O construtivismo é uma teoria preferível ao realismo não-naturalista?

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O CONSTRUTIVISMO É UMA TEORIA PREVERÍVEL AO REALISMO NÃO- NATURALISTA? Lucas Mateus Dalsotto 1 1. Introdução Cotidianamente emitimos juízos normativos cuja força e validade deles visivelmente produzem impacto em nossas vidas e de nossas respectivas comunidades. A capacidade que temos de valorar coisas, situações e até mesmo pessoas é uma característica essencial nos seres humanos. Mas não parece que tenhamos claro ainda o que seja o valor ou de onde advém sua autoridade. Emitimos juízos normativos corriqueiramente sem compreender tudo o que está implícito quando o fazemos. Por isso, acredito que uma das mais intrigantes questões filosóficas em metaética seja a de explicar o que é o valor e de onde ou do que advém sua autoridade. Não faltam teorias metaéticas candidatas a resolver estas questões. Entretanto, para os fins do presente texto, restringirei a análise às respostas fornecidas pelas teorias realistas não-naturalistas e pelas teorias construtivistas. Baseado nesta problemática, o ponto que me interessa avaliar é se as teorias construtivistas possuem algum tipo de vantagem sobre as teorias realistas não-naturalistas no que diz respeito à explicação da origem e do fundamento da autoridade dos juízos morais. Para tanto, sustentarei que, 1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. E- mail: [email protected] 1

Transcript of O construtivismo é uma teoria preferível ao realismo não-naturalista?

O CONSTRUTIVISMO É UMA TEORIA PREVERÍVEL AO REALISMO NÃO-

NATURALISTA?

Lucas Mateus Dalsotto1

1. Introdução

Cotidianamente emitimos juízos normativos cuja força e

validade deles visivelmente produzem impacto em nossas

vidas e de nossas respectivas comunidades. A capacidade que

temos de valorar coisas, situações e até mesmo pessoas é

uma característica essencial nos seres humanos. Mas não

parece que tenhamos claro ainda o que seja o valor ou de

onde advém sua autoridade. Emitimos juízos normativos

corriqueiramente sem compreender tudo o que está implícito

quando o fazemos. Por isso, acredito que uma das mais

intrigantes questões filosóficas em metaética seja a de

explicar o que é o valor e de onde ou do que advém sua

autoridade. Não faltam teorias metaéticas candidatas a

resolver estas questões. Entretanto, para os fins do

presente texto, restringirei a análise às respostas

fornecidas pelas teorias realistas não-naturalistas e pelas

teorias construtivistas.

Baseado nesta problemática, o ponto que me interessa

avaliar é se as teorias construtivistas possuem algum tipo

de vantagem sobre as teorias realistas não-naturalistas no

que diz respeito à explicação da origem e do fundamento da

autoridade dos juízos morais. Para tanto, sustentarei que,

1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

1

(i) sendo o construtivismo metaético uma teoria baseada na

ideia de agência, ele é capaz de explicar a natureza da

normatividade de modo mais satisfatório do que as teorias

realistas não-naturalistas (ii) e também que, baseado na

imagem de construção, o construtivismo consegue acomodar o

caráter prático e objetivo dos juízos normativos.

Para levar adiante essa proposta, oferecerei uma breve

e ampla caracterização do realismo não-naturalista como

pensado por Enoch e Shefer-Landau (seção 2) e então

apresentarei a posição construtivista e suas diferentes

variantes em metaética a partir do quadro desenvolvido por

Street (seção 3). Posteriormente concentrar-me-ei em

sustentar que as teorias construtivistas possuem ao menos

duas potenciais vantagens sobre as teorias realistas não-

naturalistas no que diz respeito à explicação da origem e

do fundamento da autoridade dos juízos normativos, a saber:

baseadas na ideia de agência, as posições construtivistas em

metaética são capazes de prover uma explicação adequada da

natureza da normatividade (seção 4) e também acomodar o

caráter prático e objetivo de tais juízos, isto é, são

capazes de explicar a relação entre a autoridade dos juízos

normativos e de que modo eles podem nos motivar a agir

(seção 5).

2. Características de uma teoria realista não-naturalista

No decorrer das últimas duas décadas, o campo da

metaética tem se desenvolvido e aperfeiçoado com enorme

2

rapidez. A variedade de propostas e abordagens que tem

surgido no interior da metaética é igualmente proporcional

ao contingente de diferentes propostas que têm sido criadas

no interior das teorias realistas. Embora as teorias

realistas possam ser, grosso modo, classificadas em não-

naturalistas e naturalistas e estas últimas ser ainda

divididas em reducionistas e não-reducionistas, todas elas

endossam a ideia de que existe uma realidade moral que as

pessoas estão tentando representar quando elas emitem

julgamentos sobre o que é certo o errado. O desacordo que

“surge entre os realistas tem principalmente a ver com a

natureza dessa realidade” (Shafer-Landau 2005: p. 13).

De qualquer modo, para não cometer equívocos na

análise e também por respeitar a especificidade de cada uma

das abordagens teóricas, minha análise se concentrará

especificamente sobre as teorias realistas não-

naturalistas. De acordo com Shafer-Landau (2005: p. 2),

[O] realismo moral [não-naturalista] é a teoria que julgamentosmorais utilizam-se de um tipo especial de objetividade: taisjulgamentos, quando verdadeiros, existem independentemente do fato deque qualquer ser humano, em qualquer lugar, em qualquercircunstância, pense neles.

Enoch (2011, p. 1) também define o realismo não naturalista

dizendo que

[...] existem irredutivelmente verdades e fatos normativos,fatos tal como que nós deveríamos cuidar de nosso bem-estarfuturo, que nós não deveríamos humilhar outras pessoas. [...] Euacredito que devem ser alguns exemplos desse tipo, exemplos deverdades normativas (e de fato morais) que são irredutivelmente

3

normativos, verdades que são perfeitamente objetivos, universais e absolutos. Elessão independente de nós, de nossos desejos e de nossa vontade2.

Tanto Shafer-Landau quanto Enoch parecem vincular o

realismo não-naturalista a quatro teses fundamentais, a

saber: (i) juízos morais são capazes de verdade ou

falsidade, (ii) alguns juízos são objetivamente

verdadeiros, (iii) a verdade ou a falsidade desses juízos

não podem ser identificados com a existência de

determinados fatos naturais (iv) e nem podem ser resultado

do endosso de um certo agente ou cultura. Os realistas

naturalistas não-reducionistas3 poderiam concordar com as

teses (i), (ii) e (iv), mas não concordariam com a tese

(iii) e os realistas naturalistas reducionistas4 poderiam

concordar com as teses (i) e (ii), mas não com as teses

(iii) e (iv).

Seja como for, o ponto central para o qual os autores

estão chamando atenção é de que o realismo não-naturalista

é uma teoria em que os padrões morais são mind-independence,

isto é, o valor desses padrões não depende que os agentes

lhe o atribuam. Classicamente o problema de saber se a

ordem moral é algo dada previamente ou então se é algo

construído pelos agentes é uma questão presente desde o

texto Eutífron de Platão. Através da boca de Sócrates, Platão

apresenta a Eutífron o seguinte dilema: a piedade é amada

pelos deuses, por que é piedade, ou se é ela piedade,

porque é amada pelos deuses?

2 Grifo meu.3 Ver Brink (1989).4 Ver Copp (2008).

4

Para o realismo não-naturalista, as condições de

verdade de um juízo Cx é independente do que qualquer ser

humano, em qualquer lugar e em qualquer circunstâncias,

pensa sobre eles. A verdade de um juízo normativo se obtém

independentemente de qualquer endosso dos agentes de uma

comunidade. Os padrões morais que fixam os fatos morais não

se tornam verdadeiros em virtude da sua retificação ter

sido dado por um agente que se encontra dentro de uma dada

situação hipotética ou originária. De acordo com Shafer-

Landau (2005: p. 15), “o fato de que uma pessoa tome uma

atitude particular em direção a um padrão moral putativo

não é o que faz esse padrão correto”.

Porém, sustentar que os padrões morais existem

independentemente do endosso dos agentes não implica em

dizer que a moralidade também não leva em consideração as

atitudes dos agentes. Segundo o realista não-naturalista, é

possível acomodar a ideia de que os padrões morais de uma

teoria normativa estabeleçam-se a despeito da vontade dos

indivíduos e que, ao mesmo tempo, tal teoria preste atenção

aos estados mentais dos agentes em questão. Mas em última

instância, a verdade de qualquer padrão normativo não é

definida em função de que alguém pense ou delibere a

respeito de tal padrão normativo. Esses padrões, se

verdadeiros, não se tornam verdadeiros e muito menos podem

ser vindicados a partir de algum processo de eleição ou

aprovação pessoal.

Desse modo, as grandes virtudes do realismo não-

naturalista parecem ser, primeiro, a objetividade dos

5

juízos. Um determinado padrão moral é correto mesmo se

nenhuma pessoa acreditar que ele o seja. Segundo, a

possibilidade do erro moral. Qualquer indivíduo pode falhar

em reconhecer uma verdade moral, mesmo que este tenha

realizado todos os esforços epistêmicos que ele seria capaz

de fazer para tal (dado o seu perfil psicológico).

Terceiro, não é preciso pressupor idealizações epistêmicas

a respeito dos agentes. O realismo não-naturalista está

comprometido com a ideia de que verdades morais são

acessíveis aos agentes epistêmicos e que, nesse caso, não é

necessário pensar agentes ideais do ponto de vista

epistêmico.

3. Características de uma teoria construtivista

Na literatura recente, teorias construtivistas tais

como a de Korsgaard e de Street têm sido presença constante

e ativa nos debates a respeito de questões metaéticas.

Embora as discussões mais consagradas e canônicas da

metaética tenham se desenvolvido em torno das posições

realistas e expressivistas, a posição construtivista tem

atraído e inspirado nos últimos anos uma série de

comentários, tanto daqueles que compartilham de suas

principais teses e veem-na com entusiasmo, quanto daqueles

que a veem com certo ceticismo.

Os críticos aceitam o fato de que as posições

construtivistas em filosofia moral e filosofia política são

um poderoso e influente grupo de posições filosóficas. As

6

teorias de Rawls (1980, 1993, 1999) e Scanlon (1982) são

respectivamente exemplos paradigmáticos de construtivismo

em filosofia política e moral que alcançaram relativo

sucesso. Mas o mesmo não se pode dizer com relação ao campo

da metaética5, uma vez que há profundos desacordos sobre o

que fundamentalmente a posição construtivista tem a

contribuir para a discussão. Darwall et all. (2013) é um dos

críticos que endossa essa tese. Ele afirma que o

construtivista é um procedimentalista hipotético e que, por isso,

deve ser compreendido como uma família de teorias morais

substantivas e não como uma posição metaética “genuína”.

[O] construtivista é um procedimentalista hipotético. Eleendossa um procedimento hipotético que determina quais osprincípios que constituem os padrões válidos da moralidade. Esseprocedimento pode referir-se a um acordo a respeito de umcontrato social, ou pode referir-se também, digamos, a umadecisão a respeito do código moral que deve ser apoiado em umasociedade. Um procedimentalista mantém, então, que não há fatosmorais independente da descoberta de que certo procedimentohipotético teria tais e tais resultados (DARWALL et al, apud,DALL”AGNOL 2013: p. 42).

Parece que, se Darwaal et al. estiverem certos, então o

construtivismo deveria abandonar o caráter puramente

procedimental de sua teoria e encontrar um forma

alternativa de introduzir-se nas discussões metaéticas.

Seja como for, acredito que uma boa alternativa de

caracterização a respeito do construtivismo em metaética

seja aquela realizada por Street (2010) em seu artigo What

5 Dito de outro modo, o construtivista endossa um procedimentocontrafactual que determinará quais serão os princípios queconstituirão os padrões válidos tanto de um contrato social quanto deum código moral que deve ser apoiado em uma sociedade

7

is constructivism in Ethics and Metaethics. Isso, por dois motivos.

Primeiro, porque ela consegue escapar dessa definição

puramente procedimental do construtivismo e segundo porque

ela consegue capturar o que há de mais interessante e

distinto nessa posição, a saber: a ideia de agência

vinculada a um ponto de vista prático6. “A noção de procedimento é

no final das contas meramente um dispositivo heurístico,

enquanto que o coração da posição é a noção de um ponto de

vista prático7 e o que se segue ou não de dentro dele” (Street

2010: p. 364).

Grosso modo, a caracterização do construtivismo

realizada por Street pode ser sumarizada nos seguintes

termos. No mais das vezes, temos dificuldades para

compreender o que é o valor quando o empregamos em juízos

normativos. Diariamente emitimos tais juízos e com

freqüência nos deparamos com a sensação de não entendermos

o que estamos fazendo quando estamos pensando e/ou

argumentando sobre juízos normativos. Assim, seria

justificável perguntarmo-nos o que estamos investigando

quando realizamos juízos normativos. No entanto, parece que

o fato de nãos sabermos dizer expressamente o que seja o

valor não nos impossibilita de compreendermos a atitude de

valorar. “O mundo é cheio de criaturas que valoram coisas e

nós conhecemos muito bem essa atitude quando a vemos”

(Street 2010: p. 365).

6 Daqui por diante tomarei a teoria de Street como modelo de uma teoriametaética construtivista para o avanço da discussão.7 Grifo meu.

8

Assim, quando alguém toma alguma coisa no mundo como

sendo valorosa, seja uma ação, um objeto ou mesmo um

indivíduo, ele ocupa a posição de um ponto de vista prático. Isto

significa dizer que o ponto de vista prático é o ponto de vista

ocupado por qualquer indivíduo que toma ao menos alguma

coisa no mundo para ser boa ou má, melhor ou pior,

necessária ou opcional e assim por diante. Aqui a

reivindicação de Street é de que nós temos uma compreensão

da atitude de valorar mesmo que nós não compreendamos ainda

o que seja o valor em si mesmo.

Em adição a compreensão da atitude de valorar e da

ideia de um ponto de vista prático, é preciso que compreendamos

também a ideia de implicação8 (entailment) a partir de dentro

de um ponto de vista prático de um dado conjunto de valores. Essa

ideia está associada ao fato de que, a despeito de estarmos

de acordo com um dado conjunto de valores ou discordarmos

profundamente dele, ainda assim podemos pensar e discutir

sobre o que se segue de dentro desse conjunto de valores em

relação a fatos não-normativos. O tipo de implicação

pressuposta é um tipo de implicação conceitual onde, embora

um sujeito X discorde amplamente do conjunto de valores de

um sujeito Z, o sujeito X ainda pode compreender a

implicação de determinados juízos a partir de dentro do ponto

de vista prático do conjunto de valores de Z.

Street (2010: p. 366) exemplifica o ponto dizendo que

Nós podemos dizer que “Ann está errada em supervalorizar contarfolhas de grama, mas se segue de dentro de seu (bizarro e

8 Mais adiante tomaremos a ideia de implicação (entailment) como sinônimoda ideia de um ponto de vista prático dada uma caracterização formal.

9

errado) ponto de vista valorativo que ela tem uma razão paracomprar uma calculadora”. “Contudo”, nós podemos acrescentar,“isso se segue mesmo que Ann não reconheça isso”. Devido a suaignorância de fatos não normativos ou alguma outra deficiênciacognitiva (talvez Ann não sabe ou continua esquecida do quecalculadoras fazem), Ann pode nunca ver que está implicado dedentro de seu ponto de vista avaliativo que ela tem uma razãopara comprar uma calculadora; no entanto, isto está implicado.

Então, podemos afirmar que as diversas versões de

construtivismo, estejam elas interessadas em questões de

primeira (ética normativa e filosofia política) ou de

segunda ordem (metaética), estão todas de acordo com essa

caracterização de um ponto de vista prático (practical standpoint

caracterization)9 e com a ideia de que os padrões normativos

são resultado do endosso dos agentes. As versões de

construtivismo metaético, cuja teoria de Street é um

exemplo, sustentam que as condições de verdade do domínio

normativo são dependentes da atitude de valorar dos

agentes. Diferentemente das teorias metaéticas realistas

que sustentam que a função dos conceitos normativos é

descrever o mundo, o construtivismo sustenta que os

conceitos normativos possuem a função de resolver problemas

práticos com o quais diariamente nos deparamos (Korsgaard

2008).

Em resumo, o pressuposto construtivista é de que o

padrão normativo é mind-dependence. Eles negam que os9 No campo da filosofia política e da ética normativa isso pode seravaliado a partir das teorias de Rawls e Scanlon respectivamente. Noprimeiro caso, as condições de verdade das reivindicações concernentesa justiça social e política estão condicionadas a estas serem implicadasde dentro do ponto de vista da posição original. No segundo, as condiçõesde verdade das reivindicações concernentes a vida moral (ou “sobre oque nós devemos uns aos outros”) estão condicionadas a estas seremimplicadas de dentro do ponto de vista de uma certa situaçãocontrafactual.

10

valores sejam descobertos assim como as propriedades do

mundo físico o são ou revelados a nós por qualquer entidade

sobrenatural. Pelo contrário, valores e normas morais são

construídos por agentes humanos com propósitos específicos

(Bagnoli 2013). No que se segue, buscarei analisar quais

são as potenciais vantagens que a posição construtivista

pode ter em relação à posição realista não-naturalista no

que diz respeito à explicação da origem e do fundamento da

autoridade dos juízos morais.

4. A natureza da normatividade

Acredito ser extremamente difícil de encontrar

qualquer teoria metaética que não se dedique, mesmo que de

forma geral, a falar a respeito da normatividade dos juízos

morais. Esclarecer o que é a normatividade e de onde advém

a sua autoridade sobre os agentes mostra-se ser elemento

central com o qual as teorias metaéticas precisam se

defrontar. No caso das teorias em questão, à primeira vista

essa preocupação parece estar clara. Enoch (2011: p. 1)

abre seu livro Taking Morality Seriously: a Defense of Robust Realism

afirmando que “o realismo robusto10 é primeiramente uma

visão sobre a normatividade” e que por isso é preciso

explicar o que ela é e Copp (apud Bagnoli 2013: p. 109)

afirma que as “teorias construtivistas são tipicamente

motivadas pelo objetivo de explicar a normatividade”. Nesse

caso, ambas as propostas parecem estar interessadas em

explicar a natureza da normatividade. 10 É um tipo de teoria realista não-naturalista.

11

Mas, a partir de uma análise mais profunda, é possível

ver que essa impressão é falsa, uma vez que, enquanto a

posição construtivista está interessada em prover uma

explicação profunda da natureza da normatividade, o

realismo não-naturalista não acha necessária essa

discussão. Acredito que essa seja uma primeira vantagem que

o construtivismo possui em relação ao realismo não-

naturalista. Mas vejamos porquê.

As teorias realistas não-naturalistas sustentam a

existência de verdades normativas de forma anterior e

independente da vontade dos agentes e, nesse caso, tomam a

normatividade como algo primitivo ou dado previamente. Elas

não estão interessadas em discutir com profundidade a

natureza do valor. Shafer-Landau assume isso ao dizer que,

em relação à pergunta sobre o que faz com que certos

padrões normativos sejam corretos, o realismo (não-

naturalista) não possui qualquer resposta geral para esta

questão11. Segundo ele, não é preciso pressupor a

existência de legisladores para a criação de leis. Nós

podemos “assumir que pelo menos algumas leis são melhores

interpretadas realisticamente” e então não precisaremos

explicar a verdade dos padrões normativos a partir da ideia

de que eles tenham sido criados ou aceitos por alguém

(Shafer-Landau 2005: p. 46). No entanto, sustento que essa

11 Shafer-Landau (2005) pondera acerca dessa afirmação dizendo que elanão será verdadeira se considerarmos os teóricos do divino comando ou osteóricos da lei natural como realistas. Se em última instância aautoridade moral deriva da autoridade divina, então haverá umaexplicação do porquê os padrões morais corretos são corretos.

12

forma econômica com a qual o realismo não-naturalista

discute esse tema não é satisfatória.

As teorias construtivistas, por sua vez, tomam a

tarefa de explicar a natureza da normatividade como uma das

principais finalidades de suas teorias. Elas buscam

justificar de que modo os agentes estabelecem quais

deveriam ser os valores que constituem os padrões do

domínio normativo e sustentam que a realidade normativa é,

em última instância, construída pelos agentes que ocupam o

ponto de vista prático. Os construtivistas procuram fornecer uma

explicação a respeito da natureza da normatividade a partir

da ideia de agência. Eles compreendem os indivíduos como

seres racionais e autolegisladores capazes de justificar

uns aos outros seus próprios juízos. O mundo dos valores é

justificado apenas pela capacidade agencial dos indivíduos,

uma vez que “constituímos a nós mesmos como agentes que

escolhem suas ações segundo os princípios da razão prática,

especialmente os princípios morais” (Korsgaard 2008: p. 1).

Conforme Street, as teorias construtivistas podem

ainda fornecer dois diferentes caminhos a partir dos quais

é possível implicar princípios normativos a partir da ideia

de agência e explicar a natureza da normatividade, a saber:

kantiano e humeano. Ambas as abordagens estão de acordo com

a ideia de que a verdade de uma reivindicação moral

consiste em esta ser implicada de dentro de um ponto de vista

prático, onde este ponto de vista prático é dado por uma

caracterização formal12. Isto é, dar ao ponto de vista prático uma

caracterização formal significa considerar o ponto de vista do12 Ver nota 5.

13

valor ou do julgamento normativo enquanto tal, onde isso

envolve dar uma consideração da atitude de valorar que em

si mesma não pressupõe qualquer valor substantivo, mas, ao

contrário, apenas envolve o que está implicado em valorar

alguma coisa (Street, apud, Lenman; Shemmer 2012)13. Elas

também estão de acordo com a ideia de que os agentes são

autônomos no sentido de serem capazes de ‘darem leis a si

próprios’14. No entanto, os modelos construtivistas

kantiano e humeano discordam a respeito da ideia de se é

possível que conclusões morais sigam-se de dentro de um

ponto de vista prático dado uma caracterização formal.

De acordo com o primeiro tipo de construtivismo

metaético (kantiano), é possível sim que conclusões morais

sigam-se de dentro de um ponto de vista prático dado uma

caracterização formal. Eles afirmam que nós podemos ter

inicialmente uma “compreensão puramente formal da atitude

de valorar e demonstrar que reconhecidamente valores morais

são implicados de dentro do ponto de vista de qualquer

indivíduo que valora enquanto tal” (Street 2010: p. 369). O

tipo de construtivismo kantiano apresentado por Korsgaard

em The Sources of Normativity é um exemplo dessa visão. Ela

sustenta que nossos juízos normativos são categóricos e

que, nesse caso, independem do conteúdo particular do

conjunto de juízos normativos de um dado agente. A ideia do

valor da humanidade segue-se de dentro do ponto de vista do

valor ou da razão prática enquanto tal (Korsgaard 1996).

13 Como exemplo dessa ideia ver o caso de Ann em Street (2010: p. 366)ou no presente texto na seção 3.14 Essa é uma ideia proveniente da teoria de Kant, mas que tantoconstrutivistas kantianos quanto humeanos estão de acordo.

14

Já com relação ao segundo tipo de construtivismo

metaético (humeano), não é possível que conclusões morais

substantivas sejam implicadas de dentro do ponto de vista

dos julgamentos normativos enquanto tal. O conteúdo

substancial dessas conclusões normativas está atrelado às

razões de um determinado agente cujo conteúdo é dado a

partir de seu ponto de partida valorativo particular. Assim

sendo, os juízos normativos podem ser verdadeiros ou

falsos, mas as condições de verdade desses juízos é dado

contingencialmente e não categoricamente como o faz

Korsgaard. Portanto, enquanto que as versões de

construtivismo kantiano vindicam uma forma extremamente

forte de universalismo sobre razões e, em especial, razões

morais, as versões construtivistas humeanas, ao contrário,

negam que “o coelho das razões substantivas possa ser

tirado de dentro de um chapéu formalista” (Street 2010: p.

369). Elas defendem que as razões dos seres humanos, em

última instância, dependem das circunstâncias e do ponto de

partida valorativo no qual as pessoas se encontram em um

dado momento de suas vidas.

Seja como for, a despeito de como cada uma das formas

de construtivismo compreende a possibilidade de realizar

conclusões morais a partir de dentro do ponto de vista prático,

parece que a teoria enquanto tal é capaz de prover uma

melhor resposta àquela dada pelo realismo não-naturalista

no que diz respeito à explicação da natureza dos juízos

normativos. Agora, passarei a analisar uma segunda vantagem

construtivista.

15

5. A relação entre juízo normativo e motivação

Há uma forte tendência no campo metaético em dizer que

não é possível compatibilizar o caráter prático e objetivo

dos julgamentos normativos em uma mesma teoria. Se de um

lado juízos morais nos fazem reivindicações de como devemos

viver e visam guiar nossas atitudes e ações a partir de um

tipo específico de relação entre tais juízos e nossa

motivação, de outro parece haver padrões do correto que

podem ser acessados para avaliarmos se esta ou aquela

reivindicação é legítima ou válida. Para boa parte dos

metaeticistas está clara a impossibilidade de conciliação

entre a praticidade (practicality) e a objetividade (objectivity)

dos juízos normativos. Qualquer teoria que se empenhe

acerca desse propósito terá como resultado o fracasso.

Entretanto, acredito que as teorias construtivistas podem

fornecer uma abordagem satisfatória a respeito desse

impasse. Seguindo os passos de Bagnoli em seu artigo Moral

Constructivism: A Phenomenological Argument, buscarei mostrar que,

a partir de uma correta compreensão do caráter prático e

objetivo dos juízos normativos, é possível acomodar ambas

as reivindicações e eliminar essa dicotomia.

Em geral, está implícito nos círculos acadêmicos de

filosofia15 que o caráter objetivo da ética pode ser

vindicado apenas pelas teorias realistas16. Tal truísmo

15 Sobre este aspecto, ver parte final da seção 2 deste texto.16 Copp (apud, Bagnoli 2013) discorda da afirmação que todas as teoriasrealista são mind-independence. Segundo ele, a teoria de Railton e a suaprópria teoria podem ser compreendidas como propostas que mind-

16

está atrelado à metáfora de que juízos morais são resultado

de uma descoberta, isto é, são asserções sobre fatos e

propriedades morais que existem independentemente do fato

de que as pessoas descubram sua existência, visto que eles

são mind-independence. Mas o problema é que essa tese parece

estar em conflito com o fato de que juízos normativos

também são práticos. Se juízos normativos são independentes

de nossa capacidade de construí-los ou mesmo de acessá-los,

torna-se difícil de explicar de que forma tais juízos

poderão nos guiar e motivar a agir. “Como é que uma visão

moral nos motiva a agir ou molda nossas crenças e atitudes,

se o realismo é verdadeiro?” (Bagnoli 2002: p. 125).

Na ordem de considerar o caráter prático dos juízos

normativos em detrimento do caráter objetivos destes,

alguns filósofos têm se associado a propostas metaéticas

não-cognitivistas. Eles buscam explicar os juízos

normativos a partir da metáfora da projeção ou invenção, isto

é, sustentam que os juízos normativos não são descrições de

estados de coisas no mundo ou representações de

propriedades, mas sim, expressões de estados mentais não-

cognitivos, tais como sentimentos, desejos, prescrições,

atitudes ou decisões. O pressuposto não-cognitivista é de

que não faz sentido reivindicar objetividade à ética, uma

vez que os juízos normativos não são asserções capazes de

verdade ou falsidade.

De acordo com Bagnoli (2001), buscar reconciliar o

caráter prático e objetivo dos juízos normativos não é

propriamente uma questão metaética relevante e, mesmo se odependence.

17

fosse, o realismo não-naturalista teria falhado nessa

tarefa. Antes disso, importante é saber como podemos

interpretar corretamente (a partir de uma fenomenologia

moral) o fenômeno de que compreendemos os juízos normativos

como capazes de exercer autoridade sobre nós, como

expressão de nossa personalidade moral (visão moral

pessoal) e, ao mesmo tempo, serem práticos e objetivos.

Como dito anteriormente, as teorias realistas e não-

cognitivistas possuem um entendido enviesado do caráter

prático e objetivo dos juízos normativos. É falso

compreender o caráter prático dos juízos morais como

simplesmente a capacidade de prover razões para a ação,

assim como os não-cognitivistas o fazem. Pelo contrário,

juízos normativos podem ser práticos também no sentido de

que eles informam o tipo de agente que somos e de vida que

levamos. Nós podemos ter uma determinada visão sobre nós

mesmos e, a partir desta visão, construir razões de como

deveríamos agir. Pelo mesmo motivo, o caráter objetivo dos

juízos morais não deve ser entendido assim como os

realistas (não-naturalistas) o fazem, como representando

uma parte da realidade. Ao invés, juízos morais são

objetivos porque eles exercem de um tipo de autoridade

sobre a vida das pessoas. Tais juízos fazem reivindicações

sobre o tipo de pessoa que somos e, nesse sentido, eles são

inescapáveis (Ferrero 2009). Quando afirmamos que um valor

é objetivo estamos querendo dizer que ele tem um tipo

especial de importância em nossas vidas e que, nesse caso,

ele não pode ser desconsiderado de nossa avaliação.

18

Teorias construtivistas, por sua vez, estão

interessadas em explicar o caráter prático e objetivo dos

juízos normativos a partir da metáfora da construção, a qual

é composta por três elementos, a saber: (i) a base da

construção, (ii) seus objetos (iii) e seus métodos e

limites. Em geral, cada teoria construtivista pode

preencher conteudisticamente esses elementos a seu modo.

Aqui eu tomarei as definições que a professora Bagnoli

(2002: p. 135) sugere.

A base de construção é uma suposição sobre o tipo de agente que nóssomos. Minha suposição é mínima: localizados em um mundo finito,o agente necessariamente estabelece relações com ele. [...] Eutomo como objeto de construções os julgamentos éticos sobre o quenós temos razões para fazer ou sentir, isto é, sobre que tipo deresposta prática é apropriado para nós darmos. [...] finalmente,a construção é uma atividade que é regulada por princípios.Existem métodos17 para a construção e limites que sustentam estaconstrução. Os métodos da construção não são em si mesmosconstruídos, ao contrário, eles são simplesmente estabelecidos.

A partir destes três elementos que constituem a

metáfora da construção, as teorias construtivistas podem

reivindicar que o conteúdo das razões e sua força normativa

são determinadas pela deliberação dos agentes. O ponto é de

que, se os agentes são seres racionais e autolegisladores

capazes justificar uns aos outros seus próprios juízos,

então os construtivistas podem explicar o caráter prático e

objetivo dos juízos normativos respectivamente. No primeiro

17 O ponto de desacordo de boa parte das teorias construtivistas dizrespeito ao modo como se deve compreender o método e os limites daconstrução. De acordo com Bagnoli (2001: p. 132), “diferentes tipos deconstrutivismo permitem diferentes métodos de deliberação moral: aindividuação do método de construção é claramente uma significantefonte de desacordo entre os construtivistas”.

19

caso, na medida em que as razões que levam os indivíduos a

agir estão ligadas ao tipo de pessoa que cada qual deseja

ser, e no segundo, na medida em que a autoridade de tais

razões reivindica dos agentes um determinado tipo de

conduta ou ainda o tipo de pessoa que devemos ser.

A imagem da construção parece minar com a concepção

tradicional de raciocínio prático das teorias realistas

não-naturalistas cuja ideia é de que os agentes devem

avaliar as variáveis de um dado problema e então gerar a

única conclusão que pode seguir dessas variáveis. O

pressuposto é de que a “solução” de um determinado problema

prático é algo evidente e que, por isso, só precisa ser

descoberta ou encontrada. Pensar o valor sob a ideia de

construção sugere que as variáveis não são apenas dadas ao

agente a espera de que ele descubra qual é a melhor

“solução” para este ou aquele problema. Pelo contrário,

sugere que o agente constrói a “solução” de um determinado

problema a partir da compreensão que ele tem das variáveis

envolvidas e da visão que ele tem sobre si mesmo. “A

caracterização valorativa da situação e do problema diante

da qual o agente está é também objeto de deliberação. A

configuração de uma situação é construída junto com os

conteúdos das razões, suas relações recíprocas e sua força

normativa” (Bagnoli 2002: p. 134).

A proposta construtivista é de que julgamentos morais

estabelecem algumas relações normativas entre os agentes e

o mundo a respeito das razões que estes primeiros têm para

fazer e sentir determinadas coisas. Na mesma medida, essas

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proposições normativas são passíveis de verdade ou

falsidade no sentido de elas serem especificadas em termos

de justificação. Destarte, a imagem de construção é adequada

no sentido de chamar atenção para a contribuição do agente

na configuração do domínio moral e por conseguir

compatibilizar o caráter prático e objetivo de nossa

experiência moral.

6. Considerações finais

No decorrer do presente texto, realizei uma breve

apresentação do realismo não-naturalista e do

construtivismo em metaética com vistas a avaliar quais

seriam as potenciais vantagens desta última teoria em

relação à primeira no que diz respeito à explicação da

origem e do fundamento da autoridade dos juízos morais. A

primeira vantagem construtivista que busquei mostrar foi a

capacidade de explicar a natureza da normatividade. As

teorias realistas não-naturalistas tomam o valor como algo

primitivo ou dado previamente e não estão interessadas em

explicar a natureza desse valor. Já as teorias

construtivistas tomam a tarefa de explicar a natureza da

normatividade como uma função central de suas propostas.

Elas procuram fornecer uma explicação desse problema a

partir da ideia de agência, isto é, de que o padrão

normativo é mind-dependence.

A segunda vantagem construtivista que tentei mostrar

foi a capacidade de compatibilizar o caráter prático e

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objetivo dos juízos morais. A metáfora realista não-

naturalista de que os padrões morais devem ser descobertos

parece vindicar para si a característica da objetividade,

mas não explica por que julgamentos éticos são normativos e

exercem autoridade sobre as pessoas. Tal metáfora também

não é capaz de prover uma explicação adequada de como

juízos normativos podem motivar os agentes a agir mesmo

quando aqueles parecem estar em desacordo com o tipo de

pessoa que somos ou desejamos ser. Teorias construtivistas,

por sua vez, explicam o valor a partir da imagem de

construção, o que sugere que as relações normativas são

produto da atividade dos agentes. Assim, o construtivismo é

capaz de acomodar o caráter prático e objetivo de tais

juízos, isto é, é capaz de explicar a relação entre a

autoridade dos juízos normativos e de que modo eles podem

nos motivar a agir.

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