu, pendurado na pá do moinho. Uma vez mais é importante notar a expressão corporal

dada pelo autor às personagens, em que Sancho, postura muito ereta, queixo erguido e sorriso

no rosto, é uma personificação viva da frase “Eu não disse?”, pois sua atitude arrogante e

complacente parece reduzir o abatido fidalgo a uma criança caprichosa. Aliás, se a postura de

Sancho fosse repetida por um ator, no mundo real, sua próxima interpretação seria na

horizontal, uma vez que a gravidade, até onde se sabe, continua em vigor. O exagero

caricatural se estende à posição do cavaleiro, pendurado na pá do moinho, o epítome da

derrota, braços pendentes, sem capacidade de qualquer reação contra seu atual predicamento.

Sobre ele, a lança, provavelmente necessitada de um segundo remendo inverossímil. O vento

sopra, o que pode ser deduzido da presença desconcertante de folhas flutuando no ar.

Desconcertante porque, a se checar o cenário, tanto neste quadro quanto nos anteriores, não se

verá árvore próxima, e folhas não têm o costume de voarem por aí para conhecer novos

78

cenários. Trata-se de uma convenção típica da gramática dos quadrinhos: folhas indicam

vento, assim como papéis ou sacolas voando. O quadro, em relação ao anterior, apresenta uma

transição de ação, pois da reação de Sancho ao choque se passa ao auxílio do cavaleiro em

desgraça.

QUADRO 08:

Figura 30 - Quadro 08

Encontra-se, novamente, uma transição de ação entre este quadro e o anterior, uma

vez que Dom Quixote e Sancho Pança agora se retiram da cena do combate contra o “dragão”

- o moinho de vento ao fundo, enquanto seguem os personagens para frente na estrada

pedregosa. Outro dos moinhos do campo de Criptana está visível na distância. E há pássaros,

novamente. Mas esses parecem normais. O enquadramento é o plano de corpo inteiro. O

cavaleiro vem alquebrado, curvado, a mão na cabeça provavelmente a tatear um ponto

sensível devido ao encontrão e a outra apoiada no cavalo (dessa vez há a possibilidade de

estar a segurar uma rédea). Interessante notar que a espada do cavaleiro se encontra em

oposição à ação dos quadros, tanto neste quanto no quadro 01 analisado aqui. O que a

princípio pareceu um simples acidente pode, portanto, significar que o desenhista usa o

recurso para aumentar a impressão de desajeitado ligada ao cavaleiro, uma vez que a espada,

indo contra a ação da narrativa visual, parece portar-se desastradamente. Rocinante mostra a

boa vontade de sempre, cabeça baixa e atitude apática. O cavaleiro vai comentando a luta:

“Oho... que luta... ugh, eu perdi minha lança!”. Ou seja, não superou os acontecimentos.

79

Sancho Pança vai um tanto mais feliz: postura quase ereta, sorriso no rosto, braços

abertos, argumentando que “Eu lhe avisei que era apenas um moinho de vento, senhor!”

QUADRO 09:

Figura 31 - Quadro 09

Novamente uma transição de ação, em um plano panorâmico, onde o cavaleiro e o

escudeiro (em primeiro plano) notam uma carruagem em uma estrada, passando, próxima a

onde cavalgam. Embora se saiba que a aventura dos moinhos está terminada e uma nova

aventura se aproxime, é difícil considerar este quadro uma transição de cena, uma vez que as

atitudes dos personagens parecem contíguas – a paisagem é homogênea, o moinho parece

estar logo atrás dos cavaleiros. Não há referências sobre local, salvo a estrada (na época talvez

se tratasse de elemento incomum), nem muitos detalhes dignos de nota, excetuando-se, talvez,

o uso da poeira da estrada para novamente indicar o movimento da carruagem. E blocos

hachurados indicando árvores, na distância. De dentro da carruagem sai o balão de fala: “Pare

este coche, condutor!73”, ao que o condutor responde “Sim, minha senhora.” Onde o leitor

poderia estar começando a se perguntar se Eisner conhecia como pontuação apenas o ponto de

exclamação ou ausência total de pontuação, surge um ponto final. Novamente, há pássaros ao

fundo. Embora o quadro seja apresentado por um ângulo de visão em que o leitor estaria

73 Talvez uma tradução mais apropriada fosse “pare esta carruagem, cocheiro”, ou mesmo “pare este coche, cocheiro!”, uma vez que há um substantivo para condutores de coches, ou carruagens. No entanto, se preferiu manter “coche” e “condutor” por ser mais próximo ao original. O leitor pode se perguntar a diferença entre “coche” e “carruagem”. Segundo o dicionário eletrônico Houaiss, versão 1.0.5, um coche seria uma “carruagem fechada”, como é o caso dos quadros analisados. Portanto, tanto uma quanto outra descreve bem.

80

pairando sobre a cena, este não é necessariamente apenas um recurso narrativo, uma vez que o

autor poderia estar a tentar refletir a visão das personagens, em plano mais alto que a

carruagem. O efeito, entretanto, é o mesmo: a visão de cima, superior, torna mais distantes,

psicologicamente falando, os ocupantes do coche.

QUADRO 10:

Figura 32 - Quadro 10

Este quadro apresenta um problema interessante: é tanto uma transição de aspecto

quanto de ação, uma vez que agora os cavaleiros se aproximam da carruagem (o que consitui

uma nova ação) e o enfoque da carruagem em primeiro plano mude o ponto de vista, focando

a “m’lady” e o condutor como condutores da narrativa. A cena passa a ser mostrada do ponto

de vista deles (o que será reforçado pelo próximo quadro – mas se chegará lá em tempo).

Temos a carruagem em primeiro plano (ou seja: mais próxima ao olho do leitor... o plano

utilizado para o enquadramento desta cena seria o plano de corpo inteiro), vista de trás, o

condutor voltado para os estranhos que chegam, e os cavaleiros se aproximando, com o

Quixote à frente, em segundo plano. Pássaros, muitos pássaros no céu. Impressionante a

quantidade de pássaros da Mancha, nos idos de 1600.

81

A ocupante da carruagem (que já sabemos ser a senhora do condutor) pergunta: “O

que é aquilo?”, ao que o condutor responde “Parece ser um- um- cavaleiro em (haha)

armadura, minha senhora.”74.

As falas dos personagens, que em momentos pareceram um tanto redundantes, agora

vêm acrescer diversos significados: a princípio, destacam a estranheza da “m’lady” em

relação aos personagens que chegam, uma vez que se refere marcadamente “àquilo”, em vez

de perguntar sobre quem seriam “aqueles”, por exemplo. Ao mesmo tempo, o gaguejar do

condutor, ao buscar identificar o que seria “aquilo”, mostra o esforço consciente para

conseguir pegar uma conclusão às figuras que se aproximam. Quando atinge essa conclusão

não pode suprimir uma risadinha no meio da frase (o “ha ha”). Essa risadinha torna sua

surpresa em diversão devido ao ridículo dos personagens.

QUADRO 11:

Figura 33 - Quadro 11

O quadro apresenta tanto uma transição de aspecto quanto uma transição de ação,

pois, assim como a ação progride (com os cavaleiros, Sancho e Quixote, tendo se aproximado

da carruagem, se apresentando à ocupante), um novo aspecto da cena é escolhido. Dessa vez,

com a visão de dentro do coche, que vem a consolidar o ponto de vista dos viajantes da

carruagem apresentado no quadro anterior. Importante notar que, além de mostrar novamente

a perspectiva dos viajantes, o quadrinho coloca o leitor virtualmente sentado no assento do

74 Parênteses não constam no original, simplesmente pareceu ser a melhor forma de transcrever uma risadinha em meio à frase: entre parênteses e com fonte de tamanho diferente, para indicar que foi enunciada mais baixo.

82

coche, como integrante da cena. Esse recurso reforça ainda mais a visão dos viajantes que a

narrativa assume. Em primeiro plano temos a ocupante da carruagem, debruçada sobre o

apoio da janela, olhando para fora com expressão atônita (olhos arregalados, boca aberta em

“O” e sobrancelhas erguidas – o ser humano não fica muito mais atônito que isso). Em

segundo plano, Sancho Pança, atitude humilde mas de boa disposição (sorriso no rosto,

cabeça baixa e chapéu na mão), aponta para trás, onde, em terceiro plano, Dom Quixote se

encontra, todo torto sobre o cavalo. O escudeiro está a apresentar o cavaleiro.

A dama pergunta: “Quem é você, senhor?”, ao que o escudeiro responde “Ele é Dom

Quixote de La Mancha!”

O tratamento expressivo da linguagem corporal, particular a Eisner, continua nas

posições exageradas e claras das personagens. As roupas da dama da carruagem sugerem um

estado de nobreza, não por que os detalhes deixem entrever a qualidade de sua confecção, mas

por sua forma, com mangas largas e uma grinalda ornamentada a sugerir uma coroa, símbolo

da nobreza. Ao passo que a dama é apresentada em plano de cintura, o escudeiro é

apresentado em plano americano, encobrindo parcialmente o cavaleiro (que, de outra forma,

apareceria inteiro).

QUADRO 12:

Figura 34 - Quadro 12

A cena volta ao ângulo testemunhal, uma visão de fora. O enquadramento é o plano de

corpo inteiro (para todos os personagens, embora o condutor e a dama estejam parcialmente

83

encobertos pelo coche). A transição em relação ao quadro anterior é novamente a de ação e

aspecto, uma vez que o olho do leitor sai da carruagem para uma nova posição em relação à

cena, constituindo em mais que um mero ângulo diferente: trata-se de uma perspectiva

diversa, em que não há uma preponderância estabelecida de proximidade em relação ao leitor,

daí a característica testemunhal da cena.

A dama da carruagem e o cocheiro olham, bestificados, enquanto Dom Quixote se

apresenta, de joelhos, conforme o uso das leis da cavalaria a que jurou serviço. Atrás dele,

com uma postura um tanto mais relaxada (ajeitando o chapéu com a mão, a outra mão

descansando nas costas – ou fazendo sabe-se lá com os fundilhos –, pés tão apartados que

apenas as leis versáteis da física nas representações iconográficas impedem o escudeiro de

cair para frente ou para trás) em tudo oposta ao formalismo do cavaleiro, está Sancho Pança,

olhando com interesse as atitudes do outro. Na verdade, o que se tira desta cena é que todos

estão a olhar a atitude exagerada de Quixote, enquanto este se declara: “A seu serviço,

senhora... pelo nome das leis da cavalaria andante!”75

A composição do quadro também chama a atenção, com o Quixote destacado no

centro (tanto pela direção dos olhares de todos quanto pelo emolduramento realizado pelo

balão de fala, que, unido aos demais personagens destacam o cavaleiro na figura). Também, a

parte mais clara do quadro (o elmo e o reflexo da ombreira da armadura) ajudam para atrair a

atenção do leitor.

75 Uma tradução mais literal do original seria “A seu serviço, senhora... pelo nome da cavalaria”. A preferência pela tradução usada deve-se à diferença contemporânea entre a cavalaria militar e a cavalaria andante tradicional. Uma de armadura, a outra de fuzil... melhor deixá-las apartadas.

84

QUADRO 13:

Figura 35 - Quadro 13

O quadro em questão apresenta uma transição de ação, com o cavaleiro e o cocheiro

prestes a um embate, diante do olhar atônito da (sabemos agora, com a leitura do quadro,

duquesa – cuja atonicidade pode ser lida, novamente, pela boca aberta e os olhos arregalados).

Novamente o leitor é colocado em uma postura testemunhal, observando a ação. A

composição da cena apresenta uma particularidade digna de nota, portanto perdoe o leitor

mais uma incursão no terreno da ilustração durante a realização do trabalho, para que fique

claro do que se trata. A ilustração vai abaixo.

Como se nota, há uma clara oposição entre o condutor do coche (que, no romance se

conhece como o biscainho) e o Quixote. Não apenas estão ambos em posição de brandir suas

espadas em cantos opostos do quadro (emoldurados pelos balões de fala e pela carruagem),

mas também estão apartados pelo céu, suas cores formando uma silhueta contra o céu azul.

Verdade, a armadura do Quixote é pintada de azul, mas mesmo assim, sendo o olhar do leitor

atraído para a parte mais clara do quadro (parte da teoria da Gestalt e uma reação instintiva a

ambientes escuros: na luz se encontra o visível), a oposição se torna clara:

85

Figura 36 - Composição do quadro 13

Dom Quixote é mostrado em plano de cintura, enquanto ao condutor (nesta versão não

é biscainho) tem o privilégio de ser mostrado com enquadramento de corpo inteiro, embora

boa parte deste não apareça. Preparam-se, ambos, para o ataque, o condutor anunciando:

“...fora, seu velho tolo. Você aborrece a duquesa!”, ao que o Quixote responde, prolixamente,

“Oh, ho!”.

Aqui se aparta do capítulo, aqui termina a parte correspondente ao capítulo do Quixote

de Cervantes, uma vez que o embate entre o Quixote e o condutor prossegue sem interrupção

no quadro seguinte. No entanto, tal análise não vem em vão, uma vez que a leitura dos

quadros e seus significados permitem a transcrição do Quixote de Eisner para um código

comum ao de Cervantes. E, portanto, dá margens a uma comparação. A seguir, transcrever-se-

á a ação para sua forma escrita e se passará a análise dos componentes da narrativa.

86

3.2 ELEMENTOS DA NARRATIVA DOS QUADRINHOS

A ação diegética seria, portanto:

Dom Quixote vê um dragão à solta. Quando mostra disposição em atacá-lo se vê que

não é um dragão, mas sim um moinho de vento, o que é notado pelo escudeiro. Mesmo assim,

ele avança contra o moinho. Durante essa ação, Sancho se preocupa com o desfecho, e se

horroriza com o resultado. Então o escudeiro ajuda (cheio de razão) o cavaleiro a descer do

embrulho em que fez por bem se enfiar, acabando preso em uma das pás do moinho, e deixam

o local, Quixote abatido e Sancho divertido. Encontram no caminho uma carruagem em uma

estrada. Os ocupantes, surpresos com a figura um tanto ridícula do cavaleiro em armadura,

param no caminho para ver de que se trata aquilo. A ocupante do coche pergunta a

identidade do cavaleiro recém-chegado. Em um rasgo galante, Dom Quixote se põe a serviço

da moça, de joelhos, em nome da cavalaria andante. Ao que o cocheiro desembainha a

espada e ataca Quixote, dado que o “tolo” estaria “importunando a duquesa”.

Claro, a ação do capítulo poderia ser ainda mais reduzida, até algo como:

Quixote confunde um moinho de vento com um dragão e o ataca, ficando preso em

uma pá. Sancho o ajuda e partem do local. Encontram uma carruagem. Os viajantes se

surpreendem com os recém-chegados. Dom Quixote se põe a serviço da ocupante e o

cocheiro o ataca, por estar importunando a duquesa.

Porém a primeira redução da ação do capítulo tem a vantagem de guardar detalhes que

podem ser importantes para a análise, como as reações de Sancho e detalhes da temporalidade

da narrativa (que é simultânea, envolvendo tanto o ataque ao moinho quanto as reações de

Sancho a este ataque) que podem se mostrar importantes para a leitura e análise de suas partes

integrantes e a comparação com a narrativa original, a que se procede a partir deste ponto.

87

3.2.1 Tempo

Enquanto originalmente a ação do capítulo se dá em um dia e meio, na narrativa de

Cervantes, a falta de marcadores de tempo na narrativa de Eisner faz com que o tempo

diegético na trama analisada possa se dar até em menos de quinze minutos, uma vez que as

cenas parecem se suceder sem transição de ambiente ou mesmo de marcadores claros (como

poderiam ser curativos no cavaleiro, ou mesmo sua recuperação, ou até uma caixa de texto,

um balão narrativo, indicando que tempo se passou desde o quadro anterior). Dessa maneira, a

diferença é significativa.

O tempo de leitura é, também, razoavelmente mais curto, devido à percepção imediata

das imagens e à conseqüente leitura ágil dos quadrinhos76, linguagem híbrida. Ao passo que a

narrativa de Cervantes segue o tempo linear, apresentando os fatos na ordem em que

acontecem, estabelecendo um paralelismo para narrar as desventuras de Sancho com o frade

caído e de Quixote com a biscainha, a narrativa de Eisner segue também o tempo linear, mas

apresenta um tempo paralelo apenas no ataque do cavaleiro ao moinho, em que a perspectiva

de Sancho é apresentada.

Enquanto se sabe que o tempo da narrativa é, no caso do original de Cervantes, a

Espanha de um tempo antes de 1605 – ano em que o romance foi lançado, uma vez que o

escritor teria tido tempo de fazer a pesquisa – o Quixote de Eisner se passa “na Espanha... há

muito tempo atrás...”, de acordo com a imagem apresentada abaixo. Trata-se do que o próprio

Eisner denomina “página de apresentação”, que o autor sustenta funcionar como uma

introdução à história (EISNER, 1999, p. 62).

76 “Em comparação com o código lingüístico, porém, é bem menos dispendioso, porque a aprendizagem dos elementos discretos, não analógicos, é de maior custo; a decodificação da unidade lingüística vai da parte para o todo, enquanto a da unidade icônica vai do todo para as partes (...)” (CAGNIN, 1975, p. 52)

88

Figura 37 - Página de Apresentação (EISNER, 2000, p.03)

Sendo a ilustração parte da página de apresentação, e desempenhando a função de

introduzir o narrador, o tempo e o espaço da narrativa, vai ser utilizada repetidamente na

análise a seguir. Sugere-se, portanto, ao leitor, que passe os olhos sobre ela uma segunda vez.

Como se vê, a narrativa se passa na Espanha, há muito tempo atrás, quando Sancho Pança era

novo, tempo em que “teve a honra de conhecer um cavaleiro”. O tempo da narrativa é depois

dos acontecimentos, como no original de Cervantes, mas não mais se condiciona pelo tempo

de uma pesquisa e recolhimento de material de historiadores (que Cervantes alega ter

realizado), mas sim pelo tempo de vida de Sancho Pança.

3.2.2 Espaço

O espaço da narrativa, como visto anteriormente, é o da Espanha “de muito tempo

atrás”. Uma vez que Sancho comenta que “Em minha vila de Lamancha (sic.) vivia Alanzo

Quixano (sic., novamente), que lia apenas livros de cavalaria e de cavaleiros andantes”,

supõe-se que a ação diegética se dê próxima à região da Mancha (Eisner não deixa claro se se

trataria de uma vila chamada Lamancha).

Tal afirmação pode ser amparada pelo fato de ambos os personagens se conhecerem

(na narrativa de Eisner Sancho encontra Quixote caído em um bosque, cantando seus amores

89

por Dulcinéia após um malfadado embate, o reconhece e se oferece para levá-lo em casa –

uma vez que Sancho vem a pé carregando um saco e a noite aparenta já ir alta, é justo deduzir

que moram ambos por perto) e pela falta de elementos determinantes do tempo na narrativa,

que faz com que a aventura dos moinhos pareça acontecer logo após deixarem a vila. Na

narrativa de Cervantes, como se viu, deixam a vila (que não tem nome) para entrarem em

Montiel, onde encontram os moinhos no campo de Criptana, estando o espaço geográfico

muito melhor determinado.

Os cenários, que, nos quadrinhos, também constituem o espaço da narrativa e que (ao

contrário do tempo e do espaço da narrativa, assim como a construção do personagem, que

necessitam fazer referência à obra como um todo e não apenas a um capítulo) podem ser

considerados isolados do restante da obra, apontam para campos poeirentos e pedregosos, não

especialmente férteis, visão que (sabe-se devido à análise do espaço da narrativa de

Cervantes) é coerente com o cenário original. O moinho, porém, não é igual aos moinhos que

até hoje estão no campo de Criptana. É o moinho de vento que apresenta o problema maior de

se analisar o espaço da narrativa: se Eisner realizou sua pesquisa a respeito dos moinhos da

Espanha, falhou em determiná-los localmente. De acordo com os autores Rojas-Sola e

Amecuza-Ogayar77, “Existe uma tipologia de moinho de vento manchego, comum a todas as

zonas, se bem que em determinadas áreas aparecem detalhes técnicos ou de construção que os

tornam parciamente diferentes.” ( ROJAS-SOLA e AMEZCUA-OGAYAR, 2005, s/p.) De

acordo com essa tipologia, os moinhos retratados por Eisner seriam semelhantes aos moinhos

encontrados em Rojales, de acordo com a foto abaixo:

77 ROJAS-SOLA, José Ignacio and AMEZCUA-OGAYAR, Juan Manuel. Origen y expansión de los molinos de viento en españa. INCI. [online]. June 2005, vol.30, no.6 . Disponível na Internet no sítio: <http://www.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0378-18442005000600004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 27/10/2010. ISSN 0378-1844.

90

Figura 38 - Moinho de Rojales ( ROJAS-SOLA e AMEZCUA-OGAYAR, 2005, s/p.)

No entanto, é óbvia a intenção do autor de referir-se aos campos de Criptana, uma vez

que a narrativa é totalmente baseada no Quixote. Considera-se, então, o uso do moinho como

um acidente de percurso. O fato era digno de menção principalmente por deixar incerto o

palco da ação diegética enquanto narrativa independente: ainda segundo os autores, a Mancha

toda era cheia de moinhos de vento78. O uso de um moinho diferente (e mais comum, uma vez

que, devido ao número de janelas, os moinhos de Criptana são atípicos) faz com que o local se

torne mais indeterminado.

3.2.3 Ponto de Vista

Os quadrinhos têm uma particularidade: o ponto de vista pode mudar várias vezes

durante uma história sem uma mudança de narrador. Trata-se do problema do enquadramento.

78 “Los molinos manchegos se extendieron por toda Castilla-La Mancha. Existen ejemplares en Madridejos, Quintanar de la Orden, Consuegra y Puebla de Almonacid, en la provincia de Toledo; Alcázar de San Juan, Campo de Criptana y Argamasilla, en la provincia de Ciudad Real; Belmonte y Mota del Cuervo, en la provincia de Cuenca; y Villarrobledo, en la provincia de Albacete” (ROJAS-SOLA e AMEZCUA-OGAYAR, 2005, apud JIMÉNEZ-BALLESTA, 2001).

91

Uma vez que os quadrinhos são uma seqüência de quadros, a forma de apresentação

do quadro também pode carregar significados diversos79. No caso, o ponto de vista pode ser

diretamente o de um personagem da narrativa (no caso, a visão apresentada através dos olhos

do personagem) ou a visão indireta do personagem, um olhar “por cima do ombro”. Ao

mesmo tempo, a visão pode ser testemunhal, com a cena mostrada de longe, sem ângulos ou

efeitos que destaquem o conteúdo emocional. O importante de se ressaltar é que o desenhista,

ao escolher o ângulo da cena, obrigatoriamente situa o leitor em relação à narrativa e,

portanto, imprime à cena um ponto de vista tanto literal quanto psicológico.

No caso dos quadros analisados, temos várias mudanças de pontos de vista: o quadro

01 aproxima o leitor do Quixote, os quadros 02 e 03 apresentam uma visão distanciada, mais

testemunhal. Os quadros 04 e 06 (lembrando que o quadro 05 é uma lacuna) aproximam o

leitor de Sancho. Os quadros 07, 08 e 09 enfocam a dupla, sem destaque para sentimentos ou

enquadramentos especiais, mas sim para suas ações (isso não quer dizer que as personagens

não sejam expressivas, apenas que a composição do quadro não busca estabelecer uma

qualidade psicológica ou emocional aos quadros). Os quadros 10 e 11 aproximam o leitor dos

ocupantes da carruagem, enquanto os quadros 12 e 13 tornam ao ponto de vista testemunhal,

factual, sem primazia de um personagem sobre os demais.

A aproximação de um determinado personagem não implica em uma mudança no

narrador, embora seja uma escolha narrativa. Para todos os efeitos, o narrador continua a ser

Sancho Pança, como se nota na primeira página da história (Sancho Pança está a contar a

história das aventuras que viveu com Quixote a um companheiro, que o considera um

sonhador). Tomando-se os conceitos apresentados no capítulo anterior, o ponto de vista da

narrativa de Eisner poderia ser definido como um narrador que se posiciona “de fora”,

narrando acontecimentos e diálogos sem entrar na cabeça dos personagens. Seria também um

narrador homodiegético (aparece na narrativa como uma testemunha – pois Sancho é, na

história de Eisner, uma testemunha dos feitos do Quixote), externo (não entra nos

pensamentos dos personagens), restritivo (não entra nos pensamentos dos personagens) e

interventivo (intervém com comentários – a maioria desses comentários são enunciados

depois da narrativa dos fatos, no final da narrativa, mas são comentários ainda assim). Note-se

79 “Os meios expressivos contextuais estão além da simples identificação literal (relação signo/referente: figura e objeto representado). A imagem, como significante, tem informações diversas e carrega outros semas além do de figuração literal, denotativa. Os semas espaço, distância, proporção, afastamento, volume e outros diversos são apreendidos ao mesmo tempo pelo relacionamento dos diversos componentes” (CAGNIN, 1975, p.88).

92

que, embora tenha havido uma mudança radical de narrador (substituindo-se Cervantes, o

pesquisador por Sancho Pança, testemunha e personagem), a narrativa não muda em suas

características, mantendo-se a tipologia de seu narrador. Interessante o fato de, mesmo usando

Sancho como narrador, Eisner exime-se de pegar seus comentários pessoais à narrativa,

característica que mantém as escolhas originais de Cervantes.

3.2.4 Personagens

No trecho estudado temos como personagens Dom Quixote – o fidalgo Alanzo

Quixano (sic.) –, seu escudeiro e companheiro de aventuras Sancho Pança, suas montarias, o

rocim Rocinante e o ruço Ruço, a duquesa e o cocheiro.

Como se nota, os frades, os “moços das mulas” que surram Sancho, e a comitiva que

acompanhava a carruagem no caminho para Porto Lápice foram omitidos, provavelmente

devido à necessidade de brevidade da narrativa e ao público-alvo para quem esta foi criada. A

condessa não é mais a biscainha, e o “cargo” de opositor do Quixote passou ao cocheiro, uma

vez que o biscainho original era membro da comitiva, e vinha montado em uma mula. Tramas

mais simples para leitores mais jovens. Mesmo assim, cumpre fazer algumas observações

quanto aos personagens que aí restaram. A começar pela forma com que Quixote e Sancho

são desenhados por Eisner.

A representação dos personagens é o que pode ser considerada tradicional. Afinal, não

é a primeira vez que Quixote é adaptado para a linguagem icônica, sendo que o livro é

ilustrado há séculos pelos mais diversos artistas. Salvo por detalhes (o coche e a roupa do

cocheiro, o cinto de Sancho – uma faixa, que até hoje é vestimenta típica espanhola –, seu

chapéu de lavrador e o vestido da condessa), é difícil creditar Eisner pela narrativa visual dos

personagens. No dizer de Celia Navarro Flores:

(...) a iconografia da obra cria, no decorrer dos anos, uma tradição iconográfica na

representação de episódios, cenas, objetos e personagens. O bacielmo e o moinho

serão as marcas identificadoras da obra de Cervantes. Alguns episódios, como o

ataque às ovelhas, o manteamento de Sancho e a aventura dos moinhos de vento,

serão extremamente recorrentes nessa iconografia, assim como determinadas

93

personagens (...). Também, determinados cortes na seqüência narrativa serão

recorrentes: a queda do moinho, Sancho pelos ares no episódio do manteamento.

Micomicona ajoelhada diante do cavaleiro e outros (...). A partir do século XIX

encontramos leituras mais pessoais, entretanto, há ilustradores, nesse século, que

colaboram profundamente na formação dessa tradição das imagens da obra

cervantina como é o caso de Gustavo Doré, que assenta definitivamente a imagem

do cavaleiro e escudeiro em suas oposições essenciais (FLORES, 2007, pp.282-

283).

Conforme a narrativa de Cervantes, a visão tradicional dos personagens é, como se

viu, baseada na oposição. A iconografia tende para o mesmo lado. É quase um recurso

inescapável, sendo os personagens construídos como o são, constituindo, ainda para Flores,

um mito:

... um dos fatores determinantes para a visualização deste mito é a maneira como

Cervantes concebe suas personagens, baseando-se em oposições – fisicamente:

magro alto versus gordo baixo; psicologicamente: corajoso versus covarde;

socialmente: fidalgo solteiro e letrado versus lavrador casado e analfabeto.

(FLORES, 2007, p. 148).

Se, por um lado, a visão dos personagens é tradicional, por outro a expressividade e o

traço são constituintes da narrativa do autor: Cervantes, como anteriormente se viu, coloca

Quixote e Sancho em oposição quase todos os momentos da narrativa. O resultado dessa

oposição é o de exagerar as atitudes das personagens, por contraste. Eisner, por sua vez, não

dispondo de espaço suficiente para reproduzir todos os diálogos e atitudes desse constante

jogo de espelhos, tem de buscar outros recursos, mais econômicos, para estabelecer essa

oposição. A aparência dos personagens não é, em grande parte, mérito seu. Mas sua

expressão, sim.

É, portanto, na expressão corporal e facial que sua narrativa marca o tratamento às

personagens. E essa expressividade ressalta seu contraste da mesma forma com que o fez

Cervantes, séculos antes: quando Quixote está atacando o moinho, Sancho tenta impedi-lo

com os braços erguidos, inutilmente, ou aparece deplorando o resultado do ataque; depois,

Sancho parecendo satisfeito com o fato de estar certo, enquanto Quixote está alquebrado.

Finalmente, Sancho apresentando o Quixote curvado no cavalo e Quixote ajoelhado e solene

diante de Sancho, pose prosaica, pés tão afastados que o mais fácil é cair para frente ou para

trás.

94

O exagero das atitudes e ações do cavaleiro também é mostrado através da expressão

corporal exagerada e expressão maníaca do rosto (caso do quadro 01). Onde Dom Quixote

mostra-se satisfeito pela vitória vindoura contra um exército de gigantes, em Cervantes, o

cavaleiro de Eisner está pronto para o combate contra o dragão. A atitude apática e cômica de

Rocinante também merece destaque. A duquesa e o cocheiro, outros dois personagens do

capítulo de Eisner, funcionam não apenas como expectadores, mas também como espelhos da

bizarrice dos personagens a se aproximarem. A expressão incrédula da condessa e o gaguejar

e depois abafar um risinho, no cocheiro, definem o cavaleiro e escudeiro como bizarros e

risíveis, sob sua perspectiva.

Interessante reparar que, enquanto Cervantes não dá por certo o nome do personagem

(no primeiro romance não sabe ao certo se se trata de “Quijada” ou “Quejada”, no segundo

chama-o “Quijano”, embora Alonso seja seu nome), Eisner é mais determinado a respeito,

denominando-o Alanzo Quixano. Uma visão do original análoga ao raciocínio de que,

“havendo várias opções diversas, inventa-se uma própria. Caso venham reclamar, trata-se de

outro Quixote.” O que não é muito em termos lógicos, mas tem lá sua graça.

3.2.5 Enredo

O enredo (trama ou intriga), como já visto anteriormente, é a união da ação com a

forma da ação; o que acontece na narrativa e a forma com que isso acontece. Ora, a ação da

narrativa já foi tratada no início deste capítulo. Porém, para evitar repetir toda a ação, buscar-

se-á sua forma resumida (também presente no início do capítulo e usada como um recurso

estilístico para justificar o uso de detalhes na elaboração do resumo da ação diegética), e

depois se ponderará sobre a forma de apresentação dessa ação.

Quixote confunde um moinho de vento com um dragão e o ataca, ficando preso em

uma pá. Sancho o ajuda e partem do local. Encontram uma carruagem. Os viajantes se

surpreendem com os recém-chegados. Dom Quixote se põe a serviço da ocupante e o

cocheiro o ataca, por estar importunando a duquesa.

95

A partir do momento em que o moinho é mostrado, fica claro para o leitor que se trata

de uma alucinação do Quixote. Neste momento, o leitor e Sancho Pança têm a mesma

perspectiva, pois o moinho está claramente retratado. Sancho faz ver isso ao cavaleiro, que o

ignora, indo em direção ao “oponente”. Ora, tanto no caso de Cervantes (que explicita tratar-

se de um moinho) como o de Eisner está clara a demência do cavaleiro, e as atitudes que

assume só vão ampliar essa impressão. Em Eisner, essas atitudes são expressas também por

expressões maníacas e posições e expressões exageradas, enquanto que em Cervantes,

predominantemente por suas atitudes e pela constante oposição a Sancho Pança e a outros

personagens.

A obrigatória omissão de diálogos (obrigatória pela extensão da narrativa e público a

que é dirigida) transforma a narrativa, e Eisner tem de encontrar sua maneira de transmitir o

exagero das bravatas de Quixote, bem como o ridículo e a graça dos diálogos travados entre

os personagens. Eisner se defronta com a difícil missão de equiparar seus personagens,

contidos em um limitado espaço, aos que Cervantes teve mais de uma década para

desenvolver no papel, em centenas de páginas. As ferramentas de que dispõe para tanto são

limitadas pelos leitores: não pode haver muito diálogo, e esse diálogo tem de ser

compreensível. Não surpreende que apele para o uso da linguagem icônica. Assim, usa a

expressão de Sancho Pança para mostrar ao leitor quão malfadada foi a aventura dos moinhos.

E, na expressão vitoriosa do escudeiro, concluída a desventura, ressoa a do leitor: foi loucura,

qualquer um sabe distinguir entre um moinho de vento e um dragão. Logo a seguir, o ponto

de vista dos ocupantes da carruagem é usado para ampliar o ridículo e a comicidade dos

personagens. Não dispondo de espaço, usa-se os recursos que se tem.

Ao mesmo tempo, a brevidade transforma a ação: em Eisner não se trata de um

exército de gigantes, mas de um dragão. O cavaleiro não é jogado do moinho, mas fica

(comicamente) preso a uma das pás. Não se passa tempo entre uma cena e outra, Quixote não

conserta sua lança quebrada nem vela e jejua, os acontecimentos são sucessivos. Não

encontram dois frades e uma carruagem com acompanhamento, mas sim uma carruagem

apenas. O episódio dos frades é subtraído, e assim negada uma cômica aventura de Sancho,

que é mais que apenas um ponto de comicidade, mas estabelece paralelos entre Quixote e ele,

através da similaridade de suas ações: se Quixote é delirante por façanhas de cavalaria,

Sancho o é por sua cobiça, e sua demência é semelhante à do cavaleiro, pois, vendo-o louco,

acompanha-o. Quixote não “resgata” a biscainha, e, portanto, não a importuna com exigências

96

de ir a Toboso prostar-se aos pés de Dulcinéia, mas oferece-lhe seus serviços, nessa versão, o

que torna incoerente a atitude do cocheiro ao atacar-lhe com a espada em punho.

O próprio fato de o narrador ser o próprio Sancho, envelhecido (e talvez, como o

companheiro indica, sonhador demais80), muda radicalmente a perspectiva de leitura da

história. Primeiro, pela possibilidade sugerida de que Sancho esteja simplesmente inventando

os fatos que relata. Segundo, porque os fatos relatados passam a ser considerados mementos

de Sancho, memórias, e, como tal, filtradas pelo olhar pessoal e pelas emoções. Tal disposição

é contrária à de Cervantes, que apresenta o romance como um relato da história de um curioso

personagem, amparado por diversos outros estudiosos e pelo historiador turco Cid Hamete

Benengeli.

As diferenças no tratamento das cenas, os encontros diminuídos, ocasionam uma

curiosa mudança em relação ao tema: a história passa de uma alegoria simbólica, em que

Quixote, representação dos valores medievais, confronta-se com o mundo que já não aceita

essa retórica – e lamenta a inocência e a grandeza perdidas - a um relato sobre um cavaleiro

andante louco, que Sancho um dia admirou. Claro, a história não é destituída de mérito, como

não o é o personagem: Quixote não é apenas um louco, mas sim o alvo de admiração de

Sancho, e seu amigo pessoal – uma vez que Sancho declara ter tido a honra de conhecê-lo.

Mesmo assim, a falta das discussões sobre os preceitos da cavalaria andante, cujo contraponto

de uso é normalmente apresentado pela vulgaridade (no bom sentido) de Sancho, os pequenos

sacrifícios do cavaleiro (como o de passar a noite em claro pensando em sua amada, não

comer por pretender sustentar-se com as memórias de sua amada, a de se sacrificar em

embates imaginários também em nome de Dulcinéia), tudo isso acaba por destacar da obra

algo de essencial, e, na narrativa breve e necessariamente exagerada de Eisner, mudar sua

visão. Quixote ainda é o cavaleiro, ainda se aventura, mas agora é figura excêntrica,

exagerada, a combater suas quimeras. Sua atitude de louvor à cavalaria não assume a

transcendência da do romance. Sancho Pança, por sua vez, comporta-se como um auxiliar de

comediante, a fornecer o contraponto às loucuras do cavaleiro. O eterno amigo, eterno

amparo, quase o arquétipo da amizade. Ainda é intimamente ligado ao mundo real que o cerca

(ele vê o moinho, ele ajuda o cavaleiro em apuros, ele o apresenta à condessa), mas, sem a

característica transcendental do companheiro, esse aspecto seu se perde.

80 Na primeira página da história, o companheiro de Sancho comenta que ele está “sempre sonhando”.

97

No final da narrativa, porém, o próprio Cervantes intervém, no leito de morte do

cavaleiro, para prestar-lhe homenagem e justificar-lhe as aventuras81:

Figura 39 - Justificativa Transcedental 1

Cervantes nomeia, então, o personagem (que havia recuperado a sanidade) como

“Dom Quixote para sempre”, um cavaleiro que “realmente acredita em defender os indefesos

e, muito tempo depois que a cavalaria havia passado, se tornou o último cavaleiro”.

E a narrativa prosseguirá (tendo morrido Dom Quixote, “um herói”, no dizer de

Sancho) com o diálogo de Sancho e seu companheiro de sesta, que, curioso, pergunta a

Sancho, narrador da história, se é verdade que Dom Quixote existiu, realmente. Ao que

Sancho responde que não importa, “talvez tenha existido, talvez não, mas o que é mais

importante é que seu sonho com certeza existiu!”

81 Trata-se do primeiro e último quadrinho da página 31 da obra. Houve uma edição do original para fins de brevidade.

98

Figura 40 - Justificativa Transcedental 2

Tal justificativa, talvez (e isso é um talvez) utilizada por Eisner para suprir a falta de

qualidades transcedentais no personagem devido ao pouco espaço e ao público da obra, muda

o enredo significativamente, como é de se esperar: primeiro, ao buscar uma qualidade

transcedental ao herói da trama. E segundo, ao alterar, com isso, a percepção da trama em si:

Dom Quixote deixa de ser o personagem patético para tornar-se de fato o último cavaleiro,

corporificação dos ideais da cavalaria andante, “honrado pelo autor Miguel de Cervantes e

lido por milhões por varias gerações”.

Assim, Dom Quixote, mesmo na morte, torna-se vitorioso, a realização da ética e

ideais da Cavalaria Andante, trazendo para o mundo o fulgor de outra era, mais inocente, e

inspirando milhões. Ora, essa função do herói (mesmo que sua vitória seja meramente

simbólica) torna-o diverso do herói cervantino: Dom Quixote não mais simboliza o conflito

entre a Idade Média e a Burguesa, sua inadequação aos novos tempos colocando-lhe em

conflito com o mundo que habita, mas sim a Cavalaria Andante, cujos ideais permanecem

mesmo muito tempo depois da morte de seu último cavaleiro, através da inspiração de

milhões de leitores. Onde o cavaleiro cervantino falha, miseravelmente, o cavaleiro de Eisner

sucede. E esse sucesso simbólico, transcedental, torna-o o Último Cavaleiro. Por assim dizer,

o sucesso do personagem quase que determina o fracasso da narrativa, pois Eisner

praticamente reverte a maior qualidade do romance de Eisner, que é o de ser um dos primeiros

99

romances, ao tornar seu herói como representante de ideais e aspirações de toda a

Humanidade, cujos percalços vão apenas servir para aumentar o simbolismo de sua vitória

final. Eisner praticamente torna Dom Quixote em um personagem épico, trilhando, assim, o

caminho inverso de Cervantes, ao escrever a obra como uma crítica, entre outras coisas, aos

épicos de cavalaria andante.

Ou tornaria, obviamente, não fosse uma das características principais da obra, que é a

de ser “uma introdução” à obra de Cervantes. E é essa característica que vai redimir a

narrativa de Eisner, ao relacioná-la à obra de Cervantes e permitir ao leitor a comparação. Os

textos dialogam, como visto anteriormente. E esse diálogo é reforçado pela presença do autor

do original na adaptação, estabelecendo ponto ainda mais forte de ligação entre o romance e o

quadrinho. A obra de Eisner fica sendo uma homenagem e uma introdução a obra mais

complexa. Também torna-se, porém (de acordo com a diegese) a fonte geradora da narrativa

original: a história apresentada por Eisner teria, na narrativa, gerado o Quixote de Cervantes, e

não o contrário.

O uso de cores por parte de Eisner não apresenta qualidades dignas de nota. A

colorização é feita manualmente, em aquarela, e os tons são leves e agradáveis, embora um

tanto insossos. Não há efeitos de sentido óbvios nas cores no tratamento de Eisner, nem

mesmo uma diferenciação nas cores entre os quadros para indicar a passagem do tempo (a luz

da tarde vai amarelando à medida em que corre o dia), talvez (e trata-se de uma adivinhação)

dado o uso de preto-e-branco em suas obras durante a maior parte de sua vida. Para que o

leitor possa amparar ou discordar dessa afirmação, uma cópia colorida com os quadros

reduzidos foi anexada no final do trabalho. A redução se deve ao tamanho do bolso dos

realizadores deste trabalho, não havendo nenhum efeito estético ou de leitura a ser ressaltado

no processo. Aliás, bem como as cores de Eisner.

100

4 CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Temos, pois, a seguinte relação entre as narrativas:

Dom Quixote de La Mancha – cap. VIII Miguel de Cervantes

The Last Knight – Will Eisner

Tempo Diegético: Espanha de pouco antes de 1605. Da narrativa: tempo cronológico, exceto pela ação da cena do ataque de Sancho ao frade caído, paralela à conversa de Quixote com a biscainha. Da ação: cerca de um dia e meio

Diegético: Espanha, há muito tempo atrás, quando Sancho era moço. Da narrativa: tempo cronológico, exceto pelo ataque de Quixote ao moinho. Da ação: indeterminado, podendo ser de 20 minutos.

Espaço Espanha da época, província da Mancha, entre os campos de Criptana, em Montiel, e a estrada para Porto Lápice.

Espanha da época, província da Mancha.

Ponto de Vista Miguel de Cervantes como narrador intradiegético, narrador e pesquisador da ação.

Sancho Pança como narrador intradiegético, narrador e ator da ação.

Personagens Miguel de Cervantes, Dom Quixote, Sancho Pança, a biscainha, o biscainho, a comitiva da biscainha, os frades, os moços dos frades, Ruço e Rocinante.

Dom Quixote, Sancho Pança, a condessa, o cocheiro, Ruço e Rocinante.

Enredo (Intriga/Trama)

Ação: Dom Quixote de La Mancha, fidalgo com mania de cavaleiro andante, confunde moinhos com gigantes e os ataca. Auxiliado por seu escudeiro, passam a noite em um bosque, depois seguem viagem. Encontram frades em mulas, seguidos de uma carruagem com comitiva. Pensando serem feiticeiros levando uma donzela prisioneira, o cavaleiro ataca os frades, derrubando um deles. Sancho Pança tenta levar os pertences do frade caído e é surrado por moços das mulas. Enquanto isso, Quixote insta a ocupante da carruagem, uma dama biscainha, a prestar homenagens à Dulcinéia, tendo sido salva por ele. Um dos integrantes da comitiva, aborrecido, ataca o cavaleiro. Narrativa: construída a partir de um jogo de opostos e de espelhos – o protagonista está em constante oposição em reação à realidade que insiste em manifestar-se, em especial através da pessoa de seu escudeiro – e dos diálogos, a narrativa cervantina salienta a oposição entre os mundos interior e exterior do Quixote, criando o humor através dos óbvios exageros do cavaleiro e seu contraste com o escudeiro. Tema: Dom Quixote de La Mancha, enlouquecido pela leitura de novelas de cavalaria, sai em busca de aventuras, tornando-se um símbolo da Idade Média e dos ideais professados pela Cavalaria Andante. O romance apresenta seu conflito com o mundo que o cerca, que, moderno, já não comporta tais ideais ou sistema. Junto a si tem Sancho, seu eterno contraponto e companheiro, mundano e ganancioso como a época que personifica.

Ação: Dom Quixote de La Mancha, fidalgo com mania de cavaleiro andante, confunde um moinho com um dragão e ataca. O escudeiro, horrorizado, vê o cavaleiro se estabacar. Auxilia-o, e seguem caminho, encontrando um coche, que pára na estrada. Dom Quixote se põe a serviço da ocupante, o que leva o cocheiro a atacá-lo. Narrativa: construída a partir da oposição entre o protagonista e o mundo que o cerca, em especial através do uso do exagero e da caricatura nas expressões dos personagens, a narrativa de Eisner cria um personagem exagerado em suas idéias e ações, tendo de ser amparado por seu fiel escudeiro, que admira seus ideais e o segue, conscientemente, por causa deles. Tema: Dom Quixote de La Mancha, enlouquecido pela leitura de novelas de cavalaria, sai em busca de aventuras, tornando-se um símbolo da Idade Média e dos ideais professados pela Cavalaria Andante. A narrativa apresenta suas desventuras, onde imagina monstros e dragões e, através de seu sacrifício, obtém uma vitória simbólica e transcedental, imortalizando os ideais que defende. Junto a si tem Sancho, seu eterno companheiro e admirador.

101

Enquanto Cervantes se utiliza da constante oposição entre Dom Quixote e o escudeiro

para ressaltar, por contraste, as características de ambos, Eisner se preocupa mais em

delimitar o personagem do Quixote, perdendo assim um pouco da força de sua narrativa e

tornando-a mais unidimensional (ou, para bem do chiste, tornando mais unidimensional a

representação bidimensional); Sancho não mais representa os valores mundanos, mas torna-se

um ajudante e admirador do cavaleiro. Claro, não significa que não se oponha às atitudes

deste: opõe-se, tanto em suas falas (ao avisar Quixote do moinho, em vez do dragão que este

acredita ver) quanto através de sua linguagem corporal. Mas seu olhar admirado ao cavaleiro,

e não o olhar um tanto patético apresentado por Cervantes, em que o escudeiro sabe da

loucura do cavaleiro, mas dispõe-se a segui-lo por acreditar ter muito a ganhar com isso, caso

o cavaleiro suceda nos empreendimentos a que se prontifica, tornam Sancho Pança em um

guardião, mais do que em um contraponto: ele está com o cavaleiro porque o admira, e

acredita nos ideais que este segue:

Figura 441 - Envolvimento de Sancho

Assim, o tema da narrativa é significativamente transformado. O exagero do cavaleiro,

entretanto, está bem presente em ambas as narrativas: Cervantes demonstra esse exagero

através das atitudes exageradas do personagem, ao dispôr-se a enfrentar trinta ou quarenta

gigantes, por exemplo, ou ao assumir imediatamente que os frades são feiticeiros. Eisner, sem

espaço suficiente para minúcias, tem de se virar com outros recursos da linguagem seqüencial.

Usa, então, a caricaturização do personagem para aproximá-lo do leitor e o exagero das

expressões e atitudes (bem como a oposição de Sancho, previamente mencionada) para

comunicar tais significados. Além de Sancho, outros personagens também entram em cena

para destacar a bizarrice de Quixote (talvez porque Sancho não seja tão firme em sua oposição

102

ao fidalgo na versão de Eisner), com expressões de espanto, cercando o fidalgo de olhares

atônitos. Embora tal aconteça na versão cervantina, em Eisner esse espanto pôde ser

comunicado de forma mais expressiva, pela escolha de composição e enquadramento (Dom

Quixote é mostrado ajoelhado, em atitude galante, emoldurado pelo céu e cercado dos olhares

dos circundantes). Cervantes descreve cena análoga (em que todos prestariam atenção atônita

à figura de Quixote não por causa de sua figura, meramente, mas pelo fato de recém ter

atacado um frade e se poste impedindo a passagem da carruagem, exigindo que toda a

comitiva vá prestar homenagem a Dulcinéia) através do exagero das ações dos personagens;

Eisner tem a opção de mostrar este exagero nas ações. Mesmo que as ações narradas por

Eisner não sejam tão extremas quanto as do cavaleiro (afinal, além do espaço, as crianças têm

de simpatizar com o herói da trama, e é difícil simpatizar com um alucinado que ataca dois

frades que vinham sem incomodar ninguém). A figura de Quixote, com sua lança amarrada de

forma impossível para o uso e a espada agindo, sozinha, como uma espécie de contraponto ao

cavaleiro, também é utilizada para causar estranheza. O leitor poderia argumentar que a mera

imagem de um velho em uma armadura poderia realizar essa proeza. O importante é notar

que, seja como for, Eisner acrescentou algo à mistura, com fins narrativos. Outro ponto de

destaque seria o fato de o cavaleiro ter preso ao elmo (que ainda não é o de Mambrino, que

virá a conquistar depois) não um penacho, brasão ou seda, mas um pedaço de pano vermelho,

que viria a ser o cachecol de Dulcinéia82.

Impossível deixar de comentar a curiosa escolha da troca dos vinte ou trinta gigantes

pelo dragão: embora tal escolha seja provavelmente devida à popularidade do dragão como

monstro (lembrando sempre que a adaptação é dirigida ao público infantil) e que, uma vez

que não aparece na narrativa visual, tanto se dá, a imagem do dragão é imageticamente

empobrecedora da narrativa. Um moinho pode parecer, como sugere Sancho Pança, com um

“gigante abanando os braços”83. Mas não se vê, aqui, como poderia representar um dragão.

82 O que não significa que Dulcinéia saiba das intenções românticas do cavaleiro: na versão de Eisner, como na de Cervantes, Dulcinéia ignora as intenções românticas do fidalgo. 83 “aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas, que, volteadas del viento, hacen andar la piedra del molino” (CERVANTES, 1605, cap. VIII).

103

Figura 442 - Quixote Contra o Gigante84

A falta de transição temporal clara e de menções sobre o cenário da narrativa fazem

com que a viagem do Quixote se torne uma série de aventuras corridas, na versão de Eisner.

Cervantes apresentava, como se viu, os cenários e tempo de ação com comentários breves,

apenas, mas embasados por um profundo conhecimento do tema de que tratava, alguns

autores chegando a considerar o Quixote quase como um roteiro geográfico da Mancha na

época, como visto anteriormente. Esse é um dos fatores que enfraquecem a ligação da

narrativa de Eisner com o tempo e espaço geográfico que é cenário do Quixote de Cervantes,

mudando a percepção da narrativa e, finalmente (em associação com outros fatores) o tema.

Temos, então, uma narrativa (de Eisner) com praticamente as mesmas características

da de Cervantes (a saber, o exagero dos personagens e a oposição entre eles como forma de

delineamento do mundo). Que essas narrativas sejam realizadas de formas diferentes é mais

uma conseqüência da linguagem do que na forma de sua realização. Ou seja: estratégias

diferentes para linguagens diferentes, embora realizadas com intento comum. Há, também em

comum, o discurso direto e o fato de o narrador não entrar nos pensamentos dos personagens.

O fato de ambos os autores chegarem a resultados tão diversos, pode-se deduzir das

análises realizadas, não vem apenas da brevidade da adaptação de Eisner (devida aos fatores

mencionados), nem das estratégias narrativas utilizadas, pois, como se viu, estas, embora

diferentes, podem carregar significados semelhantes. Esses resultados vêm principalmente das

mudanças realizadas por Eisner na ação da história, que escolheu mostrar Sancho como um

admirador do Quixote e o próprio Quixote como um homem admirável, que o famoso autor

84 Imagem tirada do site do autor: < http://www.elfwood.com/~anthonyooo/Tilting-at-Windmills.2530883.html>, acesso em 28/10/2010.

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Miguel de Cervantes escolheu imortalizar como o Último Cavaleiro, uma vitória simbólica e

transcedental. Assim, pode-se inferir que a razão de a leitura da adaptação é diferente da

leitura do original é justamente porque a Leitura de Eisner, ao adaptar o original, foi diversa

da realizada neste trabalho. O que não é um crime, nem um demérito. Embora possa parecer

um tanto simplista.

Cumpre mais uma vez afirmar que a obra foi produzida com o intento expresso de ser

uma introdução ao romance, uma apresentação aos personagens e à ação da história. Assim,

não se pode considerar a obra como uma versão empobrecida ou simplificada: trata-se de uma

porta dentro da qual está contida a promessa da obra inteira.

Não se pôde notar no estudo do uso das linguagens escrita e iconográfica uma

prevalência: verdade, a linguagem escrita representa o original. Mas notou-se na adaptação de

Eisner as mesmas estratégias e resultados semelhantes. Daí se pode concluir não que a

linguagem de Eisner é equivalente à de Cervantes, mas que a linguagem iconográfica pode ser

utilizada para transmitir significados semelhantes aos transmitidos pela narrativa de

Cervantes, utilizando-se, porém, de estratégias diversas. Sendo outra linguagem, não poderia

ser diferente.

Espera-se que a comparação entre as narrativas estudadas venha a ser útil na análise

futura de narrativas seqüenciais e/ou na transcrição de narrativas escritas em seqüenciais, ou

vice-versa. É óbvio que o terreno permanece amplamente inexplorado, e a realização de um

trabalho breve como este85 pouco pode fazer senão lançar a pedra fundamental da

investigação, esperando que outras a sigam. O que nem sempre é o caso, mesmo que se

considere a analogia sem que esta envolva política.

85 Em relação às dimensões de um trabalho necessário para que se chegue a conclusões mais amplas e definitivas, não às dimensões deste trabalho como monografia. Nesse sentido, e é necessário pedir ao leitor que perdôe a eventual prolixidade, ele é extenso.

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