A EMERGÊNCIA DO CÓDIGO DE MENORES DE 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da...
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
A EMERGÊNCIA DO CÓDIGO DE MENORES DE 1927:
uma análise do discurso jurídico e institucional
da assistência e proteção aos menores.
MARCOS CÉSAR ALVAREZ
SÃO PAULO
1989
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
A EMERGÊNCIA DO CÓDIGO DE MENORES DE 1927:
uma análise do discurso jurídico e institucional
da assistência e proteção aos menores.
MARCOS CÉSAR ALVAREZ
Dissertação de Mestrado em Sociologia, sob a
orientação da Professora Doutora Lia Freitas
Garcia Fukui.
SÃO PAULO
1989
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Lia Freitas Garcia Fukui, orientadora desta dissertação, que acompanhou
dedicadamente o desenvolvimento do trabalho.
Aos professores do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, que
contribuíram para a discussão do projeto.
Aos colegas do Departamento de Ciências Sociais e à própria Universidade Estadual de
Londrina, pela liberação das atividades didáticas durante a redação final da dissertação.
Às instituições financiadoras de pesquisas: FAPESP pela bolsa de iniciação científica
obtida ainda na graduação; CAPES e CNPq, que financiaram a pós-graduação.
Ao Prof. Lourenço Chacon J. Filho, que revisou a primeira versão da dissertação.
À Vanda Moraes e Mello L. dos Santos, que trabalhou como auxiliar de pesquisa durante o
ano de 1988.
À Teruko Kikumoto, que revisou a versão final e a datilografou.
SUMÁRIO
RESUMO
I – O PROBLEMA _______________________________________________________ 2
I.1. – Introdução e revisão bibliográfica __________________________________ 2
I.2. – Proposta de trabalho ____________________________________________ 14
II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA
E OBJETO DE ANÁLISE ________________________________________________ 18
II.1. – Sobre o conceito de sujeição _____________________________________ 18
II.2. – Foucault e a análise histórica dos _________________________________ 22
mecanismos de sujeição ______________________________________________ 22
II.3. – O Código de Menores de 1927 ___________________________________ 28
como objeto de análise _______________________________________________ 28
III – CONTEXTO HISTÓRICO __________________________________________ 32
III.1. – Legislação e contexto __________________________________________ 32
III.2. – Transformações institucionais __________________________________ 35
III.3 – A emergência do Código de Menores de 1927 ______________________ 52
IV – DISCURSOS _______________________________________________________ 61
IV.1. – A crítica ao “discernimento” ____________________________________ 61
IV.2. – Uma “Nova Justiça” ___________________________________________ 79
IV.2. – “Justiça e Assistência” _________________________________________ 88
IV.4. – A proposta de uma nova legislação:
Alcindo Guanabara e Mello Mattos ____________________________________ 97
IV.5. – Moncorvo Filho e a “Cruzada pela Infância”: ____________________ 111
IV.6. – O Código de Menores e a estruturação da
prática institucional referente ao menor _______________________________ 123
V – A SUJEIÇÃO DO MENOR __________________________________________ 153
V.1. – A justiça para menores como um dispositivo de poder ______________ 153
V.2 – A “questão do menor” e a “questão social _________________________ 166
CONCLUSÃO _________________________________________________________ 180
BIBLIOGRAFIA ______________________________________________________ 184
FONTES PRIMÁRIAS _________________________________________________ 197
RESUMO
Este trabalho estuda as transformações discursivas que tornaram possível a
emergência de uma legislação de assistência e proteção aos menores no Brasil do início do
século. Para isso, são analisados uma série de textos elaborados por juristas e filantropos
que, entre o fim do século XIX e início do século XX, passaram a discutir a necessidade da
reformulação da legislação sobre a menoridade, culminando essas discussões na
promulgação do primeiro Código de Menores do País, em 1927.
O capítulo I situa a proposta de trabalho, que consiste em enfatizar a
historicidade do “menor” enquanto categoria jurídica e institucional. No capítulo II são
definidos os dois principais conceitos necessários para a análise: os conceitos da sujeição e
de discurso. No capítulo III são indicadas algumas das principais transformações
institucionais, referentes ao tratamento da infância e adolescência durante o século XIX e
princípio do XX. No capítulo IV é feita a análise de discurso propriamente dita,
explicitando-se as principais mudanças discursivas que então ocorreram: os textos
analisados começam com a crítica da legislação sobre a menoridade então vigente e que se
baseava na noção de “discernimento”. Uma “nova justiça” e uma “nova assistência”
são propostas, baseadas nos tribunais para menores, que passarão a aplicar um novo
estilo penal, no qual a noção de “punição” será substituída pela noção de “recuperação”.
O Código de Menores de 1927 aparecerá então como a síntese dessas novas propostas, ao
definir um novo projeto jurídico e institucional voltado para a menoridade. No capítulo V
esse novo projeto visando o tratamento jurídico e institucional de crianças e adolescentes
será interpretado como um dispositivo de poder, articulado ao novo contexto urbano que
então se constituía, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. No final de todas
essas transformações o menor enquanto sujeito histórico estará plenamente definido. Na
conclusão serão apontados alguns caminhos possíveis para o desenvolvimento futuro das
análises sobre o tema.
I – O PROBLEMA
I.1. – Introdução e revisão bibliográfica
I.2. – Proposta de trabalho
“Os objetos parecem determinar nossa conduta,
mas, primeiramente, nossa prática determina esses
objetos. Portanto, partamos, antes, dessa própria
prática, de tal modo que o objeto ao qual ela se
aplique só seja o que é relativamente a ela (...) A
relação determina o objeto, e só existe o que é
determinado (...)”
PAUL VEYNE
I – O PROBLEMA
I.1. – Introdução e revisão bibliográfica
A questão do menor na sociedade brasileira ganhou destaque nos últimos anos.
Muito se fala, atualmente, sobre o “problema do menor” – definição genérica
que abrange temas diversos, como o das condições de vida e trabalho a que estão sujeitos
parte das crianças e adolescentes brasileiros, o da marginalização daqueles provenientes
das classes mais pobres, o do fracasso das instituições que deveriam lhes dar assistência e
proteção, etc. Essa problemática, específica a uma categoria da população brasileira, não
deixa de apontar, também, para temas mais abrangentes, referentes à sociedade como um
todo: as condições de vida e de saúde de grande parte da população, a distribuição da renda
nacional, a falta de participação política a que está sujeito o povo do país, etc.
Assim, de uma forma ou de outra, o menor e seus inúmeros problemas estão
presentes o tempo todo em nosso cotidiano, nos meios de comunicação como jornais, rádio
e televisão. Dificilmente passamos uma semana sem notícias, entrevistas, debates e até
comerciais chamando a atenção para o tema.
Também no plano das práticas institucionais existem muitas iniciativas, tanto
em termos assistenciais e pedagógicos como em termos punitivos e reformadores.
Portanto, não só os discursos sobre o menor proliferam, mas também diferentes ações
institucionais se revezam, geralmente sem muita eficácia, na tentativa de solução do
problema.
3
De qualquer modo, dentro do senso-comum, o menor é um tema que se presta
muito mais à denúncia do que à análise.
Essa percepção da questão do menor como um dos grandes problemas de nossa
sociedade tem sido acompanhada, desde o início da década de setenta, por trabalhos de
pesquisadores e cientistas sociais, que passaram a se interessar pela problemática. Estes
trabalhos, indo além do senso-comum sobre a “questão do menor”, passaram a discutir
mais a fundo questões como a da marginalidade de crianças de certos segmentos da
população, as possíveis causas sociais da delinqüência do menor e as representações que o
menor tem sobre seu cotidiano1.
Um dos primeiros trabalhos mais significativos neste sentido foi o realizado
pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, intitulado A criança, o adolescente, a
cidade (CEBRAP, 1972).
Este trabalho resultou de uma pesquisa encomendada pela Presidência do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para servir de subsídio às Semanas de Estudos
do Problema do Menor (Cf. São Paulo, Secretaria do Tribunal de Justiça, 1974). Nele, foi
realizado um estudo sociológico sobre a marginalidade e a reintegração social do menor na
cidade de São Paulo. Para isso, pesquisou-se a situação social dos menores internados em
1971 nas entidades públicas e privadas da capital e em algumas entidades situadas em
municípios vizinhos. Como instrumentos de pesquisa da situação do menor abandonado e
delinqüente interno na cidade, foram utilizados questionários, entrevistas, histórias da vida,
estudo de caso e a observação direta.
O plano da obra dividiu-se em três partes:
1 Nosso levantamento bibliográfico se restringe aos trabalhos considerados mais significativos, feitos em São
Paulo, já que temos maior familiaridade com essa produção local. Acreditamos, todavia, que se trata de uma
produção expressiva também no âmbito nacional, daí a pertinência do recorte.
4
1ª ) A Problemática
Foram examinadas as condições sócio-econômicas da marginalização social no
meio urbano, focalizando, mais especificamente, a marginalização social do menor a partir
do contexto do pauperismo e da desorganização social da família proletária urbana. O
objetivo era o de relacionar explicitamente a marginalização social do menor com a
marginalização social no meio urbano.
2ª ) Diagnóstico
Estudou-se a situação social do menor internado em entidades públicas e
privadas, reconstituindo suas condições sociais de vida nessas entidades.
3ª ) Conclusão
Foi feito um estudo conjunto da problemática do menor que se achava
internado em entidades públicas e privadas em São Paulo, focalizando as insuficiências e
inadequações na organização e funcionamento de entidades públicas e privadas, fazendo
um balanço crítico das possibilidades de aproveitamento mais eficiente dos recursos
disponíveis.
Resumindo, o trabalho tentou colocar o problema do menor como um problema
relacionado às condições de vida no meio urbano. O pauperismo e a desorganização social
das famílias proletárias levariam a uma situação de carência generalizada, a partir da qual
se produziria a socialização divergente de crianças e adolescentes pertencentes a essa s
famílias. O trabalho concluía com a proposta de que só seria possível a ressocialização
desses menores a partir de uma maior racionalização dos meios institucionais públicos e
privados disponíveis para esse fim, tendo por base um órgão de planejamento social
integrado.
5
O mérito deste trabalho, bastante rico e completo em dados empíricos, foi o de
ter retirado a questão do menor do âmbito estritamente jurídico e tê-la colocado dentro de
um contexto social mais amplo. A partir deste trabalho essa questão passou a ser alvo de
estudos de outros pesquisadores, que começaram a analisá-la a partir de novos enfoques.
Meninos de rua (Ferreira, 1979) foi um dos estudos que se seguiram, resultado
de uma pesquisa encomendada ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC),
pela Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. Seu objetivo foi o de levantar os valores de
crianças e adolescentes que viviam em situação de marginalidade sócio-econômica na
Grande São Paulo. Tratava-se de saber de que modo aqueles que eram marginalizados
reagiam a sua própria situação, ou seja, como os sujeitos desse processo o viviam:
A proposta da pesquisa pressupõe (...) que a informação mais íntegra das
condições de vida do marginalizado só pode ser dada por ele próprio. Isto
é, que a reconstrução da situação social dos menores marginalizados deve
basear-se em dados empíricos, obtidos diretamente dos sujeitos, no
momento em que ocupam essa posição, da forma como se expressam e se
manifestam comumente.
Logo, a pesquisa se posicionou no sentido de conhecer a forma de ser e
pensar dos sujeitos, o modo como compreendem a realidade que os cerca,
como fazem suas opções, o que desejam, como agem para obter o
desejado, a partir de sua vivência pessoal e visão-de-mundo. (Ferreira,
op.cit., p.18)
Centrando-se nas expectativas e valores dos menores, a pesquisa visou,
principalmente, reconhecer e captar as estratégias de sobrevivência e as formas de
6
relacionamento social das crianças estudadas, a partir do material de análise, obtido, em
sua maior parte, através da transcrição do diálogo com os próprios agentes. Evitando entrar
em discussões sobre as causas do processo de marginalização, o livro não deixou, porém,
de posicionar a população estudada no contexto mais amplo das condições estruturais e
conjunturais da sociedade brasileira.
Ao tentar responder a questão sobre quem era o menor infrator, a partir da
análise das estratégias de sobrevivência colocadas pelos próprios agentes no seu cotidiano,
o mérito deste estudo foi justamente o de recuperar a questão do menor a partir de um
ponto de vista distinto daquele das instituições e discursos oficiais. Ao mesmo tempo, não
perdeu de vista o contexto político e social no qual estavam inseridos os agentes,
apontando, no seu final, para outros temas que deveriam ser abordados: a violência na
família, na escola, no aparato institucional; a elaboração cultural dos estigmas sociais; a
real função da escola e das instituições de assistência social e de recuperação de menores;
as articulações entre o crime organizado e os esquemas de repressão.
O dilema do decente malandro (Violante, 1982) tratou da identidade do menor
institucionalizado do ponto de vista psicossocial.
Partindo do pressuposto de que a marginalização é fruto do processo histórico
da acumulação capitalista, o trabalho tentou captar a construção da identidade do menor
dialeticamente articulada a esse processo:
Conceber o Menor como síntese de múltiplas determinações implica em
considerá-lo não como uma entidade única, peculiar e fechada em si
mesma, mas como ser social, no contexto das condições marginais de sua
existência, condições essas que refletem as contradições básicas da
sociedade. (Violante, op.cit., p.22)
7
Levando em conta que a carreira institucional do menor é essencial para a
compreensão de sua identidade, já que instituições se apropriam do menor enquanto
marginalizado para socializá-lo, a autora estudou menores de unidades educacionais da
FEBEM, em São Paulo, chegando à conclusão de que essa instituição reproduzia o menor
em sua identidade de marginalizado, sem, contudo, dominá-lo totalmente, já que ele
acabava se identificando com seu grupo de iguais, afastando-se assim do mundo da norma.
Passeti, em sua dissertação de mestrado intitulada Política nacional do bem-
estar do menor (Passeti, 1982), estudou o confronto entre crianças e jovens pertencentes ao
proletariado e à instituição social encarregada de controlá-los. A partir de pesquisas de
campo realizadas com menores infratores que agiam na cidade de São Paulo e que tinham
passado pela FEBEM, tentou captar as situações de enfrentamento entre menores e
instituição, partindo do pressuposto de que o problema do menor era um problema a ser
compreendido no âmbito da classe dominada e de suas relações com instituições que
efetivavam o poder da classe dominante.
No livro O mundo do menor infrator (Queiroz, 1984), diferentes abordagens
foram feitas por uma equipe interdisciplinar pertencente ao Grupo de Trabalho do Menor,
da PUC-SP. Ao longo dos capítulos deste trabalho foram analisados: a problemática do
menor infrator em sua relação mais ampla com os conflitos de classe em nossa sociedade;
o objeto “menor” e sua constituição pelo direito e pelas instituições; as condições de vida
dos menores e sua trajetória na marginalidade; confronto entre o menor e a instituição; seu
envolvimento no mundo do crime; as representações do menor infrator egresso. Este
trabalho, ao situar a questão do menor em uma perspectiva interdisciplinar, representou
8
uma síntese das principais abordagens do assunto até então realizadas2.
Podemos dizer, a partir desse breve levantamento bibliográfico sobre o tema,
que os trabalhos sobre o problema do menor começaram mostrando, no início da década de
setenta, que se tratava de uma questão que só poderia ser compreendida dentro de um
contexto mais amplo de pauperização que levava à marginalidade, terminando por mostrar,
no final dos anos setenta e início dos oitenta, a indissociabilidade entre essa marginalização
e relações de dominação que remetiam ao conflito de classes dentro de nossa sociedade,
salientando-se a importância das instituições na reprodução da marginalização e a
resistência dos institucionalizados a esse processo.
As análises sobre o tema, porém, já mostravam sinais de esgotamento.
Sader, em um dos trabalhos mais recentes, apontou para esse esgotamento,
mostrando como ele se refletiu no campo também da política. No artigo “Democracia é
coisa de gente grande?” (Sader et al., 1987), mostrou como, apesar da imagem do menor
ter ganho destaque na década de setenta, com a transição democrática que se seguiu a
questão do menor não encontrou lugar de articulação com as forças políticas democráticas,
acabando segregada juntamente com outras categorias. Segundo o autor, embora o regime
político tenha se democratizado, o menor continuou sendo instrumentalizado como
justificativa para a manutenção do aparato repressivo:
Toda imagem social é construída; mudam os meios de sua elaboração. A
transição tutelada militarmente da ditadura à democracia encontrou seus
argumentos decisivos para manter e multiplicar os aparatos repressivos na
2 Outros trabalhos de interesse são os de Arruda (1983), que estudou os menores infratores na cidade de São
Paulo, e o de Simões (1983), que, estudando a história do Código de Menores, é aquele que mais se aproxima
do nosso tema de trabalho. Foi a partir, porém, do trabalho de Fukui (1982) que formulamos a problemática
da construção histórica do menor enquanto categoria.
9
extensão da delinqüência, onde o elemento novo foi a construção da
imagem do “pixote”. Chegou assim o dia em que foi se reconhecendo
com “um estranho” a criança que havia sido escorraçada do mecanismo
seletivo do mercado capitalista. (Sader et al., op.cit., p.12)
Ainda segundo o autor, para encaminhar a solução do problema, é necessário
encaminhar a questão como um problema político da sociedade brasileira:
A “questão do menor” ou o “problema do menor” ou, ainda, como
querem outros, o “problema da família” se reduz, na verdade, ao
problema da sociedade (sem aspas). Situando-se no centro de reprodução
do mecanismo da nossa sociedade, tanto as crianças e os jovens quanto a
família refletem, na sua doença, a enfermidade geral do corpo social que
as engloba. (Sader et al., op.cit., p.34)
Assim, apesar de já possuirmos uma razoável bibliografia sobre a questão,
acreditamos que o próprio impasse político, no qual atualmente se encontra o problema,
aponta para possíveis lacunas na sua compreensão. Não desmerecendo os estudos feitos até
o momento, devemos acreditar que o tema ainda não está, portanto, esgotado.
Acreditamos aqui justamente que uma das maiores lacunas na compreensão do
tema está na falta de estudos históricos sobre a emergência do menor enquanto categoria
produzida por relações de dominação. Façamos antes, para explicitar melhor nosso ponto
de vista, a crítica teórica dos livros já citados.
Chamboredon (1971), ao discutir a questão da delinqüência juvenil, alerta para
os cuidados que devem ser tomados na construção de tal objeto de estudo. Ressaltando as
10
múltiplas determinações do objeto, o autor mostra, entre outras coisas, como a
delinqüência juvenil se diferencia conforme as classes, e qual a importância das
instituições de repressão e de recuperação na constituição de seu perfil.
Esse rigor na construção do objeto parece não estar presente na pesquisa
realizada pelo CEBRAP que comentamos anteriormente. O trabalho, sem dúvida, deslocou
a questão do menor, de um ponto de vista estritamente jurídico para um ponto de vista
social mais amplo. Mas, o trabalho apenas se preocupou com as condições sociais que
levam à marginalização, deixando de lado a própria construção social desse processo de
marginalização:
A orfandade, o abandono, a desorganização familiar, a maternidade
solitária, doenças físicas ou mentais dos pais são fatores que interferem
drasticamente na criação do ambiente social em que se processa a
socialização do menor marginalizado. Como substrato, em todas estas
situações, a carência econômica é o fator de caráter genérico, que
identifica a posição que o menor ocupa na escala social. A carência
econômica é o pano de fundo, no cenário em que ocorrem os
comportamentos divergentes, as atitudes anti-sociais; ela em si é
marginalizante. (CEBRAP, op.cit., p.33)
Esta citação exemplifica de que modo, neste trabalho, o vínculo entre
pauperismo e marginalização aparece como um dado de análise. E embora seja colocado,
mais adiante, que a pobreza não leva necessariamente o menor a agir de modo inadequado
(Cf. CEBRAP, op.cit., p.48), o que não está problematizado neste tipo de conceituação é
justamente a produção social dos critérios de inadequação e a articulação, historicamente
11
constituída, entre pauperismo e marginalidade. Não querendo fazer aqui uma crítica
detalhada ao conceito de marginalização3, queremos ressaltar que o trabalho realizado pelo
CEBRAP estuda a marginalização como uma variável que não pode ser analisada fora do
contexto de pauperismo da sociedade, mas ainda assim não se preocupa com o processo de
constituição dessa variável e sua articulação historicamente específica neste contexto. Não
devemos esquecer que o próprio conceito de marginalização é um produto histórico.
Em outras palavras, por que essa forma de marginalização e não outra? Por que
a ligação entre pauperismo, desorganização familiar e marginalização? Faz-se a análise das
condições sociais que levam à marginalização, mas não se faz a análise da própria
constituição histórica do elo entre marginalização e certas condições sociais. Pobreza e
marginalidade não andam necessariamente juntas, logo essa articulação não é uma
evidência, mas sim um problema a ser analisado. Por isso afirmamos que não há, neste
texto, um cuidado maior com a construção do objeto. Tanto que o livro conclui apenas
reafirmando aquilo que já é dado como pressuposto (a relação entre pauperismo e
marginalização social do menor), não sendo capaz de equacionar, de modo diferenciado, o
problema, apenas propondo uma maior racionalização das instituições e equipamentos
voltados para a questão, incapaz de fazer uma crítica dessas mesmas instituições.
Os trabalhos posteriores levaram a uma visão mais crítica desse processo de
marginalização, mostrando sua articulação com o conflito de classes em nossa sociedade, e
a resistência dos agentes que são objetos desses mecanismos de marginalização. Mas, em
termos da construção do objeto de análise, um aspecto continuou obscuro: sua
historicidade. Não basta mostrar que a categoria menor é fruto dos conflitos de classe. É
3 A marginalidade não é um fato social que pode ser encontrado em todas as sociedades, mas práticas
históricas específicas constituem processos de marginalização também específicos. Uma crítica mais
exaustiva à associação entre pobreza e criminalidade e ao conceito de marginalização em relação ao menor
pode ser encontrada nos textos de Passeti e Violante, anteriormente citados.
12
necessário desenvolver historicamente como o menor surge enquanto categoria específica
dentro dessas determinações mais amplas.
Ao analisarem o problema do menor no contexto da luta de classes, estes
trabalhos acabaram criando um vício de análise, que consiste em perder sua especificidade
nas determinações consideradas mais fundamentais. Nessa perspectiva, o surgimento da
categoria acaba reduzido ao conflito de classes. Simões (1983), por exemplo, parece
incorrer nesse erro ao colocar:
A formação e o desenvolvimento do capitalismo caracteriza-se, como se
sabe, pela geração de um conflito específico – entre as diversas formas
que a luta de classes assume – que os juristas, doutrinadores oficiais e da
Igreja passaram a denominar de “problema do menor” ou “questão do
menor”, uma espécie da chamada “questão social”. Esta foi a forma pela
qual o conflito profundo entre capital e o trabalho emergiu como temática
jurídico-assistencial. (Simões, op.cit., p.83)
Torna-se inevitável, neste tipo de interpretação, o surgimento da questão do
menor nas formações econômicas capitalistas. Com isso, subestima-se a especificidade da
questão. É assim que o momento no qual o Estado assume de forma clara a questão do
menor, em termos jurídicos, no Brasil, com a criação do primeiro Código de Menores em
1927, acaba sendo interpretado como um reflexo inevitável do desenvolvimento capitalista
do nosso país4.
4 Sabemos que a idéia da construção histórica do menor como categoria não é totalmente estranha aos
estudos feitos no Brasil sobre a questão. Faleiros (1987), por exemplo, em artigo intitulado “A fabricação do
menor”, tenta dar conta da construção do menor a partir de vários níveis, como o do trabalho, da rua, das
instituições, do aparelho jurídico, etc. Mas, o que falta, na maioria dos trabalhos acerca do tema, é justamente
uma maior tematização do momento histórico no qual a problemática atinge seus contornos gerais, co m o
primeiro Código de Menores.
13
Devemos evitar esse tipo de reducionismo. O menor, enquanto categoria
histórica, é fruto de um amplo contexto, mas, ao mesmo tempo, possui especificidades que
não podem ser subestimadas.
Talvez o impasse político em relação ao problema do menor, apontado por
Sader, seja conseqüência justamente desta dificuldade de se equacionar, de modo mais
preciso, essa questão. Não basta dizer que se trata de uma falsa questão. Dizer que um
problema não existe é uma forma bastante pobre de equacioná-lo.
14
I.2. – Proposta de trabalho
Acreditamos que, de modo geral, a maioria dos trabalhos sobre o tema do
menor acabam por considerar essa categoria, ou como um dado da realidade social a ser
analisado, ou como mero reflexo de relações sociais mais pertinentes (a luta de classes, por
exemplo), de qualquer maneira, perdendo sua especificidade.
Queremos mostrar, no desenvolvimento do nosso trabalho, que essas
colocações levam a um falso impasse. O problema do menor é uma construção histórica e,
enquanto tal, não pode ser compreendida fora de seu contexto de emergência, mas, ao
mesmo tempo, não é apenas resultado desse contexto, já que possui suas especificidades.
Para tanto, deteremos nossa atenção justamente em um dos aspectos da questão
que tem sido subestimado: a emergência do primeiro Código de Menores, em 1927, no
Brasil. Os trabalhos anteriormente citados colocam que esse é o momento no qual o Estado
assume oficialmente, em nosso país, a questão do menor. Não se perguntam, porém, como
e por que isto acontece.
Nossa pesquisa pretende, portanto, trabalhar algumas dessas questões a partir
da análise histórica de certos aspectos do processo de constituição do Código de Menores
de 1927. O próprio problema será, pois, reconfigurado. Não se tratará aqui da “questão do
menor” em geral, mas sim de práticas históricas específicas que permitiram sua formulação
como categoria do discurso jurídico brasileiro. A criação de nosso primeiro Código de
Menores parece ser um acontecimento importante, se queremos analisar mais
profundamente como todo o problema se constituiu. Na verdade, tentaremos estudar as
condições de formulação do próprio problema.
15
A partir de discursos que discutiam a formulação de uma nova legislação sobre
a infância e a adolescência no início do século, tentaremos recuperar o sentimento mais
geral das transformações históricas que levaram à emergência do menor como categoria
jurídica em nossa sociedade.
Essa ênfase na historicidade das categorias sociais tem sido colocada por vários
autores em outros países, já há algum tempo. O livro de Ariés, História social da criança e
da família (Ariés, 1981), provavelmente é o trabalho paradigmático deste tipo de análise.
Mostrando as mudanças de atitude diante da infância, do Antigo Regime em relação aos
nossos dias, Ariés abriu todo um campo de análise que permitiu historicizar as formas de
sociabilidade. Porém, foi com Foucault, Donzelot e Castel, principalmente, que toda uma
teoria analítica dos processos históricos de sujeição, que perpassam as relações sociais, se
constituiu5. Estes autores tornaram possível a análise das relações de poder que constituem
os próprios sujeitos históricos. É inspirado nos trabalhos destes autores que pretendemos
estudar alguns aspectos da emergência do menor como categoria no Código de Menores de
1927.
Acreditamos que, em relação a essa categoria, muito mais que em relação à
categoria “criança”, não basta apenas fazer a história de sua constituição. É necessário,
principalmente, colocar como ponto central as relações de poder que a tornaram possível.
Como veremos adiante, a unidade do “problema do menor” não estará referida a um
conjunto de problemas econômicos, sociais ou morais, mas sim a um processo de sujeição
complexo que articulará, de modo coerente, esses diversos níveis. É a partir das relações de
5 Acreditamos que estes autores possuem em comum, nos seus trabalhos, a ênfase no estudo das práticas de
poder que constituem os sujeitos históricos. Foucault foi quem mais avançou na formulação do que seria essa
metodologia capaz de dar conta do que chamamos aqui de práticas históricas de sujeição. Por isso, será a
partir de alguns de seus trabalhos que tentaremos explicitar o método necessário para nossa travessia teórica.
16
poder que produzem e reproduzem a categoria que poderemos analisar seus aspectos mais
importantes.
Os livros mais críticos sobre o tema, anteriormente analisados, mostraram de
que modo as relações de dominação são essenciais para a compreensão do problema.
Faltou a eles uma maior atenção à historicidade desses processos de sujeição.
Fazer a construção do objeto implica, assim, em enfatizar as condições
históricas do processo de sujeição que permitiu a emergência do menor como categoria.
Nosso estudo partirá da legislação que definiu a questão da menoridade no início do
século, porque acreditamos que ela representa o momento da emergência do menor
enquanto categoria plenamente institucionalizável. Ao estudar diversos discursos que
deram suporte à emergência dessa legislação, estaremos tentando recuperar parte da
história do processo de menorização a que certos grupos sociais foram então submetidos.
O menor não é um objeto dado, mas sim um sujeito de práticas discursivas e
institucionais, resultado de enfrentamentos e de estratégias de dominação. Abordá-lo
historicamente, é esse o nosso objetivo.
Essa proposta implica um longo desvio em relação aos estudos habituais sobre
o tema. Implica em abandonarmos a esperança de reconhecer no passado os objetos sociais
que acreditamos existirem no presente. Em compensação, permitirá a recuperação de
práticas históricas que constituem os próprios objetos.
A seguir, veremos a metodologia necessária para o desenvolvimento do
trabalho, a definição precisa do objeto de pesquisa e as fontes às quais nos remeteremos.
II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA
E OBJETO DE ANÁLISE
II.1. – Sobre o conceito de sujeição
II.2. – Foucault e a análise histórica dos
mecanismos de sujeição
II.3. – O Código de Menores de 1927
como objeto de análise
“De modo geral, a linguagem tanto diz como
faz coisas. Depende de como é vista, de por
quem é vista e de quando é vista.”
CARLOS VOGT
18
II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA
E OBJETO DE ANÁLISE
II.1. – Sobre o conceito de sujeição
Estudar a emergência da categoria menor como um acontecimento histórico
específico implica a utilização de um instrumental de análise que seja capaz de dar
conta das práticas históricas que a constituíram.
O primeiro conceito chave para a construção dessa metodologia é o de
sujeito histórico, tal como podemos desenvolvê-lo com base em algumas colocações de
Althusser (1983). Numa das passagens do seu trabalho, ao discutir a questão da
ideologia, esse autor desloca a discussão do tema, do campo abstrato das idéias para o
campo do funcionamento material da própria ideologia.
Como diz Albuquerque, explicitando os pressupostos fundamentais com que
trabalha Althusser:
Não é no campo das idéias que as ideologias existem e, portanto, não
é aí que se encontra seu interesse teórico. As ideologias têm existência
material, é nessa existência material que devem ser estudadas, e não
enquanto idéias (...) trata-se de estudar as ideologias como conjunto de
práticas materiais necessárias à reprodução das relações de produção.
(Albuquerque, 1983, p.8)
19
Conseqüentemente, haverá, para Althusser, uma articulação importante
entre instituição e ideologia: “(...) uma ideologia existe sempre em um aparelho e em
sua prática ou práticas. Essa existência é material.” (Althusser, op.cit. p.89)
Será através dos mecanismos institucionais, dos Aparelhos Ideológicos de
Estado que a ideologia irá se realizar e adquirir sua eficácia.
Ainda segundo Althusser, se a ideologia tem uma existência material
precisa, terá um efeito também preciso: o efeito sujeito. A ideologia constitui, através
das práticas e mecanismos institucionais, indivíduos concretos como sujeitos. Ser
“sujeito”, neste sentido, implica em se reconhecer (e em ser reconhecido pelos outros)
como agente numa situação social já dada e pré-existente aos agentes. A ideologia
interpela os indivíduos como sujeitos:
(...) a categoria do sujeito é uma “evidência” primeira (...) a evidência
de que vocês e eu somos sujeitos (...) é um efeito ideológico, o efeito
ideológico elementar (...). Este é aliás o efeito característico da
ideologia – impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que se tratam de
“evidências”) as evidências como evidências, que não podemos deixar
de reconhecer e diante das quais, inevitável e naturalmente,
exclamamos (...): “é evidente! é exatamente isso! é verdade!”
(Althusser, op.cit. pp.94-5)
A ideologia transforma os indivíduos em sujeitos. O que é resultado dos
mecanismos de sujeição aparece como sendo a essência do próprio sujeito. Indivíduos
concretos (usando aqui o tema do nosso trabalho), crianças e adolescentes das classes
mais pobres, por exemplo, são reconhecidos (e também se reconhecem) como menores,
20
quando, na realidade, são práticas institucionais específicas que os sujeitaram enquanto
tal. Ninguém é naturalmente menor, mas, depois de assujeitado enquanto tal, é como se
esse atributo fizesse parte da essência do agente.
Em outras palavras, um conjunto de práticas de poder sujeitam o indivíduo
concreto a uma posição social que lhe pré-existe, mas na qual ele acaba se
reconhecendo.
Esse seria, segundo Althusser, o mecanismo ideológico básico, resultado do
funcionamento material dos Aparelhos Ideológicos de Estado.
Não entrando aqui numa discussão mais aprofundada sobre a obra de
Althusser, queremos apenas reter essa idéia de que o efeito sujeito é produzido pelo
funcionamento material da ideologia, consistindo em fazer com que indivíduos
concretos se reconheçam a partir de categorias que são resultados de mecanismos de
sujeição6.
Assim, podemos explicitar melhor nossa proposta de trabalho: pretendemos
estudar alguns aspectos dos mecanismos de sujeição que levaram à constituição do
menor como categoria do discurso jurídico e de práticas institucionais, ou, em outras
palavras, estudar o menor como efeito de determinadas práticas de poder.
Para realizar essa proposta, buscamos o instrumental teórico na obra de
Foucault, pois, embora Althusser tenha colocado a questão da sujeição, foi nos trabalhos
de Foucault que encontramos uma análise detalhada das estratégias de poder que
6 Muitos trabalhos têm discutido a questão dos mecanismos de sujeição a partir do referencial teórico
marxista, mostrando como as práticas econômicas são indissociáveis de práticas de dominação (Cf.
Albuquerque, 1978). Escolhemos o texto de Althusser citado porque nele o autor enfatiza o aspecto
material do funcionamento da ideologia e, ao mesmo tempo, fornece uma primeira definição do conceito
de sujeição, a partir da qual podemos desenvolver melhor as considerações sobre a metodologia de
Foucault. Não acreditamos, assim, numa incompatibilidade entre algumas análises marxistas e os
trabalhos de Foucault. Entre os muitos trabalhos que articulam essas diferentes perspectivas, podemos
citar a pesquisa de Luz (1979), que trabalha simultaneamente com Foucault e Gramsci.
21
produzem os sujeitos históricos. Nos trabalhos de Foucault, a categoria sujeito aparece
como resultado de dispositivos de poder (Cf. Albuquerque, op.cit., p.51), como fruto de
relações de dominação que sujeitam, em diferentes momentos históricos, diferentes
categorias de indivíduos.
É a partir dos seus trabalhos, portanto, que vamos detalhar o instrumental
analítico necessário para o desenvolvimento de nosso estudo.
22
II.2. – Foucault e a análise histórica dos
mecanismos de sujeição
A obra de Foucault é geralmente dividida, pelos comentaristas, em duas
partes: seus primeiros estudos constituiriam uma “Arqueologia do saber”, na qual foram
analisadas as transformações históricas de vários discursos, enquanto que, num segundo
momento, ele teria feito uma “Genealogia do poder”, na qual foram analisadas as
transformações das relações de poder que sustentam os próprios discursos (Cf.
Machado, 1981). Com a publicação dos últimos volumes de sua história da sexualidade,
porém, um novo aspecto passou a ser privilegiado. A unidade dos seus trabalhos se
deslocou para uma análise histórica dos mecanismos de sujeição, como já colocamos
anteriormente7.
Assim, desde seus trabalhos sobre a loucura na Idade Clássica, sobre o
nascimento da clínica e das ciências humanas, até os estudos sobre os poderes
disciplinares e a sexualidade, em todos o fio condutor seriam os processos de sujeição
77
O próprio Foucault explicita essa idéia, como podemos ver na citação de Lebrun: O objetivo de minhas
pesquisas nos últimos vinte anos, escrevia Foucault em 1983, foi o de “produzir uma história dos
diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura”. E esse estudo das modalidades de
transformação “dos seres humanos em sujeitos” dividiu-se em três eixos: 1º ) a transformação do sujeito
em objeto de saber: “objetivação do sujeito falante sob a forma de Gramática Geral, de filologia, de
lingüística... ou, ainda, a objetivação do mero fato de ser vivo, sob a forma de História Natural ou de
biologia”; 2º) produção do sujeito individual para fins políticos, sob a égide da divisão normal/patológico
(louco/são de espírito, criminoso/homem de bem...); 3º) “a maneira pela qual um ser humano se
transforma em sujeito... a maneira pela qual o homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma
sexualidade”(*). E Foucault acrescenta: “Não é portanto o poder, porém o sujeito que constitui o tema
geral de minhas investigações”(**) ... (*) Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours
philosophique au-delà de l’objectivité et de la subjectivité, Paris, Gallimard, 1984, p.298 (trad. francesa
do original americano: Michel Foucault. Beyond structuralism and hermeneutics, Chicago, University of
Chicago Press, 1982). (**) Dreyfus e Rabinow, pp.296-298. (Lebrun, 1985, p.23)
23
que constituíram a história do homem ocidental. É do ponto de vista deste recorte da
obra de Foucault que podemos pensar as relações históricas de poder que constituem o
que conceituamos no capítulo anterior, a partir de algumas colocações de Althusser,
como sujeitos históricos.
Nesse aspecto, dois conceitos colocados por Foucault serão
metodologicamente importantes: o de poder e o de prática discursiva.
Primeiro, o conceito de poder. Em suas pesquisas, ao estudar as relações de
poder na sociedade, Foucault tenta dar conta do poder, não apenas no aparelho de
Estado, mas na sua aplicação cotidiana, nas “capilaridades” do corpo social. Com isso,
consegue apreender as práticas de poder que perpassam a sociedade sem perder de vista
a questão do Estado, mas, ao mesmo tempo, sem reduzir todas as relações de dominação
ao poder estatal. Nesse sentido, sua metodologia é capaz de dar conta das relações de
poder envolvidas em acontecimentos específicos – o surgimento de uma categoria do
discurso, por exemplo – articulando-as com uma série de outros acontecimentos.
É necessária uma redefinição do conceito habitual de poder,
conseqüentemente. Segundo Foucault (1977; 1979; 1980), o poder deve ser pensado
como uma relação social complexa, que provém de todos os lugares, de todos os pontos
da sociedade, não havendo um lugar privilegiado de seu exercício. Nominalismo
radical, portanto: o poder é apenas o nome dado a uma situação estratégica complexa
em uma determinada sociedade.
O poder não deve ser pensado como posse, mas sim como relação, que se
estabelece entre diferentes pontos e que se modifica constantemente. Esta relação não é
superestrutural, já que as relações de poder são imanentes às relações econômicas, de
conhecimento, sexuais, etc. O poder não é superestrutural porque ele é produtivo e não
24
apenas repressivo. Ele cria dispositivos e através deles produz campos de saber e de
dominação.
Outro aspecto importante é o de que o exercício do poder é, ao mesmo
tempo, intencional e não subjetivo, ou seja, o poder se exerce a partir de miras e
objetivos, mas o exercício do poder não tem por fonte os sujeitos; pelo contrário, são as
próprias práticas de poder que constituem os sujeitos. Logo, a racionalidade das
estratégias de poder não deve ser buscada nas intenções dos sujeitos apenas, mas sim
nas próprias táticas explícitas que, em grande medida, escapam aos próprios sujeitos.
Daí o aparente paradoxo: as estratégias colocam objetivos, mas, ao mesmo tempo, são
anônimas, não há um grupo que as controle.
Finalmente, para Foucault, o poder não existe sozinho, visto que é relação.
O outro termo das relações de poder são as práticas de resistência: onde há poder há
resistência, já que ambos os termos são inseparáveis. Não existe, conseqüentemente, um
lugar privilegiado de resistência, uma vez que esta também se dá em todos os níveis,
não havendo posição de exterioridade em relação ao poder.
O poder, para Foucault é, concluindo, o jogo das correlações de força que
atravessam a sociedade.
Outro conceito de Foucault que será por nós utilizado é o conceito de prática
discursiva. Os discursos são práticas articuladas a relações de poder e de saber (Cf.
Foucault, 1986 e Veyne, 1982)
A análise arqueológica do discurso, proposta por Foucault, ressalta a
especificidade interna do discurso, juntamente com suas condições de produção.
O discurso tem uma especificidade, apresenta-se como exterioridade,
positividade, mas, ao mesmo tempo, remete ao conjunto das condições históricas que o
25
constituíram. Por isso, não se trata apenas daquilo que indica uma coisa, uma simples
representação, mas sim do fato de que o discurso possui uma existência peculiar:
... não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo
de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que
permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-
lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é
própria. (Foucault, 1986, p.54)
Analisar os discursos, portanto, é tratá-los como práticas:
... gostaria de mostrar que os “discursos”, tais como podemos ouvi-
los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são como se
poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e
palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida
das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita
superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma
língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de
mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios
discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes
entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras,
próprias da prática discursiva. (Foucault, op.cit., p.56)
Trata-se de estudar o discurso como uma prática regrada. E análise dessa
prática enunciativa é essencialmente histórica:
26
A análise enunciativa é, pois, uma análise histórica, mas que se
mantém fora de qualquer interpretação: às coisas ditas, não pergunta o
que escondem, o que nelas estava dito e o não-dito que
involuntariamente recobrem (...) mas, ao contrário, de que modo
existem, o que significa para elas o fato de se terem manifestado, de
terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma
reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido – e
nenhuma outra em seu lugar. (Foucault, op.cit., p.126)
Resumindo, os discursos são práticas com formas próprias de
encadeamento, mas que, ao mesmo tempo, estão articuladas com outros conjuntos de
práticas. Como diz Veyne, ao comentar a obra de Foucault, o discurso é a prática no
plano dos enunciados, designa aquilo que é dito, assim como outras práticas objetivam
outros níveis de acontecimentos. E, enquanto tal, está articulado (sem ser reflexo,
superestrutura, etc.) ao resto da história:
Mas cada prática, ela própria, com seus contornos inimitáveis, de onde
vem? Mas, das mudanças históricas, muito simplesmente, das mil
transformações da realidade, isto é, do resto da história, como todas as
coisas. Foucault não descobriu uma nova instância chamada “prática”,
que era, até então, desconhecida: ele se esforça para ver a prática tal
qual é realmente; não fala de coisa diferente da qual fala todo
historiador, a saber, do que fazem as pessoas... (Veyne, op.cit., p.159-
160)
27
A prática dos homens objetivando enunciados, é isto, portanto, o discurso na
concepção de Foucault.
Vejamos agora, como, a partir dos conceitos trabalhados, podemos construir
nosso objeto de estudo.
28
II.3. – O Código de Menores de 1927
como objeto de análise
A partir do que foi colocado, podemos definir nosso campo de pesquisa.
Partiremos do pressuposto de que a categoria menor é resultado de
mecanismos de sujeição que perpassam a sociedade.
Em A verdade e as formas jurídicas (Foucault, 1978), Foucault coloca que
as práticas jurídicas parecem ser uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu
tipos de subjetividade. Partindo dessa idéia, estudaremos parte do processo de sujeição
do menor a partir do primeiro Código de Menores do Brasil, publicado em 1927. Não se
tratará de reduzir o surgimento da categoria aos seus aspectos jurídicos, mas sim de
tomar a emergência do primeiro Código de Menores de nosso país como um dos
momentos centrais de constituição da categoria no Brasil. O Código de 1927 parece
representar melhor o momento em que se dá a cristalização jurídico-institucional do
menor como categoria discursiva. Além do que, a escolha da lei como ponto de partida
da análise adquire maior significado em relação à categoria menor, já que esta se define
prioritariamente como uma categoria jurídica.
O Código de Menores de 1927 será tomado em sua dimensão discursiva,
conforme a conceituação anteriormente discutida. Mas, o estudo não estará centrado
apenas nesta lei. Estudaremos também uma série de outros discursos que, desde o final
do século XIX, passaram a discutir a proteção e a assistência à criança e ao adolescente
(abandonado e delinqüente), culminando em um novo projeto de institucionalização, do
29
qual o Código de Menores é apenas seu resultado mais acabado. O Código de Menores
de 1927 é apenas o nó de uma rede mais ampla de práticas discursivas que objetivaram
o menor como sujeito8.
Assim, estudaremos alguns discursos que tornaram possível a emergência
do menor como sujeito, dentro de um novo projeto de institucionalização da infância e
da adolescência que se constitui, no início deste século, em nosso país9.
Consideraremos que a unidade do processo a ser estudado, portanto, é a de
um processo de sujeição. É a pressuposição desta unidade que permitirá a análise
transversal, se assim podemos chamá-la, de discursos provenientes de campos
diferenciados, como discursos jurídicos, médicos, jornalísticos, etc. As unidades
geralmente pressupostas (saber médico, saber jurídico, etc.) serão dissolvidas em
benefício de uma unidade que será por nós privilegiada, a unidade mais significativa de
um processo de sujeição10
.
8 Nossa proposta de trabalho está muito próxima dos trabalhos de análise de discursos feitos por Orlandi
(1983, 1986, 1987a, 1987b). Não faremos, contudo, uma análise de discursos, estritamente falando, pois
não temos o domínio metodológico necessário para essa finalidade. O que vamos reter da análise do
discurso como método é a idéia, já desenvolvida, de se tomar os discursos enquanto práticas históricas.
Aqui, porém, essas práticas discursivas (que definem o nosso recorte) serão tomadas como peças de
mecanismos de poder dentro da sociedade. Portanto, se trata, essencialmente para nós, de uma análise dos
mecanismos de sujeição a partir de discursos. 9 Sujeição e institucionalização estão intimamente ligadas. Se as relações de dominação constituem
indivíduos em sujeitos, as instituições são os locais de cristalização dessas relações de dominação. Por
isso, o processo de sujeição do menor enquanto categoria é indissociável de um novo projeto de
institucionalização da menoridade, como veremos nos próximos capítulos. Para uma melhor conceituação
da questão das instituições, do ponto de vista que queremos trabalhar, consultar os trabalhos de Luz
(1979) e Albuquerque (1978). Para uma discussão sobre a relação entre dispositivos de poder e
instituições disciplinares, consultar Muchail (1985). 10
Nossa proposta segue os mesmos caminhos de vários trabalhos recentes que, como já mostramos a
partir de Foucault, estudam os processos de sujeição na sociedade moderna e contemporânea. Trabalhos
como os de Castel (1978), em que é estudado o processo de institucionalização da loucura a partir do
desenvolvimento da psiquiatria e, no Brasil, os trabalhos de Roberto Machado (1978) sobre a
normalização da sociedade brasileira a partir do desenvolvimento da medicina higiênica. No entanto, os
trabalhos que mais se aproximam do tema por nós estudado (o menor como categoria de discursos
jurídicos e institucionais) são os de Platt (1982), que estudou as origens dos tribunais para menores nos
Estados Unidos no final do século XIX; de Meyer (1977), que estudou a constituição da infância como
instrumento de uniformização e controle da sociedade pelo Estado na França; de Donzelot (1980), que
analisou, também na França, o desenvolvimento da justiça para menores como parte da emergência do
“social” como dispositivo de controle da população; e, no Brasil, algumas passagens dos trabalhos de
Rago (1985) e Corrêa (1982a, 1982b) sobre o processo de menorização da infância em nosso país.
30
Como diz Sennet (1988, pp.62-63) tentaremos mostrar a plausibilidade
empírica de nossa argumentação, através da explicação das conexões lógicas entre
fenômenos (no nosso caso, discursos) que podem ser concretamente descritos.
Trabalharemos, aqui, com uma documentação bastante específica e baseados em
informações historiográficas a que tivemos acesso. Novas informações e novas fontes
não invalidam necessariamente a análise, já que não pretendemos realizar um estudo
exaustivo. A reconstituição histórica que fazemos, portanto, implica em escolhas
metodológicas que se justificam pela eficácia possível das explicações que propomos.
Existem outras explicações possíveis que privilegiam outras abordagens.
Iniciaremos o próximo capítulo com algumas considerações sobre o
contexto histórico da emergência do menor enquanto categoria do discurso jurídico e
institucional11
.
11
Comentando Nietzsche, Foucault afirma: “A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua
irrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro...” (Foucault, 1979, p.24) É nesse
sentido que usamos o conceito de “emergência”: momento no qual um espaço possível para novas
práticas se constitui. A categoria menor entra em cena no início do século, nova peça tática no meio de
relações sociais mais amplas. Recuperar um fio da história dessa emergência é, aqui, nossa proposta.
Sobre o conceito de “acontecimento”, Foucault o utiliza para ressaltar a especificidade, a raridade dos
fenômenos históricos. É com essa ênfase que também o empregamos.
III – CONTEXTO HISTÓRICO
III.1. – Legislação e contexto
III.2. – Transformações institucionais
III.3. – A emergência do Código de
Menores de 1927
“Sendo émbora a protecção á creança dos mais
vitaes problemas de uma nação, é com desgosto
que se registra a situação em que sempre entre
nós viveu, desde os tempos primeiros da nossa
civilisação, a infancia moralmente abandonada
e delinquente.
Em tudo reside, de um lado, na ausencia quasi
completa da legislação apropriada, de outro na
escassez dos estabelecimentos especiaes que
possuia para tal fim o nosso paiz, alguns dos
quaes, – porque não confessar –, absolutamente
improficuos.”
MONCORVO FILHO
32
III – CONTEXTO HISTÓRICO
III.1. – Legislação e contexto
Comecemos com algumas considerações a respeito da evolução histórica da
legislação sobre o menor.
Segundo trabalhos da área do direito, a questão do menor nos códigos
penais do século XIX se acha diretamente vinculada à questão do discernimento:
(...) perante o nosso C.Crim. (Código Criminal) do Império de 1830, o
menor de quatorze anos não era considerado criminoso (art.10), mas
tratava-se de uma irresponsabilidade juris tantum, i.e., condicionada
ao discernimento, de vez que acrescentava o art.13: “Se se provar que
os menores de quatorze anos, que tiverem cometido crimes obrarem
com discernimento, deverão ser recolhidos às casas de correção, pelo
tempo que ao juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda a
idade de dezessete anos (...)
(...) O CP (Código Penal) de 1890 e o CPM (Código Penal Militar) de
1891 não se divorciaram do discernimento, cujos dispositivos, por
sinal, eram idênticos, sendo ociosa a transcrição de ambos.
(Enciclopédia Saraiva ..., 1977, pp.216-218)
33
Ainda de acordo com essas mesmas fontes, é justamente com a crise do
dispositivo do discernimento que começam a se organizar as leis de assistência e
proteção à infância:
De feito, o critério do discernimento morreu e foi sepultado
definitivamente no Brasil. Foi ele expressamente revogado na cauda
do orçamento para 1921 – Lei n.4.242, de 5-1-1921, art.3°, que o
legislador federal autorizou o Governo da República a organizar o
serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinquente,
construindo abrigos, fundando casas de preservação, etc., para,
finalmente, estabelecer no § 20: “O menor de 14 anos, indigitado
autor ou cúmplice de crime ou contravenção, não será submetido a
processo de espécie alguma e que o menor de 14 a 18 anos, indigitado
autor ou cúmplice de crime ou contravenção, será submetido a
processo especial”. (Enciclopédia Saraiva, op.cit., p.220)
Uma interpretação possível para o Código de Menores de 1927, com base
nessas fontes, seria a de que ele resultaria da evolução da legislação referente à
menoridade. Nesse sentido, teria havido um progresso da legislação, que teria partido de
noções imprecisas, como a do discernimento, caminhando, posteriormente, para
concepções mais elaboradas de assistência e proteção aos menores. Todo o processo em
questão, segundo esse raciocínio, tornar-se-ia, assim, evidente: o Código seria apenas
fruto da evolução da sensibilidade social no que diz respeito à situação do menor.
Acreditamos, no entanto, que este tipo de colocação é equivocada: não
podemos pressupor, no que concerne à globalidade desse processo, uma evolução.
[EC1] Comentário: Repete-se “Segundo”...
34
Talvez algumas modificações da legislação tenham sido benéficas em algum sentido.
Talvez alguns mecanismos legais tenham sido aperfeiçoados, mas não podemos antepor
juízos prévios dessa natureza às análises. Se o Código de 1927 representou ou não um
progresso jurídico, isto nós só poderemos discutir, mesmo assim, de passagem, ao cabo
das análises. Devemos, portanto, abrir mão da idéia de que o Código é fruto do
progresso da legislação. Devemos abrir mão de nossas ilusões retrospectivas: mudanças
existiram, a legislação sobre o menor se modificou no período, novas instituições
surgiram, novas práticas se consolidaram. Resta saber em quais sentidos se deram estas
transformações.
Do conceito de discernimento ao Código de Menores de 1927, toda a
legislação sobre a menoridade foi modificada. A lógica dessa transformação não
provém, todavia, apenas da dinâmica interna da legislação, mas sim de um contexto
histórico mais amplo. Recuperemos, pois, alguns aspectos deste contexto, possíveis de
serem articulados às mudanças na legislação sobre a menoridade12
.
12
A idéia de “evolução” da legislação se baseia na ilusão da permanência do objeto: diante do menor, as
leis vão se tornando mais aprimoradas, aproximando-se, cada vez mais, de um equacionamento ideal da
questão. Esse é o equívoco: leis diferentes visam objetos também diferentes. O “menor” visado pelos
Códigos do século XIX é aquele que cometeu um delito: o que está em causa é a possibilidade ou não da
punição, dependendo do discernimento. O que está em jogo é um poder especialmente punitivo. O
Código de 1927, como veremos ao longo deste trabalho, visa todo menor em risco de abandono. Sua
clientela é mais ampla. Seu caráter não pretende ser punitivo, mas assistencialista, preventivo,
recuperador. Novas práticas de poder, novas leis, novos objetos, portanto. São alguns aspectos dessas
transformações que tentaremos recuperar aqui.
35
III.2. – Transformações institucionais
As mudanças na legislação sobre a menoridade durante o século XIX e
início do século XX no Brasil se correlacionam a mudanças nas formas de
institucionalização da infância durante esse mesmo período.
Uma das formas mais importantes dessa institucionalização durante a época
colonial, ligada ao que posteriormente se nomearia como problema do abandono, são as
rodas dos Expostos:
Na época colonial e durante o Império, “exposto” e “enjeitado”
constituíam termos recorrentes empregados na sociedade brasileira
para nomear a criança abandonada. “Exposto” e “enjeitado”, segundo
o dicionário da língua portuguesa de Antonio de Morais Silva, edição
de 1831, correspondia àquele (e/ou àquela) que era abandonado(a) na
Roda – aparelho, em geral de madeira, do formato de um cilindro,
com um dos lados vazado, assentado num eixo que produzia um
movimento rotativo, anexo a um asilo de menores. A utilização desse
tipo de engrenagem permitia o ocultamento da identidade daquele(a)
que abandonava. A pessoa que levava e “lançava” a criança na Roda
não estabelecia nenhuma espécie de contato com quem a recolhia do
lado de dentro do estabelecimento. A manutenção do segredo sobre a
origem social da criança resultava da relação promovida entre
abandono de crianças e amores ilícitos. Os espaços especialmente
destinados a acolher crianças visavam, num primeiro momento,
36
absorver os frutos de tais uniões. Com o tempo, essas instituições
passaram a ser utilizadas também por outros motivos – indivíduos das
camadas populares, por exemplo, abandonavam seus filhos na Roda
por não possuir meios materiais de mantê-los e criá-los. Casa dos
Expostos, Depósito dos Expostos e Casa da Roda eram designações
correntes no Brasil para os asilos de menores abandonados.
(Gonçalves, 1978, pp.37-38)
Segundo Gonçalves, no mesmo trabalho, e Mesgravis (1972), as primeiras
Rodas foram instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro, por volta de 1700, embora as
primeiras referências aos expostos sejam do século XVII.
O mecanismo da Roda e os asilos que dele se utilizavam parecem apontar
para um tipo de institucionalização da infância, que visava regular os desvios da
organização familiar colonial, definindo um tipo de assistência norteada pela caridade
religiosa. Mesgravis ressalta o caráter urbano dessa forma de institucionalização:
O fato das primeiras “rodas” terem sido instaladas em Salvador e no
Rio de Janeiro vem confirmar o seu caráter urbano, uma vez que, até o
século XVIII, apenas essas duas localidades mereciam
verdadeiramente o nome de cidade, enquanto as outras permaneciam
na condição mais próxima de grandes aldeias, dominadas pelo
particularismo de “homens-bons” com os interesses voltados para suas
grandes propriedades rurais, sem real preocupação com os problemas
públicos (...) (Mesgravis, op.cit., p.231)
37
As Rodas, enquanto forma de institucionalização, entrarão em crise ao longo
do século XIX. Gonçalves, ao estudar a Roda existente no Rio de Janeiro, afirma:
As mudanças de local da Roda tiveram lugar a partir do século XIX...
Os sucessivos deslocamentos do estabelecimento denotam, por um
lado, o aumento de crianças abandonadas. Por outro, manifestam uma
preocupação crescente que então despertara a mortalidade, de altas
taxas, que atingia os “enjeitados” da Santa Casa. E, na expressão dessa
“preocupação”, a medicina higiênica teve um desempenho
importante... (Gonçalves, op.cit., pp.40-41)
Sofrendo o ataque da medicina higiênica, que então se consolidava no
Brasil, e de novos projetos de institucionalização da infância abandonada e delinqüente,
a Roda acabou por se tornar um paradigma negativo de institucionalização, de tal modo
que o Código de Menores de 1927 chegou a decretar a sua extinção, no capítulo
referente aos infantes expostos: “Art.15. A admissão dos expostos á assistencia se fará
por consignação directa, excluido o systema das rodas”.
A Roda parece ter sobrevivido, porém, ao Código, vindo a desaparecer
somente em 1950 (Cf. Mesgravis, op.cit., p.249). Mas, o que nos interessa aqui é o fato
de que na época da edição do Código já há um consenso em relação à ineficácia desse
mecanismo13
. Uma comentadora do Código de 1927 explicitará esse consenso:
13
Uma citação de Moncorvo Filho também exemplifica a crítica da época às Rodas: “Desde muito que a
Roda além de muitos outros inconvenientes, é considerada como uma instituição condemnada e essa
afirmação é uma verdade tão flagrante que, dos paizes civilisados, sómente Portugal e o Brasil a possuem
nest’hora. (Moncorvo Filho, 1926, p.44)
38
A questão do fechamento das rodas vem de longa data suscitando
grandes polemicas. Modernamente, porém, a opinião vencedora é
contraria a ellas, que têm sido substituidas por institutos, de molde a
offerecerem as suas vantagens sem os seus inconvenientes. (Mineiro,
1929, p.34)
Provavelmente a crise da Roda se deva a sua incapacidade de acompanhar
as mudanças históricas que ocorriam na sociedade brasileira durante o século XIX e
início do século XX. Novas urgências históricas levaram a novas experiências
institucionais. Da segunda metade do século XIX a seu término, o país passou por
grandes transformações sociais, políticas e econômicas. Centremos nossa atenção nas
transformações decorrentes da substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra
assalariada e a conseqüente formação de um mercado de trabalho livre no Brasil.
A formação desse mercado não foi uma tarefa simples, nem se limitou
apenas à esfera do econômico, mas implicou a formação de novos processos de
sujeição:
... submeter pessoas para que vendam sua força de trabalho não é algo
que se possa fazer de um momento para outro. Ao contrário, a
formação de um mercado de mão-de-obra livre foi um longo e
tortuoso percurso histórico marcado, no mais de vezes, por intensa
coerção e violência. Para tanto foi necessário efetuar maciça
expropriação, que residiu em destruir as formas autônomas de
subsistência, impedindo a acesso à propriedade da terra e aos
instrumentos produtivos, a fim de retirar do trabalhador o controle
sobre o processo produtivo. Mas, além disso, foi também necessário
39
proceder a um conjunto de transformações de cunho mais
marcadamente cultural, para que os indivíduos despossuídos dos
meios materiais de vida não só precisassem como também estivessem
dispostos a trabalhar para os outros. (Kowarick, 1987, p.10)
Nessas transformações, a lei do Ventre Livre de 1871 parece ter tido
importância central na organização da mão-de-obra livre e na abolição da escravidão
(Cf. Gebara, 1986, p.11). Numa discussão em torno dessa lei, Mattoso (1988) mostra, de
maneira bastante exemplificativa, como a questão da infância e da menoridade era
diferente entre a população livre e a população escrava:
É por demais conhecido que, para a Igreja, a idade de razão de todo
cristão jovem situa-se aos 7 anos de idade, idade de consciência e
responsabilidade. Para a Igreja, aos sete anos a criança adquire foro de
adulto: de ingênuo torna-se alma de confissão(*). Por sua vez, na sua
parte de direito civil, o Código Filipino mantido em vigor durante todo
o século XIX, fixava a maioridade aos 12 anos para as meninas e aos
14 anos para os meninos (**). Finalmente, a lei de 28 de setembro de
1871 (Lei do Ventre Livre), ao colocar em poder e sob a autoridade
dos senhores os filhos de escravos nascidos ingênuos, obriga a estes
“crial-os e tratal-os até a idade de oito anos completos. Chegando o
filho de escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de
receber do Estado a Indemnização de 600$000 ou de utilizar-se dos
serviços do menor até a idade de 21 annos completos”(***). Pelo que
se infere nos documentos que são os inventários, e pelas normas e leis
da sociedade civil e religiosa, há, ao lado da maioridade religiosa e
40
civil, uma terceira maioridade, esta afeta ao início de uma atividade
econômica produtiva. Terceira maioridade que nos parece muito mais
importante que as outras duas porque não somente é própria à
condição escrava(****) como também indica claramente que,
tratando-se da criança escrava, o divisor de águas entre infância e
adolescência colocava-se bem antes dos doze anos, porque assim
exigiam os imperativos de ordem econômica e social.
(*) – AZEVEDO, Thales de. Povoamento da cidade do Salvador.
Salvador, Editora Itapuã, 1968.
(**) – MATTOSO, Kátia de Queirós. Família e sociedade na Bahia do
século XIX. São Paulo, Corrupio, 1988.
(***) – Actos do Poder Legislativo, Lei n.2040, de 28 de setembro de
1871, Art.1 §1º . In: Leis do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Oficial,
1871, pp.147-149
(****) – A nosso conhecimento não existe nenhuma lei referente à
população livre, compelindo crianças a ingressarem na vida ativa
nessa idade. Observo, porém, que apesar da lei de 28 de setembro de
1871 ter sido feita para crianças nascidas livres de mães escravas, o
parágrafo do artigo 1º, ao facultar ao senhor da escrava a utilização do
trabalho dos ingênuos de mais de 8 anos, jogava estes, novamente na
escravidão. (Mattoso, op.cit., pp.42-43)
Transcrevemos essa longa citação porque nela a autora mostra claramente
como a questão da maioridade na época acompanha as modificações da legislação sobre
o trabalho escravo. Novas formas de trabalho são concomitantes de novas formas de
sujeição. Assim, num primeiro momento, serão os mecanismos de sujeição para o
41
trabalho que irão colocar novas formas de institucionalização da infância, distintas
daquelas ligadas aos expostos e à Roda.
Barreiro (1987), ao estudar as modificações institucionais que no século
XIX levaram à produção de uma nova ideologia do trabalho, indica como a preocupação
da burguesia com a formação de trabalhadores livres levou a novas experiências
institucionais dirigidas à infância abandonada:
A especificação de um espaço de características determinadas, para
submeter os indivíduos a regime de internato e semi-encarceramento,
foi também um recurso de importância e significação, que objetivou
organizar o espaço e disciplinar os homens livres não vinculados à
plantation. Instituições como hospícios de expostos, existentes de
havia muito na sociedade brasileira, embora organizassem de uma
certa forma os indivíduos no interior de um espaço fechado, não o
faziam de molde a preservá-los e torná-los úteis ao sistema social. As
crianças recolhidas em tais hospícios não eram preparadas por essas
instituições para integrarem e acatarem as regras do trabalho
capitalista. Ao invés disso, essas instituições apresentavam um
espantoso índice de “destruição dos corpos”, com dados estatísticos
apresentando um índice de mortalidade entre 40 e 50% sobre a
população por elas recolhida*.
As “Colônias Agrícolas para ingênuos” ou “Colônias Orfanológicas”,
discutidas, estudadas e fundadas pela classe dominante brasileira na
segunda metade do século XIX foram uma forma de organização do
espaço que submetia os indivíduos a controle sob regime de internato
(...)
42
(*) – Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, pp. 62 e 76 (Barreiro,
op.cit., p.145)
Surgem, assim, as Colônias Agrícolas, que visavam produzir indivíduos
disciplinados para o trabalho, instituições produtivas, no lugar dos antigos depósitos
para expostos. Barreiro (Cf. ibidem) cita que, pelo menos uma delas parece ter dado
resultados positivos: a Colônia Isabel, na Província de Pernambuco. Entendemos que
vale a pena analisar mais detalhadamente esta instituição a fim de ressaltar sua
especificidade em relação às experiências institucionais existentes até então.
Primeiro ensaio da escola industrial no Brasil, a “Colônia Agrícola,
Orphanologica e Industrial Isabel” foi fundada em 1873 pelo desembargador Henrique
Pereira de Lucena, na extinta colônia militar das Pimenteiras, ficando sua direção sob o
comando de Frei Fidelis Maria Fogano (Cf. Moncorvo Filho, 1926, p.77). Um relatório
de Frei Fidelis14
apresentado ao presidente da província em 1883 informa que a colônia
foi instalada somente em 24 de janeiro de 1875, com 38 menores, a maioria dos quais
vindos do extinto Colégio de Órfãos da capital, que era ligado à Santa Casa do Recife.
A Colônia tinha uma média anual superior a 130 educandos entre 1875 e 1882. Estes
educandos recebiam instrução básica, religiosa e aulas de música, sendo que a maioria
sabia ler, escrever e contar. A Colônia Agrícola apresentava também entre seus
educandos um aparente baixo índice de mortalidade: 1 óbito em 1 ano.
14
Os documentos básicos com os quais trabalharemos aqui sobre esta instituição são os de Fidelis, Frei.
Relatório da Colonia Agricola, Orphanologica e Industrial Isabel, Recife, Typ. De M. Figueiroa de F. &
Filhos, 1883, 23p., e também Pereira, F.M.S., Falla com que o Exm. Sr.Conselheiro da Provincia Doutor
Francisco Maria Sodré Pereira abrio no 1º de março de 1883 a Assembléia Legislativa Provincial,
Recife, Typ. De M. Figueiroa de F. & Filhos, 1883, pp.41-44. Apesar da dificuldade de análise deste tipo
de documentação, arriscamo-nos a interpretá-la diretamente, já que não conhecemos nenhum estudo
histórico detalhado sobre a questão.
43
No já citado relatório de Frei Fidelis, o diretor da colônia definia os
objetivos da instituição ao defender as verbas destinadas pelo governo:
Não se julgue mal empregada a quantia consignada pela referida lei
(*). Institutos da natureza d’este devem-se considerar fontes de renda
publica, quer pelos artistas e trabalhadores instruidos e laboriosos que
formam, quer pelos cidadãos ordeiros e moralisados que educam.
Quantos braços não se perdem por falta de educação? Quantos
desordeiros não cria a ociosidade?
E obtendo o Governo o aproveitamento d’aquelles e a diminuição
d’estes, com os quaes faz tantas despezas improductivas, não
augmenta por isso mesmo as suas rendas? E se é do interesse de
qualquer Governo aproveitar os braços que se perderiam e diminuir o
numero de desordeiros, não será isto imperiosa necessidade para o
Brasil, na época de transformação social que vae atravessando e que
trar-lhe-ha necessariamente falta de braços, especialmente para a
agricultura? (Fidelis, 1883, p.6)
(*) Lei n.1481 de 12 de junho de 1880, que previa verbas próprias
para a colônia. A instituição recebia subvenção orçamentária da
província, mas não tinha recursos assegurados por lei permanente,
sendo a única fonte certa de renda os rendimentos do patrimônio dos
órfãos, confiados à administração da Santa Casa de Misericórdia do
Recife.
Produzir cidadãos ordeiros e moralizados através do trabalho, era esse o
objetivo colocado. Desse modo, este tipo de instituição pretendia ser duplamente
[E2] Comentário: Verificar se esta nota deve ser incluída no rodapé. Criar padrão
para as demais. (p.49)
44
produtiva: produziria os trabalhadores necessários, principalmente para a agricultura, e
cidadãos ordeiros que assim escapavam da delinqüência. Dupla utilidade para o Estado,
portanto, o que justificava as verbas demandadas. Mas o próprio diretor da colônia já
alertava para as duas principais dificuldades que esse novo projeto de
institucionalização encontrava. A primeira era a resistência da clientela ao trabalho:
Nem um menor, dos que são remettidos dessa capital, feitas poucas
excepções, se quer sujeitar a trabalhar na agricultura; por não poder
isemptar-se, frequentam uma das diversas officinas, repetindo a maior
parte delles que o trabalho só é próprio do escravo!!! ....
Isto dá em resultado viciar os educandos filhos de agricultores, ponto
que merece muita consideração pelas consequencias que pode ter, e
deveria obrigar essa presidencia a dar preferencia, nas admissões, aos
menores do campo, pois esta Colonia foi fundada, principalmente,
para criar agricultores. (Fidelis, op.cit., pp.12-13)
Mas, a maior dificuldade era a financeira, sendo a tônica de todo o relatório:
Uma ha entre as necessidades d’esta Colonia que reclama serios
cuidados por parte da administração da provincia, porque, no meu
fraco entender, sobrepuja á todas as outras, quer pela importancia,
quer pelo alcance de seus effeitos, e d’ella depende, quando não a
vida, pelo menos o progresso da mesma Colonia, e é o
estabelecimento de uma fonte certa de rendas necessarias para seu
elevado custeio, afim de emancipal-a dos cofres publicos, para assim
45
viver vida propria, livre d’estas dolorosas contingencias que lhe
atrazam immensamente o seu desenvolvimento. (Fidelis, op.cit., p.5)
Embora não tenhamos informações sobre o destino que teve essa instituição,
vemos delinear-se nestes discursos um novo tipo de projeto de institucionalização da
infância, diferente daquele ligado à Roda, que não visava mais ser apenas um depósito
de expostos, mas que procurava produzir cidadãos aptos para o trabalho. Instituições
lucrativas, cujo “lucro” para o Estado consistia na produção de indivíduos moralizados e
trabalhadores.
As palavras do Conselheiro Presidente da Província sobre o relatório
anteriormente citado, ressaltavam este aspecto:
A compensação das despezas e mesmo dos sacrificios, que são
merecidos, deve consistir para o Estado unicamente no lucro que lhe
provem da assistencia aos desherdados da fortuna, que mais tarde se
apresentarão cidadãos moralisados e trabalhadores, uteis a si e a
patria.
Não há duvida, porém, que o Estado deverá concorrer para crear
nesses estabelecimentos meios de rendas, para que possam depois,
vivendo independentemente, dispensar os auxilios da administração
publica. (Pereira, 1883, p.41)
Ao mesmo tempo em que o investimento na instituição era visto como
produtivo, vemos no texto anteriormente citado que o Estado não parecia pretender,
nesse momento, arcar totalmente com a manutenção deste tipo de estabelecimento.
46
Talvez, justamente essa dificuldade em obter amparo público é que tenha levado ao
insucesso essas experiências. Mas, provavelmente, a utilização do trabalho imigrante no
Brasil tenha de tal modo transformado o eixo das questões sobre a formação de um
mercado de mão-de-obra livre que tenha impedido a continuidade de experiências
institucionais como a da Colônia Isabel. De qualquer modo, as transformações
institucionais em relação à infância e à menoridade não eram apenas respostas à
formação de mão-de-obra livre, mas respondiam também a outras urgências históricas.
A Colônia Isabel parece ser uma experiência ainda incipiente de instituição produtiva,
de um espaço diferenciado onde se visava não só a exclusão, mas também a sujeição de
indivíduos a certas disciplinas. Essas novas formas de institucionalização parecem se
deslocar, na virada do século XIX para o XX, principalmente para os grandes centros
urbanos que mais cresciam na época, Rio de Janeiro e São Paulo.
Alguns trabalhos já trataram da relação nesta época entre novas estratégias
institucionais e o controle social das populações urbanas. Abreu, por exemplo, mostra o
surgimento, em São Paulo, de novas formas de filantropia dirigidas à pobreza urbana:
A história da filantropia em São Paulo parece conter dois momentos
distintos. Entre o último quartel do século XVIII até meados do século
XIX, as obras de assistência aos ‘desafortunados’ estavam
impregnadas pelo espírito de perseverança e benemerência.
Predominava a caridade cristã como norma orientadora da ação das
obras sociais. Não havia preocupações preventivas e sequer a
preocupação em separar, hierarquizar e classificar os diversos
assistidos sociais. Assistência e repressão confundiam-se. No limiar da
segunda metade do século XIX, o quadro da filantropia em São Paulo
47
vai, progressivamente, alterar-se com a introdução de novas regras de
ação prático-normativa. Transformações na composição da população,
decorrentes das restrições ao tráfico de escravos e do incentivo à
imigração estrangeira, agravaram as precárias condições de habitação,
alimentação e higiene, suscitando problemas de ocupação e circulação
no espaço citadino. Ademais, a escassez crônica das rendas
municipais e provinciais impedia que a administração pública
promovesse uma política social previdenciária dirigida à população
pauperizada. A assistência à pobreza não se inseria no raio de ação do
Estado. Preocupações com a ‘desordem urbana’ passam a habitar o
vocabulário das elites políticas locais. A filantropia do ‘civilismo
cristão’ das elites e a medicina social deram-se as mãos para inaugurar
um corte decisivo para com o passado da assistência social aos
‘desafortunados’, incentivando a introdução e prática de novas
concepções pedagógico-sanitárias. (Abreu & Castro, 1987, pp.101-
102)
As transformações urbanas também são acentuadas no Rio de Janeiro,
levando a toda uma reorganização institucional, visando o gerenciamento da nova
problemática urbana que vai se consolidando15
. Nesse novo contexto, as preocupações
em relação à infância e adolescência vão se desenvolvendo em diversas direções.
Segundo os autores anteriormente citados, o problema da infância abandonada aparece,
no final do século XIX, como um “ponto nodal” das contradições pelas quais passava a
filantropia na época. (Cf. Abreu & Castro, op.cit., p.107)
15
Sobre as transformações urbanas no Rio de Janeiro, consultar Chalhoub (1986) e Sevcenko (1984). Em
relação à questão da nova problemática urbana que surge com o capitalismo industrial, é bastante
interessante também o trabalho de Bresciani (1987).
48
Já Fausto (1984) mostra, em um estudo sobre a criminalidade em São Paulo
entre 1880 e 1924, como a relação entre a questão do menor e a criminalidade se faz
presente. Segundo o autor, a última década do século XIX representa para a cidade de
São Paulo um momento de inflexão na questão da criminalidade. O grande crescimento
da cidade faz com que, em diferentes níveis, apareça a preocupação de controlar e
classificar, ligada ao objetivo das elites de instituir uma nova ordem urbana. E dentro
dessa nova ordem, o controle social sobre as camadas mais pobres aparece como
instrumento de grande importância. A questão da criminalidade do menor aparecerá,
então, com freqüência: o controle social passará por distintos segmentos da população,
como as prostitutas, os primeiros organizadores do movimento operário e os menores
vadios. É assim que, junto com a preocupação sobre a regulamentação do meretrício e
as primeiras prisões de socialistas e anarquistas, surgem as campanhas contra os
chamados menores arruaceiros e abandonados que acabaram por resultar na criação do
Instituto Disciplinar, em 1902. (Cf. Fausto, op.cit., p.11)
Outro problema que começa a ganhar espaço é o do trabalho infantil. Com o
avanço da industrialização e a utilização de mão-de-obra imigrante no fim do século
XIX e início do século XX, o emprego de menores nas fábricas passa a ser
generalizado, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo (Cf. Góes, 1988, pp.54-
56; Pinheiro, 1981, pp.59-61). Juntamente com a mão-de-obra feminina, a mão-de-obra
do menor passa a ocupar lugar de destaque na composição da força de trabalho,
principalmente na indústria têxtil16
. Essa presença não é acidental, pois essa mão-de-
obra ocupava papel central no processo de acumulação capitalista de então:
16
Um dos trabalhos mais completos sobre a participação da mão-de-obra menor e feminina no trabalho
industrial no início do século é o de Moura (1982).
49
A presença de mulheres e meninas nas fábricas, bem como de
menores em geral, favorecia certos mecanismos de superexploração,
entre eles, o próprio rebaixamento de salários. Nos períodos de crise, o
desemprego atingia, em geral, todos os membros da família operária.
A entrada de mulheres e menores, em massa, no mercado de trabalho,
acrescia em muito os contingentes do exército industrial de reserva.
Além disso, o trabalho feminino e infantil, em certos casos,
aumentava mais as dificuldades de organização, pela presença de
elementos ideológicos patriarcais no meio operário. (Hardman, 1982,
pp.183-184)
Assim, problemas ligados ao abandono da infância, à delinqüência juvenil e
ao trabalho de menores nas indústrias começam a emergir como parte da questão social
que então se constituía, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. O surgimento
de novos tipos de instituições disciplinares nessas cidades, espaços diferenciados, tais
como a já citada Colônia Isabel, mas agora voltadas para um contexto eminentemente
urbano, não surpreende. Instituições como a Escola 15 de Novembro, no Rio de Janeiro,
e o Instituto Disciplinar, em São Paulo, são exemplos.
A Escola 15 de Novembro foi fundada em 15 de novembro de 1899 e
inaugurada a 3 de dezembro do mesmo ano. Inicialmente um instituto particular, foi
oficializada, mais tarde, sob o governo Rodrigues Alves (Cf. Mineiro, 1929, p.452).
Paiva definia os objetivos desta instituição:
Essa instituição tem por fim ministrar assistencia e educação physica,
profissional e moral aos menores abandonados e recolhidos aos
50
estabelecimentos por ordem das auctoridades competentes, nos termos
do art.7º da lei n.947 de 29 de dezembro de 1902. Dahi a sua
denominação de “Premunitoria” (Escola Premunitoria 15 de
Novembro), para bem caracterizar que é “aos menores moralmente
abandonados, orphãos, vadios, etc., que ella se destina, e não aos que
já incidiram na sancção penal”. (Paiva, 1916, p.146)
O Instituto Disciplinar foi criado pelo Decreto n. 1079 de 30 de dezembro
de 1902 (Cf. Corrêa, 1928, p.16). Neste decreto, eram definidas suas características:
Artigo 1º O Instituto Disciplinar, com séde na Capital do Estado,
subordinado ao secretario do Interior e da Justiça, sob a immediata
inspecção do chefe de policia, destina-se a incutir habitos de trabalho,
a educar e a fornecer instrucção litteraria e profissional, esta ultima de
preferencia agricola:
a) a maiores de 9 annos e menores de 14, no caso do artigo 30 do
Codigo Penal;
b) a maiores de 14 annos e menores de 21, condemnados por
infracção do artigo 399 do Codigo Penal e do art.2º do decreto
federal n.145, de 11 de julho de 1893;
c) a pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de
9 annos e menores de 14. (Corrêa, op.cit., pp.17-18)
As intenções explícitas destas instituições já estão bastante distantes das
concepções que norteavam os antigos depósitos de expostos. Estas novas instituições
51
disciplinares visavam não apenas excluir os menores sob sua guarda, mas torná-los
política e economicamente produtivos, cidadãos moralizados e trabalhadores.
Mas, essas novas experiências institucionais não são iniciativas isoladas.
Elas fazem parte de uma ampla discussão sobre a infância e a juventude, abandonada e
delinqüente, que começa a emergir na virada do século XIX para o XX, no Rio de
Janeiro e em São Paulo. Uma série de discursos começam a se articular em torno das
questões sobre a necessidade de mudanças na legislação e nas instituições que tratavam
de problemas ligados à menoridade. Um novo projeto de institucionalização da infância
e adolescência se constituiu, então. É o que veremos a seguir17
.
17
São inúmeras as modificações em relação à infância e adolescência no decorrer do século XIX e início
do século XX no Brasil. Trabalhamos principalmente a questão dos expostos e o surgimento de institutos
disciplinares porque estão mais próximos da problemática do menor abandonado e delinqüente que se
constituirá depois.
52
III.3 – A emergência do Código de Menores de 1927
No início do século XX, um autêntico movimento em favor da infância
abandonada e delinqüente se constituiu, principalmente no Rio de Janeiro e em São
Paulo. Livros, artigos de jornais e projetos de lei passam a propor reformas na legislação
e nas instituições referentes aos menores em geral. Advogados, juízes, educadores e
médicos participam de uma verdadeira cruzada pela infância e adolescência abandonada
ou delinqüente. Lopes Trovão, Evaristo de Moraes, Moncorvo Filho, Ataulpho de Paiva,
Noé Azevedo, Alcindo Guanabara, Mello Mattos e muitos outros contribuíram para a
construção de um novo tratamento jurídico-institucional para a questão da menoridade.
O resultado de todo esse movimento foi a emergência do primeiro Código
de Menores do Brasil, em 1927. A crítica à antiga legislação sobre a menoridade já
vinha desde o século passado. Em 1884, Tobias Barreto já tinha feito a crítica ao
discernimento na sua obra “Menores e Loucos”. Mas, a discussão sobre a legislação da
menoridade começou a ganhar impulso a partir de 1902, quando Lopes Trovão
apresentou um primeiro projeto de assistência e proteção aos menores (Cf. Mineiro,
op.cit., p.18). Seguiram-se muitas outras iniciativas no mesmo sentido, como as de
Alcindo Guanabara em 1906 e 1917. Mas foi Mello Mattos, primeiro Juiz de Menores
do Brasil, nomeado em 1924, quem, a partir da década de vinte, passou a levar em
frente as reformulações da legislação da menoridade, terminando por ser o principal
responsável pela aprovação do primeiro Código de Menores do país.
Mello Mattos reuniu sua experiência como criminalista, filantropo e juiz de
menores para sintetizar, em forma de lei, um novo projeto de institucionalização da
53
infância e adolescência, que já estava presente em muitos discursos que circulavam,
então, na sociedade. Muitos autores, no início do século, influenciados pelas mudanças
na legislação de proteção à menoridade em outros países, colocavam a necessidade da
proteção à criança brasileira através de uma legislação apropriada e de estabelecimentos
especiais, já que, para esses autores, a infância no país encontrava-se ainda abandonada,
jurídica e institucionalmente. Mello Mattos uniu essas novas idéias às mudanças na
jurisprudência que, desde o início do século XX, tentavam dar conta dos novos
problemas relativos à menoridade nos grandes centros urbanos, para criar, assim, uma
legislação especial para a assistência e proteção aos menores.
A advogada Beatriz Sofia Mineiro, colaboradora de Mello Mattos e
representante da Assistência Judiciária no Juízo de Menores do Rio de Janeiro na época
da edição do Código de Menores, foi quem deixou um dos documentos mais ricos e
interessantes para a análise do processo de constituição dessa legislação. No seu
comentário ao Código de Menores (Mineiro, 1919), prefaciado pelo próprio juiz Mello
Mattos, a autora discutia de modo exaustivo a nova legislação. Reconstituindo o
histórico da legislação de assistência e proteção à infância no Brasil, esta autora
demarcava o início do processo com o já citado projeto de Lopes Trovão:
A iniciativa dessa humanitária reforma no Congresso Nacional é
devida a Lopes Trovão, que apresentou o primeiro projeto ao Senado,
em 29 de outubro de 1902 (projecto n.27 de 1902). Seguiu-se-lhe
Alcindo Guanabara, que apresentou projecto á Camara dos Deputados
em 31 de outubro de 1906 (projecto n.328, de 1906). Mais tarde, em
11 de julho de 1912, appareceu um projecto de João Chaves (n.94, de
1912).
54
Finalmente surgiu novo projecto de Alcindo Guanabara, no Senado,
em 21 de agosto de 1917 (n.14, de 1917). (...) (Mineiro, op.cit., p.18)
Alcindo Guanabara, Senador pelo Distrito Federal, apresentou, por duas
vezes, projeto visando a assistência e proteção à infância e adolescência, mas não teve
êxito em suas iniciativas. Foi Mello Mattos quem deu continuidade, posteriormente, a
esses projetos:
Os projectos apresentados ao Congresso nacional ficaram sem
solução. O ultimo, de Alcindo Guanabara, chegou até á terceira
discussão; mas por ter morrido o seu autor, ficou encalhado, até que
Alfredo Pinto, como ministro da Justiça e Negocios Interiores do
Presidente Epitacio Pessoa, promoveu o seu andamento. (...)
A commissão de Finanças do Senado, depois de encerrada a terceira
discussão do projecto de Alcindo Guanabara, em 1919, foi de parecer
que o Governo devia ser consultado a respeito do augmento de
despesas delle decorrentes. Assim decidido, remetteu-se o projecto ao
Presidente da Republica, por intermedio do Ministerio da Justiça e
Negocios Interiores.
Com a ascenção de Epitacio Pessoa á Presidencia da Republica, o
ministro Alfredo Pinto, conhecedor do assumpto e enthusiasta
propagandista dessa reforma, deu novo impulso ao projecto
Guanabara, encarregando o notavel criminalista, distincto professor de
direito e grande advogado, Dr. José Candido de Albuquerque Mello
Mattos, de organizar um projecto substitutivo, que, com pequenas
modificações, serviu de base á autorização legislativa constante da lei
55
numero 4.242, de 5 de janeiro de 1921, art. 3º , proposta pelo senador
Gonzaga Jayme. Essa autorização foi mantida pelo art. 1º do decreto
n.4.547, de 22 de maio de 1922. E o mesmo jurisconsulto Mello
Mattos foi incumbido do projecto do respectivo regulamento. Mas o
Presidente Epitacio Pessoa não se utilizou dessa autorização, por
causa da grande crise financeira do momento. (Mineiro, op.cit., pp.18-
19)
Mello Mattos teve de esperar, assim, até o governo seguinte, para poder dar
continuidade ao seu projeto. Com Arthur Bernardes, porém, a questão já havia ganho
importância, a ponto de já constar da plataforma do candidato:
Bem inteirado da necessidade urgente de resolver o palpitante
problema (...) o eminente Sr. Dr. Arthur Bernardes, logo na sua
plataforma eleitoral, annunciou que no seu governo promoveria a
creação do Juízo de Menores e a organização da assistencia e
protecção aos menores abandonados e delinquentes; e effectivamente
dotou o Brasil com admirável e efficiente legislação a esse respeito,
decretando o regulamento autorizado pelo Congresso Nacional e os
seus complementares. (...)
Esse regulamento foi approvado pelo decreto n.16.272, de 20 de
dezembro de 1923; e a reforma Judiciária o foi pelo decreto n.16.273
da mesma data. Pelo art.30 da lei n.4.793, de 7 de janeiro de 1924,
ratificaram-se ambos esses decretos, adquirindo elles assim força de
lei.
56
Depois, o ministro João Luiz Alves distinguiu novamente Mello
Mattos, incumbindo-o da organização do projecto de regulamento do
Conselho de Assistencia e Protecção aos Menores, approvado pelo
decreto n.16.388, de 27 de fevereiro de 1924; bem como da do
projecto do regulamento do Abrigo de Menores, approvado pelo
decreto numero 16.444, de 2 de abril de 1924.
Ulteriormente, tendo sido João Luiz Alves nomeado ministro do
Supremo Tribunal Federal, substituiu-o Affonso Penna Junior, que
incumbiu Mello Mattos de organizar o projecto de lei n.4.893A, de 30
de dezembro de 1925, que ampliou o funccionalismo do Juizo de
Menores, e decretou melhoramentos para os institutos disciplinares,
inclusive a organização autonomica do reformatorio para o sexo
masculino; encarregando-o tambem do projecto de regulamento desta
escola, approvado pelo decreto n.17.508, de 4 de novembro de 1926,
bem como do respectivo Regimento Interno. (...) (Mineiro, op.cit.,
pp.19-20)
Com a criação do Juízo de Menores do Rio de Janeiro, Mattos passa a se
dedicar à constituição de um Código de Menores, que organizasse, de modo global, as
leis referentes à assistência e proteção aos menores em todo o país:
A execução da lei, sob a orientação pratica e efficiente do juiz Mello
Mattos, pôz a descoberto alguns defeitos e falhas da mesma; a
experiencia levou o preclaro magistrado a solicitar medidas
legislativas que a corrigissem e completassem. Dahi a apresentação ao
Senado Federal de um projecto de reforma, convertido hoje no decreto
57
n.5.083, de 1 de dezembro de 1926, e promulgado pelo Presidente
Washington Luis.
Elaborado por Mello Mattos, esse projecto foi adoptado e assignado
por 16 senadores seus amigos, á cuja frente está Mendonça Martins;
apresentado em sessão de 7 de julho de 1925, recebeu o n.12 desse
anno. Tinha elle por fim estabelecer um “Codigo dos Menores”,
consolidando as leis de assistência e protecção aos menores de 18
annos, abandonados ou delinquentes, addicionando-lhes novos
dispositivos complementares e ampliativos, cogitando tambem dos
menores da primeira infancia, dos operarios e de outros aspectos do
complexo problema.
Tendo o art. 1º do decreto n. 5.083, autorizado o Governo a organizar
e publicar o “Codigo de Menores”, o Presidente Washington Luis
confiou a confecção delle a Mello Mattos, cujo projecto foi
approvado, sem modificação alguma, e convertido no decreto
n.17.943A, de 12 de outubro de 1927.
Com a publicação desse codigo o Brasil ficou possuindo uma das leis
mais perfeitas sobre tão importante materia. (Mineiro, op.cit., pp.21-
22)
Fica claro, assim, a partir desse histórico realizado por Mineiro, a
importância de Mello Mattos em todo o processo de constituição da nova legislação.
Seguindo estas e outras pistas iniciais, tentaremos reconstituir, no próximo capítulo, a
trama discursiva que tornou possível a emergência do Código de Menores de 1927.
Interpretaremos esse processo, porém, a partir da ótica de um processo de sujeição.
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Pretendemos ressaltar que a emergência do Código de Menores implicou a
cristalização de um novo projeto de institucionalização da infância e adolescência.
Síntese de todo um movimento em prol do menor iniciado, como vimos no princípio
deste século, o Código definirá de modo claro o menor como categoria jurídica e
institucional18
.
Com essa legislação, uma justiça especial para menores irá se definir,
estabelecendo seus objetivos e procedimentos. Um amplo projeto de assistência irá se
desenhar, visando toda a sociedade, mas tendo por base a assistência à infância. Todo
um conjunto de representações em torno do menor abandonado e delinqüente ganharão
coerência nos dispositivos contidos no Código. Enfim, um amplo projeto institucional,
tendo por alvo o menor, irá se consolidar. Para que esse acontecimento se tornasse
possível, uma ampla transformação conceitual foi necessária, novos discursos tiveram
que se constituir. É parte dessas transformações conceituais, que tornou possível a
emergência de um Código de Menores, que analisaremos a seguir, a partir de alguns dos
principais textos que na época discutiam a questão.
Iniciaremos, assim, nossa análise com a discussão sobre o discernimento,
mas não para mostrar a “evolução da legislação”, mas para indicar as transformações
18
Mas, por que considerar como principal conseqüência da emergência do Código a constituição de um
novo projeto de institucionalização da menoridade? Por que não privilegiar outros aspectos?
Privilegiamos o Código como um novo projeto institucional porque acreditamos ser esse o seu aspecto
mais importante, já que em outros sentidos ele não parece adquirir grande significação na época. O
Código é uma das principais leis sociais decretadas entre 1925 e 1927. Mas, não é enquanto legislação
social que o Código adquire sentido, pois sua eficácia nesse campo é bastante restrita. Em termos de
regulamentação do trabalho do menor, por exemplo, que, como já mencionamos, era um dos grandes
problemas sociais de então, o Código foi ineficaz já que, diante da pressão exercida pelos empresários da
época, a maioria das indústrias não chegou a cumprir a regulamentação contida no Código (Cf. Gomes,
1979, p.184; Vianna, 1978, p.82). Assim, na regulamentação direta dos conflitos entre capital e trabalho,
o Código não teve grandes efeitos. Como veremos, o Código não pode ser visto apenas como mais uma
lei social. Trata-se, do nosso ponto de vista, de uma iniciativa de certas camadas médias (advogados,
médicos, educadores e filantropos em geral), que acabaram criando um dispositivo institucional que lhes
garantia um espaço de atuação e que, ao mesmo tempo, garantia novas formas de controle social ao
Estado. É com base nesse contexto que estudaremos o debate em torno da legislação.
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discursivas que foram necessárias para a formação de um novo projeto de sujeição, que,
tendo o menor como alvo, então se constituiu.
IV – DISCURSOS
IV.1. – A crítica ao “discernimento”
IV.2. – Uma “Nova Justiça”
IV.3. – “Justiça e Assistência”
IV.4. – A proposta de uma nova
legislação: Alcindo Guanabara e Mello
Mattos
IV.5. – Moncorvo Filho e a “Cruzada
pela infância”
IV.6. – O Código de Menores e a
estruturação da prática institucional
referente ao menor
“Punir é uma injustiça; punir creanças, uma
iniquidade.”
NOÉ AZEVEDO
61
IV – DISCURSOS
IV.1. – A crítica ao “discernimento”
“Tres ou quatro noções, tradicionaes, que se
recebem sem exame, como velha moeda, cujo peso e
legitimidade ninguém se dá ao trabalho de verificar
(...)”
Tobias Barreto
Para que a emergência de um Código de Menores fosse possível, para que
novas práticas institucionais referentes à infância e adolescência se cristalizassem, uma
série de mudanças discursivas tiveram também que ocorrer. Novas práticas, pois, tanto
em termos discursivos como em termos não-discursivos. Pretendemos aqui recuperar
algumas dessas transformações discursivas.
Comecemos com um conceito chave, predominante no decorrer do século
XIX e que entrará em crise no início do século XX no Brasil: o discernimento. Esse
conceito é um dos pontos básicos de inflexão a partir dos quis os comentadores da
época começarão a apontar para a necessidade de novas práticas jurídicas e
institucionais em relação aos menores. Para aqueles que defenderão uma nova justiça
para menores, não punitiva mas recuperadora, educativa e disciplinar, o discernimento
aparecerá como um dos alvos privilegiados de ataque. “Falso conceito, critério
duvidoso, teoricamente impreciso e inaplicável na prática, incapaz de levar em conta as
62
causas que podem levar um menor ao crime”, segundo as palavras de seus críticos, o
discernimento, primeiro terá seu conteúdo esvaziado, sendo, posteriormente, abolido de
qualquer consideração sobre o posicionamento da justiça em relação aos menores. Com
a crítica ao discernimento, qualquer possibilidade de responsabilização dos menores
deixa de ser colocada pelos discursos jurídicos e institucionais. O campo da tutela
encontrará aí, a partir de então, um dos seus campos privilegiados de inscrição19
.
Como já citamos anteriormente, o discernimento era um dispositivo
existente no Código Criminal do Império, e que se manteve, mesmo com o advento da
República, que tratava da responsabilidade criminal dos menores. Segundo o art.10 do
Código do Império, não seriam julgados os criminosos menores de 14 anos. Mas o
art.13 do mesmo Código colocava que se os menores de 14 anos tivessem agido com
discernimento de seus atos, deveriam ser recolhidos às casas de correção pelo tempo
que o juiz considerasse necessário20
.
Um dos primeiros textos mais significativos de crítica a esse dispositivo é
uma monografia de Tobias Barreto intitulada Menores e loucos21
e publicada pela
19
Duprat (1987), ao analisar as propostas de reforma das prisões na França, a partir da Restauração, dirá
que “Nos filantropos de 1819, nunca há recusa, atenuação ou transferência de culpabilidade”. (Duprat,
op.cit., p.39). No discurso sobre o menor, que estamos estudando, parecer ocorrer justamente o contrário:
o menor, ao longo das discussões, deixa de ter no seu horizonte a culpa e a responsabilidade, que devem
ser encontradas nas condições que o rodeiam, seja o meio social ou especificamente a família. Condição
paradoxal do menor, portanto: assujeitado pelas condições adversas do meio, ele jamais será sujeito do
seu próprio infortúnio. Sem responsabilidades, mas também sem direitos, toda uma justiça tutelar e
paternal irá se consolidar em torno dessa categoria. 20
O discernimento sobreviveu no texto da legislação durante um longo tempo. Mas desde o fim do século
XIX, uma série de novas práticas começam a traçar novos rumos para a questão da menoridade.
Recuperaremos aqui as mudanças discursivas, ressaltando, porém, que são correlativas as mudanças nos
próprios procedimentos jurídicos e institucionais que também ocorriam na época. Aldrovando Corrêa
(1928) dá um interessante exemplo dessas mudanças, ao colocar que, enquanto o direito penal substantivo
em relação ao menor continuava inalterado, mudanças já ocorriam nas leis de processo, por exemplo, no
Distrito Federal, que ordenavam a internação de menores abandonados, e nas novas formas de
institucionalização como o Instituto Disciplinar, já citado, em São Paulo. 21
A primeira edição é de 1884 (Barreto, Tobias, Menores e loucos, Rio de Janeiro, H. Laemmert & C.,
1884). A segunda edição, revista e ampliada, é do Recife, Typographia Central, 1886. Trabalhamos com a
edição de 1926, que reproduz a 2ª edição já citada: Barreto, Tobias, Menores e loucos e fundamentos do
direito de punir, Rio de Janeiro, Empresa Graphica Editora de Paulo, Pongetti & C., 1926, Obras
Completas, v. V – Direito, 152p.
63
primeira vez em 1884. Nesse texto, Tobias Barreto comenta o art.10, já citado, do
Código do Império, que tratava também de diversas outras formas de imputabilidade
penal. A argumentação de Tobias Barreto começa com uma crítica geral à teoria que
dava suporte ao próprio Código como um todo:
O art.10 do Codigo encerra a questão, que elle também resolve a seu
modo, da imputação criminal. Geralmente a psychologia, de que se
servem os legisladores penaes para delimitar o conceito de criminoso,
é uma psychologia de pobre; e o nosso não faz excepção. Tres ou
quatro noções, tradicionaes, que se recebem sem exame, como velha
moeda, cujo peso e legitimidade ninguém se dá ao trabalho de
verificar, a isto se reduz toda a despeza philosophica do nosso Codigo.
(Barreto, 1926, p.6)
Após criticar os aspectos mais gerais do Código, o autor entra numa crítica
mias específica, dirigida ao próprio artigo em questão:
O nosso Codigo, no art.10 não fez mais do que reconhecer uma velha
verdade, consagrada pela historia em todos os periodos culturaes do
direito penal. Commetteu, entretanto, além de outros, que serão
apontados, um erro de methodo: foi reunir em uma só cathegoria
diversas classes de sujeitos irresponsáveis, que não se deixam reduzir
a um denominador commum, isto é, a ausencia do que eu chamei
normalidade mental. (...) (Barreto, op.cit., p.13)
64
Para Tobias Barreto, o Código reúne, num mesmo caso, problemas muito
diferentes. É este o erro do método que permite reunir sob a noção de
irresponsabilidade, sob o denominador comum da ausência de normalidade mental,
classes de sujeitos específicos, que merecem tratamento também específico. É na crítica
a essa falta de especificidade que ele introduzirá a discussão sobre o discernimento,
como se pode observar na continuação de seu comentário ao art.10:
Mas vamos ao ponto central da nossa analyse. Diz o Codigo:
“Também não se julgarão criminosos: §1º, os menores de quatorze
annos; §2º, os loucos de todo o genero, salvo se tiverem lucidos
intervallos, e nelles commetterem o crime; §3º, os que commetterem
crimes violentados por força ou medo irresistiveis; §4º, os que
commetterem crimes casualmente, no exercicio ou na pratica de
qualquer acto licito, feito com a tenção ordinaria.
Eis ahi um modelo de simplicidade, que é pena não seja tambem um
modelo de perfeição. Apreciemol-o detalhadamente.
Os legisladores de quasi todos os paizes têm sempre estabelecido uma
época certa, depois da qual, e só depois della, é que pode ter lugar a
responsabilidade criminal. O nosso Codigo seguio o exemplo da
maioria dos povos cultos, e fixou tambem a menoridade de quatorze
annos, como razão peremptoria de escusa por qualquer acto
delictuoso. Em termos Technicos, o Codigo estabeleceu tambem, em
favor de taes menores, a presumptio juris et de jure da sua
immaturidade moral. É porém, para lastimar que, aproveitando-se da
doutrina do art.66 e seguintes do Code Pénal, o nosso legislador
tivesse, no art.13, consagrado a singular theoria do discernimento, que
65
pode abrir caminho a muito abuso e dar lugar a mais de um
espectaculo doloroso. (Barreto, op.cit., pp.13-14)
O critério do discernimento, “de difficillima apreciação” segundo o autor,
merecerá, pois, uma crítica mais detalhada. Num parágrafo que chama a atenção pelo
estilo curioso do exemplo escolhido, Barreto começa a relativizar o critério a partir de
variáveis que não são mais apenas as da responsabilidade ou não do criminoso menor,
mas sim de variáveis que começam a colocar em causa o próprio meio no qual está
inserido o agente. Comparando o nosso Código Criminal do Império com o Código
Francês, no qual o nosso se inspirou no que se refere à questão do discernimento22
, o
autor imagina uma situação possível em ambos os países:
(...) pelo direito criminal francez, um rapaz de quinze annos, que já
conhece todos os encantos da vida parisiense, que já entra, com todo o
conhecimento de causa, na gruta mystica e perfumada em que habita
alguma deusa, que até já sabe a fonte onde Diana se banha, e vai
espreital-a núa, não obstante o perigo de ser devorado pelos cães, caso
commetta um homicidio, s’il est decidé qu’il a agi sans discernement,
será absolvido; podendo apenas ser, selon les circonstances, remis á
ses parens ou conduit dans une maison de correction... Ao passo que
isto alli succede, entre nós, pelo contrario, um pobre matutinho da
mesma idade, cujo maior grão de educação consiste em estender a
22
Segundo Perrot (1988), a situação jurídica da criança na França, durante o século XIX, repousava em
um duplo sistema: de um lado, a “correção paternal”, a partir da qual as famílias podiam pedir a detenção
de um de seus membros pelo poder público. Esse sistema era herdeiro das antigas “letres de cachet”. De
outro, o discernimento, que foi copiado pelos Códigos Penais brasileiros, no qual as crianças eram
julgadas pelos tribunais comuns, podendo ser condenadas se tivessem ciência da criminalidade do ato
cometido. Ainda, segundo essa autora, a situação penitenciária das crianças na França, nessa época, era
lamentável, sendo que, na maioria das vezes os jovens delinqüentes eram encarcerados com os adultos.
66
mão e pedir a benção a todos os mais velhos, principalmente ao
vigario da freguezia e ao coronel dono das terras, onde seu pai
cultivava a mandioca, se porventura perpétra um crime de igual
natureza, se por exemplo mata com a faquinha de tirar espinhos o
moço rico da casa grande, que elle encontrou beijando sua irmã
solteira, obre ou não com discernimento, será julgado como
criminoso! (Barreto, op.cit., p.17)
Ressalta no texto o contraste ente as duas situações e a arbitrariedade do
discernimento no Brasil que permitiria que um menor julgado como criminoso, mesmo
numa situação com tantos atenuantes, fosse condenado. Interessante o caráter moderno,
se assim podemos caracterizá-lo, da colocação de Tobias Barreto, antecipando, ou
melhor, acolhendo antecipadamente a noção de uma especificidade da justiça para
menores, que já surgia então na Europa e nos Estados Unidos e que começará a ganhar
ênfase no Brasil no início do século XX.
Continuando sua argumentação, Tobias Barreto compara a legislação do
Brasil com o Código Italiano, no qual a idade de responsabilidade era definida como
sendo a de nove anos. O autor considera então essa definição mais desculpável num
Estado como o italiano do que no Brasil, já que um Estado que cumpre com seus
deveres pode exigir mais de seus cidadãos do que o Estado brasileiro23
:
23
Interessante notar no discurso sobre a menoridade que começa a se constituir é que a ênfase no dever
do Estado para com a infância tem um viés claramente tutelar. Não é um dever que, em contrapartida,
estabelece direitos dos cidadão, mas sim um dever de prevenção por parte do Estado, que deve assistir a
infância para evitar sua queda na criminalidade. Não se tratará de uma visão contratualista na qual
cidadão e Estado tenham direitos e deveres claramente definidos, mas sim de uma visão essencialmente
paternalista, na qual o Estado que não cuida bem de seus cidadãos quase tem vergonha de puní-los.
67
(...) um Estado, no qual se obriga a aprender, e onde homens como
Casati, Coppino, de Sanctis, têm sido ministros da instrucção publica,
para promoverem a sua difusão, tem mais direito de exigir de um
maior de nove annos uma certa consciencia do dever, que o faça
recuar da pratica do crime, do que o Brazil, com o seu pessimo
systema de ensino, pode exigil-a de qualquer maior de quatorze.
(Barreto, op.cit., p.19)
Para enfatizar o caráter cruel do Código Criminal em vigência no Brasil da
época, o autor chega a exagerar na dramaticidade dos exemplos:
O nosso Codigo (...) se nelle apparece alguma cousa de piedoso para
os delinquentes, que estão entre os quatorze e os dezesseis annos, esta
compaixão não exclue a possibilidade de ser, por exemplo, um rapaz
de quinze janeiros condemnado á prisão perpetua. (Barreto, op.cit.,
p.20)
Não interessa aqui se existiram ou não casos concretos nos quais se
realizaram a possibilidade colocada pelo autor. Interessa a ênfase do texto no caráter
arbitrário e desproporcional da legislação brasileira da época, referente ao menor. É o
conceito de discernimento que é considerado pelo autor como sendo muito indefinido,
tornando-se assim suporte para decisões absurdas:
É facil, pois, comprehender que, se o legislador patrio houvesse
haurido com mais cuidado nas fontes romanas, outros teriam sido os
seus preceitos a respeito dos menores, pelo menos no que pertence ao
68
vago discernimento, de que trata o art.13, e que é possível, na falta de
restricção legal, ser descoberto pelo juiz até em uma criança de cinco
annos! ... (Barreto, op.cit., p.21)
Discutindo no restante do trabalho, outras formas de irresponsabilidade
colocadas pelo art.10, Tobias Barreto pretendia enfatizar a necessidade de reformulação
do Código, no sentido de uma maior diferenciação e de uma maior precisão nas formas
de irresponsabilidade criminal. Na crítica do autor, portanto, o discernimento não
passava de uma noção ultrapassada, velha moeda sem peso e sem legitimidade, que
precisava ser colocada em discussão. A importância da crítica apresentada nesse livro é
que trata-se de uma crítica paradigmática, de um divisor de águas. Neste texto estão
colocadas as principais linhas de crítica à antiga legislação sobre o menor, com base nas
quais o discurso de uma nova legislação para menores irá emergir. A necessidade de
uma diferenciação entre aqueles tidos como irresponsáveis, a colocação de situações
atenuantes a partir das quais é preciso considerar os delitos, a crítica ao discernimento
como conceito impreciso e ineficaz, todos esses pontos serão retomados no processo de
constituição de uma nova justiça para menores e que culminará na emergência do
primeiro Código de Menores do Brasil, em 1927.
O Código Criminal do Império visava essencialmente a questão da
imputabilidade, nos artigos criticados por Tobias Barreto. O problema que se
apresentava era justamente o de quais indivíduos deveriam ser excluídos da
imputabilidade. O que se colocava para esse Código Criminal era uma preocupação
essencialmente punitiva. A crítica feita por Tobias Barreto, ao contrário, reivindica uma
diferenciação das categorias inimputáveis, na qual se respeitariam as especificidades das
diferentes classes de agentes. Ou seja, já aponta para procedimentos jurídicos
69
diferenciados de acordo com os agentes visados e segundo situações bastante diversas.
Será por esse caminho que se reivindicará, anos depois, uma justiça especial para
menores. Ao colocar a questão do discernimento para os menores, o antigo Código do
Império dilatava ao máximo a possibilidade de responsabilização criminal. O Código de
Menores de 1927 colocará justamente o oposto: o menor não deverá ser, de modo
algum, punido. O conceito de pena deverá ser praticamente abolido, quando se tratar de
menores. Para estes, a justiça deverá ser, segundo o espírito do Código de Menores,
pedagógica, tutelar, recuperadora.
Assim, o texto de Tobias Barreto, na crítica ao discernimento que realizava,
já apontava para novos conceitos jurídicos em relação à menoridade, mais adequados às
especificidades e complexidades dos novos sujeitos visados. Não será mais possível, a
partir de então, colocar em uma mesma problemática sujeitos tão diversos como os
loucos e os menores. O que se abre aqui, portanto, não é apenas a crise de um velho
conceito, o discernimento, como algo abstratamente ultrapassado, mas sim a
reorganização dos discursos jurídicos e das formas de institucionalização.
Algumas décadas mais tarde, já dentro de uma nova proposta de tratamento
da criminalidade da infância e adolescência, o advogado Evaristo de Moraes retoma a
crítica de Tobias Barreto ao discernimento.
Estudioso das questões relativas à criminalidade precoce, e interessado pelas
instituições que se dedicavam à infância abandonada, Evaristo de Moraes publica, em
1916, o livro, Criminalidade da infância e adolescência24
, no qual analisava as causas
da criminalidade precoce e os novos métodos de combate a esse mal. Ao discutir esses
novos métodos de combate à criminalidade infantil e adolescente é que Evaristo de
24
Trabalhamos aqui com a segunda edição: Moraes, Evaristo de, Criminalidade da infância e
adolescência, 2ª edição, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1927, 302p.
70
Moraes irá retomar a crítica ao discernimento. Para o autor, diante da justiça moderna o
discernimento não passa de um falso critério:
Um dos postulados da sciencia criminologica moderna é o abandono
do falso criterio do discernimento que, desde sua adopção pelo velho
Codigo Penal Francez, serve de base, aliás movediça, á repressão e á
educação correcional dos adolescentes. (Moraes, 1927, p.112)
Ressaltando-se, em seguida, a imprecisão e inaplicabilidade do conceito:
Effectivamente não se sabe em que consiste, ao certo, o discernimento
a que alludem o Codigo Francez e aos que delle derivaram neste
particular. Esses Codigos, e, em geral, os criminalistas que ainda
adoptam o malsinado criterio, não fornecem á magistratura um
methodo ou uma norma para solução segura desse “problema
psycologico”, na expressão feliz de Albanel. (...)
E, desde logo, se percebe que não é sério assentar decisões judiciarias
em criterio indefinido e, ao que parece, indefinível. As perplexidades
dos juizes são constantes. Affirma um professor, vagamente, que o
“discernimento consiste na plena consciencia da acção,
comprehendendo, ao mesmo tempo, a consciencia da illegalidade e
punibilidade do acto e a consciencia moral do bem e do mal”
(Garraud). A isto se objecta, de todos os lados, tanto da parte dos
criminologos como da banda dos juizes, que embora existindo a
consciencia da illegalidade e da punibilidade do acto, póde a
consciencia moral estar falseada pelas condições da hereditariedade,
71
physiologica e psychologica, e da educação do menor. (Moraes,
op.cit., pp.115-116)
Na argumentação acima colocada, é a noção de responsabilidade que passa a
ser uma questão de grau, ao mesmo tempo em que se colocam diferentes formas dessa
responsabilidade: o indivíduo pode não ter total responsabilidade em relação a seus atos;
pode ter consciência do ato, mas não capacidade moral para julgá-lo como bom ou mau:
Quasi todos os adolescentes possuem o discernimento juridico, isto é,
a consciencia da ilegalidade e da punibilidade do acto, quasi todos –
como diz Ad. Prins – sabem, mais ou menos, quando furtam, que a
Policia persegue os ladrões. Mas cumpre reconhecer que elles vivem
fóra da sociedade honesta, que são victimas do abandono, ou crescem
em uma atmosphera viciada, tendo sobre si, muitas vezes, o peso da
hereditariedade pathologica, que lhes deforma prematuramente a
consciencia, do bem e do mal, modificando a sua responsabilidade.
Apenas, por vel-os intelligentes e capazes de responder, com maior ou
menor justeza, ás perguntas que lhes são dirigidas, não póde o juiz
affirmar que tenham capacidade moral para escolher entre o bem e o
mal. Só tendo visto o mal, a sua consciencia deve estar viciada,
illudida, incapaz de fazer a distincção, cuja possibilidade a lei e a
doutrina erradamente presumiram, tendo imaginado um só typo ideal,
normal, familiarmente educado, de menores criminosos. (Moraes,
op.cit., pp. 116-117)
72
Colocando apenas a questão da existência ou não da consciência sobre o ato,
o discernimento não era capaz de dar conta de gradações e especificidades da
consciência em relação ao ato, já que em torno dessa consciência, uma série de
condições externas poderiam estar atuando no sentido de desvirtuá-la. O problema
torna-se, pois, tão complexo que não basta mais constatar e punir o ato, mas se coloca
como necessário estudar a linha tênue que liga a consciência ao ato praticado, o maior
ou menor grau de aproximação entre ambos, as condições que desvirtuam ou tornam
imprecisa sua relação. Foucault já mostrou como é nessa brecha entre o ato e a
consciência que se abre todo um campo de atuação, dentro da justiça, de uma série de
profissionais da “ortopedia moral”, psicólogos, pedagogos, terapeutas em geral25
. Mas o
que interessa para nós no momento é a impossibilidade do discernimento de dar conta
de toda essa nova complexidade, que não envolve mais apenas o crime, mas sim o
criminoso e seus estados de alma.
Evaristo de Moraes termina sua crítica ao discernimento, lamentando apenas
que tal dispositivo legal, abandonado paulatinamente, tanto na teoria como na prática
judiciária, ainda estivesse em vigência no nosso Código Penal de então.
Não se deve, contudo, pensar que o fim do discernimento tenha sido
simples. As práticas históricas não se modificam assim com tanta facilidade, mesmo no
campo dos discursos. Muitas resistências provavelmente ainda permaneceram, muitas
batalhas talvez tenham sido travadas até que esse “falso critério” fosse definitivamente
sepultado. Vejamos dois exemplos que remetem a arranjos intermediários.
25
Cf. Foucault (1977). A construção do discurso sobre a menoridade é uma empreitada claramente
multidisciplinar. Voltaremos a esse assunto mais adiante.
73
Num artigo de 1911, no qual defendia a criação dos Tribunais para Menores
no Brasil, o desembargador Ataulpho de Paiva mencionava a questão do discernimento,
ao comentar o regime dos Estados Unidos de tratamento à criminalidade precoce:
Todo o processo penal deve ser abandonado desde que o menor não
tenha ainda o critério do discernimento, isto é, quando não haja
atingido a sua plena conformação intellectual e moral. (Paiva, 1916,
p.72)
Nesta citação, os novos procedimentos jurídicos em relação à menoridade se
colocam no espaço cedido pelo discernimento: se o menor não tem ainda o
discernimento, deve então ser tutelado, e não punido. Mas não existe, neste raciocínio,
um confronto entre os dois estilos penais. A tutela se dá onde não é possível a execução
dos mecanismos punitivos. Com o Código de Menores de 1927, pelo contrário, a
proposição irá se radicalizar: todo menor será tutelado, não havendo espaço para o
discernimento e todos os mecanismos que ele carrega. No texto de Ataulpho de Paiva,
que citamos, visualizamos uma primeira possibilidade: o novo conceito de justiça para
menores se instala ao lado das antigas concepções.
Já o deputado Alcindo Guanabara, num projeto apresentado ao Senado
Federal em 1917 e que pretendia reorganizar a assistência à infância abandonada e
delinqüente, irá colocar uma outra solução, envolvendo um compromisso em relação ao
discernimento:
O regimen deste projecto parece-me que tornou sem importância a
“questão do discernimento”. Pouco dado, de minha propria natureza,
74
ás reformas radicaes e, por outro lado, sabendo bem quanto ha de
resistências subtis e ás vezes inconscientes ás innovações legaes,
deixei permanecer no projecto a “questão do discernimento” como a
consigna o nosso atrazadissimo Codigo Penal. Elevei, apenas, o limite
de edade da imputabilidade de nove a doze annos, porque, realmente,
nada justifica entre nós tão baixo limite. Pareceu-me, porém, que não
haveria inconveniente pratico em permittir que o juiz privativo
examinasse a “questão do discernimento” dos 12 aos 17 annos,
porque, de qualquer fórma, elle teria de apreciar a situação de
responsabilidade do menor, pela sua educação ou pelo seu estado de
abandono, pela miserabilidade, pelas condições moraes do meio em
que vivia, desde que, uma vez levado esse menor á sua presença, elle
ha de mandar recolhel-o a uma escola de prevenção ou internal-o em
uma escola de reforma. A sua preocupação não ha, pois, de ser tanto a
do crime ou delicto no momento praticado, com ou sem
responsabilidade, como a do estudo do caracter do menor, do seu gráo
de corrupção, de esperança que elle póde dar de aperfeiçoamento ou
de regeneração e a sua decisão ha de ser inspirada segundo a sua
consciencia se formar por esse inquerito e por esse estudo. É por
conseguinte indifferente saber se o menor é, ou não, capaz de
imputabilidade e é positivamente tempo perdido discutir se essa
imputabilidade é uma funcção da edade, desde que, preliminarmente,
admittimos que o é das condições personalissimas do menor e das
circumstancias do meio em que se fez criminoso. Assim, pareceu-me
inutil suscitar mais um motivo de combate ao projecto: deixo de pé a
letra do Codigo e dou ao juiz a autoridade necessaria para examinar e
decidir, como a sua consciencia o aconselhar. (Guanabara, pp.36-37)
75
Trata-se, no exemplo acima, de um desvio tático: não se ataca frontalmente
o discernimento, mas seu conteúdo já está totalmente esvaziado. O autor no próprio
texto explicita essa tática de evitar a resistência, que o fim do discernimento traria, em
relação aos novos procedimentos jurídicos e assistenciais. O discernimento permanece,
assim, nesse projeto praticamente como letra morta, pois no essencial já está sepultado:
quem examinará a responsabilidade ou não do menor será o juiz de menores. Este não
apreciará a responsabilidade como algo absoluto, mas como fruto do meio e das
condições morais do menor. Um inquérito dirá se o menor é, ou não, recuperável, e não
se ele é, ou não, responsável. A “Nova Justiça” já está, assim, instalada ao lado do
discernimento, que figura apenas como velha moeda, agora sem valor.
Apesar dos recuos táticos, entre a crítica colocada por Tobias Barreto e as
discussões que culminam com a promulgação do Código de Menores de 1927, o sentido
geral que vai se delineando é claro: uma nova concepção de justiça especial para
menores surge a partir da crítica dos antigos conceitos penais, representados pelo
critério do discernimento. Se este ainda sobrevive no projeto de Alcindo Guanabara, já
está, no entanto, com os dias contados diante da nova concepção de tratamento para os
menores, na qual já não há mais sentido em apenas se punir o menor, da mesma forma
como se entende que um pai compreensivo não é aquele que apenas castiga os filhos.
Alcindo Guanabara chega a colocar que o juiz deve ser justamente um “bom pai” para
os menores, inspirado pela legislação de Portugal:
(...) prefiro francamente um juiz singular, um juiz togado, que póde
ser recrutado no mais alto tribunal local, habituado a julgar, que tome
a si a protecção e defesa do menor em abandono e que julgue o menor
delinquente, em consciencia, informando-se por si mesmo das suas
76
condições, do meio em que vive, do concurso de circumstancias que o
fizeram criminoso. Esse juiz será, na phrase da lei portugueza “um
bom pae”, que saberá prever, aconselhar, reprehender e corrigir.
(Guanabara, op.cit., p.34)
Prever, aconselhar, repreender, corrigir. Quantas palavras não irão se
instalar onde antes havia apenas a palavra punir? Já estamos distantes de uma lei
puramente punitiva, que não se envergonhava com palavras como castigo e punição. A
crise do discernimento é a crise dessas antigas concepções de justiça.
No texto do Código de Menores de 1927, o discernimento é definitivamente
eliminado:
Art.69. O menor indigitado autor ou cumplice de facto qualificado
crime ou contravenção, que contar mais de 14 annos e menos de 18,
será submettido a processo especial, tomando ao mesmo tempo, a
autoridade competente as precisas informações a respeito do estado
physico, mental e moral delle, e da situação social, moral e economica
dos paes, tutor ou pessoa incumbida de sua guarda. (Collecção das
Leis ..., 1928, p.487)
Uma edição comentada do Código, publicada em 1929, esclarece o sentido
desse artigo em relação ao discernimento:
Neste artigo elimina-se o criterio do discernimento como base para o
julgamento do menor e supprime-se a applicação da pena ou medida
repressiva. (...)
77
A lei nova supprime o criterio do discernimento como base da
responsabilidade criminal dos menores. Questão perigosa, illusoria,
ociosa, inutil, está banida das legislações adeantadas.
Hoje é ponto aceito e corrente entre os melhores criminalistas e as
legislações mais adeantadas, para o julgamento dos delinquentes
juvenis, não se dever procurar o discernimento delles, o qual, na
maioria dos casos, é um verdadeiro enigma psychologico. Os autores
não são accordes quanto á significação a dar á palavra discernimento.
Alei não a define. A jurisprudencia é varia relativamente ao sentido
em que ella deve ser tomada. Urgia banil-a do nosso direito. Os
infantes em raros casos, e os adolescentes, com frequencia, dado certo
desenvolvimento, podem ter capacidade psychica para distinguir o
bem do mal, sem que tenham capacidade moral para deixar de fazer o
mal. (...)
Além do inconveniente da vagueza da expressão “discernimento”,
prestando-se a interpretações diversas, quanto devia ser claro e fixo
seu sentido, succede que, na pratica, a solução da questão pelo juiz,
para cada menor que comparece frente elle, é muito difficil e muito
delicada, sempre incerta e baseada em informações insufficientes.
(Mineiro, 1929, pp.85-87)
O fim do discernimento dá lugar, segundo estas colocações, a uma justiça
especial para menores, não apenas mais justa como também mais eficaz26
. Vejamos, no
26
Na realidade, o discernimento não foi banido por uma questão de justiça. Ao invés de condenar
menores à prisão perpétua, como temia Tobias Barreto, o discernimento acabou se tornando um
mecanismo totalmente ineficaz em nosso país. É contra essa ineficácia que surgem as propostas de
mudança da legislação, já que são necessários mecanismos de controle da criminalidade precoce. O
próprio Mello Mattos explicita que a vantagem da nova legislação reside em sua eficácia: “(...) ha uma
grande vantagem pratica na sujeição, entre nós, dos menores até 18 annos ao regimen correccional
78
próximo item algumas características da “Nova Justiça” que então surgia, segundo os
textos da época.
especial: - sempre o jury os absolve, systematicamente, deixando-os na impunidade e no caminho da
reincidência: a passo que submettidos ao novo regimen, a regeneração delles pela reeducação e pelo
habito do trabalho é muito provavel.” (Mattos apud Mineiro, 1929, p.88) Assim, nada parece indicar que
houve um “progresso da justiça” com a criação da legislação especial para a menoridade. Como indica
Mariza Corrêa (Cf. 1982b, p.190), o fato de as crianças não terem um tratamento diferenciado pela antiga
legislação brasileira, implicava também que fossem vistas como integrando plenamente a sociedade em
todos os seus aspectos. É uma nova estratégia de poder, visando um tratamento diferenciado dessa parte
da população que leva a uma legislação diferenciada para a infância e para a adolescência. E não se trata
também de um “desvio” em nossa legislação, pois, mesmo em relação aos países pioneiros nas reformas
visando a legislação infantil, não houve um progresso das práticas penais. Platt (1982, pp.210-217), ao
discutir a questão da responsabilização penal da infância, mostra que não existem indícios empíricos que
demonstrem que a execução de menores fosse uma prática regular da Inglaterra e nos Estados Unidos
durante o século XIX, como afirmavam os apologistas americanos da nova justiça para crianças. No
geral, segundo as pesquisas do autor, se reconhecia, no século passado, que as crianças menores de 14
anos não deveriam ser consideradas responsáveis por suas ações. Todos os indícios levam a confirmar
nossa hipótese de que não existe, de um lado, uma justiça penal que tratasse de modo brutal as crianças e,
de outro lado, uma nova legislação redentora da infância e adolescência, mas sim que existem dois
mecanismos diferenciados de tratamento penal da menoridade, que visam objetivos específicos em
momentos históricos diferentes.
79
IV.2. – Uma “Nova Justiça”
“É a nova era da Justiça que surge, justiça
substanciada nos tribunaes para crianças, (...)”
Ataulpho de Paiva
Pelo que vimos, na crise do discernimento começa a se constituir um novo
projeto de justiça para menores. Essa nova justiça, porém, segundo os comentadores da
época, não é exclusiva para menores. A aplicação de novas práticas legais já na infância
aparece apenas como um modo privilegiado de se implantarem novas idéias que,
segundo seus defensores, acabariam por triunfar em todos os campos da justiça. O já
citado desembargador Ataulpho de Paiva é um dos defensores dessa nova justiça.
Propagandista de métodos novos no campo da justiça e da assistência em
geral, Ataulpho de Paiva realizou conferências, artigos e projetos que propunham
mudanças jurídicas como a criação no Brasil de Tribunais para Menores e a criação de
um amplo sistema de assistência social que assistiria à infância, à velhice, aos loucos,
aos tuberculosos e a outros tipos de desafortunados. Alguns destes trabalhos estão
reunidos numa coletânea intitulada Justiça e assistência27
. Sobre a questão da nova
justiça que então era proposta, Ataulpho de Paiva resume a argumentação de maneira
clara: a justiça começa a encontrar “novos horizontes”; a justiça especial para menores é
27
Paiva, Ataulpho de. Justiça e assistência: os novos horizontes, Rio de Janeiro, Typ. do Jornal do
Commercio, de Rodrigues & C., 1916, 345p. Este livro é uma coletânea que reúne uma conferência de
1913, artigos publicados no Jornal do Comércio, entre 1911 e 1913 e um projeto de assistência pública e
privada para o Rio de Janeiro encomendado pela prefeitura do Districto Federal.
80
um exemplo dessa nova justiça; e os tribunais especiais para menores são seu
instrumento de aplicação. Nas palavras do autor:
Os principios primordiaes da Justiça moderna conquistaram um
curioso novo apparelho que modificou profundamente, radicalmente a
acção reguladora da auctoridade publica na crescente complexidade
dos crimes e das infracções de toda a sorte. Nunca o evolucionismo,
nos varios ramos da actividade juridica, contou um triumpho maior e
mais significativo. Ha uma verdadeira revolução nas regras educativas
e correccionaes. A determinação legal das penas soffreu um abalo
violento com esse surto novo, curioso e autonomo organismo
judiciario.
É a nova era da justiça que surge, justiça substanciada nos tribunaes
para crianças, honra da geração actual, sagrado ministerio, especie de
apostolado social em que a alta dignidade do juiz passa a receber uma
consciencia mais clara, um senso mais preciso, encontrando a
preservação moral da infancia, afinal, solução menos embaraçosa e
menos complicada. (Paiva, 1916, pp.26-27)
Para o autor, os tribunais para menores são uma grande invenção contra a
criminalidade infantil e, consequentemente, contra a criminalidade em geral:
É agraddavel observar o que vai pelo mundo moderno, na hora actual,
a respeito dos graves e serios problemas da criminalidade infantil. (...)
Um apparelho de pura creação moderna, que desde logo foi
geralmente bem acolhido, pela sua indiscutivel perfeição e admiravel
81
praticabilidade, vai sendo posto em execução a fim de que a campanha
da sociedade contra o crime tenha nelle um instrumento
calculadamente digno do prestigio da auctoridade e do poder publico.
A preservação moral da infancia, questão até agora sempre
complicada e insoluvel, já não oferecerá talvez, de ora avante, as
mesmas razões de difficuldade e de embaraços. Essa parte primordial
da lucta do estado social contra o delicto encontrou, afinal, uma
solução positiva, curiosa e original. (Paiva, op.cit., p.65)
Um outro autor, Noé Azevedo, numa dissertação sobre os tribunais
especiais para menores delinqüentes apresentada na Faculdade de Direito de São Paulo
em 192028
, também coloca os tribunais para menores como uma solução para a questão
da criminalidade:
Sendo a criminalidade precoce o grande mal a combater-se, a
penologia deve esmerar-se na escolha de medidas proprias para a
reforma dos jovens delinquentes; e o orgão distribuidor dessas penas
ou medidas tambem precisa ser apto para conhecer a natureza e a
constituição psychica do menor criminoso, afim de lhe applicar um
tratamento adequado.
Ahi está a directriz do meu pensamento: a precocidade é a feição
caracteristica da criminalidade moderna; para combater esse mal os
28
Azevedo, Noé. Dos tribunaes especiaes para menores delinquentes e como podem ser creados entre
nós, São Paulo, Edictores Saraiva e Cia., 1920, 159p.
82
meios preventivos são os mais efficazes, mas nem por isso deve-se
abandonar inteiramente a repressão; esta para satisfazer á necessidade
da defesa social, que é seu fim e razão de ser, precisa ser applicada
convenientemente, isto é, precisa ser individualizada; para isso é
mister crearem-se orgãos capazes de comprehender a individualidade
dos delinquentes e suas anomalias, do contrario os julgamentos serão
obra do acaso, os juizes andarão ás cegas, e a justiça não será mais que
a sorte; emfim, para comprehender a alma das creanças, que é
complexa e delicada, afim de ministrar-lhe tratamento capaz de
regeneral-as quando corrompidas, e de evitar que tomem o caminho
do mal si ainda puras, tornam-se indispensáveis orgãos julgadores
especiais que são os tribunaes para menores, objecto principal desta
dissertação. (Azevedo, 1920, pp.69-70)
Para ambos os autores, portanto, esses tribunais para menores são o que há
de mais moderno no combate à criminalidade, pois permitem a “preservação moral da
infância”. Preservação da infância e combate à criminalidade estarão intimamente
ligadas, assim, nesse discurso que então se formava.
Segundo esse discurso, os antigos métodos institucionais, não percebendo
essa articulação, não eram capazes de equacionar de modo satisfatório o problema, já
que se baseavam na simples repressão e com isso confundiam a causa do menor. Nas
palavras de Ataulpho de Paiva:
Nunca foi lisonjeira a esphera de acção geralmente fornecida pela
gerencia tutelar da infancia, e toda a actividade das instituições não
logrou, até este momento, resultado algum apreciavel. A simples
83
repressão, que constituiu a idéia fundamental dos codigos, sempre
confundiu a causa do menor, deixando-o ao desamparo do Direito e da
Justiça. A crise tremenda em que se vê a delinquencia juvenil assumir
proporções assustadoras, maxime na sua comparação com a
criminalidade dos adultos, ahi está para attestar eloquentemente a
imprestabilidade dos velhos moldes e dos processos anachronicos.
(Paiva, op.cit., p.66)
Segundo o autor, a simples repressão não dá conta da criminalidade do
menor. Desamparado por uma justiça apenas repressiva, a causa do menor não
encontraria solução. Apenas pelo combate às causas que levam os menores à
delinqüência, através de uma autêntica “prophilaxia social” é que seria possível resolver
o problema. Nesse raciocínio, deveria ser reduzido o uso da repressão penal para
combater o criminoso juvenil, desviando-se da simples repressão para o combate das
causas da “degenerescência social”:
A defesa contra a criminalidade dos menores, ou melhor, a prophilaxia
social contra o crime praticado pela criança constitue o problema do
momento actual (...) limitando e reduzindo, tanto quanto possivel, o
uso immoderado, oppressivo e tardo da justiça penal. A excessiva
precocidade no crime resume hoje, na sua complexidade etiologica,
um vasto e agitante phenomeno de degenerescencia social. (Paiva,
op.cit. p.67)
Essa crítica aos antigos procedimentos penais leva, também, à crítica da
prisão, instrumento privilegiado dessas formas de penalização, que devem ser
84
substituídas pela proteção e assistência moral desde a infância. Citando o Congresso de
Antropologia Criminal de Amsterdam, realizado em 1901, Ataulpho de Paiva coloca:
“Nos nossos dias a prisão, como medida afflictiva ou como meio de intimidação, é, sem
duvida, nulla e contraproducente. (...)” (Paiva, op.cit., p. 68)
Segundo o discurso da Nova Justiça, o antigo instrumento, a prisão, deve ser
substituído pelo novo instrumento de combate à criminalidade: os tribunais especiais
para menores. Ao tomar como exemplo os tribunais para crianças existentes nos Estados
Unidos, Paiva realça sua importância para o exercício do novo papel da Justiça:
Há dez annos, pouco mais ou menos, os Estados Unidos da America
do Norte entenderam de suprehender todo o mundo scientifico
applicando corajosamente as novas formulas, fazendo ao mesmo
tempo uma revolução real, positiva e benefica. Era preciso, porém,
crear para o caso um orgão especial que funccionasse especialmente,
um instrumento harmonico que associasse todos os elementos
particularizados, um apparelho que representasse fielmente todas as
necessidades actuaes. Na antiga organização judiciaria não era
possivel descobrir qualquer cousa que se assemelhasse a essa nova
funcção social. O antigo Juiz penal sómente tinha a preocupação de
capitular o delicto e applicar a respectiva pena ao caso occorrente.
Nada mais improprio nem menos apto para o exercicio do moderno
papel da Justiça. A instituição dos tribunaes para crianças appareceu
então como meio proficuo, adequado e justo para alcançar a
regeneração moral do delinquente, regeneração que traduz o interesse
legitimo e immediato da sociedade. (Paiva, op.cit., pp.70-71)
85
Segundo essa argumentação, se outras instituições voltadas para a infância
se especializam, por que o mesmo processo não poderia ocorrer no campo da justiça?
Daí o exemplo:
Um commentador illustre pergunta então judiciosamente: ─ Por que é
que a criança, tendo tido sempre as suas escolas, os seus hospitaes, os
seus asylos e as suas prisões, não poderá tambem ser julgada por
tribunaes especiaes? Ao regimen penal especial deve corresponder
uma jurisdição especial, á parte. (...) (Paiva, op.cit., p.71)
Essa nova justiça especial para menores vai requerer um juiz também
especializado, diferenciado no seu perfil, um juiz paternal, como já citamos, que trate do
problema da infância e da adolescência. Mas, como já mencionamos anteriormente, uma
série de outros especialistas deverão também ajudar nesse tratamento. Um corpo de
especialistas deve encarregar de pesquisar e de conhecer os antecedentes da criança. Já
estamos longe de um procedimento puramente jurídico, ou melhor, esse procedimento
já se reveste de atribuições mais complexas. Um conhecimento se constitui como
correlativo ao juizado infantil. Ainda nas palavras de Ataulpho de Paiva:
Além dos Juizes que se devem preparar especialmente para a missão
da nova Justiça, um corpo tambem especial de inquiridores, educados
na nova escola, deve ser mantido para não somente conhecer e
pesquisar os antecedentes da criança, como egualmente para a
acompanhar deante do tribunal, fiscalizando mais tarde a sua propria
86
liberdade. E, por ultimo, os depositos especiaes, os asylos especiaes,
as prisões especiaes constituem um admiravel remate, digno de um
alto espirito de cultura, de justiça e de civilização. (Paiva, op.cit.,
p.72)
Instituições especiais serão, assim, o espaço onde esses profissionais
especializados nos problemas da infância irão atuar em conjunto. Aí a autoridade
abdicará de seu caráter punitivo, para se investir de características tutelares.
Ataulpho de Paiva não parece, contudo, ser dos mais radicais defensores dos
novos métodos de tratamento dos menores, tanto que não propõe ainda o fim do
discernimento. Para ele, a permanência de alguns aspectos repressivos na legislação
sobre a menoridade não parece excluir os novos métodos. Nesse sentido, seu entusiasmo
é grande, o que o leva a propor a adoção imediata desses novos procedimentos jurídicos
no Brasil por parte do Estado:
Não se trata mais, por conseguinte, de uma tentativa, de um ensaio, de
uma aspiração. Trata-se de um sucesso consagrado em toda a sua
plenitude. Trata-se de uma causa que não tem nem póde ter
adversarios, causa que o Brasil já conhece sobejamente pelas
minuciosas noticias que aqui foram divulgadas por varios e illustres
publicistas. Nada se oppõe a que elle seja, na America do Sul, o
primeiro paiz a consagrar um campo de acção onde difficilmente
germinará o pernicioso flagello da criminalidade infantil. Fallece-lhe
apenas, para base complementar de todo o plano, a systematização
regular e methodica da assistencia publica. Esta, porém, é uma partida
que já está aqui inteiramente ganha perante a opinião publica. Como já
87
ficou dicto em outra occasião, resta tão sómente que a ella se associe a
solicitude de um homem de Estado que, tendo a verdadeira
compenetração de um dever sagrado, queira, em boa hora,
immortalizar o seu nome. (Paiva, op.cit., p.74)
A adoção das medidas necessárias para a consolidação das novas propostas
de tratamento à infância e à adolescência, demorou ainda alguns anos. Mas a proposta
geral se apresenta já bem esboçada. Resumidamente, a nova justiça deve ser
recuperadora e não punitiva. A justiça especial para menores é um dos pilares desses
novos procedimentos jurídicos. Seu dispositivo privilegiado de aplicação é o juízo
especial para menores.
Mas, como se pode perceber no final da última citação do texto de Paiva, a
nova justiça deve ser acompanhada também da sistematização da assistência pública em
geral. Acreditamos que o que se chamava então de nova justiça era também um novo
projeto de institucionalização da infância abandonada e delinqüente. Por isso, além das
reformas dos procedimentos jurídicos, era necessária também uma reorganização das
formas de assistência voltadas para a infância, tanto públicas como privadas, e também
uma nova sistematização da assistência em geral. Veremos como os autores da época
trabalharam essa articulação entre novas formas de justiça e novas formas de
assistência.
88
IV.3. – “Justiça e Assistência”
Era um cunho director, superior e scientifico que se
queria imprimir ás nossas obras de philantropia,
encaminhando-as para a larga estrada indicada pela
sciencia e pela caridade, furtando-as á
desorganização actual.
Ataulpho de Paiva
Os textos da época explicitam claramente que a proposta de uma nova
justiça para menores e a criação dos tribunais especiais implicavam não apenas uma
modificação a nível justiça, mas também uma reorganização das instituições voltadas
para a infância e a adolescência. Noé Azevedo, por exemplo, ao defender a implantação
dos tribunais juvenis já existentes em outros países, colocava:
Mas todo esse trabalho de amparo, visando preservar do mal os
menores ainda puros, e reconduzir para o bem os que se
desencaminharam, toda essa obra meritoria e nobre andava dividida
em instituições isoladas umas das outras, não podendo alcançar os
mesmos resultados de um systema scientificamente organizado. Os
tribunaes para menores, oriundos da tendencia individualizadora da
pena, creados a principio com o fim apenas de julgar os jovens
delinquentes, dando-lhes um tratamento conveniente, tiveram
89
necessidade de pedir auxilio a outras instituições protetoras, que
estavam em condições de fornecer os precisos dados sobre os
antecedentes dos acusados. Assim as administrações autonomas que
funccionavam cada uma a seu modo, sem vistas communs, se foram
reunindo e subordinando á direcção central do juiz, que ficou sendo
mais que um simples magistrado, o chefe de todos os institutos de
protecção á infância abandonada.
Assim fica bem caracterizada a instituição que não é um mero orgão
de julgamento de faltas e distribuição de penas, mas uma vasta
organização de institutos e associações protectoras dos menores
abandonados. (Azevedo, op.cit., pp.88-89)
Os tribunais para menores, assim, ao mesmo tempo em que se apoiavam em
instituições de amparo à infância já existentes, passavam também a subordinar essas
instituições a uma instância central judiciária, que criará um sistema organizado de
assistência até então não existente. Por isso, os tribunais para menores serão colocados
como síntese de um novo projeto de institucionalização da infância e da adolescência:
De todas as instituições filhas do espirito tutelar e protector que
caracteriza o tratamento actual dos delinquentes, a mais importante e
que se póde considerar como synthese e concentração de todas as
outras é sem duvida a creação dos Tribunaes para menores ou
Tribunaes juvenis. (Azevedo, op.cit., p.83)
O problema básico que então se colocará nos textos é o da relação entre a
ação organizadora e centralizadora do Estado, através dos tribunais para menores, e as
90
instituições de assistência já existentes na sociedade. Ataulpho de Paiva, no texto já
citado, coloca de modo exemplar essa relação entre novas formas de justiça e novas
formas de assistência. Não é gratuitamente que seu livro se chama Justiça e assistência.
Para esse autor, a transformação da legislação também deve ser acompanhada por um
sistema de assistência social. Esse sistema representa um novo espírito de atuação, um
amplo movimento dentro da sociedade brasileira de reforma da assistência pública e da
beneficência privada:
Aqui mesmo, no seio da communidade brasileira, ha facto recente que
bem demonstra como as idéas, uma vez encaminhadas sem intuitos
exclusivistas, dominam os espiritos intellectuaes, absorvendo as
consciencias puras. Ha poucos annos alguem se lembrou de
transportar para o nosso paiz o movimento que, em toda a parte do
mundo civilizado, então se fazia nos dominios da assistencia publica e
da beneficiencia privada. Em nome da doutrina e da experiencia
contemporaneas reclamava-se para a assistencia publica uma
classificação juridica entre os factores de civilização e de saneamento
moral no meio social. Convinha-se que sómente assim se tornaria ella
o ideal de uma Justiça defensiva, preventiva e reparativa, uma vez que
outras não eram as condições vitaes da mais pura confraternização
humana.
Era um cunho director, superior e scientifico que se queria imprimir ás
nossas obras de philanthropia, encaminhando-as para a larga estrada
indicada pela sciencia e pela caridade, furtando-as á desorganização
actual. Era uma transição, que se aconselhava, do regimen da
beneficiencia espontanea para a philanthropia systematizada. Seria
91
fundada, como então foi dicto, uma grande associação protectora dos
desvalidos, destinada a exercer uma fiscalização carinhosa para
impedir a fraude, que, muitas vezes, leva a beneficiencia publica a
favorecer a ella propria, de envolta com os verdadeiros necessitados.
(Paiva, op.cit., pp.25-26)
Segundo o texto, uma filantropia científica deve ser correlativa, portanto, de
uma nova justiça. Os tribunais para menores são um exemplo privilegiado desse novo
movimento de reforma da assistência, ao permitir um tratamento moderno para os
menores, afastando-os das prisões comuns. Nas palavras de Noé Azevedo:
Convencidos da grande verdade propagada pela sociologia criminal de
que o delinquente é produto do meio, os legisladores modernos vão
aos poucos furtando o menor ao domínio do direito penal, e afastando-
o completamente das prisões. Si commetem faltas são conduzidos para
estabelecimentos, onde recebem todos os cuidados que o seu estado
reclama: assistencia material e amparo moral. Em vez de passarem
pelos postos policiaes, para depois irem para os carceres communs,
vão logo para casas onde encontram conforto, tratamento medico,
occupação, ensino, e onde são submettidos, sem que o percebam, a um
exame psychologico attento. O juiz de menores não póde decretar a
medida a respeito de um accusado sem o conhecer bem. Não se
consegue tal conhecimento pelas praticas ridiculas da instrução
criminal, até hoje seguida na formação de culpa de toda a casta
criminosa. Essas praticas, todas contrarias á sciencia precisam ser
92
abolidas de vez, tanto dos processos de adultos como de menores. (...)
(Azevedo, op.cit., p.97)
No lugar da prisão comum, portanto, são colocados os tribunais para
menores e toda a rede assistencial a ele articulada.
Para esse discurso, esses tribunais são, pois, peças essenciais no tratamento
científico da criminalidade. Para ajudá-los em sua tarefa preventiva, existiriam as
instituições privadas de amparo à infância, que deveriam, para tanto, passar a ser
organizadas pelo Estado. Ainda, segundo o mesmo autor:
Assim, havendo em todas as camadas sociaes espalhado um espirito
de benevolencia para com os menores, devemos ir aproveitando esses
bons instinctos, para desenvolver o mais possivel as instituições de
preservação dos que se encontram material e moralmente
abandonados, aperfeiçoando ao mesmo tempo os estabelecimentos de
reforma ou reerguimento dos que já commetteram faltas ou delictos.
Quanto aos primeiros, aos que ainda não chegaram a delinquir, mas
acham-se em condições perigosas, devido ao abandono por parte da
familia, ou por serem filhos de paes indignos de os guardarem, vai-se
organizando um systema mais ou menos scientifico de assistencia
social aos menores material e moralmente abandonados. E essa obra
de amparo que antes era de caracter privado e por isso inefficaz,
porque apesar de muito nobre, fragmentaria como se achava, não
podia satisfazer as grandes necessidades da vida agitadissima do
mundo contemporaneo, tende como todas as instituições modernas a
socializar-se, pela acção do Estado. Este em todos os paizes vai
93
deixando o seu papel restricto de orgão mantenedor da segurança
publica, da ordem juridica, para desenvolver cada vez mais sua missão
social. (Azevedo, op.cit., pp.97-98)
O Estado é chamado, conseqüentemente, a organizar a assistência dispersa
já existente na sociedade. É nesse sentido também que vai a proposta de Ataulpho de
Paiva. Para este autor, a assistência pública e privada em nosso país ainda se encontrava
num estado de confusão e anarquia. Caberia ao Estado organizar essa assistência. A
caridade privada deveria ser esclarecida pela beneficência pública, científica. Ao
resumir as considerações tiradas em vários congressos europeus sobre o problema da
assistência, Ataulpho de Paiva, ao mesmo tempo em que falava da penetração dessas
novas idéias na sociedade brasileira, através da imprensa, também criticava a falta de
medidas mais eficazes e duradouras no sentido de uma organização da assistência em
nosso país. Entre suas propostas estava a criação de um Ofício Geral de Assistência, que
viria justamente realizar essa tarefa organizativa.
O tempo todo está presente, nesse e em outros textos, a preocupação em
colocar que essa assistência pública científica e racional não se opõe à caridade já
existente, mas que, pelo contrário, vem organizá-lo de modo mais eficaz. É nesse
sentido que Ataulpho de Paiva coloca que o espírito de caridade já estava presente em
nossa sociedade, fazendo, contudo, a ressalva de que, sem a organização científica, sem
a orientação geral necessária, esse espírito caridoso se perderia na sua fragmentação:
O Brasil já se asseverou em outro logar, é a terra productiva e
fertilizante da philantropia e da caridade. (...)
94
(...) O culto da caridade em nosso paíz possue manifestações
grandiosas, immensuraveis. No sagrado interesse da indigencia, existe
sempre aqui uma somma infinita de nobres esforços, uma emulação
piedosa, uma dedicação corajosa. Todas as desgraças encontram um
apoio valioso e um amparo abnegado. Um simples appello á
generosidade da população faz brotar donativos opulentos. Os
socorros que, á discreção, prodigalizamos á orphandade, á pobreza e
ao infortunio não tem barreiras impostas nem limites traçados. Por
toda a parte espalham-se as casas de beneficiencia, os asylos, os
orphanatos, os estabelecimentos hospitalares, os dispensarios, as casas
pias, as associações religiosas, os socorros mutuos, as devoções, as
ordens e as irmandades (...)
Mas o reverso dessa situação não conduz, entretanto, a um circulo de
impressões tão lisonjeiras e agradaveis. É que, hoje, todo o mundo
deve estar farto de saber que, sem embargo do tradicional movimento
da nossa dedicação corajosa e permanente em materia de beneficios
caridosos, esse sentimento se exerce sem orientação coordenada, sem
composição e sem arranjo de especie alguma. Os trabalhos de
assistencia são executados em fragmentos, parcelladamente, sem o
rigor do methodo, sem a cooperação efficaz, sem a organização
intelligente dos auxilios reciprocos e dos resultados compensadores.
As manifestações compassivas dos nossos sentimentos de piedade e
de amor ahi estão simplesmente resumidos e estampados em
fundações grandiosas, mas isoladas e deploravelmente dispersas. Dahi
a insufficiencia dos esforços e a inefficacia dos recursos, phenomeno
aliás observado em todas as epochas e em todos os tempos. (Paiva,
op.cit., pp.112-114)
95
Para vencer a fragmentação das iniciativas privadas de auxílio e de
assistência é que se faz necessária, segundo este ponto de vista, a ação da assistência
pública. Para este discurso, o Estado moderno deve dar conta das questões sociais
através da organização dos vários ramos da assistência, que não atingirá apenas os
tradicionais desafortunados visados pela caridade privada, mas visará também todos
aqueles que, de uma maneira ou de outra, se enquadrem dentro da questão social:
crianças, velhos, estrangeiros, alienados, tuberculosos, trabalhadores, etc. Ataulpho de
Paiva se deterá na análise de cada um desses ramos da assistência, voltando a enfatizar a
necessidade da aliança entre assistência pública e assistência privada para o bom
andamento do novo sistema proposto. Seus textos terminam conclamando o poder
público a assumir, de modo definitivo, a tarefa de organizar esse ambicioso sistema de
assistência, que, partindo do Estado, organizaria de modo científico as instituições
privadas já existentes, no sentido de um funcionamento mais harmonioso e eficiente,
evitando, assim, a dispersão da caridade cega.
Acreditamos que, ao propor uma sistematização da assistência em geral que
harmonizasse os interesses da assistência pública e os da assistência privada, o autor
propunha uma nova estratégia institucional para dar conta das demandas sociais que se
colocavam nos grandes centros urbanos da época. A centralidade das novas instituições
para menores nesse contexto não é gratuita: a assistência à criança deveria ser um dos
pontos chaves dessa nova estratégia institucional, já que atingia uma clientela
potencialmente mais ampla – não nos esqueçamos de que loucos, trabalhadores, idosos
e todos os outros, antes de tudo, foram crianças.
O que vimos nos últimos itens é suficiente para indicar como um novo
discurso sobre a menoridade começa a se constituir a partir das discussões sobre uma
96
nova legislação e novas formas de institucionalização da infância e da adolescência.
Esse discurso, presente em artigos de jornais, conferências e livros, também se
articulará em torno da discussão de projetos de leis que visavam uma nova legislação
para o menor. É o que veremos a seguir.
97
IV.4. – A proposta de uma nova legislação:
Alcindo Guanabara e Mello Mattos
Na época presente não ha mais duvida de que,
perante a infancia e a adolescencia a lei, em geral, e
o direito penal, em particular, devem mudar os seus
criterios de julgamento (...)
Mello Mattos
Vimos anteriormente, de que modo os textos partiram de uma crítica ao
conceito de discernimento, colocaram uma nova proposta de justiça para menores,
tutelar e recuperadora, e articularam esse novo conceito de justiça a uma nova
assistência social, mais ampla, científica e racional.
Veremos agora como esses temas já se apresentavam também nas
discussões acerca de projetos de leis que tratavam também nas discussões acerca de
projetos de leis que tratavam de mudanças na legislação sobre a menoridade. Deteremos
nossa atenção em dois projetos que estão entre as principais iniciativas da época: os de
Alcindo Guanabara e de Mello Mattos.
Alcindo Guanabara, Senador pelo Distrito Federal, apresentou seu primeiro
projeto de assistência e proteção aos menores à Câmara dos Deputados em 31 de
outubro de 1906. Segundo o próprio autor29
, foram reconhecidos na época os méritos
29
Cf. Guanabara, Alcindo. Pela infância abandonada e delinquente no Districto Federal. Exposição de
motivos e projecto de lei. Apresentado ao Senado Federal na sessão de 21 de Agosto de 1917. Rio de
98
desse primeiro projeto pela Comissão de Justiça do Congresso que o examinou, tendo
sido rejeitado, porém, sob a alegação de que se aguardava a deliberação do Senado
sobre o Código Civil e a reforma do Código Penal, além do que o projeto implicava
grandes despesas:
Além disso, o projecto do nobre Deputado, por isso mesmo que visa
uma organização definitiva da assistencia à infância abandonada e
delinquente, consigna não pequena despeza, que a Commissão pensa
que deve ser adiada, desde que com menor dispendio se possa
organizar um serviço de assistencia, que vá satisfazendo as urgencias
do momento. Por isso, pensa que, approvado em primeira discussão,
deve o projecto n.328 do anno findo ser substituido em segunda pelo
que a Comissão offerece. (Apud Guanabara, 1917, p.7)
Ainda segundo Guanabara, a proposta da comissão que acabou sendo
aprovada, organizou um serviço de asilos para os dois sexos, sob a jurisdição dos juízos
de órfãos, onde seriam internados os menores abandonados até serem recolocados pelos
juízes. Tratava-se, ao que parece, de um serviço já existente, sob a administração do
chefe de polícia do Distrito Federal, e que a comissão entendia ser suficiente.
Em 21 de agosto de 1917, Alcindo Guanabara reapresentava seu projeto,
lamentando, na exposição de motivos, que o substitutivo aprovado no lugar de seu
projeto de 1906:
Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., 1917, 62p. Esse texto é interessante porque
nele o autor não apenas apresenta o seu projeto, mas também explicita suas idéias a respeito da questão da
infância abandonada e delinquente.
99
(...) em nada alterou os termos do problema, que subsiste tal qual era,
reclamando solução efficaz, que não mais póde ser adiada ou illudida,
sem sacrificios dos mais altos interesses moraes e sociaes.
(Guanabara, op.cit. p.8)
E em seguida alertava para a gravidade do problema da infância
abandonada:
A imprensa diaria, livros, opusculos, relatorios, conferencias,
congressos especiaes, todas as fórmas de manifestação da opinião
affirmam, repetem, consignam, registram depoimentos, factos e
estatisticas, que patenteiam, á toda a evidencia, que a infancia
abandonada, augmentada em numero pelo augmento da população,
continúa a viver na miseria mais affrontosa, viveiro de delinquentes,
sementeira da prostituição e do crime, que se avoluma e cresce
progressivamente, deante do Estado criminosamente indifferente, ou,
quando muito, reduzido á contingencia, triste, senão ridicula, de
reconhecer o mal immenso e de confessar uma impotencia para
reparal-o ou attenual-o, que não tem nenhuma justificativa, pois não
está somente no seu poder, como principalmente no seu dever, agir
para eliminal-a, substituindo-a pela acção energica e intelligente que
lhe compete. (Guanabara, op.cit., pp. 8-9)
Ao transcrever, em seguida, as palavras do então Ministro da Justiça, Carlos
Maximiliano, que pedia providências para o problema da infância desvalida, Paiva
apresentava também estatísticas sobre a criminalidade dos jovens para enfatizar a
100
necessidade de medidas definitivas para o problema, propondo assim que se superasse o
obstáculo orçamentário para tão urgente tarefa:
Não vale a pena, já agora, dissimular o pensamento: o que levou o
Congresso Nacional em 1907 a repellir o conjuncto de medidas
indispensaveis á organização efficaz da assistencia á infancia foi a
mesma força que agora levou o honrado Sr. Ministro da Justiça a
concluir contra as suas proprias premissas e a pedir providencias
insufficientes, mesmo quando o seu coração bem formado não se
resigna a transigir com a situação actual e o força a clamar: “Agora, é
demais!” É simplesmente o recúo deante das despezas que a
organização desse serviço póde reclamar. Andamos tão longe, estamos
tão arredios do verdadeiro caminho que o Estado deve trilhar para a
solução dos problemas verdadeiramente sociaes, estamos tão affeitos
ao preconceito de que a intervenção do Estado só é legítima nos
assumptos que convencionamos chamar politicos, que se nos afigura
abusiva a intervenção do Estado em todas as questões de assistencia; e
é só forçando a sua timidez e mal occultando o receio da critica ou da
censura doutrinaria ou theorica, que o Governo e o Congresso ousam
despender algumas migalhas naquillo em que, entretanto, a
collectividade, com todo o direito e com alguma impaciencia, reclama
que seja empregada a somma sufficiente para assegurar o seu bem
estar presente e a commodidade do seu futuro. (Guanabara, op.cit.,
pp.14-15)
101
Interessante notar nesta citação a necessidade de crítica a uma visão
totalmente liberal do Estado, na medida em que deve intervir na questão social e que
esta intervenção vem do apelo da própria sociedade.
Mas não só a sociedade tem direito a medidas que garantam a sua
segurança, como também o próprio indivíduo aparece na argumentação como tendo
direito à assistência:
Não sou eu decerto o primeiro que proclama que todo o homem na
sociedade tem o direito, não sómente de ser protegido contra as
offensas, mas ainda de não ser abandonado em caso de miseria; todo o
homem tem o direito de ser ajudado em caso de necessidade, de ter o
abrigo, o vestuario, a nutrição em caso de fome, o tratamento em caso
de molestia, o asylo em caso de decrepitude, a instrucção em caso de
ignorancia. Todo o cidadão deve ser socorrido pela collectividade de
que faz parte. Esse dever social decorre, naturalmente, do facto social.
O dever de existencia é um dever de justiça, que não ha legislação,
desta época, que desconheça ou repudie. (Guanabara, op.cit., pp.16-
17)
Ou seja, segundo essa argumentação, o Estado tem de proteger a sociedade
contra os perigos da miséria e auxiliar os indivíduos que caírem vítimas desse mal.
Além do mais, se o Estado não é cioso dos seus deveres, deve sê-lo em relação a seus
interesses: aqui Alcindo Guanabara recupera a argumentação já vista anteriormente, de
que o cuidado com a infância abandonada é também economicamente vantajoso:
102
Si esse é o dever social, si esse é o dever entre os homens e o dever do
Estado para com o cidadão, como desconhecel-o para com a infancia,
que renova e robustece a sociedade? Si fechardes o coração á piedade,
heis, ao menos, de abrir os olhos ao interesse, facilmente verificando o
prejuizo que todos os annos o abandono da infancia vos faz inscrever
na contabilidade do Estado, pelo numero de criminosos que se deve
sustentar, pelo numero de miseraveis que se deve manter, pelo numero
de vadios que se deve alimentar, pelo numero de prostitutas que
corrompem a sociedade e disseminam larga-manu a enfermidade
cruel, que a aniquilla. Podeis, ao mesmo tempo, apreciar em
algarismos o que deixaes de ganhar, avaliando o que produziria o
trabalho sadio e intelligente desses milhares de individuos que não
recebem senão o mal (...) Não nos detenhamos diante da consideração
verdadeiramente secundaria e subalterna do dinheiro a despender;
primeiro, porque positivamente, seja qual fôr o sacrificio que isso
represente, o nosso dever inilludivel é dependel-o, e, depois, porque,
se effectivamente, alguma despeza póde o Estado fazer, que lhe renda
cem por um, essa é uma dellas. Para justifical-a, senão para impôl-a,
associam-se o dever moral e o interesse social. (Guanabara, op.cit.,
pp.17-19)
Ao caracterizar seu projeto, o autor afirmava que não se tratava de algo
novo, consistindo, pelo contrário, em propostas já analisadas em outros países e que
eram consensuais, como a não-reclusão dos menores à prisão comum, a criação de
depósitos para menores com separação dos sexos, sendo os menores posteriormente
103
encaminhados de volta à família ou a escolas de prevenção ou reforma, conforme o
caso. Tudo formaria como que um sistema, perfeitamente articulado.
De novidade em relação à legislação brasileira, o autor colocava apenas a
criação do juízo privativo de menores:
Em relação, entretanto, ao estado actual da nossa legislação, contém
uma idéa nova, que não duvido qualificar como a sua idéa capital: a
creação do juizo privativo para a protecção, defesa, processo e
julgamento dos menores, com a consequente reforma do processo, que
não será escripto, das audiencias, que serão secretas, da prohibição da
imprensa de divulgar o que nellas occorrer e da faculdade conferida ao
juiz de proferir a sua decisão de consciência, sem se subordinar á
rigidez das regras do Codigo Penal. (Guanabara, op.cit., p.28)
Analisando o projeto de lei apresentado por Alcindo Guanabara,
percebemos que se tratava já de um projeto bem organizado de institucionalização da
infância abandonada e delinquente.
A nova clientela visada era definida nas disposições gerais:
Art.1º Todo menor, de qualquer dos sexos, em reconhecida situação de
abandono moral ou de máos tratos physicos, fica pela presente lei sob
a protecção da autoridade publica. (Guanabara, op.cit., p.45)
104
Em seguida eram definidas as condições de destituição do pátrio-poder.
Criavam-se instituições especiais como depósitos e escolas de prevenção que
recolheriam os menores. Nestas instituições seriam proibidos os castigos corporais:
Art.15. É expressamente prohibido na escola de prevenção o castigo
corporal, qualquer que seja a fórma que revista. (Guanabara, op.cit.
p.51)
Criava-se um juízo privativo para os menores:
Art.22. Fica creado no Districto Federal um juizo privativo para
protecção, defesa, processo e julgamento dos menores abandonados e
delinquentes. (Guanabara, op.cit., p.54)
Mas, como já mencionamos anteriormente, permanecia o discernimento:
Art.23. Não são criminosos:
1º , os menores de 12 annos completos.
2º, os maiores de 12 e menores de 17, que obrarem sem discernimento.
Art.24. Os maiores de 12 e menores de 17 annos que tiverem obrado
com discernimento serão recolhidos ás escolas de reforma creadas
pela presente lei, onde cumprirão a pena que lhes for imposta pelo juiz
a que se refere o art.22. (Guanabara, op.cit., pp.55-56)
Embora não se tratasse ainda de um projeto mais elaborado de um Código
Especial para os Menores, o projeto de Alcindo Guanabara estava plenamente de acordo
105
com o espírito de uma nova justiça para menores, tal como colocado pelos textos vistos
anteriormente. Apesar de manter certa ambigüidade em relação à questão do
discernimento, um dispositivo geral já estava esboçado.
O projeto de Alcindo Guanabara ficou sem continuidade com a morte de seu
autor. Parece ter sido, porém, uma das iniciativas mais importantes até então realizadas,
tanto que será a partir desse projeto que Mello Mattos começará a elaborar um
substitutivo, anos depois.
Mello Mattos, advogado criminalista, promotor público, deputado federal e
catedrático da Universidade do Rio de Janeiro, foi o principal arquiteto da nova justiça
para menores que então se consolidava. Casado, mas sem filhos, derrotado na sua
tentativa de eleição para o Senado Federal, quando então abandonou a política, Mattos
parece ter dedicado seus maiores esforços à “causa” da infância abandonada e
delinquente, tendo sido diretor do Lyceu Pedro II, do Instituto Benjamin Constant de
meninos cegos, e nomeado Juiz de Menores em 1924. Seu discurso é o que mais
claramente define a nova estratégia institucional colocada para a menoridade.
Após sua nomeação como Juiz de Menores, Mello Mattos começou a
trabalhar no sentido da criação de um “Código dos Menores”. Baseado em sua
experiência nesse juizado, Mattos apresentou, em 1925, um projeto ao Senado Federal,
visando medidas legislativas que complementassem a ação do Juízo de Menores30
. Esse
projeto já tinha por objetivo, estabelecer um Código dos Menores, uma ampla legislação
para dar conta das várias questões relativas à menoridade.
Na justificativa desse projeto, Mello Mattos afirmava que as leis até então
existentes para a proteção e assistência aos menores de 18 anos, abandonados ou
30
Projeto n.12 – 1925, que estabelecia medidas complementares das leis de assistência e de proteção aos
menores de 18 anos e instituía um Código de Menores.
106
delinqüentes, necessitavam de uma série de complementos. Eram necessárias, segundo
o autor, medidas protetoras das crianças de primeira idade, dos enjeitados (propunha o
fim das Rodas), dos vadios, uma legislação que definisse com precisão a questão da
tutoria, das penas indeterminadas aplicáveis aos menores, da regulamentação do
trabalho infantil, das instituições de preservação e reforma, etc.31
. Seu projeto visava
justamente equacionar todas essas questões, estabelecendo um Código geral que tratasse
dessas matérias.
Aprovado esse projeto, o Presidente Washington Luis confiou a confecção
do novo Código de Menores a Mello Mattos, sendo aprovado e convertido no decreto
n.17.943A de 12 de outubro de 192732
.
Numa edição comentada desse Código, Mello Mattos sintetizava a nova
estratégia institucional em relação à infância e adolescência que a nova legislação
consolidava, retomando os vários temas já vistos anteriormente em outros discursos da
época.
Para Mello Mattos, a legislação sobre a menoridade que então se instituía
implicava uma nova forma de articulação entre assistência pública e privada:
As leis relativas á assistencia e proteção aos menores abandonados e
delinquentes empregam o vocabulo “assistencia” em um sentido
completamente novo entre nós!
A assistencia social, em nosso paiz como nos demais, originou-se do
exercicio da caridade, virtude privada, cujo funccionamento era
31
Sobre algumas discussões desse projeto, consultar: Rio de Janeiro. Congresso Nacional. Annaes do
Senado Federal. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. 1931. v. III, V, VI, VIII, IX e X. 32
Para uma edição completa desse decreto, consultar: Rio de Janeiro. Actos do Poder Executivo.
Collecção das Leis da Republica dos Estados Unidos do Brasil de 1927. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional. 1928. v.II, pp.476-524.
107
assegurado por associações religiosas ou leigas, cujos recursos
provinham das liberalidades dos particulares. Entendia-se que o
Estado não tinha a obrigação de assistir aos desgraçados, aos que
soffrem de qualquer das multiplas fórmas da miseria ou da doença.
Actualmente, porém, e já desde algum tempo, está reconhecido e
consagrado em leis dos paizes mais cultos, que é do poder geral do
Estado dar uma assistencia aos doentes e necessitados, mediante
organização administrativa, cuja extensão e aplicação serão
determinadas em lei. O termo Assistencia Publica é empregado, desde
então, em opposição a Beneficiencia Privada; mas uma não dispensa a
outra. Não póde o Estado assumir, por si só, os encargos da assistencia
social; cabe-lhe fundar e manter os institutos mais urgentes e typicos,
deixando o socorro do maior numero de necessitados á iniciativa
privada individual ou collectiva, auxiliando todavia os esforços desta.
(Mattos, 1929, p.III)
A questão da assistência, para Mattos, deixava, assim, de ser exclusividade
da virtude privada, passando a ser também dever do Estado. Não se trata de opor
assistência pública à beneficência privada, mas sim de articulá-las no sentido de uma
melhor eficiência.
Mattos coloca também que essa assistência, além de se tornar atributo do
Estado, também alargava seu campo de atuação:
O mais notavel, porém, é que a extensão da assistencia publica, no
estrangeiro como agora no Brasil, vae além de dar auxilio aos
enfermos em geral, e, em particular, aos alienados, cegos, surdos-
108
mudos, engeitados e velhos desvalidos: comprehende tambem os
menores abandonados material ou moralmente e os jovens
delinquentes, variando, entretanto, nos diferentes paizes a idade
maxima para essa assistencia.
Os menores assistidos já não são unicamente os expostos, filhos de
paes incognitos lançados á roda; são tambem, os materialmente
abandonados, que nascidos de paes e mães conhecidos, e a principio
creados e mantidos por suas familias, são depois largados ao
desamparo, sem que se saiba o que foi feito dos seus responsaveis
legaes; e da mesma fórma, os moralmente abandonados, que,
convivendo com seus paes ou outros responsaveis, soffrem
habitualmente maus tratos ou castigos immoderados ou recebem maus
exemplos delles, ou que estes, por circumstancias dependentes ou não
de sua vontade, deixam em estado habitual de vagabundagem,
mendicidade, prostituição ou criminalidade. (Mattos, op.cit., p.IV)
Em relação às antigas formas de institucionalização, como a já citada Roda
dos Expostos, o autor afirmava que a assistência ampliava seu raio de atuação para os
também moralmente abandonados, ou seja, a assistência se expandia, ao menos
potencialmente, para todos os menores dentro da sociedade. Não só se expandia nesse
sentido como também passava a começar desde o nascimento, e mesmo antes dele,
alongando-se por todo o desenvolvimento do menor:
Mas, esse magno problema social da assistencia e protecção aos
menores é tão complexo, abrange tantas modalidades, que, para ter
solução efficaz, cumpre começar pela assistencia maternal, soccorros
109
da gravidez, refugios operarios de mulheres gravidas, maternidades
secretas, asylos de convalescencia, recolhimentos infantis, soccorros
de lactação, crèches, postos de consulta para lactantes, hospitais
infantis; e outros meios tendentes a evitar a mortalidade na primeira
idade e os maleficios contra a primeira infancia.
Segue-se então, a protecção da creança abandonada, desde o limiar do
asylo, que a recolhe, até á sua maioridade, acompanhando-a em todas
as phases do seu desenvolvimento e educação, amparando-a nas
difficuldades, nos perigos ou accidentes de sua vida, acudindo aos
maltratados, preservando dos maus contagios os innocentes,
arrancando do vicio e do crime os pervertidos. (Mattos, op.cit., p.V)
Interessante notar que nesta citação, Mello Mattos descreve todo o alcance
do novo projeto de institucionalização da menoridade, associando-o, em seguida, a um
novo tipo de tratamento recuperador e racional:
Como remate da assistencia social moderna vem o tratamento
racional, educativo e reformador, dos menores delinquentes, de cuja
acção punivel, póde-se dizer, a sociedade é para elles mais culpada do
que elles o são para com a sociedade. A delinquencia, o vicio, a
miseria não procedem tanto de aberrações e degenerações individuaes
como de aberrações e degenerações sociaes. Suas faltas, na maioria
das quaes elles são antes as victimas do que os auctores responsaveis,
correm principalmente por conta das influencias do meio social, da
negligencia dos paes, tutores ou guardas, da falta de vigilancia destes,
dos maus exemplos que lhes dão. (Mattos, op.cit., p.VI)
110
Concluindo que a própria justiça, a partir de então, deverá mudar seu rosto
frente ao menor:
Na época presente não ha mais duvida de que, perante a infancia e a
adolescencia a lei, em geral, e o direito penal, em particular, devem
mudar os seus criterios de julgamento, estabelecer secções especiaes,
modificar o processo, a composição do tribunal, as cerimonias da
audiencia, o recrutamento dos magistrados, porque esses jovens seres,
ainda incompletamente formados, instinctivos antes que conscientes,
amoraes antes que immoraes, têm necessidade de serem tratados por
methodos especiaes e por especialistas, como acertadamente opinam
abalisados escriptores. (Mattos, op.cit., pp.VI, VII)
O Código é o ponto de chegada do novo projeto de institucionalização da
menoridade, explicitado pelo texto de Mello Mattos, e que foi se constituindo ao longo
das transformações discursivas estudadas nos itens anteriores. Já estamos, assim, longe
de dispositivos legais tais como o discernimento. Um novo dispositivo legal e
institucional já está plenamente conceituado.
111
IV.5. – Moncorvo Filho e a “Cruzada pela Infância”:
E nenhuma cruzada teremos maior empenho em
levar por deante que a nossa defeza nacional pelo
amparo da infância.
Moncorvo Filho
Estudamos, até aqui, textos de juristas sobre a questão da infância
abandonada e delinqüente. A construção do menor como categoria jurídica e
institucional, porém, parece ter sido uma empreitada eminentemente multidisciplinar.
Evaristo de Moraes, por exemplo, na segunda edição do seu já citado livro
sobre a criminalidade da infância e da adolescência, dedica seu trabalho a três homens
que teriam contribuído para a causa da preservação da infância e adolescência:
À memória do educador Franco Vaz, a quem tanto deve a obra
patriótica e humanitaria da preservação da infancia e da adolescencia.
Ao pediatra Dr. Moncorvo Filho, que tamanhos esforços vem fazendo,
desde muito, para prevenir os males de que tratamos neste livro.
Ao jurista e magistrado Dr. Mello Mattos, que, ultimamente, tamanho
empenho tem posto na realisação dos nossos ideaes, quanto aos
menores abandonados e delinquentes.
(Moraes, op.cit., p.5)
112
Fica evidente o interesse pelas questões por nós discutidas até aqui, não só
por parte de juristas da época, como também por parte de educadores, médicos e
filantropos em geral. Tomemos, a título de exemplo, o discurso de Moncorvo Filho33
.
Alguns estudos já trabalharam a constituição da medicina higiênica no
Brasil e suas relações com determinadas estratégias de poder34
. A afinidade entre
práticas médicas e jurídicas na manutenção da ordem social, porém, foi especialmente
ressaltada por Corrêa (1982a, 1982b). Ao estudar as relações entre antropologia e
medicina legal no Brasil, essa autora mostrou de que modo o interesse dos médicos
legistas pela questão da identificação, durante a década de trinta, levou à transformação
de “crianças” em “menores”. Essa relação entre discurso médico e discurso jurídico e o
processo de “menorização” da infância, estudada por Corrêa, já pode se encontrada no
processo de constituição do Código de Menores de 1927. A análise dos textos de
Moncorvo Filho torna explicíto esse fato.
O médico Moncorvo Filho dedicou-se exaustivamente à causa da infância
nas primeiras décadas do século. Fundador do “Instituto de Protecção e Assistencia à
33
Tanto os textos dos educadores como os dos médicos da época sobre a infância mereceriam estudos
detalhados à parte. Trabalhamos aqui com os textos de Moncorvo Filho, uma vez que esse autor é
frequentemente citado por aqueles que, na época, discutiam a nova legislação para menores. Queremos
ressaltar, com isso,a interdisciplinaridade da nova estratégia institucional que então se constituía. Franco
Vaz, citado por Evaristo de Moraes, foi diretor da Escola 15 de Novembro para menores abandonados.
Mencionado em vários textos como um grandes defensores da causa da infância no início do século,
escreveu trabalhos e artigos de jornais sobre o problema da infância desprotegida. 34
Machado (1978) estudou como a medicina higiênica se constituiu no Brasil, durante o século XIX,
como um novo dispositivo de poder, diferenciando-se da medicina do período colonial; Gonçalves
(op.cit.) faz algumas colocações sobre o discurso médico-higienista em relação às Rodas; Costa (1979)
estudou a “normalização” da elite familiar burguesa, no Brasil do século XIX, pelas novas técnicas
disciplinares aplicadas pela medicina higiênica; Engel (1989) estudou o papel do saber médico na
normatização da prostituição na cidade do Rio de Janeiro entre 1840 e 1890. Rago (1985) estudou a
participação dos médicos higienistas na moralização do proletariado urbano durante a Primeira República,
principalmente no sentido da redefinição do papel da mulher e da criança dentro da família. Essa autora
mostra que a preocupação médica com a infância começa a despontar no Brasil em meados do século
XIX, intensificando-se nas primeiras décadas do século XX. A preservação das crianças aparece então
como objeto privilegiado de convergência das práticas do poder médico, que passa a visar três problemas
principais: as elevadas taxas de mortalidade infantil, o problema do menor abandonado e a medicalização
da família. Rago cita a participação destacada de Moncorvo Filho e de sua puericultura na abordagem
dessas questões. Voltaremos a discutir esse trabalho no próximo capítulo.
113
Infancia do Rio de Janeiro”, em 1899, e do “Departamento da Creança no Brasil”, em
1919, desenvolveu uma série de atividades visando o desenvolvimento físico, moral e
social da criança brasileira, escrevendo artigos sobre mortalidade infantil, assistência à
infância, amamentação, etc., assim como elaborou projetos de lei visando a proteção da
infância da primeira idade, a regulamentação das amas de leite e a inspeção sanitária
escolar.
No prefácio de seu livro Historico da Protecção à Infancia no Brasil: 1500-
192235
, Moncorvo Filho é apresentado por Esmeraldino Bandeira, nos seguintes termos:
Creio externar um conceito de todas as consciencias cultas affirmando
que dos nossos homens de sciencia nenhum já se informou melhor do
que o Dr. Moncorvo Filho sobre o problema da infancia, assim em seu
conjuncto como em seus pormenores; em sua estructura como em suas
affinidades.
Ninguem ha que lhe pronunciado o nome não evoque de par o do mais
abnegado amigo da creança no Brasil; e ninguem ha que tratando da
creança não lhe evoque simultaneamente o nome. (...)
Há 30 annos corridos que o illustre Autor vem estudando a situação da
creança em seus multiplos aspectos, encarando-a principalmente pelo
lado da saúde, da psychologia e da educação, com o intuito, como elle
proprio o declara, de poder collaborar na grande obra de eugenia do
nosso povo.
35
Moncorvo Filho, Arthur. Histórico da Protecção à Infancia no Brasil, 1500-1922. Rio de Janeiro,
Empreza Graphica Editora, 1926.383p. Trata-se de um texto bastante interessante e rico em informações
no qual o autor pretende traçar um amplo panorama histórico do tratamento à infância no Brasil, desde os
antigos depósitos para expostos até as novas instituições que surgiam no início do século XX. Grande
parte do trabalho é dedicada às iniciativas do próprio autor no sentido de desenvolver a puericultura e a
higiene infantil no país.
114
Tão extenso e tão complexo é o problema da infancia que só um
estudo em annos assim numerosos, e não observações e experiencias
fragmentarias e apressadas, poderá colligir os elementos necessarios á
respectiva solução, que apresenta um caracter triplo: – médico,
jurídico e social. (Moncorvo Filho, 1926, pp.XXVII e XXVIII)
Moncorvo Filho tinha como clara essa interligação entre práticas médicas,
jurídicas e assistenciais na questão da proteção à infância. Seus textos se preocupavam
não apenas com a puericultura, mas também com as instituições de assistência e de
proteção da infância e a legislação sobre a menoridade. No seu discurso, o problema da
saúde infantil estava intimamente ligado com a questão moral, institucional e legal que
envolvia as crianças. O que estava em jogo na infância era a própria “questão social” e,
consequentemente, a saúde da própria sociedade. Para esse autor, os grandes problemas
da proteção à infância no Brasil eram a ausência de estabelecimentos especiais e de uma
legislação adequada para a infância.
Ao fazer o histórico da proteção à infância no Brasil, Moncorvo Filho
criticava antigas instituições de amparo à infância, como a Roda, que se caracterizavam
por altos índices de mortalidade.
Sobre os asilos para crianças, existentes no Rio de Janeiro na passagem do
século, afirmava:
Quanto aos Recolhimentos desta ou daquella natureza, eram uma
lastima. Elles guardavam a tradição do maior anachronismo,
insensíveis ante o hodierno progresso.
115
Ora, o “asylo”, tal qual o concebiam os antigos, era uma casa na qual
encafurnavam dezenas de creanças de 7 a 8 annos em diante nem
sempre livres de uma promiscuidade prejudicial, educadas no
carrancismo de uma instrucção quasi exclusivamente religiosa,
vivendo sem o menor preceito de hygiene, muitas vezes atrophiadas
pela falta de ar e de luz sufficientes, via de regra pessimamente
alimentadas, sujeitas, não raro, á qualquer leve falta, a castigos
barbaros dos quaes o mais suave era o supplicio da fôme e da sêde,
aberrando, pois, tudo isso dos principios scientificos e sociaes que
devem presidir a manutenção das casas de caridade, recolhimentos,
patronatos, orphanatos, etc., sendo, conseguintemente os asylos nessas
condições instituições condemnaveis. (Moncorvo Filho, op.cit.,
pp.133-134)
Para Moncorvo, a assistência particular que existia no Brasil tentava suprir a
ausência do Estado na proteção e assistência à infância. A quase inexistência de uma
legislação adequada para dar conta desse problema, era um dos indícios do descaso do
Estado para com a assistência às crianças. Daí o autor ressaltar também a necessidade
de uma ação conjunta da iniciativa particular e do poder público para realizar o amparo
à infância.
Acompanhando mais detidamente um de seus textos, podemos analisar
melhor sua argumentação. No discurso apresentado à Academia Nacional de Medicina,
em 5 de junho de 1919, quando de sua posse como membro honorário, Moncorvo Filho
faz uma breve exposição do que chama de movimento em prol da infância em nosso
116
país36
. Esclarecendo que pretendia fazer uma narrativa dos fatos por ele estudados em
relação à infância, baseado em suas próprias investigações, e apoiando-se em dados
estatísticos, ao invés de um discurso meramente retórico, Moncorvo, logo de saída,
critica a desorganização da assistência pública no país:
É por demais conhecido quão defeituosa e insufficiente se depara
nest’hora a nossa estructura social.
Sabem-n’o todos tambem que maior não podia ser a nossa
desorganização administrativa no sentido da Assistencia Publica e a
recente epidemia de grippe deixou aos olhos dos mais inexpertos a
nossa dolorosa situação nesse ponto de vista. (...)
Tudo está em que até hoje ainda é uma mytho entre nós a verdadeira
organização da Assistencia Publica. Falta-nos o impulso decisivo a
animar um Homem de Estado que queira immortalizar o seu nome,
ligando-se a esse emprehendimento, o mais premente da actualidade.
(...) (Moncorvo Filho, 1919, p.6)
Cita, em seguida, o texto já visto de Ataulpho de Paiva, sobre a necessidade
de uma sistematização dos serviços de assistência pública.
Para Moncorvo, apesar dessa ausência de interesse por parte do Estado para
com a assistência pública, a “questão social” já havia sensibilizado a sociedade
brasileira, e a causa da infância passava também a ser um problema essencial:
36
Moncorvo Filho, Arthur. A cruzada pela infancia. Rio de Janeiro, Typ. Besnard Frères, 1919. 33p.
Neste trabalho, Moncorvo faz um pequeno resumo de suas principais idéias.
117
A santa causa da creança entrou positivamente nas cogitações dos
estadistas e de todos que, em nossa Patria, têm uma parcela de
responsabilidade. (...)
A protecção á infancia é um dever patriotico, uma obrigação nacional,
e não foi de outra sórte pensado, que me propuz, com todas as minhas
energias, numa avidez bem compreensivel nos apaixonados pelas
causas dessa ordem, a contribuir com o que melhor o pudessem, para
resolver o grave e palpitante problema. (...)
Por motivo que ignoro, a questão social da infancia, porém, bem
pouco tem attrahido os nossos confrades e foi isto que me animou a
tomar sobre os hombros essa espinhosa empreitada, da qual,
incontestavelmente, todos devemos cuidar com o mais carinhoso
apreço. (...) (Moncorvo, op.cit., p.8)
Apesar de uma certa ambigüidade que pode ser lida no texto, pois, ao
mesmo tempo em que afirma que a questão social desperta interesses cada vez maiores
no Brasil, e que a proteção à infância é um dos pontos centrais dessa mesma questão
social, coloca também a falta de interesse por essa mesma causa da infância e,
consequentemente, pela própria questão social, Moncorvo quer enfatizar a necessidade
do Estado assumir, juntamente com as iniciativas particulares já existentes, entre as
quais ele próprio se inclui, a tarefa da proteção à infância. Por isso reclama da carência
de leis específicas para essa proteção.
Em seguida, o autor deixa de lado as questões relativas à infância
moralmente abandonada e delinqüente, que ficaria a cargo do direito, para relatar seu
campo próprio de atuação, a puericultura, descrevendo suas iniciativas, como o já citado
118
“Instituto de Protecção e Assistencia á Infancia do Rio de Janeiro”, e problemas como o
do aleitamento infantil e o das altas taxas de mortalidade37
.
No final do seu discurso, no entanto, volta a enfatizar uma ação conjunta
para a resolução do problema da infância, uma autêntica “Cruzada pela Infância”:
E nenhuma cruzada teremos maior empenho em levar por deante que a
da nossa defeza nacional pelo amparo da infancia.
Quanto ha nesse sentido a respigar, quando volvemos os olhos para
nossa nupcialidade, com todo o cortejo das questões que á ella se
prendem como as heranças morbidas, o flagello da tuberculose, da
avaria e do ethylismo, etc.; para a cifra da natalidade brasileira, tão
discordante de um extremo a outro do paiz e tão fraca em relação á
nossa capital, lembrando-nos os effeitos daquelles flagellos da
humanidade, a falta de leis de protecçào á mulher e á creança, a
ilegitimidade das uniões, a miseria, o abôrto criminoso e tantos outros
factores; para esse terrível phantasma das sociedades modernas que é
a mortalidade infantil e a mortinatalidade, qualquer das duas, um
verdadeiro entrave ao progresso do paiz; para a morbidade, que tão
calcada é nos primeiros tempos da vida, sobretudo na rubrica das
doenças do apparelho digestivo, cujo coefficiente é espantoso; para a
delinquencia infantil; o abandono moral; os castigos, crueldades e
crimes commettidos contra a indefesa infancia e tantos outros
assumptos, dos quaes bem poucos cogitam em nosso meio, sempre
cruelmente torturados pela preocupação de uma política que não deixa
37
Moncorvo Filho, ao discutir o problema da mortalidade infantil, repete o argumento, já visto em outros
textos, sobre o valor econômico da infância para o Estado, e a conseqüente perda de riquezas da nação
com a falta de cuidados para com a infância.
119
uma restia de luz que nos illumine, que nos priva da salutar bafagem
de que carecemos para fugir á essa deploravel inercia e inconsciente
estagnação em que nos achamos, assistindo todos os paizes adiantados
caminharem a passos agigantados.
Somos um paiz por si proprio grandioso e não temos até hoje o menor
esboço de uma organização de Assistencia Publica.
A sórte da infancia, essa então está, póde-se dizer, ao Deus dará!
(Moncorvo, op.cit., pp.28-29)
O problema da infância envolve, assim, a questão da natalidade, da
mortalidade infantil, da falta de leis referentes às mulheres e às crianças, dos
casamentos ilegítimos, do aborto, do abandono moral, da delinqüência infantil, dos
castigos físicos, etc. E, contra todos esse problemas é que deve ser voltar uma cruzada
pela infância, que, segundo o autor, deve ser levada adiante por um grupo de
filantropos:
(...) não é obra para um homem e sim para um nucleo de philantropos
e de scientistas como os de uma egregia agremiação deste quilate,
amparada por governos intelligentes e activos. (Moncorvo Filho,
op.cit., p.32)
A agremiação a que Moncorvo se referia era a Academia Nacional de
Medicina, local onde proferiu o discurso em questão, mas o apelo à cruzada pela
infância não se restringia a seus membros, envolvendo também cientistas e filantropos
em geral.
120
Assim, embora não possamos fazer aqui um estudo mais aprofundado sobre
o discurso médico acerca da infância38
, fica claro que os discursos que se consolidavam
em torno das questões da proteção e da assistência à infância e à adolescência
provinham de campos diversos. Há um entrelaçamento freqüente entre noções médicas,
morais e jurídicas. É nesse sentido que Moncorvo Filho afirma que uma boa moral é a
melhor higiene do corpo; Ataulpho de Paiva fala em terapêutica penal, em profilaxia e
higiene moral, e coloca a assistência pública como higiene moral e social,
simultaneamente; Mineiro descreve o juiz de menores como sendo ao mesmo tempo um
tutor e um médico, que não vai ao tribunal para punir um culpado, mas para fazer um
diagnóstico e dirigir um tratamento. E, em Noé Azevedo, medicina e justiça se
interpenetram totalmente, tanto que o criminoso é entendido como um doente que
precisa ser tratado, e o juiz, como o médico que deve tratá-lo. E, nas citações abaixo, ao
definir a eugenia, Azevedo utiliza metáforas biológicas e, ao mesmo tempo, morais:
Os alicerces da sociedade futura, sadia e honesta, serão fundadas por
uma sciencia mais nova ainda que a criminologia, porém de tão
amplos e alevantados ideaes que, alguem ja o disse, mais parece
religião do que sciencia: é a eugenia. O bom nascimento, a geração em
estado hygido (...) é a condição primordial para a realização da justiça
que no meu entender não é mais que o equilibrio ou a harmonia das
forças sociaes. (...)
38
Costa (Cf. op.cit.), ao estudar a normatização da família burguesa brasileira do século XIX, mostra
como esse processo levou à criação de novos papéis familiares, novas categorias disciplinares, entre elas a
“criança normatizada”: com a apropriação médica da infância, a criança passa a ser vista como a matriz
do futuro adulto normatizado. Seria interessante, seguindo esse raciocínio, estudar paralelamente as
práticas médicas que objetivaram a criança como matriz do futuro adulto trabalhador, e as práticas
jurídicas que objetivaram o menor como matriz do futuro delinqüente. Ambas as figuras podem ser vistas,
assim, como integrando uma mesma estratégia disciplinar.
121
De modo que num meio tal o problema da recondução do menor
faltoso ao caminho da honestidade torna-se difficillimo. Não se
consegue separal-o do grande desideratum da regeneração da
sociedade inteira. Emquanto esta não se mostrar limpa dos vícios ou
defeitos, ha de ser um ambiente impuro, ha de necessariamente
concorrer para a perniciosa educação das novas gerações. Mas como
obter a regeneração social sinão formando desde o berço uma gente,
que cresça e se eduque alimentada pela seiva pura de novos ideaes?
(Azevedo, op.cit., pp.85, 95)
Por isso, com a consolidação do novo projeto visando a menoridade, a ação
do juiz de menores, agente privilegiado da causa da infância e da adolescência, será
definida como uma ação essencialmente multidisciplinar, devendo ser auxiliado,
segundo a própria lei, por outros especialistas:
O papel do juiz de menores é muito mais difficil e delicado que o dos
juizes communs. Para julgar convenientemente um menor, opinam os
tratadistas, é preciso possuir um conjuncto de conhecimentos
juridicos, psychologicos, psychiatricos, sociologicos, pedagogicos,
raramente encontrados e reunidos em um só e mesmo homem.
Felizmente, com grande sabedoria, a nossa lei, para resolver essa
contingencia, instituiu, como auxiliares do juiz, um medico psychiatra
e um pedagogo, de cujos serviços se infere a indiscutivel valia.
(Mineiro, op.cit., p.376)
122
O Código de 1927 realmente definiu, na sua parte especial, um espaço de
atuação do médico psiquiatra no juízo de menores, ao qual caberia realizar uma
inspeção médica capaz de contribuir para o conhecimento do menor e para seu
encaminhamento. Fica, assim, clara a inter-relação entre práticas médicas e jurídicas na
definição do menor como objeto institucional39
.
Vejamos, no próximo item, de que modo o Código de Menores pode ser
visto como a cristalização de todas as transformações discursivas estudadas até aqui.
39
Mineiro cita uma interessante discussão sobre emenda apresentada ao Senado Federal por Mello Mattos
e pelo médico psiquiatra Martim Francisco Bueno de Andrade Filho, que criava um “Instituto Medico-
Psychologo Infantil”. Na justificativa dessa emenda, os autores afirmavam que o exame médico, físico e
mental dos menores delinqüentes e abandonados era o ponto de partida das medidas a serem aplicadas
pelo juiz de menores. Ao médico caberia não apenas reconhecer as anomalias, mas também desvendar
suas causas e os remédios a serem utilizados, remédios apenas físicos ou também disciplinares e
pedagógicos. A ele caberia distinguir os normais ou anormais, e entre os anormais, diria quais seriam
recuperáveis e quais seriam irrecuperáveis. Ajudariam também na orientação do ensino profissional
através do conhecimento prévio das aptidões de cada menor, o que permitiria o encaminhamento para a
profissão adequada. (Cf. Mineiro, op.cit., pp.416-423) Fica clara, assim, a participação essencial do
médico como peça chave do novo projeto institucional: ele ajudaria no diagnóstico das causas do
abandono ou da delinqüência, indicaria aqueles que seriam recuperáveis e os encaminharia para o
trabalho apropriado. Da definição da carência à reeducação pelo trabalho, o menor estaria acompanhado
na sua trajetória institucional o tempo todo pelo médico. Sem dúvida, higiene do corpo e da alma.
Segundo Fausto (1984, p.98), o Código Penal de 1890 já havia aberto caminho para a introdução do saber
médico na prática penal, ao isentar de responsabilidade os que se achassem em estado de completa
privação dos sentidos e da inteligência na ocasião do crime. Fausto afirma, contudo, que esse dispostivo
era promíscuo, ao não distinguir as fronteiras entre a perturbação transitória da razão e perturbações
permanentes ligadas a doenças mentais. O Código de Menores é, portanto, apenas um dos muitos
momentos de convergência entre as práticas médicas e as jurídicas.
123
IV.6. – O Código de Menores e a estruturação da
prática institucional referente ao menor
Art.1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado
ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de
idade, será submettido pela autoridade competente
ás medidas de asssistencia e protecção contidas neste
Codigo.
Codigo dos Menores de 1927
Pudemos acompanhar, analisando os textos que discutiam a necessidade de
uma nova justiça especial para menores no Brasil, a maneira como um novo projeto
institucional, visando a infância e adolescência, foi se constituindo. Para que esse
projeto se concretizasse, porém, era necessário um mecanismo capaz de estruturar, de
modo global, as novas práticas referentes à menoridade. Esse mecanismo é o Código de
Menores de 1927. Resultado de toda a discussão, levada a cabo durante o início do
século, sobre os problemas ligados à infância e adolescência abandonadas ou
delinqüentes, essa lei sintetizará o novo projeto institucional que então emergia. Para a
análise desse Código, no entanto, faz-se necessária a explicitação de alguns conceitos
interpretativos que tomamos emprestado dos trabalhos de Albuquerque (1978). Esse
autor, ao estudar o processo de institucionalização em suas determinações específicas,
elaborou uma série de conceitos apropriados à análise institucional. Assim,
124
Albuquerque define em seu trabalho alguns elementos estruturantes das práticas
institucionais. Resumidamente, e tentando aplicar esses conceitos ao nosso objeto de
estudo, podemos distinguir os seguintes elementos de análise:
a) O mandato institucional
Segundo Albuquerque, uma instituição deve a legitimidade de sua atuação a
um ator individual ou coletivo em nome de quem ela age.
Em nosso caso, é o Estado que passa a ser o mandatário das instituições que
visam os menores, pois, como vimos anteriormente, a tarefa da assistência, embora
ainda possa contar com a assistência privada, torna-se também atributo do Estado, que
passa a dirigir e centralizar toda a institucionalização da infância e da adolescência.
b) Definição da clientela
A posição da clientela no processo institucional é ocupada por aqueles que
são institucionalizados diretamente, no presente caso, os menores. Mas, com o Código
de 1927, sob essa categoria “menor”, passa a ser visado um número muito maior de
indivíduos, ou seja, a clientela se expande significativamente em relação às antigas
formas de institucionalização da infância abandonada e delinqüente. Segundo Mello
Mattos, a assistência pública não se dirigirá mais apenas aos expostos, mas também a
todos os menores material ou moralmente abandonados. Com isso, qualquer indivíduo
que ainda não tenha atingido a maioridade passa a ser alvo dessa nova estratégia
institucional, ao menos potencialmente.
c) O objeto institucional
Toda clientela é definida como carente de algo que a instituição pode
prover. O objeto institucional é aquilo de que a clientela carece e de cuja propriedade a
instituição reivindica o monopólio e a legitimidade:
125
Definir-se como instituição é, portanto, apropriar-se de um objeto.
Nesses termos, o objeto institucional não pode ser um objeto material,
como os recursos de uma organização, mas imaterial, impalpável, e o
processo de apropriação desse objeto é permanente, como processo de
desapropriação dos indivíduos ou de outras instituições, no que
concerne ao objeto em questão. (Albuquerque, op.cit., p.70)
Com o Código de 1927 o objeto institucional passa a ser amplo e totalmente
abstrato, como requer o processo institucional: passa a ser a proteção da vida, da saúde e
da moralidade dos menores. Esse objeto institucional, ou melhor, sua carência por parte
dos menores abandonados ou delinqüentes e sua apropriação pelas instituições, é que
definirá a relação básica que se constitui no processo que ora estudamos, a relação de
tutela do Estado em relação a esse segmento da população.
d) Âmbito institucional
Trata-se aqui do conjunto de relações sociais sobre as quais recai a ação
institucional e que sustentam o objeto institucional. Esse âmbito é definido também em
relação às outras instituições que disputam o mesmo campo de atuação.
Com a nova definição de assistência pública colocada pelo Código de 1927,
o Estado, graças à nova definição do objeto institucional, ao mesmo tempo em que
aumenta o seu raio de ação em relação à institucionalização da menoridade, restringe o
campo das instituições privadas – subordinadas ao Estado – e da própria família.
Se o Código de 1927 cristaliza um novo mecanismo de institucionalização
da infância, como pretendemos demonstrar aqui, devemos ser capazes de distinguir os
elementos estruturantes das práticas institucionais, anteriormente descritos, em seu
126
texto. Acompanhemos, assim, ao longo do Código, como se estruturam esses
elementos40
.
Com o Código de Menores, como já dissemos, o Estado passa a ser o
mandante institucional das instituições de assistência e proteção aos menores:
“DECRETO N.17.943 A – de 12 de outubro de 1927.
Consolida as leis de Assistência e Protecção aos menores.
O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, usando a
autorização constante no artigo 1º do decreto n.5083, de 1 de
dezembro de 1926, resolve consolidar as leis de assistencia e
protecção aos menores, as quaes ficam constituindo o Codigo de
Menores, no têor seguinte: (...)”
Com essa legislação, também o Estado unificava as leis e regulamentos
referentes à primeira infância, aos expostos, aos abandonados e delinqüentes, além de
disciplinar e de centralizar as atribuições e funções dos diversos órgãos administrativos
e judiciários que davam conta dessa questão até aquele momento. Embora em relação à
menoridade ainda permanecessem matérias pertinentes ao Código Civil e ao Código
Penal, já temos um dispositivo especial para os menores41
.
Seguindo o texto do Código, temos:
40
Utilizaremos, nas próximas citações de artigos do Código de Menores de 1927, a já citada edição
completa do decreto n.17.943-A (Rio de Janeiro, 1928). Utilizaremos também a edição comentada por
Mineiro (op.cit.) porque nela cada artigo é acompanhado de um comentário que esclarece seu conteúdo. 41
Mineiro afirmava que enquanto nos outros países os mesmos assuntos eram tratados por leis avulsas, o
Brasil parecia ser o primeiro país a fazê-lo em código especial (Cf. Mineiro, op.cit., p.24). Embora não
tenhamos confirmação, fica ressaltado o caráter pioneiro que se atribuía na época ao Código. O Código
possuía uma parte geral, aplicável a todo o território nacional, e outra parte especial, concernente ao
Distrito Federal. Respeitavam-se a competência dos Estados para a legislação processual, a determinação
das autoridades a que deveriam ser submetidos os sujeitos, a organização judiciária, etc. (Cf. Mineiro,
op.cit., pp.25-28)
127
“CAPÍTULO I
DO OBJECTO E FIM DA LEI
Art. 1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou deliquente, que
tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade
competente ás medidas de assistencia e protecção neste Codigo.”
Acima temos a definição mais geral da clientela visada pelo Código: todo
menor, de um ou de outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18
anos. Nos artigos seguintes, essa clientela será subdividida em várias outras categorias,
mas a categoria menor já se torna a mais englobalizante, incluindo as antigas
denominações como “expostos”, “enjeitados”, etc.
Após essa definição mais geral, começa da diferenciação da clientela:
“CAPÍTULO II
DAS CREANÇAS DA PRIMEIRA IDADE
Art. 2º Toda creança de menos de dous annos de idade entregue a
criar, ou em ablactação ou guarda, fóra da casa dos paes ou
responsaveis, mediante salario, torna-se por esse facto objecto da
vigilancia da autoridade publica, com o fim de lhe proteger a vida e a
saude.”
O Estado assume a vigilância das crianças na primeira idade, no caso de
estarem sob cuidados longe da família. Se a família é considerada a primeira instituição
responsável pela infância, o Estado intervém na circulação de crianças fora da família.
128
Os parágrafos 3º, 4
º, 5
º e 6
º estabelecem mecanismos de registro e fiscalização dessas
crianças entregues a ablactação ou guarda de terceiros.
Segundo o comentário de Mineiro, o Estado intervém aqui nos cuidados da
primeira infância, inspirado na lei francesa, isto porque “O Estado tem o imperioso e
sagrado dever de intervenção, para salvar tão numerosas vidas, conservando essas
crianças á actividade nacional do futuro.” (Mineiro, 1929, p.30)
Os parágrafos seguintes, de 7º a 10
º tratam da idoneidade necessária a
aqueles que recebem essas crianças, sendo que os artigos 11º, 12
º e 13
º tratam da
organização da vigilância instituída pelas leis nos Estados e no Distrito Federal.
O capítulo seguinte trata dos infantes expostos:
“CAPÍTULO III
DOS INFANTES EXPOSTOS
Art. 14. São considerados expostos os infantes até sete annos de idade,
encontrados em estado de abandono, onde quer que seja.
Art. 15. A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação
directa, excluindo o systema das rodas.”
Define-se, pois, mais uma parte da clientela, os expostos, crianças até sete
anos encontradas em estado de abandono, sendo que se estabelece, para essas crianças,
um novo tipo de assistência que acaba com o mecanismo da Roda, considerado
ultrapassado.
Interessante é que já começa a ser delineada a carência atribuída aos
institucionalizados, que, nos dois casos vistos, define-se pela ausência (momentânea, no
129
caso das crianças de primeira idade entregues temporariamente a terceiros, e
permanente, no caso dos expostos) dos cuidados da família.
Nos artigos seguintes, no capítulo III, são estabelecidos também
mecanismos de registro e de controle em relação aos expostos. Aqui, uma nova forma
de institucionalização é proposta claramente em oposição às antigas formas
representadas pela Roda dos Expostos.
Posteriormente são definidos os menores abandonados:
“CAPÍTULO IV
DOS MENORES ABANDONADOS
Art. 26. Consideram-se abandonados os menores de 18 annos:
I – que não tenham habitação certa, nem meios de subsistencia, por
serem seus paes fallecidos, desapparecidos ou desconhecidos ou por
não terem tutor ou pessoa sob cuja guarda vivam;
II – que se encontrem eventualmente sem habitação certa, nem meios
de subsistência, devido a indigencia, enfermidade, ausencia ou prisão
dos paes, tutor ou pessoa encarregada de sua guarda;
III – que tenham pae, mãe ou tutor ou encarregado de sua guarda
reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus
deveres para com o filho ou pupillo ou protegido;
IV – que vivam em companhia de pae, mãe, tutor ou pessoa que se
entregue á pratica de actos contrarios á moral e aos bons costumes;
V – que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade
ou libertinagem;
130
VI – que frequentem logares de jogo ou moralidade duvidosa, ou
andem na companhia de gente viciosa ou de má vida;
VII – que, devido á crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou
exploração dos paes, tutor ou encarregado de sua guarda sejam:
a) victimas de máos tractos physicos habituaes ou castigos
immoderados;
b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados
indispensaveis á saude;
c) empregados em occupações prohibidas ou manifestamente
contrarias á moral e aos bons costumes, ou que lhes ponham en
risco a vida ou a saude;
d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou
libertinagem;
VIII – que tenham pae, mãe ou tutor, ou pessoa encarregada de sua
guarda, condemnado por sentença irrecorrivel:
a) a mais de dous annos de prisão, por qualquer crime;
b) a qualquer pena como co-autor, cumplice, encobridor ou
receptador de crime commetido por filho, pupillo ou menor sob
sua guarda, ou por crime contra estes.”
A outra parte da clientela, os menores abandonados, é definida pela ausência
de habitação certa, pela falta de meios de subsistência, por um estado habitual de
vadiagem ou mendicidade, por ser vítima de maus tratos, privada de alimentação ou de
cuidados indispensáveis à saúde, etc.
No comentário, Mineiro define em termos gerais a clientela visada pelo
Estado com essa legislação:
131
É fóra de duvida que merecem a protecção e assistencia do Estado: os
orphãos, os expostos, os abandonados materialmente, os abandonados
moralmente ou que se acharem em perigo moral, os pequenos
operários, os que são victimas de attentados ou explorações á sua
fraqueza, saude ou moralidade, os anormaes. (Mineiro, op.cit., p.38)
A carência, o abandono moral ou material, vem do comportamento
inadequado dos pais ou responsáveis, classificados em incapazes, negligentes ou
indignos. (Cf. Mineiro, op.cit., p.40)
Mais algumas figuras do abandono são posteriormente definidas como
“menores vadios”, “mendigos” e “libertinos”:
“Art. 28. São vadios os menores que:
a) vivem em casa dos paes ou tutor ou guarda, porém se mostram
refractarios a receber instrucção ou entregar-se a trabalho sério e
util, vagando habitualmente pelas ruas e logradouros publicos;
b) tendo deixado sem causa legitima o domicilio do pae, mãe ou
tutor ou guarda, ou os logradouros onde se achavam collocados
por aquelle a cuja autoridade estavam submettidos ou confiados,
ou não tendo domicilio nem alguem por si, são encontrados
habitualmente a vagar pelas ruas ou logradouros publicos, sem
que tenham meio de vida regular, ou tirando seus recursos de
occupação immoral ou prohibida.
Art. 29. São mendigos os menores que habitualmente pedem esmola
para si ou para outrem, ainda que este seja seu pae ou sua mãe, ou
pedem donativo sob pretexto de venda ou offerecimento de objectos.
132
Art.30. São libertinos os menores que habitualmente:
a) na via publica perseguem ou convidam companheiros ou
transeuntes para a pratica de actos obscenos;
b) se entregam á prostituição em seu proprio domicilio ou vivem em
casa de prostituta, ou frequentam casa de tolerancia, para praticar
actos obscenos;
c) forem encontrados em qualquer casa, ou logar não destinado á
prostituição, praticando actos obscenos com outrem;
d) vivem da prostituição de outrem.”
Vadios, mendigos e libertinos são resultado também do estado de abandono
moral ou material. Mas aqui as categorias começam a se articular em torno de um outro
eixo. Esses menores definem-se pela ausência de trabalho ou educação, destino de todos
os menores que não estejam em abandono. E, para o menor que não esteja estudando ou
trabalhando, o caminho que se apresenta é o da delinqüência: mendicidade, vadiagem e
libertinagem, embora em relação aos menores não sejam consideradas contravenções,
mas sim resultado do estado de abandono a que se deve responsabilizar os pais ou
tutores, são fontes da delinqüência juvenil, segundo esse discurso. Por isso, o
complemento necessário de todas as categorias vistas até agora, e que articula todo o
mecanismo de produção da clientela menor, sendo o resultado possível de todas as
situações de abandono, é a categoria do menor delinqüente.
“Art.68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto
qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo
penal de especie alguma; a autoridade competente tomará sómente as
133
informações precisas, registrando-as, sobre o facto punivel e seus
agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação
social, moral e economica dos paes ou tutor ou pessoa em cuja a
guarda viva.”
No comentário sobre esse artigo:
(...) além de não considerar criminoso o menor de 14 annos, nem
crime ou contravenção a infracção da lei penal por elle commettida, o
legislador manda estudar as influencias physicas, moraes, mesologicas
e pathologicas, que possam ter levado o infante á pratica do acto
qualificado crime ou contravenção. Essas medidas acauteladoras do
menor e da sociedade visam ao estudo e ao combate dos principaes
factores da criminalidade infantil. (Mineiro, op.cit., p.84)
Assim, está estabelecida uma inter-relação entre abandono e delinqüência: a
infração leva a se examinar as possíveis carências do menor (materiais e morais), mas
inversamente, as carências apontam todo o tempo para a possibilidade da delinqüência.
Os artigos citados já nos dão uma idéia clara do tipo de clientela visada
pelos dispositivos do Código. Esquematicamente essa clientela se definirá nos seguintes
termos:
134
CLIENTELA CARÊNCIA
Crianças de primeira idade Estão fora da casa do pai ou responsável.
Infantes expostos Encontrados em estado de abandono.
Menores abandonados
Ausência de habitação certa, de meios de subsistência
ou em estado de vadiagem, mendicidade ou
libertinagem; maltratados devido ao abuso de
autoridade ou negligência dos pais; que tenham os pais
condenados a sentença irrecorrível ou incapacitados,
etc.
Vadios, mendigos e libertinos
Refratários ao trabalho ou a educação, exercendo
ocupações imorais ou proibidas, sem domicílio fixo,
vagam pelas ruas, etc.
Menores em geral Vítimas do abandono e da delinqüência.
A clientela se define pelo abandono moral ou material causado pela
ausência ou deficiência dos cuidados da família, que é a instituição que primeiro deve
garantir a vida e a saúde dos menores, ou por sua impossibilidade de orientar o menor
para o caminho da educação e do trabalho. A delinqüência aparece como resultado do
estado de abandono, mas também é a categoria que dá unidade a todas as figuras do
abandono, expostos, abandonados, vadios, mendigos e libertinos, pois todas trazem em
comum a possibilidade da delinqüência, a possibilidade da criança não se desenvolver
de modo saudável e honesto.
135
Assim, o Estado assume, através da assistência pública e do juízo de
menores, o cuidado das crianças e dos adolescentes, ou seja, apropria-se da clientela (os
menores) quando a instituição considerada básica para a socialização da criança, a
família, ou outro responsável, mesmo a escola e o trabalho, não dão conta do objeto
institucional em jogo: a proteção da vida, da moralidade e da saúde dos menores.
Está sendo definido, portanto, um novo tipo de institucionalização da
infância e da adolescência por parte do Estado brasileiro. Uma institucionalização muito
mais ampla do que as antigas formas (como a dos expostos), e que passa a visar todos os
menores em estado ou em perigo de abandono, o que aumenta efetivamente a clientela
visada para todo o contingente das crianças das classes pobres e, virtualmente, para
todas as crianças da sociedade. Uma institucionalização que tem no seu horizonte não
apenas assistir gratuitamente os desafortunados, mas também combater a delinqüência,
fruto do abandono, e criar, assim, cidadãos saudáveis, tanto moral como fisicamente.
Uma institucionalização que define o menor tal como o conhecemos ainda nos dias de
hoje: aquele que, em decorrência das condições de abandono que o distanciam da
educação e do trabalho, é sempre considerado como um delinqüente em potencial.
Essas transformações implicam também uma redefinição do âmbito
institucional, pois a legislação passa a cobrir um leque muito mais amplo de relações
sociais, avançando, inclusive, no campo de outras instituições. Abre-se, assim, combate
em duas frentes: contra a família e contra as antigas instituições de caridade. Mas não há
apenas confronto com essas instituições, já que o Estado pretende uma acomodação
com as instituições privadas, desde que essas se aliem às novas diretrizes. Apenas em
relação às Rodas existe uma radicalização, já que são vistas como um tipo de
institucionalização ineficiente.
136
Em relação à família, o Código de Menores implica uma restrição do pátrio
poder. Simões (1983), ao discutir essa questão, coloca que há uma destituição dos
direitos absolutos dos pais através do Código de Menores, e que essa destituição é parte
de um longo processo que está nas raízes da sociedade burguesa. Ainda segundo esse
autor, se antes a relação de poder entre pai e filhos era privada, na sociedade burguesa
ela passa a ser de responsabilidade pública, e com isto os pais são destituídos do poder
total sobre os filhos, que, desde o nascimento, passam a ter uma existência pública. Com
a legislação brasileira, podemos perceber transformações nesse sentido. As relações de
sujeição entre pai e filhos, relações, no geral, privadas anteriormente, passam, com o
Código, a envolver essencialmente o Estado. Este, além de ser fonte da tutela sobre os
menores – pois é quem deve garantir, segundo os discursos, em última instância, o novo
objeto institucional em jogo, a garantia da saúde, moralidade e segurança dos menores –
tem também poderes para fiscalizar aqueles que, sob seu mandato, exercem a ação da
tutela, sejam pais, tutores ou instituições assistenciais. É assim que há um capítulo do
Código dedicado a essa questão:
“CAPÍTULO V
DA INIBIÇÃO DO PATRIO PODER E DA REMOÇÃO DA TUTELA
Art.31. Nos casos em que a provada negligencia, a incapacidade, o
abuso de poder, os máos exemplos, a crueldade, a exploração, a
perversidade, ou o crime do pae, mãe ou tutor podem comprometter a
saude, segurança ou moralidade do filho ou pupillo, a autoridade
competente decretará a suspensão ou perda do patrio poder ou a
destituição da tutela, como no caso couber.”
137
O comentário desse artigo esclarece bem os motivos que justificam a ação
de destituição da tutela dos pais; a questão da infância é uma questão pública, mas nem
sempre os pais, por serem agentes privados, cumprem com seus deveres no sentido da
conservação da infância:
Nem sempre os paes usam dos seus direitos no interesse ou para o
bem dos filhos: ha paes que abusam de suas nobres prerrogativas em
detrimento destes. É preciso defender os interesses do menor contra os
abusos e as faltas do patrio poder. (Mineiro, op.cit., p.50)
Os interesses do menor são também os interesses da sociedade. Por isso ela
pode se voltar contra o pátrio poder. O menor vai se definindo mais e mais nos
discursos como uma superfície sem dimensão, na qual a sociedade vê refletida seus
interesses, pois até mesmo a delinqüência não pode ter origem na vontade dos menores,
já que é vista como resultado da ação negligente dos pais que não zelam pela
moralidade dos filhos. Comentando ainda o artigo 31 já citado, Mineiro coloca:
Tem sido reconhecido que os delictos dos infantes e adolescentes
geralmente são devidos á negligencia dos paes, aos maus exemplos
dados por elles, á falta de vigilancia de sua parte, sendo menos
frequente os casos em que a creança, embora cercada dos cuidados
paternos ou maternos, tenha uma inclinação innata para o vicio, que a
leve a commeter infracções. É dever do Estado soccorrer o menor em
tempo util por medidas tutelares, não só porque a educação individual
e a protecção dos menores interessa no mais alto grau a ordem
138
publica, da qual é guarda, como porque intervindo para emendar o
menor pervertido antes que a sua propria repressão se torne ineficaz,
ou tomando medidas de prevenção para que elle não se torne
criminoso, ao mesmo tempo que salva o futuro delle, preserva e
garante o seu proprio. Hoje ninguem mais contesta ao Estado o direito
de se substituir inteira ou parcialmente á familia em certos casos; ao
contrario, é universalmente reconhecido que isso é um dever
humanitario e social, ao qual o Estado não pode subtrair-se. (Mineiro,
op.cit., pp.51-52)
O Código de 1927 também regulamenta as novas práticas institucionais
dirigidas à menoridade, não mais práticas repressivas, mas sim recuperadoras,
preventivas, disciplinares.
Em relação aos abandonados, são colocadas medidas, principalmente de
distribuição dos menores, que lhes garantam assistência, educação, preservação e
vigilância por parte do Estado:
“CAPÍTULO VI
DAS MEDIDAS APLICAVEIS AOS MENORES ABANDONADOS
Art.55. A autoridade, a que, incumbir a assistencia e protecção aos
menores, ordenará a apprehensão daquelles de que houver noticia, ou
lhe forem presentes, como abandonados, os depositará em logar
conveniente, e providenciará sobre sua guarda, educação e vigilancia,
podendo, conforme a idade, instrucção, profissão, saude, abandono ou
perversão do menor, e a situação social, moral e economica dos paes
139
ou tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda, adoptar uma das
seguintes decisões:
a) entregal-o aos paes ou tutor ou pessoa encarregada de sua guarda,
sem condição alguma ou sob condições que julgar uteis á saude,
segurança e moralidade do menor;
b) entregal-o a pessoa idonea, ou internal-o em hospital, asylo,
instituto de educação, officina, escola de preservação ou de
reforma;
c) ordenar as medidas convenientes aos que necessitem de
tratamento especial, por soffrerem de qualquer doença physica ou
mental;
d) decretar a suspensão ou a perda do patrio poder ou a destituição da
tutela;
e) regular de maneira differente das estabelecidas nos dispositivos
deste artigo a situação do menor, se houver para isso motivo grave
e fôr do interesse do menor.
O Estado, assim, apreende as crianças em estado de abandono, recolocando-
as em lugares onde estejam garantidas suas condições de educação e de assistência,
ficando o menor, de qualquer modo, sob sua vigilância.
No comentário, menciona-se que essa vigilância deve ser antecedida de
medidas que visam conhecer o menor:
A primeira cousa, que tem a fazer a autoridade encarregada da
assistencia e protecção aos menores, depois de deposital-o em logar
seguro, é proceder a exame medico, para conhecer da saude physica e
140
mental do menor; depois proceder a investigação sobre os seus
antecedentes e sobre a situação social, moral e economica e os
antecedentes da familia. Só assim poderá conhecer as causas do
abandono, as condições pessoaes do menor e a especie de soccorro de
que elle precisa. (Mineiro, op.cit., p.68)
Juntamente com a apreensão do menor, portanto, faz-se necessária uma
investigação sobre as causas do abandono.
Mas, é em relação ao menor delinqüente que se ressalta mais a novidade da
nova ação da justiça, que deve abandonar qualquer prática punitiva, segundo os
discursos. Mineiro, comentando o artigo 68, já citado, sobre menores delinqüentes,
afirma:
A suppressão absoluta da prisão, mesmo da preventiva, e a
substituição da repressão penal por medidas de educação e reforma
são outros preceitos basicos do moderno systema de tratamento dos
menores pervertidos e delinquentes. A prisão é, evidentemente,
funesta e cheia de perigos para o menor. (...)
Igualmente, se supprime a pena, substituida agora pela educação: a
idéa de repressão desapparece, para dar logar á idéa de educação ou
reforma. Em vez de prisões ha escolas, onde o menor se regenere pela
instrucção e pelo trabalho... Tal como estatue a nova lei, o menor
passa muito mais tempo, e mais proveitosamente na escola do que na
prisão pelo systema do Codigo Penal, cumprindo ainda notar que
anteriormente o jury absolvia systematicamente os pequenos
criminosos, impunidade altamente prejudicial aos mesmos, pois os
141
predispunha á reincidencia ao passo que, pelo novo regimen, elles se
regenerarão e se tornarão uteis a si e á sociedade. (Mineiro, op.cit.,
pp.105-106)
O novo sistema recuperador, portanto, pretende ser mais eficiente do que as
antigas formas penais, pois levaria à reabilitação dos menores para a vida social,
evitando também a impunidade42
.
Esta ênfase na mudança das práticas da justiça em relação aos menores
cristaliza-se no art.86 do Código:
“Art.86. Nenhum menor de 18 annos, preso por qualquer motivo ou
apprehendido, será recolhido a prisão commum.”
E mesmo na inexistência de estabelecimentos reformadores especiais para
menores, esses devem ser separados dos prisioneiros comuns:
“Art.87. Em falta de estabelecimento apropriados á execução do
regimen criado por este Codigo, os menores de 14 a 18 annos
sentenciados a internação em escola de reforma serão recolhidos a
prisões communs, porém, separados dos condemnados maiores, e
sujeitos a regimen adequado: – disciplinar e educativo, em vez de
penitenciario.”
42
Uma das críticas de Evaristo de Moraes ao “falso critério do discernimento” é que este, justamente, não
permitia uma correta classificação dos menores, submetendo todos, assim, a um mesmo tipo de
tratamento (Cf. Moraes, op.cit., p.68). A preocupação com a classificação, pelo contrário, estará o tempo
todo presente nas disposições do Código de 1927.
142
Nesta ênfase na separação entre menores e prisioneiros maiores, podemos
entrever a vontade dos reformadores em distinguir seu novo sistema das antigas práticas
consideradas punitivas em relação aos menores.
Mas essa diferenciação das práticas em relação aos menores não se restringe
à aplicação das penalidades, na medida em que atingem também o próprio processo,
como podemos perceber na questão da não publicidade das audiências:
“Art.88. O processo a que forem submettidos os menores de 18 annos
será sempre secreto. Só poderão assistir ás audiências as pessoas
necessárias ao processo e as autorizadas pelo juiz.”
O processo judicial em relação aos menores acaba sendo apresentado como
algo que deve ser totalmente diferente das práticas da justiça comum. Daí o comentário
que acompanha esse artigo:
A não publicidade da audiência é motivada pela propria natureza da
jurisdição, de alguma sorte familiar; o que não se concilia com a
presença do publico. O juiz póde dessa maneira influenciar facilmente
o espirito do menor por seus conselhos, suas censuras ou ameaças,
seus encorajamentos ou carinhos. Tem sido notado que, quando o
publico não está presente, as palavras do juiz têm um effeito feliz,
tanto sobre os menores quanto sobre os paes ou responsaveis por elles:
os menores confessam sinceramente os seus segredos, abrem o
coração, e ficam commovidos com os conselhos ou reprehensões, que
recebem, ao passo que nas audiencias publicas elles se mostram
143
retrahidos e reservados, pouco falam ou ficam calados e recebem mal
as palavras do juiz. (Mineiro, op.cit., p.151)
Uma ação paternal, educativa, dentro do âmbito da família, é essa a imagem
que os criadores do Código querem transmitir, como se a justiça para menores pudesse
se distanciar impunemente dos procedimentos jurídicos clássicos que viam no caráter
público e objetivo das práticas jurídicas algo de essencial para sua realização. Outro
exemplo da oposição em relação aos procedimentos tradicionais, é a defesa das penas
indeterminadas para menores43
.
Os instrumentos para a concretização dessas novas práticas, visando os
menores delinquentes e abandonados, serão o Juizado Privativo de Menores e os
Institutos Disciplinares, definidos na parte especial do Código, referente ao Distrito
Federal.
Em relação ao Juízo de Menores, temos:
“Art.146. É creado no Districto Federal um Juizo de Menores, para
assistencia, protecção, defesa, processo e julgamento dos menores
abandonados e delinquentes, que tenham menos de 18 annos.”
43
Uma das propostas mais arbitrárias de tratamento dos menores era aquela que defendia as penas
indeterminadas. Face à indeterminação das penas, o discernimento não parece tão cruel, mas os
reformadores que defendiam a nova legislação colocavam a indeterminação das penas como algo
decorrente do novo tratamento correcional e da necessidade de maior individualização do tratamento.
Evaristo de Moraes, por exemplo, afirmava que a indeterminação das penas fazia parte do tratamento
moderno da delinqüência precoce: “De quanto temos resumidamente exposto, já se deve ter deduzido que
o systema moderno adopta a indeterminação do tempo durante o qual será applicada a medida educativa.
É a dosagem preestabelecida pelos codigos incompativel com a orientação actual, visto como, tendo-se
por escopo educar o abandonado ou delinquente, modificando-lhe as tendencias ou transformando-lhe a
indole, deve-se comtar com a maior ou menor resistencia offerecida por elle proprio. E só quando os que
estiverem em contacto directo com o educando informarem estar elle preparado para a vida livre, poderá
cessar a medida de protecção individual e de defesa social, que tiver sido adoptada.” (Moraes, 1927,
p.156) O tratamento preventivo, assim, acaba se constituindo como muito mais cruel do que o tratamento
punitivo antigo.
144
Um juiz especializado deve atuar como Juiz de Menores, um juiz bastante
diferenciado dos juízes tradicionais, já que deve atuar mais como tutor do que como
autoridade fria e objetiva44
. Segundo o comentário:
Sua obra (do juiz de menores) é toda feita de protecção, de vigilância,
de preservação ou de reforma. A autoridade de que é revestido
apresenta antes de tudo um caracter tutelar, e sua acção é
essencialmente preventiva. Suas decisões são animadas de um espírito
novo e visam um fim novo: preservar e salvar a infancia moralmente
abandonada e pervertida, e, ao mesmo tempo, impedil-a de se tornar
criminosa; e, quando já criminosa, reerguel-a e reformal-a. Sua missão
é escolher a medida mais conveniente ao caracter e ao meio do menor,
ensinam os especialistas; secundal-o em seus esforços, seguil-o até
completa cura; moralizar, emendar, corrigir. Sua norma de
procedimento cinge-se em actuar com amor, brandura e serenidade,
em vez de rispidez, penitencias e torturas.
Elle tem que dar ao tratamento dos jovens delinquentes um caracter
nitidamente educador, e não esterilmente penal; salval-os das
consequencias funestas de sua primeira falta, evitando que ellas se
tornem irreparaveis; impedil-os, por sua educação séria e apropriada,
44
Interessante notar que a diferenciação do papel do juizado de menores leva também à diferenciação do
perfil pessoal do juiz, passando-se à exaltação de suas qualidades “paternais”. Como exemplo, num artigo
da Gazeta de Notícia de 3 de fevereiro de 1924, citado por Mineiro, uma cena muito peculiar é descrita
para comprovar os grandes méritos pessoais do juiz Mello Mattos: “Uma pobre mulher esforçava-se, com
afflicção, por fazer calar o choro de uma creança de peito; ao entrar Mello Mattos na sala de audiencias,
porém, o pequerrucho redobrava seus protestos. Mello Mattos approximou-se sorridente da desesperada
creaturinha e a tomou nos braços com terno gesto. A criança contemplou com assombro aquelle
desconhecido personagem, que a afagava com tanto amor, e tanta confiança lhe inspiraram seus nobres
olhares e meigo sorriso que cessaram os soluços e lhe sorriu entre lagrimas. Se o juiz de menores tiver
medo que as creanças lhe sujem o elegante vestuario, é melhor declaral-o dispensado do seu cargo. (apud.
Mineiro, op.cit., p.381)
145
de tornarem-se uma carga para a sociedade, uma ameaça constante
para a segurança publica: em uma palavra transformal-os em honestos
e uteis cidadãos. (Mineiro, op.cit., p.377)
Para isso, são definidas as competências do juiz de menores:
“Art.147. Ao juiz de menores compete:
I – processar e julgar o abandono de menores de 18 annos, nos termos
deste Codigo e os crimes ou contravenções por elles perpetrados;
II – inquirir e examinar o estado physico, mental e moral dos menores,
que comparecerem a juizo e, ao mesmo tempo, a situação social,
moral e economica dos paes, tutores e responsaveis por sua guarda;
III – ordenar as medidas concernentes ao tratamento, collocação,
guarda, vigilancia e educação dos menores abandonados ou
delinquentes;
IV – decretar a suspensão ou a perda do patrio poder ou a destituição
da tutela, e nomear tutores;
V – supprir o consentimento dos paes ou tutores para o casamento de
menores subordinados á sua jurisdicção;
VI – conceder a emancipação nos termos do artigo 9º , paragrapho
único, n.1, do Codigo Civil, aos menores sob sua jurisdicção;
VII – expedir mandado de busca e apprehensão de menores, salvo
sendo incidente de acção de nullidade ou annullação de casamento ou
de desquite ou tratando-se de casos da competencia dos juizes de
orphãos;
146
VIII – processar e julgar as infracções das leis e dos regulamentos de
assistencia e protecção aos menores de 18 annos;
IX – processar e julgar as acções de soldada dos menores sob sua
jurisdicção;
X – conceder fianças nos processos de sua competência;
XI – fiscalizar o trabalho de menores;
XII – fiscalizar os estabelecimentos de preservação e de reforma, e
quaesquer outros em que se achem menores sob sua jurisdicção,
tomando as providencias que lhes parecerem necessarias;
XIII – praticar todos os actos de jurisdicção voluntaria tendentes a
protecção e assistencia aos menores de 18 annos, embora não sejam
abandonados, ressalvada a competencia dos juizes de orphãos;
XIV – exercer as demais attribuições pertencentes aos juizos de direito
e comprehensivas na sua jurisdição privativa;
XV – cumprir e fazer cumprir as disposições deste Codigo, applicando
nos casos omissos as disposições de outras leis, que forem adaptaveis
ás causas civeis e criminaes da sua competencia;
XVI – organizar uma estatistica annual e um relatorio documentado
do movimento do juizo, que remetterá ao Ministro da Justiça e
Negócios Interiores.”
O juiz de menores é, assim, o agente privilegiado de todo o novo
mecanismo de institucionalização da menoridade proposto pelo Código. É ele que, com
sua atuação, tornará possível a manutenção do objeto institucional em jogo: a proteção
da vida, da saúde e da moralidade dos menores. Para tanto, estará habilitado a processar,
julgar, inquirir, examinar, vigiar e todas as outras ações necessárias para controlar tudo
147
aquilo que diz respeito aos menores. Todas estas ações, sob seu comando, têm também
como lugar privilegiado de realização, um novo espaço, diferenciado e reformador: os
asylos e institutos disciplinares.
O isolamento do menor num espaço diferenciado, propício à reforma, é tão
essencial que o próprio Mello Mattos o coloca como primeiro momento da lei:
O que a lei ordena, como primeiro acto de assistencia ao abandonado,
não é a nomeação de tutor, é o recolhimento daquelle ao Abrigo, ou
conveniente estabelecimento para subsequente instauração do
respectivo processo. (...)
Com a entrada para um estabelecimento adequado, o menor fica desde
logo protegido, porque está sob o poder e vigilancia do juiz, que é seu
primeiro e maior protector (...) (Mattos, entrevista para o jornal A
Noite, apud Mineiro, op.cit., p.398)
Daí a preocupação de legislar também, na parte especial do Código, sobre os
abrigos, institutos e escolas para menores:
“CAPÍTULO III
DO ABRIGO DE MENORES
Art.189. Subordinado ao Juiz de Menores, haverá um Abrigo,
destinado a receber provisoriamente, até que tenham destino
definitivo, os menores abandonados e delinquentes.”
148
Esse abrigo é definido, no comentário, como um estabelecimento de
trânsito, onde os menores são observados e classificados antes de serem distribuídos em
institutos de assistência e de proteção (Cf. Mineiro, op.cit., p.442)
Mesmo nesse abrigo, o juiz de menores continua sendo o agente
privilegiado:
O Juiz de Menores não póde deixar de ter acção directa sobre o
Abrigo de Menores e sua directoria. A elle cabe precipuamente a
responsabilidade da guarda e destinação dos menores, figurando o
director apenas como um depositario ocasional. Dahi a necessidade
deste receber ordens directas daquelle, e de ser excluida a intervenção
do Ministro da Justiça ou de qualquer outro membro do Governo.
Mais logico até seria que o director do Abrigo de Menores fosse de
livre nomeação e demissão do Juiz de Menores. (Mineiro, op.cit.,
p.447)
Em seguida, são definidos os Institutos Disciplinares:
“CAPÍTULO IV
DOS INSTITUTOS DISCIPLINARES
Art.198. É creada uma escola de preservação para menores do sexo
feminino, que ficarem sobre a protecção da autoridade publica.
Art.199. Essa escola é destinada a dar educação physica, moral,
profissional e litteraria ás menores, que a ella forem recolhidas por
ordem do juiz competente. (...)
149
Art.203. A Escola Quinze de Novembro é destinada á preservação dos
menores abandonados do sexo masculino.
Art.204. Haverá uma escola de reforma destinada a receber, para
regenerar pelo trabalho, educação e instrucção, os menores do sexo
masculino, de mais de 14 annos e menos de 18, que forem julgados
pelo juiz de menores e por este mandado internar.
A escola Quinze de Novembro havia sido fundada em 1899. A escola de
reforma, citada, foi chamada Escola João Luiz Alves (Cf. Mineiro, op.cit., p.452).
Como instituições produtivas e disciplinares, os espaços da escola de
reforma deveriam ser diferenciados:
“Art.205. A Escola de Reforma será constituida por pavilhões
proximos, mas independentes, abrigando cada qual tres turmas de
internados, constituida cada uma por numero não superior a 20
menores, para uma lotação de 200 delinquentes.
Haverá também pavilhões divididos em compartimentos destinados á
observação dos menores, á sua entrada no estabelecimento, e á
punição dos indisciplinados.”
As demais instituições, segundo o Código, poderiam ser constituídas pela
iniciativa privada:
“Art.208. O Governo póde confiar a associações civis de sua escolha a
direcção e administração dos institutos subordinados ao Juizo de
Menores, exceptuadas a Escola 15 de Novembro e a Escola João Luiz
150
Alves, entregando-lhes as verbas destinadas ao custeio e manutenção
delles.”
Mas todas as instituições deveriam obedecer ao novo tratamento disciplinar:
“Art.213. No regulamento das escolas se estabelecerá o regimen de
premios e punições applicaveis aos educandos.
Paragrapho único. São expressamente prohibidos os castigos
corporaes, qualquer que seja a fórma que revistam.”
* * * * * *
Entre o texto de Tobias Barreto e o de Mello Matttos, um novo discurso de
assistência e de proteção à infância e à adolescência emerge. Do discernimento ao
Código de Menores de 1927, um novo dispositivo legal se constitui. O discurso da
assistência e proteção aos menores e o Código de 1927 definem um novo projeto
jurídico e institucional voltado para a menoridade. Nesse projeto, uma justiça especial
para menores – não punitiva, recuperadora, disciplinar, tutelar e paternal – estará
articulada a uma reorganização da assistência – mais ampla e sistemática, preventiva,
organizada cientificamente pelo Estado. Os tribunais para menores serão a instância
chave de ligação entre a nova justiça e as novas formas de assistência45
. Um novo estilo
45
Para exemplificar a importância que o juizado de menores adquiriu enquanto instância de distribuição
dos menores, basta observar que na pesquisa já citada do CEBRAP, em 1971, o juizado de menores era a
principal instância de encaminhamento dos menores às instituições públicas, embora em relação às
instituições privadas sua participação fosse mínima (Cf. CEBRAP, op.cit., pp.68 e 275)
151
penal definirá a atuação desses tribunais, onde a disciplina e a tutela irão substituir a
repressão e a penalização. Uma estratégia institucional produtiva, e não apenas
repressiva ou excludente, visará a produção de crianças e jovens como indivíduos
economicamente produtivos, moralizados e politicamente submissos. Uma série de
mecanismos de vigilância, de apreensão, de classificação, de julgamento e de
distribuição de crianças e adolescentes, garantirão a produção e reprodução de uma
nova clientela institucional, os menores. Visando essa institucionalização, novas
relações tutelares serão conceituadas. O eixo da tutela em relação aos menores se
deslocará da família em direção ao Estado46
. Este intervirá na relação entre os menores
e suas famílias, toda vez que a saúde e moralidade daqueles estejam ameaçadas. Enfim,
o menor, como categoria jurídica e institucional, estará plenamente individualizado.
Assim, a legislação que estudamos até aqui não deve ser vista apenas como
mais uma lei social, mas sim como um amplo dispositivo de poder que produziu o
menor como sujeito histórico. Vejamos o que implica essa conceituação no próximo
capítulo.
46
A competência do juiz de menores será distinta da competência dos antigos juízes de órfãos, assim
como a tutela em relação aos menores será muito mais ampla que a tutela dos órfãos. (Sobre a tutela dos
órfãos, consultar Camargo, 1891).
V – A SUJEIÇÃO DO MENOR
V.1. – A justiça para menores como um
dispositivo de poder
V.2. – A “questão do menor” e a
“questão social”
“E assim, a legislação teve que mudar a sua
linguagem envelhecida e reprovada, ao mesmo passo
que soffreu renovação nos seus meios correccionaes.
As idéias de discernimento, culpabilidade,
responsabilidade, penalidade, estão definitivamente
banidas das leis novas relativas aos infantes e
adolescentes. À descabida noção de pena houve de
se substituir a medida educativa-disciplinar, mais
elevada e mais humana, porque a lei deve pensar em
educar e regenerar, antes que em reprimir e punir.
Felizmente para os nossos fóros de nação culta o
Brasil já possue a esse respeito as mais adeantadas
disposições legislativas, consolidadas no Codigo dos
Menores. E acham-se fundados e funccionando
normalmente, como apparelhos de execução do novo
regimen, os indispensaveis institutos de assistencia,
prevenção e reforma no Districto Federal e nas
capitaes dos principaes Estados. Mas, ainda resta
muito a fazer.
MELLO MATTOS
153
V – A SUJEIÇÃO DO MENOR
V.1. – A justiça para menores como um dispositivo de poder
Vimos de que modo, a partir da crítica ao dispositivo legal do discernimento
no fim do século XIX, um novo discurso sobre a infância abandonada e delinqüente se
constituiu, culminando com a promulgação do primeiro código especial para menores
do Brasil, em 1927. Com esse código, um amplo dispositivo de institucionalização de
crianças e de jovens emerge enquanto projeto, direcionado pelo Estado, mas
amplamente articulado à benemerência privada. Pudemos acompanhar algumas
transformações discursivas que tornaram possível esse projeto. Cabe agora perguntar,
porém, qual o sentido mais geral dessas transformações estudadas.
Um primeiro problema que se coloca é o da relação entre essas
transformações que ocorriam no Brasil e transformações similares que ocorriam em
outros países. Embora não possamos fazer aqui um amplo estudo comparativo das
transformações da legislação sobre a menoridade em vários países, podemos, ao menos,
seguir algumas pistas.
Todo o discurso que estudamos até aqui sobre a nova legislação para o
menor no Brasil, se articulava em torna de idéias e de práticas que estariam ocorrendo
em outros países. Os nossos reformadores não pretendiam ser inovadores nesse campo,
mas, pelo contrário, baseavam-se em transformações que acreditavam estar ocorrendo
em outros lugares, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, durante o século
XIX e início do XX.
154
Alguns estudos já enfocaram essas transformações. Platt (1982) estudou a
constituição dos primeiros tribunais para menores nos Estados Unidos. A partir da
criação do primeiro tribunal oficial para menores em Illinois, em 1899, Platt elabora um
amplo e interessante panorama do movimento dos “salvadores da criança”, como ele
chama o grupo de reformadores que realizaram um movimento destinado a subtrair os
jovens dos processos do direito penal e a criar programas especiais para crianças
delinqüentes e abandonadas nos Estados Unidos no fim do século XIX. Segundo Platt, a
lei que criou os tribunais para menores em 1899 foi resultado de quase trinta anos de
esforços dos reformadores que participavam do movimento pela infância no Estado de
Illinois. Esse movimento de salvação da infância era conservador e de classe média,
tendo também o apoio econômico e político dos setores mais poderosos e ricos da
sociedade americana. O autor mostra, também, que a criação desses tribunais para
menores não contribuiu para a humanização do tratamento penal de crianças e
adolescentes. Pelo contrário, ao inscrever as reformas em prol da infância num
movimento muito maior de reforma das instituições, visando satisfazer as necessidades
do sistema capitalista, Platt mostra que a ação dos salvadores da criança criou novas
instâncias de controle social e ajudou a diversificar e a centralizar o poder do Estado.
Tendo como preocupação essencial a identificação e o controle do comportamento
juvenil discrepante, o principal resultado das reformas da legislação sobre a menoridade
foi, ainda segundo Platt, fazer chegar ao controle do governo toda uma série de
atividades juvenis anteriormente ignoradas, ao definir e regular um estatuto de
dependência da juventude, e ao despolitizar a questão da delinqüência. Apesar da
generalidade de certas colocações de Platt, seu trabalho é essencial para a compreensão
dos primeiros tribunais para menores dos Estados Unidos, pelo fato de mostrar que a
155
nova justiça para menores já nasceu, mesmo em seu país de origem, como instrumento
de controle social.
Acreditamos que a criação de uma justiça para menores aponta também para
transformações mais gerais nas práticas de poder das sociedades capitalistas. Através
dos trabalhos de Foucault, podemos inscrever as mudanças sobre a menoridade num
horizonte mais amplo de transformações.
Foucault (1977), ao estudar as transformações das práticas penais na França,
ocorridas no fim do século XVIII, mostra de que modo a punição deixou, cada vez mais,
o corpo para se inscrever em campos abstratos, como o dos direitos gerais, da
consciência, da motivação dos atos, enfim, daquilo que ele chamará de “alma” como
“prisão do corpo” (Cf. Foucault, op.cit., p.32). Nesse processo, o objeto “crime”
também se modifica:
(...) o objeto “crime”, aquilo que se refere a prática penal, foi
profundamente modificado (...) julgam-se também as paixões, os
instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de
meio ambiente ou de hereditariedade. (Foucault, op.cit., p.21)
Com essa modificação, as atenções irão se dirigir para o criminoso enquanto
um campo de conhecimento, no qual diferentes elementos se cruzam, sendo que as
práticas jurídicas passarão a ser correlativas de muitos campos de saber: “Um saber,
técnicas, discursos ‘científicos’ se formam e se entrelaçam com a prática do poder de
punir.” (Foucault, op.cit., p.26)
156
Com isso, cada vez mais os poderes punitivos irão buscar apoio no discurso
verdadeiro, como se a lei só pudesse encontrar, a partir de então, nos discursos
verdadeiros, seja da medicina, psiquiatria, psicologia ou sociologia, seu ponto de apoio.
A legislação sobre a menoridade também irá procurar apoio em conceitos
“verdadeiros”. A justiça para menores não só procurará apoio em disciplinas auxiliares,
o que a tornará eminentemente multidisciplinar, com também irá se mascarar por trás
desses discursos, tentando aparecer como recuperadora, pedagógica, não punitiva. A
justiça penal para menores (e nunca se tratará de algo diferente, na verdade, de uma
legislação penal) encontra seus instrumentos e, ao mesmo tempo, se esconde por trás de
disciplinas científicas. A vergonha de punir será encoberta pela verdade.
Não é difícil deduzir o papel que a questão da menoridade desempenha
nessas transformações de práticas de poder punitivas para práticas de poder
disciplinares. No processo de constituição do criminoso como suporte de novas relações
de poder e de conhecimento, não devemos esquecer que o menor deve aparecer com
destaque, por ser ele a matriz do futuro criminoso: se é necessário conhecer o criminoso,
é necessário conhecê-lo desde a infância. Historicamente, também não parece ser difícil
comprovar esse novo papel da infância e adolescência. Perrot (1988), por exemplo,
mostra que há uma relação entre as reformas dos sistemas penitenciários na Europa e o
interesse pela criança:
A reflexão sobre o sistema penitenciário na Europa (...) fez da prisão o
“coração” da penalidade, e a organização do espaço uma arte de
governar as massas. Deu-se uma importância cada vez maior para a
criança, centro do círculo da família e pivô da futura sociedade, mas
157
cuja situação jurídica e penitenciária deixava muito a desejar na
França. (Perrot, op.cit., p.117)
Durante o século XIX surgem, na França, instituições destinadas apenas às
crianças, que visavam retirá-las das más influências da família e do meio, submetendo-
as a um controle disciplinar, instituições como a Petite-Roquette, instituição
“panóptica”47
estudada por Perrot. Esses e outros trabalhos parecem indicar que, ao
menos na França, a criança começa a sair do seu anonimato a partir das novas
estratégias de sujeição, que, então emergiam. Meyer (1977) estudou justamente a
construção da infância na França como resultado da ação do Estado. Esse autor inscreve
o surgimento de um direito da criança como parte de um processo de uniformização e
de controle da sociedade pelo Estado. Para ele, a atomização da sociedade em famílias,
a emergência da infância como problema e a infância inadaptada são acontecimentos
solidários.
Para Meyer, a legislação francesa sobre o discernimento já apontava,
embora de maneira tímida, para um direito de exceção para os menores, em torno do
qual a família passará a ser disciplinada, visando-se mais o delinqüente do que o delito,
mais a família do que a própria criança. O discernimento abriu caminho, segundo ele, à
noção de irresponsabilidade dos menores, o que tornou possível a criação dos tribunais
para menores, surgidos na França em 1912.
Donzelot (1980) estudou mais detidamente a questão desses tribunais,
observando seu surgimento dentro de um processo que ele chama de “ascensão do
47
Ou seja, instituição de vigilância total, onde um olhar central exerceria um controle ininterrupto das
atividades dos internos. Foucault utiliza essa expressão para designar uma nova tecnologia de poder, que
surge no século XVIII, baseada na visibilidade total. O termo vem da obra Panopticon de Jeremy
Bentham (Cf. Foucault, 1977, pp.173-199).
158
social”. O social, para Donzelot, é uma nova figura híbrida de público e privado, um
novo campo, historicamente constituído, no qual se reúnem problemas diversos,
instituições específicas e todo um pessoal qualificado, assistentes sociais, educadores
especializados, orientadores, etc., todos ligados ao “trabalho social”. Esse novo campo
se constituirá, na França a partir do século XVIII, no entrecruzamento de várias
iniciativas, visando as práticas familiares existentes, tais como o ataque contra as
nutrizes e a criadagem; a autonomização dos valores conjugais em relação aos valores
propriamente familiares; e o desengajamento da autoridade paternal ou marital da chefia
da família. Todo um “complexo tutelar” passa a se articular, assim, em torno da família,
visando novas estratégias de controle das classes pobres:
(...) a suspensão do poder patriarcal permitirá o estabelecimento de um
processo de tutelarização que alia os objetivos sanitários e educativos
aos métodos de vigilância econômica e moral. Processo de redução da
autonomia familiar, portanto, facilitado pelo surgimento, nesse final
do século XIX, de toda uma série de passarelas e conexões entre a
Assistência Pública, a justiça de menores, a medicina e a psiquiatria.
(...) (Donzelot, op.cit., pp.84-85)
A questão da tutela também foi problematizada por Castel (1978). Esse
autor mostra como a medicalização do louco na França, a partir do século XVIII, levou
à cristalização de novas relações sociais, relações de tutelarização. Segundo Castel, com
a sociedade contratual configurada com a Revolução Francesa, o louco passa a ser um
problema:
159
Sobre o pano de fundo da sociedade contratual instaurada pela
Revolução Francesa, o louco é uma nódoa. Insensato, ele não é sujeito
de direito; irresponsável, não pode ser objeto de sanções; incapaz de
trabalhar ou de “servir”, não entra no circuito regulado das trocas, essa
“livre” circulação de mercadorias e de homens à qual a nova
legalidade burguesa serve de matriz. Núcleo de desordem, ele deve,
mais do que nunca, ser reprimido, porém, segundo um outro sistema
de punições do que o ordenado pelos códigos para aqueles que
voluntariamente transgridem as leis. Ilha de irracionalidade, ele deve
ser administrado, porém, segundo normas diferentes das que designam
o lugar às pessoas “normais” e as sujeitam a tarefas em uma sociedade
racional. (Castel, op.cit., p.19)
Em torno da figura do louco vão se estabelecer novos mecanismos de
sujeição, cujos efeitos se espalham pela sociedade, levando, por exemplo, a uma gestão
técnica dos antagonismos sociais. Ou seja, a partir da medicalização do louco, caminha-
se do contrato para a tutela. As contradições que o louco colocava para a sociedade
contratual levam a mudanças do registro da lei para o da norma. Segundo Castel:
Estas contradições introduziram uma prática de perícia no centro do
funcionamento das sociedades modernas. Uma avaliação fundada na
competência técnica vai impor, a certos grupos “marginais”, um
estatuto que terá valor legal embora seja constituído a partir de
critérios técnico-científicos e não de prescrições jurídicas inscritas em
códigos. Um processo de corrosão do direito por um saber (ou por um
pseudo-saber, mas essa não é a questão), a subversão progressiva do
160
legalismo por atividades de perícia, constituem uma das grandes
tendências que, desde o advento da sociedade burguesa, opera os
processos de tomada de decisão que engajam o destino social dos
homens. Do contrato à tutelarização. (Castel, op.cit., pp.19-20)
Nesse processo de tutelarização da sociedade, Castel indica também que os
destinos de crianças e de loucos estão articulados. Os loucos são comparados a crianças
não gratuitamente, mas sim porque colocam problemas semelhantes para a sociedade
burguesa e seus mecanismos de sujeição:
O indivíduo é sujeito autônomo enquanto for capaz de se dedicar a
intercâmbios racionais. Ou então sua incapacidade de entrar num
sistema de reciprocidade o isenta de responsabilidade e ele deve ser
assistido. O fundamento contratual do liberalismo impõe a
aproximação entre o louco e a criança (...) a grande analogia
pedagógica da medicina mental, no seio da qual, toda sua história vai
se desenvolver. (...) (Castel, op.cit., p.46)
Já Donzelot pretende mostrar, justamente, que os tribunais para menores são
peça chave desse processo de tutelarização do menor. Segundo esse autor, os tribunais
para menores, desde seus primórdios nos Estados Unidos, no final do século XIX,
levaram a deslocamentos fundamentais das práticas jurídicas. Com esses tribunais, o
patriarcalismo familiar é destruído em proveito de um patriarcalismo de Estado, um
“Estado-família” próprio da sociedade tutelar48
. O próprio aspecto da justiça para
48
Badinter (1985, pp.288-291) comenta como, desde o século XIX, o Estado se preocupa cada vez mais
com as crianças e, por isso, passa a vigiar a ação dos pais para com elas. O Estado, assim, acaba
161
menores foge das representações e dos mecanismos da justiça clássica. Um resumo de
Donzelot sobre os aspectos desses tribunais indica todas essas transformações:
(...) O tribunal de menores só aplica as penas seletivamente. No
essencial ele administra as crianças sobre as quais pesa a ameaça de
aplicação de uma punição. A razão oficial do caráter não público do
tribunal é essa vontade de prevenção. Ele opera uma discreta diluição
da pena, em vez de concentrá-la. A ação preventiva visa cercar o
corpo delituoso em vez de estigmatizá-lo ostensivamente. Nas
diferentes possibilidades de sanção que dispõe o tribunal de menores,
a prisão fechada constitui, em princípio, uma exceção. Quando
aplicada o mais freqüente é que seja acompanhada de sursis, com
período de experiência ou liberdade vigiada. É nesse espaço aberto
pelo caráter suspensivo da pena que se estabelece a medida educativa.
(...) É preciso ver as duas faces dessa origem penal das medidas
educativas, e não só uma, como se faz habitualmente. Num certo
sentido, ela “dá oportunidade” ao menor culpado condenando-o
apenas a medidas de controle. Num outro sentido, dissolvendo a
separação ente o assistencial e o penal, ela amplia a órbita do
judiciário para todas as medidas de correção. Se quisermos
compreender as relações mútuas entre as instituições relativas à
infância irregular, é necessário imaginá-las encaixadas umas nas
outras segundo um princípio de superposição que tem seu apoio
assumindo a autoridade do pai, que é substituído por novos personagens que passam a desempenhar o
papel de autoridade frente às crianças: o professor, o juiz de menores, o assistente social, o educador, etc.
Lasch (1983, pp.193-228) mostra que, em contrapartida, esse processo leva ao colapso da própria noção
de autoridade, substituída por uma visão terapêutica da sociedade e do Estado.
162
decisivo, e seu fim último no tribunal para menores. (Donzelot, op.cit.,
p.102)
Assim, acreditamos que os estudos anteriormente vistos mostram que os
tribunais para menores devem ser inscritos dentro das novas formas de controle e de
sujeição, colocadas pela ascensão dos mecanismos tutelares nas sociedades capitalistas
na Europa e Estados Unidos.
A nova legislação para a menoridade que começa a emergir nesses países a
partir do século XIX aponta para uma nova articulação da lei e da norma, da punição e
da disciplina. Já mencionamos anteriormente de que modo Foucault, ao fazer o amplo
painel das mudanças punitivas que ocorriam na Europa desde o século XVIII, mostrava
a inter-relação cada vez mais constante entre os poderes punitivos e os discursos
verdadeiros. É nesse processo que também emergem as disciplinas49
.
Para Foucault, o poder e o direito na sociedade capitalista já não estarão
mais restritos ao registro da soberania. A soberania, segundo o autor, centrada na figura
do rei, estabelecia os direitos legítimos do soberano e a obrigação legal da obediência,
eliminando a questão da dominação e suas conseqüências. Mas a dominação nas
sociedades capitalistas, nas suas aplicações terminais, cotidianas, desenvolveu
mecanismos de exclusão, aparelhos de vigilância, de medicalização dos conflitos, etc.,
estabelecendo um novo tipo de relação de poder que já não cabe mais no discurso e na
prática do direito tradicional, ligado à soberania. Essas novas relações de poder são
relações disciplinares:
49
Para uma discussão detalhada do conceito de “disciplina” (Cf. Foucault, op.cit., pp.125-204)
163
Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos termos
da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele
foi um instrumento fundamental para a constituição do capitalismo
industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente; este poder
não soberano, alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar.
(Foucault, 1979, p.188)
Mas Foucault coloca, logo a seguir, que, embora a princípio alheios um ao
outro, poder e disciplina acabarão se tornando complementares: a soberania dará ao
poder disciplinar um discurso no qual ele não aparecerá como poder, e em compensação
irá retribuir com uma eficácia concreta muito mais minuciosa e abrangente:
Um direito de soberania e um mecanismo de disciplina: é dentro
destes limites que se dá o exercício do poder. (...) Nas sociedades
modernas, os poderes se exercem através e a partir do próprio jogo de
heterogeneidade entre um direito público da soberania e o mecanismo
polimorfo das disciplinas. (Foucault, op.cit., p.189)
A concepção jurídica do poder50
, assim, estará articulada a um outro campo
heterogêneo, o campo da disciplina:
As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do
direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto
efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que
50
Loschak (1984) comenta a questão do direito em Foucault, analisando a tensão entre a representação
jurídico-discursiva do poder e as práticas disciplinares.
164
será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da
regra “natural”, quer dizer, da norma; definirão um código que não
será o da lei, mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte
teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito, mas
o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um
saber clínico. (Ibidem)
Lei e norma, punição e disciplina, contrato e tutela, embora sendo campos
de práticas heterogêneas, irão se encontrar naquilo que Foucault chama de sociedade de
normalização. Acreditamos que o conceito da teoria de Foucault que melhor dá conta da
articulação entre essas linhas heterogêneas, entre lei e norma, é o conceito de dispositivo
de poder (Cf. Foucault, 1980). Um dispositivo de poder, segundo Foucault, é um
conjunto heterogêneo formado por discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis e medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais e filantrópicas, articuladas de forma a responder uma
urgência histórica determinada. Assim, podemos pensar a justiça para menores como
um dispositivo de poder. O novo tratamento jurídico e institucional da menoridade, tal
como o estudamos até aqui, parece ser um dos momentos privilegiados do encontro da
norma com a lei. O menor, tutelado por excelência, será, a partir de então, um dos
sujeitos mais visados pelos mecanismos disciplinares e normativos. O caráter híbrido da
justiça para menores, sua vergonha da punição, seu sustentáculo em proposições
científicas, filosóficas e morais, tudo isso a coloca entre a norma e a lei, ou melhor,
articula esses dois níveis num complexo dispositivo de poder. A legislação brasileira,
disposta num amplo código exclusivo para a menoridade, plena de disposições
165
disciplinares e normativas no próprio texto legal, indica claramente seu caráter de
dispositivo, mais talvez do que a legislação de outros países.
Mas, em se tratando de um dispositivo de poder, quais as condições
históricas que o tornaram possível? Quais os objetivos visados por ele? A que outros
conjuntos de práticas ele remete? A que urgências históricas ele é resposta?
Algumas dessas questões já tivemos oportunidade de abordar, ao
analisarmos a forma pela qual se constituiu o menor como categoria jurídica e
institucional, com a emergência do Código de Menores de 1927. O Código, todavia, é
um acontecimento único, tanto na sua forma como em sua articulação específica com o
contexto histórico da Primeira República. Retornemos, assim, ao contexto de
emergência dessa legislação para tentarmos esclarecer algumas das questões
colocadas51
.
51
As idéias que constituíram o código, portanto, não eram apenas “idéias foras do lugar”, na expressão de
Schwarz (1988). Mello Mattos, ao idealizar uma nova estratégia de institucionalização da menoridade,
sem dúvida se inspirava nas idéias provenientes dos Estados Unidos e da Europa, assim como todos os
outros autores analisados. No entanto, ele se baseava também na sua própria experiência como
criminalista, filantropo e juiz de menores, para adaptar a nova legislação à realidade brasileira. O
resultado foi a produção de um dispositivo de poder original. Para ressaltar as diferenças com o processo
de menorização na França, a título de ilustração, basta observar que as mudanças institucionais foram
muito mais intensas nesse país do que no Brasil. As Rodas dos Expostos, por exemplo, deixarão de existir
na França já na metade do século XIX (Cf. Donzelot, op.cit., p.30). Essas diferenças nos impedem,
também, de pensar, como Meyer, que o dispositivo da menoridade apenas faz parte da ação organizadora
do Estado em relação à sociedade. Ignatieff (1987), ao fazer um balanço crítico dos estudos acerca das
instituições totais, alerta para a preocupação de que não devemos considerar o Estado como criador da
ordem social, já que a relação entre sociedade e Estado é complexa, e o tecido social não é nem uma
massa amorfa onde a ação do Estado atua sem impedimentos, nem lugar de uma resistência autônoma
com respeito ao poder central, uma vez que complexos intercâmbios se estabelecem entre ambos. Se a
análise de Meyer ainda pode ser explicativa para a realidade francesa, não podemos pensar, no caso
brasileiro, o primado total do Estado na sujeição do menor, pois é na própria relação Estado/sociedade
que o discurso sobre a menoridade emerge no Brasil. As explicações de Platt, no trabalho já citado sobre
os tribunais para menores nos Estados Unidos, também só nos fornecem explicações muito gerais. A pista
que nos parece mais rica é a colocada por Donzelot, quando este fala na “invenção do social”, que poderia
ser aplicada para se analisar a emergência da “questão social” na Primeira República.
166
V.2 – A “questão do menor” e a “questão social”
Vimos, no capítulo sobre o contexto histórico, de que modo as mudanças na
legislação sobre a menoridade, no século XIX e início do século XX, no Brasil, podiam
ser articuladas a mudanças nas formas de institucionalização da infância e da
adolescência. Essas mudanças institucionais são acompanhadas, também, de uma série
de novos campos de problematização, envolvendo questões relativas à higiene infantil,
ao abandono de crianças, à criminalidade precoce, ao trabalho infantil nas fábricas, etc.
No cruzamento desses vários campos é que se constitui a discussão jurídica em torno de
uma legislação de assistência e proteção aos menores. Voltemos agora ao contexto, após
analisarmos a trama discursiva que tornou possível a emergência do Código de Menores
de 1927, para abordar as transformações estudadas dentro do campo mais amplo do que
se convencionou chamar “questão social” na Primeira República.
Como já mencionamos, no fim do Império a questão social emerge com a
crise da antiga estrutura social, que era baseada na escravidão e na grande propriedade
territorial. A estrutura social se diferencia principalmente nos grandes centros urbanos
(Cf. Cardoso, 1985). Classe trabalhadora e burguesia industrial passam a ocupar espaços
como forças sociais importantes, levando a uma reorganização social, econômica e
política do país. A intensificação da luta social, principalmente após a Primeira Guerra
Mundial, estará intimamente ligada às insatisfações das populações urbanas em geral, o
167
que também incluía as camadas médias urbanas52
. Pinheiro, por exemplo, comenta a
este respeito:
O desenvolvimento urbano, que se acelera depois da guerra, provocará
a expansão do pequeno comércio nos centros mais importantes do
país, assim como de pequenas indústrias. Há o aumento das antigas
classes médias – pequenos comerciantes artesãos, pequenos
industriais, alfaiates, carpinteiros e sapateiros – e das novas classes
médias – funcionários públicos, assalariados. A urbanização ocorrerá
simultaneamente com o crescimento da burocracia dos serviços
públicos como resultado de um processo que está caracterizado pelo
alargamento da área de intervenção do Estado na economia, a
extensão da área geográfica efetiva na qual a ação governamental se
exercia e pela dilatação do sistema administrativo do país (...).
(Pinheiro, 1977, p.16)
Acreditamos, assim, que o que se denomina de “questão social” refere-se,
principalmente, a um novo conjunto de problemas ligados à formação da classe operária
e as novas camadas médias num contexto urbano. Estas transformações eram mais
intensas no Rio de Janeiro e em São Paulo e, por isso, limitaremos novamente nossas
considerações a estes dois centros urbanos. A ação do Estado em relação aos conflitos
advindos desse novo contexto não se restringe ao enfrentamento da questão social
apenas como uma questão policial, e, embora o Estado utilize largamente da violência
52
Usamos o termo “camadas médias urbanas” justamente para salientar a dificuldade de definição desses
novos agentes que emergiam no contexto urbano. Sobre a dificuldade de conceitualização das classes
médias cf., por exemplo, Oliveira (1988).
168
contra as classes trabalhadoras e na gerência dos conflitos urbanos, não devemos
esquecer que novas formas de controle institucional também se constituem no período.
Novas estratégias de sujeição irão emergir, articuladas ou não diretamente ao Estado.
Acreditamos que o dispositivo da menoridade que estudamos faz parte dessas novas
sujeições.
Assim é que, juntamente com a ascensão do social enquanto campo de
confronto de antigas e novas forças sociais, começa a se esboçar, também, um campo do
“social” agora no sentido colocado por Donzelot: todo um conjunto de instituições e
mecanismos visando desorganizar as classes consideradas perigosas, disciplinando e
naturalizando os conflitos. Novas formas de filantropia e de assistência social53
parecem
indicar uma ampla estratégia assistencialista de abordagem da questão social, visando
justamente a despolitização dos conflitos sociais urbanos. Dentro destas estratégias é
que podemos pensar o dispositivo do Código e a ascensão de outros mecanismos
disciplinares que visavam basicamente o controle social do espaço urbano.
Dois trabalhos que tematizam as novas práticas disciplinares voltadas para a
cidade no início do século, são os de Rago (1985) e de Cunha (1986).
Cunha estudou o hospício do Juquery e a psiquiatria em São Paulo, a partir
do final do século XIX até a década de 30. Articulando a história deste asilo ao novo
contexto urbano emergente em São Paulo, a autora mostra como o alienismo se
incorporou às estratégias disciplinares de controle da cidade. O asilo passa a ser um
instrumento entre outros de individualização dos agentes que haviam sido deslocados de
seus antigos contextos:
53
Para um histórico do serviço social no período cf. Iamamoto (1988).
169
(...) Ao lado dos negros, outros setores da população perdem, na
cidade que cresce e altera as rotinas da vida cotidiana, os seus espaços
tradicionais. Setores improdutivos, como a velhice e os “menores”,
certos tipos de doentes, débeis mentais, deficientes de várias
qualidades terão reinventado o seu lugar. Na cidade, eles tenderão a
deixar de ser uma questão afeta ao grupo familiar ou social mais
diretamente concernido, para constituírem um problema efetivo para a
administração pública. Alguns destes setores encontrarão no hospício,
ao lado dos loucos, o seu definitivo “lugar de repouso”. (...)
A configuração espacial da cidade – lugar por excelência das novas
relações sociais de produção em que o assalariamento substitui a
escravidão como base no princípio da “igualdade” entre os indivíduos
– desenha a nova dimensão da desigualdade social: criam-se espaços
diferentes para classes desiguais. (...) (Cunha, op.cit., pp.31-32)
Nessa disciplinarização dos espaços urbanos, a medicina higiênica passa a
ter papel fundamental, segundo a autora, instituindo discursos sobre todas as instâncias
da vida, passando a questão sanitária a ser um problema central. Aí é que estratégias
alienistas configurarão o louco como doente mental, sendo guiadas pelo lema (já por
nós amplamente conhecido) de que será mais interessante prevenir do que curar.
Rago também estudou a disciplinarização dos espaços urbanos na Primeira
República, centrando sua atenção nas novas disciplinas impostas aos trabalhadores na
fábrica. Segundo a autora, com a imigração e a constituição do proletariado urbano
principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, tem lugar uma vasta empresa de
moralização, tendo como eixo principal a formação de uma nova figura do trabalhador
como dócil e submisso, mas economicamente produtivo, empresa esta levada a cabo
170
pelos médicos higienistas, mas também por autoridades públicas, por setores da
burguesia industrial, por filantropos e por reformadores sociais, nas décadas iniciais do
século XX. Esta ação se desdobra em múltiplas estratégias de disciplinarização,
mecanismos de controle e de vigilância que atuam nas fábricas, mas que também se
expandem para a regulação da moradia operária, de sua sexualidade, saúde, educação,
etc., sendo realizada por agências do poder público e também de iniciativa privada. E,
uma das principais metas dessas práticas normativas, é a redefinição da família, a
construção de um modelo imaginário de mulher54
voltada para a intimidade do lar, e um
cuidado especial para com a infância, direcionada, ainda segundo a autora, para a escola
ou para institutos de assistência social. Nasce, assim, a possibilidade da “intimidade
operária”. Rago explicita, porém, que as classes dominantes enfrentam, nesta cruzada
disciplinar, a resistência dos trabalhadores, o que transparece principalmente nas
concepções libertárias. A autora mostra, assim, que a preocupação com a infância estava
também presente na imprensa operária, mas num sentido totalmente divergente daquele
colocado pelas classes dominantes55
. Os artigos anarquistas denunciavam a indústria
como local da exploração dos menores, desmistificando a função moralizadora do
trabalho, colocada pelos patrões. O movimento libertário se preocupava com a
degeneração física e moral e da infância operária nas fábricas:
A estratégia disciplinar de confinamento das crianças no interior das
unidades produtivas, retirando-as das ruas ameaçadoras ou do
abandono dos asilos e dando-lhes uma ocupação profissional
54
Lopes (1985; 1987) estudou especificamente a formação da mulher como trabalhadora urbana no início
do século. 55
Moura (1982, pp.104-121) também cita as reivindicações operárias frente ao problema do trabalho
infantil.
171
justificava-se como meio de formar o novo trabalhador, modelando
seu caráter desde cedo. Num campo oposto, o discurso operário
denunciava a exploração do trabalho infantil, economicamente mais
barato e politicamente mais submisso, desmistificando as vantagens
do tipo e adestramento que a atividade fabril poderia propiciar à
infância: exaurir suas forças, enfraquecê-las, embutir sua inteligência,
atrofiar seus músculos, impedir seu crescimento físico e espiritual.
(Rago, op.cit., p.140)
As concepções libertárias, segundo a autora, iam contra as formas de
disciplinarização da infância nas fábricas, nas escolas e na própria família. Toda uma
discussão sobre uma nova pedagogia libertária, por exemplo, se desenvolvia nos jornais
anarquistas durante os anos vinte, juntamente com tentativas de criação de escolas e de
entidades que defendiam novas formas de educação na infância, iniciativas como a
criação, em 1917, do Centro Libertário de Agitação Contra a Exploração dos Menores
nas Fábricas. Assim, a partir das iniciativas anarquistas podemos entrever a resistência à
disciplinarização imposta pelo trabalho industrial e pelas novas estratégias de
dominação, emergentes nos centros urbanos.
Esses dois trabalhos mostram, assim, estratégias disciplinares de controle do
espaço urbano que emergiam no início do século, ressaltando-se nesse processo o papel
da intervenção médica na normatização da sociedade. Mas, se a própria medicina
higiênica contribuiu para a normatização da infância, acreditamos que foram os juristas
analisados anteriormente que articularam de modo decisivo a lei e a norma, de modo a
tornar possível a emergência do menor como sujeito histórico. O dispositivo de poder
172
criado em torno da questão da menoridade, se constituirá também como um instrumento
potencialmente importante de controle da “desordem urbana”.
Não devemos, no entanto, dicotomizar a análise pensando apenas numa
estratégia geral de dominação da burguesia sobre a classe trabalhadora. As relações de
dominação não se resumem a um mero confronto entre a burguesia e o proletariado, já
que este confronto se inscreve num contexto mais complexo que inclui também outros
segmentos sociais56
. Uma legislação, mesmo instrumentalizada pelas classes
dominantes, também reflete os interesses dos dominados. Para mostrar a complexidade
do Código de 1927, enquanto legislação social, analisemos mais detalhadamente a
questão da regulamentação do trabalho infantil por ele colocada57
.
A regulamentação do trabalho infantil era uma das reivindicações do
trabalhadores durante a Primeira República58
. Dada a grande quantidade de menores
que, como vimos, trabalhavam nas indústrias da época, e dadas também as péssimas
condições de trabalho, esse era efetivamente um dos pontos importantes das
56
Rago, no texto que comentamos, parece às vezes cair nessa redução do momento histórico, que acaba
sendo visto apenas como um amplo confronto entre os dominados (o proletariado urbano) e as classes
dominantes em geral. Poderíamos aqui mencionar a mesma crítica que Fausto (1988) dirige ao trabalho
de Decca (1982): “Um dos problemas mais sérios da análise de Edgar De Decca consiste em praticamente
não levar em conta a história social do país, o que equivale a dar as costas a determinações objetivas
como a natureza do Estado, o peso dos diferentes grupos e classes, a inserção da classe trabalhadora na
estrutura social e, sobretudo, a forma de constituição da sociedade capitalista. Isto se reflete na busca de
conflitos polares classe a classe como chave de explicação do Brasil nos anos 30”. (Fausto, 1988, p.17)
Ou seja, os conflitos sociais na Primeira República não podem ser resumidos apenas a um confronto
classes dominantes/proletariado, devendo mesmo a análise das disciplinas estar mais articulada à
complexidade do contexto. 57
É preciso não reduzir a lei a um mero fenômeno de superestrutura, ou considerá-la apenas como
instrumento de dominação de classe. Thompson (1987, pp.348-361) faz uma discussão extremamente
interessante sobre o tema. 58
Cf. Pinheiro, 1977, pp.160 e 162, por exemplo. Até o início do século XX poucas eram as leis que
regulamentavam o trabalho de menores no país. A República, sob o Governo Provisório, promulgou o
decreto n.1313, de 17 de janeiro de 1891, que estabelecia providências para regularizar o trabalho de
menores nas fábricas da Capital Federal, mas este projeto não entrou em vigor nem foi regulamentado.
Mais tarde, o Governo Municipal do Distrito Federal promulgou uma lei regulando o trabalho dos
menores nas fábricas, oficinas e empresas industriais, decreto n.1801 de 11 de agosto de 1917, que
também ficou sem execução (Cf. Mineiro, op.cit. pp.173-178). Assim, as poucas leis existentes também
não eram executadas. O Código dos Menores aparecia na época, consequentemente, como a mais
completa iniciativa até então realizada, de regulamentar todas as modalidades de trabalho dos menores.
173
reivindicações dos trabalhadores. O Código de Menores reflete essas reivindicações.
Pode-se argumentar que a legislação era muito tímida, mas acreditamos que para o
contexto da época já era uma iniciativa importante, pois, ao menos já se estabelecia uma
regulamentação. O Código proibia o trabalho dos menores de 12 anos, dos menores de
14, que ainda não tivessem sua instrução primária concluída, regulamentando, no
máximo, uma jornada de seis horas, e proibindo o trabalho em circunstâncias perigosas,
entre outras regulamentações:
“CAPÍTULO IX
DO TRABALHO DOS MENORES
Art.101. É prohibido em todo o territorio da Republica o trabalho aos
menores de 12 annos.
Art.102. Igualmente não se póde occupar a maiores dessa idade que
contem menos de 14 annos e que não tenham completado sua
instrucção primaria. Todavia, a autoridade competente poderá
autorizar o trabalho destes, quando o considere indispensavel para a
subsistencia dos mesmos ou de seus paes ou irmãos, comtanto que
recebam a instrucção escolar, que lhes seja possivel.
Art.103. Os menores não podem ser admittidos nas usinas,
manufacturas, estaleiros, minas ou qualquer trabalho subterraneo,
pedreiras, officinas e suas dependencias, de qualquer natureza que
sejam, publicas ou privadas, ainda quando esses estabelecimentos
tenham caracter profissional ou de beneficencia, antes da idade de 14
annos. (...)
174
Art.104. São prohibidos aos menores de 18 annos os trabalhos
perigosos á saude, á vida, á moralidade, excessivamente fatigantes ou
que excedam suas forças. (...)
Art. 108. O trabalho dos menores aprendizes ou operários, abaixo de
18 annos, tanto nos estabelecimentos mencionados no art.103, como
nos não mencionados, não póde exceder seis horas por dia,
interrompidas por um ou varios repousos cuja duração não póde ser
inferior a uma hora.
Art.109. Não podem ser empregados em trabalhos nocturnos os
operarios ou aprendizes menores de 18 annos. (...)”
No parecer de Mello Mattos, o Estado tinha o direito e, ao mesmo tempo, o
dever de regulamentar e fiscalizar o trabalho dos menores. Essa regulamentação não
feria, segundo ele, a liberdade de trabalho dos menores, já que estes não tinham ainda
vontade própria e nem força de resistência para exercer sua liberdade. Também não
feria o pátrio-poder, pois este só deveria ser exercido em proveito dos filhos e, quando
isto não ocorresse, o Estado deveria intervir para preservar as crianças. Infelizmente,
ainda segundo Mattos, os pais operários acabavam, por necessidade, explorando os
filhos. Caberia ao Estado, nesses casos, substituir o pátrio-poder para evitar a dupla
exploração da infância, pelos industriais e pelos pais, preservando, assim, o interesse
geral da sociedade. A instrução para os menores também deveria ser garantida,
conciliando-a com a necessidade do trabalho infantil para a subsistência das famílias
pobres (apud Mineiro, op.cit., pp.164-168).
Os empresários, no entanto, se colocaram contra essa regulamentação. O
fim do trabalho infantil, segundo eles, prejudicaria não só a produção, mas também a
175
possibilidade de sobrevivência das famílias operárias, que ficariam sem os proventos
dos menores, permanecendo estes, ainda, sujeitos ao abandono e à delinqüência nas
ruas. O empresário Jorge Street já em 1917 discutia a regulamentação do trabalho
infantil, afirmando que no Brasil não era possível o fim do trabalho dos menores, já que
inexistiam leis que evitassem o abandono e garantissem a escolarização (Cf. Pinheiro,
1981, pp.179-184)
Em 1929 o Centro Industrial do Brasil repudiava a regulamentação do
trabalho infantil pelo Código de Menores, usando basicamente a mesma argumentação:
a regulamentação do trabalho infantil colocaria em risco não só a produção, mas
também a subsistência das famílias operárias e a segurança dos menores que, sem o
trabalho, ficariam ociosos na rua; e, caso a lei não fosse ao menos suavizada, só restaria
a saída da dispensa dos menores (Cf. Pinheiro, op.cit., pp.223-235). Efetivamente, a
maioria dos empresários acabaram não cumprindo a legislação (Cf. Vianna, 1978,
pp.81-83). Gomes (1979, pp.183-184) afirma ainda que, entre 1928 e 1929 foram
sucessivos os problemas com a ação dos juízes de menores do Rio de Janeiro e de São
Paulo, em razão das multas cobradas por ocasião da fiscalização. A mobilização dos
empresários, no entanto, parece ter surtido efeito, neutralizando a regulamentação
estabelecida pela Código, chegando inclusive as pressões dos industriais cariocas a
conseguir o afastamento do juiz Mello Mattos (Cf. Gomes, op.cit., p.184)
Nossa hipótese, consequentemente, é que a legislação de assistência e
proteção aos menores, no aspecto relativo ao trabalho dos menores, satisfazia, em certa
medida, os interesses dos trabalhadores, o que desagradou os empresários que a ela se
opuseram. A legislação do Código, assim, não pode ser vista apenas como mero
176
instrumento de dominação, já que essa lei não estava livre das correlações de força do
próprio contexto59
.
Mesmo assim, defendemos a abordagem do Código de Menores como um
dispositivo de poder porque nele não eram centrais nem a questão do trabalho nem a
questão da educação60
, mas sim a questão da delinqüência. A ênfase na regulamentação
do trabalho dos menores e no seu direito à educação teria tornado essa legislação um
instrumento importante para as classes trabalhadoras na época. Mas não é em torno do
trabalho e da educação que todo o discurso sobre a menoridade que estudamos adquire
sua coerência, mas sim em torno do controle da criminalidade. “Menor”, desde então, é
aquele que se inscreve privilegiadamente no campo do abandono e da delinqüência. Por
isso, mesmo não sendo respeitado nos aspectos referentes à regulamentação do trabalho,
o Código pôde permanecer em vigência por tanto tempo61
. A eficácia do Código não
residiu na regulamentação do trabalho infantil ou no direito à sua educação, mas sim na
institucionalização do menor enquanto possível delinqüente. Institucionalizou-se aí o
menor a partir da consolidação de um mecanismo tutelar, passando a questão da
criminalidade e da assistência a estarem intimamente articuladas: as crianças e jovens
fora do trabalho ou da escola, em situação de abandono ou delinqüência, passam a
serem visadas pelo Estado que, juntamente com instituições privadas, deverá recuperá-
los. O dispositivo da menoridade, no entanto, virá mais para normalizar os desvios em
59
É verdade que a proteção ao trabalho dos menores também garantia a reprodução da força de trabalho
necessária para o desenvolvimento capitalista (Cf. Lopes, 1985, p.37). O que queremos destacar, no
entanto, é que a legislação não foi identificada pelos industriais da época como correspondendo a seus
interesses. É necessário, portanto, problematizar as mediações existentes entre os interesses de grupos e
classes sociais e as leis ou dispositivos de dominação. Se não realizamos essa problematização, não
podemos compreender, por exemplo, como Evaristo de Moraes, advogado que defendia interesses dos
trabalhadores, pudesse também defender uma legislação especial para a menoridade que implicava novas
formas de controle social. Não pretendendo aqui uma análise detalhada dos agentes identificados com o
dispositivo da menoridade, deixamos o problema levantado para pesquisas futuras. 60
Sobre a questão da educação durante a Primeira República, cf. Nagle, 1977, pp.261-291). 61
O Código de Menores de 1927 foi revogado apenas em 1979.
[EC3] Comentário: Pode ou pôde?
177
relação ao trabalho (miséria, crime, vadiagem, etc.) do que propriamente para recuperar
para o trabalho. A ênfase no conceito de “recuperação” apenas tornou possível uma
institucionalização mais ampla da clientela, pois, juntamente com o conceito de
“prevenção”, tornou possível a disciplinarização de indivíduos que não haviam
cometido crimes precisos62
. A legislação sobre a assistência e proteção aos menores,
portanto, sem mecanismos concretos que garantissem o fim do trabalho infantil, e
generalizassem o acesso à escola, constituiu-se principalmente como um dispositivo
disciplinar de controle da criminalidade. Se a atividade policial no Rio de Janeiro e em
São Paulo durante a Primeira República ia além do simples controle da criminalidade,
visando também um amplo controle social dos grupos urbanos considerados perigosos,
com o Código de Menores o Estado passaria a ter a sua disposição um mecanismo legal
de controle social. A associação positiva entre abandono e deliqüência abria um amplo
espaço de controle das populações urbanas63
. Toda a problemática da vadiagem poderia
ser disciplinarizada, não mais por razões econômicas, mas sim visando o controle
social. Se durante a segunda metade do século XIX, como vimos, a preocupação com a
vadiagem estava ligada à formação de um mercado de trabalho livre, no momento da
emergência do dispositivo da menoridade o objetivo visado será a normalização e
identificação do contingente populacional que estava fora do mundo do trabalho. Não
mais disciplinar para o trabalho apenas, mas sim disciplinar também o não-trabalho, ou
62
Se o discurso de “recuperação” do menor não se realiza na prática, não devemos pensar numa
contradição entre teoria e prática. Devemos, pelo contrário, buscar a eficácia desse discurso num outro
plano. O conceito de “recuperação” permitiu a criação de práticas de poder produtivas em relação à
menoridade, ou seja, permitiu a institucionalização do menor abandonado ou delinqüente. 63
Bresciani (1987) mostra como nos grandes centros urbanos do século XIX o pobre, o criminoso e o
trabalhador passarão a ser identificados pelas elites, como fazendo parte de um mesmo campo de
problematização. Dispositivos de controle da criminalidade e das classes pobres poderão surgir nesses
novos contextos urbanos. Fausto (1984), ao estudar a criminalidade em São Paulo, no início do século,
mostra como a atividade policial, na época, visava não apenas o controle da criminalidade, mas também
um amplo controle social. Ainda sobre esse tema, Rodrigues (1989) faz um levantamento interessante de
vários trabalhos que analisaram o papel da polícia no Brasil como agente de controle social.
178
seja, a pobreza, o crime e a vadiagem64
. Outros trabalhos já mostraram a importância
que a “identificação”, enquanto técnica policial de controle da população urbana,
adquire no início do século no Brasil65
. O dispositivo da menoridade que estudamos
constituiu-se como um instrumento importante, ao menos potencialmente, de
identificação e individualização de todo um contingente populacional ainda não
institucionalizado. O processo de menorização da infância levado a cabo nas primeiras
décadas do século XX levou o Estado a poder identificar e controlar todo um segmento
fora da produção, que não estivesse ainda vinculado a qualquer forma institucionalizada
de educação e trabalho.
Nos detemos aqui, porém, no efeito principal de todo esse processo: a
emergência do menor enquanto sujeito do discurso jurídico e institucional.
Com a emergência de um discurso de proteção e assistência aos menores
abandonados ou delinqüentes e com a promulgação do Código de Menores de 1927,
emerge também o “menor” como sujeito, segundo a conceitualização colocada na
introdução metodológica: uma série de mecanismos discursivos e institucionais
constituirão indivíduos concretos, até então não institucionalizados plenamente, em
sujeitos submetidos a relações de dominação. Crianças e jovens das classes pobres serão
vistos como menores abandonados ou delinqüentes caso não se enquadrem nas normas
64
Fausto (op.cit., p.43) coloca justamente a idéia de que a pressão sobre a vadiagem na cidade de São
Paulo, no início do século, já não se liga mais a razões econômicas, pois não havia mais o problema da
falta de mão-de-obra. É pensando nessa mesma hipótese que afirmamos que o dispositivo do Código de
Menores não visava mais a produção de mão-de-obra, mas sim a disciplinarização dos não-trabalhadores.
É verdade que o trabalho será o parâmetro maior de recuperação, pois o que permitirá a reintegração do
menor será a sua aptidão, adquirida nas escolas ou instituições de recuperação para o trabalho (Cf., por
exemplo, o art.219 do Código de Menores de 1927). Mas essa ênfase no trabalho, embora pudesse ter um
caráter normativo para toda a sociedade, já não tinha um caráter econômico claro, pois a recuperação dos
menores para o trabalho era apenas um subproduto insignificante do novo dispositivo. 65
Cf. Corrêa (1982a, 1982b); Carrara (1984).
179
do trabalho e da educação. Ser menor, para esses indivíduos, será apenas uma
“evidência”. A sujeição do menor estará, a partir de então, plenamente definida.
180
CONCLUSÃO
A justiça não deve ser para os infantes e
adolescentes a velha figura allegorica de olhos
vendados, armada da balança e espada, adoptando
para julgamento delles o falso, obscuro, indefinivel,
enigmatico, perigoso criterio do discernimento, e
considerando-os apenas pequenos homens; ella deve
ser, como a quer Helena Troyano*, uma imagem
real, como Christo no celebre Evangelho: protectora,
tutelar, maternal. Elles devem comprehender que a
justiça é feita não só de direito, mas também de
caridade, indulgencia e bondade; que se interessa
por elles com benevolencia, embora sem fraqueza;
que, sem aplicar penas repressivas, não favorecerá,
todavia, a impunidade; empregará medidas de
assistência e protecção, bem como medidas de
educação, as quaes podem ser energicas, e até, em
caso de necessidade, severas. (Mineiro, op.cit.,
p.376)
O texto acima transcrito, de Beatriz Sofia Mineiro, resume bem a trama
discursiva que tentamos reconstruir aqui. Ele começa com a crítica ao discernimento,
* Autora do livro Les jurisdictions spéciales pour les Mineurs, citada várias vezes por Mineiro.
[EC4] Comentário: Compreender ou comprehender?
181
propõe uma nova justiça para menores, protetora, tutelar e maternal. E,
sintomaticamente, acaba ameaçador, alertando para medidas severas quando necessário.
Os reformadores que modificaram a legislação sobre a menoridade no Brasil
do início do século estavam imbuídos de “boas intenções” para com a infância e a
adolescência, mas criaram, acima de tudo, um novo dispositivo de disciplina e controle
de um segmento da população que antes parecia ainda indiferenciado, disperso entre as
figuras dos expostos, enjeitados, infantes trabalhadores, crianças pobres em geral, que, a
partir do Código de 1927, passarão a giram em torno de uma categoria discursiva e
institucional única – o menor. Este, assujeitado por um novo projeto de
institucionalização, definido pela lei, e que articulava de modo elaborado a ação de
instituições estatais e de instituições privadas, passa a ser sujeito de uma nova trajetória
jurídica e institucional, que hoje já conhecemos bastante. Este sujeito, partindo das
classes pobres, terá no seu horizonte o trabalho ou a delinqüência. Para garantir essa
trajetória, a lei concebe os parâmetros gerais, e as instituições garantem a reprodução
concreta do processo de sujeição.
Assim, a articulação entre abandono e delinqüência, tão evidente nos dias de
hoje66
, aparece no momento em que emerge e é institucionalizada, deixando de ser
evidência. Onde hoje só vemos o menor, a análise histórica mostra uma série de outros
agentes e práticas esquecidas, mas que objetivaram novos projetos de sujeição. Estas
sujeições apontam também para relações mais amplas, constitutivas da própria história
do país. Com isso, a “questão do menor” deixa de ser uma questão à parte, para se
66
O discurso da menoridade continua muito presente no país. As idéias de “prevenção” e “proteção”
foram a base da “modernização” do tratamento institucional do menor, levada a cabo nas décadas de 60 e
70. A atualidade da crítica ao Código de Menores de 1927 pode ser indicada pelo fato de que alguns
juristas ainda o consideram mais perfeito que o Código atualmente em vigor (Cf., por exemplo, Nogueira,
1985, p.XIII)
182
inscrever no conjunto da história, mas não na forma já tão gasta da crítica, que a coloca
como uma falsa questão, mas sim como um conjunto de práticas específicas que sem
dúvida estão articuladas com o contexto histórico mais amplo.
A simples denúncia apaixonada, ou a crítica vazia do especialista que
afirma, sem maiores reflexões, que são as condições sociais que levam à delinqüência,
aparecem, no fim de nossa trajetória analítica, como formulações muito próximas do
discurso sobre a menoridade que emergiu com o primeiro Código de Menores, tão
próximos que devemos perguntar se não fazem parte dos mecanismos de produção e
reprodução desse amplo projeto de sujeição do menor.
Nosso trabalho, porém, não quer se inscrever numa ampla denúncia da
mistificação que envolve o problema do menor, pois isto nos levaria de volta ao
discurso e às práticas que queremos criticar. A crítica, como nós a compreendemos, só é
eficaz se for rigorosa, evitando generalizações sem apoio empírico. Se a interpretação
proposta neste trabalho é possível, é porque já podemos equacionar o problema da
menoridade em outros termos. Se interpretamos é porque estamos reagindo à pobreza
dos enunciados atuais ao colocarmos a possibilidade de novos discursos e de novas
práticas. Assim, a dissolução da trama discursiva e institucional que nos impede de
pensar as práticas relativas à menoridade só avança com o avanço das próprias
pesquisas, e são os caminhos para os quais apontam nosso trabalho que mais interessam
em termos de conclusão.
Recuperamos aqui apenas um fio do processo de constituição de um novo
discurso e de novas práticas institucionais, ligadas à menoridade. A ampliação das
pesquisas aponta para muitos caminhos possíveis de análise. Podemos, no momento,
indicar dois desses caminhos. O primeiro consistiria numa pesquisa histórica sobre as
183
instituições disciplinares67
voltadas para os menores abandonados e delinqüentes, que
começam a surgir no início do século no Brasil. O segundo consistiria numa análise do
funcionamento dos tribunais para menores, definidos pelo Código de 1927. Esses dois
caminhos, amplos o suficiente para comportarem inúmeras pesquisas, são
complementares ao trabalho por nós realizado e podem contribuir mais para a
compreensão do processo de sujeição da menoridade. Mesmo a teia discursiva por nós
estudada, deve ser ampliada, não apenas através da busca de novos textos no campo das
discussões jurídicas da época, mas também através do estudo da articulação desses
discursos com outros campos discursivos, como o discurso médico, já por nós
mencionado. Estes e outros caminhos podem ser seguidos, no futuro, por novas
pesquisas68
.
67
A análise das práticas disciplinares no Brasil coloca muitos problemas que ainda não foram
satisfatoriamente equacionados. A violência, por exemplo, parece atuar aqui, ao lado dos mecanismos
disciplinares. O próprio Mello Mattos mostrava sua insegurança em relação ao novo projeto disciplinar de
institucionalização dos menores, ao manifestar seu temor de que a reforma dos delinqüentes sem castigos
corporais fosse apenas um “sonho irrealizável” (apud Mineiro, op.cit., p.468) Mesmo os processos de
tutelarização dos agentes sociais se mostram bastante complexos para a análise, já que as práticas
tutelares se constituem aqui num contexto histórico onde as relações contratuais não se consolidaram
plenamente. 68
O trabalho de Fonseca (1989), sobre a circulação de crianças na cidade de Porto Alegre, no início do
século, aponta para um caminho interessante de pesquisa relativo ao tema por nós estudado. Também o
projeto de pesquisa de Netto (1988), sobre o tratamento dado à infância desvalida na cidade de São Paulo,
entre 1910 e 1930, pode esclarecer novos aspectos relativos à institucionalização da menoridade.
184
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