O construtivismo é uma teoria preferível ao realismo não-naturalista?
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O CONSTRUTIVISMO É UMA TEORIA PREVERÍVEL AO REALISMO NÃO-
NATURALISTA?
Lucas Mateus Dalsotto1
1. Introdução
Cotidianamente emitimos juízos normativos cuja força e
validade deles visivelmente produzem impacto em nossas
vidas e de nossas respectivas comunidades. A capacidade que
temos de valorar coisas, situações e até mesmo pessoas é
uma característica essencial nos seres humanos. Mas não
parece que tenhamos claro ainda o que seja o valor ou de
onde advém sua autoridade. Emitimos juízos normativos
corriqueiramente sem compreender tudo o que está implícito
quando o fazemos. Por isso, acredito que uma das mais
intrigantes questões filosóficas em metaética seja a de
explicar o que é o valor e de onde ou do que advém sua
autoridade. Não faltam teorias metaéticas candidatas a
resolver estas questões. Entretanto, para os fins do
presente texto, restringirei a análise às respostas
fornecidas pelas teorias realistas não-naturalistas e pelas
teorias construtivistas.
Baseado nesta problemática, o ponto que me interessa
avaliar é se as teorias construtivistas possuem algum tipo
de vantagem sobre as teorias realistas não-naturalistas no
que diz respeito à explicação da origem e do fundamento da
autoridade dos juízos morais. Para tanto, sustentarei que,
1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]
1
(i) sendo o construtivismo metaético uma teoria baseada na
ideia de agência, ele é capaz de explicar a natureza da
normatividade de modo mais satisfatório do que as teorias
realistas não-naturalistas (ii) e também que, baseado na
imagem de construção, o construtivismo consegue acomodar o
caráter prático e objetivo dos juízos normativos.
Para levar adiante essa proposta, oferecerei uma breve
e ampla caracterização do realismo não-naturalista como
pensado por Enoch e Shefer-Landau (seção 2) e então
apresentarei a posição construtivista e suas diferentes
variantes em metaética a partir do quadro desenvolvido por
Street (seção 3). Posteriormente concentrar-me-ei em
sustentar que as teorias construtivistas possuem ao menos
duas potenciais vantagens sobre as teorias realistas não-
naturalistas no que diz respeito à explicação da origem e
do fundamento da autoridade dos juízos normativos, a saber:
baseadas na ideia de agência, as posições construtivistas em
metaética são capazes de prover uma explicação adequada da
natureza da normatividade (seção 4) e também acomodar o
caráter prático e objetivo de tais juízos, isto é, são
capazes de explicar a relação entre a autoridade dos juízos
normativos e de que modo eles podem nos motivar a agir
(seção 5).
2. Características de uma teoria realista não-naturalista
No decorrer das últimas duas décadas, o campo da
metaética tem se desenvolvido e aperfeiçoado com enorme
2
rapidez. A variedade de propostas e abordagens que tem
surgido no interior da metaética é igualmente proporcional
ao contingente de diferentes propostas que têm sido criadas
no interior das teorias realistas. Embora as teorias
realistas possam ser, grosso modo, classificadas em não-
naturalistas e naturalistas e estas últimas ser ainda
divididas em reducionistas e não-reducionistas, todas elas
endossam a ideia de que existe uma realidade moral que as
pessoas estão tentando representar quando elas emitem
julgamentos sobre o que é certo o errado. O desacordo que
“surge entre os realistas tem principalmente a ver com a
natureza dessa realidade” (Shafer-Landau 2005: p. 13).
De qualquer modo, para não cometer equívocos na
análise e também por respeitar a especificidade de cada uma
das abordagens teóricas, minha análise se concentrará
especificamente sobre as teorias realistas não-
naturalistas. De acordo com Shafer-Landau (2005: p. 2),
[O] realismo moral [não-naturalista] é a teoria que julgamentosmorais utilizam-se de um tipo especial de objetividade: taisjulgamentos, quando verdadeiros, existem independentemente do fato deque qualquer ser humano, em qualquer lugar, em qualquercircunstância, pense neles.
Enoch (2011, p. 1) também define o realismo não naturalista
dizendo que
[...] existem irredutivelmente verdades e fatos normativos,fatos tal como que nós deveríamos cuidar de nosso bem-estarfuturo, que nós não deveríamos humilhar outras pessoas. [...] Euacredito que devem ser alguns exemplos desse tipo, exemplos deverdades normativas (e de fato morais) que são irredutivelmente
3
normativos, verdades que são perfeitamente objetivos, universais e absolutos. Elessão independente de nós, de nossos desejos e de nossa vontade2.
Tanto Shafer-Landau quanto Enoch parecem vincular o
realismo não-naturalista a quatro teses fundamentais, a
saber: (i) juízos morais são capazes de verdade ou
falsidade, (ii) alguns juízos são objetivamente
verdadeiros, (iii) a verdade ou a falsidade desses juízos
não podem ser identificados com a existência de
determinados fatos naturais (iv) e nem podem ser resultado
do endosso de um certo agente ou cultura. Os realistas
naturalistas não-reducionistas3 poderiam concordar com as
teses (i), (ii) e (iv), mas não concordariam com a tese
(iii) e os realistas naturalistas reducionistas4 poderiam
concordar com as teses (i) e (ii), mas não com as teses
(iii) e (iv).
Seja como for, o ponto central para o qual os autores
estão chamando atenção é de que o realismo não-naturalista
é uma teoria em que os padrões morais são mind-independence,
isto é, o valor desses padrões não depende que os agentes
lhe o atribuam. Classicamente o problema de saber se a
ordem moral é algo dada previamente ou então se é algo
construído pelos agentes é uma questão presente desde o
texto Eutífron de Platão. Através da boca de Sócrates, Platão
apresenta a Eutífron o seguinte dilema: a piedade é amada
pelos deuses, por que é piedade, ou se é ela piedade,
porque é amada pelos deuses?
2 Grifo meu.3 Ver Brink (1989).4 Ver Copp (2008).
4
Para o realismo não-naturalista, as condições de
verdade de um juízo Cx é independente do que qualquer ser
humano, em qualquer lugar e em qualquer circunstâncias,
pensa sobre eles. A verdade de um juízo normativo se obtém
independentemente de qualquer endosso dos agentes de uma
comunidade. Os padrões morais que fixam os fatos morais não
se tornam verdadeiros em virtude da sua retificação ter
sido dado por um agente que se encontra dentro de uma dada
situação hipotética ou originária. De acordo com Shafer-
Landau (2005: p. 15), “o fato de que uma pessoa tome uma
atitude particular em direção a um padrão moral putativo
não é o que faz esse padrão correto”.
Porém, sustentar que os padrões morais existem
independentemente do endosso dos agentes não implica em
dizer que a moralidade também não leva em consideração as
atitudes dos agentes. Segundo o realista não-naturalista, é
possível acomodar a ideia de que os padrões morais de uma
teoria normativa estabeleçam-se a despeito da vontade dos
indivíduos e que, ao mesmo tempo, tal teoria preste atenção
aos estados mentais dos agentes em questão. Mas em última
instância, a verdade de qualquer padrão normativo não é
definida em função de que alguém pense ou delibere a
respeito de tal padrão normativo. Esses padrões, se
verdadeiros, não se tornam verdadeiros e muito menos podem
ser vindicados a partir de algum processo de eleição ou
aprovação pessoal.
Desse modo, as grandes virtudes do realismo não-
naturalista parecem ser, primeiro, a objetividade dos
5
juízos. Um determinado padrão moral é correto mesmo se
nenhuma pessoa acreditar que ele o seja. Segundo, a
possibilidade do erro moral. Qualquer indivíduo pode falhar
em reconhecer uma verdade moral, mesmo que este tenha
realizado todos os esforços epistêmicos que ele seria capaz
de fazer para tal (dado o seu perfil psicológico).
Terceiro, não é preciso pressupor idealizações epistêmicas
a respeito dos agentes. O realismo não-naturalista está
comprometido com a ideia de que verdades morais são
acessíveis aos agentes epistêmicos e que, nesse caso, não é
necessário pensar agentes ideais do ponto de vista
epistêmico.
3. Características de uma teoria construtivista
Na literatura recente, teorias construtivistas tais
como a de Korsgaard e de Street têm sido presença constante
e ativa nos debates a respeito de questões metaéticas.
Embora as discussões mais consagradas e canônicas da
metaética tenham se desenvolvido em torno das posições
realistas e expressivistas, a posição construtivista tem
atraído e inspirado nos últimos anos uma série de
comentários, tanto daqueles que compartilham de suas
principais teses e veem-na com entusiasmo, quanto daqueles
que a veem com certo ceticismo.
Os críticos aceitam o fato de que as posições
construtivistas em filosofia moral e filosofia política são
um poderoso e influente grupo de posições filosóficas. As
6
teorias de Rawls (1980, 1993, 1999) e Scanlon (1982) são
respectivamente exemplos paradigmáticos de construtivismo
em filosofia política e moral que alcançaram relativo
sucesso. Mas o mesmo não se pode dizer com relação ao campo
da metaética5, uma vez que há profundos desacordos sobre o
que fundamentalmente a posição construtivista tem a
contribuir para a discussão. Darwall et all. (2013) é um dos
críticos que endossa essa tese. Ele afirma que o
construtivista é um procedimentalista hipotético e que, por isso,
deve ser compreendido como uma família de teorias morais
substantivas e não como uma posição metaética “genuína”.
[O] construtivista é um procedimentalista hipotético. Eleendossa um procedimento hipotético que determina quais osprincípios que constituem os padrões válidos da moralidade. Esseprocedimento pode referir-se a um acordo a respeito de umcontrato social, ou pode referir-se também, digamos, a umadecisão a respeito do código moral que deve ser apoiado em umasociedade. Um procedimentalista mantém, então, que não há fatosmorais independente da descoberta de que certo procedimentohipotético teria tais e tais resultados (DARWALL et al, apud,DALL”AGNOL 2013: p. 42).
Parece que, se Darwaal et al. estiverem certos, então o
construtivismo deveria abandonar o caráter puramente
procedimental de sua teoria e encontrar um forma
alternativa de introduzir-se nas discussões metaéticas.
Seja como for, acredito que uma boa alternativa de
caracterização a respeito do construtivismo em metaética
seja aquela realizada por Street (2010) em seu artigo What
5 Dito de outro modo, o construtivista endossa um procedimentocontrafactual que determinará quais serão os princípios queconstituirão os padrões válidos tanto de um contrato social quanto deum código moral que deve ser apoiado em uma sociedade
7
is constructivism in Ethics and Metaethics. Isso, por dois motivos.
Primeiro, porque ela consegue escapar dessa definição
puramente procedimental do construtivismo e segundo porque
ela consegue capturar o que há de mais interessante e
distinto nessa posição, a saber: a ideia de agência
vinculada a um ponto de vista prático6. “A noção de procedimento é
no final das contas meramente um dispositivo heurístico,
enquanto que o coração da posição é a noção de um ponto de
vista prático7 e o que se segue ou não de dentro dele” (Street
2010: p. 364).
Grosso modo, a caracterização do construtivismo
realizada por Street pode ser sumarizada nos seguintes
termos. No mais das vezes, temos dificuldades para
compreender o que é o valor quando o empregamos em juízos
normativos. Diariamente emitimos tais juízos e com
freqüência nos deparamos com a sensação de não entendermos
o que estamos fazendo quando estamos pensando e/ou
argumentando sobre juízos normativos. Assim, seria
justificável perguntarmo-nos o que estamos investigando
quando realizamos juízos normativos. No entanto, parece que
o fato de nãos sabermos dizer expressamente o que seja o
valor não nos impossibilita de compreendermos a atitude de
valorar. “O mundo é cheio de criaturas que valoram coisas e
nós conhecemos muito bem essa atitude quando a vemos”
(Street 2010: p. 365).
6 Daqui por diante tomarei a teoria de Street como modelo de uma teoriametaética construtivista para o avanço da discussão.7 Grifo meu.
8
Assim, quando alguém toma alguma coisa no mundo como
sendo valorosa, seja uma ação, um objeto ou mesmo um
indivíduo, ele ocupa a posição de um ponto de vista prático. Isto
significa dizer que o ponto de vista prático é o ponto de vista
ocupado por qualquer indivíduo que toma ao menos alguma
coisa no mundo para ser boa ou má, melhor ou pior,
necessária ou opcional e assim por diante. Aqui a
reivindicação de Street é de que nós temos uma compreensão
da atitude de valorar mesmo que nós não compreendamos ainda
o que seja o valor em si mesmo.
Em adição a compreensão da atitude de valorar e da
ideia de um ponto de vista prático, é preciso que compreendamos
também a ideia de implicação8 (entailment) a partir de dentro
de um ponto de vista prático de um dado conjunto de valores. Essa
ideia está associada ao fato de que, a despeito de estarmos
de acordo com um dado conjunto de valores ou discordarmos
profundamente dele, ainda assim podemos pensar e discutir
sobre o que se segue de dentro desse conjunto de valores em
relação a fatos não-normativos. O tipo de implicação
pressuposta é um tipo de implicação conceitual onde, embora
um sujeito X discorde amplamente do conjunto de valores de
um sujeito Z, o sujeito X ainda pode compreender a
implicação de determinados juízos a partir de dentro do ponto
de vista prático do conjunto de valores de Z.
Street (2010: p. 366) exemplifica o ponto dizendo que
Nós podemos dizer que “Ann está errada em supervalorizar contarfolhas de grama, mas se segue de dentro de seu (bizarro e
8 Mais adiante tomaremos a ideia de implicação (entailment) como sinônimoda ideia de um ponto de vista prático dada uma caracterização formal.
9
errado) ponto de vista valorativo que ela tem uma razão paracomprar uma calculadora”. “Contudo”, nós podemos acrescentar,“isso se segue mesmo que Ann não reconheça isso”. Devido a suaignorância de fatos não normativos ou alguma outra deficiênciacognitiva (talvez Ann não sabe ou continua esquecida do quecalculadoras fazem), Ann pode nunca ver que está implicado dedentro de seu ponto de vista avaliativo que ela tem uma razãopara comprar uma calculadora; no entanto, isto está implicado.
Então, podemos afirmar que as diversas versões de
construtivismo, estejam elas interessadas em questões de
primeira (ética normativa e filosofia política) ou de
segunda ordem (metaética), estão todas de acordo com essa
caracterização de um ponto de vista prático (practical standpoint
caracterization)9 e com a ideia de que os padrões normativos
são resultado do endosso dos agentes. As versões de
construtivismo metaético, cuja teoria de Street é um
exemplo, sustentam que as condições de verdade do domínio
normativo são dependentes da atitude de valorar dos
agentes. Diferentemente das teorias metaéticas realistas
que sustentam que a função dos conceitos normativos é
descrever o mundo, o construtivismo sustenta que os
conceitos normativos possuem a função de resolver problemas
práticos com o quais diariamente nos deparamos (Korsgaard
2008).
Em resumo, o pressuposto construtivista é de que o
padrão normativo é mind-dependence. Eles negam que os9 No campo da filosofia política e da ética normativa isso pode seravaliado a partir das teorias de Rawls e Scanlon respectivamente. Noprimeiro caso, as condições de verdade das reivindicações concernentesa justiça social e política estão condicionadas a estas serem implicadasde dentro do ponto de vista da posição original. No segundo, as condiçõesde verdade das reivindicações concernentes a vida moral (ou “sobre oque nós devemos uns aos outros”) estão condicionadas a estas seremimplicadas de dentro do ponto de vista de uma certa situaçãocontrafactual.
10
valores sejam descobertos assim como as propriedades do
mundo físico o são ou revelados a nós por qualquer entidade
sobrenatural. Pelo contrário, valores e normas morais são
construídos por agentes humanos com propósitos específicos
(Bagnoli 2013). No que se segue, buscarei analisar quais
são as potenciais vantagens que a posição construtivista
pode ter em relação à posição realista não-naturalista no
que diz respeito à explicação da origem e do fundamento da
autoridade dos juízos morais.
4. A natureza da normatividade
Acredito ser extremamente difícil de encontrar
qualquer teoria metaética que não se dedique, mesmo que de
forma geral, a falar a respeito da normatividade dos juízos
morais. Esclarecer o que é a normatividade e de onde advém
a sua autoridade sobre os agentes mostra-se ser elemento
central com o qual as teorias metaéticas precisam se
defrontar. No caso das teorias em questão, à primeira vista
essa preocupação parece estar clara. Enoch (2011: p. 1)
abre seu livro Taking Morality Seriously: a Defense of Robust Realism
afirmando que “o realismo robusto10 é primeiramente uma
visão sobre a normatividade” e que por isso é preciso
explicar o que ela é e Copp (apud Bagnoli 2013: p. 109)
afirma que as “teorias construtivistas são tipicamente
motivadas pelo objetivo de explicar a normatividade”. Nesse
caso, ambas as propostas parecem estar interessadas em
explicar a natureza da normatividade. 10 É um tipo de teoria realista não-naturalista.
11
Mas, a partir de uma análise mais profunda, é possível
ver que essa impressão é falsa, uma vez que, enquanto a
posição construtivista está interessada em prover uma
explicação profunda da natureza da normatividade, o
realismo não-naturalista não acha necessária essa
discussão. Acredito que essa seja uma primeira vantagem que
o construtivismo possui em relação ao realismo não-
naturalista. Mas vejamos porquê.
As teorias realistas não-naturalistas sustentam a
existência de verdades normativas de forma anterior e
independente da vontade dos agentes e, nesse caso, tomam a
normatividade como algo primitivo ou dado previamente. Elas
não estão interessadas em discutir com profundidade a
natureza do valor. Shafer-Landau assume isso ao dizer que,
em relação à pergunta sobre o que faz com que certos
padrões normativos sejam corretos, o realismo (não-
naturalista) não possui qualquer resposta geral para esta
questão11. Segundo ele, não é preciso pressupor a
existência de legisladores para a criação de leis. Nós
podemos “assumir que pelo menos algumas leis são melhores
interpretadas realisticamente” e então não precisaremos
explicar a verdade dos padrões normativos a partir da ideia
de que eles tenham sido criados ou aceitos por alguém
(Shafer-Landau 2005: p. 46). No entanto, sustento que essa
11 Shafer-Landau (2005) pondera acerca dessa afirmação dizendo que elanão será verdadeira se considerarmos os teóricos do divino comando ou osteóricos da lei natural como realistas. Se em última instância aautoridade moral deriva da autoridade divina, então haverá umaexplicação do porquê os padrões morais corretos são corretos.
12
forma econômica com a qual o realismo não-naturalista
discute esse tema não é satisfatória.
As teorias construtivistas, por sua vez, tomam a
tarefa de explicar a natureza da normatividade como uma das
principais finalidades de suas teorias. Elas buscam
justificar de que modo os agentes estabelecem quais
deveriam ser os valores que constituem os padrões do
domínio normativo e sustentam que a realidade normativa é,
em última instância, construída pelos agentes que ocupam o
ponto de vista prático. Os construtivistas procuram fornecer uma
explicação a respeito da natureza da normatividade a partir
da ideia de agência. Eles compreendem os indivíduos como
seres racionais e autolegisladores capazes de justificar
uns aos outros seus próprios juízos. O mundo dos valores é
justificado apenas pela capacidade agencial dos indivíduos,
uma vez que “constituímos a nós mesmos como agentes que
escolhem suas ações segundo os princípios da razão prática,
especialmente os princípios morais” (Korsgaard 2008: p. 1).
Conforme Street, as teorias construtivistas podem
ainda fornecer dois diferentes caminhos a partir dos quais
é possível implicar princípios normativos a partir da ideia
de agência e explicar a natureza da normatividade, a saber:
kantiano e humeano. Ambas as abordagens estão de acordo com
a ideia de que a verdade de uma reivindicação moral
consiste em esta ser implicada de dentro de um ponto de vista
prático, onde este ponto de vista prático é dado por uma
caracterização formal12. Isto é, dar ao ponto de vista prático uma
caracterização formal significa considerar o ponto de vista do12 Ver nota 5.
13
valor ou do julgamento normativo enquanto tal, onde isso
envolve dar uma consideração da atitude de valorar que em
si mesma não pressupõe qualquer valor substantivo, mas, ao
contrário, apenas envolve o que está implicado em valorar
alguma coisa (Street, apud, Lenman; Shemmer 2012)13. Elas
também estão de acordo com a ideia de que os agentes são
autônomos no sentido de serem capazes de ‘darem leis a si
próprios’14. No entanto, os modelos construtivistas
kantiano e humeano discordam a respeito da ideia de se é
possível que conclusões morais sigam-se de dentro de um
ponto de vista prático dado uma caracterização formal.
De acordo com o primeiro tipo de construtivismo
metaético (kantiano), é possível sim que conclusões morais
sigam-se de dentro de um ponto de vista prático dado uma
caracterização formal. Eles afirmam que nós podemos ter
inicialmente uma “compreensão puramente formal da atitude
de valorar e demonstrar que reconhecidamente valores morais
são implicados de dentro do ponto de vista de qualquer
indivíduo que valora enquanto tal” (Street 2010: p. 369). O
tipo de construtivismo kantiano apresentado por Korsgaard
em The Sources of Normativity é um exemplo dessa visão. Ela
sustenta que nossos juízos normativos são categóricos e
que, nesse caso, independem do conteúdo particular do
conjunto de juízos normativos de um dado agente. A ideia do
valor da humanidade segue-se de dentro do ponto de vista do
valor ou da razão prática enquanto tal (Korsgaard 1996).
13 Como exemplo dessa ideia ver o caso de Ann em Street (2010: p. 366)ou no presente texto na seção 3.14 Essa é uma ideia proveniente da teoria de Kant, mas que tantoconstrutivistas kantianos quanto humeanos estão de acordo.
14
Já com relação ao segundo tipo de construtivismo
metaético (humeano), não é possível que conclusões morais
substantivas sejam implicadas de dentro do ponto de vista
dos julgamentos normativos enquanto tal. O conteúdo
substancial dessas conclusões normativas está atrelado às
razões de um determinado agente cujo conteúdo é dado a
partir de seu ponto de partida valorativo particular. Assim
sendo, os juízos normativos podem ser verdadeiros ou
falsos, mas as condições de verdade desses juízos é dado
contingencialmente e não categoricamente como o faz
Korsgaard. Portanto, enquanto que as versões de
construtivismo kantiano vindicam uma forma extremamente
forte de universalismo sobre razões e, em especial, razões
morais, as versões construtivistas humeanas, ao contrário,
negam que “o coelho das razões substantivas possa ser
tirado de dentro de um chapéu formalista” (Street 2010: p.
369). Elas defendem que as razões dos seres humanos, em
última instância, dependem das circunstâncias e do ponto de
partida valorativo no qual as pessoas se encontram em um
dado momento de suas vidas.
Seja como for, a despeito de como cada uma das formas
de construtivismo compreende a possibilidade de realizar
conclusões morais a partir de dentro do ponto de vista prático,
parece que a teoria enquanto tal é capaz de prover uma
melhor resposta àquela dada pelo realismo não-naturalista
no que diz respeito à explicação da natureza dos juízos
normativos. Agora, passarei a analisar uma segunda vantagem
construtivista.
15
5. A relação entre juízo normativo e motivação
Há uma forte tendência no campo metaético em dizer que
não é possível compatibilizar o caráter prático e objetivo
dos julgamentos normativos em uma mesma teoria. Se de um
lado juízos morais nos fazem reivindicações de como devemos
viver e visam guiar nossas atitudes e ações a partir de um
tipo específico de relação entre tais juízos e nossa
motivação, de outro parece haver padrões do correto que
podem ser acessados para avaliarmos se esta ou aquela
reivindicação é legítima ou válida. Para boa parte dos
metaeticistas está clara a impossibilidade de conciliação
entre a praticidade (practicality) e a objetividade (objectivity)
dos juízos normativos. Qualquer teoria que se empenhe
acerca desse propósito terá como resultado o fracasso.
Entretanto, acredito que as teorias construtivistas podem
fornecer uma abordagem satisfatória a respeito desse
impasse. Seguindo os passos de Bagnoli em seu artigo Moral
Constructivism: A Phenomenological Argument, buscarei mostrar que,
a partir de uma correta compreensão do caráter prático e
objetivo dos juízos normativos, é possível acomodar ambas
as reivindicações e eliminar essa dicotomia.
Em geral, está implícito nos círculos acadêmicos de
filosofia15 que o caráter objetivo da ética pode ser
vindicado apenas pelas teorias realistas16. Tal truísmo
15 Sobre este aspecto, ver parte final da seção 2 deste texto.16 Copp (apud, Bagnoli 2013) discorda da afirmação que todas as teoriasrealista são mind-independence. Segundo ele, a teoria de Railton e a suaprópria teoria podem ser compreendidas como propostas que mind-
16
está atrelado à metáfora de que juízos morais são resultado
de uma descoberta, isto é, são asserções sobre fatos e
propriedades morais que existem independentemente do fato
de que as pessoas descubram sua existência, visto que eles
são mind-independence. Mas o problema é que essa tese parece
estar em conflito com o fato de que juízos normativos
também são práticos. Se juízos normativos são independentes
de nossa capacidade de construí-los ou mesmo de acessá-los,
torna-se difícil de explicar de que forma tais juízos
poderão nos guiar e motivar a agir. “Como é que uma visão
moral nos motiva a agir ou molda nossas crenças e atitudes,
se o realismo é verdadeiro?” (Bagnoli 2002: p. 125).
Na ordem de considerar o caráter prático dos juízos
normativos em detrimento do caráter objetivos destes,
alguns filósofos têm se associado a propostas metaéticas
não-cognitivistas. Eles buscam explicar os juízos
normativos a partir da metáfora da projeção ou invenção, isto
é, sustentam que os juízos normativos não são descrições de
estados de coisas no mundo ou representações de
propriedades, mas sim, expressões de estados mentais não-
cognitivos, tais como sentimentos, desejos, prescrições,
atitudes ou decisões. O pressuposto não-cognitivista é de
que não faz sentido reivindicar objetividade à ética, uma
vez que os juízos normativos não são asserções capazes de
verdade ou falsidade.
De acordo com Bagnoli (2001), buscar reconciliar o
caráter prático e objetivo dos juízos normativos não é
propriamente uma questão metaética relevante e, mesmo se odependence.
17
fosse, o realismo não-naturalista teria falhado nessa
tarefa. Antes disso, importante é saber como podemos
interpretar corretamente (a partir de uma fenomenologia
moral) o fenômeno de que compreendemos os juízos normativos
como capazes de exercer autoridade sobre nós, como
expressão de nossa personalidade moral (visão moral
pessoal) e, ao mesmo tempo, serem práticos e objetivos.
Como dito anteriormente, as teorias realistas e não-
cognitivistas possuem um entendido enviesado do caráter
prático e objetivo dos juízos normativos. É falso
compreender o caráter prático dos juízos morais como
simplesmente a capacidade de prover razões para a ação,
assim como os não-cognitivistas o fazem. Pelo contrário,
juízos normativos podem ser práticos também no sentido de
que eles informam o tipo de agente que somos e de vida que
levamos. Nós podemos ter uma determinada visão sobre nós
mesmos e, a partir desta visão, construir razões de como
deveríamos agir. Pelo mesmo motivo, o caráter objetivo dos
juízos morais não deve ser entendido assim como os
realistas (não-naturalistas) o fazem, como representando
uma parte da realidade. Ao invés, juízos morais são
objetivos porque eles exercem de um tipo de autoridade
sobre a vida das pessoas. Tais juízos fazem reivindicações
sobre o tipo de pessoa que somos e, nesse sentido, eles são
inescapáveis (Ferrero 2009). Quando afirmamos que um valor
é objetivo estamos querendo dizer que ele tem um tipo
especial de importância em nossas vidas e que, nesse caso,
ele não pode ser desconsiderado de nossa avaliação.
18
Teorias construtivistas, por sua vez, estão
interessadas em explicar o caráter prático e objetivo dos
juízos normativos a partir da metáfora da construção, a qual
é composta por três elementos, a saber: (i) a base da
construção, (ii) seus objetos (iii) e seus métodos e
limites. Em geral, cada teoria construtivista pode
preencher conteudisticamente esses elementos a seu modo.
Aqui eu tomarei as definições que a professora Bagnoli
(2002: p. 135) sugere.
A base de construção é uma suposição sobre o tipo de agente que nóssomos. Minha suposição é mínima: localizados em um mundo finito,o agente necessariamente estabelece relações com ele. [...] Eutomo como objeto de construções os julgamentos éticos sobre o quenós temos razões para fazer ou sentir, isto é, sobre que tipo deresposta prática é apropriado para nós darmos. [...] finalmente,a construção é uma atividade que é regulada por princípios.Existem métodos17 para a construção e limites que sustentam estaconstrução. Os métodos da construção não são em si mesmosconstruídos, ao contrário, eles são simplesmente estabelecidos.
A partir destes três elementos que constituem a
metáfora da construção, as teorias construtivistas podem
reivindicar que o conteúdo das razões e sua força normativa
são determinadas pela deliberação dos agentes. O ponto é de
que, se os agentes são seres racionais e autolegisladores
capazes justificar uns aos outros seus próprios juízos,
então os construtivistas podem explicar o caráter prático e
objetivo dos juízos normativos respectivamente. No primeiro
17 O ponto de desacordo de boa parte das teorias construtivistas dizrespeito ao modo como se deve compreender o método e os limites daconstrução. De acordo com Bagnoli (2001: p. 132), “diferentes tipos deconstrutivismo permitem diferentes métodos de deliberação moral: aindividuação do método de construção é claramente uma significantefonte de desacordo entre os construtivistas”.
19
caso, na medida em que as razões que levam os indivíduos a
agir estão ligadas ao tipo de pessoa que cada qual deseja
ser, e no segundo, na medida em que a autoridade de tais
razões reivindica dos agentes um determinado tipo de
conduta ou ainda o tipo de pessoa que devemos ser.
A imagem da construção parece minar com a concepção
tradicional de raciocínio prático das teorias realistas
não-naturalistas cuja ideia é de que os agentes devem
avaliar as variáveis de um dado problema e então gerar a
única conclusão que pode seguir dessas variáveis. O
pressuposto é de que a “solução” de um determinado problema
prático é algo evidente e que, por isso, só precisa ser
descoberta ou encontrada. Pensar o valor sob a ideia de
construção sugere que as variáveis não são apenas dadas ao
agente a espera de que ele descubra qual é a melhor
“solução” para este ou aquele problema. Pelo contrário,
sugere que o agente constrói a “solução” de um determinado
problema a partir da compreensão que ele tem das variáveis
envolvidas e da visão que ele tem sobre si mesmo. “A
caracterização valorativa da situação e do problema diante
da qual o agente está é também objeto de deliberação. A
configuração de uma situação é construída junto com os
conteúdos das razões, suas relações recíprocas e sua força
normativa” (Bagnoli 2002: p. 134).
A proposta construtivista é de que julgamentos morais
estabelecem algumas relações normativas entre os agentes e
o mundo a respeito das razões que estes primeiros têm para
fazer e sentir determinadas coisas. Na mesma medida, essas
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proposições normativas são passíveis de verdade ou
falsidade no sentido de elas serem especificadas em termos
de justificação. Destarte, a imagem de construção é adequada
no sentido de chamar atenção para a contribuição do agente
na configuração do domínio moral e por conseguir
compatibilizar o caráter prático e objetivo de nossa
experiência moral.
6. Considerações finais
No decorrer do presente texto, realizei uma breve
apresentação do realismo não-naturalista e do
construtivismo em metaética com vistas a avaliar quais
seriam as potenciais vantagens desta última teoria em
relação à primeira no que diz respeito à explicação da
origem e do fundamento da autoridade dos juízos morais. A
primeira vantagem construtivista que busquei mostrar foi a
capacidade de explicar a natureza da normatividade. As
teorias realistas não-naturalistas tomam o valor como algo
primitivo ou dado previamente e não estão interessadas em
explicar a natureza desse valor. Já as teorias
construtivistas tomam a tarefa de explicar a natureza da
normatividade como uma função central de suas propostas.
Elas procuram fornecer uma explicação desse problema a
partir da ideia de agência, isto é, de que o padrão
normativo é mind-dependence.
A segunda vantagem construtivista que tentei mostrar
foi a capacidade de compatibilizar o caráter prático e
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objetivo dos juízos morais. A metáfora realista não-
naturalista de que os padrões morais devem ser descobertos
parece vindicar para si a característica da objetividade,
mas não explica por que julgamentos éticos são normativos e
exercem autoridade sobre as pessoas. Tal metáfora também
não é capaz de prover uma explicação adequada de como
juízos normativos podem motivar os agentes a agir mesmo
quando aqueles parecem estar em desacordo com o tipo de
pessoa que somos ou desejamos ser. Teorias construtivistas,
por sua vez, explicam o valor a partir da imagem de
construção, o que sugere que as relações normativas são
produto da atividade dos agentes. Assim, o construtivismo é
capaz de acomodar o caráter prático e objetivo de tais
juízos, isto é, é capaz de explicar a relação entre a
autoridade dos juízos normativos e de que modo eles podem
nos motivar a agir.
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