MÔNICA HENRIQUES SANTOS O COMPLEXO DE CINDERELA – RAIZ DA REJEIÇÃO

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MÔNICA HENRIQUES SANTOS O COMPLEXO DE CINDERELA – RAIZ DA REJEIÇÃO DE MARIA POR JUCA Trabalho Temático apresentado aos docentes do 1º semestre do curso de Biblioteconomia e Ciência da Informação Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP Faculdade de Biblioteconomia e Ciência da Informação - FABCI

Transcript of MÔNICA HENRIQUES SANTOS O COMPLEXO DE CINDERELA – RAIZ DA REJEIÇÃO

MÔNICA HENRIQUES SANTOS

O COMPLEXO DE CINDERELA – RAIZ DA REJEIÇÃO

DE MARIA POR JUCA

Trabalho Temáticoapresentado aos docentesdo 1º semestre do curso

de Biblioteconomia eCiência da Informação

Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP

Faculdade de Biblioteconomia e Ciência da Informação - FABCI

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São Paulo2013

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“As mulheres aceitam o papel de submissas para evitar atensão envolvida na construção de uma existência

autêntica” (Beauvoir apud DOWLING, 1987).

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Sumário

1 INTRODUÇÃO 3

2 O COMPLEXO DE CINDERELA NA OBRA DE MARIO DE ANDRADE 5

3 O QUE É O COMPLEXO DE CINDERELA: O DESEJO DE SALVAÇÃO 9

4 CAUSAS DO COMPLEXO DE CINDERELA 10

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 15

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 18

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA 18

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1 INTRODUÇÃO

Em “Vestida de preto”, um conto do autor Mario de Andrade,

percebe-se um enfoque narrativo-descritivo do amor e do desejo

que Juca tem por Maria, sua prima, como também a rejeição dela e

de sua família por ele. A narrativa mostra Juca como um aluno

medíocre, que tem plena consciência de que sua falta de empenho

nos estudos vai de encontro aos padrões familiares da época,

tornando-o um mau pretendente no jogo amoroso, desqualificando-o

assim para casar-se com Maria: “Pois pouco antes, os pais dela

tinham feito um papel indecente, se opondo ao casamento de uma

filha com um rapaz diz-que pobre, mas ótimo” (ANDRADE, p. 21,

2012).

Mario de Andrade trata deste assunto sob o ponto-de-vista de

Juca, desconsiderando o de Maria, que segue amando este. Ao viver

o dilema entre realizar seu complexo de Cinderela, casando-se com

o marido escolhido por sua família (seu príncipe encantado, capaz

de cuidar-lhe) e escolher viver um amor proibido com seu primo,

escolhe o caminho mais conveniente aos padrões da época.

Como não há nenhum registro no conto sobre a perspectiva de

Maria, o presente trabalho procura analisar as possibilidades que

levaram Maria a rejeitar Juca, isto sob um enfoque sócio-

psicológico. Acredita-se que Maria sofra do Complexo de

Cinderela. Tal tema não é original e tem sido discutido no meio

científico. O Complexo de Cinderela é um tema contemporâneo, e

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por isso merece ser continuamente discutido e rediscutido. As

pesquisas da Drͣ. Symonds demonstram claramente isso, sendo sua

primeira pesquisa sobre o tema realizada em 1964, outras em 1971,

1973, 1976, 1978, 1980, 1986 e a última em 1991.

O foco desta análise é sobre as mulheres brasileiras. O objetivo

é informá-las sobre este problema. Numa tentativa de explicar o

Complexo de Cinderela e contextualizar o cenário psicológico de

Maria, iremos explorá-lo a partir da inveja das mulheres pelos

homens. Utilizaremos os ensaios de Freud, pois Mario de Andrade

se interessava pelos referenciais freudianos na investigação

psíquica dos indivíduos isolados, que são objeto de pesquisa na

obra do autor nos finais dos anos 1920 (RABELLO, p.138, 2012).

2 O COMPLEXO DE CINDERELA NA OBRA DE MARIO DE ANDRADE

O conto “Vestida de Preto” apresenta ideias de família,

casamento, papéis masculinos e femininos dentro deste (o brincar

de marido e mulher); também aponta os resquícios do ranço

religioso presente na época - o recalcamento, a repressão da

sexualidade:

Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da

Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia

Velha evitava correrias e estragos. [...] (ANDRADE, p.17,

2012).

Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos quartos, de

forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles

cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e

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cada par fugia logo, indo viver no seu quarto. Os melhores

interesses infantis do brinquedo, fazer comidinha, amamentar

bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com generosidade

apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e

ficávamos vivendo lá (ANDRADE, p.17, 2012).

Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com ela,

sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não

havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente que

ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão (ANDRADE,

p.18, 2012).

E a minha esposa teve uma invenção que eu também estava longe

de não ter [...] (ANDRADE, 2012, p.18).

Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus

instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro

cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não,

"pecado" que é como se dizia naqueles tempos cristãos... E por

causa disso eu conseguira não pensar até ali, no travesseiro

(ANDRADE, p.18, 2012).

Também descreve uma sucessão de eventos que caracterizam os

rituais do cotidiano da vida de casal:

Maria, essa estava simples demais para me olhar e

surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal,

vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha

de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs

o travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da

janela sobre a tarde, e depois deitou, arranjando o vestido

pra não amassar (ANDRADE, p.18, 2012).

— Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor,

interrompendo o meu silêncio trágico (ANDRADE, p.18, 2012).

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— Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do

armazém (ANDRADE, p.19, 2012).

Mario de Andrade tece um encadeamento de eventos para construir o

universo familiar particular à Maria e Juca. Estrategicamente, o

entrelaçamento desses eventos vem sendo descrito desde a infância

dos dois personagens, apontando os aspectos sociais da época de

1920-30, as noções que se tinha de composição da família, a

fundamentação católica que via as descobertas sexuais da infância

como pecado, passando finalmente, ao ponto crucial – o momento em

que algo despertou dentro de Maria a rejeição por Juca:

O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força

provocado por Tia Velha, uma indiferença inexplicável de

Maria por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase

antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar

diante de todos, fiquei zonzo (ANDRADE, p.20, 2012).

A Tia Velha fora a figura feminina responsável pelo despertar

dessa rejeição. Como a mulher animus negativo se defende da mãe,

Maria se defende da Tia. Tia Velha, ela mesma infértil,

recalcada, transferiu para Maria a raiva forjada na inveja,

típica da mulher que ficou para tia. A visão reprovadora,

castradora de Tia Velha está inserida nas considerações

freudianas sobre o recalque, bem como o fenômeno da transferência

estudado por ele (Freud). Antes da reprovação de Tia Velha, a

brincadeira não possuía nenhuma conotação indecente. Ela lançou

um olhar reprovador à Maria e Juca, como se advertisse Maria das

intenções maliciosas de Juca. Maria absorveu a reprovação e

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reprimiu seus instintos sexuais, o que gerou em sua psique o

Complexo de Cinderela.

Segundo Freud, o sexo é um impulso, uma parte importante da

existência humana, uma força diretiva. Por questões de convenções

sociais, as pessoas são forçadas a controlarem esses impulsos, e

este controle por ser uma força imposta e não uma escolha

subjetiva, torna-se uma obrigação castradora, trazendo consigo o

recalque. As demais consequências dessa supressão de instintos

sexuais são os inúmeros complexos, traumas, taras, distúrbios.

Essas consequências são meramente mecanismos que a psique se

utiliza para canalizar a força sexual reprimida (KEHL, 1998).

Outro aspecto trabalhado na obra de Mario de Andrade, o contexto

psicossocial, relata a visão que Maria tinha de Juca, o

“desenquadramento” de Juca aos padrões da época. O status social

era oriundo não só da valorização das condições financeiras das

famílias, mas da formação do homem com o qual uma mulher viesse a

se casar. O fato de Juca não ter se dedicado aos estudos implicou

na rejeição de Maria por ele, afinal Juca não possuía os

requisitos necessários para ser um bom marido como os padrões da

época determinavam. Um bom marido era aquele que possuía “cacife”

para cuidar de sua esposa, sustentá-la, mimá-la. Era o marido do

qual ela iria se gabar nas rodas de chá com as amigas:

— Não caso com bombeado — ela respondeu imediato, numa voz

tão feia, mas tão feia, que parei estarrecido. Era a decisão

final, não tinha dúvida nenhuma. Maria não gostava mais de

mim [...] (ANDRADE, p.21, 2012).

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Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra

decidir de minha sorte. Nós seríamos até pobretões,

comparando com a família de Maria, gente que até viajava na

Europa. Pois pouco antes, os pais tinham feito um papel bem

indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz

diz-que pobre mas ótimo. Houvera um rompimento de amizade,

mal-estar na parentagem toda, o caso virara escândalo

mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar.

Tudo por causa do dinheiro (ANDRADE, p.21, 2012).

Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo,

que a família dela não havia de me querer. Me passou pela

cabeça comprar um bilhete de loteria. "Não caso com

bombeado"... (ANDRADE, p.21, 2012).

Passados vários anos após o incidente com a Tia Velha e Juca,

Maria atravessa a puberdade alcançando a vida adulta. É nos

breves relatos sobre seus relacionamentos amorosos que se vê a

busca desenfreada de Maria por seu príncipe encantado, alguém em

quem ela se escore por não querer enfrentar os medos

característicos de quem busca viver uma vida autêntica,

autossuficiente:

- Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus

e todo o mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz

bastante rico, noivado que durou três meses e se desfez de

repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um

diplomata riquíssimo, casar em duas semanas com alegria

desmedida, rindo muito no altar e partir em busca duma

embaixada européia com o secretário chique seu marido

(ANDRADE, p.22, 2012).

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Pois não andavam falando muito de Maria? Contavam que

pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e

aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com

um caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que

só pintava efeitos de luz. Maria falada, Maria bêbeda, Maria

passada de mão em mão, Maria pintada nua... (ANDRADE, p.24,

2012).

Nunca mais vi Maria, que ficou pelas Europas, divorciada

afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado

em feiras internacionais (ANDRADE, p.25, 2012).

Maria busca saciar um desejo e desconhece o Complexo de

Cinderela que a acompanha.

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3. O QUE É O COMPLEXO DE CINDERELA: O DESEJO DE SALVAÇÃO

O Complexo de Cinderela consiste em uma rede de atitudes e

temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa

espécie de penumbra e impede-as de utilizarem plenamente seus

intelectos e criatividade. É a dependência psicológica – o desejo

inconsciente dos cuidados de outrem – é a força motriz que ainda

mantém as mulheres presas (DOWLING, 1987).

Baseado nos estudos da Drͣ. Symonds Dowling (1987), pode-se

inferir que o desejo de salvação existe virtualmente em todas as

mulheres. O que se percebe são sinais de uma potencialmente

devastadora falta de congruência entre o “eu” interno e o “eu”

externo. O “eu” externo é independente, especialmente em relação

às expectativas sociais de como uma mulher dever ser; o “eu”

interno é um mar de dúvidas e auto-acusações. Enquanto se

desenvolvem e são ativas em vários aspectos de suas vidas vivendo

“normalmente”, essas mulheres atravessam tudo isso sob um estigma

fundamental: o conflito.

Ocorre um retrocesso na recuperação de padrões de pensamentos,

sentimentos e ações dependentes; na tentativa de escapar da

ansiedade associada a ter que ganhar a vida, e do desgaste

envolvido em ser responsável pelo próprio bem-estar. Esse

distanciamento da independência provoca uma corrosão na auto-

estima, trazendo um sentimento de inutilidade que dá vazão à

depressão e outros transtornos, o que implica no funcionamento

potencial dessas mulheres, que começa a decair.

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Mesmo aquelas mulheres aparentemente cheias de êxito em suas

carreiras e vidas privadas, tendem a “subordinar-se aos outros,

deles se tornarem dependentes e, inadvertidamente, devotarem

maior parte de suas energias em busca de amor, ajuda e proteção

contra o que é visto como difícil, ou desafiante, ou hostil no

mundo (Symonds,1972 apud DOWLING, 1987, tradução nossa)”.

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4 CAUSAS DO COMPLEXO DE CINDERELA

Segundo Dowling (1987), o complexo de cinderela remonta à

infância:

Existe uma ligação entre a tendência feminina à

domesticidade e aqueles devaneios sobre infância que parecem

repousar logo abaixo do consciente das mulheres [...]. O

fator subjacente é a dependência: a necessidade de apoiar-se

em alguém, ou mais agressivamente, de serem alimentadas,

cuidadas e preservadas de males. Essas necessidades perduram

pelas vidas dessas mulheres, clamando por satisfação, sem

serem anuladas pela necessidade igualmente presente de auto-

suficiência. Até certo ponto a necessidade de dependência é

normal em ambos os sexos. Ocorre que, desde pequenas, as

mulheres são incentivadas a uma dependência doentia. Na

melhor das hipóteses, podem representar o papel de

independente, intimamente invejando os meninos (e

posteriormente os homens) por parecerem tão naturalmente

autossuficientes (DOWLING, p. 13, 1987).

A autossuficiência [...] é um produto de aprendizagem e

treino, não é um dom nato. Os homens são educados para a

independência desde o dia de seus nascimentos. De modo

igualmente sistemático, as mulheres são ensinadas a crer

que, algum dia, de algum modo, serão salvas (DOWLING, p. 13,

1987).

Por que essas mulheres tem uma espécie de bloqueio no campo

afetivo? Qual a razão de sua insatisfação? Pode-se até atribuir

ao velho clichê “não se pode ter tudo na vida”, porém, do ponto

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de vista psico-sociológico encontra-se outras justificativas na

estrutura mental e emocional dessas mulheres.

No trabalho de Amnéris Maroni, intitulado “A difícil trajetória

da mulher no patriarcalismo”, publicado na Revista

Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, a autora baseia-se

nos estudos de Jung e Maria Torok, com intuito de demonstrar o

perfil de mulher completamente oposto ao padrão cujas mulheres

são vistas como invejosas do sexo masculino por deterem certas

características peculiares como dependência financeira e ausência

de êxito profissional.

Conforme Torok (1995 apud MARONI, 2007, p.220), universal, a

inveja do pênis aparece na análise de todas as mulheres, sendo

que em algumas porém, ela tem se tornado o centro da questão. O

que seria então a inveja do pênis? E quais são suas influências

na satisfação feminina?

Maroni (2007), aponta esse perfil e descreve seu panorama

psicológico. São mulheres com sucesso profissional, inclusive

social, segundo ela mesma descreve, porém o traço marcante é o

pouco sucesso afetivo. Percebe-se que ao apontar o campo afetivo,

Maroni deixa subentendido o aspecto da insatisfação pessoal

dessas mulheres.

Essas mulheres bem-sucedidas se apoiam no desenvolvimento de sua

inteligência como ferramenta de superação e equiparação ao êxito

do sexo masculino, numa tentativa de diminuir a inveja que

possuem deles (do pênis). Maroni (2007), cita as contribuições de

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Jung, “Os arquétipos do inconsciente coletivo”, que determina que

a filha busca se masculinizar como uma espécie de defesa – o

desenvolvimento da inteligência – contra a mãe, que simboliza

seus (da filha) instintos femininos.

Essa inveja poderia ser saciada? Segundo Freud (apud MARONI,

2007), entre as fases anal e genital há uma intermediária, a fase

fálica: ela é semelhante para ambos os sexos e volta-se para o

membro viril. Nessa fase, há um único sexo – o macho – partindo

daí o ciúme da menina de não tê-lo. Para Freud a inveja do pênis

e claro, o ódio da mãe, no caso da menina, é tida como

responsável pelo seu estado de “castração”. A menina experimenta

isso ao descobrir o sexo do menino (TOROK, 1995). Nos seus

estudos, Maroni aponta um aspecto importante das descobertas de

Maria Torok – há um momento no qual essa descoberta acontece

levando à inveja irredutível durante a vida toda. A ferramenta

apontada por Torok para resolução do conflito, segundo Maroni

(2007), é a análise que encontraria por detrás do pênis (o

objeto) o real desejo. Daí a função da psicanálise.

O que seria então esse complexo? Ele está subjacente à inveja do

pênis, sendo “uma invenção, um obstáculo, um sintoma suscitado

por um “penoso estado de falta”: um desejo não realizado”. Para

compreendê-lo é preciso entender primeiramente o ódio da menina

voltado à mãe. Esse ódio e a inveja supracitada caminham juntos.

Maroni (2007), indagou sobre o ódio voltado à mãe e concluiu que

a inveja do pênis é de um pênis idealizado.

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Essa idealização do pênis, segundo ela, vem de um recalcamento

como contrapartida. O recalcamento atinge precisamente as

experiências do corpo consigo mesmo (TOROK, 1995 apud MARONI,

2007). A parte restringida pelo recalcamento é o próprio sexo. E

com isso as etapas de amadurecimento afetivo são bloqueadas

porque a sexualidade foi recalcada, reprimida.

Maroni (2007), aponta a mãe como beneficiária desse recalcamento,

pois ela retém atenção do ódio que lhe é projetado. A mãe é o

alvo das exigências da menina quando esta deseja não só o pênis,

mas os atos que permitem dominar as coisas em geral e o pênis

representa isso, o poder masculino. Nessa relação entre mãe e

filha o mais relevante não é tanto uma supressão dos instintos

femininos, mas uma reação de defesa da menina contra a supremacia

da mãe e segundo Maroni (2007), essa defesa se projeta contra

tudo mais. Esse é o complexo materno negativo – é a energia psíquica

da filha concentrada na mãe sob a forma de defesa, alienando-a da

construção da sua própria vida. Essa defesa explica o aspecto da

destrutividade presente na vida da mulher, que a dissocia de si

mesma, de parte de si mesma, de sua parte mais preciosa – a

feminilidade, o erotismo, a sexualidade e a maternidade. A

destrutividade se configura em primeira instância na auto-

destrutividade.

Nos estudos de Jung (apud MARONI, 2007) percebe-se um

desenvolvimento espontâneo da inteligência nas mulheres que se

defendem da mãe, como uma ferramenta projetora de um refúgio onde

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a mãe não adentra. É uma maneira que o inconsciente da filha

encontrou de sobreviver psiquicamente ao lado dessa mãe. Porém,

com o desenvolvimento da inteligência vem o aparecimento de

traços masculinos em geral.

Os complexos se formam na relação do eu com o mundo e são

consequências dos traumas vividos, danificando a psique. No

complexo materno negativo, essas cisões primárias são difíceis de

serem trabalhadas na terapia analítica. Maroni os descreve como

um corpo estranho que atua através de possessões que a cada

atuação reforça aquelas cisões. Eles tomam dimensões cada vez

maiores e quando menos se percebe toma conta de toda a psique.

Como seu alvo é a defesa contra a mãe, o complexo bloqueia e inibe os

instintos femininos na menina (MARONI, 2007). Esse corpo estranho

descrito por Maroni, ou seja, o complexo, vem para instituir-se

como uma defesa e o que ele tenta proteger é o desejo.

Por que a filha se defende da mãe e que mãe seria essa? Maroni

aponta que nas narrativas terapêuticas que embasaram seus

estudos, o perfil das mães não é de mães “acolhedoras do

feminino”, como ela mesma descreve. Elas não o são consigo

mesmas, com as filhas, nem como metáfora do mundo. Essa mãe é uma

extensão do patriarcalismo e para a filha, identificar-se com a

mãe seria sua morte psíquica.

A maior consequência dessa morte psíquica seria o aleijamento da

instintividade feminina, que não se desenvolve, não amadurece.

Para a filha significa uma existência sem auto-estima,

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rejeitando-se a si mesma, desenvolvendo o que Jung chamou de

“animus negativo” – é um complexo autônomo, a contraparte sexual

masculina na mulher. Maroni além de definir o animus negativo, o

aponta como uma tentativa de reabilitar a psique que carrega um

eu cheio de lacunas, já que a identificação com a mãe foi

recusada desde a base (início da relação mãe-filha) (MARONI,

2007).

Outro aspecto discutido por Maroni é o self-grandioso presente

nessas mulheres. É o brilho e sucesso profissional oriundos da

onipotência, que segundo a autora não provem de uma cisão

qualquer, mas de processos dissociativos profundos que se baseiam

na mãe como principal fator de defesa. As características

marcantes dessas mulheres são a sua presença poderosa e

onipotente no campo social e profissional, suportada pelos

mecanismos de reabilitação da psique discutidos no parágrafo

acima – o animus negativo, autodestrutivo – que ineficientemente

tentam apoiar um ego frágil. Essas mulheres mostram-se

autossuficientes, brilhantes. O que self-grandioso permite a

essas mulheres é ocultar os frutos da destrutividade.

As indagações de Maria Torok sobre a possibilidade de descoberta

do desejo autêntico sugerem este como um problema da análise. Ao

analisar esse desejo, Maroni se permite indagar como seria falar

psicanaliticamente dessas mulheres realizadoras, que ao seu ver,

não idealizam o pênis e choram por sua ausência, mas sim se

identificam e incorporam a própria idealização e constroem um

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mundo paralelo, falso e brilhante, instável, suscetível a ruir,

ou não, pois que enquanto essas mulheres vivem nesse mundo,

ninguém sabe que é falso, muito menos elas. A conclusão de Maroni

é que não há um desejo autêntico a ser recuperado. Diferimos de

Maroni, o desejo a ser recuperado é a existência autêntica

feminina.

O que o animus negativo tem em comum com o Complexo de Cinderela é

que em ambos a mulher possui um conflito interno, como algo que a

devorasse de dentro para fora, um vazio impreenchível, mas que

apesar disso, o reconhecimento social, o “brilhantismo do

intelecto” como Maroni aponta, somado ao sucesso profissional são

suficientemente poderosos para manter silenciosos os frutos da

sua destrutividade, autodestrutividade.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário em primeiro lugar que o conflito interno entre

dependência e independência seja percebido, identificado e

isolado da realidade do cotiano de vida da mulher. Em seguida, o

processo de elaboração desse conflito deve ser sistemático e

persistente com empenho concreto, observando-se a resistência à

mudança, a negação da dependência e a relutância em quebrar a

inércia oriunda de uma posição medíocre em face à pressão de

pólos extremos.

A identificação da dependência permitirá a elaboração, ou seja,

um processo rumo a uma resolução. Segundo Horney (apud DOWLING,

1987), a parte que se tenta suprimir é “ainda suficientemente

ativa para interferir, mas não pode ser posta a serviço de ações

construtivas”. Sendo assim, a energia gasta nessa supressão

poderia estar sendo utilizada na auto-asserção, cooperação e

estabelecimento de bons relacionamentos humanos.

Essa perda de energia é um sinal de conflito associado a uma

dependência não-conscientizada, e as consequências disto são a

indecisão e a inércia, onde a tomada de decisão é um processo

obscuro e duvidoso, e as protelações conduzem à autopunição e à

frustração irada desobjetivada (DOWLING, 1987).

Maria agiu de modo hesitante quanto a Juca. Ao mesmo tempo em que

desejava impor-se e ficar com Juca, também queria subordinar-se

ao marido rico que sua família escolhera. A resolução do conflito

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de Maria requer mais do que tentar consertar as rupturas em sua

psique – aquelas oriundas do complexo materno negativo. Implica na

procura das causas desencadeantes do conflito, de modo que a

necessidade de cisão cesse.

É necessário uma auto-análise meticulosa (acompanhada por

profissional competente), dos motivos, atitudes e modos de

conceituar as coisas. Pois é perseguindo e analisando as

inconsistências de comportamento que se terá a raiz do conflito.

Percebe-se no conto a inconsistência no comportamento de Maria de

moça comportada à doidivanas quando o autor menciona os

comportamentos escandalosos de Maria.

Dowling (1987), explica que inconsistências de comportamentos não

são necessariamente aberrações irrelevantes de fato, elas

provavelmente refletem cisões básicas na personalidade. Uma

observação objetiva e elas conduzirão à percepção de aspectos

fundamentais, previamente não reconhecidos de quem se é. O

enfrentamento e a aceitação destes permitirão descobrir um novo

“eu” integrado e poderoso.

A solução segundo ela, é o auto-questionamento, um processo auto-

regulador. É apossar-se da responsabilidade pela própria

felicidade ao invés de terceirizá-la. A conferência constante dos

próprios pensamentos, comportamentos e atitudes pode reduzir a

possibilidade de reter-se um quadro distorcido e irreal. Desfaz-

se assim, a fantasia do conto. Uma vez que se estabelece

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objetivos e prioridades, a partir dessa delimitação da realidade,

pode-se então, viver realisticamente no presente.

A conferência constante dos padrões psíquicos permite um

engajamento concreto na vida, a ativação da mudança e do

crescimento, uma vez que a espera pelo príncipe encantado deixa

de existir. A Cinderela torna-se sua própria salvadora. Dessa

forma, enquanto não se trajeta pelo processo de identificação e

elaboração das contradições internas, não há como a força de

vontade operar. Pois, quando há sentimentos e atitudes mutuamente

opostos operando, a vontade é anulada. Se torna então, impossível

escolher o que fazer da vida, agindo apenas pela compulsão à ação

(DOWLING, 1987).

A auto-descoberta não só das causas dos conflitos e a elaboração

destes, mas também dos próprios gostos, interesses, inclinações,

características da própria personalidade, enfim, permitem a

espontaneidade emocional que permeia todos os aspectos da vida.

Essa é a verdadeira libertação que fomenta o engajamento – a

liberdade emocional – que permite à mulher mover-se em direção ao

prazer, às coisas gratificantes, e afastar-se da dor, das coisas

destrutivas. Ela é livre para ser bem-sucedida, estabelecer

objetivos e trabalhar em direção a eles, sem temer o fracasso,

sem vacilar, já que sua autoconfiança deriva agora de uma

avaliação realista das suas limitações e capacidades.

A independência, uma vez desenvolvida desde dentro, permite à

mulher crer em si mesma, livrando-a das fantasias, ao passo que

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ela não mais vacila diante das tarefas para as quais se acha

preparada. Ela é realista, segura e possui auto-estima. Sendo

assim, pode amar os outros de forma sadia porque aprendeu a amar

a si mesma.

De acordo com o discutido, percebe-se que se Maria tivesse tido a

chance de saber sobre todos esses fatores, poderia ter se

libertado das rédeas do patriarcalismo, do modelo materno e dos

complexos da sua infância; poderia ter assumido a

responsabilidade pela própria vida ao invés de casar-se por

interesse. A redescoberta de si mesma teria permitido à Maria

amar a si mesma, assim, ela estaria livre para amar Juca e

permanecer com ele.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mario. Contos Novos: texto integral. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

DOWLING, Colette. O desejo da salvação. Complexo de Cinderela. 28ed. São Paulo: Melhoramentos,1987.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino – A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

MARONI, Amnéris. A difícil trajetória da mulher no patriarcalismo. Rev. Latinoamericana de Psicopatologia Fund., anoX, n.2, jun. 2007, p.219-230. Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/2330/233017594003.pdf. Acesso em: abril 2013.

RABELLO, Ivone Daré. Posfácio – Novos tempos. In ANDRADE, Mario de. Contos Novos. Texto Integral. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 135-149.

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

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