O Mangá e A Turma da Mônica Jovem: processos de interculturalidade

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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA PEDRO ERNESTO GANDINE TANCINI O MANGÁ E A TURMA DA MÔNICA JOVEM: processos de interculturalidade 1

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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING

RELATÓRIO FINAL DE

INICIAÇÃO CIENTÍFICA

PEDRO ERNESTO GANDINE TANCINI

O MANGÁ E A TURMA DA MÔNICA JOVEM:

processos de interculturalidade

1

São Paulo

2012

2

PEDRO ERNESTO GANDINE TANCINI

O MANGÁ E A TURMA DA MÔNICA JOVEM:

processos de interculturalidade

Relatório Parcial dePesquisa do Programa deIniciação Científica(PIC-PIBIC) da EscolaSuperior de Propaganda eMarketing – ESPM.

3

Orientadora: Prof.ª Dra. Tânia Hoff

São Paulo

2012

4

RESUMO

O projeto de pesquisa tem como tema os processos de

interculturalidade entre o mangá japonês contemporâneo e a

série de gibis Turma da Mônica Jovem, de Maurício de Souza,

delimitando-se em primeiro plano à análise das estéticas

corporais dos personagens e, em segundo, à temática e à

ambientação que serão consideradas na medida em que

contextualizam a narrativa da qual participam os

personagens. Será analisado o corpus formado por edições dos

gibis Turma da Mônica Jovem, com os mangás Bleach e Naruto

5

Tancini, Pedro Ernesto Gandine   O Mangá e A Turma da Mônica Jovem: processos de interculturalidade / Pedro Ernesto Gandine Tancini. - 2012   84 p. : il., color.

Trabalho de Conclusão de Curso (bacharelado) - Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP, 2012Comunicação Social - Publicidade e Propaganda - Plano Monográfico (PM)

Orientador: Tânia Márcia Cézar Hoff

1. Turma da Mônica Jovem 2. Mangá 3. Globalização 4. Interculturalidade 5. Relações de negociação 6. Alteridade

representantes do mangá contemporâneo como base de

comparação para a análise. A pesquisa tem como principal

objetivo analisar os diálogos de interculturalidade –

relações de negociação, aceitações e negações, conflitos –

nas estéticas corporais presentes no gibi brasileiro em

estilo mangá, Turma da Mônica Jovem, que foi inspirado no

mangá japonês. As reflexões desenvolvidas por Néstor García

Canclini, sobre interculturalidade e também sobre a ideia

de “relações de negociações”, em obras como Culturas híbridas

(2006), A Globalização Imaginada (2003), Diferentes, desiguales y

desconectados: mapas da interculturalidade (2005), dentre

outras, constituem nossa principal referência teórica a

respeito da globalização. Vale salientar que a globalização

será estudada como processo sociocultural, o que

possibilita estudar também seus imaginários e que a análise

da interculturalidade será realizada a partir da noção de

“relações de negociação”.

Palavras-chave: globalização; interculturalidade; relações

de negociação; mangá; gibi Turma da Mônica Jovem.

6

ABSTRACT

The research project has as its subject the

intercultural processes between contemporary Japanese manga

and Maurício de Souza's comic book series Turma da Mônica

Jovem, firstly delimiting to the analysis of the form of

the characters’ bodies and secondly, to the theme and

ambiance, inasmuch they form the context to the narrative

which involves the characters. The corpus formed by comics

editions of Turma da Mônica Jovem will be analyzed, and the

manga Bleach and Naruto, contemporary manga

representatives, will serve as a basis of comparison for

the analysis. The research has as main objective to analyze

the intercultural dialogues - negotiation relations,

acceptances and denials, conflicts - in the form of the

body present in the Brazilian manga style comic book, Turma

da Mônica Jovem, which was inspired by the Japanese manga.

The reflections developed by Néstor García Canclini, about

interculturality and also about the idea of "negotiations

relations", in books such as Culturas Híbridas (2006), A

Globalização Imaginada (2003), Diferentes, Desigauis e

Desconectados: mapas de interculturalidade (2005), among

others, constitute our main theoretical reference about

globalization. It is worth emphasizing that the

globalization will be studied as a sociocultural process,

enabling the study about also its imaginaries; and that the

analysis of interculturality will be held from the notion7

of "negotiations relations".

Keywords: globalization, interculturality; negotiation

relations, manga, comic book Turma da Mônica Jovem.

SUMÁRIO

1

Introdução ................................................

...........................................................

8

1.1 Tema, problema e objetivos da

pesquisa ...............................................

........... 8

1.2 Procedimentos teórico-

metodológicos ..........................................

.................... 12

2 Contextualização sócio-histórica da

8

globalização ............................................15

2.1 Por uma definição de

globalização ..............................................

....................... 16

2.2 Processos de interculturalidade contextualizados pela

globalização .................. 27

3 A base para análise: o mangá do

japão .....................................................

......... 36

3.1 Mangá: do Japão ao

mundo .....................................................

............................ 37

3.2Bleach e Naruto: mangás feitos no Japão e traduzidos

parao mundo .................. 48

3.2.1 Sobre Naruto

...........................................................

.......................................... 49

3.2.2 Sobre Bleach

...........................................................

.......................................... 55

4 Turma da mônica jovem: cultura japonesa de olhos

puxados ......................... 58

4.1 Turma da Mônica9

infantil ..................................................

.................................. 58

4.2 Turma da Mônica Jovem em estilo

mangá .....................................................

..... 61

4.3 Análise do gibi Turma da Mônica

Jovem .....................................................

....... 62

4.3.1 Análise do corpo das

personagens ...............................................

..................... 69

5 Considerações

finais ....................................................

............................................. 81

Referências ...............................................

...........................................................

...... 85

1 Introdução

1.1 Tema, problema e objetivos da pesquisa

Este projeto vincula-se à pesquisa “Estratégias da

comunicação midiática e representações da diferença”,

desenvolvida pela Profa. Tânia Márcia Cezar Hoff, e tem

como tema os processos de interculturalidade entre o mangá10

japonês contemporâneo e a série de gibis Turma da Mônica

Jovem, de Maurício de Souza, delimitando-se à análise de

alguns aspectos físicos dos personagens.

Mangá (assim como croissant, drive-thru, ou spaghetti) é

mais uma daquelas palavras, que, originalmente

estrangeiras, foram emprestadas pelo Brasil e outros países

por imprescindivelmente serem capazes de nomear elementos

da comunicação cultural local. O país de onde se origina

tal palavra é o Japão, e ficará evidente, mais adiante

neste trabalho, que estudar mangá é estudar Japão, e vice-

versa.

Mangá ( 漫 漫 ) é a tradução fonética da junção dos

ideogramas (kanjis) MAN (漫) (humor) e GA (漫) (grafismo). A

tradução literal de mangá é história em quadrinhos, e

originalmente refere-se a todos as histórias em quadrinhos

produzidas no Japão. Porém, como não faz mais sentido

classificar fenômenos culturais levando em conta somente o

território, mangá passou a se referir a uma espécie única

de história em quadrinhos que reúne um estilo, traço,

técnica, desenho, linguagem e tema próprios.

As características desta manifestação cultural serão

devidamente explanadas durante o trabalho, sendo que basta

nesta etapa entender que, assim como aponta a pesquisadora

de mangá e animê e presidente da ABRADEMI – Associação

Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações

–, Cristiane Sato, mangá é definido, objetiva e

11

resumidamente, como:

Histórias em quadrinhos e desenhos animados feitos no

estilo e na linguagem desenvolvida pelos japoneses,

resultado de um processo histórico e cultural iniciado há

quase dois séculos (1993, p.2).

Deste modo, abordaremos alguns aspectos do processo

histórico, cultural e econômico do Japão conforme for

necessário para o desenvolvimento desta pesquisa, em função

das estreitas ligações que tais processos mantém com o

mangá. Sato afirma:

Atualmente o Japão é o maior produtor e consumidor de

quadrinhos e desenhos animados no mundo, gerando uma

atividade multibilionária na área de comunicações além de

lucros decorrentes de licenciamento de uma infinidade de

produtos como brinquedos e videogames e influenciando

autores em vários países (1993, p.2).

Abordar o mangá, ainda que de modo breve, nesta

pesquisa será basilar, pois este produto cultural e

midiático, quando atravessa a fronteira do Brasil, envolve

um processo de interculturalidade, conforme proposta por

García Canclini.Assim, desenvolvemos uma reflexão sobre o

Mangá japonês para estudarmos a série de gibi Turma da

Mônica Jovem, de Maurício de Souza, lançada em julho de

2008 – da qual selecionamos o corpus a ser investigado. A

Turma da Mônica Jovem conta histórias da adolescência das

personagens dos gibis da Turma da Mônica, que é composta

por um grupo de crianças, com aproximadamente sete anos de12

idade e que é um produto midiático de sucesso no mercado

editorial brasileiro.

O tema e a narrativa da Turma da Mônica Jovem se

mostram mais adequados ao novo universo adolescente,

abordando assuntos que dialogam com satisfações e

insatisfações desta fase. Já o estilo e forma dos

quadrinhos é o que mais interessa neste trabalho: a série

Turma da Mônica Jovem é em estilo mangá, provavelmente

correspondendo ao crescente interesse do jovem brasileiro

pelo mangá. Assim, esta série se mostra muito rica para

análise, pois aparentemente coloca no mesmo plano a cultura

brasileira – representado pelos gibis Turma da Mônica– e a

cultura japonesa – representada pelos mangás.

Na perspectiva do mercado editorial, é interessante

destacar que a série em mangá Turma da Mônica Jovem não foi

lançada para substituir os gibis Turma da Mônica. Tampouco

foi uma simples expansão de um mercado composto por

crianças para um mercado composto por adolescentes. Não é

prudente pensar que a Turma da Mônica Jovem foi uma simples

evolução para acompanhar o público que crescia. A Turma da

Mônica Jovem pretende atingir “o jovem interessado em ver

como estamos tratando o assunto “mangá”; a criança que quer

saber o que acontecerá quando a Turma da Mônica crescer; e

o adulto que quer conferir o que fizemos com seus ícones de

infância”, nas palavras do próprio Maurício de Souza. Os

gibis Turma da Mônica e Turma da Mônica Jovem são produtos

diferentes, com propostas diferentes, mas não excludentes,13

e sim complementares. A Turma da Mônica Jovem tomou

emprestado tudo o que foi semeado pelos gibis Turma da

Mônica e cultivado no imaginário de algumas gerações, e se

aproveitou de um novo tipo de publicação que fazia sucesso

com o adolescente brasileiro – e, portanto com pré-

adolescentes e jovens adultos – para construir outra

proposta que também atraísse seus consumidores

interessados.

O mangá será estudado somente para elucidar como se

caracteriza enquanto publicação, qual o seu significado

cultural no Japão, e como foi sua entrada no Ocidente.

Porém, para analisar o corpus constituído pela Turma da

Mônica Jovem, teremos como referência apenas dois títulos

do mangá, Naruto e Bleach, escolhidos devido à popularidade

tanto no Brasil como no Japão.

Assim, a pesquisa tem como principal objetivo analisaros diálogos de interculturalidade – relações de negociação,aceitações e negações, conflitos – que o gibi brasileiro emestilo mangá, Turma da Mônica Jovem, opera em relação aomangá japonês, especificamente no que se refere a algunsaspectos da estética corporal. São objetivos específicos:

- Mapear, nos estudos de García Canclini sobre

globalização e interculturalidade, os conceitos de

globalização, de intertextualidade e de

diferença/alteridade.

- Identificar processos de interculturalidade e de

globalização no diálogo estabelecido entre o gibi

14

mangá Turma da Mônica jovem e o mangá japonês.

- Mapear as negociações interculturais presentes no gibi

Turma da Mônica Jovem no que se refere a alguns

aspecto da estética corporal dos personagens.

Na perspectiva teórica, dois conceitos são importantes

para o desenvolvimento da pesquisa. O primeiro é o de

diversidade, isto é, a diferença concretizada nas estéticas

corporais, que provêm tanto de diferentes culturas e

organizações ideológicas, como de individualidades (cor de

pele, forma do corpo, deficiências físicas, vestuário e

etc.). O segundo é o entendimento da comunicação como

processo que ao mesmo tempo em que refrata mudanças de

pensamentos de uma sociedade, também reflete pensamentos já

existentes na mesma sociedade. Conforme Baccega:

O sujeito que conhece não é mero registrador passivo do

objeto; ele exerce um papel ativo no processo de

conhecimento, ainda que ele próprio seja resultado dos

condicionamentos sociais, o que implica uma visão de

realidade com forte presença dos aspectos socialmente

transmitidos (1995, p.11).

Assim, a pesquisa investiga como a comunicação midiáticalida com as diferenças corporais – aspectos físicos ouestéticas corporais – em uma era temperada pelo fenômeno daglobalização que em sua complexidade gera muita discussão ereflexão (GARCÍA CANCLINI: 2003).

A comunicação midiática brasileira revela, nas últimas

duas décadas, transformações que merecem discussão, como a

15

introdução de novos modelos de estética corporal, como o

corpo negro, o corpo índio ou o corpo com medidas

conflitantes se comparadas ao padrão divulgado

predominantemente na mídia (HOFF: 2008). Também Felerico

(2010), ao pesquisar sobre as reportagens da Revista Veja

que abordam a estética e os modos de cuidar do corpo,

afirma que é predominante nas reportagens da mencionada

revista a presença do padrão de corpo ultramedido, mas

também aponta a presença de corpos desmedidos, isto é,

obesos e/ou anoréxicos. Porque estas estéticas corporais

ganharam lugar na cena midiática, como eles são

representados, e quais as questões ocultas nesta

representação são questões estudadas na pesquisa.

O mangá é um objeto de estudo relevante para o campo

da comunicação porque possibilita estudar a

interculturalidade no mundo globalizado do final do século

XX e início do século XXI. Os mangás surgiram, como são

conhecidos hoje, na era pós Segunda Guerra Mundial, era

polarizada pela Guerra Fria e palco dos primeiros indícios

da globalização. O Japão daquela época era um país

destruído e com uma enorme cicatriz, tanto pela Guerra como

pelo ataque atômico em Hiroshima e Nagasaki. Por esse e

outros motivos, não era mais um Japão ultranacionalista e

militar e sim um país que necessitava promover-se perante o

mundo para se reconstituir. Neste mesmo período, muitos

japoneses imigraram para outras nações, em especial os

Estados Unidos. Estes japoneses então mesclaram sua cultura

16

original com o novo mundo a sua volta, tal mistura se

expressa na arte (REBOUÇAS: 2011). Os mangás chegam ao

ocidente nesse processo intercultural alicerçado na

situação político-econômica do Japão, mas também pelas

diásporas empreendidas pelos japoneses em direção aos

Estados Unidos: a migração sempre promove certa

visibilidade cultural, de modo que produtos culturais

japoneses – o mangá, por exemplo, – foi sendo divulgado

para a sociedade norte-americana e para outros países da

cultura ocidental, dentre eles o Brasil.

Assim os mangás surgiram como uma mistura da

tradicional arte japonesa e o movimento pop que devorava o

mundo. E, convenientemente, o mangá se transformou além de

um produto oriental que ganhava cada vez mais compradores

no mundo, num conceito modificador que seria apropriado por

outras nações do mundo por meio de um processo de

negociação intercultural (LUYTEN: 2000). A negociação dos

modelos de estéticas corporais não estava excluída deste

conceito e torna-se importante investigá-la.

1.2 Procedimentos teórico-metodológicos.

A pesquisa consiste num estudo qualitativo, posto que

busca analisar o objeto em profundidade, de modo a fazer

emergir aspectos significativos, fruto de uma análise

interpretativa. Segundo Denzin (2006: 23),

17

A palavra qualitativa implica uma ênfase sobre as

qualidades das entidades e sobre os processos e os

significados que não são examinados ou medidos

experimentalmente (se é que são medidos de alguma forma)

em termos de quantidade, volume, intensidade ou

frequência. Os pesquisadores qualitativos ressaltam a

natureza socialmente construída da realidade, a íntima

relação entre o pesquisador e o que é estudado, e as

limitações situacionais que influenciam a investigação.

Para o desenvolvimento do projeto, serão realizados

dois tipos de pesquisa: a bibliográfica e a pesquisa

documental. A primeira refere-se à leitura de obras que

fundamentam teoricamente as discussões desenvolvidas ao

longo da pesquisa. Já a segunda refere-se à coleta de

material, ou seja, à coleta de documentos midiáticos que

serão investigados: isto é, a definição dos mangás e dos

gibis Turma da Mônica Jovem que formará o corpus a ser

investigado.

O corpus formado por edições da Turma da Mônica Jovem –

publicadas pela empresa Maurício de Souza e Maurício de

Souza Produções LTDA e distribuída por Planet Mangá e

Panini Comics –, representante do gibi brasileiro com

influências do mangá, será constituído pela edição número

1, 2, 3 e 4.

Há ainda um material composto pelo produto midiático

japonês e que foi selecionado de acordo com critérios de

popularidade e riqueza na transmissão da cultura japonesa e

18

as possibilidades de análise dos aspectos corporais. São

este os mangás Bleach e Naruto, que representam o Japão

contemporâneo e o feudal respectivamente e servirão como

base para a análise da Turma da Mônica Jovem.

Para os procedimentos de análise da

interculturalidade, serão considerados prioritariamente

aspectos da estética corporal dos personagens e, em segundo

plano – somente se for necessário caso haja falta de

elementos para análise dos aspectos físicos –, a temática e

a ambientação serão consideradas na medida em que

contextualizam a narrativa vivenciada pelos personagens e

possibilitam um maior aprofundamento nas reflexões a

respeito das negociações interculturais no cenário da

globalização.

No que se refere à fundamentação teórica para abordar

aspectos do cenário contemporâneo de globalização,

consideramos as ponderações de García Canclini (2003: p.

41):

Muito do que se diz sobre a globalização é falso. Por

exemplo, que ela uniformiza todo o mundo. Ela nem sequer

conseguiu estabelecer um consenso quanto ao que significa

“globalizar-se”, nem quanto ao momento histórico em que seu

processo começou, nem quanto a sua capacidade de

reorganizar ou decompor a ordem social.

Nessa perspectiva, a globalização deve ser entendida

como um processo complexo, que se desenvolve de modo

19

desigual em diferentes sociedades e em diferentes momentos

sócio históricos. Ainda conforme García Canclini,

... o que se costuma chamar de “globalização” apresenta-se

como um conjunto de processos de homogeneização e, ao mesmo

tempo, de fragmentação articulada do mundo que reordenam as

diferenças e as desigualdades sem suprimi-las (2003: p. 44-

45).

As reflexões desenvolvidas por García Canclini, sobre

interculturalidade e também sobre a ideia de “relações de

negociações”, em obras como Culturas híbridas (2006), A

Globalização Imaginada (2003), Diferentes, desiguales y desconectados:

mapas da interculturalidade (2005), dentre outras,

constituem nossa principal referência teórica a respeito da

globalização. Vale salientar que a globalização será

estudada como processo sociocultural, o que possibilita

estudar também os imaginários sobre o mencionado fenômeno.

Deste modo, a análise da interculturalidade será

realizada a partir da noção de “relações de negociação”,

proposta por García Canclini. Tal definição de percurso de

análise, longe de significar uma fragilidade para o

desenvolvimento da pesquisa, significa um exercício válido

para a iniciação científica quando o pesquisador poderá

conhecer com profundidade o pensamento de um estudioso.

Importante dizer que García Canclini constitui a principal

referência teórica da pesquisa sobre as negociações

interculturais; no entanto, outros autores embasarão as

reflexões a respeito da globalização e sobre as produções20

midiáticas dos mangás e da Turma da Mônica Jovem.

No capítulo 2, a pauta será um estudo sobre a

globalização cultural, privilegiando a obra de Néstor

Garcia Canclini, cujas reflexões mostraram-se as mais bem

articuladas e esclarecedoras para o objetivo deste

trabalho. Estudos de outros autores serão de importante

auxílio para os pensamentos de García Canclini, muitas

vezes configurando-se como complementares.

No capítulo 3, o mangá receberá sua devida atenção. As

características descritivas do mangá, o seu papel na

cultura/sociedade japonesa, a sua história entrelaçada a

história do Japão, e um objetivo traçado de sua entrada no

Brasil darão corpo a este capítulo. Além disso, os mangás

Naruto e Bleach receberão uma descrição para auxiliar a

posterior análise comparativa com a Turma da Mônica Jovem.

No capítulo 4, a análise em si será desenvolvida. As

justificativas do lançamento do gibi Turma da Mônica Jovem,

levando em conta a sua relação no mercado editorial, assim

como um breve desenho da obra, comparado muitas vezes com

as histórias em quadrinhos Turma da Mônica, antecederão uma

investigação que procura como se configura a

interculturalidade proposta por García Canclini na Turma da

Mônica Jovem, no diálogo Brasil-Japão, ou melhor, no

diálogo global.

21

2 Contextualização sócio-histórica da globalização

Muito se tem estudado a globalização. Alguns autores

analisam o fenômeno considerando como ele alterou a

dinâmica econômica entre nações. Outros pensam como as

políticas devem se comportar na nova dinâmica global. Há

aqueles que pensam como as relações entre culturas se

modificaram devido a este novo fenômeno. Há ainda aqueles

que afirmam que a globalização tende a homogeneizar o

mundo. Já outros denunciam conflitos de exclusão originados

dessa mesma globalização “integradora”.

Para compreender o significado da globalização, deve-

se entender, antes de tudo, que ela não é um fenômeno

isolado, que pode ser dissociado do mundo onde ela se

desenvolve. Neste capítulo, há uma reflexão sobre os novos

processos para os quais a globalização abre possibilidades,

e as reações das dinâmicas socioculturais para com estes

processos – que muitas vezes podem ser reações de

desigualdade e exclusão. Por isso, neste capítulo propõe-se

uma desconstrução do senso comum da globalização – conforme

aponta García Canclini (2003) – que a considera um

“processo integrador e solidário”. Deste modo, considera-se

o que a globalização deixa a desejar.

22

Neste capítulo, também se explora o caráter das

relações entre culturas. Aqui, é importante perceber como a

definição de cultura se transformou, e como é concebida a

interculturalidade, posto que ela não se dá apenas por meio

de processos passivos de trocas de elementos culturais, e

sim de um fervilhante diálogo, uma negociação entre as

diferenças. Também matéria de discussão, as diferenças são

aqui analisadas como possíveis geradoras de conflitos, os

quais a globalização pode intensificar. As obras Diferentes,

Desiguais e Desconectados (2005) e A Globalização Imaginada (2003),

ambas de Néstor García, oferecem o fundamento teórico para

as reflexões. Autores como Milton Santos, Edgar Morin e

Maria Baccega terão suas obras estudadas para enriquecer a

posição de García Canclini, tanto pela complementação como

pela, eventualmente, negação.

2.1 Por uma definição de globalização

Vivemos em um mundo globalizado. Crises financeiras em

países, antes com pequeno poder econômico no cenário

global, causam turbulências no mundo todo. As nações, ao

mesmo tempo em que procuram formar blocos econômicos cada

vez mais coesos e com o mínimo de limitações alfandegárias,

também protegem seus mercados contra os gigantes

econômicos. Os países do Primeiro Mundo oscilam entre um

cuidado maior para com o imigrante, e ideologias xenófobas23

brotando em seu povo. As multinacionais cada vez mais

perdem território, e vendem este valor: não são mais marcas

americanas, europeias, asiáticas, são marcas globais. As

pessoas percebem que há cada vez menos distâncias culturais

entre nações, assim como a aproximação constante da

diferença entre o local e o global. Os meios de comunicação

de informação e os mercadológicos só confirmam a nova

entidade global que surgiu, sem deixar de se adaptar ao

contexto regional.

Este fenômeno que é chamado de globalização é

extremamente amplo, e está presente em inúmeras esferas da

humanidade. Pode-se falar de globalização econômica,

globalização política, globalização sociocultural,

globalização tecnológica, entre inúmeras outras facetas.

Com isso, já é posto que uma definição de globalização é

impossível, e se possível, seria muito vaga e

inconsistente, imprudentemente totalizadora, pois, devido

ao gigantismo da globalização, ela é estudada por meio de

diversos ângulos, visto que causa tantas interferências de

naturezas distintas no cenário mundial (muitas vezes

contraditórias). Deste modo, o que é possível é um

entendimento do que a globalização pode e não pode fazer, e

como os sistemas podem ou não reagir a ela. A globalização

não deve ser estabelecida como um dogma teórico, tampouco

como a justaposição de suas interpretações. Deve-se

encontrar uma racionalidade em seus processos que a

expliquem em seus inúmeros aspectos (GARCÍA CANCLINI:

24

2010). Por sua inerente abrangência, é apropriada a análise

sobre um aspecto definido, para haver a necessária

consistência. Neste trabalho, daremos ênfase na

globalização em sua dimensão cultural e comunicacional.

Para iniciar o processo de entendimento das dinâmicas

culturais temperadas pela globalização, é pertinente

entender os processos predecessores e básicos. Podem-se

colocar três tipos de relações entre culturas, uma

sucedendo a outra cronologicamente (dando pistas sobre a

globalização ter se originado na segunda metade do século

XX): a internacionalização, a transnacionalização e a

globalização. Internacionalização é a mais simples das

interações, e está centrada em apenas uma personagem. Esta

personagem “importa” elementos culturais de outro povo, e o

admira por meio de sua própria visão da cultural original.

É a simples admiração do exótico de seu ponto fixo. Já a

transnacionalização, que ainda se centra em apenas uma

personagem, é a admiração do elemento cultural alheio por

meio da visão e sentidos simbólicos da cultura alheia,

mesmo que seja impossível desimpregnar-se totalmente da

cultura original. A globalização é a forma mais complexa de

interação. Não está mais centrada em apenas um personagem:

é a admiração do elemento cultural alheio por meio de

várias visões culturais simultaneamente (GARCÍA CANCLINI:

2005), conforme citamos abaixo:

A globalização foi-se preparando nesses dois processos

anteriores por meio de uma intensificação das dependências

25

recíprocas (BECK,1998), do crescimento e da aceleração de

redes econômicas e culturais que operam em escala mundial e

sobre uma base mundial (2003, p. 42).

Este conceito mais teórico do que é a globalização já

nos dá indício de sua extrema complexidade, ainda mais no

campo cultural e comunicacional. Hoje, não se sabe mais o

que é de quem. Podemos visitar o México e provar um pedaço

dos EUA, um México americanizado, que não deixa de ser

México, mas também não é mais México. Podemos também ir

para os Estados Unidos e provar um EUA latinizado, em

regiões onde se fala mais espanhol do que inglês. Podemos

provar a culinária asiática em restaurantes Europeus, ou

ouvir músicas japonesas no ritmo percussivo da África.

Podemos até ir ao Shopping Center, adentrando em um

território global, ou até mesmo visitar o espaço mais

global de todos, a Internet. A globalização proporcionou um

contato entre as culturas extremamente intenso. Houve

tantas trocas entre culturas, que hoje não faz mais sentido

não pensar globalmente. Porém, é um perigoso erro pensar

que estas interações culturais fazem dissolver as

diferenças e alteridade.

Antes de desenvolver este pensamento sobre interações

culturais, é importante atentar para as diversas

interpretações sobre a globalização, as vezes como fenômeno

integrador, as vezes como fenômeno de exclusão.

Milton Santos formula um pensamento um tanto

26

pessimista entorno da globalização. Este autor afirma em

suas obras que a globalização é pautada no que ele chama de

"tirania do dinheiro" e "tirania da informação". A "tirania

da informação" é uma tirania disfarçada, pois a suposta

informação livre e verdadeira não é tão livre nem tão

verdadeira, já que é o produto de uma manipulação dos fatos

para que estejam de acordo com a ideologia da mídia. Esta

tirania criaria as chamadas fábulas. As fábulas são as

ideias integradoras sobre a globalização: a noção de aldeia

global, a eliminação de fronteiras, a não mais necessidade

do Estado, a sobreposição sobre as diferenças. Milton situa

a "tirania da informação" como subordinada da "tirania do

dinheiro"

A "tirania do dinheiro" se baseia na ideia de que

praticamente tudo no mundo globalizado é medido pelo

dinheiro. Não só as empresas, mas os partidos, as cidades,

e até as pessoas. Tudo e todos se tornaram servos do

dinheiro, e isso faz com que haja cada vez mais

individualismo. De acordo com Milton Santos:

Esta guerra como norma justifica toda a forma de apelo à

forca, a que assistimos em diversos países, um apelo não

dissimulado, utilizado para dirimir os conflitos e

consequência dessa ética de competitividade que caracteriza

nosso tempo. Ora, é isso também que justifica os

individualismos arrebatadores e possessivos:

individualismos na vida econômica (a maneira como as

empresas batalham umas com as outras); individualismos na

27

ordem da política (a maneira como os partidos

frequentemente abandonam a ideia de política para se

tornarem simplesmente eleitoreiros); individualismos na

ordem do território (as cidades brigando umas com as

outras, as regiões proclamando soluções particularistas).

Também na ordem social e individual são individualismos

arrebatadores e possessivos, que acabam por constituir o

outro como coisa. Comportamentos que justificam todo o

desrespeito às pessoas são, afinal, uma base da sociedade

atual (2008, p. 46,47).

A publicidade cria os consumidores para depois criar

os produtos, os objetos nos fazem como somos e o que eles

significam é forjado pelos publicitários. De acordo com

ele, isso enfraquece o ser humano, e é a matriz de vários

conflitos. Para Milton Santos:

Atualmente, as empresas hegemônicas produzem o consumidor

antes mesmo de produzir os produtos. Um dado essencial do

entendimento do consumo é que a produção do consumidor,

hoje, precede a produção dos bens e dos serviços. Então, na

cadeia usual, a chamada autonomia da produção cede lugar ao

despotismo do consumo. Daí, o império da informação e

publicidade. Tal remédio teria 1% de medicina e 99% de

publicidade, mas todas as coisas do comércio acabam por ter

essa composição: publicidade + materialidade; publicidade +

serviços, e esse é o caso de tantas mercadorias cuja

circulação é fundada numa propaganda insistente e

frequentemente enganosa. Há toda essa maneira de organizar

o consumo para permitir, em seguida, a organização da

produção (2008, p. 48,49).28

O autor prossegue por meio de um argumento histórico.

Ele afirma que quando a ciência surgiu, ela se aliou ao

capitalismo e levou a um desencantamento do mundo. Porém,

os ideais da Revolução Francesa e o Iluminismo supriram de

moral este sistema. Esta moral se esfacelou quando surgiu a

globalização, pois ela é a face mais voraz do capitalismo e

infectou a todas as áreas com sua "tirania do dinheiro".

Como exemplo, Santos critica o Estado. O Estado se

adapta às articulações comerciais, mas se omite em relação

às questões sociais. Isto mostra como o Estado cada vez

mais perde de vista seu verdadeiro objetivo de dar

assistência a sua população e se torna cada vez mais

parecido com uma empresa. E para resolver os problemas

sociais sobre os quais o Estado se omite, surgem as ONGs

que não são mais nada que empresas, portanto sujeitas à

lógica capitalista,pagas para realizar o trabalho de

obrigação primária do Estado. De acordo com as palavras do

autor:

Agora se fala muito num terceiro setor, em que as empresas

privadas assumiriam um trabalho de assistência social antes

deferido ao poder público. Caber-lhes-ia, desse modo,

escolher quais os beneficiários, privilegiando uma parcela

da sociedade e deixando a maior parte de fora. Haveria

frações do território e da sociedade a serem deixadas por

conta, desde que não convenham ao cálculo das firmas. Essa

“política” das empresas equivale à decretação de morte da

Política (2008, p.67).

29

Milton Santos também tece reflexões sobre a pobreza.

Para ele, há três tipos de pobreza: a pobreza incluída, a

marginalidade, e a pobreza estrutural. A pobreza incluída é

a menos grave, pois é sazonal, de causas isoladas, pontuais

e tem soluções locais. Já a segunda é a pobreza da

marginalidade, oriunda do capitalismo de consumo. O

marginal, à parte da sociedade, é o indivíduo "doente” que

não se adequa à lógica capitalista, não consome como

deveria consumir. Esta pobreza é vista como uma doença a

ser "curada". A terceira é a pobreza estrutural

globalizada, a mais grave no entender do autor, pois o

pobre não é mais marginal, é excluído. Ninguém realmente se

importa com sua condição, é considerado um efeito colateral

necessário da globalização, e por este motivo não recebe

atenção nem é, no fim, encarado como algo a ser curado.

Estas duas últimas pobrezas se comunicam, ou seja, são

fruto de uma dinâmica econômica destruidora, e são mazelas

sociais graves de acordo com Santos que argumenta a

respeito da pobreza estrutural globalizada:

Esta produção maciça de pobreza aparece como um fenômeno

banal. Uma das grandes diferenças do ponto de vista ético é

que a pobreza de agora surge, impõe-se e explica-se como

algo natural e inevitável. Mas é uma pobreza produzida

politicamente pelas empresas e instituições globais. Estas,

de um lado, pagam para criar soluções localizadas,

parcializadas, segmentadas, como é o caso do Banco Mundial,

que, em diferentes partes do mundo, financia programas de

atenção aos pobres, querendo passar a impressão de se

30

interessar pelos desvalidos, quando, estruturalmente, é o

grande produtor da pobreza. Atacam-se, funcionalmente,

manifestações da pobreza, enquanto estruturalmente se cria

a pobreza ao nível do mundo. E isso se dá com a colaboração

passiva ou ativa dos governos nacionais (2008, p. 73).

O referido autor conclui seus pensamentos quando

escreve um pouco sobre a sistematização na vida das

pessoas. As pessoas estão totalmente alienadas às tiranias

da globalização, que dita como elas devem pensar e se

comportar. A globalização cria o desejo de consumo em

todos, mas nem todos conseguem realizar esses desejos, pela

lógica capitalista. Isto causa uma frustração na classe

média, e ainda mais nos pobres. Porém, os pobres não têm a

organização necessária para reagir contra o sistema, e por

isso precisam da ajuda da classe média. O problema é que a

classe média é a mais alienada e cultiva um grande

desinteresse pela política e pela cidadania, e, de acordo

com ele, deveria ser o contrário para que pudessem mudar

alguma coisa.

Milton Santos introduz importantes reflexões sobre a

questão da tirania do dinheiro e informação. Porém, é

sensato fazer uma análise crítica de algumas ideias desse

autor. Sobre a informação, é inconcebível não pensar que a

informação midiática atual está necessariamente atrelada a

uma ideologia. Mas é imprudente pensar que a informação é

completamente subordinada à ideologia hegemônica. Lembremos

que a comunicação midiática realiza-se da sociedade para

31

com a própria sociedade, ou seja, obviamente pode refratar

como fator de modificação na maneira das pessoas pensarem,

mas também é um reflexo do que a própria sociedade pensa.

Entre outras palavras, se essa comunicação é efetiva, é

porque de alguma forma faz sentido para os receptores, que

não são totalmente passivos, mas mediadores. No momento em

que o fato é moldado para informação ele já passa a ser um

discurso, e em todo discurso há uma ideologia, mesmo que

não consciente pelo sujeito que o expressa em sua fala. Mas

pensar que toda a informação é manipulada para que aliene

os receptores é transformar estes diálogos em uma simples

relação causa-efeito.

A linguagem nada mais é que um instrumento para que o

ser humano possa se aproximar do mundo. Mais do que isso, o

pensamento que entende o mundo só existe pela linguagem.

Portanto, a expressão não se separa da forma, já que os

signos formam o pensamento e o pensamento se forma nos

signos. Entretanto, nascem as ideologias, que são conjuntos

solidificados de ideias comuns a um grupo social, e

pretensamente imutáveis. A ideologiatrans forma a

linguagem, que por definição configura-se ferramenta para o

pensamento, em uma “linguagem” fixa, que tem como objetivo

o simples rotulamento dos signos, e portanto como se pensa

o mundo. Porém, o signo necessariamente proporciona

abertura: quando o interpretante pensa o objeto, extrai daí

um signo, que por sua vez também é pensado, e gera outro

signo, e assim por diante; ou seja, gerando uma cadeia que

32

sempre se expande e nunca se fecha. Em suma, a ideologia

engessa a estrutura de pensar, e nisso, mata parte do

pensamento, que exige a linguagem como ferramenta para se

articular. Ideologia, de acordo com Baccega:

A ideologia só existe na prática social. Ela se

constitui num sistema de valores, pleno de

representações, de imagens -- modo de ver o mundo,

modo de ver a sociedade, modo que o homem vê a si e

aos outros. Enfeixa os pontos de vista dos homens que

vivem em um determinado grupo, classe social, ou

nação. Tem o poder de "condicionar as atitudes dos

homens" e levá-los a praticar (ou consideram que

praticam) ações que eles consideram as mais adequadas

para não se desviar desse sistema de valores. Mostra-

se coerente e sistematizada, o que lhe garante sua

força (2002, p. 34).

Todo indivíduo é alvejado pela ideologia a qual

pertence e, em seu discurso, pode refletir quase que

inteiramente, ou seja, reproduzir, o dito discurso

ideológico. Porém, todo o indivíduo também é sujeito. Entre

outras palavras, ele também refrata o discurso ideológico.

Entende-se refratar como transformar, reorganizar, inovar,

ou até mesmo negar. A linguagem, de acordo com Baccega, não

é dada, é dando-se: é mutável e deve ser mutável, pois

acompanha como uma ponte o ser humano pensante e sua

relação com o mundo, que se transforma sempre com o tempo.

Visto isso, a ideologia, no momento em que presume

solidificar a linguagem e seus significados, poda a33

possibilidade de transformação do pensamento.

O que ocorre, porém, é que nenhum sujeito/indivíduo

está imune às ideologias. Elas são a primeira base de

acesso ao mundo, além de serem características sociais de

seres sociais que somos nós. Portanto, para fazer o futuro,

é necessário o presente, assim como para transformar ou até

mesmo negar, é preciso conhecer aquilo que se transforma,

ou nega. De outro lado, todo o sujeito/indivíduo, no

momento em que apreende o discurso recebido, interpreta-o a

sua própria maneira, visto que seu repertório de

conhecimento, experiências e valores têm uma carga de

subjetividade que o diferencia dos demais.

Conclui-se assim que um sujeito/indivíduo social não é

capaz de refletir ou refratar inteiramente um discurso. Ou

seja, ele sempre será o arauto de uma ideologia -- em maior

ou menor nível – mas nunca será um simples reprodutor

passivo. Baccega sobre o indivíduo:

O indivíduo resulta, portanto, de vários discursos; é

paciente de uma pesada carga social, que atua

ditatorialmente sobre cada um. Mesmo assim a subjetividade

é única, carrega os traços da especificidade do ser que

reelabora essa carga e do universo a qual ela pertence.

Mas ele também é agente. Portador de uma

subjetividade plural, o indivíduo tem condições de

reelaborar, de inovar os discursos da sociedade, que são

muitos, produzindo outros muitos discursos. Daí sujeito. É

essa condição de paciente/agente que nos leva a designá-lo34

indivíduo/sujeito.(1995, p.22)

Sobre a tirania do dinheiro, pode-se pensar

semelhantemente. A lógica capitalista se pauta no dinheiro

e seu valor. Não são as empresas que corrompem o mundo com

publicitários que criam consumidores. Os consumidores, mais

uma vez, não são passivos ao processo do consumo. Pensar

que esta valorização excessiva do dinheiro pode causar

corrosões que podem resultar em graves conflitos

individuais e sociais é válido. Mas pensar que existe um

lado que manipula para vender e outro lado que é manipulado

para comprar é ser imprudentemente simplista.

Sobre o Estado, Milton Santos supõe uma total omissão

com o social e uma subordinação com as dinâmicas das

empresas. O social não se sustenta sozinho, ele faz parte

da importante interdependente tríade social-econômico-

político. Visto que o mundo funciona de acordo com as

dinâmicas capitalistas, as relações comerciais são de

extrema importância para melhorar a qualidade de vida do

social, que também está sujeito a essas dinâmicas

capitalistas. O que não pode ocorrer é a inversão dos

valores e a perda de visão do verdadeiro objetivo do

Estado, que é a qualidade de vida do povo, e não

exclusivamente das dinâmicas comerciais entre empresas. A

preocupação com as dinâmicas comerciais deve servir a

melhoria social, e não qualquer outra coisa.

De acordo com Vasconcellos (2002), o objetivo das

35

políticas econômicas se encontra em quatro submetas

principais, sendo estas o pleno emprego de recursos, a

estabilidade de preços, a distribuição equitativa de renda

e o crescimento econômico. O alto nível de empregos corrige

o problema do desemprego que afeta contundentemente a

qualidade de vida. A estabilidade de preço é o contrário do

aumento gradativo de preços, a inflação, que apresenta

causas quase que sempre danosas a sociedade – déficit

público, obsolescência produtiva, indexação da economia,

problemas estruturais na produção –, além de provocar

consequências igualmente nocivas, como a diminuição do

poder de compra do trabalhador. A distribuição equitativa

de renda busca fiscalizar essa diferença gritante, na qual

há poucos que têm muito, e muitos que têm pouco. Por fim, a

meta do crescimento econômico visa aumentar o poder

econômico da população, e, portanto, viabilizar um

incremento na qualidade de vida. Deste modo, percebe-se

facilmente que as submetas da política econômica estão em

prol de uma grande meta, que é o aumento e a manutenção do

direito à qualidade de vida, na qual está incluso moradia,

educação, transporte, emprego de qualidade.

A classificação de pobreza de Milton é muito

pertinente, mesmo que em alguns pontos muito radical e

pessimista. A exclusão na globalização é sim presente, e

pode sim ser fruto dos avassaladores impactos que ela

trouxe. Porém, a globalização desmedida, que desrespeita as

diferenças e intensifica conflitos, causando desigualdades

36

produz essa exclusão. É possível, através de uma mediação

crítica, solucionar essas questões de exclusão e

desigualdade.

A questão de alienação da classe média e possível

revolta dos pobres é inaplicável no contexto observado

atualmente. Como já dito, não há alienação, e inteira

passividade. Os pobres, que seriam os excluídos, não se

revoltam contra a globalização. Justamente o contrário,

aparentemente eles querem ser incluídos.

Por fim, podemos afirmar que as reflexões de Milton

Santos não podem mais condizer inteiramente às dinâmicas

atuais da globalização. Ele polariza a globalização como

corrompedora da sociedade e a sociedade como vítima

corrompida. Mais adiante, provaremos que a globalização não

pode ser polarizada desta maneira. Ela proporciona diversos

diálogos, e nestes diálogos pode haver harmonia, como pode

haver conflito.

Edgar Morin já tem uma visão mais otimista sobre o

fenômeno da globalização, visto que enaltece sua agenda

integradora e comunicadora. De acordo com ele, existiram

dois tipos de globalização na história. A primeira ele

denomina de primeira globalização. Esta é a da conquista

dos dominadores sobre os dominados: é exemplificada pela

relação metrópole-colônias, as tensões Norte-Sul. A segunda

globalização, esta a qual estamos vivenciando, é a da

cidadania e união global, cuja dinâmica é mais igualitária

37

e justa.

Aqui é importante a colocação do conceito trabalhado

por ele de ambivalência. De acordo com Morin:

Por que esta dificuldade de unir duas noções tão

contraditórias? Temos na história do pensamento ocidental

uma tradição que passa por Heráclito, por Pascal, Hegel,

Marx e outros, Lupasco, que diz que duas verdades

contraditórias podem valer ao mesmo tempo. Pascal disse que

o contrário de uma verdade não é um erro, é outra verdade.

É o mesmo que o físico Bohr, um dos pais da microfísica: o

contrário de uma verdade profunda é outra verdade profunda.

Esta é uma coisa muito importante: comparar duas verdades

profundas, ou seja, considerar a ciência como ambivalência

(2002, p. 50-51)

Morin usa esse conceito de ambivalência para

justificar várias oposições que propõe. A primeira é a da

globalização contra o fortalecimento da pátria (não

confundir patriotismo, a concepção saudável da pátria pelo

que ela é para seu povo, com nacionalismo, a concepção

deturpada da pátria pautada no ódio ao de fora,

estrangeiro). Os dois conceitos coexistem e o equilíbrio

entre eles é a melhor forma de se alcançar uma harmonia.

Mesmo que sejam contraditórias, são realidades inteiramente

válidas da nossa dinâmica. Com isso, vem a questão da

homogeneização versus a resistência à mercantilização da

vida, que estão sujeitas ao mesmo contexto de ambivalência.

Ele conclui, portanto, que a globalização não38

homogeneíza, mas se contextualiza a cada dinâmica local, e

só assim a integração justa poderá ser alcançada. Morin

conclui:

Uno no sentido de que cada parte do mundo faz parte cada

vez mais do mundo em sua globalidade. E que o mundo em sua

globalidade encontra-se dentro de cada parte (2002, p.46)

O que Morin expõe é muito pertinente, principalmente

pelo desenvolvimento do conceito da ambivalência trabalha

como pano de fundo para muitos processos relacionados à

globalização, como a oposição global e local, a hominização

e o individualismo, etc. é interessante considerar como é

frequente se pensar na globalização como paradigma de

padronização, reprodução em massa, comunicação sem

informação, contraposto às mais diversas questões que faz

despertar sobre o globo. A globalização estaciona de modo

diferente em cada contexto regional e ali ocorrem os

diálogos local e global. Entretanto, Morin também parece

ter uma visão muito centrada nos aspectos positivos do

fenômeno: ele enaltece demais a faceta de integração da

globalização. Os fenômenos que envolvem a globalização são

violentos e impactantes, e podem chocar com questões de

diferença que nunca seriam simplesmente dissolvidas. Estes

conflitos oriundos do diálogo entre diferenças podem se

intensificar a ponto de, por exemplo, fazer surgir com

muito fervor ideologias xenófobas. O capitalismo, assim

como a globalização, deve respeitar essas diferenças para

evitar rupturas desastrosas, causadoras de desigualdade, ou

39

seja, mais direito para uns, menos direito para outros.

Néstor García Canclini é o autor em cujo pensamento

fundamentamos nossas discussões porque avaliamos como o

mais adequado como eixo de reflexões desta pesquisa. García

Canclini não se prende a conceitos morais polarizados. Ele

analisa a globalização e seus fenômenos conseguintes como

dinâmica que pode causar grandes mazelas sociais, mas pode

resolver outras questões. O que não queremos é limitar a

globalização a duas interpretações radicais: uma de que ela

necessariamente favorece a igualdade entre pessoas e

nações, e outra de que ela é um processo totalmente

destrutivo que promove alienação e homogeneização das

pessoas. Visto isto, as reflexões de García Canclini são as

mais condizentes e, portanto, as privilegiadas neste

trabalho.

Segundo García Canclini, muito do que se fala e pensa

sobre a globalização é falso, por exemplo, que ela

homogeneíza o mundo. Assim, é necessário fazer uma

desconstrução deste senso comum, do que só é falado e não

constatado objetivamente na realidade. García Canclini

questiona isto:

Curioso é que essa disputa de todos contra todos, em

que fábricas vão falindo, empregos são destruídos e

explodem a migração em massa e os conflitos étnicos e

regionais, receba o nome de globalização. Chama a

atenção o fato de empresários políticos interpretarem

a globalização como a convergência da humanidade rumo40

a um futuro solidário, e que até muitos críticos do

processo entendam essa devastação como o processo por

meio do qual todos acabaremos homogeneizados (2003,

p.8).

As interações inéditas entre duas culturas,

proporcionadas pela globalização, não resultam em uma

uniformização de ambas. Há nestes processos, as chamadas

relações de negociação, certas negociações: elementos

culturais são assimilados, outros são somente aceitos,

outros inclusive negados e rejeitados. Ocorre um diálogo

intercultural pautado pela diferença e alteridade inerente

às culturas. E então, entende-se que a globalização altera

e intensifica a dinâmica de relação, mas enquanto pode

tornar mais semelhantes, também pode intensificar conflitos

já existentes, ou até mesmo criar novos. García Canclini

então resume: “Para dizê-lo de maneira mais clara, o que secostuma chamar de globalização apresenta-se como um conjunto de

processos de homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação

articulada do mundo que reordenam as diferenças e desigualdades

sem suprimi-las” (2003, p. 44-45).

Logo, torna-se importante separar a globalização em

dois: a globalização e as reações das culturas, inclusos

não somente as negociações pacíficas, mas também os

conflitos, as rupturas, as desigualdades, as exclusões; e a

globalização imaginada, aquilo que se idealiza sobre a

globalização, o que está no imaginário, mas que não deixa

de ter sua importância (GARCÍA CANCLINI: 2003).

41

2.2 Processos de interculturalidade contextualizados pela

globalização

A globalização é um conjunto de processos que articula

os sistemas simbólicos, com base nas diferenças culturais,

étnicas, etc., havendo aí relações de negociação, relações

estas em que os sujeitos escolhem e relacionam livremente

diversos elementos culturais, ponderando quais fazem

sentido e quais não fazem sentido para si. Mas qual o

entendimento de cultura que melhor se aplica a este

processo, visto que a globalização possibilitou que

houvesse tantas trocas interculturais, que fica cada vez

mais difícil catalogar o que é de quem?

Convém, portanto, elucidar qual a compreensão de

cultura adequada para o estudo. Vale um breve traçado da

evolução de sua definição. Primeiramente, a cultura era

entendida limitada às obras culturais, estas por sua vez,

prometidas somente as elites econômicas e intelectuais. Os

trabalhos artísticos realizados pelas elites eram adotados

como a única cultura. Com o gradativo esclarecimento

científico, redefiniu-se a cultura como qualquer tipo de

produção, modificação do natural, que o homem faz. Como

essa definição transformou a cultura em algo muito amplo e

42

vago, ela foi lapidada. A cultura passou a ser o conjunto

de cadeias de sistemas de significações comuns a uma

determinada população ou grupo social (GARCÍA CANCLINI:

2003). Entretanto, esta definição não é capaz de explicar

como se configura a diferença cultural. O que faz uma

cultura diferente de outra e onde está a delimitação que as

difere é uma questão a se pensar em um mundo onde tais

fronteiras, se existentes, são abaladas. García Canclini

faz uma colocação muito pertinente:

Marc Abélès, Arjun Appadurai e James Clifford, entreoutros, estão renovando a disciplina ao redefinir a noçãode cultura: não mais como uma entidade ou pacote decaracterísticas que diferenciam uma sociedade de outra.(2005, p. 24).

Nesta perspectiva, García Canclini destaca que os dois

autores mencionados “concebem o cultural como sistema de

relações de sentido” (2005, p.24), de modo que Appadurai

identifica “diferenças, contrastes e comparações”

(APPADURAI, 1996, p.12-13 apud García Canclini, 2005,

p.24),e que Jameson considera o cultural como “veículo ou

meio pelo qual a relação entre os grupos é levada a cabo”

(JAMESON, 1993, p.104 apud García Canclini, 2005, p.24).

Uma interpretação muito interessante e válida pra o

entendimento consta em pensar a cultura não como

substantivo, mas sim como o adjetivo cultural. Já que não

faz mais sentido imaginar a cultura como um bem propriedade

de uma nação: assim, faz sentido imaginar a cultura como

justamente a qualidade desse sistema de significações43

próprios de um povo. E com esta visão, valoriza-se

justamente a relação intercultural, como as diferenças de

dois ambientes diferentes dialogam entre si, entre outras

palavras, a interculturalidade. García Canclini conclui:

O cultural abrange o conjunto de processos mediante

os quais representamos e instituímos imaginariamente

o social, concebemos e administramos as relações com

os outros, ou seja, as diferenças, ordenamos sua

dispersão e sua incomensurabilidade por meio de uma

delimitação que flutua entre a ordem que possibilita

o funcionamento da sociedade (local e global) e os

atores que a abrem ao possível (2003, p.57-58).

Logo, é importante identificar o significado de

interculturalidade, contraposto à chamada

multiculturalidade. A multiculturalidade refere-se à

interação na qual há justaposição das culturas. As

diversidades culturais são constatadas e aceitas, muitas

vezes alimentadas por um incentivo a políticas de simples

aceitação, sem maiores cuidados, o que, muitas vezes, leva

a segregação. Já o intercultural não é a justaposição, e

sim a aglutinação, o diálogo existente entre os diferentes.

A diferença, portanto, não está isolada e distante, está

presente, está influenciando, dialogando, negociando. Se

imaginarmos esse processo acontecendo simultaneamente com

inúmeras diferenças culturais podemos ter uma noção do

turbilhão que é a globalização. A conclusão é que, as

delimitações entre culturas que definem sua alteridade não

44

fazem mais sentido, embora essa dissolução das fronteiras

culturais não deságue na dissolução da diferença. Isso,

pois objetivo não é mais catalogar o que é de quem, e sim

entender as negociações interculturais, o que elas podem

prejudicar algum dos lados, e a busca de alternativas para

que seja um diálogo de diferentes, que não os torne

desiguais (GARCÍA CANCLINI: 2005).

Uma forma bastante interessante de analisar a

globalização é refletir sobre os casos em que a

globalização “não dá certo”, entre outras palavras, aquilo

que ela não pode solucionar, ou criar um diálogo pacífico e

igualitário, deve-se, portanto, entender a diferença,

desigualdade, desconexão, e como elas se relacionam. Muitos

estudos se limitaram a estudar somente um ou dois elementos

dos três, e por isso, detiveram-se de entender a

interculturalidade como um todo (GARCÍA CANCLINI: 2005).

A diferença está no plano cultural. Ela é inerente a

uma cultura, e, mais do que isso, é justamente a diferença

que define uma cultura, o que ela é o que ela não é. A

globalização choca as diferenças, proporcionando a troca e

negociação, mas não tira a qualidade de diferente. Por

exemplo, o México é um país que goza da industrialização e

urbanização que lhe foi proporcionada no século XX, e ainda

sim de uma grande parcela indígena, que é dividida em

várias tribos desde a época colonial. A diferença é notada

claramente entre os povos indígenas e os povos urbanizados.

Nos tempos globalizados, é utópico pensar em preservar a45

“cultura original” indígena da cultura urbana

contemporânea, visto que o contato intercultural modifica

irreversivelmente a cultura indígena, e vice-versa. São

interações inevitáveis e necessárias. O que pode ocorrer é

uma influência negativa e destruidora, normalmente advinda

da parte dominante. Se este processo intercultural não for

bem mediado, o que antes era diferença, pode se tornar

desigualdade, quando uma das partes sai prejudicada.

Reparemos que a alteridade deve ser respeitada e

compreendida, e em muitos casos, a interculturalidade pode

servir como instrumento de amenização da desigualdade. A

cultura é uma dinâmica, e seu maior valor está justo do

diálogo entre diferentes (GARCÍA CANCLINI: 2005).

Já a desigualdade está no nível social. Um estudioso

importante que ajuda a entender a relação

desigualdade/diferença é Bourdieu que compartilha de vários

pensamentos marxistas, e aprofundou na questão social e

cultural. Para ele, a cultura não é uma simples

consequência do sistema econômico de produção e

distribuição, mas é um elemento que se relaciona. O que se

denomina boa cultura pela elite dominante é, de acordo com

ele, uma forma de dominação para com as classes econômicas

abaixo. A cultura criada pela elite se torna propriedade da

mesma elite, e só pode ser acessada pela mesma. Isto, pois

eles detêm o conhecimento necessário para entrar em contato

com sua cultura. Deste modo, torna-se extremamente difícil

o acesso das classes baixas a cultura de elite, que, pelo

46

poder dominante exercido, se torna a única cultura legítima

de acordo com o discurso das elites. As classes baixas não

conseguem expressar-se facilmente, pois desconhecem a

linguagem usada. Nasce neste momento a desigualdade em

função da diferença. Cria-se a ilusão de que a desigualdade

não é medida pelo que se tem, mas pelo que se é. O

esclarecimento de conhecimento parece mais um dom das

elites do que a consequência de vidas que se desenvolveram

desigualmente em recursos. De acordo com Bourdieu, a

cultura popular prioriza muito menos o valor simbólico e

mais o valor funcional. Ainda assim, não se opõe totalmente

a cultura dominante, assimilando suas regras. Deste modo,

não é autônoma, e as alterações e conflitos ficam

restritamente dependentes da cultura dominante. Já cultura

média entra neste contexto como a “galeria de artes para

pobres”, ou seja, a cultura da elite com a praticidade

popular.

García Canclini, na obra Diferentes, Desiguales y

Desconectados, constata que a análise de Bourdieu é muito

pertinente, mas não engloba tudo necessário. De acordo com

ele, as classes sociais baixas não são totalmente

autônomas, mas também não são totalmente subordinadas. Elas

criam expressões, costumes, crenças, festas, etc. Criam uma

cultura viva e a respeitam.

Para completar, García Canclini propõe um aspecto que,

não suprime a divisão desigual em classes, mas se relaciona

com a desigualdade e diferença. Hoje se pensa muito no47

conectado e desconectado, muito mais a metáfora da rede e

menos do estrato social. O homem grande é aquele que tem

contatos e mantém sua autenticidade para fazer valer tais

relações. O excluído seria o sedentário, imóvel, que não

faz valer contatos. Nota-se que este novo modelo não veio

para substituir a desigualdade, mas sim dialogar com ela.

Portanto, é importante perceber o fenômeno

globalização naquilo que ele deixa dever. As diferenças são

impossíveis de serem suprimidas, devem ser aceitas, e por

meio de uma ação crítica, ser impedidas de criar ou

intensificar as desigualdades, que, se aliadas à

desconexão, podem levar a exclusão, o pior dos casos.

Diante das reflexões apresentadas até aqui, não se

pode mais reduzir a globalização ao globalismo. O

globalismo engloba somente a agenda integradora e

comunicadora, ou seja, o imaginário de que o transnacional,

a unificação das nações, se põe acima das diferenças,

neutralizando-as. A globalização também tem em sua

essência, a agenda segregadora e dispersiva, que causa

desigualdade pela diferença e pela exclusão. Estas agendas

se relacionam e se combinam de maneiras diferentes em cada

contexto cultural e social. A globalização estaciona

diferentemente em cada lugar (GARCÍA CANCLINI: 2003).

A interculturalidade pode se estabelecer em todos os

tipos de contato, e está sujeita as especificidades de cada

elemento envolvido. A interculturalidade pode se fazer

48

presente na comunicação publicitária – por exemplo, as

polêmicas propagandas da Benetton, que vendem o conceito de

integração étnica e cultural –; pode se fazer na Internet,

que possibilita o contato simultâneo e quase instantâneo de

pessoas de muitos lugares e formações culturais distintas;

pode ocorrer na política entre países e blocos econômicos;

etc. Porém, é interessante notar o papel intercultural que

a migração de pessoas no mundo globalizado pode

proporcionar. A migração tem um grande valor intercultural

– diálogo entre diferenças – que se articula de maneiras

distintas em cada contexto. Denise Gogo trata adequadamente

desta instância:

Essa complexa teia de relações interculturais

repercute na conformação dos processos

identitários a partir da constituição, pelos

migrantes, de múltiplas e fluidas identidades

fundamentadas ao mesmo tempo nas sociedades de

origem e nas “adotivas”. Enquanto alguns

imigrantes identificam-se mais com uma sociedade

do que com a outra, a maioria parece desenvolver

várias identidades, relacionando-as

simultaneamente com mais de uma nação. (2006, p.

14).

As reflexões de García Canclini servem de conhecimento

para uma visão crítica que não ignora os problemas de

conflito entre diferenças, mas admite que, com uma mediação

justa e embasada, esses conflitos podem ser solucionados ou49

amenizados. Suas reflexões nos levam a considerar que as

relações de negociação fundamentam-se na possibilidade de

troca, de interação e de diálogo entre os sujeitos nas

dinâmicas socioculturais e também nas dinâmicas econômicas

e mercadológicas. O pensamento de García Canclini sugere

que as relações de poder acontecem em todas as instâncias

do tecido cultural: assim, acontecem no centro e nas

fronteiras entre os grupos sociais, sem que haja

necessariamente o dominador e o dominado, pois as

negociações implicam tensões, conflitos e acordos em

movimento.

No que se refere ao fenômeno do consumo, existem

diversas linhas de interpretação, e, como objetivo de

compreendê-lo, é vital assinalar como as perspectivas de

entendimento sobre esse fenômeno foram se transformando.

Os processos de consumo não são uma simples relação

vertical entre corporações manipuladores e audiências –

consumidores – passivas. Os estudos sobre comunicação em

massa mostram que a comunicação das empresas com o

consumidor vai além daquilo que certas correntes teóricas

concebem como dominação do receptor pelo emissor.

Entendemos que há aí diversos mediadores, como família,

bairro e grupos de trabalho. Além disso, a comunicação

nunca pode ser reduzida a uma recepção passiva, visto que

ela é dialógica, ou seja, implica sempre um diálogo entre

emissor e receptor, já que estão inclusos processos de

codificação e decodificação dependentes do repertório de50

cada parte e contextualizados pela experiência sócio-

histórica do sujeito.

Uma primeira investigação sobre consumo pode ser

compreendida pela sua racionalidade econômica. Define García

Canclini:

o consumo é o conjunto de processos socioculturais em que

se realizam a apropriação e os usos de produtos. Esta

caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais

consumimos como algo mais do que simples exercícios de

gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo os

julgamentos moralistas, ou atitudes individuais, tal como

costumam ser explorados pelas pesquisas de mercado (1995,

p.77).

Na visão da racionalidade econômica, o consumo é

considerado como mera parte do ciclo de produção e

distribuição da sociedade. Em outras palavras, é a etapa

final da geração de produtos, em que se reproduz a força de

trabalho e a expansão do capital. O sistema econômico

organiza as formas de reproduzir a força de trabalho, e

oferecer à sociedade as soluções para suas necessidades.

Neste modelo, há um processo vertical de oferta de produtos

empresa-consumidor que parece ignorar as diferentes reações

dos diferentes consumidores à publicidade. O modelo que

pauta a distribuição dos bens de consumo está intimamente

ligado ao sistema de produção e as estruturas de

administração do capital. De acordo com García Canclini:

51

Os estudos marxistas sobre o consumo e sobre a

primeira etapa da comunicação de massa (de 1950 a 1970)

superestimaram a capacidade de determinação das empresas em

relação aos usuários e às audiências (1995, p. 78).

Seguidamente, teóricos desenvolveram uma nova

perspectiva sobre o consumo, a que privilegia uma

racionalidade sociopolítica interativa. Estes estudos revelam como as

demandas dos consumidores ditam as regras das distinções

entre classes. Aqui, o consumo é uma disputa de acesso por

aquilo o que a sociedade produz, e implica na concretização

do lugar na sociedade. Manuel Castells (1994) diz que o

consumo é um lugar onde os conflitos entre as classes,

originados pela desigual participação na estrutura

produtiva, ganham continuidade através da distribuição e

apropriação de bens. É importante notar que as relações não

são mais simples dominações, e sim interações, nas quais os

produtores devem se justificar para que o consumidor vá até

eles.

Já uma terceira linha de trabalhos, estuda o consumo

pelos aspectos simbólicos e estéticos da racionalidade consumidora. Para

esta linha, o consumo tem base nas distinções simbólicas,

ou seja, consumir para pertencer a certa classe, e

compartilhar o modo de vida. Além disso, a apropriação dos

bens que fazem pertencer a um grupo, também implicam que

eles não serão disponíveis a vários outros, conferindo

certo valor simbólico ao possuir. Conforme García Canclini:

Há uma coerência entre os lugares onde os membros de uma52

classe e até de uma fração de classe se alimentam, estudam,

habitam, passam as férias, naquilo que leem e desfrutam, em

como se informam e no que transmitem aos outros. Essa

coerência emerge quando a visão socioantropológica busca

compreender em conjunto tais cenários. A lógica que rege a

apropriação de bens enquanto objetos de distinção não é a

da satisfação de necessidades, mas sim a da escassez desses

bens e da impossibilidade de que outros os possuam (1995:

p.80)

Porém, esta diferenciação simbólica baseada no consumo

só tem um significado se for aceito por aqueles que não

possuem. Ou seja, o valor simbólico do consumir deve ser

reconhecido por aqueles que não possuem, revelando aí uma

comunicação no ato de consumir. Logo, no consumo se

constrói uma racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade.

É conveniente, também, perceber as inter-relações

entre o global e o local. De acordo com García Canclini: “Oproblema principal é que o capitalismo desenvolve suas

tendências expansivas necessitando, ao mesmo tempo, homogeneizar

e aproveitar a multiplicidade” (2003: p.47).

As empresas devem concordar com a dinâmica que

articula o global homogeneizado e transnacional e o local

identitário e diferenciador. Assim como as pessoas escolhem

o que faz sentido para elas em negociações interculturais,

elas também fazem uma negociação no âmbito global e local.

Escolhem o que do local faz sentido, e o que do global faz

sentido, e quando fazem sentido. As empresas podem se

53

comportar de diferentes formas neste cenário. Há aquelas

empresas globais, que vendem a imagem do transnacional, do

sem território, do integrador e universal. Estas podem se

adaptar ao contexto local, mas sem se distanciar demais da

sua “essência” global. Há aquelas que, sendo locais, vendem

uma imagem regional, que muitas vezes não é percebida, já

que é justamente vendida para as pessoas imersas na cultura

regional. Já um terceiro tipo, é global, porém vende

associa sua imagem de marca com os elementos de uma cultura

específica (os elementos que convém).

Em suma, é interessante compreender que o consumidor

se comporta de modos diferentes para contextos diferentes

de consumo. Ele não abandona o local nem o global, assim

como a globalização não extingue o local ou global. O

consumidor intercultural seleciona e relaciona aquilo que

lhe é ofertado da mesma forma que o faz com as culturas.

Mais do que isso, a interculturalidade é ratificada no

consumo, notada a relação entre empresas globais e empresas

globais, e até a relação global-local dentro de uma mesma

empresa.

A interculturalidade é mais que uma realidade em um

mundo globalizado, ela define este fenômeno no seu âmbito

cultural e comunicacional. As diferenças culturais entram

em choque, gerando, em consequência, frenéticos diálogos e

negociações. A globalização sem dúvidas aproxima as

sociedades, mas esta aproximação pode, muitas vezes, ser

destruidora e injusta. Para que os diálogos sejam pacíficos54

e proveitosos, uma mediação crítica para que os mais

poderosos política ou economicamente não lesem a outra

parte se faz necessária. E, o primeiro passo para esta

mediação crítica é justamente entender as dinâmicas da

globalização e os modos diferentes como ela se articula em

cada contexto cultural, sem se prender a o que se imagina

uma globalização exclusivamente integradora e

homogeneizadora.

A Turma da Mônica Jovem é um campo rico de negociações

interculturais. A pesquisa tem como objetivo investigar

esta manifestação cultural que faz uma ponte entre a

cultura brasileira e a nipônica. As reflexões teóricas

deste capítulo tiveram a função de guiar a análise dos

gibis, ancorada em uma percepção abrangente do fenômeno

globalização. Assim, essas relações interculturais não

podem ser entendidas como descaracterização de uma cultura,

ou a anulação das diferenças. Tampouco podem ser entendidas

como processos isolados da cultura brasileira. O que deve

ter a função de catalisador das análises é o entendimento

da interculturalidade dos gibis Turma da Mônica Jovem com o

mangá tradicional japonês como um processo de trocas,

influenciadas pela natureza das culturas envolvidas, assim

como estratégias mercadológicas, interesses políticos e

econômicos do Brasil pelo Japão, etc. Desta forma, poderá

ser extraída uma análise valiosa deste diálogo que traz

tantos resultados positivos em termos de mercado e cultura

jovem.

55

3 A base para análise: o mangá do japão

Neste capítulo, pretende-se refletir acerca do produto

midiático mangá, em uma perspectiva intercultural, sendo

56

que, para isso, serão estudadas suas intersecções em outras

áreas de conhecimento – não só em relação a cultua, mas a

economia e a história –, assim como suas intersecções com

outras manifestações culturais com as quais estabelece um

diálogo – principalmente o animê –, delimitadas a

pertinência em prol da posterior análise do corpus.

Portanto, o mangá, em sua forma e conteúdo, será encarado

descritivamente, e brevemente relacionado à sociedade

japonesa, com sua cultura como pano de fundo. Não obstante,

a história do Japão e história do mangá serão estudadas em

seu entrelaçamento curiosamente estreito. Posteriormente,

alguns aspectos da viagem do mangá na travessia cultural

Oriente-Ocidente serão traçados.

Em seguida, apresentamos explicações sobre as obras

que servirão de base comparativa à análise do corpus no

capítulo seguinte. As séries de mangá japonesas Naruto, de

Masashi Kishimoto, e Bleach, de Tite Kubo, foram escolhidas

como referencia do diálogo intercultural devido à sua

popularidade tanto no Japão como no Brasil – eles são um

típico exemplo de mangá que pertence ao gênero shonen

(aventura-ação, voltado para crianças e pré-adolescentes),

gênero este que particularmente faz muito sucesso no

Oriente. Além disso, eles dispõem de maior diversidade de

elementos em suas narrativas a serem analisados, pois os

dois têm suas narrativas desenvolvidas em épocas distintas

do Japão: Japão feudal (Naruto) e Japão contemporâneo

(Bleach). As estéticas do desenho, formas de publicações,

57

estilo das narrativas, características das personagens,

serão pautas de reflexão, para melhor entender o corpus que

representa o mangá japonês.

Conforme já mencionado anteriormente, mangá é o nome

dado a histórias em quadrinhos originadas no Japão, porém,

passou a se referir a uma determinada manifestação

cultural, com um pacote de características únicas e

específicas, como o traço das figuras, as técnicas de

desenho e a dinâmica visual da narrativa. O mangá tem suas

origens na sociedade japonesa e fez-se profundamente

presente em sua história e cultura: ao mesmo tempo em que

nutre relações com a arte da época feudal do Japão, é de

extrema importância ainda hoje na formação identitária do

Japão contemporâneo. Este tipo de história em quadrinhos é

tão presente no arquipélago que são consumidos praticamente

por qualquer tipo de público, independente do sexo, faixa

etária ou poder econômico.

Nas últimas décadas, o mangá tornou-se um sucesso

também no cenário internacional. Por exemplo, no setor

global de animações, filmes como Kill Bill, Matrix, As

Panteras, Missão Impossível e Guerra nas Estrelas já

ganharam suas versões com a linguagem mangá. Contudo, esta

exportação cultural, possibilitada pela globalização, foi

passível de um processo de adaptação, vistas as barreiras

culturais Japão – Ocidente. Ele conquistou o gosto dos

jovens do ocidente por meio, principalmente, dos animês.

Animês são produções de animação audiovisuais que se58

utilizam da estética mangá, e muitas vezes são paráfrases

de séries de mangá (impressas). Os estudos desta pesquisa

são norteados pelo mangá como publicação impressa, mas é

imprudente ignorar todas as manifestações transversais que

tornaram possível a sua entrada para outros países além do

Japão. A estética mangá está muito além do mangá impresso:

está nos animês, nos games (com setor bem desenvolvido no

Japão), cardgames, roupas, acessórios, pelúcias, bonecos

colecionáveis, eventos de fãs, e outros tipos de produtos e

serviços.

É válido mencionar que a recorte da história do mangá,

do seu significado cultural no Japão e mundo, e a

apresentação de dois modelos de mangá que fazem

considerável sucesso no Brasil e Japão, estão a serviço da

análise do Mangá Turma da Mônica Jovem. Destaquemos que o

corpus da pesquisa consiste na obra de Maurício de Souza, e

não nos mangás Bleach e Naruto, tendo esses últimos a função

única de servir como referência para a análise do gibi da

Turma da Mônica Jovem. Por isso, basta-se aqui a

consideração de elementos que favoreçam e enriqueçam a

comparação com a Turma da Mônica Jovem.

3.1 Mangá: do Japão ao mundo

Mangá é o nome ocidental que se refere às histórias em

quadrinhos originadas no Japão. Com o tempo, a palavra

mangá passou a significar um estilo característico de59

histórias em quadrinhos, o qual inclui técnicas para

desenhar (geralmente tinta Nanquim), tipo de traço das

personagens (olhos desproporcionalmente grandes, expressões

faciais exageradas, partes de animais em seres humanos,

olhos e cabelos extravagantes, etc.) e cenário (muito mais

detalhados que as clássicas histórias em quadrinhos

ocidentais), desenvolvimento visual da narrativa (dinâmico,

dramático, vários ângulos desenhados), formato das

publicações (que variam desde os aqui conhecidos “volumes

de bolso” até formato A4), forma de leitura (direita-

esquerda, concordante com sentido de leitura japonesa),

linguagem (geralmente em kanjis, uma espécie de linguagem em

ideogramas), etc. Portanto, segundo as noções apresentadas

neste trabalho, quando se refere ao mangá, não se refere

estritamente a histórias em quadrinhos produzidas no Japão

– já que não faz mais sentido limitar características

culturais a territórios – e sim ao tipo de manifestação

cultural, que se denomina mangá, quando atende a todas as

características que o definem.

O mangá é tão presente no Japão que é quase impossível

pensar em cultura japonesa sem se lembrar das famosas

histórias em quadrinhos. Ele é consumido por crianças, pré-

adolescentes, universitários, executivos, donas de casa, e

até mesmo por idosos. É importante destacar que a indústria

japonesa de mangás é extremamente estratificada. Há séries

de mangá destinadas a públicos femininos e masculinos de

quase todas as faixas etárias: pré-escolar (3 a 6 anos),

60

infantil (7 a 11 anos), adolescentes (12 a 18 anos), jovens

adultos (19 a 25 anos), adultos (26 a 45 anos) e idosos (46

anos em diante). O governo não tem um forte controle sobre

censura no mangá, já que os públicos por si só procuram os

tipos de mangás referentes aos seus grupos etários. Os

mangás têm seu conteúdo muito específico para seu público.

Por exemplo, os mangás infantis contam com desenhos mais

simples, arredondados, fantasiosos e muitas vezes com

caráter didático; já os mangás para adultos, os

“sararimen”, mostram o cotidiano de homens de família e

suas histórias no trabalho, nas reuniões de amigos, e nos

problemas da família, oferecendo uma oportunidade para o

adulto japonês se distanciar por breves momentos de seu

dia-a-dia. Para entender um pouco do sucesso do mangá,

aproximadamente 25% das vendas de livros no Japão são de

volumes de mangá (2011), e aproximadamente 50 % do papel

produzido no Japão é para a impressão destas histórias em

quadrinhos (VASCONCELLOS: 2006). Grande parte desse sucesso

existe porque o mangá tem suas origens enraizadas na

história e na cultura do povo japonês. O mangá japonês

apresenta um grande montante de elementos culturais e

históricos de seu povo.

Antes de prosseguir na relação entre o japonês e o

mangá, é de muita valia apresentar um pouco das suas

transformações ao longo da história. Muito do estilo de se

fazer mangá tem suas fontes nas pinturas artísticas

japonesas da época feudal do país. No século XII, o emaki-

61

mono, uma gravura de dez metros de comprimento em rolo,

que, quando desenrolada apresentava uma narrativa, tinha em

suas pinturas um traço muito parecido com os desenhos do

mangá. Entretanto, as histórias em quadrinhos só se

tornaram parecidas com o que são hoje em dia em meados do

século XIX, logo após na Restauração Meiji (VASCONCELLOS:

2006).

A Restauração Meiji (1853) foi a época em que o Japão

abriu suas fronteiras políticas, econômicas e culturais ao

resto do mundo. Nos anos anteriores, o país se manteve

recluso e imerso em guerras interna, pois a coexistência de

vários shogunatos (divisões de terras muito semelhantes aos

feudos da Idade Média ocidental) e o enfraquecido poder

centralizador do imperador denunciavam um sistema de poder

extremamente fragmentado que fomentava sangrentas guerras

civis. O cenário de guerras só acabou no momento em que,

por pressão internacional, o Japão se abriu ao Ocidente e

restaurou o poder do imperador. A época que seguiu a

Restauração recebeu o nome de Era Meiji (SATO: 1995).

A Era Meiji foi a ponte entre um Japão feudal e um

Japão moderno, portanto, foi uma época de grandes

turbulências (SATO: 1995). O contato do Japão com as outras

culturas, principalmente as ocidentais, nunca foi tão

intenso. A economia do Japão sofreu grande evolução, já que

qualificava seus estudantes em competentes instituições de

ensino ocidentais. Não obstante, a cultura foi palco de

muitas mudanças. O Japão não só importou elementos62

culturais de outras nações, mas também exportou muito de

sua cultura para o mundo, por meio não só do fluxo de

informação, mas principalmente pelo fluxo de pessoas, nos

dois sentidos (Ocidente-Oriente/Oriente-Ocidente). Então, o

intercâmbio cultural mostrou ao Japão os cartuns, que fariam

parte das bases do mangás. Sonia Luyten escreveu:

Wirgman saiu de Londres para o Oriente, em 1857, como

correspondente especial do Illustrated London News.

Em 1859, chegou ao Japão, casou-se lá e fixou

residência permanente. Em 1862, editou uma revista de

humor, Japan Punch, e introduziu os japoneses no

universo das charges políticas: ‘os cartuns

jornalísticos eram um novo tipo de humor e arte para

os japoneses e tão fascinados ficaram que até

editaram uma versão traduzida do Japan Punch.’

Wirgman é hoje considerado o patrono da moderna

charge japonesa e a cada ano é realizada uma

homenagem em seu túmulo em Yokohama. Wirgman

frequentemente usava balões em suas charges e Bigot,

por sua vez, os arranjava em sequência, criando um

padrão narrativo. Esse é um momento importante na

evolução histórica dos mangás, quando houve a fusão

de uma longa tradição com a inovação, desaguando no

nascimento das histórias em quadrinhos como veículo

de comunicação (1991, p.101).

Já no início do século XX, o ilustrador Rakuten

Kitazawa, influenciado por Wirgman, começou a criar

quadrinhos seriados com personagens regulares, e denominava63

seu trabalho de mangá. Sobre o significado da palavra

mangá, Vasconcellos explica:

A palavra mangá significa rabiscos descompromissados,

ou ainda imagens involuntárias, expressão que reflete

muito bem o caráter gráfico de formas sintéticas,

caricaturizadas e muitas vezes espontâneas presente

no mangá desde sua pré-história (2006, p. 19).

A temática do mangá até essa época era exclusivamente

adulta, visto que tratava de críticas política e economia

japonesas. Somente na década de 20, o mangá começa a ganhar

histórias voltadas para o público infantil. Neste momento

ocorre um distanciamento com os cartuns ocidentais. Luyten

prossegue:

Essa tendência continuou: quadrinhos traduzidos têm

pouca oportunidade de sucesso. Os artistas japoneses

desenvolveram seu estilo próprio, único e bem nativo,

e os leitores passaram a olhar os quadrinhos europeus

e americanos como ultrapassados, sentindo dificuldades

em se relacionar com eles. Além disso, as diferenças

de costume e cultura eram também uma barreira para a

identificação com as situações e os heróis (1991, p.112).

Com a quebra da bolsa americana em 1929, o mangá foi

vítima do início de uma difícil crise. A Grande Depressão

foi a força-motriz de temáticas pessimistas, que eram

constantemente atacadas pelo recém-surgido governo

nacionalista. Nesta época, no Japão, o mangá infantil e

64

adulto foi dividido rigidamente, assim como o mangá

feminino e masculino, herança que permanece até hoje. Com a

Segunda Guerra Mundial, a produção de mangá foi quase

extinta. O governo ultranacionalista julgava o mangá como

desperdício de recursos econômicos – ou liberdade de

expressão indesejada –, e só permitia que fossem produzidos

mangás com propaganda militar (VASCONCELLOS: 2006).

O fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do Japão,

aliados às devastadoras bombas atômicas lançadas em

Hiroshima e Nagasaki, traumatizaram fortemente a sociedade

japonesa. Nasceram neste período os akai hon (literalmente

livrinhos vermelhos), que eram livrinhos de mangá de capa

vermelha, vendidos por preços muito baixos – para se

adequarem à devastada economia japonesa. As forças norte-

americanas permitiam que eles produzissem os livrinhos,

contanto que não criticassem os EUA. O mangá tomou forças

neste momento, já que dali em diante os japoneses tiveram a

liberdade de expressão que lhes fora negada na Guerra

(VASCONCELLOS: 2006).

O Japão, após a Segunda Guerra, foi protagonista de um

intenso desenvolvimento econômico, e hoje faz parte do

Primeiro Mundo. O mangá acompanhou este desenvolvimento, e

se tornou uma das manifestações culturais mais importantes

no Japão, tanto em fins mercadológicos como artísticos. A

exportação do mangá do Japão para o mundo se deu somente no

fim do último século XX, e no início do século XXI. Porém,

a estética mangá, presente nos animês e games, foi65

importada décadas antes. Estes processos de inserção da

estética mangá no Brasil ainda serão posteriormente

explanados.

Como já explicado, o mangá se apresenta em vários

formatos, dependentes do público a que são destinados. O

gênero de mangá que faz sucesso no Brasil é o shonen (ação,

voltado para meninos) e, portanto, serão privilegiadas as

características do citado gênero. No Japão atual, o mangá

está sujeito a dinâmicas peculiares. Na maior parte dos

casos, os mangás que são vendidos em livrarias e bancas de

jornal são publicados em formato A4 a preços muito baixos,

pela sua natureza descartável. Essas publicações,

geralmente semanais, têm entre 400 e 500 páginas, contando

com vinte histórias de autores diferentes. A cada mês a

editora publica uma pesquisa de satisfação acerca das

histórias. As histórias mais populares têm continuidade e

as menos populares são substituídas por outras, de outros

autores, dando rotatividade de histórias e autores

(VASCONCELLOS: 2006). Algumas histórias são tão bem

sucedidas, que recebem reedições definitivas, mais caras e

de maior qualidade de impressão. A cada semana, um capítulo

(por volta de 20 páginas) é lançado, e alguns capítulos

compilados (por volta de 10), por sua vez, formam volumes.

Um volume tradicional consiste em um livro com dimensões

por volta de 18 cm x 12 cm, com capa ilustrativa. Os

volumes têm números sequenciais, e juntos, formam a

narrativa completa. A duração das narrativas pode variar

66

muito em número de volumes, mas é importante notar que eles

não apresentam histórias independentes: são somente partes

integrantes da história completa. É esse tipo de publicação

em volumes que é exportado e consumido pelo resto do mundo.

Os mangás são geralmente em preto e branco, já que o

autor desenha com tinta Nanquim, mas podem apresentar

páginas coloridas especiais.Os cenários das narrativas em

mangás são minuciosamente desenhados, com extremo

detalhamento, diferentemente das histórias em quadrinhos

ocidentais que privilegiam o plano onde ocorre a ação e não

os outros planos do cenário (Fig. 1). Não se pode ignorar,

entretanto, as grandes diferenças no traço se levarmos em

conta a divisão estrita de público na indústria de mangás.

Vasconcellos exemplifica:

Um mangá para meninas adolescentes (shoujo mangá), por

exemplo, terá um traço mais leve, suave, delicado, e

efeitos visuais como flores, estrelas, penas encherão

a página, buscando refletir o estado emocional das

personagens; pouca atenção será dada para os cenários

também. Já mangás para meninos (shounen mangá) terão

desenhos mais carregados, grossos e dinâmicos. A

atenção aos detalhes é mais cuidadosa, uma vez que

nas histórias geralmente ocorrem grandes cenas de

batalha ou conflitos interpessoais. A ação éa palavra

de ordem no shounen mangá (2006, p. 28).

67

Figura 1 - Cenário no mangá.

Fonte:

http://images.wikia.com/naruto/images/6/6c/Kirigakure.PNG

Além das peculiaridades do desenho, a dinâmica dos

quadrinhos também mostra-se diferente da ocidental. Os

quadrinhos ocidentais se detêm em mostrar a cena de um

ponto de vista fixo, sem cenário com muito detalhamento,

para que a ação esteja livre de interferências e se

explique do modo mais resumido possível. De acordo com a

68

professora Santo:

uma ação em uma HQ ocidental poderia ser descrita em

um ou dois quadrinhos, no mangá pode ocupar várias

páginas. Nos mangás as cenas são apresentadas sob

diferentes ângulos. Em uma cena de luta, mostra-se

uma mesma ação em câmera lenta, a visão dos outros

personagens e a aproximação até o momento do choque

(2011, p.10).

Finalmente, o mangá apresenta duas características

oriundas da leitura japonesa. A primeira é que o mangá é

lido do sentido direita-esquerda, coincidente com o padrão

de leitura oriental. A segunda é o uso de kanjis (ideogramas

japoneses) (Fig. 2), além do tradicional alfabeto katagana

e hiragana, na matéria escrita do mangá. Os sistema de kanjis,

que conta com um dicionário de mais de mil ideogramas,

apresenta extrema complexidade e é pré-requisito para uma

boa formação acadêmica de um estudante japonês. Alguns

mangás oferecem uma tradução para outro sistema japonês de

escrita, principalmente para crianças.

Figura 2 - A linguaguem do mangá.

69

Fonte:http://iradio.liveradio.com.br/noticias/conheca-o-

universo-dos-animes-e-mangas/

Acerca da temática das narrativas, o mangá passa pode

ser de romance, comédia, terror, suspense, ficção

científica, aventura, drama, policial, entre inúmeros

outros gêneros possíveis. E é indispensável notar que o

mangá tem um intenso caráter educativo para os jovens

japoneses. Ele pode ensinar desde biologia, física,

história (de uma forma impressionantemente precisa), até a

própria língua japonesa. (VASCONCELLOS: 2006).

Obviamente, como toda a comunicação é produto

cultural, o mangá reflete elementos culturais do Japão em

suas narrativas constantemente. Nas histórias, podem ser

inseridos personagens históricos ou seus equivalentes na

ficção, seres da mitologia e folclore japonesa, elementos

oriundos do budismo, etc.70

Como um produto cultural e também midiático, o mangá

permeia a sociedade japonesa, tanto em seu formato original

como na reverberação em manifestações culturais paralelas.

Como exemplo, de todas as revistas vendidas no Japão, 20%

são sobre mangá (2011). Porém, é importante notar as mais

importantes manifestações paralelas: os games e animês. É

praticamente obrigatório uma série de mangá de grande

sucesso ganhar sua versão game (jogo eletrônico) e animê,

ambos relacionados a poderosas indústrias no Japão. Os

animês serão de uma particular importância neste trabalho,

por terem facilitado a abertura do mangá para o mundo.

Animês são adaptações das séries de mangá para animações

audiovisuais, conhecidos como desenhos animados. Um estúdio

de animação compra os direitos de exibição da obra na

televisão, vídeo e cinema e inicia a produção da animação,

passando uma parte dos lucros para o autor. O animê

acompanha o roteiro original de maneira relativamente fiel,

porém, pode fazer uso de episódios discordantes da história

original (fillers), para que haja necessário distanciamento

das exibições do animê e publicações do mangá. A série de

animê é dividida em temporadas, que por sua vez são

divididas em episódios exibidos semanalmente pelas

emissoras japonesas, ampliando o público atingido. A

estética se mantém coerente com a estética do mangá, apesar

de não fazer mais uso dos kanjis, e utilizar um espectro de

cores que não se limite ao preto e branco.

Com um entendimento ampliado do que é e de como é a

71

estética mangá e sua relação com o povo japonês, pode-se

pensar adequadamente no mangá produto midiático de

exportação. De acordo com o Instituto de Pesquisa Marubeni,

as exportações de mangás cresceram por cerca de 300% de

1992 a 2002. No Brasil, o mangá teve seu sucesso efetivado

somente no fim do século XX e começo do século XXI, apesar

de ter suas origens construídas décadas antes.

No começo do século XX, o Brasil recebeu a imigração

de vários japoneses. Eles imigravam devido as grandes

mudanças na sociedade japonesa que passava pela Era Meiji.

As colônias foram estabelecidas principalmente entre o

Paraná e sul de São Paulo, onde desfrutariam de um clima

similar a sua terra natal (VASCONCELLOS: 2006).

A população nipo-brasileira ultrapassa um milhão de

pessoas e sem dúvidas tem grande papel na formação

identitária do Brasil. Devido às visivelmente gritantes

diferenças culturais, os japoneses, para preservar as

tradições culturais, se isolaram e colocaram seus filhos em

escolas especiais construídas por eles próprios, a fim de

preservar a educação tradicional japonesa. A maior

preocupação era em manter a língua natal, que era falada em

casa. Deste modo, as crianças, além da escola, dispunham de

outros elementos para um contato com a língua como livros e

os mangás, que supriam de forma lúdica as possíveis falhas

na absorção da língua japonesa (LUYTEN: 1991).

Nas primeiras décadas do século XX, o mangá chegava ao

72

Brasil sutilmente, para manter o contato entre o imigrante

e as noticias e mudanças na sociedade japonesa. Vários

sebos foram abertos nas comunidades de imigrantes,

oferecendo revistas, livros, e os mangás (VASCONCELLOS:

2006).

Porém, somente a partir da década de 60 o mangá ganhou

algum espaço nas publicações brasileiras. Vários artistas

se utilizavam a linguagem do mangá em suas criações,

conquistando jovens e crianças. Em 1984, foi fundada a

Abrademi, a Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e

Ilustrações. Mais tarde, clubes e associações de

apreciadores de mangás se formaram por todo o Brasil, com

direito a revistas em quadrinhos criados por fãs

(VASCONCELLOS: 2006). Contudo, a invasão definitiva só

aconteceu posteriormente, e foi por meio da televisão.

O Japão da década de 80 já era um Japão bem sucedido

economicamente, e, devido à política de exportação do Japão

da época, vendia ao mundo os animês, já que possuía um bom

sistema de transmissão televisiva.

O animê provocava impacto no mercado estrangeiro,

dadas a melhor qualidade e a oferta de uma dinâmica visual

nunca vista no Ocidente, algo que chamou muito a atenção

das crianças e jovens. Os animês tornaram-se populares, e

começaram a movimentar um mercado adjacente de produtos

licenciados, como camisetas, lancheiras, brinquedos, entre

outros. No início da década de 90, muitos animês já haviam

73

sidos exibidos nas manhãs infantis, mas nenhum teve uma

popularidade que rivalizasse com os desenhos ocidentais,

com o exemplo dos da Disney (VASCONCELLOS: 2006).

No entanto, em 1994, foi exibido o animê Cavaleiros do

Zodíaco, que se tornou rapidamente um fenômeno de

popularidade entre os jovens e crianças. Coerente com o

recém-aumento do poder de consumo do brasileiro, o desenho

conquistou definitivamente o gosto das crianças.

Na mesma onda, vários outros animês foram produzidos,

e mais do que conquistar as crianças, ensinaram a elas a

linguagem do mangá. Revistas sobre os animês e mangás foram

lançadas, como Herói, Animax e Anime Dô, e deste modo, os

espectadores dos animês aprenderam sobre os mangás

impressos, a origem dos desenhos que tanto gostavam. Só

assim foi possível a entrada do mangá no gosto do

brasileiro, em grande parte devido ao fato de que o animê

já teria feito o papel de acostumá-lo à linguagem. Foi

assim que a partir de 2001, as editoras começaram a

traduzir o mangá para o português.

Hoje, o mangá tem parte indissociável da vida da

criança e jovem brasileiro. Nas palavras de Vasconcellos:

Com muita frequência, vê-se nos colégios e em

casa crianças desenhando seus personagens de animê

favoritos (Pokémon, Dragon Ball...), imitando as

atitudes de seus ídolos de papel e celuloide,

bradando nomes de golpes absurdos em meio a lutas de

74

mentirinha.

Já os adolescentes, de maneira geral, vão a

encontros e convenções nacionais e regionais de animê

e mangá (AnimeCon, em São Paulo) e se fantasiam de

seus personagens favoritos (Cosplay). Há também uma

procura crescente por cursos de língua japonesa e

cursos de desenho que ensinem como desenhar um mangá

(2006, p. 28).

Os animês certamente fazem parte da vida das crianças

brasileiras, e são exibidos em diversas emissoras de

televisão abertas e pagas. Porém, são os adolescentes que

procuraram o mangá impresso, e a maioria o fez por conhecer

o animê. Neste sentido, a Internet foi uma valiosa

ferramenta para que o público adolescente pudesse ter

acesso à continuidade dos animês (não são todos os

episódios que são comprados pelas emissoras) e aos mangás.

Esta procura do adolescente permitiu que ele se

aprofundasse em outros elementos da cultura japonesa.

Porém, é importante notar as adaptações que o animê e mangá

sofrem no trajeto Japão-Ocidente. As emissoras de televisão

compram os episódios dublados para exibição, assim como as

editoras publicam o mangá traduzido para português. Neste

processo há um inevitável ruído. Toda a mensagem, para que

seja transmitida do emissor para o receptor, precisa passar

por uma codificação por parte de quem emite e uma

decodificação por parte de quem recebe. No código estão as

leis que regem os processos de codificação e decodificação.

75

Cada código tem sua abrangência de significações (se acordo

com os sintagmas e paradigmas), que nunca é igual a outros

códigos. Por esse motivo, quando se transforma um código em

outro, muita informação é perdida, já que alguns signos de

um código simplesmente não têm correspondência em outro.

Deste modo, há palavras, onomatopeias, expressões, que não

tem seu equivalente no português. Portanto, parte das

significações são perdidas no processo de tradução, devido

a barreira da linguagem.

Outra adaptação se faz na censura e faixa etária

recomendada. Nos mangás importados pelo Brasil, há cenas de

violência que são constantemente criticadas por psicólogos

infantis. Este é um problema originado da diferença

cultural. No Japão, como já mencionado, as publicações de

mangás e animês são heterogeneamente estratificadas, mas

não por meio de fiscalização, mas por uma espontânea adesão

do público-alvo ao material destinado a ele. Contudo, no

Brasil, as histórias em quadrinhos são geralmente

associados ao público infantil exclusivamente. Deste modo,

os animês que são publicados na televisão sofrem diversas

censuras para se adequarem ao público brasileiro

(VASCONCELLOS: 2006).

3.2 Bleach e Naruto: mangás feitos no Japão e traduzidos

para o mundo

Como já mencionado anteriormente, as séries de mangá76

são divididas de acordo com a faixa etária e sexo do

público. Além disso, elas podem se apresentar nos mais

diversos gêneros. Como no Brasil, o mangá ainda atinge

principalmente a criança e o jovem, o mangá shounen, também já

mencionado, foi escolhido por sua popularidade não só no Japão,

mas também no Brasil. Os mangás shounen são séries geralmente de

grande extensão, e apresentam uma temática de ação-aventura, com

vários elementos fantasiosos.

Bleach e Naruto foram escolhidos entre os mais populares, pois

apresentarem perspectivas distintas do Japão. Naruto tem sua

história em um Japão feudal fictício, e Bleach apresenta uma

narrativa em um Japão contemporâneo e urbano.

3.2.1.Sobre Naruto

Naruto é uma série de mangá criada por Masashi

Kishimoto em 1999. Desde então, conta com capítulos

serializados na revista semanal Shonen Jump. Em 2002, o

animê de mesmo nome começou a ser produzido pelo Studio

Pierrot e Aniplex e exibido na TV Tokyo. A série ainda está

em andamento, e atualmente no volume 61 no Japão.

Naruto começou a ser publicado em 1990 nas revistas

descartáveis com o sistema mensal de rotação já mencionado.

Já que teve grande sucesso popular mostrado nas pesquisas,

o autor Kishimoto teve crédito para lançar a série

definitiva chamada Naruto. Foram vendidas mais de 10077

milhões de cópias no Japão até o volume 50, e com isso

Naruto se tornou o quinto mangá da Shonen Jump a alcançar

esta marca1. Em 2006, o sétimo volume de Naruto ganhou o

prêmio pelo “Best Graphic Novel” do Quill Awards de acordo com o

Icv2. Em 2007, o volume catorze ganhou o prêmio de “Manga

Trade Paperback of the Year” de acordo com o Animenewsnetwork. Em

2008, o volume 28 de Naruto foi o mais vendido de todos os

mangás2. Já foram lançados alguns filmes de Naruto, vários

games, cards colecionáveis, artbooks, databooks, e outros

produtos licenciados. Estes dados dão pistas de como Naruto

é popular no Japão: geralmente disputa com os mangás mais

lidos e animês mais assistidos nos rankings de vendas e

ibope.

Os volumes de mangá, no Brasil, são publicados pela

editora italiana Panini Comics. Eles têm o formato 13,7 x

20cm, custam R$ 9,90, têm periodicidade mensal e sua

distribuição é setorizada, portanto, é distribuido

primeiramente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e,

depois, para resto do país. A Panini Comics também oferece

um sistema de assinatura. A editora lançou uma reedição

chamada Naruto Pocket, que difere no formato dos volumes,

desta vez, fiéis ao formato das publicações no Japão (11,4

x 17,7cm).

No Brasil, o animê de Naruto passou a ser exibido nos

canais Cartoon Network e SBT a partir de 2007. Os episódios

1 Site Comipress

2 Site Icv278

foram dublados e algumas cenas censuradas, para que

pudessem ser adequados para o principal público no Brasil,

infantil, mais jovem que no Japão.

Figura 3 – Capa da primeira edicão de Naruto no Brasil.

Fonte:http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao.aspx?

cod_tit=na011100&esp=&cod_edc=31739

A narrativa de Naruto se passa na época do Japão

feudal, mas em um cenário fictício e repleto de elementos

fantásticos, por exemplo, apesar de ambientada na época

feudal, a narrativaconta com certos elementos tecnológicos

do século XX, como rádios, baterias e desfribiladores. O

mundo onde se passa a história é dividido em diversos

países, e os cinco países mais poderosos econômica e

militarmente comandam as dinâmicas deste lugar . Estes

cinco países têm em seus territórios vilas onde residem

79

ninjas (real soldado espião da época feudal japonesa), que

são remunerados por realizarem missões de diversas

naturezas (inclusivemissões de força militar em possíveis

guerras). Assim, o país da água é aliado à vila oculta da

névoa, o país da terra é aliado à vila oculta da pedra, o

país do trovão é aliado à vila oculta da nuvem, o país do

vento é aliado à vila oculta da areia, e o país do fogo é

aliado à vila oculta da folha.

O protagonista da história, Naruto Uzumaki, é um pré-

adolescente de doze anos, morador da vila oculta da folha,

que tem como grande sonho se tornar Hokage, o líder supremo

de sua vila. No entanto, ele é um garoto extremamente

infeliz e solitário, já que é órfão e não tem amigos, já

que quase todos da vila o rejeitam e discriminam, pois ele

tem selado em si um demônio que havia atacado a vila no

passado e causado muitas mortes. Os moradores, com medo e

raiva do demônio dentro de Naruto, passaram a rejeitá-lo.

Isto o transformou em um garoto hiperativo, barulhento e

arteiro, que faz de tudo para chamar a atenção. Assim, ele

almeja o cargo de Hokage, para ser reconhecido por todos da

vila. Ele é integrante da Academia, que treina crianças

para se tornarem futuros ninjas.

Nos primeiros capítulos, a história se desrenrola em

torno da relação de Naruto e seu professor da Academia,

Iruka Umino. Em um momento, Naruto descobre a verdade: ele

é rejeitado por ter selado dentro de si o demônio, que, lhe

é revelado dramaticamente, causou a morte dos pais de Iruka80

no passado. Contudo, no desfecho, Iruka percebe que não

deve enxergar o Naruto como um demônio, mas como um garoto

que sofreu toda a sua vida na solidão e precisa

desesperadamente de alguém que o aceite.

Naruto então se gradua na Academia e vira oficialmente

um ninja. A história se desenrola com o amadurecimento de

Naruto, e como ele reage às adversidades daquele mundo: a

discriminação da que sofre e sofreu por toda a vida, a

perda de um amigo que busca vingança, o surgimento de uma

organização criminosa, entre outros. A temática recorre

muito aos conflitos da humanidade como a discriminação, a

vingança, a Guerra, etc.

Elementos da cultura japonesa são muito presentes na

obra. Referências a feras de caudas, seres mitológicos do

folclore japonês, demônios, deuses da mitologia, filosofias

budistas, são alguns dos muitos exemplos.

Figura 4 -Naruto Uzumaki (Naruto).

81

Fonte:http://3.bp.blogspot.com/_WyPvlnOUh9A/S_1IJ4C4l_I/

AAAAAAAAABc/jlFQaFz6nWk/s1600/naruto_leaping.jpg

Naruto (Fig. 4), o protagonista, que compartilha seu

nome com o título da série, é um ninja da vilha oculta da

folha, no país do fogo. Ele tem selado dentro de si uma

criatura maligna e de muito poder chamada Kyuubi. Kyuubi

(literalmente nove caudas) é um monstro com o formato de

uma raposa de nove caudas. Foi provavelmente baseada em uma

kitsune (raposa mítica), que de acordo com a mitologia

japonesa, é um entidade em forma de raposa que ganha uma

nova cauda a cada mil anos. Quando ela consegue a nona

cauda, muda a cor de sua pelagem para dourado ou branco,

passando a ter sabedoria ilimitada e onisciência. A Kyuubi,

anos antes do início da narrativa, atacou a vilha da folha,

causando muitas mortes e destruição. Para que a vila fosse

protegida, os pais de um recém-nascido Naruto, em troca de

suas vidas, selaram o imenso poder da besta dentro do

próprio filho, para que a raposa não escapasse e causasse

82

mais problemas.

Contudo, existem oito outras feras de cauda além da

Kiuubi: o Ichibi (literalmente uma cauda), o Nibi (literalmente

duas caudas), o Sanbi (literalmente três caudas), o Yonbi

(literalmente quatro caudas), o Gobi (literalmente cinco

caudas), o Shichibi (literalmente seis caudas), o Rokubi

(literalmnete sete caudas) e o Hachibi (literalmente oito

caudas). Todas as feras de caudas são seres com grande

potencial de destruição, e, para ter seus poderes

suprimidos, geralmente são selados em ninjas, os chamados

Jinchuurikis (esta palavra possivelmente refere-se a

sacríficios humanos enterrados no solo ou afundados na água

ainda vivos como oferenda dos deuses, no Japão Antigo). Os

ninjas Jinchuurikis podem, com treinamento, utilizar-se de

parte do grande poder das feras de caudas selados em si,

tornando-se ninjas poderosos e temidos. Para que houvesse

equilíbrio de poder entre as cinco nações, os Jinchurikis

foram distribuídos o mais igualmente possível.

Entretanto, os Jinchuurikis são vítimas de grande

discriminação dentro de sua vila, pelo poder tão instável e

destruidor que têm selado dentro de si. Com Naruto não foi

diferente. Ele cresceu sem pais, sem amigos, e todos da

vila o odiavam. Essa exclusão fez com que ele se tornasse

uma criança muito hiperativa e bagunceira, na esperança de

ter um pouco de atenção para si. Porém, isto não anulava a

imensa infelicidade pela solidão da qual sofria. Então,

para que fosse reconhecido por todos e não mais odiado,83

passou a sonhar em se tornar Hokage, o líder ninja mais

poderoso da vila da folha. Assim que ele se torna

oficialmente um ninja, durante a narrativa, ele conhece

pessoas que se tornam seus amigos, e afastam sua solidão.

Ele entra para um time de ninjas, junto com Sakura Haruno e

Sasuke Uchiha, com Kakashi Hatake como professor.

Ele usa um protetor de testa com o símbolo da vila da

folha, para provar que é oficialmente um ninja da folha.

Este hábito difere dos ninjas do Japão, já que os mesmos

eram espiões que se esforçavam ao máximo para passarem

desapercebidos e conseguirem completar missões como furtos

de documentos importantes, sequestros e assassinatos; por

este motivo, não era conveniente expor seu patrono caso

fossem capturados. Além disso, Naruto apresenta três

listras em cada bochecha – uma possível referência ao

bigode de uma raposa –, confirmando o hábito do mangá de

introduzir partes de animais ou seres mitológicos no corpo

humano.

Figura 5 – Sasuke Uchiha (Naruto).

84

Fonte:http://2.bp.blogspot.com/-C1eN_d8R98Q/TYqu_i7zzpI/AAAAAAAAAGw/

3YPjF7BwuCY/s1600/nar-sasuke-uchiha1.jpg

Sasuke Uchiha (Fig. 5) é um ninja da mesma idade de

Naruto, que faz parte do mesmo time, junto com Sakura

Haruno, e o professor Kakashi Hatake. Assim que começaram a

cumprir missões juntos, Sasuke e Naruto se tornaram grandes

rivais, isto pois Sasuke sempre foi um “gênio” nas artes

ninjas, e Naruto sempre tentou alcançar seu poder para que

tivesse seu reconhecimento. Apesar de rivais, Naruto e

Sasuke se tornaram grandes amigos, visto que Sasuke também

sofrera de solidão no passado.

Sasuke é do clã Uchiha. Os clãs ninjas são famílias

que compartilham de técnicas ninjas únicas, e no caso dos

Uchiha, uma destas técnincas é o Sharingan. Sharingan são

olhos especiais capazes de várias façanhas como prever

ataques, fazer ilusões, etc. Sasuke, anos antes do início

da narrativa, vivia em paz com sua família do clã Uchiha.

Tinha uma boa relação com os pais e seu irmão mais velho

85

Itachi Uchiha, que era ainda mais gênio que Sasuke. Porém,

em uma noite, Itachi Uchiha se rebelou contra seu clã, e

dizimou todos os Uchiha, inclusive seu pai e mãe. Sasuke,

que ainda não se tinha tornado um ninja, voltando da

Academia, descobriu toda sua família morta. Itachi e Sasuke

se encontraram e, depois de uma pequena conversa em que

Itachi diz que assassinou todos só para testar seus

poderes, ele resolve poupar seu irmão, para que ele viva

uma vida de desespero. Após o incidente da extinção de seu

clã, Sasuke jura ganhar poder para que possa matar seu

irmão e vingar todo seu clã. A solidão, diferente de

Naruto, tornou Sasuke uma criança reservada e calculista.

Em determinada altura da narrativa, Sasuke, percebendo

que havia treinado tanto, mas ainda não estava sequer perto

do poder de seu irmão, decide romper os “laços” que

aplacavam o ódio que sentia, e trai a vila da Folha. Ele

abandona a vila para buscar poder com Orochimaru, um

lendário e maligno ninja fugitivo, e então, conseguir

completar sua vingança. Um dos maiores conflitos da

narrativa é Naruto tentando resgatar seu amigo Sasuke de um

caminho de vingança e ódio.

3.2.2. Sobre Bleach

Bleach é uma série de mangá criada por Tite Kubo, e

teve seu primeiro capítulo publicado na revista Shonen Jump,

em 2002. Em 2004, Bleach ganhou sua versão animê, produzido86

pelo Estúdio Pierrot e exibido na TV Tokyo. Assim como

Naruto, Bleach tem alta popularidade: ganhou o “Shogakukan

Manga Award” em 2005 e foi nomeado diversas vezes para

prêmios americanos de animê. Por sua popularidade, foi

inspiração para alguns filmes, vários games, jogo de cards

colecionáveis, além de outros produtos licenciados.

A empresa italiana Panini Comics é a responsável pela

publicação do mangá no Brasil. Bleach está atualmente no

volume 55, em lançamentos no Japão. Já os episódios do

animê são exibidos no canal Sony Spin, dublados.

Figura 6 – Capa da primeira edição de Bleach no

Brasil.

87

Fonte: http://img.clasf.com.br/2012/05/20/Bleach-Mangs-Panini-N-

1-At-20120520065415.jpg

O cenário de Bleach é o Japão contemporâneo, na

fictícia Karakura, uma cidade urbana tipicamente japonesa.

Ichigo Kurosaki (Fig. 7) é o protagonista, um jovem

estudante de quinze anos mal-humorado. Ele é órfão de mãe e

vive com o pai e duas irmãs mais novas. Em uma noite em

especial, enquanto em seu quarto, ele nota a aparição de

uma moça em sua janela, com um kimono (traje tipicamente

oriental) preto e uma espada. A moça, Rukia Kuchiki, fica

surpresa por Ichigo ser capaz de enxergá-la, algo que não

ocorria com humanos “normais”.

Eles são interrompidos por um monstro disforme que

ataca Rukia. Seriamente ferida, ela transfere seus poderes

para Ichigo, para que possa matar o monstro, algo que ele

88

rapidamente faz. Rukia é uma Shinigami (literalmente deus da

morte) epertence ao grupo de seres espirituais que têm como

missão encaminhar as almas de falecidos para o “céu”, que

eles chamam de Soul Society (sociedade espiritual). Aquele

monstro que Ichigo derrotou é um Hollow, uma alma que não

foi caminhada para a Soul Society a tempo, e, por isso, se

transformou em um monstro disforme cheio de ódio.

Rukia não entendia o porquê de Ichigo ser capaz de

enxergar os Shinigamis, Hollows e almas humanas, mas, como

havia passado seu poder para ele, ele agora tornava-se um

Shinigami substituto. Enquanto Rukia recuperava seus

poderes, Ichigo era responsável em proteger as almas dos

mortos e vivos dos Hollows.

A história se desenrola com Ichigo se aventurando por

diversos locais espirituais para deter um inimigo, que

desejava o poder para governar todo o reino espiritual. Ela

transborda de elementos da cultura japonesa, porém,

diferente da natureza de Naruto: são Shinigamis, filosofias

espirituais, etc.

Figura 7 – Ichigo Kurosaki (Bleach).

89

Fonte: http://www.renderat.com/renders/bleach-ichigo-

kurosaki.png

No desenrolar da história, ele descobre que algunsamigos de escola também desenvolvem poderes espirituais, eos ajudam em diversas aventuras como invadir a Soul Societypara salvar Rukia de uma execução, ou invadir o Hueco Mundo(espécie de purgatório) para salvar sua amiga que ésequestrada.

Os Shinigamis estão presentes em lendas da culturajaponesa, assim como em outras séries de mangás, animês egames. Eles são entidades, similares à figura conhecida noOcidente como A Morte, com a função de guiar as almas dosmortos para o mundo espiritual.

4 Turma da mônica jovem: cultura japonesa de olhos puxados

Turma da Mônica Jovem é uma série de gibis em estilo

mangá, do desenhista brasileiro Maurício de Souza. Ela foi

90

inspirada na famosa Turma da Mônica, gibis também criados

por Maurício, porém, com diferenças na faixa etária dos

personagens (adolescentes e não mais crianças), diferenças

nas narrativas, e na forma do desenho e publicações. O

lançamento oficial da Turma da Mônica Jovem ocorreu na 20ª

Bienal Internacional do Livro de São Paulo, entre os dias

14 e 24 de agosto de 2008 (RAMOS, 2008b). A expectativa era

que a tiragem inicial da primeira edição fosse de 80 mil

exemplares, dobrada após uma pesquisa de mercado. A tiragem

acabou sendo de 230 mil exemplares, maior do que a primeira

edição da Turma da Mônica, de 200 mil exemplares, publicada

quando os quadrinhos eram a quarta mídia mais popular entre

os jovens no Brasil, superando mesmo o cinema (ANSELMO,

1975, p. 114).

4.1 Turma da Mônica infantil

Os gibis da Turma da Mônica começaram como tiras em

quadrinhos para o jornal Folha, em 1959. Durante os dez

anos seguintes, as tiras de jornal apresentavam vários

personagens, alguns deles conhecidos até hoje. Na década de

70, nasceram os gibis propriamente ditos. Isso possibilitou

a criação de um grande sistema de trabalho de equipe, além

do licenciamento de vários produtos. A partir daí, a turma

se expandiu, tanto nos personagens, como na abrangência de

mercados que atendia. As revistas de quadrinhos cresceram

muito em vendas, conquistaram uma grande rede de produtos

91

licenciados, houve projetos de animação, tradução e

publicação no exterior das historias, construção de parques

temáticos, etc. 3.

Hoje em dia, a marca Turma da Mônica tem um peso

consolidado no mercado, e seus personagens (que além dos

gibis, já estão na comunicação televisiva, publicitária,

entre outras) são conhecidos e reconhecidos não só pelo

atual público infantil, mas pelas gerações que participaram

do quase meio século de publicações.

Nos gibis Turma da Monica, há vários núcleos de

personagens, cada um com seus integrantes e cenários

específicos. Várias turmas existem além da Turma da Mônica

principal, como, por exemplo, a Turma do Chico Bento

(cenário rural), Turma do Horácio (cenário pré-histórico),

Turma do Penadinho (cenário de terror), Turma do Astronauta

(cenário de espaço sideral) e Turma da Tina (adolescentes).

A Turma da Mônica principal tem como cenário o bairro do

limoeiro, um bairro de São Paulo com equilíbrio entre o

urbano e a natureza e áreas de lazer para crianças. A Turma

da Mônica conta com quatro personagens principais: Mônica,

Cebolinha, Magali e Cascão (Fig. 8).

Figura 8 - Turma da Mônica. Da direita para a

esquerda: Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali.

3Site Oficialda Turma da Mônica92

Fonte: http://blogamos.com/imagens/turma-da-monica-site.jpg

Mônica é uma menina de sete anos que vive no bairro do

Limoeiro (provavelmente inspirado da região paulistana

Bairro do Limão), e tem o título de “dona da rua”, devido a

sua grande forca física. Ela tem um temperamento explosivo

e costuma bater naqueles que a provocam. Apesar disso, tem

um relacionamento bastante amigável com outras crianças,

inclusive Magali, sua melhor amiga. Tem um coelho de

pelúcia chamado Sansão, que usa para bater nos meninos que

costumam provocá-la, chamando-a de “gorducha” ou “dentuça”.

Já Cebolinha é o menino de cinco fios de cabelo, rival de

Mônica. Costuma desenvolver planos para tentar tomar o

lugar de Mônica como “dona da rua”. Tem um jeito peculiar

de falar, trocando o R pelo L. Seu melhor amigo é

Cascão,que sempre acaba ajudando Cebolinha nos seus “planos

infalíveis”. Ele se nega a tomar banho e evitar qualquer

contato com água e limpeza, sendo conhecido como o

“sujinho” da turma.Magali é a melhor amiga de Mônica, mas

não compartilha do temperamento explosivo da amiga. Nutre

um apetite acima do comum, mas nunca engorda.

93

Cada gibi geralmente contém uma história principal,

coerente com a ilustração da capa, e outras secundárias,

que podem inclusive ser centradas em outras turmas. As

narrativas se usam do gênero cômico, sendo que muitas vezes

os conflitos são originados pelas peculiaridades incomuns

das personagens, mesmo que haja uma preocupação em passar

valores morais e éticos para o público infantil: há

personagens de várias etnias, cegas, cadeirantes, entre

outros. O importante para se atentar é que todas as

histórias são completas no mesmo gibi: com começo, meio e

fim.

Os gibis não conquistam só um público infantil, mas

conquistaram um público que teve as histórias da turma em

algum momento de seu passado. Chegavam a Maurício muitos

pedidos de leitores que tinham curiosidade de saber como

seriam histórias com os personagens mais crescidos (apesar

de quase meia década de Turma da Mônica, os personagens

nunca passavam de sete anos),então ele percebeu uma nova

oportunidade. Não apenas para buscar novo público, mas para

corresponder ao já existente, Maurício de Souza publicou a

Turma da Mônica Jovem (ARAÚJO: 2009).

A intenção era uma típica estratégia de Ampliação de

Mercado 4, na qual a Unidade Estratégica de Negócio cria um

produto da mesma categoria que já detém (no caso história

em quadrinhos), mas o oferece a um mercado que não atendia4De acordo com o modelo de análise estratégica de Igor Ansoff, do livro"Corporate Strategy: An Analytic Approach do Business Policy for Growth na Expansion", de 1965, também de Ansoff.

94

(adolescentes). Para alcançar este novo público jovem,

Maurício usou-se de dois artifícios que iriam comovê-los de

forma contundente, além de pautar-se ao relacionamento que

seu produto editorial de sucesso (Turma da Mônica) já

estabelecera com o consumidor. O primeiro era o

envelhecimento da Turma, que por consequência seria capaz

de levantar assuntos e questões pertinentes ao universo

adolescente, como drogas, bebidas e sexo. O segundo era o

uso da forma mangá nas publicações, visto que ela fazia

muito sucesso entre esta classe etária no Brasil. Mais que

isso, o mangá estava competindo com os gibis Turma da

Mônica, visto que a criança que lia os gibis fazia sua

transição para o mangá cada vez mais cedo. O resultado foi

melhor do que o esperado: a Turma da Mônica Jovem não só

interessou ao adolescente, mas à criança que tinha

curiosidade em saber como seria a Turma mais velha, e o

adulto que vislumbrava ícones de sua infância em um

contexto totalmente deslocado e, portanto, interessante.

Os mangás da Turma da Mônica Jovem tiveram um grande

respaldo nos tradicionais gibis Turma da Mônica, porém, é

importante notar, que apesar de contar com os mesmos

personagens, tem uma proposta totalmente diferente. Trata-

se de um novo produto do mercado editorial, destinado a

adolescentes e que adota temáticas de interesse desse

público, além, é claro, de apresentar uma nova estética de

desenho que não se limita ao desenho dos personagens, e

transforma totalmente a qualidade da narrativa. Assim, fica

95

claro como a interculturalidade está tão presente nesse

tipo de produto criado a partir de condições geradas por um

mercado global, e como as empresas (e artistas) a notam

como uma oportunidade macroambiental que pode proporcionar

um sucesso, refletido tanto nas vendas como no

fortalecimento do relacionamento entre consumidor e obra

cultural. Portanto, em nossa análise das relações de

negociação promovidas pelaTurma da Mônica Jovem, evitamos a

armadilha da conceber culturas diferentes como entidades

opostas e cuidamos para manter um olhar crítico das

dinâmicas entre culturas temperadas pela globalização.

4.2 Turma da Mônica Jovem em estilo mangá

Em agosto de 2008, A Turma da Mônica Jovem foi,

portanto, lançada. Sua primeira capa apresentava a nova

Mônica, em trajes coloridos e mais adequados para uma

jovenzinha. Cascão, Magali e Cebolinha (agora Cebola)

também apareciam em um segundo plano. Elementos gráficos

coloridos como estrelas combinavam com quadrinhos

dinâmicos. Próximo ao novo título estava a frase “Eles

cresceram!”, em letras plásticas. Logo no canto o leitor

podia avistar: “Em estilo mangá!” (Fig. 9).

96

Figura 9 - Capa da primeira edição do gibi/mangá Turma da

Mônica Jovem.

Fonte:http://4.bp.blogspot.com/-LHdsra1QkPI/TjGmk2qnmaI/AAAAAAAAADU/

q33cCQCrr0o/s1600/Edi%25C3%25A7%25C3%25A3o+1.jpg

As diferenças vão muito além do uso do traço de mangá.

As publicações da Turma da Mônica Jovem, diferentes dos

gibis, são sequenciais, e tem uma significativa

continuidade (os gibis apresentavam histórias independentes

e dispersas). Além disso, apresentam ao leitor aventuras

com elementos característicos da cultura pop japonesa que

fazem sucesso, como games, robôs, etc. Porém, o que mais

chama a atenção são os próprios personagens, que flutuam

entre as características que os identificava na infância, e

as características adquiridas nesta etapa jovem, estando aí

inclusos o imaginário coletivo da juventude globalizada,97

portanto, intercultural.

4.3 Análise do gibi Turma da Mônica Jovem

Aturma da Mônica mergulhou fundo não somente no

território adolescente, mas em um rico oceano cultural do

Japão. Aqui será tratada a análise em si, em parâmetros

gerais, tomando em conta três fatores importantes

relacionados a interculturalidade de García Canclini:

aquilo que a Turma da Mônica Jovem simplesmente importou do

mangá do Japão, sem modificações (uma mão única do Japão

para o Brasil); aquilo que, originalmente da Turma da

Mônica, e obviamente da cultura brasileira, foi modificado

pelo banho intercultural (uma mão dupla entre Japão e

Brasil); e aquilo também era original da Turma da Mônica

infantil, mas se manteve inalterado; todos os três

devidamente justificados, já que envolvem diretamente à

adequação à interculturalidade que o mercado dos

consumidores de gibis/mangás tanto nutre quanto demanda.

Nota-se que essas delimitações são importantes para a

clareza da análise teórica do que efetivamente para o

observado, visto que, como já esclarecido no Capítulo 2, a

supostamente “completa” negação – mantendo elementos do

gibi Turma da Mônica intactos –, ou a “completa” aceitação

(justapondo elementos culturais do Japão) já está incluso

em uma relação intercultural, e portanto ainda sim é

diálogo.

98

As análises serão apresentadas nesta fase. Exemplos

delas são personalidade e comportamento das personagens,

desenrolar da narrativa, apresentação das capas, instruções

e avisos ao leitor, enquadramento visual dos quadrinhos,

especificidades respeitadas ou não na leitura do mangá

japonês. Posteriormente, a análise estará centrada na

estética corporal das personagens,tanto na forma do corpo

quanto no modo como o corpo é desenhado, ou seja, o traço

utilizado, considerando as ponderações teóricas dos autores

estudados.

A capa da primeira edição da Turma da Mônica Jovem

(Figura 9) apresentava no destaque do primeiro plano uma

personagem inédita, mas facilmente identificável como a

versão adolescente da figura dos quadrinhos, Mônica.

Identificável pela permanência de seu “cabelo de cachos de

banana” e seus dentes proeminentes; mas inédita pelas

roupas coloridas bem diferentes do seu tradicional e eterno

vestido vermelho, pelo desenho mais realista de seu corpo –

coerente com o de uma jovem que acaba de sair da infância

–, portanto mais próximo do estilo mangá de retratar suas

personagens, e pelos olhos grandes e expressivos do mangá

japonês que faz fama no Brasil. No segundo plano,

quadrinhos preenchidos pelo restante da turma em seu novo

estilo, linhas e estrelas coloridas, e seres fantásticos

(como robôs e bruxas), configuram-se em formas pouco usuais

para as histórias em quadrinhos ocidentais. O mangá

apresenta uma dinamicidade de narrativa muito diferente dos

99

quadrinhos ocidentais, sendo esta uma característica

crucial que os diferencia. O título “Turma da Mônica Jovem”

compete com as frases “Eles cresceram!” e “Em estilo

mangá!”.

As histórias em quadrinhos ocidentais foram germinadas

nos jornais, no formato de tirinhas de jornal (comic strips),

e eram a versão que originaria as histórias em quadrinhos

ocidentais como se vê hoje. A estrutura conhecida de

quadrinhos como a vinheta, além do surgimento de balões e

vinhetas teve sua origem também nas comic strips.

Esta formulação dos quadrinhos implica necessariamente

em um estilo único de desenrolar da narrativa. Os quadros,

idênticos em formato, são predominantemente dispostos na

horizontalidade (um do lado do outro), herança da

necessidade de se encaixar no espaço disponível no jornal,

e, de acordo com Román Gubern,

essas séries em quadrinhos trazem consigo formas de

indexação entre as séries de histórias e é o elemento que

permite a construção de conjuntos de ações interligadas que

podem ocorrer não só entre uma tira e outra do mesmo

título, como também entre as vinhetas, a fim de instaurar o

elemento de suspense (1989, p.30).

Assim, o modelo horizontal é análogo à continuidade

temporal de uma narrativa clássica: os quadros uniformes

100

funcionam como uma “linha do tempo” que têm como função a

amarração da sequência narrativa.

Porém, este modelo sofreu alterações com o tempo, e o

quadrinho ocidental se distanciou das tirinhas de jornal

quando passou a quebrar este modelo horizontal uniforme e

permitir uma disposição de quadrinhos de tamanhos

diferentes, que não só podem indicar sequência temporal,

como também espacial. De acordo com Fresnault-Deruelle,

a composição das páginas deve funcionar através da

integração das suas variáveis visuais (forma, cor, linha,

etc.). Assim, o espaço em uma página de HQ ganha o patamar

de significação para o entendimento narrativo. Isso implica

em uma forma de leitura que sai do parâmetro linear para um

tipo de leitura guiada pela distribuição dos elementos

visuais na superfície da página (1976, p. 17).

Os quadros e figuras deixam de serem elementos

isolados e convencionalmente separados, para que haja uma

interligação entre imagens, cores que geram um sentido

único, em uma leitura multilinear. Uma imagem se destaca em

relação às outras, tanto pela sua forma, ou cor, ou

tamanho, ou posição na página; e a partir daí, o olhar é

guiado para as outras imagens, em uma espécie de

reconhecimento para que só posteriormente ocorra a leitura

ordenada tradicionalmente, isto é, uma leitura linear da

esquerda para direita e de cima para baixo.

101

O mangá estendeu-se nesta forma de se narrar das

histórias em quadrinhos ocidentais, pois, diferente das

histórias em quadrinhos, o estilo mangá depende

inteiramente desta disposição visual que enaltece a

multilinearidade espacial. No Mangá, esta disposição

privilegia muito mais a imagem que o texto, havendo forte

apelo gráfico. Esta característica marcante foi encontrada,

tanto na capa quanto nas outras páginas, condizendo não só

com algo que remete ao estilo mangá, mas embarcando em um

estilo de desenvolvimento de narrativa totalmente diferente

da Turma da Mônica infantil, ou seja, efetivando a

interculturalidade que interfere até no ritmo da leitura.

Em relação às páginas posteriores à capa, a ausência

de cores revela que todo o interior do material condiz com

a tradição em preto e branco do mangá (já que é desenhado

em Nanquim). Aqui pode ser observada a preocupação em

permear toda a obra com o apelo visual infalível que o

preto-e-branco e o tipo de folha do mangá proporcionam,

arrematando a similaridade com este signo importante do

mangá. A segunda página apresenta um gato (possivelmente

Mingau, o gato de Magali) em uma posição de um Manekineko

(literalmente gato que acena), a figura de um gato com a

pata levantada enquanto segura uma moeda. Este é um símbolo

clássico da cultura japonesa e acredita-se que ele traga

boa sorte ao portador. No gibi Turma da Mônica Jovem, ele

tem a função de uma apresentação amistosa para o leitor,

enaltecendo o diálogo com o Japão que se mostrará presente

dali em diante.102

Em seguida, logo após o título da edição, alguns

recados são destinados ao leitor. São as descrições dos

personagens, agora adolescentes, que comunicam o quê mudou

e o quê não mudou:

Mônica não é mais aquela menininha de vestidinho

vermelho que corria atrás dos garotos com um

coelhinho. Na verdade, seu guarda-roupa mudou muito,

ainda que continue uma predileção pelo vermelho.

Ainda é um pouco dentucinha, mas deixou de ser

baixinha e gorducha faz muito tempo. Uma coisa não

mudou desde que era pequena: é a sua amizade com a

turma e seu gênio forte... Aliás, vai ver é por isso

que ainda é líder dessa turma, ou melhor, “galera”!

Agora a turma o chama (a pedidos) de “Cebola”, e não

tem mais cinco fios. Agora ele tem uma vasta

cabeleira, mas que mantém o formato original do

Cebolinha criança. Deve ser algo genético. Hoje em

dia não troca mais os “erres” pelos “eles” desde que

tratou sua dislalia com uma fonoaudióloga, mas quando

está nervoso comete pequenos “escolegões”. Conquistar

a rua? Não... é pouco... Cebola agora quer conquistar

o mundo com suas ideias de uma geração pronta para o

futuro.

Cascão embora não continue gostando da ideia, agora

toma banho de vez em quando. Também, não dá pra

praticar tantos esportes radicais como skate,

Mountain Bike e ficar sem suar... imagina sem banho?

A turma foi fazendo sua cabeça e com o tempo ele

103

adotou esse costume “bizarro” que toda a humanidade

tem chamado de “banho”. Continua um garoto

inteligente, criativo e muito bagunceiro. Sua mãe que

o diga, pois não consegue deixar seu quarto em ordem.

Magali continua magrinha como sempre foi, porém essa

fase de crescimento só aumentou seu apetite. No

entanto, agora ela cuida mais do seu corpo e se

preocupa mais com a qualidade de sua alimentação,

praticando esportes aeróbicos, queimando calorias e

se alimentando á base de uma dieta saudável. Magali

continua aquela menina meiga e carinhosa, e é claro:

apaixonada por gatos.

Pois é, pessoal...

A Turma da Mônica cresceu e está aqui, numa nova

aventura em estilo mangá! São 120 páginas com muita

ação, humor, romance e aquele charme que conhecemos

muito bem. Estamos num universo da Turma nunca

explorado antes, em que veremos suas rotinas como

adolescentes, seus novos medos, incertezas, além de

boas lembranças do passado. São milhares de novas

aventuras junto de todos aqueles que fizeram parte de

sua infância.

Estão preparados?

Então, embarquem nessa nova jornada...

Maurício

104

Figura 10 – A Turma da Mônica Jovem. Da direita para a

esquerda: Cascão, Cebolinha, Mônica e Magali.

Fonte: http://blog.meiapalavra.com.br/files/2011/11/turmadamonica.jpg

O discurso apresenta os personagens crescidos de modo

que o leitor tenha interesse de saber os resultados das

mudanças, mas sem perder a referência dos traços físicos

característicos da famosa turminha dos gibis infantis. Além

disso, ele convida efetivamente o leitor a tudo o quê

propôs, tanto em relação ao universo adolescente quanto ao

universo mangá, que, principalmente no Brasil, mantém

relação estreita.

Na página seguinte, um breve índice é apresentado, com

os títulos dos capítulos e respectivas páginas. A

continuidade da Turma da Mônica Jovem é um ponto importante

a ser considerado. Os gibis infantis Turma da Mônica

geralmente apresentam em cada volume um conjunto de

histórias independentes entre si e em relação a outros

volumes. Já a Turma da Mônica Jovem organiza-se em edições

lineares, com uma clara sequência cronológica na narrativa,

105

e até mesmo, histórias maiores podem ocupar várias edições

consecutivas. Esta configuração inspira-se nas séries de

mangá famosas no Japão e Brasil, que dividem sua narrativa

em volumes, que inclusive podem ser mensais, assim como A

Turma da Mônica Jovem.

A narrativa inicia-se na sexta página, na qual se lê

que a história se passa no “Bairro do Limoeiro...”. Uma

Mônica adolescente, com traços mais realistas,

característica do mangá, é apresentada para o leitor, assim

como Cebolinha (agora Cebola), Cascão e Magali, todos em

seus respectivos lares. A partir das interações dos

personagens com suas famílias, o leitor fica a par das

mudanças psicológicas e físicas que ocorreram, das

peculiaridades caricatas que se mantiveram intactas, e que

foram essenciais na construção e manutenção das

personagens. Em seguida, o enredo principal que começa na

primeira edição e termina na quarta se desenrola. Um antigo

vilão do tempo da Turma da Mônica infantil reaparece e

revive uma antiga bruxa maligna do Japão feudal, que deseja

vingança por ter sido aprisionada. Mônica, Magali, Cascão e

Cebola partem para uma aventura em que têm de reunir quatro

artefatos mágicos para derrotar a bruxa, em quatro

dimensões diferentes: um mundo fantástico semelhante à

Europa da Idade Média (referência ao cenário de

RolePlayingGame, jogo apreciado pelo adolescente e muito

relacionado ao universo dos mangás), um mundo futurístico

de robôs (referência a temática recorrente da cultura pop

106

japonesa), um mundo de torneios de artes marciais

(referência a artes marciais orientais) e um mundo de

terror.

No decorrer da história das quatro edições, percebe-se

um grande conjunto de elementos interculturais. Alguns são

mais óbvios, como o uso de maldições japonesas (muitas

vezes com paródias cômicas), outros mais discretos como a

utilização de expressões faciais exageradas. A leitura

tradicional do mangá (direita-esquerda) não foi adotada, e

esta escolha originou um recado ao leitor no final da

edição, explicando o motivo:

Calma, Mônica!!!

Ninguém vai ler do lado errado!

Embora o mangá japonês seja lido no sentido oriental,

resolvemos deixar a história com o sentido de leitura

ocidental... Afinal, apesar do estilo mangá, ainda é estilo

Turma da Mônica e ninguém quer ver a baixinha nervosa, não

é? Ou melhor... a Mônica nervosa...

Maurício

Tal discurso mostra-se muito rico no que se refere a

diálogos interculturais. Este trecho elucida claramente a

interculturalidade, e exemplifica os aspectos gerais aqui

analisados. Há aquilo que foi transposto do mangá para a

Turma da Mônica Jovem, assim como o tipo de papel e estilo

preto e branco, a divisão em capítulos e a continuidade,

107

bem como a multilinearidade na leitura; que têm como

objetivo transpor o imaginário do mangá para esta nova

proposta adolescente, e assim atender uma demanda intensa

por parte dos consumidores jovens que se interessam pela

cultura japonesa principalmente por meio deste fenômeno

cultural que são os gibis japoneses. Há também aquilo que

foi modificado pela cultura japonesa, mas não inteiramente,

como exemplo a expressão a temática das “aventuras”

(apresentam elementos da cultura japonesa

“abrasileirados”), e o próprio desenho dos personagens (é

mais realista como o mangá, mas ainda permanecem traços

característicos da Turma da Mônica infantil). E por fim, há

aquilo que se manteve inalterado, como o sentido ocidental

de leitura esquerda-direita, que, de acordo com o discurso

da revista, teve o intuito de preservar o estilo da Turma

da Mônica, visto que a inversão no sentido de leitura

talvez esteja relacionada com barreiras que ainda não são

muito fáceis de ultrapassar, ou ainda, discordâncias e

negações no diálogo intercultural, que também são

possíveis.Em seu discurso “Apesar do estilo mangá, ainda é

estilo Turma da Mônica”, Maurício de Souza ratifica que

apesar da interculturalidade e negociações, sua obra ainda

se mantém brasileira, e portanto, há a mediação proposta

por García Canclini, com as aceitações e negações

pertinentes, e não a simples dominação.

Este subcapítulo teve como objetivo uma delineação

geral sobre a interculturalidade encontrada nos gibis em

108

estilo mangá Turma da Mônica Jovem. O subcapítulo adiante

tratará deste estudo aplicado exclusivamente ao corpo das

personagens, tanto no que compete a expressões faciais,

traço do desenho, molde do corpo, e vestuário.

4.3.1 Análise do corpo das personagens

O desenho do corpo das personagens de mangá é

particularmente importante devido ao grande apelo visual

que esta forma de publicação presume, e, nesta etapa, a

análise será desenvolvida em torno deste aspecto, que

envolverá tanto a forma do corpo e vestuário, como a forma

do traço, as expressões, os cabelos, entre outros. Tal

pesquisa tomará em base os parâmetros já apresentados na

análise geral da Turma da Mônica Jovem, sempre em relação

com as ponderações teóricas, e em busca dos diálogos

interculturais.

O símbolo icônico no mangá shonen que o jovem

brasileiro consome, e que remete quase que instantaneamente

a este fenômeno cultural no imaginário destas pessoas são

os olhos expressivos e desproporcionalmente grandes das

personagens. Eles podem variar nos mais diversos tipos de

tamanho, forma, e cores (inclusive cores exóticas) entre

personagens diferentes; e variar mais radicalmente ainda

entre diferentes expressões da mesma personagem. No mangá,

os olhos são chave para complementar a expressividade do

rosto, assim como se constata na Figura 11.109

Figura 11 - Modelos de expressões faciais no mangá.

Fonte:http://iris-zeible.deviantart.com/art/Emoticons-29976888?q=boost

%3Apopular+emoticons&qo=1

Na Turma da Mônica Jovem, estes olhos em conjunto com

estas facesnão faltaram, já que são um símbolo crucial

quando o jovem consumidor pensa em mangá, no Brasil. As

edições vão experimentando cada vez mais as expressões

exageradas, algo que antes, na Turma da Mônica infantil

mostrava-se de forma diferente. As figuras a seguir

ilustram a diferença:

Figura 12 – Comparação de expressões de Mônica criança110

Fonte:https://lh4.googleusercontent.com/

ksKbNkiaomykRoHEKHcr4r5q_gi5ky8pNUTnGZ9zSFrq4HWSW5DZg6WZ6fUbBpqoqc89aO

NZlexnLqepgYeR0NvynG5osswanvsOq6BOKKfFKsQgTFQ

Figura 13 – Comparação de expressões de Mônica adolescente.

Fonte:

http://www.rpgonline.com.br/images/galeria/134208_turmadamonica-

tras.jpg

O desenho da expressão de raiva da Mônica nos gibis

infantis comporta somente elementos gráficos (fumaça) e o

franzimento da testa, com alteração mínima no formato dos

olhos e face. Já o desenho da expressão de raiva da Mônica

adolescente configura-se principalmente na transformação111

radical dos olhos que são reduzidos a círculos brancos

sobrepostos por simples traços retos. Tal configuração de

extrema economia de detalhes não reduz a expressividade, ao

contrário, a potencializa. O rubor na face e a abertura

exagerada da boca auxiliam ainda mais nesta

potencialização.

Os cabelos também são um interessante objeto de

estudo. No mangá, seu desenho é diferente dos padrões

ocidentais, pois são detalhada e cuidadosamente compostos

por vários traços, geralmente causando a aparência de serem

bem fartos e extravagantes, e contribuindo para uma gama

imensa de penteados possíveis que são aproveitados pelos

desenhistas.

Figura 14 – Modelos de penteados no mangá.

112

Fonte:

http://cdmcomodesenhar.blogspot.com.br/2012_03_01_archive.html

Na Turma da Mônica Jovem, o cabelo passa a seguir a

tendência dos mangás, e abandona, mesmo que não totalmente,

o formato simples que nutria nos gibis infantis. Vide

exemplo a seguir:

Figura 15 – Cebolinha e Figura 16 – Cebola

Fonte: https://www.papelefesta.com.br/fotos/518-1/mini-painel-cebolinha-lp-.jpg

Fonte:http://www.revistaturmadamonicajovem.com.br/magali-cascao/galerias/imagens/g192796.jpg

Enquanto o cabelo de Cebolinha criança limita-se a

cinco traços, o cabelo de Cebola adolescente se torna mais

farto e com desenho com mais traços, no estilo do mangá

japonês. Porém, a semelhança em relação ao cabelo do113

antecessor é mantida, levando a entender que esta mudança

se configura como um diálogo, em que as partes negociam em

prol de um resultado satisfatório para o jovem leitor: a

manutenção da identidade da Turma da Mônica e ao mesmo

tempo o embarque no estilo mangá.

Já o corpo das personagens tem uma característica bem

diferente dos quadrinhos ocidentais: eles podem apresentar

pedaços de animais ou criaturas mitológicas (Fig. 13), como

chifres, caudas e orelhas, partes robóticas, entre vários

outros. Isto acontece geralmente nas séries de mangá com

elementos de fantasia, mas podem ser apresentados em mangás

fiéis a realidade, sem a objetiva explicação do motivo na

história.

Figura 17 - Partes de animais em corpos humanos no

mangá (Inuyasha).

114

Fonte: http://www.foroswebgratis.com/imagenes-

inuyasha_y_kagome-22510.htm

Na Turma da Mônica Jovem, esta apropriação de partes

animais para o corpo humano também ocorre (Figura 18).

Figura 18 – Partes de animais em corpos humanos na Turma da

Mônica Jovem

Fonte:http://1.bp.blogspot.com/-nOw99mJ7WaU/TtY4qM4AAqI/AAAAAAAACUQ/

6XrmjXNhW1c/s1600/Capa%2Bda%2BMagali%2BJovem.jpg

115

As figuras de animais apresentam uma conotação muito

diferente no Japão em relação ao Brasil. A mitologia

japonesa, intrinsecamente ligada a cultura, e portanto

elementos culturais como o mangá, faz muito uso da figura

do animal, assim como a mitologia egípcia, por exemplo. Os

animais aparecem como deuses, demônios, heróis, entre

outros, e carregam uma vasta bagagem de significado

referente às lendas. O mangá shonen Naruto é o que melhor

ilustra esta relação: a história se desenvolve entorno de

nove “demônios” (a tradução para demônio não se faz plena,

já que orginalmente remete a noções religião cristã, por

isso, entende-se melhor como criaturas mitológicas muito

poderosas e com forte tendência ao caos e destruição), cada

qual com uma quantidade específica de caudas, de uma a

nove, que são proporcionais a quantidade de poder. Todos

esses “demônios” de caudas têm representações em animais de

lendas e mitos: guaxinim (uma cauda), ligado a lendas nas

quais é retratado como um ser que adora saquê e mulheres,

que está sempre endividado, e cujas estátuas podem ser

vistas do lado de fora de restaurantes e bares do Japão

para atrair clientes; gato (duas caudas), remetendo à lenda

de que se um gato atingir uma certa idade, for mantido

preso por um certo número de anos, crescer até certo

tamanho, ou ter uma cauda longa demais, pode se transformar

em uma criatura fantasmagórica e maligna; criatura aquática

semelhante a uma tartaruga (três caudas), relacionado a

116

criaturas mitológicas que vivem em rios e lagos e que podem

devorar humanos; gorila (quatro caudas); espécie de cavalo

com cabeça de golfinho (cinco caudas); lesma (seis caudas);

besouro-rinoceronte (sete caudas); híbrido entre touro e

polvo (oito caudas); e raposa (nove caudas), claramente

referente a lenda da kitsune, uma espécie de espírito em

forma de raposa que possui inteligência muito elevada,

longo tempo de vida, e poderes mágicos que vão se elevando

assim que mais caudas vão crescendo: diz a lenda que uma

vez que uma kitsune adquire a nona cauda, ela ganha

sabedoria ilimitada e onisciência.

No gibi/mangá Turma da Mônica Jovem, animais com

traços de personalidade humana e humanos com traços físicos

de animais também são presentes. Porém, a referencia

original aos mitos e lendas, e toda a significação que os

signos de animais poderiam trazer no mangá, perde-se na

publicação brasileira, já que entra em conflito no diálogo

intercultural, por ser ausente ou distante do repertório

cultural brasileiro. Deste modo, só é importado do Japão a

forma característica de hibridez entre humanos e animais,

mas não o significado das lendas e mitos. Este configura-se

como um caso clássico de diálogo cultural em que há

concessões e recusas, em função do que faz sentido para a

manifestação intercultural, mas ainda sim brasileira.

Nota-se que há um diálogo referente ao cabelo e

expressões faciais da Turma da Mônica Jovem e o mangá.

Neste diálogo intercultural, não ocorre a simples

apropriação do que é do mangá contemporâneo, e sim uma117

adaptação, que ocorre em mão dupla (certos aspectos mudam

mas outros se mantém) entre cultura brasileira e japonesa.

As personagens apresentam penteados semelhantes ao dos

personagens de mangá, assim como os olhos expressivos e

rosto mais realista, porém, todo o conjunto continua

coerente ao que eram os personagens infantis, não só para

que o leitor os identifique, mas para manter uma forte raiz

com o que é dos gibis, e portanto da cultura brasileira.

Isto prova que o diálogo intercultural não ocorre

necessariamente em termos de dominação entre culturas, mas

sim um processo de mediação, no qual as aceitações e

negações pertinentes influem em um resultado final que é em

estilo mangá, apresenta elementos importantes da cultura

japonesa, mas não deixa de ser brasileiro e fazer sentido

para a vida do jovem leitor.

Já o corpo das personagens da turma mostra-se muito

pertinente para a análise. Os mangás shonen (mangás de

aventura, destinados para crianças e adolescentes) que são

os de maior sucesso no Brasil, têm formas específicas de

retratar o corpo. Bleach e Naruto têm rígidas proporções a

serem seguidas no desenho do corpo, como, por exemplo a

necessidade de que a altura total da personagem seja um

múltiplo específico da altura da cabeça (diferente para

personagens masculinas e femininas), para que se alcancem

um nível alto de realismo no desenho. Além disso, nestas

duas séries de mangá, os personagens apresentam um molde de

corpo esbelto e esguio tanto em homens quanto mulheres, de

acordo com o padrão de beleza global. As personagens118

masculinas não chegam a ser musculosas como as de histórias

de quadrinhos de heróis ocidentais, mas tampouco são

flácidas ou gordas. As personagens femininas apresentam as

curvas do corpo acentuadas, e, geralmente, seios grandes,

pois, muitas vezes os mangás shonen, assim como Bleach e

Naruto apresentam um caráter sensual.

Figura 19 – Cebola (Turma da Mônica Jovem) e Figura 20 –

Kakashi (Naruto)

119

Fonte:http://3.bp.blogspot.com/-2nSnXXCZALw/Tn6HqnBo19I/

AAAAAAAAA2U/aVG4gbHcWno/s1600/cebola-inteiro.png

Fonte: http://www.creativeuncut.com/gallery-05/nar-kakashi-

hatake.html

Na Turma da Mônica Jovem, o desenho do corpo

claramente segue este esforço de proporção em prol do

realismo. Todas as personagens, inclusive, apresentam um

corpo esbelto e esguio de acordo com o padrão global de

beleza, e, os meninos têm um corpo muito semelhante aos de

Naruto e Bleach. Porém, há uma diferença importante quanto

ao molde corporal nas personagens femininas. Os seios de

Mônica e Magali, nunca retratados antes, não são desenhados

no tamanho dos do mangá japonês. Esta discrepância pode ser

explicada por dois motivos principais: em primeiro, a120

presença de seios exageradamente grandes no desenho têm um

apelo sensual muito mais forte na cultura do Japão do que

na cultura brasileira; e em segundo, o intuito de não optar

pelo caráter sensual na publicação. A negação total ou

parcial deste modelo de corpo feminino, deve-se ao fato de

que não faz sentido o proposto de sensualidade do mangá

japonês para o que se quer propor na Turma da Mônica Jovem.

Este modelo esbarra em questões morais que têm relação

inclusive em como se pensa mangá no Brasil: um produto

destinado exclusivamente para crianças e adolescentes,

diferente no Japão, que é destinado a todas as faixas

etárias.

Figura 21 - Mônica (Turma da Mônica Jovem) e Figura 22 -

Matsumoto (Bleach)

Fonte: http://uploads.putsgrilo.com/2008/08/monica-jovem.jpg

121

Fonte: http://musasdigitais.blogspot.com.br/2010/09/rangiku-

matsumoto.html

Já o vestuário da turma adolescente exibe diversas

particularidades interculturais. As roupas mostram-se

condizentes com a cultura pop japonesa e adolescência, mas

simultaneamente negam algo que existe no próprio mangá

japonês e nos gibis Turma da Mônica infantil, que é a

permanência das mesmas vestes para os mesmos personagens ao

longo da narrativa. Este recurso do uso da mesma roupa visa

marcar visualmente o personagem de modo mais contundente no

imaginário do leitor, mas, devido a uma já prévia marcação

neste imaginário, oriunda dos gibis infantis antecessores,

a Turma da Mônica Jovem teve a opção da mudança constante

de vestuário de suas personagens.

Figura 23 – Cascão em sua roupa de guitarrista

122

Fonte:http://3.bp.blogspot.com/_D2xh5XsAv4o/TURCLYLcCOI/AAAAAAAAACA/

cHN__FNsrcY/s1600/Casc%25C3%25A3o%255B6%255D.jpg

Este diálogo intercultural no que se refere ao

vestuário ilustra mais uma vez como as negações e

aceitações combinam-se entre si, assim como García Canclini

defende em seus estudos sobre cultura e globalização.

Em suma, em relação ao corpo, podem ser estabelecidas

várias negociações interculturais. Há aceitações,

exemplificadas pelo desenho do rosto e olhos bem

expressivos, visto que este símbolo é o que mais remete ao

estilo mangá entre o jovem brasileiro. Há também negações,

no que se refere ao formato sensual do corpo das

personagens de mangá, que esbarra em questões morais e

culturais no Brasil – a publicação da Turma da Mônica Jovem

não pretende apresentar um caráter sensual, já que não

concorda com sua proposta: o mangá é visto como algo

voltado exclusivamente para o público infantil e

adolescente, diferente do Japão, e, mesmo que apresente uma123

breve conotação sensual, não concorda com o padrão japonês

de corpo ideal. Não obstante, existem aqueles diálogos que

não podem ser caracterizados nem completas aceitações nem

completas negações, que é o caso da questão da transposição

de partes de animais para o corpo humano: esta apropriação

configura-se apenas no âmbito das imagens e da ligação que

se faz com o estilo mangá, em detrimento do conteúdo

simbólico referente aos mitos e lendas nipônicos, visto que

esse conteúdo justifica a utilização dos animais no mangá

japonês, mas se perde em essência, e apenas reverbera no

Turma da Mônica Jovem.

124

5 Considerações finais

Esta pesquisa teve como tema principal as negociações

interculturais, proposta por Néstor García Canclini, entre

dois produtos da cultura midiática, o mangá japonês e a

Turma da Mônica Jovem, no que se refere aos aspectos

gerais, mas principalmente nos aspectos físicos das

personagens. O objetivo primário foi identificar tais

relações interculturais que se expressam em movimentos de

negociação, aceitação, negação e conflito. Assim, estudamos

quais elementos do mangá contemporâneo (exemplificado por

Bleach e Naruto) fazem sucesso entre o jovem consumidor do

Brasil e estão presentes no gibi Turma da Mônica Jovem.

Deste modo, estudamos elementos da cultura japonesa em

diálogo com a cultura brasileira.

A monografia estruturou-se em cinco capítulos. O

capítulo 1 destinou-se a apresentação do tema justificado

bem como dos demais elementos que compõem um projeto de

125

pesquisa. No capítulo 2, uma investigação bibliográfica foi

realizada, a fim da formação de uma base conceitual para a

posterior análise. García Canclini, como estudioso da

globalização e relações culturais, foi o autor privilegiado

neste trabalho, visto que suas reflexões são as mais

condizentes com os fenômenos observados, no que se diz ao

global-local, interculturalidade, e relações de diálogo,

negociação. Outros autores complementaram a investigação,

como Edgar Morin e Milton Santos, já que suas visões sobre

os fenômenos culturais temperados na globalização se

enveredam por vieses importantes, que enriqueceram as

ponderações de García Canclini por meio de possíveis

concordâncias e refutações.

No Capítulo 3, o mangá recebeu o sua devida atenção no

que se refere ao seu significado cultural no Japão e mundo.

Suas características descritivas foram apresentadas, assim

como sua história entrelaçada a história do Japão, o seu

papel na cultura e sociedade japonesa atual, e como foi a

sua entrada para o Ocidente, um campo onde ele é visto e

atua de outra maneira no cenário cultural. Estes

esclarecimentos foram necessários para apoio para entender

a interculturalidade entre Turma da Mônica e estilo mangá

na Turma da Mônica Jovem. Naruto e Bleach, séries de mangá

que fazem muito sucesso no Japão e principalmente no Brasil

foram brevemente apresentados, para que representassem o

tipo de mangá que seria levado em conta na análise do

corpus.

126

No Capítulo 4, o gibi Turma da Mônica Jovem foi o alvo

da investigação. Primeiramente, reflexões foram propostas

acerca de seu papel editorial, e sua relação com seu

antecessor infantil, os gibis Turma da Mônica. Essa

contextualização antecedeu a análise do material,

contraposta ao estudado no Capítulo 2, que buscou a

interculturalidade em diversos elementos da obra. Enquanto

uma análise geral anunciava as negociações ali presentes,

foi desenvolvida uma análise mais profunda em relação ao

corpo das personagens, no que se diz aos cabelos,

expressos, vestuário, forma do corpo, e traço do desenho.

No capítulo, as considerações finais, avaliamos os

resultados alcançados na pesquisa.

O primeiro objetivo deste trabalho era mapear, nos

estudos de García Canclini sobre globalização e

interculturalidade, os conceitos de globalização, de

intertextualidade e de diferença/alteridade. Este

mapeamento foi realizado no Capítulo 2, no qual reflexões a

cerca de um mundo cultural temperado pela globalização

foram propostas, sendo que este estudo sobre García

Canclini foi estendido a outros atores que também pensam

este tema e o complementam. As culturas são aproximadas

nesta era de globalização, entendo aproximação não como

integração pacífica ou tampouco anulação de diferenças, mas

sim o choque entre culturas distintas, que tem sua relação

intensificada pelo global. Porém, também não se trata de

uma simples dominação de uma cultura em relação a outra: o

127

que há é o diálogo e a negociação, que muitas vezes podem

inclusive levar a conflitos, desigualdade e exclusão. Aí

nasce o conceito de interculturalidade, que é justamente a

mescla entre culturas com mediações sujeitas a negações e

aceitações. A globalização intensifica a

interculturalidade, e, portanto, este diálogo se faz muito

presente, tanto na comunicação midiática quanto no consumo

cultural.

O segundo objetivo tratava-se de identificar processos

de interculturalidade e de globalização no diálogo

estabelecido entre o gibi mangá Turma da Mônica jovem e o

mangá japonês. Tais processos foram não somente

identificados, mas criticamente analisados, visto que a

proposta do gibi Turma da Mônica Jovem se pauta justamente

na interculturalidade. O gibi Turma da Mônica Jovem

comporta três tipos de diálogo: o primeiro no qual ela

importa elementos típicos do mangá contemporâneo japonês, o

segundo no qual os elementos advindos do gibi infantil

Turma da Mônica são ajustadas de acordo com o estilo mangá,

e o terceiro no qual os elementos do gibi infantil

permanecem inalterados por elementos relacionados ao mangá

e Japão. O tipo de papel e estilo preto e branco da

publicação, assim como a continuidade cronológica entre

publicações, e a multilineariedade na leitura privilegiando

o apelo visual; são importaçõesque visam a transposição do

imaginário do mangá para atender a demanda dos leitores

jovens que consomem esta forma de publicação, e assim se

128

interessam pela cultura japonesa. Vários elementos da

cultura japonesa “abrasileirados” que aparecem na narrativa

do gibi e o desenho dos personagens que é mais realista

como o traço do mangá, mas preservando características da

Turma infantil; ilustram a forma de diálogo em que os

elementos da cultura brasileira são modificados e adaptados

pela cultura japonesa. A permanência da leitura esquerda-

direita ocidental, representa aquilo que não foi modificado

em relação ao gibi infantil Turma da Mônica, pois a

inversão representaria uma aceitação intercultural que de

acordo com o discurso da revista, feriria a identidade da

Turma da Mônica. Portanto, esta permanência caracteriza-se

como uma negação nesta negociação com o mangá japonês.

O terceiro objetivo consistia em mapear as negociações

interculturais presentes no gibi Turma da Mônica Jovem no

que se refere a alguns aspectos da estética corporal dos

personagens. Esta meta também foi atingida, visto que foram

estabelecidas comparações entre a forma do corpo de

personagens de Naruto e Bleach com personagens da Turma da

Mônica Jovem. As expressões faciais, cabelo, e vestuário

também foram analisadas sob os parâmetros de

interculturalidade, naquilo que era adaptado, negado ou

aceito.

Uma dificuldade neste projeto de pesquisa foi

compreender inteiramente esta visão que García Canclini

defende sobre a globalização e os processos de negociação

nas relações entre culturas. O que se imagina de129

globalização privilegia demasiadamente sua versão

integradora, reduzindo sua versão segregadora. García

Canclini desconstrói este senso comum, e, portanto, esta

proposição deste fenômeno como simultaneamente integrador e

segregador se faz muito complexa. Além disso, quando ele

propõe o conceito de interculturalidade, há uma

desconstrução do que se entende geralmente por cultura. A

cultura é pensada como posses de significações de

determinadas sociedades, mas na verdade deve ser pensada

como a qualidade de determinados grupos sociais, que se

definem justamente por sua diferença (não desigualdade) em

relação a outras culturas. A cultura deve ser pensada na

dinâmica social, como um sistema de significações aberto

que está sujeito a influências externas, internas, e não

por isso torna-se uma cultura pior, ou dominada, já que não

há efetivamente hierarquia entre culturas. Embora valha

destacar que há, na perspectiva adotada nesta pesquisa, a

interculturalidade pautada na diferença.

Neste caso, o diálogo intercultural se realiza, de

modo que é possível ao pesquisador identificar os elementos

da cultura japonesa e os da cultura brasileira, sem que se

percam as especificidades de cada cultura, mas, ao mesmo

tempo, mesclando os seus elementos. García Canclini advoga,

em suas reflexões teóricas, que o diálogo é possível, que

há sempre negociações interculturais; ele constata que as

relações entre culturas não precisam ser necessariamente de

dominação, e isto foi constatado no desenvolvimento da

130

análise e também ao refletirmos sobre os conceitos

estudados ao longo do processo de pesquisa.

Tendo concluído a pesquisa, descortina-se aos nossosolhos uma série de questões que objetivamos nesta pesquisa,uma delas refere-se ao modo como o público leitor do gibiTurma da Mônica Jovem interpreta as relações deinterculturalidade ali presentes. Assim, consideramos queseria importante, em futuras pesquisas, investigar osprocessos de recepção do referido produto midiático, poispoderíamos, como pesquisador, ter investigado um produtomidiático e as relações interculturais sob as duas grandesperspectivas dos estudos do campo da comunicação: a dosprocessos de produção e também a perspectiva dos processosde recepção.

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