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ARTIGO
RESUMO
O presente artigo parte de uma
problemática muito comum entre
educadores musicais que trabalham com
o ensino coletivo de instrumento musical:
a heterogeneidade ou diferença de níveis
entre alunos de uma mesma turma.
Partindo dos referenciais teóricos com
base em Lev Semenovich Vigotski sobre
o aprendizado e desenvolvimento - e
consequentemente adentrando o conceito
da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) -,
o artigo procura mostrar as vantagens e
possibilidades do ensino heterogêneo.
ABSTRACT
The current article comes from a very
common problematic among the music
educators who work with the collective
teaching of a musical instrument: the
heterogeneity or the level differences
between students from a same class. Coming
from the theoretical references based in Lev
Semenovich Vigotski about teaching and
development - and consequently entering
in his concept of Proximal Development
Zone (PDZ) -, the article pursuits to show
the vantages and possibilities of the
heterogeneous teaching.
PALAVRAS-CHAVE
Educação musical, Ensino coletivo de
instrumento musical, Aprendizagem mediada.
KEYWORDS
Music Education, Collective teaching of
musical instruments, Mediated learning.
Graduado em Música pela Universidade de São Paulo (USP). Educador musical no
Projeto Guri / Polo Regional Ribeirão Preto - SP.
e-mail: [email protected]
O ensino coletivo de instrumento musical: explorando a heterogeneidade entre alunos de uma mesma turma
PEDRO AUGUSTO DUTRA DE OLIVEIRA
PEDRO AUGUSTO DUTRA DE OLIVEIRA , O ensino coletivo de instrumento musical: explorando a heterogeneidade entre alunos de uma mesma turma
The collective teaching: exploring the heterogeneity between students from a same class.
ARTIGO
20202020
1 INTRODUÇÃO
Uma das grandes dificuldades com que os educadores têm se deparado no que diz respeito
ao ensino coletivo de instrumento musical é a heterogeneidade - ou diferença de níveis -
entre alunos de uma mesma turma. Muitas vezes não se sabe como lidar com tal situação,
por exemplo, quando alunos de determinada turma “básica” são transferidos e se unem com
alunos de determinada turma “intermediária”, ou quando novos alunos são agregados a uma
turma já em andamento.
Geralmente, a preocupação está em torno dos diferentes níveis de desenvolvimento e
aprendizado dos alunos, e a partir disso surgem questionamentos como: “Devo retomar todo
o conteúdo para aqueles alunos recém-chegados, correndo o risco de desanimar o restante
da turma? Devo dar continuidade ao conteúdo e também correr o risco de não-assimilação,
por parte dos novos alunos, deixando-lhes desanimados? Há atividades que os antigos alunos
sejam capazes de realizar, mas os novos ainda não estão preparados? O que fazer?”
Diante dessa problemática, o presente artigo tem a proposta de refletir, sob a ótica
dos conceitos de desenvolvimento e aprendizado propostos por Lev Semenovich Vigotski,
quais são as contribuições que essa heterogeneidade pode proporcionar aos alunos de uma
mesma turma.
2 O DESENVOLVIMENTO E O APRENDIZADO SEGUNDO VIGOTSKI
Dentre as várias concepções que dizem respeito a questões do desenvolvimento e do
aprendizado, talvez a mais difundida seja a concepção que trata o processo de desenvolvimento
da criança como sendo independente ao aprendizado. Segundo essa concepção, o
desenvolvimento é absoluto e se inicia em determinada etapa da vida do indivíduo como algo
unicamente biológico e natural. E mais, ele é um pré-requisito para qualquer aprendizado,
ou seja, o indivíduo necessita estar com determinada etapa de seu desenvolvimento já
completa e amadurecida para que possa haver algum aprendizado referente a essa etapa do
desenvolvimento.
Sendo assim, todo aprendizado se torna inútil caso a criança não tenha atingido
determinado nível de desenvolvimento. O aprendizado se forma sobre o desenvolvimento,
deixando-o inalterado.
Fazendo referência a essa concepção Vigotski nos diz:
Uma vez que essa abordagem se baseia na premissa de que o aprendizado segue a trilha do
desenvolvimento e que o desenvolvimento sempre se adianta ao aprendizado, ela exclui a noção
de que o aprendizado pode ter um papel no curso do desenvolvimento ou maturação daquelas
funções ativadas durante o próprio processo de aprendizado. O desenvolvimento e a maturação
são vistos como uma pré-condição do aprendizado, mas nunca como resultado dele (VIGOTSKI,
2007, p.89).
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Seguindo outra linha, o pensamento de Vigotski se enquadra na concepção sócio-
interacionista de construção do conhecimento. Segundo essa concepção, a aprendizagem é
um fenômeno que se realiza na interação com o outro, isto é, as ações e discursos alheios
causam transformações na forma de agir e pensar do indivíduo e a aprendizagem se dá em
contextos históricos, sociais e culturais.
Para esse autor, o aprendizado possui um importante papel no desenvolvimento: “é
o aprendizado que possibilita o despertar de processos internos de desenvolvimento
que, não fosse o contato do indivíduo com certo ambiente cultural, não ocorreriam”
(OLIVEIRA, 1995, p.56). Por exemplo, uma criança que desde cedo ouve o cantar da mãe,
já se encontra num processo de aprendizado que possibilitará seu desenvolvimento para
o cantar, e não o contrário. Isto é, a criança não necessita atingir um determinado nível
de desenvolvimento prévio, para que o processo de aprendizado (no caso, realizado pela
mãe, ao cantar) surta efeito.
Estando totalmente vinculada ao desenvolvimento histórico do indivíduo, qualquer tipo de
capacidade musical depende integralmente de um processo de aprendizagem. Sem ela, ou seja,
sem a interferência de outros indivíduos, não há como ativar os mecanismos biológicos exigidos
para o desenvolvimento de capacidades musicais, mesmo que o indivíduo possua todos os pré-
requisitos necessários a esse fim (SCHROEDER, 2005, p.95, grifos meus).
Segundo a concepção vigotskiana, em todo bom ensino, o aprendizado se adianta ao
desenvolvimento, ativando-o quando este ainda se encontra em estado embrionário ou
estado de maturação. Sendo assim, a figura do “outro” é de fundamental importância, pois
estando o desenvolvimento em estado embrionário, o papel do outro como mediador
de todo o processo de aprendizagem garantirá o amadurecimento por completo do
desenvolvimento.
Assim Vigotski constrói um conceito baseado na relação entre aprendizado e
desenvolvimento: a zona de desenvolvimento proximal.
2.1 Zona de Desenvolvimento Proximal
Seguindo a concepção que coloca o desenvolvimento como pré-requisito para determinado
aprendizado, geralmente se estabelece como aprendizado possível para a criança só aquele
no qual o nível de desenvolvimento desta criança seja capaz de receber esse determinado
aprendizado. Em outras palavras, segundo essa concepção, só seria possível o aprendizado de
determinada atividade musical quando a criança estivesse com seu nível de desenvolvimento
para realizar tal atividade, já concluído e maturado.
Em vez de estabelecer um único nível de desenvolvimento já maturado para que a criança
inicie determinado aprendizado, Vigotski estabelece dois níveis de desenvolvimento. O
primeiro, denominado nível de desenvolvimento real, corresponde ao já consolidado, em que a
criança é capaz de realizar determinada atividade sem o auxílio de outra pessoa.
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Por exemplo, quando uma criança é capaz de marcar sozinha certo ritmo ao tambor para
acompanhar determinada música, pode-se dizer que a capacidade de se marcar esse ritmo
se encontra no nível de desenvolvimento real dessa criança, pois ela já possui um nível de
desenvolvimento completo e amadurecido referente a essa atividade a ponto de conseguir
realizá-la de maneira independente e sem auxílio de ninguém.
Mas Vigotski também chama a atenção para aquele nível de desenvolvimento ainda não
completado, em processo de maturação, em que a criança só consegue realizar determinadas
atividades com o auxílio de adultos, ou companheiros e colegas. A isso ele dá o nome de nível
de desenvolvimento proximal ou potencial.
Por exemplo, uma criança que ainda não é capaz de marcar um determinado ritmo ao
tambor sozinha, mas com o auxílio de um adulto, ou ao tocar juntamente com outras crianças
que já conseguem marcar esse ritmo, ela consegue realizar tal atividade. A capacidade de
marcar esse determinado ritmo ao tambor ainda se encontra no nível de desenvolvimento
potencial dessa criança.
Baseado nesses dois níveis de desenvolvimento, o real e o potencial, é que Vigotski
determina a zona de desenvolvimento proximal:
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da
solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através
da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros
mais capazes (VIGOTSKI, 2007, p.97).
Todo trabalho realizado na zona de desenvolvimento proximal, ou seja, com atividades
em que a criança ainda não consegue realizar sozinha, mas as consegue através da mediação
do professor ou de outros colegas que já dominam essa atividade, é riquíssimo, pois ativará o
processo de desenvolvimento dessa criança até o ponto em que essa atividade passe para seu
nível de desenvolvimento real, ou seja, a capacidade de realizar tal atividade sozinha.
Voltando ao nosso exemplo, uma criança que, com o auxílio de um adulto ou de
colegas, consegue tocar seu tambor em determinado ritmo, atividade que não conseguiria
sozinha, se encontra na zona de desenvolvimento proximal, e futuramente essa atividade
já estará consolidada, a ponto de realizá-la de forma independente. Nesse caso, o papel da
interação social do outro, seja um adulto ou um colega que se encontra em outro nível de
desenvolvimento, é de vital importância na mediação de todo o processo.
Cabe destacar dois pontos. Primeiro, todo ensino coletivo proporciona variadas relações
de mediação, sejam entre professor e aluno ou, e principalmente, entre os próprios alunos.
Segundo, turmas heterogêneas proporcionam ricas relações de mediação entre alunos. Em
síntese, façamos as seguintes considerações até aqui explanadas:
(1) O aprendizado é um forte contribuinte para ativar o processo de desenvolvimento.
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É como se o processo de desenvolvimento progredisse mais lentamente que o processo de
aprendizado; o aprendizado desperta processos de desenvolvimento que, aos poucos, vão tornar-
se parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo (OLIVEIRA, 1995, p.60).
(2) O indivíduo se encontra na zona de desenvolvimento proximal apenas quando
consegue realizar determinadas atividades com o auxílio de um mediador.
(3) Não só o professor, mas os colegas que se encontram em outro nível de desenvolvimento
possuem grande importância como mediadores do processo de desenvolvimento.
3 O ENSINO COLETIVO DE INSTRUMENTO MUSICAL, SUA HETEROGENEIDADE E A
ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL
Devo iniciar dizendo que qualquer ensino de caráter coletivo, independente das condições
em que se iniciou ou como foi conduzido, é heterogêneo. Uma turma de violino, por exemplo,
mesmo que os alunos tenham iniciado o curso juntos, ou mesmo que tenham a mesma idade,
é uma turma heterogênea, e talvez seja essa uma das grandes riquezas do ensino coletivo de
instrumento musical.
Quando mudanças de turma em andamento acontecem e, por exemplo, alunos de
uma turma iniciante são transferidos para outra um pouco mais avançada, que já possui
determinadas funções e certo amadurecimento de tais funções, essa experiência pode ser
ainda mais rica. É desses casos que eu gostaria de tratar a seguir.
Iniciamos o presente artigo pontuando duas preocupações presentes quando recebemos
novos alunos em determinada turma que já se encontrava em andamento:
(1) Diferentes níveis de conhecimento e aprendizado;
(2) Atividades onde os antigos alunos a realizam sozinhos e onde os novos alunos não a
realizam sozinhos.
Baseado no conceito de Vigotski já apresentado, essas duas preocupações se transformam
em fortes artifícios para o desenvolvimento. Quando temos alunos em tal turma que já são
capazes de realizar diversas atividades e recebemos novos alunos que ainda não conseguem
executá-las sozinhos, temos fortes mediadores em mãos: os alunos pertencentes à turma mais
avançada serão mediadores, juntamente com o professor, no processo de desenvolvimento
dos novos alunos, que trabalharão dentro de suas respectivas zonas de desenvolvimento.
Interferindo constantemente na zona de desenvolvimento proximal das crianças, os adultos e as
crianças mais experientes contribuem para movimentar os processos de desenvolvimento dos
membros imaturos da cultura (OLIVEIRA, 1995, p.60).
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Certa vez, Paulinho1, um aluno de minha turma iniciante que possuía poucos meses de
violino, por motivos alheios à aula precisou ser transferido para uma turma mais avançada. No
início, a preocupação não deixou de ser grande, pois como me comportaria diante da situação
em que a turma já executava músicas e exercícios mais avançados do que ele “podia” realizar?
Durante a primeira aula, enquanto todos realizavam uma escala de Ré maior ao violino,
pedi para que Paulinho tocasse sua corda Ré (uma das cordas do violino) e ritmicamente
acompanhasse a turma, e foi algo que ele fez muito bem, dando já sua primeira contribuição à
turma, o ritmo. Com o tempo, Paulinho foi progredindo de forma que talvez não fosse possível
em sua turma de origem. Logo já estava tocando a escala, alguns golpes de arco, com meu
auxílio. Às vezes, ele parava e observava os companheiros. Com tais mediações, foi trabalhando
dentro de sua zona de desenvolvimento.
Um tempo depois, mais uma vez foi necessário transferi-lo de turma. Dessa vez novamente
para uma turma iniciante e com dois alunos com deficiência. Desde a primeira aula Paulinho
tem sido um exemplar mediador para ajudá-los.
A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram,
mas que ainda estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão
presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou
“flores” do desenvolvimento, em vez de “frutos” do desenvolvimento (VIGOTSKI, 2007, p.98).
Uma criança, ao iniciar em uma turma já em andamento, pode não saber segurar o arco
do violino. Porém, sua experiência rítmica, por exemplo, pode ser maior que a dos colegas.
Por esse fato, a mediação pode se tornar recíproca, ou seja, não apenas dos alunos das turmas
mais avançadas para os novos alunos, mas também dos novos para com os demais. Afinal de
contas, todo ensino coletivo é heterogêneo e traz ricas experiências individuais de cada aluno.
É claro, realizar determinadas atividades com o auxílio de mediadores só é possível dentro
do nível de desenvolvimento real ou potencial. Só se dá em “brotos” do desenvolvimento,
ou seja, crianças que se encontram muito distantes desta zona não serão capazes de realizar
determinadas atividades, nem com o auxílio de um bom professor.
3.1 O arranjo ou adaptação dentro de uma mesma turma
O arranjo ou adaptação consiste em adequar “sob medida” determinado repertório, para
que possa ser executado simultaneamente por todos os envolvidos. Cada um dentro do seu
nível de execução. Porém, antes de entrar nessa questão, é importante que se diferencie o
ensino coletivo de instrumento musical do ensino de instrumentos simplesmente em grupo.
O ensino de instrumentos em grupo é aquele em que, dentro de um mesmo espaço
e tempo, um grupo de alunos segue orientações de um professor e as realizam, porém,
individualmente, ou seja, as atividades são realizadas simultaneamente, mas não integradas,
entre os colegas. Nessa instância de aprendizagem não se contribui e não se recebe
contribuição; em resumo, não se produzem trocas, não se prevêem efeitos; simplesmente, as
atividades acontecem ao mesmo tempo.
1 Por razões de privacidade o nome utilizado no exemplo a seguir é fic-tício.
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Já o ensino coletivo de instrumento musical permite e implica a troca de relações
importantes para o desenvolvimento de cada um; ou seja, existe uma relação social de
dependência, pois todos participam juntos de um mesmo discurso. Tendo isso em mente, uma
das possibilidades de trabalho dentro de uma turma heterogênea é a do arranjo ou adaptação,
de acordo com o nível de cada grupo de alunos da turma.
Tomemos como exemplo a música “Allegro”, de Shinichi Suzuki. Vamos supor que em
determinada turma de violinos possamos dividir os alunos em três grupos ou naipes:
(1) Um grupo de alunos mais experientes que realizarão a melodia na íntegra.
(2) Um grupo de alunos que possuem certa dificuldade rítmica com o arco, e por isso realizarão
toda a parte rítmica da música, porém utilizando apenas as cordas soltas Lá e Mi do violino.
(3) Um grupo de alunos que iniciaram o aprendizado do primeiro dedo no instrumento
e por isso, tocarão apenas as notas que correspondem às cordas soltas e primeiros dedos
(pizzicato), sem a utilização do arco.
Observe-se que cada aluno trabalha de acordo com seu nível de dificuldade, dentro
de sua zona de desenvolvimento. A mediação entre grupos acontece e a relação de
dependência entre eles se torna grande, pois cada grupo vai estabelecendo referenciais
sonoros, ao ouvir atentamente o outro grupo e ao adequar sua parte às outras partes da
mesma composição.
Cada um contribui com a sua parte, com aquilo que já é capaz de fazer. Independentemente
de se estar tocando algo mais simples ou mais complexo, a participação de todos é igualmente
importante. Isso provoca outro tipo de engajamento e compromisso com o trabalho, pois, se uma
criança faltar, o resultado musical não será o mesmo, ela realmente “faz falta”, o que não acontece
quando todos tocam a mesma coisa juntos. (BEINEKE, 2003, p.94).
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Figura 1 – Trecho de "Alegro" - S. Suzuki
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Abrindo um pequeno parêntese, é bom destacar a importância do trabalho com o discurso
musical em sala de aula. Para isso faremos um pequeno paralelo entre linguagem verbal e
linguagem musical.
Ao observarmos como ocorre o aprendizado da língua materna em uma criança, verificamos
que acontece primeiramente como resultado do seu contato com a língua em seu nível
discursivo2, ou seja, em seu contato prático com a língua, enquanto discurso (comunicação
oral), e não em seu contato com os níveis mais abstratos (a gramática e a sintaxe da língua, por
exemplo). A criança adquire a linguagem a partir de sua imersão na linguagem como um todo,
na linguagem prática, concreta.
Traçando um paralelo com a música enquanto linguagem, essa é adquirida e assimilada
pela criança, assim como na linguagem verbal. Primeiramente em seu nível discursivo, ou seja,
no contato da criança com a música em seu universo estético, e não a partir de níveis abstratos
e não-musicais, como atributos puramente técnicos ou sons isolados sem nenhuma referência
estético-musical.
Os sistemas sintático e fonológico só serão absorvidos quando percebidos em função de propósitos
estético-musicais e não como entidades autônomas, preparatórias para uma compreensão
musical propriamente dita. Esse modo de entender a música é importante porque permite rever
certos procedimentos pedagógicos amplamente difundidos nas práticas e métodos de ensino
musical (SCHROEDER, 2009, p.46).
Quando trabalhamos com o arranjo numa sala de aula heterogênea - a partir de qualquer
nível musical da criança, seja ele o mais básico possível (no caso do violino, numa primeira
aula quando, ao aprender o nome das cordas soltas do violino, o aluno as toca sem arco,
posicionando o violino nas mãos, como um cavaquinho) -, essa criança, juntamente com os
outros colegas que se encontram em outro nível de desenvolvimento, entra em contato com a
música em seu nível discursivo, desde o início do aprendizado, e não necessariamente precisa
passar por todo um período de aulas técnicas, verbais e nada musicais, antes de passar por
alguma experiência realmente musical.
Nesse caso, o ensino heterogêneo também se faz vantajoso, pois numa mesma sala temos
alunos que já realizam a melodia, por exemplo, enquanto o aluno iniciante, participando
juntamente com os outros do discurso musical, realiza aquilo que lhe é possível.
Se eles ainda não são capazes de tocar algo musicalmente significativo (e aqui obviamente eu
não estou me referindo à complexidade, mas à completude musical), o professor poderá criar um
contexto para aqueles poucos sons, tornando-os “musicais” (por exemplo, tocando ele mesmo uma
harmonia que acompanhe e dê sentido ao que o aluno toca). É um equívoco, em minha opinião,
pensar que a compreensão musical é uma decorrência da complexidade técnica. Ao contrário,
penso que só uma boa percepção estética é que vai dar sentido a um aprimoramento técnico
(SCHROEDER, 2009, p. 47).
2 Segundo SCHROEDER, na lingua-gem verbal há uma sobreposição de níveis ou dimensões que costumam ser analisados separadamente nos estudos linguísticos. São estes: “O nível fonológico (os sons que cada língua recorta das inúmeras possi-bilidades articulatórias do aparelho fonador humano), o nível sintático (as regras combinatórias que regu-lam a possibilidade de aparecimen-to das palavras numa oração ou de orações num período, por exem-plo), o nível semântico (que diz re-speito aos significados cristalizados pelas línguas) e o nível discursivo (os efeitos de sentido produzidos por enunciados levando-se em conta o contexto – social, cultural, histórico – onde são produzidos)” (SCHROEDER, 2009). Dos quatro níveis, apenas o nível discursivo faz parte da língua enquanto sistema concreto, ou seja, aquele que é pro-ferido cotidianamente por sujeitos em determinada situação especí-fica, os demais níveis se encontram no sistema abstrato da língua.
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Isso não que dizer que em determinado momento não seja necessário, por exemplo,
trabalhar com algum elemento técnico específico. A questão é que essa necessidade deve
estar sempre contextualizada com a música como um todo, ou seja, com a música enquanto
discurso musical e não ser apenas um elemento técnico trabalhado de forma totalmente
isolada. Posso trabalhar a técnica de arco do staccato, por exemplo, a partir do momento em
que ela se fez necessária e presente no contexto de determinada música e, assim, por meio da
própria música, e não simplesmente trabalhá-la isoladamente para que ela possa ser utilizada
um dia, num momento futuro e indeterminado.
Isso significa que o foco central do trabalho não são as habilidades motoras, apesar de serem
essenciais para que possamos tocar de forma expressiva. Em relação a abordagens mais tradicionais,
pensamos aqui em uma inversão de valores em que a técnica está subordinada à música, e não o
contrário. As questões técnicas e motoras podem ser abordadas por meio do repertório em vez de
se basearem em exercícios mecânicos e repetitivos (BEINEKE, 2003, p.88).
3.2 A imitação
Dentro de todo esse processo de aprendizado e desenvolvimento por meio da mediação,
é necessário destacar a importância da imitação para Vigotski.
Para muitos - e assim também no ensino musical -, a imitação é vista como a mera repetição
mecânica de certas ações; porém, para Vigotski, ela “não é mera cópia de um modelo, mas
reconstrução individual daquilo que é observado nos outros” (OLIVEIRA, 1995, p.63).
Um aluno não será capaz de imitar ações que não estejam dentro da zona de
desenvolvimento proximal, ou seja, que estejam muito longe daquele desenvolvimento que
se encontra ainda em estado embrionário. Suas ações imitativas não apenas são possíveis
dentro da zona de desenvolvimento proximal como também estimulam e contribuem para
seu desenvolvimento.
A imitação – ou capacidade de reproduzir ações alheias – é considerada particularmente
importante nesse processo, pois ações que podem ser imitadas pressupõem-se estarem dentro da
zona de desenvolvimento proximal. A imitação permite uma antecipação de etapas posteriores do
desenvolvimento, uma elaboração interpsíquica de ações que mais tarde passarão para a esfera
intrapsíquica (SCHROEDER, 2005, p.96, 97).
Para Vigotski, todas as funções psicointelectuais superiores aparecem, no início do
desenvolvimento da criança, como funções interpsíquicas, ou seja, através de atividades
coletivas e sociais. Posteriormente, já com a interiorização de determinadas ações, elas são
denominadas funções intrapsíquicas. Sendo assim, para Schroeder, a imitação ou a presença
de modelos (universos estéticos já constituídos) na atividade pedagógica musical, permitem
ações dentro da esfera interpsíquica, que posteriormente passarão para a esfera intrapsíquica.
No ensino coletivo de instrumento musical, existem vários modelos que podem ser
“reconstruídos individualmente”, como nos diz Vigotski, e tanto o professor como os outros
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colegas mais experientes podem contribuir para esse processo. A apreciação (escuta musical
consciente e orientada) também pode ser considerada um forte modelo dentro da sala de
aula, quando realizada de forma significativa.
Uma aula em que predomina apenas a linguagem verbal pouco tem a contribuir, pois
o gesto e a ação também são importantes ferramentas de comunicação. Expressões como:
“Faça assim”, “Posicione o braço do arco mais para cima”, dentre outras, muitas vezes poderiam
surtir maior efeito quando exemplificadas na prática. Da mesma forma, palavras que procuram
transmitir sonoridades e expressividades, tais como: “Produza um som mais doce”, “Que tal um
som mais calmo”, são válidas por conduzir a música para um campo metafórico, porém o uso
exclusivo do recurso verbal não alcança uma completude de compreensão tão vasta como
quando esse recurso também é aliado ao exemplo sonoro na prática.
Levando em consideração que a música é uma linguagem, esta deve ser trabalhada
prioritariamente dentro da própria linguagem, a musical, onde professor se comunica com
alunos e alunos se comunicam entre si musicalmente. Por isso, quando professor ou mesmo
outros colegas mais experientes realizam o exemplo na prática, produzindo determinado som
ao instrumento, a facilidade de compreensão se torna muito maior e o aluno, por meio do
processo imitativo, reconstrói aquilo que lhe foi pedido.
...por razões as mais diversas, que vão desde certo receio em mostrar as próprias limitações técnicas
até a já discutida crença no perigo de fornecer modelos aos alunos, tirando-lhes a espontaneidade
“natural”, muitos professores se abstêm de tocar com e para os alunos, não levando em conta a
natureza dialógica da linguagem musical, e transformando as aulas em intermináveis monólogos,
onde cada um fala uma língua diferente (o aluno tenta se expressar musicalmente e o professor se
limita a corrigi-lo verbalmente) (SCHROEDER, 2009, p.52).
3.3 A transferência de turmas
Tendo em mente as vantagens de se estabelecer uma relação de mediação entre alunos
de uma mesma turma, algumas escolas3 optam em arquitetar transferências entre salas, de tal
forma que alunos novos sejam recebidos por alunos mais antigos.
No sistema tradicional, as turmas são transferidas conjuntamente, isto é, alunos da turma
“básica” 4 são transferidos para a turma “intermediária,” e os alunos desta são transferidos para
a turma “avançada”, de modo linear. Sendo assim, cada turma permanece com os mesmos
alunos, durante todo o processo de aprendizagem, sem contato com as demais turmas.
Figura 1 – Processo tradicional de transferência dealunos em turmas.
3 O exemplo é baseado em escolas que não realizam a transferência de alunos para outra turma de forma tradi-cional, sendo assim, a maio-ria dos professores possuem uma realidade diferente, por trabalharem em esco-las tradicionais, porém vale lembrar que a mediação sempre ocorre, pois toda turma é heterogênea.
4 Tomemos como exemplo um sistema educacional que possua três níveis: Básico, Intermediário e Avançado.
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Mas pensando na questão da mediação, as transferências poderiam ocorrer de forma que:
(1) Parte dos alunos do Básico (podemos chamar de Básico I) permanecesse no Básico,
acolhendo novos alunos, e a outra parte (Básico II) fosse transferida para o nível Intermediário.
(2) O Intermediário I receberia o Básico II, enquanto a outra parte do Intermediário
(Intermediário II) seria transferida para o nível Avançado.
(3) Aqui também o nível Avançado I receberia o Intermediário II, e o restante da turma
Avançado II estaria concluindo o curso.
Simplificando, com esse procedimento, teríamos sempre alunos novos e alunos veteranos
participando de uma mesma turma; novos estes que, em sua próxima etapa de desenvolvimento
técnico-musical, se tornariam veteranos.
Em gráfico, poderíamos representar da seguinte forma:
Durante certo tempo, tive a oportunidade de trabalhar em uma escola onde a
transferência de alunos ocorria dessa forma, e o interessante era que existia o chamado
“apadrinhamento”, onde os alunos veteranos se tornavam padrinhos e madrinhas dos novos
alunos, ajudando-os em sala de aula. O “apadrinhamento”, que é uma forma dos alunos mais
avançados se responsabilizarem pelos mais novos, deve sempre ocorrer, mesmo que não
seja um procedimento formal em sala de aula, ou mesmo dentro do sistema tradicional de
transferências.
É importante que o novo aluno se sinta acolhido pelo professor e pelos colegas, e isso
pode ser resolvido de maneira simples, apresentando-o à turma, dando-lhe as boas vindas,
ajudando-o durante as atividades, pedindo a um aluno mais experiente que se sente ao seu
lado. O apadrinhamento acontece quando o professor e os colegas dispõem de uma atenção
especial aos novos alunos, buscando integrá-los na turma.
Figura 1 – Processo alternativo de transferência de alunos nas turmas.
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4 CONCLUSÃO
Neste texto, procurei levantar a problemática da heterogeneidade em sala de aula no
campo específi co do ensino coletivo de instrumento musical e, através da teoria de Vigotski
referente ao aprendizado e desenvolvimento, analisei a problemática mostrando como o
aprendizado se adianta ao desenvolvimento do aluno e como são fundamentais as relações
de mediação que se encontram de forma riquíssima no ensino heterogêneo.
Procurei discutir, sob a luz de Vigotski, como essa heterogeneidade passa de uma
problemática para uma necessidade, tendo em vista que todo aprendizado, que cumpre o
papel ativador do desenvolvimento da pessoa, parte de sua relação com o ambiente socio-
cultural em que ela vive. Levantei questões referentes a música como linguagem e o ensino
que tenha como ponto de partida o discurso musical.
Procurei também mostrar algumas possibilidades de como o ensino heterogêneo pode ser
conduzido, seja por meio da imitação ou através de arranjos direcionados, porém é importante
ressaltar que essas possibilidades são apenas experiências pessoais de minha prática docente,
experiências de forma alguma inéditas, e que as mesmas não se fecham como únicas
possibilidades. Ao contrário, minha intenção é que a perspectiva desse referencial teórico
incentive novas experiências e concepções de trabalho, bem como a recriação e a refl exão
sobre antigas práticas em sala de aula.
REFERÊNCIAS
BEINEKE, Viviane. O ensino de fl auta doce na educação fundamental. In: HENTSCHKE, Liane; DEL BEN, Luciana (Org.). Ensino de Música: Propostas para pensar e agir em sala de aula. São Paulo: Moderna, 2003. 192 p. p. 86-100.
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SCHROEDER, Silvia Cordeiro Nassif. A educação musical na perspectiva da linguagem: revendo concepções e procedimentos. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 21, n.21, pp.44-52, março, 2009.
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