O comportamento sintático dos possessivos nas línguas românicas

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NOS LIMITES NORDESTINOS DO GALEGO-

PORTUGUÊS EUROPEU: O EONAVIEGO

Xavier Frias Conde

(UNED)

[email protected]

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Xavier Frias Conde (1965) nasceu em Béjar (Salamanca). É doutor

em Filologia Românica pela UCM. A sua família materna é

eonaviega. Tem o galego com língua de criação literária desde a sua

adolescência. Participou ativamente no movimento pela defesa do

galego nas Astúrias até 2004. Como escritor, tem mais de trinta

livros publicados de poesia, literatura para a infância e narrativa em

idiomas diversos. Atualmente é professor da área de conhecimento

galego-portuguesa da Universidade Nacional de Educação à

Distância (UNED) e vive felizmente entre as terras d’A Mancha e

Praga. Desde 2003 tem uma atividade intensa em vários blogues

literários. Além disso, é coeditor de Lastura (editora fundada em

2012) e codiretor da revista de filologia românica Ianua. É também

membro do Círculo Linguístico de Praga.

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Eo-Návia

Extensão:1.645 km²

População: 32.208

Línguas oficiais: castelhano

Administração: A Terra Eo-Navia é a denominação que recebe a

região de língua galego-(portuguesa) no ocidente do Principado das

Astúrias. Trata-se de uma denominação recente que não se

corresponde com qualquer divisão territorial oficial ou de uso

tradicional.

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A Terra Eo-Návia, encruzilhada, Mesopotâmia ou terra de

ninguém

Falar na Terra Eo-Návia é muito complicado porque há tantas

visões quanto pessoas. A questão de porquê existe polémica nela

não é tão antiga, finais da década de 1990. As polémicas começaram

quando nalgum momento se tentou definir esta pequena região entre

os rios Eu e Návia como um território linguisticamente galego-

português, mas politicamente asturiano. Este facto causou e causa

conflitos dificilmente explicáveis fora do território em questão e

mesmo nas Astúrias.

Mas comecemos por definir o que é a região eonaviega. O Eo-

Návia é a área mais ocidental da Comunidade Autónoma das

Astúrias ao longo da fronteira com a Galiza, alcançando mesmo o

limite com a Comunidade Autónoma de Castela-Leão.

Compreende vários concelhos na sua totalidade (usaremos as

formas toponímicas na sua versão galego-portuguesa): A Veiga,

Taramúndi, Castropol, Tápia, El Franco, Coanha, Boal, Santalha de

Oscos, Vilanova de Oscos, São Martim de Oscos, Santisso de Abres,

Grandas de Salime, Eilão, Peçós e Íbias. Para além desses

concelhos, existem ainda outros onde apenas a metade ocidental

pertence ao território linguístico galego-português: Návia, Vilalhom,

Alhande.

Neste território fala-se uma variedade galego-portuguesa muito

particular, onde as evoluções próprias coabitam com arcaísmos e

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com influências asturo-leonesas, o qual não é estranho, por se tratar

de uma comarca fronteiriça.

Historicamente não se pode afirmar que existisse qualquer

sentimento de diferença com o resto das Astúrias. A sua pertença

política às Astúrias remonta-se já à Idade Média quando estes

territórios passaram a depender do Bispado de Oviedo, não sendo

até o século XX que as particularidades linguísticas do território

foram estudadas. Um erudito asturiano, Bernardo Acevedo y

Huelves, elaborou o primeiro dicionário dialetal (1932), embora na

altura ele o considerasse «asturiano ocidental», porque a ideia de

não fazer coincidir limites políticos com limites linguísticos ficava

fora de qualquer consideração.

Na década de 1950, um dos melhores filólogos espanhóis da

altura, Dámaso Alonso, dedica uma série de magníficos estudos aos

falares eonaviegos e ao ancarão (ou ancarês), que geneticamente

fazem parte do mesmo grupo de falares galegos, incluídos por mim

no Bloco Raiano dos dialetos galegos1. Até a altura, qualquer estudo

visava a aspetos culturais. Há alguns anos começaram uma série de

teses de doutoramento que, posteriormente publicadas, analisam as

falas de determinados concelhos ou paróquias (freguesias), como a

d’El Valhedor (1978) e El Franco (1982). Os estudos filológicos

abrem assimuma nova porta à realidade da comarca eonaviega

sendo que esta, para a Filologia Românica, faz parte do galego-

português.

1 FRIAS CONDE, F. Xavier (1997): “Sobre os bloques dialectais do galego: unha

nova proposta”, in Revista de Filología Románica XIV, UCM. Madrid. pp- 241-256.

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O próprio Dámaso Alonso (1972) cunhara a denominação

galego-asturiano para se referir aos falares galegos geograficamente

asturianos, e não deixa qualquer dúvida da sua filiação, sendo que

quando se refere ao ancarão, fala em galego-leonês. No entanto, a

denominação galego-asturiano foi usada politicamente para

justificar a criação de uma língua nova no Principado das Astúrias,

como veremos depois.

Será preciso esperar até a metade da década de 1980 para

encontrar os primeiros movimentos de reivindicação linguística na

comarca eonaviega. O chamado na altura Colectivo de Eilao, que

agrupa uns quantos habitantes da zona, opõe-se às primeiras

atividades da Academia da Língua Asturiana (AllA, fundada em

1979) de estender a sua atividade para a zona linguística galego-

portuguesa do Principado. Isto seria apenas o inicio.

Desde aqueles momentos até os dias de hoje, a comarca

eonaviega tem identidade própria dentro das Astúrias, como a tem O

Berço em Leão. Daí a questão de lhe encontrar mesmo um nome,

porque a criação desta comarca terá uma não histórica, o que não

quer dizer que hoje não lhe seja reconhecida algum tipo de

identidade.

É assim que com o nascimento de um movimento que defendia

a pertença do galego eonaviego ao tronco comum do galego(-

português), produz-se na comarca eonaviega uma revolução

silenciosa com a sua consequente contra-revolução. No primeiro

momento, a comarca passa a ter nome. Visto que os seus limites

naturais concordam aproximadamente com as bacias dos rios Eo e

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Návia (na costa isto torna-se muito mais evidente), surgem nomes

como zona Návia-Eo ou até comarca Návia-Eo. Mas o

reconhecimento da comarca deu lugar a denominações não

verificáveis historicamente (no máximo adotadas por algum erudito

local) como Entrambasauguas, que deu origem ao nome de uma

revista local, órgão de expressão dos defensores do eonaviego como

língua independente (trataremos desta questão mais adiante). Porém,

eu próprio propus a denominação Eo-Návia, com mudança na ordem

dos rios, porque foi daí que surgiu o A segui eonaviego,

impossível de criar se fosse na ordem contrária. Contava, aliás, com

a existência do gentilício naviego, aplicado aos naturais das duas

vilas de Návia, a asturiana e a galega (Návia de Suarna).

É curioso notar que a Academia da Língua Asturiana, embora

não reconheça a natureza galego-portuguesa da fala eonaviega,

aceitou polo contrário a denominação de eonaviego para a variante.

Os falares eonaviegos: são realmente tão diferentes?

Para a Linguística Românica, já desde Dámaso Alonso, a região

eonaviega faz parte do diassistema galego-português. Contudo,

sectores políticos asturianos têm obviado e obviam esta realidade.

A influência do asturiano nos falares eonaviegos é

inquestionável por se tratar de uma área de transição. Ora, nenhum

romanista rigoroso nega a base galego-portuguesa destes falares. Da

mesma maneira que existe uma influência galega no eonaviego, dá-

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se também a influência contrária, isto é, a do galego primitivo sobre

os falares asturo-leoneses mais ocidentais.

No entanto, na normativização do eonaviego escolheram-se os

traços mais exclusivos, aqueles que o separavam quanto possível do

resto do diassistema. Para as pessoas que desconhecem o eonaviego,

é surpreendente ouvir uma frase como: Vai camim A sou molim.

Tal frase tem uma forma aparentemente asturiana, ao cem por cento.

Porém, uma análise mais pormenorizada permite ver que a realidade

não é assim simples. Por um lado, as formas em /-in/ em vez de /-

iɲo/ que é a forma comum (contudo, não se pode esquecer que

existe uma regressão para /-ĩ/ nos falares brasileiros nordestinos)

alcançam boa parte do oriente da província de Lugo (assim diz-se

camim, sobrim, muím, etc). Quanto a sou possessivo masculino,

trata-se de um arcaísmo de grande interesse dialetal, que se encontra

também em todo o asturo-leonês ocidental, o qual foi substituído no

resto do diassistema pela forma seu (paralelamente existe a

divergência tou eonaviega frente ao teu do resto do diassistema).

Não é uma influência asturiana, portanto, mas trata-se de um

arcaísmo mantido em zonas muito conservadoras no limite entre os

dois sistemas. Tenha-se em conta que teu e seu são formas

relativamente modernas refeitas a partir de meu (como também

sucedeu em catalão) e que dialetalmente o sardo logudorês também

conhece tais formas tou, sou junto com meu. Até mesmo as formas

modernas do romeno tău e său procedem dos arcaicos tou e sou.

Para observar alguns dos traços do eonaviego, vou apresentar

estas duas versões de duas célebres fábulas de Esopo. A nasalidade

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marcada existe marginalmente e nem sempre se ouve; aliás, a

palatalização do /l/ que se dá numa extensa área eonaviega, vem

aqui representada como <ł>:

1. A chicharra e as fornigas

De inverno, tendo-se molhado os grãos, as fornigas

apradárom-los pra secar.

Ũa carricanta, morta de fame, nom fia máis que lhes pedir

comida. Mais as fornigas dixérom-lhe:

“E łougo, por que durante. No verão nom recolhiche comida

em vez de folgar?”

Ela respondeu:

“Eu nom folgava, senom que enchim os campos As mias

harmoniosas cantigas”.

As fornigas, rindo, dixêrom-lhe:

“Daquela, se de verão cantache, de inverno baila”.

2. El łeom e el boi

Um łeom meditava que havia muito tempo que nom matava

um boi. Um dia decidiu łevar a sua por riba com astúcia.

Fêxo-lhe saber que capturara um carneiro e convidou-lo al

banquete. Preparara todo pra assaltá-lo łougo que já tivesse

sentado. El boi foi à cea e viu muitas tigełas, grandes brochetas,

mais del carneiro nom havia rastro.

Daqueła, sem dizir mesmo ũa palavra, marchou. El łeom

chamou por el e perguntou-lhe el motivo del sou comportamento,

à vista de que nom sufrira aldrage ningũa.

El boi respondeu-lhe:

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“Eu bem vim todo El que havia pra coziar, mais nom era um

carneiro, senom um boi...”

A questão do diassistema

É complexo definir o que é uma língua. Eu vou-me centrar

apenas num caso: quando o conceito de língua cai grande ou, polo

contrário, pequeno.

Para a filologia, galego-português, e também asturo-leonês, são

diassistemas ou domínios linguísticos. Isto quer dizer que pode

haver mais duma língua num domínio ou diassistema, que convivem

junto com dialetos de toda casta, mas onde todos têm um

denominador comum, uma série de traços comuns que lhes fazem

manter a unidade, embora haja diversidade dentro do conjunto.

Esta consideração é importante porque a consideração de língua

ou dialeto não é propriamente missão da filologia, mas da

sociolinguística. Qualquer sistema linguístico tem uma estrutura que

interessa à linguística, sem se importar se for uma língua ou um

dialeto.

Portanto, na România há mais dum diassistema. Além do galego-

português e do asturo-leonês, podemos considerar um diassistema o

rético e o catalano-occitano, por pormos alguns exemplos. Ora bem,

tornando ao caso galego-português, vamos ir atendendo a diversas

considerações. Os galegos falam português? Não. Os portugueses

falam galego? Não. Então, falam a mesma língua? A resposta já não

é tão clara. Galego e português são o mesmo diassistema, mas a

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questão de serem a mesma língua ultrapassa a linguística e entra na

sociologia e mesmo na política. No caso que nos ocupa, o eonaviego

alcançou o estatuto de “forma linguística” por um decreto do

governo regional asturiano.

Na atualidade, o galego-português não é uma língua do ponto de

vista legal ou legislativo, mas duas. Isto é, não está reconhecida

como tal. Mas isso não quer dizer que não venha a estar no futuro,

de facto sente-se cada vez mais a reclamação de o galego-português

ser realmente uma língua. Ninguém nega a relação estreita que

existe entre galego e português, nas origens uma só língua, mas que

por causas históricas perfeitamente conhecidas se foram separando.

Isto dá lugar a duas interpretações: o galego e o português ainda são

uma língua ou, polo contrário, são duas.

Porém, se os galegos não falam português nem os portugueses

falam galego, o que é que falam? A resposta é galego-português.

Pois bem, nesse caso, será preciso oficializar uma língua que reflita

esta realidade. O certo é que na atualidade o português é uma língua

estatal e internacional perfeitamente fixada, enquanto o galego é

uma língua regional ameaçada.

Vejamos agora o domínio (ou diassistema) vizinho: o asturo-

leonês. Cá encontramos duas línguas mais ou menos

estandardizadas: o asturiano e o mirandês. Até aqui há unanimidade.

Para algumas pessoas, de um ponto de vista mais político do que

linguístico, os mirandeses falam asturiano, justificado porque o

asturiano é uma língua que ocupa o domínio asturo-leonês. Porém,

não podemos afirmar isto de um ponto de vista linguístico dado que

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não existe uma língua asturo-leonesa. Isso não implica que não vá

existir (como também pode acontecer com o galego-português), mas

hoje em dia existem duas línguas nesse diassistema e muitos dialetos

(seria mais rigoroso dizer que quase nenhum, porque o seu grau de

conservação é mínimo, infelizmente, com tudo o que isso significa

para a diversidade cultural).

O paradoxal é que os mesmos que postulam que o asturiano é a

língua de todo o domínio asturo-leonês negam que o eonaviego, o

galego asturiano, seja galego. Muitos aceitam o de galego-português

(aceitam o que é uma realidade científica), mas negam a essência do

idioma, sempre por motivos políticos que tentam tingir de

linguísticos. Para acabar com a discussão, o parlamento asturiano

estabeleceu que o galego asturiano é uma variante linguística do

Principado, distinta do asturiano (1998), mas não disse de que língua

era variante, embora de facto a tornasse numa língua independente.

Não quero deixar de recolher umas minhas palavras no jornal

Asturnews2 quando me perguntavam sobre a “estandardização” do

eonaviego:

A respeito do eonaviego, bom, se a estandardização do asturiano é

deficiente, a do eonaviego é inqualificável, mas não é essa a

questão, o importante é que com o eonaviego se está a jogar na

fase mais baixa do «divide e vencerás». A quarta língua

internacional, que conta com mais de 250 milhões de falantes, o

galego-português, independiza-se em Espanha e surge o galego. A

seguir, o galego independiza-se nas Astúrias e surge o galego-

asturiano (…). Eis o resultado de usar a política para gerir

2 http://asturnews.com/index2008.php?idn=10000

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línguas. E ainda outro exemplo engraçado –embora seja realmente

trágico- é aquele de chamar o eonaviego fala, porque assim lhe

dizem os seus falantes. Imaginem este diálogo em castelhano:

«“¿Cómo se llama el habla de aquí”. “Sus habitantes le llaman el

habla”. “Ah, qué interesante, un idioma que se llama “el habla”».

Nem pode ser mais científico.

O eonaviego no galego-português do ponto de vista normativo

A Lei de Uso e Promoção do Asturiano de 1998 estabelece que o

falar da região Eo-Návia nas Astúrias é uma variante. Não diz se é

uma variante do galego-português, do asturiano, simplesmente é

uma variante. Porém, o objetivo daquela lei era, e é, separar o

galego daquela região do resto do galego, para o qual lhe dotava

dum status de “algo” diferente, independente do que se fala na outra

beira do rio Eu.

Aqueles que argumentam os eonaviegos não falarem galego

caraterizam-se nomeadamente por carecerem de critérios filológicos

e terem considerações políticas.

Portanto, se o eonaviego é uma “variante” galego-portuguesa –e

isto parece que é geralmente aceite-, isto significa que o eonaviego

pertence a uma comunidade superior. No entanto, para o eonaviego

criou-se uma sub-subnorma cuja autoria cabe à Academia Asturiana.

Embora esta sub-subnorma seja fraca, a do galego padrão é um

bocadinho mais forte. Mas a intenção é a mesma: criar uma

subnorma dentro do galego-português. E aqui é onde também

encontramos um grupo de pessoas pragmáticas que aceitaram essa

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norma para não criar uma guerra ortográfica que danasse a língua,

embora nunca perdessem a ideia de o galego-português ser uma só

língua.

Demos agora um passo avante. O galego-português fora da

Espanha tem uma norma internacional, conhecida como língua

portuguesa.

Gostaria de fazer uma revisão rápida do percurso seguido: existe

uma língua internacional, o português, que admite a denominação

histórica de galego-português. Essa língua internacional tem uma

subnorma para uma das suas ramas, o galego, que se escreve à

espanhola, embora continue a ser parte desse tronco comum.

Existem aliás pequenas raminhas fora da Galiza onde se fala

também galego-português e que, nalgum caso, têm sub-subnormas

para a sua escrita. Porém, o conceito de galego-português é fora de

discussão, com a aceitação de que tem uma norma internacional.

Esta dinâmica coloca uma questão interessante. Se eu quiser

escrever um texto na variante galego-portuguesa das Astúrias,

poderia usar roupagens de diferente teor. Pessoalmente poderia

querer usar a sua norma internacional e, portanto, escreveria como

estou a escrever agora. Ora, se tal coisa acontecer, em muitos meios

asturianos arguiriam que não é possível porque a lei estabelece uma

norma para a variante. Porém, o que podemos ler entre-linhas é:

seria um ataque contra a independência da cultura asturiana.

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A língua chamada galego-asturiano

Já mencionei que galego-asturiano é a denominação oficial do

eonaviego na legislação asturiana, uma língua independente criada

por decreto oficial. Para isso, a Academia da Língua Asturiana criou

a Secretaria Técnica do Navia-Eo, que visa a normalizar e a

normativizar a fala eonaviega.

Alguém podia perguntar se a linguística é uma ciência

politizada. A linguística, em si própria, é uma disciplina que abrange

muitos campos, desde os sons até as estruturas, passando pelos

paradigmas, as regras de uso e… a escrita.

E é justamente aqui onde o modo de escrever uma língua começa

a ter uma posição política. Porém, não é só na escrita do idioma

onde há um componente político, também pode havê-la na

morfologia ou na sintaxe. Por exemplo, na Galiza, evitar o uso do

infinitivo conjugado ou do futuro de conjuntivo, assim como de

terminologia concreta como computador, prédio e outras muitas é

algo que as autoridades linguísticas galegas promovem com muito

afã para evitar ainda mais as semelhanças entre galego e português.

No entanto, isto passa inadvertido para a maioria das pessoas. Polo

contrário, as questões ortográficas têm um peso maior, porque a

escrita é algo visível e, portanto, facilmente percebível pelos olhos.

As autoridades asturianas da língua galega (eis um paradoxo), a

fim de desgalharem a língua galega das Astúrias do resto do idioma,

tiveram que introduzir o apóstrofo, elemento que, como é bem

sabido, não existe em espanhol e é o signo nacional do alfabeto

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asturiano, o qual, por sua vez, é uma má adaptação do castelhano,

como o mesmo código do galego oficial. Pois bem, é precisamente

aqui neste contexto onde ocorreu o episódio que vou referir agora.

Durante dois ou três anos fui invitado a participar no livro coletivo

que o Principado publica anualmente por causa das Letras

Asturianas, editado por uma conhecida empresa de Oviedo. Sempre

escrevi em eonaviego, mas evitando situações fonossintáticas em

que houvesse de utilizar o apóstrofo. O resultado disso foi que os

meus textos eram inequivocamente galegos, não “galego-

asturianos”, como se esperava deviam ser.

Vou ilustrar o afirmado com um exemplo:

● Porque sabe que a nena cantará

Assim escrito, isto é galego, mas não “galego-asturiano”. Por

quê? Porque segundo as normas vigentes, falta o apóstrofo de rigor,

que daria:

● Porque sabe qu’a nena cantará

Agora sim, agora é “galego-asturiano” de gema. Porém, para

evitar este contexto fonossintático, basta introduzir uma palavra

curinga:

● Porque sabe que, daquela, a nena cantará

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É cansativo, mas fazendo assim evita-se o uso do apóstrofo de

maneira que é um exercício intelectual interessante: escrever um

texto que se mantenha dentro da norma ILG mas sem por isso ir

contra a subnorma asturiana do galego. Porém, ao corretor da

editora deveu cansar tanto jogo onde não era possível introduzir

apóstrofos. E é que o apóstrofo marca a diferença, dir-se-ia que o

apóstrofo cria uma língua. Portanto, visto que mesmo sem

apóstrofos os meus textos se adaptavam à «norma galega das

autoridades asturianas» (saliento novamente o paradoxo); e como

era impossível obrigar-me a pôr um apóstrofo o resultado deste

processo foi que não fui convidado no presente ano a participar no

antedito livro.

Pois é. A linguística choca com a política, particularmente com a

má política.

E como fica a coisa?

Para concluir e tentar dar luz sobre esta complexa realidade, a

negação da pertença do eonaviego ao galego-português é ainda uma

pose que se tornou em preceito religioso para o nacionalismo

asturiano mais extremo. Porém, no mundo A seguiu, embora seja

também nacionalista, sabem que não se pode manter a asturianidade

linguística dos falares eonaviegos, pelo qual se apoia a ideia da

terceira língua do tronco galego-português (de facto, são quatro na

Península, pois os falares de Xalma em Cáceres são também outra

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língua independente do tronco galego-português para o governo

regional).

Da Galiza tentou-se aplicar uma subnorma para o galego

eonaviego a partir da adaptação da normativa do ILG (1990). Foram

as normas do galego de Astúrias, que imediatamente obtiveram

réplica na Conselharia de Cultura do Principado, embora não fossem

publicadas até 2007 pela Academia da Língua Asturiana. Trata-se de

uma mera adaptação das normas ortográficas do asturiano, que por

sua vez são uma adaptação das normas do espanhol (mas, lembre-se,

com muitos apóstrofos).

É assim que o eonaviego se pode escrever de múltiplas formas.

Vou dar uma mostra de outra fábula de Esopo, primeiro na versão

ILG (com as modificações propostas polo Coletivo Cotarelo

Valledor em 2000) e a seguir na versão ALlA, mas com os traços

mais afastados do galego comum, que são os promovidos:

A gata e Venus

Uha gata namorouse dun mozo, por eso pediu a

Venus que la transformase en muller.

Venus aceptou el sou rougo e transformoula nuha

guapa damisela. Tan pronto como el mozo la viu,

namorouse dela e levoula unde el como prometida.

Mentres os dous repousaban no cuarto, Venus quixo

saber se a gata non solo mudara a súa forma, senón

tamén os sous costumes de vida, por eso introduciu un

rato no cuarto.

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A gata, escaecendo a súa condición presente, saltou

da cama e perseguiu no rato pra comelo.

Venus quedou toda sorprendida e devolveulle á gata

a súa forma primitiva.

A gata e Venus

Úa gata namorouse d’un mozo, por eso pedíu a

Venus que la transformase en muyer.

Venus aceptou el sou rougo e transformóula núa

guapa damisela. Tan pronto como el mozo la viu,

namoróuse d’ella e llevóula unde el como prometida.

Mentres os dous repousaban nel cuarto, Venus quixo

saber si a gata nun solo mudara a súa forma, sinón

tamén os sous costumes de vida, por eso introducíu un

rato nel cuarto.

A gata, escaecendo a súa condición presente, saltou

da cama y perseseguíu nel rato pa comello.

Venus quedou toda sorprendida e devolvéuye á gata

a súa forma primitiva.

É importante assinalar que o segundo texto está escrito numa

forma semi-oficial.

Assim ficam as coisas. Nos limites do galego-português

nordestino europeu o eonaviego está em perigo de desaparecer.

Enquanto isso, a política entrou para apagar a identidade linguística

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duma população de cerca de 50 mil pessoas para assim acelerar o

seu final.

Em Kladno (Chéquia), agosto de 2012

Publicado em VV.AA. Quem fala a minha língua, Através Editora.

Santiago de Compostela. 2013, pp. 15-34