O Predicado no Discurso Jurídico: Estabilidades e Instabilidades Enunciativas
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Dicionário de Termos Lingüísticos
O PREDICADO NO DISCURSO JURÍDICO:
ESTABILIDADES E INSTABILIDADESENUNCIATIVAS[1]
La rationalité pour moi est la construction que je faisem tant que chercheur de notre activitá rationnelle, et ceque j'entends par là, par nouvelle rationalité, c'est unemanière de conduire les pensées qui recherche unecertaine cohérence et qui ne passe pas par le langage.(Antoine Culioli, Onze rencontres sur le langage et leslangues, 2005, p. 22)
Lucas do NASCIMENTO[2]
Introdução
As relações do homem com a sociedade são intrigantes. Imaginar que em dado momento
o interesse do homem tenha sido o mundo objetivo, buscando compreendêlo, e, em seguida, ter
sido empurrado a projetar sobre outras esferas postas sob sua apreciação os saberes construídos a
partir de um sistema de referência ligado de forma crucial ao mundo natural. Estaria ai a gênese da
capacidade de viajar na imaginação, tomando conta simplesmente do pensamento, isto é, do
plano das ideias.
Partindo de uma forma de pensar objetiva, de aplicação imediata, posta numa dimensão
referencial e real, assim usando a linguagem como cumpridora de função informacional, o homem
teria passado a aplicar tais saberes a sistemas de referência não mais do mundo natural, mas do
campo afetivo, moral, religioso, político, estético, etc. A percepção de poder aplicar o que se
conhece de uma esfera, por meio da relação analógica, sobre a outra, uma nova desenvoltura se
teria tornado possível, um novo tipo de reflexão teria sido possibilitado, permitindo que a
linguagem passasse a atender a outras possibilidades interlocutivas de os homens se digladiarem.
O homem do século XXI, pela relação com o mundo social e cultural, atribuiu sentidos
ao mundo e, para além disso, construiu um saber metacognitivo especial: usar a linguagem para
falar sobre ela própria (a metalinguagem), assim como efetuar seleção entre os recursos
disponíveis ou criar outros que se adequassem aos seus propósitos, indicando por seu meio para
onde o seu texto quer ser conduzido (o epilingüístico[3]), mesmo que isso falhe, às vezes. A partir
disso, então, o homem tem meios para se marcar subjetivamente, seja por se marcar nos recursos
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que seleciona, seja pela postura por que assume responsabilizarse, o que, no fim, remete sempre
ao uso da linguagem, a reflexividade e o comprometimento que ela permite.
Haroche (1992) já mostrou, em Fazer dizer, Querer dizer[4], ao analisar a trajetória do
homem medieval até o homem moderno, as transformações das relações sociais e o sujeito com
uma nova identidade, isto é, “dono” de si, não mais aquele que vivia em prol da divindade,
principalmente do transcendental. Mostranos, portanto, o sujeito com novo perfil: o sujeito de
direito. Este, com vontades, intenções, escolhas e responsabilidades, enfim, um sujeito livre.
Podemos dizer que o sujeito deste século é um sujeito do capitalismo, isto é, sujeitocapitalista que faz intervir o direito, a lógica. Ele se submete ao Estado e às leis, embora tenhaautonomia e liberdade individual, caracterizandose como sujeito jurídico, com direitos e deveres,sendo, portanto, um sujeito histórico, sujeito biopsicosocial (ORLANDI, 2005, p. 106). Essasubmissão ao Estado, conforme Aristóteles, apud Morris (2002), ocorre em função dasnecessidades naturais da vida e da justiça, do vínculo dos homens ao Estado e à sua aplicação etambém da determinação do que é justo, do princípio de ordem na sociedade.
No entanto, o vínculo do homem com o Estado é marcado por problemas, infrações,
dolo[5] e, até mesmo, crimes. Tais problemas, muitas vezes, são resolvidos pela ação do judiciário,
através de leis constitucionais regulamentadas por códigos penais, civis, comerciais,
administrativos, militares etc., os quais tentam regular a maioria das relações sociais.
Nesse trâmite de regulação das relações sociais há, quase sempre, movências
enunciativas entre o criminoso (dadas pelo defensor, ou seja, o advogado que ocupa um lugar
hierarquizado e sustentado pelo poder público) e o Poder Judiciário. Ambos lutam pelos seus
objetivos, sejam eles convergentes ou divergentes, como ocorre na maioria dessas relações. O que
se parece verificar, portanto, é a instabilidade e a estabilidade enunciativa que estão em jogo, ou,
ainda, a ambiguidade/contrariedade por, de um lado, a enunciação pertencer aos Juízes e aos
Promotores e, por outro, a enunciação pertencer aos Advogados defensorespúblicos.
Este texto objetiva, valendose, principalmente, da concepção de linguagem
desenvolvida por Culioli, dos conceitos postulados no Tome 1, 2 e 3 da sua coleção Pour une
linguistique de l'enonciation, como também da concepção de outros autores como Benveniste e
Maingueneau, discutir as relações predicativas e enunciativas, ou relações estáveis e instáveis,
presentes em enunciados de uma peça jurídica denominada Apelação, inserida em rito
processual[6]. Escolha dos teóricos justificase por eles serem defensores de que, para além dos
fenômenos observáveis, há procedimentos intelectuais gerais, os quais dirigem o conhecimento e
a construção do sentido.
A discussão pretende perseguir processos cognitivos e ver em atuação os traços de um
(suposto) sujeito do dizer e as estratégias que este utiliza, quando tem a intenção de significar eprojetarse também nessa rede de enunciações em cadeia, constituindose como coenunciador eparticipante ativo do processo de significação. Esperase, com isso, perceber a movênciatransitória do instável e do estável em enunciados proferidos por um operador do Direito, nocontexto de Defensoria Pública, em processo penal crime tráfico de drogas.
Este trabalho justificase pelo fato de que o problema da ‘significação’ sempre foi um
dos objetos de interesse da Lingüística e de muitos estudiosos da linguagem. Inicialmente, a
preocupação centrouse no tratamento do ‘sentido’[7] como sendo determinado pelo sistema
lingüístico, ora localizado em um ponto, ora escorregado e localizado em outro; depois, na
determinação do ‘sentido’ em vários contextos. Neste trabalho, está em jogo, especificamente, o
sistema lingüístico numa enunciação dada. Ou seja, tratarei a significação das ocorrências
lingüísticas em contexto enunciativo do jurídico.
Para tal, este enfoque de descrição e explicação de enunciados se enquadra em conceitos
da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas de Antoine Culioli, uma abordagem que
considera como ponto de partida a localização de ocorrências lingüísticas na situação de
enunciação, constituindose a ‘operação de localização’. Trabalha, ainda, com mais duas
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operações na análise das formas lingüísticas: a operação de predicação e a operação de
enunciação. Esta última foi estudada mais particularmente, pois os valores modais de um
enunciado são construídos por operações enunciativas.
Então, partirei da premissa de que o enunciado deve obedecer a regras de boa formação
enunciativa, conforme Culioli (1990). Uma seqüência só é bem formada do ponto de vista
enunciativo, ou melhor, só se constitui um enunciado se for caracterizada por valores referenciais
das diferentes categorias gramaticais que marquem a sua localização no sistema referencial
(conjunto de coordenadas que inclui o sujeito, o tempo e o espaço).
Em contexto de pesquisa em enunciados retirados de rito processual, muitas vezes, a
palavra ‘enunciado’ se confunde com o que tradicionalmente se designa por período, mas,
eventualmente, pode ir além dessa estrutura formal, como veremos na análise do corpus.
Assim, serão estudadas as seqüências textuais/discursivas que derivam de relações predicativas e
se constituem enunciados, ou seja, quando são bem formadas sintática, semântica e
enunciativamente.
Linguagem: Um objeto ainda a ser estudado?
Antoine Culioli (1997), lingüista e filósofo francês, concebe a linguagem como a
capacidade inata que o homem possui de representar, referenciar e regular. Cada coisa a seu
tempo. Antes: conceber a linguagem como uma capacidade inata do homem significava afirmar
que ela não era adquirida por meio de algum tipo de aprendizado interacional e nem era
internalizada por meio de respostas comportamentais. Significava postular que ela era parte
intrínseca do homem, precisando do meio ambiente apenas como meio motivador para que
processos lingüísticos naturais se fizessem ativos.
Em Onze rencontres sur le langage et les langues, Culioli, em diálogo com Claudine
Normand, afirma:
N'oubliez pas mês trois R: Représentation, Référenciation, Régulation! Et ce que dit le poème de Mallarmé c'est que,
quand vous lancez les dés – dés qui, dans votre main, avant d'être lancés, sont un ensemble de possibles – quand vous les lancez,entre le moment où ils sont lancés et le moment où ils vont être stabilisés, là encore il peut se passer des choses! (CULIOLI &NORMAND, 2005, p. 81).
A partir de Culioli, na contemporaneidade, representação, referenciação e regulação
fazem dar a relação interacional um estatuto de centralidade, já que só são necessárias,
imaginandose que o homem se constitui por atribuir leituras ao mundo, impondoas ou as
revendo, porque outras lhe parecem mais pertinentes: pela linguagem, o homem se constituiria,
representando e referindo e a usando para regular as construções alcançadas por meio das outras
duas atividades.
Representação pressupõe que a linguagem não é especular, versando sobre um mundo
que mostra uma face legível ao homem, o qual teria a tarefa de se voltar para uma superfície
transparente e explicitar as leis intrínsecas dos objetos, pondoas, num ato de linguagem, a luz do
dia: texto público para si e os demais. Numa espécie de cumplicidade, o homem leria a sua face
especular e as coisas voltariam ao seu mutismo inicial. Representar significa fazer uma violência
às coisas, torcêlas até onde uma leitura se faça, fantasmagorizando o objeto, antes do que fazendo
o voltar a face para um espelho transparente, que manifestaria uma imagem semelhante ao objeto
real.
Da ação de representação, não se separa a de referenciação, pois a primeira só imprime
um sentido às coisas, para que se possa referilas: não sob um viés denotativo, mas para impor
leituras sobre o mundo, que serão endereçadas a sujeitos, que, não sendo mudos, terão outras
formas de representar e, portanto, de referenciar os mesmos objetos.
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Já a atividade de regulação, nos entremeios dos embates e lutas dialógicas, legibilizam
os objetos diferentemente, permitindo que sentidos sejam negociados, que mecanismos retóricos
sejam agenciados, que estratégias argumentativas sejam postas em prática e que leituras distintas
se confrontem.
Portanto, a arquitetura tripartite de Culioli está em níveis de fenômenos:
O nível 1 é aquele das representações mentais (de ordem cognitiva e afetiva). Esse é o nível nocional, ao qual nós não
temos acesso, mas cuja existência deve ser integrada à elaboração teórica em lingüística. O nível 2, aquele das representaçõeslingüísticas, é constituído pelos traços da atividade de representação do nível 1, que são chamados “representantes de segundograu”. Tratase do nível empírico. Enfim, o nível 3 é aquele da construção explicita das representações metalingüísticas, isto é,aquelas que são objeto de um comentário analítico do locutor sobre suas produções linguageiras: tratase do nível formal que éconstituído por diferentes ferramentas, como a língua de uso (chamada “língua U'), a terminologia lingüística, os símbolos etc(PAVEAU & SARFATI, 2006, p. 187).
As representações do nível 3, segundo Culioli, em Pour une linguistique de
l'enonciation, “devem estar em uma relação de exterioridade em relação ao nível 2, mas uma
exterioridade “engajada”, de modo que o formal seja empírico formalizado, e que o empírico, ao
passo e à medida das generalizações, venha colocar em questão o formal” (1990, p. 23).
A partir disso, Culioli propõe sua teoria enunciativa da linguagem, remetendo a
terminologias epistemológicas, como: linguageiro o que resulta da atividade de linguagem;
lingüístico o que concerne às operações complexas cujos traços são as configurações textuais; e
metalingüístico o domínio da atividade do lingüista que descreve e representa os fenômenos
observados (PAVEAU & SARFATI, 2006, p. 187).
Enunciado e significação na instância do Judiciário
Fuchs mostrou em seu texto que “o léxico” e “a sintaxe” se encontram ao campo
enunciativo no conjunto das operações constitutivas do enunciado. Para a autora, esse duplo
processo de ampliação leva à construção de “modelos enunciativos” da linguagem, como a de
Culioli. Afirma também que “tudo está subordinado à enunciação, o que quer dizer que todas as
unidades e todas as relações que intervêm no enunciado tendem a ser analisadas, numa visão
unificada, à luz dos parâmetros enunciativos” (FUCHS, 1985, p. 118).
De um esboço de apresentação histórica e crítica, Catherine Fuchs (1985: 118) de uma
noção bastante central, tratou a noção de categoria enunciativa da seguinte forma:
As categorias enunciativas de base (como por exemplo a pessoa, o aspecto, a determinação) são presumidamenteuniversais, no sentido de que se encontram, organizados evidentemente de modo diferente, um sistema de pessoa, um sistemaaspectual, um sistema modal em toda língua.
As categorias enunciativas são concebidas como sistemas de correspondências (correspondências variáveis de língua
para língua) entre conjunto de operações e conjunto de marcas lingüísticas.
As categorias enunciativas são concebidas em termos dinâmicos de “operações” (e não como classes taxonômicas
fixas); há a hipótese de que existiria um pequeno número de operadores de base (como por exemplo o operador de “localização”(repérage) de Culioli), suscetível de tomar valores em número igualmente limitado (como por exemplo a “identificação”, a“diferença” e a “ruptura”, também em Culioli) e é a combinatória desses operadores e desses valores que daria um númeroextremamente grande de configurações possíveis.
Através da noção de categoria enunciativa, é a idéia de inserção do sujeito no próprio
sistema da língua que se tenta tornar operatória, da intuição da “nãotransparência” da linguagem,
de seu papel não (exclusivamente) instrumental. Essa importância é relevante no que tange ao
enunciado, uma vez que perceber pontos e marcas do sujeito enunciador é localizálo na
linguagem. Ao analisar um enunciado, o lingüista exerce o que Antoine Culioli chama de
“atividade linguageira”, ele o modula, coenuncia e faz abstrações que vão constituir um sentido.
Por isso, quando buscamos colocalizar os traços do sujeito enunciador, numa situação de
enunciação, as operações (enunciativas e predicativas) não devem ser negligenciadas.
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Diferentemente de frase ou período, o enunciado, como já mencionado, a partir de
Culioli, deve obedecer a regras de boa formação enunciativa. Uma seqüência só é bem formada do
ponto de vista enunciativo, ou melhor, só se constitui um enunciado, se for caracterizada por
valores referenciais das diferentes categorias gramaticais que marquem a sua localização no
sistema referencial (conjunto de coordenadas que inclui o sujeito, o tempo e o espaço). Assim, as
seqüências textuais, em qualquer objeto discursivo, derivam de relações predicativas e se
constituem em enunciados.
Rezende (2007) referese à teoria culioliana sobre os três níveis de análise do enunciado:
“Relação Primitiva”. É uma relação semântica entre três termos: um relator (r), um termoorigem (x), geralmente
animado ou com propriedades agentivas, outro termoobjetivo (y), geralmente inanimado ou com propriedades nãoagentivas. Essarelação semântica também pode ser chamada de relação primitiva. Quando instanciamos a relação primitiva por noções, quepossuem propriedades físicoculturais, construímos uma léxis. A léxis possui: um potencial de orientação a partir do qual os termosda relação primitiva podem ser orientados; a propriedade transitiva a partir da qual uma relação entre x e r e uma relação entre r e ypermitem estabelecer uma relação entre x e y (p. 5).
Além da relação primitiva, a “Relação Predicativa”:
É uma relação lógica ou sintática que se constitui quando aplicamos à léxis (que contém a propriedade transitiva) a
operação de predicação. Nesse nível, orientamos a relação primitiva, ordenamos os seus termos e iniciamos a construção de umarepresentação que possa vir a corresponder ou à noçãoorigem ou à noçãoobjetivo, ou, ainda, que poderá estar oscilando entre osdois pólos (origem e objetivo), com preponderância ora para um lado, ora para o outro. O sintagma nominalizado, enquantofragmento, organizase no nível da relação predicativa. O seu valor não é claro, porque não se tem de modo claro também aasserção. A asserção permite que passemos para o outro nível, o da relação enunciativa (p. 5).
Ainda, a “Relação Enunciativa”:
Nesse nível, o da relação enunciativa, constróise o enunciado. A relação predicativa do nível anterior é assumida por
um sujeito enunciador por meio de uma modalidade assertiva. A asserção central permite dar à relação predicativa o seu estatuto deenunciado. Nesse momento, em que se organiza o todo (o enunciado), as partes se hierarquizam e recebem o seu valor ousignificado. Chamamos também, em nossa pesquisa, a relação enunciativa do contexto encaixante (REZENDE, 2007, p. 5).
A nominalização, sendo a retomada de uma ocorrência de predicado do préconstruído, é
de natureza altamente predicativa. Ao contexto encaixante cabe a função de dar estatuto de nome
à nominalização (estabilizála) ou não. Nesse último caso (instabilidade), ela continuará com o
seu valor predicativo (REZENDE, 2007)
O que temos em um enunciado, visto de um ponto de vista dinâmico, são dois espaços
contraditórios, para cada um dos quais temos sujeitos, formas e conteúdo. A construção da
representação em um enunciado resulta de um diálogo entre esses dois espaços em conflito: um
mais instável (enunciativo) e outro mais estabilizado (predicativo) (REZENDE, 2007).
Enunciação e operações de linguagem
Na teoria de Émile Benveniste (1974, p. 80), a definição canônica de enunciação é
encontrada, a partir dos conceitos de subjetividade e de apropriação, como “um ato individual de
utilização”, em que o sujeito designase EU e põe a língua em funcionamento. Nesse contexto, o
autor mostrou que
EU designa aquele que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o 'eu': dizendo eu, não posso deixar de
falar de mim. [...] 'Tu' é necessariamente designado por eu e não pode ser pensado fora de uma situação proposta a partir do 'eu'; e,ao mesmo tempo, eu enuncia algo como um predicado de 'tu'. Da terceira pessoa, porém, um predicado é bem enunciado somentefora do 'eutu'; essa forma é assim excetuada da relação pela qual 'eu' e 'tu' se especificam (BENVENISTE, 1974, p. 250).
É no interior de enunciados produzidos por locutores individuais que existem marcas da
“colocação em funcionamento da língua”. Para isso, Benveniste chamou de “aparelho formal da
enunciação”, o que comporta, nas produções verbais, a subjetividade dos locutores. Ao ver, nessa
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possibilidade que o sujeito tem de se colocar como “EU”, uma autonomia do discurso, o teórico
parece descartar, de certa forma, a questão da referenciação. Apesar disso, ele foi o precursor dos
estudos sobre esse tema na lingüística, inspirou e ainda inspira muitas pesquisas.
Na teoria de enunciação culioliana, as noções de interlocução, de significação e de
ambigüidade são fundamentais para o modelo. A enunciação é definida como um conjunto de co
localizações de enunciados que, por sua vez, exibe a ação simultânea de dois sujeitos, um
primitivo e outro designado pelo discurso, cujo objetivo é o de transmitir sentidos.
A significação, também entendida como enunciação por Culioli (1973, p. 8689),
desemboca numa dupla contradição: um enunciado exibe na superfície os traços de “um
agenciamento bem mais simples do que aquele que corresponde às operações que o produziram”.
No entanto, como cada enunciação é um fenômeno único, é preciso considerar um campo adjunto
ao da enunciação que, em referência à teoria freudiana, Antoine Culioli define como co
enunciação: “o lugar do jogo, dos ajustamentos desejados ou não, obtidos ou não (palavras
acidentais, lapsos, jogos de palavras, malentendidos e ambigüidades)”.
Culioli insiste:
Je crois que c'est une tendance de l'être humain de s'imaginer que tout se passe comme ça, par simplification. Mais,
quan à moi, il y a eu deux points (non, trois points!) qui m'ont forcé à changer: c'est, un, le concept de régulation; deux,
l'intersubjectivité mais avec la construction du coénonciateur, qui est le miroir de l'enonciateur (pas du coénonciateur extérieur
qui est l'interlocuteur) et, em même temps – je pense que c'est lié au second point d'ailleurs – une conception qui m'a fait sortir du
<< discours intérieur >>, qui est au fond un soliloque; c'estàdire que, si on a un énonciateur / coénonciateur, toute cette activité
n'est jamais une activité solitaire (CULIOLI & NORMAND, 2005, p. 155156).
É por este autor insistir sobre a característica fundamental da situação de interlocução,
uma nãosimetria entre produção e reconhecimento, que o conduz a preferir o termo co
enunciação ao de enunciação.
Os dois parâmetros da produção e do reconhecimento são sempre mencionados por
Culioli, visto que se trata da situação de enunciação. Como o emissor e o receptor têm cada um
dois papéis, já que o emissor é também seu próprio receptor e que o receptor é um emissor
potencial, há uma dessimetria fundamental no ato de interlocução. Cada um constrói ao mesmo
tempo a produção e a recepção do outro, tratase, por isso, de “coenunciadores”.
O teórico propõe um sistema de representação metalingüística para organizar o que ele
chama de “pacote de relações” presente no enunciado. Essa representação metalingüística ou
objetos metalingüísticos são os “construtos teóricos” necessários para construir um sistema
dinâmico, e não estático como muitas teorizações lingüísticas.
A partir das duas teorias da enunciação existentes, a de E. Benveniste e a de A. Culioli,
podemos dizer, sucintamente, que a enunciação implica, essencialmente, a existência de um
ALGUÉM (EU,VOCÊ), situado em ALGUM LUGAR (AQUI), que fala ALGO (ISTO, AQUILO),
numa situação de enunciação (que inclui um AGORA e INTERLOCUTORES), com a intenção de
significar.
Além dos teóricos Benveniste e Culioli, Maingueneau (1997, p. 4142) aborda, em suas
concepções, que na língua há “deixis” as quais define as coordenadas espaçotemporais
implicadas em um ato de enunciação, ou seja, o conjunto de referências articuladas pelo
triângulo:
EU <====> TU === AQUI === AGORA
Para o autor, na enunciação há sempre EU/TU, AQUI, AGORA, ou seja, há sempre um
sujeitoenunciador, em um lugar e em um determinado tempo. Essa articulação tríade abordada
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por Maingueneau, bem como a implicação na enunciação de ALGUÉM, ALGUM LUGAR, ALGO
em uma situação de AGORA com ALGUÉM, articulada pelas teorias da enunciação propostas por
Benveniste e Culioli[8], instaura, quase que automaticamente, a questão do sentido marcada na
significação.
Para abordar essa questão, lembramos que Antoine Culioli propõe a distinção entre
sentido, relação entre objetos lingüísticos que se referem a objetos extralingüísticos, e
significação, relação complexa entre enunciados, uma situação de enunciação, um sentido e
valores referenciais.
O fato de o autor não separar radicalmente sentido e referência permite a integração da
semântica na operação de referenciação, processo complexo pelo qual o sujeito constrói e
(re)constrói a significação lingüística, na relação representaçãoreferente.
Na relação representaçãoreferente, o importante é perceber a construção da
representação uma vez que ela dá um “estatuto de representação que existe ou que não existe[9].
[...] Precisou passar por todo um caminho aspectomodal” (REZENDE, 2002, p. 121). Esse ponto é
significativo para a reflexão do presente trabalho.
Tratandose do aspecto modal, ele “é a trajetória instável e incerta pela qual toda a
representação passa para vir a ser representação. Essa trajetória inclui necessariamente o outro
enquanto suporte da variação da representação”:
a) no espaço (aqui e lá);b) no tempo (agora, antes e depois);c) para os sujeitos envolvidos: S1, aquele que fala ou escreve, e S2, aquele para quem o discurso oral ou escrito é
dirigido (não necessariamente quem ouve ou quem lé) (REZENDE, 2002, p. 121).
Esse aspectomodal está associado às instabilidades (isto é, as resistências, os
obstáculos) as quais oferecem as noções em relação a finalizar uma ação desencadeada ou iniciada
e atingir estados resultantes que nos ofereçam representações estabilizadas. Para Rezende (idem),
“as noções em relação podem estar configurando uma relação sujeito e objeto ou uma relação
sujeito e sujeito”[10].
O caminho modal e aspectual, para Rezende (2007, p. 3), “é o sulco pelo qual
conseguimos transformar uma representação impossível em possível e viceversa. É tal caminho
também que leva à estabilização ou desestabilização da representação”. [...]“O fato de não se
colocar o problema com toda a complexibilidade não permitirá que se perceba que qualquer
entidade do mundo, para existir na língua, passou pelo trabalho de elaboração de representação
feito pelo sujeito, quer dizer, passou pelas telas da linguagem”.
Para tanto, essas questões da enunciação desembocam em outra questão: a da
constituição do sujeito. Esse aspecto, tema da enunciação, é, ainda, abordado em outras
disciplinas, dentro e fora do campo da lingüística, como a Psicanálise, a Estilística, a Análise
Literária e a Análise do Discurso.
Rito processual: um olhar sob o corpus discursivo
De acordo com a perspectiva adotada para este trabalho, o texto é visto como uma
seqüência de representações que resultam de um conjunto de operações realizadas por um sujeito
enunciador que, numa situação de enunciação (que inclui os interlocutores e um momento), busca
constituir um sentido.
O corpus de análise é composto por rito processual de um processo penal, concedidopelo Tribunal de Justiça de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul. Nesse contexto, aodecorrer desta investigação, algumas questões norteadoras exercerão a condução do trabalho, taiscomo: a) como funciona a significação do enunciado do defensor e qual sua representação?; b)
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como é dada a coenunciação no discurso de defensoria pública? e c) como resulta os efeitos desentidos no processo penal? Essas questões norteiam o dispositivo analítico deste trabalho.
Para compreendermos a análise, nas próximas seções, fazse necessário apresentar o
primeiro recorte do arquivo jurídico: o fato delituoso[11] do crime, conforme o/a relator/a.
Vejamos:
FATO DELITUOSO.“1.
Em data não precisada, mas anterior a 18 de novembro de 2003, em cidade tal/RS, os denunciados “X”, “Y” e “Z”[12]
associaramse para o fim de praticarem, reiteradamente, o crime previsto no artigo 12 da Lei nº 6.368/76, congregando esforços evontades na obtenção e distribuição onerosa de ‘Cannabis sativa” entre usuários e outros fornecedores desta cidade, sendo que, notransporte das substâncias entorpecentes comercializadas, serviamse, usualmente, de um veículo marca tal, com placas tal,transitando com ele na calada da noite, para não gerarem suspeitas.
2.
Inspirados por tal associação, no dia 18 de novembro de 2003, por volta da 01h10min, na BR386, Km 366, em
cidade tal/RS, os denunciados “X”, “Y” e Z”, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar,
transportavam, para vender a terceiros, no interior do veículo marca talo, placas “tal”, de cor tal, 32 (trinta e dois) tijolos prensados
e embalados em filme plástico, contendo, no total, 116,900Kg (cento e dezesseis quilos e novecentos gramas) de “Cannabis sativa”,
vulgarmente conhecida como “maconha”, substância entorpecente, que causa dependência física e psíquica, por conter
tetraidrocanabinol,consoante laudo de constatação preliminar da fl.
Na ocasião, os denunciados tripulavam o citado veículo, dirigindose até a residência de um quarto indivíduo, a quem
entregariam parte da droga transportada, quando, ao circundarem a Praça tal, no centro desta cidade, foram flagrados por policiais
militares e receberam ordens de parada.
Em vez de cumprirem a determinação, imprimiram maior velocidade ao automotor, ingressando na RS386, em
desabalada fuga, rumo a Porto Alegre/RS. Foram interceptados, porém, em uma barreira policial, oportunidade em que
abandonaram o veículo e tentaram correr, no afã de garantirem a impunidade.
Após a detenção de “X”, “Y” e Z”, em revista ao interior do automóvel que tripulavam, policiais localizaram, atrás do
banco do caroneiro e o seu portamalas, acondicionados em três sacos, os tijolos de “maconha” antes referidos, droga que foi
apreendida (auto de apreensão de fls.)”.
Atento para este recorte, indexado no processo penal, porque, a partir do fato descrito, o
advogado, sujeito de Direito representante da Justiça do Estado, assume o seu papel de defensor
público e tende a legislar em prol da absolvição dos três réus envolvidos no crime de
entorpecentes.
Serão analisados comentários da Promotoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul em
relação à Apelação, para compreender mais adiante a significação e os efeitos de sentidos
instaurados pela posição do sujeito advogado na tentativa de absolvição criminal. Optouse por
escolher o discurso do defensor público em relação à apelação ao réu “Y”. Em vista disso,
apresentarseão as seqüências discursivas do sujeito defensor, na fala do Promotor:
APELAÇÃO[13]Inconformados, apelaram o Ministério Público e os réus (fls. 667, 676/677, 690 e 703), com fulcro no artigo 593,
inciso I, do Código de Processo Penal. Em suas razões (fls. 668/675), o Ministério Público, em síntese, requer a reforma da sentença guerreada para que as
penas privativas de liberdade cominadas resultem fixadas no patamar mínimo de cinco anos de reclusão para o réu “Y”, e de cincoanos e um mês de reclusão para os acusados “X” e “Z”.
Os réus contrarazoaram o apelo do Ministério Público, pugnando pelo improvimento (fls. 697/700, 721/726 e
797/804). [...]
Já o réu “Y”, em seu apelo (fls. 728/792), suscita quatro preliminares e uma prefacial, dizendo respeito à: a)
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nulidade do feito em face da não juntada do laudo toxicológico antes da instrução, afrontando ao princípio da ampla defesa; b)
nulidade do processo ante a falta da intimação da expedição de carta precatória; c) nulidade pela nãointimação da defesa da
reabertura da instrução; d) nulidade também pela ausência de intimação da juntada do laudo definitivo; e, e) inépcia da denúncia.
(Os destaques são meus).
No mérito, pugna pela sua absolvição, alegando que não restou comprovado que tenha incorrido em tráfico de
drogas. Alternativamente, propugna pela desclassificação do delito para aquele tipificado no artigo 16 da Lei nº 6.368/76,pedindo a aplicação do art. 19 da Lei de Tóxicos. Por fim, pede o afastamento da majorante do artigo 18, inciso III, daLei nº 6.368/76, e a aplicação do regime carcerário no inicialmente fechado.
O Ministério Público, em contrarazões (fls. 808/830), pugna pelo improvimento dos recursos defensivos. Subiram os autos a este Tribunal.
O espaço da instabilidade como estratégia da Defensoria Pública no Poder Judiciário
Jacqueline AuthierRevuz (1982) retoma a idéia de uma irrupção das formas que
mostram bem a língua como espaço de equívoco, no discurso, onde um UM e um NãoUM se
entrepõem, negociam e se desdobram. A heterogeneidade enunciativa é, portanto, caracterizada
como uma forma de negociação do sujeito com o seu dizer.
Essa negociação pode se representar de duas formas. A heterogeneidade constitutiva
remete à presença do Outro, diluída no discurso, não como objeto, mas como presença integrada
pelas palavras do outro, condição mesmo do discurso, e o sujeito desaparece para dar espaço a um
discursooutro. Ao passo que a heterogeneidade mostrada marca o discurso com certas formas que
criam o mecanismo de distância entre o sujeito e aquilo que ele diz. É uma negação que ocorre
sob forma de denegação.
Com isso, a articulação das noções de subjetividade, de heterogeneidade enunciativa e
de coenunciação com a noção de efeitos de sentidos, em relação às estratégias enunciativas
postas em funcionamento no discurso, permite falar de ambigüidade operatória.
Entendese ambigüidade enquanto diferença entre um semantismo produzido e um
semantismo reconstruído, tal qual define Antoine Culioli e Catherine Fuchs (apud AMARAL,
1999) como “um fenômeno que pode estar ligado a uma diferença de sentidos
(gramatical/lexical), às categorias enunciativas ou ainda aos fenômenos referenciais
(ambigüidade; transparência/opacidade)”.
A ambiguidade/contrariedade, também vista por Pêcheux[14] (1982; 1983), pela
“condição de existência de universos discursivos nãoestabilizados logicamente, próprios ao
espaço sóciohistórico dos rituais ideológicos (...)”. Nesses, “a ambigüidade e o equivoco
constituem um fato estrutural incontornável. O jogo das diferenças, alterações, contradições não
pode aí ser visto como um amolecimento de um núcleo duro lógico”, mas como funcionamento de
certas regularidades. Por isso, analisar a linguagem implica fazer aparecer e desaparecer as
contradições que asseguram a coerência das ações sociais que preenchem o cotidiano dos sujeitos.
Verificar os traços de um (suposto) sujeito do dizer e as estratégias que ele utiliza,
quando tem a intenção de significar, é projetarse também nessa rede de enunciações em cadeia,
constituindose como coenunciador e participante ativo do processo de significação.
Neste ponto, surge o questionamento: Em termos de funcionamento discursivo, será que
é possível colocalizar na Apelação alguma estratégia enunciativa do Defensor Público.
A partir do ponto de vista da enunciação, a atividade discursiva é sempre
“interpretativa”, mesmo que, aparentemente, em sua materialidade lingüísticodiscursiva, ela se
represente como “informativa”, “de entretenimento” ou “impessoal”. Isso porque, enquanto
produto da atividade discursiva de um enunciador sujeito defensorpúblico que (re)interpreta e
(re)diz, a Apelação, no rito processual, se constitui numa materialidade lingüísticodiscursiva
repleta de nuances, obstáculos, e, até mesmo resistências.
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O rito processual transita entre a noção de texto e escritura. E, nessa perspectiva, texto,
Apelação e/ou rito processual pressupõem a existência de um enunciador numa situação de
enunciação, para que o sentido possa ser constituído.
Os enunciados, coletados e compostos no “rito processual”, são textos produzidos por
enunciadores (advogados, juízes de direito, promotores públicos), reinterpretados por co
enunciadores (outros: juízes, promotores públicos, desembargadores, revisores, assistentes,
leitores, analistas de textos etc. de outras Comarcas ou Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça
do Estado, em instâncias e graus diversos) e ainda sujeitos a outras coenunciações imprevistas.
Essas diferentes vozes que caracterizam a heterogeneidade enunciativa desse grupo de enunciados
parecem também intervir nos efeitos de sentidos, ultrapassando os limites estabelecidos por seu
enunciadororigem.
O enunciador não parece buscar apenas resumir, apresentar, transmitir ou expor um fato.
Ao relatar/redigir qualquer peça do rito processual, ele interpela o interlocutor e movimenta vários
percursos subjetivos. Muitas vezes, o distanciamento do enunciador que, num mesmo
movimento, asserta o enunciado como ambigüidade operatória, produz efeitos específicos na
materialidade lingüística.
Em dado momento, por exemplo, o advogado defensorpúblico, o coenunciador, se
afasta do ato enunciativo, quando assume o papel de coenunciadorcompilador, mas se marca
quando outros enunciadores fazem o reconhecimento interpretativo dos enunciados. Ele
reaparece, então, como “crítico”, “alguém que sabe mais do que as pessoas que enunciaram”. Isso
se dará, verei pelo corpus, por estratégias enunciativas construídas por percursos semânticos. A
partir desta discussão, pensase na abordagem à questão jogada anteriormente nesta seção.
Ainda, o jogo referencial construído pelas estratégias enunciativas, que circundam o
texto, é acompanhado por um outro jogo paralelo: a referenciação que fabrica um efeito de
discurso marcado e desmontado.
A enunciação do enunciadorcompilador é ainda modalizada pelo uso de marcadores,
como será visto em recorte abaixo do corpus. Mesmo que a voz seja de um outro, a modalização
obriga o coenunciadorleitor, no caso Juízes de Direito e Promotores Públicos, a tecer um ponto
de vista sobre o que é apresentado.
Ao selecionar os dois conjuntos de enunciados que integram a Apelação, o co
enunciadorcompilador “asserta”, “marca” e “amarra” o seu discurso de defesa baseado em
recursos linguageiros da ciência jurídica, construindo estratégias enunciativas, em relação aos
outros redatores (coautores dos enunciados). Ou seja, a voz do Defensor Público emerge na voz
do Ministério Público (percebidos conforme os destaques em negrito):
1. Conjunto de enunciados:
Já o réu “Y”, em seu apelo (fls. 728/792), suscita quatro preliminares e uma prefacial, dizendo respeito à: a)
nulidade do feito em face da não juntada do laudo toxicológico antes da instrução, afrontando ao princípio da ampla defesa; b)
nulidade do processo ante a falta da intimação da expedição de carta precatória; c) nulidade pela nãointimação da defesa da
reabertura da instrução; d) nulidade também pela ausência de intimação da juntada do laudo definitivo; e, e) inépcia da denúncia.
(Os destaques são meus).
2. Conjunto de enunciados:No mérito, pugna pela sua absolvição, alegando que não restou comprovado que tenha incorrido em tráfico de
drogas. Alternativamente, propugna pela desclassificação do delito para aquele tipificado no artigo 16 da Lei nº 6.368/76,pedindo a aplicação do art. 19 da Lei de Tóxicos. Por fim, pede o afastamento da majorante do artigo 18, inciso III, daLei nº 6.368/76, e a aplicação do regime carcerário no inicialmente fechado.
Então, pela análise temos: 1) o enunciador é constituído e marcado pela operação de
designação e pelas modulações sucessivas. Contraposição de palavras ou expressões ambíguas
numa mesma situação de enunciação, ressaltando um paradoxo expressivo; 2) as citações são
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operações nas quais o enunciador busca, num mesmo movimento, organizar e desorganizar as
redes enunciativas; 3) os interlocutores, embora dispersos e nem sempre identificados, são
caracterizados pelas asserções, modulações, avaliações do coenunciador redator.
Com isso, o deslocamento de um signo lingüístico significa uma duplicidade ou uma
ambigüidade, assim como o sentido literal e os efeitos de sentidos não podem ser previstos por um
interlocutor que não tenha “competência lingüisticodiscursiva” estimada.
Nessa perspectiva, a heterogeneidade parece funcionar como uma estratégia
enunciativa, na medida em que, através dela, o sujeito coenunciadorcompilador, isto é, o
Advogado Defensor Público, se constitui como ambigüidade operatória: asserção bem marcada
nos conjuntos 1 e 2 de enunciados.
Com os dois conjuntos de enunciados, o coenunciadorcompilador procura levar o
Ministério Público e/ou o Poder Judiciário a reformular a Sentença já dada em Julgamento pela
Comarca da Cidade onde recebida a denúncia, diante de uma enunciação que autoriza certos
efeitos de sentidos e proíbe outros, como:
1. Conjunto de enunciados:a) nulidade do feito em face da não juntada do laudo toxicológico antes da instrução, afrontando ao princípio da ampla
defesa;b) nulidade do processo ante a falta da intimação da expedição de carta precatória;c) nulidade pela nãointimação da defesa da reabertura da instrução;d) nulidade também pela ausência de intimação da juntada do laudo definitivo; e,
e) inépcia da denúncia. (Os destaques são meus).
2. Conjunto de enunciados:No mérito, pugna pela sua absolvição, alegando que não restou comprovado que tenha incorrido em tráfico de drogas.
Alternativamente, propugna pela desclassificação do delito para aquele tipificado no artigo 16 da Lei nº 6.368/76, pedindo aaplicação do art. 19 da Lei de Tóxicos. Por fim, pede o afastamento da majorante do artigo 18, inciso III, da Lei nº 6.368/76, e aaplicação do regime carcerário no inicialmente fechado.
Muitas nuances poderiam ainda ser exploradas nesses enunciados, principalmente
aquelas que desembocam nas operações predicativas. Assim, foram levantadas apenas algumas
pistas da dinâmica da relação sujeitoorigem e sujeitodesignado, tentando responder a algumas
das questões levantadas no início desse estudo.
Percebeuse, portanto, que as operações implicam enunciativas, em ajustamentos, entre
enunciadores. As mais transparentes são aquelas que determinam o tempo, a pessoa, o aspecto, a
quantificação, a tematização. Então: a) a enunciação marca um ponto de vista sobre o
acontecimento, no caso sobre o fato delituoso; b) o enunciador reformula a enunciação de outros
enunciadores para acordarem, os Desembargadores integrantes da Segunda Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado, pelos vistos, relatados e discutidos os autos; e c) a enunciação
inclui um outro discurso, no discurso.
Considerações finais
Neste texto, os elementos e/ou estratégias ao percurso enunciativo e discursivo do texto
jurídico foram discutidos mais especificamente pelos traços de operações de um sujeito (suposto)
do dizer na constituição do sentido que se estabelece no próprio texto. Para isso, tanto o Fato
delituoso quanto os recortes da Apelação são considerarmos extremamente pertinentes ao olhar
para a corpora.
Tendo em vista o objetivo, o trabalho pretendeu contribuir para o estudo da lingüística
ao estudo do texto, através da reflexão sobre as estratégias enunciativas e os efeitos de sentidos
presentes no “rito processual”, privilegiando um percurso normalmente negligenciado e escasso,
na linguagem jurídica.
Num primeiro momento, introdutoriamente foi identificado algumas nuances da situação
do homem em relação ao Estado, a sociedade e as relações humanas. Norteouse a relevância das
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ciências sociais neste contexto, especificamente o papel e a relevância do Direito.
Num segundo momento, interrogouse a necessidade de estudar a linguagem,
projetandoa como processo de regulação, sequenciação e referenciação, pressuposto culioliano.
Discutiuse, na seção Enunciado e significação na instância do Judiciário, a
responsabilidade do enunciado para a significação no contexto judiciário; bem como, na seção
Enunciação e operações da linguagem, a existência na enunciação de EU/TU, AQUI, AGORA,
isto é, que sempre há um sujeitoenunciador, em um lugar e em um determinado tempo, da mesma
forma que implica na enunciação a existência de ALGUÉM, de ALGUM LUGAR, de ALGO em
uma situação de AGORA com ALGUÉM, instaurando, como o mostrado, sentidos e efeitos de
sentidos, marcados na significação, como trajetos em rede discursiva.
Na seção Rito processual: um olhar sob o corpus discursivo, mostrouse o Fato
delituoso como instigativo ao estudo, uma prática criminosa de tráfico de drogas, algo vivido e
pertencido ao mundo da minoria (não se sabe até que ponto essa minoria), como “a dor do
território brasileiro”. Nesse lugar textual, apresentaramse os enunciados que articularam
discursivamente a Apelação do Defensor Público e a voz do Ministério Público.
Num terceiro momento, intitulado O espaço da instabilidade como estratégia da
Defensoria Pública no Poder Judiciário, recorreuse a um certo número de
marcadores/moduladores de efeitos de sentidos (previstos/imprevistos), possibilitando o discurso
como espaço dinâmico, localizando efeitos de sentidos resultantes de uma transgressão operatória
do sistema. Nessa transgressão encontramos as pistas para a interpretação e o reconhecimento de
outras ocorrências.
Nesta seção, os enunciados selecionados possibilitaram perceber as estratégias
enunciativas funcionando como elementoschave para a construção dos efeitos de sentidos, pois
elas dinamizaram as relações intersubjetivas quando interpelaram a materialidade lingüística. Viu
se, ainda, o coenunciador como recorrente a várias estratégias: recolhe os enunciados, compila
os, ordenaos, dispersaos (publicaos numa peça processual na ordem jurídica destinado ao
público delimitado, no caso aos Promotores e Juízes de Direito), marcandose e definindo a sua
posição no discurso, bem como na(s) ideologia(s).
As estratégias enunciativas resultaram de operações enunciativas e predicativas que
estabilizaram e/ou desestabilizaram, indefinidamente, a significação. Foi nesse ponto principal
que o trabalho pretendia chegar, partindo das estratégias que permitiram a exploração de algumas
nuances, entendidas também como “ambigüidade operatória”. Por essa compilação, o co
enunciador buscou criar um efeito de sentido específico, calculado, nas relações intersubjetivas.
Dessa forma, na linguagem jurídica, os traços deixados nos enunciados a (re)constituem,
a partir de estratégias de reformulações, deslocamentos, enunciação, (re)interpretação do
acontecimento. O funcionamento das estratégias enunciativas no discurso criou, portanto, efeitos
de sentidos estáveis e instáveis e auxiliaram, tanto o enunciador quanto o coenunciador, este
principalmente, chegar ao ponto resultante de seus interesses. Com isso, a linguagem possibilitou
a transação de uma ideologia para outra e viceversa, marcando a posição de cada sujeito em cada
espaço e tempo.
Nos enunciados analisados focalizados no trabalho, os efeitos de sentidos foram mais
visíveis nas situações de coenunciação, lugar de ajustamentos, deslizes, jogos realizados pelo
sujeito coenunciador, o Defensor Público. Diante disso, percebeuse a rede de enunciações,
pelo/no conjunto de enunciados 1 e 2, a referencialização e o lugar de onde o enunciador
enunciou e o lugar do coenunciador enunciar.
Por tratarse de um discurso jurídico, formal, dado por um “Operador do Direito”, os
efeitos de sentidos variaram de acordo com o desdobramento das enunciações, pela competência
necessária para (re)interpretar a ambigüidade. Logo, podese dizer que, no caso da Apelação vista,
os efeitos de sentidos são sempre marcados pelas vozes heterogêneas de outros enunciadores que
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interpelam a fragilidade dos problemas de representações (construídas e a construir).
Nos enunciados analisados, a enunciação não se deu só e totalmente ao enunciador
origem, mas se deu também pela enunciação do coenunciadorcompilador, o qual caracteriza a
significação nos conjuntos dos enunciados.
Como bem disse Rezende (2000, p. 354), “a linguagem é o próprio processo de avaliação
e medida; é ela que nos oferece a distância, a proximidade, o vazio, o remontamento. A linguagem
é um mecanismo de “localização”, e, portanto, um mecanismo que organiza um “espaço”
distanciando e aproximando “pontos” ou “lugares””. Para estudar a linguagem, “é necessário ora
estabilizar pontos instáveis, ora desestabilizar pontos estáveis, mas nunca eleger definitivamente
alguns pontos como fixos, como o padrão de medida”.
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_____ & NORMAND, Claudine. 2005. Onze rencontres sur le langage et les langues. Paris: Ed. Ophrys.
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HAROCHE, Claudine. 1992. Fazer Dizer, Querer Dizer. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi. São Paulo: Hucitec.
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_____. 2007. Nominalização: operações predicativas e enunciativas. In: CONGRESSO DO GRUPO DE ESTUDOS
LINGÜÍSTICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 55º, Anais... Franca, SP: UNIP, 2007. p. 110.
[1] Esse texto foi apresentado como monografia final de curso na disciplina 'Enunciação e Significação Lingüística',
ministrada pela Profª. Drª. Leticia Marcondes Rezende no 1º semestre de 2008, no curso de Mestrado em Língua Portuguesa e
Lingüística da Universidade Estadual Paulista, em Araraquara, São Paulo. O corpus apresentado nesse artigo é o objeto de análise
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de minha pesquisa de mestrado no programa de Lingüística da UFSCar, na linha Linguagem e Discurso, desenvolvida sob a ótica
dos filósofos Pêcheux, Foucault e Bakhtin..
[2] Programa de Pósgraduação em Lingüística, Centro de Educação e Ciências Humanas, UFSCar, end. eletrônico:
[3]Avec l'epilinguistique on est par certains côtés – le terme me gêne un peu mais je vais l'employer quand même
<<libéré>> de la contrainte de la relation à autrui, de la linéarité, du fait même qu'il y a une sanction sociale si vous êtes trop
divergent par rapport à une conformité inévitable (CULIOLI & NORMAND, 2005, P.109110).
[4] Tradução brasileira de Eni Orlandi, com a colaboração de Freda Indursky e Marise Manoel. Título original em
edição francesa: Faire Dire, Vouloir Dire (Ed. Presses Universitaires de Lille, em 1984).
[5]Dolo, entendese que é a vontade e/ou intenção de concretizar os elementos subjetivos do homem; “é quando o
agente quis resultado ou assumir o risco de produzilo” (art. 18, PARTE I, do Código Penal).
[6] Os documentos que formam o corpus discursivo compõem o rito processual, o qual está regulado pelo Código de
Processo Civil Brasileiro. Tratase de documentos que seguem uma previsão legal e que são entregues no fórum da comarca onde a
ação é ajuizada à medida que a ação é impulsionada pelo juiz responsável. Esses documentos representam o desenvolvimento da
ação no tempo, uma vez que cada um deles tem um momento certo para ser produzido, ou seja, cada um deles é requisito específico
de cada uma das fases que compõem o processo.
[7] Ler, por exemplo, o capítulo 15: A forma e o sentido na linguagem, in BENVENISTE, Émile. Problemas de
lingüística geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989. Tradução de Eduardo Guimarães.
[8] Reconhecese, neste trabalho, a existência das peculiaridades singulares desses três teóricos, bem como o papel de
cada um no campo da Lingüística.
[9] Destaques em itálico conforme o texto da autora.
[10] Sob o aspecto da finalização ou não finalização de uma ação, abordarei mais especificamente em relação ao corpus
na seção Rito processual: um olhar sob o corpus discursivo.
[11] Conforme o texto Relatório – p. 0607 (processo LRAB Nº 70010801421).
[12] Foi substituído o nome dos denunciados por “X”, “Y” e “Z”, para fim de sigilo nominal. A partir já deste recorte
do processo criminal será referido aos denunciados, sujeitos que praticarem o crime, por esta legenda.
[13] Conforme o texto Relatório – p. 1415 (processo LRAB Nº. 70010801421).
[14] A referência a Michel Pêcheux pelo aspecto semanticista que instaura em muitas passagens do seu dizer/fazer
teórico, como possível de ser visto em sua obra Les Vérités de La Palice, traduzida no Brasil por Semântica e Discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio, pelo rompimento com a semântica formal e, assim, a visão de outros horizontes sobre a semântica.
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